Livro Orlando Ortega Diagramado - Cibai Migrações | Centro Ítalo
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Livro Orlando Ortega Diagramado - Cibai Migrações | Centro Ítalo
ORLANDO ORTEGA MEMÓRIAS E AVENTURAS DE UM MIGRANTE - sua vida e sua arte Observações: 1. o INÍCIO DE CADA TEMA (Sumário, apresentaçao, introduçao e capitulo) sem iniciar na página impar 2. Normalmente até a Introdução não vai a numeraçao das páginas 3. Sempre que ficar uma pagina par em branco , não colocar o numero da página e nem no inicio de cada capitulo. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE /1 RENASCENÇA CIBAI MIGRAÇÕES Capa: Editoração da capa: Exclamação Impressão e acabamento: Renascença Edição: Renascença e Núcleo de Pesquisa do CIBAI Migrações (Ficha Catalográfica) Todos os direitos reservados ao Autor Orlando Ortega Fone: E-mail: 2012 Edições Renascença Ltda. Rua Conde da Figueira, 98 91330-590 Porto Alegre – RS Fone-Fax: (51) 3334.4399 CNPJ 89 539 175/0001-85 CIBAI MIGRAÇÕES Rua Dr. Barros Cassal, 220 90035030 – Porto Alegre Fone (051) 3226 8800 Site: www.pompeiacibai.com ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE /2 Sumário Palavras da língua espanhola usadas no texto / 7 Apresentação do Autor / 9 Apresentação do CIBAI Migrações / 11 Introdução / 13 1. Histórias de infância / 15 A espera do pai marinheiro / 15 Salvo pela curandeira / 17 Vivendo numa favela / 18 Dr. Corrêa, o prático / 20 Catador de cobras / 22 Seu André / 24 O serralheiro Espanhol / 26 As confusões da vizinhança / 28 2. Os desafios do estudo / 31 O Reitor / 31 Enfim na sala de aula / 33 No trono do “banco branco” / 36 A prática na serralheria do Antonio / 38 A doença / 42 O adeus de Antonio / 46 Contato com os circenses e o atropelamento / 49 Práticas circenses / 52 Servindo o Dr. Venavides / 53 De volta à rotina das compras matinais e a história do Mudinho / 57 Os dois amigos / 63 Vendedor na estação de trem / 65 Reinício das aulas / 67 A apresentação circense na festa da Igreja / 71 A colheita da punsiga / 74 3. No mundo dos negócios / 77 O homem misterioso e o convite / 77 Conselhos da mãe / 79 Aventuras de um vendedor de pomada / 82 Viagens ao desconhecido / 87 Novas táticas de venda / 92 O pai de Manolo / 94 ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE /3 O fim da parceria com Manolo e a morte da cobra Carolina / 96 O adeus a Elida / 100 4. Novas peraltices e o retorno aos estudos / 101 O senhor Maturana / 102 As brincadeiras e os corretivos / 102 A luta pela recuperação de vinte centavos / 104 As safadezas dos irmãos / 106 De volta às aulas / 107 Músicos e sua fama de ladrões de galinha / 109 A bicicleta, presente do Polaco / 110 As lembranças dos amigos / 113 Secretário de dona Maria / 118 Descobrindo um avô Advogado e Prefeito / 121 As histórias de dona Maria / 122 Práticas políticas de Seu Júlio / 127 A má fama de Angelito / 131 Novas andanças / 134 Bananas por cigarro americano / 138 Férias escolares / 139 As viagens nos finais de semana / 143 Acidente de ônibus: salvo milagrosamente / 144 O recomeço / 152 Consertador de fogões / 155 Um presente para a mãe / 159 O violeiro / 162 As histórias de Ocoró / 166 O relato de experiências / 171 Expectador escondido das touradas / 172 As agruras na casa de um aristocrata / 175 O enfrentamento do touro / 179 As lembranças / 181 A missa de sétimo dia / 187 Dificuldades financeiras / 189 5. Fuga para outro País / 195 Em busca de dinheiro para a mãe / 195 Escondido no navio / 196 Noutro país: a ilusão / 198 Alucinação e novas amizades / 199 Engraxate e malabarista / 202 Dormindo sob o banco da praça / 204 Enfim, um banho / 205 Pernoitando na casa da Gina / 207 Indo para o interior / 210 O irmão de Biche / 211 Novos caminhos / 214 No teatro paroquial e