agente de chris fbi Saviano

Transcrição

agente de chris fbi Saviano
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
CAMINHO ILUMINADO
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Caminho
Iluminado
Trilhando a rota do Jornalismo Gonzo
André Julião
Renan Magalhães
Prefácio
André “Cardoso” Czarnobai
!
CAMINHO ILUMINADO
Pontifícia Universidade Católica de Campinas,2006
Centro de Linguagem e Comunicação
Faculdade de Jornalismo
Projeto Experimental em Jornalismo (Conclusão de Curso)
Orientador: Luiz Roberto Saviani Rey
Ilustrações e capa: Gustavo Sobral
Editoração: Mateus Yuri Passos
m070.4498
J94c
Julião, André Gomes.
Caminho iluminado: trilhando a rota do jornalismo gonzo. / André
Gomes Julião; Renan Magalhães Guedes dos Santos.- Campinas:
PUC-Campinas, 2006.
158p.
Projeto Experimental, modalidade livro-reportagem.
Orientador: Luis Roberto Saviani Rey.
Monografia (conclusão de curso) - Pontifícia Universidade
Católica de Campinas, Centro de Linguagem e Comunicação,
Faculdade de Jornalismo.
1. Jornalismo e literatura. 2. Reportagens e repórteres. I. Santos,
Renan Magalhães Guedes dos. II. Rey, Luis Roberto Saviani. III.
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Linguagem
e Comunicação, Faculdade de Jornalismo. IV. Título.
20.ed. CDD – m070.4498
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Dedicatória
Às nossas iluminadas famílias;
mecenas desse projeto de vida e
razão para o termos realizado.
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CAMINHO ILUMINADO
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Agradecimentos
A dívida de gratidão é com várias pessoas, começando pelos os
autores citados no decorrer desta obra. Como poucos
acompanharam o processo de feitura deste livro, agradecemos em
especial aos entrevistados: André “Cardoso” Czarnobai – que
sempre apoiou o projeto, desde que era apenas uma idéia vaga; Celso
Falaschi – nosso professor por um tempo, nosso mestre para sempre;
José Hamilton Ribeiro – exemplo de simplicidade, sucesso e
perseverança; Matthew Shirts – entusiasta de boas idéias e que foi
receptivo a esses dois loucos; Arthur Veríssimo – uma espécie de
“porralôca natureba” e Zuenir Ventura – lição de humildade e paixão
pelo jornalismo.
Agradecemos também a todos os professores que ajudaram a
formar os profissionais que nos tornamos, fosse dando idéias, fosse
mostrando novos caminhos a seguir, em especial nosso orientador
Luiz Roberto Saviani Rey e ao professor Celso Bodstein, que nos deu
preciosas dicas.
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CAMINHO ILUMINADO
Também uma menção especial aos amigos Daniel Moretto, Gustavo
Sobral e Mateus Passos. O primeiro pelas importantes indicações e
revisões a respeito de alguns conceitos do pós-modernismo, além da
força nos ajustes da capa. O segundo pelas belas ilustrações que
engrandecem esta obra. E o terceiro pelo primoroso projeto gráfico.
E para finalizar, os mais óbvios entre todos: nossos colegas, amigos,
amigas, companheiros e companheiras da turma 2003-2006 de
Jornalismo da PUC-Campinas. Inspiração nos momentos de lazer,
motivação nas horas de desânimo.
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Sumário
PREFÁCIO
– Seja marginal, morra herói – por André “Cardoso”
Czarnobai...............................................................................................................11
APRESENTAÇÃO – “Jornalismo o quê?”................................................................15
1. T
orv
elinho no mundo das reportagens – O Jornalismo
Torv
orvelinho
Literário, origens e autores.......................................................19
The New Yorker.......................................................................................................22
O Novo Jornalismo....................................................................................................29
Características..............................................................................................................................36
A dupla ousadia da Realidade e do Jornal da Tarde......................................40
Notas.............................................................................................................................45
2. “Quando as coisas ficam estranhas, os estranhos viram
profissionais” – Hunter Thompson e o Jornalismo Gonzo....47
Definições e características..................................................................................63
Um novo caminho.................................................................................................72
Notas........................................................................................................................74
3. Nem só de Thompson vive o Gonzo – Outros autores
seguem o caminho......................................................................77
José Hamilton Ribeiro e a Realidade..........................................................80
O pioneiro da Francisco Sá............................................................................84
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CAMINHO ILUMINADO
Also known as Cardoso.........................................................................................87
Arthur Veríssimo, auto-declarado Gonzo Brasileiro.................................89
O paraíso de Chris Simunek................................................................................90
O camaleão Günter Wallraff................................................................................92
Gonzo em meios audiovisuais............................................................................95
Notas.......................................................................................................................................101
4. T
rilhando o Caminho Iluminado – O Jornalismo Gonzo
Trilhando
na pós-modernidade...........................................................103
Gonzo: enriquecimento do jornalismo..........................................................113
Diferentes paradigmas........................................................................................118
Notas.................................................................................................................................................120
Experiências..........................................................................................121
Um pouco do Brasil na fila do INSS – por Renan Magalhães...........123
A festa – por André Julião...........................................................................135
Obras e pessoas consultadas.............................................147
POSFÁCIO – Uma divertida jornada.................................................................153
Notas.............................................................................................................................156
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Prefácio
Seja marginal, morra herói
São três e meia da manhã.
Uma Porto Alegre morna, úmida e silenciosa se encolhe preguiçosa
no meio de uma semana estreita de outubro que, a cada ano que passa,
vem se despencando com mais cara de NOVEMBRO pra cima dos
VIVENTES locais.
Eu, incluso.
Enquanto começo a ensaiar os primeiros golpes no teclado em
vias de cumprir uma promessa recente feita a um camaradaestudante às vésperas de LAUREAR-SE pelo finito deste TRANCOSO
curso jornalístico a que se propôs completar, atento os leitores para a
seguinte observação: não há qualquer resquício de álcool e/ou
entorpecente de qualquer espécie correndo em minhas veias,
concorrendo com os GLÓBULOS escarlate-y-alvos, todas as
PLAQUETAS e afins, conforme poderia pensar aquele que se propõe a
definir o GONZO JORNALISMO debruçando suas vistas apenas
sobre a SUPERFÍCIE.
CAMINHO ILUMINADO
Do mesmo modo, ao rever a supracitada sentença me vem à mente
a revelação de que posso estar contando uma MENTIRA ou duas –
conforme, do mesmo jeito, poderia pensar OUTREM que também tomba
os olhares de forma LEVIANA sobre os vícios e vicissitudes do GONZO
JORNALISMO.
E pode ser, inclusive, que tudo isso seja MENTIRA. E pode ser que
mentira seja APENAS a última frase. Ou o último parágrafo. E pode ser
que tudo isso seja VERDADE. Ou nem mesmo a última frase.
Pareceu confuso?
Muitas vezes, gerar confusão é a melhor arma de que dispomos
para transmitir, em suas mais profundas dimensões, alguma COISA a
alguma PESSOA.
Em outras palavras: fazer jornalismo.
Ainda que siga um tanto à margem da academia e das grandes
redações, nos últimos quatro ou cinco anos, o GONZO JORNALISMO
(ou jornalismo gonzo, como quiserem) vem renascendo de uma forma
bastante forte (e curiosa) no mundo todo – e começando a esboçar a
formação de uma cultura concisa de jornalismo literário dentro do
Brasil. O curioso aqui fica por conta do papa deste movimento ser
um escritor e jornalista que apareceu nos Estados Unidos na segunda
metade dos anos 60.
Hunter Stockton Thompson é o criador acidental de um gênero
que prega o rompimento COMPLETO com o mito da objetividade
jornalística. No gonzo jornalismo, não existe a figura do mediador
NEUTRO entre a notícia e o espectador. Em lugar de observador, o
jornalista é um PARTICIPANTE ativo do acontecimento, e leva ao seu
público uma dimensão mais humana e pessoal – e não por isso menos
precisa ou informativa – da experiência que viveu.
Se você parar pra pensar, talvez conclua que não é, assim, tão
absurdo o renascimento de um gênero que joga suas luzes sobre a
descoberta humana, o fascínio dos erros e dos acertos, as vitórias e
derrotas, nossas fraquezas e virtudes. Em uma época onde se
hiperdocumenta cada vez mais a existência humana, proliferam as
ferramentas em prol do neo-voyeur, que acostumou-se a alimentar-
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
se de fragmentos cada vez mais particulares e íntimos da vida de
seus contemporâneos. Classicamente visto como inimigo, a
percepção da figura do Big Brother foi lentamente se invertendo, e
hoje em dia os reality shows (em seus inesgotáveis formatos e
reinvenções) e as comunidades online são os símbolos maiores dessa
crescente fome não apenas por consumir, mas também compartilhar
suas impressões pessoais sobre, simplesmente, estar vivo.
Dentro desta lógica, faz, de fato, muito sentido que o interesse
acerca do gonzo jornalismo venha aumentando de forma absurda
nos últimos tempos. Me parece correto intuir que a morte de Thompson, no começo de 2005, tenha, de certa forma, criado um mórbido e
renovado interesse no gênero, mas não se pode creditar apenas a este
SINISTRO evento todas as iniciativas descentralizadas e quase
simultâneas que continuam aparecendo, dia após dia, nos jornais,
nas revistas, nas emissoras de televisão e na internet. O resgate do
gonzo vem aparecendo como tendência desde o começo do novo
milênio, mas, mesmo assim, nenhuma faculdade de jornalismo
brasileira inclui em seu currículo uma cadeira que se proponha a
discutir e examinar esse fenômeno. Muitos professores e jornalistas
sequer sabem do que se trata.
Preocupado, ao mesmo tempo, em me FORMAR e dar alguma
legitimidade ao gonzo jornalismo dentro da academia, apresentei, em
2003, uma das primeiras (não pesquisei intensamente, então não vou
encher a boca pra dizer que é a PRIMEIRA e cometer alguma injustiça)
monografias brasileiras sobre o gonzo jornalismo. Procurei
aprofundar o trabalho começado dois anos antes pela jornalista carioca Cecília Giannetti, e também contei com a indispensável ajuda do
jornalista gaúcho Rodrigo Alvares (aka Suruba, um dos fundadores
da IRD, que mais tarde desenvolveria um trabalho sobre o gonzo
jornalismo no Brasil em sua monografia).
Pouco tempo depois de concluído, resolvi publicar o trabalho, na
íntegra, no site especializado em gonzo jornalismo que mantenho, a
Irmandade Raoul Duke (IRD). A resposta foi insana: convites para palestras
e congressos, propostas de publicação e, mais importante que todo o resto,
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CAMINHO ILUMINADO
e-mails quase semanais de estudantes de jornalismo interessados. Goianos,
paulistas, pernambucanos, cariocas, capixabas, baianos, catarinenses,
paranaenses, alagoanos e cearenses: alunos de faculdades espalhadas por
todo o território nacional passaram a me procurar e ajudaram a ampliar
e aprofundar – e melhor de tudo, livre de vaidades – a discussão sobre o
gonzo jornalismo como gênero jornalístico. Nos últimos três anos, algo
entre 15 e 20 monografias sobre o tema foram apresentadas em diversas
faculdades brasileiras.
A forma honesta com que a informação é colhida e a maneira
envolvente com que a narrativa é desenvolvida, contrastam
violentamente com os formatos antiquados e sisudos praticados por
grande parte da imprensa, que trata o jornalismo muito mais como
um negócio e monta linhas de produção em lugar de redações. Talvez
por isso, o gênero desperte tanto o interesse dos estudantes que ainda
não tiveram seus espíritos quebrados pela rotina esmagadora de uma
redação jornalística. Talvez por representar a última ilha de vida
inteligente dentro do espinhoso mercado da informação e da notícia.
Talvez por soar misteriosamente atual e pertinente apesar dos quase
40 anos de idade.
Não sei.
Se você me perguntar que motivos levam os jovens a se interessar
por tudo isso, eu não sei.
Ou talvez eu saiba, e não queira dizer.
Ou talvez seja tudo retórica.
Mas isso não importa.
O que importa é que está escrito e, assim que for concluída a última
linha, estará também lido.
E o resto é confete.
(mentira)
André “Cardoso” Czarnobai
19 de outubro de 2006
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Apresentação
“Jornalismo o quê?”
A reação é normalmente a mesma quando se fala em Jornalismo
Gonzo: “Jornalismo o quê?”. Mesmo entre jornalistas, o termo é
majoritariamente desconhecido. Às vezes, algum “sabichão” diz uma
pérola como: “É escrever chapado sobre alguma coisa que você fez” ou
“É Jornalismo com drogas”. Dói o tímpano ouvir disparates deste tipo.
Não é raro encontrar em fóruns na Internet, ditos “especializados”,
críticas como: “Ah, esse cara não é Gonzo, faltaram umas drogas
naquele texto”.
Se não é a ignorância acerca do tema, é uma visão míope. O pouco
que se tem no Brasil sobre Jornalismo Gonzo fala apenas de Hunter S.
Thompson, considerado o “pai” do negócio. Isso para não dizer que,
depois de André “Cardoso” Czarnobai – o nobre colega que pela
primeira vez no Brasil se aprofundou no tema e que nos deu a honra de
escrever o prefácio desta brochura –, tudo que veio é “apud Czarnobai”.
Claro que nosso voto de gratidão vai também para Cecília Giannetti,
outra que abordou o tema ainda em 2002.
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CAMINHO ILUMINADO
Vendo o Jornalismo Gonzo ser bombardeado pela ignorância e pela
miopia, não pudemos ficar calados. Outros temas vieram, propostas
tentadoras nos chegaram às mãos – mas tínhamos um caminho a
trilhar. Pode parecer exagero, mas nos sentíamos incumbidos de uma
missão. A sensação era de que se não tratássemos deste assunto na
Academia agora, tão cedo ninguém o faria. Pelo menos não da forma
como imaginávamos que deveria ser.
Ali estávamos nós, em tardes e noites sonolentas, em sofás ou em
pufes (cada um na sua casa, frise-se), lendo aquele monte de coisas
sobre Jornalismo Literário, Jornalismo Gonzo, objetividade,
subjetividade e algumas perguntas começaram a ser feitas
mutuamente. “E isto aqui, não é Gonzo? Pelo menos não se assemelha
muito? E aquela técnica ali, já não era usada bem antes?” Há quem diga
que não se pode “emular” o Gonzo, que Thompson foi único, inimitável.
Concordamos. Mas não seria uma visão míope afirmar que ele foi o
único autor que usou de subjetividade ao extremo para mostrar
situações?
Por outro lado, os mesmos que dizem que “Jornalismo Literário
não existe”, que “Esse negócio não se aplica”, falam sem problemas que
Hiroshima, de John Hersey, é um excelente livro. Que a cobertura da
Guerra do Vietnã feita por José Hamilton Ribeiro foi brilhante.
Contradição pura: se a obra de Hersey sobre a explosão da bomba
atômica é ótima, como pode não existir Jornalismo Literário? Se Zé
Hamilton fez muito bem quando contou em primeira pessoa sua
experiência na guerra, por que o estilo “não se aplica”?
O que propomos aqui não é nenhuma abstração, nenhuma grande
utopia, apenas a legitimação de algo que já é feito há décadas. E que,
mesmo entre jornalistas, nem sempre é (re)conhecido.
Para começar, este livro se propõe a descrever o processo histórico
que culminou no estilo de jornalismo chamado de Gonzo. Desta forma,
abordaremos o surgimento e desenvolvimento do Jornalismo
Literário até a corrente conhecida como Novo Jornalismo, nascida
nos Estados Unidos durante a metade final da década de 50 e início
dos anos 60.
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Como veremos, o Jornalismo Gonzo recebe esse nome no meio da
década de 60, quase como um subproduto do Novo Jornalismo. Feita a
explanação sobre as origens, iremos conceituar o que é exatamente
este estilo, contando sua história e elencando as suas características,
com foco na vida e na obra de Hunter S. Thompson.
Com o conceito devidamente esclarecido, vamos discorrer sobre a
prática do estilo por outros autores, do Brasil e do exterior,
demonstrando características comuns na obra de jornalistas como
Joel Silveira, José Hamilton Ribeiro, Arthur Veríssimo, Chris Simunek,
Günter Wallraff e do próprio Cardoso. Outro ponto relevante a ser
tratado é a presença do Gonzo nos meios audiovisuais, que pode ser
percebida nos documentários de Michael Moore e Morgan Spurlock.
Nos aventuramos, ainda, a propor o Jornalismo Gonzo como uma
alternativa para a crise de leitura dos jornais impressos. O capítulo
identifica também bases filosóficas e conceituais – inclusive a partir
da argumentação de autores identificados como pós-modernos – que
sustentam a prática deste estilo
Não satisfeitos em explorar todas essas teorias, enfiamos a mão na
massa e realizamos duas narrativas Gonzo sobre temas nacionais. A
reeleição de Luis Inácio Lula da Silva e a situação das pessoas que
passam a noite na fila do INSS foram as pautas que escolhemos para
provar que o Jornalismo Gonzo pode ser aplicado a qualquer tema.
Desde que bem feito.
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CAMINHO ILUMINADO
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
1. Torvelinho no mundo
das reportagens
O Jornalismo Literário, origens e autores
Tom Wolfe
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CAMINHO ILUMINADO
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
New journalism (ou narrative writing, que seja) quer
dizer apenas escrever bem. É um texto literário que não
é inventado, não é ficção, mas que é narrado como um
conto, como uma seqüência de filme. É como um enredo
dramático digno de ser levado aos palcos e não apenas
um amontoado de fatos, fácil de ser digerido.
(Gay Talese)
O Jornalismo Literário * é praticado há mais tempo do que
geralmente se pensa. Nem sempre foi assim chamado, é verdade; sequer
foi sempre considerado um gênero à parte, diga-se. Mas, mesmo que
não da forma como o conhecemos hoje, o Jornalismo Literário já existia
Por Jornalismo Literário explicamos, por enquanto, que são narrativas
(reportagens, perfis) sobre pessoas, lugares e/ou eventos reais. Não confundir com
jornalismo sobre livros nem com formas ficcionais publicadas em periódicos, como
os folhetins. Ao longo deste capítulo o assunto será aprofundado.
*
CAMINHO ILUMINADO
quando uns estadunidenses saíram dizendo, na década de 60, que havia
um “Novo Jornalismo” sendo praticado. “Há registros de que em 1700,
os escritos do norte-americano Daniel Defoe carregassem características
do estilo de reportagem com elementos literários”1
Aqui mesmo em nossa plaga, um dos clássicos da Literatura é Os
Sertões, de Euclides da Cunha, lançado em 1906. O livro é resultado da
cobertura sobre a Guerra de Canudos, entre agosto e outubro de 1897,
quando Euclides era correspondente do jornal O Estado de S. Paulo. É
claro que a escrita, em alguns momentos demasiado rebuscada, não é
a que se tem hoje neste estilo, em que se prima pela clareza com
elegância. Mas ele pode ser considerado um precursor.
Alguns autores chegam até a considerar a carta de Pero Vaz de
Caminha, de 1500, como uma forma primária do Jornalismo Literário,
se enquadrando na modalidade Narrativa de Viagem. O estadunidense
John Reed cobriu duas importantes revoluções do século passado, a
bolchevique e a Mexicana, em que o uso de diálogos e descrições
minuciosas pode ser conferido nos livros Os dez dias que abalaram o
mundo e México Rebelde2, respectivamente.
A também jornalista e escritora Lillian Ross diz que “grandes
repórteres-escritores não surgiram só no século 20. São parte de uma
tradição de centenas de anos”. Além de Daniel Defoe, ela cita Ivan
Turgueniev e Henry Mayhew, que “gostariam de escrever para a New
Yorker. Todos esses escritores amavam fatos”. 3
The New Yorker
Fundada por Harold Ross e sua esposa, Jane Grant, The New Yorker
teve sua primeira edição lançada em 17 de fevereiro de 1925. A intenção
era criar uma sofisticada revista de humor, o que não impediu de
rapidamente se tornar conhecida como um proeminente espaço de
jornalismo sério e ficção.
Ross foi editor da New Yorker até seu falecimento, em 1951. Durante os 26 anos em que foi responsável pela revista atraiu diversos
escritores talentosos: James Thurber, E.B. White, Katherine Angell, S.J.
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Perelman, Janet Flanner, Wolcott Gibbs, Alexander Woollcott, John
O’Hara, Robert Benchley e Dorothy Parker. Sempre cuidadoso e
preocupado em manter a revista concisa e limpa, dedicava muito tempo
ao trabalho, o que lhe custou três casamentos.
O lendário editor que comandaria a revista por 36 anos depois da
morte de Ross (de 1951 a 1987) chegou à redação em 1933. Seriam
submetidos a William Shawn os originais de gente como Edmund
Wilson (Os manuscritos do mar Morto), John Hersey (Hiroshima), Mary
McCarthy (Memórias de uma menina católica, entre outros), S.N.
Behrman (Duveen – O marchand das vaidades), Lillian Ross (Filme),
Hannah Arendt (Eichmann em Jersusalém) e Truman Capote (com quem
trabalhou por anos no manuscrito de A sangue frio).
Shawn era um editor diferente. Dotado de um estilo reservado, era
sigiloso e enigmático como condutor da revista. Comprava artigos
que ficavam na gaveta por anos até serem publicados – quando isto
ocorria. Mas dava liberdade e tempo para os membros da equipe e
colaboradores trabalharem e, por isso, era admirado por muitos. Ficou
conhecido por afinar textos que se tornaram clássicos. Sua busca pela
clareza era tão obsessiva que circulava pelos corredores da New Yorker
a história de que o Novo Testamento seria um livro muito melhor, se
tivesse resultado da colaboração entre Mateus, Marcos, Lucas e Shawn.
Um exemplo da singularidade da revista é algo que parece
impensável hoje em dia: de sua criação, em 1925, até 1987, a New Yorker
nunca pautou seus repórteres. Shawn dizia que, sendo aquela uma
revista de escritores e artistas gráficos, era fundamental que os
colaboradores pudessem escrever aquilo que lhes convinha. “Um dos
problemas com a encomenda de matérias é que elas transformam
colaboradores em empregados”4, dizia.
Os colaboradores contavam com uma estrutura sem paralelo na
história editorial dos Estados Unidos. Tamanho era o cuidado com o
texto que, não bastasse os editores propriamente ditos, a New Yorker
tinha um departamento de checagem e, ainda, uma profissional
responsável exclusivamente por gramática, sentido, clareza e
consistência. Para a crítica, ter um texto aceito pela revista fazia do
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CAMINHO ILUMINADO
repórter um escritor; suas colaborações eram chamadas de “sua obra”.
“Todo este rigor, aliado à cultura própria da New Yorker, era perfeito
para que talentos como o de Joseph Mitchell pudessem florescer”.5
JOSEPH MITCHELL E OS PEQUENOS GRANDES PERSONAGENS
Joseph Mitchell nasceu em 1908, no estado da Carolina do Norte,
sul dos Estados Unidos. Filho de um plantador e negociador de algodão,
seria o sucessor do pai nos negócios, mas sua inabilidade para com os
números o fez pensar que não seria um bom comerciante, o que o fez
desembarcar em Nova York em outubro de 1929.
Marcaram-lhe em sua infância e adolescência as visitas que fazia com
as tias aos velhos cemitérios da região. Lá estavam enterrados não só os
parentes como os “pequenos grandes personagens do folclore local”.
Passando das mãos de uma tia para as da outra, ele ia ouvindo as histórias
contadas sobre os ocupantes de cada túmulo. Não eram histórias mórbidas:
misturavam fatos biográficos com fantasias e fofocas. Uma espécie de
homenagem a cada morto. Também não eram histórias necessariamente
edificantes. “Se o morto tivesse sido uma peste, as tias não economizavam
adjetivos azedos, porém, mesmo nesses casos a homenagem estava lá: entre gritinhos, muxoxos e risadas, o morto era lembrado.” 6 A capacidade do
relato oral seria sempre lembrada por Mitchell.
Em vez de falar de celebridades, Mitchell escreveu sobre índios,
ciganos, anarquistas, barmen, bilheteiras de cinema, surdos-mudos,
papais-noéis, exterminadores de rato, criadores de baratas de corrida,
mulheres barbadas, trabalhadores do cais. Ele inaugurou uma nova
categoria no jornalismo literário: o pequeno tema (o que não significa
“pequeno personagem” – Mitchell ficava muitos triste quando diziam
que seus personagens eram pequenos). “Em seus escritos não passeiam
vedetes, nem políticos, nem assassinos nem capitães da indústria.
Ninguém vence, morre, fica rico ou se supera.” 7 Porém, são todos
extraordinários personagens.
O mais marcante pequeno grande personagem de Mitchell foi Joe
Gould, um “boêmio” formado em Harvard que perambulava por Nova
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
York e dizia estar escrevendo uma obra chamada “Uma História oral
de nossa época”. No futuro, afirmava, seria reconhecido como o
historiador mais brilhante do século. Sua obra consistia na transcrição
de conversas ouvidas entre pessoas comuns e “ensaios” sobre temas
diversos como tomates e índios. Talvez este gosto em comum em ouvir
pessoas normais tenha sido o motivo de Mitchell ter se envolvido tanto
com o personagem. Em 1942, ele escrevia o primeiro perfil do boêmio:
O professor gaivota.
Joe Gould é um homenzinho alegre e macilento, conhecido em
todas as lanchonetes, tabernas e botecos imundos do Greenwich Village há um quarto de século. Às vezes ele se gaba de ser
o último dos boêmios. “Os outros todos caíram fora”, explica.
“Uns estão na cova, outros no hospício e alguns no ramo
publicitário.” Sua vida não é nada fácil; três flagelos o
atormentam: falta de teto, fome e ressaca. Gould dorme nos bancos
das estações do metrô, no chão do apartamento dos amigos e
nos albergues da Bowery, onde o pernoite custa 25 centavos. [...]
Tem 1,62 metro de altura e dificilmente pesa mais que 45 quilos.
Pouco tempo atrás comentou com um amigo que não faz uma
refeição decente desde junho de 1936, quando foi de carona até
Cambridge e participou de um banquete da classe de Harvard
de 1911, à qual pertence. “Nos Estados Unidos, sou a maior
autoridade em privação”, garante. “Vivo de ar, auto-estima,
guimba de cigarro, café de caubói, sanduíche de ovo frito e
ketchup.” E esclarece que café de caubói é café preto, forte, sem
açúcar. “Há muito tempo perdi o prazer do bom café”, diz ele.
“Prefiro o tipo que, se você sempre toma, fica com as mãos
trêmulas e o branco dos olhos amarelo.”8
Mais de vinte anos depois, em 1964, Mitchell escreveria O segredo
de Joe Gould. E certamente só o fez porque seu pequeno grande
personagem havia morrido sete anos antes. Depois disso, as únicas
linhas que publicou foram uma nota de introdução do livro que
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CAMINHO ILUMINADO
compilava os dois perfis de Gould, no início dos anos 90. Mesmo não
tendo publicado mais nada na New Yorker nem em qualquer outra
publicação, Mitchell continuou indo à redação todos os dias e recebendo
seu salário de 20 mil dólares anuais, até o ano em que morreu, 1996.
Dentre as especulações sobre o seu silêncio, existe a de que teria se
punido por ter revelado o segredo de Gould; outros dizem que a autoexigência com o que escrevia o teria levado à incapacidade de produzir.
O documentarista João Moreira Salles, que escreve o posfácio de O
segredo de Joe Gould, lançado aqui só em 2003, dá uma outra versão: os
personagens sobre as quais Mitchell escrevia já não existiam mais.
“Ele passara a vida escrevendo sobre pessoas e lugares que, apesar de
estarem em vias de desaparecimento, continuavam firmes e fortes,
resistindo. Seu tema era a permanência.” 9 Salles cita Russel Baker, que
diz que quando Mitchell deixou de escrever, Nova York era outra. “O
martini havia sido substituído pelo LSD”. Mitchell se calou, mas não
fez alarde. Não foi um “silêncio espalhafatoso”. Sempre que
perguntavam o que estava escrevendo, ele respondia que estava
terminando um artigo. Só faltavam alguns retoques.
HIROSHIMA: “A MAIS IMPORTANTE REPORTAGEM DO SÉCULO XX”
“Hiroshima é uma espécie de Cidadão Kane do jornalismo.” A
definição do jornalista Matinas Suzuki Jr. para a obra de John Hersey
dá uma boa noção da qualidade desta reportagem, editada pela
primeira vez em 1946 – um ano depois da explosão que devastou a
cidade japonesa, matando 100 mil pessoas e deixando outra centena
de milhar ferida.
Hersey passou cerca de 20 dias no Japão. De volta aos Estados Unidos,
demorou seis semanas para escrever a reportagem para a New Yorker. É
claro que, quando entregou as 150 páginas do texto, recebeu inúmeras
sugestões de mudança de Ross e Shawn. Apenas a primeira parte recebeu
47 observações. Mais 27 depois que o repórter a reescreveu e seis depois
de re-reescrita. Com a ajuda dos dois editores, John Hersey relatava o dia
da explosão e os que se seguiram, sob a perspectiva de seis sobreviventes.
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
A reportagem seria inicialmente publicada em série, como sempre
acontecia com as histórias longas. Mas Shawn propôs a Ross que fosse
publicada na íntegra, ocupando toda uma edição da New Yorker. Por
dez dias, Hersey, Shawn e Ross trabalharam fechados no escritório do
publisher-editor dando os últimos retoques. A edição monotemática
era segredo até mesmo para o departamento comercial da revista. Só
uma das seções regulares, a programação cultural da semana de Nova
York, seria mantida naquelas 68 páginas da edição de 31 de agosto de
1946. Uma cinta branca de papel avisava, na capa:
Esta semana The New Yorker devota todo o espaço editorial a um
artigo sobre a quase completa obliteração de uma cidade por uma
bomba atômica e sobre o que aconteceu à população daquela
cidade. Isso é feito com base na convicção de que poucos de nós
compreenderam todo o inacreditável poder destrutivo dessa arma,
e de que todos possam ter tempo para considerar a terrível
implicação do seu uso.10
Os 300 mil exemplares daquela edição da New Yorker se esgotaram
rapidamente nas bancas. Cópias chegaram a ser vendidas por entre
quinze e vinte dólares (o preço de capa era de quinze centavos de dólar!).
