LER| Número 6 - iiLer - PUC-Rio

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LER| Número 6 - iiLer - PUC-Rio
número 6
dez., 2014
ISSN 2179-2801
Corpo editorial
Diretor do Instituto Interdisciplinar de Leitura (iiLer) / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio
Luiz Antonio Coelho
Editor
Alessandro Rocha — Instituto Interdisciplinar de Leitura (iiLer) / Cátedra UNESCO de Leitura / Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio)
Editora assistente
Luiza Trindade — Instituto Interdisciplinar de Leitura (iiLer) / Cátedra UNESCO de Leitura / Pontifícia
Universidade Católica (PUC-Rio)
Conselho editorial Brasil
Alberto Cipiniuk — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
André Moura — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Benedito Antunes — Universidade Estadual Paulista (UNESP)
César Pessoa Pimentel — Faculdade de Ciências Médicas e Paramédicas Fluminense (SEFLU)
Daniel Coelho — Universidade Federal do Sergipe (UFS)
Evando B. Nascimento — Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Goiandira O. de Camargo ­— Universidade Federal de Goiás (UFG)
Helena Calone — Secretaria de Cultura do Acre
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Marcelo Santana Ferreira — Universidade Federal Fluminense (UFF)
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Patrícia Constâncio — Prefeitura Municipal de Blumenau/AMEL
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Paula Glenadel Leal — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Ricardo Salztrager — Universidade Federal Fluminense (UFF)
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Rosana Kohl Bines — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
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Santinho Ferreira de Souza — Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Sylvia Maria Trusen — Universidade Federal do Pará (UFPA)
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Valéria da Silva Medeiros — Universidade Federal do Tocantins (UFT)
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Conselho editorial estrangeiro
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David Acevedo Santiago — Secretaria de Educación Pública (México)
Ernesto Abad — Universidad de La Laguna (Canarias)
Fernando Avendaño — Universidad Nacional de Rosário (UNR – Rosário)
Jacques Leenhardt — L’École des Hautes Études en Sciences (EHESS – França)
Jorge Larrosa — Universidat de Barcelona (UB – Espanha)
Nicolás Extremeva Tapia — Universidad de Granada (Espanha)
Sumário
Editorial
Lendo, vendo e sendo. O ser tramado nos vários fios da realidade
7
Alessandro Rocha
Estudo teórico
Lire à l’heure de la numérisation
10
Emmanuel Fraise
A formação continuada de mediadores de leitura: o contexto online em foco
32
Solimar P. Silva
Entre os muros da escola: a crise das disciplinas nas instituições de ensino
47
Ricardo Salztrager & Pedro Sobrino Laureano
STARGAZING: reescrituras de Hollywood en el contexto experimental
59
Antonio Weinrichter. Tradução de Patricia Carmello
Um olhar sobre os monólogos escritos e encenados por Lygia Bojunga:
cartas entre cenas
77
Maria Dolores Coni Campos
Memórias de um leitor de Monteiro Lobato
91
Francisco Thiago Camêlo
Relato de pesquisa
Sagrado Quilombo, coração dos Palmares: leituras e leitores
100
Rosângela Veiga Júlio Ferreira & Valéria Cristina Ribeiro Pereira
Relato de experiência profissional
Na pista dos leitores
115
Rosane de Bastos Pereira
Resenha
Lendo imagens. Uma história de amor e ódio
122
Maria Cristina Ribas
Entrevista
Entrevista com Nelly Novaes Coelho
Francisco Thiago Camêlo
127
Lendo, vendo e sendo. O ser tramado nos vários fios da realidade
Alessandro Rocha1
Ler e ver para ser, ou ser para ler e ver? Lendo, vendo e sendo; sendo enquanto lendo e vendo.
O gerúndio é o ambiente onde a articulação entre o fora e o dentro se torna possível. Ser é da
dimensão do estático, sendo é do dinâmico. No sendo está posto tanto o inacabamento, quanto as
possibilidades da realização. Lendo e vendo (vendo e lendo) se vai sendo, os primeiros são condição
e possibilidades para o último. Sendo é necessário ir vendo e lendo (lendo e vendo), o primeiro é
condição e possibilidade para os últimos.
Leitura (em suas múltiplas linguagens) e existência são realidades definitivamente imbricadas. Paulo
Freire nos diz isso de forma muito clara: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que
a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica
implica a percepção das relações entre o texto e o contexto”2.
Ser é projeto. É um sendo que vai se tramando na extensão das objetividades e das subjetividades.
A imagem da trama, dos fios cruzados para urdir um tecido, é central para considerar a leitura para
além de uma mera atividade mecânica. Na apresentação do livro Tecendo um leitor: uma rede de fios
cruzados (a imagem da trama aparece como central), Eliana Yunes propõe que:
O ato de leitura não corresponde unicamente ao entendimento do mundo do texto, seja ele escrito ou
não. A leitura carece de mobilização do universo de conhecimento do outro – do leitor – para atualizar
o universo do texto e fazer sentido na vida, que é o lugar onde realmente o texto está. Aprender a ler é
familiarizar-se com diferentes textos produzidos em diferentes esferas [...] para desenvolver uma atitude
crítica, quer dizer, de discernimento, que leve a pessoa a perceber as vozes presentes nos textos e perceber-se capaz de tomar a palavra diante deles.3
Exatamente por causa da complexidade de ler (ou seria de ser?) é que se faz necessário considerar a
leitura (e assim a própria vida) em suas múltiplas relações com a realidade, bem como em suas múltiplas linguagens. É efetivamente sobre o ser que se está tratando quando se fala sobre o ler, mesmo
quando isso não fica claro, ou ainda omitido nas várias teorizações sobre o assunto. Passando do
nível filosófico da questão do sendo em sua relação com o lendo, a uma dimensão mais pragmática
sobre a leitura, permanece a mesma exigência de um olhar cuidadoso a respeito da complexidade
envolvida em tal ato. Em Manual de reflexões sobre boas práticas de leitura suas autoras nos dizem:
A rapidez estonteante com que recebemos novos dados sobre o mundo e a realidade em que vivemos,
sobre nosso passado e futuro, sobre os acontecimentos mundiais e os do nosso bairro nos leva à necessidade de nos prepararmos cada vez mais para lidar com todas as linguagens, verbais e não verbais, bem
como todas as mídias, novas e nem tão novas, como o cinema, a televisão, o rádio, a mídia impressa dos
jornais e revistas, a internet – e os livros!4
No sentido de considerar a leitura de forma complexa, tanto em seu caráter teórico quanto em suas
1. Editor da Leitura em Revista e coordenador de pesquisa e publicações no Instituto Interdisciplinar de Leitura / Cátedra UNESCO de
Leitura PUC-Rio.
2. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 2001. p. 22.
3. YUNES, Eliana. Tecendo um leitor: uma rede de fios cruzados. Curitiba: Aymará, 2009. p. 9.
4. VERSIANI, Daniela B.; YUNES, Eliana; CARVALHO, Gilda. Manual de reflexões sobre boas práticas de leitura. São Paulo: UNESP, 2012.
p. 51.
diversas práticas, este sexto número da Leitura Em Revista (LER) apresenta um conjunto de reflexões
que visam contribuir com o leitor, sobretudo com o pesquisador, no aprofundamento desse importante campo de estudos: a leitura. São sete estudos teóricos, um de relato de pesquisa, um relato de
experiência, uma resenha e, uma entrevista que tomam os fios da trama no sentido de compreender
com tal tecido se faz.
O primeiro estudo teórico é A leitura na era digital do professor Emmanuel Fraisse (traduzido por
Luiza Trindade). Nele as muitas e rápidas transformações no que diz respeito aos suportes dos textos
literários são discutidas com profundidade. Em seguida, o texto A formação continuada de mediadores de leitura: o contexto online em foco, de Solimar P. Silva, considera a formação continuada do
professor de língua portuguesa na dimensão da mediação de leitura. Tal formação, colocada no contexto online, deverá vislumbrar que esse profissional da língua portuguesa seja de fato um mediador
de leitura, e não somente um decodificador de signos linguísticos.
O estudo seguinte assume o lugar da educação para considerar a afirmação do ser na dinâmica do
sendo. Ricardo Salztrager e Pedro Sabrino Laureano em Entre os muros da escola: crise das disciplinas nas instituições de ensino empreende uma leitura da relação entre poder e escola a partir do
filme “Entre os muros da escola”. Dialogando com Deleuze o artigo trabalha a emergência da sociedade de controle e seu aparecimento, bem como sua crise, no ambiente escolar.
Ainda no universo do cinema STARGAZING: reescrituras de Hollywood no âmbito experimental de
Antônio Weinrichter (traduzido por Patrícia Carmello) discute o cinema experimental e sua relação
com a realidade posta nos fragmentos de vida capturados pelo olhar cinematográfico. Discussões
sobre a cultura de massa e as vanguardas são propostas no cenário dos novos olhares em perspectiva.
Os dois últimos estudos teóricos localizam-se no universo da literatura, privilegiando autores que
pensam e refletem sobre o universo infantil e juvenil. Em Um olhar sobre os monólogos escritos e
encenados por Lygia Bojunga: cartas entre cenas, Maria Dolores Coni Campos recorta textos do
grande acervo de Lygia e constrói um caminho literário de beleza e sedução com relação a leitura.
Com Memórias de um leitor de Monteiro Lobato Francisco Thiago Camêlo trança os fios de sua biografia enquanto leitor e a narrativa de Lobato montando uma trama que resulta em bela tapeçaria
literária.
Após a seção de estudos teóricos a LER 6 apresenta uma série de outras reflexões sobre a leitura: na
rubrica Relato de Pesquisa, Rosângela Veiga Júlio Ferreira e Valéria Cristina Ribeiro Pereira inscrevem
Sagrado quilombo, Coração dos Palmares: leituras e leitores. As autoras relatam o projeto desenvolvido numa escola na cidade de Juiz de Fora. Já em Relato de Experiência, Rosane de Bastos Pereira
apresenta seu Na pista dos leitores, onde expõe sua experiência numa visita a instituições de ensino
no Reino Unido. Em seguida encontramos a resenha do livro Lendo imagens: uma história de amor
e ódio de Alberto Manguel publicado pela Companhia das Letras. Por fim, como último fio da trama
de LER 6, temos a entrevista com Nelly Novaes feita por Francisco Thiago Camêlo.
Olhando o tecido da LER 6 pelo verso temos o trançado dos fios de ler, ver e ser num ritmo interdisciplinar que, por não ser estático, acaba por revelar um lendo e vendo férteis para a afirmação
do sendo. A todos os leitores convidamos a tomarem também seus fios e contribuírem com nosso
tecido o fazendo mais rico de sentidos.
Lire à l’heure de la numérisation
A leitura na era digital
Reading in the digital age
La lectura en la era digital
Emmanuel Fraisse1
Tradução de Luiza Trindade2
Resumé
Dans quelle mesure un ensemble de dispositifs complexes aussi massivement répandus qu’internet et la numérisation
modifient-t-ils nos pratiques de lecture, notre rapport à l’écrit, aux informations, aux savoirs et aux textes, à l’idée de littérature même? Quel est à terme son impact sur la lecture? Dans une perspective anthropologique et culturelle, l’article
s’interroge sur les effets déjà sensibles et ceux à venir d’un dispositif qui n’est pas seulement technique et technologique, mais dont les effets renvoient assurément aux “manières” et aux “arts de faire”, donc aux modes de représentation
et de pensée chers à Michel de Certeau (CERTEAU, 1990). À travers des pratiques, des procédures et des outils renouvelés, c’est peut-être une certaine conception de la communication littéraire, et en un sens l’idée même de la circulation
et de la définition des textes, de la littérature et de la culture qui est en jeu.
Mots clés: numérisation; lecture; communication littéraire.
Resumo
Em que medida um conjunto de dispositivos complexos tão massivamente difundidos como a Internet e a digitalização
modificam nossa relação com a escrita, com a informação, com o saber, com os textos, com a literatura? Qual, afinal,
seu impacto sobre a leitura? Através de uma abordagem antropológica e cultural, o artigo se interroga sobre os efeitos
futuros e os já sensíveis de um dispositivo que não é só técnico e tecnológico, mas que remetem a definições caras a
Michel de Certeau, como “maneiras” e “artes de fazer”. Através de práticas e procedimentos renovados, seja talvez uma
concepção de comunicação literária, a própria ideia de circulação e definição de textos, de literatura e de cultura, o que
está em jogo.
Palavras-chave: digitalização; leitura; comunicação literária.
Abstract
To what extent a set of complex devices so massively widespread as the Internet and digitization modifies our relationship with writing, data, knowledge, texts and literature? What is, after all, its impact on reading ? Through an anthropological and cultural approach, the article wonders about the future and the already sensitive effects from a device
that is not only technical and technological, but that refers to the Michel de Certeau’s definitions, as “ ways “ and “ arts
to do.“ Through renewed practices and procedures, it is perhaps the idea of a literary communication, of circulation and
definition of texts, literature and culture what is at stake.
1. Université Sorbonne Novelle - Paris 3 / DILTEC.
2. Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e editora assistente da Leitura
em Revista.
Keywords: digitizing; reading; literary communication.
Resumen
¿En qué medida un conjunto de dispositivos complejos difundidos de forma tan masiva como la Internet y la digitalización modificar nuestra relación con la escritura, con la información, con el conocimiento, con los textos, con la misma idea
de la literatura? Qual su impacto en la lectura? A través de un enfoque antropológico y cultural, el artículo se pregunta
sobre los efectos presentes y futuros de un dispositivo que no es sólo técnico y tecnológico, pero cuyos efectos se refieren a los tipos de definiciones caras a Michel de Certeau, como “formas“ y “artes que hacer“. A través de las prácticas y
procedimientos de renovación, es tal vez un diseño de la comunicación literaria, la idea misma de circulación y definición
de los textos, de literatura y de cultura, lo que está en juego.
Palabras clave: digitalización; lectura; comunicación literaria.
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
Dans quelle mesure un ensemble de dispositifs complexes aussi massivement répandus qu’internet
et la numérisation qui lui est indissolublement liée modifient-t-ils nos pratiques de lecture, notre
rapport à l’écrit, aux informations, aux savoirs et aux textes, à l’idée de littérature même? Quel est
à terme son impact sur la lecture? Poser ces questions ne renvoie pas seulement à des approches
pédagogique ou didactiques, ni à une démarche cognitiviste, mais aussi à une perspective anthropologique et culturelle. Il s’agit en un sens de s’interroger sur les effets déjà sensibles et à venir
d’un dispositif qui n’est pas seulement technique et technologique, mais dont les effets renvoient
assurément aux “manières” et aux “arts de faire” et donc aux modes de représentation et de pensée
chers à Michel de Certeau (CERTEAU, 1990). Au-delà, à travers des pratiques, des procédures et des
outils renouvelés, c’est peut-être une certaine conception de la communication littéraire, et en un
sens l’idée même de la circulation et de la définition des textes, de la littérature et de la culture qui
est en jeu.
1. Numérique et imprimé: ceci tuera-t-il cela?
Jusqu’à une époque très récente, les observateurs relevaient que si la numérisation avait pris une
place croissante et décisive dans notre univers, celle-ci ne semblait pas en mesure de remettre en
cause l’importance du livre comme objet physique (CARRIÉRE; ECO, 2010; DAMON, 2O10). Ce que
rappellent, dans le cas de la France, les statistiques de l’édition, qui montrent une augmentation
régulière du chiffre d’affaire comme des tirages et du nombre de titres imprimés3.
Toutefois, la baisse des tirages des journaux imprimés, et des quotidiens en premier lieu, comme les
chiffres contrastés en matière de lecture des jeunes et des classes populaires (Donnat, 2009) laissent
entrevoir que des mutations profondes sont à l’œuvre dans le rapport que les sociétés modernes
entretiennent avec l’écrit. De surcroît, la montée en puissance, voire le quasi monopole de l’édition
numérisée dans des domaines-clés de la recherche scientifique comme la médecine, la biologie ou
la physique suggèrent l’ampleur des mutations à l’œuvre (RENOUT, 2010).
Parallèlement, les mêmes observateurs s’accordent sur le fait que le partage entre l’imprimé et
l’écran se traduit, et surtout se traduira à l’avenir, par un recul de l’imprimé même s’il est assuré
que “ceci ne tuera pas cela” pour reprendre la fameuse formule que prête Hugo à Caude Frollo dans
le livre V de Notre Dame de Paris, et qu’il commente ainsi :
C’était pressentiment que la pensée humaine en changeant de forme allait changer de mode d’expression,
que l’idée capitale de chaque génération ne s›écrirait plus avec la même matière et de la même façon,
que le livre de pierre, si solide et si durable, allait faire place au livre de papier, plus solide et plus durable
encore. Sous ce rapport, la vague formule de l’archidiacre avait un second sens; elle signifiait qu’un art
allait détrôner un autre art. (HUGO,1976:174)
Voilà donc plus de trente ans que nous vivons dans l’univers de la numérisation et des écrans et
l’ensemble des transformations dans ce domaine peut donner le vertige. Quantitativement tout
d’abord (on comptait cinq milliards d’accès à la téléphonie mobile et 1,5 milliards de PC en juillet (Le
Monde, 2010), mais aussi qualitativement; à bien des égards, la numérisation (des textes, des images, des sons) n’a de sens qu’avec l’irruption d’internet qui en est le produit mais aussi en a constitué
le formidable accélérateur dès les années quatre-vingt-dix, et a finalement donné son sens à l’idée
3. Voir, parmi beaucoup d’autres, Jean-Claude Carrière et Umberto Eco, 2009; Robert Darnton, 2010.
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même de circulation des informations numérisées.
Révolution ou évolution? Disparition de l’imprimé ou maintien de son empire? L’alternative est
moins pressante qu’on ne l’imagine parfois de manière binaire et un peu naïve: plus que du triomphe absolu de l’écran sur le livre, c’est bien plus celle de la cohabitation, et du déplacement de la
frontière entre les deux supports, voire entre les modes de lecture et les relations à la connaissance
et aux savoirs qu’ils induisent qui est en jeu. De ce point de vue, l’histoire du livre et de l’imprimerie
elle-même suggère clairement que l’irruption de cette dernière au milieu du XVe siècle en Europe
occidentale est loin d’avoir relégué aux oubliettes le manuscrit comme objet et comme pratique
(EISENSTEIN,1991). Non seulement parce que la forme-livre est restée très proche du modèle établi
à partir de la généralisation du cahier cousu et des mises en page qui ont accompagné la stabilisation
du Codex sous l’Empire romain et au Moyen-âge (CAVALLO, 1997:79-107), mais parce que l’écriture
manuscrite elle-même est loin d’avoir disparu. Qu’on regarde aujourd’hui une salle de classe, un
amphithéâtre, ou une salle d’examen: papier, encre et stylo y sont encore (mais pour combien de
temps?) les maîtres quasi exclusifs.
Quant à la parole, elle demeure bien le premier médium de la transmission du savoir et c’est autour
d’elle que l’enseignement s’est constitué et continue à se développer pour l’essentiel (WAQUET, 2003).
Reste que, pour être progressive et non monopolistique, la numérisation a bel et bien transformé
notre monde, notre manière d’écrire, de lire, d’apprendre, de se souvenir, de penser même, et que
bien évidemment ce mouvement, dont il est difficile d’imaginer l’évolution, est à coup sûr irréversible.
Un des arguments les plus convaincants en faveur de la cohabitation heureuse et en tout cas apaisée
du livre et de l’écran réside dans le fait que pour le livre la numérisation s’est opérée très progressivement, au cours d’une période de près de trente ans alors que le changement a été infiniment plus
brutal et rapide en ce qui concerne la musique ou le cinéma. Ce que souligne Bruno Patino dans un
rapport adressé en 2008 à la ministre de la culture:
Historiquement, le livre a donc été le premier produit culturel confronté aux possibilités qu’elles [les techniques de numérisation] offraient. Très tôt, il en a tiré profit, confiant des pans entiers de sa chaîne de
fabrication (composition, correction, mise en page) à des processus dématérialisés qu’ignoraient encore la
musique ou le cinéma. Aujourd’hui, dans les tâches de l’édition, les mains se posent de façon naturelle sur
le clavier alimentant un traitement de texte ou un logiciel de mise en page. Partout, les premiers maillons
de la chaîne sont numérisés et, partant, les produits de l’édition sont depuis longtemps disponibles sous
forme numérique, littéralement prêts pour la mutation: une diffusion qui se passerait de l’ultime phase du
processus, celle qui depuis Gutenberg, les couche sur le papier. (PATINO, 2008:6)
Par ailleurs, les tenants du livre ne manquent pas de faire remarquer un certain nombre des avantages
de ce dernier, allant même, comme Umberto Eco à le définir comme une forme technologique parfaite:
De deux choses l’une: ou bien le livre demeurera le support de la lecture, ou bien il existera quelque chose
qui ressemblera à ce livre qui n’a jamais cessé d’être, même avant l’invention de l’imprimerie. Les variations autour de l’objet livre n’en n’ont pas modifié la fonction, ni la syntaxe, depuis plus de cinq cents ans.
Le livre est comme le marteau, la cuiller ou le ciseau. Une fois que vous les avez inventés, vous ne pouvez
pas faire mieux. Vous ne pouvez pas faire une cuiller qui soit mieux qu’une cuiller. (CARRIÉRE; ECO, 2010:16-17)
Avec la prudence de qui sait que leurs discours engagent ceux qui prennent le risque de prophétiser
ou simplement d’imaginer l’avenir, et tout à sa démonstration tendant à affirmer la perfection de
l’objet livre tel qu’il a pu être fixé pour cinq siècles dans les ateliers d’Alde Manuce cinquante ans
après son invention par Gutenberg (LOWRY, 1989), Eco ajoute toutefois:
Le livre a fait ses preuves et on ne voit pas comment, pour le même usage, nous pourrions faire mieux que
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le livre. Peut-être évoluera-t-il dans ses composantes, peut-être ses pages ne seront-elles plus en papier.
Mais il demeurera ce qu’il est. (CARRIÉRE; ECO, 2010:17)
On voit ici que Umberto Eco prend bien soin de souligner l’idée selon laquelle le livre électronique
ne serait en définitive qu’un avatar et un prolongement du livre papier: la page qui se tourne et se
marque au moyen d’un repère, la page qui constitue une unité de prélèvement du sens constitue le
dispositif central de l’objet-livre, la ligne ou le paragraphe que le lecteur peut souligner et la marge
dans laquelle il peut porter des annotations en étant des éléments annexes, mais importants. Ainsi
le livre électronique demeure-t-il à ses yeux un livre, et le développement des tablettes à écran tactile le montre chaque jour un peu plus.
À l’inverse, c’est le risque de voir la numérisation développer une culture de l’éclatement, de la dispersion et non de la continuité propre à l’objet livre que rappelle Roger Chartier à l’automne 2007
lors de sa leçon inaugurale au collège de France:
En brisant le lien ancien noué entre les discours et leur matérialité, la révolution numérique oblige à une
radicale révision des gestes et des notions que nous associons à l’écrit. Malgré les inerties du vocabulaire
qui tentent d’apprivoiser la nouveauté en la désignant avec des mots familiers, les fragments de textes qui
apparaissent sur l’écran ne sont pas des pages, mais des compositions singulières et éphémères.
Le livre électronique nous donne plus à voir par sa forme matérielle sa différence avec les autres productions écrites. La lecture face à l’écran est une lecture discontinue, segmentée, attachée au fragment plus
qu’à la totalité. (Le Monde, 2007:2)
Avec la numérisation, ce qui peut être en cause aux yeux de Roger Chartier, c’est en premier lieu bien
la disparition du livre comme unité réelle et symbolique de signification: objet plein et clos qui certes
renvoie à d’autres livres mais n’en constitue pas moins une entité cohérente et finie, dotée d’un auteur et
située explicitement dans un “ordre du discours” pour reprendre le titre de la leçon inaugurale de Michel
Foucault en 1970, à quoi s’oppose le foisonnement désordonné d’internet, sans début ni fin. C’est bien
dire que le livre n’est en aucun cas réductible à un dispositif technologique neutre, et rappeler que, dans
sa matérialité, son épaisseur et sa finitude même, il est porteur d’une conception du savoir, des connaissances, de la manière de penser et de définir l’autorité, et celle de l’auteur au premier chef.
Quant aux autres arguments en faveur du cahier papier, ils sont nombreux et, de fait, assez convaincants. On les résumera ainsi: l’accès au livre ne passe pas par le recours à une machine nécessairement
exposée à l’obsolescence, sans parler de son coût financier et énergétique; le papier – même cassant
et acide comme le furent les papiers usuels des années 1870-1970 – est infiniment plus pérenne que
des standards qui doivent être perpétuellement reconvertis. Que de disques devenus inaudibles parce que nous n’avons pas stocké les pick-ups et tourne-disques d’hier, que de bandes VHF et de films
super 8 invisibles pour la même raison, que de disquettes de divers formats et de divers aspects (souples, rigides, etc.) qu’il nous a fallu reconvertir à plusieurs reprises ou que nous avons définitivement
perdues… D’où le débat récurrent sur la dématérialisation et la conservation des plans ou des documents importants (ceux des centrales ou des armes nucléaires par exemple et, pour les particuliers,
toutes ces pièces et photographies qui jalonnent notre vie): papier ou électronique?
Si la question était réductible au choix du médium le plus adapté et le plus pérenne, on voit bien la soli-
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
dité des arguments des défenseurs du papier qui, de Darnton à Eco, en passant par nombre d’éditeurs
mettent en avant les arguments de bon sens évoqués plus haut. D’autant que, pour la plupart, ils soulignent l’apport de la numérisation et ne se risquent pas à opter pour un choix exclusif en faveur de
l’imprimé. Ce que nous ignorons tous en revanche, c’est la nature de l’équilibre ou de la définition de la
frontière entre deux univers, alors que chacun sent bien qu’il ne saurait y avoir de statu quo. Si ceci ne
doit pas tuer cela, l’un est bien destiné à conquérir et à avancer, l’autre à se défendre et à reculer, tout
armistice ou stabilisation du front n’étant évidemment que temporaire et partant illusoire.
2. Effets culturels de la numérisation On ne s’attardera pas ici sur un aspect pourtant essentiel, que Roger Chartier et la plupart des historiens du livre et des pratiques de lecture ont mis en évidence: le modèle du livre imprimé tel qu’il
triomphe progressivement de la Renaissance à la fin du XXe siècle est fondé sur la reconnaissance
d’une série d’acteurs centraux constituant ce qu’il est convenu d’appeler “la chaîne du livre”: l’auteur
l’éditeur, le libraire et le destinataire final qu’est le lecteur.
Dans cette chaîne, il est clair que selon les périodes et les sociétés, les rapports de force entre les
fonctions évoquées sont sujets à variation mais celles-ci n’en demeurent pas moins l’objet d’une
certaine hiérarchie, et d’une asymétrie structurelle, le consommateur final qu’est le lecteur n’ayant
qu’un rôle modeste en termes d’orientation de la production. Or la numérisation et internet sont à
même de modifier radicalement ces équilibres, jusqu’à menacer certains des acteurs traditionnels,
comme le libraire, voire l’éditeur lui-même. Car, au moins au plan théorique, la distance et la traditionnelle position de subordination du lecteur face au monde du livre se trouve modifiées, l’auteur
pouvant s’adresser immédiatement à ses lecteurs, et ceux-ci étant susceptibles de réagir directement et de devenir auteurs à leur tour, internet autorisant (induisant disent certains), la réversibilité
de la communication culturelle. Parallèlement, même si la gratuité du numérique est un leurre, la
question des coûts de fabrication et de diffusion peut se trouver profondément modifiée par internet. Au total, on voit qu’il ne s’agit ici pas seulement d’économie, mais de la définition même de
l’accès et de la participation à la culture.
En une vingtaine d’années, la quantité de l’offre de textes imprimés a connu une très vive croissance
dans le monde, et dans tous les domaines du savoir, de la culture ou de la simple distraction (Livre Hebdo, 2010). De son côté, l’offre numérique de littérature s’est accrue de manière exponentielle. Il importe ici de distinguer l’offre renvoyant à la littérature du passé (pour dire très vite la littérature “patrimoniale”, au sens du patrimoine de l’humanité) et celle qui concerne la production contemporaine.
Pour ce qui est de la bibliothèque patrimoniale, et au-delà des enjeux polémiques mais aussi culturels et économiques majeurs qui peuvent opposer simples individus, organismes associatifs, structures publiques (universitaires ou relevant des grandes bibliothèques nationales4) ou commerciales
et privées (on pense ici particulièrement à Google Books5), on peut considérer que l’essentiel des
4. La première bibliothèque électronique est née du Projet Gutenberg, soutenu par l’université de l’Illinois dès 1971. Pour la France,
on pense tout particulièrement au programme “Gallica” de la Bibliothèque nationale de France (BnF).
5. Voir par exemple Robert Darnton, “Accès public, contrôle privé: La bibliothèque universelle, de Voltaire à Google”, Le Monde diplomatique, mars 2009 ou plus récemment l’opposition de Jean-Noël Jeanneney à la collaboration entre la Bibliothèque nationale de
France (BnF) et Google Books. Voir aussi Roger Chartier, “L’avenir numérique du livre”, Le Monde, 27 octobre 2009 et DARTON, 2010.
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œuvres qui comptent est sinon totalement disponible sur internet, du moins en voie de l’être et le
sera assurément dans un horizon assez proche.
Il s’agit, dans la plupart des cas, d’un accès gratuit, de plus en plus aisé, les formats PDF et e-books
proprement dits ayant bouleversé la donne, et l’ancienne opposition entre “mode texte” et “mode
image” étant désormais très largement dépassée. Pour peu qu’il dispose d’une connexion convenable à internet, d’un ordinateur traditionnel et mieux encore d’une tablette de lecture, tout lecteur,
amateur ou curieux peut donc avoir un accès facile et très large aux chefs d’œuvre et à la plupart des
grandes œuvres du passé. Et peut, grâce à la nature même d’internet qui est fondée sur le système
des “liens”, aller d’un texte à l’autre créant ainsi l’espace sans limites de l’hypertexte.
Parallèlement, la question des coûts se pose en termes infiniment moins pressants aujourd’hui
qu’hier: les techniques de numérisation sont beaucoup moins exigeantes en temps et en personnels, les logiciels dont nous disposons sont très performants et peu onéreux. Demeurent quelques
problèmes épineux: la qualité scientifique dans le choix des éditions reproduites, la maniabilité des
textes mis en communication, la stabilité des serveurs permettant d’y accéder et peut-être surtout
les limites d’une quasi-gratuité.
Sur ce dernier point, on est en effet en droit de s’interroger: un texte du passé vaut évidemment par
la qualité de la manière dont il a été établi, mais il vaut aussi par son accessibilité intellectuelle. Or
les textes critiques d’accompagnement et la dimension académique du travail éditorial (références,
notes, préfaces, postfaces) sont bien souvent soumis à des droits d’auteurs. Ce qui, pour une part,
peut rendre quelque peu illusoire l’accès à la totalité des textes tel qu’il existe aujourd’hui, notamment dans le cas des numérations opérées par Google. De surcroît, la question de la “gratuité” est
elle-même problématique: entre l’affirmation que l’œuvre de l’humanité appartient à chacun et la
croyance qu’elle pourrait être accessible sans médiation et sans investissement collectif, il y a bien
les bases d’un débat particulièrement ardu, et transposable dans d’autres sphères de l’activité artistique et créatrice. Ce débat, évidemment radicalisé par les potentialités d’internet et de la numérisation des œuvres, renvoie à de très anciennes interrogations, qui avaient justement accompagné la
progressive affirmation du droit d’auteur, de la Renaissance à la fin des Temps modernes (EDELMAN,
2004; VIALA, 1985).
De surcroît, se pose, bien évidemment, la question de la lisibilité physique de tels textes. Nous savons
tous que, malgré de récents progrès, la lecture sur l’écran de nos ordinateurs n’est pas particulièrement confortable, ni économique. Et le livre papier offre très généralement des fonctions extrêmement performantes: maniabilité du format et mobilité de l’objet, feuilletage et prise d’information
transversale, facilité de lecture de l’imprimé sur le papier. De ce point de vue les “liseuses” (ou “readers” ou “livres électroniques” ou “e-books”) du commerce (iPad, Sony, Kindle, Archos…) sont infiniment plus adaptées que nos écrans d’ordinateurs, qu’ils soient très grands ou réduits à la dimension
de “Note Books” ou de téléphones. Et si le décollage de ces tablettes a été assez poussif (et longtemps concurrencé par les téléphones), il ne fait guère de doute que leur développement, est désormais appelé à être très rapide6, tant les qualités de mobilité, d’accessibilité et de partage des textes,
images et divers services présents sur les tablettes se conjuguent pour assurer leur succès croissant.
6. En 2010, 15 % des ouvrages commercialisés aux États-Unis l’ont été sous forme électronique. 15 à 20 % de la population mondiale
devrait utiliser une tablette de lecture en 2015 selon une étude parue en 2010 à l’occasion du Forum d’Avignon. (BÉHAR; COMPANI,
2010)
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Demeure le fait que, pour des raisons déjà évoquées, tous les spécialistes s’accordent à penser que la
problématique du remplacement pur et simple d’un médium par l’autre est inappropriée (DONNAT,
2009:205-224). Il s’agit bien plus de savoir quels types d’informations le livre électronique est susceptible de véhiculer de manière satisfaisante et, en définitive, quels contenus il peut contribuer à
promouvoir. On observe d’ailleurs, dans le cas de la presse “écrite”, que les solutions “hybrides” combinant les supports (papier et écran), les moments, les lieux de réception et les modes d’information
(images, films, sons, textes écrits) sont devenues particulièrement nombreuses et dynamiques7, en
attendant l’avènement de journaux exclusivement électroniques comme The Huffington Post (www.
huffingtonpost.com) ou exclusivement conçu pour iPad comme The Daily par le groupe Murdoch le
11 février 2011. C’est que l’un des effets principaux de la numérisation, et sans doute un des plus
décisifs à terme avec les potentialités de partage qu’elle induit, est d’avoir transformé la définition
traditionnelle du “texte” qui, hier encore, au mieux, pouvait être illustré par des gravures puis des
photographies, en noir et blanc puis en quadrichromie.
Ce que nous voyons s’imposer avec la numérisation, c’est justement la capacité de combinaison de
l’écrit, de la couleur, de l’image (fixe ou animée) et du son. On peut écouter une radio après que
l’émission a eu lieu (podcast); on peut “voir” la radio; on regarde de plus en plus la télévision ou
le cinéma seul, sur son écran d’ordinateur (DONNAT, 2009). Dans tous les cas, on peut “relire” ou
“revoir” ce qui a été diffusé initialement en flux. internet a mis fin à la séparation du texte imprimé,
de l’image (fixe ou animée) et du son, ce qu’évidemment le livre imprimé est incapable de faire. Sur
internet, on peut lire le journal et illustrer, à volonté, sa lecture par des images empruntées à Youtube ou Dailymotion ou à tout autre site d’images. Bref nous voici entrés dans l’univers du “texte”
au sens large, tel que le définissait dès 1985 l’anthropologue et historien du livre Donald Mc Kenzie:
Sous le terme “texte”, j’entends inclure toutes les informations verbales, visuelles, orales et numériques,
sous la forme de cartes, de pages imprimées, de partitions, d’archives sonores, de films, de cassettes
vidéo, de banques de données informatiques, bref tout ce qui va de l’épigraphie aux techniques les plus
avancées de discographie (MCKENZIE, 1991:31-32).
Au plan littéraire proprement dit, c’est aussi du côté de l’actualité qu’il faut chercher l’impact potentiel du livre numérique: ce dernier se présente en effet comme un moyen d’accéder aux productions
contemporaines, et tout particulièrement aux livres à succès et aux nouveautés. Il peut également
être un support de choix pour les documents d’actualité (guides de voyage par exemple), et pouvoir changer de lecture en cas de déception ou de changement d’humeur. Quant au rêve complaisamment rapporté, qui consisterait à pouvoir emporter sur une île déserte, ou plus simplement en
vacances, une bibliothèque presque infinie lisible par le truchement d’un appareil pesant 680 grammes, c’est justement un rêve – un fantasme à la vérité. Non à cause de contraintes techniques (rien
n’est plus facile que de rassembler et stocker sur une tablette les 5 000 plus importants ouvrages
produits par l’humanité), mais pour des raisons de bon sens si l’on songe à la manière dont les élites
et les couches moyennes aisées partent en voyage de vacances pour des périodes de plus en plus
brèves et fragmentées, et si l’on veut bien se rappeler qu’il est heureusement assez rare d’être assigné à résidence 20 ou 30 ans sur une île déserte à la suite d’un naufrage plus ou moins providentiel.
7. Ainsi, pour la France, les trois grands journaux d’information “nationaux” et généralistes que sont Le Monde, Le Figaro et Libération
ont mis au point dès l’automne 2009 des formules papier et écran résolument liées et hybrides, et par conséquent distinctes dans le
choix des contenus suivant le support adopté. Tous les grands journaux, quotidiens nationaux ou hebdomadaires généralistes français
offrent désormais des applications iPad.
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3. Internet et littérature: réversibilité, communautés, individualités
Une des conséquences de la numérisation et de la circulation des textes par le biais d’internet est de
permettre un fractionnement presque infini des produits et des publics, tout en assurant une accessibilité d’autant plus remarquable qu’elle n’est plus liée à un quelconque ancrage géographique. Ce
faisant, elle peut assurer une diversité plus grande qu’au temps du règne exclusif de l’imprimé, et
notamment dans le domaine de la création et de la réception littéraires et artistiques.
On sait que, depuis fort longtemps l’édition dite “de qualité” connaît des tirages restreints. C’est évi
emment le cas de la poésie8 et des revues littéraires dont les problèmes de diffusion et d’équilibre
sont récurrents mais également, et depuis plus d’un quart de siècle, c’est désormais le cas des sciences humaines, et même de nombreux romans n’ayant aucune vocation à atteindre le statut de bestsellers.
Quant à la politique traditionnelle des grandes maisons d’édition, elle était fondée sur un consensus: les bénéfices engrangés par les “locomotives” devaient compenser les pertes entraînées par
d’autres ouvrages tout aussi honorables qui constituaient la suite du “train” n’ayant pas bénéficié
de la mystérieuse et imprévisible alchimie qui conduit au succès littéraire. De manière analogue, les
auteurs “faits” devaient “tirer” des écrivains plus récents, plus obscurs ou plus secrets9. Or ce paradigme a été mis à mal au cours des années 1980 où l’on a vu s’imposer au plan mondial de nouveaux modèles (SCHIFFRIN, 1999), à la fois idéologiques (les élites ne doivent pas imposer leurs goûts
aux masses avides de simple distraction) et économiques (il ne faut produire que des best-sellers,
notamment des livres de témoignages, et atteindre dans l’édition des taux de rentabilité supérieurs
à “deux chiffres”).
Dans ces conditions, internet apparaît aussi comme un lieu “alternatif”: un espace où l’on peut avoir
le sentiment d’échapper à la fois la “dictature du marché” et à l’idéologie de l’entertainment imposé
et mondialisé. Un lieu où la recommandation individuelle et “authentique” (qu’on pense à l’effet
des réseaux sociaux du type Face Book ou Twitter, mais aussi à une multitude de sites personnels
ou associatifs, et de liens tissés à partir de ces sites) vient, à tort ou à raison, remplacer le formatage
de masse et les barrages éditoriaux institutionnalisés. À bien des égards, internet nous renvoie à
l’ambiguïté de la mondialisation qui ne cesse d’osciller entre particulier et universel, partage planétaire des mêmes informations et modes de vie et infinité des segmentations individuelles et locales.
Rien d’étonnant dans ces conditions de constater la floraison des sites de création, d’échange et
de critique littéraires10. Une des caractéristiques de ces sites voués au partage est de contribuer à
mettre en cause l’ordre traditionnel de la communication littéraire et culturelle : la division entre
8. La fin du XIXe siècle, le livre de poèmes revient cher car il tire peu: Vanier tire à 500 exemplaires les œuvres de Verlaine, poète pourtant reconnu à cette époque, alors que le roman d’un inconnu est rarement tiré à moins de 1 000 exemplaires, (PARINET, 1991:166).
9. Sur cette question, voir Honoré de Balzac, Illusions perdues, et notamment le tome 2, Un grand homme de province à Paris (BALZAC, 1977).
10. Pour la France (mais le phénomène est mondial et doit donc être actualisé pour chaque espace linguistique ou national), on se
limitera à retenir quelques familles de ces sites : qu’il s’agisse de sites orientés sur un “genre” comme la poésie (poezibao.typepad.
com), une approche plus générale de l’actualité littéraire avec François Bon (www.tierslivre.net), une activité de “revue” (www.larevuedesressources.org), une critique de type académique et universitaire (www.fabula.org), un écrivain (www.associationleclezio.
com), qu’il s’agisse d’une association ou du site propre de l’écrivain dont il assure lui-même l’animation. Un éditeur, mêlant parfois
communication, activité critique et publications électroniques (www.leoscheer.com) parallèles à des publications imprimées (et on
retrouve ici une forme de modèle hybride).
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prescripteurs, créateurs, analystes et simples récepteurs y est bousculée, et en tout cas susceptible
de l’être. Car un site (et plus encore une revue) conçu pour internet induit très généralement un
lecteur actif et réactif, et tend à abolir la barrière entre émission et réception. Et bien souvent cette
dimension peut prendre un aspect éthique, philosophique ou militant. Tel est, par exemple le cas de
la Revue des ressources une des plus anciennes revues françaises en ligne:
LA REVUE DES RESSOURCES conjugue les expressions individuelles et collectives. L’internet collectuel11
considère comme prioritaire l’interaction individuelle et collective. Internet ne doit pas être monopolisé
par des marchands pour des clients, par des techniciens pour des techniciens, par des organisations pour
ses membres. De vastes espaces de liberté individuelle et collective doivent trouver place et se développer
sans contrainte ni mercatique ni financière ni technocratique ni idéologique. Une utopie est en marche.
(www.larevuedesressources.org)
On peut certes considérer cette “utopie” avec quelque distance et sans doute moins d’enthousiasme
que n’en manifestent ses promoteurs. Reste qu’internet crée les conditions d’une circulation plus égalitaire de l’information, du débat et de la critique à son sens premier d’esprit d’examen: par nature il
touche à la hiérarchie de l’information qui, de descendante, peut devenir plus latérale et plus partagée.
Particulièrement vivaces et fréquentés notamment par un public jeune (PAGNET, 2009/4), tous les
sites de “fanfiction” ou de “fanfic” méritent une mention particulière, dans la mesure où ils relèvent
à la fois de la culture de masse de la distraction et de la résistance à la culture “cultivée”, légitime et imposée. Dans ces sites, des ouvrages de très grande diffusion, des séries télévisées, des
“sagas” en tout genre et le plus souvent mondialisées (Twilight étant un modèle de référence12),
avec l’ensemble de ses déclinaisons: livres, séries, films, jeux vidéo, servent de base à une multiplicité de réécritures, détournements, prolongements, appréciations critiques, jeux de rôle, rencontres,
etc. Instituant des communautés sociales aux frontières constamment mouvantes, elles font l’objet
de codifications parfois très contraignantes13 qui ne sont pas sans rappeler celles qui président aux
formes elles-mêmes mondialisées de la poésie orale, et au slam en particulier14.
Qu’ont en commun les sites littéraires, qu’ils relèvent de la contre culture, de la culture de masse
ou de la “culture”? Au delà de leur aptitude à rapprocher jusqu’à les confondre parfois “producteurs”, “prescripteurs” et “consommateurs”, on soulignera leur très grande réactivité leur capacité
quasi immédiate d’actualisation. Ils sont évidemment très riches en liens, organiques ou plus ténus,
permettant au lecteur d’établir ses propres passerelles d’un site à l’autre, d’un domaine à l’autre. Ils
sont également nombreux, comme on l’a vu plus haut, à étendre la notion de “texte” et à refuser de
séparer systématiquement le “texte écrit” de l’image et du son15. Sur un plan plus strictement littéraire, ils valorisent volontiers certaines formes d’écriture. C’est à l’évidence, dans le cadre général de
la prolifération de l’autofiction ou des écrits personnels, le cas du blog et de toutes les formes intimes relevant peu ou prou du journal et d’une écriture de l’immédiateté: immédiateté de l’écriture,
immédiateté de sa diffusion. C’est aussi le cas de la réécriture, ou des prolongements d’écriture, très
présents sur les sites de “fanfiction”.
11. “Collectuel”: il s’agit là un mot valise (collectif / individuel) renvoyant au Manifeste de L’internet collectuel publié le 8 décembre
2001, puis repris par la Revue des ressources.
12. Tout comme, sur un modèle plus ancien et plus “sérieux”, Le Seigneur des anneaux.
13. Voir par exemple www.fanfic-fr.net.
14. Fédération française de Slam Poésie, www.ffdsp.com.
15. Voir par exemple le Sophie Project sophieproject.org se définit comme un site et un outil gratuit à même de réconcilier “lecture,
écriture et création au XXIe siècle”.
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Selon le caractère plus ou moins ouvert, institutionnalisé, pérenne et contrôlé de ces sites, la question de
la “labellisation” des objets circulant sur internet ne cesse de se poser, et de dérouter l’usager. En effet,
une des caractéristiques de la fonction éditoriale est justement de recommander, “labelliser” et en définitive d’ “autoriser” par une “marque” telle ou telle œuvre. Bref la fonction de “modération” est essentielle
à la stabilité des sites littéraires, et en même temps contradictoire avec leur caractère ouvert, bavard,
répétitif, “infini”, dans bien des sens du terme, et presque libertaire. Et l’on retrouve ici une des contradictions constitutives de la littérature prise comme sociabilité: elle est bien, et dans le même temps, lieu de
l’intimité et du partage, institution et résistance à toute tentative d’institutionnalisation.
C’est en ce sens également que la numérisation modifie nos manières de lire, et nous fait sentir plus que
jamais la complexité de ce que “lire” peut vouloir dire.
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A leitura na era digital
Em que medida um conjunto de dispositivos complexos tão massivamente difundidos quanto a
Internet e a digitalização, que a ela se liga indissoluvelmente, modificam nossas práticas de leitura,
nossa relação com a escrita, com a informação, com o saber, com os textos, com a ideia mesma de
literatura? Qual seu impacto sobre a leitura? São questões que nos reenviam não somente a abordagens pedagógicas ou didáticas, tampouco a um método cognitivista, mas também a uma perspectiva antropológica e cultural. Por um lado, trata-se de se interrogar sobre os efeitos, tanto os já
sensíveis quanto os futuros, de um dispositivo que não é exclusivamente técnico e tecnológico, mas
cujos desdobramentos remetem às “maneiras” e às “artes de fazer” — modos de representação e
pensamento caros a Michel de Certeau (CERTEAU, 1990). Para além disso, através de práticas, procedimentos e instrumentos renovados, seja talvez uma certa concepção de comunicação literária
e, em determinado sentido, a própria ideia de circulação e definição de textos, de literatura e de
cultura o que está em jogo.
1. Impresso e digital: isto matará aquilo?
Até muito recentemente, estudiosos afirmavam que, se a digitalização havia assumido um lugar
crescente e decisivo em nosso universo, aparentemente, ela não parecia chegar a pôr em cheque a
importância do livro como objeto físico (CARRIÈRE; ECO, 2010, DAMON, 2010). É o que lembram, no
caso francês, as estatísticas de edição, que mostram um aumento regular do número de tiragens e
títulos impressos (Ministère de la culture, 2009).