amizade com motoristas / 219 ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE /4 No porto, dormindo ao relento / 222 Retido e encaminhado ao Consulado da Colômbia / 223 Confinado no Consulado / 227 O show / 229 Hóspede na casa do Cônsul / 231 Com passaporte consular / 236 Animando festa religiosa / 238 As confusões de Helena / 239 Soldador / 241 Celebrando festa pátria / 243 Amigo do oftalmologista / 245 Saudades da mãe / 246 Despedida / 247 6. O regresso / 253 A alegria de pisar na terra pátria / 253 De volta! Nos braços da mãe / 256 Reencontro com os ex-professores / 259 A dúvida dos moradores da vila: artista ou ladrão? / 261 A visita à dona Maria Ruiz / 267 Trabalhando no posto de gasolina / 268 Salvo milagrosamente do incêndio / 270 Maio, mês das mães / 272 No Juizado de Menores / 274 Autorização para viajar ao exterior / 280 Novamente girando o mundo / 282 Voltando à Barranquilha: a carta do Cônsul / 286 Outra vez no exterior / 289 Na casa do chefe da gendarmeria / 290 Apresentação na residência dos religiosos / 292 Exposição e show de contorcionismo / 298 Compras, lazer e retorno / 300 A promessa / 304 O passado / 305 Vai e vem nas fronteiras / 306 Apresentações de rua para casas de teatro / 307 Sucesso e prêmio / 311 7. Novos horizontes se abrem: Europa e Alaska / 313 Na Europa / 313 Idas e vindas / 316 As viagens temerárias em pequenos aviões / 318 O risco / 320 O convite do Padre Missionário / 321 Atravessando o canal do Panamá / 323 O frio / 325 No trem / 326 O ronco dos companheiros de viagem / 327 ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE /5 Viagem de trenó na terra do eterno gelo / 329 A rotina na Missão / 331 Aventuras no País dos esquimós / 332 O retorno da 1ª Missão e novas viagens / 338 O conflito da liderança canina / 340 A saudade decide / 341 8. O retorno à casa materna / 345 As angústias da volta / 345 As peripécias de Túlio / 346 O encontro com Efraim / 349 A tourada e a fuga noturna do hotel / 352 O adeus ao baú e a Efraim / 354 O recomeço / 357 A revolta dos indígenas / 360 Macareno / 361 Novos obstáculos / 364 Artista, serralheiro e mestre / 366 Festejos natalinos / 370 A escola de aprendizes e o conflito entre paróquias / 371 Imigrante, um intruso? / 372 A surra, o trauma e o fechamento da escolinha / 375 Empresário falido / 376 O desejo de uma companheira / 378 Com as bênçãos da mãe / 384 Os desafios da enchente / 389 Com a família da Regina / 390 Noiva e revolução / 393 A fuga / 400 Nem no inferno e nem no céu: no hospital e roubado / 401 No cassino / 403 9. A vida se renova em Porto Alegre / 407 O encontro da companheira e a organização do trabalho / 407 Acolhendo migrantes / 408 A esposa secretária / 411 Casa da Cultura Colombiana (CCC) / 412 Cuidados com os olhos / 413 Novo élan voltado para a comunidade / 418 Cônsul Honorário da Colômbia / 427 Fonte Talavera: um sonho / 430 Perdas dos recuerdos e documentos / 431 Agradecimento a Deus e a minha Santa Sara Kaly / 434 O Autor / 435 Coleção 1 e 2 / 437 ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE /6 PALAVRAS DA LÍNGUA ESPANHOLA USADAS NO TEXTO Alcatran – piche Antipiodista – circense que trabalha com os pés Arepa – broa de milho Ballenato – ritmo musical colombiano Balvanera – Nossa Senhora de Balvanera Bambuco – ritmo musical colombiano Banderilha – tipo de arpão aplicado no morrilho do touro nas touradas Baranda – sacada Buleria – ritmo musical espanhol Burladeiro – local onde o toureiro se protege na arena Cachibache – coisa que não presta Caporrosa – tipo de espuma de queda d’água Chaval – guri Chicarrón – toucinho frito Chicuelina – passo taurino Chinego – arabescos utilizados na serralheria como adorno Chinquinquirenha – música antiga colombiana Conquilha – matriz para fabrico de peça