MULHERES DA ELITE, “MISSIONÁRIAS DO PROGRESSO” (1902
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MULHERES DA ELITE, “MISSIONÁRIAS DO PROGRESSO” (1902
1490 MULHERES DA ELITE, “MISSIONÁRIAS DO PROGRESSO” (1902-1920) Maria Apparecida Franco Pereira Universidade Católica de Santos RESUMO Mulheres residentes em Santos, cidade portuária, têm uma atuação significativa no campo da educação, no início do século XX, numa época em que o elemento feminino começava a ter visibilidade social. O objetivo desta pesquisa é recuperar - para a historiografia da educação brasileira - a ação dessas mulheres, na sua maioria sem formação específica para o magistério e com a contribuição de intelectuais da cidade, que levaram avante uma instituição de ensino, hoje centenária. Assim, tentamos tirar do anonimato histórico as principais protagonistas, num esforço biográfico, de uma atividade educativa, que envolvia a formação de professoras (Liceu Feminino Santista) e a educação de crianças do meio operário e imigrante ( com as escolas maternais), entrelaçando ideais de elite com educação popular. A formação para o magistério abarcava, entretanto, fundamentalmente, um currículo de formação humanística generalizante. Essa escola, apesar de ser considerada competente, no seu nível, na cidade , encontrou a barreira do modelo da Escola Normal da Praça, na capital paulista. As balizas históricas compreendem, de um lado, o ano de 1902 ( fundação do Liceu Feminino Santista e Escolas Maternais) e de outro, 1920( época em que termina a atuação de Robertina Cochrane Simonsen, uma das baluartes desse grupo feminino, desde o seu início). As pesquisas, dentro do rigor da metodologia histórica, indicam , numa perspectiva de gênero, que essas mulheres vêm do seio de uma elite ligada às profissões liberais (advogados, médicos, engenheiros) numa cidade que passava pelo processo de modernização e higienização, mas também com uma militância socialista, no meio operário. O estudo mostra também uma educação na perspectiva laica, com vestígios de ação maçônica, e uma preocupação com a elevação cultural da mulher. Por outro lado sinalizam essas pesquisas a presença da influência cultural da capital federal, Rio de Janeiro, e da capital paulista, que , além de ter a presença atuante da Academia de Direito, vivia também as transformações advindas de uma época de modernização. Utilizaram-se fontes primárias da instituição, que tem um arquivo bem conservado, com documentação fundamental, como relatórios impressos, livros de atas das atividades administrativas e educacionais, livros de matrícula, material iconográfico (fotos avulsas e em série, álbuns fotográficos de formatura) e alguns vestígios importantes para a cultura escolar. Valemo- nos do aporte teórico de uma bibliografia de gênero (Maria Izilda Matos, por exemplo); de magistério (Nóvoa, Catani) ; de autores que se dedicam também ao estudo da educação infantil (Tizuko M. Kishimoto) ; da cultura escolar ( Viñao Frago, Ruiz Berrio, Rosa Fátima de Souza) e da história das instituições (Justino P.Magalhães, Gatti,G.Inácio Filho). 1491 TRABALHO COMPLETO As últimas décadas do século XIX são marcadas pela chamada era da modernização. A Ilustração, no final do século XVIII, colocara novas perspectivas no campo do saber: o desenvolvimento da razão como uma exigência universal (a educação torna-se um direito de todos) e transformada em razão instrumental, alimentando o desenvolvimento de uma ciência que desencadeia uma revolução tecnológica jamais vista até então, adentrando célere o século XX, ocasionando impactos principalmente no campo das comunicações: o transatlântico, o telégrafo sem fio, o telefone, a eletricidade, a aviação, o automóvel, o rádio, o cinema, além, é claro, dos avanços da própria indústria. Nicolau Sevcenko (1998, p.514) chama atenção para a repercussão dessa vertiginosa virada: “Por volta de 1900, o poder da tecnologia estava muito além do que qualquer outro século jamais sonhara”. A idéia do progresso vai se tornar companheira da idéia de civilização, necessária para tirar o mundo do seu atraso cultural e da barbárie dos costumes. Ao lado da universalização dos benefícios da civilização, coloca-se a primazia do indivíduo - acrescente-se burguês - mas que também dá margem para a presença das reivindicações de estratos mais populares da sociedade, filiadas às novas idéias socialistas no decorrer da segunda metade do século XIX. O liberalismo