No entanto, a baixa nas tiragens de jornais impressos – os de cotidianos, em primeiro lugar, assim
como os números comparados, em matéria de leitura dos jovens e das classes populares (DONNAT, 2009), deixam entrever que mudanças profundas estão em curso na relação que as sociedades
modernas mantêm com a escrita. Além disso, o potencial aumento, ou quase monopólio, da edição
digital nos domínios-chave da pesquisa científica, como a medicina, a biologia ou a física, sugerem a
dimensão das mutações em andamento. (RENOULT, 2010)
Paralelamente, os mesmos estudiosos concordam quanto ao fato de que a divisão entre impresso
e tela traduz-se, e acima de tudo, vai se traduzir, futuramente, no recuo do impresso. Ainda que
estejam certos de que “isto não matará aquilo”, para retomar a famosa fórmula que empresta Hugo
a Caude Frollo, no livro V de Notre Dame de Paris, que comenta assim:
Era um pressentimento, que o pensamento humano ao mudar de forma iria mudar seu modo de expressão, que a
ideia capital de cada geração não se escreveria mais com a mesma matéria e da mesma maneira, que o livro de pedra, tão sólido e durável, iria dar lugar ao de papel, mais sólido e mais durável ainda. Sob esse relato, a vaga fórmula
do arquidiácono tinha um segundo sentido: significava que uma arte iria destronar outra arte. (HUGO, 1976:174)
Eis que há mais de trinta anos vivemos no universo da digitalização e das telas, e o conjunto das
transformações nesse domínio pode dar vertigem. Primeiro, quantitativamente (calculavam-se cinco milhões de acesso à telefonia móvel e um milhão e meio de PCs em julho de 2010) (Le Monde,
2010), mas também qualitativamente; sob muitos aspectos, a digitalização (de textos, de imagens,
de sons) não faz sentido a não ser com a irrupção da Internet – que lhe é produto, mas que também
se lhe constituiu como formidável força motriz desde os anos 1980, e doou sentido à própria ideia
de circulação de informações digitais.
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
Revolução ou evolução? Desaparecimento do impresso ou manutenção de seu império? A alternativa é menos radical do que, por vezes de maneira binária e um pouco ingênua, se imagina: mais que
o triunfo absoluto da tela sobre o livro, trata-se, sobretudo, da coabitação e deslocamento da fronteira entre os dois suportes, e entre os modos de leitura e as relações com o conhecimento e com os
saberes que eles induzem. Deste ponto de vista, a história do livro e da imprensa sugere, claramente, que a irrupção da última, na metade do século XV na Europa Ocidental, de maneira nenhuma
relegou ao esquecimento o manuscrito, como objeto e prática (EISENSTEIN, 1971). Não somente
porque a forma-livro continuou muito próxima do modelo estabelecido, desde a generalização do
caderno costurado e das diagramações que acompanharam o estabelecimento do Codex, durante
o Império Romano e a Idade Média (CAVALLO, 1997:79-107). Mas também porque mesmo a escrita
manual está longe de ter desaparecido. Que nós olhemos hoje uma sala de aula, uma sala de estudos ou de exame: papel e caneta são ainda (mas por quanto tempo?) materiais quase exclusivos.
Quanto à fala, ela permanece o primeiro meio de transmissão do saber, e foi em torno dela que o
ensino se constituiu e continua a se desenvolver essencialmente (WAQUET, 2003). Resta dizer que
por ser progressiva, e não monopolista, a digitalização transformou nosso mundo, nossa maneira de
escrever, de ler, de aprender, de lembrar e de pensar, e evidentemente, esse movimento cuja evolução é difícil de imaginar, é de fato irreversível.
Um dos argumentos mais convincentes a favor da coabitação amistosa, ou, em todo caso, apaziguada, do livro e da tela, reside no fato de que, para o livro, a digitalização operou-se bastante progressivamente ao longo de um período de quase trinta anos, enquanto que, no que concerne à musica
ou ao cinema, a mudança foi infinitamente mais brutal e rápida. É o que sublinha Bruno Patino, em
um relato endereçado em 2008 ao ministro da cultura:
Historicamente, o livro foi o primeiro produto cultural confrontado às possibilidades que elas [as técnicas
de digitalização] ofereciam. Muito cedo, tirou proveito, confiando, a todo pano, sua cadeia de produção
(composição, correção, diagramação) a processos desmaterializados que ignoravam ainda a música ou o
cinema. Hoje, nas tarefas de edição, as mãos pousam de maneira natural sobre o teclado, alimentando um
tratamento de texto ou um programa de diagramação. Por todo canto, os primeiros elementos do processo são digitais e os produtos de edição estão, há muito, disponíveis sob forma digital, literalmente, prontos
para a mutação: uma difusão que se passaria de última fase do processo, esta que desde Gutenberg, os
deita sobre o papel. (PATINO, 2008:6)
Por toda parte, os defensores do livro não cansam de apontar para um sem número de vantagens
deste último, chegando mesmo, como Umberto Eco, a defini-lo como uma forma tecnológica perfeita:
Das duas, uma: ou bem o livro permanecerá como o suporte de leitura por excelência, ou existirá algo que
se parecerá com este livro que nunca cessou de existir, mesmo antes da invenção da imprensa. As variações em torno do objeto-livro não modificaram sua função, nem sintaxe, desde mais de cento e cinquenta
anos. O livro é como o martelo, a colher, a tesoura. Uma vez que você o inventou, não pode fazer melhor.
Não se pode fazer uma colher que seja melhor que uma colher. (CARRIÈRE; ECO, 2010:16-17)
Com a prudência de quem sabe que seus discursos engajam aqueles que correm o risco de profetizar
ou de, simplesmente, imaginar o futuro, e toda sua demonstração tendendo a afirmar a perfeição
do objeto livro, tal qual pôde ser fixado, por cinco séculos, nos ateliês de Alde Manuce, cinquenta
anos depois de sua invenção por Gutenberg (LOWRY, 1989) - Eco acrescenta:
O livro passou por suas provações, e não vemos como, para o mesmo fim, nós poderíamos fazer algo
melhor que o livro. Pode ser que ele evolua em seus componentes, pode ser que suas páginas não sejam
mais em papel. Mas ele permanecerá o que é. (CARRIÈRE; ECO, 2009:17)
Vemos aqui que Umberto Eco toma bastante cuidado em sublinhar a ideia segundo a qual o livro
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
eletrônico não será, em definitivo, nada mais do que um avatar e um prolongamento do livro de
papel: a página, que se vira e se marca, a página, que constitui uma unidade de sentido, consiste no
dispositivo central do objeto-livro; a linha ou o parágrafo, que o leitor pode sublinhar, e a margem,
dentro da qual pode fazer anotações, elementos anexos, apesar de importantes. Assim, o livro eletrônico mantém-se, em seu entendimento, um livro – e o desenvolvimento de consoles de tela tátil
o demonstraria a cada dia um pouco mais.
Mas, ao contrario, é o risco de ver a digitalização desenvolver uma cultura da destruição, da dispersão, e não da continuidade própria do objeto-livro, o que faz lembrar a Roger Chartier, no outono de
2007, quando de sua aula inaugural no Collége de France:
Quebrando o antigo laço entre os discursos e sua materialidade, a revolução digital obriga a uma radical
revisão de gestos e noções que nós associamos à escrita. Não obstante as inércias do vocabulário, que
tentam controlar a novidade ao designá-la com palavras familiares, os fragmentos de textos que aparecem
sobre a tela não são páginas, mas composições singulares e efêmeras.
O livro eletrônico dá mais a ver, por sua forma material, sua diferença com as outras produções escritas. A
leitura diante da tela é uma leitura descontínua, segmentada, ligada mais ao fragmento que à totalidade.
(Le Monde, 2007:2)
Com a digitalização, o que pode estar em pauta aos olhos de Roger Chartier é em primeiro lugar o
desaparecimento do livro como unidade real e simbólica de significação: objeto pleno e fechado,
que certamente reenvia a outros livros, mas não constitui menos uma entidade coerente e acabada,
dotada de um autor e situada explicitamente em uma “ordem do discurso”, para retomar o título
da aula inaugural de Michel Foucault em 1970 – à qual se opõe a multiplicação desordenada da
Internet, sem início nem fim. É dizer que o livro não é em nenhum caso redutível a um dispositivo
tecnológico neutro, e lembrar que dentro da sua materialidade, sua espessura e sua finitude mesma, ele é portador de uma concepção do saber, de saberes, de uma maneira de pensar e de definir
a autoridade; e a do autor em primeiro lugar.
Quanto aos outros argumentos a favor da encadernação em papel, eles são numerosos, e de fato
bastante convincentes. Resumiremos assim: o acesso ao livro não passa pelo recurso a uma máquina necessariamente exposta à obsolescência, para não falar de seu custo financeiro e energético: o
papel – mesmo quebradiço e ácido como o usado nos anos 1870-1970 – é infinitamente mais perene
que softwares que devem ser perpetuamente reconvertidos. Quantos discos tornaram-se inaudíveis porque nós não estocamos as vitrolas e toca-discos de antigamente, quantas fitas VHS e filmes
Super 8 tornaram-se impossíveis de assistir pela mesma razão, quantos discos e disquetes de vários
formatos e diversos aspectos (flexíveis, rígidos, etc.) que deixamos de atualizar ou definitivamente
perdemos… Donde o debate recorrente sobre a desmaterialização e a conservação de mapas ou
documentos importantes (como os de centrais ou armas nucleares, por exemplo, e, individualmente, todas as fotografias e lembranças que marcam nossa vida): papel ou eletrônico?
Se a questão fosse redutível à escolha do meio mais adaptado e mais perene, veríamos bem a solidez dos argumentos dos defensores do papel que, de Darton a Eco, passando por um sem número
de editores, enfileiram argumentos de bom senso evocados na mais alta voz. A maior parte deles
sublinha o aporte da digitalização e não se arrisca a optar por uma escolha exclusivamente em favor
do impresso. O que todos ignoramos, porém, é a natureza do equilíbrio ou a definição da fronteira
entre os dois universos, uma vez que cada um de nós se sabe incapaz de descrever seu status quo. Se
isto não matará aquilo, um lado está destinado a conquistar e avançar, enquanto outro, a defender
e recuar; todo armistício ou estabilização do front não sendo, evidentemente, mais que temporário
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e ilusório.
2. Efeitos culturais da digitalização
Não demoraremos aqui sobre um aspecto essencial, mas que Roger Chartier e a maior parte dos historiadores do livro e das práticas de leitura já colocaram em evidência: o modelo do livro impresso,
tal qual triunfa progressivamente, desde o Renascimento até o fim do século XX, está fundado sobre
o reconhecimento de uma série de atores centrais, constituindo o que se convencionou tratar de “a
cadeia do livro”: o autor, o editor, o livreiro e o destinatário final, que é o leitor.
Nessa cadeia, está claro que, segundo os períodos e as sociedades, as relações de força entre as
funções evocadas estão sujeitas a variações, mas estas não permanecem menos o objeto de uma
certa hierarquia, e de uma assimetria estrutural: o consumidor final que é o leitor não tendo mais
do que um papel modesto em termos de orientação da produção. Além disso, a digitalização e a
Internet estão em vias de modificar radicalmente esses equilíbrios, chegando até a ameaçar alguns
dos atores tradicionais, como o livreiro, e próprio editor. Pois, ao menos no plano teórico, a distância
e a tradicional posição de subordinação do leitor face ao mundo do livro encontram-se modificadas:
o autor pode endereçar-se imediatamente a seus leitores; estes ficando suscetíveis a reagir diretamente e a tornar-se autores por sua vez; a Internet, enfim, autorizando (induzindo, dizem alguns), a
reversibilidade da comunicação cultural. Paralelamente, mesmo sendo a gratuidade do digital uma
falácia, a questão dos custos de fabricação e difusão pode encontrar-se profundamente modificada
pela Internet. Vemos, afinal, que não se trata aqui somente de economia, mas da própria definição
de acesso e de participação cultural.
Em cerca de vinte anos, o número de textos impressos conheceu um vivo crescimento mundial, em
todos os domínios: do saber, da cultura ou da simples distração (Livre Hebdo, 2010). Por sua vez, a
oferta digital de literatura intensificou-se de maneira exponencial. Cabe distinguir a oferta, remetendo à literatura do passado (para dizer rapidamente, a literatura “patrimonial”, no sentido de
patrimônio da humanidade) e à produção contemporânea.
No que concerne à biblioteca patrimonial, para além dos aspectos polêmicos mas também culturais e econômicos maiores, que podem contrariar interesses de indivíduos, associações, estruturas públicas (universitárias ou da alçada das grandes bibliotecas nacionais1) ou comerciais e privadas (temos em mente particularmente o Google Books2), podemos considerar que o essencial das
obras, se já não está totalmente disponível na Internet, encontra-se, pelo menos, em vias disso, e
seguramente estará em um horizonte bastante próximo.
Trata-se, na maior parte dos casos, de um acesso gratuito, cada vez mais simples – os formatos PDF
e e-book propriamente dito havendo embaralhado a dada e antiga oposição entre “modo texto” e
“modo imagem”, hoje largamente ultrapassada. Por menos que se disponha de uma conexão convencional à Internet, de um computador tradicional ou, melhor ainda, de um tablet de leitura, todo
1. A primeira biblioteca eletrônica nasceu do Projeto Gutenberg, financiado pela Universidade de Ilinois, desde 1971. Na França,
pensamos especialmente no programa “Galica” da Biblioteca Nacional da França (BnF).
2. Ver, por exemplo, Robert Darnton, “Accès public, controle privé: La bibliothèque universelle, de Voltaire à Google” (Le Monde
diplomatique, 2009). Ou, mais recentemente, a oposição de Jean-Noël Jeanneney à colaboração entre a Biblioteca nacional da França
(BnF) e Google Books. Ver também Roger Chartier “L’avenir numérique du livre” (Le Monde, 2009), e DARTON, 2010.
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leitor, amador ou curioso, pode ter acesso fácil e amplo à maior parte das grandes obras do passado.
E pode, graças à natureza mesma da Internet, que está fundada no sistema de links, ir de um texto
a outro, criando assim o espaço sem limite do hipertexto.
Paralelamente, a questão dos custos se coloca em termos infinitamente mais leves hoje do que
ontem: as técnicas de digitalização são muito menos exigentes em tempo e pessoal, os programas
de que dispomos são muito eficientes e pouco onerosos. Restam alguns problemas capitais: a qualidade científica na escolha das edições reproduzidas, a maneabilidade dos textos postos em comunicação, a estabilidade dos servidores que permitem o seu acesso, e talvez e sobretudo, os limites
de uma quase gratuidade.
Sobre este ultimo ponto, temos o direito de nos perguntar: um texto do passado vale evidentemente pela qualidade e maneira com que foi estabelecido, mas vale também por sua acessibilidade
intelectual. No entanto, os textos críticos de acompanhamento e a dimensão acadêmica do trabalho editorial (referências, notas, prefácios, pósfácios) são frequentemente submetidos a direitos
autorais. O que, por um lado, pode tornar ilusória a possibilidade de acesso ao conjunto total dos
textos existentes, tal qual é estabelecida hoje, particularmente no caso das digitalizações realizadas
pela Google. A própria questão da “gratuidade” é em si problemática: entre a afirmação de que a
obra da humanidade pertence a todos e a crença de que ela poderia ser acessíve sem mediação e
sem investimento coletivo, encontram-se as bases de um debate particularmente árduo, e transponível a outras esferas da atividade artística e criadora. Esse debate, evidentemente radicalizado
pelas potencialidades da Internet e da digitalização, remete a questionamentos muito antigos, que
haviam justamente acompanhado a progressiva afirmação do direito de autor, desde o Renascimento, até o fim da Modernidade (EDELMAN, 2004; VIALA, 1985).
Além disso, coloca-se, sem dúvida, o problema da legibilidade física de tais textos. Sabemos que,
apesar dos recentes progressos, a leitura sobre a tela de computadores não é exatamente confortável, nem tampouco econômica. E o livro de papel oferece em geral funções extremamente
eficientes: manutenção do formato e mobilidade do objeto, folheamento e apreensão de informação transversalmente, facilidade física de leitura. Desse ponto de vista, os “leitores” (ou readers ou
“livros eletrônicos” ou e-books) do comércio (iPad, Sony, Kindle, Archos…) são infinitamente mais
adaptáveis que nossas telas de computador, sejam eles muito grandes, ou reduzidos à dimensão de
notebooks ou de telefones. E se o lançamento desses tablets foi bastante poderoso (e muito concorrido com o dos telefones), não há dúvida de que seu desenvolvimento tende a ser muito rápido3, da
mesma forma que as qualidades de mobilidade, de acesso e de compartilhamento dos textos, das
imagens e dos diversos serviços que apresentam se conjugam para assegurar seu sucesso crescente.
Persiste o fato de que, por razões já evocadas, todos os especialistas concordam em considerar a problemática da substituição pura e simples de um meio por outro inapropriada (DONNAT, 2009: 205-224). Trata-se sobretudo de saber quais tipos de informação o livro eletrônico é capaz de veicular de maneira
satisfatória e quais conteúdos ele pode promover. Observa-se, no caso da imprensa “escrita”, que
as soluções “híbridas”, que combinam os suportes (papel e tela), os momentos, os lugares de recepção e os modos de informação (imagens, filmes, sons, textos escritos) tornaram-se particularmente
3. Em 2010, 15% das obras comerciais os Estados Unidos eram em formato eletrônico. De 15 a 20% da população mundial devem utilizar um tablet de leitura em 2015, segundo um estudo apresentado em 2010, durante o Fórum de Avignon. (BEHAR; COMPANI, 2010)
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numerosas e dinâmicas4, em resposta ao advento de jornais exclusivamente eletrônicos como The
Huffington Post (www.huffingtonpost.com), ou exclusivamente concebidos para iPad, como The Daily,
pelo grupo Murdoch, em 11 de fevereiro de 2011. É que um dos efeitos principais da digitalização,
e sem dúvida, um dos mais decisivos a respeito das potencialidades de compartilhamento a que ela
induz, é ter transformado a definição tradicional de “texto” que, ainda ontem, no máximo, poderia
ser ilustrado com gravuras ou fotografias, em preto e branco, e depois em cores.
O que nós vemos se impor com a digitalização é justamente a capacidade de combinação entre o
escrito, a cor, a imagem (fixa ou animada) e o som. É possível escutar a uma radiotransmissão depois
que tenha tido lugar (podcast); podemos “ver” o radio; assistimos cada vez mais à “televisão” ou
ao “cinema” sozinhos, pela tela do computador (DONNAT, 2009). Em todos esses casos, podemos
“reler” ou “reassistir” ao que foi difundido inicialmente em fluxo. A Internet pôs fim à separação
do texto impresso, da imagem (fixa ou animada) e do som, o que, evidentemente, o livro impresso
é incapaz de fazer. Na Internet, podemos ler um jornal e ilustrar, conforme nossa vontade, a leitura com imagens tomadas do Youtube ou Dailymotion ou de qualquer outro site de imagens. Em
resumo, encontramo-nos dentro do universo do “texto” latto sensu, tal qual o definia já em 1985 o
antropólogo e historiador do livro Donald McKenzie:
Pelo termo “texto”, entendo todas as informações verbais, visuais, orais e numéricas, sob a forma de cartas, páginas impressas, partituras, arquivos sonoros, filmes, vídeos-cassete, bancos de dados, enfim, tudo
o que vai da epígrafe às técnicas as mais avançadas de discografia. (MCKENZIE, 1991:31-32)
No plano literário propriamente dito, é ainda no tocante à atualidade que é preciso buscar o impacto
potencial do livro digital: este último se apresenta, realmente, como um meio de acesso às produções contemporâneas, particularmente, aos mais vendidos e às novidades. Ele pode ser, tanto um
suporte preferencial para os documentos da atualidade (guias de viagem, por exemplo), como uma
possibilidade de troca de leitura, no caso de decepção ou de mudança de humor. Quanto à fantasia
de poder levá-lo a uma ilha deserta, ou, para simplificar, levar consigo nas férias uma biblioteca
quase infinita, legível por meio dos mecanismos de uma aparelho de 880 gramas, é realmente um
sonho – ou seria um fantasma? Não pela ameaça de contratempos técnicos (nada mais fácil que
estocar em um tablet as cinco mil obras mais importantes produzidas pela humanidade), mas por
razões de bom-senso. Se sondarmos a maneira como as elites e classes médias saem de férias cada
vez por períodos mais curtos e fragmentados. Se nos lembrarmos de que felizmente é bastante raro
encontrar-se forçado a uma residência de vinte ou trinta anos em uma ilha deserta, como fruto de
um naufrágio mais ou menos providencial.
3. Internet e literatura: reversibilidade, comunidades, individualidades
Uma das consequências da digitalização e circulação de textos pela Internet é a possibilidade de um
fracionamento quase infinito dos produtos e públicos, ao mesmo tempo em que se garante uma
acessibilidade, tão mais notável, por independer de uma ancoragem geográfica. Assim, a digitalização pode garantir uma diversidade maior do que no tempo do reinado exclusivo da imprensa, e
especialmente no domínio da criação e recepção artística e literária.
4. Assim, no caso francês, os três grandes jornais de informação “nacionais” e generalistas: Le Monde, Le Fígaro e Libération, desde
o outono de 2009, colocaram fórmulas papel-tela resolutamente ligadas e híbridas, e, por consequência, distintas na escolha de conteúdos segundo o suporte adotado. Todos os grandes jornais, cotidianos nacionais, ou semanais generalistas franceses já oferecem
aplicações para iPad.
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Sabemos que, há muito, a edição “de qualidade” conhece tiragens restritas. É evidentemente o caso
da poesia5 e das revistas literárias, cujos problemas de difusão e manutenção são recorrentes. Mas,
da mesma maneira, e já há um quarto de século, passou a ser, também, o caso das ciências humanas, e ainda de numerosos romances sem vocação alguma para almejar o status de best-sellers.
Já no que diz respeito à política tradicional das grandes editoras, sabe-se que foi fundada sobre
um consenso: os benefícios acumulados pelas “locomotivas” deveriam compensar as perdas causadas por outras obras igualmente honoráveis, que constituiriam o corpo do “trem”, não tendo sido
beneficiadas pela misteriosa e imprevisível alquimia do sucesso literário. Analogamente, os autores
consagrados deveriam “puxar” os escritores mais recentes, mais obscuros ou mais secretos6. Esse
paradigma foi posto em cheque ao longo dos anos 80, quando vimos emergir, no plano mundial,
novos modelos, simultaneamente ideológicos (as elites não deveriam impor seus gostos às massas
ávidas de simples distração) e econômicos (é preciso produzir apenas best-sellers, sobretudo narrativas históricas, e esperar taxas de rentabilidade superiores a “dois dígitos”) (SCHIFFRIN, 1999).
Nessas condições, a Internet aparece como um lugar “alternativo”: um espaço onde seria possível
a sensação de fugir, ao mesmo tempo, da “ditadura do mercado” e da ideologia do entretenimento,
imposta e mundializada. Um lugar onde a recomendação individual e “autêntica” (pensemos, com
efeito, nas redes sociais do tipo Facebook ou Twitter, mas também em uma multidão de sites pessoais ou associativos, e links enredados a partir destes sites) vem, a torto ou a direito, substituir a
formatação e as barreiras editoriais institucionalizadas. Em muitos sentidos, a Internet nos remete à
ambiguidade da globalização, que não para de oscilar entre particular e universal, partilha planetária
das mesmas informações e modos de vida, e infinitude de segmentações individuais e locais.
Não nos surpreende nessas condições constatar o florescimento dos sites de produção, troca e crítica literárias7. Uma das características de tais sites, dedicados ao compartilhamento, é contribuir para
o questionamento da ordem tradicional da comunicação literária e cultural: a divisão entre prescritores, criadores, críticos e simples receptores é superada, ou, em todo caso, suscetível de sê-lo. Pois,
um site (e mais ainda uma revista) concebido para Internet induz muito frequentemente um leitor
ativo e reativo, e tende a abolir a barreira entre emissão e recepção. E, com ainda mais frequência,
esta dimensão pode tomar um aspecto étnico, filosófico ou militante. É o caso, por exemplo, da
Revue des ressources, uma das mais antigas revistas francesas on line:
A Revues des ressources conjuga as expressões individuais e coletivas. A “Internet colectual”8 considera
prioritária a interação individual e coletiva. A Internet não deve ser monopolizada por vendedores para
clientes, por técnicos para técnicos, por organizações para seus membros. Vastos espaços de liberdade
5. “No fim do século XIX, o livro de poemas torna-se caro e vende pouco: Vanier tira quinhentos exemplares das obras de Verlaine,
poeta bastante reconhecido a essa época, enquanto que o romance de um desconhecido raramente tinha tiragem inferior a mil
exemplares” (PARINET, 1991:166).
6. Sobre essa questão, ver Honoré de Balzac, Ilusions perdues (1837, 1839, 1843), especificamente o Tomo 2, Un grand homme de
province à Paris (1839) (BALZAC, 1977).
7. Para a França (mas o fenômeno é mundial e deve, portanto, ser atualizado para cada espaço linguístico ou nacional), nos limitaremos a listar algumas famílias desse tipo de site: quer se trate de sites orientados sobre um “gênero” como a poesia, (poezibao.
typepad.com), uma abordagem mais geral de atualidade literária, com François Bon (www.tierslivre.net), uma atividade de “revisão”
www.larevuedesressources.org), uma critica de tipo acadêmico e universitário (www.fabula.org), um escritor (www.associationleclezio.com), seja uma associação ou o site próprio do escritor, cuja edição ele assume. Um editor, misturando algumas vezes comunicação, atividade critica e publicações eletrônicas (www.leoscheer.com) paralelamente a publicações impressas (e encontramos aqui
um modelo híbrido).
8. “Colectual”: trata-se de um neologismo (coletivo/individual) remetendo ao Manifeste de L’Internet collectuel publicado em 8 de
dezembro de 2001, e depois retomado pela Revue dês ressources.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
individual e coletiva devem encontrar lugar e se desenvolver sem constrangimento, nem mercadológico,
nem financeiro, nem tecnocrático, nem ideológico. (www.larevuedesressources.org)
Podemos seguramente considerar essa “utopia” com alguma distância, e sem dúvida, menos entusiasmo do que manifestam seus promotores. Resta à Internet criar as condições para uma circulação
mais igualitária da informação, do debate e do questionamento ao verdadeiro sentido de seu espírito crítico: por natureza, ele toca à hierarquia da informação que, de descendente, pode se tornar
mais lateral e mais compartilhada.
Particularmente vivazes e frequentados principalmente por um público jovem (SAGNET, 2009/4),
todos os sites de “fanfiction” ou de “fanfic” merecem uma menção particular, na medida em que
chamam atenção, ao mesmo tempo, para a cultura de massa da distração e para a resistência à
cultura “cultivada”, legítima e imposta. Nesses sites, obras de grande difusão, séries televisionadas,
“sagas” de todos os gêneros e cada vez mais globalizadas (sendo Twilight um modelo de referência9),
assim como um conjunto de suas declinações: livros, séries, filmes, videogames servem de base
a uma multiplicidade de reescrituras, desdobramentos, prolongamentos, apreciações críticas, role
play games, encontros, etc. Instituindo comunidades sociais em fronteiras constantemente móveis,
elas são objeto de codificações por vezes muito restritivas, que não correspondem a sua realidade
(ver, por exemplo, www.fanfic-fr.net), isto para não mencionar aquelas que se referem às formas
globalizadas da poesia oral, e da gíria em particular (como no caso da Fédération française de Slam
Poésie: www.ffdsp.com)
O que têm em comum os sites literários, o que eles revelam da contra-cultura, da cultura de massa
ou da “alta cultura”? Para além de sua vocação a aproximar, algumas vezes até a confusão, “produtores”, “prescritores” e “consumidores”, sublinharemos sua grande reatividade, sua capacidade
quase imediata de atualização. Eles são evidentemente muito ricos em links, mais orgânicos, ou
mais rígidos, permitindo ao leitor estabelecer seus próprios paralelos, de um site a outro, de um
domínio a outro. São igualmente numerosos, como já vimos acima, iluminando a noção de “texto” e
recusando-se a separar, sistematicamente, o “texto escrito” da imagem e do som (ver, por exemplo,
o Sophie Project: sophieproject.org, que se define como um site e uma ferramenta gratuita, com
a intenção de reconciliar “leitura, escrita e criação no século XXI). Sobre um plano estritamente
literário, valorizam, intencionalmente, certas formas de escrita. É evidente, no quadro geral da proliferação da auto-ficção ou dos escritos pessoais, o caso do blog e de todas as formas íntimas que se
situam, algumas mais, outras menos, no âmbito do diário e de uma escrita do imediatismo: imediatismo da escrita, imediatismo da difusão. É também o caso da reescritura, ou dos prolongamentos
da escritura, bastante presentes nos sites de “fanfiction”.
Segundo o caráter mais ou menos aberto, institucionalizado, perene e controlado desses sites, a
questão da classificação dos objetos circulantes na Internet não cessa de se colocar, e de desviar
o usuário. De fato, uma das características da função editorial é justamente recomendar, “rotular”
e em definitivo “autorizar”, em nome de uma “marca”, tal ou qual obra. Em suma, a função de
“moderação” é essencial à estabilidade dos sites literários, e ao mesmo tempo, contraditória com
seu caráter aberto, tagarela, repetitivo, “infinito”, em muitos sentidos do termo, e quase libertário.
E encontramos aqui uma das contradições constitutivas da literatura entendida enquanto sociabilidade: ela é ao mesmo tempo lugar de intimidade e de partilha, de instituição e de resistência a toda
9. Assim, como, em um modelo mais antigo e mais “sério”, O Senhor dos anéis.
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tentativa de institucionalização.
Nesse sentido, enquanto a digitalização modifica nossas maneiras de ler, ela nos faz sentir, mais do
que nunca, a complexidade daquilo que “ler” pode querer dizer.
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A formação continuada de mediadores de leitura: o contexto online em foco
Continued training of reading mediators: the online context in focus
La formación contiua de mediadores de lectura: el contexto online en
foco
Solimar P. Silva1
Resumo
Este trabalho objetiva apresentar uma breve discussão teórica acerca da formação continuada do professor de língua
portuguesa como mediador de leitura. Abordamos os motivos que nos levam à escolha dos termos mediação / mediador para designar uma das funções do professor de língua portuguesa que é o fomento à leitura e a formação de leitores
proficientes. Apresentamos algumas considerações acerca da necessidade do letramento digital do professor e, portanto, da possibilidade de sua formação continuada para a mediação de leitura acontecer no contexto online, para que
possa atuar não só em aulas presenciais, mas também em EaD.
Palavras-chave: mediador de leitura; formação de professores; contexto online.
Abstract
This work aims to present a brief theoretical discussion on the training language teachers as first language reading mediators. We discuss the reasons that lead us to choose the terms mediation and mediator to describe the work a language
teacher has when promoting reading and the development of proficient readers. We present some considerations about
teachers digital literacy and therefore the possibility the continuing training for reading mediation take place in the digital
context, so that teachers act not only in the classroom, but also using distance education.
Keywords: mediator of reading; teacher development; online context.
Resumen
Este trabajo tiene como objetivo presentar una breve discusión teórica sobre la formación continua del profesor de
lengua materna como mediador de lectura. Se discuten las razones que nos llevan a elegir los términos mediador /
mediación para designar una de las funciones del maestro, que es promover la lectura y la formación de lectores competentes. Presentamos algunas consideraciones sobre la necesidad del conocimiento digital de los maestros y por lo tanto
la posibilidad de su formación continua para la mediación de la lectura ocurrer en el contexto digital, por lo que puede
actuar no sólo en el aula, sino también en EaD.
Palabras clave: mediador de lectura; formación de maestros; contexto online.
1. Doutoranda em Linguística Aplicada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora adjunta e coordenadora do curso
de Letras da Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO) e pesquisadora externa na UFRJ, vinculada ao Projeto LingNet Linguagem,
Educação e Tecnologia.
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
Introdução
Parece que ninguém tem dúvida do papel de um engenheiro civil ou de um médico, no que se refere
ao escopo de sua profissão, ou acerca de qual nomenclatura utilizar para designar o exercício dessas
práticas profissionais. Além disso, um leigo não pode exercer a profissão sem a devida formação
prévia. Quando isso acontece e a pessoa é descoberta no exercício ilícito da profissão, penalidades
são atribuídas.
Todavia, quando falamos do exercício do magistério, parece que entramos em uma área nebulosa.
Muitos são os que exercem a profissão sem serem formados – vários cursos de línguas são provas
cabais disso. Em alguns lugares, basta saber um pouco do idioma estrangeiro para estar empregado.
Isso não é prerrogativa do ensino de língua estrangeira. Vemos, em algumas escolas, o professor de
Matemática lecionando Física ou o de História lecionando Geografia por falta de professores licenciados nessa área.
A LDB estabelece os critérios mínimos para atuação no magistério. No artigo 62 lemos que:
a formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação
mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal. (LDB 9394/96)
Sabemos que antes da lei, promulgada em 1996, havia professores que atuavam no segundo segmento do ensino fundamental sem ter, pelo menos, a graduação na área. Embora o acesso à formação inicial em nível superior seja mais amplo, se comparado a algumas décadas, ainda temos vários
casos em que quem exerce a função do magistério não é, efetivamente, um professor.
Acrescentem-se à problemática da definição do papel e escopo da profissão de professor os vários
nomes utilizados para designá-lo, tais como facilitador, mediador, instrutor, mestre, agente, formador, orientador, preceptor, educador. Há quem seja até mesmo contra o uso da própria palavra professor, pois talvez esqueçam que esta denota aquele que professa, ou seja, declara, tem a convicção
de algo, exerce, ensina.
Interessante perceber que o verbo que mais definia a profissão de professor, o verbo ensinar, começou a ser questionado também. Afinal, o professor ensina o quê? É possível ensinar algo a alguém?
Muitos alegam estar ancorados na teoria socioconstrutivista de Vygotsky e, equivocadamente, julgam que o papel do professor é simplesmente “deixar” o conhecimento acontecer. Passaram de um
extremo a outro: da detenção total do controle do processo ensino-aprendizagem para uma inércia
quanto às necessárias intervenções para promover essa construção do conhecimento.
Na confusão de nomenclaturas e papéis, parece que ensina-se cada vez menos e aprende-se o quê?
A discussão sobre o assunto, muitas vezes, está muito focada no discurso, principalmente no que
se refere a que termos que sejam ‘politicamente corretos’ ou modernos, sob o risco de se parecer
tradicional, conservador e ultrapassado.
Pensemos especificamente no ensino da capacidade leitora. Se ler um texto qualquer fosse uma
atividade que não precisasse da mediação de um leitor mais maduro e competente, bastaria darmos
um livro a uma criança e ela começaria a ler. Seu contato direto com o objeto de leitura daria conta
de promover a aprendizagem. Assim, não teríamos analfabetos no mundo.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
Porém, o que possibilita essa aprendizagem específica é justamente a intervenção sistemática do
professor, inserindo o aluno no mundo das letras e tornando-o alfabetizado.
Entretanto, a mera decodificação do signo linguístico não é suficiente para formar leitores competentes (VILLARDI, 1999; SOARES, 2003; MARTINS, 2006). Do contrário, os últimos dados do INAF não
seriam tão desanimadores. Os resultados publicados pelo Instituto Paulo Montenegro (MONTENEGRO, 2012) apontam que apenas um em cada quatro brasileiros dominam as habilidades de leitura.
O ensino de leitura deve ser um processo contínuo, pois enquanto a alfabetização é marcada por
um período curto da vida escolar, letramento (ou letramentos!) leva a vida inteira para se realizar.
Diante deste quadro, acreditamos que uma discussão acerca de qual nomenclatura mais “correta” a
ser utilizada para designar o professor no exercício de sua profissão é o menos relevante. Quando o
assunto é o ensino de leitura especificamente, o panorama não é diferente, temos uma abundância
de termos também. Afinal, é o professor um mediador, dinamizador, facilitador, agente? Dar um
nome específico fará com que a prática seja mais eficaz?
Portanto, para efeitos deste trabalho, consideramos todos os termos sinônimos ou, pelo menos,
concomitantes para designar as várias funções do professor. Isso porque se “a relação do homem
com o mundo não é direta, mas mediada e complexa” (PIÚBA, 2011:16), o papel do professor é
exatamente servir como elo entre a leitura e os alunos, seja ele um facilitador, um dinamizador, um
agente ou, simples e mais diretamente, um professor – visto que, afinal, esta é a sua profissão.
Contudo, para nos atermos a apenas um termo e organizar nossa exposição, escolhemos o termo
mediador de leitura para designar a função específica do professor frente à formação de leitores mais
competentes. O objetivo deste trabalho é apontar características dessa mediação que promova a interação entre os sujeitos do processo de ensino-aprendizagem de leitura, além de apresentar uma discussão acerca das possíveis contribuições do contexto online para a formação continuada do professor,
especificamente o mediador de leitura, para contribuir para o robustecimento de sua prática docente.
Mediação de Leitura
Escolhemos o termo mediador de leitura para designar o papel do professor como responsável
pela prática pedagógica de ensino de língua materna. Essa escolha do termo acontece por diversas razões, conforme apresentamos a seguir.
Primeiramente, nos dicionários, vemos que a mediação é o ato ou efeito de mediar,
interceder, intervir. Mediar significa tratar ou discutir como mediador. Estar no meio.
Ser mediador ou medianeiro. Intervir acerca de.
Em alguns contextos, a palavra intervenção apresenta um cunho pejorativo, no sentido de se interferir em algo, de maneira imposta, ou como uma ação paternalista, de cuidar de quem não tem
condições de fazê-lo por si mesmo. À primeira vista, pode parecer que mediar signifique estar no
caminho entre o leitor e o livro, impedindo o contato direto.
Todavia, cumpre ressaltar que, no presente trabalho, temos em mente seu uso significando a mediação necessária entre a leitura e o leitor, sem a qual podemos cair numa simplificação do uso da
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língua (YUNES, 2012). Talvez alguns se questionem acerca dessa necessidade de mediação entre a
leitura e o leitor. Não pode o leitor simplesmente ler, sem essa intervenção do professor? Cremos
que, quanto mais imaturo o leitor, mais precisará de alguém para mediar a leitura feita. (ALMEIDA
JUNIOR; BORTOLIN, 2007).
O professor deve lançar mão de seu repertório de leitura para sugerir textos; proporcionar informações necessárias para a compreensão da leitura dos alunos, cuja proficiência de leitura ainda esteja
sendo desenvolvida; instigar o raciocínio através de perguntas; organizar atividades que antecedam
a leitura para preparar o leitor; promover atividades de pós-leitura para consolidar conhecimentos;
ampliar interpretações; promover a interação; entre outras inúmeras intervenções que esse trabalho de mediação requeira.
O professor atua como mediador, facilitador, incentivador, desafiador, investigador do conhecimento, da própria prática e da aprendizagem individual e grupal (ALMEIDA, 2001:1). Para a autora o
professor deve exercer esses papéis colocando-se como parceiro dos alunos e respeitando suas
escolhas durante o processo de aprendizagem.
Quando pensamos em construção conjunta do conhecimento, no que se refere ao papel do professor, não podemos ingenuamente acreditar que ele estará construindo seu conhecimento a partir do
mesmo patamar em que seus alunos se encontram. Assim, ele pode e deve estimular a interação
diversa, além da relação professor-aluno, para que o conhecimento seja co-construído com os diferentes saberes que cada aluno traz consigo. Essas formas de interação deixam de ser de um para
muitos, onde o professor fala para toda a turma e os alunos recebem passivamente o conteúdo ou
“adquirem” conhecimento, e passam a ser interações múltiplas, em rede.
Portanto, entendemos mediação não no sentido de imposição ou detenção de um saber fechado,
inacessível. Convém ressaltar, entretanto, a necessidade de o professor, como qualquer outro profissional, dominar plenamente o conhecimento necessário para exercer sua profissão. Afinal, ele deve
conhecer as teorias diversas de aprendizagem, saber como sistematizar o processo ensino-aprendizagem, e dominar o conteúdo para o qual se licenciou, ainda que esteja em processo contínuo de
aprendizagem durante toda a sua vida.
Em segundo lugar, o motivo de utilizarmos o termo mediador de leitura se coaduna com a escolha
de várias instituições sérias, as quais têm se debruçado sobre o tema da leitura no país. Esse é o
caso da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), que oferece o curso de extensão Formação de
mediadores de leitura, tendo como público-alvo prioritário os professores de educação básica.
Serve como exemplo também a Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio. Em seu site, lemos que sua
missão é “contribuir para a transformação da vida social através da formação de leitores [...] estimulando a continuidade das ações de mediação e formação de leitores” [grifo nosso].
O livro Leitores a caminho – formando agentes de leitura (2011), voltado para a formação de agentes
de leitura, apresenta na dedicatória o termo agente como sinônimo de mediador. O livro é dedicado
aos Agentes primeiros, estes leitores-mediadores ou nas linhas seguintes em trechos como “foi para
você, mediador de leituras [...]”. Essa instituição, centro de referência em leitura, também adota o
termo mediador para se referir ao trabalho daquele que promove a leitura.
Por fim, vários pesquisadores das áreas de Educação, Letras ou Biblioteconomia também adotam os
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termos mediador e mediação ao se referirem ao ensino-aprendizagem de leitura (ALMEIDA, 2001;
BORTOLIN, 2007; NASCIMENTO, 2007; CECCANTINI, 2009; YUNES, 2012, entre outros).
Em terceiro lugar, é relevante mencionar que o próprio plano oficial do governo brasileiro, voltado
para a leitura, o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), lançado em 2006, apresenta esta nomenclatura. Ele é um conjunto de projetos, programas, atividades e eventos na área do livro, leitura,
literatura e bibliotecas em desenvolvimento no país, empreendidos pelo Estado (em âmbito federal,
estadual e municipal) e pela sociedade. Segundo o próprio documento sua prioridade é transformar
a qualidade da capacidade leitora do Brasil e trazer a leitura para o dia-a-dia do brasileiro.
O PNLL se divide em quatro eixos principais. O eixo dois refere-se ao Fomento à leitura e à formação de mediadores. Este eixo desdobra-se em cinco ações, das quais, interessa-nos aqui a primeira:
Formação de mediadores de leitura. Esta ação explicita seu bojo de atuação nos seguintes termos:
Programas de capacitação de educadores, bibliotecários e outros mediadores da leitura. Projetos especiais com universidades e centros de formação de professores. Cursos de formação de educadores com
estratégia de fomento à leitura e de estudantes que se preparam para o magistério em literatura infanto
juvenil. Ampla utilização dos meios de educação a distância para formação de promotores de leitura em
escolas, bibliotecas e comunidades. (PNLL, 2006) [grifo nosso]
Percebemos no texto acima a preocupação com a formação do mediador de leitura, sendo ele professor, bibliotecário ou outros “personagens” envolvidos no processo de fomento à leitura. Entretanto, nosso foco neste trabalho é a formação do professor de língua portuguesa como mediador de
leitura, conforme mais adiante.
Todos podem ser mediadores de leitura?
Bortolin afirma que os familiares, os professores, os bibliotecários, os escritores, os editores, os críticos literários, os jornalistas, os livreiros, os tradutores, os webdesigners, e até os amigos que nos
emprestam um livro ou indicam um CD-ROM e uma página literária na Internet podem ser considerados mediadores de leitura (BORTOLIN, 2007).
Essa mediação exercida em todas as esferas da sociedade coloca a criança ou o aluno-leitor no centro, com vários núcleos a seu redor. Na família, os pais, irmãos mais velhos, avós, tios. Nos grupos
religiosos, nas escolas dominicais, catequeses, grupos de estudo, reuniões etc. Na escola, professores, educadores, bibliotecários e animadores da leitura.
Esses núcleos de leitura contribuem para a formação leitora da criança. Em casa, as estórias antes de
dormir, os livros de diversos formatos e o modelo de pais leitores podem contribuir para o desenvolvimento do hábito ou gosto pela leitura. De igual maneira, outros familiares podem corroborar para
a importância da leitura, ao serem vistos lendo, ao presentearem ou indicarem algum livro. Muitos
grupos religiosos utilizam escrituras sagradas ou manuais para as aulas, incentivando as crianças a
lerem textos de cunho religioso diversos. Bibliotecas públicas devem contar com bibliotecários que
saiam de trás de seus balcões para auxiliar o leitor na escolha por um título, que conversem sobre
alguma obra específica, que orientem para o uso mais adequado do acervo. Na escola, os professores devem incluir muita leitura na sua programação diária. Não aquela leitura para cobrar na prova,
mas o tipo que incentive o gosto pelo ato de ler (VILLARDI, 1999), faça-o descobrir que ler é uma
atividade que faz a mente trabalhar e permita que ele desfrute dos vários níveis de leitura: sensorial,
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emocional e racional (MARTINS, 2006).
De igual maneira, os profissionais envolvidos com a promoção de leitura, seja na escola ou em outros
espaços, contribuem para que a criança ou o aluno-leitor seja exposto de forma sistemática e constante aos mais diversos gêneros textuais (MARCUSCHI, 2010). Assim, essa criança ou aluno-leitor receberá
influência de todos os lados, o que contribuirá para o fortalecimento da sua proficiência leitora.
Entretanto, a realidade com a qual nos deparamos em nosso país mostra que as famílias não têm
exercido seu papel de mediador da leitura, por diversas razões. Talvez a principal delas seja os próprios pais não serem leitores e, assim, perpetua-se o ciclo da não-leitura. Nossa sociedade não é
leitora. A última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2011), aponta que apenas 28% da população
entrevistada afirma ler em seu tempo livre e que, entre o público considerado leitor, não alcançamos
sequer quatro livros lidos, por pessoa, em um período de três meses.
Então, embora o núcleo de leitores completo seja o ideal na formação leitora de uma criança, ele se
apresenta incompleto. Como resultado, a formação leitora fica repleta de lacunas e, na maioria das
vezes, apenas a escola fica encarregada de fazer sozinha a mediação de leitura (BORTOLIN, 2007;
CECCANTINI, 2009), no sentido de despertar no aluno o gosto pela leitura, além de cumprir com seu
papel de mediação pedagógica de leitura de forma intencional e sistematizada, uma de suas funções
principais. Essa mediação pedagógica vai além de ofertar livros e promover o hábito de ler. Envolve
atividades planejadas de trabalho com o texto, com o intuito de ampliar o entendimento do leitor,
levá-lo a perceber a intertextualidade presente nos textos e desenvolver a leitura crítica.
Embora o termo mediador de leitura pareça dar conta de uma vasta área com diferentes tipos de
‘personagens’ responsáveis pelo fomento à leitura, incluindo aí os diversos professores de todos os
níveis de ensino e de todas as disciplinas, restringimos o termo, neste trabalho, ao papel do professor de língua portuguesa no espaço escolar.
Entendemos que o papel do professor como mediador da leitura abrange múltiplas tarefas, como
criar condições de leitura; orientar os alunos quanto ao acervo existente na escola; como ler, como
cuidar do livro, o que ler – de acordo com os objetivos de leitura propostos; coordenar as atividades
de leitura de sua turma ou escola, de modo a atingir objetivos específicos de leitura e ser ele mesmo
um exemplo de leitor assíduo (CECCANTINI, 2009) dos mais variados gêneros discursivos e literários.