De todos os Estados Unidos chegavam pedidos de autorização para
reimpressão da história, cujos direitos eram doados para a Cruz
Vermelha. Atores leram a matéria na cadeia de rádio ABC. O físico
Albert Einstein fez um pedido de compra de mil exemplares, o qual
não pôde ser atendido.
Não houve resultados práticos e imediatos da reportagem de
Hersey sobre a política estadunidense em relação à bomba atômica,
mas um amplo desconforto foi criado. Pouco depois da publicação
daquela New Yorker, uma declaração do almirante William F. Halsey
circulou nos jornais, afirmando que a bomba era desnecessária quando
foi usada, haja vista que o Japão estava prestes a se render. Em dezembro
de 1947, a Harper’s publicava um tipo de reposta oficial a Hiroshima,
assinada pelo ex-secretário de guerra, Henry Stimsom, intitulada “A
%
CAMINHO ILUMINADO
decisão de usar a bomba atômica”. Ironicamente, o livro com a
reportagem de Hersey não foi lançado no Japão – palco da história –
tão cedo, graças à ocupação estadunidense, que não permitiu.
O choque que a matéria causou nos Estados Unidos se deu, em
grande parte, pela carência de informações sobre a explosão. Mas é
impossível negar que o caráter humano da narrativa, se atendo às
vítimas e não apenas a números, foi fator preponderante para o sucesso
daquela edição da revista e do livro que se seguiu.
No dia 6 de agosto de 1945, precisamente às oito e quinze da
manhã, hora do Japão, quando a bomba atômica explodiu sobre
Hiroshima, a srta. Toshiko Sasaki, funcionária da Fundição de
Estanho do Leste da Ásia, acabava de sentar-se a sua mesa, no
departamento de pessoal da fábrica, e voltava a cabeça para falar
com sua colega da escrivaninha ao lado. Nesse exato momento o
dr. Masakazu Fujii se acomodava para ler o Asahi de Osaka no
terraço de seu hospital particular, suspenso sobre um dos sete
rios deltaicos que cortam Hiroshima; a sra. Hatsuyo Nakamura,
viúva de um alfaiate, observava, da janela de sua cozinha, a
demolição da casa vizinha, situada num local que a defesa aérea
reservara às faixas de contenção de incêndios; [...]. Uma centena
de milhares de pessoas foram mortas pela bomba atômica, e essas
seis são algumas das que sobreviveram. Ainda se perguntam por
que estão vivas, quando tantos morreram. Cada uma delas atribui
sua sobrevivência ao acaso ou a um ato da própria vontade – um
passo dado a tempo, uma decisão de entrar em casa, o fato de
tomar um bonde e não outro. Agora cada uma delas sabe que no
ato de sobreviver viveu uma dúzia de vidas e viu mais mortes do
que jamais teria imaginado ver. Na época não sabiam nada disso.11
Matinas Suzuki Jr. afirma que “para muitos, o jornalismo literário
moderno começa, se não com Hiroshima, com John Hersey.” Citando
Ben Yagoda, diz que Hersey, “que tinha o olho e a orelha de um
romancista e a ética de trabalho de um repórter, era a pessoa perfeita
&
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
para misturar a forma ficcional com o conteúdo jornalístico; The New
Yorker, com a reputação de ser impecavelmente acurada, era o lugar
perfeito para dar respeitabilidade a esse novo método.”
O Novo Jornalismo
Era o ano de 1962 quando Tom Wolfe chegou ao New York Herald
Tribune. Naquela época havia nos jornais dois tipos de repórteres: o
que buscava o furo jornalístico e o conhecido como “escritor de
reportagens especiais”. A diferença entre eles era que, enquanto um
procurava dar uma notícia antes dos concorrentes, o outro escrevia
“Reportagens especiais” – expressão usada para definir uma matéria
que escapava à categoria da notícia tradicional. “Abrangia tudo, desde
pequenos fatos ‘divertidos’, engraçados, geralmente do movimento
policial...” até “histórias de interesse humano”, sobre pessoas
desconhecidas “colhidas pela tragédia”. 12
No Herald Tribune, os “escritores de reportagens especiais” eram, além
de Wolfe, Jimmy Breslin, Charles Portis e Dick Schaap; no New York Times,
Gay Talese e Robert Lipsyte; no Daily News, Michael Mok. Para Wolfe,
todos tinham um pensamento em comum, de que o jornal era apenas
uma fase, “um motel onde você se hospedava para passar a noite a
caminho do triunfo final”. O trabalho na redação dava para pagar as
contas, melhorar o estilo. E, quando se acumulasse a experiência necessária,
o repórter simplesmente se demitiria para escrever “O Romance”.
O romance – nos anos 40, 50 e início dos 60 – era, segundo o autor,
não uma mera forma literária, mas um fenômeno psicológico, “em
algum ponto entre o narcisismo e neurose obsessiva”13 Era uma forma
das pessoas transformarem seu destino, ascender socialmente na vida.
Era um dos meios de alcançar o Sonho Americano – a crença de que
qualquer estadunidense tem a chance de ser bem-sucedido, rico e feliz
se trabalhar duro.
Essa expressão (“American Dream”) entrou no vocabulário
americano quando o escritor Horatio Alger lançou o livro ‘Ragged
Dick’, em 1867, que contava a história de um órfão que, trabalhando
'
CAMINHO ILUMINADO
duro e poupando dinheiro, acabou se tornando rico. Desde então criouse a crença de que por meio da honestidade, trabalho duro e forte
determinação, o Sonho Americano estava disponível a qualquer um
que quisesse fazer a jornada.14 Não era algo tão distante para aqueles
jornalistas, afinal, todos os romancistas dos anos 30 pareciam vir da
total obscuridade para o estrelato (Steinbeck, Cain, Wright, Saroyan,
Faulkner)
No começo da década de 60, uma “curiosa idéia” começou a se
alastrar pelo mundo das reportagens especiais. “Essa descoberta, de
início modesta, na verdade, reverencial, poderíamos dizer, era que
talvez fosse possível escrever jornalismo para ser... lido como um romance.” Mas foi só no final de 1966 que se começou a ouvir falar de um
“Novo Jornalismo”. Apesar de não gostar do rótulo, Wolfe via o
“movimento” não só como uma mudança no Jornalismo, mas como
um divisor de águas na literatura, que tomaria o trono do romance.
Não era nenhum “movimento”. Não havia manifestos, clubes,
salões, nenhuma panelinha; nem mesmo um bar onde se
reunissem os fiéis, visto que não era nenhuma fé, nenhum credo.
Na época, meados dos anos 60, o que aconteceu foi que, de repente,
sabia-se que havia uma espécie de excitação artística no
jornalismo, e isso em si já era uma novidade.15
Não havia nenhuma pretensão, por parte dos repórteres, em criar
um estilo quando eles (dentre os quais, o próprio Wolfe) entraram para
o Jornalismo. “Sei que eles nunca sonharam que nada que fossem
escrever para jornais e revistas provocasse tamanho torvelinho no
mundo literário... causando pânico, tirando do romance o trono de
gênero literário número um, inaugurando a primeira novidade da
literatura americana em meio século... No entanto, foi isso que
aconteceu.”16
Um dos primeiros daquela geração a dar um salto qualitativo nas
“reportagens especiais” foi o descendente de italianos Gaetano
Galantino Septimo Talese, conhecido como Gay Talese. Numa edição
!
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
da Esquire de 1962, lia-se sob o título “Joe Louis: o Rei na meia-idade”
uma abertura incomum até então:
“Oi meu bem!”, Joe Louis disse a sua mulher, ao vê-la esperando
por ele no aeroporto de Los Angeles.
Ela sorriu, foi até ele, e estava quase se pondo na ponta dos pés
para beijá-lo quando, de repente, parou.
“Joe”, disse ela, “cadê sua gravata?”
“Ah, benzinho”, ele disse, dando de ombros. “Fiquei acordado a
noite inteira em Nova York e não tive tempo de...”
“A noite inteira!”, ela cortou. “Quando está aqui, você só quer
saber de dormir, dormir e dormir.”
“Benzinho”, disse Joe Louis, com um sorriso cansado, “eu estou
velho.”
“É”, concordou ela, “mas, quando vai para Nova York, você tenta
ficar moço de novo.”%
O perfil do ex-boxeador era todo recheado de cenas cotidianas e
diálogos, mostrando a vida privada – comum – de um homem que já
fora um ídolo e agora estava ficando velho, careca e triste. Para Wolfe,
um pouco retrabalhado, o texto soaria como um conto. Apenas as
passagens narrativas se assemelhavam às de reportagens de revista
dos anos 1950 (Talese tem entre suas influências Lillian Ross, que
escreveu um famoso perfil de Ernest Hemingway e o livro Filme18).
Edvaldo Pereira Lima vê nesta cena e noutra, no final do perfil, três
recursos do Novo Jornalismo: (1) cena – o ex-boxeador encontrando a
mulher no aeroporto, (2) diálogo – que os dois travam sobre a gravata
etc. e (3) símbolos do status de vida – quando, depois, Talese apresenta
a ex-mulher de Joe Louis na sala de casa assistindo a uma luta antiga,
enquanto o atual marido toma, resignado, seu scotch.
Wolfe diz que no momento em que leu aquele artigo numa revista –
escrito por um repórter do New York Times, portanto, um de seus
“concorrentes” no “jogo das reportagens especiais” – teve o mesmo
pensamento que muitos jornalistas e intelectuais teriam a respeito do
!
CAMINHO ILUMINADO
Novo Jornalismo ao longo dos anos. “Minha reação instintiva,
defensiva, foi achar que o sujeito tinha viajado, como se diz...
improvisado, inventado o diálogo... Nossa, ele talvez tenha inventado
cenas inteiras, o nojento inescrupuloso...”19 O choque se deu porque a
reportagem “estilosa” era algo com que ninguém sabia lidar ainda,
apesar da tradição da New Yorker, Esquire etc. Ninguém normalmente
concebia que a reportagem tinha uma dimensão estética.
O próprio Wolfe experimentaria o estilo mais arrojado no ano
seguinte, com o seu “Lá vai (Brrrum! Brrrum!) aquele aerodinâmico
bebê (Rahghhh!) floco de tangerina cor de caramelo (Thphhhhhh!)
virando a esquina (Brummmmmmmmmmmm)...”. (Sim, acredite, este
era o título da sua reportagem.) Com ela, Wolfe viu a possibilidade de
haver algo “novo” no jornalismo.
O que me interessava não era simplesmente a descoberta da
possibilidade de escrever não-ficção apurada com técnicas em
geral associadas ao romance e ao conto. Era isso – e mais. Era a
descoberta de que é possível na não-ficção, no jornalismo, usar
qualquer recurso literário, dos dialogismos tradicionais do ensaio
ao fluxo de consciência, e usar muitos tipos diferentes ao mesmo
tempo, ou dentro de um espaço relativamente curto... para excitar
tanto intelectual como emocionalmente o leitor.20
Wolfe usa como poucos esta infinidade de recursos. São
onomatopéias, pontuações inusitadas, mudança do ponto de vista (da
primeira para a terceira pessoa e até mesmo para a segunda), monólogo
interior, citações literais de diálogos, além das descrições minuciosas
de ambientes e pessoas.
Gay Talese, embora admita que seus textos daquela época podem ser
classificados como Novo Jornalismo, não gosta da classificação, pois seus
“romances com nomes reais” não têm, segundo o próprio, a pretensão de
ser uma tentativa reformista da literatura ou do jornalismo. “São a minha
resposta altamente pessoal ao mundo, enquanto um outsider ítaloamericano.” Mas se propõe a explicar, no prefácio de Fama & Anonimato:
!
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Embora muitas vezes seja lido como ficção, o novo jornalismo
não é ficção. Ele é, ou deveria ser, tão fidedigno quanto a mais
fidedigna reportagem, embora busque uma verdade mais ampla
que a obtida pela mera compilação de fatos passíveis de
verificação, pelo uso de aspas e observância dos rígidos princípios
organizacionais à moda antiga. O novo jornalismo permite, na
verdade exige, uma abordagem mais imaginativa da reportagem,
possibilitando ao autor inserir-se na narrativa se assim o desejar,
como fazem muitos escritores, ou assumir o papel de um
observador neutro, como outros preferem, inclusive eu próprio.21
Talese chega ao ponto de descrever o que os personagens pensam
enquanto se passa a cena por ele narrada. “Esse tipo de insight depende,
naturalmente, da cooperação total da pessoa sobre a qual se escreve,
mas se o escritor goza de sua confiança, é possível, por meio de
entrevistas, fazendo as perguntas certas nas horas certas, aprender e
reportar o que se passa na mente de outras pessoas.”22 Este recurso,
inclusive, foi muito utilizado em suas obras posteriores (A mulher do
próximo, O reino e o poder, Honor thy father), quando o Novo Jornalismo
já era uma fase terminada. Lillian Ross, embora devote respeito a Talese,
critica este recurso. Para ela, nenhum repórter sabe o que alguém pensa
ou sente. “Um escritor factual demonstra possíveis pensamentos e
sentimentos interiores revelando a ação e revelando o diálogo. Cabe
ao leitor decidir quais emoções e pensamentos devem ser esses.”23
Uma “reposta” de Wolfe à idéia de Lillian é o perfil que ele fez de
Phil Spector. O texto começa não só dentro da cabeça do personagem
mas “com um fluxo de consciência virtual”.24 Uma revista considerou
o feito de Wolfe improvável e numa entrevista perguntou a Spector se
ele não achava a passagem uma ficção. O personagem disse que havia
achado aquele trecho “bastante apurado”. “Isso não devia ser nenhuma
surpresa, uma vez que cada detalhe da passagem tinha sido tirado de
uma longa entrevista com Spector sobre o que ele sentira exatamente
na época”25
!!
CAMINHO ILUMINADO
As coisas mais importantes que se tentava em termos de técnica
dependiam de uma profundidade de informação que nunca havia
sido exigida do trabalho jornalístico. Só através das formas mais
investigativas de reportagem era possível, na não-ficção, usar
cenas inteiras, diálogo extenso, ponto de vista e monólogo interior. Por fim, eu e outros seríamos acusados de “entrar na cabeça
das pessoas”... Mas, exatamente! Entendi que era mais uma porta
em que o repórter tinha de bater.26
Talese executou as técnicas do Novo Jornalismo como poucos. Durante três anos (de 1961 a 1964) freqüentou o canteiro de obras da
ponte Verrazano-Narrows, que depois de pronta ligaria Staten Island
ao Brooklyn, Nova York. Não apenas visitou os barracões dos operários,
dos dois lados do rio Hudson, como muitas vezes pôs um capacete e se
misturou aos operários, se equilibrando em vigas de aço e em cabos
que se estendiam cerca de 180 metros acima do mar. Não bastasse, foi
várias vezes à reserva Caughnawaga, perto de Montreal, Canadá, em
carros velhos dirigidos por índios bêbados de uísque que iam visitar
suas famílias nos finais de semana. Essa reportagem deu origem ao
livro A ponte, que, compilado a Nova York – A jornada de um
serendipitoso e a vários perfis de famosos – dentre os quais um de
Frank Sinatra, ”Sinatra está resfriado”, e o supracitado “Joe Louis: o
Rei na meia-idade”– gerou o livro Fama & Anonimato.
Nova York é uma cidade de coisas que passam despercebidas. É
uma cidade que tem gatos dormindo debaixo dos carros, dois tatus
de pedra que escalam a catedral de St. Patrick e milhares de formigas
que rastejam no alto do Empire State Building. As formigas
provavelmente foram levadas para lá pelo vento ou pelos pássaros,
mas ninguém sabe ao certo; ninguém em Nova York sabe mais sobre
as formigas do que sobre o mendigo que toma táxis para o Bowery;
ou sobre o homem alinhado que retira lixo dos latões da Sixth Avenue; ou sobre o médium das imediações da West Seventy Street que
afirma: “Sou clarividente, clariaudiente e clari-sensorial”.
!"
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Nova York é uma cidade para excêntricos e uma central de
pequenas curiosidades. Os nova-iorquinos piscam 28 vezes por
minuto, quarenta quando estão tensos. A maioria das pessoas
que comem pipoca no Yankee Stadium pára de mastigar por um
instante, pouco antes de um jogador fazer um arremesso. As
pessoas que mascam chicletes nas escadas rolantes da Macy’s
param de mascar por um instante, logo antes de descer - para se
concentrar no último degrau.27
Mas o verdadeiro “torvelinho” no mundo literário de que Tom
Wolfe fala ocorre mesmo em 1966, quando o Novo Jornalismo é
aplicado na forma de livro-reportagem. Truman Capote, escritor
de ficção de longa data, com a carreira em baixa, publica A sangue
frio. O livro, antes publicado em capítulos na New Yorker, era
resultado de seis anos e meio de trabalho de entrevista e escrita.
Agora, um romancista era que enveredava pelo caminho do
jornalismo e não mais o contrário.
Quando lê uma pequena nota no New York Times sobre o
assassinato de quatro membros de uma família no Kansas, Capote
vai até a pequena Holcomb e entrevista moradores, amigos da
família e policiais por um ano e meio. Descobertos os assassinos,
Capote os visita diariamente na cadeia da cidade e, depois, no
corredor da morte.
Capote diria que inventou um novo estilo, o “romance de nãoficção”. O que a sua obra se diferenciava de todas as reportagens escritas
em estilo literário naquela década era que tratava de um assunto de
grande repercussão nos Estados Unidos. Os quatro membros da família
Clutter foram assassinados com tiros na cabeça à queima-roupa, o que
valeu aos assassinos a condenação à forca. Para o professor Celso
Falaschi, a grande “sacada” de Truman Capote foi tratar de um assunto
que mexeu com os americanos de um modo geral. Até então, no período
do Novo Jornalismo, as histórias contadas pela corrente eram os features, assuntos como celebridades e anônimos, nada que causasse
choque como aquele crime.
!#
CAMINHO ILUMINADO
Em 1968, outro romancista de renome entra para o time: Norman
Mailer. Ele denominaria o seu Os exércitos da noite de “história como
romance, romance como história”. A partir de 1969 o Novo Jornalismo
ganha um status literário – não se podia mais negar sua qualidade.
Características
O Jornalismo Literário como o conhecemos hoje possui sete
características essenciais. É claro que a evolução natural do gênero
pode, amanhã, trazer novos recursos, mas listamos aqueles que são
caracterizados por Norman Sims e Edvaldo Pereira Lima.
IMERSÃO
O repórter de Jornalismo Literário tem que, necessariamente, imergir
no tema de que está tratando. Para isso, a pesquisa documental é o
primeiro passo. Ele vai estudar tudo o que puder sobre aquele assunto.
Não obstante, o repórter tem que se inserir naquele universo, para ver
como funcionam as relações, quem são os envolvidos, como falam, o que
querem. É um processo de constante e detalhada observação. Caco
Barcelos pesquisou por anos o narcotráfico carioca, leu processos, subiu
a favela Santa Marta inúmeras vezes para conversar com traficantes e
moradores; tudo para escrever Abusado – O dono do morro Dona Marta.
Segundo Norman Sims, citado por Falaschi, a imersão “denota audácia,
autoridade, credibilidade e emoção”.
PRECISÃO DE DADOS
Para uma reconstrução fiel dos fatos, é necessário que todos os dados
sejam reproduzidos com precisão. É uma forma de tornar ainda mais
crível a grande reportagem, seja menos longa, seja em livro. A precisão
de dados é fundamental como um referencial da prática jornalística.
ESTILO
Com dados precisos e com pesquisa documental e entrevistas feitas,
é preciso escrever. Uma compilação de tantas informações precisa ter
!$
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
uma leitura agradável. Para isso, estilo é primordial. As fórmulas da
imprensa periódica não funcionam aqui. A reportagem deve ser
redigida com viés literário, como um romance ou um conto; as
informações devem ser distribuídas ao longo do texto.
O desenvolvimento de um estilo é um ponto fundamental no
Jornalismo Literário. Desta forma, o autor distingue sua obra e
permite seu reconhecimento diante de seus leitores, assim como
acontece com os escritores de ficção. Pode-se usar de suspense, e
de flashbacks (a memória dos personagens e a do repórter, em
alguns casos). O ponto de vista pode ser expresso tanto na primeira
como na terceira pessoa (narrador onisciente). “Como na ficção, o
estilo deve ser ajustado de modo a causar impacto no públicoalvo”. 28
HUMANIZAÇÃO
Se estamos falando de uma redação parecida com a do romance
e do conto, é preciso haver personagens. No Jornalismo Literário,
parte-se sempre da perspectiva dos protagonistas e antagonistas
da história. Dados devem servir de apoio para demonstrar a
situação deste ou daquele personagem. John Hersey, em Hiroshima,
falou da explosão da bomba atômica sob o ponto de vista de seis
personagens – onde estavam no momento, o que sofreram, o que
tinham, o que perderam. No JL parte-se do particular para o geral,
não o contrário.
VOZ AUTORAL
A voz autoral é como os valores e emoções do repórter se refletem
no texto. Cada pessoa vê o mundo de uma forma e, por isso, não há
como um relato ser igual ao outro. Ela permite que o autor use seus
próprios filtros para contar uma história. Porém, deve haver a
preocupação em evitar distorções. “A voz autoral é considerada tão
importante nesse tipo de produção jornalística quanto a ambientação
de um acontecimento na estrutura textual.”29
!%
CAMINHO ILUMINADO
DIGRESSÃO
A digressão é uma forma do autor tratar de um assunto que não diz
respeito diretamente ao que está sendo contado. É um recurso que
permite explorar diversos contextos pertinentes ao tema tratado ou
sobre os quais o autor deseja abordar. “É, também, a busca de
referenciais contextualizados que tornam mais claros determinados
acontecimentos e atitudes.”30
USO DE SÍMBOLOS (METÁFORAS E METONÍMIAS)
As metáforas e metonímias são outro recurso para que a leitura
seja mais clara e agradável. Muitas vezes, também, uma metáfora
pode ilustrar melhor uma situação do que se aquela fosse descrita
como foi vista. “Sims sugere que ao abordar determinado
acontecimento no formato literário, o jornalista coloca seu
subconsciente em ação, no que diz respeito aos simbolismos que ele
usa e o que espera alcançar quando busca entender personagens e
acontecimentos de acordo com seus conteúdos arquetípicos,
osmotípicos e lidertípicos.”31
Existe uma certa confusão ao se tratar dos termos Jornalismo
Literário e Novo Jornalismo. Muitas vezes eles são tratados como
sinônimos, justamente pelo fato de um estar inserido no outro. O
Jornalismo Literário – que pode ser chamado também de Jornalismo
Narrativo, Literatura da Realidade, Narrativas da Vida Real, Creative
nonfiction, entre outros – é o jornalismo praticado com uso de técnicas
literárias de captação e redação.
O Novo Jornalismo foi um momento específico do Jornalismo
Literário (por isso é errado classificar qualquer reportagem feita após
os anos 60-70 como “Novo Jornalismo”). Todavia, pela intensidade e
riqueza da produção desta corrente de autores, o Novo Jornalismo
acaba se confundindo como um gênero. Esta confusão nos dá a dimensão
da relevância e grandiosidade desta manifestação. O professor Edvaldo
Pereira Lima é bem claro na distinção:
!&
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
O new journalism americano foi a manifestação de um momento
do Jornalismo literário. Isso quer dizer que o JL, enquanto forma
de narrativa, de captação do real, de expressão do real, já existia
antes e continua existindo após o new journalism, que foi só uma
versão específica do JL, mas uma versão radical quando
comparada à anterior, principalmente, no que se refere à
capacidade do narrador se envolver com o universo sobre o qual
vai escrever.32
Neste ponto, há de se ressaltar que o Novo Jornalismo insere
elementos representativos nos conceitos de Jornalismo Literário. Na
descrição de pessoas e ambientes, por exemplo, os autores desta
corrente procuravam exacerbar sua sensibilidade para captar o
máximo de elementos possíveis e, desta maneira, conseguiam durante
a redação transformar o que foi absorvido pelos cinco sentidos em
palavras, de uma maneira jamais feita antes. Os autores criavam
verdadeiras paisagens que podem ser visualizadas, ouvidas, cheiradas,
tocadas e degustadas pelo leitor.
As duas loiras, que pareciam estar na casa dos trinta anos, eram
elegantes e refinadas, os corpos maduros ligeiramente moldados
por tailleurs pretos justos. De pernas cruzadas, empoleiravam-se
nos altos bancos do balcão e escutavam a música. Então uma
delas pegou um Kent e logo Sinatra pôs seu isqueiro de ouro
debaixo dele. Ela segurou a mão dele, observou os dedos dele:
eram nodosos e ásperos, e os dedos mínimos, esticados, pois a
artrite os tornara tão duros que ele mal podia flexioná-los. Como
sempre, estava vestido de forma impecável. Colete, terno oxford
cinza de corte tradicional, mas forrado com uma seda vistosa; os
sapatos, britânicos, pareciam estar engraxados até o solado.33
A corrente sofreu uma forte influência da literatura de ficção
européia do século XIX, principalmente no que toca aos grandes nomes
da escola do realismo social, como o inglês Charles Dickens (1812-1870)
!'
CAMINHO ILUMINADO
e o francês Honoré de Balzac (1799-1850), sobretudo na captação. Estes
romancistas abriram “o precedente do desenvolvimento de recursos
eficazes como a técnica de símbolos de status de vida. Pesquisavam
minuciosamente uma situação real – o modo de falar das classes
marginais em Londres, os hábitos da classe burguesa decadente de
Paris – para posicionar, naquele contexto, sua narrativa de ficção”34 O
realismo social teve repercussão na América do Norte e no Brasil no
século XX, com nomes como John dos Passos, William Faulkner, Ernest
Hemingway, Érico Veríssimo e Graciliano Ramos.
A reprodução do diálogo dos personagens foi um elemento bastante
presente no Novo Jornalismo. Naquela época se ousou muito na
utilização de aspas e travessões, reconstituindo diálogos inteiros,
exatamente como em um romance ou na cena de um filme. Este recurso
era mais uma maneira de prender o leitor e dar um novo ritmo e
dinâmica para o texto, além de possuir um poder maior de persuasão
e possibilitar um aprofundamento em relação ao personagem sob a
transcrição de um diálogo, ao invés da interferência narrativa.
Nunca o foco narrativo foi tão trabalhado quanto neste momento.
A corrente permitia alterações e experimentações, com um narrador
observador onipresente ou testemunha e até mesmo participante dos
acontecimentos. Mas Tom Wolfe atesta que mesmo assim, o ponto de
vista se preserva na terceira pessoa. Desta maneira, o leitor se situa
dentro da cena ao mesmo tempo em que se identifica e experimenta as
sensações de determinado personagem.
A dupla ousadia da Realidade e do Jornal da Tarde
Realidade surge durante a ditadura militar. A editora Abril lança
um número experimental da revista ainda em 1965 e as edições regulares
começam a sair no ano seguinte. Ainda não havia sido decretado o Ato
Institucional nº 5 (o famoso AI-5, de 1968), que instituiria a censura
prévia em toda a imprensa. As grandes revistas de informação geral de
então – O Cruzeiro e Manchete – perdem fôlego. Realidade tem liberdade
temática e começa a traçar um novo mapa da realidade brasileira.
"
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Um novo público começava a surgir na época: a classe média urbana em formação, em que grande parte era jovem, com nível escolar
superior ou com o equivalente ao ensino médio de hoje. O Brasil saíra
dos “50 anos em 5” de Juscelino Kubitscheck, Brasília era a nova capital federal, a indústria automobilística era uma realidade e o CentroOeste era o novo abrigo do desenvolvimentismo. Nascia a Bossa Nova,
o Cinema Novo, o Tropicalismo, a Jovem Guarda... Enquanto isso, a
Guerra Fria continuava (a corrida espacial era uma nova disputa entre Estados Unidos e União Soviética), o movimento hippie agitava os
jovens e a liberação sexual começava a despontar.
As pessoas queriam entender o mundo em transformação e as
antigas fórmulas já não satisfaziam este desejo. É aí que surge a
Realidade. Não há preconceito na seleção das pautas. O Brasil é
mostrado em suas várias facetas: “nos diversos campos da atividade
econômica, da produção artística, da existência social, do
comportamento humano, da condição religiosa, da disputa política,
da arena esportiva”.35
Uma das características primordiais para enquadrar Realidade
como uma produtora de Jornalismo Literário é o fato dela transformar
atualidade em contemporaneidade, termo usado pelo professor Edvaldo
Pereira Lima. Segundo ele:
Realidade não se prende ao fato do dia-a-dia, propõe sair da
ocorrência para a permanência. Seus temas não são os fatos
isolados imediatos, mas sim a situação, o contexto em que esses
fatos se dão. Poderíamos dizer que sua concepção do presente é a
de um tempo atual dilatado em estendida presentificação.
Sendo assim,
o interesse não é noticiar que o preço dos legumes aumentou
semana passada e por quê, mas mostrar como se movimenta a
máquina do abastecimento da grande cidade 24 horas por dia,
mês após mês; não é contar como o juiz foi vaiado no Maracanã,
"
CAMINHO ILUMINADO
lotado no clássico de domingo, mas debulhar, num quadro contextual, as realidades duradouras da atividade desse
profissional.36
Soma-se a isso, o texto literário, claro. Para o professor Edvaldo,
Realidade não atingiu o grau de experimentalismo do Novo Jornalismo
estadunidense, mas, sem dúvidas, rompeu as barreiras do texto de
jornal e revista daquela época. Nas edições até 1968 – o fim da época
áurea da revista, que apesar de ir até os anos 70, perde qualidade
drasticamente – não há o uso do fluxo de consciência nem a alternância
de pontos de vista numa mesma reportagem.
