A Exposição «Royal Class. Regal Journeys» do Museu de Utrecht e

Transcrição

A Exposição «Royal Class. Regal Journeys» do Museu de Utrecht e
A Exposição «Royal Class. Regal Journeys» do Museu de Utrecht e a mudança do
paradigma do património ferroviário.
O Spoorwegmuseum da Estação de Maliebaan, em Utrecht realizou, nos últimos dois anos, um
feito sem precedentes nos anais da museologia ferroviária. Concebeu, preparou e montou
uma exposição temática intitulada «Royal Class. Regal Journeys». Do ponto de vista científico e
museológico a ideia era reunir e concentrar nas gares do museu holandês composições,
carruagens e colecções históricas referentes ao modo como os monarcas europeus usaram os
caminhos de ferro, enquanto afirmação do exercício do poder régio, modo de viajar que
acabou por se impor no quotidiano das famílias reais. Como é sabido, estes salões são veículos
especiais, onde o carácter de luxo da 1.ª classe era superado pelos revestimentos de fausto,
conforto e arte que os governos constitucionais ou autocráticos autorizavam para a
dignificação dos reis e imperadores, enquanto representantes ao mais alto nível do Estado e
símbolos das modernas nações.
Na realidade, as novas realidades políticas, administrativas, económicas e a adopção do
sistema ferroviário nas nações europeias, desde a implantação do liberalismo, impuseram-se
no novo exercício do poder pela mão das monarquias constitucionais e dos impérios da
Europa, entre essa nova época e a segunda metade do século XX, quando o automóvel e o
avião vieram substituir os caminhos de ferro. Ora esses veículos eram por excelência (como
também o são os comboios e os salões presidenciais) uma forma de afirmação do poder.
Tinham uma enorme carga atractiva sobre as populações rurais e urbanas, que se mobilizavam
para ver passar os reis, se aproximarem mais deles durante as paragens nas estações ou
submeterem o seu imaginário da monarquia à prova real.
Mas, para além da História baseada em documentos de arquivo, a surpresa do Museu de
Utrecht revelou-se pela capacidade de uso científico de veículos ferroviários, como documento
histórico. Serviram-se de “vestígios” técnicos e sociais para interpretar a História e torná-la
mais aliciante, como a confirmar uma das principais missões dos museus: a investigação. O
horizonte cronológico percorre, diversos tempos históricos, desde 1842 (carruagem da rainha
Adelaide, do Museu de York) a 1991 (salão de Beatriz da Holanda, movido a energia eléctrica).
O denominador comum é carruagens, salões e furgões da categoria de transporte régio, com
uma única diferença: o comboio português (1862-1877), com os salões reais incorporados e
quase completo.
Nos últimos anos, o Museu Nacional Ferroviário da Holanda surpreendera a velha geração dos
museus ferroviários europeus pela afirmação de classe no campo da recuperação, no restauro
da estação terminal de caminhos de ferro da Avenida Malie (1873-1874), em Utrecht, que
desde 1953, fora adaptada a museu ferroviário. Em 2002, sob a orientação do actual director,
Paul M. L. van Vlijmen, iniciou-se um plano destinado a renovação do museu, preparado a
restaurar a estação antiga e a construir novos espaços expositivos. Para o restauro da estação,
o museu de Utrecht, contou com o projecto do gabinete dos arquitectos holandeses Leo
Wevers (n. 1965) e Vlaardingerbroeck, como edifício emblemático e entrada do museu
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1 – Estação de Caminhos de Ferro de Malibaan, em Utrecht. Aspecto do interior. Projecto de restauro. Desenho aguarelado de
Vlaardingerbroeck & Leo Wevers. Caderno de Obra. 2004.
e sua adaptação à complexidade de um programa museológico inovador1.
No campo da experiência europeia de museus deste tipo, a exposição inaugurada a 14 de Abril
de 2010 espanta enquanto objectivo em si e no contexto da conjuntura museológica
contemporânea. Ter a capacidade de fazer convergir para Utrecht peças de museu com as
características específicas de veículos ferroviários é obra! Considere-se a dimensão, tonelagem
e aparato dos bens ferroviários históricos da tipologia «material circulante». Expor esses bens
depois de terem recebido intervenções de manutenção, conservação e restauro. Defender o
partido de restauro junto de outros museus estrangeiros, para partilhar um novo horizonte do
conhecimento dos caminhos de ferro europeus, aplicando investimentos na preparação de
uma mostra holandesa com bens culturais provenientes de outros países e custeados pela
entidade expositora, ainda é mais relevante.
