agente de chris fbi Saviano
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agente de chris fbi Saviano
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES CAMINHO ILUMINADO ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Caminho Iluminado Trilhando a rota do Jornalismo Gonzo André Julião Renan Magalhães Prefácio André Cardoso Czarnobai ! CAMINHO ILUMINADO Pontifícia Universidade Católica de Campinas,2006 Centro de Linguagem e Comunicação Faculdade de Jornalismo Projeto Experimental em Jornalismo (Conclusão de Curso) Orientador: Luiz Roberto Saviani Rey Ilustrações e capa: Gustavo Sobral Editoração: Mateus Yuri Passos m070.4498 J94c Julião, André Gomes. Caminho iluminado: trilhando a rota do jornalismo gonzo. / André Gomes Julião; Renan Magalhães Guedes dos Santos.- Campinas: PUC-Campinas, 2006. 158p. Projeto Experimental, modalidade livro-reportagem. Orientador: Luis Roberto Saviani Rey. Monografia (conclusão de curso) - Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Linguagem e Comunicação, Faculdade de Jornalismo. 1. Jornalismo e literatura. 2. Reportagens e repórteres. I. Santos, Renan Magalhães Guedes dos. II. Rey, Luis Roberto Saviani. III. Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Linguagem e Comunicação, Faculdade de Jornalismo. IV. Título. 20.ed. CDD – m070.4498 " ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Dedicatória Às nossas iluminadas famílias; mecenas desse projeto de vida e razão para o termos realizado. # CAMINHO ILUMINADO $ ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Agradecimentos A dívida de gratidão é com várias pessoas, começando pelos os autores citados no decorrer desta obra. Como poucos acompanharam o processo de feitura deste livro, agradecemos em especial aos entrevistados: André Cardoso Czarnobai que sempre apoiou o projeto, desde que era apenas uma idéia vaga; Celso Falaschi nosso professor por um tempo, nosso mestre para sempre; José Hamilton Ribeiro exemplo de simplicidade, sucesso e perseverança; Matthew Shirts entusiasta de boas idéias e que foi receptivo a esses dois loucos; Arthur Veríssimo uma espécie de porralôca natureba e Zuenir Ventura lição de humildade e paixão pelo jornalismo. Agradecemos também a todos os professores que ajudaram a formar os profissionais que nos tornamos, fosse dando idéias, fosse mostrando novos caminhos a seguir, em especial nosso orientador Luiz Roberto Saviani Rey e ao professor Celso Bodstein, que nos deu preciosas dicas. % CAMINHO ILUMINADO Também uma menção especial aos amigos Daniel Moretto, Gustavo Sobral e Mateus Passos. O primeiro pelas importantes indicações e revisões a respeito de alguns conceitos do pós-modernismo, além da força nos ajustes da capa. O segundo pelas belas ilustrações que engrandecem esta obra. E o terceiro pelo primoroso projeto gráfico. E para finalizar, os mais óbvios entre todos: nossos colegas, amigos, amigas, companheiros e companheiras da turma 2003-2006 de Jornalismo da PUC-Campinas. Inspiração nos momentos de lazer, motivação nas horas de desânimo. & ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Sumário PREFÁCIO Seja marginal, morra herói por André Cardoso Czarnobai...............................................................................................................11 APRESENTAÇÃO Jornalismo o quê?................................................................15 1. T orv elinho no mundo das reportagens O Jornalismo Torv orvelinho Literário, origens e autores.......................................................19 The New Yorker.......................................................................................................22 O Novo Jornalismo....................................................................................................29 Características..............................................................................................................................36 A dupla ousadia da Realidade e do Jornal da Tarde......................................40 Notas.............................................................................................................................45 2. Quando as coisas ficam estranhas, os estranhos viram profissionais Hunter Thompson e o Jornalismo Gonzo....47 Definições e características..................................................................................63 Um novo caminho.................................................................................................72 Notas........................................................................................................................74 3. Nem só de Thompson vive o Gonzo Outros autores seguem o caminho......................................................................77 José Hamilton Ribeiro e a Realidade..........................................................80 O pioneiro da Francisco Sá............................................................................84 ' CAMINHO ILUMINADO Also known as Cardoso.........................................................................................87 Arthur Veríssimo, auto-declarado Gonzo Brasileiro.................................89 O paraíso de Chris Simunek................................................................................90 O camaleão Günter Wallraff................................................................................92 Gonzo em meios audiovisuais............................................................................95 Notas.......................................................................................................................................101 4. T rilhando o Caminho Iluminado O Jornalismo Gonzo Trilhando na pós-modernidade...........................................................103 Gonzo: enriquecimento do jornalismo..........................................................113 Diferentes paradigmas........................................................................................118 Notas.................................................................................................................................................120 Experiências..........................................................................................121 Um pouco do Brasil na fila do INSS por Renan Magalhães...........123 A festa por André Julião...........................................................................135 Obras e pessoas consultadas.............................................147 POSFÁCIO Uma divertida jornada.................................................................153 Notas.............................................................................................................................156 ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Prefácio Seja marginal, morra herói São três e meia da manhã. Uma Porto Alegre morna, úmida e silenciosa se encolhe preguiçosa no meio de uma semana estreita de outubro que, a cada ano que passa, vem se despencando com mais cara de NOVEMBRO pra cima dos VIVENTES locais. Eu, incluso. Enquanto começo a ensaiar os primeiros golpes no teclado em vias de cumprir uma promessa recente feita a um camaradaestudante às vésperas de LAUREAR-SE pelo finito deste TRANCOSO curso jornalístico a que se propôs completar, atento os leitores para a seguinte observação: não há qualquer resquício de álcool e/ou entorpecente de qualquer espécie correndo em minhas veias, concorrendo com os GLÓBULOS escarlate-y-alvos, todas as PLAQUETAS e afins, conforme poderia pensar aquele que se propõe a definir o GONZO JORNALISMO debruçando suas vistas apenas sobre a SUPERFÍCIE. CAMINHO ILUMINADO Do mesmo modo, ao rever a supracitada sentença me vem à mente a revelação de que posso estar contando uma MENTIRA ou duas conforme, do mesmo jeito, poderia pensar OUTREM que também tomba os olhares de forma LEVIANA sobre os vícios e vicissitudes do GONZO JORNALISMO. E pode ser, inclusive, que tudo isso seja MENTIRA. E pode ser que mentira seja APENAS a última frase. Ou o último parágrafo. E pode ser que tudo isso seja VERDADE. Ou nem mesmo a última frase. Pareceu confuso? Muitas vezes, gerar confusão é a melhor arma de que dispomos para transmitir, em suas mais profundas dimensões, alguma COISA a alguma PESSOA. Em outras palavras: fazer jornalismo. Ainda que siga um tanto à margem da academia e das grandes redações, nos últimos quatro ou cinco anos, o GONZO JORNALISMO (ou jornalismo gonzo, como quiserem) vem renascendo de uma forma bastante forte (e curiosa) no mundo todo e começando a esboçar a formação de uma cultura concisa de jornalismo literário dentro do Brasil. O curioso aqui fica por conta do papa deste movimento ser um escritor e jornalista que apareceu nos Estados Unidos na segunda metade dos anos 60. Hunter Stockton Thompson é o criador acidental de um gênero que prega o rompimento COMPLETO com o mito da objetividade jornalística. No gonzo jornalismo, não existe a figura do mediador NEUTRO entre a notícia e o espectador. Em lugar de observador, o jornalista é um PARTICIPANTE ativo do acontecimento, e leva ao seu público uma dimensão mais humana e pessoal e não por isso menos precisa ou informativa da experiência que viveu. Se você parar pra pensar, talvez conclua que não é, assim, tão absurdo o renascimento de um gênero que joga suas luzes sobre a descoberta humana, o fascínio dos erros e dos acertos, as vitórias e derrotas, nossas fraquezas e virtudes. Em uma época onde se hiperdocumenta cada vez mais a existência humana, proliferam as ferramentas em prol do neo-voyeur, que acostumou-se a alimentar- ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES se de fragmentos cada vez mais particulares e íntimos da vida de seus contemporâneos. Classicamente visto como inimigo, a percepção da figura do Big Brother foi lentamente se invertendo, e hoje em dia os reality shows (em seus inesgotáveis formatos e reinvenções) e as comunidades online são os símbolos maiores dessa crescente fome não apenas por consumir, mas também compartilhar suas impressões pessoais sobre, simplesmente, estar vivo. Dentro desta lógica, faz, de fato, muito sentido que o interesse acerca do gonzo jornalismo venha aumentando de forma absurda nos últimos tempos. Me parece correto intuir que a morte de Thompson, no começo de 2005, tenha, de certa forma, criado um mórbido e renovado interesse no gênero, mas não se pode creditar apenas a este SINISTRO evento todas as iniciativas descentralizadas e quase simultâneas que continuam aparecendo, dia após dia, nos jornais, nas revistas, nas emissoras de televisão e na internet. O resgate do gonzo vem aparecendo como tendência desde o começo do novo milênio, mas, mesmo assim, nenhuma faculdade de jornalismo brasileira inclui em seu currículo uma cadeira que se proponha a discutir e examinar esse fenômeno. Muitos professores e jornalistas sequer sabem do que se trata. Preocupado, ao mesmo tempo, em me FORMAR e dar alguma legitimidade ao gonzo jornalismo dentro da academia, apresentei, em 2003, uma das primeiras (não pesquisei intensamente, então não vou encher a boca pra dizer que é a PRIMEIRA e cometer alguma injustiça) monografias brasileiras sobre o gonzo jornalismo. Procurei aprofundar o trabalho começado dois anos antes pela jornalista carioca Cecília Giannetti, e também contei com a indispensável ajuda do jornalista gaúcho Rodrigo Alvares (aka Suruba, um dos fundadores da IRD, que mais tarde desenvolveria um trabalho sobre o gonzo jornalismo no Brasil em sua monografia). Pouco tempo depois de concluído, resolvi publicar o trabalho, na íntegra, no site especializado em gonzo jornalismo que mantenho, a Irmandade Raoul Duke (IRD). A resposta foi insana: convites para palestras e congressos, propostas de publicação e, mais importante que todo o resto, ! CAMINHO ILUMINADO e-mails quase semanais de estudantes de jornalismo interessados. Goianos, paulistas, pernambucanos, cariocas, capixabas, baianos, catarinenses, paranaenses, alagoanos e cearenses: alunos de faculdades espalhadas por todo o território nacional passaram a me procurar e ajudaram a ampliar e aprofundar e melhor de tudo, livre de vaidades a discussão sobre o gonzo jornalismo como gênero jornalístico. Nos últimos três anos, algo entre 15 e 20 monografias sobre o tema foram apresentadas em diversas faculdades brasileiras. A forma honesta com que a informação é colhida e a maneira envolvente com que a narrativa é desenvolvida, contrastam violentamente com os formatos antiquados e sisudos praticados por grande parte da imprensa, que trata o jornalismo muito mais como um negócio e monta linhas de produção em lugar de redações. Talvez por isso, o gênero desperte tanto o interesse dos estudantes que ainda não tiveram seus espíritos quebrados pela rotina esmagadora de uma redação jornalística. Talvez por representar a última ilha de vida inteligente dentro do espinhoso mercado da informação e da notícia. Talvez por soar misteriosamente atual e pertinente apesar dos quase 40 anos de idade. Não sei. Se você me perguntar que motivos levam os jovens a se interessar por tudo isso, eu não sei. Ou talvez eu saiba, e não queira dizer. Ou talvez seja tudo retórica. Mas isso não importa. O que importa é que está escrito e, assim que for concluída a última linha, estará também lido. E o resto é confete. (mentira) André Cardoso Czarnobai 19 de outubro de 2006 " ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Apresentação Jornalismo o quê? A reação é normalmente a mesma quando se fala em Jornalismo Gonzo: Jornalismo o quê?. Mesmo entre jornalistas, o termo é majoritariamente desconhecido. Às vezes, algum sabichão diz uma pérola como: É escrever chapado sobre alguma coisa que você fez ou É Jornalismo com drogas. Dói o tímpano ouvir disparates deste tipo. Não é raro encontrar em fóruns na Internet, ditos especializados, críticas como: Ah, esse cara não é Gonzo, faltaram umas drogas naquele texto. Se não é a ignorância acerca do tema, é uma visão míope. O pouco que se tem no Brasil sobre Jornalismo Gonzo fala apenas de Hunter S. Thompson, considerado o pai do negócio. Isso para não dizer que, depois de André Cardoso Czarnobai o nobre colega que pela primeira vez no Brasil se aprofundou no tema e que nos deu a honra de escrever o prefácio desta brochura , tudo que veio é apud Czarnobai. Claro que nosso voto de gratidão vai também para Cecília Giannetti, outra que abordou o tema ainda em 2002. # CAMINHO ILUMINADO Vendo o Jornalismo Gonzo ser bombardeado pela ignorância e pela miopia, não pudemos ficar calados. Outros temas vieram, propostas tentadoras nos chegaram às mãos mas tínhamos um caminho a trilhar. Pode parecer exagero, mas nos sentíamos incumbidos de uma missão. A sensação era de que se não tratássemos deste assunto na Academia agora, tão cedo ninguém o faria. Pelo menos não da forma como imaginávamos que deveria ser. Ali estávamos nós, em tardes e noites sonolentas, em sofás ou em pufes (cada um na sua casa, frise-se), lendo aquele monte de coisas sobre Jornalismo Literário, Jornalismo Gonzo, objetividade, subjetividade e algumas perguntas começaram a ser feitas mutuamente. E isto aqui, não é Gonzo? Pelo menos não se assemelha muito? E aquela técnica ali, já não era usada bem antes? Há quem diga que não se pode emular o Gonzo, que Thompson foi único, inimitável. Concordamos. Mas não seria uma visão míope afirmar que ele foi o único autor que usou de subjetividade ao extremo para mostrar situações? Por outro lado, os mesmos que dizem que Jornalismo Literário não existe, que Esse negócio não se aplica, falam sem problemas que Hiroshima, de John Hersey, é um excelente livro. Que a cobertura da Guerra do Vietnã feita por José Hamilton Ribeiro foi brilhante. Contradição pura: se a obra de Hersey sobre a explosão da bomba atômica é ótima, como pode não existir Jornalismo Literário? Se Zé Hamilton fez muito bem quando contou em primeira pessoa sua experiência na guerra, por que o estilo não se aplica? O que propomos aqui não é nenhuma abstração, nenhuma grande utopia, apenas a legitimação de algo que já é feito há décadas. E que, mesmo entre jornalistas, nem sempre é (re)conhecido. Para começar, este livro se propõe a descrever o processo histórico que culminou no estilo de jornalismo chamado de Gonzo. Desta forma, abordaremos o surgimento e desenvolvimento do Jornalismo Literário até a corrente conhecida como Novo Jornalismo, nascida nos Estados Unidos durante a metade final da década de 50 e início dos anos 60. $ ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Como veremos, o Jornalismo Gonzo recebe esse nome no meio da década de 60, quase como um subproduto do Novo Jornalismo. Feita a explanação sobre as origens, iremos conceituar o que é exatamente este estilo, contando sua história e elencando as suas características, com foco na vida e na obra de Hunter S. Thompson. Com o conceito devidamente esclarecido, vamos discorrer sobre a prática do estilo por outros autores, do Brasil e do exterior, demonstrando características comuns na obra de jornalistas como Joel Silveira, José Hamilton Ribeiro, Arthur Veríssimo, Chris Simunek, Günter Wallraff e do próprio Cardoso. Outro ponto relevante a ser tratado é a presença do Gonzo nos meios audiovisuais, que pode ser percebida nos documentários de Michael Moore e Morgan Spurlock. Nos aventuramos, ainda, a propor o Jornalismo Gonzo como uma alternativa para a crise de leitura dos jornais impressos. O capítulo identifica também bases filosóficas e conceituais inclusive a partir da argumentação de autores identificados como pós-modernos que sustentam a prática deste estilo Não satisfeitos em explorar todas essas teorias, enfiamos a mão na massa e realizamos duas narrativas Gonzo sobre temas nacionais. A reeleição de Luis Inácio Lula da Silva e a situação das pessoas que passam a noite na fila do INSS foram as pautas que escolhemos para provar que o Jornalismo Gonzo pode ser aplicado a qualquer tema. Desde que bem feito. % CAMINHO ILUMINADO & ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES 1. Torvelinho no mundo das reportagens O Jornalismo Literário, origens e autores Tom Wolfe ' CAMINHO ILUMINADO ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES New journalism (ou narrative writing, que seja) quer dizer apenas escrever bem. É um texto literário que não é inventado, não é ficção, mas que é narrado como um conto, como uma seqüência de filme. É como um enredo dramático digno de ser levado aos palcos e não apenas um amontoado de fatos, fácil de ser digerido. (Gay Talese) O Jornalismo Literário * é praticado há mais tempo do que geralmente se pensa. Nem sempre foi assim chamado, é verdade; sequer foi sempre considerado um gênero à parte, diga-se. Mas, mesmo que não da forma como o conhecemos hoje, o Jornalismo Literário já existia Por Jornalismo Literário explicamos, por enquanto, que são narrativas (reportagens, perfis) sobre pessoas, lugares e/ou eventos reais. Não confundir com jornalismo sobre livros nem com formas ficcionais publicadas em periódicos, como os folhetins. Ao longo deste capítulo o assunto será aprofundado. * CAMINHO ILUMINADO quando uns estadunidenses saíram dizendo, na década de 60, que havia um Novo Jornalismo sendo praticado. Há registros de que em 1700, os escritos do norte-americano Daniel Defoe carregassem características do estilo de reportagem com elementos literários1 Aqui mesmo em nossa plaga, um dos clássicos da Literatura é Os Sertões, de Euclides da Cunha, lançado em 1906. O livro é resultado da cobertura sobre a Guerra de Canudos, entre agosto e outubro de 1897, quando Euclides era correspondente do jornal O Estado de S. Paulo. É claro que a escrita, em alguns momentos demasiado rebuscada, não é a que se tem hoje neste estilo, em que se prima pela clareza com elegância. Mas ele pode ser considerado um precursor. Alguns autores chegam até a considerar a carta de Pero Vaz de Caminha, de 1500, como uma forma primária do Jornalismo Literário, se enquadrando na modalidade Narrativa de Viagem. O estadunidense John Reed cobriu duas importantes revoluções do século passado, a bolchevique e a Mexicana, em que o uso de diálogos e descrições minuciosas pode ser conferido nos livros Os dez dias que abalaram o mundo e México Rebelde2, respectivamente. A também jornalista e escritora Lillian Ross diz que grandes repórteres-escritores não surgiram só no século 20. São parte de uma tradição de centenas de anos. Além de Daniel Defoe, ela cita Ivan Turgueniev e Henry Mayhew, que gostariam de escrever para a New Yorker. Todos esses escritores amavam fatos. 3 The New Yorker Fundada por Harold Ross e sua esposa, Jane Grant, The New Yorker teve sua primeira edição lançada em 17 de fevereiro de 1925. A intenção era criar uma sofisticada revista de humor, o que não impediu de rapidamente se tornar conhecida como um proeminente espaço de jornalismo sério e ficção. Ross foi editor da New Yorker até seu falecimento, em 1951. Durante os 26 anos em que foi responsável pela revista atraiu diversos escritores talentosos: James Thurber, E.B. White, Katherine Angell, S.J. ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Perelman, Janet Flanner, Wolcott Gibbs, Alexander Woollcott, John OHara, Robert Benchley e Dorothy Parker. Sempre cuidadoso e preocupado em manter a revista concisa e limpa, dedicava muito tempo ao trabalho, o que lhe custou três casamentos. O lendário editor que comandaria a revista por 36 anos depois da morte de Ross (de 1951 a 1987) chegou à redação em 1933. Seriam submetidos a William Shawn os originais de gente como Edmund Wilson (Os manuscritos do mar Morto), John Hersey (Hiroshima), Mary McCarthy (Memórias de uma menina católica, entre outros), S.N. Behrman (Duveen O marchand das vaidades), Lillian Ross (Filme), Hannah Arendt (Eichmann em Jersusalém) e Truman Capote (com quem trabalhou por anos no manuscrito de A sangue frio). Shawn era um editor diferente. Dotado de um estilo reservado, era sigiloso e enigmático como condutor da revista. Comprava artigos que ficavam na gaveta por anos até serem publicados quando isto ocorria. Mas dava liberdade e tempo para os membros da equipe e colaboradores trabalharem e, por isso, era admirado por muitos. Ficou conhecido por afinar textos que se tornaram clássicos. Sua busca pela clareza era tão obsessiva que circulava pelos corredores da New Yorker a história de que o Novo Testamento seria um livro muito melhor, se tivesse resultado da colaboração entre Mateus, Marcos, Lucas e Shawn. Um exemplo da singularidade da revista é algo que parece impensável hoje em dia: de sua criação, em 1925, até 1987, a New Yorker nunca pautou seus repórteres. Shawn dizia que, sendo aquela uma revista de escritores e artistas gráficos, era fundamental que os colaboradores pudessem escrever aquilo que lhes convinha. Um dos problemas com a encomenda de matérias é que elas transformam colaboradores em empregados4, dizia. Os colaboradores contavam com uma estrutura sem paralelo na história editorial dos Estados Unidos. Tamanho era o cuidado com o texto que, não bastasse os editores propriamente ditos, a New Yorker tinha um departamento de checagem e, ainda, uma profissional responsável exclusivamente por gramática, sentido, clareza e consistência. Para a crítica, ter um texto aceito pela revista fazia do ! CAMINHO ILUMINADO repórter um escritor; suas colaborações eram chamadas de sua obra. Todo este rigor, aliado à cultura própria da New Yorker, era perfeito para que talentos como o de Joseph Mitchell pudessem florescer.5 JOSEPH MITCHELL E OS PEQUENOS GRANDES PERSONAGENS Joseph Mitchell nasceu em 1908, no estado da Carolina do Norte, sul dos Estados Unidos. Filho de um plantador e negociador de algodão, seria o sucessor do pai nos negócios, mas sua inabilidade para com os números o fez pensar que não seria um bom comerciante, o que o fez desembarcar em Nova York em outubro de 1929. Marcaram-lhe em sua infância e adolescência as visitas que fazia com as tias aos velhos cemitérios da região. Lá estavam enterrados não só os parentes como os pequenos grandes personagens do folclore local. Passando das mãos de uma tia para as da outra, ele ia ouvindo as histórias contadas sobre os ocupantes de cada túmulo. Não eram histórias mórbidas: misturavam fatos biográficos com fantasias e fofocas. Uma espécie de homenagem a cada morto. Também não eram histórias necessariamente edificantes. Se o morto tivesse sido uma peste, as tias não economizavam adjetivos azedos, porém, mesmo nesses casos a homenagem estava lá: entre gritinhos, muxoxos e risadas, o morto era lembrado. 6 A capacidade do relato oral seria sempre lembrada por Mitchell. Em vez de falar de celebridades, Mitchell escreveu sobre índios, ciganos, anarquistas, barmen, bilheteiras de cinema, surdos-mudos, papais-noéis, exterminadores de rato, criadores de baratas de corrida, mulheres barbadas, trabalhadores do cais. Ele inaugurou uma nova categoria no jornalismo literário: o pequeno tema (o que não significa pequeno personagem Mitchell ficava muitos triste quando diziam que seus personagens eram pequenos). Em seus escritos não passeiam vedetes, nem políticos, nem assassinos nem capitães da indústria. Ninguém vence, morre, fica rico ou se supera. 7 Porém, são todos extraordinários personagens. O mais marcante pequeno grande personagem de Mitchell foi Joe Gould, um boêmio formado em Harvard que perambulava por Nova " ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES York e dizia estar escrevendo uma obra chamada Uma História oral de nossa época. No futuro, afirmava, seria reconhecido como o historiador mais brilhante do século. Sua obra consistia na transcrição de conversas ouvidas entre pessoas comuns e ensaios sobre temas diversos como tomates e índios. Talvez este gosto em comum em ouvir pessoas normais tenha sido o motivo de Mitchell ter se envolvido tanto com o personagem. Em 1942, ele escrevia o primeiro perfil do boêmio: O professor gaivota. Joe Gould é um homenzinho alegre e macilento, conhecido em todas as lanchonetes, tabernas e botecos imundos do Greenwich Village há um quarto de século. Às vezes ele se gaba de ser o último dos boêmios. Os outros todos caíram fora, explica. Uns estão na cova, outros no hospício e alguns no ramo publicitário. Sua vida não é nada fácil; três flagelos o atormentam: falta de teto, fome e ressaca. Gould dorme nos bancos das estações do metrô, no chão do apartamento dos amigos e nos albergues da Bowery, onde o pernoite custa 25 centavos. [...] Tem 1,62 metro de altura e dificilmente pesa mais que 45 quilos. Pouco tempo atrás comentou com um amigo que não faz uma refeição decente desde junho de 1936, quando foi de carona até Cambridge e participou de um banquete da classe de Harvard de 1911, à qual pertence. Nos Estados Unidos, sou a maior autoridade em privação, garante. Vivo de ar, auto-estima, guimba de cigarro, café de caubói, sanduíche de ovo frito e ketchup. E esclarece que café de caubói é café preto, forte, sem açúcar. Há muito tempo perdi o prazer do bom café, diz ele. Prefiro o tipo que, se você sempre toma, fica com as mãos trêmulas e o branco dos olhos amarelo.8 Mais de vinte anos depois, em 1964, Mitchell escreveria O segredo de Joe Gould. E certamente só o fez porque seu pequeno grande personagem havia morrido sete anos antes. Depois disso, as únicas linhas que publicou foram uma nota de introdução do livro que # CAMINHO ILUMINADO compilava os dois perfis de Gould, no início dos anos 90. Mesmo não tendo publicado mais nada na New Yorker nem em qualquer outra publicação, Mitchell continuou indo à redação todos os dias e recebendo seu salário de 20 mil dólares anuais, até o ano em que morreu, 1996. Dentre as especulações sobre o seu silêncio, existe a de que teria se punido por ter revelado o segredo de Gould; outros dizem que a autoexigência com o que escrevia o teria levado à incapacidade de produzir. O documentarista João Moreira Salles, que escreve o posfácio de O segredo de Joe Gould, lançado aqui só em 2003, dá uma outra versão: os personagens sobre as quais Mitchell escrevia já não existiam mais. Ele passara a vida escrevendo sobre pessoas e lugares que, apesar de estarem em vias de desaparecimento, continuavam firmes e fortes, resistindo. Seu tema era a permanência. 