Mas uma peculiaridade do “estilo Realidade” era que não havia um
padrão. Cada repórter tinha liberdade para achar seu próprio modo
de retratar a contemporaneidade. “Realidade era uma revista de sabor,
as matérias tinham de encontrar sua forma de canalizar e reproduzir
o contato visceral com a vida.”37
Realidade conseguia ousar em estilo e em temática, em plena
ditadura militar. Outro veículo de comunicação que experimentaria o
estilo literário em reportagem naquela época de efervescência cultural
era o Jornal da Tarde. O ano era o mesmo: 1966. Agora, o palco
preferencial era São Paulo. Apesar de mudanças ao longo dos anos,
consolidou-se a excelência da linguagem plástica (criatividade do texto
literário) e a busca da interpretação. Em certos casos, uma reportagem
era publicada em série e algumas chegaram a ser editadas em livros.
O jornal era comandado por Mino Carta, que tinha liberdade
para contratar os melhores jornalistas. Como lembra Ivan Ângelo,
que participou da primeira equipe, o diretor Ruy Mesquita tinha
em vista que uma das idéias centrais do jornal era que ele não ia
competir com os outros em termos de volume de informação,
“porque nós íamos preocupar-nos muito mais com fazer alguma
coisa que seria um misto entre um jornal diário e uma revista
semanal”.38
Tiveram estes dois veículos influências do Novo Jornalismo
estadunidense? Não há evidências de que foram totalmente espelhados
"
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
nem que não tenham sofrido nenhuma influência. Zuenir Ventura não
participou das equipes da revista nem do jornal, mas, contemporâneo
daqueles profissionais, vê na formação de todos um motivo para não
ter havido esta influência dos Estados Unidos.
Acho que foi um modelo brasileiro. Pode ser que tenha havido
uma inspiração de alguns dos fundadores, mas não acho que
teve uma influência direta. Não partiu assim:”vamos fazer o
modelo da New Yorker”, por exemplo. [O Novo Jornalismo] era
muito pouco difundido no Brasil. A não ser para os que tinham
alguma intimidade com o jornalismo americano. Acho que foi
uma tentativa de uma fórmula brasileira. Acho que tem essa
originalidade.39
O próprio Zuenir é um exemplo de que a formação dos jornalistas
era mais voltada para o jornalismo europeu. O texto literário na
imprensa já era tradicional na França na década de 60. “A imprensa
francesa sempre foi literária, no melhor e no pior sentido. No melhor
porque ela cuidou muito da forma, do texto; e no pior quando fez
literatura no jornalismo. Textos muito rebuscados, quando eram na
verdade pastiches”40. O Noveule Observateur, Le Monde e L’Express
são exemplos que ele dá de veículos de comunicação que primavam
pela qualidade do texto.
O professor Celso Falaschi, em conversas com os profissionais que
participaram da fundação dos dois veículos, vê também uma fórmula
brasileira, já que nenhum deles admite uma influência estadunidense.
O que havia era uma preocupação com a qualidade do texto.
Nos dois casos, as publicações procuraram, para compor suas
redações, jovens jornalistas que fossem, antes de jornalistas,
escritores. Até porque na época as faculdades de jornalismo eram
muito poucas no Brasil – talvez tivesse 12 – e o diploma não era
obrigatório. Então, se você está montando um veículo de
comunicação e quer qualidade de texto, que tipo de profissional
"!
CAMINHO ILUMINADO
você vai procurar? Jovens escritores. Escritores por quê? Porque
sabem escrever. Jovens por quê? Porque têm gana, têm garra.
A questão parecia encerrada quando fomos ouvir ninguém menos
que José Hamilton Ribeiro, que deu um parecer diferente sobre a questão.
Um dos principais repórteres da fase áurea da Realidade disse o
seguinte para estes escribas:
É evidente que os jornalistas daquela época, como os de hoje,
acompanham o jornalismo americano. E acompanham o trabalho
dos grandes repórteres americanos. Então, alguns da revista
Realidade já tinham contato com esses grandes repórteres
americanos, principalmente o Gay Talese, Tom Wolfe, Norman
Mailer, Truman Capote... E logo em seguida os jornalistas que
cobriram a Guerra do Vietnã, esses tinham muita influência no
[jornalismo do] Brasil. Então, que o pessoal da Realidade lia,
conhecia os grandes repórteres americanos, eu acho que não há
dúvida. Não acredito que tenha havido, intencionalmente, um
movimento para repetir aquele fenômeno americano.41
Para Zé Hamilton, não poderia haver esta repetição da corrente
estadunidense até por um fator econômico.
Porque, de qualquer maneira, o Novo Jornalismo – que de certa
forma sobrevive até hoje – se apóia basicamente na fortaleza
econômica dos veículos americanos. Veículos que se permitem
contratar um homem como Gay Talese para ficar um ano
estudando um assunto para fazer uma reportagem... Isso no Brasil
é impensável. No tempo de Realidade se fez isso, mas em termos
de um mês, dois meses, três meses. Agora, uma publicação bancar
um repórter do nível do Gay Talese pra ficar um ano num assunto
para fazer um artigo, uma reportagem, é um luxo que só o rico
jornalismo americano se permite.42
""
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Mesmo assim, as condições de trabalho dos repórteres de Realidade
e do Jornal da Tarde eram muito melhores do que são hoje, e essa
tendência teve repercussão em jornais de Minas Gerais, do Rio de
Janeiro, do Nordeste e do Rio Grande do Sul, segundo nos contou Zé
Hamilton. “O jornalismo era mais generoso, dava mais condição para
o repórter. Hoje é que nós estamos numa ‘tanga’ desgraçada!”
***
O Novo Jornalismo havia abalado as estruturas do Jornalismo
Literário estadunidense. A Realidade e o Jornal da Tarde haviam
mostrado ao Brasil que a fórmula do “jornalismo objetivo” importada
dos Estados Unidos não era unanimidade nem mesmo lá. Apesar do
torvelinho, do furacão que estas correntes causaram em seus países,
havia gente disposta a abrir ainda mais o leque de possibilidades. Nos
Estados Unidos, um “novíssimo” estilo radicalizaria o Novo Jornalismo.
No Brasil, não se chegou a cunhar termos, mas dentro da Realidade, e
anos antes dela ser criada, houve gente que se antecipou ao que se
chamaria de Jornalismo Gonzo.
Notas
Giannetti, 2002, p. 7
Ambos publicados pelo Círculo do Livro, s/d
!
Entrevista a O Estado de S. Paulo, 05/08/2006, p. D2
"
id. p. 144
#
id.
$
ibid. p. 140-1
%
ibid. p. 145.
&
Mitchell, 2003, p. 11-2
'
Salles, 2003, p. 154-5
apud Suzuki Jr., 2002, p. 165
Hersey, 2002, p. 7-8
Ibid., p. 13-4
"#
CAMINHO ILUMINADO
!
Ibid, p. 16
"
Cambridge Dictionary apud Czarnobai, p. 8
#
Wolfe, 2004, p. 40
$
Id., p. 9
%
apud Wolfe, p. 20-1
&
Companhia das Letras, 2005
'
Wolfe,2004, p. 22
Wolfe, 2004, p. 28
Talese, p. 9
id., p. 10
!
Entrevista a O Estado de S. Paulo, 05/08/2006, p. D2
"
Wolfe, 2004, p. 35
#
id. p. 36
$
ibid., p. 38
%
Talese, 2004, p. 19-20
&
Falaschi, 2005, p. 67
'
"$
id.
!
ibid., p.68
!
ibid.
!
apud Czarnobai, 2003, p. 22
!!
Talese, 2004, p. 261
!"
Lima, 2003, p. 11
!#
Lima, 2003, p. 225
!$
id, p. 226
!%
ibid., p. 230
!&
apud Ângelo, 2003, p. 76
!'
Entrevista concedida em 03/09/2006
"
id.
"
Entrevista concedida em 2/10/2006
"
id.
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
2. “Quando as coisas ficam
estranhas, os estranhos
viram profissionais”
Hunter Thompson e o Jornalismo Gonzo
Hunter S. Thompson
"%
CAMINHO ILUMINADO
"&
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
It never got weird enough for me
(Hunter Thompson)
Matthew Shirts e seus amigos não tinham pretensões maiores
do que se divertir quando criaram, em 1974, em sua escola na
Califórnia, um jornal chamado Carbonzo Bean. Os garotos, na faixa
dos 15 anos, estavam prestes a chegar na idade do alistamento
militar, a Guerra do Vietnã ainda não havia terminado e o jornal
era um protesto bem humorado contra algo que lhes parecia
inevitável: ir ao front. “Esse jornal era muito polêmico, muito
influenciado pelo Novo Jornalismo.” 1 Num dia qualquer, eles
puseram um exemplar do Carbonzo num envelope e mandaram
para ninguém menos do que Tom Wolfe (o “ideólogo” do Novo
Jornalismo já era uma celebridade literária). Passado cerca de um
mês, Matthew e seus amigos já não davam mais importância
àquilo.
"'
CAMINHO ILUMINADO
Hoje, sentado a uma mesa do pátio da opulenta sede da editora
Abril, fumando um Marlboro e rindo o tempo todo daqueles tempos,
ele não lembra quando foi que recebeu a carta. Talvez estivesse
escrevendo uma de suas colunas de culinária – “eu não sabia cozinhar!”
– em que ensinava, dentre outras maravilhas gastronômicas, a fazer
um bolo em formato de navio de guerra (!). O que ele lembra é que,
cerca de um mês depois que mandaram o exemplar de seu jornal underground, receberam uma carta. O carimbo era de Nova York, mas as
letras góticas – “de diploma” – demoraram para ser decifradas.
“Levamos um dia para decifrar aquela caligrafia. E era do Tom Wolfe.”
Os meninos saíram pela escola mostrando a carta para colegas,
professores e quem mais passasse por eles. Agora se sentiam parte do
“movimento”. Hoje, mais de 30 anos depois, Matthew reconhece que
Wolfe estava sendo simpático (irônico), quando dizia na carta que
aqueles meninos, que faziam um jornal humorístico que teve seus
quatro números, eram “a última palavra em Jornalismo Gonzo”.
Em 2005, quando veio lançar Eu sou Charllote Simons no Brasil,
Wolfe almoçou neste mesmo pátio da Abril com Matthew Shirts, que
mora aqui há 25 anos. “Eu falei pra ele: ‘O senhor lembra de uma vez
que uns garotos te enviaram um jornal e o senhor respondeu com uma
carta...’, e ele não lembrava. Disse: ‘Você está me fazendo me sentir
velho.”
O que Wolfe lembra em seu livro O Novo Jornalismo é que, em 1966,
alguns jornalistas se destacaram por se tornarem personagens de suas
próprias reportagens para escrever sobre a sociedade estadunidense.
Entre John Sack, que foi ao Vietnã, e George Plimpton, que virou um
jogador de futebol americano, um outro se destacava. O ganhador da
“Medalha de Honra de todos os escritores freelancers” – ou “Premio
Cojones de Hierro”, na tradução espanhola – foi Hunter S. Thompson.
Ele fez nada menos do que passar 18 meses com a gangue de
motoqueiros Hell’s Angels para escrever uma história que tinha como
epílogo a cena do próprio autor levando uma surra dos seus
personagens.
#
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
O DOUTOR GONZO
Uma vez que todas as características do criador (Thompson) são
relacionadas com as da criatura (Jornalismo Gonzo), é importante que
se discorra sobre a vida deste jornalista. Hunter Stockton Thompson
nasceu em 18 de julho de 1937, durante a Depressão estadunidense, na
cidade de Louisville, no estado sulista do Kentucky. Quando criança,
tinha entre suas diversões jogar pedras e dar tiros com uma espingarda
de pressão em alvos móveis ou não. Também gostava de destruir
propriedades alheias. Uma das brincadeiras preferidas de Hunter era
“Norte-sul”, que consistia em reproduzir batalhas da Guerra Civil
dos Estados Unidos. Quando tinha oito anos, seu amigo Walter Kaegi
Jr., de 10, o convidou para escrever sobre estas batalhas no Southern
Star, o jornal mimeografado que editava, e que consistia em duas
páginas de notícias locais, opinião e anúncios – e que custava três
centavos de dólar o exemplar.
O début de Thompson no jornalismo coincide com seu primeiro
atrito com a lei. Junto com um grupo de colegas, ele comete vandalismo
num banheiro do Parque Cherokee. Os meninos atiraram latas,
espalharam lixo e picharam as paredes. Foram pegos pela polícia e
levados à delegacia, onde foi registrada a ocorrência. Algo
compreensível para uma criança inquieta que não tinha bons exemplos
em casa. Os pais, o vendedor de seguros Jack Robert Thompson e a
dona de casa Virginia Davidson Ray, eram alcoólatras. Não raro, Jack
tinha surtos violentos e batia nos filhos. Porém, quando ele morre, aos
57 anos de ataque cardíaco, Hunter, com 15, começa a beber.
“Até então, Thompson era um atleta muito versátil, tendo
organizado ele mesmo a maioria das equipes das quais fazia parte, do
baseball até o basquete.”2 Sem o pai para impor disciplina, Thompson
largou a prática de esportes, mas continuou escrevendo sobre eles no
Southern Star, que já era um jornal maior àquela altura. Mas a energia
do jovem era tanta que aquele trabalho não lhe bastava. Na escola,
fugia sempre com os amigos para beber. Chegou até a formar um grupo
que denominaram “The Wreckers” (algo como “Os Quebradores”). A
#
CAMINHO ILUMINADO
atividade da trupe não era nada edificante: consistia basicamente em
praticar atos de vandalismo pela cidade.
Não demoraria para que o jovem vândalo sofresse as
conseqüências. Aos 17 anos Thompson é condenado a dois meses de
prisão por assalto. Seu aniversário de 18 é atrás das grades. Alistouse, então, na Força Aérea, por sugestão do juiz que o condenou. Na
base de Eglin, logo sua fama de arruaceiro voltou a acompanhá-lo.
Era considerado um problema no quesito comportamento, mas suas
matérias para a revista da base, a Command Courier, eram vistas
como interessantes por todos. Talvez os artigos o tenham ajudado a
ser dispensado com honras, já que havia queixas de desobediência
aos oficiais e às normas da base.
Livre da Força Aérea, Thompson aceitou um convite da revista El
Sportivo para morar em Porto Rico, onde escreveria sobre boliche.
Logo, entediado com o trabalho, voltou aos Estados Unidos, mas em
1962 saía novamente do país, desta vez desembarcando na América
do Sul como correspondente da National Observer. “Thompson enviava
para a National Observer reportagens que englobavam os costumes
locais e suas próprias observações sobre os lugares que visitava”3.
Em 1963, no Brasil, Thompson mandou para a National o artigo
“Brazilshooting” (“Tiroteio no Brasil”), na qual relata um ataque do
exército a uma boate carioca. Ele começa o texto com uma crítica à
Justiça brasileira.
A polícia brasileira tem fama de ser extremamente tolerante, e
dizem que o Exército brasileiro é o mais estável e simpático à
democracia em toda a América Latina. Mas nas últimas semanas
a administração da “justiça” adquiriu uma nova cara no Brasil, e
muitas pessoas começam a se perguntar para que exatamente
existem o Exército e a polícia.4
Notamos aí uma subjetividade do jornalista, que pode ser percebida
ao longo de todo o artigo. Afinal, já reinava um clima de instabilidade
no País; pouco mais de um ano depois, em 31 de março de 1964, os
#
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
militares dariam um golpe que derrubaria o governo e imporia uma
ditadura de 21 anos. O ataque dos militares, com pára-quedistas
uniformizados com graxa preta no rosto, era por vingança. Dias antes,
dois militares foram mortos numa briga no local. No segundo
parágrafo, Hunter se inclui como personagem da história, mas não
como se verá na maior parte da sua obra. Aqui ele usa a terceira pessoa.
Numa noite recente, com a temperatura nos 35° C de sempre e
condicionadores de ar zumbindo por toda a cidade, um jornalista
americano foi acordado por um telefonema às quatro e meia da
manhã. Era um amigo, ligando da área de Copacabana, onde
ficam as boates.5
Ele continua a narrativa, sempre descrevendo a ação do “jornalista
americano” na terceira pessoa e evitando opiniões mais explícitas. Estas
estão sempre nos jornais da cidade ou na boca de americanos residentes
no Rio de Janeiro. Só no final é que ele opina mais diretamente. E termina
de forma irônica:
Depois do ataque do Domino, o Jornal do Brasil publicou uma
matéria em seqüência, cuja manchete anunciava: “Exército não
vê crime em sua ação”. Ou, como observou George Orwell, “em
terra de cego, quem tem um olho é rei”$.
De volta aos Estados Unidos, Thompson percorreu os estados do
meio-oeste e oeste escrevendo sobre diversos temas de interesse público
e sobre festivais de música para a National Observer. Ele insistia em
acrescentar um viés políticos em seus textos, o que acabou lhe rendendo
a tarefa de resenhar livros. Os atritos com a direção da revista já
haviam começado antes, quando esta se recusou a publicar um tributo
ao presidente morto John Kennedy. A gota d’água para Thompson foi
quando lhe mandaram resenhar um livro em especial. Ele se demitiu.
O livro que ele se recusou a escrever sobre foi The Kandy-Colored Tangerine Flake Streamline Baby... de Tom Wolfe.
#!
CAMINHO ILUMINADO
Thompson queria mais do que aquilo. Sofria o mesmo drama de
muitos dos seus contemporâneos. Ele queria escrever ficção, mas tinha
que se sustentar com o jornalismo enquanto não tivesse algum êxito
literário. O surgimento do Novo Jornalismo foi a chance que tanto ele
quanto muitos repórteres especialistas em reportagem esperavam. E o
tema que encontrou para sua entrada no Jornalismo Literário tinha
muito a ver com a sua personalidade marginal.
Uma gangue de motoqueiros conhecido como Hell’s Angels
freqüentava as páginas da imprensa estadunidense, sobretudo depois
da divulgação de um relatório feito pelo secretário de Segurança da
Califórnia naquela época – Thomas C. Lynch. O Relatório Lynch fazia
um perfil nada amigável dos Angels. Eram denúncias de estupro,
vandalismo e brigas. Porém, muitas das evidências eram questionáveis.
“[O relatório] trazia, por exemplo, uma denúncia de estupro que havia
sido feita pela vítima às risadas, sem que o exame de corpo delito tivesse
encontrado sinais de penetração forçada”7
Thompson queria justamente mostrar o que era e não era verdade
no “Lynch Report”. A imprensa californiana usava o conteúdo do
relatório para produzir matérias sensacionalistas, totalmente
tendenciosas. “A idéia de Thompson era mostrar às pessoas até que
ponto o Lynch Report se baseava na realidade, comparando trechos do
relatório com as suas experiências na convivência com o grupo.”8
Durante os 18 meses que passou com os Angels, Thompson participou
de todas as reuniões do grupo, que na maioria das vezes, consistia
simplesmente em beber. Porém, havia ocasiões em que eles usavam drogas
e ele falou sobre o assunto abertamente e sem fazer juízos de valor.
Os Angels insistem que não existem viciados no clube, e isso é
verdade pelas definições médicas e legais. Os viciados têm um
único foco. A necessidade física do que quer que tenham
dependência os força a serem seletivos. Os Angels não têm nenhum
foco. Eles devoram as drogas como vítimas da fome soltas no
meio de um raro banquete, usam qualquer coisa que esteja
disponível – se o resultado for um delírio agudo, que assim seja.9
#"
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Thompson não queria redimir os Hell’s Angels perante a sociedade.
A prova disso é que ele mostrava com clareza que, realmente, eles
estavam à margem dela. Não foi um livro de defesa dos Angels, mas
sim uma visão muito mais equilibrada do que toda a cobertura da
imprensa na época. O leitor que formasse sua própria opinião.
Foi nessa época que o uso de drogas se tornou um hábito na vida do
jornalista, o que o acompanhou até o fim da sua vida. A primeira vez
que ele experimentou LSD foi com os Angels, conforme descreve Cecília
Giannetti
Foi no período passado junto aos Hell´s Angels que Thompson
experimentou o LSD pela primeira vez. O jornalista Ken Kesey,
que o visitou em um agrupamento de Angels, ofereceu a droga e
todos usaram. Foi depois dessa primeira experiência que Thompson passou a usar drogas com freqüência.10
A reportagem publicada em 1965 na revista Nation teve tamanha
repercussão que fez com que várias editoras se propusessem a editá-la
em livro. A Random House foi a “vencedora”, e em 1967 lançava Hell’s
Angels: The Strange and Terrible Saga of the California Motorcycle Gang.
O livro foi reeditado mais de 35 vezes. No Brasil, só fomos agraciados
com a tradução desta primeira obra de Thompson em 2004, que a
Conrad assim nomeou: Hell’s Angels: medo e delírio sobre duas rodas.
Os leitores brasileiros desavisados provavelmente se
questionaram: “Mas isso é Jornalismo Gonzo?” (pelo menos foi o
que esses escribas se perguntaram). André “Cardoso” Czarnobai,
que é uma espécie de exegeta de Thompson no Brasil, explica que
“ainda que as técnicas usadas para captar as informações e escrevêlas já fossem mais ousadas do que as praticadas pelo New Journalism, este artigo ainda não é considerado um exemplo do Gonzo Journalism”11. É o que o próprio Tom Wolfe diz e que citamos acima. Em
Hell’s Angels temos uma variação dentro do Novo Jornalismo, em
que o repórter participa e se retrata na ação – o que não se caracteriza
como um gênero à parte.
##
CAMINHO ILUMINADO
Ainda de acordo com Czarnobai, “o principal motivo pelo qual
Hell’s Angels, ainda que escrito por Thompson, não seja categorizado
como Gonzo Journalism é a ausência de algumas características
fundamentais”12 (que descreveremos mais adiante). Christine Othitis
diz que: “Hell’s Angels provavelmente é o único livro de Thompson
que poderia ser chamado de new journalism [...] é o primeiro – e único
– livro no qual Hunter mantém um estilo controlado de se expressar,
no sentido de ‘escritura não-gonzo’”13.
THOMPSON DESCOBRE O CAMINHO
Quem cunhou o termo “Gonzo” foi Bill Cardoso, jornalista e amigo
de Thompson. Numa carta sobre o texto O Kentucky Derby é decadente
e depravado, ele teria escrito: “Eu não sei que porra você está fazendo,
mas você mudou tudo. É totalmente gonzo”. Conforme o amigo de
Thompson, a palavra foi originada da gíria franco-canadense gonzeaux
e significaria algo como “caminho iluminado”.
Se o Novo Jornalismo era uma revolução, o Jornalismo Gonzo era
uma radicalização deste. Enquanto no primeiro ainda se buscava uma
certa neutralidade, com o uso da terceira pessoa e raras e disfarçadas
opiniões do repórter, no Gonzo se fazia tudo às claras. Tudo é escrito
em primeira pessoa, o autor é o personagem; gírias, palavrões, tudo é
permitido.
Ao relatar as sensações sobre o fato que vivenciou – e não só
“observou”, como se fosse possível um voyeur que não interferisse no
acontecimento – o repórter cria um vínculo com o leitor. Ele não busca
aparentar uma impessoalidade e uma frieza que são impossíveis. Como
mostra Thompson no supracitado texto:
“Você não acha que a gente veio até aqui para assistir a tudo
pela televisão, acha? Por bem ou por mal, vamos entrar. Talvez
a gente tenha que subornar um guarda – ou jogar spray de
pimenta na cara de alguém.”(Eu tinha comprado uma lata de
spray de pimenta numa farmácia por cinco dólares e 98
#$
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
centavos e, de repente, no meio daquele telefonema, me dei conta
das horríveis possibilidades de usá-la no hipódromo. Tacar
spray de pimenta nos caras que cuidam dos portões estreitos
que levam ao setor exclusivo do clube, e então entrar
rapidamente e disparar um monte de spray dentro do camarote
do governador assim que a corrida começasse. Ou usar spray
de pimenta nos bêbados imprestáveis no banheiro do clube,
para seu próprio bem...)14
Neste texto “inaugural”, digamos assim, do Jornalismo Gonzo,
Thompson foi contratado para cobrir uma tradicional corrida de
cavalos do seu Estado, o Kentucky Derby, para o Scanlan’s Monthly.
Como já conhecia o evento, logo que chega ao local diz como é o cenário
comum ali:
“Tudo isso”, falei, “vai estar congestionado de gente, umas 50 mil
pessoas, a maioria caindo de bêbada. É uma cena fantástica.
Milhares de pessoas desmaiando, chorando, copulando,
atropelando os outros e lutando com garrafas de uísque quebradas.
A gente vai ter que passar um tempo lá embaixo, mas é difícil
circular, tem muita gente”.
“Mas é seguro? Será que a gente consegue voltar?”
“Claro”, respondi. “Só vamos ter que tomar cuidado para não
pisar na barriga de alguém e começar uma briga.”#
Nem o vencedor da corrida é citado no texto, que foi recusado pelo
Scanlan’s, um jornal de esportes. O que Thompson queria mostrar era
como a sociedade estadunidense – especificamente aqueles
freqüentadores de corridas de cavalo – era drogada e decadente. O
jornalista “passa o tempo inteiro enchendo a cara, bebendo com os
caras, e com isso consegue se aproximar dessas pessoas e mostrar o
lado B, digamos assim, o lado ‘maluca’ das pessoas e de eventos oficiais.
Mostra, com isso, o lado que você não conheceria de outra forma. E isso
é extremamente interessante.”
#%
CAMINHO ILUMINADO
Quem nos diz isso é Matthew Shirts, que além de ter sido o criador
do Carbonzo Bean, teve na sua formação a leitura de toda a obra de
Thompson. Com um português cheio de sotaque, diz que Thompson
consegue esclarecer e contar histórias sobre a sociedade de uma forma
extraordinária. “E isso é jornalismo! Isso realmente é o melhor do
jornalismo.” Para Mathew, “com essa coisa da pirâmide invertida, do
lide, blábláblá, a gente acaba, às vezes, não tentando contar histórias.
Fica aquele registro do fato, seco, correto, do jeito que deveria ser no
jornal diário, talvez, mas a gente perde um pouco esse molho literário”.16
Para Thompson, fazer uma reportagem Gonzo não era para
qualquer um.
A verdadeira reportagem Gonzo requer os talentos de um grande
mestre do jornalismo, o olho de um bom artista/fotógrafo e os
colhões firmes de um ator. Porque o escritor precisa participar da
cena enquanto escreve sobre ela – ou pelo menos gravá-la, ou
mesmo desenhá-la. Ou as três coisas. Provavelmente a analogia
mais próxima do ideal seria um diretor/produtor de cinema que
escreve seus próprios roteiros, faz seu próprio trabalho de câmera
e de algum modo consegue filmar a si mesmo em ação, como
protagonista ou pelo menos um dos personagens principais.17
O que Thompson não dizia claramente era que suas reportagens,
muitas vezes, continham fatos que jamais aconteceram. Contudo, na
definição de Gonzo, ele diz que “é um estilo de ‘reportagem’ baseada
na idéia de William Faulkner de que a melhor ficção é muito mais
verdadeira que qualquer tipo de jornalismo – e os melhores jornalistas
sempre souberam disso”.
Isso, segundo o jornalista, “não significa que a Ficção seja
necessariamente ‘mais verdadeira’ que o Jornalismo – ou vice versa –
mas que tanto ‘ficção’ quanto ‘jornalismo’ são categorias artificiais. As
duas formas, em seus melhores momentos, são apenas dois modos
diferentes para alcançar o mesmo fim”. 18
#&
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Czarnobai tenta legitimar o uso da ficção analisando um trecho de
Fear and Loathing in Las Vegas19, considerada a obra-prima do autor.
Logo no começo do livro (e do filme de Terry Gillian, com Johnny Depp
e Benicio Del Toro) um garoto pede carona a Thompson e ao advogado
Oscar Acosta, que seguem velozes para a capital dos cassinos. A essa
altura, eles estavam totalmente drogados, quando o garoto entra no
carro.
Por quanto tempo poderemos segurar?, me perguntei. Quanto
tempo até um de nós começar a tagarelar louca e incoerentemente
com esse menino? E, aí, o que ele vai pensar?20
Esta cena nunca foi desmentida nem confirmada por Thompson.
Porém, àquela altura, o estado de alucinação dos dois era tão avançado
que vê-los seria uma cena única – e isso precisava ser descrito.
[...] precisamos mesmo saber se o jovem caroneiro das primeiras
páginas do livro existiu de fato? [...] Isto é realmente importante
para a validade de sua matéria? A função do caroneiro no livro é
a de representar um padrão de comportamento perfeitamente
plausível e, ainda mais importante, verossímil para um jovem
criado no interior dos Estados Unidos por volta de 1970. É curioso
perceber que o caroneiro, apesar de jovem, é careta. Ou seja, ele
recusa todas as ofertas de drogas e bebida feitas por Thompson e
pelo seu advogado durante a viagem.21
Czanobai conclui que “a inserção da ficção no Gonzo Journalism
não só contribui para a desenvoltura da narrativa como ainda fornece
um nível de informação muito mais profundo do que uma reportagem
tradicional, o que vem ao encontro da definição de Faulkner segundo a
qual a melhor ficção é muito infinitamente mais verdadeira que
qualquer tipo de jornalismo” 22.
Ficção ser mais verdadeira que jornalismo é uma idéia a ser
discutida. Frases fora de contexto podem ter o seu verdadeiro significado
#'
CAMINHO ILUMINADO
alterado. Lembremos que Wolfe diz em seu ensaio que o realismo social – praticado por Faulkner, entre outros – falava das pessoas de uma
forma absolutamente crível, haja vista que se baseava em extensas
pesquisas de campo.
Por isso nos arriscamos a dizer que Faulkner, até pelo trabalho que
fazia, está comparando o romance social – realista, baseado em
pesquisas e retratando pessoas dentro de um contexto de sociedade –
com o jornalismo tradicional, que apesar de já ter seus “repórteres
literários”, ainda não tinha como prática regular falar das pessoas
comuns e contextualizar os acontecimentos dentro de um conceito de
sociedade, o que o Novo Jornalismo implantou como prática constante.