A avaliar pelo investimento aplicado em Portugal, para poder mostrar um comboio da colecção
ferroviária portuguesa em Utrecht, envolvendo restauro, seguros, transportes e montagens, dá
significado ao conceito de comunidade patrimonial, tal como ela foi definida na Convenção de
Faro, subscrita pelos governos europeus, em 2005. Merece de imediato o nosso
agradecimento e a nossa responsabilidade colectiva.
A exposição em Utrecht
ferroviária pode ser um
construção do museu
de ser um «tesouro
cresce em função da
nacional
e
mostra quanto essa composição
factor
estimulante
para
a
ferroviário de Portugal, pelo facto
ferroviário» cujo valor social
sua partilha com a comunidade
internacional, para além do culto
1
Agradecemos ao arquitecto Leo Wevers a autorização de publicação de um dos seus desenhos do
Caderno de Obra, referente ao projecto de restauro e à arquitecta Ana Quintas Wevers as referências
documentais sobre o Museu de Utrecht. Cf. Station Utrecht Maliebaan: De restauratie, Utrecht, 2005.
2
votado pelos grupos de amigos e associações culturais ferroviárias. Encoberto por anos de
incertezas e de algum abandono, o comboio real é uma Fénix renascida!
Os reflexos desta exposição internacional foram e estão a ser relevantes em Portugal. O
empréstimo do comboio real estacionado em Santarém, composto pela locomotiva D. Luís I e
respectivo tender (1862), salão dito D. Maria Pia (1858) e Salão do Príncipe (1877) concretizouse através de um contrato estabelecido entre o museu holandês e a FMNF. Este contrato
permitiu a limpeza, a recuperação e o restauro estático do comboio, quer a nível das
estruturas físicas, quer a nível dos revestimentos do património integrado e objectos móveis.
Os efeitos de tal operação fizeram-se sentir nos diferentes serviços do Museu Nacional
Ferroviário, a nível de conservação e restauro, a nível dos objectivos do inventário do
património museológico ferroviário, assim como no dinamismo dos seus serviços e
planificação das suas actividades, sobretudo no campo da conservação e restauro de
composições e veículos históricos das colecções portuguesas, respectivo inventário e
programação museológica.
A unidade de restauro de comboios históricos, da EMEF de Contumil, dirigida pelo Eng. Carlos
Machado, foi convocada a planear e a executar o restauro e fê-lo, pela primeira vez, com a
integração de uma jovem equipa do Museu Nacional Ferroviário, que em contexto de trabalho,
actualizou as suas práticas e aprendeu outros critérios, técnicas e procedimentos usados
durante a intervenção.
O resultado desta experiência teve imediatas consequências públicas e veio a determinar uma
decisão do Conselho de Administração da Fundação, anunciada no último Conselho Consultivo,
da integração do comboio real nas colecções do Entroncamento, com a finalidade de constituir
um dos pólos de atracção do museu. Contribui ainda para o anúncio público de um plano de
conservação e restauro a levar a cabo, durante os próximos anos, do material circulante do
Museu Nacional Ferroviário.
A conjuntura mostrou-se pois favorável. Por razões que se adiantarão, mas também, pela
afirmação do papel da investigação histórica na construção do Museu e na interpretação
dinâmica dos objectos museológicos2, nomeadamente dos veículos em exposição e de outros
que virão de seguida. Este aspecto permitiu desencadear a observação pública do comboio em
restauro, cuja capacidade de atracção de públicos surpreendeu as próprias autoridades.
O novo contexto de actividade dos museus ferroviários é de facto relevante e, pela primeira
vez, na história destas instituições, vem colocar o problema do património ferroviário, num
novo paradigma cultural. Importa entender este assunto para se perceber o que pode vir a
acontecer nos próximos anos, quer na redefinição dos museus ferroviários, a nível
internacional e, sobretudo, em Portugal, quer no campo da investigação histórica e científica.