9 Salles cita Russel Baker, que diz que quando Mitchell deixou de escrever, Nova York era outra. O martini havia sido substituído pelo LSD. Mitchell se calou, mas não fez alarde. Não foi um silêncio espalhafatoso. Sempre que perguntavam o que estava escrevendo, ele respondia que estava terminando um artigo. Só faltavam alguns retoques. HIROSHIMA: A MAIS IMPORTANTE REPORTAGEM DO SÉCULO XX Hiroshima é uma espécie de Cidadão Kane do jornalismo. A definição do jornalista Matinas Suzuki Jr. para a obra de John Hersey dá uma boa noção da qualidade desta reportagem, editada pela primeira vez em 1946 um ano depois da explosão que devastou a cidade japonesa, matando 100 mil pessoas e deixando outra centena de milhar ferida. Hersey passou cerca de 20 dias no Japão. De volta aos Estados Unidos, demorou seis semanas para escrever a reportagem para a New Yorker. É claro que, quando entregou as 150 páginas do texto, recebeu inúmeras sugestões de mudança de Ross e Shawn. Apenas a primeira parte recebeu 47 observações. Mais 27 depois que o repórter a reescreveu e seis depois de re-reescrita. Com a ajuda dos dois editores, John Hersey relatava o dia da explosão e os que se seguiram, sob a perspectiva de seis sobreviventes. $ ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES A reportagem seria inicialmente publicada em série, como sempre acontecia com as histórias longas. Mas Shawn propôs a Ross que fosse publicada na íntegra, ocupando toda uma edição da New Yorker. Por dez dias, Hersey, Shawn e Ross trabalharam fechados no escritório do publisher-editor dando os últimos retoques. A edição monotemática era segredo até mesmo para o departamento comercial da revista. Só uma das seções regulares, a programação cultural da semana de Nova York, seria mantida naquelas 68 páginas da edição de 31 de agosto de 1946. Uma cinta branca de papel avisava, na capa: Esta semana The New Yorker devota todo o espaço editorial a um artigo sobre a quase completa obliteração de uma cidade por uma bomba atômica e sobre o que aconteceu à população daquela cidade. Isso é feito com base na convicção de que poucos de nós compreenderam todo o inacreditável poder destrutivo dessa arma, e de que todos possam ter tempo para considerar a terrível implicação do seu uso.10 Os 300 mil exemplares daquela edição da New Yorker se esgotaram rapidamente nas bancas. Cópias chegaram a ser vendidas por entre quinze e vinte dólares (o preço de capa era de quinze centavos de dólar!). De todos os Estados Unidos chegavam pedidos de autorização para reimpressão da história, cujos direitos eram doados para a Cruz Vermelha. Atores leram a matéria na cadeia de rádio ABC. O físico Albert Einstein fez um pedido de compra de mil exemplares, o qual não pôde ser atendido. Não houve resultados práticos e imediatos da reportagem de Hersey sobre a política estadunidense em relação à bomba atômica, mas um amplo desconforto foi criado. Pouco depois da publicação daquela New Yorker, uma declaração do almirante William F. Halsey circulou nos jornais, afirmando que a bomba era desnecessária quando foi usada, haja vista que o Japão estava prestes a se render. Em dezembro de 1947, a Harpers publicava um tipo de reposta oficial a Hiroshima, assinada pelo ex-secretário de guerra, Henry Stimsom, intitulada A % CAMINHO ILUMINADO decisão de usar a bomba atômica. Ironicamente, o livro com a reportagem de Hersey não foi lançado no Japão palco da história tão cedo, graças à ocupação estadunidense, que não permitiu. O choque que a matéria causou nos Estados Unidos se deu, em grande parte, pela carência de informações sobre a explosão. Mas é impossível negar que o caráter humano da narrativa, se atendo às vítimas e não apenas a números, foi fator preponderante para o sucesso daquela edição da revista e do livro que se seguiu. No dia 6 de agosto de 1945, precisamente às oito e quinze da manhã, hora do Japão, quando a bomba atômica explodiu sobre Hiroshima, a srta. Toshiko Sasaki, funcionária da Fundição de Estanho do Leste da Ásia, acabava de sentar-se a sua mesa, no departamento de pessoal da fábrica, e voltava a cabeça para falar com sua colega da escrivaninha ao lado. Nesse exato momento o dr. Masakazu Fujii se acomodava para ler o Asahi de Osaka no terraço de seu hospital particular, suspenso sobre um dos sete rios deltaicos que cortam Hiroshima; a sra. Hatsuyo Nakamura, viúva de um alfaiate, observava, da janela de sua cozinha, a demolição da casa vizinha, situada num local que a defesa aérea reservara às faixas de contenção de incêndios; [...]. Uma centena de milhares de pessoas foram mortas pela bomba atômica, e essas seis são algumas das que sobreviveram. Ainda se perguntam por que estão vivas, quando tantos morreram. Cada uma delas atribui sua sobrevivência ao acaso ou a um ato da própria vontade um passo dado a tempo, uma decisão de entrar em casa, o fato de tomar um bonde e não outro. Agora cada uma delas sabe que no ato de sobreviver viveu uma dúzia de vidas e viu mais mortes do que jamais teria imaginado ver. Na época não sabiam nada disso.11 Matinas Suzuki Jr. afirma que para muitos, o jornalismo literário moderno começa, se não com Hiroshima, com John Hersey. Citando Ben Yagoda, diz que Hersey, que tinha o olho e a orelha de um romancista e a ética de trabalho de um repórter, era a pessoa perfeita & ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES para misturar a forma ficcional com o conteúdo jornalístico; The New Yorker, com a reputação de ser impecavelmente acurada, era o lugar perfeito para dar respeitabilidade a esse novo método. O Novo Jornalismo Era o ano de 1962 quando Tom Wolfe chegou ao New York Herald Tribune. Naquela época havia nos jornais dois tipos de repórteres: o que buscava o furo jornalístico e o conhecido como escritor de reportagens especiais. A diferença entre eles era que, enquanto um procurava dar uma notícia antes dos concorrentes, o outro escrevia Reportagens especiais expressão usada para definir uma matéria que escapava à categoria da notícia tradicional. Abrangia tudo, desde pequenos fatos divertidos, engraçados, geralmente do movimento policial... até histórias de interesse humano, sobre pessoas desconhecidas colhidas pela tragédia. 12 No Herald Tribune, os escritores de reportagens especiais eram, além de Wolfe, Jimmy Breslin, Charles Portis e Dick Schaap; no New York Times, Gay Talese e Robert Lipsyte; no Daily News, Michael Mok. Para Wolfe, todos tinham um pensamento em comum, de que o jornal era apenas uma fase, um motel onde você se hospedava para passar a noite a caminho do triunfo final. O trabalho na redação dava para pagar as contas, melhorar o estilo. E, quando se acumulasse a experiência necessária, o repórter simplesmente se demitiria para escrever O Romance. O romance nos anos 40, 50 e início dos 60 era, segundo o autor, não uma mera forma literária, mas um fenômeno psicológico, em algum ponto entre o narcisismo e neurose obsessiva13 Era uma forma das pessoas transformarem seu destino, ascender socialmente na vida. Era um dos meios de alcançar o Sonho Americano a crença de que qualquer estadunidense tem a chance de ser bem-sucedido, rico e feliz se trabalhar duro. Essa expressão (American Dream) entrou no vocabulário americano quando o escritor Horatio Alger lançou o livro Ragged Dick, em 1867, que contava a história de um órfão que, trabalhando ' CAMINHO ILUMINADO duro e poupando dinheiro, acabou se tornando rico. Desde então criouse a crença de que por meio da honestidade, trabalho duro e forte determinação, o Sonho Americano estava disponível a qualquer um que quisesse fazer a jornada.14 Não era algo tão distante para aqueles jornalistas, afinal, todos os romancistas dos anos 30 pareciam vir da total obscuridade para o estrelato (Steinbeck, Cain, Wright, Saroyan, Faulkner) No começo da década de 60, uma curiosa idéia começou a se alastrar pelo mundo das reportagens especiais. Essa descoberta, de início modesta, na verdade, reverencial, poderíamos dizer, era que talvez fosse possível escrever jornalismo para ser... lido como um romance. Mas foi só no final de 1966 que se começou a ouvir falar de um Novo Jornalismo. Apesar de não gostar do rótulo, Wolfe via o movimento não só como uma mudança no Jornalismo, mas como um divisor de águas na literatura, que tomaria o trono do romance. Não era nenhum movimento. Não havia manifestos, clubes, salões, nenhuma panelinha; nem mesmo um bar onde se reunissem os fiéis, visto que não era nenhuma fé, nenhum credo. Na época, meados dos anos 60, o que aconteceu foi que, de repente, sabia-se que havia uma espécie de excitação artística no jornalismo, e isso em si já era uma novidade.15 Não havia nenhuma pretensão, por parte dos repórteres, em criar um estilo quando eles (dentre os quais, o próprio Wolfe) entraram para o Jornalismo. Sei que eles nunca sonharam que nada que fossem escrever para jornais e revistas provocasse tamanho torvelinho no mundo literário... causando pânico, tirando do romance o trono de gênero literário número um, inaugurando a primeira novidade da literatura americana em meio século... No entanto, foi isso que aconteceu.16 Um dos primeiros daquela geração a dar um salto qualitativo nas reportagens especiais foi o descendente de italianos Gaetano Galantino Septimo Talese, conhecido como Gay Talese. Numa edição ! ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES da Esquire de 1962, lia-se sob o título Joe Louis: o Rei na meia-idade uma abertura incomum até então: Oi meu bem!, Joe Louis disse a sua mulher, ao vê-la esperando por ele no aeroporto de Los Angeles. Ela sorriu, foi até ele, e estava quase se pondo na ponta dos pés para beijá-lo quando, de repente, parou. Joe, disse ela, cadê sua gravata? Ah, benzinho, ele disse, dando de ombros. Fiquei acordado a noite inteira em Nova York e não tive tempo de... A noite inteira!, ela cortou. Quando está aqui, você só quer saber de dormir, dormir e dormir. Benzinho, disse Joe Louis, com um sorriso cansado, eu estou velho. É, concordou ela, mas, quando vai para Nova York, você tenta ficar moço de novo.% O perfil do ex-boxeador era todo recheado de cenas cotidianas e diálogos, mostrando a vida privada comum de um homem que já fora um ídolo e agora estava ficando velho, careca e triste. Para Wolfe, um pouco retrabalhado, o texto soaria como um conto. Apenas as passagens narrativas se assemelhavam às de reportagens de revista dos anos 1950 (Talese tem entre suas influências Lillian Ross, que escreveu um famoso perfil de Ernest Hemingway e o livro Filme18). Edvaldo Pereira Lima vê nesta cena e noutra, no final do perfil, três recursos do Novo Jornalismo: (1) cena o ex-boxeador encontrando a mulher no aeroporto, (2) diálogo que os dois travam sobre a gravata etc. e (3) símbolos do status de vida quando, depois, Talese apresenta a ex-mulher de Joe Louis na sala de casa assistindo a uma luta antiga, enquanto o atual marido toma, resignado, seu scotch. Wolfe diz que no momento em que leu aquele artigo numa revista escrito por um repórter do New York Times, portanto, um de seus concorrentes no jogo das reportagens especiais teve o mesmo pensamento que muitos jornalistas e intelectuais teriam a respeito do ! CAMINHO ILUMINADO Novo Jornalismo ao longo dos anos. Minha reação instintiva, defensiva, foi achar que o sujeito tinha viajado, como se diz... improvisado, inventado o diálogo... Nossa, ele talvez tenha inventado cenas inteiras, o nojento inescrupuloso...19 O choque se deu porque a reportagem estilosa era algo com que ninguém sabia lidar ainda, apesar da tradição da New Yorker, Esquire etc. Ninguém normalmente concebia que a reportagem tinha uma dimensão estética. O próprio Wolfe experimentaria o estilo mais arrojado no ano seguinte, com o seu Lá vai (Brrrum! Brrrum!) aquele aerodinâmico bebê (Rahghhh!) floco de tangerina cor de caramelo (Thphhhhhh!) virando a esquina (Brummmmmmmmmmmm).... (Sim, acredite, este era o título da sua reportagem.) Com ela, Wolfe viu a possibilidade de haver algo novo no jornalismo. O que me interessava não era simplesmente a descoberta da possibilidade de escrever não-ficção apurada com técnicas em geral associadas ao romance e ao conto. Era isso e mais. Era a descoberta de que é possível na não-ficção, no jornalismo, usar qualquer recurso literário, dos dialogismos tradicionais do ensaio ao fluxo de consciência, e usar muitos tipos diferentes ao mesmo tempo, ou dentro de um espaço relativamente curto... para excitar tanto intelectual como emocionalmente o leitor.20 Wolfe usa como poucos esta infinidade de recursos. São onomatopéias, pontuações inusitadas, mudança do ponto de vista (da primeira para a terceira pessoa e até mesmo para a segunda), monólogo interior, citações literais de diálogos, além das descrições minuciosas de ambientes e pessoas. Gay Talese, embora admita que seus textos daquela época podem ser classificados como Novo Jornalismo, não gosta da classificação, pois seus romances com nomes reais não têm, segundo o próprio, a pretensão de ser uma tentativa reformista da literatura ou do jornalismo. São a minha resposta altamente pessoal ao mundo, enquanto um outsider ítaloamericano. Mas se propõe a explicar, no prefácio de Fama & Anonimato: ! ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Embora muitas vezes seja lido como ficção, o novo jornalismo não é ficção. Ele é, ou deveria ser, tão fidedigno quanto a mais fidedigna reportagem, embora busque uma verdade mais ampla que a obtida pela mera compilação de fatos passíveis de verificação, pelo uso de aspas e observância dos rígidos princípios organizacionais à moda antiga. O novo jornalismo permite, na verdade exige, uma abordagem mais imaginativa da reportagem, possibilitando ao autor inserir-se na narrativa se assim o desejar, como fazem muitos escritores, ou assumir o papel de um observador neutro, como outros preferem, inclusive eu próprio.21 Talese chega ao ponto de descrever o que os personagens pensam enquanto se passa a cena por ele narrada. Esse tipo de insight depende, naturalmente, da cooperação total da pessoa sobre a qual se escreve, mas se o escritor goza de sua confiança, é possível, por meio de entrevistas, fazendo as perguntas certas nas horas certas, aprender e reportar o que se passa na mente de outras pessoas.22 Este recurso, inclusive, foi muito utilizado em suas obras posteriores (A mulher do próximo, O reino e o poder, Honor thy father), quando o Novo Jornalismo já era uma fase terminada. Lillian Ross, embora devote respeito a Talese, critica este recurso. Para ela, nenhum repórter sabe o que alguém pensa ou sente. Um escritor factual demonstra possíveis pensamentos e sentimentos interiores revelando a ação e revelando o diálogo. Cabe ao leitor decidir quais emoções e pensamentos devem ser esses.23 Uma reposta de Wolfe à idéia de Lillian é o perfil que ele fez de Phil Spector. O texto começa não só dentro da cabeça do personagem mas com um fluxo de consciência virtual.24 Uma revista considerou o feito de Wolfe improvável e numa entrevista perguntou a Spector se ele não achava a passagem uma ficção. O personagem disse que havia achado aquele trecho bastante apurado. Isso não devia ser nenhuma surpresa, uma vez que cada detalhe da passagem tinha sido tirado de uma longa entrevista com Spector sobre o que ele sentira exatamente na época25 !! CAMINHO ILUMINADO As coisas mais importantes que se tentava em termos de técnica dependiam de uma profundidade de informação que nunca havia sido exigida do trabalho jornalístico. Só através das formas mais investigativas de reportagem era possível, na não-ficção, usar cenas inteiras, diálogo extenso, ponto de vista e monólogo interior. Por fim, eu e outros seríamos acusados de entrar na cabeça das pessoas... Mas, exatamente! Entendi que era mais uma porta em que o repórter tinha de bater.26 Talese executou as técnicas do Novo Jornalismo como poucos. Durante três anos (de 1961 a 1964) freqüentou o canteiro de obras da ponte Verrazano-Narrows, que depois de pronta ligaria Staten Island ao Brooklyn, Nova York. Não apenas visitou os barracões dos operários, dos dois lados do rio Hudson, como muitas vezes pôs um capacete e se misturou aos operários, se equilibrando em vigas de aço e em cabos que se estendiam cerca de 180 metros acima do mar. Não bastasse, foi várias vezes à reserva Caughnawaga, perto de Montreal, Canadá, em carros velhos dirigidos por índios bêbados de uísque que iam visitar suas famílias nos finais de semana. Essa reportagem deu origem ao livro A ponte, que, compilado a Nova York A jornada de um serendipitoso e a vários perfis de famosos dentre os quais um de Frank Sinatra, Sinatra está resfriado, e o supracitado Joe Louis: o Rei na meia-idade gerou o livro Fama & Anonimato. Nova York é uma cidade de coisas que passam despercebidas. É uma cidade que tem gatos dormindo debaixo dos carros, dois tatus de pedra que escalam a catedral de St. Patrick e milhares de formigas que rastejam no alto do Empire State Building. As formigas provavelmente foram levadas para lá pelo vento ou pelos pássaros, mas ninguém sabe ao certo; ninguém em Nova York sabe mais sobre as formigas do que sobre o mendigo que toma táxis para o Bowery; ou sobre o homem alinhado que retira lixo dos latões da Sixth Avenue; ou sobre o médium das imediações da West Seventy Street que afirma: Sou clarividente, clariaudiente e clari-sensorial. !" ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Nova York é uma cidade para excêntricos e uma central de pequenas curiosidades. Os nova-iorquinos piscam 28 vezes por minuto, quarenta quando estão tensos. A maioria das pessoas que comem pipoca no Yankee Stadium pára de mastigar por um instante, pouco antes de um jogador fazer um arremesso. As pessoas que mascam chicletes nas escadas rolantes da Macys param de mascar por um instante, logo antes de descer - para se concentrar no último degrau.27 Mas o verdadeiro torvelinho no mundo literário de que Tom Wolfe fala ocorre mesmo em 1966, quando o Novo Jornalismo é aplicado na forma de livro-reportagem. Truman Capote, escritor de ficção de longa data, com a carreira em baixa, publica A sangue frio. O livro, antes publicado em capítulos na New Yorker, era resultado de seis anos e meio de trabalho de entrevista e escrita. Agora, um romancista era que enveredava pelo caminho do jornalismo e não mais o contrário. Quando lê uma pequena nota no New York Times sobre o assassinato de quatro membros de uma família no Kansas, Capote vai até a pequena Holcomb e entrevista moradores, amigos da família e policiais por um ano e meio. Descobertos os assassinos, Capote os visita diariamente na cadeia da cidade e, depois, no corredor da morte. Capote diria que inventou um novo estilo, o romance de nãoficção. O que a sua obra se diferenciava de todas as reportagens escritas em estilo literário naquela década era que tratava de um assunto de grande repercussão nos Estados Unidos. Os quatro membros da família Clutter foram assassinados com tiros na cabeça à queima-roupa, o que valeu aos assassinos a condenação à forca. Para o professor Celso Falaschi, a grande sacada de Truman Capote foi tratar de um assunto que mexeu com os americanos de um modo geral. Até então, no período do Novo Jornalismo, as histórias contadas pela corrente eram os features, assuntos como celebridades e anônimos, nada que causasse choque como aquele crime. !# CAMINHO ILUMINADO Em 1968, outro romancista de renome entra para o time: Norman Mailer. Ele denominaria o seu Os exércitos da noite de história como romance, romance como história. A partir de 1969 o Novo Jornalismo ganha um status literário não se podia mais negar sua qualidade. Características O Jornalismo Literário como o conhecemos hoje possui sete características essenciais. É claro que a evolução natural do gênero pode, amanhã, trazer novos recursos, mas listamos aqueles que são caracterizados por Norman Sims e Edvaldo Pereira Lima. IMERSÃO O repórter de Jornalismo Literário tem que, necessariamente, imergir no tema de que está tratando. Para isso, a pesquisa documental é o primeiro passo. Ele vai estudar tudo o que puder sobre aquele assunto. Não obstante, o repórter tem que se inserir naquele universo, para ver como funcionam as relações, quem são os envolvidos, como falam, o que querem. É um processo de constante e detalhada observação. Caco Barcelos pesquisou por anos o narcotráfico carioca, leu processos, subiu a favela Santa Marta inúmeras vezes para conversar com traficantes e moradores; tudo para escrever Abusado O dono do morro Dona Marta. Segundo Norman Sims, citado por Falaschi, a imersão denota audácia, autoridade, credibilidade e emoção. PRECISÃO DE DADOS Para uma reconstrução fiel dos fatos, é necessário que todos os dados sejam reproduzidos com precisão. É uma forma de tornar ainda mais crível a grande reportagem, seja menos longa, seja em livro. A precisão de dados é fundamental como um referencial da prática jornalística. ESTILO Com dados precisos e com pesquisa documental e entrevistas feitas, é preciso escrever. Uma compilação de tantas informações precisa ter !$ ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES uma leitura agradável. Para isso, estilo é primordial. As fórmulas da imprensa periódica não funcionam aqui. A reportagem deve ser redigida com viés literário, como um romance ou um conto; as informações devem ser distribuídas ao longo do texto. O desenvolvimento de um estilo é um ponto fundamental no Jornalismo Literário. Desta forma, o autor distingue sua obra e permite seu reconhecimento diante de seus leitores, assim como acontece com os escritores de ficção. Pode-se usar de suspense, e de flashbacks (a memória dos personagens e a do repórter, em alguns casos). O ponto de vista pode ser expresso tanto na primeira como na terceira pessoa (narrador onisciente). Como na ficção, o estilo deve ser ajustado de modo a causar impacto no públicoalvo. 28 HUMANIZAÇÃO Se estamos falando de uma redação parecida com a do romance e do conto, é preciso haver personagens. No Jornalismo Literário, parte-se sempre da perspectiva dos protagonistas e antagonistas da história. Dados devem servir de apoio para demonstrar a situação deste ou daquele personagem. John Hersey, em Hiroshima, falou da explosão da bomba atômica sob o ponto de vista de seis personagens onde estavam no momento, o que sofreram, o que tinham, o que perderam. No JL parte-se do particular para o geral, não o contrário. VOZ AUTORAL A voz autoral é como os valores e emoções do repórter se refletem no texto. Cada pessoa vê o mundo de uma forma e, por isso, não há como um relato ser igual ao outro. Ela permite que o autor use seus próprios filtros para contar uma história. Porém, deve haver a preocupação em evitar distorções. A voz autoral é considerada tão importante nesse tipo de produção jornalística quanto a ambientação de um acontecimento na estrutura textual.29 !% CAMINHO ILUMINADO DIGRESSÃO A digressão é uma forma do autor tratar de um assunto que não diz respeito diretamente ao que está sendo contado. É um recurso que permite explorar diversos contextos pertinentes ao tema tratado ou sobre os quais o autor deseja abordar. É, também, a busca de referenciais contextualizados que tornam mais claros determinados acontecimentos e atitudes.30 USO DE SÍMBOLOS (METÁFORAS E METONÍMIAS) As metáforas e metonímias são outro recurso para que a leitura seja mais clara e agradável. Muitas vezes, também, uma metáfora pode ilustrar melhor uma situação do que se aquela fosse descrita como foi vista. Sims sugere que ao abordar determinado acontecimento no formato literário, o jornalista coloca seu subconsciente em ação, no que diz respeito aos simbolismos que ele usa e o que espera alcançar quando busca entender personagens e acontecimentos de acordo com seus conteúdos arquetípicos, osmotípicos e lidertípicos.31 Existe uma certa confusão ao se tratar dos termos Jornalismo Literário e Novo Jornalismo. Muitas vezes eles são tratados como sinônimos, justamente pelo fato de um estar inserido no outro. O Jornalismo Literário que pode ser chamado também de Jornalismo Narrativo, Literatura da Realidade, Narrativas da Vida Real, Creative nonfiction, entre outros é o jornalismo praticado com uso de técnicas literárias de captação e redação. O Novo Jornalismo foi um momento específico do Jornalismo Literário (por isso é errado classificar qualquer reportagem feita após os anos 60-70 como Novo Jornalismo). Todavia, pela intensidade e riqueza da produção desta corrente de autores, o Novo Jornalismo acaba se confundindo como um gênero. Esta confusão nos dá a dimensão da relevância e grandiosidade desta manifestação. O professor Edvaldo Pereira Lima é bem claro na distinção: !& ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES O new journalism americano foi a manifestação de um momento do Jornalismo literário. Isso quer dizer que o JL, enquanto forma de narrativa, de captação do real, de expressão do real, já existia antes e continua existindo após o new journalism, que foi só uma versão específica do JL, mas uma versão radical quando comparada à anterior, principalmente, no que se refere à capacidade do narrador se envolver com o universo sobre o qual vai escrever.32 Neste ponto, há de se ressaltar que o Novo Jornalismo insere elementos representativos nos conceitos de Jornalismo Literário. Na descrição de pessoas e ambientes, por exemplo, os autores desta corrente procuravam exacerbar sua sensibilidade para captar o máximo de elementos possíveis e, desta maneira, conseguiam durante a redação transformar o que foi absorvido pelos cinco sentidos em palavras, de uma maneira jamais feita antes. Os autores criavam verdadeiras paisagens que podem ser visualizadas, ouvidas, cheiradas, tocadas e degustadas pelo leitor. As duas loiras, que pareciam estar na casa dos trinta anos, eram elegantes e refinadas, os corpos maduros ligeiramente moldados por tailleurs pretos justos. De pernas cruzadas, empoleiravam-se nos altos bancos do balcão e escutavam a música. Então uma delas pegou um Kent e logo Sinatra pôs seu isqueiro de ouro debaixo dele. Ela segurou a mão dele, observou os dedos dele: eram nodosos e ásperos, e os dedos mínimos, esticados, pois a artrite os tornara tão duros que ele mal podia flexioná-los. Como sempre, estava vestido de forma impecável. Colete, terno oxford cinza de corte tradicional, mas forrado com uma seda vistosa; os sapatos, britânicos, pareciam estar engraxados até o solado.33 A corrente sofreu uma forte influência da literatura de ficção européia do século XIX, principalmente no que toca aos grandes nomes da escola do realismo social, como o inglês Charles Dickens (1812-1870) !' CAMINHO ILUMINADO e o francês Honoré de Balzac (1799-1850), sobretudo na captação. Estes romancistas abriram o precedente do desenvolvimento de recursos eficazes como a técnica de símbolos de status de vida. Pesquisavam minuciosamente uma situação real o modo de falar das classes marginais em Londres, os hábitos da classe burguesa decadente de Paris para posicionar, naquele contexto, sua narrativa de ficção34 O realismo social teve repercussão na América do Norte e no Brasil no século XX, com nomes como John dos Passos, William Faulkner, Ernest Hemingway, Érico Veríssimo e Graciliano Ramos. A reprodução do diálogo dos personagens foi um elemento bastante presente no Novo Jornalismo. Naquela época se ousou muito na utilização de aspas e travessões, reconstituindo diálogos inteiros, exatamente como em um romance ou na cena de um filme. Este recurso era mais uma maneira de prender o leitor e dar um novo ritmo e dinâmica para o texto, além de possuir um poder maior de persuasão e possibilitar um aprofundamento em relação ao personagem sob a transcrição de um diálogo, ao invés da interferência narrativa. Nunca o foco narrativo foi tão trabalhado quanto neste momento. A corrente permitia alterações e experimentações, com um narrador observador onipresente ou testemunha e até mesmo participante dos acontecimentos. Mas Tom Wolfe atesta que mesmo assim, o ponto de vista se preserva na terceira pessoa. Desta maneira, o leitor se situa dentro da cena ao mesmo tempo em que se identifica e experimenta as sensações de determinado personagem. A dupla ousadia da Realidade e do Jornal da Tarde Realidade surge durante a ditadura militar. A editora Abril lança um número experimental da revista ainda em 1965 e as edições regulares começam a sair no ano seguinte. Ainda não havia sido decretado o Ato Institucional nº 5 (o famoso AI-5, de 1968), que instituiria a censura prévia em toda a imprensa. As grandes revistas de informação geral de então O Cruzeiro e Manchete perdem fôlego. Realidade tem liberdade temática e começa a traçar um novo mapa da realidade brasileira. " ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Um novo público começava a surgir na época: a classe média urbana em formação, em que grande parte era jovem, com nível escolar superior ou com o equivalente ao ensino médio de hoje. O Brasil saíra dos 50 anos em 5 de Juscelino Kubitscheck, Brasília era a nova capital federal, a indústria automobilística era uma realidade e o CentroOeste era o novo abrigo do desenvolvimentismo. Nascia a Bossa Nova, o Cinema Novo, o Tropicalismo, a Jovem Guarda... Enquanto isso, a Guerra Fria continuava (a corrida espacial era uma nova disputa entre Estados Unidos e União Soviética), o movimento hippie agitava os jovens e a liberação sexual começava a despontar. As pessoas queriam entender o mundo em transformação e as antigas fórmulas já não satisfaziam este desejo. É aí que surge a Realidade. Não há preconceito na seleção das pautas. O Brasil é mostrado em suas