É preciso que quando a criança chegue à escola, encontre um ambiente propício para sua conexão
com o ato de ler. É imperativo que ela tenha professores leitores. Portanto, é necessário um olhar
especial para a formação docente do mediador de leitura, foco da próxima seção.
A formação do professor como mediador de leitura
Embora tenhamos ressaltado algumas vezes a necessidade de o próprio professor ser um leitor
contumaz para atuar com a mediação pedagógica de leitura, sabemos que nem sempre isso ocorre.
Em nosso país, devido a inúmeros fatores, muitos professores exercem profissão sem serem leitores
(SILVA, 2009:23). Essa é uma questão preocupante, posto que não há como formar leitores proficientes sem que haja a mediação de um leitor experiente.
Sem o atendimento dessa condição, o ensino se torna repleto de lacunas e o resultado é o que
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temos presenciado em nosso país, quando apenas 26% da população podem ser apontados como
leitores proficientes (CECCANTINI, 2009).
Acrescente-se que a formação para o magistério deve ser um processo contínuo que não se encerra
ao término da formação inicial (MANGAN et al, 2010). E a formação continuada não pode se dar
apenas durante o exercício da profissão. É necessário que haja um distanciamento da prática para
repensar sobre ela e perceber outras possibilidades.
O PNLL reserva um dos seus eixos para a questão da necessidade premente de formação e atuação
de mediadores de leitura, a fim de mudarmos o atual quadro de leitura no país, onde pouco se lê e
menos ainda parece se compreender acerca do que é lido.
Na sociedade atual, tornou-se imperativo que os profissionais invistam em sua formação continuamente. Essa formação passa a ser não apenas um direito do indivíduo, mas, sim, “um dever da
sociedade e do estado: prover oportunidades de formação continuada tanto para atender às necessidades do sistema econômico, quanto para oferecer ao indivíduo oportunidades de desenvolver
suas competências como trabalhador e cidadão (...)” (BELLONI, 2008:42-3).
Partilhamos com a autora da crença de que a formação docente precisa preparar os professores
“para a inovação tecnológica e suas consequências pedagógicas”, além de fazê-los sentir a necessidade de buscar sua formação continuada incessantemente (BELLONI, 2008:85)
A própria Lei de Diretrizes de Bases da Educação (LDB – Lei 9394/96), com atualizações incluídas
pela lei 12.056 (2009), preconiza que cabe à União, o Distrito Federal, os Estados e Municípios a
promoção da formação inicial, continuada e capacitação dos professores. Além disso, o parágrafo
segundo do artigo 62 da LDB afirma que os recursos e tecnologias da EaD podem ser utilizados para
a formação continuada.
E o PNLL afirma, na linha de ação do eixo dois, já mencionado anteriormente, que os programas de
capacitação de mediadores de leitura fará ampla utilização dos meios de educação a distância para
formação de promotores de leitura em escolas, bibliotecas e comunidades.
Assim, percebemos que a modalidade de educação a distância é campo fértil, esperando ser semeado
para oferecer como frutos bastantes oportunidades para a formação do professor mediador de leitura.
Essa modalidade de educação pode ser considerada uma boa opção para as iniciativas de formação
continuada do professor devido a várias características que apresenta, dentre as quais cito:
1) Flexibilidade de horário – os professores da educação básica, pelo menos, geralmente trabalham dois a três turnos, em diversas escolas, não dispondo de horários convencionais para sua formação.
Com a internet, o professor-aluno pode organizar seu cronograma de estudos de acordo
com seu quadro de horários. Em um curso presencial, ele teria que se submeter ao horário fixo com frequência obrigatória – geralmente terças e quintas, ou segundas e quartas
à noite ou aos sábados pela manhã, por exemplo. Tais horários não se adéquam a uma
agenda cuja disponibilidade seja às terças de manhã e sextas à tarde ou sábados no meio
da manhã. Desta maneira, um curso online pode atender às necessidades de horários de
um número muito maior de professores.
2) Quebra de barreiras geográficas – como um curso em EaD,que utilize os recursos das
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novas tecnologias, é ministrado prioritariamente via internet nos tempos atuais, o professor pode participar de cursos ou “encontros” promovidos por instituições em todo o
mundo. Recursos como webinars (seminários via web), plataformas que possibilitam ambientes virtuais de aprendizagem, chats (que permitem o bate-papo virtual) ou mesmo as
conversas via Skype, etc. são recursos que diminuem as distâncias atualmente.
Esse longo alcance da Internet permite que aquele professor que mora em regiões mais
afastadas dos grandes centros ou de instituições de ensino, mas que possui acesso à rede,
possa dar continuidade a seus estudos sem precisar sair de sua cidade ou mesmo de casa.
3) Economia – ao não precisar se locomover até uma aula presencial, o professor economiza nos gastos que teria com transporte e, em alguns casos, alimentação, além do próprio tempo que seria despendido na locomoção. Para quem oferece o curso, há também
economia com as despesas de alocação de espaço ou energia elétrica.
Há plataformas nas quais pode-se criar ambientes virtuais de aprendizagem gratuitamente, como a plataforma Moodle – uma das mais conhecidas, utilizada em 175 países
e disponível em 75 línguas –, o que facilita a iniciativa de instituições e grupos diversos
no compartilhamento dos saberes e na difusão do conhecimento.
4) Desenvolvimento do letramento digital – as novas demandas sociais e educacionais,
impulsionadas pelos avanços tecnológicos, exigem, cada vez mais a articulação da escola
com os recursos disponíveis no ambiente eletrônico. Novos gêneros surgem nesse contexto a cada dia (MARCUSCHI; XAVIER, 2010), cada vez mais pessoas estão conectadas a
redes sociais e a EaD tem se consolidado como uma modalidade de ensino eficaz. Não
explorar a internet para novas formas de aprender e ensinar pode gerar um novo tipo de
iletramento: o digital.
Consideramos esta característica pedra angular na justificativa da formação do mediador de leitura
no contexto online ou digital, visto que, justamente em razão desses avanços tecnológicos é que a
leitura está surgindo em contextos onde a escrita não era encontrada ou era escassa (FISCHER, 2006:
292). Se novas formas de ler têm surgido, o mediador de leitura precisa estar a par delas e se tornar
leitor proficiente em vários contextos, ampliando seu repertório de gêneros discursivos distintos, a
fim de exercer plenamente sua profissão.
Foco no contexto online
Ao trazermos o foco de nossa discussão para a formação do mediador de leitura no contexto digital,
faz-se mister ressaltar que não se trata de julgar a educação virtual melhor que a presencial ou de
querer substituir uma pela outra. Concordamos com Almeida (ALMEIDA, 2001), a qual afirma que é
necessário analisar as potencialidades de cada uma dessas modalidades de ensino. Para essa autora,
a educação a distância que faz uso das novas tecnologias “desloca o eixo da formação através do
ensino instrucional para a aprendizagem significativa dos alunos, favorecendo-lhes a interação, a
investigação, a descoberta e a produção de conhecimentos” (ALMEIDA, 2001:1).
Isso se faz mais premente se levarmos em consideração que a formação inicial aconteceu majoritariamente no contexto presencial, da cultura da palavra escrita impressa, onde pesquisar significava apenas
ir de uma biblioteca a outra, para consultar livros impressos. Os conteúdos dessa formação eram fechados e os currículos que demoravam a ser revistos, pois as mudanças aconteciam mais lentamente.
Ao falar sobre a formação de professores para a docência online, Marco Silva diz que, se a escola e
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universidade não explorarem os recursos da internet, estarão produzindo a exclusão social e cibercultural. Esse autor nos lembra que, na cibercultura, a comunicação envolve “rede hipertextual,
multiplicidade, interatividade, imaterialidade, processo síncrono e assíncrono, multissensorialidade
e multidirecionalidade” (SILVA, 2009:26).
Alguns desses termos são completamente novos para muitos professores, formados na cultura da
mídia clássica, impressa, da comunicação de um para muitos e pouca ou nenhuma interatividade.
Esse autor apresenta quatro desafios enfrentados pelo professor em sua formação de professores
para atuar no contexto digital:
1) Dar-se conta da transição da mídia clássica para a online – isso significa que agora
não mais recebemos a informação e somos meros consumidores dela. Oportunidades
de autoria, participação na elaboração de conteúdo, edição da informação e criação do
conhecimento são ilimitadas e devem ser exploradas.
2) Dar-se conta da existência do hipertexto digital – embora a mídia impressa também
permita a presença de elementos hipertextuais, através de referências, notas de rodapé,
elementos periféricos, é na cibercultura, sem as limitações de um texto no papel que
diferentes linguagens e mídias se combinam para criar uma miríade de caminhos de
leitura. Uma informação pode levar a um hipertexto, que leva a outro e outro, incessantemente.
Ainda segundo Silva, a educação online permite que “criemos conteúdos digitais com
múltiplas linguagens e mídias, em sintonia com a disposição hipertextual do computador e do novo leitor capaz de superar a linearidade do texto no suporte papel” (SILVA,
2009:30) [grifos nossos].
Interessante o destaque para a disposição desse ‘novo leitor capaz de superar a linearidade do texto’. Afinal de contas, não lemos em tela da mesma forma que lemos um texto
impresso. O futuro da leitura marcado com a era eletrônica será determinada justamente pelos adolescentes atuais, esses novos leitores (FISCHER, 2006:293).
3) Dar-se conta da interatividade enquanto mudança fundamental – esse desafio se coaduna com o que ressaltamos anteriormente, quando afirmarmos que a interação que
se requer atualmente, mesmo no ambiente presencial e ainda mais acentuadamente no
contexto digital, deixa de ser aquela de um para muitos. Ela é multidirecional. Leitura e
escrita se confundem, pois o leitor não é apenas um receptor passivo da mensagem. Ele
participa do processo de autoria, pelo menos, editando, sugerindo um link, ou seguindo
um link em detrimento de outro e sequer voltando ao texto original.
4) Dar-se conta da possibilidade de potencializar a comunicação e aprendizagem utilizando as interfaces da Internet – o autor explica que, na cibercultura, a interface pode
ser considerada “um dispositivo que permite o encontro de duas ou mais faces em atitude comunicacional, dialógica ou polifônica” (SILVA, 2009:34), não se tratando de uma
ferramenta, objeto material, mas como um espaço online de encontro e de comunicação,
objeto virtual. Ele cita como interfaces conhecidas: chat, fórum, wiki, Twitter, lista, blog,
site e LMS (Learning Management System) ou AVA (Ambiente Virtual de Aprendizagem).
O autor sugere que o professor lance mão das várias interfaces para a criação conjunta da comunicação e da aprendizagem em sala de aula presencial e online, pois elas “favorecem integração,
sentimento de pertença, trocas, crítica e autocrítica, discussões temáticas, elaboração, colaboração,
exploração, experimentação, simulação e descoberta”(SILVA, 2009:35).
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Acreditamos que o professor mediador de leitura pode se dar conta desses desafios de maneira
mais profunda, caso ele tenha primeiramente a oportunidade de vivenciar a experiência da educação a distância, utilizando os recursos das NTICs (Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação) como aluno.
Um curso de formação continuada para esse professor precisa levar em conta não só os aspectos
teóricos da linguagem e da promoção da leitura, mas também permitir que os alunos utilizem as
mais variadas interfaces, conheçam e compartilhem diferentes ferramentas disponíveis, construam
o conhecimento através da produção escrita compartilhada, colaborativa, seja em fóruns de discussão, na criação de Wikis em grupos ou individualmente, aprendendo regras de participação de
um chat, onde não é possível, por exemplo, levantar a mão para pedir a palavra. É necessário que o
grupo participante troque informações, expresse suas angústias e experiências, mude sua postura
frente às novas tecnologias – principalmente para não serem vistas como assustadoras ou ameaçadoras, tampouco como fonte de salvação de todas as mazelas do sistema educacional.
Almeida diz que para atuar na modalidade a distância, o professor deve desenvolver competências
que lhe permitam ter autoria, atuar na mediação pedagógica nas interações dos alunos e com os
alunos e criar espaços para que a autoria dos alunos seja profícua. Essa autora diz que, para que
essas e outras competências requeridas para atuar em EaD sejam desenvolvidas, é necessário que
a sua formação articule “teoria e prática, ensino e aprendizagem, formação e investigação, ação e
reflexão, mediação e interação, tecnologias e mídias interativas” (ALMEIDA, 2001:4).
Percebemos que essas dicotomias devem dar suporte ao arcabouço teórico-metodológico do desenho de um curso de formação docente no contexto digital e pode servir de bússola para a formação
do mediador de leitura.
Ele deve ser confrontado com perguntas acerca do que significa ler; o que caracteriza um leitor
proficiente; de que maneira o professor pode exercer a mediação da leitura e, ao mesmo tempo,
permitir que a interação multidirecional aconteça; o que teorias sobre leitor e leitura sugerem para
o ensino e o como o professor percebe sua prática cotidiana; como ele ensina e que reflexões produz
sobre sua prática; que tecnologias seu contexto real permite serem utilizadas; que mídias podem
ser aproveitadas, quais recursos podem ou devem ser utilizados e que diferença farão na construção
do leitor tradicional e digitalmente letrado (SILVA, 2012), entre outros inúmeros questionamentos
possíveis objetivando o entrelaçamento teoria-prática-reflexão de maneira cíclica.
Ao interagir com outros colegas professores em um curso online, ele poderá perceber que não apenas o professor é o responsável por ensinar ou fazer com que os alunos aprendam. Perceberá também a riqueza da interação entre os participantes e isso auxiliará na mudança de mentalidade no
que se refere o processo de aprendizagem em rede. E, esperamos, isso resulte na sua prática de
mediação de leitura, seja no contexto presencial ou digital, estimulando os alunos a verem seus
colegas de sala como parceiros no processo ensino-aprendizagem.
Em se tratando de leitura, principalmente de textos literários, é imperativo que a diversidade de interpretações seja trazida à tona (VILLARDI, 1999). No contexto online isso fica bastante evidenciado em provocações feitas nos fóruns de discussão. Se houvesse apenas uma resposta correta, não haveria fórum, nem
discussão. O primeiro aluno postaria a resposta correta e os outros só escreveriam: “Concordo”.
Assim, o professor mediador de leitura, em sua formação continuada no contexto digital, deve ter
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condições de refletir acerca das intervenções que faz em suas aulas. Estar consciente acerca do tipo
de perguntas que faz à turma, ao propor um exercício de discussão do texto, para averiguar se já tem
em mente uma resposta pronta e acabada que espera receber dos alunos.
É imperativo vivenciar a experiência do aprender online para integrar as diversas interfaces ao processo ensino-aprendizagem. Justamente devido à diversidade e complexidade das ferramentas existentes para o processo ensino-aprendizagem, tanto presencial como a distância, que buscam integrar as diferentes mídias (som, imagem, texto, hipertexto, hipermídia, etc.) é que é tão premente
que a formação docente seja contínua, incessante (MANGAN et al, 2010).
Convém esclarecer que não basta o professor saber utilizar as ferramentas e interfaces disponíveis
no computador e na internet. É necessário que ele saiba exercer sua profissão, especificamente,
fazer a mediação de leitura também por meio desses recursos (ALMEIDA, 2001:2).
Sobre isso, Almeida sugere que o educador seja assessorado durante esta experiência nova, visto
que apenas cursos e treinamentos não dão conta de fazer com que a prática docente se dê por meio
desses recursos. Segundo a autora, é necessário valorizar a experiência profissional desse professor
e promover articulação desse saber com a prática necessária para que ele aprenda a partir de situações. Diz ainda que é preciso que se apresentem teorias que ajudem a refletir e tornar essa experiência realmente significativa (ALMEIDA, 2001).
O que abrange a formação do mediador de leitura em / para o contexto online
Alguns pontos são fundamentais ao se elaborar um curso de formação continuada para esse público
específico. Primeiro, convém questionar o quê, como e para quê ensinar.
É necessário que o professor responsável pela formação pergunte-se o que deve entrar no escopo
do curso, isto é, o que deve ser ensinado. Aliás, o que ensinamos a alguém que já é professor daquele assunto? A melhor maneira é perguntar aos próprios professores-alunos o que ainda lhes falta
saber. Isso, por si, já mostra uma quebra de paradigma do currículo fechado, fixo, com conteúdo
determinado para toda e qualquer turma. Pode-se ter um fio condutor, claro, mas o caminho tem
que ser feito ao caminhar.
Em seguida, a pergunta deve ser como ensinar, ou como levar o aluno a aprender a aprender o que
ele precisa. É necessário dar condições ao professor de vivenciar o uso das interfaces e ferramentas
que ele mesmo precisará dispor em sua prática como mediador de leitura. Para isso, é importante
que ele experimente, opine, crie, publique, troque, compartilhe, deixe de lado, pesquise, entre uma
infinidade de verbos que indique ação. É necessário que ele aprenda a fazer, fazendo.
Isso não prescinde do necessário alicerçamento teórico, a fim de que a prática não se restrinja a
uma mera “intuição” do professor. Mas, sobretudo, deve haver espaço para a reflexão – individual
ou conjunta – das possíveis convergências e divergências entre teoria e prática.
Por fim, a terceira pergunta é por que algo deve constar no escopo do programa de formação. Isso
pode evitar que incluamos itens com a justificativa de que “é assim que sempre foi feito” ou o extremo “agora está na moda, todo mundo está usando X”.
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Além dessas três perguntas norteadoras da elaboração de um programa de formação continuada do
mediador de leitura, considero importante pensar-se também nos seguintes aspectos:
1) Acesso às ferramentas tecnológicas – Ainda são muitos os professores que estão
excluídos digitalmente, quer por não possuírem computadores, ou acesso a internet,
quer por possuírem os equipamentos em casa, mas não saberem utilizar. Sabemos que
são necessárias políticas públicas de inclusão digital, para que a oferta de cursos de formação básica que promovam a alfabetização / letramento digital seja mais abundante.
Entretanto, não se pode esperar apenas por iniciativas alheias. Em alguns casos, será
necessário oferecer, antes, um curso que auxilie os professores a se familiarizarem com
as diversas ferramentas e mídias disponíveis.
2) Inclusão na cibercultura – Só o acesso às ferramentas não dá conta de que o professor
participe plenamente da cibercultura. Há professores que têm acesso, mas que apenas digitam
provas e acessam suas contas de e-mail; outros utilizam os recursos das NTICs para continuar
a dar aulas tradicionais – só transferem o conteúdo do quadro para o computador, ainda que
utilizem interfaces digitais.
É preciso que ele perceba a diferença na comunicação em rede, nos compartilhamentos multidirecionais dos saberes. Só a inserção das NTICs nas aulas não é capaz, por si só, de promover
a interação, de quebrar o paradigma do ensino tradicional, centrado no professor. Ele precisa
perceber que a cibercultura é diferente da cultura impressa ou tradicional e que transite confortavelmente no ambiente eletrônico.
Estar incluído na cibercultura significa que essa inserção se dê de maneira crítica. O professor
não deve utilizar os recursos das NTICs só porque é novidade ou parece interessante. Ele deve
ter em mente a que objetivos pedagógicos dada interface ou ferramenta vai atender; como
o processo de ensino-aprendizagem será afetado com a utilização de determinado recurso e
como esse uso se mostrará mais eficaz para promover a construção conjunta do conhecimento.
3) Exposição a leituras variadas – de nada servirá o professor ter acesso às tecnologias e
estar inserido na cibercultura se ele mesmo não for um leitor. Por isso, a formação continuada do mediador de leitura deve incluir em seu escopo oportunidades variadas de
leitura. Não há como nos contentarmos com os textos teóricos sobre leitura. É preciso
resgatar a leitura literária, bem como incentivar o contato com a leitura em tela, promover o “encontro” de gêneros textuais distintos, proporcionar ao professor experimentar
novas leituras e compartilhar outras, relembrando textos já conhecidos. Deve-se promover um grande banquete virtual de leitura.
Em síntese, esses três aspectos – acesso, cibercultura e leituras variadas – ao elaborar um programa
e o tripé de perguntas – o quê, como e por quê, podem contribuir como fio condutor na elaboração
de um programa de formação de mediadores de leitura em contextos digitais, que busque a interrelação constante da teoria-prática-reflexão.
Considerações finais
Neste artigo, objetivamos discutir como a formação continuada para o trabalho com mediação de
leitura pode ser realizada em EaD, utilizando-se prioritariamente o contexto online. Para isso, apresentamos uma discussão teórica acerca da escolha do termo mediador / mediação para designar uma
das múltiplas funções do professor de língua portuguesa, bem como apresentamos características e
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potencialidades de a formação continuada desse professor acontecer no contexto digital. Por fim, propusemos algumas reflexões sobre o que deve ser levado em consideração ao se elaborar um programa
de formação continuada do mediador de leitura.
Esperamos, desta forma, contribuir com a discussão teórica sobre o assunto para uma prática mais
efetiva da mediação de leitura em nossas salas de aula.
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25/07/2012.
Entre os muros da escola: a crise das disciplinas nas instituições de ensino
Between these walls: the crisis of discipline in teaching institution
Entre los muros de la escuela: la crisis de la disciplina en instituciones educativas
Ricardo Salztrager1
Pedro Sobrino Laureano2
Resumo
A proposta do artigo é efetuar uma análise sobre a crise das disciplinas nas instituições de ensino mediante uma leitura
do filme “Entre os muros da escola” de Lautet Cantet. Para tal, nos centraremos nas considerações de Deleuze a respeito
da emergência da sociedade de controle, com o intuito de situar o relativo fracasso da normalização disciplinar na escola
retratada pelo filme. Nesta perspectiva, são lançados alguns questionamentos sobre o lugar do conceito ferencziano de
desmentido na cultura contemporânea.
Palavras-chave: disciplina; desmentido; instituições de ensino.
Abstract
The purpose of this article is to make an analysis about the crisis of the disciplines in the educational institutions through a
reading of the film “Between these walls”, of director Lautet Cantet. We will focus on considerations about Deleuze’s analysis of the emergence of control society, in order to situate the relative crisis of normalization in disciplinary schools portrayed by the film. In this perspective, we raise some questions about Ferenczi’s concept of denial in contemporary culture.
Keywords: discipline; denial; educational institutions.
Resumen
El artículo hace un análisis sobre la crisis de la disciplina en instituciones educativas a través de una lectura de la película
“entre los muros de la escuela” de Lautet Cantet. Para eso, nos centraremos en las consideraciones de Deleuze sobre
la aparición de la sociedad de control, con el fin de situar el fracaso relativo de las normas disciplinarias en la escuela
retratada por la película. En esta perspectiva, son hechos algunas preguntas sobre el lugar del concepto ferencziano de
negación en la cultura contemporánea.
Palabras clave: disciplina; desmentido; instituciones educativas.
1. Professor Adjunto e doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Fedaral Fluminense (UFF) e consultor ad hoc da Leitura em
Revista.
2. Doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Membro da SPID - Sociedade de psicanálise Iracy Doyle.
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A proposta deste artigo é pensar sobre a crise das disciplinas nas instituições de ensino contemporâneas, a partir de uma leitura do filme Entre os muros da escola, do diretor Lautet Cantet, vencedor
da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2008. No entanto, cabe destacar que não nos propomos
a pensar sobre o filme, mas sim pensar com ele. Ou seja, não se trata de refletir sobre a obra, como
se pudéssemos explicá-la a partir de um campo discursivo neutro, de onde a verdade definitiva se
revelaria. Pensar com o filme, ao invés de pensar sobre ele será, para nós, antevermos a possibilidade de que, se uma obra é capaz de expressar a criação a partir da necessidade que caracteriza o
artístico tal como queremos pensá-lo aqui, é que ela pode, numa estranha comunicação de impossibilidades, nos comunicar também seu confronto básico, levando-nos a repetir diferencialmente a
criação à qual ela testemunha.
Nos utilizamos, aqui, de uma noção já reivindicada por Deleuze e Guattari (DELLEUZE; GUATTARI,
1992) em relação à análise das obras de arte, que busca interceder qualquer concepção de leitura
da arte como reflexão sobre um objeto artístico. Para os autores, o que a arte é capaz de mostrar é
a possibilidade de um encontro com aquilo que não pode ser representado, encontro falho do ponto
de vista de qualquer representação identitária. Para Deleuze e Guattari, a arte sempre exprime um
gesto de resistência política, ainda que seu tema explícito não seja político; resistência em relação
ao senso comum de uma época, à repartição bem fundada das formas de percepção e sensibilidade
que impede o pensamento de aventurar-se no terreno do que não cai sob o julgo da representação.
Impossível então falar sobre um objeto artístico: pois ele sempre se ergue a partir de uma ferida no
senso comum, encenando os impasses que uma época prefere silenciar e fazendo ouvir os gritos
que nenhuma linguagem bem fundada poderia escutar.
Também encontramos tal aposta, a de reconhecer o que não pode ser admitido pelo senso comum,
no pensamento de Freud e da psicanálise. Em Freud (FREUD, 1995), a dimensão do conflito é postulada como essencial ao homem. É ela que se encontra denegada, recalcada ou excluída pelo território do senso comum e das representações apaziguadoras de uma comunidade ou um sujeito. O
conflito é exatamente o ponto de não coincidência do sujeito e da cultura consigo mesmos; ponto
aonde a representação falha, e o terreno do trauma, da pulsão e do desamparo aparecem como
irredutíveis (FREUD, 1995). Não se trata, entretanto, de uma visada pessimista, mas da aposta ética
e política de enxergar, na precariedade mesma do ser, o potencial para a transformação política e
para a criação artística.
De fato, como podemos observar em O mal estar na civilização (FREUD, 1995), a cultura não constitui um terreno harmônico aonde as diferenças entre os indivíduos poderiam ser apaziguadas por
uma síntese racional qualquer (na figura do Estado, por exemplo). A leitura freudiana da cultura postula a irredutibilidade do antagonismo social, e a necessidade de reconhecimento simbólico deste
antagonismo. E por antagonismo não devemos entender a perspectiva dualista que opõe indivíduo
e civilização, como se estivéssemos condenados a encenar a oposição entre os interesses particulares e a síntese coletiva e racional destes interesses. Longe de se constituir na “luta de todos
contra todos”, como na ficção hobbesiana (HOBBES, 1982) de um estado de natureza que viria ser
resolvido por um contrato voluntário, Freud pensa o antagonismo como uma luta dentro da própria cultura: o universal cultural é constitutivamente falho, precário, mas é sempre dentro dele que
necessariamente os homens agem como seres políticos. Não há indivíduo prévio ao laço social; não
há, portanto, uma oposição constitutiva entre indivíduo e cultura, porque o sujeito e a cultura exprimem uma mesma divisão. Por isto a centralidade de conceitos como os de trauma e desamparo, no
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trajeto freudiano; é a precariedade subjetiva que reúne individuo e cultura dentro de uma mesma
civilização falha, comunidade dos sem comunidade (NANCY, 1990) que, paradoxalmente, precisa ser
afirmada, reconhecida.
Nossa leitura sobre o filme Entre os muros da escola será realizada através de ideias da psicanálise
e da filosofia, procurando abordar o antagonismo social que o filme tematiza. Buscaremos pensar a
forma através da qual o filme busca reconhecer a dimensão conflitiva da sociedade contemporânea,
expondo suas contradições, clivagens e impasses. Não para realizar uma simples crítica social de
nossas instituições, mas para apostar numa perspectiva que, acreditamos, é comum à psicanálise: a
de que é no reconhecimento do caráter conflitivo e precário da subjetividade e da cultura que uma
abordagem ética da política e da arte pode se realizar. Propormos pensar, a partir do filme, a estrutura do desmentido, conforme este é descrido pelo psicanalista húngaro Sándor Ferenczi, e a seguir
relacionaremos as ideias de Ferenczi com a descrição deleuziana da sociedade de controle. Através
da filmagem do dia a dia de professores e alunos numa instituição escolar pública da França atual,
Entre os muros da escola torna-se apto a dialogar com temas essenciais da psicanálise e da filosofia.
Ferenczi e o desmentido
Em dois de seus principais escritos – “Análises de crianças com adultos” (FERENCZI, 2011) e “Confusão de língua entre os adultos e a criança” (FERENCZI, 2011) –, Ferenczi expõe as principais premissas de sua concepção sobre o desmentido, enquanto vinculado ao trauma. Trata-se de uma visada
sobre a questão do trauma que se diferencia das múltiplas acepções que o conceito recebeu ao longo do pensamento freudiano. Segundo Ferenczi, por exemplo, o trauma não se constitui exatamente
como efeito da ausência de uma descarga afetiva frente a uma situação qualquer (BREUER; FREUD,
1995); ele também não diz respeito a uma cena de sedução sexual na infância e que somente a posteriori (Nachträglich) demonstraria seus efeitos (FREUD, 1995); tampouco, o trauma se vincularia a
um excesso pulsional não ligado a representações e que, assim, promoveria a compulsão à repetição
(FREUD, 1995). Analisando a questão por um outro viés, o pensamento ferencziano abre espaço
para uma concepção inovadora sobre o trauma, vinculando-o à idéia do desmentido.
Ferenczi (FERENCZI, 2011) começa sua teorização, expondo as principais premissas do embate de
uma criança com o universo simbólico. Neste contexto, ele destaca a existência de uma confusão de
línguas gerada a partir de uma cena de sedução. Na cena em questão, a criança encontra-se provida
de uma linguagem eminentemente terna, enquanto o adulto reage a ela com uma linguagem de
paixão. Sendo, neste caso, a diferença entre as línguas bastante evidente, a culpa sentida pelo adulto
após o ato de violência se manifesta como algo incompreensível para a criança. O domínio da paixão
remeteria a uma linguagem bastante complexa, da qual o infante não possui o menor entendimento
e, ante este inacessível, a criança reage com um efeito de surpresa, sendo tomada por um afeto de
profunda estranheza.
A história prossegue com mais uma confusão de línguas. É indicado que, em função da não compreensão da culpa sentida pelo adulto, a criança vai ao encontro de um terceiro que possa lhe explicar
o ocorrido. No entanto, este último, não suportando o relato, desmente a criança, dizendo que tudo
aquilo não passaria de fantasmatizações suas. De acordo com Ferenczi (FERENCZI, 2011), o fator
traumático está ligado a este momento do desmentido. Ou seja, não é o ato da violência em si o
que responde pela emergência do trauma, mas a negação de sua existência. Como consequência do
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desmentido, instaura-se o processo de identificação com o agressor, de modo que a criança passa a
incorporar a culpa por ele sentida na cena de abuso.
Com efeito, na teoria ferencziana, o trauma se associa ao desmentido, sendo, portanto, efeito de um
ato de linguagem: a criança recorre a um adulto com o objetivo de que ele forneça um sentido para
o que ainda não o tinha. Contudo, este nega veementemente o acontecimento. Mas, desta maneira,
cabe indagar: por que a palavra do adulto é tão traumática para a criança?
Pinheiro propõe que o discurso do desmentido promove o traumatismo por se tratar de um enunciado eminentemente unívoco e que, portanto, não dá margens à polissemia (PINHEIRO, 1995). Em
outros termos, trata-se de destacar que o desmentido faz referência a uma verdade absoluta e nãoambígua. De fato, uma linguagem rígida não poderia, de forma alguma, ser assimilada pela criança:
o sujeito que ouve uma formação discursiva deste tipo não consegue integrá-la, de maneira a fazê-la
circular e se associar a outros enunciados. Ou seja, o discurso do desmentido interdita a própria
possibilidade do sujeito de fornecer diferentes sentidos a ele. A palavra permanece enclausurada,
perdendo sua elasticidade e comprometendo o processo de simbolização e de metaforização.
A partir destes pressupostos ferenczianos, Gondar destaca que o reconhecimento, tido como o avesso
do desmentido, poderia levar o sujeito a escapar da situação traumática (GONDAR, 2012). Em linhas
gerais, a dimensão do reconhecimento diz respeito à necessidade do sujeito de ser ouvido e respeitado
pelos outros. Ou seja, um reconhecimento da sua própria condição de sujeito que, assim, colocaria um
fim a toda hipocrisia e cinismo decorrente da situação do desmentido. O reconhecimento passaria a
validar as mais diferentes experiências subjetivas, para além das afirmações categóricas e unívocas de
que nada acontecera ou de que não houve sofrimento algum.
Nesta perspectiva, podemos dizer que o modelo ferencziano do trauma pode ser generalizado para
além do contexto específico de uma cena de sedução. Deste modo, mais importante do que um
adulto sedutor, uma criança abusada e um terceiro que desmente o ocorrido, são as relações de
poder, desvalorização e desrespeito que destroem a confiança que o sujeito deposita nos outros.
Mediante esta leitura, Gondar destaca que o modelo do desmentido pode também ser inscrito em
situações mais amplas que abrangem até mesmo coletividades, famílias e instituições (GONDAR,
2012). Portanto, agora, partindo desta ampliação da teoria ferencziana do trauma, vejamos como os
opostos desmentido/reconhecimento se fazem presentes no filme.
O personagem principal é Monsieur Marin, professor de francês de uma escola do subúrbio de Paris
de alunos visivelmente desinteressados, indisciplinados e contestadores dos modelos tradicionais
de ensino. O próprio Marin, por vezes, se coloca contra estes modelos estritamente disciplinadores,
mas é obrigado a calar-se por ser voto vencido nos conselhos de classe. Controvertidamente, ele
reproduz tais modelos frente à classe. O filme é permeado por cenas de deboche da figura do professor, de recusa dos alunos em fazer as tarefas propostas e de questionamento, inclusive, a respeito
do conteúdo que lhes é ensinado.
Uma primeira cena que chama a nossa atenção é quando o professor, na tentativa de explicar aos
alunos o significado da palavra “suculento”, escreve no quadro a frase: “Bill está comendo um cheeseburguer suculento”. A partir daí, a aluna Khoumba, talvez uma das mais indisciplinadas e desinteressadas, questiona o fato de o professor ter se servido do nome “Bill” para o exemplo, ao invés
de optar por um nome de origem árabe. Marin argumenta que não poderia começar a escolher os
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nomes para seus exemplos levando em conta a diversidade étnica da turma pois, caso fizesse, seria
necessária uma infinidade de exemplos. Khoumba não se convence frente ao argumento e sugere
que o professor comece a variar nem que seja um pouco.
O fato é que Marin debocha constantemente de Khoumba, duvidando de sua inteligência e capacidade de responder suas perguntas. Mesmo quando Khoumba pede para o professor parar com
suas ironias, ele nega que debocha dela e argumenta que se age desta maneira é para manter a
concentração da turma. Uma briga entre os dois ocorre quando Marin pede a ela para ler em voz
alta um trecho de O diário de Anne Frank e Khoumba se recusa. Marin, com ar debochado, a chama
de insolente e pede para os dois conversarem no final da aula.
Durante a conversa, como se quisesse escapar da responsabilidade pelo comportamento de Khoumba, Marin pergunta o que lhe acontecera durante as férias, já que no ano anterior ela se comportava
bem. A aluna responde que não havia ocorrido nada demais, deixando nas entrelinhas que o problema não era com ela. Marin faz uma anotação na caderneta de Khoumba e exige desculpas. Após
uma série de recusas iniciais, a aluna pede desculpas ao professor de forma debochada e, quando
ele vai ao seu escaninho, encontra uma carta escrita pela aluna.
Na carta, Khoumba discorre sobre o tema do respeito, dizendo que os alunos aprendem a respeitar seus professores seja por se sentirem ameaçados, seja pelo medo de evitar maiores conflitos. No
entanto, ela frisa que o respeito deveria ser algo mútuo e, neste sentido, se ela não difama o professor, não haveria porque ele agir desta maneira com ela. Khoumba diz ter certeza que Marin tem algo
contra ela, embora não saiba exatamente do que se trata. Por isto, a partir do dia seguinte, ela iria se
sentar no fundo da sala e não dirigir mais a palavra a ele para evitar problemas, a menos que ele volte
a provocá-la. Com efeito, Khoumba sofria as consequências dos mais variados atos de desmentido da
parte de Marin e, quando ela pede respeito ou mesmo denuncia o fato de o professor jamais utilizar
nomes próprios árabes em seus exemplos, ela nada mais está solicitando do que um reconhecimento.
No entanto, não apenas Khoumba, mas também todos os outros alunos são vítimas de uma situação
maior de desmentido que diz respeito às relações de cinismo, desvalorização e desrespeito que a
escola como um todo possui com eles. Esta postura da escola é visível nas cenas nas quais ocorrem
os conselhos de classe. Nestas, os professores sugerem a criação de um sistema de classificação das
infrações dos alunos, de modo que cada desvio de conduta valesse determinado número de pontos.
O aluno que atingisse uma pontuação “x” seria expulso do colégio. Nas cenas em questão, é visível a
ambiguidade do discurso de Marin: enquanto ele é desrespeitoso e irônico em sala de aula, durante
os conselhos de classe, se coloca contra o restante dos professores, enfatizando ser um absurdo atribuir tal sistema de pontos às más condutas, de modo a uniformizar os alunos sem que se reconheça
as nuances e diferenças subjetivas que estão por detrás destes desvios. Em uma cena específica,
os demais professores fecham os ouvidos às palavras de Marin, argumentando haver outros temas
mais relevantes para ser discutidos como, por exemplo, os problemas recorrentes com a máquina
de café da sala de reuniões.
Ao longo do ano letivo, algo começa a se modificar na relação de Marin com seus alunos quando ele,
inspirado na leitura de Anne Frank, sugere que todos escrevam uma pequena biografia, narrando os
fatos importantes de suas vidas e enfatizando seus desejos, gostos e aspirações. A reação inicial da
turma foi negativa, seja por não querer expor suas vidas privadas, seja por considerá-las desinteressantes. No entanto, quando Marin argumenta não ser o “professor Marin”, mas sim, o “ser humano
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Marin” quem lhes solicita a tarefa, os alunos aderem à proposta, inclusive Khoumba.
O único aluno que resiste ao trabalho é Souleymane, considerado nos conselhos de classe como o
mais indisciplinado e desinteressado. O próprio Marin já havia feito anotações em sua caderneta para
alertar os pais sobre seu mau comportamento, mas estes assinavam o aviso ser ler, pois desconheciam
a língua francesa. Em geral, durante a leitura das biografias, o clima na turma é ameno, ao contrário do
que acontecia até então. Os alunos escrevem sobre seus gostos, planos para o futuro e dão palpites no
que os outros escreveram. Mesmo Souleymane que inicialmente recusou-se a escrever, no dia seguinte, chega à aula com diversas fotos de sua família, amigos e dos momentos marcantes de sua vida.
O personagem de Souleymane ganha maior espaço no filme a partir de um incidente em sala de
aula. As representantes da turma haviam repassado aos demais alunos informações confidenciais
do conselho de classe e, assim, Souleymane interrompe a aula para pedir explicações a Marin sobre
o que havia sido dito sobre ele. Marin desaprova a atitude das representantes, as chama de vagabundas
e a turma toda se exalta contra o professor. No meio da exaltação, Souleymane se revolta e tenta sair da
sala. Ao ser impedido por Marin, ele acidentalmente bate no rosto de Khoumba.
As representantes da turma contam aos demais professores sobre o insulto de Marin, mas ele nega
veementemente que as havia xingado. No entanto, seguindo os conselhos do diretor da escola, Marin
menciona o insulto às alunas em seus relatórios, mas sem entrar em muitos detalhes que pudessem
justificar o mau comportamento de Souleymane. Enfim, este é levado ao conselho disciplinar, se cala
por medo, é considerado como o único responsável pelo incidente e, assim, é expulso do colégio. O
ano letivo termina com uma partida comemorativa de futebol entre diretores, professores e alunos.
Seja através desta partida de futebol comemorativo, seja pelas cenas de cinismo e hipocrisia entre
Marin, Khoumba e Souleymane, ou mesmo pela postura dos professores nos conselhos de classe, o
filme nos convida para a reflexão do tema do desmentido e do seu oposto, o reconhecimento, para
além do contexto da sedução sexual proposto por Ferenczi. Com efeito, ele demonstra que as práticas do desmentido podem ser inscritas num contexto social mais amplo. Isto, por sua vez, nos conduz a pensar sobre o próprio modelo de organização da sociedade contemporânea, dentro da qual
procuraremos situar o campo problemático do desmentido. Assim, ainda com o filme em mente,
analisemos a genealogia realizada por Foucault (FOUCAULT, 1996) e retomada por Deleuze (DELEUZE,
1992) da transição do poder disciplinar para a sociedade de controle na contemporaneidade.
Disciplina, controle e desmentido
Tornaram-se famosas as pesquisas de Foucault sobre os regimes históricos do poder-saber (FOUCAULT,
1996). Tais pesquisas articulam-se em torno de uma metodologia genealógica que pretende atribuir à contingencia e à heterogeneidade um valor exegético fundamental. Foucault, qualificandose como antifilósofo, intercede qualquer questionamento metafísico que enxergaria na história o
desenrolar de uma verdade qualquer. Sua prática teórica dos regimes de verdade – dos diversos
modos pelos quais o ocidente colocou para a si o problema do verdadeiro – busca interceder qualquer hermenêutica profunda dos sentidos da história (DREYFUS; RABINOW, 1995).
Disso se originam as investigações em torno dos regimes de poder, de suas rupturas, descontinuidades ou continuidades, transições e dispositivos. Foucault busca coletar o exercício imanente do
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poder, não nas grandes representações, batalhas, descobertas ou acontecimentos, mas nas palavras esquecidas em arquivos, nos murmúrios dos processos jurídicos, nos relatórios de instituições
“esquecidas” pelo tempo (FOUCAULT, 1996). E chega à conclusão de que a produção da verdade, na
modernidade, constituiu-se através de uma sobreposição entre dois regimes de poder, o soberano e
o disciplinar, em que o último adquiriu, progressivamente, prevalência sobre o primeiro.
Ora, percebemos como o gesto de Foucault aproxima-se, de certa maneira, com o da psicanálise. Ao
buscar seu material nas periferias das grandes narrativas, na vida dos homens infames (FOUCAULT,
1992), etc., ele contorna o recalque3 imposto pelos grandes acontecimentos lineares da História
sobre o murmúrio das micro-ocorrências infinitesimais, das vidas esquecidas, dos territórios não
admitidos pela razão, dos acontecimentos infames que não poderiam ser reconhecidos, sequer
como antagonistas numa narrativa histórica de emancipação. Foucault dá visibilidade ao que constitui uma espécie de contra-história das normas, que incide sobre o detalhe, sobre as mais minúsculas
ocorrências (FOUCAULT, 1997).
Mas esta busca de dar voz aos excluídos das grandes narrativas não impede Foucault de generalizar
um diagnóstico dos regimes de poder: ele chamará de disciplinas ao poder que emerge progressivamente no século XIX, e que representa uma mutação em relação ao poder soberano, característico
da Europa pré-moderna (FOUCAULT, 1996). O poder disciplinar já não tem estritamente a função
negativa, jurídica, que era característica do soberano: sua função é gerir as vidas e os corpos, ao
invés de limitá-los a partir de um ponto transcendente representado pelo déspota. Operando no
plano da sociedade civil, das instituições como as escolas, os hospitais, os hospícios, o exército, as
fábricas e as prisões, as disciplinas buscavam ordenar a disposição do espaço e do tempo, criando
indivíduos politicamente dóceis e economicamente produtivos.
Trata-se de num novo espaço na arquitetura do poder, que sobrepõem, à função negativa da soberania
de “fazer morrer e deixar viver”, a função positiva de normalização, de “ fazer viver e deixar morrer”
(FOUCAULT, 1988). Ora, é justamente no escopo desta problematização foucaultiana do poder disciplinar
que podemos situar nosso debate a respeito do filme “Entre os muros da escola”. Pois, como vimos, uma
das arquiteturas paradigmáticas do poder disciplinar é, justamente, a escola, com seus muros fechados,
sua rígida disciplina do tempo e delimitação dos espaços.
Mas, por outro lado, o que encontramos na escola Françoise Dolto4, retratada pelo filme, é justamente o fracasso desta normalização disciplinar. Os alunos dificilmente respeitam a autoridade do
professor. Eles conversam durante a aula, se distraem, contestam as decisões da diretoria, comparecem vestidos com diversos tipos de roupas e, principalmente, não apresentam a uniformidade que,
segundo Foucault, era exigida pelas normas disciplinares (FOUCAULT, 1996). Pelo contrário, apresentam uma real diversidade cultural, religiosa e racial. São judeus, franceses, muçulmanos do norte
3. Utilizamos o termo “recalque”, aqui, para exprimir uma forma de negação mais profunda que aquela designada pelo termo “opressão”. Se a opressão busca silenciar uma dada manifestação política, subjetiva, artística, etc., ela ainda reconhece aquilo em relação
ao que ela se opõe. Desta maneira, seguem-se as leituras clássicas da relação de identidade entre aquele que oprime e aquele que
é oprimido, como, por exemplo, na dialética do senhor e do escravo, (HEGEL, 1992). No recalque, entretanto, aquilo que é negado
não é reconhecido em sua identidade, não tem direito a existência (FREUD, 1995). Desta forma, a relação de mútua implicação entre
o recalcante e o recalcado é inteiramente inconsciente, e as formas de retorno do recalcado são vistas como estranhas, identificadas
pela agência recalcante apenas de forma “negativa”, e nunca na positividade de uma identidade antagonista.
4. É importante ressaltar que o nome da escola vem da psicanalista Françoise Dolto, que desenvolveu um método de ensino baseado
na teoria de Freud. Isto reforça nosso diagnóstico da escola retratada no filme como não mais sob o paradigma estritamente disciplinar.
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da África, imigrados, brancos, chineses, etc. Ao típico professor disciplinar, emissário da ordem e da
norma, sobrepõe-se o protagonista do filme, o professor Marin, liberal e tolerante que, por vezes,
procura discutir todas as questões com os alunos, respeitar a particularidade de cada um, tornar o
máximo possível o exercício da norma uma escolha aberta e maleável, e não rígida e imposta.
Neste sentido a escola apresentada no filme se aproxima mais da descrição realizada pelo filósofo Gilles
Deleuze das sociedades de controle, compreendidas pelo autor como uma transição e uma crise – supostamente já antevista por Foucault no final de sua obra – do poder disciplinar (DELEUZE, 1992; FOUCAULT,
2005). Para Deleuze o controle é o mecanismo de poder característico do capitalismo atual: não mais uma
organização rígida que reparte de maneira dualista as divisões entre o dentro e o fora, a norma e a transgressão, o bem e o mal, etc., confluindo para a produção de identidades fixadas a padrões estáveis e repetitivos de comportamento. O mecanismo de poder predominante em nossas sociedades, para Deleuze, não
operaria mais de acordo com estas repartições estanques, que produziam regimes temporais e espaciais
demarcados, buscando uma organização harmônica do corpo social. Na sociedade de controle, as identidades são fluidas e diferenciais; à fábrica disciplinar, típica do capitalismo fordista, sobrepõem-se as empresas;
às incitações ideológicas da restrição normativa disciplinar, que pregava a renúncia à satisfação em nome
de alguma Ordem superior (Pátria, Estado, Família, Progresso, Sociedade, etc.), sobrepõem-se o marketing
como contínua incitação à transgressão das normas públicas e coletivas em nome da satisfação individual
plena, sem restos.