é o pensamento dominante, acompanhado de outras correntes como o positivismo, o evolucionismo que vão alimentar o evoluir do conhecimento, trazendo também nesse panorama outros atores. A consagração da ciência positiva como o apanágio do progresso no século XIX pôs em cena uma nova elite de personagens envolvidos na sua gestão: cientistas, médicos, engenheiros, arquitetos, urbanistas, administradores e técnicos [...] nova burocracia científico-tecnológica. (Sevcenko, 2001, p.17) Eis, então, a vanguarda de uma força modernizadora quando se elabora um discurso onde se privilegia a urbanização e a higienização das cidades. Bárbara Freitag-Rouanet, em artigo intitulado “Vida urbana e cultura”, chama a atenção para a ação educadora da cidade: “Preservar dentro da vida urbana uma civilidade e uma cidadania, que parece estar na origem da própria fundação dos centros urbanos” (2002, p.30). Flusser (apud Freitag-Rouanet, 2002, p. 31) enumera os três grandes espaços urbanos: “o político, o econômico e o cultural”, este último ocupado pelas instituições artísticas e educacionais. Os grandes centros urbanos no Brasil, num movimento sincronizado, vão perdendo as suas vestes arcaicas que trazem desde os tempos coloniais. Observem-se, na passagem do século XIX para o XX, no Rio de Janeiro, a modernização do porto, o saneamento da cidade e a reforma urbana. O mesmo esquema se dá na cidade portuária de Santos, respeitadas suas peculiaridades. No Brasil (não esquecendo da existência dos “dois Brasis” de Roger Bastide) a riqueza ocasionada pelo grande desenvolvimento da economia agro-exportadora do café ajuda a colocar o país, principalmente as suas metrópoles, no clima da modernização. Rio de Janeiro, a capital federal, está à frente, mas São Paulo aos poucos assume a liderança do desenvolvimento da economia cafeeira e também se moderniza. Os modelos são europeus, pois a elite tem suas raízes na Europa, onde viagens sistemáticas alimentam as suas crenças. Os valores da cultura francesa são os mais imitados, inclusive na arquitetura e na moda. As regras de civilidade são francesas, embora ao adentrar o século XX o modelo americano de vida, difundido pelo cinema, vai tomando paulatinamente conta do país. A substituição do Império pela República, antecedida pela abolição da escravatura e pelo advento da imigração; a laicização com a separação de Igreja e Estado também são outros indicativos de que o Brasil estava em novos tempos. A modernização do ensino, liderada por São Paulo e seguida por outros estados, é introduzida pela Reforma da Instituição Pública Paulista de 1890 que dá início a modificações fundamentais: o ensino 1492 seriado, a institucionalização dos grupos escolares, a estruturação da máquina administrativa. Com uma grande dotação orçamentária inicial, os projetos das construções escolares dão visibilidade à escola como centro irradiador de uma nova luz. De todos esses índices – a meta era civilizar toda a sociedade -, dois estão dentro dos objetivos desta análise: a nova imagem da mulher e a sua apropriação da educação, no Brasil ao iniciar do século XX. Gatti Júnior e Pessanha observam que “a cultura escolar disseminada em uma cidade em processo de urbanização e modernização, discursiva e física, tem a função de deixar patente a superioridade do progresso e da ação humana sobre a natureza” (2005, p.84). Os papéis sociais femininos ainda estão se construindo. Na passagem do século XIX para o XX as mulheres de uma elite nas grandes cidades, via de regra, já não estão tão reclusas. Sua presença é notada nas festas e espetáculos públicos, o que de uma maneira ou outra muitas já exerciam papéis nos encontros, nas intimidades dos lares. “Os recursos de arte implicam, primeiramente, uma vivência que, bem ou mal, é acessível a ambos os sexos e a várias categorias sociais”, lembra Etelvina Maria de Castro Trindade, a respeito da vida em Curitiba (1996, p.250-253). A presença na literatura, principalmente nos jornais femininos, na 2a metade do século XIX , não é desconhecida da historiografia brasileira. Anália Franco (cf. Bernardes, nov.1989, p.26) chama a atenção sobre o papel importante da imprensa na sua “missão civilizadora”. Na filantropia elas podem, sem maiores problemas, mostrar seus dotes e ampliar o avanço da mulher no espaço público. Entretanto é no espaço do magistério que a mulher alcança maior legitimidade social. Já no século XIX, antes da implantação dos grupos