várias facetas: nos diversos campos da atividade econômica, da produção artística, da existência social, do comportamento humano, da condição religiosa, da disputa política, da arena esportiva.35 Uma das características primordiais para enquadrar Realidade como uma produtora de Jornalismo Literário é o fato dela transformar atualidade em contemporaneidade, termo usado pelo professor Edvaldo Pereira Lima. Segundo ele: Realidade não se prende ao fato do dia-a-dia, propõe sair da ocorrência para a permanência. Seus temas não são os fatos isolados imediatos, mas sim a situação, o contexto em que esses fatos se dão. Poderíamos dizer que sua concepção do presente é a de um tempo atual dilatado em estendida presentificação. Sendo assim, o interesse não é noticiar que o preço dos legumes aumentou semana passada e por quê, mas mostrar como se movimenta a máquina do abastecimento da grande cidade 24 horas por dia, mês após mês; não é contar como o juiz foi vaiado no Maracanã, " CAMINHO ILUMINADO lotado no clássico de domingo, mas debulhar, num quadro contextual, as realidades duradouras da atividade desse profissional.36 Soma-se a isso, o texto literário, claro. Para o professor Edvaldo, Realidade não atingiu o grau de experimentalismo do Novo Jornalismo estadunidense, mas, sem dúvidas, rompeu as barreiras do texto de jornal e revista daquela época. Nas edições até 1968 o fim da época áurea da revista, que apesar de ir até os anos 70, perde qualidade drasticamente não há o uso do fluxo de consciência nem a alternância de pontos de vista numa mesma reportagem. Mas uma peculiaridade do estilo Realidade era que não havia um padrão. Cada repórter tinha liberdade para achar seu próprio modo de retratar a contemporaneidade. Realidade era uma revista de sabor, as matérias tinham de encontrar sua forma de canalizar e reproduzir o contato visceral com a vida.37 Realidade conseguia ousar em estilo e em temática, em plena ditadura militar. Outro veículo de comunicação que experimentaria o estilo literário em reportagem naquela época de efervescência cultural era o Jornal da Tarde. O ano era o mesmo: 1966. Agora, o palco preferencial era São Paulo. Apesar de mudanças ao longo dos anos, consolidou-se a excelência da linguagem plástica (criatividade do texto literário) e a busca da interpretação. Em certos casos, uma reportagem era publicada em série e algumas chegaram a ser editadas em livros. O jornal era comandado por Mino Carta, que tinha liberdade para contratar os melhores jornalistas. Como lembra Ivan Ângelo, que participou da primeira equipe, o diretor Ruy Mesquita tinha em vista que uma das idéias centrais do jornal era que ele não ia competir com os outros em termos de volume de informação, porque nós íamos preocupar-nos muito mais com fazer alguma coisa que seria um misto entre um jornal diário e uma revista semanal.38 Tiveram estes dois veículos influências do Novo Jornalismo estadunidense? Não há evidências de que foram totalmente espelhados " ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES nem que não tenham sofrido nenhuma influência. Zuenir Ventura não participou das equipes da revista nem do jornal, mas, contemporâneo daqueles profissionais, vê na formação de todos um motivo para não ter havido esta influência dos Estados Unidos. Acho que foi um modelo brasileiro. Pode ser que tenha havido uma inspiração de alguns dos fundadores, mas não acho que teve uma influência direta. Não partiu assim:vamos fazer o modelo da New Yorker, por exemplo. [O Novo Jornalismo] era muito pouco difundido no Brasil. A não ser para os que tinham alguma intimidade com o jornalismo americano. Acho que foi uma tentativa de uma fórmula brasileira. Acho que tem essa originalidade.39 O próprio Zuenir é um exemplo de que a formação dos jornalistas era mais voltada para o jornalismo europeu. O texto literário na imprensa já era tradicional na França na década de 60. A imprensa francesa sempre foi literária, no melhor e no pior sentido. No melhor porque ela cuidou muito da forma, do texto; e no pior quando fez literatura no jornalismo. Textos muito rebuscados, quando eram na verdade pastiches40. O Noveule Observateur, Le Monde e LExpress são exemplos que ele dá de veículos de comunicação que primavam pela qualidade do texto. O professor Celso Falaschi, em conversas com os profissionais que participaram da fundação dos dois veículos, vê também uma fórmula brasileira, já que nenhum deles admite uma influência estadunidense. O que havia era uma preocupação com a qualidade do texto. Nos dois casos, as publicações procuraram, para compor suas redações, jovens jornalistas que fossem, antes de jornalistas, escritores. Até porque na época as faculdades de jornalismo eram muito poucas no Brasil talvez tivesse 12 e o diploma não era obrigatório. Então, se você está montando um veículo de comunicação e quer qualidade de texto, que tipo de profissional "! CAMINHO ILUMINADO você vai procurar? Jovens escritores. Escritores por quê? Porque sabem escrever. Jovens por quê? Porque têm gana, têm garra. A questão parecia encerrada quando fomos ouvir ninguém menos que José Hamilton Ribeiro, que deu um parecer diferente sobre a questão. Um dos principais repórteres da fase áurea da Realidade disse o seguinte para estes escribas: É evidente que os jornalistas daquela época, como os de hoje, acompanham o jornalismo americano. E acompanham o trabalho dos grandes repórteres americanos. Então, alguns da revista Realidade já tinham contato com esses grandes repórteres americanos, principalmente o Gay Talese, Tom Wolfe, Norman Mailer, Truman Capote... E logo em seguida os jornalistas que cobriram a Guerra do Vietnã, esses tinham muita influência no [jornalismo do] Brasil. Então, que o pessoal da Realidade lia, conhecia os grandes repórteres americanos, eu acho que não há dúvida. Não acredito que tenha havido, intencionalmente, um movimento para repetir aquele fenômeno americano.41 Para Zé Hamilton, não poderia haver esta repetição da corrente estadunidense até por um fator econômico. Porque, de qualquer maneira, o Novo Jornalismo que de certa forma sobrevive até hoje se apóia basicamente na fortaleza econômica dos veículos americanos. Veículos que se permitem contratar um homem como Gay Talese para ficar um ano estudando um assunto para fazer uma reportagem... Isso no Brasil é impensável. No tempo de Realidade se fez isso, mas em termos de um mês, dois meses, três meses. Agora, uma publicação bancar um repórter do nível do Gay Talese pra ficar um ano num assunto para fazer um artigo, uma reportagem, é um luxo que só o rico jornalismo americano se permite.42 "" ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Mesmo assim, as condições de trabalho dos repórteres de Realidade e do Jornal da Tarde eram muito melhores do que são hoje, e essa tendência teve repercussão em jornais de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, do Nordeste e do Rio Grande do Sul, segundo nos contou Zé Hamilton. O jornalismo era mais generoso, dava mais condição para o repórter. Hoje é que nós estamos numa tanga desgraçada! *** O Novo Jornalismo havia abalado as estruturas do Jornalismo Literário estadunidense. A Realidade e o Jornal da Tarde haviam mostrado ao Brasil que a fórmula do jornalismo objetivo importada dos Estados Unidos não era unanimidade nem mesmo lá. Apesar do torvelinho, do furacão que estas correntes causaram em seus países, havia gente disposta a abrir ainda mais o leque de possibilidades. Nos Estados Unidos, um novíssimo estilo radicalizaria o Novo Jornalismo. No Brasil, não se chegou a cunhar termos, mas dentro da Realidade, e anos antes dela ser criada, houve gente que se antecipou ao que se chamaria de Jornalismo Gonzo. Notas Giannetti, 2002, p. 7 Ambos publicados pelo Círculo do Livro, s/d ! Entrevista a O Estado de S. Paulo, 05/08/2006, p. D2 " id. p. 144 # id. $ ibid. p. 140-1 % ibid. p. 145. & Mitchell, 2003, p. 11-2 ' Salles, 2003, p. 154-5 apud Suzuki Jr., 2002, p. 165 Hersey, 2002, p. 7-8 Ibid., p. 13-4 "# CAMINHO ILUMINADO ! Ibid, p. 16 " Cambridge Dictionary apud Czarnobai, p. 8 # Wolfe, 2004, p. 40 $ Id., p. 9 % apud Wolfe, p. 20-1 & Companhia das Letras, 2005 ' Wolfe,2004, p. 22 Wolfe, 2004, p. 28 Talese, p. 9 id., p. 10 ! Entrevista a O Estado de S. Paulo, 05/08/2006, p. D2 " Wolfe, 2004, p. 35 # id. p. 36 $ ibid., p. 38 % Talese, 2004, p. 19-20 & Falaschi, 2005, p. 67 ' "$ id. ! ibid., p.68 ! ibid. ! apud Czarnobai, 2003, p. 22 !! Talese, 2004, p. 261 !" Lima, 2003, p. 11 !# Lima, 2003, p. 225 !$ id, p. 226 !% ibid., p. 230 !& apud Ângelo, 2003, p. 76 !' Entrevista concedida em 03/09/2006 " id. " Entrevista concedida em 2/10/2006 " id. ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES 2. Quando as coisas ficam estranhas, os estranhos viram profissionais Hunter Thompson e o Jornalismo Gonzo Hunter S. Thompson "% CAMINHO ILUMINADO "& ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES It never got weird enough for me (Hunter Thompson) Matthew Shirts e seus amigos não tinham pretensões maiores do que se divertir quando criaram, em 1974, em sua escola na Califórnia, um jornal chamado Carbonzo Bean. Os garotos, na faixa dos 15 anos, estavam prestes a chegar na idade do alistamento militar, a Guerra do Vietnã ainda não havia terminado e o jornal era um protesto bem humorado contra algo que lhes parecia inevitável: ir ao front. Esse jornal era muito polêmico, muito influenciado pelo Novo Jornalismo. 1 Num dia qualquer, eles puseram um exemplar do Carbonzo num envelope e mandaram para ninguém menos do que Tom Wolfe (o ideólogo do Novo Jornalismo já era uma celebridade literária). Passado cerca de um mês, Matthew e seus amigos já não davam mais importância àquilo. "' CAMINHO ILUMINADO Hoje, sentado a uma mesa do pátio da opulenta sede da editora Abril, fumando um Marlboro e rindo o tempo todo daqueles tempos, ele não lembra quando foi que recebeu a carta. Talvez estivesse escrevendo uma de suas colunas de culinária eu não sabia cozinhar! em que ensinava, dentre outras maravilhas gastronômicas, a fazer um bolo em formato de navio de guerra (!). O que ele lembra é que, cerca de um mês depois que mandaram o exemplar de seu jornal underground, receberam uma carta. O carimbo era de Nova York, mas as letras góticas de diploma demoraram para ser decifradas. Levamos um dia para decifrar aquela caligrafia. E era do Tom Wolfe. Os meninos saíram pela escola mostrando a carta para colegas, professores e quem mais passasse por eles. Agora se sentiam parte do movimento. Hoje, mais de 30 anos depois, Matthew reconhece que Wolfe estava sendo simpático (irônico), quando dizia na carta que aqueles meninos, que faziam um jornal humorístico que teve seus quatro números, eram a última palavra em Jornalismo Gonzo. Em 2005, quando veio lançar Eu sou Charllote Simons no Brasil, Wolfe almoçou neste mesmo pátio da Abril com Matthew Shirts, que mora aqui há 25 anos. Eu falei pra ele: O senhor lembra de uma vez que uns garotos te enviaram um jornal e o senhor respondeu com uma carta..., e ele não lembrava. Disse: Você está me fazendo me sentir velho. O que Wolfe lembra em seu livro O Novo Jornalismo é que, em 1966, alguns jornalistas se destacaram por se tornarem personagens de suas próprias reportagens para escrever sobre a sociedade estadunidense. Entre John Sack, que foi ao Vietnã, e George Plimpton, que virou um jogador de futebol americano, um outro se destacava. O ganhador da Medalha de Honra de todos os escritores freelancers ou Premio Cojones de Hierro, na tradução espanhola foi Hunter S. Thompson. Ele fez nada menos do que passar 18 meses com a gangue de motoqueiros Hells Angels para escrever uma história que tinha como epílogo a cena do próprio autor levando uma surra dos seus personagens. # ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES O DOUTOR GONZO Uma vez que todas as características do criador (Thompson) são relacionadas com as da criatura (Jornalismo Gonzo), é importante que se discorra sobre a vida deste jornalista. Hunter Stockton Thompson nasceu em 18 de julho de 1937, durante a Depressão estadunidense, na cidade de Louisville, no estado sulista do Kentucky. Quando criança, tinha entre suas diversões jogar pedras e dar tiros com uma espingarda de pressão em alvos móveis ou não. Também gostava de destruir propriedades alheias. Uma das brincadeiras preferidas de Hunter era Norte-sul, que consistia em reproduzir batalhas da Guerra Civil dos Estados Unidos. Quando tinha oito anos, seu amigo Walter Kaegi Jr., de 10, o convidou para escrever sobre estas batalhas no Southern Star, o jornal mimeografado que editava, e que consistia em duas páginas de notícias locais, opinião e anúncios e que custava três centavos de dólar o exemplar. O début de Thompson no jornalismo coincide com seu primeiro atrito com a lei. Junto com um grupo de colegas, ele comete vandalismo num banheiro do Parque Cherokee. Os meninos atiraram latas, espalharam lixo e picharam as paredes. Foram pegos pela polícia e levados à delegacia, onde foi registrada a ocorrência. Algo compreensível para uma criança inquieta que não tinha bons exemplos em casa. Os pais, o vendedor de seguros Jack Robert Thompson e a dona de casa Virginia Davidson Ray, eram alcoólatras. Não raro, Jack tinha surtos violentos e batia nos filhos. Porém, quando ele morre, aos 57 anos de ataque cardíaco, Hunter, com 15, começa a beber. Até então, Thompson era um atleta muito versátil, tendo organizado ele mesmo a maioria das equipes das quais fazia parte, do baseball até o basquete.2 Sem o pai para impor disciplina, Thompson largou a prática de esportes, mas continuou escrevendo sobre eles no Southern Star, que já era um jornal maior àquela altura. Mas a energia do jovem era tanta que aquele trabalho não lhe bastava. Na escola, fugia sempre com os amigos para beber. Chegou até a formar um grupo que denominaram The Wreckers (algo como Os Quebradores). A # CAMINHO ILUMINADO atividade da trupe não era nada edificante: consistia basicamente em praticar atos de vandalismo pela cidade. Não demoraria para que o jovem vândalo sofresse as conseqüências. Aos 17 anos Thompson é condenado a dois meses de prisão por assalto. Seu aniversário de 18 é atrás das grades. Alistouse, então, na Força Aérea, por sugestão do juiz que o condenou. Na base de Eglin, logo sua fama de arruaceiro voltou a acompanhá-lo. Era considerado um problema no quesito comportamento, mas suas matérias para a revista da base, a Command Courier, eram vistas como interessantes por todos. Talvez os artigos o tenham ajudado a ser dispensado com honras, já que havia queixas de desobediência aos oficiais e às normas da base. Livre da Força Aérea, Thompson aceitou um convite da revista El Sportivo para morar em Porto Rico, onde escreveria sobre boliche. Logo, entediado com o trabalho, voltou aos Estados Unidos, mas em 1962 saía novamente do país, desta vez desembarcando na América do Sul como correspondente da National Observer. Thompson enviava para a National Observer reportagens que englobavam os costumes locais e suas próprias observações sobre os lugares que visitava3. Em 1963, no Brasil, Thompson mandou para a National o artigo Brazilshooting (Tiroteio no Brasil), na qual relata um ataque do exército a uma boate carioca. Ele começa o texto com uma crítica à Justiça brasileira. A polícia brasileira tem fama de ser extremamente tolerante, e dizem que o Exército brasileiro é o mais estável e simpático à democracia em toda a América Latina. Mas nas últimas semanas a administração da justiça adquiriu uma nova cara no Brasil, e muitas pessoas começam a se perguntar para que exatamente existem o Exército e a polícia.4 Notamos aí uma subjetividade do jornalista, que pode ser percebida ao longo de todo o artigo. Afinal, já reinava um clima de instabilidade no País; pouco mais de um ano depois, em 31 de março de 1964, os # ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES militares dariam um golpe que derrubaria o governo e imporia uma ditadura de 21 anos. O ataque dos militares, com pára-quedistas uniformizados com graxa preta no rosto, era por vingança. Dias antes, dois militares foram mortos numa briga no local. No segundo parágrafo, Hunter se inclui como personagem da história, mas não como se verá na maior parte da sua obra. Aqui ele usa a terceira pessoa. Numa noite recente, com a temperatura nos 35° C de sempre e condicionadores de ar zumbindo por toda a cidade, um jornalista americano foi acordado por um telefonema às quatro e meia da manhã. Era um amigo, ligando da área de Copacabana, onde ficam as boates.5 Ele continua a narrativa, sempre descrevendo a ação do jornalista americano na terceira pessoa e evitando opiniões mais explícitas. Estas estão sempre nos jornais da cidade ou na boca de americanos residentes no Rio de Janeiro. Só no final é que ele opina mais diretamente. E termina de forma irônica: Depois do ataque do Domino, o Jornal do Brasil publicou uma matéria em seqüência, cuja manchete anunciava: Exército não vê crime em sua ação. Ou, como observou George Orwell, em terra de cego, quem tem um olho é rei$. De volta aos Estados Unidos, Thompson percorreu os estados do meio-oeste e oeste escrevendo sobre diversos temas de interesse público e sobre festivais de música para a National Observer. Ele insistia em acrescentar um viés políticos em seus textos, o que acabou lhe rendendo a tarefa de resenhar livros. Os atritos com a direção da revista já haviam começado antes, quando esta se recusou a publicar um tributo ao presidente morto John Kennedy. A gota dágua para Thompson foi quando lhe mandaram resenhar um livro em especial. Ele se demitiu. O livro que ele se recusou a escrever sobre foi The Kandy-Colored Tangerine Flake Streamline Baby... de Tom Wolfe. #! CAMINHO ILUMINADO Thompson queria mais do que aquilo. Sofria o mesmo drama de muitos dos seus contemporâneos. Ele queria escrever ficção, mas tinha que se sustentar com o jornalismo enquanto não tivesse algum êxito literário. O surgimento do Novo Jornalismo foi a chance que tanto ele quanto muitos repórteres especialistas em reportagem esperavam. E o tema que encontrou para sua entrada no Jornalismo Literário tinha muito a ver com a sua personalidade marginal. Uma gangue de motoqueiros conhecido como Hells Angels freqüentava as páginas da imprensa estadunidense, sobretudo depois da divulgação de um relatório feito pelo secretário de Segurança da Califórnia naquela época Thomas C. Lynch. O Relatório Lynch fazia um perfil nada amigável dos Angels. Eram denúncias de estupro, vandalismo e brigas. Porém, muitas das evidências eram questionáveis. [O relatório] trazia, por exemplo, uma denúncia de estupro que havia sido feita pela vítima às risadas, sem que o exame de corpo delito tivesse encontrado sinais de penetração forçada7 Thompson queria justamente mostrar o que era e não era verdade no Lynch Report. A imprensa californiana usava o conteúdo do relatório para produzir matérias sensacionalistas, totalmente tendenciosas. A idéia de Thompson era mostrar às pessoas até que ponto o Lynch Report se baseava na realidade, comparando trechos do relatório com as suas experiências na convivência com o grupo.8 Durante os 18 meses que passou com os Angels, Thompson participou de todas as reuniões do grupo, que na maioria das vezes, consistia simplesmente em beber. Porém, havia ocasiões em que eles usavam drogas e ele falou sobre o assunto abertamente e sem fazer juízos de valor. Os Angels insistem que não existem viciados no clube, e isso é verdade pelas definições médicas e legais. Os viciados têm um único foco. A necessidade física do que quer que tenham dependência os força a serem seletivos. Os Angels não têm nenhum foco. Eles devoram as drogas como vítimas da fome soltas no meio de um raro banquete, usam qualquer coisa que esteja disponível se o resultado for um delírio agudo, que assim seja.9 #" ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Thompson não queria redimir os Hells Angels perante a sociedade. A prova disso é que ele mostrava com clareza que, realmente, eles estavam à margem dela. Não foi um livro de defesa dos Angels, mas sim uma visão muito mais equilibrada do que toda a cobertura da imprensa na época. O leitor que formasse sua própria opinião. Foi nessa época que o uso de drogas se tornou um hábito na vida do jornalista, o que o acompanhou até o fim da sua vida. A primeira vez que ele experimentou LSD foi com os Angels, conforme descreve Cecília Giannetti Foi no período passado junto aos Hell´s Angels que Thompson experimentou o LSD pela primeira vez. O jornalista Ken Kesey, que o visitou em um agrupamento de Angels, ofereceu a droga e todos usaram. Foi depois dessa primeira experiência que Thompson passou a usar drogas com freqüência.10 A reportagem publicada em 1965 na revista Nation teve tamanha repercussão que fez com que várias editoras se propusessem a editá-la em livro. A Random House foi a vencedora, e em 1967 lançava Hells Angels: The Strange and Terrible Saga of the California Motorcycle Gang. O livro foi reeditado mais de 35 vezes. No Brasil, só fomos agraciados com a tradução desta primeira obra de Thompson em 2004, que a Conrad assim nomeou: Hells Angels: medo e delírio sobre duas rodas. Os leitores brasileiros desavisados provavelmente se questionaram: Mas isso é Jornalismo Gonzo? (pelo menos foi o que esses escribas se perguntaram). André Cardoso Czarnobai, que é uma espécie de exegeta de Thompson no Brasil, explica que ainda que as técnicas usadas para captar as informações e escrevêlas já fossem mais ousadas do que as praticadas pelo New Journalism, este artigo ainda não é considerado um exemplo do Gonzo Journalism11. É o que o próprio Tom Wolfe diz e que citamos acima. Em Hells Angels temos uma variação dentro do Novo Jornalismo, em que o repórter participa e se retrata na ação o que não se caracteriza como um gênero à parte. ## CAMINHO ILUMINADO Ainda de acordo com Czarnobai, o principal motivo pelo qual Hells Angels, ainda que escrito por Thompson, não seja categorizado como Gonzo Journalism é a ausência de algumas características fundamentais12 (que descreveremos mais adiante). Christine Othitis diz que: Hells Angels provavelmente é o único livro de Thompson que poderia ser chamado de new journalism [...] é o primeiro e único livro no qual Hunter mantém um estilo controlado de se expressar, no sentido de escritura não-gonzo13. THOMPSON DESCOBRE O CAMINHO Quem cunhou o termo Gonzo foi Bill Cardoso, jornalista e amigo de Thompson. Numa carta sobre o texto O Kentucky Derby é decadente e depravado, ele teria escrito: Eu não sei que porra você está fazendo, mas você mudou tudo. É totalmente gonzo. Conforme o amigo de Thompson, a palavra foi originada da gíria franco-canadense gonzeaux e significaria algo como caminho iluminado. Se o Novo Jornalismo era uma revolução, o Jornalismo Gonzo era uma radicalização deste. Enquanto no primeiro ainda se buscava uma certa neutralidade, com o uso da terceira pessoa e raras e disfarçadas opiniões do repórter, no Gonzo se fazia tudo às claras. Tudo é escrito em primeira pessoa, o autor é o personagem; gírias, palavrões, tudo é permitido. Ao relatar as sensações sobre o fato que vivenciou e não só observou, como se fosse possível um voyeur que não interferisse no acontecimento o repórter cria um vínculo com o leitor. Ele não busca aparentar uma impessoalidade e uma frieza que são impossíveis. Como mostra Thompson no supracitado texto: Você não acha que a gente veio até aqui para assistir a tudo pela televisão, acha? Por bem ou por mal, vamos entrar. Talvez a gente tenha que subornar um guarda ou jogar spray de pimenta na cara de alguém.(Eu tinha comprado uma lata de spray de pimenta numa farmácia por cinco dólares e 98 #$ ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES centavos e, de repente, no meio daquele telefonema, me dei conta das horríveis possibilidades de usá-la no hipódromo. Tacar spray de pimenta nos caras que cuidam dos portões estreitos que levam ao setor exclusivo do clube, e então entrar rapidamente e disparar um monte de spray dentro do camarote do governador assim que a corrida começasse. Ou usar spray de pimenta nos bêbados imprestáveis no banheiro do clube, para seu próprio bem...)14 Neste texto inaugural, digamos assim, do Jornalismo Gonzo, Thompson foi contratado para cobrir uma tradicional corrida de cavalos do seu Estado, o Kentucky Derby, para o Scanlans Monthly. Como já conhecia o evento, logo que chega ao local diz como é o cenário comum ali: Tudo isso, falei, vai estar congestionado de gente, umas 50 mil pessoas, a maioria caindo de bêbada. É uma cena fantástica. Milhares de pessoas desmaiando, chorando, copulando, atropelando os outros e lutando com garrafas de uísque quebradas. A gente vai ter que passar um tempo lá embaixo, mas é difícil circular, tem muita gente. Mas é seguro? Será que a gente consegue voltar? Claro, respondi. Só vamos ter que tomar cuidado para não pisar na barriga de alguém e começar uma briga.