Outra idéia nesta mesma frase, “ficção e jornalismo serem categorias
artificiais”, pode ser entendida pelo pensamento do filósofo francês
Roland Barthes. Para ele, qualquer forma expressa por meio de
linguagem é apenas uma representação da realidade e não o real de
fato. Sob esse ponto de vista, a prática do jornalismo é uma
representação do real, assim como a ficção. Ambos possuem o mesmo
valor *. Em nossa conceituação de Jornalismo Gonzo trataremos
novamente da questão do uso de ficção.
MEDO E DELÍRIO
Quando traçou estes conceitos do Jornalismo Gonzo, Thompson se referia
ao modo de apuração e redação de Fear and Loathing in Las Vegas. Ele
escrevia o livro – publicado antes na Rolling Stone – em momentos de
descanso de uma reportagem que estava fazendo sobre o estranho
assassinato de um jornalista mexicano-americano. Estava se sentindo
pressionado – os principais suspeitos da morte eram policiais e a
comunidade latina de Los Angeles protestava queimando carros e saqueando
lojas no principal bairro “chicano” da cidade. A viagem para Las Vegas –
com o pretexto de cobrir o Mint 400, um rally de motos – foi uma ótima
oportunidade para relaxar e poder conversar a sós com o advogado Oscar
Zeta Acosta, um militante da comunidade mexicana-americana.
*
$
No capítulo 4 voltaremos a falar deste conceito de Barthes
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
A pauta era cobrir a corrida para a Sports Illustrated, mas no
primeiro dia Thompson desistiu e foi fazer sua captação participativa.
Enquanto os “novos jornalistas” iam em busca do Sonho Americano
por meio do romance, Thompson foi até Las Vegas para desmitificá-lo,
mostrando uma sociedade composta de pessoas viciadas em jogos e
drogas. O maior personagem desses Estados Unidos é o próprio Thompson. Falar dele é falar de um povo específico, numa época específica.
O porta-malas do carro parecia um laboratório de narcóticos
policial ambulante. Tínhamos dois sacos de maconha, 75 bolotas
de mescalina, cinco folhas de mata-borrão com ácido
poderosíssimo, um saleiro com cocaína até a metade e toda uma
galáxia multicolorida de estimulantes, depressivos e coisas para
nos fazer gritar ou rir... e também uma garrafa de tequila, outra de
rum, uma caixa de Budweiser, uns 600 ml de éter puro e duas
dúzias de nitrato de amila.23
Ainda que seja considerada a obra-prima de Thompson, Fear and
Loathing é, segundo ele, uma experiência fracassada de Jornalismo
Gonzo, pois sua idéia seria a de um registro simultâneo ao
acontecimento e uma escrita sem revisões... Vamos deixar o Doutor
explicar com suas palavras...
Minha idéia era comprar um bloco de anotações bem grosso e
registrar a coisa toda enquanto ela acontecia, em seguida mandar
as anotações para publicação – sem edição. Desse jeito, pensei, o
olho e a mente do jornalista funcionariam como uma câmera. O
texto seria seletivo e necessariamente interpretativo – mas, uma
vez que a imagem fosse registrada, as palavras seriam definitivas.
Da mesma forma que uma fotografia de Cartier Bresson é sempre
(de acordo com ele) um negativo de quadro inteiro. Nenhuma
alteração no quarto escuro, nada de cortes ou aparadas, nada de
procurar erros... nada de edição.24
$
CAMINHO ILUMINADO
Ainda que “fracassada”, a experiência de Fear and Loathing foi,
para Thompson, um avanço ao Novo Jornalismo. “Apesar de não ter
saído como planejei, ainda é muito complexo em todo o seu fracasso”.
Para Thompson o “problema” de Wolfe – e talvez incluísse aí outros
autores do Novo Jornalismo – “é que ele é intolerante demais para
participar de suas próprias matérias. As pessoas com quem ele se sente
à vontade são mais entediantes que merda de cachorro velha, e as
pessoas que parecem fasciná-lo como escritor são tão esquisitas que o
fazem ficar nervoso”25
ACABOU A DIVERSÃO
Em fevereiro de 2005, “a temporada de futebol acabou” para Thompson. Um bilhete com esse título dizia:
Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de andar. Acabou a
diversão. A natação acabou. 67. Isto são 17 anos depois dos 50.
Dezessete a mais do que eu precisava ou queria. Chatice.Sempre
fui falastrão. Acabou a diversão – para todos. 67. Você está ficando
mesquinho. Aja, seu velhaco. Relaxe – isto não vai doer.
Hunter S. Thompson
16/2/2005 $
Depois das 17h30 do dia 20 de fevereiro, Thompson se ajeitou no sofá,
em frente à TV, e telefonou à mulher, que estava numa academia. Falaram
sobre alguns assuntos que o perturbavam ultimamente. Mas tudo se
resolveria quando Anita chegasse em casa. Contudo, antes de desligar o
telefone, às 17h42, ele pediu licença, deixou o fone ao lado do aparelho, e
disparou na boca um tiro de revólver calibre. 45.
Nem no seu funeral ele deixou o modo espetaculoso como viveu. A
cerimônia de US$ 4 milhões, paga pelo seu amigo Johnny Depp, consistiu
em misturar suas cinzas a pólvora e explodi-las num canhão. Logo depois,
os convidados – astros de Hollywood, nomes da política como George
McGovern – se divertiram numa festa em homenagem ao Doutor Gonzo.
$
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Definições e características
Uma das primeiras estudiosas a elencar as características do
Jornalismo Gonzo foi Christine Othitis, em seu artigo The Beginnings
and Concept of Gonzo Journalism. A análise da autora é feita tendo
como base apenas a obra de Hunter Thompson. Isso porque, no ponto
de vista dela, ele seria o único autor Gonzo.
TEMÁTICA
A primeira das sete características apontadas por Othitis é a
abordagem de assuntos relacionados a sexo, violência, drogas, esportes
e política. Esses temas são constantemente verificados na obra de Thompson, pelo fato de serem assuntos em que ele possui grande
envolvimento. Representam também uma predileção (ou até mesmo
obsessão) geral do povo estadunidense.
CITAÇÕES E EPÍGRAFES
O uso de citações como epígrafe é um recurso estilístico utilizado
por Thompson como forma de situar o leitor no clima da narrativa,
oferecendo uma prévia do texto. No geral, são citações de gente famosa
e outros escritores, entretanto não era raro que Thompson citasse a si
mesmo (!).
REFERÊNCIAS A FIGURAS PÚBLICAS
Esta é a terceira particularidade das obras de Thompson. Trata-se
de algo que influiu na popularização da obra dele como elemento da
cultura pop estadunidense. Povoam seus textos jornalistas, atores,
músicos, políticos e outras figuras.
USO DE DIGRESSÕES
Outro ponto notório nos escritos de Hunter Thompson é a presença
de digressões, constantemente compondo o texto, como uma tendência
a se distanciar do assunto principal. Muitas vezes, Thompson começa
falando sobre um assunto, mas divaga sobre diversos outros (seu ódio
$!
CAMINHO ILUMINADO
ao então presidente Richard Nixon, por exemplo). Supõe-se que isso
ocorra pelo fato dele começar com a tarefa de cobrir um assunto
rotineiro na imprensa tradicional, mas seu fascínio sobre o
comportamento humano o atrai a ponto dele mudar o foco do texto.
USO DE SARCASMO E IRONIA
O estilo sarcástico e irônico do Dr. Gonzo é algo pontual em seus
textos. A escrita bem humorada talvez seja o fator mais marcante de
sua obra e, sem dúvida, um dos motivos do reconhecimento. O escritor
P.J. O’Rourke distingue Thompson dos outros escritores por dois
motivos. Segundo ele, além de ser melhor escritor, Thompson faz o
leitor rir, pois “pega as questões mais sombrias da ontologia, os mais
sérios questionamentos epistemológicos e, através da sua maneira de
apresentá-los, nos contorce de rir”27.
FLUÊNCIA DAS PALAVRAS E USO CRIATIVO DO IDIOMA
Othitis aponta ainda como traço importante de Thompson a
tendência com que cada palavra flui e o uso extremamente criativo do
inglês. Para verificar esse apontamento, é necessária a leitura de textos
no idioma original, nos quais podem ser conferidos a utilização de
termos mais refinados, buscando fugir do coloquial, e uma presente
sonoridade permitida pela mistura de palavras de pronúncia fechada
com outras mais abertas.
DESCRIÇÃO EXTREMA DAS SITUAÇÕES
A autora salienta a descrição extrema das situações, fruto de uma
observação rigorosa que se atenta a pequenos detalhes. Na descrição
de Thompson, é marcante o jeito de criar uma forte representação
visual de um objeto ou pessoa. Ele enfoca a experiência acima do fato e
expressa suas análises e interpretações por meio de monólogos internos.
Os sete elementos descritos por Othitis são certamente marcantes
na obra de Hunter Thompson, porém não podem ser assimilados como
características de toda e qualquer obra do Jornalismo Gonzo. Não
$"
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
devemos confundir um só escritor com todo um gênero, mesmo que
Thompson tenha sido o precursor do estilo.
Por isso, veremos o que o jornalista André “Cardoso” Czarnobai
conceituou como características do Jornalismo Gonzo em sua
monografia Gonzo – O filho Bastardo do New Journalism. Ele salienta
as particularidades do Jornalismo Gonzo a partir de uma comparação
com o Novo Jornalismo. O autor reforça que apesar da origem
semelhante – o que causa certa confusão entra as duas “escolas” –
ambas possuem características próprias e devem ser consideradas de
forma distinta, mas ainda assim sob a mesma égide – a do Jornalismo
Literário.
A primeira profunda diferença entre os dois gêneros observada
por ele se refere ao método de apuração dos fatos.
IMERSÃO E OSMOSE
Tanto o Novo Jornalismo quanto o Jornalismo Gonzo exigem uma
imersão do repórter dentro do tema. Mas esse processo se dá de formas
diferentes nos dois casos. Os “novos jornalistas” acompanhavam seu
foco de investigação (fonte, lugar ou situação) por um longo período de
tempo, às vezes por anos. Mas o procedimento era feito sempre de
forma testemunhal. O jornalista acompanhava o desenvolvimento das
ações dentro da perspectiva de um observador.
Se essa é a definição de imersão, aplicada no Jornalismo Literário
de então – Novo Jornalismo, inclusive – Czarnobai acredita que o termo
é insuficiente para ser aplicado no Jornalismo Gonzo. O termo que ele
usa é osmose, já que assunto e autor se confundem. Não significa, porém,
que seja necessário, na prática do Gonzo, mais tempo de investigação,
mas “uma proximidade maior entre o investigador e o que é
investigado, a ponto dos dois se mesclarem e se confundirem”28. Por
isso a palavra osmose,
referenciando o fenômeno biológico no qual dois fluidos misturamse gradualmente através de uma membrana porosa. Fazendo uma
comparação, o primeiro fluido é o Gonzo Jornalista e o segundo, o
$#
CAMINHO ILUMINADO
objeto de sua investigação. A membrana porosa é o ato da
reportagem em si, pois é através dela que os dois mundos interferem
um no outro. Dessa forma é correto dizer que o repórter gonzo
altera o objeto de sua reportagem da mesma forma que o objeto
altera o próprio repórter. É quase como se o jornalista precisasse
personificar o objeto de sua reportagem, o que remete ao preceito
da “coragem de um ator” necessário para o bom Gonzo Jornalista,
segundo Thompson.29
Czarnobai defende que a experiência adquirida a partir da apuração
de uma reportagem gonzo “aumenta a bagagem de informações e
vivências do repórter de uma forma muito mais intensa que as técnicas
tradicionais – mesmo a imersão – poderiam lhe proporcionar”. Essa
coleta, maior e mais profunda, favorece para que “as reportagens gonzo
sejam muito mais fiéis à realidade”30.
Em efeito comparativo ao Novo Jornalismo, o Jornalismo Gonzo dá
uma margem mais extensa a manifestação do ponto de vista do autor.
Não há uma postura do observador que, por mais imersa que seja, ainda
possui um distanciamento. No Gonzo, a postura é de agente, e distorce
a definição de papéis do repórter e do objeto, expressa na outra prática.
Ainda no entendimento do autor, essa forma de apuração rompe
com o clássico papel de mediador da informação do jornalista, já que
não se prega a pretensa isenção com a ação descrita e descarta a
objetividade jornalística.
CAPTAÇÃO PARTICIPATIVA
Como segunda distinção fundamental, apontada por Czarnobai,
está a captação participativa. Além de uma forma de apuração própria,
o Jornalismo Gonzo possui técnicas de captação que primam pela
espontaneidade e pela urgência. Já o Novo Jornalismo se caracteriza
por uma coleta de dados ampla e metódica. O ideal, sob a ótica de
Hunter Thompson, seria uma reportagem escrita simultaneamente à
ocorrência dos fatos, sem revisão ou edição, somente as anotações feitas
na hora ou as narrações e opiniões registradas pelo gravador.
$$
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
A técnica de não-edição, segundo Czarnobai, não deve ser levada
ao pé da letra, pois Thompson continuava a redigir sua matéria
depois de vivenciar os fatos. A alusão se refere à espontaneidade
que é essencial no Jornalismo Gonzo. O cuidado e refino nos padrões
dos autores do Novo Jornalismo era mais celebrado e sofisticado.
Na visão de Czarnobai, Thompson simplificou os conceitos e
acelerou os processos.
Neste contexto, a entrevista é o instrumento fundamental e
imprescindível no Novo Jornalismo, com enfoque no fator humano
para o conhecimento dos detalhes físicos e psicológicos dos
personagens. Enquanto no Jornalismo Gonzo, ela torna-se um recurso
dispensável, já que o foco de atenção é do personagem-narrador e
protagonista da ação: o repórter.
FOCO NARRATIVO
A terceira distinção entre Novo Jornalismo e Jornalismo Gonzo é
marcante. A narração em primeira pessoa é uma conseqüência dos
métodos de apuração e de captação participativa que tornam a redação
confessional.
Esse tipo de foco narrativo é até permitido no Novo Jornalismo,
desde que em uma situação em que o repórter seja um fator
determinante para a compreensão da história. Tom Wolfe é um defensor do uso da terceira pessoa, prega que o autor deve manter-se
invisível e acredita que a angulação em apenas um personagem
(primeira pessoa) limita o repórter e empobrece a narrativa. A primeira
pessoa só é usada quando há alternância do foco narrativo; em algumas
das reportagens de Wolfe há primeira, terceira e até a segunda pessoa.
Outro mote salientado por Czarnobai é que o uso da terceira pessoa
confere à narrativa um certo distanciamento, o que está de acordo com
a posição de observador imerso, adotada no Novo Jornalismo. Já no
Jornalismo Gonzo, o foco narrativo em primeira pessoa é uma regra. E
isso se dá como característica da reportagem feita a partir da experiência
vivida pelo repórter e que é mais simples e verossímil assumir esse
ponto de vista do que criar um personagem fictício para isto, por
$%
CAMINHO ILUMINADO
exemplo. Para ele, adotar esse foco narrativo é uma vantagem, porque
nega a imparcialidade jornalística sem comprometer o princípio de
informar alguma coisa a alguém.
O principal benefício é o fato da figura do jornalista como senhor
da informação sair de cena, dando espaço à figura de uma pessoa
que experimenta e divide os resultados da sua experiência. [...]
Este personagem-narrador cria vínculos mais facilmente com o
leitor porque se apresenta de uma forma mais humana.31
SARCASMO E IRONIA
Como já vimos acima, uma das características marcantes da obra
de Thompson é o uso de ironia e sarcasmo como senso de humor, o que
não se restringia apenas ao texto, mas também à sua personalidade. O
senso de humor ácido de Thompson é propagado por seus seguidores
e, naturalmente, tornou-se uma ferramenta de linguagem e um
elemento constante na redação dos textos de Jornalismo Gonzo.
Voltamos a este tópico para fazer a comparação do Gonzo com o
Novo Jornalismo, já que o humor se opõe a uma seriedade do jornalismo
tradicional. Segundo Czarnobai, essa sisudez é uma característica que
remonta à tradição do jornalismo estadunidense de buscar uma
prática imparcial e sem opinião. O Novo Jornalismo é um estilo de
narrativa de não-ficção com pretensões literárias e, de certa forma,
com um desejo de reconhecimento e valorização diante de intelectuais
da época. Além disso, alguns conhecidos escritores de ficção fizeram
parte do movimento, como Norman Mailer e Truman Capote.
Diante desta conjuntura, com a cobrança pelo atendimento aos
parâmetros jornalísticos e um padrão de qualidade literária, o gênero
adquiriu uma seriedade mais acentuada. Essas regras que ditam o tom
do Novo Jornalismo não existem no Jornalismo Gonzo, que é
declaradamente iconoclasta. Por isso, o objeto da reportagem, a
linguagem e a condição do jornalista são ironizados; trata-se de um
gênero “não-legitimado” e que não almejava o posto de escola literária
quando criado.
$&
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
PERMISSIVIDADE QUANTO AO USO DE FICÇÃO
Uma das peculiaridades do Jornalismo Gonzo de Hunter Thompson é a permissividade quanto ao uso da ficção. Este quinto elemento
apontado por Czarnobai é um dos mais polêmicos em relação ao gênero,
pois é contraditório a um dos postulados clássicos do jornalismo, o de
que se deve oferecer ao leitor a expressão mais correta dos fatos, por
meio de um trabalho meticuloso e refletido.
O fato de Thompson não diferenciar as passagens ficcionais em sua
obra torna questionável a veracidade de muitas de suas histórias.
Assim como o humor, este é mais um elemento que decorre da
personalidade de Thompson, já que ele era apontado por amigos como
um grande mentiroso.
Entretanto, como vimos anteriormente, o não discernimento entre
ficção e fato – sob o ponto de vista de Czarnobai – não descaracteriza
o aspecto jornalístico do Gonzo. O que deveria ser questionado é até
que ponto a ausência deste limite distorce a visão do leitor sobre o
objeto central da reportagem. Um exemplo é a citada passagem do
caroneiro no início de Fear and Loathing in Las Vegas, em que o uso da
ficção não é utilizado para distorcer a realidade.
Dessa maneira, ele conclui que a inserção da ficção “não só contribui
para a desenvoltura da narrativa como ainda fornece um nível de
informação muito mais profundo do que uma reportagem tradicional”.
Czarnobai ainda ressalta que “a ficção é um elemento inserido de uma
forma proposital e calculada, e não aleatória como poderia parecer
num primeiro momento”. 32
Também contribui para a incorporação de elementos fantasiosos
na obra de Hunter Thompson o uso de substâncias que alteram a
realidade. Sob o efeito de alucinógenos, o próprio jornalista não poderia
distinguir a realidade da fantasia, como lembra Matthew Shirts: “Eu
não sei até que ponto isso é verdadeiro. Não sei até que ponto ele (Thompson) bebeu tudo que ele podia ter bebido, cheirou tudo o que podia
ter cheirado, não sei como ele lembraria de tudo para escrever no dia
seguinte”.
$'
CAMINHO ILUMINADO
USO DE DROGAS
O uso de drogas é justamente o sexto elemento que Czarnobai
aborda ao caracterizar o Jornalismo Gonzo. Novamente é uma questão
extremamente polêmica. Hunter Thompson consumiu uma grande
variedade e quantidade de drogas enquanto apurava e redigia suas
reportagens e sempre assumiu esta condição aos leitores.
O consumo e os efeitos descritos, certamente, valorizaram a questão
de focar-se mais na experiência vivida pelo jornalista do que
propriamente nos fatos. Os autores do Novo Jornalismo não eram
necessariamente abstêmios. O álcool, principalmente, era bastante
consumido, mas esta era uma questão não mencionada por eles – mais
uma vez em razão do papel de observador e não de protagonista. Só
que num texto de caráter confessional, esse tipo de consumo deve ser
relatado, pois se trata de uma informação importante para o
entendimento do assunto/autor (já que estes se mesclam).
Por isso, é um erro conceituar o Jornalismo Gonzo como uma forma
de narração sob efeito de drogas. Esta visão pejorativa acaba
simplificando e descaracterizando a prática, fazendo com que esta não
seja tratada seriamente. O uso de drogas não é uma característica
essencial do Jornalismo Gonzo e não serve para enquadrar um texto
jornalístico sob esse gênero. Trata-se apenas de um elemento adicional,
que pode ser usado de acordo com a personalidade e o julgamento do
jornalista.
FUGA DO FOCO
A sétima característica verificada por Czarnobai é uma das mais
proeminentes: a fuga do foco principal. E para ele, esta é uma
discordância fundamental do Novo Jornalismo, uma vez que este
mantém o foco sempre direcionado ao objeto de reportagem. Em
qualquer investigação jornalística, o repórter se depara com muitas
informações paralelas ao objeto de sua reportagem, e mesmo que sejam
interessantes, se não possuem relação com o tema que está sendo
abordado, são descartadas. No Jornalismo Gonzo, quase tudo é
aproveitado e toma parte da narrativa.
%
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Essas informações, aparentemente irrelevantes para Tom Wolfe e
seus asseclas, são usadas para descrever o ambiente e uma determinada
situação, o que possibilita a composição de uma descrição indireta do
personagem central. Já no Jornalismo Gonzo, com o foco principal
voltado para o repórter, o texto segue as mudanças de humor e fluxos
de pensamento deste protagonista. Sendo assim, o material
não serve apenas para enriquecer a narrativa como também para
engrossar o volume de informações oferecidas ao leitor. No New
Journalism, contudo, isto é feito de forma mais direta e sempre
relacionada com o tema central da história, enquanto no Gonzo
não precisa seguir esta lógica e aparece quase sempre com uma
roupagem mais subversiva, de transgressão.33
RECURSOS TEXTUAIS E GRÁFICOS
A oitava e última característica marcante da prática do Jornalismo
Gonzo de Thompson é a utilização de recursos textuais e gráficos,
especificamente peculiares e constantes na obra do estilo. Estes seriam
o uso de epígrafes, a utilização de pseudônimos e ilustrações.
As epígrafes, já conceituadas por Othitis, tem o objetivo de situar o
leitor em relação ao conteúdo do texto. Este artifício muito usado por
Hunter Thompson foi cultuado por muitos de seus seguidores e, desta
forma, tornou-se mais um elemento para enquadrar uma produção
sob o conceito de Gonzo.
Os pseudônimos também surgiram com Hunter Thompson, porém
não existem explicações claras dos motivos que o levaram a adotar
outros nomes. O Dr. Gonzo muitas vezes se escondia sob a alcunha de
Raoul Duke, F.X. Leach e Sebastian Owl ao assinar suas reportagens.
Mais uma vez, a peculiaridade foi cultuada por seus admiradores,
mas estes ainda tinham outros motivos, como não se associar
diretamente ao Jornalismo Gonzo. Isso por causa da ligação feita entre
o estilo e o consumo de drogas, o que, como vimos, é uma visão
inadequada e ignorante. Para se livrarem desta estigma, alguns
jornalistas optam por não assumir a identidade.
%
CAMINHO ILUMINADO
Thompson gostava de ilustrar suas reportagens com desenhos ao
invés de fotos. Para ele, essa maneira tinha um caráter mais familiar
ao estilo. Muitos de seus textos foram ilustrados pelo cartunista Ralph
Steadman, que conseguia representar graficamente os preceitos do
Jornalismo Gonzo.
Os traços de Steadman dão a impressão de terem sido feitos
apressadamente, da mesma maneira espontânea com que Thompson
escrevia. Eram desenhos cheios de hachuras e imagens confusas, com
figuras humanas distorcidas, em alusão aos efeitos que as drogas
causavam na visão.
Um novo caminho
Enquanto Othitis enquadra o Jornalismo Gonzo como uma “escola
de um só autor”, Czarnobai avança um pouco e traça uma comparação
entre o Novo Jornalismo e o Jornalismo Gonzo. Ainda que este último
indique como autores Gonzo o repórter “excepcional” da revista Trip
Arthur Veríssimo e o autor de Paraíso na fumaça, Chris Simunek, entre outros, achamos insuficiente a definição do gênero.
Por isso, propomos nosso próprio conceito de Jornalismo Gonzo.
Com base nas definições dos autores acima citados e nas análises de
diversas obras, vamos elencar as características que acreditamos ser,
de fato, delineadoras do gênero. Dessa forma, almejamos ir além daquilo
que já foi descrito como Jornalismo Gonzo até hoje.
Partimos do princípio que este é um estilo de Jornalismo Literário
que ganhou esse nome a partir de uma prática “exagerada” do Novo
Jornalismo. O Jornalismo Gonzo é, portanto, uma “escola” que foi
cunhada a partir da obra de Hunter Thompson, mas tem características
estendidas para as obras de diversos autores anteriores e posteriores,
e que praticaram o estilo de forma consciente ou não.
No nosso conceito, o Jornalismo Gonzo é fundamentalmente uma
reportagem narrada em primeira pessoa, na qual o repórter é
protagonista da história e assume a perspectiva de relatar suas
experiências. Ou seja, aquilo que vivenciou por meio de uma imersão
%
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
profunda (osmose). Além disso, o texto é, essencialmente, um reflexo
explícito de elementos que compõe a personalidade do autor.
Não seria, obrigatoriamente, uma narrativa cheia de sarcasmo,
permeada por digressões, com uma urgência na captação de dados,
com presença de drogas e de uma ficção dissimulada, mas sim, um
estilo totalmente subjetivo, que reflete a personalidade do autor e sua
interpretação do fato. Chamaremos esta característica de
“personalização”.
Como verificamos nas classificações de Jornalismo Gonzo
elaboradas por Czarnobai e Othitis, muito do que foi considerado como
uma característica do estilo na verdade remete a personalidade de
Hunter Thompson. Portanto, são elementos que cabem como critérios
de classificação da obra de um autor, não de todo um estilo.
O uso de drogas era uma escolha e preferência de Thompson, porém
não é obrigatório para exercer o estilo. O humor ácido, sarcasmo e
ironia são características absolutamente pessoais do Dr. Gonzo e se
fazem presentes em seu jeito de ser e, conseqüentemente, em sua
maneira de escrever. Os elementos textuais e gráficos (epígrafes,
pseudônimos e ilustrações) tampouco são imprescindíveis para um
texto ser taxado de Gonzo, mas apenas preferências pessoais do autor
como modo de enriquecer a narrativa.
A questão mais polêmica, em termos jornalísticos, é no tocante ao
uso de elementos fictícios. Defendemos um Jornalismo Gonzo sem
ficção, afinal, só assim ele poderia ser aceito como prática jornalística.
Thompson era conhecido como um grande mentiroso, portanto, a
presença da ficção em suas reportagens remeteria à sua própria
personalidade. Seu amigo John Burton afirmou que “mentir é a coisa
que ele faz melhor. E ele o faz com total calma e confiança”.
Feitas essas considerações, verificamos que o Jornalismo Gonzo é a
prática mais subjetiva de jornalismo, ou aquela que assume esta
subjetividade com mais contundência. Por causa dessa subjetividade
extrema, pode-se dizer que o Gonzo é a mais sincera das categorias de
Jornalismo. Nenhum relato é isento. Sempre haverá naquelas linhas
“imparciais” do texto jornalístico uma série de valores, idéias e a visão
%!
CAMINHO ILUMINADO
de mundo do repórter – para não falar da linha-editorial do veículo de
comunicação para qual trabalha. Portanto, o relato de um fato sob a
perspectiva declarada do repórter, sem omitir que aquilo é uma
interpretação sua, dá, no nosso ponto de vista, muito mais
credibilidade a uma notícia.
A experiência do repórter, em muitos casos, vale muito mais. Por
exemplo: o dia-a-dia de soldados numa guerra (John Sack em M, quando
lutou na Guerra do Vietnã); a situação de um time (George Plimpton
em Paper Lion, em que treinou com os atletas do time de futebol
americano Detroit Lion e até disputou uma partida); um retrato das
décadas de 60 e 70 nos EUA, em que o consumo de drogas era intenso e
hipocritamente omitido (Hunter Thompson em Fear and Loathing in
Las Vegas). Os repórteres foram protagonistas nessas ocasiões e
fizeram considerações muito mais fiéis da realidade do que se agissem
como meros espectadores “imparciais”.
Estabelecidos estes critérios, verificamos que a “camisa de força”
que amarrava os conceitos de Jornalismo Gonzo não era tão apertada
assim e, por isso, pode ser estendida para outros autores. A escrita
jornalística subjetiva, em primeira pessoa, a partir de uma vivência
pessoal (osmose) e tomada por elementos da personalidade do autor
pode se encaixar em um campo muito maior. Sendo assim, outras obras
podem ser considerados como Jornalismo Gonzo, mesmo que
produzidas de forma inconsciente. E tendo isso em vista é que buscamos
ampliar os horizontes deste estilo.
Notas
Matthew Shirts, entrevista concedida em 14 de setembro de 2006
!
Giannetti, 2002, p. 22
Czarnobai, 2003, p. 27
%"
"
Thompson, 2004, p. 136
#
id.
$
ibid., p. 140
%
Giannetti, 2002, p; 28
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
&
Czarnobai, 2003, p. 29
'
Thompson, 2004, p. 213
Giannetti, 2002, p. 29
Czarnobai, 2003, p. 30
id. p. 31
!
apud Czarnobai, 2003, p. 31
"
Thompson, 2004, p. 22
#
id. p. 26
$
Entrevista concedida em 14 de setembro de 2006
%
Thompson, 2004, p. 46-7
&
id. p. 46
'
Fora de catálogo no Brasil. A única tradução foi intitulada “Las Vegas
na cabeça”
Thompson, 2004, p. 253
Cazarnobai, 2003, p. 66
id.
!
Thompson, 2004, p. 252
"
id., p. 46
#
ibid., p. 49
$
Revista Trip Online
%
apud Czarnobai, 2003, p. 41
&
Czarnobai, 2003, p. 49
'
!
id.
ibid., p. 50
!
ibid., p. 57
!
ibid., p. 67
!!