escolares, a escola funcionava no seu lar ou numa sala alugada numa casa de família. Mas a profissionalização não era aceita para a mulher burguesa. Ela recebia instrução em casa ou geralmente nos colégios religiosos, durante a Primeira República. “A mulher burguesa deveria ter acesso ao ensino para a expansão às suas qualidades de espírito, a seus dotes afetivos, mais para satisfazer o senso estético do que para contribuir para o próprio bem estar, para a manutenção de sua vida” (Nadai, 1991, p.31). Sua educação relacionava-se, sobretudo, à sua condição de mãe e congregadora nuclear da família. Poderia parecer diminuição do poder financeiro do pai, a filha ter que trabalhar; ela “deveria dar lugar a outra jovem que precisasse ganhar a vida”(informação que recebi numa entrevista com uma protagonista da época). Entretanto no caso das agruras ou revezes econômicos do café, a mulher estava preparada para assumir papéis próprios de uma classe média. * * * A virada do século em Santos se dá no contexto da modernização. A ferrovia São Paulo-Railway é inaugurada em 1867, ligando o interior produtor da rubiácea ao porto. O primeiro trecho do cais de pedra é aberto aos navios em 1891. As epidemias começaram a ser vencidas, a cidade é saneada , o discurso médico-higienista é bastante presente. O desenvolvimento urbanístico dispara. Por outro lado, Santos – de tradição portuária e comercial – destacava-se como grande porto escoadouro da grande riqueza paulista, o café. O crescimento do comércio cafeeiro impulsionava a cidade para o progresso. Júlio Ribeiro, em sua obra “A carne”, coloca informações sobre a cidade em 1889: “O povo santista é polido, afável, obsequioso, franco: a riqueza que lhe proporcionou o comércio de sua cidade fálo generoso, até pródigo” (1952, p.95). Embora haja um mercado “pantopolista” a atividade cafeeira é a que direciona toda a vida do centro da cidade: Pelas ruas vai e vem, encontra-se, esbarra-se um enxame de gente de todas as classes e de todas as cores, conduzindo notas de consignação, contas comerciais, cheques bancários, maços de cédula do 1493 tesouro, latinhas chatas com amostras de mercadorias. Enormes carroções articulados, de quatro rodas, tirados por muares possantes, transportam da estação do caminho de ferro para os armazéns e deles para as pontes, para o embarcadouro, os sacos de loura aniagem, empanturrados, regorgitando de café. Homens de força bruta, portugueses em sua maioria, baldearam-nas para bordo, sobre a cabeça, de uma a um, ou mesmo dois, em passo acelerado, ao som, por vezes, de uma cantiga ritmada, monótona, excitativa de movimento como um toque de corneta. (Ribeiro, 1952, p. 100) Nesse grande centro dos negócios do café vibra uma elite que é formada por gente de tradição do comércio santista, muitos de origem portuguesa, que se mescla por contratos sociais ou por casamentos com famílias dos setores agrícolas do Estado. Convivem fazendeiros e comerciantes de café, importadores e exportadores e agentes de bancos estrangeiros, todos filiados à Associação Comercial de Santos. Nessa elite também circulam intelectuais formados nas Escolas de Direito, de Medicina e Engenharia ou nas viagens européias, intelectuais ligados à administração, muitos participantes da política local. O espírito da Belle Époque do Rio de Janeiro soprava na cidade assim como os contatos com a capital paulista. Santos vai recebendo, cada vez mais, número maior de instituições de ensino: algumas mais efêmeras, outras pontuais (professores particulares, de instituições de imigrantes portugueses,espanhóis e italianos e de entidades operárias). Em 1900 e 1902, dois grupos escolares estaduais (Cesário Bastos e Barnabé); reúnem-se outras escolas municipais (Grupo Escolar Olavo Bilac). Em 1904, duas congregações religiosas (Maristas e Coração de Maria) sediam suas escolas que vão ser freqüentadas por uma classe média. * * * Em 1902, por uma iniciativa da Associação Beneficente Instrutora do Estado de São Paulo, dirigida pela educadora e escritora Anália Franco (1856-1919), funda-se em Santos, tendo à frente a professora normalista Eunice Caldas, uma filial dessa instituição, começando a funcionar duas escolas maternais e o Liceu Feminino Santista (para a formação de suas professoras). Eunice Caldas era apresentada na imprensa local como “evangelizadora do espírito caritativo”, que vinha para defender a sorte de tantos pequeninos seres condenados à ignorância. (A