# Nem o vencedor da corrida é citado no texto, que foi recusado pelo Scanlans, um jornal de esportes. O que Thompson queria mostrar era como a sociedade estadunidense especificamente aqueles freqüentadores de corridas de cavalo era drogada e decadente. O jornalista passa o tempo inteiro enchendo a cara, bebendo com os caras, e com isso consegue se aproximar dessas pessoas e mostrar o lado B, digamos assim, o lado maluca das pessoas e de eventos oficiais. Mostra, com isso, o lado que você não conheceria de outra forma. E isso é extremamente interessante. #% CAMINHO ILUMINADO Quem nos diz isso é Matthew Shirts, que além de ter sido o criador do Carbonzo Bean, teve na sua formação a leitura de toda a obra de Thompson. Com um português cheio de sotaque, diz que Thompson consegue esclarecer e contar histórias sobre a sociedade de uma forma extraordinária. E isso é jornalismo! Isso realmente é o melhor do jornalismo. Para Mathew, com essa coisa da pirâmide invertida, do lide, blábláblá, a gente acaba, às vezes, não tentando contar histórias. Fica aquele registro do fato, seco, correto, do jeito que deveria ser no jornal diário, talvez, mas a gente perde um pouco esse molho literário.16 Para Thompson, fazer uma reportagem Gonzo não era para qualquer um. A verdadeira reportagem Gonzo requer os talentos de um grande mestre do jornalismo, o olho de um bom artista/fotógrafo e os colhões firmes de um ator. Porque o escritor precisa participar da cena enquanto escreve sobre ela ou pelo menos gravá-la, ou mesmo desenhá-la. Ou as três coisas. Provavelmente a analogia mais próxima do ideal seria um diretor/produtor de cinema que escreve seus próprios roteiros, faz seu próprio trabalho de câmera e de algum modo consegue filmar a si mesmo em ação, como protagonista ou pelo menos um dos personagens principais.17 O que Thompson não dizia claramente era que suas reportagens, muitas vezes, continham fatos que jamais aconteceram. Contudo, na definição de Gonzo, ele diz que é um estilo de reportagem baseada na idéia de William Faulkner de que a melhor ficção é muito mais verdadeira que qualquer tipo de jornalismo e os melhores jornalistas sempre souberam disso. Isso, segundo o jornalista, não significa que a Ficção seja necessariamente mais verdadeira que o Jornalismo ou vice versa mas que tanto ficção quanto jornalismo são categorias artificiais. As duas formas, em seus melhores momentos, são apenas dois modos diferentes para alcançar o mesmo fim. 18 #& ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Czarnobai tenta legitimar o uso da ficção analisando um trecho de Fear and Loathing in Las Vegas19, considerada a obra-prima do autor. Logo no começo do livro (e do filme de Terry Gillian, com Johnny Depp e Benicio Del Toro) um garoto pede carona a Thompson e ao advogado Oscar Acosta, que seguem velozes para a capital dos cassinos. A essa altura, eles estavam totalmente drogados, quando o garoto entra no carro. Por quanto tempo poderemos segurar?, me perguntei. Quanto tempo até um de nós começar a tagarelar louca e incoerentemente com esse menino? E, aí, o que ele vai pensar?20 Esta cena nunca foi desmentida nem confirmada por Thompson. Porém, àquela altura, o estado de alucinação dos dois era tão avançado que vê-los seria uma cena única e isso precisava ser descrito. [...] precisamos mesmo saber se o jovem caroneiro das primeiras páginas do livro existiu de fato? [...] Isto é realmente importante para a validade de sua matéria? A função do caroneiro no livro é a de representar um padrão de comportamento perfeitamente plausível e, ainda mais importante, verossímil para um jovem criado no interior dos Estados Unidos por volta de 1970. É curioso perceber que o caroneiro, apesar de jovem, é careta. Ou seja, ele recusa todas as ofertas de drogas e bebida feitas por Thompson e pelo seu advogado durante a viagem.21 Czanobai conclui que a inserção da ficção no Gonzo Journalism não só contribui para a desenvoltura da narrativa como ainda fornece um nível de informação muito mais profundo do que uma reportagem tradicional, o que vem ao encontro da definição de Faulkner segundo a qual a melhor ficção é muito infinitamente mais verdadeira que qualquer tipo de jornalismo 22. Ficção ser mais verdadeira que jornalismo é uma idéia a ser discutida. Frases fora de contexto podem ter o seu verdadeiro significado #' CAMINHO ILUMINADO alterado. Lembremos que Wolfe diz em seu ensaio que o realismo social praticado por Faulkner, entre outros falava das pessoas de uma forma absolutamente crível, haja vista que se baseava em extensas pesquisas de campo. Por isso nos arriscamos a dizer que Faulkner, até pelo trabalho que fazia, está comparando o romance social realista, baseado em pesquisas e retratando pessoas dentro de um contexto de sociedade com o jornalismo tradicional, que apesar de já ter seus repórteres literários, ainda não tinha como prática regular falar das pessoas comuns e contextualizar os acontecimentos dentro de um conceito de sociedade, o que o Novo Jornalismo implantou como prática constante. Outra idéia nesta mesma frase, ficção e jornalismo serem categorias artificiais, pode ser entendida pelo pensamento do filósofo francês Roland Barthes. Para ele, qualquer forma expressa por meio de linguagem é apenas uma representação da realidade e não o real de fato. Sob esse ponto de vista, a prática do jornalismo é uma representação do real, assim como a ficção. Ambos possuem o mesmo valor *. Em nossa conceituação de Jornalismo Gonzo trataremos novamente da questão do uso de ficção. MEDO E DELÍRIO Quando traçou estes conceitos do Jornalismo Gonzo, Thompson se referia ao modo de apuração e redação de Fear and Loathing in Las Vegas. Ele escrevia o livro publicado antes na Rolling Stone em momentos de descanso de uma reportagem que estava fazendo sobre o estranho assassinato de um jornalista mexicano-americano. Estava se sentindo pressionado os principais suspeitos da morte eram policiais e a comunidade latina de Los Angeles protestava queimando carros e saqueando lojas no principal bairro chicano da cidade. A viagem para Las Vegas com o pretexto de cobrir o Mint 400, um rally de motos foi uma ótima oportunidade para relaxar e poder conversar a sós com o advogado Oscar Zeta Acosta, um militante da comunidade mexicana-americana. * $ No capítulo 4 voltaremos a falar deste conceito de Barthes ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES A pauta era cobrir a corrida para a Sports Illustrated, mas no primeiro dia Thompson desistiu e foi fazer sua captação participativa. Enquanto os novos jornalistas iam em busca do Sonho Americano por meio do romance, Thompson foi até Las Vegas para desmitificá-lo, mostrando uma sociedade composta de pessoas viciadas em jogos e drogas. O maior personagem desses Estados Unidos é o próprio Thompson. Falar dele é falar de um povo específico, numa época específica. O porta-malas do carro parecia um laboratório de narcóticos policial ambulante. Tínhamos dois sacos de maconha, 75 bolotas de mescalina, cinco folhas de mata-borrão com ácido poderosíssimo, um saleiro com cocaína até a metade e toda uma galáxia multicolorida de estimulantes, depressivos e coisas para nos fazer gritar ou rir... e também uma garrafa de tequila, outra de rum, uma caixa de Budweiser, uns 600 ml de éter puro e duas dúzias de nitrato de amila.23 Ainda que seja considerada a obra-prima de Thompson, Fear and Loathing é, segundo ele, uma experiência fracassada de Jornalismo Gonzo, pois sua idéia seria a de um registro simultâneo ao acontecimento e uma escrita sem revisões... Vamos deixar o Doutor explicar com suas palavras... Minha idéia era comprar um bloco de anotações bem grosso e registrar a coisa toda enquanto ela acontecia, em seguida mandar as anotações para publicação sem edição. Desse jeito, pensei, o olho e a mente do jornalista funcionariam como uma câmera. O texto seria seletivo e necessariamente interpretativo mas, uma vez que a imagem fosse registrada, as palavras seriam definitivas. Da mesma forma que uma fotografia de Cartier Bresson é sempre (de acordo com ele) um negativo de quadro inteiro. Nenhuma alteração no quarto escuro, nada de cortes ou aparadas, nada de procurar erros... nada de edição.24 $ CAMINHO ILUMINADO Ainda que fracassada, a experiência de Fear and Loathing foi, para Thompson, um avanço ao Novo Jornalismo. Apesar de não ter saído como planejei, ainda é muito complexo em todo o seu fracasso. Para Thompson o problema de Wolfe e talvez incluísse aí outros autores do Novo Jornalismo é que ele é intolerante demais para participar de suas próprias matérias. As pessoas com quem ele se sente à vontade são mais entediantes que merda de cachorro velha, e as pessoas que parecem fasciná-lo como escritor são tão esquisitas que o fazem ficar nervoso25 ACABOU A DIVERSÃO Em fevereiro de 2005, a temporada de futebol acabou para Thompson. Um bilhete com esse título dizia: Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de andar. Acabou a diversão. A natação acabou. 67. Isto são 17 anos depois dos 50. Dezessete a mais do que eu precisava ou queria. Chatice.Sempre fui falastrão. Acabou a diversão para todos. 67. Você está ficando mesquinho. Aja, seu velhaco. Relaxe isto não vai doer. Hunter S. Thompson 16/2/2005 $ Depois das 17h30 do dia 20 de fevereiro, Thompson se ajeitou no sofá, em frente à TV, e telefonou à mulher, que estava numa academia. Falaram sobre alguns assuntos que o perturbavam ultimamente. Mas tudo se resolveria quando Anita chegasse em casa. Contudo, antes de desligar o telefone, às 17h42, ele pediu licença, deixou o fone ao lado do aparelho, e disparou na boca um tiro de revólver calibre. 45. Nem no seu funeral ele deixou o modo espetaculoso como viveu. A cerimônia de US$ 4 milhões, paga pelo seu amigo Johnny Depp, consistiu em misturar suas cinzas a pólvora e explodi-las num canhão. Logo depois, os convidados astros de Hollywood, nomes da política como George McGovern se divertiram numa festa em homenagem ao Doutor Gonzo. $ ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Definições e características Uma das primeiras estudiosas a elencar as características do Jornalismo Gonzo foi Christine Othitis, em seu artigo The Beginnings and Concept of Gonzo Journalism. A análise da autora é feita tendo como base apenas a obra de Hunter Thompson. Isso porque, no ponto de vista dela, ele seria o único autor Gonzo. TEMÁTICA A primeira das sete características apontadas por Othitis é a abordagem de assuntos relacionados a sexo, violência, drogas, esportes e política. Esses temas são constantemente verificados na obra de Thompson, pelo fato de serem assuntos em que ele possui grande envolvimento. Representam também uma predileção (ou até mesmo obsessão) geral do povo estadunidense. CITAÇÕES E EPÍGRAFES O uso de citações como epígrafe é um recurso estilístico utilizado por Thompson como forma de situar o leitor no clima da narrativa, oferecendo uma prévia do texto. No geral, são citações de gente famosa e outros escritores, entretanto não era raro que Thompson citasse a si mesmo (!). REFERÊNCIAS A FIGURAS PÚBLICAS Esta é a terceira particularidade das obras de Thompson. Trata-se de algo que influiu na popularização da obra dele como elemento da cultura pop estadunidense. Povoam seus textos jornalistas, atores, músicos, políticos e outras figuras. USO DE DIGRESSÕES Outro ponto notório nos escritos de Hunter Thompson é a presença de digressões, constantemente compondo o texto, como uma tendência a se distanciar do assunto principal. Muitas vezes, Thompson começa falando sobre um assunto, mas divaga sobre diversos outros (seu ódio $! CAMINHO ILUMINADO ao então presidente Richard Nixon, por exemplo). Supõe-se que isso ocorra pelo fato dele começar com a tarefa de cobrir um assunto rotineiro na imprensa tradicional, mas seu fascínio sobre o comportamento humano o atrai a ponto dele mudar o foco do texto. USO DE SARCASMO E IRONIA O estilo sarcástico e irônico do Dr. Gonzo é algo pontual em seus textos. A escrita bem humorada talvez seja o fator mais marcante de sua obra e, sem dúvida, um dos motivos do reconhecimento. O escritor P.J. ORourke distingue Thompson dos outros escritores por dois motivos. Segundo ele, além de ser melhor escritor, Thompson faz o leitor rir, pois pega as questões mais sombrias da ontologia, os mais sérios questionamentos epistemológicos e, através da sua maneira de apresentá-los, nos contorce de rir27. FLUÊNCIA DAS PALAVRAS E USO CRIATIVO DO IDIOMA Othitis aponta ainda como traço importante de Thompson a tendência com que cada palavra flui e o uso extremamente criativo do inglês. Para verificar esse apontamento, é necessária a leitura de textos no idioma original, nos quais podem ser conferidos a utilização de termos mais refinados, buscando fugir do coloquial, e uma presente sonoridade permitida pela mistura de palavras de pronúncia fechada com outras mais abertas. DESCRIÇÃO EXTREMA DAS SITUAÇÕES A autora salienta a descrição extrema das situações, fruto de uma observação rigorosa que se atenta a pequenos detalhes. Na descrição de Thompson, é marcante o jeito de criar uma forte representação visual de um objeto ou pessoa. Ele enfoca a experiência acima do fato e expressa suas análises e interpretações por meio de monólogos internos. Os sete elementos descritos por Othitis são certamente marcantes na obra de Hunter Thompson, porém não podem ser assimilados como características de toda e qualquer obra do Jornalismo Gonzo. Não $" ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES devemos confundir um só escritor com todo um gênero, mesmo que Thompson tenha sido o precursor do estilo. Por isso, veremos o que o jornalista André Cardoso Czarnobai conceituou como características do Jornalismo Gonzo em sua monografia Gonzo O filho Bastardo do New Journalism. Ele salienta as particularidades do Jornalismo Gonzo a partir de uma comparação com o Novo Jornalismo. O autor reforça que apesar da origem semelhante o que causa certa confusão entra as duas escolas ambas possuem características próprias e devem ser consideradas de forma distinta, mas ainda assim sob a mesma égide a do Jornalismo Literário. A primeira profunda diferença entre os dois gêneros observada por ele se refere ao método de apuração dos fatos. IMERSÃO E OSMOSE Tanto o Novo Jornalismo quanto o Jornalismo Gonzo exigem uma imersão do repórter dentro do tema. Mas esse processo se dá de formas diferentes nos dois casos. Os novos jornalistas acompanhavam seu foco de investigação (fonte, lugar ou situação) por um longo período de tempo, às vezes por anos. Mas o procedimento era feito sempre de forma testemunhal. O jornalista acompanhava o desenvolvimento das ações dentro da perspectiva de um observador. Se essa é a definição de imersão, aplicada no Jornalismo Literário de então Novo Jornalismo, inclusive Czarnobai acredita que o termo é insuficiente para ser aplicado no Jornalismo Gonzo. O termo que ele usa é osmose, já que assunto e autor se confundem. Não significa, porém, que seja necessário, na prática do Gonzo, mais tempo de investigação, mas uma proximidade maior entre o investigador e o que é investigado, a ponto dos dois se mesclarem e se confundirem28. Por isso a palavra osmose, referenciando o fenômeno biológico no qual dois fluidos misturamse gradualmente através de uma membrana porosa. Fazendo uma comparação, o primeiro fluido é o Gonzo Jornalista e o segundo, o $# CAMINHO ILUMINADO objeto de sua investigação. A membrana porosa é o ato da reportagem em si, pois é através dela que os dois mundos interferem um no outro. Dessa forma é correto dizer que o repórter gonzo altera o objeto de sua reportagem da mesma forma que o objeto altera o próprio repórter. É quase como se o jornalista precisasse personificar o objeto de sua reportagem, o que remete ao preceito da coragem de um ator necessário para o bom Gonzo Jornalista, segundo Thompson.29 Czarnobai defende que a experiência adquirida a partir da apuração de uma reportagem gonzo aumenta a bagagem de informações e vivências do repórter de uma forma muito mais intensa que as técnicas tradicionais mesmo a imersão poderiam lhe proporcionar. Essa coleta, maior e mais profunda, favorece para que as reportagens gonzo sejam muito mais fiéis à realidade30. Em efeito comparativo ao Novo Jornalismo, o Jornalismo Gonzo dá uma margem mais extensa a manifestação do ponto de vista do autor. Não há uma postura do observador que, por mais imersa que seja, ainda possui um distanciamento. No Gonzo, a postura é de agente, e distorce a definição de papéis do repórter e do objeto, expressa na outra prática. Ainda no entendimento do autor, essa forma de apuração rompe com o clássico papel de mediador da informação do jornalista, já que não se prega a pretensa isenção com a ação descrita e descarta a objetividade jornalística. CAPTAÇÃO PARTICIPATIVA Como segunda distinção fundamental, apontada por Czarnobai, está a captação participativa. Além de uma forma de apuração própria, o Jornalismo Gonzo possui técnicas de captação que primam pela espontaneidade e pela urgência. Já o Novo Jornalismo se caracteriza por uma coleta de dados ampla e metódica. O ideal, sob a ótica de Hunter Thompson, seria uma reportagem escrita simultaneamente à ocorrência dos fatos, sem revisão ou edição, somente as anotações feitas na hora ou as narrações e opiniões registradas pelo gravador. $$ ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES A técnica de não-edição, segundo Czarnobai, não deve ser levada ao pé da letra, pois Thompson continuava a redigir sua matéria depois de vivenciar os fatos. A alusão se refere à espontaneidade que é essencial no Jornalismo Gonzo. O cuidado e refino nos padrões dos autores do Novo Jornalismo era mais celebrado e sofisticado. Na visão de Czarnobai, Thompson simplificou os conceitos e acelerou os processos. Neste contexto, a entrevista é o instrumento fundamental e imprescindível no Novo Jornalismo, com enfoque no fator humano para o conhecimento dos detalhes físicos e psicológicos dos personagens. Enquanto no Jornalismo Gonzo, ela torna-se um recurso dispensável, já que o foco de atenção é do personagem-narrador e protagonista da ação: o repórter. FOCO NARRATIVO A terceira distinção entre Novo Jornalismo e Jornalismo Gonzo é marcante. A narração em primeira pessoa é uma conseqüência dos métodos de apuração e de captação participativa que tornam a redação confessional. Esse tipo de foco narrativo é até permitido no Novo Jornalismo, desde que em uma situação em que o repórter seja um fator determinante para a compreensão da história. Tom Wolfe é um defensor do uso da terceira pessoa, prega que o autor deve manter-se invisível e acredita que a angulação em apenas um personagem (primeira pessoa) limita o repórter e empobrece a narrativa. A primeira pessoa só é usada quando há alternância do foco narrativo; em algumas das reportagens de Wolfe há primeira, terceira e até a segunda pessoa. Outro mote salientado por Czarnobai é que o uso da terceira pessoa confere à narrativa um certo distanciamento, o que está de acordo com a posição de observador imerso, adotada no Novo Jornalismo. Já no Jornalismo Gonzo, o foco narrativo em primeira pessoa é uma regra. E isso se dá como característica da reportagem feita a partir da experiência vivida pelo repórter e que é mais simples e verossímil assumir esse ponto de vista do que criar um personagem fictício para isto, por $% CAMINHO ILUMINADO exemplo. Para ele, adotar esse foco narrativo é uma vantagem, porque nega a imparcialidade jornalística sem comprometer o princípio de informar alguma coisa a alguém. O principal benefício é o fato da figura do jornalista como senhor da informação sair de cena, dando espaço à figura de uma pessoa que experimenta e divide os resultados da sua experiência. [...] Este personagem-narrador cria vínculos mais facilmente com o leitor porque se apresenta de uma forma mais humana.31 SARCASMO E IRONIA Como já vimos acima, uma das características marcantes da obra de Thompson é o uso de ironia e sarcasmo como senso de humor, o que não se restringia apenas ao texto, mas também à sua personalidade. O senso de humor ácido de Thompson é propagado por seus seguidores e, naturalmente, tornou-se uma ferramenta de linguagem e um elemento constante na redação dos textos de Jornalismo Gonzo. Voltamos a este tópico para fazer a comparação do Gonzo com o Novo Jornalismo, já que o humor se opõe a uma seriedade do jornalismo tradicional. Segundo Czarnobai, essa sisudez é uma característica que remonta à tradição do jornalismo estadunidense de buscar uma prática imparcial e sem opinião. O Novo Jornalismo é um estilo de narrativa de não-ficção com pretensões literárias e, de certa forma, com um desejo de reconhecimento e valorização diante de intelectuais da época. Além disso, alguns conhecidos escritores de ficção fizeram parte do movimento, como Norman Mailer e Truman Capote. Diante desta conjuntura, com a cobrança pelo atendimento aos parâmetros jornalísticos e um padrão de qualidade literária, o gênero adquiriu uma seriedade mais acentuada. Essas regras que ditam o tom do Novo Jornalismo não existem no Jornalismo Gonzo, que é declaradamente iconoclasta. Por isso, o objeto da reportagem, a linguagem e a condição do jornalista são ironizados; trata-se de um gênero não-legitimado e que não almejava o posto de escola literária quando criado. $& ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES PERMISSIVIDADE QUANTO AO USO DE FICÇÃO Uma das peculiaridades do Jornalismo Gonzo de Hunter Thompson é a permissividade quanto ao uso da ficção. Este quinto elemento apontado por Czarnobai é um dos mais polêmicos em relação ao gênero, pois é contraditório a um dos postulados clássicos do jornalismo, o de que se deve oferecer ao leitor a expressão mais correta dos fatos, por meio de um trabalho meticuloso e refletido. O fato de Thompson não diferenciar as passagens ficcionais em sua obra torna questionável a veracidade de muitas de suas histórias. Assim como o humor, este é mais um elemento que decorre da personalidade de Thompson, já que ele era apontado por amigos como um grande mentiroso. Entretanto, como vimos anteriormente, o não discernimento entre ficção e fato sob o ponto de vista de Czarnobai não descaracteriza o aspecto jornalístico do Gonzo. O que deveria ser questionado é até que ponto a ausência deste limite distorce a visão do leitor sobre o objeto central da reportagem. Um exemplo é a citada passagem do caroneiro no início de Fear and Loathing in Las Vegas, em que o uso da ficção não é utilizado para distorcer a realidade. Dessa maneira, ele conclui que a inserção da ficção não só contribui para a desenvoltura da narrativa como ainda fornece um nível de informação muito mais profundo do que uma reportagem tradicional. Czarnobai ainda ressalta que a ficção é um elemento inserido de uma forma proposital e calculada, e não aleatória como poderia parecer num primeiro momento. 32 Também contribui para a incorporação de elementos fantasiosos na obra de Hunter Thompson o uso de substâncias que alteram a realidade. Sob o efeito de alucinógenos, o próprio jornalista não poderia distinguir a realidade da fantasia, como lembra Matthew Shirts: Eu não sei até que ponto isso é verdadeiro. Não sei até que ponto ele (Thompson) bebeu tudo que ele podia ter bebido, cheirou tudo o que podia ter cheirado, não sei como ele lembraria de tudo para escrever no dia seguinte. $' CAMINHO ILUMINADO USO DE DROGAS O uso de drogas é justamente o sexto elemento que Czarnobai aborda ao caracterizar o Jornalismo Gonzo. Novamente é uma questão extremamente polêmica. Hunter Thompson consumiu uma grande variedade e quantidade de drogas enquanto apurava e redigia suas reportagens e sempre assumiu esta condição aos leitores. O consumo e os efeitos descritos, certamente, valorizaram a questão de focar-se mais na experiência vivida pelo jornalista do que propriamente nos fatos. Os autores do Novo Jornalismo não eram necessariamente abstêmios. O álcool, principalmente, era bastante consumido, mas esta era uma questão não mencionada por eles mais uma vez em razão do papel de observador e não de protagonista. Só que num texto de caráter confessional, esse tipo de consumo deve ser relatado, pois se trata de uma informação importante para o entendimento do assunto/autor (já que estes se mesclam). Por isso, é um erro conceituar o Jornalismo Gonzo como uma forma de narração sob efeito de drogas. Esta visão pejorativa acaba simplificando e descaracterizando a prática, fazendo com que esta não seja tratada seriamente. O uso de drogas não é uma característica essencial do Jornalismo Gonzo e não serve para enquadrar um texto jornalístico sob esse gênero. Trata-se apenas de um elemento adicional, que pode ser usado de acordo com a personalidade e o julgamento do jornalista. FUGA DO FOCO A sétima característica verificada por Czarnobai é uma das mais proeminentes: a fuga do foco principal. E para ele, esta é uma discordância fundamental do Novo Jornalismo, uma vez que este mantém o foco sempre direcionado ao objeto de reportagem. Em qualquer investigação jornalística, o repórter se depara com muitas informações paralelas ao objeto de sua reportagem, e mesmo que sejam interessantes, se não possuem relação com o tema que está sendo abordado, são descartadas. No Jornalismo Gonzo, quase tudo é aproveitado e toma parte da narrativa. % ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Essas informações, aparentemente irrelevantes para Tom Wolfe e seus asseclas, são usadas para descrever o ambiente e uma determinada situação, o que possibilita a composição de uma descrição indireta do personagem central. Já no Jornalismo Gonzo, com o foco principal voltado para o repórter, o texto segue as mudanças de humor e fluxos de pensamento deste protagonista. Sendo assim, o material não serve apenas para enriquecer a narrativa como também para engrossar o volume de informações oferecidas ao leitor. No New Journalism, contudo, isto é feito de forma mais direta e sempre relacionada com o tema central da história, enquanto no Gonzo não precisa seguir esta lógica e aparece quase sempre com uma roupagem mais subversiva, de transgressão.33 RECURSOS TEXTUAIS E GRÁFICOS A oitava e última característica marcante da prática do Jornalismo Gonzo de Thompson é a utilização de recursos textuais e gráficos, especificamente peculiares e constantes na obra do estilo. Estes seriam o uso de epígrafes, a utilização de pseudônimos e ilustrações. As epígrafes, já conceituadas por Othitis, tem o objetivo de situar o leitor em relação ao conteúdo do texto. Este artifício muito usado por Hunter Thompson foi cultuado por muitos de seus seguidores e, desta forma, tornou-se mais um elemento para enquadrar uma produção sob o conceito de Gonzo. Os pseudônimos também surgiram com Hunter Thompson, porém não existem explicações claras dos motivos que o levaram a adotar outros nomes. O Dr. Gonzo muitas vezes se escondia sob a alcunha de Raoul Duke, F.X. Leach e Sebastian Owl ao assinar suas reportagens. Mais uma vez, a peculiaridade foi cultuada por seus admiradores, mas estes ainda tinham outros motivos, como não se associar diretamente ao Jornalismo Gonzo. Isso por causa da ligação feita entre o estilo e o consumo de drogas, o que, como vimos, é uma visão inadequada e ignorante. Para se livrarem desta estigma, alguns jornalistas optam por não assumir a identidade. % CAMINHO ILUMINADO Thompson gostava de ilustrar suas reportagens com desenhos ao invés de fotos. Para ele, essa maneira tinha um caráter mais familiar ao estilo. Muitos de seus textos foram ilustrados pelo cartunista Ralph Steadman, que conseguia representar graficamente os preceitos do Jornalismo Gonzo. Os traços de Steadman dão a impressão de terem sido feitos apressadamente, da mesma maneira espontânea com que Thompson escrevia. Eram desenhos cheios de hachuras e imagens confusas, com figuras humanas distorcidas, em alusão aos efeitos que as drogas causavam na visão. Um novo caminho Enquanto Othitis enquadra o Jornalismo Gonzo como uma escola de um só autor, Czarnobai avança um pouco e traça uma comparação entre o Novo Jornalismo e o Jornalismo Gonzo. Ainda que este último indique como autores Gonzo o repórter excepcional da revista Trip Arthur Veríssimo e o autor de Paraíso na fumaça, Chris Simunek, entre outros, achamos insuficiente a definição do gênero. Por isso, propomos nosso próprio conceito de Jornalismo Gonzo. Com base nas definições dos autores acima citados e nas análises de diversas obras, vamos elencar as características que acreditamos ser, de fato, delineadoras do gênero. Dessa forma, almejamos ir além daquilo que já foi descrito como Jornalismo Gonzo até hoje. Partimos do princípio que este é um estilo de Jornalismo Literário que ganhou esse nome a partir de uma prática exagerada do Novo Jornalismo. O Jornalismo Gonzo é, portanto, uma escola que foi cunhada a partir da obra de Hunter Thompson, mas tem características estendidas para as obras de diversos autores anteriores e posteriores, e que praticaram o estilo de forma consciente ou não. No nosso conceito, o Jornalismo Gonzo é fundamentalmente uma reportagem narrada em primeira pessoa, na qual o repórter é protagonista da história e assume a perspectiva de relatar suas experiências. Ou seja, aquilo que vivenciou por meio de uma imersão % ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES profunda (osmose). Além disso, o texto é, essencialmente, um reflexo explícito de elementos que compõe a personalidade do autor. Não seria, obrigatoriamente, uma narrativa cheia de sarcasmo, permeada por digressões, com uma urgência na captação de dados, com presença de drogas e de uma ficção dissimulada, mas sim, um estilo totalmente subjetivo, que reflete a personalidade do autor e sua interpretação do fato. Chamaremos esta característica de personalização. Como verificamos nas classificações de Jornalismo Gonzo elaboradas por Czarnobai e Othitis, muito do que foi considerado como uma característica do estilo na verdade remete a personalidade de Hunter Thompson. Portanto, são elementos que cabem como critérios de classificação da obra de um autor, não de todo um estilo. O uso de drogas era uma escolha e preferência de Thompson, porém não é obrigatório para exercer o estilo. O humor ácido, sarcasmo e ironia são características absolutamente pessoais do Dr. Gonzo e se fazem presentes em seu jeito de ser e, conseqüentemente, em sua maneira de escrever. Os elementos textuais e gráficos (epígrafes, pseudônimos e ilustrações) tampouco são imprescindíveis para um texto ser taxado de Gonzo, mas apenas preferências pessoais do autor como modo de enriquecer a narrativa. A questão mais polêmica, em termos jornalísticos, é no tocante ao uso de elementos fictícios. Defendemos um Jornalismo Gonzo sem ficção, afinal, só assim ele poderia ser aceito como prática jornalística. Thompson era conhecido como um grande mentiroso, portanto, a presença da ficção em suas reportagens remeteria à sua própria personalidade. Seu amigo John Burton afirmou que mentir é a coisa que ele faz melhor. E ele o faz com total calma e confiança. Feitas essas considerações, verificamos que o Jornalismo Gonzo é a prática mais subjetiva de jornalismo, ou aquela que assume esta subjetividade com mais contundência. Por causa dessa subjetividade extrema, pode-se dizer que o Gonzo é a mais sincera das categorias de Jornalismo. Nenhum relato é isento. Sempre haverá naquelas linhas imparciais do texto jornalístico uma série de valores, idéias e a visão %! CAMINHO ILUMINADO de mundo do repórter para não falar da linha-editorial do veículo de comunicação para qual trabalha. Portanto, o relato de um fato sob a perspectiva declarada do repórter, sem omitir que aquilo é uma interpretação sua, dá, no nosso ponto de vista, muito mais credibilidade a uma notícia. A experiência do repórter, em muitos casos, vale muito mais. Por exemplo: o dia-a-dia de soldados numa guerra (John Sack em M, quando lutou na Guerra do Vietnã); a situação de um time (George Plimpton em Paper Lion, em que treinou com os atletas do time de futebol americano Detroit Lion e até disputou uma partida); um retrato das décadas de 60 e 70 nos EUA, em que o consumo de drogas era intenso e hipocritamente omitido (Hunter Thompson em Fear and Loathing in Las Vegas). Os repórteres foram protagonistas nessas ocasiões e fizeram considerações muito mais fiéis da realidade do que se agissem como meros espectadores imparciais. Estabelecidos estes critérios, verificamos que a camisa de força que amarrava os conceitos de Jornalismo Gonzo não era tão apertada assim e, por isso, pode ser estendida para outros autores. A escrita jornalística subjetiva, em primeira pessoa, a partir de uma vivência pessoal (osmose) e tomada por elementos da personalidade do autor pode se encaixar em um campo muito maior. Sendo assim, outras