Czarnobai, 2003, p. 77
%#
CAMINHO ILUMINADO
%$
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
3. Nem só de Thompson
vive o Gonzo
Outros autores seguem o Caminho
José Hamilton Ribeiro
%%
CAMINHO ILUMINADO
%&
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Jornalismo às vezes cansa,
mas é melhor que trabalhar.
(frase italiana citada por José Hamilton Ribeiro)
Alguns autores desenvolveram ótimas narrativas em primeira
pessoa, com todos os atributos necessários para serem chamadas de
Gonzo. Todavia, muitos não tinham sequer noção de que existia um
gênero para classificar suas reportagens quando as fizeram. Isso se
deve, em parte, porque o estilo de narrativa usado foi apenas um dentre
todos que os autores usaram em suas carreiras, derivando apenas de
sua própria criatividade. Em relação aos autores brasileiros, pode-se
atribuir ao fato já mencionado de que o Novo Jornalismo e o Jornalismo
Gonzo não repercutiram tanto no Brasil.
Da terra de Thompson, temos um nome recente que é uma cria do
jornalista do Kentucky – embora Chris Simunek não mencione isso
em seu único livro traduzido para o português. Quem são esses autores?
%'
CAMINHO ILUMINADO
Onde eles estavam até agora? Alguns estavam diante de você – só era
necessário ver com olhos mais atentos.
José Hamilton Ribeiro e a Realidade
Tinha que ser na Realidade, um dos poucos redutos de Jornalismo
Literário no Brasil, que o Jornalismo Gonzo se manifestaria. Naquelas
páginas escreveram, entre outros, “três dos melhores jornalistas que o
Brasil já teve em todos os tempos”: Luís Fernando Mercadante, Roberto
Freire e Carlos Azevedo. A qualificação é justa, mas a modéstia de
quem a fez oculta o próprio nome: José Hamilton Ribeiro, autor de pelo
menos uma reportagem em que fez a mais completa osmose. Na capa
de uma edição histórica da Realidade está a face ensangüentada de Zé
Hamilton, quando, enviado à Guerra do Vietnã, se confundiu com o
tema e se tornou vítima da guerra.
A reportagem, que virou livro, possui características clássicas do
estilo popularizado por Thompson. Em 1968, José Hamilton Ribeiro
cobria a Guerra do Vietnã sem grandes problemas. No último dia,
porém, o fotógrafo que o acompanhava, Keisaburo Shimamoto, ainda
não tinha achado uma cena que desse uma foto dramática o suficiente.
Seguiram, então, para a “Estrada sem Alegria”, onde haveria duas
operações promissoras para fotos.
A estrada faz jus ao nome. Zé Hamilton pisa numa mina terrestre,
perde a perna esquerda e passa, segundo conta no livro O gosto da
guerra, “os 15 dias mais dolorosos e infelizes da minha vida”1. O texto
começa justamente no que seria o último dia da estada dele no Vietnã
e, para contar todos os dias que passou lá até então, ele usa longas
digressões. Como o texto é escrito em forma de diário, seu dia no hospital é apenas um pano de fundo para o grande tema que é a guerra. O
relato do repórter é o de alguém que sentiu no corpo e na mente os
efeitos do combate.
É o quarto dia após a bomba e ainda não consegui comer. A simples
visão das bandejas, com aqueles bifes pretos feito de carne em pó
&
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
e as omeletes viscosas derramando um caldinho branco, me leva
ao vômito. A minha posição única já me faz doer as costas e, pior
ainda, sempre que tento mover-me, sinto sangue na cama, que
aumenta meu mau humor. [...] O temor aumenta: vou morrer aqui
nesta joça, serei um cadáver a mais, anônimo e não procurado, da
guerra. Merda! 2
Zé Hamilton não se furtou em dar suas opiniões, muitas vezes de
forma irônica. Isso para não falar das sensações: teve uma perna
arrancada e passava por um doloroso tratamento. Em mais uma cena
no hospital em que está internado, ele tenta fazer uma lista de quem
está pior ali. Em certo momento, ele interrompe a lista macabra por
causa de uma gritaria ali perto.
É Kim-Thien, uma menina de 14 anos que todos os dias, na hora
dos curativos, grita desesperadamente. Um enfermeiro me conta
sua história: soldados americanos realizavam “operação de
limpeza” numa aldeia e a menina estava na rua. Quando viu
aquele aparato todo, saiu correndo para alcançar sua casa. Os
soldados cumpriram a ordem: “Diante de nós, quem tenta fugir é
vici – fogo.” A menina caiu, ferida em vários lugares. Apesar da
idade, foi feita prisioneira e submetida a longos interrogatórios.
Fora dos momentos de curativos, agora, tudo que ela faz é brincar
com as bonecas que a Cruz Vermelha lhe deu. Acho que os
americanos estão começando a desconfiar que é meio difícil ela
ser um perigo vietcongue.3
Temos então o primeiro fluido: o repórter José Hamilton Ribeiro; o
segundo, objeto de sua investigação: a Guerra do Vietnã; e a membrana porosa, que é o ato da reportagem: quando o autor relata as
desgraças da guerra. Não é a mais perfeita osmose? O repórter alterou
o objeto da reportagem, que também o alterou.
Podemos notar nesta reportagem as três características básicas do
Jornalismo Gonzo que propomos no capítulo anterior: (a) narração em
&
CAMINHO ILUMINADO
primeira pessoa – a perspectiva é sempre confessional; (b) osmose – o
autor é o personagem principal da história, é uma vítima da guerra; (c)
personalização do texto – quem já conversou com Zé Hamilton percebe
na reportagem os mesmos cacoetes da fala e ainda pode notar sua
visão peculiar da guerra.
Isso para não falar do uso de ironia, digressões e descrições extremas
– recursos não obrigatórios a uma narrativa Gonzo, como defendemos
anteriormente, mas que tornam a obra ainda mais parecida com a de
Thompson.
CULTURA DA REALIDADE
Não foi apenas pelo fato de Zé Hamilton ter se tornado uma vítima
da guerra que ele pôde escrever o relato em primeira pessoa e transmitir
aos leitores seu drama e suas opiniões acerca do combate. Fazia parte
da cultura da Realidade a chamada “reportagem de vivência”. Zé
Hamilton dá alguns exemplos, antes mesmo de sua cobertura da
Guerra. Uma pauta, conta, era sobre o operário brasileiro
e eu fui para a fábrica como operário. Arranjei um emprego na
fábrica e fui trabalhar lá. E a reportagem foi sobre isso. Outro
colega foi para uma vila de pescadores no Nordeste e arranjou
um emprego de pescador, foi pescar, foi puxar rede. 4
Se o leitor pensa nesse momento que esse era o limite da Realidade
no que diz respeito aos repórteres vivenciarem um acontecimento,
atente para o que nos disse Zé Hamilton, “indignado” com a medicina
brasileira.
Isso [a vivência do repórter] foi levado até um certo extremo, em
que eu fui incumbido uma vez de fazer uma reportagem sobre o
que é ser negro no Brasil, o preconceito racial... E eu tive que virar
negro! Tive que virar preto. Então eu fiz tratamentos médicos para
mudar a cor da minha pele, para ver se eu me transformava num
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
preto, para fazer uma reportagem com absoluta realidade. Mas a
medicina brasileira de então – por sinal é até hoje –, muito atrasada,
não conseguiu me fazer preto. Então eu desisti da reportagem.5
O racismo foi capa da edição de outubro de 1967 de Realidade. Pelo
que nos contou Zé Hamilton, o que seu colega Carlos Azevedo fez para
“se tornar um negro”, nos Estados Unidos, foi, simplesmente, ter a pele
morena. A outra reportagem que tratou do racismo, desta vez no Brasil,
foi escrita por Narciso Kalili e publicada na mesma edição da revista.
Ele viajou por várias capitais brasileiras com o também jornalista
Odacir de Mattos, um negro. A abertura do texto remete à educação de
Kalili, em que ele conta sua infância e como o racismo era praticamente
ensinado nas famílias ditas brancas. Mantemos as grafias originais.
Vivi tôda a infância e adolescência ouvindo e aprendendo que o
negro era um homem inferior. Na escola, em casa, na rua, meus
pais, os professores e meus amigos sempre atribuíam aos negros
maus sentimentos e atitudes negativas. Usavam os negros para
coagir as crianças a não fazer travessuras. Ouvi muitas vezes a
ameaça:
– Olha que eu chamo o prêto para te levar!
Durante a mocidade, no colégio e na faculdade, meus professôres
ensinavam que no Brasil não existe preconceito racial. E sempre
me considerei um homem sem preconceitos.
Mas isso seria verdade? 6
Mattos e Kalili visitam seis capitais brasileiras e fazem os testes,
sempre separados: visitam escolas em busca de vagas para os filhos;
procuram apartamentos para locar; fingem estar passando mal na
rua; andam abraçados com mulheres de outra cor de pele nas ruas e
comparam os resultados. No caso das escolas, muitas diretoras negam
a vaga para Mattos quando, em seguida, a garantem para Kalili. O
mesmo ocorre com as residências para aluguel: para Mattos, já estão
alugadas, enquanto que para Kalili o negócio pode ser fechado já.
&!
CAMINHO ILUMINADO
Quando o repórter branco finge um mal estar na rua, logo é amparado.
Mattos, o negro, é chamado de bêbado. Já o espanto para com os casais
de cor de pele diferente é o mesmo nos dois casos.
De São Paulo não precisávamos saber mais nada. Nem testar
outras coisas. Como paulista, eu estava envergonhado. Como
branco, triste. Como ser humano, irritado e odiando tudo o que
levava ao preconceito. Na semi-obscuridade do avião que nos
levava ao Rio de Janeiro, sentado sózinho num dos bancos, eu
observava Odacir e Geraldo Mori [...] Olhava o rosto dos poucos
passageiros, me perguntando se êles sabiam de tudo que eu já
estava sabendo. Se em suas vidas êles percebiam tôda vez que
agrediam e feriam os negros. 7
Notamos na reportagem as já ditas características do Jornalismo
Gonzo. Narciso Kalili relata o tempo todo seus sentimentos (narrativa
em primeira pessoa), falando de uma situação que vivenciou
intensamente (osmose) e dando o exemplo de sua própria educação
para ilustrar o fato (personalização).
O pioneiro da Francisco Sá
Mas bem antes de Realidade existir já havia no Brasil quem se
pusesse na perspectiva de participante – e não só testemunha – dos
acontecimentos e relatasse tudo num texto recheado de humor ou
mesmo perplexidade. Joel Silveira, sergipano residente na então capital federal, Rio de Janeiro, vai até São Paulo, em 1943, como repórter da
revista Diretrizes, de Samuel Wainer, e registra como vive a alta
sociedade paulistana.
Durante uma semana, fiquei atordoado com a vida elegante de
São Paulo. Haviam me levado para algumas festas; primeiro um
aperitivo, colorido e com pedaços de fruta dentro, depois uma
carreira rápida de automóvel. Estive em jantares fascinantes. As
&"
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
mulheres, muito belas e perfumadas. Particularmente aquelas que
puxam os cabelos para cima, num jeito que abandona aos nossos
olhos as lindas nucas nuas. Durante uma tarde inteira, fiquei
semideitado numa poltrona de um apartamento chique, no Centro
da cidade. [...] Os rapazes se vestem muito bem e telefonam.
Telefonam de cinco em cinco minutos e conversam com Lili, com
Fifi, com Lelé. Recebem também telefonemas de Fifi, de Lili e de
Lelé.8
A escrita mordaz do jovem repórter que queria ser escritor atraiu a
atenção do barão das comunicações na época. Assim que Diretrizes foi
fechada pela ditadura Vargas, Joel saiu de seu “exílio” em Sergipe a
convite de Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, para
cobrir a Segunda Guerra Mundial.
Num de seus despachos, a Víbora, como era chamado por
Chateaubriand, faz um relato confessional desde o título: “Eu vi morrer
o Sargento Wolfe”. A reportagem começa com a descrição da cena do
título.
Vi perfeitamente quando a rajada de metralhadora rasgou o peito
do sargento Max Wolf Júnior. Instintivamente ele juntou as mãos
sobre o ventre e caiu de bruços. Não se mexeu mais. O tenente
Otávio Costa, que estava ao meu lado no Posto de Observação,
apertou os dentes com força, mas não disse uma palavra. Quando
lhe perguntei se o homem que havia tombado era o sargento Wolfe,
ele balançou afirmativamente com a cabeça. 9
Em 1945, de volta da guerra, Joel escreveria outra reportagem
com toda a ironia de “Grã-finos em São Paulo”: era o casamento da
filha do conde Francisco Matarazzo, Filly, com o carioca João Lage.
Mesmo sem conseguir um convite para a festa, Joel descreve detalhes
preciosos, graças a um conhecido seu que lhe contou tudo. Estamparia
as páginas de O Cruzeiro “A milésima segunda noite da Avenida
Paulista”.
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CAMINHO ILUMINADO
Joel era capaz de transformar um evento como uma entrevista
frustrada em notícia. Foi assim quando foi falar com o então presidente
Getúlio Vargas, que trocou algumas palavras com o repórter e lhe
virou as costas. Como diz Geneton Moraes Neto – um “aluno da escola
de jornalismo da Rua Francisco Sᔠ(em alusão ao endereço de Joel) –
“um repórter burocrático seria incapaz de escrever um parágrafo de
cinco linhas sobre a entrevista frustrada. [...] Mas Joel escreveu um
longo e brilhante texto [...]”
Se episódios assim podiam resultar em textos brilhantes, com
assuntos sérios não era diferente. Joel estava numa feijoada em que foi
tramado o golpe militar de 1964. Só quatro anos depois ele escreveria
“A feijoada”. O texto é recheado de digressões, monólogos interiores,
metáforas, descrições de ambientes e, claro, da indignação do repórter.
– Afinal, onde a surpresa? Claro que a teria de acontecer! E
acontecer como aconteceu! Claro! Claríssimo!
E ao desabafar comigo mesmo essa assassina revelação me pareceu
sentir no mar um estremeção de monstro satisfeito, bem jantado e
bem bebido; e ouvir o cavo arroto de uma fera que acabara de me
devorar e que, assim arrotando, finalmente resolvera dizer porque
e quando e onde havia me devorado.10
O que nos leva a crer que Joel Silveira foi um dos primeiros repórteres
Gonzo é que sua reportagem sobre os ricos de São Paulo, de 1943, já
trazia todas as características que tratamos anteriormente. Ele segue
a mesma linha em suas reportagens posteriores, inclusive em “A
feijoada”, que traz pelo menos um recurso avançado de Jornalismo
Literário, que é monólogo interior. Mas se atendo às três características
de que tanto falamos, percebemos, além da ironia, digressões e
descrições detalhadas, que Joel faz: narração em primeira pessoa; osmose e personalização do texto, emprestando características suas à
reportagem.
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Also known as Cardoso
Se você ainda não sabe quem é o cara que escreve o prefácio deste
livro, só que ele fez uma monografia acadêmica sobre Gonzo, saiba que
André “Cardoso” Czarnobai produziu bem mais que isso. Mas vamos
começar por essa palavra entre aspas antes do sobrenome do rapaz.
Uma vez, um jornalista quase escreveu numa matéria que seu
apelido provinha do sobrenome do cara que cunhou o termo Gonzo.
Mas o apelido nada tem a ver com Bill Cardoso. Ele já contou a história
em algumas colunas do Cardoso Online – um fanzine eletrônico (ou ezine, se preferir) que manteve por três anos e que chegou a ter cinco mil
assinantes. Mas para nós ele contou novamente.
A história é que ele tinha um professor de Educação Física na
faculdade (sim, apesar curso ser de JORNALISMO, o currículo tinha
essa disciplina) chamado Camargo, “mas, por alguma distração
persistente, passei o semestre INTEIRO chamando o cara de Cardoso
por engano”. Os amigos dele, muito legais, ficaram quietinhos, mas
passaram a chamá-lo de Cardosão. “Quando o semestre estava mais
pro fim, me contaram o motivo. Ridículo. Heheh. É meio sem graça,
mas a maioria dos melhores apelidos são assim”.
Mas vamos ao que interessa. Se você digitar Gonzo no Google, a
Irmande Raoul Duke de Gonzojornalismo, criação de Cardoso, vai estar
na primeira página de resultados. Se selecionar a opção “Páginas do
Brasil”, então, vai dar de cara com o site. Na IRD, Cardoso e Rodrigo
Alvarez, mais conhecido como Suruba, juntaram alguns amigos
escribas e publicaram alguns textos enormes para os padrões da
Internet. Eram tanto de discussão como de prática do Gonzo.
E foi massa porque tudo funcionava bem: os textos eram bons, os
desenhos eram bons (porra, tínhamos ILUSTRADORES!), a lista
funcionava. Na primeira edição foi ducaralho, porque peguei no
vácuo muitos COLunistas, como o Daniel Galera, o Marcelo Träsel
e o Hermano Freitas. Na segunda também foi massa, com
colaboradores de peso de outros estados: Rio, São Paulo, Minas,
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CAMINHO ILUMINADO
Mato Grosso, e elogios de Ana Maria Bahiana. Mas na terceira,
por causa do alto nível de TRABALHO que o troço exigia – eu
tinha que editar os textos, as imagens e TODO o html do site –
enchi o saco.11
A IRD ainda repercute. Vários estudantes de jornalismo procuram
Cardoso para saber mais sobre Gonzo – o caso destes aqui. Ele lembra,
contudo, que nem só de louros vive a Irmandade: “Em 2005 o Álvaro
Pereira Jr. escreveu um texto na Folha ESPINAFRANDO os ‘gonzos
brasileiros’ sem citar nomes – mas só podia ser a IRD, que era a
PRIMEIRA ocorrência para essa busca no Google”.
Em seu novo “portal”, digamos assim, o Qualquer.org, Cardoso refez
todo a IRD* e promete que ela voltará, aos poucos, a ser atualizada.
Num dos textos que podem ser lidos lá, encontramos o repórter
explorando a Cidade Baixa de Porto Alegre.
Meu procurador terminava de comer uma à la minuta com frango
quando me aproximei de sua mesa. “Estou sendo seguido”, disse.
Ele olhou para os dois lados, largou o garfo e bateu na mesa
esbravejando: “Então precisamos sair daqui imediatamente”.
“Não” Respondi. “Isso vai nos expor. Seremos uma presa fácil.”
Meu procurador parece perturbado. “Então vamos pedir uma
cerveja.” Não é um argumento que eu vá questionar, especialmente
a essa altura do campeonato. O Cotiporã permanece num irritante
vazio. Do outro lado da rua os coloninhos continuam à minha
caça. Numa das esquinas mais movimentadas da Cidade Baixa é
inquietante o fato de ser um dos únicos a beber num sábado à
noite.12
Além de um senso de humor onipresente, Cardoso tem uma escrita
que reproduz o seu jeito de falar. Os temas são normalmente fatos
corriqueiros de sua vida porto-alegrense, uma osmose natural,
portanto. Drogas, álcool, nenhum tema é proibido. Um de seus textos
*
&&
www.qualquer.org/gonzo
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
famosos, citado nas resenhas que fizeram de seu único livro (mas não
o último, ele garante), Cavernas e Concubinas13, é o relato de sua quase
apreensão por porte de maconha durante a Festa Literária de Parati
(Flip) de 2004.
Ah! Adivinha de onde saíram os contos e narrativas que ele reuniu
para o livro? Da Internet, claro.
Arthur Veríssimo, auto-declarado Gonzo Brasileiro
O “repórter excepcional” da Trip é praticamente um sinônimo de
Jornalismo Gonzo no Brasil. O editor da revista em que Arthur
Veríssimo escreve – “entre idas e vindas” – há 19 anos, Paulo Lima, foi
quem fez a associação, ao perceber pontos em comum em relação à
obra de Hunter S. Thompson. E, de fato, os estilos são parecidos.
As pautas de Veríssimo costumam brotar de viagens. Por sinal, ele é
o tipo de sujeito que não pára em casa e está sempre com as malas
prontas. Desde pequeno é fascinado em conhecer lugares diferentes. E
depois de conhecidos, ele gosta de revisitá-los, numa incansável busca
pelo exótico. México, Tailândia, Haiti, Zimbábue, Madagascar, PapuaNova Guiné, são alguns dos lugares que ele visitou. Destas peregrinações
surgem bons relatos, nos quais o repórter escreve em primeira pessoa
sobre suas vivências, das mais simples às mais inusitadas. Ao contrário
de Thompson, Veríssimo não consome drogas há algum tempo.
Hoje sou um cara do dia. Acordo às 5h30 todo dia. Graças às
divindades e aos bons mentores, abdiquei da bebida. Nesse meu
corpinho sagrado, álcool não entra mais. Quero oxigenar meu
corpo. Minha onda, agora, é sentir o sangue pulsar, levar oxigênio
aqui pra dentro e eliminar as toxinas.14
Em seus textos, Veríssimo adota um discurso bem humorado, que
condiz com o seu jeito de ser e agir. Em umas de suas andanças ele
navegou pelo Rio Amazonas num daqueles barcos que viajam por
dias seguidos, com gente pendurada em redes.
&'
CAMINHO ILUMINADO
Os gritos dos passageiros eram amortecidos pelo apito do Clívia:
desembarque em Monte Alegre. Na volta, pedi autorização para
saltar. Que cagaço! O aqualoco de plantão aqui pulou de 15 metros
e caiu feito leão-marinho - a platéia eufórica aplaudiu. Mas senti
uma dor de cabeça alucinante.15
Gustavo Abdel Massih Santos conceitua Veríssimo como Gonzo
em seu artigo Arthur Veríssimo: o filho único do Gonzo brasileiro. Inclusive, ele traça comparações nas quais encontra correspondência
dos textos de Veríssimo com as seis principais características do
Jornalismo Gonzo elencadas por Czarnobai.
Atualmente, Veríssimo ganhou um espaço no programa Domingo
Espetacular, da TV Record. Ele apresenta o quadro Planeta Estranho,
no qual faz reportagens sobre seus itinerários exóticos. O estilo Gonzo
também está presente na televisão, com o repórter adotando a mesma
linguagem de seus textos impressos e se posicionando quase sempre à
frente da câmera, muitas vezes para experimentar determinadas
situações, como participar de um ritual, por exemplo.
O paraíso de Chris Simunek
No início da década de 90, Chris Simunek era professor do colegial,
numa escola do Queens, Nova York. Enquanto os “escritores de
reportagens especiais” da década de 60 esperavam o momento de
virarem romancistas dentro de redações, ele esperava esse dia dando
aulas para garotos que tiravam sarro de sua cara, inclusive quando ele
estava de ressaca. “Sempre tinha visto o trabalho em educação como
uma coisa temporária, uma forma de pagar o aluguel até publicar meu
romance ou a minha banda assinar um contrato.”16 Os dias de Simunek
eram sempre tão iguais que até seu metabolismo tinha se adaptado a
uma rotina. “Entre a primeira e a segunda aula, eu tinha quatro
minutos para largar um barro. Todo dia esse ato me trazia um dilema
existencial.”
'
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Pois veja, um pequeno herege tinha cagado no banheiro dos
professores e aquilo ficou ali por três semanas. Toda manhã eu
olhava aquilo, e sabia que tinha algum significado, mas não tinha
certeza qual. [...]. Pra mim, era um marco de quanto eu tinha
progredido em meus 24 anos. [...] Fechei o zíper e mandei pelo
esgoto quatro anos de faculdade mais dois de pedagogia. Saí do
prédio e nunca mais voltei.17
Depois de andar pela cidade por uns tempos e tocar numa banda
com o diretor de arte assistente da High Times, Simunek conheceu
Steve Hager, o editor da revista underground que desde 1974 aborda a
cultura da maconha. Dali a pouco tempo, Simunek estaria visitando
uma plantação de maconha no sul do país para escrever uma
reportagem para a High Times.
Este repórter tem um senso de humor nato; enquanto Thompson fazia
referências a figuras públicas como políticos, jornalistas e atores, Simunek
cita Papa Léguas, James Bond e Capitão Kirk. Seus textos ultrapassam a
temática das drogas para falar de música e do povo estadunidense. Com
uma ironia peculiar, faz suaves críticas à sociedade. Em uma das viagens
que fez à Jamaica, Simunek narra um momento de tensão.
– Fogo queima! – O cara da capa gritou mais uma vez, pro caso de
eu não ter entendido.
Eu limpei suas palavras do meu rosto, olhei pra fogueira de mais
de cinco metros de altura e comecei a pensar: “Jesus, tomara que
eles me dêem uma facada primeiro, e só me joguem no fogo quando
eu já estiver bem morto”.
– Por que vocês vieram? – ouvi uma voz zangada e anônima me
perguntando.
– Estou... ahn... tentando legalizar a maconha...
Não era a melhor resposta, mas, de certo modo, era verdade e,
além disso, eu estava tão apavorado, que fiquei feliz que ainda
tinha palavras, e não bile, me saindo da boca.18
'
CAMINHO ILUMINADO
Além da osmose, personalização e narração em primeira pessoa,
notamos nos escritos de Simunek características presentes na obra de
Hunter Thompson, como uso de drogas e ironia. Mas vale lembrar que
essas características se enquadram no quesito personalização: são
características do autor que impregnam o texto. Chris Simunek obedece,
ainda, a um dos mandamentos de Thompson e que o pessoal da Irmande
Raoul Duke levava ao pé da letra: não se levar a sério.
O camaleão Günter Wallraff
Em meados da década de 80, Günter Wallraff era um jornalista
alemão que buscava um método diferente para apurar suas
reportagens. Foi um alcoólatra numa clínica para deficientes mentais,
porteiro de uma grande organização financeira sob suspeita de práticas
ilegais e um agitador político acorrentado numa praça de Atenas,
distribuindo panfletos que acusavam a ditadura grega de violar os
direitos humanos.
Wallraff ficou conhecido no mundo todo por ser jornalista e ao
mesmo tempo um primoroso ator. O ponto de partida para suas
investigações é viver uma situação para depois contar. Pois, segundo
ele, quem vive e sente alguma coisa em sua própria carne tira
conclusões muito mais rápidas e mais decisivas do que se somente
tivesse escutado ou lido alguma informação a respeito.
Sua empreitada seguinte foi trabalhar como repórter de um jornal
popular, o Bild Zeitung, para mostrar o processo de manipulação das
notícias no veículo com tiragem diária de milhões de exemplares. A
vivência foi descrita no livro Fábrica de Mentiras.
A partir de então, Wallraff decidiu alçar um vôo mais alto e que
foi tido como polêmico e, por isso, lhe rendeu maior notoriedade.
Para demonstrar a situação vivida por milhões de imigrantes, em
especial os turcos, na Alemanha, o jornalista resolveu viver como
um turco. Para esconder o cabelo loiro e os olhos claros, ele adotou
um disfarce, que incluía lente de contato, peruca, bigode e
documentos falsos. Para não levantar suspeitas, criou ainda um
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
falso sotaque, conjugando os verbos de forma equivocada. Criou-se
o personagem Ali.
E assim, Wallraff se propôs a quebrar a frieza da sociedade alemã e
se aventurar pelos porões do subemprego para saber o que um
estrangeiro enfrenta e até onde pode chegar o desprezo humano. A
experiência relatada no livro Cabeça de turco é um exemplo de
Jornalismo Gonzo adotado como forma de questionar a sociedade e
apontar relevantes problemas sociais. De forma inconsciente ou não,
Wallraff produziu uma obra que se encaixa perfeitamente no conceito
de Gonzo que aqui pregamos. A obra abalou as estruturas do povo
alemão e é tida até hoje como um dos marcos da literatura pós-guerra
no país.
Como relatado, o jornalista alemão não se satisfez em acompanhar
os trabalhadores turcos, mas ousou viver como um deles, em um caso
típico de osmose. Sob o disfarce de Ali, entrou de forma ilegal no país,
sujeitou-se a diversos tipos de trabalho, com destaque para suas
ocupações em empresas industriais, nas quais enfrentou desrespeito
às mínimas regras de segurança e a péssima remuneração. Chegou até
a ser cobaia humana de experimentos da indústria farmacêutica. Além
disso, Wallraff demonstrou as precárias formas de atendimento
médico, o menosprezo da Igreja católica alemã e o preconceito da
população de uma forma geral.
A narração em primeira pessoa é adotada em toda obra, de forma
menos intensa, apenas, quando relata histórias de turcos com quem
conviveu. O repórter é o protagonista das ações, e como William Waack
aponta no prefácio da edição brasileira do livro, Wallraff provoca
situações e chega até a armar uma armadilha para demonstrar o
descaso de Adler (um de seus patrões) em entregar trabalhadores
ilegais para a morte lenta.
O texto tem linguagem simples e direta, entretanto, demonstra um
autor de personalidade acusadora, fazendo denúncias e
transparecendo toda a revolta contida, em determinados momentos.
Um exemplo é quando comenta o pronunciamento de Adler, seu patrão,
que diz gostar de trabalhar com os turcos.
'!
CAMINHO ILUMINADO
Trabalhar com os turcos... Explorá-los, isso sim! Obrigá-los a se
esfalfar como escravos até que caiam de cansaço ou estiquem as
canelas. Ele realmente doura a pílula tratando-os de
colaboradores... A palavra deve soar como um bálsamo aos
ouvidos dos massacrados e oprimidos.19
É visível a forma com que deixa transparecer o tom crítico com que
vê a sociedade alemã. Ali desejava ser batizado na Igreja católica, mas
é recusado por um padre de um bairro nobre. “Eu não contava com
isso. É claro que me enganei de endereço. Há ovelhas negras por toda
parte. E aqui, neste subúrbio residencial, onde os ricos desejam ficar
entre os ricos, eu como Ali obviamente não teria vez.”20
Em todo o texto, o autor também demonstra um senso de humor às
vezes irônico, como no caso em que, testando o disfarce de Ali, fala com
um líder da direita alemã e simpatizante do fascismo.