Tribuna, Santos, 20/maio/1902). Anália Franco explica nessa mesma reportagem: Os fins da Associação Beneficente, ainda repetimos uma vez, são amparar e educar a infância desvalida e todos que procuram a fonte civilizadora da instrução, sem distinção de classes, nem de seitas, porque a caridade verdadeira não tem rótulos. Abri, pois, os vossos corações e os vossos braços generosos, afim de amparar uma multidão de crianças, que, sem uma sólida educação científica e moral, caminhará para o inevitável 1494 abismo da degeneração, comprometedora do futuro de nosso caro Brasil. A população santista também foi conclamada a aderir à fundação da sucursal em Santos, com a contribuição espontânea e indeterminada (ao alcance de suas bolsas) “no intento de auxiliar os promotores de tão humanitária e civilizadora tentativa, colocando-se à disposição de uma luta permanente para receber as assinaturas dos que queriam contribuir para tão elevado fim”, noticiou o jornal local “A Tribuna”, a 13 de maio de 1902. Em 1903 o grupo santista desliga-se de São Paulo, fundando a Associação Feminina Santista (A.F.S.) que desenvolverá, durante dezenas de anos, a sua caminhada em prol da educação da mulher e da criança, até 1976, quando encerra suas atividades e transfere a instituição escolar, hoje com mais de cem anos, para a Mitra Diocesana de Santos. Esse movimento vem mostrar que a nova mulher tem também tarefas na construção de uma sociedade civilizada e precisa estar melhor preparada para a regeneração social. Anália Franco lembra(apud Bernardes,1989): A atividade consciente e racional, que é apanágio do homem, tem operado neste século a mais admirável transformação, quer no mundo físico, quer no mundo intelectual; mas o triste preconceito, que infelizmente predomina em muitos espíritos antagonistas do nosso desenvolvimento físico, intelectual e moral, conserva-nos ainda comprimidas nos acanhados da educação que nos legou a idade média. Eunice Caldas, no Relatório à Diretoria da A.F.S., datado de 6/abr./1904, à p. 13, escreve: “A creação desse estabelecimento de ensino superior à imitação do Curso Normal de São Paulo representa uma tentativa arrojada contra a inércia que permanecíamos sobre a matéria de ensino feminino em Santos”. É nesse sentido que se deve entender o movimento da Associação Feminina Santista, que cuja direção congrega a elite santista a partir de 1902. Prepara mulheres para melhor desempenharem a sua função educativa de formar e civilizar crianças de estratos mais inferiores da sociedade, principalmente na época, filhos de imigrantes, ligados às atividades dependentes do comércio de café (ferroviárias, portuárias; sacarias, transporte etc.) e da construção civil. Raymond Williams (cit. em Lanna, p.20, nota 11) observa que “a classe dominante queria desfrutar as vantagens de um processo de transformação que ela própria estava promovendo e ao mesmo tempo, controlar ou suprir suas conseqüências indesejáveis, porém inevitáveis”. Seria esta também a intenção desse grupo? O curso de magistério do Liceu, apesar da boa adesão inicial, diploma apenas quatro alunas na primeira turma. Estaria essa elite realmente conscientizada da importância de seu papel na sociedade civilizada? O curso maternal registrou no início mais de 100 crianças por ano. E o estudo dos matriculados revela que não atendia somente aos menos protegidos da sorte. Aliás, no estatuto da A.F.S., a escola maternal era “para todas as classes”. Em artigo no jornal A Tribuna (datado de 15 de abril de 1952, p.3) o historiador Jaime Franco comentava: “O diploma do Liceu equivalia a uma consagração à inteligência da mulher santista e à segurança duma excelente educadora, à qual podiam confiar seus filhos”. O ensino é laico, conforme prega a nova República, e praticamente a presença da religião é nula nos primeiros anos (único ato da presença do sacerdote registrado é no lançamento da pedra fundamental do prédio escolar e a contribuição mensal de dois padres). Seus mestres são profissionais liberais e muitos deles, maçons. 