Ora, a escola de Entre os muros da escola apresenta uma instituição já integrada aos mecanismos de
controle, exprimindo a crise das repartições disciplinares das subjetividades. Nela, há uma relativa
tolerância em relação à dinâmica entre lei e transgressão, pois a repartição entre o aceito e o não
aceito, a norma e o desvio, é fluida. Também encontramos a mistura de identidades que é característica de um grande centro urbano atual, como Paris: os alunos são adolescentes de todas as etnias,
raças e credos. Certamente encontramos também elementos remanescentes das disciplinas: na cronificação do tempo e do espaço, na estereotipia do conteúdo das matérias dadas aos alunos, no conselho disciplinar de expulsão e, principalmente, nas figuras dos professores “linha dura”, que pedem
a punição quando a situação na escola chega a seu “limite” e algum conflito eclode. Mas, em linhas
gerais, a escola obedece perfeitamente às características do controle, antevistas por Deleuze: a convivência de uma diversidade real de diferenças subjetivas, raciais, culturais, etc (DELEUZE, 1992).
Considerações finais
Neste ponto, cabe questionar: não será a sociedade de controle, justamente, determinante para as formas de subjetivação características da contemporaneidade? Ou seja, uma forma de subjetividade que
não reconhece mais limites entre o aceito e o não aceito, que tolera tudo e busca tudo compreender,
pois já não postula nenhum solo discursivo supostamente neutro de onde julgar (o Belo, a História, o
comportamento, a Moral, o Bem, o Verdadeiro, etc.)? Aqui, tudo se torna discurso: a pós-modernidade
é, de fato, a época do pluralismo, da tolerância e do convívio harmônico entre as diferenças.
Mas o que o filme nos mostra? Precisamente, a falência deste ideal tolerante, devido à incapacidade
de reconhecimento do conflito e da exclusão social. Ou seja, trata-se de revelar, no mundo atual,
uma resposta aos conflitos sociais e subjetivos que busca desmenti-los cinicamente – lembrando
que o cinismo é uma das faces do desmentido –, ao invés de recalcá-los devido a seu caráter insuportável, como faziam os regimes disciplinares. Na sociedade liberal de hoje, nada mais é insuportável:
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nós toleramos as diferenças étnicas, sociais, sexuais, etc. Mas nós o fazemos à custa de desmentir
cinicamente o antagonismo social e subjetivo. Por isto nós referendamos, aqui, um diagnóstico realizado alguns por autores, como Safatle, Zizek e Kehl, de que em nossa sociedade de controle, a forma
predominante de laço social não se daria mais através da restrição e do recalque disciplinar, mas sim
do desmentido cínico (SAFATLE, 2008; ZIZEK, 2006; KEHL, 2002). E é justamente esta característica
que é mostrada pelo filme que analisamos.
Também nos deparamos, aqui, com um limite que, nos parece, atinge ao mesmo tempo o empreendimento foucaultiano de historicização do campo social e os procedimentos hegemônicos, nos dias
de hoje, de denegação de conflitos sociais e subjetivos através da postulação do convívio harmônico
entre as diferenças. É que a própria maneira como a denegação cínica ocorre é através da historicização e reflexão contínua sobre as causas das mazelas sociais. O cínico é aquele que pode explicar
reflexivamente, de maneira articulada, o porquê das opressões, desigualdades e exclusões; aquele
que já não crê em nenhuma instância transcendente, em nenhum ideal que legitime as ações presentes. Nas sociedades disciplinares, como vimos, era necessária a legitimação simbólica do poder,
em nome de alguma causa maior: “em nome da “família, pátria, estado, raça, credo”, etc. Já o cinismo das sociedades de controle, pelo contrário, não recalca o saber que tem sobre o conflito e o
antagonismo social, recalque cuja fórmula paradigmática seria “eles não sabem o que fazem, e (por
isto) o fazem” (ZIZEK, 2006). O procedimento cínico do desmentido é diferente do recalque neurótico: ele antes denega o conflito, pois é capaz de reconhecê-lo, mas é incapaz de subjetivá-lo; ou seja,
é incapaz de incluir a si mesmo no quadro que descreve.
A fórmula do cinismo, então, pode ser aproximada àquela que foi descrita por Mannoni (MANNONI,
1967): “Je sais bien, mais quando meme”; eu sei bem (que no mundo atual não temos uma diversidade de culturas que convivem harmonicamente, sem conflitos) mas mesmo assim... (continuarei a agir
como se tal fosse)”. Qualquer gesto de contestação social, é, assim, cinicamente estigmatizado como
revelando uma postura negativa, contestatória, incapaz de aceitar a harmonia diferencial tolerante,
por estar ainda preso a algum resquício arcaico de intolerância. O que é proibido, pela denegação
cínica, é qualquer espécie de engajamento subjetivo no antagonismo social. O caráter traumático do
antagonismo é desmentido. Não através do procedimento clássico da época de Freud, de recalcar, fingindo que algo desagradável não existe, mas através do reconhecimento reflexivo das diversidades, da
pluralidade e da diferença, mas da denegação do caráter conflitivo, não harmônico, destas diferenças.
Como nos mostra precisamente “Entre os muros da escola”, não basta um professor supostamentetolerante e com boa vontade e a admissão, pela escola, de diversas etnias, grupos sociais, religiosos
e culturais, para que vivamos numa sociedade harmônica, sem falhas, “pós-ideológica”: sempre há
um momento aonde o ideal de tolerância e respeito às diferenças é rompido por um antagonismo
que mostra o caráter traumático, conflitivo, intolerante, do Próximo. O filme ilustra perfeitamente,
então, o que acontece quando a figura do liberal-multicultural é confrontada com estas situaçõeslimite, como na cena em que as tensões sociais na sala de aula tornam-se insuportáveis e o professor
Marin chama duas de suas alunas de “vagabundas”. Trata-se da necessária emergência de um conflito num tecido social que se pretende harmônico, tolerante e sem falhas, e do modo como a “velha”
atitude disciplinar ressuscita por trás da atitude benevolente pós-moderna5.
5. Não seria esta uma das razões pelas quais a crise econômica europeia de 2012 indica um vácuo político que torna inócuo o discurso
multiculturalista e liberal, como argumenta Zizek (ZIZEK, 2012)? Em sua postura de denegação cínica, tal discurso torna-se incapaz de
subjetivar um conflito social real, quando este ocorre (e ele necessariamente ocorre). O que acontece, então, é que são os partidos e
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O filme nos mostra que, como contrapartida ao universo múltiplo, fragmentário e tolerante da sociedade de controle, não devemos temer reconhecer a presença do que Freud descreve como o núcleo
resistente a simbolização (FREUD, 1995). Trata-se precisamente da emergência de elementos que
resistem à integração nas coordenadas simbólicas atuais, elementos que não se deixam reconhecer
dentro da conjuntura liberal pós-moderna, com sua perpétua denegação de conflitos sociais, sua
perpétua tradução simbólica de conflitos em termos de respeito às diferenças e as identidades.
Elementos, então, que exprimem a falência do procedimento de historicização e relativização contínuos acionados pela sociedade (e pela arte) pós-moderna. Como tal, tais elementos subvertem a
dicotomia tradicional entre o universal (hoje em dia criticado como “totalitário”) e o particular (celebrado como “diferencial”) postulando uma singularidade (elementos que não se deixam subsumir
pelas diferenças particularistas e nem por um universal “neutro”) universal. Um dos papéis da arte,
que o filme “Entre os muros da escola” nos ajuda a pensar, talvez seja precisamente o de exprimir
aquilo que não encontra representação, o sítio de algo que não pode ser assinalado pela representação, mas que permanece como a causa de qualquer criação, estética, política e subjetiva.
organizações de extrema direita que se tornam capazes de mobilizar as paixões e o trauma social despertado pela crise. Ou seja, ao
reconhecer o caráter conflitivo do tecido social, a extrema direita realiza um gesto que, paradoxalmente, deveria ser feito também
pela esquerda; seu “erro” está em simbolizar a causa do conflito em alguma figura do Outro étnico e religioso (migrantes, judeus,
muçulmanos, etc.) que se torna, então, a causa (deslocada) da divisão comunitária. Mais uma vez, o filme “Entre os muros da escola”
mostra perfeitamente o que acontece ao discurso liberal multiculturalista frente a uma situação de eclosão de um conflito social: no
filme, quando o estudante Souleyname é levado ao conselho disciplinar, é a voz do professor antagonista que prevalece, o professor
que prega a ordem e a disciplina, a obediência às leis e o castigo como solução para a “desarmonia social”. A questão, hoje, não é que
nós precisemos evitar ao máximo o radicalismo, e prezar pela diferença e pela pluralidade; nós precisamos, exatamente, de um novo
radicalismo como parte de um programa igualitário-radical, que ouse reconhecer o caráter conflito da sociedade atual, impedindo
a direita proto-fascista de se apropriar do sentimento de indignidade causado pela denegação cínica realizada pela postura meramente tolerância e pluralista. Podemos imaginar, aqui, a figura do professor Marin indo até o fim de suas premissas, e defendendo
a permanência do aluno ainda que isto custasse sua postura confortável de professor “tolerante”: é desta intolerância que talvez
precisemos.
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STARGAZING: reescrituras de Hollywood en el contexto experimental
STARGAZING: reescrituras de Hollywood no âmbito experimental
STARGAZING: rewriting Hollywood in the experimental context
Antonio Weinrichter1
Tradução de Patricia Carmello2
Resumen
Las películas de found footage (o cine del metrage-encontrado) ponen la questión de la apropriación y el montage. En
las apropriaciones de Hollywood por los cineastas experimentales, situadas entre el antagonismo y la fascinación, entre
distintos conceptos de apropriación o reescritura específicos del médio cinematográfico, hay que preguntar acerca de la
distancia entre la cultura de masas (Hollywood) y la vanguardia.
Palabras clave: metrage-encontrado; montage; vanguardia.
Resumo
Os filmes de found footage (ou cinema de fragmento-encontrado) colocam a questão da apropriação e da montagem.
Nas apropriações de Hollywood feitas por cineastas experimentais, situadas entre o antagonismo e a fascinação, dentre
diferentes conceitos de apropriação ou reescritura específicos do meio cinematográfico, é preciso indagar sobre a distância entre a cultura de massa (Hollywood) e a vanguarda.
Palavras-chave: found footage; montagem; vanguarda.
Abstract
Found footage films raise the question of appropriation and montage. In appropriations of Hollywood made by experimental filmmakers, situated between antagonism and fascination, among different concepts of appropriation or rewriting specific in that field, we must inquire about the distance between mass culture (Hollywood) and vanguard.
Keywords: found footage; montage; vanguard.
1. Professor da Universidade Carlos III (Madri).
2. Doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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El concepto de reescritura suele utilizarse en el contexto de las relaciones entre el cine y otros medios
de expresión, es decir, de la adaptación de un medio a otro. Se manejan nociones de fidelidad, se
evalúan los porcentajes del contenido narrativo o de otro tipo que sobreviven a la traslación, se
discuten – imposible no hacerlo – o se resucitan – aunque sería preferible no hacerlo – cuestiones
sobre el específico cinematográfico y se concluye, con perogrullesca desolación, que hay algo de
esencialmente intransitivo en todo texto que depende del medio original, en el que siempre será
preferible leerlo, etc. (De hecho, lo que puede cambiar de medio es precisamente aquéllo que no es
específico del medio, al igual que en una película todo lo que sea reducible a un guión -que es a lo
que suelen reducirse las adaptaciones: a la anécdota narrativa – es lo que no es cine, o no es el lugar
en donde reside – en todo caso, es el lugar en donde empieza – el verdadero trabajo del cineasta).
Queremos manejar aquí otro concepto de reescritura, este sí realmente específico del medio cinematográfico. Nos moveremos en el ámbito de las películas que reciclan imágenes de películas anteriores: la práctica que ha pasado a denominarse found footage o cine de metraje encontrado. Los
parámetros que entran en juego no son la fidelidad ni la transmigración de los contenidos de un
medio a otro (pues no salimos de uno mismo), sino más sencillamente el gesto de la apropiación y
el montage, más en concreto el remontaje, de los materiales apropiados. Ambos tienen una serie de
consecuencias esenciales que, como hemos estudiado en otro lugar3, han dilatado el reconocimiento histórico del found footage. Una consecuencia ineludible es que se cambia el sentido del material
por el solo hecho de alterar el contexto en que se presenta tras arrancarlo previamente de su contexto original: la forma más radical y productiva de reescritura es la citación, en el sentido que le
dio Walter Benjamin. También la más sencilla: no hace falta volver a escribir, reelaborar, sólo volver
a presentar. La distancia que se establece entre el sentido original y el nuevo que inevitablemente
adquiere, produce una lectura reflexiva del material: equivale por tanto a una verdadera reescritura
del mismo.
Dentro de las muchas variedades de found footage que existen, queremos detenernos en una en
particular: las apropiaciones del imaginario y de las imágenes del cine popular (lo que quiere decir
Hollywood) a cargo de cineastas experimentales o de vanguardia. Esta práctica concreta aparece
muy cargada tanto estética como ideológicamente: viene enmarcada por la distancia que existe
entre la cultura de masas y la vanguardia, entre el centro y la periferia. No es exclusiva del cine experimental norteamericano: Antoni Padrós concluía su Shirley Temple Story (1974) con la constatación
de otro tipo de distancia (“Esto no es Hollywood”, venía a reconocer la protagonista Rosa Morata);
en La verifica incerta (1964) - película que hizo que Umberto Eco exclamara, quizá con cierta precipitación, que la vanguardia se había hecho popular, o al menos más gratificante para el público- los
neoduchampianos Baruchelly y Griffi descacharraban las convenciones de los géneros producidos
en serie en las mecas del cine californiana y romana; y cineastas austriacos como Martin Arnold o
Peter Tscherkassky han deconstruido películas comerciales norteamericanas. Pero la tensión entre
centro y periferia se hace más evidente cuanto más cerca se está del vientre de la ballena, y por eso
son los cineastas estadounidenses los que más se han distinguido en este terreno, además de haber
sido los que primero desarrollaron una tradición de found footage, de Joseph Cornell (Rose Hobart,
1939) a Bruce Conner (A Movie, 1958).
Puede decirse que basta hacer cine con un planteamiento radicalmente distinto al vigente en la cor3. WEINRICHTER, 2009. Se trata de una versión condensada de mi tesis doctoral, Remontaje: El principio de apropiación en el documental de compilación y el cine experimental de found footage. Universidad Autónoma de Madrid, Madrid, 2008.
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riente principal del cine clásico, o lo que Noël Burch llama el Modo Institucional de Representación,
para denunciar a través de ese distanciamiento la idea que se nos ha hecho interiorizar sobre lo que
es el cine. Es lo que hace el historiador norteamericano Scott MacDonald al proponer el término de
critical cinema, para referirse a todas las formas de cine que pueden entenderse como una crítica
implícita y explícita del cine convencional (MacDonald aplica dicho término, si bien sigue siendo el
único en utilizarlo, preferentemente al cine experimental, a lo largo de la valiosa serie de cinco libros
de entrevistas con cineastas de dicha tradición que ha publicado bajo el título común de A Critical
Cinema, entre 1988 y 2006.) Pero esa vocación de reescritura crítica sería consustancial a todo tipo
de práctica fílmica radicalmente alternativa: como sugería Renato Poggioli hace ya medio siglo en
su teoría general de la vanguardia, éstas se caracterizan por una voluntad de agitar contra algo o
contra alguien: “Ese algo puede ser la academia, la tradición; el alguien puede ser un maestro cuyas
enseñanzas y ejemplo, cuyo prestigio y autoridad, se consideran erróneos o perjudiciales. A menudo, ese alguien es ese individuo colectivo que llamamos público” (POGLIOLLI, 1968:26). Es ésta una
tendencia permanente – antagonismo la denomina Poggioli – que pertenecería a la lógica de dichos
movimientos, es decir, a la ideología misma de la vanguardia. Sin abandonar esa actitud antagonista,
presente de forma implícita en las estrategias formales que despliegan, los cineastas que nos ocupan
revelan de forma explícita su posición crítica a través de los materiales que expropian.
Por supuesto, lo que enriquece y dota de una tensión especial a estas apropiaciones del cine comercial es que, cuando un cineasta experimental se pone a mirar a las estrellas, el antagonismo y la fascinación van de la mano. De hecho, algunos de los primeros practicantes del found footage recibieron
la acusación de complacerse en los materiales que remontaban: el simple remontaje no ofrecía -se
decía- una crítica seria de la ideología de las formas dominantes ni constituía en sí mismo un modo
oposicional de representación; a menudo sólo servía para reduplicar las formas que se pretendía criticar. Este tipo de descalificaciones evocan las que se le dirigieron al pop art, el movimiento artístico
que precedió en unos pocos años al found footage. Sin embargo, una visión retrospectiva como la
que ensayo en mi tesis permite confirmar que la apropiación y el reciclaje han sido principios operativos (aunque formando parte de la tradición mayor del montage) en muchos movimientos artísticos
de vanguardia del siglo XX; más precisamente, cabría decir que han sido la forma de intervención
preferida por la vanguardia ante el desarrollo de la cultura de masas. Más aún: frente a las críticas
que recibieron el pop art y el found footage, la lectura usual de estas estrategias de apropiación, a
partir del momento en que los creadores de los primeros fotomontajes vieron el potencial de las técnicas de recorte y plegado para desafiar a la cultura popular con sus mismas armas, ha sido que contienen un elemento implícito de crítica: no sólo se transforman los materiales sino que se ponen en
evidencia, estableciéndose una clara distancia respecto a su original intención consumista. La idea,
heredada de la época de Dadá, es que este trabajo de ensamblaje, y el gesto de apropiación que le
precede, sirven para transformar y cancelar la intención del material original, instalando el collage
en un ámbito oposicional. Es más, esta técnica sería en sí misma garantía de una posición crítica. Ello
concuerda con la visión de Poggioli de la vanguardia como un movimiento de antagonismo contra la
sociedad convencional en sentido amplio y contra la cultura de masas en particular.
Pero quizá la relación entre el arte modernista y la emergencia de los mass media sea más compleja
de lo que nos han hecho creer hábitos de pensamiento como los heredados de la escuela de Frankfurt, con su perenne rechazo de la cultura popular. Ello se hizo evidente con la aparición del pop
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art (término que acuña Laurence Alloway en 1955) y de la tendencia escultórica del assemblage4,
que retomaron la técnica del collage y en general las estrategias de apropiación, sin exhibir una
apreciable actitud antagonista excepto, quizá, implícitamente, contra la academia que había institucionalizado por aquel entonces el expresionismo abstracto. Ahí dolía; y la academia supo responder
al desafío. Frente a la radicalidad del gesto subyacente en los collages o en los fotomontajes de las
primeras décadas del siglo, esta nueva oleada de apropiacionismo fue peor recibida: se les acusó
de transformar el gesto antiartístico dadá en un gesto afirmativo. Si bien desafiaban el concepto
tradicional de creatividad o de inventiva (el arte como una intervención subjetiva y personal en el
mundo) del mismo modo que lo habían hecho antaño los ready-mades de Marcel Duchamp, fue
éste mismo quien los criticó ahora por tomar su noción del artefacto encontrado y otorgarle “belleza
estética” (ARACIL; RODRÍGUEZ, 1982:388), cuando no fueron acusados de rendirse a la seduccción
del trivial objeto de consumo y de la cultura de masas (THOMAS, 1978:162-165). En el mejor de los
casos, el pop art “permitió al artista abandonar pasadas restricciones sintácticas y forjar un nuevo
tipo de expresión a partir de los remanentes de la cultura moderna” (CAMERON, 1992:293). El problema era que el pop art no encajaba en el proyecto modernista entonces vigente, basado en la distinción entre arte de élite y el arte de masas: para los críticos educados en esta distinción, “el pop no
se podía distinguir de la publicidad”. En primer lugar, suponía una vuelta a lo figurativo en una era en
la que el expresionismo abstracto había vuelto obsoletos los modos de representación convencional. En segundo lugar estaba el problema de la interpretación de estas obras, dada su ambigüedad
o su neutralidad: no parecía claro que sus autores tuvieran una postura antagonista respecto a la
cultura de masas y sus declaraciones públicas no solían ser de carácter oposicional (baste evocar las
célebres boutades de Andy Warhol).
El interés del pop art para la poética del found footage reside no sólo en su cercanía cronológica y
estética (el propio Bruce Conner surge de una corriente subsidiaria del pop, el assemblage art), sino
en esos dos elementos que problematizaron su recepción crítica y su encaje en el proyecto modernista de las artes plásticas: el retorno de lo figurativo y su afición a trabajar con artefactos apropiados extraídos de la cultura popular. En el caso del found footage, la corriente modernista equivalente
a la que se enfrentó, o que retardó su reconocimiento, fue el llamado cine estructural5, que negaba
radicalmente las representaciones del cine popular. La relación de la vanguardia con la cultura de
masas (o la existencia misma de aquélla dentro de ésta) iba a conocer un cambio considerable con la
llegada del posmodernismo; y el pop art y el found footage ocupan un mismo lugar de adelantados
en esa nueva relación en el desarrollo de la plástica y del cine experimental, respectivamente. Para
ambos es válido este diagnóstico de James Peterson: “Si el pop era una celebración de la cultura de
masas, eso suponía una ofensa para una de las convicciones más profundas de los defensores del
modernismo, la distinción entre el high art y la cultura popular” (PETERSON, 1994:129).
No hace falta subrayar que esta convicción, que recorre el paradigma modernista desde Adorno
hasta el influyente crítico de pintura Clement Greenberg, se ve exacerbada por la abismal separación que existe entre la práctica underground y el cine comercial. Piénsese en el film fundacional del
underground norteamericano, la opera prima de Maya Deren Meshes of the Afternoon: el rótulo
4. Movimiento reconocido institucionalmente en las exposiciones neoyorquinas “New Forms –New Media” (1960) y sobre todo “The
Art of Assemblage” (MoMA, 1961) (GUASCH, 1997).
5. Irónicamente, éste surge unos años después que el cine de apropiación, pero es bautizado y reconocido enseguida (desde 1969) y
pasa a convertirse en el modo dominante del cine experimental, lo que retarda y complica el establecimiento institucional del found
footage.
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con el que se abre proclama “Hollywood, 1943”, lo que adquiere un sentido tan desafiante (“aquí
en Hollywood también se hacen películas como ésta”) que casi cancela una posible lectura irónica
del mismo. De igual modo, Tim Burton abre Ed Wood con un movimiento de retroceso desde la
famosa colina en donde se asienta el rótulo de Hollywood hasta el teatro angelino en el que estrena
una función su protagonista, habitante como los cineastas experimentales de los bajos fondos de
la industria (sólo que, a diferencia de ellos, él sí quiere entrar en ella), estableciendo así la infinita
distancia que hay entre dos dimensiones separadas, dos mundos aparte.
Y sin embargo la relación de fascinación es innegable: en muchas películas “hechas con imágenes
recicladas de estrellas de Hollywood, la crítica se mezcla con la admiración, el análisis con la apreciación, la deconstrucción con la reconstrucción”, como escribe William C. Wees en “El aura ambigua
de las estrellas de Hollywood en las películas de found footage” (WEES, 1998). En este artículo,
que el lector quizá conocerá por haber aparecido publicado en castellano, la ambigüedad surge
de la “relación de ambivalencia y desigualdad entre Hollywood y el cine de vanguardia” (WEES,
1998:139), mientras que la -más problemática, tal como la emplea Wees- noción de aura no atañe
ya al carácter único de la obra de arte en su emplazamiento “museístico” original, tal como la definió
Benjamin. Para Wees, las imágenes producidas por medios mecánicos pueden “llegar a adquirir una
clase especial de aura propia” (WEES, 1998:141), que ya no depende de su unicidad sino que es una
cuestión de recepción: una recepción activa por parte del artista, que juega con las representaciones
hollywoodenses a las que el tiempo ha dotado de una carga nostálgica (que a la vez se celebra y se
critica, desde la distancia y la desigualdad del ámbito de la vanguardia), y por parte del espectador,
al percibir en un nuevo contexto imágenes que han pasado a formar parte de nuestra memoria sentimental.
La utilización directa de las imágenes no es la única vía que utiliza el cineasta experimental para
marcar y/o acortar distancias respecto a Hollywood. Podemos distinguir, de hecho, dos grandes
tradiciones que escenifican esta relación de la vanguardia con Hollywood. Vienen definidas por dos
conceptos distintos de citación: la apropiación literal de las representaciones y la vía alusiva. Así lo
distinguía David James en un texto anterior al citado de Wees (quien sólo consideraba la primera de
las dos instancias): se trata de Allegories of Cinema. American Film in the Sixties (JAMES, 1998), que
sigue siendo uno de los mejores estudios del cine alternativo (tal es el término que utiliza) realizado
en Norteamérica en dicha década. James dedica un capítulo a lo que llama “Underground Intertextuality”, con lo que se refiere específicamente a la relación intertextual, o al “diálogo”, entre el
cine de Hollywood y el cine experimental, no a la teoría lingüística homónima. Utilizando términos
distintos a los que acabo de proponer (alusión y apropiación), coincide en distinguir dos formatos
citacionales diversos, de los que dice que se han desarrollado por separado:
-la reescenificación (reenactment) intradiegética de las estructuras narrativas caracteristícas, modos histriónicos, y otros vocabularios del largometraje comercial; y
-la modificación collagística de fragmentos de films industriales. (JAMES, 1989:143)
La tradición experimental de cine alusivo no es la que nos ocupa aquí pero conviene detenernos en
ella para ver que representa otra vía, quizá ligeramente menos crítica, de ese diálogo intertextual
con Hollywood. Habría que citar el nombre de Andy Warhol: recordemos aquí el star-system de la
Factory warholiana, creado a imitación de la factoría de los sueños hollywoodense, o su serie de
screen tests (idea, y nombre, tomados de una práctica habitual en la industria) de personajes famosos, muchos de ellos actores del cine de masas. Y, de forma más explícita, su decisión de rodar – he
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aquí una proposición chocante – un western warholiano llamado Lonesome Cowboys (1968), que
incluye una violación colectiva de la estrella Viva a cargo de un grupo de poco viriles vaqueros (ella le
echa más entusiasmo que ellos); y de rehacer Sunset Boulevard (El crepúsculo de los dioses), casposo
remake que acometió en Heat, dirigida por Paul Morrisey en 1972.
Menos conocido es Jack Smith: fue él quien acuñó el término superstar y quien tuvo en Mario Montez a la mayor de sus superestrellas, cosas ambas de las que luego se apropió Warhol. Fue menos
vergonzante en su cinefilia que la mayoría de sus colegas; escribió un percceptivo artículo sobre Von
Sternberg6, en donde explicaba que la clave de su cine era visual y es fácil ver la continuidad entre su
cine y el del creador de Marlene: Smith se limitó a hacer explícito su sentido del exceso y la perversión, y a eliminar la narración para no distraer del aspecto visual. Pero su gran referente fue María
Montez, pésima actriz por la que sentía una pasión similar a la de un Terenci Moix: la alabó por no
incurrir en la “hipocresía de actuar bien” y tuvo la intuición de adivinar que no es el actor el que da
vida al disfraz sino el disfraz el que da vida al actor (NICKAS, 2008:10). Esto encierra el germen de
toda una estética camp, que no es sino una forma de adaptar los elementos de la cultura dominante a los usos e intereses propios: es lo que hoy, siguiendo a un Dick Hebdige, consideraríamos un
ejemplo de ese fenómeno típico de las subculturas que es la apropiación, es decir, un ejemplo de
reescritura en sentido fuerte. Smith plasmó esa estética en su célebre, por escandalosa y prohibida,
Flaming Creatures (1963), en donde emula el decadentismo de Montez o von Sternberg,y que es
el mejor ejemplo, dentro de esta línea alusiva, de la relación “dialéctica” de la vanguardia con la
gran industria: una reescritura travestida del exotismo de Hollywood que es al mismo tiempo un
acto de amor y una abierta de(con)strucción de sus convenciones narrativas y del consenso sobre
el buen gusto que rige en sus productos: a los sones camp de temas como “Amapola” y “Siboney”,
Smith, Montez (Mario) y otros sospechosos habituales se entregan a una ceremonia congelada de
desorden amoroso: una violación colectiva deviene en orgía, una vampira muy parecida a la Monroe
se excita al chupar a su víctima, se sube la falda y empieza a acariciarse el pene… Habría que citar
también los melodramas caseros de los hermanos Kuchar, que se adelantaron a Fassbinder (y a Todd
Haynes) con sus hilarantes variaciones “sirkianas” sobre deseos insatisfechos, y así hasta llegar a
John Waters, que en Desperate Living (1977) hizo protagonizar a su musa Divine un folletón digno
de los women’s pictures de Bette Davis o Joan Crawford.
Sobre la segunda vía, la “clásicamente modernista” tradición de la apropiación y el collage, se
recordará que James habla de la modificación de fragmentos de films industriales. No se refiere a
films salidos de la industria hollywoodense, sino a oscuras piezas de cine didáctico, institucional,
documental, promocional, etc. que fue la veta – una verdadera mina – que primero descubrieron
y explotaron pioneros del reciclaje como Bruce Conner, que favorecía una estética del desecho en
su sentido literal (como es evidente, en este caso no entraba en juego el factor del reconocimiento
del material apropiado: no había estrellas a las que mirar). Pero la relación especular del cine de vanguardia con su contrario, Hollywood, tiene una larguísima historia, cuya génesis se remonta a Rose
Hobart (1939) e incluye luego piezas como Marilyn Times Five (1969-1973) o Tom, Tom, the Piper’s
Son (1969-1971), entre los cineastas pioneros del found footage; y después innumerables títulos de
cineastas españoles [Frank Stein (Iván Zulueta, 1972), Meeting Two Queens (Cecilia Barriga, 1988)],
alemanes [Home Stories (Matthias Müller, 1992)], austriacos [la llamada trilogía del Cinemascope
de Peter Tscherkassky, toda la obra de Martin Arnold], y por supuesto norteamericanos: The Politics
6 “Belated Appreciation of V.S.”, Film Culture, nº 31, 1963.
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of Perception (Kirk Tougas, 1973), Her Flagrant Emulsion (Lewis Klahr, 1987), Remembrance (Jerry
Tartaglia, 1990), o las “autobiografías” de Rock Hudson y Jean Seberg que ha ensamblado Mark
Rappaport [Rock Hudson’s Home Movies (1992) y From the Journals of Jean Seberg (1995)].
En el principio fue Cornell, surrealista norteamericano más conocido por su obra plástica (sus famosas “cajas”, mezcla de diorama y collage) que por su escueta obra fílmica. Admiraba a las actrices del
cine mudo y sobre una de ellas, Hedy Lamarr, escribió estas palabras:
Entre los desolados páramos del cine hablado surgen a veces pasajes que sirven para recordarnos la profunda y sugestiva capacidad del cine silente para evocar un mundo ideal de belleza, para liberar insospechados torrentes de música de la visión de un semblante o una expresión humana en su prisión de luz
plateada. (CORNELL, 1978:129).
Este texto adquiere todo un sentido programático a la vista de la operación que emprendió en su
película más famosa, Rose Hobart. Copió y remontó todas las imágenes de un film de aventuras en
las que salía la actriz homónima y, casi sin querer, pues era en parte un trabajo de fan, a work of love
(un homenaje particular a una actriz admirada por Cornell, y un homenaje general al misterio y la
belleza ideales del cine mudo), descubrió un principio básico del cine de remontaje. Con esta radical
reorganización, canceló el sentido que tenían las imágenes en su cadena sintagmática original y las
liberó en cuanto imágenes: film as film, la imagen como materia o como objeto autónomo, y no
subsidiaria de una causalidad narrativa, una temporalidad lineal, etc. Además de liberar, también,
la magia a la que aludía en el fragmento citado, escribió aquí uno de los primeros capítulos del diálogo entre la vanguardia y Hollywood, mucho menos sarcástico que The Life and Death of 9413, a
Hollywood Extra (1928), que habían filmado unos años antes dos infiltrados en la industria, Slavko
Vorkapich y Robert Florey.
Kenneth Anger practica la apropiación directa en Scorpio Rising (1963), insertando imágenes de
películas de Marlon Brando y Mickey Rooney y de un epic bíblico. Pero no es una pieza de found
footage propiamente dicha. La relación de Anger con Hollywod, partiendo del hecho de que había
sido actor infantil en una industria en cuyos márgenes -geográficos- realizó sus primeros films, hay
que buscarla mejor en su obra escrita: piénsese en su conocido libro-libelo sobre los escándalos
de las estrellas de la meca del cine, Hollywood Babylon, que conoció dos entregas. En 1969 Bruce
Conner comienza a ensamblar Marilyn Times Five, trabajando con imágenes “de” Marilyn Monroe
extraidas de un nudie en el que la actriz (presuntamente) mantiene diversos juegos con una botella
de cola (hace de todo menos beberla): pero no es uno de los éxitos de la Fox de la estrella real, sino
un oscuro film anónimo filmado seguramente con una joven sosias suya, con lo que la estética del
desecho a que aludimos antes respecto a Conner permanece vigente. Hay que esperar treinta años
desde Rose Hobart para asistir al siguiente capítulo relevante del diálogo de la vanguardia americana
con Hollywood: Tom, Tom, the Piper’s Son.
En esta obra canónica tanto del cine de found footage como del estructural, Ken Jacobs toma un
viejo film de diez minutos de 1905 de G. W. “Billy” Bitzer (llamado también Tom, Tom, the Piper’s
Son) y lo “expande” hasta una duración de noventa minutos (versión de 1969), que en una segunda
y definitiva versión (1971) se queda en ciento diez minutos. Muestra el original al principio de su
expansión y después vuelve a mostrarlo al final: la segunda vez lo vemos con nuevos ojos, después
del proceso de minucioso escudriñamiento de todos los rincones del plano, de los bucles repetidos
de cada segmento, del refotografiado obsesivo de una imagen figurativa que llega hasta el límite
mismo de la legibilidad visual (parece obvio comparar este trabajo con el que hacía cinco años antes
el fotógrafo David Hemmings en Blow Up). Tom Tom… es una obra llena de resonancias (ha generado
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incontable literatura) que instaura definitivamente uno de los conceptos básicos del cine de found
footage: la manipulación matérica de la imagen, a lo que habría que añadir su pionero trabajo sobre
las condiciones de la proyección cinematográfica, que anuncia preocupaciones posteriores del cine
de museo y el screen art. Con ella se inaugura también una fecunda vía de relación entre vanguardia
y cine primitivo por la que luego han transitado cineastas de found footage como Al Razutis, Chick
Strand, Gustav Deutsch, Bill Morrison, Peter Delpeut, y tantos otros.
Pese a que Jacobs comentó que su propósito era “sacar a la superficie” la multi-rítmica colisión o
competencia de áreas de fuerza bidimensionales de luz y de oscuridad, que luchan borde contra
borde por adquirir la identidad de una forma” (BORDWELL, 1997:103), también declaró que quería
evocar a las personas que habían hecho esta primitiva película -esos fantasmas cuyo recuerdo se
detiene en los límites del cuadro-, al igual que Cornell había acometido Rose Hobart movido por la
admiración que sentía por la actriz. Pero estos dos títulos canónicos inauguran un modelo de abstracción narrativa y visual que luego será continuado por otros cineastas del found footage, modelo
que se caracteriza por el uso estructural del material apropiado: “Se elabora un film partiendo, no
de una imagen o un tema visual, sino de una proposición, un protocolo, relacionado de forma reflexiva con el cine” (BRENEZ, 2002:98). No siempre se cumple, sin embargo, el principio que parece
desprenderse de esta definición y que sí se evidencia en cineastas como Cécile Fontaine o Jürgen
Reble: el de una relativa o completa indiferencia respecto al contenido de la película apropiada.
Piénsese en los cineastas de la “escuela austriaca”: pese al radical trabajo de deconstrucción a que
someten a los films apropiados, no pierden de vista su sentido original. En Outer Space (1999), por
ejemplo, Tscherkassky reescribe un horror film comercial americano volviéndolo literalmente del
derecho y del revés, pero el resultado sigue siendo, como dice el propio cineasta, esencialmente
una narración de terror; sólo que lo que ahora amenaza a la protagonista Barbara Hershey no es un
“ente” como en el film original, sino el “espacio exterior” al fotograma de celuloide, que vemos descomponerse y volverse a reconstruir siguiendo el esquema genérico de normalidad-amenaza-destrucción-restitución de la normalidad. Asimismo, Martin Arnold reproduce en Deanimated: The Invisible Ghost (2002) el esquema narrativo del viejo film de Bela Lugosi sobre el que construye el suyo:7
va borrando digitalmente todos los personajes de la película, hasta que sólo vemos una inquietante
sucesión de planos de escenarios vacíos. Por poner un ejemplo similar de deconstrucción orgánica
(referida al funcionamiento del original) en otro género: en Removed (2000) Naomi Uman remonta
un film porno borrando (tachando, más bien, pues esta vez lo hace por medio de un “rascado” que
deja una llamativa silueta blanca de bordes irregulares) el objeto del voyeurismo: el cuerpo de las
actrices que aparecen. Y un último ejemplo, de nuevo saltando de género: Cowboy and “Indian” Film
(1958), del cineasta de raíces indígenas Raphael Montáñez Ortiz, es el resultado de un laborioso proceso: se toma un western de Anthony Mann, se trocea con un tomahawk, se guardan los pedazos en
una medicine bag que luego se sacude mientras se entonan cánticos rituales, y después se extraen
los fragmentos de la película troceada y se montan al azar (MacDONALD, 1998:331). Todo un ajuste
de cuentas -casi un exorcismo- con la representación de la comunidad india en el cine de Hollywood:
el sentido original del material sí cuenta… aunque luego sea apenas reconocible.
Como sugieren estos ejemplos, el cine de found footage de material de Hollywood se ha preocupado de forma explícita por las representaciones que éste vehicula. El propio Arnold quien, a partir
7. En The Invisible Ghost (1941), Lugosi no se resigna a la muerte de su esposa y sigue actuando como si la tuviera delante en todo
momento.
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de Pièce Touchée (1989), se hace famoso por los procesamientos sincopados de breves fragmentos
de cine comercial hollywoodense que consigue gracias a la reimpresión fotograma a fotograma que
le permite la copiadora óptica, alude a que trabaja con las improntas (“de las técnicas de representación y de muchos códigos sociales”) que la ideología deja en las películas: “Puedes apreciar todo
eso en apenas unos pocos fotogramas. Y por medio de una positivadora óptica puedes redefinir o
incluso reescribir todo esto también con unos pocos fotogramas” (HAUSHEER; SATTLE, 1992:91).
Otros cineastas son de la misma opinión: frenar el movimiento habitual de una película y tratar sus
componentes básicos por separado, como un objeto concreto aislado del flujo cinético y narrativo
habitual, permite establecer una forma de estudio visual que equivale a una forma de crítica de cine
con los medios del cine.
Los dos títulos que inauguran esta vertiente ensayística se suceden a comienzos de la década de los
90. Home Stories (1990), del alemán Matthias Müller, es una pieza maestra de apenas seis minutos
de duración que aúna emoción formal y un atinado análisis semiológico del melodrama o women’s
picture americano de los años 50 y 60, además de constituirse en una narración que sigue orgánicamente el esquema narrativo del género al mismo tiempo que procede a una crítica feminista de
sus presupuestos. Una sucesión de planos robados de actrices (Tippi Hedren, Doris Day, Lana Turner,
Susan Kohner, Dorothy Malone) configuran un personaje-tipo, la Mujer genérica del melodrama,
que vive encerrada en su casa, sola (el varón es, como se dice, conspicuo en su ausencia), determinada por su entorno doméstico, eternamente asomada a una ventana, abriendo temerosamente una
puerta, bajando y subiendo escaleras, sin atreverse a salir de su jaula dorada. Sin una sola palabra
de texto, la alegoría (según Arcimboldo pero también según Benjamin) que es la pelicula ofrece un
estudio -virtualmente estructuralista- de una representación genérica. Posteriormente Müller ha
ensamblado, a solas o con el videoartista Christoph Girardet, otros estudios visuales de gestos, situaciones o del imaginario visual de un Alfred Hitchcock (The Phoenix Tapes (2000).
En 1992 Mark Rappaport estrena Rock Hudson’s Home Movies, perfil “autobiográfico” (el actor Eric
Farr encarna el papel de Hudson, hablando en pasado pues éste ya había muerto) del célebre astro.
A diferencia de Home Stories, aquí sí hay texto en off y mucho: la voz en primera persona de “Hudson” desgrana confesiones de carácter personal, pero también se libra a todo tipo de soliloquios y
reflexiones sobre la masculinidad, las exigencias del star system, sus compañeras de reparto y cómo
se las arreglaba para no besarlas para lanzar así un guiño a los enterados de su tendencia homosexual, etc. En realidad es Rappaport quien habla: el tono irónico, ingenioso y a la vez analítico de su
“voz” es claramente reconocible para quienes hayan leído los numerosos artículos que ha venido
publicando en revistas como Trafic, Film Quarterly o Rouge. El cineasta neoyorquino encontró aquí
(luego repetiría la experiencia en otro film magnífico, From the Journals of Jean Seberg) una forma
de vehicular sus reflexiones solapándolas con la primera persona de las estrellas objeto de su estudio para constituirse en un atinado estudio sobre los avatares de las divinidades de Hollywood, realizado por un agudo observador a distancia: la que separa a Hollywood de la vanguardia.
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STARGAZING: Reescrituras de Hollywood no âmbito experimental
O conceito de escritura só pode ser utilizado no contexto das relações entre o cinema e outros meios
de expressão, isto é, da adaptação de um meio a outro. Argumenta-se sobre noções de fidelidade,
avaliam-se as porcentagens do conteúdo narrativo ou de qualquer outro tipo que sobrevivem à tradução, discutem-se – impossível não fazê-lo – ou ressuscitam-se – ainda que seja preferível não fazêlo – questões sobre a especificidade do cinema, e conclui-se, com paradoxal1 desolação, que há algo
de essencialmente intransitivo em todo texto, que depende do meio original, no qual sempre será
preferível lê-lo, etc. (De fato, o que pode mudar de meio é precisamente aquilo que não é específico
do meio, assim como, em um filme, tudo que seja redutível a um roteiro – que é ao que somente
podem reduzir-se as adaptações: à anedota narrativa – é o que não é cinema, ou não é o lugar onde
reside – em todo caso, é o lugar onde começa o verdadeiro trabalho do cineasta).
Queremos trabalhar aqui com outro conceito de reescritura, este sim, realmente específico do meio
cinematográfico. Mover-nos-emos no âmbito dos filmes que reciclam imagens de filmes anteriores:
a prática que passou a denominar-se found footage ou cinema de fragmento-encontrado. Os parâmetros que entram em jogo não são a fidelidade nem a transmigração dos conteúdos de um meio a
outro (pois não saímos de um mesmo meio), e sim, mais simplesmente, o gesto da apropriação e da
montagem: mais concretamente a remontagem dos materiais apropriados.
Ambos têm uma série de consequências essenciais que, como vimos estudando em outro lugar
(WEINRICHTER, 2009, 2008), estenderam o reconhecimento histórico do found footage. Uma consequência ineludível é que se muda o sentido do material pelo único fato de alterar-se o contexto
em que se apresenta, após arrancá-lo de seu contexto original: a forma mais radical e produtiva de
reescritura é a citação, no sentido em que o disse Walter Benjamin. Também a mais simples: não faz
falta voltar a escrever, reelaborar, somente voltar a apresentar. A distância que se estabelece entre
o sentido original e o novo, que inevitavelmente adquire, produz uma leitura reflexiva do material:
equivale, portanto, a uma verdadeira reescritura do mesmo.
Dentro das muitas variedades de found footage, queremos deter-nos em uma em part2icular: as
apropriações do imaginário e das imagens do cinema popular (ou seja, de Hollywood), realizadas
por cineastas experimentais ou de vanguarda. Esta prática concreta aparece muito carregada tanto
estética como ideologicamente: vem marcada pela distância entre a cultura de massa e a vanguarda, entre o centro e a periferia. Não é exclusiva do cinema experimental norte-americano: Antoni
Padrós concluía sua Shirley Temple Story (1974) com a constatação de outro tipo de distância (“Isto
não é Hollywood”, vinha a reconhecer a protagonista Rosa Morata); na La verifica incerta (1964), filme que fez Umberto Eco exclamar, talvez com certa precipitação, que a vanguarda se havia tornado
popular, ou ao menos gratificante para o público – os neoduchampianos Baruchelly e Griffi atacavam as convenções dos gêneros produzidos em série nas mecas do cinema californiano e romano,
e cineastas austríacos como Martin Arnold ou Peter Tscherkassky desconstruíram filmes comerciais
norte-americanos. Mas a tensão entre centro e periferia se faz mais evidente quanto mais próximo
se está “do ventre da baleia”, e por isso são os cineastas americanos os que mais se destacaram neste terreno, além de terem sido os que primeiro desenvolveram uma tradição de found footage, de
1. No original, perogrullesca, designa verdades evidentes que devem ser, no entanto, enunciadas, referindo-se a um personagem
espanhol do século XV ou XVI (Pero Grullo). O termo em português foi debatido com o autor do artigo.(N.T.)
2. Termo escolhido, também em debate com o autor, por sua semelhança com o objet trouvé surrealista.(N.T.).
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Joseph Cornell (Rose Hobart, 1939) a Bruce Conner (A Movie, 1958).
Pode-se dizer que basta fazer cinema com um planejamento radicalmente distinto do vigente na corrente principal do cinema clássico, o que Noël Burch chama o Modo Institucional de Representação,
para denunciar através desse distanciamento a ideia interiorizada do cinema. É o que faz o historiador norte-americano Scott MacDonald, ao propor o termo cinema crítico para referir-se a todas as
formas de cinema que podem entender-se como uma crítica implícita e explícita do cinema convencional (MacDonald aplica este termo, embora siga sendo o único a utilizá-lo, preferencialmente ao
cinema experimental, ao longo de valiosa série de cinco livros de entrevistas com cineastas de dita
tradição, que publicou sob o título comum de A Critical Cinema, entre 1988 e 2006).
Mas, esta vocação de reescritura crítica seria consubstancial a todo tipo de prática fílmica radicalmente alternativa: como sugeria Renato Poggioli, há meio século, em sua teoria geral da vanguarda,
as vanguardas caracterizam-se por uma vontade de agitar-se contra algo ou contra alguém:
Esse algo pode ser a academia, a tradição; o alguém pode ser um mestre cujos ensinamentos e exemplo,
cujo prestígio e autoridade consideram-se errôneos ou prejudiciais. Com frequência, esse alguém é esse
indivíduo coletivo que chamamos público. (POGLIOLLI, 1968:26)
Esta é uma tendência permanente – antagonismo, a denomina Pogliolli – que pertenceria à lógica dos
ditos movimentos, quer dizer, à ideologia mesma da vanguarda. Sem abandonar esta atitude antagonista, presente de forma implícita nas estratégias formais que depreendem, os cineastas dos quais nos
ocupamos revelam de forma explícita sua posição crítica através dos materiais que expropriam.
Claro que o que enriquece e dota de uma tensão especial estas apropriações do cinema comercial
é que, quando um cineasta experimental se põe a “olhar as estrelas”, o antagonismo e a fascinação
caminham juntos. Na verdade, alguns dos primeiros praticantes do found footage foram acusados de
comprazerem-se com os materiais que remontavam: a simples remontagem não oferecia – dizia-se
– uma crítica da ideologia das formas dominantes, nem constituía em si mesmo um modo contrário
de representação; freqüentemente só servia para reduplicar as formas que se pretendiam criticar.