Enquanto Helmut Kohl fazia seu discurso de vitória, aproximeime bastante do palanque. Depois de prestar várias homenagens
aos outros e a si mesmo, ele fez menção de descer. Estive prestes a
oferecer meus ombros para carregá-lo pelo salão numa volta
triunfal. Mas preferi desistir de tal propósito para não sucumbir
sob o peso considerável do chanceler.21
Às vezes Wallraff é ácido, como quando trabalha de motorista e é
impedido de usar o banheiro da casa de seu patrão, que dá a desculpa
de querer evitar doenças. “Sou enxotado como um cachorro. E não há
nenhum local onde eu possa me aliviar. O jardim inteiro é descoberto.
Tenho vontade de dar uma bela cagada no capô do Mercedes, bem em
cima da estrela.”22
E em dados momentos, o humor se manifesta sutilmente.
Para cada hora de trabalho, Keitel embolsa a quantia de 14 a 25
marcos. Ora, normalmente um operário da construção civil
trabalha dez horas por dia o que perfaz a soma de 140 a 250
'"
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
marcos por dia e por trabalhador. Um total de quinhentos
operários resulta em algo entre 70 mil e 125 mil marcos
diariamente. Desse dinheiro Keitel deduz um mínimo para as
despesas com transporte e contabilidade, encargos fiscais e
contribuições sociais. Ou não.23
Ainda se pode notar, na obra de Wallraff, alguns elementos similares
ao Gonzo de Hunter Thompson, como a utilização de epígrafes e o uso
de um pseudônimo, Ali. Portanto, podemos considerar Cabeça de Turco
como Jornalismo Gonzo, em que o autor adotou as características do
estilo, conscientemente ou não, e graças a essa forma atingiu seu
objetivo.
Continuo, porém, sem saber como um imigrante consegue engolir
as humilhações, as hostilidades e o ódio cotidianos. Mas agora
sei o que ele tem de suportar e até onde pode chegar o desprezo
humano neste país. Reflexos do apartheid projetam-se aqui entre
nós – em nossa democracia. Os fatos ultrapassaram todas as
minhas expectativas. De modo negativo, é claro. Em plena
República Federal da Alemanha vivenciei situações que só estão
descritas nos livros de História do século XIX.24
Gonzo em meios audiovisuais
Como atesta Estevam Tavares de Freitas, em seu texto JL e
documentários: interfaces, além de fortes aproximações ético-estéticas
com a realidade contemporânea, o Jornalismo Literário e os
documentários possuem “paralelos e convergências muito
interessantes”.25
Edvaldo Pereira Lima também enxerga a presença das Narrativas
da Vida Real nos documentários nacionais. Em seu artigo Jornalismo
Literário no cinema, ele aponta como exemplos Edifício Master, de
Eduardo Coutinho, Paulinho da Viola – Meu tempo é hoje, de Isabel
Jaguaribe, Nelson Freire, de João Moreira Salles, entre outros.
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CAMINHO ILUMINADO
Como vimos agora a pouco, Arthur Veríssimo faz Gonzo na TV.
Tomando como base a premissa de que há Jornalismo Literário nos
meios audiovisuais, verificamos elementos de Jornalismo Gonzo em
dois famosos documentaristas da atualidade: Michael Moore e Morgan Spurlock.
O “PANFLETÁRIO” MICHAEL MOORE
O estilo incisivo e irônico de Michael Moore o tornou mundialmente
famoso, batendo recordes de bilheteria para documentários e lhe dando
diversos prêmios. Sempre lidando com temas polêmicos, ele é
congratulado por levar à tona temas desprezados pela grande mídia,
mas é chamado por alguns de panfletário, pois dizem que não é preciso
e que direciona o público para a sua interpretação dos fatos.
André “Cardoso” Czarnobai apontou que os programas de televisão
TV Nation e The Awful Truth podem ser classificados como Jornalismo
Gonzo. Edvaldo Pereira Lima argumenta que existem elementos Gonzo,
“na medida em que Moore provoca intencionalmente as reações de
vários personagens de sua narrativa”.26
Ao analisarmos as três principais obras de sua filmografia até o
momento – composta por Roger & Eu, Tiros em Columbine e Fahrenheit
9/11 – examinamos que os documentários contam com uma forte
presença do que pode ser chamado de Jornalismo Gonzo.
Em Roger e Eu (1989), o documentarista retorna a sua cidade natal
(Flint, Michigan) para retratar os efeitos causados pelo fechamento
das fábricas da General Motors, a principal indústria local. Moore
critica a visão neoliberal da globalização, em que empresas buscam
instalar fábricas em países mais pobres por causa da mão de obra
mais barata.
Durante o filme, ele persegue o presidente da General Motors, Roger
B. Smith, na tentativa de convidá-lo a uma visita para ver os efeitos do
desemprego em Flint. Para ilustrar todos os problemas da cidade,
aponta as mudanças ocorridas desde sua infância. Já é bastante
perceptível a ironia e o humor que se consagrariam nas obras seguintes
'$
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Com Tiros em Columbine (2002), Moore ganhou prêmios de melhor
documentário, no Oscar e em Cannes. Ele busca provar a cultura de
armas e violência existente nos Estados Unidos, tomando como base
os dois estudantes que mataram 12 pessoas e depois se suicidaram
numa escola de Columbine. Na época, foi um grande sucesso de público
(o maior para o gênero) e muito bem recebido pela crítica.
É o caso em que encontramos mais elementos do Jornalismo Gonzo.
Ao contrário da maioria dos documentaristas, Moore está sempre
exposto em frente às câmeras, agindo como um protagonista de sua
história e adotando por diversas vezes uma narrativa em primeira
pessoa. Logo no começo do filme, usa sua história pessoal como exemplo
da relação do povo estadunidense com as armas.
O jeito irônico e contestador de sua personalidade não só
transparece na narração, mas até na forma em que edita as cenas. Ele
liga, por exemplo, a fala de uma pessoa afirmando que um país não
pode atirar mísseis para outro, a não ser em caso de ataque, a uma
seqüência de cenas que mostra diversas intervenções americanas durante o século XX. E a trilha sonora neste momento é What a wonderful
world, na voz de Frank Sinatra. Nada mais irônico.
A forte crítica a um programa de televisão que cobre ações
policias, intitulado Cops, também é feita com bastante ironia.
Primeiro, Moore questiona um policial se não se pode prender
alguém porque ele não consegue enxergar o letreiro de Hollywood
em razão da poluição. Depois, ele conversa com um dos produtores
do programa e pergunta se não seria possível focá-lo nas causas da
violência ao invés da própria criminalidade. E por fim, Moore encena
como seria o programa se fosse chamado Coorporate Cops, algo como
“Policiais de colarinho branco”.
Ao verificar que no Canadá as pessoas não costumam trancar suas
portas, Moore exclama: "Eu como um americano com três trancas na
porta acho isso um pouco confuso". Em outra ocasião, ao entrevistar
uma professora de uma escola em Flint (sua terra natal e presença
constante em sua obra) em que um menino de seis anos atirou em uma
colega de classe, se emociona e consola a entrevistada.
'%
CAMINHO ILUMINADO
Os dois pontos altos do filme são justamente aqueles mais
conceituáveis como Gonzo. Ao lado de duas vítimas de Columbine,
Moore procura a direção do K-Mart, uma grande rede de lojas, com o
objetivo de questionar a venda de munição para armas de fogo. Após
longa espera e até convocar a imprensa, eles conseguem que a loja
deixe de vendê-la.
O outro momento forte é quando Moore deixa transparecer de forma
ainda mais nítida seu jeito incisivo e confrontador, mas sempre
mantendo a calma e um tom de voz ameno. Ele visita a casa de Charles
Heston, ator aposentado e presidente da NRA (National Rifle Association ou, numa livre tradução, Associação Nacional do Rifle). Ao inquirir
Heston com várias perguntas e contestar suas respostas, em especial
sobre porque seria tão alto o número de mortes por armas de fogo nos
Estados Unidos, ele é abandonado durante a entrevista na própria
casa do ator. Antes de ir embora, Moore deixa de lembrança a foto da
menina assassinada em Flint.
No final do filme, Moore resume sua sensação de viver em “uma
América que vive e respira o medo”. E encerra jogando boliche* e
dizendo: “Sim, é um momento glorioso para ser americano”. Sobe o
som com What a wonderful world, desta vez cantado por Joey Ramone.
Ironia suprema...
Em Fahrenheit 9/11 (2004), Moore examina os EUA depois dos
atentados de 11 de setembro, criticando a administração do presidente
George W. Bush e apontando laços entre as famílias Bush e Bin Laden.
Tornou-se o primeiro documentário a ganhar a Palma de Ouro no
Festival de Cannes, desde 1956, e a maior bilheteria para um filme do
gênero.
Neste documentário, o cineasta se mostra mais contido, assumindo
em poucos momentos um papel de protagonista e a narrativa em primeira
pessoa. Ainda assim, a narração é freqüentemente feita com ironia e
contestação; os elemento mais característicos de sua personalidade.
Os dois jovens responsáveis pelo massacre de Columbine jogaram boliche
antes de matarem seus colegas. Moore faz uma alusão àqueles que desviam as
verdadeiras razões da chacina e culpam filmes, músicas e até mesmo o boliche.
*
'&
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
O presidente Bush é seu alvo favorito durante todo filme. Moore
começa relatando os problemas enfrentados no primeiro ano de
governo e exclama: “Com tudo dando errado ele fez o que qualquer um
faria. Saiu de férias.”
Na cena seguinte, exibe um Bush atônito, em uma visita a uma
escola, no momento em que acaba de receber a notícia do atentado
contra o World Trade Center. As imagens da reação do presidente são
fortes: sete minutos parados sem fazer nada. “Sem saber o que fazer,
sem ninguém para lhe dizer o que fazer, nem mesmo o Serviço Secreto
disponível para lhe dar proteção, o sr. Bush continuou sentado e
continuou a ler My pet goal para as crianças”, descreve. O
documentarista especula sobre o que o presidente refletia no momento:
“Enquanto ele sentava naquela classe, teria pensado que deveria ter
trabalhado mais? Que deveria ter feito pelo menos uma reunião para
discutir sobre terrorismo com o chefe de contraterrorismo? Ou por
que cortou a verba de combate ao terrorismo do FBI? Ou talvez devesse
ter lido o relatório de segurança que recebeu em 6 de agosto de 2001,
dizendo que Osama bin Laden planejava atacar a América seqüestrando
aviões?” Sua ironia dita o tom de toda narrativa.
Nos momentos em que Moore aparece, está sempre escancarando seu
jeito peculiar de abordar os outros. Preocupado com o fato de que os
congressistas não haviam lido o Patriotic Act (Decreto Patriota) antes de
votá-lo, ele resolve passar com um carro de som em frente ao Congresso
fazendo a leitura. Ou então, no mesmo Congresso, aborda políticos
propondo o alistamento dos filhos deles para servirem no Iraque.
Atente que não estamos afirmando que os documentários de Michael
Moore podem ser absolutamente taxados como Jornalismo Gonzo.
Apenas mostramos que possuem as características do estilo e que em
muitos momentos se encaixam perfeitamente.
O COBAIA MORGAN SPURLOCK
Curiosamente, outro documentarista que fez bastante sucesso
recentemente também possui características muito próximas do
''
CAMINHO ILUMINADO
Jornalismo Gonzo. Morgan Supurlock tornou-se célebre em seu
documentário Super Size Me (2004), no qual encara uma dieta de 30
dias comendo apenas no McDonalds, com o objetivo de provar os
malefícios deste tipo de alimentação. Como resultado, ganhou 11 quilos,
apresentou uma série de disfunções no organismo e desenvolveu alguns
sintomas de depressão.
Ele é o protagonista de todo o documentário, com a câmera quase
sempre mirando em sua direção. Muitos notam em Spurlock uma
influência de Michael Moore. A narrativa também é feita em primeira
pessoa e é composta por informações, depoimentos de especialistas e,
principalmente, depoimentos dele, muitas vezes recheados de humor
e ironia.
Um exemplo típico ocorre quando ele experimenta pela primeira
vez o pedido Super Size, ou seja, o tamanho máximo de todos
acompanhamentos. Depois de dez minutos comendo a refeição, ele mal
agüenta continuar e brinca:
Agora é a parte do lanche que você fica com McDor de estômago.
Começam os McGazes, os McRoncos na barriga... Parece um
McTijolo e a McDor de estômago começa. Alguns McGases estão
se formando. Meu braço está pesado. Estou McSuando. Meu braço
está com McFormigamento devido ao açúcar que está entrando.
Estou meio McLouco.
E logo em seguida ele vomita no chão, com a câmera focalizando.
As piadas recheiam o documentário. Quando ele verifica que perdeu
peso – na verdade havia perdido massa muscular –, exclama: “Perdi
meio quilo. Vamos comer alguma coisa!” Ou quando o lobista de diversas
indústrias alimentícias admite que elas são parte do problema. “Acho
que estamos fazendo algum progresso”, comemora com ironia. Ou ainda
enquanto filma suas tentativas de falar com algum representante do
McDonalds e faz gracinhas para a câmera enquanto aguarda no telefone.
Spurlock também se mostra bastante crítico, como quando verifica
a alimentação nas escolas. A responsável fala que o refeitório oferece
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
de tudo e cabe às crianças e jovens escolherem. “É aí que as escolas
fecham os olhos. A aluna com as batatas fritas ‘provavelmente’
comprou um saco de comida de verdade. A dos saquinhos de batata
‘provavelmente’ dividiu com alguém. Longe dos olhos não existe
preocupação”, constata.
No final do filme, ele faz algumas considerações expressando
claramente a sua opinião a respeito da questão. E como trilha sonora,
uma música composta por ele mesmo, cuja letra debocha do
McDonalds.
Super Size Me rendeu a Spurlock um prêmio no Festival de Sundance
e, coincidentemente, seis semanas depois o McDonalds deixou de vender
os tamanhos Super Size. Podemos analisar que o documentário é um
exemplo de Jornalismo Gonzo em um meio audiovisual. Pois ele vai
além dos elementos inseridos por Michael Moore. Spurlock aparece
durante todo o filme como protagonista, adotando a narrativa em
primeira pessoa e com um texto (em seu off ou em suas falas),
demonstrando uma personalidade crítica e bem humorada.
Notas
Ribeiro, 2005, p. 24
id., p. 39
!
ibid., p. 36
"
Entrevista concedida em 02/10/2006
#
id.
$
Realidade, nº 19, outubro de 1967, p. 35
%
id., p. 48
&
Silveira, 1980, p. 7
'
id. p. 43
ibid., p. 109
Entrevista concedida em 10/10/2006
Nem John Wayne Matou Tanto Indio Na Cidade Baixa, Irmandade
Raoul Duke, 2002
!
Editora DBA, 2005
CAMINHO ILUMINADO
"
Revista Trip, 2005
#
apud Santos, 2006, p.15
$
Simunek, 2002, p. 15
%
id., p. 18
&
ibid., p. 175
'
Wallraff, 1990, p. 242
id., p. 62
ibid., p.23
ibid., p. 182
!
ibid., 59
"
ibid., 20
#
Freitas, 2006
$
Entrevista concedida em 30/10/2006
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
4. Trilhando o Caminho
Iluminado
O Jornalismo Gonzo na pós-modernidade
!
CAMINHO ILUMINADO
"
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
O saber é um enunciado;
na escritura, ele é uma enunciação.
(Roland Barthes)
O momento em que surge o Jornalismo Gonzo nos Estados Unidos
acontece em uma época de ruptura de conceitos, como contextualiza
Fredric Jameson, que vislumbra uma quebra radical no fim dos anos
50 e início dos 60. Jameson denomina esta conjuntura como pósmodernismo.
Como sugere a própria palavra, essa ruptura é muito
freqüentemente relacionada com o atenuamento ou extinção (ou
repúdio ideológico ou estético) do centenário movimento moderno.
Por essa ótica, o expressionismo abstrato em pintura, o
existencialismo em filosofia, as formas derradeiras da
representação no romance, os filmes dos grandes auteurs ou a
#
CAMINHO ILUMINADO
escola moderna de poesia (como institucionalizada na obra de
Wallace) são agora vistos como a extraordinária floração final do
impulso do alto modernismo que se desgasta e se exaure com
essas obras. Assim, a enumeração do que vem depois se torna, de
imediato, empírica, caótica e heterogênea […]1.
O Jornalismo Gonzo bebe desta fonte. Absorve o movimento de
contracultura e tem as mesmas raízes. Por isso, pode-se dizer que se
enquadra como uma ruptura com o jornalismo dito “objetivo”. É uma
nova concepção de jornalismo e com proposta e forma diferentes.
Este tipo de jornalismo ao qual damos o nome de Objetivo foi concebido
de forma gradativa a partir do final do século XIX, com inspiração nos
preceitos da 1ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que garante
a liberdade de imprensa, assim como na sistematização da ciência pela
física mecânica, pregando a necessidade de comprovação científica. O
professor de jornalismo e doutor em Psicologia Celso Falaschi visualiza, a
partir daí, a “sistematização da imprensa, com um modelo de produção
jornalística que não possa ser questionado por essa ciência e se estabelecem
mecanismos para que as notícias não possam ser contestadas”. 2
É desta maneira que “o jornalismo de reportagem substitui o
jornalismo de crônica”3, com a adoção prática de uma nova fórmula: a
pirâmide invertida* e o objetivo de descrever os fatos e transmitir as
informações com objetividade, isenção e imparcialidade, sempre
ouvindo todos os lados envolvidos no assunto, aparentando que o fato
foi integralmente descrito. Formatou-se uma clara divisão no espaço
para as notícias e para a emissão de opinião. O caráter científico ainda
exigia que o jornalismo cumprisse outras características para ser
considerado válido: atualidade, factualidade, veracidade, concisão,
proeminência, proximidade e universalidade.
De acordo com José Marques de Melo, é estabelecida uma divisão a
respeito dos gêneros jornalísticos entre o Informativo – composto por
Técnica usada na redação de notícias que prioriza as informações mais importantes
no primeiro parágrafo, chamado de lead (ou lide), respondendo à questão “Quem fez
o que, quando, onde, como e por que?”
*
$
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
notas, notícias e reportagens e que predomina nas páginas dos jornais
– e o Opinativo, que compreende artigos, editoriais, colunas, crônicas
e charges.
A Primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918, expande os referidos
moldes da prática jornalística e dá início a um processo de consolidação
global destes parâmetros. É quando “a imprensa assimila os efeitos
das profundas mudanças na sociedade e nas relações dos povos com
os meios de comunicação de massa”4.
Somente na década de 50 esse Jornalismo Informativo é implantado
no Brasil, por meio do Diário Carioca. Logo, o Jornal do Brasil adotou o
modelo, que se tornou teoria nas faculdades e se expandiu para
praticamente todos os jornais impressos. Enfim, o Jornalismo
Informativo era de praxe e consagrado no País.
O mundo vive ainda um terceiro momento em que o Jornalismo
Informativo se expande e se enraíza de forma ainda mais ampla, em
conseqüência da queda de tiragem e uma crise de vendagem dos jornais no
final dos anos 70, apontados pelo Projeto Ruth Clark como fruto da
popularização da televisão. A solução proposta é adotada de forma exemplar pelo periódico estadunidense USA Today, que racionalizou os espaços
de texto, reduziu as explanações, narrativas e pontos de vista, e amenizou
as interpretações e aprofundamentos das questões em detrimento da
prevalência imagética. O sucesso deste modelo ecoou por diversos jornais
do mundo durante a década de 80, inclusive no Brasil, e consolidou de uma
vez por todas a prática objetiva originada no século anterior.
CRÍTICAS AO MODELO
Apesar de tão antigos, estes conceitos continuam sendo
empregados nos dias de hoje na imprensa brasileira. O Jornalismo
Informativo é o eixo central dos grandes jornais. É um jornalismo
que segue didaticamente o que está estabelecido nos famosos
manuais de redação, que têm como objetivo padronizar o estilo do
texto produzido e, de certa forma, neutralizar a questão autoral,
com artifícios que contrariam a individualidade de quem escreve. É
%
CAMINHO ILUMINADO
o caso do Manual de Redação e Estilo, do jornal O Estado de S. Paulo,
que propõe: “faça textos imparciais e objetivos” e “não exponha
opiniões”5.
A respeito dos manuais, Ciro Marcondes Filho sentencia que eles
representam a estruturação dos códigos lingüísticos criados pelas
empresas de comunicação. Segundo ele, o que ocorre é uma
determinação de princípios básicos de estilo e uma radical redução da
complexidade lingüística.
A doutora em comunicação Liriam Sponholz verifica a presença do
termo objetividade “dentro das redações, salas de aula e mesas de
bar”6. Ela cita a pesquisa de Hohlfeldt que mostra que o termo
objetividade é o mais citado em uma análise de 21 livros a respeito de
redação jornalística.
A partir dessa perspectiva, cria-se a ilusão de que aquilo que se está
reportando é a verdade absoluta, quando na verdade trata-se de uma
representação da realidade sob a ótica do jornalista. O filósofo francês
Roland Barthes explana que tudo que envolve a linguagem tem sua
força de representação, e que o real não é representável. “Desde os
tempos antigos até as tentativas de vanguarda, a literatura se afaina
na representação do real”7. Barthes também acredita que o homem
possui dificuldade para lidar com isto. “Que não haja paralelismo entre o real e a linguagem, com isso os homens não se conformam, e é essa
recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que produz numa
faina incessante, a literatura”8.
Outro filósofo francês, Michel Foucault, segue uma linha de
pensamento semelhante. Ele afirma que as verdades são variáveis e
não universais. Além disso, a verdade é essencialmente ligada ao poder,
pois não existe fora dele ou sem ele. O filósofo argumenta que cada
sociedade tem seu próprio regime de verdade. Em nossa sociedade, ele
está centrado na forma do discurso científico e nas instituições que o
produzem, o que explica a grande valorização do Jornalismo
Informativo.
Esses conceitos são plenamente válidos no jornalismo. Por mais que o
jornalista se esforce na apuração e na redação do texto, de forma a ouvir o
&
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
maior número de fontes possíveis e escrever buscando ser fiel aos fatos e
tentando não se deixar influenciar por qualquer questão, o texto produzido
nada mais será do que um trabalho único e essencialmente pessoal daquele
jornalista. Ainda que tenha seguido à risca os preceitos do jornalismo
dito objetivo, do manual de redação, o resultado será uma reprodução
sob um ponto de vista individual dos fatos abordados.
Ora, apesar da tentativa de se anular a singularidade de cada
jornalista, como um trabalho meramente técnico, algo como um sistema
fabril de linha de produção, estamos diante de um trabalho intelectual,
e como tal, este não pode ser feito sem a influência da formação cultural
de um indivíduo, seu histórico pessoal, sua personalidade e todas as
suas características que tornam cada ser humano tão diferente do outro.
Se uma mesma pauta fosse encaminhada para cem jornalistas, o
resultado seria certamente cem reportagens diferentes. Ainda que
algumas se aproximassem, outras seriam totalmente destoantes, mas
efetivamente nenhuma seria igual. Esta é uma condição humana que
não pode ser ignorada. Mesmo com a pirâmide invertida e o culto à
objetividade tolhendo a criatividade e limitando a capacidade de aferir
a realidade do jornalista.
E, no entanto, tenta-se negar esta condição ao se pregar termos
como objetividade, isenção e imparcialidade, ao mesmo tempo em que
prefere ignorar a subjetividade de cada um de nós.
Ao consultar teóricos que dissertam a respeito da práxis jornalística,
verifica-se que esta subjetividade e opinião intrínsecas a uma produção
intelectual de cunho individualizado são admitidas. O Novo Manual
de Redação da Folha assume a inexistência da objetividade no
jornalismo. “Ao escolher um assunto, redigir um texto e editá-lo, o
jornalista toma decisões em larga medida subjetivas, influenciadas
por suas posições pessoais, hábitos e emoções”9.
Só que ao mesmo tempo em que reconhece essas características, o
Manual taxa que se deve buscar “ser o mais objetivo possível”,
encarando o fato com “distanciamento e frieza”10. O que é uma
contradição, já que está se pregando que se deve tentar anular a
subjetividade, adotando uma postura de maquiar esta condição. As-
'
CAMINHO ILUMINADO
sume-se a existência da subjetividade ao mesmo tempo em que se tenta
negá-la. E isto não se torna uma referência clara para o leitor, que
absorve a informação maquiada com os conceitos de objetividade e
imparcialidade.
Liriam Sponholz enquadra a discussão a respeito da objetividade como
uma discussão para a Teoria do Conhecimento. Para ela, primeiramente
é importante ressaltar que durante o processo de observação, no qual o
jornalista toma conhecimento das informações e apura os acontecimentos,
já existe um processo individual de contato com a realidade sempre
seletivo, perspectivo e construtivo, afinal “é impossível conhecer a
realidade inteiramente, pois nosso sistema nervoso e a nossa capacidade
de percepção são limitados”11. E no processo de redação, ou seja, quando o
jornalista transforma o que foi verificado em signos, analisa Liriam, o que
o texto contém é uma construção da realidade, o que não significa que o
escrito não precisa ou não pode ter relação com o observado.
Cremilda Medina também enfatiza a importância do “real/
imaginário” do próprio repórter em sua produção. Para ela, a exigência
de um comportamento objetivo “tapa o sol com a peneira”, porque
nunca se evita a interferência do eu subjetivo a partir do momento que
cada ação compreende uma linguagem verbal ou não-verbal que é
“comprometida com o real-imaginário de cada um”12.
Edvaldo Pereira Lima trabalha com a questão em seu livro Páginas
Ampliadas, ao tratar do livro-reportagem. Ao analisar o tema, o autor
aponta a objetividade como mito.
Não pode haver neutralidade, imparcialidade, verdade absoluta,
quando os mecanismos de captação do real são condicionados
por uma série de fatores pessoais – do repórter, sua formação, sua
cosmovisão – e conjunturais – da empresa jornalística, seu escopo
ideológico, seus comprometimentos nos planos econômico,
político, social –, que limitam a compreensão do mundo.13
Na visão de José Marques de Melo, a objetividade converteu-se em
camisa-de-força para o desempenho do jornalista. “Na medida em
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
que sua feição determinante passa a ser a economia de palavras,
imagens e sons, o trabalho do jornalista burocratiza-se rapidamente”14.
Falaschi reforça a inexistência destes conceitos. “Com o estudo
evolutivo da ciência, é provado pela física quântica que mesmo que
você tenha a intenção, não consegue ser imparcial nunca, mesmo um
cientista” 15. Para ele, usar conceitos como estes para falar sobre
jornalismo nos dias de hoje é algo ultrapassado, pois até nas Ciências
Exatas esses conceitos não são aplicáveis.
No entanto, mesmo admitindo que a prática do jornalismo informativo
persegue uma utopia, um objetivo que não vai ser alcançado, os jornais
continuam perpetuando esta forma como correta e negando quaisquer
alternativas.Talvez esse seja um dos motivos da crise do jornal, em especial do impresso, tema discutido na atualidade por muitos autores.
CRISE DOS JORNAIS
O acesso à informação foi transformado com o avanço da Internet,
pelo desenvolvimento tecnológico e a popularização de meios de
comunicação eletrônicos. Muitos taxaram que esses elementos
premeditavam a morte dos jornais, incluindo o poderoso dono da
Microsoft, Bill Gates, e Philip Meyer, autor do livro The Vanishing Newspaper, que prevê para o ano de 2043 o fim dos jornais nos Estados Unidos.
O Congresso Brasileiro de Jornais, evento realizado pela Associação
Nacional de Jornais (ANJ), em agosto de 2006, se propôs justamente a
discutir o futuro do veículo. Os especialistas que deram palestras no
congresso concordam que a extinção dos jornais não deve ocorrer,
porém, afirmam que são necessárias mudanças para lidar com as
quedas de leitura e circulação*.
O presidente da Associação Mundial dos Jornais (WAN), Timothy
Balding, assegurou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo que o
A questão da queda de circulação e leitura dos jornais é polêmica, pois existem
muitas divergências a respeito. O Congresso Brasileiro dos Jornais de 2006 aponta
que houve um aumento de 4,1% da circulação e 12,7% de arrecadação publicitária,
durante o ano de 2005. Nestes termos, os dados indicariam o final da crise.
*
CAMINHO ILUMINADO
impresso deve saber como “invadir” o espaço da Internet. Mas não só
isso, para ele “os jornais têm que se fixar na seleção criteriosa das
matérias e no aprofundamento dos temas”16.
Na mesma reportagem, o consultor de mídia Carlos Alberto Di
Franco salientou o papel social do jornal e o desafio de publicar uma
informação aprofundada e organizada. “O jornal precisa se reinventar.
Ele ainda é uma máquina pesada e burocrática, que ainda caminha
numa velocidade que não é a do mundo digital”17, constatou.
Como se nota nestas declarações, a crise dos jornais não se dá apenas
na concorrência com outros meios ou por questões gráficas e estéticas
– no que se refere ao formato atrativo do veículo –, mas também em
relação ao conteúdo. E nesse aspecto, Falaschi é categórico a respeito:
“Existe realmente uma crise de qualidade de texto na imprensa
brasileira. Não há a menor sombra de dúvida de que atualmente o
texto está muito pobre.”18
Em sua tese de doutorado, Identificação de Narrativas e características
criativas no jornalismo impresso diário brasileiro, Falaschi analisou, durante 16 dias do ano de 2004, 11 jornais dentre os 15 de maior circulação
do País*. A partir da análise da qualidade do texto e da presença de
Jornalismo Literário nos veículos, ele constatou que em apenas três
veículos (Correio Brasiliense, O Estado de S. Paulo e Zero Hora) pode-se
constatar um investimento sistemático na produção de reportagens
cativantes com freqüência diária. Do total da amostra coletada em todos
os 11 jornais, estes três veículos representam 78,2% de todas as
reportagens que preencheram os requisitos do Jornalismo Literário.
A partir desta constatação, ele verificou que “a prática do Jornalismo
Literário na imprensa escrita diária vem se ampliando lenta, mas
consistentemente”.19 Ainda assim, encontra-se aquém do ideal.