obras podem ser considerados como Jornalismo Gonzo, mesmo que produzidas de forma inconsciente. E tendo isso em vista é que buscamos ampliar os horizontes deste estilo. Notas Matthew Shirts, entrevista concedida em 14 de setembro de 2006 ! Giannetti, 2002, p. 22 Czarnobai, 2003, p. 27 %" " Thompson, 2004, p. 136 # id. $ ibid., p. 140 % Giannetti, 2002, p; 28 ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES & Czarnobai, 2003, p. 29 ' Thompson, 2004, p. 213 Giannetti, 2002, p. 29 Czarnobai, 2003, p. 30 id. p. 31 ! apud Czarnobai, 2003, p. 31 " Thompson, 2004, p. 22 # id. p. 26 $ Entrevista concedida em 14 de setembro de 2006 % Thompson, 2004, p. 46-7 & id. p. 46 ' Fora de catálogo no Brasil. A única tradução foi intitulada Las Vegas na cabeça Thompson, 2004, p. 253 Cazarnobai, 2003, p. 66 id. ! Thompson, 2004, p. 252 " id., p. 46 # ibid., p. 49 $ Revista Trip Online % apud Czarnobai, 2003, p. 41 & Czarnobai, 2003, p. 49 ' ! id. ibid., p. 50 ! ibid., p. 57 ! ibid., p. 67 !! Czarnobai, 2003, p. 77 %# CAMINHO ILUMINADO %$ ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES 3. Nem só de Thompson vive o Gonzo Outros autores seguem o Caminho José Hamilton Ribeiro %% CAMINHO ILUMINADO %& ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Jornalismo às vezes cansa, mas é melhor que trabalhar. (frase italiana citada por José Hamilton Ribeiro) Alguns autores desenvolveram ótimas narrativas em primeira pessoa, com todos os atributos necessários para serem chamadas de Gonzo. Todavia, muitos não tinham sequer noção de que existia um gênero para classificar suas reportagens quando as fizeram. Isso se deve, em parte, porque o estilo de narrativa usado foi apenas um dentre todos que os autores usaram em suas carreiras, derivando apenas de sua própria criatividade. Em relação aos autores brasileiros, pode-se atribuir ao fato já mencionado de que o Novo Jornalismo e o Jornalismo Gonzo não repercutiram tanto no Brasil. Da terra de Thompson, temos um nome recente que é uma cria do jornalista do Kentucky embora Chris Simunek não mencione isso em seu único livro traduzido para o português. Quem são esses autores? %' CAMINHO ILUMINADO Onde eles estavam até agora? Alguns estavam diante de você só era necessário ver com olhos mais atentos. José Hamilton Ribeiro e a Realidade Tinha que ser na Realidade, um dos poucos redutos de Jornalismo Literário no Brasil, que o Jornalismo Gonzo se manifestaria. Naquelas páginas escreveram, entre outros, três dos melhores jornalistas que o Brasil já teve em todos os tempos: Luís Fernando Mercadante, Roberto Freire e Carlos Azevedo. A qualificação é justa, mas a modéstia de quem a fez oculta o próprio nome: José Hamilton Ribeiro, autor de pelo menos uma reportagem em que fez a mais completa osmose. Na capa de uma edição histórica da Realidade está a face ensangüentada de Zé Hamilton, quando, enviado à Guerra do Vietnã, se confundiu com o tema e se tornou vítima da guerra. A reportagem, que virou livro, possui características clássicas do estilo popularizado por Thompson. Em 1968, José Hamilton Ribeiro cobria a Guerra do Vietnã sem grandes problemas. No último dia, porém, o fotógrafo que o acompanhava, Keisaburo Shimamoto, ainda não tinha achado uma cena que desse uma foto dramática o suficiente. Seguiram, então, para a Estrada sem Alegria, onde haveria duas operações promissoras para fotos. A estrada faz jus ao nome. Zé Hamilton pisa numa mina terrestre, perde a perna esquerda e passa, segundo conta no livro O gosto da guerra, os 15 dias mais dolorosos e infelizes da minha vida1. O texto começa justamente no que seria o último dia da estada dele no Vietnã e, para contar todos os dias que passou lá até então, ele usa longas digressões. Como o texto é escrito em forma de diário, seu dia no hospital é apenas um pano de fundo para o grande tema que é a guerra. O relato do repórter é o de alguém que sentiu no corpo e na mente os efeitos do combate. É o quarto dia após a bomba e ainda não consegui comer. A simples visão das bandejas, com aqueles bifes pretos feito de carne em pó & ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES e as omeletes viscosas derramando um caldinho branco, me leva ao vômito. A minha posição única já me faz doer as costas e, pior ainda, sempre que tento mover-me, sinto sangue na cama, que aumenta meu mau humor. [...] O temor aumenta: vou morrer aqui nesta joça, serei um cadáver a mais, anônimo e não procurado, da guerra. Merda! 2 Zé Hamilton não se furtou em dar suas opiniões, muitas vezes de forma irônica. Isso para não falar das sensações: teve uma perna arrancada e passava por um doloroso tratamento. Em mais uma cena no hospital em que está internado, ele tenta fazer uma lista de quem está pior ali. Em certo momento, ele interrompe a lista macabra por causa de uma gritaria ali perto. É Kim-Thien, uma menina de 14 anos que todos os dias, na hora dos curativos, grita desesperadamente. Um enfermeiro me conta sua história: soldados americanos realizavam operação de limpeza numa aldeia e a menina estava na rua. Quando viu aquele aparato todo, saiu correndo para alcançar sua casa. Os soldados cumpriram a ordem: Diante de nós, quem tenta fugir é vici fogo. A menina caiu, ferida em vários lugares. Apesar da idade, foi feita prisioneira e submetida a longos interrogatórios. Fora dos momentos de curativos, agora, tudo que ela faz é brincar com as bonecas que a Cruz Vermelha lhe deu. Acho que os americanos estão começando a desconfiar que é meio difícil ela ser um perigo vietcongue.3 Temos então o primeiro fluido: o repórter José Hamilton Ribeiro; o segundo, objeto de sua investigação: a Guerra do Vietnã; e a membrana porosa, que é o ato da reportagem: quando o autor relata as desgraças da guerra. Não é a mais perfeita osmose? O repórter alterou o objeto da reportagem, que também o alterou. Podemos notar nesta reportagem as três características básicas do Jornalismo Gonzo que propomos no capítulo anterior: (a) narração em & CAMINHO ILUMINADO primeira pessoa a perspectiva é sempre confessional; (b) osmose o autor é o personagem principal da história, é uma vítima da guerra; (c) personalização do texto quem já conversou com Zé Hamilton percebe na reportagem os mesmos cacoetes da fala e ainda pode notar sua visão peculiar da guerra. Isso para não falar do uso de ironia, digressões e descrições extremas recursos não obrigatórios a uma narrativa Gonzo, como defendemos anteriormente, mas que tornam a obra ainda mais parecida com a de Thompson. CULTURA DA REALIDADE Não foi apenas pelo fato de Zé Hamilton ter se tornado uma vítima da guerra que ele pôde escrever o relato em primeira pessoa e transmitir aos leitores seu drama e suas opiniões acerca do combate. Fazia parte da cultura da Realidade a chamada reportagem de vivência. Zé Hamilton dá alguns exemplos, antes mesmo de sua cobertura da Guerra. Uma pauta, conta, era sobre o operário brasileiro e eu fui para a fábrica como operário. Arranjei um emprego na fábrica e fui trabalhar lá. E a reportagem foi sobre isso. Outro colega foi para uma vila de pescadores no Nordeste e arranjou um emprego de pescador, foi pescar, foi puxar rede. 4 Se o leitor pensa nesse momento que esse era o limite da Realidade no que diz respeito aos repórteres vivenciarem um acontecimento, atente para o que nos disse Zé Hamilton, indignado com a medicina brasileira. Isso [a vivência do repórter] foi levado até um certo extremo, em que eu fui incumbido uma vez de fazer uma reportagem sobre o que é ser negro no Brasil, o preconceito racial... E eu tive que virar negro! Tive que virar preto. Então eu fiz tratamentos médicos para mudar a cor da minha pele, para ver se eu me transformava num & ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES preto, para fazer uma reportagem com absoluta realidade. Mas a medicina brasileira de então por sinal é até hoje , muito atrasada, não conseguiu me fazer preto. Então eu desisti da reportagem.5 O racismo foi capa da edição de outubro de 1967 de Realidade. Pelo que nos contou Zé Hamilton, o que seu colega Carlos Azevedo fez para se tornar um negro, nos Estados Unidos, foi, simplesmente, ter a pele morena. A outra reportagem que tratou do racismo, desta vez no Brasil, foi escrita por Narciso Kalili e publicada na mesma edição da revista. Ele viajou por várias capitais brasileiras com o também jornalista Odacir de Mattos, um negro. A abertura do texto remete à educação de Kalili, em que ele conta sua infância e como o racismo era praticamente ensinado nas famílias ditas brancas. Mantemos as grafias originais. Vivi tôda a infância e adolescência ouvindo e aprendendo que o negro era um homem inferior. Na escola, em casa, na rua, meus pais, os professores e meus amigos sempre atribuíam aos negros maus sentimentos e atitudes negativas. Usavam os negros para coagir as crianças a não fazer travessuras. Ouvi muitas vezes a ameaça: Olha que eu chamo o prêto para te levar! Durante a mocidade, no colégio e na faculdade, meus professôres ensinavam que no Brasil não existe preconceito racial. E sempre me considerei um homem sem preconceitos. Mas isso seria verdade? 6 Mattos e Kalili visitam seis capitais brasileiras e fazem os testes, sempre separados: visitam escolas em busca de vagas para os filhos; procuram apartamentos para locar; fingem estar passando mal na rua; andam abraçados com mulheres de outra cor de pele nas ruas e comparam os resultados. No caso das escolas, muitas diretoras negam a vaga para Mattos quando, em seguida, a garantem para Kalili. O mesmo ocorre com as residências para aluguel: para Mattos, já estão alugadas, enquanto que para Kalili o negócio pode ser fechado já. &! CAMINHO ILUMINADO Quando o repórter branco finge um mal estar na rua, logo é amparado. Mattos, o negro, é chamado de bêbado. Já o espanto para com os casais de cor de pele diferente é o mesmo nos dois casos. De São Paulo não precisávamos saber mais nada. Nem testar outras coisas. Como paulista, eu estava envergonhado. Como branco, triste. Como ser humano, irritado e odiando tudo o que levava ao preconceito. Na semi-obscuridade do avião que nos levava ao Rio de Janeiro, sentado sózinho num dos bancos, eu observava Odacir e Geraldo Mori [...] Olhava o rosto dos poucos passageiros, me perguntando se êles sabiam de tudo que eu já estava sabendo. Se em suas vidas êles percebiam tôda vez que agrediam e feriam os negros. 7 Notamos na reportagem as já ditas características do Jornalismo Gonzo. Narciso Kalili relata o tempo todo seus sentimentos (narrativa em primeira pessoa), falando de uma situação que vivenciou intensamente (osmose) e dando o exemplo de sua própria educação para ilustrar o fato (personalização). O pioneiro da Francisco Sá Mas bem antes de Realidade existir já havia no Brasil quem se pusesse na perspectiva de participante e não só testemunha dos acontecimentos e relatasse tudo num texto recheado de humor ou mesmo perplexidade. Joel Silveira, sergipano residente na então capital federal, Rio de Janeiro, vai até São Paulo, em 1943, como repórter da revista Diretrizes, de Samuel Wainer, e registra como vive a alta sociedade paulistana. Durante uma semana, fiquei atordoado com a vida elegante de São Paulo. Haviam me levado para algumas festas; primeiro um aperitivo, colorido e com pedaços de fruta dentro, depois uma carreira rápida de automóvel. Estive em jantares fascinantes. As &" ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES mulheres, muito belas e perfumadas. Particularmente aquelas que puxam os cabelos para cima, num jeito que abandona aos nossos olhos as lindas nucas nuas. Durante uma tarde inteira, fiquei semideitado numa poltrona de um apartamento chique, no Centro da cidade. [...] Os rapazes se vestem muito bem e telefonam. Telefonam de cinco em cinco minutos e conversam com Lili, com Fifi, com Lelé. Recebem também telefonemas de Fifi, de Lili e de Lelé.8 A escrita mordaz do jovem repórter que queria ser escritor atraiu a atenção do barão das comunicações na época. Assim que Diretrizes foi fechada pela ditadura Vargas, Joel saiu de seu exílio em Sergipe a convite de Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, para cobrir a Segunda Guerra Mundial. Num de seus despachos, a Víbora, como era chamado por Chateaubriand, faz um relato confessional desde o título: Eu vi morrer o Sargento Wolfe. A reportagem começa com a descrição da cena do título. Vi perfeitamente quando a rajada de metralhadora rasgou o peito do sargento Max Wolf Júnior. Instintivamente ele juntou as mãos sobre o ventre e caiu de bruços. Não se mexeu mais. O tenente Otávio Costa, que estava ao meu lado no Posto de Observação, apertou os dentes com força, mas não disse uma palavra. Quando lhe perguntei se o homem que havia tombado era o sargento Wolfe, ele balançou afirmativamente com a cabeça. 9 Em 1945, de volta da guerra, Joel escreveria outra reportagem com toda a ironia de Grã-finos em São Paulo: era o casamento da filha do conde Francisco Matarazzo, Filly, com o carioca João Lage. Mesmo sem conseguir um convite para a festa, Joel descreve detalhes preciosos, graças a um conhecido seu que lhe contou tudo. Estamparia as páginas de O Cruzeiro A milésima segunda noite da Avenida Paulista. &# CAMINHO ILUMINADO Joel era capaz de transformar um evento como uma entrevista frustrada em notícia. Foi assim quando foi falar com o então presidente Getúlio Vargas, que trocou algumas palavras com o repórter e lhe virou as costas. Como diz Geneton Moraes Neto um aluno da escola de jornalismo da Rua Francisco Sá (em alusão ao endereço de Joel) um repórter burocrático seria incapaz de escrever um parágrafo de cinco linhas sobre a entrevista frustrada. [...] Mas Joel escreveu um longo e brilhante texto [...] Se episódios assim podiam resultar em textos brilhantes, com assuntos sérios não era diferente. Joel estava numa feijoada em que foi tramado o golpe militar de 1964. Só quatro anos depois ele escreveria A feijoada. O texto é recheado de digressões, monólogos interiores, metáforas, descrições de ambientes e, claro, da indignação do repórter. Afinal, onde a surpresa? Claro que a teria de acontecer! E acontecer como aconteceu! Claro! Claríssimo! E ao desabafar comigo mesmo essa assassina revelação me pareceu sentir no mar um estremeção de monstro satisfeito, bem jantado e bem bebido; e ouvir o cavo arroto de uma fera que acabara de me devorar e que, assim arrotando, finalmente resolvera dizer porque e quando e onde havia me devorado.10 O que nos leva a crer que Joel Silveira foi um dos primeiros repórteres Gonzo é que sua reportagem sobre os ricos de São Paulo, de 1943, já trazia todas as características que tratamos anteriormente. Ele segue a mesma linha em suas reportagens posteriores, inclusive em A feijoada, que traz pelo menos um recurso avançado de Jornalismo Literário, que é monólogo interior. Mas se atendo às três características de que tanto falamos, percebemos, além da ironia, digressões e descrições detalhadas, que Joel faz: narração em primeira pessoa; osmose e personalização do texto, emprestando características suas à reportagem. &$ ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Also known as Cardoso Se você ainda não sabe quem é o cara que escreve o prefácio deste livro, só que ele fez uma monografia acadêmica sobre Gonzo, saiba que André Cardoso Czarnobai produziu bem mais que isso. Mas vamos começar por essa palavra entre aspas antes do sobrenome do rapaz. Uma vez, um jornalista quase escreveu numa matéria que seu apelido provinha do sobrenome do cara que cunhou o termo Gonzo. Mas o apelido nada tem a ver com Bill Cardoso. Ele já contou a história em algumas colunas do Cardoso Online um fanzine eletrônico (ou ezine, se preferir) que manteve por três anos e que chegou a ter cinco mil assinantes. Mas para nós ele contou novamente. A história é que ele tinha um professor de Educação Física na faculdade (sim, apesar curso ser de JORNALISMO, o currículo tinha essa disciplina) chamado Camargo, mas, por alguma distração persistente, passei o semestre INTEIRO chamando o cara de Cardoso por engano. Os amigos dele, muito legais, ficaram quietinhos, mas passaram a chamá-lo de Cardosão. Quando o semestre estava mais pro fim, me contaram o motivo. Ridículo. Heheh. É meio sem graça, mas a maioria dos melhores apelidos são assim. Mas vamos ao que interessa. Se você digitar Gonzo no Google, a Irmande Raoul Duke de Gonzojornalismo, criação de Cardoso, vai estar na primeira página de resultados. Se selecionar a opção Páginas do Brasil, então, vai dar de cara com o site. Na IRD, Cardoso e Rodrigo Alvarez, mais conhecido como Suruba, juntaram alguns amigos escribas e publicaram alguns textos enormes para os padrões da Internet. Eram tanto de discussão como de prática do Gonzo. E foi massa porque tudo funcionava bem: os textos eram bons, os desenhos eram bons (porra, tínhamos ILUSTRADORES!), a lista funcionava. Na primeira edição foi ducaralho, porque peguei no vácuo muitos COLunistas, como o Daniel Galera, o Marcelo Träsel e o Hermano Freitas. Na segunda também foi massa, com colaboradores de peso de outros estados: Rio, São Paulo, Minas, &% CAMINHO ILUMINADO Mato Grosso, e elogios de Ana Maria Bahiana. Mas na terceira, por causa do alto nível de TRABALHO que o troço exigia eu tinha que editar os textos, as imagens e TODO o html do site enchi o saco.11 A IRD ainda repercute. Vários estudantes de jornalismo procuram Cardoso para saber mais sobre Gonzo o caso destes aqui. Ele lembra, contudo, que nem só de louros vive a Irmandade: Em 2005 o Álvaro Pereira Jr. escreveu um texto na Folha ESPINAFRANDO os gonzos brasileiros sem citar nomes mas só podia ser a IRD, que era a PRIMEIRA ocorrência para essa busca no Google. Em seu novo portal, digamos assim, o Qualquer.org, Cardoso refez todo a IRD* e promete que ela voltará, aos poucos, a ser atualizada. Num dos textos que podem ser lidos lá, encontramos o repórter explorando a Cidade Baixa de Porto Alegre. Meu procurador terminava de comer uma à la minuta com frango quando me aproximei de sua mesa. Estou sendo seguido, disse. Ele olhou para os dois lados, largou o garfo e bateu na mesa esbravejando: Então precisamos sair daqui imediatamente. Não Respondi. Isso vai nos expor. Seremos uma presa fácil. Meu procurador parece perturbado. Então vamos pedir uma cerveja. Não é um argumento que eu vá questionar, especialmente a essa altura do campeonato. O Cotiporã permanece num irritante vazio. Do outro lado da rua os coloninhos continuam à minha caça. Numa das esquinas mais movimentadas da Cidade Baixa é inquietante o fato de ser um dos únicos a beber num sábado à noite.12 Além de um senso de humor onipresente, Cardoso tem uma escrita que reproduz o seu jeito de falar. Os temas são normalmente fatos corriqueiros de sua vida porto-alegrense, uma osmose natural, portanto. Drogas, álcool, nenhum tema é proibido. Um de seus textos * && www.qualquer.org/gonzo ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES famosos, citado nas resenhas que fizeram de seu único livro (mas não o último, ele garante), Cavernas e Concubinas13, é o relato de sua quase apreensão por porte de maconha durante a Festa Literária de Parati (Flip) de 2004. Ah! Adivinha de onde saíram os contos e narrativas que ele reuniu para o livro? Da Internet, claro. Arthur Veríssimo, auto-declarado Gonzo Brasileiro O repórter excepcional da Trip é praticamente um sinônimo de Jornalismo Gonzo no Brasil. O editor da revista em que Arthur Veríssimo escreve entre idas e vindas há 19 anos, Paulo Lima, foi quem fez a associação, ao perceber pontos em comum em relação à obra de Hunter S. Thompson. E, de fato, os estilos são parecidos. As pautas de Veríssimo costumam brotar de viagens. Por sinal, ele é o tipo de sujeito que não pára em casa e está sempre com as malas prontas. Desde pequeno é fascinado em conhecer lugares diferentes. E depois de conhecidos, ele gosta de revisitá-los, numa incansável busca pelo exótico. México, Tailândia, Haiti, Zimbábue, Madagascar, PapuaNova Guiné, são alguns dos lugares que ele visitou. Destas peregrinações surgem bons relatos, nos quais o repórter escreve em primeira pessoa sobre suas vivências, das mais simples às mais inusitadas. Ao contrário de Thompson, Veríssimo não consome drogas há algum tempo. Hoje sou um cara do dia. Acordo às 5h30 todo dia. Graças às divindades e aos bons mentores, abdiquei da bebida. Nesse meu corpinho sagrado, álcool não entra mais. Quero oxigenar meu corpo. Minha onda, agora, é sentir o sangue pulsar, levar oxigênio aqui pra dentro e eliminar as toxinas.14 Em seus textos, Veríssimo adota um discurso bem humorado, que condiz com o seu jeito de ser e agir. Em umas de suas andanças ele navegou pelo Rio Amazonas num daqueles barcos que viajam por dias seguidos, com gente pendurada em redes. &' CAMINHO ILUMINADO Os gritos dos passageiros eram amortecidos pelo apito do Clívia: desembarque em Monte Alegre. Na volta, pedi autorização para saltar. Que cagaço! O aqualoco de plantão aqui pulou de 15 metros e caiu feito leão-marinho - a platéia eufórica aplaudiu. Mas senti uma dor de cabeça alucinante.15 Gustavo Abdel Massih Santos conceitua Veríssimo como Gonzo em seu artigo Arthur Veríssimo: o filho único do Gonzo brasileiro. Inclusive, ele traça comparações nas quais encontra correspondência dos textos de Veríssimo com as seis principais características do Jornalismo Gonzo elencadas por Czarnobai. Atualmente, Veríssimo ganhou um espaço no programa Domingo Espetacular, da TV Record. Ele apresenta o quadro Planeta Estranho, no qual faz reportagens sobre seus itinerários exóticos. O estilo Gonzo também está presente na televisão, com o repórter adotando a mesma linguagem de seus textos impressos e se posicionando quase sempre à frente da câmera, muitas vezes para experimentar determinadas situações, como participar de um ritual, por exemplo. O paraíso de Chris Simunek No início da década de 90, Chris Simunek era professor do colegial, numa escola do Queens, Nova York. Enquanto os escritores de reportagens especiais da década de 60 esperavam o momento de virarem romancistas dentro de redações, ele esperava esse dia dando aulas para garotos que tiravam sarro de sua cara, inclusive quando ele estava de ressaca. Sempre tinha visto o trabalho em educação como uma coisa temporária, uma forma de pagar o aluguel até publicar meu romance ou a minha banda assinar um contrato.16 Os dias de Simunek eram sempre tão iguais que até seu metabolismo tinha se adaptado a uma rotina. Entre a primeira e a segunda aula, eu tinha quatro minutos para largar um barro. Todo dia esse ato me trazia um dilema existencial. ' ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Pois veja, um pequeno herege tinha cagado no banheiro dos professores e aquilo ficou ali por três semanas. Toda manhã eu olhava aquilo, e sabia que tinha algum significado, mas não tinha certeza qual. [...]. Pra mim, era um marco de quanto eu tinha progredido em meus 24 anos. [...] Fechei o zíper e mandei pelo esgoto quatro anos de faculdade mais dois de pedagogia. Saí do prédio e nunca mais voltei.17 Depois de andar pela cidade por uns tempos e tocar numa banda com o diretor de arte assistente da High Times, Simunek conheceu Steve Hager, o editor da revista underground que desde 1974 aborda a cultura da maconha. Dali a pouco tempo, Simunek estaria visitando uma plantação de maconha no sul do país para escrever uma reportagem para a High Times. Este repórter tem um senso de humor nato; enquanto Thompson fazia referências a figuras públicas como políticos, jornalistas e atores, Simunek cita Papa Léguas, James Bond e Capitão Kirk. Seus textos ultrapassam a temática das drogas para falar de música e do povo estadunidense. Com uma ironia peculiar, faz suaves críticas à sociedade. Em uma das viagens que fez à Jamaica, Simunek narra um momento de tensão. Fogo queima! O cara da capa gritou mais uma vez, pro caso de eu não ter entendido. Eu limpei suas palavras do meu rosto, olhei pra fogueira de mais de cinco metros de altura e comecei a pensar: Jesus, tomara que eles me dêem uma facada primeiro, e só me joguem no fogo quando eu já estiver bem morto. Por que vocês vieram? ouvi uma voz zangada e anônima me perguntando. Estou... ahn... tentando legalizar a maconha... Não era a melhor resposta, mas, de certo modo, era verdade e, além disso, eu estava tão apavorado, que fiquei feliz que ainda tinha palavras, e não bile, me saindo da boca.18 ' CAMINHO ILUMINADO Além da osmose, personalização e narração em primeira pessoa, notamos nos escritos de Simunek características presentes na obra de Hunter Thompson, como uso de drogas e ironia. Mas vale lembrar que essas características se enquadram no quesito personalização: são características do autor que impregnam o texto. Chris Simunek obedece, ainda, a um dos mandamentos de Thompson e que o pessoal da Irmande Raoul Duke levava ao pé da letra: não se levar a sério. O camaleão Günter Wallraff Em meados da década de 80, Günter Wallraff era um jornalista alemão que buscava um método diferente para apurar suas reportagens. Foi um alcoólatra numa clínica para deficientes mentais, porteiro de uma grande organização financeira sob suspeita de práticas ilegais e um agitador político acorrentado numa praça de Atenas, distribuindo panfletos que acusavam a ditadura grega de violar os direitos humanos. Wallraff ficou conhecido no mundo todo por ser jornalista e ao mesmo tempo um primoroso ator. O ponto de partida para suas investigações é viver uma situação para depois contar. Pois, segundo ele, quem vive e sente alguma coisa em sua própria carne tira conclusões muito mais rápidas e mais decisivas do que se somente tivesse escutado ou lido alguma informação a respeito. Sua empreitada seguinte foi trabalhar como repórter de um jornal popular, o Bild Zeitung, para mostrar o processo de manipulação das notícias no veículo com tiragem diária de milhões de exemplares. A vivência foi descrita no livro Fábrica de Mentiras. A partir de então, Wallraff decidiu alçar um vôo mais alto e que foi tido como polêmico e, por isso, lhe rendeu maior notoriedade. Para demonstrar a situação vivida por milhões de imigrantes, em especial os turcos, na Alemanha, o jornalista resolveu viver como um turco. Para esconder o cabelo loiro e os olhos claros, ele adotou um disfarce, que incluía lente de contato, peruca, bigode e documentos falsos. Para não levantar suspeitas, criou ainda um ' ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES falso sotaque, conjugando os verbos de forma equivocada. Criou-se o personagem Ali. E assim, Wallraff se propôs a quebrar a frieza da sociedade alemã e se aventurar pelos porões do subemprego para saber o que um estrangeiro enfrenta e até onde pode chegar o desprezo humano. A experiência relatada no livro Cabeça de turco é um exemplo de Jornalismo Gonzo adotado como forma de questionar a sociedade e apontar relevantes problemas sociais. De forma inconsciente ou não, Wallraff produziu uma obra que se encaixa perfeitamente no conceito de Gonzo que aqui pregamos. A obra abalou as estruturas do povo alemão e é tida até hoje como um dos marcos da literatura pós-guerra no país. Como relatado, o jornalista alemão não se satisfez em acompanhar os trabalhadores turcos, mas ousou viver como um deles, em um caso típico de osmose. Sob o disfarce de Ali, entrou de forma ilegal no país, sujeitou-se a diversos tipos de trabalho, com destaque para suas ocupações em empresas industriais, nas quais enfrentou desrespeito às mínimas regras de segurança e a péssima remuneração. Chegou até a ser cobaia humana de experimentos da indústria farmacêutica. Além disso, Wallraff demonstrou as precárias formas de atendimento médico, o menosprezo da Igreja católica alemã e o preconceito da população de uma forma geral. A narração em primeira pessoa é adotada em toda obra, de forma menos intensa, apenas, quando relata histórias de turcos com quem conviveu. O repórter é o protagonista das ações, e como William Waack aponta no prefácio da edição brasileira do livro, Wallraff provoca situações e chega até a armar uma armadilha para demonstrar o descaso de Adler (um de seus patrões) em entregar trabalhadores ilegais para a morte lenta. O texto tem linguagem simples e direta, entretanto, demonstra um autor de personalidade acusadora, fazendo denúncias e transparecendo toda a revolta contida, em determinados momentos. Um exemplo é quando comenta o pronunciamento de Adler, seu patrão, que diz gostar de trabalhar com os turcos. '! CAMINHO ILUMINADO Trabalhar com os turcos... Explorá-los, isso sim! Obrigá-los a se esfalfar como escravos até que caiam de cansaço ou estiquem as canelas. Ele realmente doura a pílula tratando-os de colaboradores... A palavra deve soar como um bálsamo aos ouvidos dos massacrados e oprimidos.19 É visível a forma com que deixa transparecer o tom crítico com que vê a sociedade alemã. Ali desejava ser batizado na Igreja católica, mas é recusado por um padre de