Este tipo de desqualificação evoca, por sua vez, as que se dirigiram à pop art, o movimento artístico que precedeu alguns poucos anos à found footage. Sem dúvida, uma visão retrospectiva como
a que ensaio em minha tese permite confirmar que a apropriação e a reciclagem foram princípios
operacionais (ainda que formando parte da tradição maior da montagem) em muitos movimentos
artísticos de vanguarda do século XX; mais precisamente, caberia dizer que foram a forma de intervenção preferida pela vanguarda diante do desenvolvimento da cultura de massa. Mais ainda: frente
às críticas que receberam a pop art e a found footage, a leitura usual destas estratégias de apropriação, a partir do momento em que os criadores das primeiras fotomontagens viram o potencial das
técnicas de recorte e colagem para desafiar a cultura popular com suas mesmas armas, tem sido
a de que tais armas contém um elemento implícito de crítica: não só se transformam os materiais,
como também se colocam em evidência, estabelecendo-se uma clara distância referente à sua original intenção consumista. A idéia, herdada da época de Dadá, é que este trabalho de assemblagem
e o gesto de apropriação que a precede servem para transformar e cancelar a intenção do material
original, instalando a collage num âmbito oposicional. Além disso, esta técnica seria em si mesma
garantia de uma posição crítica, e nisto concorda com a visão de Poggioli da vanguarda como um
movimento de antagonismo contra a sociedade convencional num sentido amplo, e contra a cultura
de massa em particular.
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Mas, talvez a relação entre a arte modernista e a emergência dos mass media seja mais complexa
do que nos tem feito crer hábitos de pensamento como os herdados da Escola de Frankfurt, com
sua eterna rejeição da cultura popular. Tal relação se fez evidente com a aparição da pop art (termo
que cunhou Laurence Alloway em 1955) e da tendência ‘escultora’ da assemblage – movimento
reconhecido institucionalmente nas exposições novaiorquinas “New Forms - New Media” (1960)
e sobretudo “The Art of Assemblage” (MoMA, 1961), (GUASCH, 1997:55-61) – que retomaram a
técnica da collage e, em geral, as estratégias de apropriação, sem exibir uma atitude antagonista,
exceto, talvez implicitamente, contra a academia que havia institucionalizado naquele momento
o expressionismo abstrato. Atingiu em cheio o alvo, e a academia pôs-se a responder o desafio.
Frente à radicalidade do gesto subjacente nas collages ou nas fotomontagens das primeiras décadas
do século, esta nova onda de apropriacionismo foi pior recebida: acusada de transformar o gesto
antiartístico dadá em um gesto afirmativo. Se bem desafiavam o conceito tradicional de criatividade
ou de invenção (a arte como uma intervenção subjetiva e pessoal no mundo) do mesmo modo que
haviam feito anteriormente os ready-mades de Marcel Duchamp, foi Duchamp mesmo quem os
criticou agora por tomar sua noção de artefato encontrado e outorgar-lhe “beleza estética” (ARACIL;
RODRÍGUEZ, 1982: 388), além de serem acusados de renderem-se à sedução do objeto de consumo
trivial e da cultura de massa (THOMAS, 1978:162-165). No melhor dos casos, a pop art “permitiu
ao artista abandonar restrições sintáticas passadas e forjar um novo tipo de expressão a partir dos
resíduos da cultura moderna” (CAMERON, 1992:293).
O problema era que a pop art não se encaixava no projeto modernista vigente, baseado na distinção
entre arte de elite e arte de massa: para os críticos educados nesta distinção “a pop art não podia
distinguir-se da publicidade”. Em primeiro lugar, supunha uma volta ao figurativo numa era em que
o expressionismo abstrato havia tornado obsoletos os modos de representação convencionais. Em
segundo lugar, estava o problema da interpretação destas obras, dada sua ambiguidade ou sua neutralidade: não parecia claro que seus autores tinham uma postura antagonista referente à cultura
de massa, e suas declarações públicas não costumavam ser de caráter contrário (basta evocar as
célebres boutades de Andy Warhol).
O interesse da pop art para a poética do found footage reside não só em sua proximidade cronológica
e estética (o próprio Bruce Conner surge de uma corrente subsidiária do pop, a assemblage art), como
também nesses dois elementos que problematizaram sua recepção crítica e seu encaixe no projeto
modernista das artes plásticas: o retorno do figurativo e sua afeição em trabalhar com artefatos apropriados extraídos da cultura popular. No caso do found footage, a corrente modernista equivalente a
que se enfrentou, ou que retardou seu reconhecimento, foi o chamado cinema estrutural3, que negava
radicalmente as representações do cinema popular. A relação da vanguarda com a cultura de massa
(ou a existência mesma daquela dentro desta) veio a conhecer uma mudança considerável com a chegada do pós-modernismo; e a pop art e o found footage ocuparam um mesmo lugar de adiantados
nessa nova relação no desenvolvimento das artes plásticas e do cinema experimental, respectivamente. Para ambos é válido este diagnóstico de James Peterson: “Se a pop art era uma celebração da cultura de massa, isso supunha uma ofensa para uma das convicções mais profundas dos defensores do
modernismo, a distinção entre high art e a cultura popular” (PETERSON, 1994:129).
Não custa sublinhar que esta convicção, que recorre ao paradigma modernista desde Adorno até o
3. Ironicamente, este surge uns anos após o cine de apropriação, mas é batizado e reconhecido em seguida (desde 1969), e convertese no modo dominante do cinema experimental, o que retarda e complica o estabelecimento institucional do found footage.
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influente crítico de pintura Clement Greenberg, se vê exacerbada pela abismal separação existente
entre a prática underground e o cinema comercial. Pensemos no filme fundador do underground
norte-americano, a obra-prima de Maya Deren Meshes of the Afternoon: o rótulo com o que se abre,
proclama “Hollywood, 1943”, o que adquire um sentido tão desafiante (“aqui em Hollywood também se fazem filmes como esse”) que quase cancela uma possível leitura irônica do mesmo. Do mesmo modo, Tim Burton abre Ed Wood com um movimento de retrocesso desde a famosa colina onde
se assenta o rótulo de Hollywood até o teatro angelino no qual estréia um papel seu protagonista,
habitante, como os cineastas experimentais, do underground da indústria (só que, diferentemente
deles, ele quer sim entrar nela) estabelecendo, assim, a infinita distância entre duas dimensões
separadas, dois mundos à parte.
E, sem dúvida, a relação de fascinação é inegável: em muitos filmes “feitos com imagens recicladas
de estrelas de Hollywood, a crítica se mescla com a admiração, a análise com a apreciação, a desconstrução com a reconstrução”, como escreve William C. Wees em “El aura ambigua de las estrellas
de Hollywood em las películas de found footage” (WEES, 1998). Neste artigo, que o leitor talvez
conhecerá por ter sido publicado em castelhano, a ambiguidade surge da “relação de ambivalência e desigualdade entre Hollywood e o cinema de vanguarda” (WEES, 1998:139), enquanto que a
mais problemática – tal como a utiliza Wees – noção de aura não se refere ao caráter único da obra
de arte em sua posição “museística” original, tal como definiu Benjamin. Para Wees, as imagens
produzidas por meios mecânicos podem “chegar a adquirir uma classe especial de aura própria”
(WEES, 1998:141), que já não depende de sua unicidade, mas sim de uma questão de recepção: uma
recepção ativa por parte do artista, que joga com as representações hollywoodianas, as que o tempo
dotou de uma carga nostálgica (que ao mesmo tempo se celebra e se critica, desde a distância e a
desigualdade do âmbito da vanguarda) e por parte do espectador, ao perceber em um novo contexto imagens que passaram a formar parte de nossa memória sentimental.
A utilização direta das imagens não é a única via que utiliza o cineasta experimental para marcar
e – ou encurtar distâncias referentes a Hollywood. Podemos distinguir, na verdade, duas grandes
tradições que encenam esta relação entre a vanguarda e Hollywood. Vêm definidas por dois conceitos distintos de citação: a apropriação literal das representações e a via alusiva. Assim o distinguia
David James, em um texto anterior ao já citado texto de Wees (que somente considerava a primeira
das duas instâncias): trata-se de Allegories of Cinema. American Film in the Sixties (JAMES, 1989),
que continua sendo um dos melhores estudos sobre cinema alternativo (tal é o termo que utiliza)
realizado na América do Norte na referida década. James dedica um capítulo ao que chama “Underground Intertextuality”, no qual refere-se especificamente à relação intertextual, ou ao “diálogo”
entre o cinema de Hollywood e o cinema experimental, e não à teoria linguística homônima. Utilizando termos distintos aos que acabo d e propor (alusão e apropriação), concorda comigo ao em distinguir dois formatos de citação diversos, dos quais afirma que desenvolveram-se separadamente:
– a reencenação (reenactment) intradiegética das estruturas narrativas características,
modos histriônicos e outros vocabulários do longametragem comercial; e
– a modificação collagística de fragmentos de filmes industriais (JAMES, 1989:143).
A tradição experimental de cinema alusivo não é a que nos ocupa aqui, mas convém determo-nos
sobre ela para ver que representa outra via, talvez ligeiramente menos crítica, deste diálogo intertextual com Hollywood. Deveria citar-se o nome de Andy Warhol: recordemos aqui o star-system da
Factory warholiana, criado à imagem da fábrica de sonhos hollywoodiana, ou sua série de screen
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tests (idéia e nome, tomados de uma prática habitual na indústria) de personagens famosos, muitos
deles atores do cinema de massa. E, de forma mais explícita, sua decisão de rodar – eis aqui uma
proposição chocante – um western warholiano chamado Lonesome Cowboys (1968), que inclui uma
violação coletiva da estrela Viva a cargo de um grupo de vaqueiros pouco viris (ela se entusiasma
mais do que eles); e de refazer Sunset Boulevard (O Crepúsculo dos Deuses), remake kitsch que
empreendeu em Heat, dirigido por Paul Morrisey em 1972.
Menos conhecido é Jack Smith: foi ele quem cunhou o termo superstar e quem teve em Mario
Montez a maior de suas superestrelas, ambas coisas de que logo se apropriou Warhol. Foi menos
vergonhoso em sua cinefilia que a maioria de seus colegas; escreveu um sensível artigo sobre Von
Sternberg (SMITH, 1963), onde explicava que a chave de seu cinema é visual e que é fácil ver a
continuidade entre seu cinema e o do criador de Marlene: Smith limitou-se a tornar explícito seu
sentido de excesso e a perversão, e a eliminar a narração para não ofuscar o aspecto visual. Mas
sua grande referência foi María Montez, péssima atriz por quem nutria uma paixão similar a de um
Terenci Moix: a elogiou por não incorrer na “hipocrisia de atuar bem” e teve a intuição de adivinhar
que não é o ator que dá vida ao personagem, mas sim o personagem que dá vida ao ator (NICKAS,
2008:10)4. Este encerra o germe de toda uma estética camp, que não é senão uma forma de adaptar os elementos da cultura dominante aos usos e interesses próprios: é o que hoje, seguindo a um
Dick Hebdige, consideraríamos um exemplo desse fenômeno típico das subculturas de apropriação,
quer dizer, um exemplo de reescritura no sentido forte do termo. Smith plasmou essa estética em
seu célebre, por escandaloso e proibido, Flaming Creatures (1963), onde emula o decadentismo de
Montez ou Von Sternberg, e que é o melhor exemplo, dentro desta linha alusiva, da relação “dialética” da vanguarda com a grande indústria: uma reescritura travestida do exotismo de Hollywood que
é, ao mesmo tempo, um ato de amor e uma aberta des(cons)trução de suas convenções narrativas
e do consenso sobre o bom gosto que rege em seus produtos: aos sons camp de temas com “Amapola” e “Siboney”, Smith, Montez (Mario) e outros suspeitos habituais se entregam a uma cerimônia
carregada de desordem amorosa: uma violação coletiva transforma-se em orgia, uma vampira muito
parecida com La Monroe se excita ao chupar sua vítima, sobe a saia e começa a acariciar o pênis...
Haveria que citar também os melodramas caseiros dos irmãos Kuchar, que se adiantaram a Fassbinder (e a Todd Haynes) com suas hilariantes variações “sirkianas” sobre desejos insatisfeitos, e assim
até chegar a John Waters, que em Desesperate Living (1977) fez protagonizar sua musa Divine um
folhetim digno dos women’s pictures de Bette Davis ou Joan Crawford.
Sobre a segunda via, a “classicamente modernista” tradição da apropriação e collage, deve-se recordar que James fala da modificação de fragmentos de filmes industriais. Não se refere a filmes saídos
da indústria hollywoodiana, mas sim a obscuras peças de cinema didático, institucional, documental, promocional, etc. que foi a veia – uma verdadeira mina – que primeiro descobriram e exploraram pioneiros da reciclagem como Bruce Conner, que favorecia uma estética do lixo em seu sentido
literal (como é evidente, neste caso não entrava em jogo o fator de reconhecimento do material
apropriado: não havia estrelas a quem mirar). Mas, a relação especular do cine de vanguarda com
seu oposto, Hollywood, tem uma longuíssima história, cuja gênese remonta a Rose Hobart (1939)
e inclui de início peças como Marilyn Times Five (1969-1973) ou Tom, Tom, the Piper’s Son (19691971), entre os cineastas pioneiros do found footage; e depois inumeráveis títulos de cineastas
4. O célebre artigo de Smith sober La Montez apareceu em Film Culture n.27, 1962, abaixo do título de “Perfect Filmic Appositeness
of María Montez”.
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espanhóis [Frank Stein (Iván Zulueta, 1972), Meeting Two Queens (Cecilia Barriga, 1988)], alemães
[Home Stories (Matthias Müller, 1992)], austríacos [a chamada trilogia do Cinemascope de Peter
Tscherkassky, toda a obra de Martin Arnold], e claro, norte-americanos: The Politics of Perception
(Kirk Tougas, 1973), Her Flagrant Emulsion (Lewis Klahr, 1987), Remembrance (JerryTartaglia, 1990),
ou as “autobiografias” de Rock Hudson e Jean Seberg que montou Mark Rappaport [Rock Hudson’s
Home Movies (1992) e From the Journals oj Jean Seberg (1995)].
No princípio foi Cornell, surrealista norte-americano mais conhecido por sua obra plástica (suas
famosas “caixas”, mesclas de diorama e collage) que por sua breve fílmica. Admirava as atrizes do
cinema mudo, sobre uma delas, Hedy Lamarr, escreveu estas palavras:
Entre os desolados páramos do cinema falado surgem, às vezes, paisagens que servem para recordarmos
a profunda e sugestiva capacidade do cinema silente para evocar um mundo ideal de beleza, para liberar
insuspeitas torrentes de música da visão de um semblante ou uma expressão humana em sua prisão de
luz prateada. (CORNELL, 1978:129).
Este texto adquire todo um sentido programático face à operação que empreendeu em seu filme
mais famoso, Rose Hobart. Cornell copiou e remontou todas as imagens de um filme de aventura nas
quais aparecia a atriz homônima e, quase sem querer, pois era em parte um trabalho de fã, a work
of a Love (uma homenagem particular a uma atriz admirada por Cornell, e uma homenagem geral
ao mistério e beleza ideais do cinema mudo), descobriu um princípio básico do cinema de remontagem. Com esta radical reorganização, o cineasta cancelou o sentido que tinham as imagens em sua
cadeia sintagmática original e as liberou enquanto imagens: film as film, a imagem como matéria ou
como objeto autônomo, e não subsidiária de uma causalidade narrativa, uma temporalidade linear,
etc. Além de liberar, também, a magia a que aludia no fragmento citado, Cornell escreveu aqui um
dos primeiros diálogos entre a vanguarda e Hollywood, muito menos sarcástico que The Life and
Death of 1943, a Hollywood Extra (1928), que haviam filmado uns anos antes dois infiltrados na
indústria, Slavko Vorkapich e Robert Florey.
Keneth Anger pratica a apropriação direta em Scorpio Rising (1963), introduzindo imagens de filmes
de Marlon Brando e Mickey Rooney e de um epic bíblico. Mas não é uma peça de found footage propriamente dita. A relação de Anger com Hollywood, partindo do fato de que havia sido ator infantil
em uma indústria em cujas margens – geográficas – realizou seus primeiros filmes, é preciso buscá-la
melhor em sua obra escrita: pensemos em seu conhecido contra-libelo sobre os escândalos das estrelas da meca do cinema, Hollywood Babylon, que conheceu duas publicações. Em 1969, Bruce Conner
começa a montar Marilyn Times Five, trabalhando com imagens “de” Marilyn Monroe extraídas de um
nudie no qual a atriz (supostamente) mantém diversos jogos com uma garrafa de cola (faz de tudo,
menos bebê-la): mas não é um dos êxitos da Fox da estrela real, e sim um obscuro filme anônimo
filmado certamente com uma jovem sósia, com o que a estética do lixo, a que aludimos antes com
respeito a Conner, permanece vigente. É preciso esperar trinta anos desde Rose Hobart para assistir ao
capítulo seguinte do diálogo da vanguarda americana com Hollywod: Tom, Tom, the Piper’s Son.
Nesta obra canônica tanto de cinema de found footage como de estrutural, Ken Jacobs toma um velho
filme de dez minutos de 1905 de G.W. “Billy” Bitzer (chamado também Tom, Tom, the Piper’s Son e o
“expande” até uma duração de noventa minutos (versão de 1969), que em uma segunda e definitiva
versão (1971) fica em cento e dez minutos. Mostra o original no princípio de sua expansão, e depois
volta a mostrá-lo ao final: na segunda vez, o vemos com novos olhos, depois do processo de minucioso
esquadrinhamento de todos os detalhes repetidos de cada segmento, do refotografado obsessivo de
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uma imagem figurativa que chega até o limite mesmo da legibilidade visual (parece óbvio comparar este
trabalho com o que fazia cinco anos antes o fotógrafo David Hemmings em Blow Up). Tom, Tom... é uma
obra cheia de ressonâncias (gerou uma incontável literatura) que instaura definitivamente um dos conceitos básicos do cinema de found footage: a manipulação material da imagem, ao que se deveria acrescentar seu pioneiro trabalho sobre as condições da projeção cinematográfica, que anuncia preocupações
posteriores do cinema de museu e o screen art. Com tal manipulação, se inaugura também uma fecunda
via de relação entre vanguarda e cinema primitivo pela qual logo transitaram cineastas de found footage,
como Al Razutis, Chick Strand, Gustav Deutsch, Bill Morrison, Peter Delpeut e tantos outros.
Em que pese que Jacob comentou que seu propósito era “trazer à superfície a multi-rítmica colisão
ou competência de áreas de força bidimensionais de luz e obscuridade que lutam face a face para
adquirir a identidade de uma forma” (BORDWELL,1997:103), também declarou que queria evocar
as pessoas que haviam feito este filme primitivo – esses fantasmas cuja lembrança se detém nos
limites do quadro – tal como Cornell havia feito em Rose Hobart, movido pela admiração que sentia
pela atriz. Mas, estes dois títulos canônicos inauguram um modelo de abstração narrativa e visual
que logo será continuado por outros cineastas de found footage, modelo que se caracteriza pelo uso
estrutural do material apropriado: “Elabora-se um filme partindo-se, não de uma imagem ou tema
visual, mas sim de uma proposição, um protocolo relacionado de forma reflexiva com o cinema”
(BRENEZ, 2002: 98). Nem sempre se cumpre, sem dúvida, o princípio que parece desprender-se
desta definição e que se evidencia em cineastas como Cécile Fontaine ou Jürgen Reble: o de uma
relativa ou completa indiferença com relação ao conteúdo do filme apropriado.
Pensemos nos cineastas da “escola austríaca”: em que pese o radical trabalho de desconstrução a que
submetem os filmes apropriados, não perdem de vista seu sentido original. Em Outer Space (1999),
por exemplo, Tscherkassky reescreve um horror film comercial americano voltando-o literalmente
do avesso, mas o resultado continua sendo, como disse o próprio cineasta, essencialmente uma narração de terror; apenas o que ameaça agora a protagonista Barbara Hershey não é um “ente” como
no filme original, mas sim o “espaço exterior” ao fotograma de celulóide, que vemos decompor-se
e reconstruir-se, seguindo o esquema genérico de normalidade-ameaça-destruição-restituição da
normalidade. Do mesmo modo, Martin Arnold reproduz em Deanimated: The Invisible Ghost (2002)
o esquema narrativo do velho filme de Bela Lugosi sobre o qual constrói o seu5: vai apagando digitalmente todos os personagens do filme, até que vemos somente uma inquietante sucessão de planos
de cenários vazios. Para dar um exemplo similar de desconstrução orgânica (referida ao funcionamento do original) em outro gênero: em Removed (2000) Naomi Uman remonta um filme pornô
apagando (rasurando bem, pois desta vez o faz por meio de um “rasgo” que deixa uma chamativa
silhueta branca, de bordas irregulares) o objeto do voyeurismo: o corpo das atrizes que aparecem.
E um último exemplo, de novo trocando de gênero: Cowboy and “Indian” Film (1958), do cineasta
de raízes indígenas Raphael Montánez Ortiz, e é o resultado de um laborioso processo: toma-se um
western de Anthony Mann, troca-se com um tomahawk, guardam-se os pedaços em uma medicine
bag que logo se sacode enquanto se entoam cânticos rituais, e depois se extraem os fragmentos do
filme recortado e se montam ao acaso (MACDONALD, 1998:331). Todo um ajuste de contas – quase
um exorcismo – com a representação da comunidade indígena no cinema de Hollywood: o sentido
original do material se conta... Ainda que logo seja apenas reconhecível.
5. Em The Invisible Ghost (1941), Lugosi não se conforma com a morte de sua esposa e continua atuando como se a tivesse diante
de si o tempo todo.
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Como sugerem estes exemplos, o cinema de found footage de material de Hollywood tem se preocupado de forma explícita com as representações que este veicula. É o próprio Arnold quem – a partir
de Pièce Touchée (1989), torna-se famoso pelos processamentos sincopados de breves fragmentos
de cinema comercial hollywoodiano, que consegue graças à reimpressão fotograma por fotograma, que lhe permite a copiadora ótica – alude à que trabalha com as impressões (“das técnicas de
representação e de muitos códigos sociais”) que a ideologia deixa nos filmes: “Pode-se apreciar
tudo isso em apenas uns poucos fotogramas. E, por meio de uma positivadora ótica, pode-se redefinir ou inclusive reescrever tudo isto também com uns poucos fotogramas” (HAUSHEER; SETTELE,
1992). Outros cineastas são da mesma opinião: frear o movimento habitual de um filme e tratar seus
componentes básicos separadamente, como um objeto concreto alheio ao fluxo cinético e narrativo
habitual, permite estabelecer uma forma de estudo visual que equivale a uma forma de crítica de
cinema com os meios do cinema.
Os dois títulos que inauguram esta vertente ensaística se sucedem em começos da década de 90.
Home Stories (1990), do alemão Matthias Müller, é uma peça mestra de apenas seis minutos de
duração, que reúne emoção formal e uma atinada análise semiológica do melodrama ou women’s
picture americano dos anos 50 a 60, além de constituir-se em uma narração que segue organicamente o esquema narrativo do gênero, ao mesmo tempo em que procede a uma crítica feminista
de seus pressupostos. Uma sucessão de planos roubados de atrizes (Tippi Hedren, Doris Day, Lana
Turner, Susan Kohner, Dorothy Malone) configuram um personagem-tipo, a Mulher genérica do
melodrama, que vive encerrada em sua casa, sozinha (o varão é, como se disse, conspícuo em sua
ausência) determinada por seu entorno doméstico, eternamente inclinada a uma janela, abrindo
temerosamente uma porta, descendo e subindo escadas, sem atrever-se a sair de sua jaula dourada.
Sem nenhuma palavra de texto, a alegoria (segundo Arcimboldo, mas também segundo Benjamin)
em que consiste o filme oferece um estudo – virtualmente estruturalista – de uma representação
genérica. Posteriormente, Müller montou, sozinho ou com o videoartista Christoph Girardet, outros
estudos visuais de gestos, situações ou do imaginário visual de um Alfred Hitchcock (The Phoenix
Tapes, 2000).
Em 1992, Mark Rappaport estréia Rock Hudson’s Home Movies, perfil “autobiográfico” (o ator Eric
Farr encarna o papel de Hudson, falando no passado, pois este já havia morrido) do célebre astro. A
diferença de Home Stories, aqui sim, há texto em off e muito: a voz em primeira pessoa de “Hudson”
descreve confissões de caráter pessoal, mas também se libera a todo tipo de solilóquios e reflexões
sobre a masculinidade, as exigências do star system, suas companheiras de elenco e como as arrumava para não beijá-las, para lançar assim uma piscada aos inteirados de sua tendência homossexual, etc. Na realidade, é Rappaport quem fala: o tom irônico, vivaz e ao mesmo tempo analítico de
sua “voz” é claramente reconhecível para aqueles que haviam lido os numerosos artigos que vinha
publicando em revistas como Trafic, Film Quaterly ou Rouge. O cineasta nova-iorquino encontrou
aqui (logo repetiria a experiência em outro filme magnífico, From the Journals of Jean Seberg) uma
forma de veicular suas reflexões, sobrepondo-as com a primeira pessoa das estrelas objeto de seu
estudo, para constituir-se em um atinado estudo sobre os avatares das divindades de Hollywood,
realizado por um agudo observador à distância: a que separa Hollywood da vanguarda.
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Referências bibliográficas
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Um olhar sobre os monólogos escritos e encenados por Lygia Bojunga:
cartas entre cenas
A glance at the monologues written and staged by Lygia Bojunga: letters
between scenes
Una mirada a los monólogos escritos y escenificados por Lygia Bojunga:
cartas entre escenas
Maria Dolores Coni Campos1
Resumo
Este texto é composto de monólogos realizados com uma trilogia que envolve três obras de Lygia Bojunga, apresentadas
por narradores que, diante de uma platéia lêem cartas, em três cenas. Na Cena 1, a primeira carta é apresentada e faz
comentários da obra LIVRO – Um Encontro com Lygia Bojunga. Este texto enfoca as experiências leitoras da autora desde
a sua infância, quando descobre Monteiro Lobato, que a estimula a buscar outros escritores que irão impulsioná-la em
sua condição de escritora e idealizadora de projetos com o livro. Na Cena 2, uma outra carta é lida enfocando o livro
Fazendo Ana Paz. O conteúdo marca o encontro da autora com a escrita e revela a complexidade que se dá no ato de
escrever e criar. Na Cena 3, a última carta é revelada por uma atriz que realça a obra Retratos de Carolina. Com a publicação deste livro, a escritora inaugura seu projeto da Casa Editorial localizada no bairro de Santa Teresa, onde mora.
Nesta carta são registrados sentimentos como a traição, a cumplicidade, a amorosidade e valores como a liberdade e a
autonomia, entre outros também importantes na trajetória apresentada na trilogia em questão.
Palavras-chave: fazer literário; memória; liberdade.
Abstract
This tarticle consists of a trilogy of monologues involv three works by Lygia Bojunga. The monologues are presented
by narrators who read letters before an audience in three scenes. In Scene 1, the first letter is displayed and makes
comments on the work BOOK - A Meeting with Lygia Bojunga. This text focuses on the author´s reader childhood experiences, when she discovers Monteiro Lobato, who stimulates the search for other writers - wich will propel her into
the writing condition and creator of projects with the book. In Scene 2, another letter is read, with a focus on the book
Making Ana Paz. The content marks the meeting of the author with writing and reveals the complexity of the act of
writing and creating. In Scene 3, the last letter is revealed by an actress who highlights the work Retratos de Carolina.
With the publication of this book, the writer opens its Editorial House project located in Santa Teresa, a Rio de Janeiro
neighborhood where she lives. This letter registers feelings such as betrayal, complicity, loveliness and values such as
freedom and autonomy, among others also important in the trajectory presented in this trilogy.
Keywords: literary creation; memory; freedom.
Resumen
Este texto se compone de monólogos realizados con una trilogía que incluye tres obras de Lygia Bojunga, presentados
por narradores que, ante una audiencia, leen cartas en tres escenas. En la Escena 1, se muestra la primera carta y hace
1. Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É especialista em Leitura pela PUC-Rio. Vem realizando seu
trabalho em forma de Encontro de Conversas com diferentes públicos quando compartilha experiências entre Leituras e Educação.
Tem artigos publicados em livros, revistas, jornais. Publicou o livro Conversas com as Babás: Histórias de Lena, Elza e Zara. Arco Iris /
HP Comunicação Editora, 2007.
comentarios del trabajo LIVRO – Um Encontro com Lygia Bojunga. Este texto se centra en las experiecias como lector de
la infancia del autor, cuando él descubre Monteiro Lobato, que estimula su búsqueda por otros escritores que impulsen
en su condición de escritor y creador de proyectos con el libro. En Escena 2, otra carta és leída centrándose en el libro
Fazendo Ana Paz. El contenido marca el encuentro del autor con la escritura y revela la complejidad que se produce en el
acto de la escritura y de la creación. En la Escena 3, la última carta es revelada por una actriz que arroja luz sobre la obra
Retratos de Carolina. Con la publicación de este libro, el autor abre su proyecto de Casa Editorial ubicado en el barrio de
Santa Teresa, en Rio de Janeiro, donde vive. En esta carta son registrados sentimientos como traición, complicidad, belleza y valores como libertad y autonomía, entre otros también importantes en la trayectoria presentada en esta trilogía.
Palabras clave: hacer literario; memoria; libertad.
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
Ao receber o convite da Cátedra UNESCO de Leitura da PUC-RIO para escrever um texto sobre - Os
monólogos escritos e encenados por Lygia Bojunga como parte de um levantamento crítico sobre
a obra da autora, senti um reflorescimento dentro de mim, algo semeado que continuava a brotar
querendo crescer.
Lembrei-me de outro convite que recebera em 2010, feito por Ninfa Parreira, estudiosa da autora. A
Ninfa, gentilmente, me convidava a participar de um dos encontros literários coordenado por ela na
CASA LYGIA BOJUNGA, onde teríamos a oportunidade de conhecer e apreciar um conjunto de livros
dessa escritora.
O Grupo que escolhi para participar se encontrava à noitinha, uma vez por mês na casa ampla em
que Lygia reside e que aos poucos foi se desdobrando, fazendo dessa vivenda uma Casa Editorial em
que edita seus livros, uma forma que a autora encontrou de estreitar sua relação com o livro e com
sua escrita.
Na verdade, a Editora Casa Lygia Bojunga se alarga e se desdobra em outros compartimentos, novos
espaços e em um desses, acolhe os vários grupos dos Encontros Literários. Os participantes ali se
encontram e constroem a dinâmica de seus estudos literários e de suas trocas.
Essa ampla Casa é também um dos lugares no qual a escritora divide sua residência a cada temporada, entre Brasil e Londres. Foi nesses ares saudáveis de Santa Teresa que Lygia Bojunga escolheu
para viver quando está na cidade do Rio de Janeiro; é ai que elabora seu canto de sonhar, escrever
e editar seus livros num desafiador processo de criação, testemunhando suas ideias e fantasias, até
se transformarem no objeto livro.
Ainda nessa múltipla e criativa casa há uma sala com um terraço do qual se descortina um belo
panorama do bairro. Nesse espaço, a Lygia construiu um pequeno teatro, um palco com cortina
que se abre para aqueles leitores que compõem a plateia e que podem se acomodar em pequenas
mesas rodeadas de cadeiras, atentos e à espera do privilégio de assistir e escutar a escritora / atriz
encenar seus monólogos.
Nessa grávida Casa, a Ligia vem ornamentando as paredes com peças e obras de artistas, em especial, as daqueles que vivem em seu bairro. Tudo indica que a escritora vem construindo um Centro
Cultural, um Novo Nicho pra Santa, como vem se referindo a esse lugar de Viver, Trabalhar, Criar,
metendo a mão na massa.
Nesse novo Convite e Encontro Literário com a Lygia, agora promovido pela Cátedra UNESCO de
Leitura da PUC-Rio, tento tornar visível minha percepção sobre os Monólogos escritos e encenados
por Lygia Bojunga e recorro a três de sua obra que tratam desse tema:
1- Livro: um encontro com Lygia Bojunga Nunes;
2- Fazendo Ana Paz;
3 -Retratos de Carolina.
Inspirado pela própria Lygia apresento meu olhar através de Cenas como se estivesse em um pequeno teatro, compartilhando leituras por meio de cartas dirigidas aos Leitores presentes.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
Cena 1
Abre a cortina e surge o ator que se senta na única cadeira compondo o cenário. Do alto, um refletor projeta uma luz que o revela. O ator passeia os olhos pela plateia. Tem nas mãos um envelope.
Rasga-o e se dirige ao público lendo o texto:
Caros leitores
Sabedor do quanto apreciam a Literatura pensei em compartilhar com os presentes, a minha apreciação da leitura que faço dos livros da escritora Lygia Bojunga. Mas antes gostaria de trazer um
pouco do perfil dessa escritora.
A Lygia Bojunga é gaucha e tem mais de vinte livros publicados. Como escritora ela ocupa um lugar de
destaque, não somente no Brasil, mas também no cenário internacional da literatura infantil e juvenil. Ela vem recebendo pelo conjunto de sua obra, prêmios como o Hans Christian Andersen, (1982)
o mais importante dessa literatura considerado o Nobel nessa área. Em 2004, Lygia Bojunga recebeu
das mãos da Princesa Victoria, da Suécia, o prêmio ALMA (Astrid Lindgreen Memorial Award) premiação internacional importantíssima em prol da literatura infantil e juvenil. Com o ALMA a Lygia
impulsionou vários projetos sociais ligados à literatura e ao incentivo à leitura. No Brasil ela recebeu
o Jabuti e vários prêmios da FNLIJ, por livros indicados, como altamente recomendáveis às crianças
e aos jovens, entre outros não menos significativos. Sua obra é traduzida para várias línguas.
Nessa primeira carta tratarei da leitura do texto: LIVRO- Um Encontro com Lygia Bojunga Nunes
(1988). Esta publicação faz parte de uma trilogia envolvendo mais duas de suas obras: Fazendo Ana
Paz (1991) e Paisagem (1992). Com eles, a autora vem compartilhando com leitores, o seu fazer
literário, refletindo sua relação apaixonada com o livro.
Em seu livro -Um encontro com Lygia, a autora inicia apresentando um capítulo que se intitula - O que é
um livro- e nos fala de suas experiências leitoras desde sua vida de criança quando brincava com os livros:
Para mim, livro é vida; desde que eu era muito pequena
os livros me deram casa e comida.
Foi assim: eu brincava de construtora, livro era tijolo;
em pé, fazia parede; deitado, fazia degrau de escada;
inclinado, encostava num outro e fazia telhado.
E quando a casinha ficava pronta eu me espremia lá
dentro pra brincar de morar em livro.
De casa em casa eu fui descobrindo o mundo (de tanto
olhar pras paredes). Primeiro, olhando, olhando desenhando; depois,
decifrando palavras.
Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça... (NUNES, 1990:7)2
Logo, a Lygia recebe um convite da Editora Agir para acompanhar uma exposição, mostrando as
publicações brasileiras e europeias de seus livros e fazendo também companhia a seus personagens. Esse convite lhe criou um conflito. Como realizaria esse trabalho? Seria uma palestra? Ficou
confusa, insegura... Foi então que lhe veio a ideia de contar, ao vivo, a história da sua ligação com
o livro e começou a trabalhar esse pensamento, que passou a ser um projeto e veio a se chamar:
LIVRO. Ao iniciar sua contação e história, descobre algo que muito lhe diz respeito:
2. Parte do texto que Ligia apresentou em 1982 à IBBY (Organização Internacional para o Livro Infantil e Juvenil) como mensagem para o Dia
Internacional do Livro Infantil.
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... pedi um refletor pra fazer a minha apresentação de LIVRO: eu ainda não sabia que, na hora que o refletor se acendia, a minha imagem de Teatro aparecia outra vez... (NUNES, 1990:10)
A atriz e o teatro voltavam a povoá-la. Lygia escreveu e apresentou o monólogo Livro em palcos,
bibliotecas, universidades, espaços culturais pelo Brasil a fora e também no exterior. Com eles iniciou uma nova etapa de seu trabalho e uma maneira de aprofundar sua relação com o livro. Nascia,
então As mambembadas.
Caros amigos leitores, ao trabalhar seu projeto e escrever, Livro-eu te lendo, Lygia recorda sua história de leitora quando revela a seus leitores os seis casos de amor:
Eu tinha sete anos quando ganhei de presente um livro do Monteiro Lobato chamado Reinações de Narizinho. Um livro grosso... só de olhar pra ele eu me senti exausta... sumi com o livro num canto do armário,
e voltei pras minhas histórias em quadrinho... eu estava superfresquinha de recém ter aprendido a ler, e
andava às voltas com história de quadrinho.
Porem, as várias cobranças do tio que havia lhe ofertado Reinações de Narizinho levaram Lygia a tirar
a poeira do livro e enfrentar sua leitura. Leu, ávida e rapidamente. Quando terminou, voltou a ler
tudo de novo, encantada que estava especialmente com a boneca de pano Emília que a deslumbrava com sua espontaneidade, coragem e liberdade. Longe de imaginar que eu estava vivendo o meu
primeiro caso de amor (NUNES, 1990:13).
Lobato através de Emilia e outros personagens impulsionou a leitura da nossa escritora. Ela admirava a sua brasilidade. No cenário brasileiro, a Lygia tem sido reportada como a sucessora de Monteiro
Lobato, por estabelecer um espaço em que a criança tem através da liberdade da imaginação uma
chave para a resolução de conflitos. A narrativa de Lygia Bojunga lida com o problema da autoridade, deslocando-o para a perspectiva da própria criança. Ela assume como seus, de forma extremamente sensível, as angústias e os problemas existenciais da infância frente ao adulto que se crê dono
de todas as verdades (SANDRONI, 1987:108).
A autora nos segredou outros casos de amor como Dostoievski e Edgar Allan Poe. Recorda sentir-se
afetada com a leitura de Dostoievski: Irmãos Karamazov. Achava o Crime e Castigo super bem escrito. Apaixonou-se pelo personagem Raskolnikov, o seu desequilíbrio, seu desespero e suas necessidades. A imaginação de Lygia se transportava ao rememorar as passagens trazidas pelos diferentes
textos do Dostoievski para os quais sua criatividade não dava conta.
Só que eu saia dali e ia me encontrar com o Poe... Nesse caso, não era um romance, não era um personagem literário, era uma coletânea de contos de Poe (todos eles impregnados de uma atmosfera fantástica
que me amarrava... Eu respirava Poe me angustiando; me engasgando até. Mas pra mim, ele era um escritor tão altamente criativo que, apesar da angústia e do sufoco, a minha imaginação não parava de se
beneficiar no convívio com ele. (NUNES, 1990:15-17)
Não era à toa que Lygia afirmava: quanto mais ela buscava no livro mais o livro lhe dava.
Lygia nos conta que leu muitos outros autores cheia de admiração, encantamento, afinidades, mas
a química que se processava quando ela encontrava seus casos de amor, não se dava com outros.
Até que a autora se viu envolvida em sua vida de leitora com um caso meio vergonhoso, segundo ela
afirma. Sobre esse caso ainda guarda segredo, confessando o milagre do amor sem ter a coragem de
dizer o nome do santo. Ao falar dele, nos aponta algumas pistas aguçando nossa condição de leitor:
E lá um dia, anunciaram o último lançamento dele. Corri, comprei; e fui lendo com a mesma avidez, com a
mesma escondidez de sempre... Mas, à medida que eu ia lendo, eu ia ficando, primeiro, perplexa; depois,
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indignada. E quando eu cheguei no fim do livro eu estava me sentindo, positivamente, traída. Cadê a receita? Os ingrediendes todos? O gosto tão conhecido? Nada! Nada. O fulano tinha feito uma viagem à Índia, e
agora ele me tirava tudo a que ele tinha me habituado nos livros dele e me dava em troca descrição vezes
descrição: do rio Ganges, do pôr do sol no Tajmahal, das multidões de Calcutá, das ruas de Bombaim, e eu
com isso? (NUNES, 1990:19)
Rainer Maria Rilke veio a ser seu quinto caso de amor, influenciada que ficou com as Cartas a um Poeta.
Um livro fininho assim que, eu li pela primeira vez numa tradução da Fernanda de Castro, e que constava
de uma introdução e dez cartas que o Rilke escreveu a um jovem aspirante a poeta... Eu hoje me pergunto
se o meu grande envolvimento com as Cartas foi porque eu me identifiquei com a apologia da solidão que
o Rilke faz nesse livro, ou se foi por andar alimentando um desejo de ser poeta também. Não sei. O que sei
é que foi Cartas a um Poeta que me mostrou que o escritor é o livro que ele escreve... (NUNES, 1990:22)
O sexto caso de amor não foi fácil de chegar: Alberto Caeiro foi-lhe apresentado, por um certo namorado. Depois, o namoro foi indo, foi indo, foi dando umas cabeçadas de sono profundo e nunca mais
acordou. E Ligia foi esquecendo de ler os poemas do Pessoa.
Passaram-se dezessete anos: uma velha amiga marca um encontro num restaurante que ambas
curtem muito. Era fim de tarde e de repente caiu um toró, mas Lygia foi ao encontro. A amiga já a
aguardava e quando ela chegou foi logo explicando que precisava sair correndo. De sua bolsa tira um
livro e o coloca em cima da mesa. Saiu correndo, mas deixou com a Lygia a Obra Poética de Fernando
Pessoa que se tornou sua companhia, ali mesmo onde se encontrava, por horas a fio, folheando,
lendo preenchendo sua vida de poesia e levando-a consigo por toda sua vida, transbordando-a e
exalando-a em tudo que sonha e faz criando.
Mas queridos leitores, ao contar sua história com o livro, nossa escritora, incentivada pela interação
daquela mesma amiga que lhe oferecera Pessoa, foi instigada a idealizar um novo texto com foco no
seu processo de escrita. Nossa autora, começou a admitir que agregando sua história de escrita ao
projeto LIVRO, esse ficaria ‘mais redondo’ e Quem sabe eu não desdobro o projeto?” Logo foi denominando essa ideia de: LIVRO - eu te escrevendo. E assim relembrou o exercício escolar de caligrafia,
a caneta tinteiro, o vidro e o cheiro de tinta. Lembrou também do lápis que gostava porque ele vinha
acompanhado de borracha e apontador:
E ficar desenhando e apagando letra, escrevendo e reescrevendo palavra, era bom... Então foi assim, caligrafando, que recolhi o prazer da borracha esfregando o papel, do lápis roçando a mão, do olho seguindo
os sinais que eu imprimia no caderno... (NUNES, 1990:35-36)
Nossa autora, ao construir seu texto sobre seu processo da escrita, lembrou de seus vários cadernos,
acabava um e começava outro, aquele especial ficava para escrever seu diário que, segundo ela,
requeria uma cerimônia secreta. eu achava superdifícil escrever na sala, ou tendo alguém perto. A
impressão era que eu só escrevia mesmo se eu ia pro meu quarto e fechava a porta. Me habituei. E
até hoje, mesmo pra escrever uma carta, o meu primeiro movimento é me isolar e fechar a porta.
(NUNES, 1990:37) Lygia recordou também as redações da escola, a importância do dicionário e o
longo processo de aceitação a este que foi, aos pouco, lhe estimulando outras formas de escrever
e de ler: ...passei a curtir ver tanto vocábulo junto: sentia mais fundo a riqueza da minha língua e a
variedade de opções que eu tinha na hora da fazer a minha mexeção de palavras.
E assim os personagens e temas foram surgindo: apareceu Vitor, o menino que mais adiante virou
novo personagem: Vitor Tatu; conheceu mais sobre seu sótão o tal do sótão que a gente tem: nevoento, misterioso; onde mora o subconsciente, o sonho; a intuição; a fantasia; o fantasma, o medo...
Lembrei também da velha máquina de escrever que depois descobri que mais gostoso mesmo era
escrever com lápis e tendo como companheiros a borracha e o apontador (NUNES, 1990:46).
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Livro/ LIVRE, rumina Lygia diante da liberdade que sentia ao lê-lo. E assim que começou a pensar
na ideia de escrever livro, uma Artesã de novo surge retomando o fio da conversa: LIVRO/LIVRE... e
como é difícil encontrar o fio! E mais difícil ainda conquistar a liberdade!
Termino esta carta ressaltando uma frase da mensagem da Lygia que consta do seu Livro: Um Encontro: Fui
crescendo; e derrubei telhados com a cabeça e fui pegando intimidade com as palavras (NUNES, 1990:7).
Então reflito com vocês recorrendo a Coriolano:
Derrubar os telhados com a cabeça não significa apenas porque ficou grande demais para ‘morar’ dentro
do livro; é uma imagem simbolizando que a relação com a leitura ultrapassou os limites da brincadeira,
avançando para o estágio da leitura até culminar com a passagem para o outro lado: a fabricação dos livros
que serviriam de moradas para outras crianças. (COROLIANO, 2010)
Concluo essa primeira Cena em Carta deixando com vocês leitores, reflexões para que possam leválas consigo em ritmo de leitura. Pergunto-lhe: Será que a derrubada dos telhados não sugere uma
ruptura impulsionada pelo ato da Criação? Vocês reconhecem a Literatura como uma Arte?
Atenciosamente me despeço de vocês. Voltarei em outra oportunidade.
Fecha a Cortina
Cena 2
Carríssimos amigos leitores:
Nós estamos ficando cúmplices do gosto pela leitura e de saber da importância da literatura em
nossas vidas. Identifico-me com esta afirmação:
deveríamos trabalhar com vários tipos de textos: os informativos, como jornais e revistas; os formativos,
livros técnicos específicos de cada área de conhecimento. Porém, de modo especial, necessitamos voltar
para um tipo de texto que, por sua natureza criadora, estimula e desenvolve a compreensão do leitor
acerca da vida em seu sentido mais amplo e humano. Este é o texto literário, capaz de lançar luzes à compreensão da vida como nenhum outro o faz. (QUEVEDO, 2002:72-73)
Então amigos, a Lygia Bojunga bem sabe o que faz quando nos oferece sua literatura conhecida por seu
realismo mágico e contos fantásticos, pelo seu dinamismo e acentuada transgressão dos limites entre
fantasia e a realidade. Para ela o cotidiano está repleto de magias onde brotam os desejos tão pesados
que literalmente não é possível erguê-los, onde alfinetes e guarda-chuvas conversam tão obviamente
como peões e bolas, onde animais vivem vidas tão variadas e vulneráveis como as pessoas.
Mas vejamos um pouco do seu Fazendo Ana Paz. No capítulo que abre esse livro: Caminhos, Lygia volta
a insistir no seu projeto Livro e continua a nos contar o processo desenvolvido com essa proposta. Entremeou tal história com os encontros com a escrita quando revela sua inclinação para o ato de escrever.