Os museus ferroviários surgiram no Mundo para dar resposta à reunião de colecções de
material circulante e outros aspectos dos sistemas ferroviários, do ponto de vista técnico,
2
Situação que levou à edição de um CD, com o título Restauro do Comboio Real, editado pela FMNF,
com o apoio financeiro da REFER (actualmente à venda no Museu e Núcleos Museológicos).
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3 – The Riga Charter, FEDECRAIL, 2005, Rosto.
social e industrial. Nasceram pela força de engenheiros, técnicos e operários ferroviários. De
um ponto de vista temporal e conceptual, estes museus são contemporâneos e parceiros dos
museus industriais, embora filiados no campo doutrinal do património industrial. Aliás, só
tardiamente é que se entendeu que o campo conceptual do património ferroviário continha
em si o gérmen de uma potencial autonomia.
Entre 1955 (Inglaterra) e 1990, o tronco comum dos patrimónios das diferentes etapas da
industrialização era o património industrial, propriamente dito. Este por sua vez, pertencia ao
grupo dos “novos patrimónios” emergentes da 2.ª Guerra Mundial3.
Felizmente, entre 1990 e 2010, sucedeu a partogénese dos patrimónios mais recentes, a partir
daquele tronco comum, cujas águas se separaram, depois do Congresso Internacional do
Património Industrial, realizado em 2003, em Niznhy Tagil, na Rússia. Desde então, tornou-se
clara a especificidade e a autonomia do património ferroviário, no contexto da renovação do
pensamento patrimonial.
Se a partir de 2003, o património industrial teve a sua Carta internacional de salvaguarda,
conservação e valorização, também o património ferroviário passou a dispor de um
documento de referência das suas particularidades, processos e técnicas de salvaguarda,
valorização, conservação e restauro: a Carta de Riga (2005)
Este documento constitui a pedra angular da actividade dos museus e das instituições cujo
objectivo é a afirmação da diferença (em relação aos outros patrimónios) e da mudança, em
relação ao passado, à tradição e ao empirismo prosseguido na protecção e conservação do
património ferroviário, enquanto recurso cultural, tanto pelos serviços de património das
3
Ao lado dos jardins históricos, património paisagístico, património arquitectónico contemporâneo, etc.
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empresas ferroviárias, quer pelos historiadores dos caminhos de ferro, quer ainda pelos
próprios museus ferroviários.
Quais as grandes novidades introduzidas pela Carta de Riga? Em primeiro lugar o conceito de
património ferroviário, muito mais preciso e abrangente, referindo-se a todos os caminhos de
ferro históricos preservados e em exploração (implicando as infra-estruturas de via e obra,
edifícios de diversa natureza e fins, a própria paisagem envolvente) e aos museus ferroviários e
de carris de ferro, sejam urbanos, mineiros ou rurais. Independentemente da sua gestão, este
património, entendido como uma herança ferroviária cultural, envolve uma capacidade de
perpetuação da vida ao material circulante, por via de conceitos de gestão dos sistemas
ferroviários preservados ou da sua exploração nas redes nacionais de caminhos de ferro. Estes
factos conferem aos museus um carácter de “museus em movimento”.
Uma maior precisão das definições de preservação, conservação, restauro e reparação
contribuem agora – no âmbito da Carta de Riga – para um nível mais rigoroso da salvaguarda e
valorização dos bens. Estas definições tem de imediato efeito sobre as Normas de Conservação
e Restauro dos museus que as aplicarem e nas regras a desenvolver quanto à valorização e
exploração dos recursos culturais ferroviários.
Tudo isso reforça o papel das comunidades ferroviárias na construção dos bens culturais
comuns e na afirmação do significado histórico da memória europeia e internacional colectiva
e do papel dos caminhos de ferro amanhã, em função dos desafios ambientais e sociais que se
antevêem.
Neste sentido, a exposição do Museu de Utrecht constitui um marco histórico. A compreensão
do significado da mudança operada nos últimos anos chegou às modernas correntes de
museologia ferroviária e da valorização do património ferroviário. Nesse horizonte radica a sua
capacidade de afirmação e de criatividade.
Jorge Custódio
Entroncamento – 25 de Maio de 2010.
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