um bairro nobre. Eu não contava com isso. É claro que me enganei de endereço. Há ovelhas negras por toda parte. E aqui, neste subúrbio residencial, onde os ricos desejam ficar entre os ricos, eu como Ali obviamente não teria vez.20 Em todo o texto, o autor também demonstra um senso de humor às vezes irônico, como no caso em que, testando o disfarce de Ali, fala com um líder da direita alemã e simpatizante do fascismo. Enquanto Helmut Kohl fazia seu discurso de vitória, aproximeime bastante do palanque. Depois de prestar várias homenagens aos outros e a si mesmo, ele fez menção de descer. Estive prestes a oferecer meus ombros para carregá-lo pelo salão numa volta triunfal. Mas preferi desistir de tal propósito para não sucumbir sob o peso considerável do chanceler.21 Às vezes Wallraff é ácido, como quando trabalha de motorista e é impedido de usar o banheiro da casa de seu patrão, que dá a desculpa de querer evitar doenças. Sou enxotado como um cachorro. E não há nenhum local onde eu possa me aliviar. O jardim inteiro é descoberto. Tenho vontade de dar uma bela cagada no capô do Mercedes, bem em cima da estrela.22 E em dados momentos, o humor se manifesta sutilmente. Para cada hora de trabalho, Keitel embolsa a quantia de 14 a 25 marcos. Ora, normalmente um operário da construção civil trabalha dez horas por dia o que perfaz a soma de 140 a 250 '" ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES marcos por dia e por trabalhador. Um total de quinhentos operários resulta em algo entre 70 mil e 125 mil marcos diariamente. Desse dinheiro Keitel deduz um mínimo para as despesas com transporte e contabilidade, encargos fiscais e contribuições sociais. Ou não.23 Ainda se pode notar, na obra de Wallraff, alguns elementos similares ao Gonzo de Hunter Thompson, como a utilização de epígrafes e o uso de um pseudônimo, Ali. Portanto, podemos considerar Cabeça de Turco como Jornalismo Gonzo, em que o autor adotou as características do estilo, conscientemente ou não, e graças a essa forma atingiu seu objetivo. Continuo, porém, sem saber como um imigrante consegue engolir as humilhações, as hostilidades e o ódio cotidianos. Mas agora sei o que ele tem de suportar e até onde pode chegar o desprezo humano neste país. Reflexos do apartheid projetam-se aqui entre nós em nossa democracia. Os fatos ultrapassaram todas as minhas expectativas. De modo negativo, é claro. Em plena República Federal da Alemanha vivenciei situações que só estão descritas nos livros de História do século XIX.24 Gonzo em meios audiovisuais Como atesta Estevam Tavares de Freitas, em seu texto JL e documentários: interfaces, além de fortes aproximações ético-estéticas com a realidade contemporânea, o Jornalismo Literário e os documentários possuem paralelos e convergências muito interessantes.25 Edvaldo Pereira Lima também enxerga a presença das Narrativas da Vida Real nos documentários nacionais. Em seu artigo Jornalismo Literário no cinema, ele aponta como exemplos Edifício Master, de Eduardo Coutinho, Paulinho da Viola Meu tempo é hoje, de Isabel Jaguaribe, Nelson Freire, de João Moreira Salles, entre outros. '# CAMINHO ILUMINADO Como vimos agora a pouco, Arthur Veríssimo faz Gonzo na TV. Tomando como base a premissa de que há Jornalismo Literário nos meios audiovisuais, verificamos elementos de Jornalismo Gonzo em dois famosos documentaristas da atualidade: Michael Moore e Morgan Spurlock. O PANFLETÁRIO MICHAEL MOORE O estilo incisivo e irônico de Michael Moore o tornou mundialmente famoso, batendo recordes de bilheteria para documentários e lhe dando diversos prêmios. Sempre lidando com temas polêmicos, ele é congratulado por levar à tona temas desprezados pela grande mídia, mas é chamado por alguns de panfletário, pois dizem que não é preciso e que direciona o público para a sua interpretação dos fatos. André Cardoso Czarnobai apontou que os programas de televisão TV Nation e The Awful Truth podem ser classificados como Jornalismo Gonzo. Edvaldo Pereira Lima argumenta que existem elementos Gonzo, na medida em que Moore provoca intencionalmente as reações de vários personagens de sua narrativa.26 Ao analisarmos as três principais obras de sua filmografia até o momento composta por Roger & Eu, Tiros em Columbine e Fahrenheit 9/11 examinamos que os documentários contam com uma forte presença do que pode ser chamado de Jornalismo Gonzo. Em Roger e Eu (1989), o documentarista retorna a sua cidade natal (Flint, Michigan) para retratar os efeitos causados pelo fechamento das fábricas da General Motors, a principal indústria local. Moore critica a visão neoliberal da globalização, em que empresas buscam instalar fábricas em países mais pobres por causa da mão de obra mais barata. Durante o filme, ele persegue o presidente da General Motors, Roger B. Smith, na tentativa de convidá-lo a uma visita para ver os efeitos do desemprego em Flint. Para ilustrar todos os problemas da cidade, aponta as mudanças ocorridas desde sua infância. Já é bastante perceptível a ironia e o humor que se consagrariam nas obras seguintes '$ ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Com Tiros em Columbine (2002), Moore ganhou prêmios de melhor documentário, no Oscar e em Cannes. Ele busca provar a cultura de armas e violência existente nos Estados Unidos, tomando como base os dois estudantes que mataram 12 pessoas e depois se suicidaram numa escola de Columbine. Na época, foi um grande sucesso de público (o maior para o gênero) e muito bem recebido pela crítica. É o caso em que encontramos mais elementos do Jornalismo Gonzo. Ao contrário da maioria dos documentaristas, Moore está sempre exposto em frente às câmeras, agindo como um protagonista de sua história e adotando por diversas vezes uma narrativa em primeira pessoa. Logo no começo do filme, usa sua história pessoal como exemplo da relação do povo estadunidense com as armas. O jeito irônico e contestador de sua personalidade não só transparece na narração, mas até na forma em que edita as cenas. Ele liga, por exemplo, a fala de uma pessoa afirmando que um país não pode atirar mísseis para outro, a não ser em caso de ataque, a uma seqüência de cenas que mostra diversas intervenções americanas durante o século XX. E a trilha sonora neste momento é What a wonderful world, na voz de Frank Sinatra. Nada mais irônico. A forte crítica a um programa de televisão que cobre ações policias, intitulado Cops, também é feita com bastante ironia. Primeiro, Moore questiona um policial se não se pode prender alguém porque ele não consegue enxergar o letreiro de Hollywood em razão da poluição. Depois, ele conversa com um dos produtores do programa e pergunta se não seria possível focá-lo nas causas da violência ao invés da própria criminalidade. E por fim, Moore encena como seria o programa se fosse chamado Coorporate Cops, algo como Policiais de colarinho branco. Ao verificar que no Canadá as pessoas não costumam trancar suas portas, Moore exclama: "Eu como um americano com três trancas na porta acho isso um pouco confuso". Em outra ocasião, ao entrevistar uma professora de uma escola em Flint (sua terra natal e presença constante em sua obra) em que um menino de seis anos atirou em uma colega de classe, se emociona e consola a entrevistada. '% CAMINHO ILUMINADO Os dois pontos altos do filme são justamente aqueles mais conceituáveis como Gonzo. Ao lado de duas vítimas de Columbine, Moore procura a direção do K-Mart, uma grande rede de lojas, com o objetivo de questionar a venda de munição para armas de fogo. Após longa espera e até convocar a imprensa, eles conseguem que a loja deixe de vendê-la. O outro momento forte é quando Moore deixa transparecer de forma ainda mais nítida seu jeito incisivo e confrontador, mas sempre mantendo a calma e um tom de voz ameno. Ele visita a casa de Charles Heston, ator aposentado e presidente da NRA (National Rifle Association ou, numa livre tradução, Associação Nacional do Rifle). Ao inquirir Heston com várias perguntas e contestar suas respostas, em especial sobre porque seria tão alto o número de mortes por armas de fogo nos Estados Unidos, ele é abandonado durante a entrevista na própria casa do ator. Antes de ir embora, Moore deixa de lembrança a foto da menina assassinada em Flint. No final do filme, Moore resume sua sensação de viver em uma América que vive e respira o medo. E encerra jogando boliche* e dizendo: Sim, é um momento glorioso para ser americano. Sobe o som com What a wonderful world, desta vez cantado por Joey Ramone. Ironia suprema... Em Fahrenheit 9/11 (2004), Moore examina os EUA depois dos atentados de 11 de setembro, criticando a administração do presidente George W. Bush e apontando laços entre as famílias Bush e Bin Laden. Tornou-se o primeiro documentário a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, desde 1956, e a maior bilheteria para um filme do gênero. Neste documentário, o cineasta se mostra mais contido, assumindo em poucos momentos um papel de protagonista e a narrativa em primeira pessoa. Ainda assim, a narração é freqüentemente feita com ironia e contestação; os elemento mais característicos de sua personalidade. Os dois jovens responsáveis pelo massacre de Columbine jogaram boliche antes de matarem seus colegas. Moore faz uma alusão àqueles que desviam as verdadeiras razões da chacina e culpam filmes, músicas e até mesmo o boliche. * '& ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES O presidente Bush é seu alvo favorito durante todo filme. Moore começa relatando os problemas enfrentados no primeiro ano de governo e exclama: Com tudo dando errado ele fez o que qualquer um faria. Saiu de férias. Na cena seguinte, exibe um Bush atônito, em uma visita a uma escola, no momento em que acaba de receber a notícia do atentado contra o World Trade Center. As imagens da reação do presidente são fortes: sete minutos parados sem fazer nada. Sem saber o que fazer, sem ninguém para lhe dizer o que fazer, nem mesmo o Serviço Secreto disponível para lhe dar proteção, o sr. Bush continuou sentado e continuou a ler My pet goal para as crianças, descreve. O documentarista especula sobre o que o presidente refletia no momento: Enquanto ele sentava naquela classe, teria pensado que deveria ter trabalhado mais? Que deveria ter feito pelo menos uma reunião para discutir sobre terrorismo com o chefe de contraterrorismo? Ou por que cortou a verba de combate ao terrorismo do FBI? Ou talvez devesse ter lido o relatório de segurança que recebeu em 6 de agosto de 2001, dizendo que Osama bin Laden planejava atacar a América seqüestrando aviões? Sua ironia dita o tom de toda narrativa. Nos momentos em que Moore aparece, está sempre escancarando seu jeito peculiar de abordar os outros. Preocupado com o fato de que os congressistas não haviam lido o Patriotic Act (Decreto Patriota) antes de votá-lo, ele resolve passar com um carro de som em frente ao Congresso fazendo a leitura. Ou então, no mesmo Congresso, aborda políticos propondo o alistamento dos filhos deles para servirem no Iraque. Atente que não estamos afirmando que os documentários de Michael Moore podem ser absolutamente taxados como Jornalismo Gonzo. Apenas mostramos que possuem as características do estilo e que em muitos momentos se encaixam perfeitamente. O COBAIA MORGAN SPURLOCK Curiosamente, outro documentarista que fez bastante sucesso recentemente também possui características muito próximas do '' CAMINHO ILUMINADO Jornalismo Gonzo. Morgan Supurlock tornou-se célebre em seu documentário Super Size Me (2004), no qual encara uma dieta de 30 dias comendo apenas no McDonalds, com o objetivo de provar os malefícios deste tipo de alimentação. Como resultado, ganhou 11 quilos, apresentou uma série de disfunções no organismo e desenvolveu alguns sintomas de depressão. Ele é o protagonista de todo o documentário, com a câmera quase sempre mirando em sua direção. Muitos notam em Spurlock uma influência de Michael Moore. A narrativa também é feita em primeira pessoa e é composta por informações, depoimentos de especialistas e, principalmente, depoimentos dele, muitas vezes recheados de humor e ironia. Um exemplo típico ocorre quando ele experimenta pela primeira vez o pedido Super Size, ou seja, o tamanho máximo de todos acompanhamentos. Depois de dez minutos comendo a refeição, ele mal agüenta continuar e brinca: Agora é a parte do lanche que você fica com McDor de estômago. Começam os McGazes, os McRoncos na barriga... Parece um McTijolo e a McDor de estômago começa. Alguns McGases estão se formando. Meu braço está pesado. Estou McSuando. Meu braço está com McFormigamento devido ao açúcar que está entrando. Estou meio McLouco. E logo em seguida ele vomita no chão, com a câmera focalizando. As piadas recheiam o documentário. Quando ele verifica que perdeu peso na verdade havia perdido massa muscular , exclama: Perdi meio quilo. Vamos comer alguma coisa! Ou quando o lobista de diversas indústrias alimentícias admite que elas são parte do problema. Acho que estamos fazendo algum progresso, comemora com ironia. Ou ainda enquanto filma suas tentativas de falar com algum representante do McDonalds e faz gracinhas para a câmera enquanto aguarda no telefone. Spurlock também se mostra bastante crítico, como quando verifica a alimentação nas escolas. A responsável fala que o refeitório oferece ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES de tudo e cabe às crianças e jovens escolherem. É aí que as escolas fecham os olhos. A aluna com as batatas fritas provavelmente comprou um saco de comida de verdade. A dos saquinhos de batata provavelmente dividiu com alguém. Longe dos olhos não existe preocupação, constata. No final do filme, ele faz algumas considerações expressando claramente a sua opinião a respeito da questão. E como trilha sonora, uma música composta por ele mesmo, cuja letra debocha do McDonalds. Super Size Me rendeu a Spurlock um prêmio no Festival de Sundance e, coincidentemente, seis semanas depois o McDonalds deixou de vender os tamanhos Super Size. Podemos analisar que o documentário é um exemplo de Jornalismo Gonzo em um meio audiovisual. Pois ele vai além dos elementos inseridos por Michael Moore. Spurlock aparece durante todo o filme como protagonista, adotando a narrativa em primeira pessoa e com um texto (em seu off ou em suas falas), demonstrando uma personalidade crítica e bem humorada. Notas Ribeiro, 2005, p. 24 id., p. 39 ! ibid., p. 36 " Entrevista concedida em 02/10/2006 # id. $ Realidade, nº 19, outubro de 1967, p. 35 % id., p. 48 & Silveira, 1980, p. 7 ' id. p. 43 ibid., p. 109 Entrevista concedida em 10/10/2006 Nem John Wayne Matou Tanto Indio Na Cidade Baixa, Irmandade Raoul Duke, 2002 ! Editora DBA, 2005 CAMINHO ILUMINADO " Revista Trip, 2005 # apud Santos, 2006, p.15 $ Simunek, 2002, p. 15 % id., p. 18 & ibid., p. 175 ' Wallraff, 1990, p. 242 id., p. 62 ibid., p.23 ibid., p. 182 ! ibid., 59 " ibid., 20 # Freitas, 2006 $ Entrevista concedida em 30/10/2006 ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES 4. Trilhando o Caminho Iluminado O Jornalismo Gonzo na pós-modernidade ! CAMINHO ILUMINADO " ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES O saber é um enunciado; na escritura, ele é uma enunciação. (Roland Barthes) O momento em que surge o Jornalismo Gonzo nos Estados Unidos acontece em uma época de ruptura de conceitos, como contextualiza Fredric Jameson, que vislumbra uma quebra radical no fim dos anos 50 e início dos 60. Jameson denomina esta conjuntura como pósmodernismo. Como sugere a própria palavra, essa ruptura é muito freqüentemente relacionada com o atenuamento ou extinção (ou repúdio ideológico ou estético) do centenário movimento moderno. Por essa ótica, o expressionismo abstrato em pintura, o existencialismo em filosofia, as formas derradeiras da representação no romance, os filmes dos grandes auteurs ou a # CAMINHO ILUMINADO escola moderna de poesia (como institucionalizada na obra de Wallace) são agora vistos como a extraordinária floração final do impulso do alto modernismo que se desgasta e se exaure com essas obras. Assim, a enumeração do que vem depois se torna, de imediato, empírica, caótica e heterogênea [ ]1. O Jornalismo Gonzo bebe desta fonte. Absorve o movimento de contracultura e tem as mesmas raízes. Por isso, pode-se dizer que se enquadra como uma ruptura com o jornalismo dito objetivo. É uma nova concepção de jornalismo e com proposta e forma diferentes. Este tipo de jornalismo ao qual damos o nome de Objetivo foi concebido de forma gradativa a partir do final do século XIX, com inspiração nos preceitos da 1ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que garante a liberdade de imprensa, assim como na sistematização da ciência pela física mecânica, pregando a necessidade de comprovação científica. O professor de jornalismo e doutor em Psicologia Celso Falaschi visualiza, a partir daí, a sistematização da imprensa, com um modelo de produção jornalística que não possa ser questionado por essa ciência e se estabelecem mecanismos para que as notícias não possam ser contestadas. 2 É desta maneira que o jornalismo de reportagem substitui o jornalismo de crônica3, com a adoção prática de uma nova fórmula: a pirâmide invertida* e o objetivo de descrever os fatos e transmitir as informações com objetividade, isenção e imparcialidade, sempre ouvindo todos os lados envolvidos no assunto, aparentando que o fato foi integralmente descrito. Formatou-se uma clara divisão no espaço para as notícias e para a emissão de opinião. O caráter científico ainda exigia que o jornalismo cumprisse outras características para ser considerado válido: atualidade, factualidade, veracidade, concisão, proeminência, proximidade e universalidade. De acordo com José Marques de Melo, é estabelecida uma divisão a respeito dos gêneros jornalísticos entre o Informativo composto por Técnica usada na redação de notícias que prioriza as informações mais importantes no primeiro parágrafo, chamado de lead (ou lide), respondendo à questão Quem fez o que, quando, onde, como e por que? * $ ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES notas, notícias e reportagens e que predomina nas páginas dos jornais e o Opinativo, que compreende artigos, editoriais, colunas, crônicas e charges. A Primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918, expande os referidos moldes da prática jornalística e dá início a um processo de consolidação global destes parâmetros. É quando a imprensa assimila os efeitos das profundas mudanças na sociedade e nas relações dos povos com os meios de comunicação de massa4. Somente na década de 50 esse Jornalismo Informativo é implantado no Brasil, por meio do Diário Carioca. Logo, o Jornal do Brasil adotou o modelo, que se tornou teoria nas faculdades e se expandiu para praticamente todos os jornais impressos. Enfim, o Jornalismo Informativo era de praxe e consagrado no País. O mundo vive ainda um terceiro momento em que o Jornalismo Informativo se expande e se enraíza de forma ainda mais ampla, em conseqüência da queda de tiragem e uma crise de vendagem dos jornais no final dos anos 70, apontados pelo Projeto Ruth Clark como fruto da popularização da televisão. A solução proposta é adotada de forma exemplar pelo periódico estadunidense USA Today, que racionalizou os espaços de texto, reduziu as explanações, narrativas e pontos de vista, e amenizou as interpretações e aprofundamentos das questões em detrimento da prevalência imagética. O sucesso deste modelo ecoou por diversos jornais do mundo durante a década de 80, inclusive no Brasil, e consolidou de uma vez por todas a prática objetiva originada no século anterior. CRÍTICAS AO MODELO Apesar de tão antigos, estes conceitos continuam sendo empregados nos dias de hoje na imprensa brasileira. O Jornalismo Informativo é o eixo central dos grandes jornais. É um jornalismo que segue didaticamente o que está estabelecido nos famosos manuais de redação, que têm como objetivo padronizar o estilo do texto produzido e, de certa forma, neutralizar a questão autoral, com artifícios que contrariam a individualidade de quem escreve. É % CAMINHO ILUMINADO o caso do Manual de Redação e Estilo, do jornal O Estado de S. Paulo, que propõe: faça textos imparciais e objetivos e não exponha opiniões5. A respeito dos manuais, Ciro Marcondes Filho sentencia que eles representam a estruturação dos códigos lingüísticos criados pelas empresas de comunicação. Segundo ele, o que ocorre é uma determinação de princípios básicos de estilo e uma radical redução da complexidade lingüística. A doutora em comunicação Liriam Sponholz verifica a presença do termo objetividade dentro das redações, salas de aula e mesas de bar6. Ela cita a pesquisa de Hohlfeldt que mostra que o termo objetividade é o mais citado em uma análise de 21 livros a respeito de redação jornalística. A partir dessa perspectiva, cria-se a ilusão de que aquilo que se está reportando é a verdade absoluta, quando na verdade trata-se de uma representação da realidade sob a ótica do jornalista. O filósofo francês Roland Barthes explana que tudo que envolve a linguagem tem sua força de representação, e que o real não é representável. Desde os tempos antigos até as tentativas de vanguarda, a literatura se afaina na representação do real7. Barthes também acredita que o homem possui dificuldade para lidar com isto. Que não haja paralelismo entre o real e a linguagem, com isso os homens não se conformam, e é essa recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que produz numa faina incessante, a literatura8. Outro filósofo francês, Michel Foucault, segue uma linha de pensamento semelhante. Ele afirma que as verdades são variáveis e não universais. Além disso, a verdade é essencialmente ligada ao poder, pois não existe fora dele ou sem ele. O filósofo argumenta que cada sociedade tem seu próprio regime de verdade. Em nossa sociedade, ele está centrado na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem, o que explica a grande valorização do Jornalismo Informativo. Esses conceitos são plenamente válidos no jornalismo. Por mais que o jornalista se esforce na apuração e na redação do texto, de forma a ouvir o & ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES maior número de fontes possíveis e escrever buscando ser fiel aos fatos e tentando não se deixar influenciar por qualquer questão, o texto produzido nada mais será do que um trabalho único e essencialmente pessoal daquele jornalista. Ainda que tenha seguido à risca os preceitos do jornalismo dito objetivo, do manual de redação, o resultado será uma reprodução sob um ponto de vista individual dos fatos abordados. Ora, apesar da tentativa de se anular a singularidade de cada jornalista, como um trabalho meramente técnico, algo como um sistema fabril de linha de produção, estamos diante de um trabalho intelectual, e como tal, este não pode ser feito sem a influência da formação cultural de um indivíduo, seu histórico pessoal, sua personalidade e todas as suas características que tornam cada ser humano tão diferente do outro. Se uma mesma pauta fosse encaminhada para cem jornalistas, o resultado seria certamente cem reportagens diferentes. Ainda que algumas se aproximassem, outras seriam totalmente destoantes, mas efetivamente nenhuma seria igual. Esta é uma condição humana que não pode ser ignorada. Mesmo com a pirâmide invertida e o culto à objetividade tolhendo a criatividade e limitando a capacidade de aferir a realidade do jornalista. E, no entanto, tenta-se negar esta condição ao se pregar termos como objetividade, isenção e imparcialidade, ao mesmo tempo em que prefere ignorar a subjetividade de cada um de nós. Ao consultar teóricos que dissertam a respeito da práxis jornalística, verifica-se que esta subjetividade e opinião intrínsecas a uma produção intelectual de cunho individualizado são admitidas. O Novo Manual de Redação da Folha assume a inexistência da objetividade no jornalismo. Ao escolher um assunto, redigir um texto e editá-lo, o jornalista toma decisões em larga medida subjetivas, influenciadas por suas posições pessoais, hábitos e emoções9. Só que ao mesmo tempo em que reconhece essas características, o Manual taxa que se deve buscar ser o mais objetivo possível, encarando o fato com distanciamento e frieza10. O que é uma contradição, já que está se pregando que se deve tentar anular a subjetividade, adotando uma postura de maquiar esta condição. As- ' CAMINHO ILUMINADO sume-se a existência da subjetividade ao mesmo tempo em que se tenta negá-la. E isto não se torna uma referência clara para o leitor, que absorve a informação maquiada com os conceitos de objetividade e imparcialidade. Liriam Sponholz enquadra a discussão a respeito da objetividade como uma discussão para a Teoria do Conhecimento. Para ela, primeiramente é importante ressaltar que durante o processo de observação, no qual o jornalista toma conhecimento das informações e apura os acontecimentos, já existe um processo individual de contato com a realidade sempre seletivo, perspectivo e construtivo, afinal é impossível conhecer a realidade inteiramente, pois nosso sistema nervoso e a nossa capacidade de percepção são limitados11. E no processo de redação, ou seja, quando o jornalista transforma o que foi verificado em signos, analisa Liriam, o que o texto contém é uma construção da realidade, o que não significa que o escrito não precisa ou não pode ter relação com o observado. Cremilda Medina também enfatiza a importância do real/ imaginário do próprio repórter em sua produção. Para ela, a exigência de um comportamento objetivo tapa o sol com a peneira, porque nunca se evita a interferência do eu subjetivo a partir do momento que cada ação compreende uma linguagem verbal ou não-verbal que é comprometida com o real-imaginário de cada um12. Edvaldo Pereira Lima trabalha com a questão em seu livro Páginas Ampliadas, ao tratar do livro-reportagem. Ao analisar o tema, o autor aponta a objetividade como mito. Não pode haver neutralidade, imparcialidade, verdade absoluta, quando os mecanismos de captação do real são condicionados por uma série de fatores pessoais do repórter, sua formação, sua cosmovisão e conjunturais da empresa jornalística, seu escopo ideológico, seus comprometimentos nos planos econômico, político, social , que limitam a compreensão do mundo.13 Na visão de José Marques de Melo, a objetividade converteu-se em camisa-de-força para o desempenho do jornalista. Na medida em ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES que sua feição determinante passa a ser a economia de palavras, imagens e sons, o trabalho do jornalista burocratiza-se rapidamente14. Falaschi reforça a inexistência destes conceitos. Com o estudo evolutivo da ciência, é provado pela física quântica que mesmo que você tenha a intenção, não consegue ser imparcial nunca, mesmo um cientista 15. Para ele, usar conceitos como estes para falar sobre jornalismo nos dias de hoje é algo ultrapassado, pois até nas Ciências Exatas esses conceitos não são aplicáveis. No entanto, mesmo admitindo que a prática do jornalismo informativo persegue uma utopia, um objetivo que não vai ser alcançado, os jornais continuam perpetuando esta forma como correta e negando quaisquer alternativas.Talvez esse seja um dos motivos da crise do jornal, em especial do impresso, tema discutido na atualidade por muitos autores. CRISE DOS JORNAIS O acesso à informação foi transformado com o avanço da Internet, pelo desenvolvimento tecnológico e a popularização de meios de comunicação eletrônicos. Muitos taxaram que esses elementos premeditavam a morte dos jornais, incluindo o poderoso dono da Microsoft, Bill Gates, e Philip Meyer, autor do livro The Vanishing Newspaper, que prevê para o ano de 2043 o fim dos jornais nos Estados Unidos. O Congresso Brasileiro de Jornais, evento realizado pela Associação Nacional de Jornais (ANJ), em agosto de 2006, se propôs justamente a discutir o futuro do veículo. Os especialistas que deram palestras no congresso concordam que a extinção dos jornais não deve ocorrer, porém, afirmam que são necessárias mudanças para lidar com as quedas de leitura e circulação*. O presidente da Associação Mundial dos Jornais (WAN), Timothy Balding, assegurou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo que o A questão da queda de circulação e leitura dos jornais é polêmica, pois existem muitas divergências a respeito. O Congresso Brasileiro dos Jornais de 2006 aponta que houve um aumento de 4,1% da circulação e 12,7% de arrecadação publicitária, durante o ano de 2005. Nestes termos, os dados indicariam o final da crise. * CAMINHO ILUMINADO impresso deve saber como invadir o espaço da Internet. Mas não só isso, para ele os jornais têm que se fixar na seleção criteriosa das matérias e no aprofundamento dos temas16. Na mesma reportagem, o consultor de mídia Carlos Alberto Di Franco salientou o papel social do jornal e o desafio de publicar uma informação