É no Fazendo Ana Paz que identificamos seu percurso com a escrita quando a autora-narradora rompe seu processo natural e na tentativa de encontrar o fio da história se depara, subitamente, com
a entrada brusca de uma nova personagem: a Ana Paz que chega quebrando o processo natural
da narradora sem, ao menos, ter sido idealizada. Chega e se apresenta: Eu me chamo Ana Paz; eu
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tenho oito anos; eu acho meu nome bonito (BOJUNGA, 2007:16-17). E por aí, essa nova personagem
continua contando, de um só fôlego, sua vida e assustando até aquela que lhe dá forma: a autora,
que compartilha conosco um pouco desse percurso:
Parei. Eu tinha escrito a cena toda. A Ana Paz chegou tão forte que eu senti que ela não ia mais me largar
até eu fazer um destino pra ela, até escrever uma vida pra ela ir morar. Fiquei contente: eu ia começar a
fazer o que me deixa mais contente de fazer. E fiz mais espaço na minha mesa, e fiz ponta em tudo que é
lápis. Fiz café pra ir tomando. Fiz tudo isso só pensando no caminho que a gente ia fazer junto, eu e a Ana
Paz... Assim que me debrucei no caderno pra continuar escrevendo a Ana Paz, o meu lápis foi esbarrando
numa pergunta atrás da outra... uma interrogação ia puxando outra e, lá pelas tantas tchaaaaa: a Ana Paz
se afogou nesse mar de perguntas. (BOJUNGA, 2007:72-73)
Ana Paz não apareceu mais, a narradora empacou e com ela desapareceu aquela história que surgira tão fluente. Cansada de esperar a volta de Ana Paz, a autora resolve desenhar uma moça. E foi idealizando-a: essa moça teria uns dezoito anos e um certo jeito de ser e de falar. E foi só o lápis bater
no papel, que a moça começou a se revelar. Ela chegou contando suas aventuras e seu encontro
com um certo moço quando esse veio a se sentar, a seu lado, num banco da Praia de Copacabana. A
moça compartilha a paixão que se desenvolveu entre ela e esse moço Antônio. Logo após seu relato
ela se cala e, de repente, desaparece deixando a narradora mais uma vez empacada. Refletindo esse
sumiço inesperado dessa nova personagem, consegue desabafar:
Nada. Nem a moça desempacava a Ana Paz nem eu desempacava a moça... E ainda por cima uma outra
personagem entrou no meu estúdio: cabelo branco, um mocassim no pé, uma bengala na mão. Mancava
um pouco, se movimentava devagar. Mas firme. E o jeito dela falar também : firme, decidido (BOJUNGA,
2007:24-25).
Com a rapidez das personagens anteriores, a velha foi relatando parte da sua história de vida. E
assim a escritora narradora vai compartilhando seu processo de escrever, cheio de dificuldades,
obstáculos, desapontamentos, desafios, interrupções, perdas, encontros. Lygia compartilha:
a necessidade de falar mais dramaticamente do ato de escrever me fez continuar nesse caminho e levantar
uma personagem chamada Ana Paz. O percurso que fiz com a Ana Paz foi difícil, eu não enxergava bem o
caminho, tropecei e parei muitas vezes, mas ele me levou a um livro que eu chamei Fazendo Ana Paz. E me
levou também a querer continuar ainda na mesma estrada. (BOJUNGA, 2007:8)
Em seu estudo acadêmico, Oliveira, ao se referir às três fases da vida dessas personagens: criança,
adulta e velha, comenta o Fazendo Ana Paz, e busca uma interlocução crítica:
Mesmo que a narrativa comece com Ana Paz criança, o percurso dessas fases não se dá de forma cronológica e linear. Pode-se afirmar que há um diálogo constante entre essas três fases, como se fossem personagens diferentes. Em muitos momentos, as histórias de Ana Paz e do narrador-escritor (que também
carrega traços da autora em estudo) confundem-se, já que se alterna a todo instante o foco da narrativa.
Essa narrativa constitui a ficcionalização do ato da escrita literária, da construção de personagem de uma
autora que está em constante diálogo com a sua produção literária. (OLIVEIRA, 2010:16)
Mas o poder de criação é imenso e impulsiona a narradora-escritora a trazer de volta suas personagens perdidas, entrelaçando-as com a nova personagem: a velha que surgira firme e determinada:
Eu não escrevi esta cena de uma vez só, que nem eu tinha feito com a cena de Ana Paz e da Moça, que se
apaixonou pelo Antônio. A cena da velha foi saindo um pedacinho cada dia (era tão bom todo dia eu abrir
o caderno e encontrar essa personagem lá me esperando pra ser feita mais um pouco). Mas mesmo assim,
sem me escapar, eu não sabia o que a velha ia fazer lá no Rio Grande do Sul. Foi só quando o filho começou
a botar pressão em cima dela (que viagem é essa, mamãe? O que que você vai fazer lá no Sul, mamãe?)
que eu tive que me definir. A velha respondeu que ia encontrar duas amigas... A minha vontade era fazer
a velha responder: eu vou me encontrar com duas personagens que andam desgarradas por ai. Mas meu
filho não ia entender... Então, eu virei a Ana Paz e a Moça que-se-apaixonou-pelo-Antônio em duas amigas
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da velha, e pronto! (BOJUNGA, 2007:33-34)
A velha afinal estava indo para sua cidade natal, assim ela se daria a chance de voltar a seu antigo
casarão onde viveu a infância, oportunizando-se passar naquele local escolhido, seus oitentas anos
de idade. Seria uma grande viagem através da Memória. Como previra, foi ao encontro de sua infância, através da história da Ana Paz criança; trouxe de volta a moça que se apaixonou pelo Antônio e
finalmente reencontrou sua velha casa. E como foi bom recordar e entrelaçar!
As três Ana Paz, até então fragmentadas, se integram no mesmo enredo e passam a viver situações
que ficaram pendentes anteriormente, como avivar a Carranca que o pai, antes de morrer como
preso político, recomendara tanto para que não a esquecesse: Carranca grávida de tantas histórias
aprendidas no curso do velho Chico. Carranca impregnada de tantos valores sociais, políticos, culturais, morais... não podia ficar esquecida. Afinal essas histórias e valores, intrínsecos na Carranca,
foram passados pelo pai, ao desembaraçar, com tanta delicadeza, os cabelos cacheados da filha,
ainda criança, encantando-a. Valores que um dia a Ana Paz moça não os esqueceria ao se entregar
de corpo e alma ao seu amado Antônio. Valores que a velha soube preservar.
É isso! As três são a mesma! Não foi à toa que, quando fiz a moça e a velha, eu não dei nome nem pra uma
nem outra: lá num fundão escuro da minha cuca eu devia ter sacado o que eu só agora estou me dando
conta. A Ana Paz vai crescer e se apaixonar pelo tal do Antônio. E quando ela chega no inverno da vida
ela vai sentir a urgência de voltar pra casa onde ela nasceu, onde ela viu acontecer a tragédia com o pai;
ela vai querer juntar os pedaços dela, vai querer se encontrar com a menina e a moça que ela foi. E nesse
ajuntamento volta tudo: a ligação fortíssima que ela tem com o pai; a casa que ela aprendeu a amar...
(BOJUNGA, 2007:16-40)
Ana Paz Velha vai redescobrindo e reconstruindo a casa em que nasceu. Nesse processo de trabalhar a memória, um jardineiro foi inventado para cuidar do jardim. Muitos operários surgiram para
diferentes serviços que a casa exigia para ser novamente edificada. Casa – Casarão, uma vez erguido
e embelezado, afinal o que faria com ele? Perguntava-se a velha.
É a Lygia quem nos responde no PRA QUEM ME LÊ. É assim que a autora denomina a segunda parte
do seu livro no Fazendo Ana Paz:
É aqui que eu venho te contar um ou outro episódio da minha vida, ligado ao livro que você tem na mão:
Hoje eu quero te contar porque que eu escolhi a foto de um sobrado antigo pra botar na capa, e as fotos
de um azulejo e de uma família reunida pra serem as únicas imagens a ‘enfeitar’ o miolo desse livro.
Memória - a Ana Paz fala muito disso: rastro atrás, vivências passadas; a criança que a gente foi, determinando o adulto que a gente é. MEMÓRIA.
Amigos Leitores, ao lerem o livro Fazendo Ana Paz tomarão conhecimento da relação entre Ana Paz Velha
e a reconstrução do Casarão. Faz-se necessário retomar o diálogo entre o filho que veio do Rio de Janeiro
e sua mãe. O filho queria saber o que a mãe estava aprontando no Rio Grande do Sul e a Velha Ana foi logo
enfrentando-o: Eu já conversei com arquiteto, já consultei advogado e já estou providenciando o tombamento desta casa. Eu quero que ela continue fazendo parte da memória da cidade. Tomei essa decisão depois que cheguei aqui. E resolvi também doar a casa pra cidade e transformar ela num espaço útil pra uma
porção de gente, tipo uma escola de artes e ofícios, um centro de cultura, uma biblioteca, uma coisa assim.
Depois de não ter conseguido convencer a mãe a voltar consigo para ao Rio, o filho despede-se e toma o
primeiro avião de volta. Nas nuvens ecoa uma voz que reconhece ser a da sua velha mãe: ...muita gente
sabe que uma cidade desmemoriada é pior até que uma pessoa que não se lembra mais da infância que
teve; se a gente quer desmemoriar de vez uma cidade é só ir botando abaixo a arquitetura do passado...
um dia desses eu vou morrer; depois morre você; depois vai o teu filho... Mas a cidade continua; e quanto
mais memória ela tiver, mais ela pode servir pra cada um que vive aqui. (BOJUNGA, 2007:77-78)
Despeço-me de vocês por enquanto, prometendo voltar. Deixo-lhes novamente uma pergunta: O
que será que foi feito daquele Casarão onde residiu, em Pelotas, no Rio Grande do Sul, nossa querida
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escritora, Lygia Bojunga?
Leiam Fazendo Ana Paz, e na segunda parte Pra você que me lê encontrarão respostas. Aí a Lygia explica esse
acontecimento entre outros. Ela também vai contar como conseguiu colocar um ponto final em sua escrita.
Penso que vocês se encantarão e se surpreenderão ao lerem esse livro, afinal a Lygia Bojunga é
impregnada de fantasia e de liberdade. O livro Fazendo Ana Paz revela aos leitores como essa escritora faz uso do poder da sua imaginação ao escrever e produzir um livro. Não é à toa que Lygia tanto
acredita que quem se habituou a fazer uso da imaginação, se salva sempre (BOJUNGA, 2007:101).
Até nosso próximo encontro.
Fecha a Cortina
Cena 3
Depois do intervalo da Cena 2 a cortina se abre novamente. Dessa vez, entra no palco uma bela
mulher. O refletor acende sua luz sobre essa atriz e seus olhos passeiam pela plateia em silenciosa
leitura. É nessa ambiência que a mulher rasga o envelope que traz em mãos, retira uma carta e
começa a ler:
Caríssimos amigos Leitores
Volto a me comunicar com vocês, através dessa nova carta iniciando-a com uma fala da escritora em
foco, Lygia Bojunga:
A minha ligação com casa foi sempre muito forte. No princípio eu fazia casa pra brincar: me fingia de
construtora e usava livros pra fazer de parede, de telhado, de degrau. Mais tarde eu fazia casa pra morar:
desenhava a casa que eu queria construir ou reformar, ia fazendo (ou refazendo) ela aos poucos , levava
anos a fio, não fazia mal: fazer e refazer era bom. Depois eu inventei uma Casa, querendo agregar dentro
dela três gostos muito fortes que desde pequena eu tenho: o gosto da escrita, o gosto do teatro, e o gosto do fazer à mão: queria realizar projetos ligados a livros e palcos, da maneira mais artesanal possível.
Essa Casa eu destinei à investigação, à experimentação. Eu queria investigar, por exemplo, se era ou não
possível encontrar um caminho genuinamente meu pra voltar ao palco. Não pra voltar a fazer teatro (no
passado fui atriz), mas pra falar do Livro de um jeito teatral: era esse o caminho onde eu queria andar.
Andei. Continuo andando: volto agora a subir num palco... (BOJUNGA, 2008)
Gostaria amigos que vocês soubessem que com o livro Retratos de Carolina, a Lygia Bojunga inaugura a sua Casa Editorial no bairro de Santa Teresa, onde reside quando se encontra no Rio de Janeiro:
...é o primeiro produzido pela Casa e a ‘intromissão’ de Lygia em todos aspectos da produção do livro
expressa a liberdade e a autonomia com a fundação da editora: os livros são inteiramente produzidos,
editados, ilustrados por Lygia Bojunga (CORIOLANO, 2010:34)
Na carta anterior eu termino convidando vocês a se empenharem na leitura do livro, Fazendo Ana
Paz, e conviverem com a dramaticidade dessa inquieta escritora. Digo inquieta por saber e por
comungar com Aires que acredita que a proposta da Lygia Bojunga é de propiciar uma leitura que
desacomode o leitor de suas posições habituais, conformadas a modelos estabelecidos e reprodutoras de sistemas (AIRES, 2003). Uma leitura que salte os limites da escolaridade para alçar voos mais
ousados... É necessário entender a liberdade intrínseca na obra da Lygia. Liberdade que a arte propicia tão salutar e necessária para que o ser humano se realize, pois assim o leitor poderá exercitar
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um novo modo de olhar a realidade.
Compartilho nessa carta um pequeno resumo da história do Retratos de Carolina. Quero deixar
vocês aguçados para irem ao encontro do livro e poderem se beneficiar da sua leitura (YUNES, 2010).
Fica claro para mim que cada leitor é único, original, carregando seus repertórios e experiências em
tudo que faz, em particular naquilo que lê. Creio que esse é o papel da literatura, como obra aberta
que tenta instigar seu leitor, enlaçando-o com sua própria história. Lendo Lygia Bojunga e em especial lendo Retratos de Carolina vocês vão entender melhor o que agora tento colocar. Escutemos a
própria voz da escritora:
“É com Retratos de Carolina que começo essa nova caminhada. Aqui, eu me misturo com a Carolina, viro
personagem também: queria ver se dava pra ficar todo mundo morando junto na mesma casa: eu, a Carolina, e mais outros personagens: na Casa que eu inventei. (BOJUNGA, 2006)
O texto que compõe o livro Retratos de Carolina apresenta-se em duas partes. Na primeira, a autora
retrata Carolina em oito capítulos, enfocando diferentes idades e situações marcantes. Na segunda
parte do livro, a autora apresenta-se tal qual ela mesma em seu texto, já nosso conhecido: Pra você
que me lê. A Lygia, aí, surge dialogando com sua personagem Carolina que passa a exigir da escritora
um novo retrato seu.
No primeiro capítulo Carolina com seis anos, a autora trata de uma amizade entre Carolina e uma
colega de escola. Essa amizade se estende para fora da escola. A Carolina abre seu coração para a
amiga Priscila, afinal é a primeira vez para ela que encontra uma amiga e passa a contar-lhe todos
os seus segredos. Mas Carolina não é correspondida e só vai tomar conhecimento desse fato ao
vivenciar uma traição daquela a quem tanto confiara. É nesse capítulo que o pai de Carolina se faz
presente revelando todo seu amor pela sua filha.
Ô, minha filha, - diz o pai consolando-a da tristeza da filha quanto a decepção que sofreu com a suposta
amiga -´O pai pega as duas mãos de Carolina e puxa ela pra ele. Num ímpeto, Carolina mergulha naquele
abraço, se abandonando a uma sensação de alívio e prazer... Que bom que a festa vai ficando pra trás; e
que tão bom ver o Pai assim, se esquecido das calças, do Serginho, de tudo... Logo, logo ela também vai
esquecer da Priscila. Mas o melhor que tudo, ah, nem se fala, melhor que tudo é sentir a mão do Pai apertando firme a mão dela. (BOJUNGA, 2006:44)
As calças, o Serginho, a surra da mãe, a vergonha do pai, a busca da amiga para compartilhar mais
esse segredo, a decepção quanto à amizade da falsa amiga, a amorosidade e compreensão constituem questões trazidas pela autora, aguçando nossa virtualidade de leitor.
Carolina aos quinze anos é o segundo retrato da personagem em questão. Nesse capítulo a autora
traz uma viagem familiar à Europa e a paixão de Carolina ao conhecer Londres. É ali que ela também
se encanta por um vestido na vitrine:
Quanto mais Carolina olha pro vestido mais sente um enamoramento que nunca sentiu por roupa
nenhuma. O vidro agora faz também de espelho: Carolina se examina, já se vendo no vestido.
A tristeza da despedida de Londres, que tanto vinha doendo, vai sendo varrida pra longe, e o lugar agora
varrido é logo todo ocupado pela vontade intensa de possuir o vestido. (BOJUNGA, 2006:55)
O terceiro retrato traz a Carolina aos vinte anos - Nele, a personagem surge como aluna da faculdade
de arquitetura e justamente nesse momento de sua vida ela reencontra o vestido de Londres e com
ele conhece o homem por quem vai se apaixonar e se casar.
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Olhou pro espelho. Primeiro, só enamorada do vestido. Depois, se enamorando da imagem toda. Ficou
de costas; foi virando o pescoço pra se ver refletida assim; ondulou o corpo pro vestido se movimentar; e
rodopiou devagar querendo ver o movimento se completar.
- Eduarda!
Que susto. Ah, mas que susto que logo virou vergonha quando ouviu aquela voz exclamando, Eduarda, e
quando viu o homem parado na porta do quarto.
... - Eduarda? Não. Eu sou Carolina. (BOJUNGA, 2006:74)
Complementando esse encontro com o homem inesperado, a autora-narradora traz “Carolina aos
vinte e um anos junto da escrivaninha do pai” Nesse momento, ela anuncia ao pai seu desejo de
casar. No diálogo que travam juntos reflexões são levantadas: -Pense mais um pouco nessa decisão
que você está tomando Carolina... Pensamento é como tudo mais: pra dar fruto tem que ser trabalhado, pede vagar:
- Quando eu contei pra ele da minha paixão por Londres, ele logo me arrastou para uma agência de turismo pra escolher o roteiro e as datas de uma ida a Europa. Pra nossa lua- de- mel. Se levanta e enlaça o
pescoço do pai.-Vai dar certo, paizinho, vai dar certo, você vai ver. (BOJUNGA, 2006:96)
Em Carolina aos vinte e dois anos nossa personagem surge depois de casada e novamente vai ao encontro do pai que está sentado junto à escrivaninha. Uma ampulheta lhe chama atenção, pareceu-lhe desconhecida: É uma velha ampulheta está aí desde que seu avô morreu. Pai e filha conversam e com dificuldade Carolina participa que vai abandonar a faculdade de Arquitetura. O pai pergunta-lhe se já trancou
a matrícula e Carolina responde: - Já, já! Você sabe que eu detesto essa história de ficar brigando, discutindo por causa do meu estudo. Ele cismou que eu não preciso estudar, que não preciso trabalhar, que eu
não preciso ter uma profissão, que eu não... tranca a boca... Tchau paizinho (BOJUNGA, 2006:106).
Em Carolina aos vinte e três anos a personagem retorna ao escritório de seu pai e o aguarda entrar.
No silêncio que atravessa os dois, o pai percebe toda a infelicidade da sua querida filha, o aprisionamento em que se encontra. E Carolina traz em sua memória seu tempo de criança e o dia do aniversário da Priscila, marco da traição que sofrera daquela que imaginava ser sua amiga. Ela percebeu
o instante em que a aniversariante tentava enganá-la, trocando malandramente seu prêmio – uma
boneca – por outro, uma gaiola e um prisioneiro pássaro (o Pet). Cheia de raiva Carolina se retira da
festa e vai se esconder entre os arbustos do jardim da casa. Ali abandonou a gaiola e o seu Pet dentro. E nesse instante seu pai encontrou-a escondida no meio das matas. Foi quando se abraçaram ao
voltar para casa de mãos dadas e consolada.
Anos se passaram! E nessa visita ao pai, ao lado de sua escrivaninha, Carolina voltava a pensar
naquela velha gaiola e em seu prisioneiro. Será que ela havia aberto a gaiola e soltado o coitado do
pássaro?
No sétimo retrato, Carolina aos vinte e quatro anos atende com surpresa o telefonema do pai que
a chama a seu escritório. Em conversa, o pai lhe comunica a séria doença e seu estado terminal.
Trocam segredos sobre coisas secretas do coração e da vida. Ambos desabafam. O pai revela certo
desamor por sua esposa que, ao longo do convívio, nunca percebeu não ser amada, tão entretida
que esteve no lidar como dona de casa. Carolina toma coragem e confessa ao querido pai:
Pois é. Imagina só fazer uma vida. Uma vida que nasceu da violência, gerada de um homem que eu não
gosto mais.- Muda de posição na cadeirinha; muda o tom de voz.- A ideia de me emaranhar numa maternidade que eu não queria, e continuar num casamento que eu não queria mais, me su-fo-cou: resolvi
abortar. Confessa ainda a decisão finalmente de libertar-se das amarras do casamento fracassado. E o pai
responde-lhe: Mas eu senti. Da última vez que você veio, eu senti. (BOJUNGA, 2006:128)
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
Algum tempo depois, Carolina é despertada na madrugada: era a voz da sua mãe comunicando-lhe
que encontrara o pai morto debruçado na escrivaninha.
Nesse último retrato dessa primeira parte do livro: Carolina aos vinte e cinco anos é narrada uma
nova etapa na vida da nossa personagem. Ela está separada e recomeçando sua difícil vida num singelo apartamento no bairro da Glória. Sua mãe vem visitá-la e as duas travam uma conversa muito
difícil, dura e muito tensa com pontos de vista os mais diversos.
Mas Carolina, apesar de tudo, ainda consegue sonhar e retornar à sua infância e a seu pai. Não
esquece a conversa que um dia tivera com ele sobre segredos quando ele lhe dizia:
... A vida, Carolina é um grande segredo, que vai se desvendando devagar, a medida que a gente vive.
Disse que quanto mais a gente presta atenção nele, mais ele se mostra. Mas disse também que, por
mais que a gente preste atenção nele, ele jamais se mostra todo (BOJUNGA, 2006:16).
Ao recordar, Carolina retoma a gaiola que guardava um pássaro cativo e que ela havia abandonado
no meio das folhagens do jardim, exatamente no dia em que vivenciou a traição da Priscila. E de
repente parece escutar, dentro de si, uma voz afirmando:
- A gaiola está de porta aberta... Aberta, só não: escancarada. Dentro da gaiola, um vazio bonito demais:
um vazio de libertação (BOJUNGA, 2006:157).
Queridos amigos, concluindo essa carta trago a segunda parte do livro Retratos de Carolina, que a autora intitula Pra você que me lê. A própria Lygia entra no contexto e vem conversar com seus leitores. Entre várias
explicações que tenta passar ela se depara com a personagem – Carolina – que vem questioná-la e exigir um
novo retrato seu, um retrato que seja menos negativo do que os que ela havia feito anteriormente Toda uma
discussão é desencadeada gerando um embate e desafio entre as duas. No final, ou por exaustão ou mesmo
pela aceitação do fato, a escritora toma uma atitude: Mas hoje, já no café da manhã, Carolina voltou a martelar a tecla do “retrato não frustrante”. Só que dessa vez, ela martelou com tanto charme, com tanto abraço
e carinho, que me seduziu de vez: acabei prometendo que ia retratar ela de novo... E agora eu estou aqui.
Olhando pro papel em branco... Continuo escrevendo à mão. Agora usando mais a caneta que lápis. Às vezes
experimento o computador. Mas volto pro papel e pra caneta: é feito voltar pra casa, tirar o sapato e botar o
short... Se ela martelou tão bem martelada a tecla de um novo retrato, eu vou também agora martelar a minha
tecla. (BOJUNGA, 2006:207-208)
E a autora escreve; Carolina aos vinte e nove anos, imaginando que quatro anos já se passaram
desde o encontro no apartamento da Glória e começa a retratar uma Carolina forte, resolvendo
questões pendentes, buscando construir projetos, reencontrando Priscila que abriu uma empresa e
faz-lhe um convite, como arquiteta.
Parei de escrever; olhei pra janela: o sol estava se pondo lá no mar: hora pra andar na areia, o pé recebendo a onda que termina, o olho flanando na vastidão do céu ainda incendiado de tudo que é vermelho
e amarelo que vão pintando o fim da tarde... Mas antes de sair imitei Carolina: deixei meu caderno bem
aberto no “Carolina aos vinte e nove anos.” (BOJUNGA, 2006)
Como se dará essa nova etapa na vida de Carolina?
A resposta, amigos leitores fica com vocês.
Com muito afeto, despeço-me.
A luz do refletor se apaga e a cortina se fecha.
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Referências Bibliográficas
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postas em jogo pela ficção. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Letras da Universidade
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QUEVEDO, Hercílio F. Ler é Nossa Função Essencial ( ou não?). In ROSING Tania M.K.; BECCKER,
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Memórias de um leitor de Monteiro Lobato1
Memories of a Monteiro Lobato reader
Memorias de un lector de Monteiro Lobato
Francisco Thiago Camêlo2
Resumo
A partir de memórias pessoais de leitura da obra de Monteiro Lobato (1988–1948), analisa-se a relevância da produção
literária do escritor tendo como horizonte a formação de leitores. Destacam-se, especialmente, a linguagem e a força
inventiva da ficção como marcas do seu projeto de criar uma literatura infantil genuinamente brasileira. Investiga-se
também, no interior da literatura lobatiana, a contribuição da prática de contação de histórias no processo de formação
do leitor. Por fim, aponta-se uma lista de sugestões de práticas de leitura associadas à obra de Lobato.
Palavras-chave: Monteiro Lobato; literatura infantil brasileira; formação do leitor; práticas de leitura; memória.
Abstract
This article analyzes from personal reading memories Monteiro Lobato (1882-1948) work, the relevance of the writer’s
literary production focusing on the building of readers. The language and the inventive power of fiction are trademarks of Lobatos’ project to create a genuinely Brazilian literature. It is investigated, within the literature from Lobato, its
contribution to the practice of story telling in the building of readers. Finally, this article offers a list of reading practices
associated with Lobato’s work.
Key-words: Monteiro Lobato; Brazilian children’s literature; building of reader; memory; reading practices.
Resumen
A partir de recuerdos personales sobre la lectura de la obra de Monteiro Lobato (1882-1948), se analiza la relevancia
de la producción literaria del escritor ubicando la formación de lectores como horizonte. Destacan, especialmente, el
lenguaje y la fuerza inventiva de la ficción como marcas de su proyecto de crear una literatura infantil genuinamente
brasileña. Se investiga también, en el interior de la literatura lobatiana, la contribución del hecho de contar cuentos en
el proceso de formación del lector. Finalmente, se ofrece una lista de sugerencias de prácticas de lectura asociadas a la
obra de Lobato.
Palabras clabe: Monteiro Lobato; literatura infantil brasileña; formación del lector; práticas de lectura; memoria.
1. Este ensaio foi apresentado no XXI Seminário de Iniciação Científica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em agosto
de 2013. Sou grato às Profas. Eliana Yunes e Nanci Nóbrega pela orientação, à plateia e aos colegas do seminário pelos comentários
ao meu trabalho.
2. Graduado em Letras pela Puc- Rio, pesquisador do iiLer e integrante do Grupo de Estudos em Literatura Infantil e Juvenil (GELIJ/
CNPq). Contato: [email protected]
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
Para Tatiana Belinky,
nova habitante do Sítio do Picapau Amarelo
Desde 2011, na condição de bolsista de Iniciação Científica do CNPq (PIBIC/CNPq), eu tenho me
dedicado a ler e reler a obra do escritor Monteiro Lobato (1882-1948), sempre com o olhar encantado da infância. Durante esses dois anos, norteei minha pesquisa tendo o belo poema “Tecendo
a manhã”, de João Cabral de Melo Neto, como metáfora do conceito de leitura. Assim, o objetivo
primordial de minha fala neste seminário é o de lhes apresentar algumas reflexões tecidas a partir
de minhas memórias de leitura da obra lobatiana. Para início de conversa, informo-lhes que a escolha de meu objeto de pesquisa, a obra infantil de Monteiro Lobato, está ancorada em um episódio
inusual ocorrido na minha infância. Peço-lhes licença para puxar um fio da memória, revestido com
afeto, para justificar tal escolha.
Deixo fluir minhas memórias...
Meu interesse pela linguagem começa muito cedo, por volta dos 4 anos de idade, numa cidade cearense encoberta pelas montanhas da Chapada da Ibiapaba. À época, eu ouvia histórias da tradição
oral contadas por minha avó materna, ora ao pé da rede, ora sentado em seu colo. Como viria a descobrir já adolescente, lendo José de Alencar, a literatura era elemento basilar na fundação da cidade
onde eu nascera – Ipu – e servia como cenário à história de Iracema, índia dos lábios de mel, cujos
cabelos eram mais negros que asa da Graúna e mais rápida que a corça selvagem, que desbravava o
sertão e as matas do Ipu. Aos 8 anos, como que por acaso, encontrei na biblioteca de meu colégio
um exemplar de Os Doze Trabalhos de Hércules, de Monteiro Lobato. Se pedisse ajuda a Clarice Lispector, estas palavras traduziriam o sentimento daquela descoberta: Era um livro grosso, meu Deus,
era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo (LISPECTOR,1998:10). Imediatamente, dirige-me à bibliotecária e preenchi a ficha de empréstimo. Peço novamente ajuda a Clarice
para dizer que Peguei o livro. Não, não saí pulando (...). Saí andando bem devagar. Sei que segurava
o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. (...). Meu peito estava quente,
meu coração pensativo... (LISPECTOR,1998:12) Aberto o livro, lá estavam os personagens do Sítio a
desfilar diante dos meus olhos ávidos por histórias, convidando-me a mergulhar em mares nunca
dantes navegados. Sem hesitar e com a ajuda do pó de pirlimpimpim, dei um “tchibum” e cheguei
à Grécia clássica. Naquela tarde, acompanhei, pela pena de Lobato, o nascimento da civilização na
companhia de Hércules, Emília, Hélade e de um sem-fim de personagens fantásticos e clássicos... No
dia seguinte, de volta ao mundo, regressei à biblioteca para devolver o livro e pegar imediatamente
outra obra de Lobato. Contudo, a professora, que desempenhava a função de bibliotecária do colégio, surpresa com o tempo recorde da leitura, insinuou que eu não havia lido a obra, e me pediu
para contar os trabalhos de Hércules. Diante dela então foam surgindo Hércules, Cérbero, o Leão de
Neméia, a Hidra de Lerna, a Corça de pés de bronze, o Touro de Creta, os cavalos de Diomedes... Não
recordo exatamente das palavras da professora quando terminei de contar as aventuras da turma
do Sítio, lembro-me apenas do sorriso meio constrangido, meio contente, e de ela ter me entregue,
em seguida, “As reinações de Narizinho”. Foi assim que cheguei à literatura, a esse acervo que não
se esgota, porque um fio puxa outro, uma história puxa outra.
Do Ceará para Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio, ambiente intelectual onde desenvolvi minha
pesquisa de Iniciação Cienteífica, pude acompanhar, através da experiência da leitura, a tentativa
de legitimação da literatura infantil brasileira no campo dos estudos literários. Nos últimos anos, a
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
literatura infantil brasileira vem recebendo prêmios nacionais e internacionais que confirmam o alto
padrão de qualidade dos textos destinados (também) à infância. Como reconhecimento desse gigantismo, destacam-se a publicação anual de cerca de 1.600 novos títulos no mercado editorial de livros
infantojuvenis (CECCANTINI, 2011:15); o prêmio Hans Christian Andersen conferido às “filhas de
Lobato” Lygia Bojunga (1982) e Ana Maria Machado (2000); as premiações da Câmara Brasileira do
Livro (Prêmio Jabuti – CBL), da Academia Brasileira de Letras (ABL) e da Fundação Nacional do Livro
Infantil e Juvenil (FNLIJ); e a presença contínua de livros infantis brasileiros nos catálogos da Biblioteca Internacional da Juventude (Munique, na Alemanha) e da Feira Internacional do Livro Infantil
de Bolonha. Diante desses dados, constatamos a maioridade de nossa literatura infantil que cresce
a cada novo lançamento e se distancia dos textos com dicção moralista e pedagogizante que circulavam no Brasil nas primeiras décadas do século XX. A ruptura desse paradigma acontece em 1921,
ano de publicação de A menina do narizinho arrebitado, do escritor Monteiro Lobato, que tentava
desliteraturizar a literatura infantil veiculada no Brasil até então, em geral traduções com uma linguagem distante do leitor. E, para Monteiro Lobato, desliteraturizar a linguagem textual configurase em um projeto ambicioso de criar uma literatura infantil autenticamente brasileira, com grande
força inventiva, humor, respeito ao imaginário infantil e sem assimetria entre criança e adulto.
O objetivo do meu projeto foi analisar a prática da contação de histórias na obra de Monteiro Lobato
e as suas contribuições no processo de formação do leitor. Diante da produção do escritor, detive-me
na leitura crítica das obras As reinações de Narizinho (1931), Memórias da Emília (1936), Dom Quixote das crianças (1936) e da correspondência organizada pelo próprio Lobato e reunida no volume A
barca de Gleyre (1944). A reflexão foi fundamentada nas teorias de Walter Benjamin sobre narração
e narradores em diálogo com o pensamento de Paulo Freire e Eliana Yunes concernentes a questões
de leitura e formação do leitor. Somaram-se ao escopo teórico entrevistas realizadas com professores
universitários com reconhecimento acadêmico nas áreas de Leitura e Literatura Infantil e Juvenil.
Para começar a falar de contação de histórias no universo literário lobatiano, é necessário, antes de
tudo, entender a importância dessa prática na vida do escritor. Na carta endereçada a Godofredo
Rangel em 13 de setembro de 1916, o escritor informa ao amigo seu plano literário:
Ando com várias ideias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa
e mexendo nas moralidades. Coisa para crianças. Veio-me diante da atenção curiosa com que meus pequenos ouvem as fábulas que Purezinha conta. Guardam-nas de memória e vão recontá-las aos amigos
– sem, entretanto, prestarem nenhuma atenção à moralidade, como é natural. A moralidade nos fica no
subconsciente para ir se revelando mais tarde, à medida que progredimos em compreensão. Ora, um
fabulário nosso, com bichos daqui em vez dos exóticos, se feito com arte e talento dará coisa preciosa. As
fábulas em português, que conheço, em geral traduções de La Fontaine, são pequenas moitas de amora de
mato – espinhentas e impenetráveis. Que é que nossas crianças podem ler? Não vejo nada. Fábulas assim
seriam o começo da literatura que nos falta. (...). É tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que
nada acho para a iniciação de meus filhos... (LOBATO, 1995:104)
Esta carta ocupa um lugar especial em meio à correspondência de Lobato porque critica a distância linguística das traduções direcionadas ao público infantil e também porque explicita o desejo do escritor
de criar, com arte e talento, uma literatura infantil com um fabulário brasileiro e compreensível para o
leitor. A inspiração para a empreitada literária nasce atrelada junto com a preocupação com a formação dos filhos. A cena descrita por Lobato, na qual Purezinha conta histórias aos filhos, comparece nos
livros do escritor por meio de Dona Benta e Tia Nastácia que desempenham o papel de Purezinha e dos
demais personagens do Sítio, que ocupam posição semelhante aos filhos de Lobato.
A cena doméstica de Purezinha contando histórias aos filhos é decisiva para o projeto de criação de
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
uma literatura infantil, visto que o combate à “linguagem desliteraturizada” corresponde, na verdade, à criação de textos sem “literatice”, sem o “falar difícil”, próximos à oralidade e compreensíveis
para o leitor. “(...) o que é beleza literária para nós é maçada e incompreensível para o cérebro ainda
não envenenado das crianças (LOBATO, 1955:372)
Em As reinações de Narizinho, obra publicada em 1931, que reúne uma série de histórias publicadas
na década de 1920 e na qual são apresentados os personagens que habitam o Sítio do Picapau Amarelo –, há uma passagem bastante significativa que explica a proposta lobatiana de uma leitura mais
oral ou oralizada, como preferirem:
A moda de Dona Benta ler era boa. Lia “diferente” dos livros. Como quase todos os livros de crianças que há no
Brasil são muito sem graça, cheios de termos do tempo da onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua do Brasil de hoje; onde estava, por exemplo, lume, lia fogo; onde
estava lareira lia varanda. E sempre que dava com um botou-o ou comeu-o, lia botou ele, comeu ele – e ficava o
dobro mais interessante. Como naquele dia as personagens eram da Itália, Dona Benta começou a arremedar a
voz de um italiano galinheiro que às vezes aparecia no sítio em procura de frangos, e para o Pinocchio inventou
um vozinha de taquara rachada que era direitinho como o boneco devia falar (LOBATO, 1969: 81)
É a partir da publicação de As reinações de Narizinho que o leitor passa a assistir – e participar – de
uma verdadeira algazarra intertextual nada silenciosa entre a turma do Sítio e personagens de origens diversas (cinema, histórias da tradição, literatura clássica), que viajam ao Sítio do Picapau Amarelo através de histórias puxadas por outras histórias, num entrelaçar de fios de um novelo infinito.
À Tia Nastácia cabe o anúncio do momento de se ouvir histórias, num ritual que lembra os nossos
ancestrais, que se reuniam à volta da fogueira para contar e ouvir narrativas:
Tia Nastácia acendeu o lampião da sala. Depois disse: “É hora, gente!” Todos vieram postar-se em redor do ilustre personagem, dona Benta sentou-se na sua cadeirinha de pernas serradas; Narizinho e Pedrinho sentaram-se
na rede; Emília foi para o colo da menina. Até o visconde de Sabugosa quis ouvir as histórias (LOBATO, 1969:81)
No ensaio “O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”, Walter Benjamin narra a
experiência da oralidade como sendo a fonte a que todos os narradores recorrem e distingue os dois
papéis que narrador ou mediador pode desempenhar: o guardião sedentário das memórias locais
e o viajante que partilha suas histórias por terras alheias. Segundo Benjamin (BENJAMIN, 2012), o
narrador retira o que conta da própria experiência ou da relatada por outros e a incorpora à experiência dos ouvintes, de modo que a narrativa se imprime na audiência e no próprio narrador, como a
mão do oleiro na argila do vaso. A bela imagem de Benjamin está impresa na obra de Lobato desde
a concepção, pois seu projeto literário tem origem na própria experiência de leitor e reaparece nos
seus textos na ruptura com a rigidez da linguagem, na criação de neologismos e no diálogo questionador dos personagens, que não ouvem as histórias passivamente, assim como o faziam seus filhos
do escritor, mas se deixam marcar pelas histórias ouvidas e lidas.
Os círculos de leitura são práticas de leitura (CHARTIER) eficazes para o compartilhamento de experiências e para a inclusão da voz do ouvinte, que passa de espectador a narrador, construindo-se a
partir das trocas no círculo. Lobato utiliza a metáfora do círculo para expandir o universo cultural dos
personagens do Sítio, que se colocam ao redor de Dona Benta ou de Tia Nastácia para ouvir e contar
histórias. Publicado em 1936, “Dom Quixote das crianças” conta a história de como Dona Benta tornou
legível para os ouvintes as aventuras do cavaleiro andante criado por Miguel de Cervantes. O livro abre
discussões sobre questões candentes dos estudos literários, como adaptação, tradução e recepção de
obras. Neste ensaio, contudo, vou me concentrar na passagem em que Dona Benta, diante da ameaça
de perder seus ouvintes em razão da inadequação linguística da tradução do livro de Cervantes, adapta
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a história de Quixote ao público do Sítio. Narradora experiente e competente na contação de histórias,
ela atende as reclamações de Emília e simplifica a linguagem da obra sem, contudo, minimizar a importância da obra nem tampouco eximindo os personagens da leitura do livro na íntegra.
(...) esta obra está escrita em alto estilo, rico de todas as perfeições e sutilezas de forma, razão pela qual
se tornou clássica. Mas como vocês ainda não têm a necessária cultura para compreender as belezas da
forma literária, em vez de ler, vou contar a história com palavras minhas.
– Isso! – berrou Emília. Com palavras suas e de tia Nastácia, e minhas também – e de Narizinho – e de
Pedrinho – e de Rabicó. Os viscondes que falem arrevesado lá entre eles. Nós, que não somos viscondes
nem viscondessas, queremos estilo de clara de ovo, bem transparentinho, que não dê trabalho algum para
ser entendido (LOBATO, 1969:12)
Desse modo, à medida que o Quixote de Lobato arma-se cavaleiro, os personagens do Sítio armamse leitores, pois a obra de Cervantes é contada no “modo Sherazade”, envolvendo e amarrando a
plateia à narrativa, noite após noite, através da prática milenar de contação de histórias. A atitude de
Dona Benta de ouvir a voz da audiência é importante para o prosseguimento de “Dom Quixote das
crianças” porque a história é contada em vez de ser lida, criando assim pontes para o entendimento
do texto e retirando do caminho as pedras que pudessem atravancar a construção de sentido tanto
dos personagens lobatianos quanto o nosso, leitores lobatianos. Dona Benta – e através dela Lobato
– nos ajuda a ler. E ler, segundo Yunes (YUNES, 2009), é uma aventura interminável porque o mundo
não se esgota, e a palavra não esgota o mundo, mas o transcende e amplia. A leitura do clássico de
Cervantes envolve leitores e ouvintes, como Emília que é atravessada pela leitura a tal ponto que
enlouquece à la D. Quixote.
Emília continuava a dar vira-cambotas. Depois foi buscar um cabinho de vassoura e disse que era lança,
e começou a espetar todo o mundo. E botou um cinzeiro de latão na cabeça, dizendo que era o elmo de
Mambrino. No fim montou no Visconde, dizendo que era Rocinante (LOBATO, 1969: 154)
Dona Benta foi espiar pela janela e de fato viu as estripulias que Emília del Rabicó estava fazendo no
quintal. Vestida de cavaleira-andante, toda cheia de armaduras pelo corpo e de elmo na cabeça, avançava
contra as galinhas e pintos com a lança em riste, fazendo a bicharada fugir num pavor, na maior gritaria.
Até o galo, que era um carijó valente, correra a esconder-se dentro de um caixão.
Dona Benta gritou-lhe várias vezes que parasse com aquilo. Tudo inútil. A boneca fora tomada por um
verdadeiro heroísmo (LOBATO, 1969:108)
Em “O narrador”, Benjamin enfatiza também a importância da experiência no processo de conservação das histórias. Para guardá-las de cor, isto é, para que o ouvinte/leitor se apodere da narrativa,
ele precisa escutá-la/lê-la e guardá-la de modo íntimo na memória e no coração. Nesse sentido, a
leitura para ser efetivamente leitura precisa atravessar a percepção e os afetos do leitor, levando-o a
experimentar os diferentes sentimentos provocados pela leitura de ficção, como ocorre com Emília
del Rabicó. Ler em círculo para expandir o mundo, lembra Yunes:
Ler em círculo não é novo: novo é o uso do círculo para aproximar leitores na troca de suas interpretações
(hoje, os leitores têm voz e antes não a tinham, como sabemos), para estímulo intensivo da própria experiência do dizer e dizer-se. (...) O círculo de leitura, põe em movimento a consciência crítica que predispõe
à cidadania. Depois que se aprende a pensar e a dizer o que se pensa, o próximo passo é agir, participar,
inscrever-se na história ou escrever a história. Que grande autor não terá necessariamente sido um grande
leitor? (YUNES, 2009:85)
Monteiro Lobato e Emília são certamente respostas possíveis para pergunta de Lobato. O primeiro
pelos exemplos citados anteriormente, a segunda por evoluir gradativamente de boneca de pano
atrevida à escritora. O crescimento de Emília dentro da narrativa do Sítio torna-se concreto dado
o uso recorrente do nome da personagem para titular obras (Aritmética da Emília, Emília no país
da gramática, Memórias da Emília), o protagonismo absoluto em algumas histórias (A reforma da
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natureza), o desencadeamento de toda a história de A chave do tamanho - como observaram os
Professores Luiz Antonio Coelho (PUC-Rio) e Vera Aguiar (PUC-RS) em entrevista concedida a mim - o
aumento progressivo do tamanho de Emília nas ilustrações a cada nova edição das obras de Lobato
e a passagem do estado inanimado ao animado, transcendendo sua condição de boneca. Lobato em
uma bela missiva (01/02/1943) ao amigo Rangel confessa as emilices da personagem:
Emília começou uma feia boneca de pano, dessas que nas quitandas do interior custavam 200
réis. Mas rapidamente evoluiu, e evoluiu (...). E foi adquirindo uma tal independência que, não
sei em que livro, quando lhe perguntam: “Mas que você é, afinal de contas, Emília?” ela respondeu de queixinho empinado: “Sou a Independência ou Morte!” E é. Tão independente que nem
eu, seu pai, consigo dominá-la. Quando escrevo um desses livros, ela me entra nos dedos que
batem as teclas e diz o que quer, não o que eu quero. Cada vez mais, Emília é o que quer ser, e
não o que quero que ela seja. (...). E assim, independente de qualquer cálculo, evoluiu essa Emília que me governa, em vez de ser por mim governada (LOBATO, 1964:341-343)
À guisa de conclusão, gostaria de apontar algumas práticas de leitura desenvolvidas a partir da leitura da obra de Monteiro Lobato. Essas atividades não pretendem esgotar a obra do escritor. Pelo
contrário, elas visam funcionar como combustível para motivar leitores contemporâneos de Lobato
a criar mais e mais atividades ligadas à turma do Sítio:
Caderno de memórias: a partir da leitura à moda lobatiana do livro Memórias da Emília,
o mediador pode propor que os leitores escrevam as próprias memórias, as memórias
do grupo ou de um colega. Ao término da atividade, as memórias coletivas podem ser
reunidas em um livro a confeccionado pelo grupo.
O Sítio na Rede: criar páginas no Facebook, perfis no Twitter, blogs no Tumblr, que divulguem a obra lobatiana para além-mar virtual.
E o carteiro chegou: inspirada pela correspondência de Monteiro Lobato, o medidor
pode sugerir que os leitores escrevam cartas para os personagens do Sítio, cabendo a
eles a resposta à missiva do colega. A atividade visa estimular as exercitar a escrita, a
imaginação e estimular a prática epistolar.
Brincando com a gramática: propor a criação de neologismos com base na farra gramatical realizada por Emília no País da Gramática. Listar, em seguida, as novas palavras
criadas pelos alunos para que ocorra um bingo de palavras na sala de aula.
Entre a TV e o livro: comparar aspectos variados de um episódio da série de televisão
“Sítio do Picapau Amarelo” com o texto original adaptado para a TV ou analisar versões
distintas da série de TV exibidas entre 1977 a 1986 e 2001 a 2007 pela Rede Globo.
Mixagem lobatiana: selecionar fragmentos das histórias de Lobato para misturá-los em
seguida, criando assim uma mixagem das narrativas lobatianas.
Pintando com palavras: sugerir aos alunos uma coleção de palavras e expressões recorrentes nos diálogos dos personagens, para compor um painel com colagens verbais de
cada habitante do Sítio.
Recontando Lobato: após a leitura dos livros do autor, pedir aos alunos para recontarem
as histórias lobatianas.
Tchibum e Pirlimpimpim: desenhar o mapa geográfico do Sítio do Picapau Amarelo para
depois, com a ajuda do pó de pirlimpimpim, viajar por outros lugares inexistentes na
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obra lobatiana.
Ler, reler, ler novamente, reler mais uma vez, ler mais um pouco a obra de Monteiro Lobato
para concluir, na companhia do escritor dos habitantes do Picapau Amarelo, que “o que existe na imaginação de milhões e milhões de crianças é tão real quanto as páginas deste livro
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Sagrado Quilombo, coração dos Palmares: leituras e leitores
Quilombo Sacred, heart of Palmares: readings and readers
Sagrado Quilombo, Corazón de los Palmares: lecturas y lectores
Rosângela Veiga Júlio Ferreira1
Valéria Cristina Ribeiro Pereira2
Resumo
As reflexões explicitadas nesse texto são provenientes de um projeto desenvolvido ao longo do ano de 2010, em uma
escola da cidade de Juiz de Fora, cujo principal objetivo, depois de conversas com alunos e professores, respaldadas por
noções oriundas da pesquisa etnográfica, firmou-se numa intervenção acerca do trabalho com a oralidade, a leitura, a
escrita e suas implicações. Para tanto, as ações deste projeto previram uma variada gama de atividades que, ao final,
compuseram as seções do segundo volume do almanaque Gentes e Lugares — Sagrado Quilombo, coração dos Palmares: leituras e leitores.