Entre os fatores apontados por Falaschi para a baixa qualidade dos
textos da imprensa brasileira, os mais evidentes são a consagração do
Em casos de jornais pertencentes a uma mesma empresa, foi descartado o de
menor circulação. Por exemplo: no caso das publicações do Grupo Estado, O Estado
de S. Paulo e o Jornal da Tarde, o último foi desconsiderado, já que muitas reportagens
são reproduzidas em ambos.
*
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
modelo estadunidense de jornalismo “objetivo” e os resquícios da
censura prévia à imprensa decretada pelo AI-5. O professor ressalta
ainda outros aspectos importantes e que nem sempre são levados em
consideração. (a) A chegada tardia da imprensa e das faculdades de
comunicação ao Brasil, o que nos deixou atrasados em relação a outros
países no que se refere ao desenvolvimento da imprensa. (b) A
dificuldade de acesso ao ensino superior público ou privado de qualidade,
questão atrelada ao modelo educacional baseado na repetição de
conteúdo. (c) A adoção de uma estrutura de ensino no qual o jornalismo
é parte fragmentada do âmbito da Comunicação Social, o que acarreta
em uma falta de identidade com a profissão. (d) A interferência do acordo
MEC-USAID, via CIESPAL (Centro Internacional de Estudos Superiores
de Comunicação para a América Latina), que importou o modelo
estadunidense e impôs exigências que limitam a base teórica no campo.
(e) A falta de estudos mais detalhados e prolongados sobre os gêneros
jornalísticos. E por fim, (f) baixos investimentos das empresas
jornalísticas na melhoria de qualidade editorial de seus produtos.
A sucessão destes fatores, fruto da concentração dos poderes político,
econômico e jornalístico nas mãos de alguns grupos ou famílias,
inviabilizam a formação de massa crítica extensa e uniforme. Somado
a isso, um ambiente de trabalho que não estimula a criatividade do
jornalista, em virtude de uma jornada exaustiva, baixos salários e
outros componentes, Falaschi detecta uma conjutura que só poderia
desencadear em uma crise da qualidade do texto. “As pesquisas
realizadas por esta tese apontam que a maioria dos jornais avaliados
continua presa ao jornalismo declaratório, baseado no anteriormente
citado modelo norte-americano de Jornalismo Informativo, sem
investigação e sem opinião e, ainda, com textos concisos, muitas vezes
até telegráficos.”20
Gonzo: enriquecimento do jornalismo
Ao analisarmos todo este contexto aqui descrito, verificamos que o
jornalismo brasileiro passa por uma crise de criatividade e, portanto,
!
CAMINHO ILUMINADO
qualidade de texto. Ainda assim, os maiores jornais do país insistem
na prática do Jornalismo Informativo, que se baseia em conceitos
empíricos e que descarta a subjetividade do jornalista, o que não
significa que tenha menos valor que outros gêneros jornalísticos.
A queda de qualidade de texto, fruto dos preceitos do Jornalismo
Informativo, empobrece o uso da linguagem e afasta o leitor interessado
em um texto que além de informativo seja prazeroso. O Jornalismo
Literário e o uso de técnicas criativas de narrativas são, nesse sentido,
uma maneira de solucionar este problema e desenvolver a prática
jornalística. Até dentro da perspectiva de ampliar a circulação, o
aumento de qualidade no texto jornalístico está atrelado e produz
efeitos positivos.
Em um artigo publicado no site TextoVivo*, Edvaldo Pereira Lima
dá exemplos dentro de grandes jornais em que a exploração de uma
narrativa criativa alavancou a vendagem de edições e obteve respostas
satisfatórias de leitores. Casos do Atlanta Journal, The Sun (de Baltimore) e The San Diego Union-Tribune, os três veículos investiram em
séries de reportagens sobre determinados temas com resultados
extraordinários.
Lima recorre, então, a uma pesquisa intitulada The Impact Study of
Readership, realizada em 2001 pelo prestigiado Readership Institute
(instituição fundada e mantida em conjunto pelo Media Management
Center da Northwestern University, pela American Society of Newspaper Editors e pela Newspaper Association of America, a entidade
representativa dos jornais norte-americanos). O objetivo era
compreender o comportamento de leitores de jornais e propor medidas
estimulantes. As conclusões apontam que
o estilo narrativo aumenta a satisfação do leitor na cobertura de
uma variedade enorme de áreas, incluindo-se entre elas a política,
os esportes, a ciência, a saúde, o lar e a gastronomia. Além disso,
uma boa quantidade de matérias no estilo narrativo melhora a
percepção da marca por parte do consumidor, tornando o jornal
*
"
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
mais fácil de ler. [...] Os jornais que apresentam um número maior
de matérias narrativas são vistos como mais honestos, divertidos,
inteligentes, presentes e mais afinados com os valores dos leitores.
[...] As mulheres, em particular, respondem bem ao estilo
narrativo.21
Com essas considerações em vista, a pesquisa aponta como
recomendação aos jornais a escrita de mais matérias com viés literário
em lugar do estilo da pirâmide invertida. A “causa” do Jornalismo
Literário é endossada ainda pela Universidade de Harvard. Neste início
do século XXI, a mais tradicional universidade dos EUA passou a
organizar o Nieman Program on Narrative Journalism, sob a direção de
Mark Kramer, e com diversos projetos na área desenvolvidos
paralelamente, assim como a realização de um concorrido Congresso
de Jornalismo Narrativo, realizado anualmente.
O jornalista Warren Watson ainda acredita que o uso dessas
narrativas possibilita contar histórias complicadas, permitindo aos
leitores “descobrirem os sentidos de suas vidas”, e tem um “profundo
e positivo efeito sobre a motivação nas redações”22. Ele explica que o
prazer de leitura vai cativar o leitor e fazer com que este encontre
tempo para ler algo que julga ser interessante. Além disso, é uma forma
de estabelecer uma conectividade com o leitor que os jornais sempre
almejaram, mas que o Jornalismo Informativo nunca permitiu.
Na mesma linha de pensamento, Falaschi defende que um
jornalismo de melhor qualidade poderá ajudar a perceber a nossa
sociedade de maneira mais ampla, real e transformadora.
Um jornalismo que não seja apenas olhos e ouvidos da sociedade,
mas, principalmente, a tribuna de debates e sugestões que deve
ser um jornalismo democrático e, portanto, ético e cidadão!
Exercido mediante as Narrativas da Vida Real, ou Narrativas da
Realidade, Narrativas Criativas de Não-ficção, de um jornalismo
de qualidade, enfim criativo!23
#
CAMINHO ILUMINADO
E dentro das possibilidades a serem exploradas está o Jornalismo
Gonzo, como o próprio Falaschi reconhece em entrevista. “É um tipo
de jornalismo que podia ter se consolidado no Brasil, pois somos um
povo muito mais aberto a esse experimentalismo, especialmente a
questão bem-humorada, do que os americanos.” Para ele, há espaço
para o Jornalismo Gonzo na grande imprensa. Assim como em um
veículo específico nessa linha, “em que o povo brasileiro possa se
reconhecer”, e cita como exemplo o sucesso da irreverência do Pasquim
durante a ditadura. “É uma outra maneira de se tratar os assuntos na
sociedade”, assegura.
Em uma simples e aleatória análise de reportagens de jornais
brasileiros, pudemos verificar algumas que quase se enquadrariam no
estilo Gonzo. Isso porque apesar de haver uma imersão profunda do
repórter, que se encaixa no conceito de osmose, e esta participação
ativa estar expressa no texto, a narrativa não é feita
predominantemente em primeira pessoa, o repórter não expõe seus
sentimentos e sensações em relação a experiência nem deixa
transparecer, explicitamente, elementos de sua personalidade.
No caderno Cidades de 4 de abril de 2006, do jornal O Estado de
S.Paulo, o repórter Fábio Mazzitelli conta em três páginas sobre o
período em que trabalhou como agente educacional da Febem. O texto
corresponde a algumas características do Jornalismo Literário e quase
pode ser caracterizado como Gonzo. O repórter fez uma osmose com o
tema tratado e há momentos em que a narração é na primeira pessoa,
mas apenas para situar algumas ações tomadas por ele e nunca com
enfoque na experiência em si. Além disso, o repórter não se coloca
como protagonista da história e nem se pode perceber elementos de
sua personalidade explícitos no texto.
Outro caso em que algumas características do Jornalismo Gonzo
estão presentes é a reportagem de Jason Deparle. Originalmente veiculada
no The New York Times foi traduzida e publicada no caderno Aliás, do
mesmo O Estado de S.Paulo, do domingo 3 de setembro de 2006. O repórter
inicia o texto revivendo suas memórias de infância a respeito de uma
visita à cidade de New Orleans. Logo ele retorna ao tempo presente,
$
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
para descrever a situação da cidade um ano após o furacão Katrina tê-la
destruído. Apesar da narração ser feita em alguns momentos na primeira
pessoa e do começo do texto ser bastante pessoal, não se trata de uma
reportagem classificável como Gonzo. Isso porque o foco na primeira
pessoa e o protagonismo do autor não são verificáveis na maior parte
do texto, que dá mais espaço a outros personagens.
No meio televisivo nacional, às vezes são constatadas reportagens
com elementos de Jornalismo Gonzo. O Fantástico, da Rede Globo,
apresenta o quadro Profissão Repórter que, simultaneamente à exibição
da reportagem, busca retratar os desafios de jovens jornalistas para
produzi-las. Muitas vezes é possível verificar nesse quadro elementos
de Gonzo. Os repórteres têm uma participação e visibilidade mais
presente na história e chegam até a vivenciar situações diferentes em
uma espécie de osmose. É o caso da reportagem exibida no quadro do
domingo 8 de outubro de 2006, no qual a repórter Julia Bandeira passa
uma hora como lixeira pelas ruas de São Paulo. Ela descreve suas
sensações durante e após a experiência. Ainda assim, não podemos
tipificar como um exemplo de Jornalismo Gonzo, pois esse
protagonismo ocorre em um curto momento da reportagem, assim
como a narrativa em primeira pessoa e a “personalização” da
narrativa.
Esses casos estão aqui descritos não para retratar a presença do
Jornalismo Gonzo nos veículos de comunicação nacionais, pois,
como vimos, tratam-se de situações que poderiam se encaixar como
“semi-gonzo”, ou seja, não atendem plenamente às características
conceituais do estilo. Mas pretendemos mostrar como existem
brechas para a prática, que tornam um assunto mais interessante
para o leitor ou espectador sob outra angulação. Só não sabemos se
as reportagens não possuem todos os elementos do Jornalismo
Gonzo por desconhecimento do repórter ou por causa ainda de uma
restrição do veículo, que não ousou permitir tamanha liberdade ao
jornalista.
%
CAMINHO ILUMINADO
Diferentes paradigmas
Em encontro às afirmações que criticam a exarcebada prática do
Jornalismo Informativo em detrimento ao Jornalismo Literário, mais
especificamente o Gonzo, e ao conceito de ruptura pós-moderno tratado
no começo deste capítulo, verificamos que os dois estilos jornalísticos
remetem a diferentes paradigmas conceituais.
Demonstramos que historicamente o Jornalismo Informativo foi
concebido em meio a um contexto de valorização da necessidade de
comprovação científica, propagado pela física mecânica. Por isso, a
presença recorrente de termos como imparcialidade, isenção e
objetividade.
Contudo, em nosso atual momento contemporâneo, o paradigma
vigente é outro, com concepções inspiradas pela física quântica. De
meados da década de 50 até os dias atuais, a ciência passa por essa
transformação e teorias antes tidas como verdades absolutas são
derrubadas. Dessa forma, termos outrora recorrentes, como os
supracitados “imparcialidade”, “isenção” e “objetividade” tornam-se
obsoletos em detrimento da valorização da subjetividade e da
relatividade.
O Jornalismo Gonzo – e o Jornalismo Literário de uma forma
geral – assume estes novos termos explicitamente e toma como
princípio do seu fazer jornalístico. É, por assim dizer, uma nova
concepção de jornalismo e que tem por base princípios
contemporâneos. Um jornalismo que não se impõe como verdade
absoluta, mas que deixa claro o caráter autoral e pessoal das
informações transmitidas.
Obviamente, esta é uma questão mais complexa, mas se
analisarmos toda esta obra e os autores aqui citados, contemplamos
estas diferenças tão profundas. E é por isso que defendemos o uso do
Jornalismo Gonzo, não da forma discreta e restrita como ainda é
feito, mas com espaço em todos os veículos de comunicação, em especial os jornais. Assim estaremos valorizando uma prática de
jornalismo contemporânea.
&
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Ressaltamos ainda que não pregamos o fim do Jornalismo
Informativo ou de qualquer outro gênero jornalístico. Eles ainda
possuem seu papel e seu valor. Apenas defendemos um jornalismo
mais completo. Pois, se novamente remetermos a Barthes, a linguagem
só é capaz de representar parte do real. Mesmo assim, o jornalismo se
propõe a representá-lo em sua integridade e sabendo que jamais
conseguirá fazê-lo, deve buscar então dar espaço a diferentes formas
de representação do real.
Um exemplo simples de como isso pode ser feito em prática pode
ser dado por uma pauta a respeito dos moradores de rua em uma
cidade. Se for feita para seguir o padrão de um Jornalismo Informativo,
o repórter, provavelmente, vai buscar dados de quantos mendigos
vivem na cidade, vai apresentar os reflexos disso na economia e dar
espaço para declarações dos próprios desabrigados e especialistas no
assunto. Tudo feito de uma maneira distante, que, apesar de dar uma
idéia ampla da situação, não causará um choque tão grande no leitor.
Porém, se buscar usar técnicas do Jornalismo Literário, existe a
possibilidade do repórter traçar um perfil de um morador de rua, a
partir de uma convivência com este, e a partir de sua observação e
uma redação em terceira pessoa, vai demonstrar como é o cotidiano
desta pessoa. A reportagem vai ser humanizada, partindo de um caso
específico para abordar um quadro geral.
Mas se o repórter optar pelo Jornalismo Gonzo, ele vai se predispor
a viver por um determinado tempo como morador de rua e escrever
em primeira pessoa – com elementos de sua personalidade explicitados
no texto – vai descrever a situação a partir de sua vivência. Essa forma
extrema, fruto de uma experiência, dará ao leitor uma nova perspectiva
do caso de como é ser um morador de rua e de como um ser humano se
sente naquela situação.
Como verificamos nesse exemplo, os diferentes gêneros jornalísticos
possibilitam uma representação diferente da realidade. A única
maneira de nos aproximarmos um pouco mais da representação do
real utópica e que jamais será alcançada é explorando o máximo de
possibilidades possíveis dentro do campo jornalístico. Somente dessa
'
CAMINHO ILUMINADO
forma o jornalismo poderá ser mais completo e se aproximar um pouco
mais de sua missão.
Notas
Jameson, 2004, p. 27
Entrevista concedida em 12/09/2006
Albert e Terrou, 1990 , p. 54
!
"
Bahia, 1990, p.132
#
Manual de Redação e Estilo de O Estado de S. Paulo, p. 17
$
Sponholz, 2003 , p. 110
%
Barthes, 1977 , p. 22
&
id.
'
Manual de Redação da Folha de S. Paulo, p. 19
id.
Sponholz, 2003, p. 112
apud Lima, 2004, p. 97-8
!
Lima, 2004, p. 100
"
apud Lima, 2004, p. 100
#
Entrevista concedida em 12/09/2006
$
O Estado de S. Paulo, 30 de agosto de 2006, p. B13
%
id.
&
Entrevista concedida em 12/09/2006
'
Falaschi, 2005, p. 311
id.
apud Lima, 2005, parte 2
apud Lima, 2004, parte 1
!
Falaschi, 2005, p. 323
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Experiências
CAMINHO ILUMINADO
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Um pouco do Brasil na
fila do INSS
!
CAMINHO ILUMINADO
"
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Logo que o sino da Basílica Nossa Senhora do Carmo badala seis
vezes e o sol começa a se pôr, algumas pessoas já estão se acomodando
na calçada da Rua Barreto Leme, encostadas no muro do prédio da
Previdência Social. A cena se repete de domingo a quinta, a pouco mais
de dois quarteirões do meu apartamento e sob os olhares desinteressados
de quem passa ao redor. Quase diariamente, seres humanos passam
mais de 14 horas em uma fila, enfrentando frio, chuva, calor... Uma rotina
para aqueles que ganham dinheiro à custa de vender a vaga no começo
da fila. Ou um dia atípico – ou nem tanto – para aqueles que precisam
resolver um problema ou agendar uma perícia na Previdência Social.
Com objetivo de desvendar aquilo que se passa na espera e poder
vivenciar essa experiência, eu resolvo encarar a famigerada fila por
uma madrugada. Assim, por volta da meia noite de três de julho, no
início de uma fria madrugada, eu saio de casa em direção à Rua Barreto
Leme, número 1117. Junto comigo, o meu amigo e parceiro nessa
empreitada, André Julião (ou Baiano, para os mais chegados).
#
CAMINHO ILUMINADO
Ao dobrar a esquina, avistamos cerca de 15 pessoas que já tomam
o lugar à fila. Alguns dormem sobre pedaços de papelão no chão e
aquecidos por cobertores. Uma confortante noite de sono. Os outros
oito estão conversando no final da fila, em pé ou sentados em caixas de
madeira. Nos aproximamos timidamente, ensaiando um primeiro
contato. Receoso, fico sem saber o jeito certo para me dirigir a eles. Os
olhares já estão voltados na direção da dupla. Crio coragem e resolvo
me apresentar. “Olá. Somos estudantes de jornalismo e estamos fazendo
uma reportagem sobre a fila do INSS. Vamos passar a noite com vocês
aqui”, explico.
Osmar, o mais próximo de nós, é o primeiro a se manifestar. Logo
iniciamos uma conversa. Ele está na fila para marcar uma perícia. Tem
um problema no braço e encara a fila pela primeira vez. Outro homem,
Jorge enfrenta o desafio por causa da esposa. Ela que precisa do benefício
e virá apenas na manhã seguinte assumir o lugar do marido. Um gesto
de solidariedade. Luciana está acompanhada da irmã, Jéssica. A missão
é descobrir porque não está recebendo a pensão da filha. As duas se
acomodam em um pedaço de papelão e espantam o frio repartindo um
cobertor. Mas preferem a conversa ao sono. Talvez porque as
circunstâncias não sejam as mais propícias.
Na roda também estão Henrique, Francisco e outros nomes já
esquecidos. Pessoas de idades diferentes, lugares diferentes e problemas
parecidos: uma longa e fria noite pela frente. E isso é o de menos. O
problemão mesmo é aquele que vai ser resolvido uma vez dentro do
prédio.
A conversa que se iniciou de forma acanhada, começa a ganhar um
ritmo desinibido. Ninguém hesita em falar um pouco da vida e das
suas histórias. Quanto à fila, sobram reclamações: “É a vida de pobre,
não tem jeito!” A queda da temperatura segue o ritmo do diálogo: aos
poucos vai se acentuando, conforme avança a madrugada. A minha
jaqueta jeans já não é tão eficiente em aplacar o frio. Cada vez mais vou
me encolhendo e rangendo os dentes. Tremendo. Que inveja do pessoal
no papelão com um cobertor quentinho!
Bem... Não é pra tanto.
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
O ronco de um dos homens que dormem no começo da fila ecoa pela
rua. O ruído cavernoso provoca risos no pessoal. De fato a situação é
engraçada; ainda mais diante daquelas circunstâncias. Com o tempo a
graça virou um barulho chatinho, perturbador. Mas que logo é
aplacado por um esbarrão proposital que acordou o sonolento
ressonador.
Quando o tédio das horas que passam demoradamente começava a
imperar, um intruso sacode o sossego e provoca gritos histéricos das
mulheres da fila. Alguém avista um pequeno roedor do outro lado da
rua, saindo de um bueiro. Logo ele some de novo, mas sua presença
relâmpago é suficiente pra disseminar um certo pânico. Realmente
aquela fila não é para quem nutre uma certa fobia por esses bichos
asquerosos. Nas calçadas do centro da cidade, em plena madrugada,
não faltam ratos, baratas e outros seres repugnantes. Imagina, então,
dormir em meio à peregrinação noturna dos afáveis e fofinhos seres.
Não é pra qualquer um.
Se já não era das melhores noites para todos, não significa que as
coisas não poderiam piorar. Jéssica faz uma importante e dramática
revelação aos que estão acordados: ela precisa ir ao banheiro. Algo
simples, não fosse o comércio das redondezas fechado. Convenhamos,
as pessoas passam tantas horas na fila e nenhum banheiro para o
uso... É dose.
Eu penso em oferecer o banheiro da meu apê que fica lá perto. Só
penso. Confesso que o egoísmo prevaleceu em minha mente naquele
momento. Porque daí já viu, né: todo mundo vai querer usar e não é
muito bom compartilhar o banheiro de casa desse jeito. Um tanto
quanto anti-higiênico. Não que essa lengalenga justifique o ato egoísta,
mas na hora eu resolvi não falar nada.
Sem muitas alternativas, Osmar se oferece para acompanhar a moça
à procura de um banheiro. Ele diz que tem um posto de gasolina com
loja de conveniência que funciona 24 horas na Avenida Anchieta. Só há
algumas quadras dali. E sugere que se aproveite a caminhada pra tomar
um café e espantar o sono da noite virada. A idéia do café agrada o
pessoal. Rapidamente uma pequena comitiva se prepara para a
%
CAMINHO ILUMINADO
aventura. Calculam quantos vão querer café e juntam o dinheiro. Eu
que não sou muito chegado na bebida, passo minha vez. Baiano
também recusa. Mas a maioria aceita.
Enquanto esperamos pelo retorno dos outros, seguimos firme em
nossa espera, cada vez mais incomodados pelo rigoroso frio. A
experiência já me ensinou que estar bem agasalhado é importante,
como ditam os conselhos maternos. O desconforto de permanecer em
pé foi desfeito graças à caixa emprestada por Osmar. Levar algo para
se sentar é fundamental para passar uma madrugada por ali. Também
aprendemos isso na marra. Mas esses pequenos infortúnios por mim
deparados se tornam menores para quem não tem a necessidade de
estar ali.
E tornam-se ainda mais ínfimos quando avisto um monge
franciscano do outro lado da rua. Com sua batina marrom, corte
“careca” e pés descalços. A presença, como era de se esperar, gera
comentários na fila. “Como tem coragem?”, espantam-se. Outra cena
que desperta pronunciamentos é a passagem de um carro em alta
velocidade. “Como é que pode uma coisa dessas?” “Se pega alguém
atravessando a rua não dá nem tempo de frear.” “Uma
irresponsabilidade!”
Um tempo depois, volta a turma do café. Mesmo eu tendo recusado,
trouxeram um para mim. Ainda assim, não aceito. Confesso ser um
ato deselegante, mas, como já disse, não gosto de café e também já
estou de partida para meu lar. Já são quase 5 da manhã e não suporto
mais o frio. Além do mais, tenho que trabalhar mais tarde. E o mais
importante: ao contrário dos outros, posso me dar o luxo de um
tranqüilo sono nas próximas horas. Enquanto prometia a mim mesmo
retornar uns dias depois para completar a tarefa, despedi-me de todos
e parti para casa. Não sem antes pegar o telefone de Osmar e Luciana,
para no dia seguinte acompanhar como se desenrolou a situação de
cada um. E não também sem um certo peso na consciência por me
sentir privilegiado.
&
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
O RETORNO
Um dia depois, falo com Osmar. Ele até que teve sorte. Entrou umas
oito e pouco, marcou a perícia e lá pelas nove já tinha saído. Luciana
não pôde se vangloriar do mesmo destino. Conseguiu a senha por volta
das oito e dez, mas não tinha levado o CPF da filha. Até descobrir o
equívoco já eram onze e quinze. Resultado: tempo perdido e teria que
retornar outra vez.
A minha missão também era essa. Retornar à fila para ao menos
acompanhar o desdobramento das horas finais da espera, antes da
abertura das portas. E não foi fácil terminar a incumbência. Os meses
foram passando e eu ia enrolando. Um pouco por preguiça, greve dos
servidores do INSS, chuvas, falta de tempo e a má impressão deixada
pela primeira vez. Mas enfim, o prazo foi se apertando e o domingo, 22
de outubro, foi a data escolhida.
Tento ir primeiro por volta da uma da madrugada, só que quando
chego lá só avisto alguns gatos pingados já dormindo. Dou uma volta,
espero um tempo, outra volta e nada. Dessa vez a espera não parecia
ser tão grande. Como não acrescentaria muita coisa o tédio de esperar
sozinho, volto pra casa e ponho o despertador pra me acordar às 6 da
manhã. Assim dá tempo do pessoal chegar, com o transporte público
já funcionando, e eu consigo conferir a fila pela manhã, o que não tinha
experimentado.
As seis em ponto, já estou descendo pelo elevador e pronto pra me
enveredar pelas horas finais. O Baiano – que mais uma vez me ajudaria
– não agüentou acordar. É mal do estado de origem.
Quando chego na Rua Sacramento, avisto a fila já virando a esquina
e no meio do quarteirão. Não sou bom de estimativa, mas diria que já
tinha umas 200 pessoas na fila de uns 100 metros. Isso sem falar na fila
dos idosos – que têm preferência – e na fila da outra entrada.
De cara, no fim da fila, já vem um homem perguntando se eu
desejaria ir lá pro começo. Eu já saco que esse é o tipo que vende lugar
e me identifico. Meio ressabiado, José topa uma ligeira conversa. Ele
me conta que vende por uns “15 conto”, mas se chorar dá pra fazer por
'
CAMINHO ILUMINADO
10. Pra guardar o lugar ele deixa as coisas lá no começo da fila. São 14
horas de espera, desde as 18 horas do dia anterior. E isso é quase todo
dia. José me conta que muitas vezes não consegue vender nem um
lugar e “perde a viagem”. E como o dinheiro é pouco, ele sempre tem
que descolar uns bicos.
Resolvo checar a quantas anda o começo da fila e topo com Valdilene.
Ela veio com o marido, “acidentado desde 99”. Seu tom de voz expõe
uma certa revolta com a situação. Segundo ela, a fila faz parte de sua
rotina, pois duas vezes por ano tem que apresentar uma declaração de
escolaridade dos três filhos. E não tem jeito, tem que comparecer
pessoalmente.
Com tanta experiência na fila, já viu de quase tudo. Teve até um
protesto em que fecharam a rua e a coisa ficou preta. Tudo por causa de
uma greve avisada de última hora. “Já teve até morte nessa fila”, ela
jura. Valdilene reconhece que até houve melhora no serviço, mas ainda
são muitas as falhas. “Às vezes o médico dá alta sem motivo e aí é só
dor de cabeça”. Pra ela, as pessoas aceitam muito fácil esses
transtornos. “A maioria não tem coragem pra abrir a boca e quando
passa na TV ninguém reclama. Nós somos seres humanos!”
A história de Milton também não é das mais fáceis. O auxílio doença
fez-se necessário desde que um saco caiu em cima de suas costas, em
plena fábrica de ração na qual trabalhava. E desde então, em quatro
anos, foram cerca de 20 vezes na fila. Haja espera! Desta vez, estava ali
desde as três horas da manhã, o que deu para garantir um lugar bem
na frente. O objetivo é marcar uma perícia e, se tudo der certo, daqui a
algum tempo poderá receber o benefício suspenso. Ele faz questão de
mostrar que mal consegue mexer os braços por causa do acidente e que
não tem motivo para o auxílio doença ser suspenso. Assim como os
outros, quando questionado sobre o que pensa sobre os que vendem
lugar na fila, não acha certo. “Eles vendem uns quatro, cinco lugares.
Até caixote guarda lugar. Isso que não é certo. A gente madruga aqui “,
desabafa.
Volto pro final da fila. José ainda não conseguiu vender lugar
nenhum. “Hoje tá difícil”, lamenta. Ele me apresenta o “colega de
!
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
profissão”, Alberto, que também não conseguiu faturar nada no ramo
de “reservas para atendimento”. Pela tarde vai ter que arranjar um
bico: “fazer uma calçada, pintar alguma coisa”. Não tem dinheiro nem
para um café. “Atualmente, quem tem dinheiro sobrando é só político
né?” Mesmo assim, vota Lula.
Alberto tenta inverter o jogo e saber em quem eu ia votar. “É
Alckmin, não?” Eu interpreto a pergunta como a visão da divisão social no país. Para ele, quem opta pelo petista são os pobres. Os que
preferem o tucano são os mais abastados. E obviamente me considerou
ser de uma classe mais alta. Talvez por ser universitário e, ainda por
cima, de uma faculdade particular. Quantos não pensam assim?
Ele continua justificando o voto em Lula. “Agora o cimento é mais
barato e muitas outras coisas, não? Aquele saco de dinheiro tá com ele,
né? Se ele tivesse roubado, tava preso. Quem sabe agora num volta pro
povo?”, profere sem descanso nem para respirar. É, meu caro leitor...
Esta é a realidade deste país.
Eu mudo de assunto. Quero saber mais da vida dele. Mas sobre isso
ele fala pouco. Dorme mal, na fila só cochila. E batalha todo dia, para
poder tomar “duas ou três pingas” no fim de semana.
Mas a economia que gira em torno daquela fila não se resume apenas
aos guardadores de lugar. Descubro Rose, que circula com garrafas
térmicas, vendendo café, leite e chá, por 50 centavos. O pingado é um
real. Ela não quer me falar quanto ganha, mas admite que cada garrafa
comporta umas 20 doses. Levanta todo dia cedinho, pra chegar na fila
por volta das cinco e quarenta. Geralmente, vai embora no começo da
tarde. Ou mais cedo, se vender tudo antes. Prefere os dias de frio ou de
chuva, porque as vendas aumentam muito. Diante da concorrência
dos bares, restaurantes e cafés da redondeza, ela tem um trunfo: “o
café caseiro”, diz.
Outro que lucra com a fila é Vivaldo. Andando pra lá e pra cá, ele
está sempre oferecendo bancos para as pessoas. Assim vai andando e
coletando os bancos daqueles que estão entrando e oferecendo para os
que estão chegando. O aluguel sai pela módica quantia de um real.
Pendurado em sua camisa, um crachá que o credencia para a função.
!