1495 Outros indícios mostram a presença da Maçonaria: em 1902, nos primeiros meses de existência do curso a professora fundadora da A.F.S., D. Eunice Caldas, solicitou da Loja Maçônica Braz Cubas (Aug. Oriente de Santos) a cessão de espaço para funcionar esse curso. Embora a resposta tenha sido positiva, outro espaço foi ocupado. (Of. N 49, de 12/nov./1902, assinado por M. Pompílio dos Santos, secretário da Loja). Em sessão magna da Conferência a Loja Fraternidade homenageia a Associação Feminina Santista, convidando D. Elisa de Affonseca, presidente da instituição, para tomar assento à mesa. O orador oficial da noite é o Cel. Antônio Raposo de Almeida, maçom e professor do Liceu. O Tronco da Beneficência é destinado à Associação Feminina Santista, totalmente (ata da Loja Fraternidade de 20/05/1905). A participação maçônica envolve também uma formação positivista. Nomes importantes da política e cultura santista (Galeão Carvalhal, Alberto Sousa, Vicente de Carvalho, Silva Jardim, Herculano Inglês de Sousa, jurista e renomado romancista – O Missionário) assumiram o positivismo. Muitos o nutriram na Faculdade de Direito de São Paulo. Apesar do cunho cientificista, a importância dada a outros aspectos da cultura como o literário, o musical é marcante nessa época na sociedade santista. Portanto, ao lado desses missionários, com sua formação cientificista, convivem os valores estéticos, talvez resíduos da necessidade da vida nos grandes salões. A existência dos cursos livres de piano e da pintura, a recitação da poesia, a leitura de trechos de obras literárias, os certames literários, os recitais de canto, fazem parte da educação e da convivência social. É uma preocupação com a elevação intelectual da mulher, com a formação da mulher bem educada através da educação artística e literária, sem descurar, contudo, da educação dos filhos, preparação para o lar (em 1933, curso de cozinha fez sucesso). Festas literárias sempre fizeram parte da vida do Liceu, desde a sua fundação. Assim, acompanhando esse espírito cientificista que domina a educação da época, missionária do progresso (tecnológico, laico, de difusão da cultura), a dimensão artística e literária está presente. A educação relaciona-se com a vida da sociedade e a vivência literária é uma realidade nessa “belle èpoque” que se tenta ensaiar, a exemplo do Rio de Janeiro de então. * * * Uma questão coloca-se à nossa reflexão, após um relance em atividades do Liceu Santista: como um grupo de senhoras, cujos nomes são tão pouco conhecidos da historiografia, levaram a cabo uma obra tão importante? Embora o grupo mais atuante na “filosofia” da instituição fosse oriundo dos estratos de profissionais liberais, todas as grandes firmas ligadas ao setor cafeeiro contribuíam para a manutenção das escolas da Associação (o ensino era gratuito). O grande desenvolvimento do alto comércio da praça santista, que incluía, como dissemos, casas exportadoras nacionais e estrangeiras e comissárias de café, importadores, bancos estrangeiros, possibilitou uma tradição de auxílio financeiro mensal às realizações filantrópicas e assistenciais. E a A.F.S. várias vezes dá testemunho disso: “muito devemos ao auxílio que nos tem prestado o culto Comércio desta praça /.../” (Relatório, 1905, p.3). A relação nominal aparece em todos os relatórios impressos dessa entidade. A comissão de contas da instituição era composta por três dessas firmas. Essa maciça participação foi conseguida através de uma equipe especialmente designada. Robertina C. Simonsen, membro atuante da diretoria da A.F.S., colaborou nessa arrecadação, conjuntamente trabalhando com o seu marido, Sidney Simonsen, proprietário de firma de café. Essa grande contribuição do comércio santista era também acompanhada pela mensalidade de centenas de mulheres, sob o cuidado - durante muitos anos - de uma eficiente tesoureira do grupo fundador, Serafina Eugênia Millon. 1496 Porém a grande performance era de mulheres de homens especiais. Como vimos, a urbanização crescente atraía os serviços de profissionais liberais como médicos, advogados, engenheiros que, freqüentadores dos bancos escolares, sabiam do valor da instrução: Médicos como Germano Melchert, Raimundo Soter de Araújo, Silvério Fontes, Tomás Catunda; engenheiros como Saturnino de Brito, Miguel Presgrave. Grandes nomes da instrução em Santos como Adolfo Porchat de Assis (médico formado no Rio de Janeiro) e seu irmão Artur (advogado); Vicente de Carvalho, bacharel e poeta etc. O que, para nós, parece claro é que a atuação dessas mulheres da elite, na cidade santista, tem na retaguarda seus pais, seus maridos, de profissões liberais, a incentivá-las ou assessorá-las. A presença desses “missionários do progresso” na educação não é fato isolado de Santos. Etelvina M. de Castro Trindade, ao estudar as mulheres de Curitiba na Primeira República (1889-1930), refere-se às muitas vozes preocupadas com a agora indispensável formação feminina. Pertencem elas a homens públicos, intelectuais, jornalistas, professores e professoras que, mercê de algum trato com assuntos de ensino ou das mulheres, julgam-se habilitados a opinar sobre as fórmulas aplicáveis à sua educação (1996, p.29). A título de amostra, chamaremos a atenção para algumas mulheres que foram atuantes nos primeiros anos nas diretorias da Associação Feminina Santista e para sua relação com familiares dessa elite intelectual. A Comissão que organizou os Estatutos da Associação Feminina Santista era composta de: Adolfo Porchat de Assis (médico) – esposo de Dulce de Lamare Porchat de Assis; Vicente de Carvalho (bacharel) – esposo de Ermelinda de Mesquita Carvalho; Luiz Porto Moretz-Sohn de Castro, juiz de direito e casado com Irene Plaat Moretz-Sohn; Miguel Presgrave (engenheiro), cônjuge de Iracema Presgrave e cunhado de Eunice Caldas(as duas são irmãs de Vital Brasil); Adolpho Augusto Millon (hoteleiro e Juiz de Paz), esposo de Serafina Eugênia Pinto Millon. Os quase primeiros vinte anos da presidência da Associação Feminina Santista (1902-1920) estão divididos entre Elisa Sodré de Affonseca, da importante família dos Azevedo Sodré, esposa do comissário de café e ex-prefeito Carlos Affonseca; Diva de Lamare Porchat de Assis, Robertina C. Simonsen, Gertrudes Schmidt Whitaker. Diva de Lamare Porchat de Assis é casada com Adolfo Porchat de Assis, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, homem de dotes literários, de grande atuação na vida escolar da cidade. É a presença masculina mais presente na documentação da entidade.Ela vem do Rio de Janeiro, após o casamento. Robertina Cochrane Simonsen, da família Cochrane do Rio de Janeiro, de engenheiros ligados às ferrovias, filha de Inácio Wallace Gama Cochrane e esposa do inglês Sydney Simonsen, que veio para o Brasil dedicar-se aos negócios do café. Mãe de Roberto Cochrane Simonsen, um dos líderes intelectuais primeiros da indústria nacional, foi, até 1920, uma das mulheres mais atuantes da Associação. Ermelinda Mesquita de Carvalho – irmã do liberal Júlio de Mesquita (de O Estado de São Paulo) e casada com o Poeta do Mar, Vicente de Carvalho, que foi Secretário do Interior em 1892 (a que a pasta da instrução estava sujeita; adquiriu prática com a legislação escolar). Teve uma pequena experiência como fazendeiro de café. Participou também da vida do Liceu Feminino Santista, compondo a letra do hino da escola e como professor. Era bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo. Mariana Conceição, da família do comissariado de café Freitas Guimarães, era consorciada do comissário de café, homem de benemerência e largueza de visão – Júlio Conceição, filho do barão de Serra Negra (Piracicaba), amigo de Pedro II. 1497 O Liceu, concluindo, é obra da força conjugada do ideal de homens e mulheres que acreditaram na educação, dentro do espírito de uma época, muito bem resumida por Louro e Meyer, nov. 1993, p. 50): O discurso médico-higienista, por exemplo, inseria-se num processo de transformação social mais amplo, marcado pela urbanização, pela presença dos imigrantes, pelo início da industrialização, além da circulação de idéias positivistas e liberais. É nesse contexto que vem justificar a crença na escolarização como fundamental para o avanço e modernização do país. É também, a partir daí que a educação para jovens mulheres vai assumindo, gradativamente, algumas das características / que antes apontamos /. “Missionárias e missionários do progresso”,cujo conhecimento a historiografia da educação deve dedicar ainda muitos estudos. FONTES e BIBLIOGRAFIA 1. Fontes primárias: ASSOCIAÇÃO FEMININA SANTISTA. Caldas. Santos, 1903. Regulamento sobre a instrução, organizado por Eunice ASSOCIAÇÃO FEMININA SANTISTA. Regulamento geral do Lyceu Feminino e Escola Maternal, apresentado pela presidente da Associação Diva de Lamare Porchat de Assis. Santos, 1914. ASSOCIAÇÃO FEMININA SANTISTA . Relatórios da Diretoria (1904 a 1939). 2. Bibliografia: BERNARDES, Maria Thereza Caiuby Crescenti. Mulheres de ontem? – Rio de Janeiro – Século XIX. São Paulo: T. A. Queiroz, Editor, 1989. (col. Coroa Vermelha, v.9). ___________. República brasileira em jornais femininos da época (1889-1890). Cadernos de Pesquisa , São Paulo, n.71, p.20-28, nov. 1989. BORGES, Wanda Rosa. 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