Palavras-chave: leitura; escrita; escola; almanaque.
Abstract
The reflections of this text are explained from a project developed in 2010 at a school in the city of Juiz de Fora, whose
main objective, after talks with students and teachers, supported by concepts derived from research ethnographic, has
established a presentation on the work with oral language, reading, writing and its implications. To do this, the actions of
this project has provided a wide range of activities that ultimately composed of sections of the second volume of People
and Places Almanac — Sacred Heart, Quilombo de Palmares: readings and readers.
Keywords: reading; writing; school; almanac.
Resumo
Las reflexiones de este texto se explican a partir de un proyecto desarrollado durante el año 2010 en una escuela en la
ciudad de Juiz de Fora, cuyo principal objetivo, después de conversaciones con los estudiantes y profesores, con el apoyo
de nociones derivadas de la investigación etnográfica, con domicilio social se ha es una presentación sobre el trabajo
con el lenguaje oral, lectura, escritura y sus implicaciones. Para ello, las acciones de este proyecto ha proporcionado
una amplia gama de actividades que en última instancia, compuesta de las secciones del segundo volumen de la revista
Gentes y lugares — Sagrado Quilombo, Corazón de Palmares: lecturas y lectores.
Palabras clave: lectura; escritura; escuela; revista.
1.Doutora em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atualmente é professora EBTT do colégio de Aplicação João
XXIII - UFJF.
2. Doutora em Letras pela PUC-Rio (2009). Desde 2009 é pesquisadora iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio, atuando em diferentes projetos, tais como a Plataforma PRALER e o Agente de Leitura.
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
Contextualizando...
As reflexões explicitadas nesse texto são provenientes de um projeto desenvolvido ao longo do ano
de 20103, em uma escola da rede municipal de Juiz de Fora, com atendimento da educação infantil
ao nono ano, cujo principal objetivo, depois de conversas com alunos e professores, respaldadas por
noções oriundas da pesquisa etnográfica (GEERTZ, 1987), firmou-se numa intervenção acerca do trabalho com a oralidade, a leitura, a escrita e suas implicações. Para tanto, as ações deste projeto previram uma variada gama de atividades que, ao final, compuseram as seções do segundo volume do
almanaque4 intitulado Gentes e Lugares, com o subtítulo Sagrado Quilombo, coração dos Palmares:
leituras e leitores, publicação distribuída aos estudantes da escola e, em rede, aos seus familiares.
A circulação desse material no entorno e na comunidade nos dá ciência de que o almanaque lançado
para fora da escola poderá contribuir para a formação de leitores, estendendo-a para além do que
prevê o universo das salas de aula. O foco deste texto, no entanto, não incidirá para pensar, ao longe,
o alcance destes outros leitores, atendo-se no que prevemos, delimitado, por hora, pelas práticas
curriculares. Ou seja, falamos daquelas práticas exercitadas no ambiente escolar e de algumas de
suas ramificações, tais como o material didático utilizado. Não se trata de tentar romper, de maneira
inocente, as amarras que entrelaçam o tecido cultural e suas tramas, enredadas e sobrepostas umas
às outras — e o propósito mais amplo dessa pesquisa está no entrelaçar das experiências culturais,
como se depreende na teoria adotada aqui — mas de privilegiar, neste momento, a primeira etapa
da investigação5, que tem o foco sobre as práticas de leitura dentro da escola.
Para tal, num primeiro momento optamos por apresentar ao leitor especificidades da instituição de
pesquisa, problematizando as condições sob as quais o projeto se operacionalizou. Logo em seguida, a fundamentação teórica que subsidiou as reflexões aqui apresentadas. A guisa de conclusão,
possíveis contribuições que esse percurso possa trazer para pensar o papel de uma produção como
o almanaque para a instituição de atitudes pedagógicas no interior de uma escola pública, para se
pensar tempos e espaços de práticas de leitura e escrita.
3. A ideia de implementação do projeto, bem como sua criação e seu processo de desenvolvimento, partiu da articulação entre os
estudos ligados à formação do leitor, realizados anteriormente pela professora Valéria Pereira, e sua percepção, em relação ao cenário
apresentado na referida escola. O trabalho encontrou respaldo na coordenação pedagógica, que, na época, estava sob a responsabilidade da professora Rosângela Veiga. A partir daí, com o apoio da escola, as professoras desenvolveram diferentes atividades ao
longo do ano e a soma destas ações resultaram na organização do segundo volume do Almanaque Gentes e Lugares, que, por sua vez,
conforme já dito, possibilitou as reflexões expostas neste texto.
4. No ano de 2009, em outra escola da rede municipal, localizada no povoado Caeté, zona pertencente ao município de Juiz de Fora,
o Almanaque Gentes e Lugares, v.1, com subtítulo Caeté: cultura e linguagem num passeio de memórias e identidades, foi organizado
pelas professoras Valéria Cristina Ribeiro e Maria Aparecida Danelon Andrade, implementando, para sua composição e finalização, o
mesmo movimento do projeto mencionado na nota anterior. Ambos os trabalhos, em 2009 e 2010, tiveram o auxílio financeiro do
Fundo de Apoio à Pesquisa na Educação Básica (FAPEB) da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora.
5. O segundo momento da investigação apontará os efeitos da publicação sobre os leitores, tanto em contexto escolar, quanto no
entorno ocupado pela comunidade. Parte bastante inicial deste segundo momento, que certamente irá coincidir com os efeitos a
serem percebidos no volume 2, começou a ser delineada no breve relatório de pesquisa, referente ao volume 1, do Almanaque Gentes e Lugares, apresentado pelas professoras Aparecida Danelon e Valéria Pereira à Secretaria de Educação do município, no qual as
professoras destacam parcialmente os efeitos das ações do projeto, nos seguintes aspectos: 1) houve, com o trabalho, a ampliação
das relações entre escola e comunidade, à medida que o mesmo propiciou a entrada, na escola, de artesãos que puderam difundir
seus saberes, como foi o caso da oficina de pintura, ministrada pela Senhora Alcina e, também, dos encontros entre os alunos e os
moradores mais antigos do povoado, durante as entrevistas, e, ainda, na aplicação, aos habitantes do lugar, do questionário sócio
econômico; 2) o projeto constituiu-se num importante instrumento de reconstrução da memória, como se deu, também, através da
análise dos conteúdos das entrevistas dos alunos aplicadas aos moradores mais antigos do povoado, permitindo que os estudantes
(re)construíssem trajetórias, inclusive as de suas famílias; 3)a experiência gerou maior participação das famílias no cotidiano da
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
Observando os estudantes
No cotidiano da escola em questão, por meio da observação do comportamento dos estudantes
constatamos uma forte resistência (consciente e inconsciente), ao tentarem se apropriar do conhecimento, através dos materiais de estudo, além de demonstrarem, também, em outras inúmeras
situações, uma significativa falta de interesse em relação a este mesmo conhecimento. Lembremos
que esta constatação é consenso entre todos os envolvidos6.
Ao tentarmos fazer avançar formas de leitura em suas amplas dimensões, nós, professores, víamonos cercados por questões de difícil entendimento, especialmente no que concerne à formação de
leitores/escritores. Assim, mais uma vez constatamos um comprometimento no que diz respeito à
construção do conhecimento e à formação para a cidadania, já que a leitura e a escrita, suas formas,
e seus usos, feitos com criticidade, não despontam da maneira desejada. Os estudantes ainda continuam com poucos instrumentos para o exercício dos elementos citados.
Mesmo, muitas vezes, lançando mão de práticas pedagógicas menos tradicionalistas, extrapolando
livros didáticos e outros materiais mais prontos e acabados, observamos que essas estratégias ainda
não se mostravam suficientes para auxiliarmos estes estudantes na superação de certa “falta de
sentido” em relação aos saberes que circulam no universo escolar.
Conversando com os professores
A outra face da mesma moeda denunciava a necessidade de um trabalho inicial que explicitasse as
idéias e os conceitos evidenciados no projeto, para que o corpo docente compreendesse suas possibilidades de encaixe no cotidiano escolar. As opções para a condução das atividades levaram-nos às
primeiras conversas com os professores e, a partir delas, foi possível verificar pontos relevantes para
a superação do estado de coisas constatado. Dentre tantas afirmações dos professores, destacamos
suas conclusões que dizem respeito à percepção da imensa falta de interesse de aprendizado, mostrada pelos estudantes; a desconsideração, pela escola, das vivências trazidas pelos estudantes; a
preocupação em ensinar, fazer o “conteúdo” chegar aos estudantes, mesmo em condições bastante
adversas (algumas sob o rótulo de indisciplina); a angústia, quando deparam com idéias excludentes: ou ministram conteúdo ou ainda atentam para afetos e experiências. Destacamos, sobretudo,
nossa percepção para a quase total ausência de reflexão em torno de suas próprias experiências
culturais por parte dos professores, tanto quanto sobre as dos estudantes e, por consequência, o
escola, conforme pudemos ver, por exemplo, na aplicação dos questionários feita pelos estudantes em seu núcleo familiar, buscando
entrelaçar o saber escolar e o conhecimento que circula extra-muros escolares, ligados à religião, às crenças, à medicina popular e
outros; tal prática colocou a família como parte integrante do aprendizado, já que esta se relacionou diretamente com os conteúdos,
tornando-se indissociável dos mesmos; 4) a prática contribuiu para a formação de leitores/ escritores numa via de mão dupla, já que,
em todas as etapas de desenvolvimento destas práticas, os estudantes escreveram, leram e reescreveram seus textos, atentando
para o fato de que estes escritos gerariam partes do livro a ser publicado; 5) o item anterior ficou ampliado, após a publicação do
almanaque, em abril de 2010, com o fomento à prática da leitura, no contexto em questão, com a distribuição do livro produzido no
diálogo entre comunidade e escola e, posteriormente, no uso do mesmo em outras situações, como, por exemplo, como material
didático para as aulas ou leitura, do mesmo, em casa; 6) por fim, é preciso mencionar que, para muitas etapas do projeto, foram criados horários extras, em que os estudantes voltaram à escola, em turnos diferentes dos seus, o que permitiu verificar, muitas vezes, a
sua chegada com mais de meia-hora de antecedência, mostrando, assim, o interesse pelo trabalho.
6. A visão dos estudantes acerca das práticas de leitura na escola e a representação, pela linguagem, de elementos provenientes de
seu universo cultural está disponível em outro artigo, intitulado “Alguns dados para o subsídio a práticas leitoras na escola: um círculo
de leitura.”
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prejuízo do que diz respeito ao reconhecimento e acolhimento das ramificações que envolvem as
vivências, amarradas aos conceitos de subjetividade e intersubjetividade.
Outras inquietações dos professores revelaram a oposição entre o ensino cidadão e o ensino formal,
deixando clara a idéia de que, para boa parte dos professores, o ensino cidadão pouco tem a oferecer àqueles que necessitam entrar no mercado de trabalho, enfrentar concursos e vestibulares.
Pode-se depreender que é bastante nítida, ainda, a deficiente formação continuada oferecida aos
professores, observando as noções dicotômicas tão arraigadas dentro da escola. Tal processo mostra a dissonância em relação a pesquisas mais recentes, de cujas afirmações depreende-se que os
saberes encontram-se em diálogo no tecido cultural (CHARTIER, 2002), o que nos faz observar uma
tendência à desconstrução dessas dicotomias.
Retomando o percurso de desenvolvimento do almanaque, foi perceptível que os professores, de
início, desconheciam os caminhos que os levariam à orientação das atividades geradoras da publicação do livro, mostrando a desconexão entre a escola e as práticas da leitura/escrita, oriundas das
experiências dos estudantes.
Tentando desconstruir a visão cristalizada apresentada pelo corpo docente, dentre outros exemplos,
utilizamos um que, embora nos parecesse óbvio, firmou-se como ponte para a conexão do que era
pretendido. Assim, citamos, durante essas conversas, a adequação dos recursos linguísticos para as
construções de tipos textuais, exemplificando com as narrativas, que, certamente, seriam tipos textuais que compareceriam, frequentemente, ao longo das páginas, dada à proposta do trabalho: não se
poderia publicar o texto de uma “história de vida” sem a coerência necessária a este gênero: sequência
de fatos, manutenção de tempos verbais adequados, localização espaço-temporal, entre outros.
Prosseguindo nas conversas com os professores, enfatizamos que o fato de olharmos para fora dos
muros escolares, nem de longe, significa abandonar os conteúdos transmitidos pela escola, mas significa, sim, mudar os percursos empreendidos no cotidiano escolar para fazê-los chegar aos sujeitos
que por lá transitam.
A partir da maior compreensão pelo corpo docente da tentativa do projeto para articular saberes
escolares e universos extra-classe, tornou-se consenso entre os envolvidos que, para a elaboração
do almanaque, seria necessário lançar mão do conhecimento proveniente de todas as disciplinas
escolares, trabalhando em cooperação. Noutras palavras, era preciso instituir percursos para pensar
e escrever sobre a memória de um lugar, em diálogo com experiências singulares: significava romper
com as amarras conteudistas pensadas apenas no interior da escola.
Para tal, em primeira instância, o ler e o escrever seriam o veículo para a transmissão desses conhecimentos, já que os saberes escolares, agregados aos saberes da comunidade, estariam registrados
em diferentes gêneros textuais no almanaque. Essa constatação nos levou a ampliar as possibilidades das ações e as teorias de respaldo.
E, assim, saltamos para o campo trans/interdisciplinar, um dos inevitáveis percursos para o trabalho
proposto. A âncora para a compreensão desta parte do projeto constitui-se como pano de fundo
para este texto, conforme explicitado na sequência, quando trataremos da articulação entre as constatações provenientes das ações do trabalho e o escopo teórico deste campo trans/interdisciplinar.
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Teorizando...
A busca por instituir outras práticas curriculares de leitura no ambiente da escola mencionada objetivou o alcance de novas possibilidades para reflexões sobre os sentidos atribuídos à leitura, em
perspectivas múltiplas, através da imersão no contexto dos sujeitos e de suas leituras, analisando
implicações e possíveis desdobramentos para uma prática de leitura/escrita mais eficiente na escola.
Para nós, como para autores oriundos do campo da antropologia da educação, o que se constitui um objeto dentro do enfoque etnográfico é partir de questões e perguntas que são desentranhadas da teoria “da
literatura para encarná-las em indivíduos, já não mais in abstracto, mas, como Malinowski dizia no princípio
deste século, formulando-as, de maneira concreta, a indivíduos de carne e osso” (DAUSTER, 1994:59).
E, nesse sentido, todo o movimento empreendido procurou compreender diálogos consubstanciados pela interrelação entre saberes e cultura como forma de construção de sentidos para os textos
lidos, ouvidos, sentidos.
Dessa forma, o entendimento acerca das teorias que emanam do campo da formação do leitor,
entrelaçadas aos estudos sobre cultura e ao conceito de letramento, com suas implicações, tais
como o papel relevante atribuído às práticas orais por estes campos de pesquisa, deixou-nos constatar que, na escola em questão, fazia-se necessária maior intervenção, inclusive de natureza interdisciplinar, para que a palavra se fizesse (re)valorizada. Isso significa dizer que a palavra deveria
abandonar a automação do cotidiano escolar, trazendo para ele usos diversos e outros sentidos,
buscando aqueles presentes na comunidade e, da mesma forma, permitindo que a escola devolvesse à comunidade o diálogo entre os saberes.
Assim, para a compreensão, acrescentamos à ideia de leitura aqui adotada o seguinte fragmento:
[...] precisamos dilatar sobremaneira nosso conceito de leitura, expandindo esse conceito do leitor do
livro para o leitor da imagem e desta para o leitor das formas híbridas de signos e processos de linguagem,
incluindo nessas formas até mesmo o leitor da cidade, e o espectador de cinema, TV, vídeo /.../ visto que
as habilidades perceptivas e cognitivas que eles desenvolvem nos ajudam a compreender o perfil do leitor
que navega pelas infovias do ciberespaço, povoadas de imagens, sinais, mapas, rotas, luzes, pistas, palavras, textos e sons (SANTAELLA, 2002:31).
Na área que respalda o ensino de língua, pesquisadores debruçam-se sobre temas como letramento, alfabetização, leitura e escrita, buscando respostas para minimizar os efeitos catastróficos decorrentes dos déficits advindos destes mesmos temas.
Valéria Pereira (PEREIRA, 2012), citando Corrêa, em Signorini (SIGNORINI, 2008) e outros,
pontua, em seus estudos, aspectos importantes arrolados no cerne das investigações, como podemos ver a seguir:
Na esteira das discussões sobre letramento, a partir dos anos 80, respaldadas pela antropologia, psicologia,
etnografia, história social e cultural, encontramos forte disposição para um radical esgarçamento das rígidas
fronteiras que (como alguns ainda acreditam) separam o oral e o escrito. A coletânea organizada por Inês
Signorini (SIGNORINI, 2008), Investigando a relação Oral/ Escrito e as Teorias do Letramento, toca em pontos
fulcrais para as questões que levantamos, ao tentar compreender, através da leitura/escrita, o universo dos
leitores em questão. Por isso, faz-se pertinente, trazermos a noção de letramento, defendida por Corrêa
(SIGNORINI, 2008), situando-o para além do que supõem as discussões de Magda Soares (SOARES, 2006),
que, mesmo flexibilizando o conceito de letramento em graus ou níveis, tem como marco a alfabetização
e a inserção dos indivíduos em práticas de leitura e escrita diretas ou indiretas. Avançando no percurso, o
letramento, para o pesquisador, é algo que deve ser pensado não a partir da alfabetização, mas de uma situ-
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ação anterior a ela, em que o indivíduo, podendo não estar inserido em práticas mesmo indiretas de leitura
e escrita, ajude a formar, através dos textos orais, a memória cultural de um povo. (PEREIRA; PONCIANO,
2012:141)
No caminho explicitado pelo recorte, afirmamos que a memória tem o poder de remeter o indivíduo
para o passado e construir, com ele, a história de gentes e lugares. Mas esta memória não opera dissociada de outros elementos contidos no tecido cultural, ao contrário, a memória do indivíduo depende
do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão,
enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo (BOSI, 1979).
Assim, o ato de mediar aprendizagens, ligado à afirmação anterior, ganha dimensões mais amplas e condizentes com as idéias de ensino expostas nos Parâmetros Curriculares Nacionais: “o conhecimento não
é algo situado fora do indivíduo[...]. É, antes de mais nada, uma construção histórica e social, na qual
interferem fatores de ordem antropológica, cultural e psicológica, entre outros” (BRASIL, 1998:71).
Também a alfabetização deve ser repensada à luz das práticas culturais, que incluam formas de pensamento e comportamentos em diferentes vivências, desde, por exemplo, o brincar - as brincadeiras são
também representações da cultura - até o envolvimento com as questões de leitura e escrita escolares.
Retomando o nível mais inicial da leitura e da escrita na escola, destacamos, conforme os pensamentos de Emília Ferreiro (FERREIRO, 2001), que a indagação sobre a natureza e função das formas
de escrita começa em contextos reais, nos quais se recebem as mais variadas informações. Numa
perspectiva de entrelaçamento com o projeto que deu origem ao almanaque que subsidia as colocações deste texto e com o objetivo de proporcionar o circular desses conceitos de forma prática no
contexto da instituição em questão, constituiu-se num outro desafio, olhar, de forma mais cuidadosa
e ao mesmo tempo equânime para as turmas em processo de alfabetização dessa escola municipal.
Tal necessidade nasce de um mapeamento dos principais problemas dessa instituição que acaba
por diagnosticar que residiria exatamente ali um significativo entrave para pensar práticas de leitura e
escrita no ensino fundamental7. Munidos desses dados e dessas concepções, buscamos, por meio de
um projeto de intervenção, empreender movimentos paralelos aos que se consolidavam nessa instituição de ensino.
Foi o entrecruzar de ideias, ideais, desejos e vontades de modificar a realidade em que estávamos
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. Paralelo ao movimento empreendido na elaboração do almanaque, a escola sediou outros projetos, dentre eles o intitulado “Desafios do Ato de Alfabetizar: como formar sujeitos leitores?” financiado pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, aprovado e
premiado devido à relevância social do tema. Este projeto possuía três frentes de trabalhos: a inserção no campo investigativo, estudos sobre a teoria para sustentar as ações no campo, e produções acadêmicas que divulgassem as investigações. Na ocasião contava
com aproximadamente quinze membros, dentre eles pesquisadores bolsistas, voluntários, e tinha, nos papéis de orientadora e coorientadora, as autoras deste texto. O objetivo principal das ações deste projeto pautava-se na possibilidade de repensar as práticas
alfabetizadoras instituídas nessa escola municipal, a qual sustentava recorrente quadro de afastamento de práticas significativas de
leitura no 2º ano do ensino fundamental, o que, por sua vez, repercutiu no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica devido
aos índices de evasão e repetência. Uma das ações que interpelou toda a comunidade escolar viabilizada pelos projetos que ali agiam
era a de como seria possível pensar em reverter qualquer índice se os estudantes não tem acesso a leitura e as práticas escolares são
carentes de infra-estrutura para a operacionalização do contato com a literatura. Como proposta do governo Federal a escola recebeu
uma verba do PDE-Escola, com o objetivo de estabelecer ações estratégicas que revertessem o quadro dessa escola, o que gerou,
dentre outras ações de cunho pedagógico, a implementação de uma biblioteca em cada sala com cerca de sessenta livros num espaço
especial. Os profissionais deram suporte na confecção dos cadernos de controle, na organização do acervo para as turmas do 1º ao 9º
ano, em prol do incentivo e acesso a leitura, uma vez que a instituição estava a mais de três anos com a biblioteca desativada e sem
um profissional que respondesse oficialmente por esse lugar de leitura. Esse quadro de abandono atualmente foi revertido e esses
estudantes, além da biblioteca de sala, realizam encontros semanais com os professores que respondem pela biblioteca e têm acesso
ao acervo da instituição. Trata-se de um resultado oriundo de uma ação coletiva que envolveu gestores e professores.
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inseridas que permitiu vislumbrar possíveis avanços, dos quais pudessem ser compartilhados por
meio desse relato de pesquisa, para que outros possam instituir práticas nada utópicas, ou inéditas,
mas que verdadeiramente façam sentido.
Avançando no percurso, foi possível então pensar em formas mais abrangentes de aprendizagem,
no que se refere à construção do conhecimento para os sujeitos envolvidos no processo, especialmente, a formação do sujeito-leitor, já que a leitura está aqui concebida como uma prática cultural,
em consonância com o historiador cultural Roger Chartier (CHARTIER, 2002), conforme se verá mais
adiante, e, portanto, intimamente ligada ao contexto em que se desenvolve.
Em diálogo com o campo da história, pensar uma escola e seus sujeitos inseridos num tempo datado
leva-nos à certeza de que é preciso fazer os saberes circularem, de dentro para fora da escola e vice-versa.
Neste sentido, Bittencourt afirma:
A história do “lugar” como objeto de estudo ganha, necessariamente, contornos temporais e espaciais. Não
se trata, portanto, de propor conteúdos escolares da história local, de entendê-los apenas na história do
presente ou de determinado passado, mas de procurar identificar a dinâmica do lugar, as transformações do
espaço, e articular esse processo às relações externas, a outros “lugares” (BITTENCOURT, 2004:172).
Desdobrando esta afirmação, relacionada aqui ao saber dos historiadores, podemos alcançar outras
implicações e aplicar o entendimento, a identificação e a articulação, aos quais se refere Bittencourt
(2004), a todo o processo de aquisição do conhecimento, no contexto escolar e, conforme já dito,
explorar situações que viabilizem o diálogo entre diferentes culturas.
Neste ponto, tornam-se pertinentes as ideias do historiador cultural Roger Chartier (CHARTIER,
2002), já bastante (re)lidas em contexto brasileiro, inclusive em pesquisas mais recentes cujo tema
de estudo é a leitura/escrita conforme apresentadas por Pereira:
[...] torna-se importante trazer o pensamento do historiador Roger Chartier (1990) já que a leitura
é concebida, por ele, como uma prática cultural. Isto implica fazer emergir três categorias fundamentais
que atuam imbricadas horizontalmente no campo da cultura e implica tentar perceber como estas podem
ser aproveitadas para o entendimento da construção de um sujeito, quando concretiza o ato de ler; são
elas: as práticas, as representações e as apropriações. Podemos entender a primeira como todo um conjunto de elementos de formas, simbólicas ou não, que constituem as configurações sociais e conceituais
próprias de um tempo ou de um espaço. Já a segunda pode ser elaborada a partir da idéia que percebe
as maneiras de um sujeito situar-se em determinadas comunidades histórica e socialmente variáveis. Por
último, as apropriações podem ser entendidas como as maneiras distintas pelas quais um sujeito pode
apossar-se dos usos e diferenciações de significados, ou seja, maneiras de produzir ressignificações. Deste
modo, havemos de perceber que a proposta de Chartier no que se refere à História Cultural não pode
apresentar uma definição fechada, mas o olhar sempre voltado para as práticas e representações; isto
significa uma constante observação do universo da cultura no qual tais práticas estão inseridas e, por conseqüência, o que elas representam, não nos esquecendo de que as categorias citadas estão operando em
constante tensão (PEREIRA, 2009:79).
Entendendo desta forma as práticas de leitura, vemos que a escola pode alargar seu campo de atuação, trazendo para a articulação com seus conteúdos, elementos do seu entorno, através das práticas dos sujeitos neles envolvidos. É o que reforça o entrelaçamento dos diálogos a seguir, ao propor
alicerces para pensar a leitura e escrita envolvidas pelas tramas da cultura.
Trazendo Roger Chartier, explicitamos: “A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal
objecto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade
social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 2002:17). Na linha deste pensador, vemos que
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as ideias expostas respaldam-se e nos convidam a colocá-las em diálogo com as práticas docentes,
adotando, paradoxalmente, uma “definição” aberta para guiar tais práticas, já que o historiador
ancora suas afirmações na observação das práticas e relações sociais. Estão as ideias, desta forma,
influenciadas, dinamicamente, pela percepção dos processos culturais, e, portanto, impulsionam a
trabalhar na perspectiva da amplidão, sem reducionismos, utilizando, para isto, de pontos de confluência entre diferentes disciplinas (PEREIRA, 2009:79).
Sendo assim, a História cultural é importante para pensarmos a leitura e a aquisição do conhecimento, porque, da forma como Chartier (CHARTIER, 2002) a apresenta, podemos estabelecer uma
ponte que nos leva à compreensão de um sujeito cuja construção da leitura faz-se, através de um
ato concreto, envolvido em práticas e representações culturais. Estas podem se mostrar, através
dos elementos estéticos produzidos pelos indivíduos de determinado contexto, de suas crenças,
de seu discurso, entre outros. Isto considerando, chegamos, então, a um sujeito de carne e osso,
ultrapassando uma entidade teórica. A leitura e a construção do conhecimento, assim entendidos,
levam-nos a um ponto em que as categorias de percepção dos atos de ler, em amplas dimensões,
somente podem ser aplicadas em superfícies flutuantes, cujos deslocamentos dão-se, a partir das
posições ocupadas pelos sujeitos que concretizam tais atos e que também são produtores de outros
discursos. Conforme acredita Chartier (CHARTIER, 2002), “as inteligências não são desencarnadas”
(PEREIRA, 2009:80).
Assim, buscamos entrelaçar os elementos constitutivos do processo de construção dos sujeitos,
que, por consequência, estão ligados à construção do conhecimento, ou seja: a cultura, a linguagem,
a identidade, a memória e os afetos. Teorizando mais: a (trans/inter) disciplinaridade
Assumindo os conceitos e ideias aqui alocados, estamos cientes dos redimensionamentos aos quais
estamos lançados. Sendo assim, torna-se impossível descartar o movimento (trans/inter) disciplinar,
necessário ao desenvolvimento do trabalho proposto, por sua natureza plural.
A demanda é real por um novo enfoque - e nada é tão simples no nosso cotidiano que possa ser tratado
com abordagem linear ou unilateral, isto é, que não esteja passível de uma consideração plural (...) A
necessidade inarredável de interpretar o mundo exige o alargamento mesmo da linguagem que o organiza. O caráter plural das abordagens já não pode desconsiderar as implicações entre diferentes sistemas
de conhecimento e elaborar um entendimento, que, sem ser reducionista, conjugue alguns princípios. A
questão passa a se impor, então, epistemologicamente (YUNES, 2002:80-81).
A partir da afirmação anterior, vemos que mais um fio pode ser puxado, indicando um caminho de
valorização das práticas de oralidade e escrita, em contexto de produção e recepção, uma vez que
acreditamos na concepção de que não se pode ensinar à criança, através de explicações artificiais,
por memorização compulsiva e repetição apenas (OLIVEIRA, 2006).
Neste sentido, trazemos para o diálogo a ideia de Kleiman e Moraes (KLEIMAN; MORAES, 2003), que
propõem uma maneira de pensar o ensino da escrita (e leitura) por meio da transversalidade curricular, em forma de uma espiral cumulativa de conhecimentos. As autoras mostram a possibilidade
de professores de diferentes disciplinas trazerem seus olhares para essa espiral, tecendo redes entre
as disciplinas a partir de diferentes ângulos. Seria um entrecruzar de informações nos quais Língua
Portuguesa, Matemática, História, Geografia, Educação Física, Artes e outras abririam possibilidades
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de relações, quase infinitas, com a diversidade de contextos em que os textos que por elas transitam
possam ser lidos e ressignificados (FERREIRA et al., 2010).
A decisão de pensar o ensino nessa perspectiva constituiu-se de forma processual na escola municipal que abrigou a realização dos projetos anteriormente citados, em função da necessidade de
se estabelecer diálogos com a situação de produção do conhecimento e recepção dos textos que
o clarificam ou o negam. Portanto a proposta sustentou-se na perspectiva de estruturação de um
currículo escolar que favorecesse o entendimento do mundo de forma não fragmentada. Por hora
acreditamos que os projetos interdisciplinares e transversais romperam, dessa forma, com a fragmentação, ao mesmo tempo em que puderam manter os limites epistemológicos de cada disciplina.
Este procedimento pode ganhar corpo, de acordo com os estudos contemporâneos sobre o ensino
por meio do trabalho com gêneros textuais, aqui concebidos como “textos materializados em nossa
vida diária e que apresentam características sociocomunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica” (MARCUSCHI, 2002:20).
Em confluência com essa discussão Scheneuwly e Dolz (SCHENEUWLY; DOLZ, 2004) defendem que
é por meio do contato com gêneros textuais num processo de encadeamento de seqüências didáticas que as práticas de linguagem ganham sentido para os alunos.
Desse modo, o que poderíamos fazer para que os estudantes se apropriassem das noções, das técnicas e dos instrumentos necessários ao desenvolvimento de suas capacidades de leitura e escrita
em situações diversas? Procuramos, através do almanaque, criar contextos de leitura e de produção
precisos, para efetivar atividades ou exercícios múltiplos e variados por meio de uma sequência
didática, aqui concebida como um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um ou mais gêneros textuais (SCHENEUWLY; DOLZ, 2004).
Um trabalho encadeado em espiral que teve como finalidade ajudar o estudante a dominar melhor
um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, ler ou escrever de maneira mais adequada numa dada
conjuntura de comunicação. Esse procedimento pode se consolidar por meio da apresentação da
situação evidenciada no texto, possibilitando que os alunos compreendessem objetivos e finalidades de múltiplas comunicações, evidenciando como podem agir como leitores e escritores proficientes e, simultaneamente, críticos.
Ler e escrever diferentes gêneros textuais de maneira funcional baliza uma objetividade para pensar
atividades que vão além do ensino da língua, e possibilita pensar interdisciplinarmente. Permitindo,
ainda, compreender as linguagens alternativas presentes num poema, num texto de opinião, num
romance, num texto de caráter científico, em fontes históricas que abrigam os espaços familiares e
outras instâncias, no meio virtual, no geográfico, dentre inúmeros outros. Assim sendo, o que vem
assegurando essa formação não é a esfera alienante de dissecação de informações sobre a forma,
mas, sim, o encontro com sentidos possíveis e com os mecanismos linguísticos usados pelos autores,
que acionam, interdisciplinarmente, os conhecimentos das diferentes áreas.
Estas situações de ensino foram evidenciadas na instituição investigada e assinalaram a necessidade
de uma sistematização cuidadosa, que oferecesse aos estudantes ao mesmo tempo autonomia de
pensamento e avanços cognitivos mediados por situações de desafio para pensar a intencionalidade
e o conteúdo dos textos de maneira interdisciplinar.
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De certa forma, trabalhar numa perspectiva interdisciplinar constituiu-se um desafio a ser vencido
pelos educadores, pois acreditávamos que pensar em atividades interdisciplinares seria um movimento capaz de propiciar aos estudantes dessa esfera formativa conhecimentos que fossem além
do ato de ler e escrever diferentes gêneros textuais. Noutras palavras, um desafio cotidiano que
encontra reflexos e refrações em práticas pedagógicas múltiplas.
O segundo volume do Almanaque gentes e lugares
Por todo o percurso empreendido, a idéia da criação de um almanaque, vislumbrado como gênero
capaz de acolher uma vasta gama de outros gêneros discursivos disponíveis no referido contexto, foi
adotada pelos motivos que passamos a expor. De acordo com a compreensão acerca dos gêneros do
discurso, disponível em Bakhtin, segundo Brait (BRAIT, 2000), em diálogo com outros autores, como
Marcuschi (MARCUSCHI, 2008), notamos que o almanaque é um gênero que aceita sofrer ajustes, em consonância com os contextos por ele contemplados, suportando a “relativa estabilidade”
necessária às condições e usos da linguagem no dado contexto.
[...] os almanaques evoluem de acordo com as necessidades das sociedades nas quais eles circulam. Isso
também pode ser o motivo de sua relativa estabilidade como gênero discursivo, ou seja, sua composição
interna vai variar, podendo conter gêneros internos diversos, desde piadas até marcações astrológicas
para navegantes, para fazer jus à sua existência em dado momento histórico (2008:266).
Interessante perceber a expansão da noção de gênero discursivo para além dos textos escritos,
como se depreende da referência a “marcações astrológicas”, o que nos permite buscar subsídio no
campo da semiótica (SANTAELLA, 2002), para tratar o signo em dimensão ampliada, extrapolando o
signo verbal, já que também uma grande quantidade de imagens, tais como fotografias, gráficos e
desenhos, foi produzida nas atividades da escola, a fim de compor as seções do almanaque.
As seções do almanaque procuraram incluir leitores, através da diversidade de gêneros disponível,
buscando refletir as produções do tecido sociocultural. Assim, acreditamos que muitos perfis de
leitores encontrarão possibilidade de interação com os textos lá dispostos, tais como aparecem nas
seções: Uma história do bairro, “O eu profundo e os outros eus”, Aleijadinho, Amor, O meio ambiente,
As benzedeiras, Receitas, Chás, A religiosidade, Conversa de língua solta: o latim e o português, Jogos e
brincadeiras, A escola Municipal, Quilombo e Zumbi, Vivências Quilombenses, Histórias que o povo conta, Muitas Marias, dentre outras.
Além de se tornar o registro dos dados colhidos por alunos e professores em todas as etapas de
desenvolvimento do projeto, o almanaque carrega, depois, para outros leitores, uma rede de textos
imbricados no tecido sociocultural, iniciada na produção dos materiais para o almanaque, passando
por sua publicação e recepção e para a qual não se pode prever interrupções.
Acrescentamos que os signos, ao serem criados e traduzidos pelos membros da comunidade, vivenciando todo o ambiente cultural, formadores do almanaque, expressos através das linguagens da
imagem e da palavra impressa, contribuirão, a posteriori, para ampliar o repertório de leitura. E,
ainda, contribuirão para o fortalecimento da memória individual e coletiva daqueles que tiverem
acesso ao livro, além de funcionar como espelho das ações de toda a comunidade, propiciando aos
envolvidos verem-se como atores no desenvolvimento do processo de construção do conhecimento.
Apontando leituras mais imediatas, vemos que, a partir da diversidade de gêneros textuais que
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abarcam o universo no qual os sujeitos estão inseridos, mas lançando-se, também, para além deste,
pela produção e recepção dos textos, o Almanaque Gentes e Lugares irá se constituir num importante veículo de informações sobre o bairro e a escola.
Indo além, o desenvolvimento do projeto e a publicação vão ao encontro de algumas das inquietações mencionadas e passam a considerar as vivências dos alunos, amarrando-as às aprendizagens dentro da escola. Estas experiências contextuais estendem-se para soluções de valorização
do ambiente, possibilitando destinar a publicação como opção de material de uso didático, mais
próximo das experiências dos atores sociais.
Folheando o almanaque, observamos que, para dialogar com os textos imagéticos e escritos produzidos pelos sujeitos da escola, estão disponibilizados, também, textos considerados canônicos, intertextualizados, a partir de seus temas, procurando facilitar a entrada de leitores mais desavisados no
diálogo com as chamadas “altas literaturas”. Tome-se como exemplo, a organização da seção Amor,
em que dialogam os fragmentos de Amor, um conto de Clarice Lispector, de Lembranças amorosas,
do contador de histórias, Francisco Gregório Filho, do romance Primeiro Amor, de Samuel Becket,
e da peça Romeu e Julieta, de Shakespeare; o poema Soneto de Fidelidade, de Vinícius de Moraes e
a canção Quando te vi, de Beto Guedes; vários poemas produzidos pelos estudantes do sexto ano;
além de imagens como o quadro O beijo, do pintor Francesco Hayes, junto a desenhos, tais como
corações estilizados e casais apaixonados, feitos pelos estudantes.
A inclusão e a disposição dos textos, auxiliada pelo projeto gráfico, evidencia o esforço de produção
de um material polifônico e dialógico, procurando costurar as amarras que compõem o dinamismo
da experiência humana, convertida em linguagem, seus usos e contextos. E, dessa forma, estão pensadas todas as outras seções do almanaque.
Conclusões transitórias
Com base em todos os aspectos apresentados no corpo deste texto, cabe mencionar que o reconhecimento da diversidade e do valor cultural das manifestações da comunidade pela escola faz parte
do processo de inclusão social. Identificar e divulgar os saberes do entorno da escola e permitir o
diálogo com os saberes escolares significa favorecer e criar mecanismos que contribuam para inclusão dos mesmos nos processos educativos formais. Compreendemos que a valorização da cultura
local propicia ressignificação do contexto que, ainda muitas vezes, vê-se desqualificado pelos livros
didáticos e currículos mais tradicionais. Nesta realidade, os sujeitos passam a não reconhecer o seu
cotidiano e a negar o ambiente em que vivem.
Pensando assim, foi possível verificar a efetiva contribuição do olhar para a cultura local com vistas
ao enriquecimento curricular, evidenciado por meio de uma perspectiva de diálogo entre os campos
de conhecimento aqui chamado de ação trans/interdisciplinar, promovendo espaços de investigação, criação, educação, lazer e aprendizagem no ambiente da escola.
Nesse percurso verificamos, sobretudo, que o projeto e a publicação possibilitaram o conhecimento
e a valorização dos sentidos implícitos nos saberes, crenças, brinquedos e brincadeiras, remédios
caseiros, “causos”, afetos e outros elementos presentes na comunidade do bairro, em que se situa
a escola, dentre outros signos importantes para aqueles indivíduos. Com este trabalho, foi possível
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despertar o interesse dos estudantes para os repertórios culturais de sua comunidade, visando à
preservação da sua memória, requalificando as relações humanas. Nesse ínterim, foram oferecidas
fontes outras de linguagens, possibilitando reflexões sobre a multidiversidade e multiplicidade da
nossa cultura, além de, diretamente, haver interessante contribuição para a formação de leitores, ao
oferecermos, como resultado do trabalho de todos, o objeto livro.
Finalmente, o ponto de partida gerador das inquietações aqui explicitadas não apresenta novidades, dentro do panorama da maior parte das escolas brasileiras. Entretanto, acreditamos no avanço
profissional de todos os envolvidos no projeto, os quais tornaram viável a execução deste trabalho
de diálogo entre leituras, cultura, saberes, linguagens, enfim, dos elementos que fazem parte da
construção de sujeitos-leitores plenos e que, pelas palavras andantes do segundo volume do almanaque, serão repassados a outros.
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RELATO DE EXPERIÊNCIA
PROFISSIONAL
Na pista dos leitores
On the track of reader
En la pista de los lectores
Rosane de Bastos Pereira1
Resumo
Este texto é um relato de experiência como Visiting Scholar na Faculdade de Educação da Universidade de Cambridge
e no Cambridge-Homerton Research and Teaching Centre for Children’s Literature, no Reino Unido, onde estive por um
ano, de julho de 2011 a julho de 2012, como parte do Programa Institucional de Bolsas de Doutorado Sanduíche no
Exterior (PDSE), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Ministério da Educação.
Como doutoranda, estive ligada ao grupo “Pedagogy, Language, Arts and Culture in Education” (PLACE), coordenado
pela professora Maria Nikolajeva.
Palavras-chave: escola pública; programas de leitura; políticas públicas.
Abstract
This text is a report about the experience as a Visiting Scholar at the Faculty of Education - University of Cambridge and
the Cambridge-Homerton Research and Teaching Centre for Children’s Literature, in the United Kingdom, where I spent
a year, from July 2011 to July 2012, as a part of the Programa Institucional de Bolsas de Doutorado Sanduíche no Exterior – PDSE Programme – from CAPES Foundation – Ministry of Education of Brazil. I was hosted by the group “Pedagogy,
Language, Arts and Culture in Education” (PLACE), chaired by the Professor Maria Nikolajeva.
Keywords: state school; reading programmes; state policies.
Resumen
Este texto es un relato de experiencia como Visiting Scholar en la Facultad de Educación de la Universidad de Cambridge
y el Cambridge-Homerton Research and Teaching Centre for Children’s Literature, Reino Unido, donde estuve durante
un año, Julio 2011 hasta Julio 2012, como parte del Programa Institucional de Bolsas de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE) de la Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Ministério de la Educación de
Brasil. Estuve en el grupo “Pedagogy, Language, Arts and Culture in Education” (PLACE), coordinado por la professora
Maria Nikolajeva.
Palabras clave: escuela pública; programas de lectura; políticas públicas.
1. Doutora pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no Grupo de Estudo e Pesquisa em Ciência e
Ensino (GepCE) da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob a orientação do Prof. Dr. Pedro da
Cunha Pinto Neto. Contato: [email protected]
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
Antes de entrar nos detalhes sobre o período em que fui buscar dados sobre as políticas de leitura
no Reino Unido, e o que encontrei por lá, vou fazer como o rei de Alice no País das Maravilhas sugere
ao Coelho Branco, ou seja, começar pelo começo2. E o início de tudo tem a ver com o fascínio que
os livros exercem sobre mim. E também porque, como jornalista, ex-professora primária e professora universitária em processo de formação, a leitura está sempre presente no meu dia-a-dia, o que
reforça o interesse por indagar sobre o livro e leitura nas escolas públicas brasileiras.
Surgiu, então, em 2008, em conversas com o meu orientador, Pedro da Cunha Pinto Neto, professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a ideia de analisar o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), concebido em 1997 pelo Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE), em parceria com a Secretaria de Educação Básica (SEB) do
Ministério da Educação, com a intenção de criar estratégias de leitura de livros na Educação Infantil,
Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos. Que sentido teriam os acervos
distribuídos a todas as escolas públicas nos mais distintos rincões do Brasil, cadastradas pelo censo
escolar anual realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(Inep)? Essa era uma das indagações iniciais.
As coleções do PNBE dos alunos, do PNBE do Professor, PNBE Periódicos e PNBE Temático são compostas de uma variedade de títulos e gêneros: poesia, quadrinhos, teatro, contos, ensaios, textos
de tradição popular, biografias, antologias, romances, ensaios, memórias, obras clássicas e revistas
– distribuídas desde 2010 –, sendo que todo o material enviado às escolas, como livros, literatura, pesquisa e trabalhos de referência, é avaliado e selecionado por professores universitários com
experiência em educação básica e formação de professores, cujo processo é acompanhado e supervisionado por uma Comissão Técnica instituída por portaria do Ministro da Educação.
Desde o início da pesquisa, em 2008, no Grupo de Estudo e Pesquisa em Ciência e Ensino (GepCE)
da Faculdade de Educação da Unicamp, sob a orientação do Prof. Dr. Pedro da Cunha Pinto Neto, a
realidade se mostrou tal qual ela é, o que significa ainda ter que se deparar com a estagnação do
processo de incentivo à leitura no País. “Quanto mais cedo for esse momento, mais a gente começa
a refletir sobre a experiência e mais descobre o valor dos livros” (FREIRE, 2003:51). Várias perguntas
brotam sobre o que impede a leitura de fluir nas escolas públicas brasileiras. Que poder é esse que
paralisa o sistema educacional? Ele acontece por acaso? Ele é pensado, planejado para não fluir? Se
os alunos de escola pública, que são os filhos das classes pobres, começarem a receber uma educação de qualidade, isso ameaçaria o sistema? Por que, então, enviar os livros às escolas se não há
uma política de estímulo à leitura que realmente desabroche?
A ida à Inglaterra constitui mais um episódio da pesquisa “O leitor através do espelho”, desenvolvida
no Brasil com bolsa de produtividade concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em escolas públicas de Campinas (SP), onde há salas de leitura. E a escolha
de Cambridge se deu pela relevância dos estudos na área de literatura infantil, educação e formação
de professores produzidos pelo Pedagogy, Literacy, Arts and Culture in Education (PLACE), grupo de
pesquisa coordenado pela Prof. Dr. Maria Nikolajeva, que foi a minha host durante o período em que
estive no exterior.
2. “Leia­os”, disse o Rei. O Coelho Branco pôs os óculos. “Por onde devo começar, por favor, Majestade?” perguntou. “Comece pelo
começo”, disse o Rei gravemente, “e prossiga até chegar ao fim; então pare.” (CARROLL, 2000:118).
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O Visiting Scholar é um programa criado há alguns anos pela Faculdade de Educação de Cambridge
e do qual fui a primeira brasileira a participar. Maria Nikolajeva é, desde 2010, a diretora do The
Cambridge-Homerton Research and Teaching Centre for Children’s Literature e, em 2005, recebeu o
prêmio International Brothers Grimm Award pela produção acadêmica em literatura infantil, considerado um dos mais importantes do mundo. Dentre as publicações de Nikolajeva está Livros ilustrados:
palavras e imagens, em co-autoria com Carole Scott, lançado no Brasil em junho de 2011, no Rio de
Janeiro, com o apoio da Cátedra Unesco e com a presença da autora, em sua segunda visita ao Brasil.
Foram doze meses de busca e indagação em Cambridge e em Londres sobre as experiências com as
políticas de leitura nas escolas públicas do Reino Unido, mais especificamente na Inglaterra, e a minha
primeira vez no exterior, imersa em uma cultura tão distinta da brasileira. Muitas perguntas, muitas
dúvidas e poucas respostas. Entretanto, como o papel da ciência é investigar, é enovelar-se e imiscuirse na dialética da vida em sociedade, uma das primeiras respostas à minha indagação inicial em Cambridge foi: “Nós temos problemas parecidos com os de vocês”. E eu, encabulada, pensava: “Então, se
os problemas são parecidos, como é que o governo lida com eles?”. “Alguma coisa deve ser diferente
nesse processo, visto que as realidades são distintas”, era o que me passava pela cabeça.