aprofundada e organizada. O jornal precisa se reinventar. Ele ainda é uma máquina pesada e burocrática, que ainda caminha numa velocidade que não é a do mundo digital17, constatou. Como se nota nestas declarações, a crise dos jornais não se dá apenas na concorrência com outros meios ou por questões gráficas e estéticas no que se refere ao formato atrativo do veículo , mas também em relação ao conteúdo. E nesse aspecto, Falaschi é categórico a respeito: Existe realmente uma crise de qualidade de texto na imprensa brasileira. Não há a menor sombra de dúvida de que atualmente o texto está muito pobre.18 Em sua tese de doutorado, Identificação de Narrativas e características criativas no jornalismo impresso diário brasileiro, Falaschi analisou, durante 16 dias do ano de 2004, 11 jornais dentre os 15 de maior circulação do País*. A partir da análise da qualidade do texto e da presença de Jornalismo Literário nos veículos, ele constatou que em apenas três veículos (Correio Brasiliense, O Estado de S. Paulo e Zero Hora) pode-se constatar um investimento sistemático na produção de reportagens cativantes com freqüência diária. Do total da amostra coletada em todos os 11 jornais, estes três veículos representam 78,2% de todas as reportagens que preencheram os requisitos do Jornalismo Literário. A partir desta constatação, ele verificou que a prática do Jornalismo Literário na imprensa escrita diária vem se ampliando lenta, mas consistentemente.19 Ainda assim, encontra-se aquém do ideal. Entre os fatores apontados por Falaschi para a baixa qualidade dos textos da imprensa brasileira, os mais evidentes são a consagração do Em casos de jornais pertencentes a uma mesma empresa, foi descartado o de menor circulação. Por exemplo: no caso das publicações do Grupo Estado, O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde, o último foi desconsiderado, já que muitas reportagens são reproduzidas em ambos. * ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES modelo estadunidense de jornalismo objetivo e os resquícios da censura prévia à imprensa decretada pelo AI-5. O professor ressalta ainda outros aspectos importantes e que nem sempre são levados em consideração. (a) A chegada tardia da imprensa e das faculdades de comunicação ao Brasil, o que nos deixou atrasados em relação a outros países no que se refere ao desenvolvimento da imprensa. (b) A dificuldade de acesso ao ensino superior público ou privado de qualidade, questão atrelada ao modelo educacional baseado na repetição de conteúdo. (c) A adoção de uma estrutura de ensino no qual o jornalismo é parte fragmentada do âmbito da Comunicação Social, o que acarreta em uma falta de identidade com a profissão. (d) A interferência do acordo MEC-USAID, via CIESPAL (Centro Internacional de Estudos Superiores de Comunicação para a América Latina), que importou o modelo estadunidense e impôs exigências que limitam a base teórica no campo. (e) A falta de estudos mais detalhados e prolongados sobre os gêneros jornalísticos. E por fim, (f) baixos investimentos das empresas jornalísticas na melhoria de qualidade editorial de seus produtos. A sucessão destes fatores, fruto da concentração dos poderes político, econômico e jornalístico nas mãos de alguns grupos ou famílias, inviabilizam a formação de massa crítica extensa e uniforme. Somado a isso, um ambiente de trabalho que não estimula a criatividade do jornalista, em virtude de uma jornada exaustiva, baixos salários e outros componentes, Falaschi detecta uma conjutura que só poderia desencadear em uma crise da qualidade do texto. As pesquisas realizadas por esta tese apontam que a maioria dos jornais avaliados continua presa ao jornalismo declaratório, baseado no anteriormente citado modelo norte-americano de Jornalismo Informativo, sem investigação e sem opinião e, ainda, com textos concisos, muitas vezes até telegráficos.20 Gonzo: enriquecimento do jornalismo Ao analisarmos todo este contexto aqui descrito, verificamos que o jornalismo brasileiro passa por uma crise de criatividade e, portanto, ! CAMINHO ILUMINADO qualidade de texto. Ainda assim, os maiores jornais do país insistem na prática do Jornalismo Informativo, que se baseia em conceitos empíricos e que descarta a subjetividade do jornalista, o que não significa que tenha menos valor que outros gêneros jornalísticos. A queda de qualidade de texto, fruto dos preceitos do Jornalismo Informativo, empobrece o uso da linguagem e afasta o leitor interessado em um texto que além de informativo seja prazeroso. O Jornalismo Literário e o uso de técnicas criativas de narrativas são, nesse sentido, uma maneira de solucionar este problema e desenvolver a prática jornalística. Até dentro da perspectiva de ampliar a circulação, o aumento de qualidade no texto jornalístico está atrelado e produz efeitos positivos. Em um artigo publicado no site TextoVivo*, Edvaldo Pereira Lima dá exemplos dentro de grandes jornais em que a exploração de uma narrativa criativa alavancou a vendagem de edições e obteve respostas satisfatórias de leitores. Casos do Atlanta Journal, The Sun (de Baltimore) e The San Diego Union-Tribune, os três veículos investiram em séries de reportagens sobre determinados temas com resultados extraordinários. Lima recorre, então, a uma pesquisa intitulada The Impact Study of Readership, realizada em 2001 pelo prestigiado Readership Institute (instituição fundada e mantida em conjunto pelo Media Management Center da Northwestern University, pela American Society of Newspaper Editors e pela Newspaper Association of America, a entidade representativa dos jornais norte-americanos). O objetivo era compreender o comportamento de leitores de jornais e propor medidas estimulantes. As conclusões apontam que o estilo narrativo aumenta a satisfação do leitor na cobertura de uma variedade enorme de áreas, incluindo-se entre elas a política, os esportes, a ciência, a saúde, o lar e a gastronomia. Além disso, uma boa quantidade de matérias no estilo narrativo melhora a percepção da marca por parte do consumidor, tornando o jornal * " www.textovivo.com.br ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES mais fácil de ler. [...] Os jornais que apresentam um número maior de matérias narrativas são vistos como mais honestos, divertidos, inteligentes, presentes e mais afinados com os valores dos leitores. [...] As mulheres, em particular, respondem bem ao estilo narrativo.21 Com essas considerações em vista, a pesquisa aponta como recomendação aos jornais a escrita de mais matérias com viés literário em lugar do estilo da pirâmide invertida. A causa do Jornalismo Literário é endossada ainda pela Universidade de Harvard. Neste início do século XXI, a mais tradicional universidade dos EUA passou a organizar o Nieman Program on Narrative Journalism, sob a direção de Mark Kramer, e com diversos projetos na área desenvolvidos paralelamente, assim como a realização de um concorrido Congresso de Jornalismo Narrativo, realizado anualmente. O jornalista Warren Watson ainda acredita que o uso dessas narrativas possibilita contar histórias complicadas, permitindo aos leitores descobrirem os sentidos de suas vidas, e tem um profundo e positivo efeito sobre a motivação nas redações22. Ele explica que o prazer de leitura vai cativar o leitor e fazer com que este encontre tempo para ler algo que julga ser interessante. Além disso, é uma forma de estabelecer uma conectividade com o leitor que os jornais sempre almejaram, mas que o Jornalismo Informativo nunca permitiu. Na mesma linha de pensamento, Falaschi defende que um jornalismo de melhor qualidade poderá ajudar a perceber a nossa sociedade de maneira mais ampla, real e transformadora. Um jornalismo que não seja apenas olhos e ouvidos da sociedade, mas, principalmente, a tribuna de debates e sugestões que deve ser um jornalismo democrático e, portanto, ético e cidadão! Exercido mediante as Narrativas da Vida Real, ou Narrativas da Realidade, Narrativas Criativas de Não-ficção, de um jornalismo de qualidade, enfim criativo!23 # CAMINHO ILUMINADO E dentro das possibilidades a serem exploradas está o Jornalismo Gonzo, como o próprio Falaschi reconhece em entrevista. É um tipo de jornalismo que podia ter se consolidado no Brasil, pois somos um povo muito mais aberto a esse experimentalismo, especialmente a questão bem-humorada, do que os americanos. Para ele, há espaço para o Jornalismo Gonzo na grande imprensa. Assim como em um veículo específico nessa linha, em que o povo brasileiro possa se reconhecer, e cita como exemplo o sucesso da irreverência do Pasquim durante a ditadura. É uma outra maneira de se tratar os assuntos na sociedade, assegura. Em uma simples e aleatória análise de reportagens de jornais brasileiros, pudemos verificar algumas que quase se enquadrariam no estilo Gonzo. Isso porque apesar de haver uma imersão profunda do repórter, que se encaixa no conceito de osmose, e esta participação ativa estar expressa no texto, a narrativa não é feita predominantemente em primeira pessoa, o repórter não expõe seus sentimentos e sensações em relação a experiência nem deixa transparecer, explicitamente, elementos de sua personalidade. No caderno Cidades de 4 de abril de 2006, do jornal O Estado de S.Paulo, o repórter Fábio Mazzitelli conta em três páginas sobre o período em que trabalhou como agente educacional da Febem. O texto corresponde a algumas características do Jornalismo Literário e quase pode ser caracterizado como Gonzo. O repórter fez uma osmose com o tema tratado e há momentos em que a narração é na primeira pessoa, mas apenas para situar algumas ações tomadas por ele e nunca com enfoque na experiência em si. Além disso, o repórter não se coloca como protagonista da história e nem se pode perceber elementos de sua personalidade explícitos no texto. Outro caso em que algumas características do Jornalismo Gonzo estão presentes é a reportagem de Jason Deparle. Originalmente veiculada no The New York Times foi traduzida e publicada no caderno Aliás, do mesmo O Estado de S.Paulo, do domingo 3 de setembro de 2006. O repórter inicia o texto revivendo suas memórias de infância a respeito de uma visita à cidade de New Orleans. Logo ele retorna ao tempo presente, $ ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES para descrever a situação da cidade um ano após o furacão Katrina tê-la destruído. Apesar da narração ser feita em alguns momentos na primeira pessoa e do começo do texto ser bastante pessoal, não se trata de uma reportagem classificável como Gonzo. Isso porque o foco na primeira pessoa e o protagonismo do autor não são verificáveis na maior parte do texto, que dá mais espaço a outros personagens. No meio televisivo nacional, às vezes são constatadas reportagens com elementos de Jornalismo Gonzo. O Fantástico, da Rede Globo, apresenta o quadro Profissão Repórter que, simultaneamente à exibição da reportagem, busca retratar os desafios de jovens jornalistas para produzi-las. Muitas vezes é possível verificar nesse quadro elementos de Gonzo. Os repórteres têm uma participação e visibilidade mais presente na história e chegam até a vivenciar situações diferentes em uma espécie de osmose. É o caso da reportagem exibida no quadro do domingo 8 de outubro de 2006, no qual a repórter Julia Bandeira passa uma hora como lixeira pelas ruas de São Paulo. Ela descreve suas sensações durante e após a experiência. Ainda assim, não podemos tipificar como um exemplo de Jornalismo Gonzo, pois esse protagonismo ocorre em um curto momento da reportagem, assim como a narrativa em primeira pessoa e a personalização da narrativa. Esses casos estão aqui descritos não para retratar a presença do Jornalismo Gonzo nos veículos de comunicação nacionais, pois, como vimos, tratam-se de situações que poderiam se encaixar como semi-gonzo, ou seja, não atendem plenamente às características conceituais do estilo. Mas pretendemos mostrar como existem brechas para a prática, que tornam um assunto mais interessante para o leitor ou espectador sob outra angulação. Só não sabemos se as reportagens não possuem todos os elementos do Jornalismo Gonzo por desconhecimento do repórter ou por causa ainda de uma restrição do veículo, que não ousou permitir tamanha liberdade ao jornalista. % CAMINHO ILUMINADO Diferentes paradigmas Em encontro às afirmações que criticam a exarcebada prática do Jornalismo Informativo em detrimento ao Jornalismo Literário, mais especificamente o Gonzo, e ao conceito de ruptura pós-moderno tratado no começo deste capítulo, verificamos que os dois estilos jornalísticos remetem a diferentes paradigmas conceituais. Demonstramos que historicamente o Jornalismo Informativo foi concebido em meio a um contexto de valorização da necessidade de comprovação científica, propagado pela física mecânica. Por isso, a presença recorrente de termos como imparcialidade, isenção e objetividade. Contudo, em nosso atual momento contemporâneo, o paradigma vigente é outro, com concepções inspiradas pela física quântica. De meados da década de 50 até os dias atuais, a ciência passa por essa transformação e teorias antes tidas como verdades absolutas são derrubadas. Dessa forma, termos outrora recorrentes, como os supracitados imparcialidade, isenção e objetividade tornam-se obsoletos em detrimento da valorização da subjetividade e da relatividade. O Jornalismo Gonzo e o Jornalismo Literário de uma forma geral assume estes novos termos explicitamente e toma como princípio do seu fazer jornalístico. É, por assim dizer, uma nova concepção de jornalismo e que tem por base princípios contemporâneos. Um jornalismo que não se impõe como verdade absoluta, mas que deixa claro o caráter autoral e pessoal das informações transmitidas. Obviamente, esta é uma questão mais complexa, mas se analisarmos toda esta obra e os autores aqui citados, contemplamos estas diferenças tão profundas. E é por isso que defendemos o uso do Jornalismo Gonzo, não da forma discreta e restrita como ainda é feito, mas com espaço em todos os veículos de comunicação, em especial os jornais. Assim estaremos valorizando uma prática de jornalismo contemporânea. & ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Ressaltamos ainda que não pregamos o fim do Jornalismo Informativo ou de qualquer outro gênero jornalístico. Eles ainda possuem seu papel e seu valor. Apenas defendemos um jornalismo mais completo. Pois, se novamente remetermos a Barthes, a linguagem só é capaz de representar parte do real. Mesmo assim, o jornalismo se propõe a representá-lo em sua integridade e sabendo que jamais conseguirá fazê-lo, deve buscar então dar espaço a diferentes formas de representação do real. Um exemplo simples de como isso pode ser feito em prática pode ser dado por uma pauta a respeito dos moradores de rua em uma cidade. Se for feita para seguir o padrão de um Jornalismo Informativo, o repórter, provavelmente, vai buscar dados de quantos mendigos vivem na cidade, vai apresentar os reflexos disso na economia e dar espaço para declarações dos próprios desabrigados e especialistas no assunto. Tudo feito de uma maneira distante, que, apesar de dar uma idéia ampla da situação, não causará um choque tão grande no leitor. Porém, se buscar usar técnicas do Jornalismo Literário, existe a possibilidade do repórter traçar um perfil de um morador de rua, a partir de uma convivência com este, e a partir de sua observação e uma redação em terceira pessoa, vai demonstrar como é o cotidiano desta pessoa. A reportagem vai ser humanizada, partindo de um caso específico para abordar um quadro geral. Mas se o repórter optar pelo Jornalismo Gonzo, ele vai se predispor a viver por um determinado tempo como morador de rua e escrever em primeira pessoa com elementos de sua personalidade explicitados no texto vai descrever a situação a partir de sua vivência. Essa forma extrema, fruto de uma experiência, dará ao leitor uma nova perspectiva do caso de como é ser um morador de rua e de como um ser humano se sente naquela situação. Como verificamos nesse exemplo, os diferentes gêneros jornalísticos possibilitam uma representação diferente da realidade. A única maneira de nos aproximarmos um pouco mais da representação do real utópica e que jamais será alcançada é explorando o máximo de possibilidades possíveis dentro do campo jornalístico. Somente dessa ' CAMINHO ILUMINADO forma o jornalismo poderá ser mais completo e se aproximar um pouco mais de sua missão. Notas Jameson, 2004, p. 27 Entrevista concedida em 12/09/2006 Albert e Terrou, 1990 , p. 54 ! " Bahia, 1990, p.132 # Manual de Redação e Estilo de O Estado de S. Paulo, p. 17 $ Sponholz, 2003 , p. 110 % Barthes, 1977 , p. 22 & id. ' Manual de Redação da Folha de S. Paulo, p. 19 id. Sponholz, 2003, p. 112 apud Lima, 2004, p. 97-8 ! Lima, 2004, p. 100 " apud Lima, 2004, p. 100 # Entrevista concedida em 12/09/2006 $ O Estado de S. Paulo, 30 de agosto de 2006, p. B13 % id. & Entrevista concedida em 12/09/2006 ' Falaschi, 2005, p. 311 id. apud Lima, 2005, parte 2 apud Lima, 2004, parte 1 ! Falaschi, 2005, p. 323 ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Experiências CAMINHO ILUMINADO ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Um pouco do Brasil na fila do INSS ! CAMINHO ILUMINADO " ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Logo que o sino da Basílica Nossa Senhora do Carmo badala seis vezes e o sol começa a se pôr, algumas pessoas já estão se acomodando na calçada da Rua Barreto Leme, encostadas no muro do prédio da Previdência Social. A cena se repete de domingo a quinta, a pouco mais de dois quarteirões do meu apartamento e sob os olhares desinteressados de quem passa ao redor. Quase diariamente, seres humanos passam mais de 14 horas em uma fila, enfrentando frio, chuva, calor... Uma rotina para aqueles que ganham dinheiro à custa de vender a vaga no começo da fila. Ou um dia atípico ou nem tanto para aqueles que precisam resolver um problema ou agendar uma perícia na Previdência Social. Com objetivo de desvendar aquilo que se passa na espera e poder vivenciar essa experiência, eu resolvo encarar a famigerada fila por uma madrugada. Assim, por volta da meia noite de três de julho, no início de uma fria madrugada, eu saio de casa em direção à Rua Barreto Leme, número 1117. Junto comigo, o meu amigo e parceiro nessa empreitada, André Julião (ou Baiano, para os mais chegados). # CAMINHO ILUMINADO Ao dobrar a esquina, avistamos cerca de 15 pessoas que já tomam o lugar à fila. Alguns dormem sobre pedaços de papelão no chão e aquecidos por cobertores. Uma confortante noite de sono. Os outros oito estão conversando no final da fila, em pé ou sentados em caixas de madeira. Nos aproximamos timidamente, ensaiando um primeiro contato. Receoso, fico sem saber o jeito certo para me dirigir a eles. Os olhares já estão voltados na direção da dupla. Crio coragem e resolvo me apresentar. Olá. Somos estudantes de jornalismo e estamos fazendo uma reportagem sobre a fila do INSS. Vamos passar a noite com vocês aqui, explico. Osmar, o mais próximo de nós, é o primeiro a se manifestar. Logo iniciamos uma conversa. Ele está na fila para marcar uma perícia. Tem um problema no braço e encara a fila pela primeira vez. Outro homem, Jorge enfrenta o desafio por causa da esposa. Ela que precisa do benefício e virá apenas na manhã seguinte assumir o lugar do marido. Um gesto de solidariedade. Luciana está acompanhada da irmã, Jéssica. A missão é descobrir porque não está recebendo a pensão da filha. As duas se acomodam em um pedaço de papelão e espantam o frio repartindo um cobertor. Mas preferem a conversa ao sono. Talvez porque as circunstâncias não sejam as mais propícias. Na roda também estão Henrique, Francisco e outros nomes já esquecidos. Pessoas de idades diferentes, lugares diferentes e problemas parecidos: uma longa e fria noite pela frente. E isso é o de menos. O problemão mesmo é aquele que vai ser resolvido uma vez dentro do prédio. A conversa que se iniciou de forma acanhada, começa a ganhar um ritmo desinibido. Ninguém hesita em falar um pouco da vida e das suas histórias. Quanto à fila, sobram reclamações: É a vida de pobre, não tem jeito! A queda da temperatura segue o ritmo do diálogo: aos poucos vai se acentuando, conforme avança a madrugada. A minha jaqueta jeans já não é tão eficiente em aplacar o frio. Cada vez mais vou me encolhendo e rangendo os dentes. Tremendo. Que inveja do pessoal no papelão com um cobertor quentinho! Bem... Não é pra tanto. $ ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES O ronco de um dos homens que dormem no começo da fila ecoa pela rua. O ruído cavernoso provoca risos no pessoal. De fato a situação é engraçada; ainda mais diante daquelas circunstâncias. Com o tempo a graça virou um barulho chatinho, perturbador. Mas que logo é aplacado por um esbarrão proposital que acordou o sonolento ressonador. Quando o tédio das horas que passam demoradamente começava a imperar, um intruso sacode o sossego e provoca gritos histéricos das mulheres da fila. Alguém avista um pequeno roedor do outro lado da rua, saindo de um bueiro. Logo ele some de novo, mas sua presença relâmpago é suficiente pra disseminar um certo pânico. Realmente aquela fila não é para quem nutre uma certa fobia por esses bichos asquerosos. Nas calçadas do centro da cidade, em plena madrugada, não faltam ratos, baratas e outros seres repugnantes. Imagina, então, dormir em meio à peregrinação noturna dos afáveis e fofinhos seres. Não é pra qualquer um. Se já não era das melhores noites para todos, não significa que as coisas não poderiam piorar. Jéssica faz uma importante e dramática revelação aos que estão acordados: ela precisa ir ao banheiro. Algo simples, não fosse o comércio das redondezas fechado. Convenhamos, as pessoas passam tantas horas na fila e nenhum banheiro para o uso... É dose. Eu penso em oferecer o banheiro da meu apê que fica lá perto. Só penso. Confesso que o egoísmo prevaleceu em minha mente naquele momento. Porque daí já viu, né: todo mundo vai querer usar e não é muito bom compartilhar o banheiro de casa desse jeito. Um tanto quanto anti-higiênico. Não que essa lengalenga justifique o ato egoísta, mas na hora eu resolvi não falar nada. Sem muitas alternativas, Osmar se oferece para acompanhar a moça à procura de um banheiro. Ele diz que tem um posto de gasolina com loja de conveniência que funciona 24 horas na Avenida Anchieta. Só há algumas quadras dali. E sugere que se aproveite a caminhada pra tomar um café e espantar o sono da noite virada. A idéia do café agrada o pessoal. Rapidamente uma pequena comitiva se prepara para a % CAMINHO ILUMINADO aventura. Calculam quantos vão querer café e juntam o dinheiro. Eu que não sou muito chegado na bebida, passo minha vez. Baiano também recusa. Mas a maioria aceita. Enquanto esperamos pelo retorno dos outros, seguimos firme em nossa espera, cada vez mais incomodados pelo rigoroso frio. A experiência já me ensinou que estar bem agasalhado é importante, como ditam os conselhos maternos. O desconforto de permanecer em pé foi desfeito graças à caixa emprestada por Osmar. Levar algo para se sentar é fundamental para passar uma madrugada por ali. Também aprendemos isso na marra. Mas esses pequenos infortúnios por mim deparados se tornam menores para quem não tem a necessidade de estar ali. E tornam-se ainda mais ínfimos quando avisto um monge franciscano do outro lado da rua. Com sua batina marrom, corte careca e pés descalços. A presença, como era de se esperar, gera comentários na fila. Como tem coragem?, espantam-se. Outra cena que desperta pronunciamentos é a passagem de um carro em alta velocidade. Como é que pode uma coisa dessas? Se pega alguém atravessando a rua não dá nem tempo de frear. Uma irresponsabilidade! Um tempo depois, volta a turma do café. Mesmo eu tendo recusado, trouxeram um para mim. Ainda assim, não aceito. Confesso ser um ato deselegante, mas, como já disse, não gosto de café e também já estou de partida para meu lar. Já são quase 5 da manhã e não suporto mais o frio. Além do mais, tenho que trabalhar mais tarde. E o mais importante: ao contrário dos outros, posso me dar o luxo de um tranqüilo sono nas próximas horas. Enquanto prometia a mim mesmo retornar uns dias depois para completar a tarefa, despedi-me de todos e parti para casa. Não sem antes pegar o telefone de Osmar e Luciana, para no dia seguinte acompanhar como se desenrolou a situação de cada um. E não também sem um certo peso na consciência por me sentir privilegiado. & ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES O RETORNO Um dia depois, falo com Osmar. Ele até que teve sorte. Entrou umas oito e pouco, marcou a perícia e lá pelas nove já tinha saído. Luciana não pôde se vangloriar do mesmo destino. Conseguiu a senha por volta das oito e dez, mas não tinha levado o CPF da filha. Até descobrir o equívoco já eram onze e quinze. Resultado: tempo perdido e teria que retornar outra vez. A minha missão também era essa. Retornar à fila para ao menos acompanhar o desdobramento das horas finais da espera, antes da abertura das portas. E não foi fácil terminar a incumbência. Os meses foram passando e eu ia enrolando. Um pouco por preguiça, greve dos servidores do INSS, chuvas, falta de tempo e a má impressão deixada pela primeira vez. Mas enfim, o prazo foi se apertando e o domingo, 22 de outubro, foi a data escolhida. Tento ir primeiro por volta da uma da madrugada, só que quando chego lá só avisto alguns gatos pingados já dormindo. Dou uma volta, espero um tempo, outra volta e nada. Dessa vez a espera não parecia ser tão grande. Como não acrescentaria muita coisa o tédio de esperar sozinho, volto pra casa e ponho o despertador pra me acordar às 6 da manhã. Assim dá tempo do pessoal chegar, com o transporte público já funcionando, e eu consigo conferir a fila pela manhã, o que não tinha experimentado. As seis em ponto, já estou descendo pelo elevador e pronto pra me enveredar pelas horas finais. O Baiano que mais uma vez me ajudaria não agüentou acordar. É mal do estado de origem. Quando chego na Rua Sacramento, avisto a fila já virando a esquina e no meio do quarteirão. Não sou bom de estimativa, mas diria que já tinha umas 200 pessoas na fila de uns 100 metros. Isso sem falar na fila dos idosos que têm preferência e na fila da outra entrada. De cara, no fim da fila, já vem um homem perguntando se eu desejaria ir lá pro começo. Eu já saco que esse é o tipo que vende lugar e me identifico. Meio ressabiado, José topa uma ligeira conversa. Ele me conta que vende por uns 15 conto, mas se chorar dá pra fazer por ' CAMINHO ILUMINADO 10. Pra guardar o lugar ele deixa as coisas lá no começo da fila. São 14 horas de espera, desde as 18 horas do dia anterior. E isso é quase todo dia. José me conta que muitas vezes não consegue vender nem um lugar e perde a viagem. E como o dinheiro é pouco, ele sempre tem que descolar uns bicos. Resolvo checar a quantas anda o começo da fila e topo com Valdilene. Ela veio com o marido, acidentado desde 99. Seu tom de voz expõe uma certa revolta com a situação. Segundo ela, a fila faz parte de sua rotina, pois duas vezes por ano tem que apresentar uma declaração de escolaridade dos três filhos. E não tem jeito, tem que comparecer pessoalmente. Com tanta experiência na fila, já viu de quase tudo. Teve até um protesto em que fecharam a rua e a coisa ficou preta. Tudo por causa de uma greve avisada de última hora. Já teve até morte nessa fila, ela jura. Valdilene reconhece que até houve melhora no serviço, mas ainda são muitas as falhas. Às vezes o médico dá alta sem motivo e aí é só dor de cabeça. Pra ela, as pessoas aceitam muito fácil esses transtornos. A maioria não tem coragem pra abrir a boca e quando passa na TV ninguém reclama. Nós somos seres humanos! A história de Milton também não é das mais fáceis. O auxílio doença fez-se necessário desde que um saco caiu em cima de suas costas, em plena fábrica de ração na qual trabalhava. E desde então, em quatro anos, foram cerca de 20 vezes na fila. Haja espera! Desta vez, estava ali desde as três horas da manhã, o que deu para garantir um lugar bem na frente. O objetivo é marcar uma perícia e, se tudo der certo, daqui a algum tempo poderá receber o benefício suspenso. Ele faz questão de mostrar que mal consegue mexer os braços por causa do acidente e que não tem motivo para o auxílio doença ser suspenso. Assim como os outros, quando questionado sobre o que pensa sobre os que vendem lugar na fila, não acha certo. Eles vendem uns quatro, cinco lugares. Até caixote guarda lugar. Isso que não é certo. A gente madruga aqui , desabafa. Volto pro final da fila. José ainda não conseguiu vender lugar nenhum. Hoje tá difícil, lamenta. Ele me apresenta o colega de ! ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES profissão, Alberto, que também não conseguiu faturar nada no ramo de reservas para atendimento. Pela tarde vai ter que arranjar um bico: fazer uma calçada, pintar alguma coisa. Não tem dinheiro nem para um café. Atualmente, quem tem dinheiro sobrando é só político né? Mesmo assim, vota Lula. Alberto tenta inverter o jogo e saber em quem eu ia votar. É Alckmin, não? Eu interpreto a pergunta como a visão da divisão social no país. Para ele, quem opta pelo petista são os pobres. Os que preferem o tucano são os mais abastados. E obviamente me considerou ser de uma classe mais alta. Talvez por ser universitário e, ainda por cima, de uma faculdade particular. Quantos não pensam assim? Ele continua justificando o voto em Lula. Agora o cimento é mais barato e muitas outras coisas, não? Aquele saco de dinheiro tá com ele, né? Se ele tivesse roubado, tava preso. Quem sabe agora num volta pro povo?, profere sem descanso nem para respirar. É, meu caro leitor... Esta é a realidade deste país. Eu mudo de assunto. Quero saber mais da vida dele. Mas sobre isso ele fala pouco. Dorme mal, na fila só cochila. E batalha todo dia, para poder tomar duas ou três pingas no fim de semana. Mas a economia que gira em torno daquela fila não se resume apenas aos guardadores de lugar. Descubro Rose, que circula com garrafas térmicas, vendendo café, leite e chá, por 50 centavos. O pingado é um real. Ela não quer me falar quanto ganha, mas admite que cada garrafa comporta umas 20 doses. Levanta todo dia cedinho, pra chegar na fila por volta das cinco e quarenta. Geralmente, vai embora no começo da tarde. Ou mais cedo, se vender tudo antes. Prefere os dias de frio ou de chuva, porque as vendas aumentam muito. Diante da concorrência dos bares, restaurantes e cafés da redondeza, ela tem um trunfo: o café caseiro, diz. Outro que lucra com a fila é Vivaldo. Andando pra lá e pra cá, ele está sempre oferecendo bancos para as pessoas. Assim vai andando e coletando os bancos daqueles que estão entrando e oferecendo para os que estão chegando. O aluguel sai pela módica quantia de um real. Pendurado em sua camisa, um crachá que o credencia para a função. ! CAMINHO ILUMINADO Na verdade, apenas um registro em cartório. Encontro dificuldade em abordá-lo. Além de não sossegar por um instante, não se mostra muito disposto para uma breve entrevista. Quando surge uma brecha, pergunto quantos bancos ele tem. A resposta é seca. Não conto banco, conto dinheiro, afirma com um sorriso provocador. E quanto dá pra tirar por dia?, retruco. Você me falaria o seu salário?, questiona debochadamente. O jeito do sujeito já me tira a paciência, mas me contenho para dar prosseguimento à conversa. Ele ainda relata que além de emprestar bancos, também é um prestador de informação. Enche a boca para mostrar como sabe de tudo que se passa na Previdência Social. Em troca, dou um sorriso blasé, diante do ar arrogante de Vivaldo. Não sei se seria muita maldade enumerar na lista da economia informal da fila o Pastor que vai pregando a Bíblia e distribuindo um folheto a todos. Até porque não dá para dizer a verdadeira intenção do homem: pregar aquilo que acredita ou recrutar dízimos para sua igreja. O fato é que, só naquela manhã, foram distribuídos três folhetos de diferentes igrejas. As portas se abrem às oito. Pouco tempo depois, a fila dos idosos já terminou e a fila normal começa a andar. Ainda converso com Vladimir e Lucélia. Mais uma vez as histórias são parecidas. Como bem resume Lucélia, todo mundo que tá na fila é porque tem problema. Eu pergunto se o serviço oferecido por telefone ou pela Internet não é suficiente para resolverem os problemas. Os dois são categóricos: as informações fornecidas muitas vezes são erradas. E sempre tem que assinar alguma coisa, ou o benefício é suspenso e muitos outros problemas. Outro consenso é em relação ao tratamento: os atendentes são simpáticos, os peritos não olham na cara e só querem dar alta e o governo não está nem aí, nas palavras de Lucélia. Já são oito e meia da manhã de segunda-feira. Eu dou por encerrada minha tarefa. A experiência me permitiu saber um pouco do que se passa na famosa fila do INSS. Não procuro ninguém para falar em nome da Previdência Social, porque não é esse meu objetivo. Pude constatar que atualmente houve de fato uma melhora e uma redução ! ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES na fila. Mas ainda existe uma situação complicada, com pessoas maltratadas e muito a ser melhorado. Enquanto caminho para casa vou pensando que a fila é uma metáfora perfeita para representar alguns dos mais graves problemas que assolam o Brasil. De um lado, um Governo lento, burocrático e distante, que tem muito a fazer por seu povo. De outro, um povo desinformado (para não dizer ignorante) e passivo, que aceita a situação de forma branda e sem grande mobilização. E assim caminha o nosso país, a passos curtos, como numa espera da fila do INSS. Renan Magalhães Outubro de 2006 !! CAMINHO ILUMINADO !" ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES A festa !# CAMINHO ILUMINADO !$ ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Tranqüilo hoje, né?, Nossa! Como tá tranqüilo!, Ô, tá tranqüilo! Da outra vez peguei uma fila!, Rêrrêrrê! Até cansei de ficar na fila! Rarrárrárárrá!, Ta tranqüilo, hoje?, E aí? Tranqüilo, hoje?, Pelo menos hoje ta tranqüilo, né?. Estaria, senhora baixinha de cabelo curto; estaria, senhora grande de cabelos brancos compridos, que conseguiu se atrapalhar na hora do voto; estaria, senhor gordo que anda pendendo para o lado direito e ri com uma voz rouca; estaria, moça que chega com um bebê no carrinho; estaria tudo muito mais tranqüilo se todo mundo que chegasse para votar não dissesse essa mesma palavrinha. Palavrinha que está me deixando nervoso, pois não agüento mais procurar formas diferentes de responder. É... Um candidato só, né?, É, né?, Também! Um número só! E ainda teve gente que se atrapalhou. Não contei aos eleitores da seção em que trabalhei como mesário que teve um homem que ficou de frente para a urna, parou e perguntou: É 13 e qual é o outro número?. Ao que fizemos um silêncio !% CAMINHO ILUMINADO de surpresa, até entendermos que o homem alto e de bermuda tinha esquecido o número do outro candidato. Ah, é! Deu um branco!. Teve gente que mal olhou para a tela: só esticou o braço, digitou as três teclas e saiu, quase deixando título de eleitor e comprovante para trás. E enquanto vejo a tudo isso, digito números e destaco comprovantes, ainda tenho que inventar novas respostas para todo mundo que chega dizendo tranqüilo, seja em forma de pergunta, de espanto, de graça... As eleições de 2006 foram sofridas para mim. E não me refiro aos dias em que trabalhei como mesário. Acredite: o 1º e o 29 de outubro foram os dias mais tranqüilos de todo o período eleitoral. No segundo turno, então, em que só umas três pessoas se atrapalharam, foi bem... tranqüilo. O que me atormentava era o fato de um presidente que teve, em seu círculo íntimo, companheiros comprovadamente corruptos, estar perto de uma reeleição. Qual seria a razão da popularidade de Lula? A maioria ainda diz que foi o Bolsa Família deixando subentendido que só pobre vota em Luiz Inácio. Do outro lado, dizem que foram os números, estas autoridades que nunca mentem. Para mim era mais complexo embora eu não soubesse a resposta. DIA 26 DE AGOSTO, CENTRO DE CAMPINAS O ônibus em que estou tem que fazer um desvio e se mete num engarrafamento. As ruas de acesso ao Largo do Rosário estão fechadas. Todos os veículos estão desviando. Já começou o show! Levanto e digo ao motorista: Quando der para abrir, abre porque eu vou andando. Saio pisando forte meus All Star. Sei que estou chegando, mas não ouço barulho algum. Não tenho caminho definido. Sei onde preciso chegar, mas não sei como. Então ouço gritos amplificados. O som vai aumentando. Logo vejo muitas pessoas olhando para uma mesma direção. É aqui! Um homem de bigode grosso, entradas na testa e alto ou será que é porque quem está perto dele é baixinho? gesticula, grita, chega a desafinar no meio de algumas palavras. É Mercadante. Senador Aloízio Mercadante. Um amigo que encontro ali, à direita do palanque, diz: Os caras esqueceram que eles são !& ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES situação. Ainda gritam como se fossem da oposição. Eu explico: É falta de costume. Mas é que aqui em São Paulo eles são, sim, oposição. E continuarão sendo, pois José Serra ganhou (no primeiro turno). Era o que já diziam as pesquisas naquele dia, mas Mercadante tinha que manter elevado o moral do eleitor. Vocês vão saber quem ganhou quando sair o resultado! Pesquisa não quer dizer nada! Eu vou ganhar essa eleição! Muitos ali não estão interessados naquele bigodudo, tampouco no careca, Eduardo Suplicy, candidato a mais oito anos no Senado (ganhou), que apenas assiste, usando uma camisa pólo vermelha, com seu sorriso tranqüilo, seus cabelos brancos, as mãos cruzadas sobre as pernas. O povo aplaude, grita, levanta bandeiras, mas quem eles querem mesmo ouvir é Ele. Luiz Inácio Lula da Silva. Um jingle sai das caixas de som: Ooolêêê, olê, olê, oláááá... Luláá, Luláá... Ooolêêê, olê, olê, oláááá... Luláá, Luláá. O povo grita, delira. Lula sorri, faz gestos de agradecimento. O som vai ficando cada vez mais baixo. Então ele começa: Meus amigos, minhas amigas... Gritos, ÊÊÊÊÊÊ!!! LULAAAA!!!, até um LINDÔ é lançado do meio do povo. Lula recomeça. Entre outras falas, manda: Meu governo implantou o Brasil Sorridente, para dar tratamento dentário a todos que não podem pagar. Porque dente nunca foi levado a sério por nenhum governo. E a gente sabe que dor de dente é coisa de pobre. A gente sabe o que é ter o dente doendo e colocar gengibre, colocar fumo (vai aumentando o volume da voz), colocar... (cita inúmeras simpatias, aumentando o volume a cada uma), colocar cachaça...! (pausa) E no último caso, mandar benzer. E quando não tem mais jeito a gente manda arrancar o dente. A gente. Lula fala com algum conhecimento de causa, imagino. Ele pelo menos viu muita gente passar por aquela situação. Ele é dos nossos. Comentei esta declaração do candidato-presidente com um colega, no dia seguinte, e perguntei: Como o Alckmin falaria de saúde bucal? Falaria em implante periodontal !' CAMINHO ILUMINADO A idéia inicial era cobrir os comícios de todos os candidatos a presidente que viessem a Campinas. Eu e Renan definimos isso crentes que pelo menos Geraldo Alckmin viria fazer um comício na cidade. Não veio. Heloísa Helena compareceu a um evento, mas foi no primeiro semestre. Naquele momento não tínhamos a idéia da cobertura, mas assim que a tivemos, pensamos que ela voltaria a Campinas. Cristovam Buarque deveria ter palanque por aqui, pensamos. Afinal, o prefeito Hélio de Oliveira Santos é do PDT também. Mas naquele 26 de agosto, olha quem está no palanque com Lula: o Dr. Hélio! Estava paga a dívida feita quando o presidente apareceu no horário político pedindo o voto para Hélio no segundo turno das eleições de 2004. Quando vimos que os outros candidatos não iriam aparecer por aqui, percebemos que já tínhamos uma boa pauta a reeleição de Lula, que desde o início era o favorito nas pesquisas e possivelmente ganharia já no primeiro turno. 28 DE SETEMBRO DE 2006, MESMO LOCAL Chego ao Largo do Rosário novamente. Desta vez o movimento é bem menos intenso. Carrego comigo um bloco de anotações e a pretensão de me infiltrar entre os lulistas. Eu precisava entender aquilo tudo. Primeiro apenas observo, sem falar com ninguém. São 15h40 e está marcada para as 16h uma Caminhada suprapartidária em defesa da democracia. Lula no 1º turno. Pelo menos é o que diz um panfleto em preto e branco que chegou nas mãos de Renan, que me ligou para dar a notícia poucas horas antes. Depois de algumas conversas entreouvidas, abordo o homem com postura de coordenador de alguma coisa. Tem entre 45 e 50 anos. Mulato, usa uma camiseta vermelha com a estrela do PT estampada. Me aproximo dando uma de desentendido. Todos os partidos estão unidos aqui em favor do Lula, porque (os políticos da oposição) querem derrubar ele., diz Nilson Souza do Nascimento, profissão... faço um monte de coisas. Pergunto se é do diretório. Já foi, mas hoje apenas milita. O golpe a que ele se refere é o Dossiê Vedoin, que apareceu na imprensa dias antes. O partido tem " ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES que reforçar que tudo é conspiração da imprensa burguesa e das elites. Ainda mais hoje, em que vai haver o último debate dos candidatos à presidência, na Globo e que Lula vai faltar. Noto o sotaque de Nilson e pergunto de onde ele é. Do Piauí. Um assunto corriqueiro a mais, já que sou baiano. Ele, porém, está aqui há mais tempo. Veio na década de 80, é formado em Ciências Sociais pela PUC. Por todo o Largo do Rosário, na mesma praça onde aconteceu o comício de Lula em agosto, pessoas de calça jeans, suadas, usam camisetas e carregam bandeiras de candidatos a deputado de diversos partidos: PDT, PMDB, PT, PC do B... Depois que Nilson pede licença para conversar com outra pessoa, percebo que um homem grisalho, de camiseta vermelha lisa, me olha desconfiado. Olhares desse tipo me fuzilaram durante todo o tempo que antecedeu a caminhada. O que tanto aquele rapaz anota? Enquanto olho para cima, atento para não ficar embaixo dos pombos que me acertaram uma rajada no dia do comício, aparece Otávio e um amigo. Este tem o cabelo cheio de gel, usa uma calça jeans estilosa, camiseta vermelha estampada (mas nada que se refira ao PT), fuma um cigarro que certamente não é o Derby nem o mata rato que muitos ali fumam. Eu já sabia que Otávio, que é do Diretório Acadêmico de Comunicação da minha faculdade, era alguma coisa do PT. Eu o conhecia porque foi ele quem coordenou nossa viagem, em maio desse mesmo 2006, para os Jogos Universitários de Comunicação e Artes (JUCA), em Registro, São Paulo. Ele me cumprimenta com o sorriso exibindo o aparelho, o mesmo sorriso que portou durante os quatro dias do JUCA. Pergunto o que ele é no PT de Campinas. Sou coordenador de comunicação. Ele não me deixa continuar, logo sai para falar com outra pessoa. Sem problemas. Quero saber dos desdentados, das mulheres de peito caído, dos que fumam cigarro barato, o que estão fazendo ali. Uma mulher carregando uma bandeira do partido estica o pescoço para saber o que estou anotando. Você é jornalista? " CAMINHO ILUMINADO Mais ou menos, desconverso. O que você ta escrevendo, aí? Não te interessa, digo, sorrindo. Quero ler. Desvio e pergunto: Quanto você ganha? Para carregar bandeira? É Nada. Meu pai é um homem de 79 anos. Só em 2003 chegou água encanada, luz e telefone, e isso a imprensa não mostra. Ele mora no sertãozão do Ceará. Hmmmm... Põe aí: Francisca Brasil de Souza, 44 anos, balconista. Matou o trabalho, hoje? Trabalhei até meio-dia e meu patrão me dispensou em apoio ao Lula. Meu pai se chama Francisco Brasil de Souza. Ele enfarta se o Lula não ganhar. Boa entrevistada, a Francisca. Ela diz os dados de praxe sem que eu pergunte; responde a perguntas que eu não fiz. Mas era esse tipo de pessoa que eu precisa ouvir, ora! Militantes da classe média votam automaticamente em Lula, ou não estariam no partido. Nenhum articulista da imprensa grande tinha conseguido me esclarecer o porque de Lula ganhar com tanta facilidade não só entre os pobres. Só no dia 5 de novembro leio algo mais ou menos coerente, na coluna de Daniel Piza no Estadão: O pobre vota em que lhe garante comida mais barata no prato. Seja o candidato latifundiário, seja pau-de-arara. Se for um de nós, há uma razão a mais para anistia. E muitos da classe média vão junto: se minha vida não piorou, posso escolher alguém que tem feito algo pelos pobres mesmo que pudesse ter feito mais. Brasileiro é tudo menos exigente. Ser exigente é chato. Não vê o Alckmin, com aquela chatice de querer saber de onde veio o dinheiro? Lula só ganhou quando propôs sem criticar. A imprensa é chata, com tanta cobrança, com essa sede por " ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES esclarecimentos. Quer sempre acabar com a festa. E no momento em que Francisca terminava sua fala, parece que a festa está tomando corpo: começa um apitaço. Gente do partido distribui adesivos, broches e apitos. Nilson já tinha me dado uns e eu aceitei, para não dar na vista. Uma mulher tapa os ouvidos do bebê que está em seu colo. Os outros dois filhos, com idades entre sete e nove anos, a seguem. Ela é magra, baixa, aparência frágil. Quantos anos deve ter? Não muito mais do que 20... E já tem três filhos. Imagino se Cristovam Buarque fizesse uma passeata pela Educação, se haveria metade dessas pessoas. Se nem no Congresso há a fidelidade partidária, quanto mais aqui: os militantes do PDT pedem votos para Lula. É a uma dessas mulheres que carregam bandeiras do partido do Cristovam que pergunto quanto ela ganha para ficar o dia inteiro, sob sol forte, empunhando a bandeira de uma candidata à Assembléia Legislativa. Quinhentos reais por mês. Ah, não é por dia? E são quantos dias por semana? A cada oito dias (inteiros) de trabalho, folga um. E paga certinho? Paga... São 17h e o trio elétrico que vai conduzir os entusiastas de Lula ainda não saiu. Um cara de franja aparece para a festa. Seu rosto não me é estranho... Ah! O secretário de Transportes de Campinas. Representando o prefeito. Muitos outros passam pelo Largo do Rosário, mas nem todos com o mesmo sorriso do secretário. Um homem forte, mal encarado e carregando uma sacola plástica, pisa numa faixa caída no chão e gira o pé, como se aquilo fosse uma barata, um mal a ser extirpado. Um que não vai participar da festa... Um chato. E quando o trio começa a andar, as caras dos funcionários do comércio da Francisco Glicério são em sua maioria de desdém. Chatos. Otávio e um homem bigodudo inflamam o povo que segue o veículo. Essa é a reposta do povo de Campinas contra a onda de denúncias ao "! CAMINHO ILUMINADO presidente Lula. É Lula ou não é!? Um animador chama o outro, como num programa de auditório. Estão organizando um golpe para derrubar o primeiro presidente que veio do povo, estão falando em crise, olha a crise aqui! E as pessoas gritam, deliram, como num show, num espetáculo. É Lula ou não é? Não tô ouvindo... É Lula ou não é? Vamos derrotar essa elite! Nós precisamos dar uma resposta às elites que querem voltar a governar esse país. Essa elite que já ficou 503 anos no poder! E o povo apita, canta, grita. Ninguém quer saber das contas para pagar, da goteira no quarto, muito menos do rapaz que não para de olhar e anotar. Eu admiro a trajetória de Lula, mas essa conversa de messias, de salvador, não dá pra engolir. E essa de que todos que governaram o Brasil desde 1500 eram iguais e que Lula é totalmente diferente de todos... Nem o José Dirceu acredita nisso. Mas Lula às vezes parece acreditar. E esse papo de que mensalão, dossiê, foram erros? Novilíngua. Só o fedor de podre que o Congresso exala é maior do que esse de pólvora que sinto agora na festa. Um homem acende morteiros sem olhar muito bem a direção, nem quem está perto. O cara de cabelo lotado de gel se assusta quando vê que o barrigudo vai acender um morteiro perto dele. Pedaços de papelão dos fogos caem em mim e o cheiro de fumaça se impregna na roupa. De um prédio jogam papel picado, emporcalhando a rua. Numa janela lá em cima, uma bandeira do MST. Ingenuidade achar que o PT ia acabar depois do mensalão. Foi apenas uma prova de fogo. Para não dar força à oposição que em grande parte não é melhor , militantes continuaram defendendo sua bandeira. Se tivessem largado, estariam de fora da festa que acontece hoje e vai continuar no dia 29. Em frente à sede do Poupa Tempo, um homem magro, alto, negro e de óculos, com um paletó folgado, passa por mim... Seu rosto não me é estranho... Sim! É Josias Abom, candidato a prefeito de Campinas nas eleições de 2004. Aliás, ele foi candidato até poucos dias antes do pleito, "" ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES quando seu partido, o PCO, trocou o candidato. Josias não apóia Lula pelo menos é o que parece, já que ele anda rapidamente no sentido contrário à caminhada. Na esquina da Moraes Salles com a Glicério, uma mulher, encostada na parede de uma loja, chora. Não paro para perguntar se é de alegria ou de tristeza, pois estou atento para os morteiros que o tempo todo explodem no ar e que podem me atingir. Outros que, como Josias Abom, andam na direção contrária, passam balançando a cabeça e fazendo tsc, tsc, tsc... Mais tarde, o último debate antes do primeiro turno não teve Lula, que só confirmou sua ausência por volta das 19h. Com uma militância e um povo desses, ele achava que não precisaria se desgastar num debate. Se deu mal, pois o insosso Alckmin chegou no segundo turno. Arrastado, mas chegou. Depois Lula foi aos debates. Para mim, cada um só conseguiu reforçar a convicção de não votar no outro. Uma eleição sem graça. E por isso mesmo intranqüila. Perturbadora pelo grande vazio que eu sentia de não ter um candidato com força para ganhar. Entrar para a festa? Não bastasse o poder Executivo, àquela altura já se vislumbrava os ocupantes do Congresso Nacional. Deixo a palavra com Ricardo Soares, em artigo na Rolling Stone de outubro: Não foi festa de nada até porque não temos o que comemorar em meio ao caos, à violência, desesperança e às assustadoras cifras de sempre que nos põem no pódio da desigualdade social do mundo. Isso não é discurso ideológico, não é demagogia. É realidade. E se queremos ver pedras rolando no meio do tédio burocratizante do bom-mocismo da mídia nacional, é bom dizer que não foi bonita festa nenhuma até porque se muitos picaretas não foram reeleitos outros tantos continuam aí firmes e fortes. A nova escalação do Congresso Nacional é tão pobre quanto essa rima pobre. Vou me conformar com a explicação do Daniel Piza, por enquanto. Acrescento que o candidato com mais chances de derrotar Lula não "# CAMINHO ILUMINADO inspirava confiança, sequer simpatia (uma peninha, talvez). Antes que fiquem especulando em que votei, meu voto foi para Cristovam Buarque. Pela pessoa e pela proposta de que tudo começa pela Educação. No segundo turno usei um mote meio cretino: Nem seis nem meia dúzia: é 12!, e fiquei resignado quando não vi nenhum rosto na tela da urna eletrônica. Fiquei de fora da festa. Quando o trio está chegando no Largo do Pará, na outra ponta da Francisco Glicério, um dos militantes do trio elétrico profere a frase: Primeiro de outubro vamos liquidar a fatura!. Não é o termo mais adequado a se usar, ainda mais em se tratando dos debates sobre caixa 2 etc. Mas, no final das contas, é isso que acontece. Tudo uma festa. André Julião Novembro de 2006 "$ ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Obras e pessoas consultadas ENSAIOS , MONOGRAFIAS E TESES ALBERT, P. e TERROU, F. História da imprensa. São Paulo: Martins Fontes, 1990. BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica: história da imprensa brasileira. São Paulo: Editora Ática, 1990. BARTHES, Roland. 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Super Size Me, 2004 ENTREVIST AS ENTREVISTA André Cardoso Czarnobai, em 10 de outubro de 2006 (por e-mail) Arthur Veríssimo, em 26 de setembro de 2006 Celso Falaschi, em 12 de setembro de 2006 Edvaldo Pereira Lima, em 30 de outubro de 2006 (por e-mail) José Hamilton Ribeiro, em 2 de outubro de 2006 Matthew Shirts, em 14 de setembro de 2006 Zuenir Ventura, em 3 de setembro de 2006 (por telefone) # CAMINHO ILUMINADO # ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES Posfácio Uma divertida jornada Não sei se você já não agüenta mais ler esse livro ou lamenta que já chegou ao fim, mas, independentemente da sua vontade, temos ainda algumas coisinhas a dizer. Primeiro, queremos esclarecer que cargas dágua de formato é esse, misturando texto acadêmico com jornalístico. Apesar de uma certa aversão a regras, não atiramos no escuro quando propusemos fazer este trabalho em livro e não em forma da batida monografia. Quem nos respalda para esse híbrido é Edvaldo Pereira Lima, em sua bíblia do Jornalismo Literário, Páginas Ampliadas. A categoria aqui aplicada é a de livro-reportagem-ensaio, que segundo o professor: Tem como forma a postura de ensaio, o que vale dizer, a presença muito evidenciada do autor e de suas opiniões sobre o tema, conduzida de forma a convencer o leitor a compartilhar do ponto de vista do autor. Quanto ao tratamento do texto, emprega, sobretudo, a função expressiva da linguagem, na terminologia de #! CAMINHO ILUMINADO Jakobson. O uso do foco narrativo na primeira pessoa é freqüente no decorrer do livro.1 Precisa dizer mais alguma coisa? Além de se aplicar à primeira parte do livro, em que tratamos de conceitos, história e damos nossas visões, acreditamos que a segunda parte, das narrativas Gonzo, também se encaixa nesta categoria. O Jornalismo Gonzo seria uma forma de ensaio, já que é a visão amplificada de uma pessoa sobre uma situação. Isso para não falar que, ao contrário do que aconteceu com este livro, numa monografia não teríamos a mesma liberdade de estilo. Agora que satisfazemos a obsessão dos super acadêmicos, podemos falar que foi gostoso escrever esse negócio. Tirando os estresses em função dos prazos e na hora de conceituar, legitimar o Gonzo para ela, a Academia porque para muitos já está legitimado faz tempo , a oportunidade de reler algumas obras, conhecer figuraças do jornalismo e contribuir para a difusão desta forma de narrativa já valeria. Sem falar que agora sabemos como chegar a alguns pontos de São Paulo sem ter que pegar três trens, por exemplo. Sim. No dia em que entrevistamos o Zé Hamilton, além do ônibus para São Paulo e do metrô, pegamos TRÊS trens e, ao chegarmos na sede da Rede Globo, quatro horas depois de sairmos de Campinas, ele não estava lá. Um ônibus e um metrô depois, chegamos na casa dele. Zé Hamilton desculpou-se, teve um problema com a perna mecânica. Isso aqui é igual carro, de vez em quando tem que ir para a manutenção. A prótese teria que estar tinindo, pois dias depois ele estaria em Nova York, recebendo o Prêmio Cabot, da Universidade de Columbia, como referência no jornalismo para as novas gerações. Perdoamos. Para conversar com Matthew Shirts foram apenas dois metrôs e um táxi (depois da rodoviária de São Paulo, claro). Descobrimos que além de sua adoração à figura e à obra de Hunter Thompson, ele foi criador e editor de revistas sobre videogame, a Super Game, a Super Game Power e a Game Power. Ele era o colunista-personagem Chefe, que muitos marmanjos ainda hoje lembram (uns ficaram #" ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES surpresos quando fizemos a revelação: Nossa! Ele era o Chefe!). Uma vez, Matthew pintou os cabelos de roxo, vestiu roupas espetaculosas e andou numa limusine para premiar os vencedores de uma promoção da empresa que editava as revistas, cujo prêmio era nada menos que conhecer o Chefe. Adentrar o exótico lar de Arthur Veríssimo foi outra experiência no mínimo curiosa. A entrevista ocorreu em meio a quadros, fotografias, livros, esculturas e adereços que compõe o peculiar cenário do apartamento deste jornalista, um amante da cultura hindu. O oposto, digamos, foi a entrevista com Celso Falaschi. Um ambiente sóbrio (o prédio da Associação Campineira de Imprensa) e um entrevistado já conhecido por nós. Assim o papo flui bem e nos possibilitou o enriquecimento desta obra, sobretudo pela visão acurada que o professor tem do Jornalismo Literário. Lamentamos a impossibilidade de uma entrevista tête-à-tête com alguns outros alvos. Zuenir Ventura, morador do Rio de Janeiro, foi ouvido por telefone. André Cardoso Czarnobai, de Porto Alegre, só pela Internet mas os contatos acontecem desde 2005. Já Edvaldo Pereira Lima, só poucas perguntas por e-mail quando o livro já estava praticamente fechado. O professor não pára em casa e, mesmo que parasse, estaria a quilômetros acredita que ele morava em São Paulo até o meio do ano, mas se aposentou da USP e foi morar em Goiás? A resumida lista de entrevistados poderia ter mais alguns nomes, mas as fontes são super qualificadas, às vezes atendendo não só aos requisitos de Gonzo jornalista como de teórico. Além do mais, a extensa bibliografia já nos dava bastante respaldo antes mesmo que fossem feitas as entrevistas. No mais, pegamos sol e sereno para realizar as reportagens da segunda parte, gastamos uma quantia considerável em ligações interurbanas e passagens (rodoviárias e metroviárias) e, mais do que tudo, passamos longas horas em frente ao computador e em discussões e leituras. E o resultado está aí. Acreditamos que poderia ficar ainda melhor se tivéssemos mais tempo, mas também que este livro traz ## CAMINHO ILUMINADO uma nova luz para estudiosos, entusiastas e praticantes do Jornalismo Gonzo. Que sigam o Caminho. Notas #$ Lima, 2004, p. 58 ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES #% CAMINHO ILUMINADO Esta obra foi composta em Palatino Linotype e Georgia e impressa pela IDB em novembro de 2006. #&
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