CAMINHO ILUMINADO
Na verdade, apenas um registro em cartório. Encontro dificuldade em
abordá-lo. Além de não sossegar por um instante, não se mostra muito
disposto para uma breve entrevista. Quando surge uma brecha,
pergunto quantos bancos ele tem. A resposta é seca. “Não conto banco,
conto dinheiro”, afirma com um sorriso provocador. “E quanto dá pra
tirar por dia?”, retruco. “Você me falaria o seu salário?”, questiona
debochadamente. O jeito do sujeito já me tira a paciência, mas me
contenho para dar prosseguimento à conversa.
Ele ainda relata que além de emprestar bancos, também é um
prestador de informação. Enche a boca para mostrar como sabe de
tudo que se passa na Previdência Social. Em troca, dou um sorriso
blasé, diante do ar arrogante de Vivaldo.
Não sei se seria muita maldade enumerar na lista da economia
informal da fila o Pastor que vai pregando a Bíblia e distribuindo um
folheto a todos. Até porque não dá para dizer a verdadeira intenção do
homem: pregar aquilo que acredita ou recrutar dízimos para sua igreja.
O fato é que, só naquela manhã, foram distribuídos três folhetos de
diferentes igrejas.
As portas se abrem às oito. Pouco tempo depois, a fila dos idosos já
terminou e a fila normal começa a andar. Ainda converso com Vladimir
e Lucélia. Mais uma vez as histórias são parecidas. Como bem resume
Lucélia, “todo mundo que tá na fila é porque tem problema”. Eu pergunto
se o serviço oferecido por telefone ou pela Internet não é suficiente para
resolverem os problemas. Os dois são categóricos: as informações
fornecidas muitas vezes são erradas. E sempre tem que assinar alguma
coisa, ou o benefício é suspenso e muitos outros problemas. Outro
consenso é em relação ao tratamento: “os atendentes são simpáticos,
os peritos não olham na cara e só querem dar alta e o governo não está
nem aí”, nas palavras de Lucélia.
Já são oito e meia da manhã de segunda-feira. Eu dou por encerrada
minha tarefa. A experiência me permitiu saber um pouco do que se
passa na famosa fila do INSS. Não procuro ninguém para falar em
nome da Previdência Social, porque não é esse meu objetivo. Pude
constatar que atualmente houve de fato uma melhora e uma redução
!
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
na fila. Mas ainda existe uma situação complicada, com pessoas
maltratadas e muito a ser melhorado. Enquanto caminho para casa
vou pensando que a fila é uma metáfora perfeita para representar
alguns dos mais graves problemas que assolam o Brasil. De um lado,
um Governo lento, burocrático e distante, que tem muito a fazer por
seu povo. De outro, um povo desinformado (para não dizer ignorante)
e passivo, que aceita a situação de forma branda e sem grande
mobilização. E assim caminha o nosso país, a passos curtos, como
numa espera da fila do INSS.
Renan Magalhães
Outubro de 2006
!!
CAMINHO ILUMINADO
!"
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
A festa
!#
CAMINHO ILUMINADO
!$
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
“Tranqüilo hoje, né?”, “Nossa! Como tá tranqüilo!”, “Ô, tá tranqüilo!
Da outra vez peguei uma fila!”, “Rêrrêrrê! Até cansei de ficar na fila!
Rarrárrárárrá!”, “Ta tranqüilo, hoje?”, “E aí? Tranqüilo, hoje?”, “Pelo
menos hoje ta tranqüilo, né?”.
Estaria, senhora baixinha de cabelo curto; estaria, senhora grande
de cabelos brancos compridos, que conseguiu se atrapalhar na hora
do voto; estaria, senhor gordo que anda pendendo para o lado direito
e ri com uma voz rouca; estaria, moça que chega com um bebê no
carrinho; estaria tudo muito mais tranqüilo se todo mundo que
chegasse para votar não dissesse essa mesma palavrinha.
Palavrinha que está me deixando nervoso, pois não agüento mais
procurar formas diferentes de responder. “É... Um candidato só, né?”,
“É, né?”, “Também! Um número só! E ainda teve gente que se
atrapalhou”. Não contei aos eleitores da seção em que trabalhei como
mesário que teve um homem que ficou de frente para a urna, parou e
perguntou: “É 13 e qual é o outro número?”. Ao que fizemos um silêncio
!%
CAMINHO ILUMINADO
de surpresa, até entendermos que o homem alto e de bermuda tinha
esquecido o número do outro candidato. “Ah, é! Deu um branco!”. Teve
gente que mal olhou para a tela: só esticou o braço, digitou as três
teclas e saiu, quase deixando título de eleitor e comprovante para trás.
E enquanto vejo a tudo isso, digito números e destaco comprovantes,
ainda tenho que inventar novas respostas para todo mundo que chega
dizendo “tranqüilo”, seja em forma de pergunta, de espanto, de graça...
As eleições de 2006 foram sofridas para mim. E não me refiro aos dias
em que trabalhei como mesário. Acredite: o 1º e o 29 de outubro foram os
dias mais tranqüilos de todo o período eleitoral. No segundo turno, então,
em que só umas três pessoas se atrapalharam, foi bem... tranqüilo.
O que me atormentava era o fato de um presidente que teve, em seu
círculo íntimo, “companheiros” comprovadamente corruptos, estar
perto de uma reeleição. Qual seria a razão da popularidade de Lula? A
maioria ainda diz que foi o Bolsa Família – deixando subentendido que
só pobre vota em Luiz Inácio. Do outro lado, dizem que foram “os
números”, estas autoridades que nunca mentem. Para mim era mais
complexo – embora eu não soubesse a resposta.
DIA
26 DE AGOSTO, CENTRO DE CAMPINAS
O ônibus em que estou tem que fazer um desvio e se mete num
engarrafamento. As ruas de acesso ao Largo do Rosário estão fechadas.
Todos os veículos estão desviando. Já começou o show! Levanto e digo
ao motorista: “Quando der para abrir, abre porque eu vou andando”.
Saio pisando forte meus All Star. Sei que estou chegando, mas não ouço
barulho algum. Não tenho caminho definido. Sei onde preciso chegar,
mas não sei como.
Então ouço gritos amplificados. O som vai aumentando. Logo vejo
muitas pessoas olhando para uma mesma direção. É aqui! Um homem
de bigode grosso, entradas na testa e alto – ou será que é porque quem
está perto dele é baixinho? – gesticula, grita, chega a desafinar no meio
de algumas palavras.
É Mercadante. Senador Aloízio Mercadante. Um amigo que encontro
ali, à direita do palanque, diz: “Os caras esqueceram que eles são
!&
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
situação. Ainda gritam como se fossem da oposição.” Eu explico: “É
falta de costume”. Mas é que aqui em São Paulo eles são, sim, oposição.
E continuarão sendo, pois José Serra ganhou (no primeiro turno). Era o
que já diziam as pesquisas naquele dia, mas Mercadante tinha que
manter elevado o moral do eleitor. “Vocês vão saber quem ganhou
quando sair o resultado! Pesquisa não quer dizer nada! Eu vou ganhar
essa eleição!”
Muitos ali não estão interessados naquele bigodudo, tampouco no
careca, Eduardo Suplicy, candidato a mais oito anos no Senado
(ganhou), que apenas assiste, usando uma camisa pólo vermelha, com
seu sorriso tranqüilo, seus cabelos brancos, as mãos cruzadas sobre as
pernas. O povo aplaude, grita, levanta bandeiras, mas quem eles
querem mesmo ouvir é Ele. Luiz Inácio Lula da Silva.
Um jingle sai das caixas de som: “Ooolêêê, olê, olê, oláááá... Luláá,
Luláá... Ooolêêê, olê, olê, oláááá... Luláá, Luláá.” O povo grita, delira.
Lula sorri, faz gestos de agradecimento. O som vai ficando cada vez
mais baixo. Então ele começa:
“Meus amigos, minhas amigas...”
Gritos, “ÊÊÊÊÊÊ!!! LULAAAA!!!”, até um “LINDԔ é lançado do
meio do povo. Lula recomeça. Entre outras falas, manda:
“Meu governo implantou o Brasil Sorridente, para dar tratamento
dentário a todos que não podem pagar. Porque dente nunca foi levado
a sério por nenhum governo. E a gente sabe que dor de dente é coisa de
pobre. A gente sabe o que é ter o dente doendo e colocar gengibre,
colocar fumo (vai aumentando o volume da voz), colocar... (cita
inúmeras simpatias, aumentando o volume a cada uma), colocar
cachaça...! (pausa) E no último caso, mandar benzer. E quando não tem
mais jeito a gente manda arrancar o dente.”
A gente. Lula fala com algum conhecimento de causa, imagino. Ele
pelo menos viu muita gente passar por aquela situação. Ele é dos nossos.
Comentei esta declaração do candidato-presidente com um colega, no
dia seguinte, e perguntei:
“Como o Alckmin falaria de saúde bucal?”
“Falaria em implante periodontal”
!'
CAMINHO ILUMINADO
A idéia inicial era cobrir os comícios de todos os candidatos a
presidente que viessem a Campinas. Eu e Renan definimos isso crentes
que pelo menos Geraldo Alckmin viria fazer um comício na cidade.
Não veio. Heloísa Helena compareceu a um evento, mas foi no primeiro
semestre. Naquele momento não tínhamos a idéia da “cobertura”, mas
assim que a tivemos, pensamos que ela voltaria a Campinas. Cristovam
Buarque deveria ter palanque por aqui, pensamos. Afinal, o prefeito
Hélio de Oliveira Santos é do PDT também.
Mas naquele 26 de agosto, olha quem está no palanque com Lula: o
Dr. Hélio! Estava paga a dívida feita quando o presidente apareceu no
horário político pedindo o voto para Hélio no segundo turno das
eleições de 2004. Quando vimos que os outros candidatos não iriam
aparecer por aqui, percebemos que já tínhamos uma boa pauta – a
reeleição de Lula, que desde o início era o favorito nas pesquisas e
possivelmente ganharia já no primeiro turno.
28 DE SETEMBRO DE 2006, MESMO LOCAL
Chego ao Largo do Rosário novamente. Desta vez o movimento é
bem menos intenso. Carrego comigo um bloco de anotações e a
pretensão de me infiltrar entre os lulistas. Eu precisava entender aquilo
tudo. Primeiro apenas observo, sem falar com ninguém. São 15h40 e
está marcada para as 16h uma “Caminhada suprapartidária em defesa
da democracia. Lula no 1º turno”. Pelo menos é o que diz um panfleto
em preto e branco que chegou nas mãos de Renan, que me ligou para
dar a notícia poucas horas antes.
Depois de algumas conversas entreouvidas, abordo o homem com
postura de coordenador de alguma coisa. Tem entre 45 e 50 anos.
Mulato, usa uma camiseta vermelha com a estrela do PT estampada.
Me aproximo dando uma de desentendido.
“Todos os partidos estão unidos aqui em favor do Lula, porque (os
políticos da oposição) querem derrubar ele.”, diz Nilson Souza do
Nascimento, profissão... “faço um monte de coisas”. Pergunto se é do
diretório. Já foi, mas hoje apenas milita. O golpe a que ele se refere é o
Dossiê Vedoin, que apareceu na imprensa dias antes. O partido tem
"
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
que reforçar que tudo é conspiração da “imprensa burguesa” e das
“elites”. Ainda mais hoje, em que vai haver o último debate dos
candidatos à presidência, na Globo – e que Lula vai faltar.
Noto o sotaque de Nilson e pergunto de onde ele é. Do Piauí. Um
assunto corriqueiro a mais, já que sou baiano. Ele, porém, está aqui há
mais tempo. Veio na década de 80, é formado em Ciências Sociais pela
PUC.
Por todo o Largo do Rosário, na mesma praça onde aconteceu o
comício de Lula em agosto, pessoas de calça jeans, suadas, usam
camisetas e carregam bandeiras de candidatos a deputado de diversos
partidos: PDT, PMDB, PT, PC do B... Depois que Nilson pede licença
para conversar com outra pessoa, percebo que um homem grisalho, de
camiseta vermelha lisa, me olha desconfiado. Olhares desse tipo me
fuzilaram durante todo o tempo que antecedeu a caminhada. O que
tanto aquele rapaz anota?
Enquanto olho para cima, atento para não ficar embaixo dos pombos
que me acertaram uma rajada no dia do comício, aparece Otávio e um
amigo. Este tem o cabelo cheio de gel, usa uma calça jeans estilosa,
camiseta vermelha estampada (mas nada que se refira ao PT), fuma
um cigarro que certamente não é o Derby nem o “mata rato” que muitos
ali fumam. Eu já sabia que Otávio, que é do Diretório Acadêmico de
Comunicação da minha faculdade, era alguma coisa do PT. Eu o
conhecia porque foi ele quem coordenou nossa viagem, em maio desse
mesmo 2006, para os Jogos Universitários de Comunicação e Artes
(JUCA), em Registro, São Paulo.
Ele me cumprimenta com o sorriso exibindo o aparelho, o mesmo
sorriso que portou durante os quatro dias do JUCA. Pergunto o que ele
é no PT de Campinas. “Sou coordenador de comunicação”. Ele não me
deixa continuar, logo sai para falar com outra pessoa. Sem problemas.
Quero saber dos desdentados, das mulheres de peito caído, dos que
fumam cigarro barato, o que estão fazendo ali. Uma mulher carregando
uma bandeira do partido estica o pescoço para saber o que estou
anotando.
“Você é jornalista?”
"
CAMINHO ILUMINADO
“Mais ou menos”, desconverso.
“O que você ta escrevendo, aí?”
“Não te interessa”, digo, sorrindo.
“Quero ler.”
Desvio e pergunto: “Quanto você ganha?”
“Para carregar bandeira?”
“É”
“Nada. Meu pai é um homem de 79 anos. Só em 2003 chegou água
encanada, luz e telefone, e isso a imprensa não mostra. Ele mora no
sertãozão do Ceará.”
“Hmmmm...”
“Põe aí: Francisca Brasil de Souza, 44 anos, balconista.”
“Matou o trabalho, hoje?”
“Trabalhei até meio-dia e meu patrão me dispensou em apoio ao
Lula. Meu pai se chama Francisco Brasil de Souza. Ele enfarta se o Lula
não ganhar.”
Boa entrevistada, a Francisca. Ela diz os dados de praxe sem que eu
pergunte; responde a perguntas que eu não fiz. Mas era esse tipo de pessoa
que eu precisa ouvir, ora! Militantes da classe média votam
automaticamente em Lula, ou não estariam no partido. Nenhum articulista
da imprensa grande tinha conseguido me esclarecer o porque de Lula ganhar
com tanta facilidade não só entre os pobres. Só no dia 5 de novembro leio
algo mais ou menos coerente, na coluna de Daniel Piza no Estadão:
O pobre vota em que lhe garante comida mais barata no prato.
Seja o candidato latifundiário, seja pau-de-arara. Se for “um de
nós”, há uma razão a mais para anistia. E muitos da classe média
vão junto: se minha vida não piorou, posso escolher alguém que
tem feito “algo pelos pobres” – mesmo que pudesse ter feito mais.
Brasileiro é tudo menos exigente.
Ser exigente é chato. Não vê o Alckmin, com aquela chatice de querer
saber de onde veio o dinheiro? Lula só ganhou quando propôs sem
criticar. A imprensa é chata, com tanta cobrança, com essa sede por
"
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
esclarecimentos. Quer sempre acabar com a festa. E no momento em
que Francisca terminava sua fala, parece que a festa está tomando
corpo: começa um apitaço.
Gente do partido distribui adesivos, broches e apitos. Nilson já
tinha me dado uns e eu aceitei, para não dar na vista. Uma mulher
tapa os ouvidos do bebê que está em seu colo. Os outros dois filhos,
com idades entre sete e nove anos, a seguem. Ela é magra, baixa,
aparência frágil. Quantos anos deve ter? Não muito mais do que 20... E
já tem três filhos.
Imagino se Cristovam Buarque fizesse uma passeata pela Educação,
se haveria metade dessas pessoas. Se nem no Congresso há a “fidelidade
partidária”, quanto mais aqui: os “militantes” do PDT pedem votos
para Lula. É a uma dessas mulheres que carregam bandeiras do partido
do Cristovam que pergunto quanto ela ganha para ficar o dia inteiro,
sob sol forte, empunhando a bandeira de uma candidata à Assembléia
Legislativa.
“Quinhentos reais por mês.”
“Ah, não é por dia? E são quantos dias por semana?”
“A cada oito dias (inteiros) de trabalho, folga um.”
“E paga certinho?”
“Paga...”
São 17h e o trio elétrico que vai conduzir os entusiastas de Lula
ainda não saiu. Um cara de franja aparece para a festa. Seu rosto não
me é estranho... Ah! O secretário de Transportes de Campinas.
Representando o prefeito. Muitos outros passam pelo Largo do Rosário,
mas nem todos com o mesmo sorriso do secretário. Um homem forte,
mal encarado e carregando uma sacola plástica, pisa numa faixa caída
no chão e gira o pé, como se aquilo fosse uma barata, um mal a ser
extirpado. Um que não vai participar da festa... Um chato.
E quando o trio começa a andar, as caras dos funcionários do
comércio da Francisco Glicério são em sua maioria de desdém. Chatos.
Otávio e um homem bigodudo inflamam o povo que segue o veículo.
“Essa é a reposta do povo de Campinas contra a onda de denúncias ao
"!
CAMINHO ILUMINADO
presidente Lula. É Lula ou não é!?” Um animador chama o outro, como
num programa de auditório. “Estão organizando um golpe para
derrubar o primeiro presidente que veio do povo, estão falando em
crise, olha a crise aqui!” E as pessoas gritam, deliram, como num show,
num espetáculo.
“É Lula ou não é? Não tô ouvindo... É Lula ou não é?”
“Vamos derrotar essa elite! Nós precisamos dar uma resposta às
elites que querem voltar a governar esse país. Essa elite que já ficou 503
anos no poder!” E o povo apita, canta, grita. Ninguém quer saber das
contas para pagar, da goteira no quarto, muito menos do rapaz que
não para de olhar e anotar.
Eu admiro a trajetória de Lula, mas essa conversa de messias, de
salvador, não dá pra engolir. E essa de que todos que governaram o
Brasil desde 1500 eram iguais e que Lula é totalmente diferente de
todos... Nem o José Dirceu acredita nisso. Mas Lula às vezes parece
acreditar. E esse papo de que mensalão, dossiê, foram “erros”?
Novilíngua.
Só o fedor de podre que o Congresso exala é maior do que esse de
pólvora que sinto agora na festa. Um homem acende morteiros sem
olhar muito bem a direção, nem quem está perto. O cara de cabelo
lotado de gel se assusta quando vê que o barrigudo vai acender um
morteiro perto dele. Pedaços de papelão dos fogos caem em mim e o
cheiro de fumaça se impregna na roupa. De um prédio jogam papel
picado, emporcalhando a rua. Numa janela lá em cima, uma bandeira
do MST.
Ingenuidade achar que o PT ia acabar depois do mensalão. Foi
apenas uma prova de fogo. Para não dar força à oposição – que em
grande parte não é melhor –, militantes continuaram defendendo sua
bandeira. Se tivessem largado, estariam de fora da festa que acontece
hoje e vai continuar no dia 29.
Em frente à sede do Poupa Tempo, um homem magro, alto, negro e
de óculos, com um paletó folgado, passa por mim... Seu rosto não me é
estranho... Sim! É Josias Abom, candidato a prefeito de Campinas nas
eleições de 2004. Aliás, ele foi candidato até poucos dias antes do pleito,
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
quando seu partido, o PCO, trocou o candidato. Josias não apóia Lula –
pelo menos é o que parece, já que ele anda rapidamente no sentido
contrário à caminhada.
Na esquina da Moraes Salles com a Glicério, uma mulher, encostada
na parede de uma loja, chora. Não paro para perguntar se é de alegria
ou de tristeza, pois estou atento para os morteiros que o tempo todo
explodem no ar e que podem me atingir. Outros que, como Josias Abom,
andam na direção contrária, passam balançando a cabeça e fazendo
tsc, tsc, tsc...
Mais tarde, o último debate antes do primeiro turno não teve Lula,
que só confirmou sua ausência por volta das 19h. Com uma militância
e um povo desses, ele achava que não precisaria se desgastar num
debate. Se deu mal, pois o insosso Alckmin chegou no segundo turno.
Arrastado, mas chegou. Depois Lula foi aos debates. Para mim, cada
um só conseguiu reforçar a convicção de não votar no outro.
Uma eleição sem graça. E por isso mesmo intranqüila. Perturbadora
pelo grande vazio que eu sentia de não ter um candidato com força para
ganhar. Entrar para a festa? Não bastasse o poder Executivo, àquela
altura já se vislumbrava os ocupantes do Congresso Nacional. Deixo a
palavra com Ricardo Soares, em artigo na Rolling Stone de outubro:
Não foi festa de nada até porque não temos o que comemorar em
meio ao caos, à violência, desesperança e às assustadoras cifras
de sempre que nos põem no pódio da desigualdade social do
mundo. Isso não é discurso ideológico, não é demagogia. É
realidade. E se queremos ver pedras rolando no meio do tédio
burocratizante do bom-mocismo da mídia nacional, é bom dizer
que não foi bonita festa nenhuma até porque se muitos picaretas
não foram reeleitos outros tantos continuam aí firmes e fortes. A
nova escalação do Congresso Nacional é tão pobre quanto essa
rima pobre.
Vou me conformar com a explicação do Daniel Piza, por enquanto.
Acrescento que o candidato com mais chances de derrotar Lula não
"#
CAMINHO ILUMINADO
inspirava confiança, sequer simpatia (uma peninha, talvez). Antes que
fiquem especulando em que votei, meu voto foi para Cristovam
Buarque. Pela pessoa e pela proposta de que tudo começa pela Educação.
No segundo turno usei um mote meio cretino: “Nem seis nem meia
dúzia: é 12!”, e fiquei resignado quando não vi nenhum rosto na tela da
urna eletrônica. Fiquei de fora da festa.
Quando o trio está chegando no Largo do Pará, na outra ponta da
Francisco Glicério, um dos militantes do trio elétrico profere a frase:
“Primeiro de outubro vamos liquidar a fatura!”. Não é o termo mais
adequado a se usar, ainda mais em se tratando dos “debates” sobre
caixa 2 etc. Mas, no final das contas, é isso que acontece. Tudo uma
festa.
André Julião
Novembro de 2006
"$
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Obras e pessoas
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ENTREVISTAS
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conta o que viu no mês em que trabalhou como agente
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americana Lillian Ross critica Truman Capote e Tom Wolfe e
exalta a tradição da revista The New Yorker. O Estado de S.
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
RIBEIRO, Marili e CANÇADO, Patrícia. Jornais enfrentam o desafio de
se adaptar às novas tecnologias – Congresso de Jornais discute
como reagir aos avanços de meios como a Internet e o celular.
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 30 ago. 2006. p. B13.
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VERÍSSIMO, Arthur. Excepcionalmente Arthur V
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Disponível em: <http://revistatrip.uol.com.br//129/moda/
08.htm>. Acesso em: 26 de fev. 2006.
MANUAIS
MARTINS, Eduardo. Manual de redação e estilo. 3.ed. São Paulo:
O Estado de S. Paulo, 1997.
NOVO MANUAL DA REDAÇÃO. Folha de S. Paulo. São Paulo: Empresa
Folha da Manhã, 1992. 8ª ed.
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MOORE, Michael. Roger & Eu, 1989
___. Tiros em Columbine, 2002
___. Farenheit 11 de setembro, 2004
SPURLOCK, Morgan. Super Size Me, 2004
ENTREVIST
AS
ENTREVISTA
André “Cardoso” Czarnobai, em 10 de outubro de 2006 (por e-mail)
Arthur Veríssimo, em 26 de setembro de 2006
Celso Falaschi, em 12 de setembro de 2006
Edvaldo Pereira Lima, em 30 de outubro de 2006 (por e-mail)
José Hamilton Ribeiro, em 2 de outubro de 2006
Matthew Shirts, em 14 de setembro de 2006
Zuenir Ventura, em 3 de setembro de 2006 (por telefone)
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CAMINHO ILUMINADO
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
Posfácio
Uma divertida jornada
Não sei se você já não agüenta mais ler esse livro ou lamenta que já
chegou ao fim, mas, independentemente da sua vontade, temos ainda
algumas coisinhas a dizer. Primeiro, queremos esclarecer que cargas
d’água de formato é esse, misturando texto acadêmico com jornalístico.
Apesar de uma certa aversão a regras, não atiramos no escuro
quando propusemos fazer este trabalho em livro e não em forma da
batida monografia. Quem nos respalda para esse híbrido é Edvaldo
Pereira Lima, em sua bíblia do Jornalismo Literário, Páginas
Ampliadas. A categoria aqui aplicada é a de livro-reportagem-ensaio,
que segundo o professor:
Tem como forma a postura de ensaio, o que vale dizer, a presença
muito evidenciada do autor e de suas opiniões sobre o tema,
conduzida de forma a convencer o leitor a compartilhar do ponto
de vista do autor. Quanto ao tratamento do texto, emprega,
sobretudo, a função expressiva da linguagem, na terminologia de
#!
CAMINHO ILUMINADO
Jakobson. O uso do foco narrativo na primeira pessoa é freqüente
no decorrer do livro.1
Precisa dizer mais alguma coisa? Além de se aplicar à primeira
parte do livro, em que tratamos de conceitos, história e damos nossas
visões, acreditamos que a segunda parte, das narrativas Gonzo,
também se encaixa nesta categoria. O Jornalismo Gonzo seria uma
forma de ensaio, já que é a visão amplificada de uma pessoa sobre uma
situação. Isso para não falar que, ao contrário do que aconteceu com
este livro, numa monografia não teríamos a mesma liberdade de estilo.
Agora que satisfazemos a obsessão dos super acadêmicos, podemos
falar que foi gostoso escrever esse negócio. Tirando os estresses em
função dos prazos e na hora de conceituar, legitimar o Gonzo para ela,
a Academia – porque para muitos já está legitimado faz tempo –, a
oportunidade de reler algumas obras, conhecer figuraças do jornalismo
e contribuir para a difusão desta forma de narrativa já valeria.
Sem falar que agora sabemos como chegar a alguns pontos de São
Paulo sem ter que pegar três trens, por exemplo. Sim. No dia em que
entrevistamos o Zé Hamilton, além do ônibus para São Paulo e do
metrô, pegamos TRÊS trens e, ao chegarmos na sede da Rede Globo,
quatro horas depois de sairmos de Campinas, ele não estava lá. Um
ônibus e um metrô depois, chegamos na casa dele.
Zé Hamilton desculpou-se, teve um problema com a perna mecânica.
“Isso aqui é igual carro, de vez em quando tem que ir para a
manutenção”. A prótese teria que estar tinindo, pois dias depois ele
estaria em Nova York, recebendo o Prêmio Cabot, da Universidade de
Columbia, como referência no jornalismo para as novas gerações.
Perdoamos.
Para conversar com Matthew Shirts foram “apenas” dois metrôs
e um táxi (depois da rodoviária de São Paulo, claro). Descobrimos
que além de sua adoração à figura e à obra de Hunter Thompson, ele
foi criador e editor de revistas sobre videogame, a Super Game, a
Super Game Power e a Game Power. Ele era o colunista-personagem
Chefe, que muitos marmanjos ainda hoje lembram (uns ficaram
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ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
surpresos quando fizemos a revelação: “Nossa! Ele era o Chefe!”).
Uma vez, Matthew pintou os cabelos de roxo, vestiu roupas
espetaculosas e andou numa limusine para premiar os vencedores
de uma promoção da empresa que editava as revistas, cujo prêmio
era nada menos que conhecer o Chefe.
Adentrar o exótico lar de Arthur Veríssimo foi outra experiência
no mínimo curiosa. A entrevista ocorreu em meio a quadros,
fotografias, livros, esculturas e adereços que compõe o peculiar
cenário do apartamento deste jornalista, um amante da cultura
hindu. O oposto, digamos, foi a entrevista com Celso Falaschi. Um
ambiente sóbrio (o prédio da Associação Campineira de Imprensa)
e um entrevistado já conhecido por nós. Assim o papo flui bem e
nos possibilitou o enriquecimento desta obra, sobretudo pela visão
acurada que o professor tem do Jornalismo Literário.
Lamentamos a impossibilidade de uma entrevista tête-à-tête com
alguns outros alvos. Zuenir Ventura, morador do Rio de Janeiro, foi
ouvido por telefone. André “Cardoso” Czarnobai, de Porto Alegre,
só pela Internet – mas os contatos acontecem desde 2005. Já Edvaldo
Pereira Lima, só poucas perguntas por e-mail quando o livro já
estava praticamente fechado. O professor não pára em casa e, mesmo
que parasse, estaria a quilômetros – acredita que ele morava em São
Paulo até o meio do ano, mas se aposentou da USP e foi morar em
Goiás?
A resumida lista de entrevistados poderia ter mais alguns nomes,
mas as fontes são super qualificadas, às vezes atendendo não só aos
requisitos de “Gonzo jornalista” como de teórico. Além do mais, a
extensa bibliografia já nos dava bastante respaldo antes mesmo
que fossem feitas as entrevistas.
No mais, pegamos sol e sereno para realizar as reportagens da
segunda parte, gastamos uma quantia considerável em ligações
interurbanas e passagens (rodoviárias e metroviárias) e, mais do que
tudo, passamos longas horas em frente ao computador e em discussões
e leituras. E o resultado está aí. Acreditamos que poderia ficar ainda
melhor se tivéssemos mais tempo, mas também que este livro traz
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CAMINHO ILUMINADO
uma nova luz para estudiosos, entusiastas e praticantes do Jornalismo
Gonzo.
Que sigam o Caminho.
Notas
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Lima, 2004, p. 58
ANDRÉ JULIÃO E RENAN MAGALHÃES
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CAMINHO ILUMINADO
Esta obra foi composta em
Palatino Linotype e Georgia
e impressa pela IDB em
novembro de 2006.
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