Várias coisas são mesmo distintas, mas não menos complicadas do que as enfrentadas pelos profissionais dedicados à causa da educação pública no Brasil. A distribuição de livros às escolas públicas,
por exemplo, feita no Brasil pelo Ministério da Educação, possui outra estratégia no Reino Unido, em
que o governo participa timidamente com a manutenção de alguns programas, coordenados pelo
Booktrust, uma entidade independente que há mais de 80 anos estimula a escrita e a leitura entre
crianças, jovens e adultos. Contudo, nos últimos anos houve um crescente corte de verbas públicas
destinadas à entidade, que se mantém de pé graças também a recursos advindos de doações privadas e de colaboradores.
Desde que foi instituído o National Curriculum, em 1989, que regulamenta o ensino público no Reino
Unido, emergiram as diferenças entre os níveis de aprendizagem de meninos e meninas, o que passou a suscitar, desde 2005, vários estudos com aplicação de questionários on-line conduzidos pelo
National Literacy Trust, um órgão independente que reporta ao governo britânico e ao Parlamento
os dados apurados nas pesquisas, visto que os meninos despontam como menos interessados na
leitura de livros do que as meninas.
Com as mudanças feitas no National Curriculum pelo Departamento de Educação, no começo de
2011, a comunidade escolar tem passado por um período de adaptação, o que tem provocado estresse e reclamações por parte de professores e diretores de escolas. As estratégias tendem a reverter a
queda no desempenho dos estudantes nos testes aplicados para avaliação da aprendizagem, mas os
resultados teimam em não aparecer. Guardadas as devidas proporções entre as duas realidades, a
brasileira e a britânica, a diferença que mais desponta entre os dois países é que a questão da leitura
é tema constante na pauta da educação britânica, o que não ocorre da mesma maneira no Brasil.
Nesse universo discrepante e, ao mesmo tempo, tão parecido com a nossa realidade, foi possível
ampliar o tema pesquisado, a partir de reuniões e eventos acadêmicos organizados pelo grupo de
pesquisa PLACE, com a presença de professores de vários países, que envolviam a análise da educação e da literatura infantil sob óticas distintas, que englobam aspectos epistemológicos, socioculturais e filosóficos, em que se entrelaçam questões relacionadas a problemas pedagógicos presentes
na prática educacional, visto que os pesquisadores que integram o PLACE Group tem uma larga
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experiência com o ensino primário e secundário.
Os professores que pertencem ao PLACE atuam em campos diferenciados da educação, que abrangem Literatura Infantil, Música e Arte, Língua Inglesa, Drama, Estudos Religiosos, Linguagem, Línguas Estrangeiras Modernas, Arte & Design, Segunda Língua, Design & Tecnologia, Geografia, entre
outros. Com o foco nos primeiros anos do ensino, bem como no ensino secundário, esses professores lecionam e investigam sobre as questões que envolvem o dia-a-dia do professor e do aluno, do
ensinar e do aprender.
Todos os seminários, encontros, palestras, debates, conferência, simpósios, aulas, visita a escola, curso – este realizado no Center for Literacy in Primary Education (CLPE), em Londres –, entre
outros, sediados pela Faculdade de Educação, Homerton College e outros colleges que fazem parte
da Universidade de Cambridge, tornaram, aos poucos, o espelho da leitura na escola pública menos
embaçado, espelho esse que intitula a tese “O leitor através do espelho - E o que ele ainda não
encontrou por lá!”, e que é uma referência a Através do espelho – E o que Alice encontrou por lá, do
inglês Lewis Carroll (1832-1898). Esse conjunto de experiências trouxe inestimáveis contribuições
para a conclusão da tese de doutorado.
Ali naquele quase intermitente frio inglês, caminhando entre as instalações do prédio moderno da
Faculdade de Educação e as instalações góticas do secular Homerton College, na movimentada Hills
Road, as ideias iam e vinham, e as dúvidas também, tantas vezes amainadas pela beleza das flores,
pelo encanto da neve, pelo barulho do vento e pela chuva rara, que demorou a aparecer. O Homerton College foi transferido para Cambridge em 1894, mas nasceu em Londres, em 1730, criado por
um grupo de protestantes dissidentes. No começo estudavam apenas homens. Em 1850, se transformou numa congregação dedicada ao treinamento de professores, homens e mulheres, e a partir
de 1894 só aceitava mulheres, o que mudou, novamente, em 1973. Hoje é um dos maiores colleges
de Cambridge, onde vivem também estudantes de outros cursos da Universidade.
Em 2005, a Faculdade de Educação de Cambridge inaugurou o prédio próprio, embora parte das
aulas e eventos ainda seja realizada no Homerton College, visto que os dois prédios estão construídos na mesma área, na Hills Road. Os Visiting Scholars são, geralmente, professores universitários ou
estudantes de doutorado que vão ao Reino Unido para ampliar seus estudos e pagam uma taxa referente ao tempo de permanência, chamada Bench Fee, o que lhes permite frequentar a Faculdade de
Educação e o Homerton College, visto que o ensino público superior no Reino Unido não é gratuito.
As atividades programadas pela Faculdade de Educação seguem o calendário inglês, dividido em três
trimestres - ou Terms –, cujas datas sofrem pequenas alterações de um ano para outro. De julho de
2011 a julho de 2012, período em que estive em Cambridge, os trimestres tiveram o seguinte calendário: Full Michaelmas Term3, de outubro a dezembro de 2011; Full Lent Term, de janeiro a março
de 2012; e Full Easter Term, de abril a junho de 2012. Nesse processo de busca de informações, duas
professoras da Faculdade de Educação contribuíram bastante com as primeiras informações sobre
as políticas de leitura no Reino Unido. A primeira delas, indicada por Maria Nikolajeva, foi Morag
Styles, professora de poesia infantil em Cambridge, com uma larga publicação em leitura, literatura
3. O Full Michaelmas Term corresponde ao primeiro trimestre letivo, e recebeu esse nome em homenagem à celebração do dia de
São Miguel arcanjo (the Feast of Saint Michael and All Angels), que acontece dia 29 de setembro, segundo o calendário cristão; o Full
Lent Term é uma referência ao período em que ocorre a quaresma, ou lent, em Inglês; o Full Easter Term tem esse nome para celebrar
a Páscoa, ou Easter.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
infantil e livros ilustrados. A outra colaboração veio de Gabrielle Cliff Hodges, que coordena e leciona
nos cursos de Secondary English/English & Drama PGCE (Postgraduate Certificate in Education), e
colabora com os cursos de mestrado em literatura infantil.
Gabrielle Cliff Hodges é integrante do comitê-executivo do United Kingdom Literacy Association (UKLA)
e participa da National Association for the Teaching of English, entre outras entidades, além de publicar textos em parceria com outros pesquisadores, a exemplo de Learning to teach English in the secondary school – A companion to school experience, editado por Jon Davidson and Jane Dowson. A partir
da colaboração dessas professoras foi possível ampliar o leque da pesquisa, o que permitiu o acesso a
informações encontradas nas principais entidades e organizações que criam e controlam o andamento
da educação no Reino Unido, bem como contatá-las e fazer visitas pessoalmente.
A experiência como bolsista PDSE-Capes é, sem dúvida, uma oportunidade ímpar concedida aos
doutorandos brasileiros de estudar no exterior e ampliar o universo pesquisado, bem como ter contato com culturas distintas, o que representa um ganho em termos de conhecimentos e crescimento
pessoal. É um processo que exige coragem, dedicação e comprometimento, mas o risco vale a pena,
porque os frutos não se limitam apenas aos resultados obtidos durante o tempo de pesquisa no
exterior, mas vão muito além, pois o doutorado sanduíche é mais um dos degraus que levam ao
avanço da pesquisa científica no Brasil, e um degrau que leva a muitos outros e que, ao final, pode
fazer com que muitas portas se abram ou que muitos espelhos que entravam a realidade sejam
ultrapassados. Afinal, alguma coisa deve mesmo haver do outro lado desse espelho da leitura no
Brasil, algo que ainda não foi alcançado, não foi visto, e a ciência pode ser um dos caminhos para
aclarar a nossa visão.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
Referências bibliográficas
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2002.
FREIRE, Paulo; HORTON, Myles. O caminho se faz caminhando – Conversas sobre educação e mudança social. Petrópolis: Vozes, 2003.
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Lendo imagens. Uma história de amor e ódio
Maria Cristina Ribas1
MANGUEL, Alberto. Trad. FIGUEIREDO, Rubens; ROSAURA, Eichmberg; STRAUGH, Cláudia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 358p.
Dizem que esse argentino fã de Borges (para quem leu textos) vende embalagens, num estilo que
faz sucesso hoje em dia: mix de agilidade jornalística com erudição de superfície. E que, neste livro
de interpretações de obras que vão de Roma até o século passado - dentre elas, Velázquez (séc.XVIXVII), Caravaggio (séc.XVI-XVII), Lavínia Fontana (séc.XVII), Aleijadinho (séc. XVIII-XIX), Picasso (séc.
XIX-XX), Joan Mitchell (séc.XX) -, o autor destrincha quadros, esculturas e fotos, mas perde-se nos
meandros do subjetivismo. Em geral, as críticas ao livro, sobretudo no ano de sua publicação (2001),
entoaram seus acordes – ou desacordos - nesse diapasão.
Logo de início, duas questões se impõem: a primeira delas, de ordem consensual: se tanta interpretação não prejudica a fruição da imagem? A segunda, trazida por nós: por que a insistência da
crítica na velha oposição teoria e prática, metodologia e experiência, objetividade e subjetividade,
razão e sensibilidade, obrigação e autonomia? A primeira é respondida pelo próprio Manguel, numa
entrevista por ocasião do lançamento do livro (2001): ”(...)importante não sacralizar nem a imagem,
nem o texto. A imagem é uma reação química sobre o papel, uma tinta sobre uma tela ou um pedaço de madeira da qual lhe tiraram pedaços. O resto depende de nós” (Folha de São Paulo, 2001). A
segunda, assim como a anterior, não elide a subjetividade e exige uma reflexão acerca da insistência
de leigos e especialistas em dicotomizar procedimentos. Seria mais útil pensar teoria e prática não
de forma excludente, mas complementar; por exemplo, entender como o aporte teórico pode evitar
a imersão na subjetividade, ao mesmo po em que a dimensão subjetiva, via de mão dupla, imprime
criatividade e aumenta a possibilidade de rediscutir teorias e métodos.
No debate que ora propomos, importante procurar se a citada crítica ao livro captou nuances distintas ou meramente projetou expectativas conclusivas acerca de uma ação que se quer em gerúndio – Lendo imagens -, leitura em processo, história de aceitação e recusa, amor e ódio, conforme
apresentada pelo autor.
Tentando entender: ao antecipar um mea culpa, Manguel, que desde o início do livro se declara
um viajante inquisitivo e caótico que gosta de descobrir lugares ao acaso, anuncia sua preocupação
com os leitores “comuns”, não especialistas, grupo em que se inclui. E que, justamente por esse
motivo explícito, o livro ter-se-ia desenvolvido a partir da necessidade de reivindicar o direito – a
liberdade - de ler, conforme o próprio olhar, as múltiplas imagens e histórias. O autor declara, ainda,
não ter buscado um método sistemático de ler imagens, como os historiadores de arte Ernst Gombrich (1909-2001) e Michael Baxandal (1933- 2008), ambos especialistas no Renascimento. Entre a
modéstia e a auto-preservação, afirma que sua desculpa é não ter sido guiado por qualquer teoria
da arte, mas sim pela curiosidade. Curiosidade que, dirigida tanto aos temas clássicos, quanto à
banalidade cotidiana é avessa ao tédio que consagra o déjà vu; declaração que, conforme enten1. Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Adjunto do Departamento de Letras da FFP/UERJ
e pesquisador associado da Cátedra UNESCO de Leitura / PUC-Rio. Contato: [email protected].
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
demos, corresponde a uma saudável prerrogativa do sujeito moderno que resiste à apatia e à subserviência, mas, ao mesmo tempo representa um elogio da generalidade e propõe um discurso em
defesa da circulação mais ampla e descompromissada de ideias.
A recorrente (auto)defesa do autor se entrelaça, no livro, às descrições de processos de composição dramatizadas em cena: Manguel conta que a paixão pelo simples, o foco no anônimo era,
dentre muitos, o tom de Caravaggio, que concedeu aos pobres de Nápoles um cenário em seus
temas sagrados. Como poderíamos prever, estes quadros foram recusados pelas autoridades que os
encomendaram. Com este relato, o autor trata a imagem como teatralização do cotidiano do pintor
e traz a pujança da imagem barroca e renascida, o chiaro-oscuro profano e sagrado de uma época
determinada, mas que a leitura permite imprimir temporalidade infinita. Ressalta que as ideias de
Caravaggio em torno da representação, seu comportamento social e modus operandi tinham autonomia em relação aos paradigmas de seu tempo e, inclusive, vicejavam na resistência aos ideais
contra reformistas da igreja.
O que o artista põe naquele palco e o que o espectador vê nele como representação confere à imagem
um teor dramático, como que capaz de prolongar sua existência por meio de uma história cujo começo foi
perdido pelo espectador e cujo final o artista não tem como conhecer. (MANGUEL, 2001:291)
Quando fala de Aleijadinho, que não tinha visto in loco os referenciais da matéria-prima que constituía a sua arte, Manguel reafirma o prevalecimento do imaginário sobre o testemunho, seja do
ponto de vista do artista, seja do ponto de vista do espectador. Defende, portanto, a ideia de que o
leitor inventa significados para o que vê. Dentre outras histórias, Manguel nos conta que, no interior
da igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, o jovem Aleijadinho confundira deliberadamente
o espectador: o trompe l’oeil e os relevos tridimensionais, pintura e entalhes se alternam no esforço
de desnortear o olhar, “forçando-nos a perder a confiança tanto no mundo tangível dos sentidos,
como no mundo intangível das intuições” (MANGUEL, 2001:239).
A valiosa contribuição do livro parece-nos, portanto, a leitura como errância, no duplo sentido que
a palavra sugere. Nesta trilha, ler, portanto, é saber que o sentido pode ser sempre outro (ORLANDI,
2006), o que exige entrar no jogo discursivo, abdicar do poder de garantir a pretensa verdade do
texto, e, ao mesmo tempo, produzir sentidos sem culpas. Com um adendo: olhar leva a olhar-se.
O mesmo modus operandi é tecido também a partir do quadro de Velázquez, “As Meninas ou A
Família de Felipe IV” (1656), representações de rostos e corpos distorcidos de Picasso -, e ainda
inspirado na famosa leitura de Lacan sobre o estágio do espelho (LACAN, 1966). Manguel diz que a
nossa identidade deriva das imagens de espelhos que existem fora de nós mesmos: essa “identidade
alienante” é o modo como aprendemos a nos ver (MANGUEL, 2001:219). Para Manguel, o espaço
do drama – da arte – não está necessariamente contido apenas no lugar que lhe está reservado
como tal. A arte extrapola as academias, desliza das molduras, sai dos palcos e transita nas ruas.
Neste sentido, a cidade pode ser o espaço adequado e este, por sua vez, pode estar espelhado no
microcosmo (aparentemente) fechado de uma tela. Em cada momento do livro-quadro de Manguel,
as interpretações são óleo/olhar sobre tela testemunhal, ao mesmo tempo em que deslizam desse
foco e ultrapassam os múltiplos limites da moldura a que a imagem parecia circunscrita.
À margem dos centros de referência e em defesa da interpretação, o autor argentino dramatiza o
elogio da experiência individual e coletiva promovida no contato com a imagem e realoca a obra,
em função do ponto de vista do observador/leitor, dentro de uma noção infinita de tempo; defen123
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
de que “uma imagem existe no espaço que ocupa, independente do tempo que reservamos para
contemplá-la” (MANGUEL, 2001:25).
As tintas saem da tela e respingam no público, borram as compreensões preestabelecidas, solidarizam-se com a parte que normalmente atribuímos à nossa ignorância ou sapiência. “Quando tentamos ler uma pintura, ela nos parece perdida em um abismo de incompreensão ou, se preferirmos,
em um vasto abismo, terra de ninguém, feito de interpretações múltiplas” (MANGUEL, 2001:29).
Assim, ele descreve com habilidade as (suas) leituras das imagens escolhidas, sempre desfiadas no
rosário de pequenas indagações dispersas, produzidas nesse lugar do espectador comum, topos em
que definitivamente se instala e de onde se formula as questões encaminhadas ao longo do livro.
São perguntas a que não interessam respostas. Mas que propõem compartilhamento de experiências e funcionam tanto como estímulo ao leitor, quanto justificativa bastante pertinentes à prática da
‘leitura mangueliana’, estratégia que denota sensibilidade, inteligência, além de um esforço visceral
de redesenhar – livre e sem culpas - imagens canônicas. E tudo sob um instigante formato de imagens como narrativas que se bifurcam. Em sua visão, a narrativa não só amplia ao infinito os limites
temporais – o antes e o depois - da moldura de uma tela, como também lhe abre o espaço. Isso porque a configuração da narrativa é polifacética: ela é constituída por ecos de outras narrativas, pela
ilusão do auto-reflexo e do conhecimento técnico e histórico, por meio da fofoca, dos devaneios, dos
preconceitos, do engenho, enfim, por um mosaico de elementos constituintes, uma bricolagem de
materiais heteróclitos, como nos diria o saudoso Lévi Strauss (STRAUSS, 1976).
Neste labirinto de referências entremeado a rabiscos leves, Manguel, menos método e mais ensaio,
insiste em inquirir o leitor se qualquer imagem pode ser lida; se é possível criar leitura para qualquer
imagem; e se toda imagem encerra uma cifra simplesmente porque ela parece a nós, seus espectadores, um sistema auto suficiente de signos e regras. Respostas mais uma vez em suspenso, fôlego
invejável, confia na evidência de seu percurso. E segue lendo.
Entre a hesitação e o êxito, a leitura traz à tona o enriquecimento do silêncio, a imagem como abismo, canto de sereia, testemunho, pesadelo, subversão, filosofia, memória e narrativa – um livro de
páginas ausentes. Para um leitor – esperamos – bem mais presente.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
Referências bibliográficas
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. Uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001
ORLANDI, Eni. Discurso e Leitura. Campinas: Cortez/Unicamp, 2006.
STRAUSS, Claude-Lévi. O pensamento selvagem. São Paulo: Companhia Ed. Nacional, 1976.
MANGUEL, Alberto. Entrevista a Cynara Menezes. In Folha de São Paulo: Revista Ilustrada. 8 de
setembro de 2001. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0809200118.htm. Acessado em 12/12/2014.
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Entrevista com Nelly Novaes Coelho1
Nelly Novaes Coelho
Francisco Thiago Camêlo2
Nelly Novaes Coelho ocupa um lugar de destaque na área dos estudos literários. Professora titular
da Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora e crítica literária, criou, em 1980, a disciplina
de Literatura Infantil e Juvenil em nível de graduação e pós-graduação, na USP. Ao longo de mais
de cinquenta anos de carreira, recebeu inúmeros prêmios e distinções por sua atuação docente,
trabalhos críticos ou livros. Autora de Literatura Infantil: teoria, didática, análise e Escritores brasileiros do século XX: um testamento crítico, lançado em 2013, prepara, aos 92 anos, uma publicação dedicada aos poetas brasileiros do século XX. Na tarde do dia 18 de julho de 2014, em sua
residência no bairro da Bela Vista, em São Paulo, concedeu entrevista ao pesquisador Francisco
Thiago Camêlo, que aqui reproduzimos.
Francisco Thiago Camêlo: Professora Nelly Novaes Coelho, por gentileza, fale um pouco da sua
vida e dos livros que formaram seu imaginário.
Nelly Novaes Coelho: Eu sou de uma geração de crianças que liam. A leitura e o ouvir histórias
faziam parte do dia a dia. Eu nasci nos anos de 1920. Por ali, todo o mundo lia. Literatura é um
meio de distração. Foi muito cedo que eu comecei a ouvir, a contar e a inventar histórias. Eu
gostava de contar. No colégio onde estudei, no Externato São José, na hora do bordado, ficava
todo mundo em silêncio, e sempre havia alguém que lia histórias. Por acaso, eu era sempre
escolhida para ler, porque eu colocava ênfase, imitava a voz da personagem, se era um inglês,
se era um velho, se era uma criança. Foi muito cedo a minha atração pelos livros, mas era
costume normal, quer dizer, não era uma coisa fora do comum contar e ouvir histórias. Hoje
o tempo é diferente, tem a televisão. O livro era realmente central na vida, no meio em que
eu vivia. Ler e ouvir histórias, ler romances eram a distração. Cinema, era muito pouco que se
ia. Eu cheguei a assistir a filmes mudos. Eu vi o primeiro filme falado do Al Jolson, que eu me
lembro perfeitamente. Foi um espanto, ir ao cinema, eles falando e você ouvindo, né? Meu
Deus, como estou velha, eu sou do início do cinema falado! Al Jolson cantando “My Mammy”3.
Mas, no meu tempo ler era uma coisa normal.O bordado era a distração da meninada e das
mocinhas, e alguém sempre lendo. Então, a minha formação já foi de leitora desde o início.Por
isso, acho que voltei a estudar depois de casada, com filhos. Eu percebi que havia um distanciamento da leitura. Eu disse: – não, eu vou trabalhar com isso! Foi o que me levou a me preocupar com a leitura dos alunos. Comecei a dar aulas com muita ênfase na literatura, e, realmente, acabei formando ótimos leitores, que descobriram o encanto da leitura. Eu tive muita
sorte como professora. Tive grandes alunos. E sinto que eu despertei, realmente, em muitos
1. Entrevista disponível em vídeo no portal do iiLer/ Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio: www.catedra.puc-rio.br
2. Graduado em Letras pela PUC-Rio, pesquisador do iiLER e integrante do Grupo de Estudos em Literatura Infantil e Juvenil (GELIJ /
CNPq). Contato: [email protected]
3. O filme é “The Jazz singer” (1927), dirigido por Alan Crosland. Nesse filme, Al Jonson canta as canções “My mammy”, “Blue Skies”
e “Toot toot tootsie goodbye”.
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
e muitos, o interesse pela leitura, e eles se tornaram grandes leitores. Porque, às vezes, não
tinha quem incentivasse. Na época, a preocupação era o cinema, depois o rádio, depois veio a
televisão... Até hoje, eu acho que a literatura é fundamental para a formação da visão de mundo das pessoas. Agora, os últimos que eu tenho lido, os novos livros, os novos romances, mais
recentes, de cinco a dez anos para cá, fora os grandes nomes, têm uma visão tão fragmentada,
que não me desperta interesse, sabe? As tramas... É mais um trabalho de língua. É curioso o
quanto mudou. Eu acho que está correto, porque corresponde ao momento que nós estamos
vivendo. Nós não temos mais uma visão de mundo segura, clara, como a minha geração tinha.
Havia uma nítida diferença entre o que era certo, e o que era errado, e que você não podia
fazer. Hoje, realmente, não tem mais. Depende de cada um. Não tem mais valores absolutos.
Nós estamos vivendo em uma época de relatividade. Eu mesma digo: – o que é certo e o que
é errado, hoje, no comportamento das pessoas? Eu mesma não sei, compreende? Sem ser os
meus valores, eu não sei. Então, a literatura realmente vem acompanhando essa modificação:
de uma época em que havia valores absolutos, em que todo mundo obedecia sem discussão,
a uma época em que isso foi rareando. E hoje não tem mais valores absolutos. Não tem mais
coisas que você não pode fazer. Não tem discussão. Não tem mais. Vai depender do meio em
que você está, vai depender de cada um, da família, dos amigos. Certezas absolutas, nosso
tempo não tem mais. Se for olhar valor por valor, isso fica muito evidente.
FTC: Em 1980, a senhora criou a disciplina de Literatura Infantil e Juvenil na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). O que a levou a se interessar pela literatura destinada às crianças? Você poderia contar, também, como a foi a implantação
do curso?
NNC: Sim, eu era professora de literatura portuguesa e, ao mesmo tempo, eu fiquei, de repente,
ligada ao Centro de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil (CELIJU). Ele foi criado por um grupo
de escritoras, tendo à frente Odette de Barros Mott, que, ligada à Biblioteca Infantil Monteiro
Lobato, fazia reuniões, dava palestras em torno da literatura infantil que estava aparecendo:
a nova literatura infantil, com Ruth Rocha, Odette de Barros Mott, Pedro Bandeira. Por acaso,
me convidaram, na ocasião, para uma reunião desse grupo, o CELIJU. E eu não tive nenhum
interesse pelo convite. Eu disse: – Meu Deus do céu, literatura infantil? Eu não tenho nada a
ver com isso, porque eu era da literatura portuguesa. Adulta, já tinha ido a Portugal, como fui
várias vezes. A minha matéria na USP era literatura portuguesa. Mas, quando me convidaram
para a reunião, que ia ser na casa da Madame Dupré4, no primeiro impulso, eu disse: – Não,
eu não vou. Eu tinha interesse nenhum pela literatura infantil. Mas a reunião era na casa da
Madame Dupré. Ora, eu era uma leitora da Madame Dupré. Eu disse: – É uma ocasião para
eu conhecer a Madame Dupré. Mal sabia eu que a partir dali eu ia dar um novo rumo à minha
carreira, não é? Porque nessa reunião eu encontrei várias escritoras que fundaram o CELIJU,
tendo como sede a Biblioteca Infantil Monteiro Lobato. E foi daí que eu comecei a conhecer
a literatura infantil. O primeiro livro que me chamou atenção foi da Ruth Rocha, “O reizinho
mandão”. Porque o “O reizinho mandão” dava um recado para as crianças que era absurdo,
era a recusa à obediência e à autoridade. Isso para o meu tempo, como? Sabe? Fulano não vai
obedecer às ordens do reizinho? Então, eu disse: – Alguma coisa está mudando. Daí, comecei
a procurar e a ler o que estava saindo, e fiquei conhecendo os novos escritores da literatura
4. Maria José Dupré, também conhecida como Sra. Leandro Durpé, foi uma escritora brasileira (1905-1984).
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
infantil. E como eu dava aula na USP, preparando professores, fui aos poucos incluindo alguns
livros infantis. E depois acabei propondo a criação de um curso só de literatura infantil. Esse
curso foi aprovado e até hoje ele existe, e foi incluído no currículo de Letras. Tem, portanto, um
curso de literatura infantil e juvenil, que leva três anos, mais ou menos. Então, foi daí que eu
comecei a me interessar, a dar aulas e a participar de grupos de estudos, e me vi assim envolvida com os novos escritores que estavam aparecendo: Stella Carr, Pedro Bandeira. E acabei
escrevendo um dicionário enorme sobre os autores de literatura infantil e juvenil.
FTC: E houve desafios para criar o curso?
NNC: Não. Houve uma espécie de, vamos dizer, de reação do pessoal, uma espécie de piada,
sabe? Houve, assim, na atmosfera, uma reação de brincadeira, de desprezo. Mas isso não me
incomodou a mínima. Eu não liguei. Eu acreditava naquilo que eu estava fazendo. Então, havia
uma certa zombaria, vamos dizer assim: “Ah, a Nelly vai agora dar aula de Literatura Infantil” –
porque eu era de literatura portuguesa, fui várias vezes a Portugal, toda a minha produção era
na literatura portuguesa adulta. Mas eu não liguei. Foi muito bom, porque eu vi que a coisa ia
funcionar. Propus a criação do curso, foi aprovado, e eu enfrentei, consegui uma assistência e
hoje o curso é importante, tem gente muito boa, gente entusiasmada por isso. Eu fico muito
feliz quando vejo que eu não liguei para as piadinhas. Mas tinha, sim, muita piadinha, sabe?
“Ah, Nelly agora vai dar curso de historinhas de fadas, da Chapeuzinho Vermelho, não sei o
quê”. Muitas piadas, mas eu nunca liguei. Quando eu quero fazer uma coisa, a opinião dos
outros, se for contrária, não me perturba! Eu achava que tinha que ser aquilo, e foi. E depois,
em Portugal, também dei cursos sobre literatura infantil e também foi criado um curso lá por
seguidores. Então, hoje, em Portugal, também existe o curso de literatura infantil, a partir
dessa quixotada minha de valorizar a literatura infantil, que era vista como uma coisa inferior.
“Você agora perder seu tempo com literatura infantil...”.
FTC: A senhora é autora de obras de referência sobre literatura infantil, dentre as quais Literatura
Infantil: teoria, didática e análise (1981), Dicionário Crítico de Literatura Infantil e Juvenil (1983) e
O conto de fadas: símbolos, mitos e arquétipos (1987). Conte-nos como se deu o seu ingresso no
âmbito da crítica literária.
NNC: Olha, a crítica literária foi mais ou menos por acaso. Eu lembro que o primeiro autor
sobre o qual eu escrevi foi Jorge Luís Borges, que é da literatura hispano-americana. O Décio
de Almeida Prado, no Estadão, era muito meu amigo, e ele admirava tudo que eu escrevia.
Então, ele me pediu para escrever sobre o Borges, que ninguém conhecia aqui. Isso foi por
volta de 1970. Eu tinha as obras completas do Jorge Luis Borges, porque um amigo meu tinha
ido à Argentina e as trouxe para mim. Ele disse: Lá, ele é considerado o maior escritor argentino, então eu trouxe uns doze livros para você. Eu li bastante, e disse: Nossa, mas ele é ótimo!
Escrevi, então, os artigos no Estadão. Eu colaborava no suplemento literário do Estado de São
Paulo, que hoje não existe mais. E eu colaborava muito. Então, oi ali que eu comecei a escrever
sobre o Borges e sei lá... Daí eu virei crítica literária, por causa do Jorge Luís Borges. Eu comecei
a fazer crítica a pedido do Décio de Almeida Prado. O primeiro artigo que escrevi, eu mandei
pra ele, porque eu tinha ficado encantada. “Se puder publicar no suplemento esse artigo sobre
esse escritor argentino muito bom, que eu descobri agora...” e o Décio publicou. E a partir daí,
ele ficava me pedido artigos. Ele dizia: Olha, tem tal livro, e eu dizia: de preferência, veja litera129
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tura portuguesa, que é a minha área. No fim era portuguesa, era hispano-americana, era brasileira, e eu acabei como crítica do suplemento literário. Fiquei uns dez anos escrevendo para o
suplemento. Primeiro, tinha artigos grandes, hoje, eu nem sei se ainda tem, acho que não tem
nem mais suplemento literário, agora é um suplemento cultural. Já faz tempo, já faz tempo.
Mas, antes, tinha, e era todo ligado à literatura, e foi daí que eu comecei a me descobrir crítica
literária, graças a Jorge Luis Borges. [VER NOME BORGES] E foi por acaso eu ter ganho a obra
completa dele, porque ninguém o conhecia, e nem tinha nas livrarias. Foi tudo por acaso. São
incríveis os acasos na vida da gente.
FTC: E literatura infantil, a senhora chegou a...
NNC: E também comecei a conhecer os escritores de literatura infantil que passaram a frequentar o CELIJU (Centro de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil). E a partir daí eu fui
conhecendo a literatura infantil. Eles me mandavam a produção e eu ia escrevendo. Mas sem
nenhum projeto, sabe? Eram, assim, obras do acaso. E no final acabaram me encaminhando
a abrir um setor que nunca me passou pela cabeça. Então, chegou um momento em que eu
disse: Não, acho que já está na hora de oficializar esse estudo da literatura infantil; porque ela
era tida como uma coisa menor. “Imagina, fulano se preocupar...”. E foi muita caçoada, sei que
zombavam, “Nelly agora está estudando histórias da Chapeuzinho Vermelho...” Muita, muita zombaria. Mas eu não ligava a mínima. Aquilo era brincadeira para mim. O meu trabalho
era com a literatura adulta, portuguesa, e eu continuava escrevendo sobre ela, fui a Portugal
várias vezes, conheci todos os autores. Hoje, morreu o João Ubaldo Ribeiro. Esse foi um dos
brasileiros sobre os quais eu escrevi. Mas os de Portugal já morreram todos, e eram bem mais
novos do que eu. Incrível, sabe? Os que foram meus amigos são os grandes nomes consagrados. Eu tive a honra de escrever sobre eles todos. A maior parte saía em Portugal e alguns,
no Brasil. Eu tive a felicidade de fazer várias viagens a Portugal para participar de congressos,
palestras, cursos. Fui dar cursos na Universidade de Lisboa, sobre literatura brasileira, fiquei
um semestre lecionando, foi muito bom; tive muita chance de conhecer as coisas. Eu acho que
tive muita sorte na vida, porque, de repente, vinha um convite e eu dizia: Nossa, o que é isso?
E lá ia eu... Foi muito bom.
FTC: No livro Literatura Infantil: teoria, didática e análise (1981), a senhora coloca uma questão até
hoje controversa acerca do pertencimento da literatura infantil à arte literária ou à arte pedagógica
(p. 24). Atualmente, como a senhora vê essa questão? Há espaço nos cursos de Letras para a LIJ ou a
literatura para crianças ainda é vista como “patinho feio” e domínio da área da Educação?
NNC: Nesse caso, eu acho que houve uma evolução. Hoje, a literatura infantil tem um espaço dela e com um grupo de professores muito bons, que foram meus alunos. Então, aquela
semente que eu plantei nos anos 1980 só foi se fortalecendo. Mas, eu acho que, no geral, a
crítica ainda vê a literatura infantil como algo menor. A maioria, eu acho, mantém essa visão
tradicional de que a literatura infantil é uma coisa de criança. Embora no meio acadêmico ela
seja respeitada, já tem um espaço oficial, dela, tem o curso de literatura infantil e juvenil, tem
professores ótimos, que já tem seus assistentes também, então oficialmente ela já existe com
dignidade no curso de Letras.
FC: Da Universidade de São Paulo...
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.6, nov., 2014.
NNC: Da Universidade de São Paulo, mas não no geral. Isso, eu acho. Como eu não estou na
ativa, eu não sei dizer, não chegaram notícias para mim de grande modificações. Ela é bem mais
valorizada no geral do que era antes. Sem dúvida, isso eu sinto. Agora, não sei se estaria no
mesmo plano da literatura adulta, isso eu não sei dizer, compreende? Mas havia uma espécie de
diminuição do seu valor por ser para crianças. Isso era a visão tradicional, não é? Escrever para
criança era também uma brincadeira. Isso mudou. Nós temos excelentes escritores que estão
escrevendo para crianças e jovens. Eu acho que, hoje, pelo menos na área cultural, a literatura
para crianças e jovens já é aceita como coisa séria. E claro, é o alimento que a criançada vai ter
se formando. Agora, eu não sei se no geral ela é aceita mesmo, não sei porque eu estou fora.
FTC: E quanto ao fato de ela ser um gênero de fronteira entre Letras e Educação?
NNC: Isso, sem dúvida, pesou sempre, porque era na escola que a literatura era acessível e
onde ela circulava. Dava-se para as crianças, as histórias. Então, ela foi relacionada a uma
coisa menor. Quando não é verdade, porque mesmo essas histórias para crianças resultaram
de uma invenção literária muito boa. Era arte mesmo. E depois, ficou assim uma coisa banal,
assim, infantil. Então, eu não sei te dizer, hoje, como é que está no âmbito geral. No meu grupo, ela era muito levada a sério. Tanto que agora existe o curso oficial de literatura infantil.
Leva-se três anos, com professores especializados, que só dão aula de literatura para crianças
e jovens. Então, eu acho que a coisa mudou, a partir dessa minha quixotada. Eles consideraram uma quixotada, e eu acho que foi mesmo, mas eu tinha o respaldo da minha confiança
na matéria, nos escritores, nas histórias. Então, eu disse: É literatura, não é brincadeira. Hoje,
o pessoal que está lá [na USP] é ótimo, muito bom, foram meus alunos. E quanto à crítica,
eu não tenho visto, sabe? Não tem chegado ao meu conhecimento críticos que se atraíram
pela literatura infantil. Eu publiquei livros sobre literatura infantil, autores etc. Não tenho mais
seguido, eu estou afastada.
FTC: Além de inúmeros livros, dissertações e teses sobre LIJ, nos últimos anos, a produção literária para crianças e jovens vem recebendo prêmios nacionais e internacionais que confirmam o
alto padrão de qualidade dos textos. Neste ano, o ilustrador Roger Mello recebeu o Prêmio Hans
Christian Andersen, que já tinha sido outorgado às “filhas de Lobato” Lygia Bojunga e Ana Maria
Machado, em 1982 e 2000, respectivamente. Diante desse quadro, como a senhora situa atualmente a ficção e a crítica sobre LIJ? Poderia citar algum autor e/ou ensaísta?
NNC: Isso é difícil. Bom, eu não estou atualizada, mas pelas publicações e pelo suplemento
cultural do Estadão, não chegou ao meu conhecimento um crítico que se dedicasse à literatura infantil e juvenil – também, eu estou inativa, né? Eu sei que há muitos bons escritores,
consagrados, já: a geração de Pedro Bandeira, Stella Carr, Ruth Rocha. Esse grupo que veio no
início, eu acredito está tendo seguidores, que estão produzindo. Mas, eu não tenho condições
de dizer se realmente está havendo uma produção rica de literatura infantil, hoje. Eu tenho
visto isso mais ou menos de longe, eu não estou mais na ativa. Mas acredito que sim, porque
eu soube que tem tido reuniões na Biblioteca Infantil perto de Tremembé, muitas palestras. Eu
mesma fui convidada para fazer umas palestras, mas eu recusei. Eu acho que eu não estou tendo condições de me sintonizar com o público novo como eu sintonizava antes. Quer dizer, eu
sinto que, parece, se eu for falar uma coisa não pega bem. Eu ainda não absorvi direito como
os jovens estão pensando a vida, sabe? Primeiro, eu tinha segurança, agora não, eu não teria
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segurança. Já me convidaram, mas eu disse que não, não ia falar com os jovens, eu não me sinto à vontade, não acho que o que eu vá falar vá tocar. Não sei direito o que eles estão querendo da vida, o que eles estão fazendo. Os valores não são os mesmos dos consagrados da minha
geração. Então, eu não me sinto à vontade para enfrentar uma plateia de jovens. Primeiro, eu
era à vontade, eu sabia que o que eu falava ia tocar, hoje eu já não sei como seria, então eu
tenho recusado sistematicamente. Eu acho que ia ficar uma coisa muito falsa, sabe? Eu sentir
que não estão me entendendo ou que eu estou falando bobagem. Vão dizer: Ih, lá vem essa
velha falar bobajada, então eu tenho evitado. Agora, eu não sei, realmente, não tenho recebido nenhum livro de análise de literatura infantil. Não conheço ninguém que esteja crítico, que
esteja dedicado. Pode ser que tenha, deve ter, sem dúvida, mas não chegou a mim. Eu não
sei quem estaria estudando. Mesmo os meus alunos, que foram bons alunos, não produziram
nada que me mandassem, que fosse resultado de uma dedicação especial à literatura infantil.
Então, eu não sei. Sei bem que a crítica também está em crise, não é? Quem são os críticos que
analisam a literatura hoje? É muito difícil. Nós estamos vivendo um momento de transformação de base. Não há mais valores absolutos para defender. Tem que esperar um novo sistema,
que eu não sei como vai ser, mas ele está se formando. Já faz tempo que os valores absolutos
foram postos em questão e ainda os novos não se consolidaram para a gente saber – haja vista
o problema do sexo. Antes, era absolutamente controlado, agora, há muito tempo que está
à vontade, não é? Então, este é um sinal poderoso, porque o sexo é central na civilização. É o
nicho que move o mundo. E agora ele está sem ordenação, está livre; para outros, está preso
– isso vai depender de cada família, cada região, quer dizer, não tem mais um valor absoluto
para todos. Não tem. Isso é um sinal claríssimo de que nós estamos mudando a civilização. A
civilização cristã estava baseada na restrição ao sexo, a coisa era controladíssima. Parecia uma
bobagem, mas não era. Ela é central, compreende?, É o elemento de continuação da humanidade. Era restringido e, de repente, foi liberado. E o que vale, hoje, vai depender da família,
do meio cultural, não tem mais um para todo mundo, como no meu tempo. Ninguém discutia,
compreendeu? É? É. Acabou. Agora, não. Já faz bastante tempo. Agora, depende do meio cultural, depende da região. Ih, depende de muita coisa. Até a gente chegar em outra fase com
o sexo vai demorar um bocado. Aí, já estaremos em uma nova civilização. Parece incrível, mas
as valorizações e as restrições ao sexo são chaves em todas as civilizações. Então, vamos ver
como vai ser depois, por enquanto, está assim: está liberado.
FTC: Com base na sua longa experiência docente e de produção ensaísta, quais são, na sua opinião, os desafios da literatura infantil como objeto de pesquisa?
NNC: Bom, o primeiro desafio é vencer a ideia de que é uma produção menor e que não
merece a atenção dos grandes escritores. E, a partir daí, as dificuldades são, por exemplo,
saber em que dar maior ênfase nas histórias: se na filosofia que está por trás, se na graça, se
na propriedade dos valores ali colocados, se na parte lúdica capaz de interessar as crianças.
São vários elementos que entram na valorização. Por exemplo, se é uma ótima literatura para
crianças ou se é regular, se é elementar ou, então, negativo. Hoje, não há uma fórmula. As
histórias estão se desintegrando, quer dizer, são histórias que vão contando casos esparsos
ou atividades esparsas sem um esquema de enredo. Uma coisa mais de brincadeira. Acaba,
a meu ver, nem formando, talvez dando prazer para o leitor mirim. Mas, eu acho que poucos
dos novos escritores encontram o fio para fazer uma literatura que dá prazer e que forma. A
literatura infantil tem que dar prazer e, ao mesmo tempo, formar uma visão de mundo, isso
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é importante. Por outro lado, eu fico pensando: Mas que visão de mundo eles vão querer dar
para a criança hoje? Se eu tivesse que escrever história para criança, seria difícil: Qual visão
de mundo? A minha, que já foi superada? Eu não sei. Então, fica muito na brincadeira a nova
literatura. Para os que estão querendo escrever, eu não acho fácil. Realmente, não está fácil
escrever para as crianças Que visão de mundo dar? Bom, os escritores talvez já tenham sabido, eu não saberia, eu ficaria meio “o que eu vou falar para as crianças, hoje?”. Mas isso é um
problema meu, estou superadíssima. Qual seria a nova literatura infantil que fosse formadora
e divirta? Eu realmente não sei. Pode ser até que já tenha livros, que já tenha saído, mas eu
não tive acesso; não conheço. Eu acho que está difícil escrever para as crianças uma literatura
que forme, já que, para formar, tem que escolher os valores, né? Tudo vale e tudo não vale,
tudo vai depender do meio em que você está, com quem você convive, nós não temos mais
uma fórmula. Tinha, no meu tempo, tinha as coisas que você podia fazer, tinha outras que
você não podia fazer, e daí tudo bem, compreende? Hoje não tem. Valores diferentes para os
homens, valores diferentes para as mulheres. Hoje mudou muito, mas eu acho que, em breve,
a gente vai ter uma nova visão de mundo, já está bem dissolvido tudo isso, já faz muito tempo
que desengrenou e tá engrenando outra vez. É uma fase de passagem de uma civilização à outra.
Sem dúvida nenhuma, a gente pensa como é que era na Antiguidade e na Idade Média, e como
é hoje. Nossa, o homem já chegou à lua! Meu Deus do céu! Quando eu me lembro das histórias
d’As mil e uma noites o fulano que viajava sentado no tapete e hoje o homem já foi à lua, vai à
lua e volta, é uma coisa incrível. Ainda não dá para você colocar isso na vivência, sabe? O fulano
ultrapassou todos os limites do humano. Venceu os limites do espaço. Chegar a ir à lua, isso é
um feito realmente notável. Romper a barreira do som, Nossa Senhora! Pois é, eu não sei como
é que vai ser o amanhã, o amanhã aí. As crianças de hoje já vão ter o mundo novo.
FC: Com relação aos estudos de recepção, como a senhora analisa a relação entre formação do
leitor e qualidade literária?
NNC: Bom, isso é uma questão difícil de explicar, porque, veja, a literatura moderna vai criar,
está cada vez mais predominando um enredo embaralhado, quer dizer, não tem um enredo
linear, mas fragmentos, então é uma visão de mundo fragmentada. Os contos tradicionais forçosamente têm. A formação da mente com os contos tradicionais é mais fácil porque mostra
uma lógica entre as ações e os pensamentos, dá pra entender, formular e explicar, e o outro
não. Agora, como isso está atuando, a fragmentação é melhor ou pior, eu não sei dizer. Mas
há uma distinção em questão de lógica entre o tradicional, que é tudo explicado pela lógica,
e o contemporâneo, que é fragmentado. Claro que eu entendo que o fragmento de hoje corresponde a uma visão fragmentada que se tem do mundo. Não dá pra explicar o mundo como
a minha geração explicava, com uma lógica – deus criou o mundo, fez isso, fez aquilo. Agora a
gente não tem uma explicação lógica pra tudo. Estamos em um período de transformação da
visão de mundo. Então, as histórias valem a pena? De qualquer forma, eu acho que é melhor
uma história que tenha uma lógica, em torno de uma problemática que o leitor pequeno possa
absorver, do que a fragmentação. Mas também não sei o que é que é bom, o que será melhor
ou pior.
FC: Professora Nelly Novaes Coelho, você gostaria de deixar uma mensagem final?
NNC: Olha, tinha tanta coisa que eu poderia dizer. A literatura é um grande meio para você viver
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mais profundamente. Eu acho que aquele que tem a sorte de ser encaminhado para a familiaridade com a literatura e perceber o quanto ela tem de vida, de lições de vida, ganha muito. Para mim,
a literatura foi, sempre, uma grande mestra de vida. Coisas que eu achava absurdas, impossíveis, eu
via na literatura que não, que tinha muita gente que pensava assim, que agia assim. É um espelho
de vida maravilhoso. Então, eu acho que é preciso redescobrir a literatura, porque com os novos
aparelhos, a nova tecnologia, os leitores estão se afastando. A intimidade com as verdades da vida,
com os comportamentos, é só a literatura que pode dar, porque se dá no espaço invisível das nossas consciências, da nossa alma – eu não sei como dizer isso mas tem que penetrar, ao passo que
os contatos visuais não têm essa profundidade. Eu acho que a leitura continua sendo fundamental
para formação da visão de mundo de cada um. A letra continua sendo muito importante. As coisas
só passam a existir quando são nomeadas, a gente não pode esquecer. O que não é nomeado não
existe. Isso é exagero? Não, não é. Se você pensa em um objeto qualquer que você veja, tem que
saber o nome dele e para que ele serve, senão ele não existe. Assim é a vida. Tudo tem que ter
nome. E daí, a complicação, porque, às vezes, um mesmo objeto recebe um nome diferente. Visões
de mundo diferentes. A letra continua sendo chave na formação do ser humano. Tudo tem que
ter nome. Parece um absurdo. Mas mesmo para os analfabetos, eles têm que nomear o mundo,
porque sem a palavra ninguém vive. O homem se completa pela palavra. E a palavra na literatura
é, talvez, a forma mais ampla, mais verdadeira que existe.
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