na fundição Currege – apelido de guri Cumbia – ritmo musical colombiano Dios – Deus Erutar – arrotar Faena – movimento do toureiro nas toureadas Galleta – bolacha Gaonera – passe taurino Grifo – torneira Guabina – ritmo musical colombiano Guaiavera – tipo de camisa Hermanito – irmãozinho Horno – forno Juan – João Liteira – andor onde se conduz uma imagem de santo Lleva – leva Malabares – arte do malabarista ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE /7 Mamita – mãezinha Merengue – doce ou tipo de dança Mono – macaco Monosábios – trabalhadores que retiram o touro morto na arena Monteira – chapéu de toureiro Nhatos – nariz chato Paella – tipo de comida Paisa – os nascidos em Antioquia, Colômbia Paisanito – conterrâneo, da mesma terra Pase – movimento taurino nas touradas Patacon – banana da terra, frita, amassada e refrita Pativilca – pessoa que circula a pé ou condução até chegar a algum lugar Pileta – piscina Pan – pão Porro – ritmo musical colombiano Postim – grandeza Punsiga – folha de planta que colocada em água para ferver, produz uma água como anil. Ralluella – jogo infantil, brincadeira Reales – reais Recuerdo – lembrança Redondel – praça redonda para toureadas Regoldar – arrotar Ruedo – o mesmo que redondel, praça redonda para toureadas Sancocho – tipo de sopa tradicional na Colômbia Sonson – municipio de Antioquia, na Colômbia Sueño – sonho Tamales – comida típica da Colômbia Tarima – cama dos esquimós Tauromaquia – a arte de tourear, tudo o que se relaciona com toureadas Taxidermista – empalhador de animais Tenta – aposta, jogo Tiempo – tempo Touretes – touros pequenos Touril – local onde se guardam os touros que vão ser toureados Tutuleno – assim chamavam o pipi das crianças Usureiro – quem comprava a fiado e não conseguia pagar Veronicas – um passe taurino nas toureadas Viejita – velhinha, senhora idosa ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE /8 Apresentação do Autor E sta é minha vivência, contada como se fosse um conto sem nexo. Não contém nenhum tipo de filosofia, nada instrutivo, menos ainda um guia para seguir um bom caminho, ou orientação para negócios e nem para ser um bom profissional. Escrevi utilizando o mais simples português, nada de palavras complicadas, primeiro porque não sou erudito e também porque não sou muito conhecedor da gramática portuguesa. Escrevi esta minha vivência a pedido de amigos, que sempre queriam saber mais e mais da minha vida, e quando algo lhes contava das minhas aventuras e das minhas andanças por este mundo de Deus, me diziam: – Ortega, esta tua história merece um livrinho. Fiz várias tentativas, mas não tinha nascido para ser escritor. Até que um dia deixei a preguiça de lado. Apertei o botão cerebral e surgiram alegres as reminiscências deste abrir de olhos e descobri que eu existia neste mundo, que eu morava numa maloca de uma vila miserável, que tinha sido pegador de cobras para vender, fazer compras para os vizinhos, tão pobres como eu, até encontrar meu primeiro amigo, um espanhol chamado Antonio. Fugir de casa, virar o mundo, ter minha indústria, até chegar a Cônsul. As minhas andanças por este mundo me ensinaram um pouco de psicologia, a conhecer os verdadeiros amigos no olhar, no falar, até no sorriso. Conheci pessoas, que por mais que tivessem estudado, chegaram num determinado patamar e daí não conseguiram subir nem mais um degrau. Conheci vários, eles são os donos da verdade. São eles os que sabem tudo, são radicais nos seus pontos de vista, para eles o que os outros falam é pura mentira. São os fracos, fáceis de convencer, para ingressar em seitas, religiões e crendices, eles acreditam que as imagens de santos suam e que os galos têm dente de siso. Tenho um amigo desse tipo, eu sentia nele o mapa acima descrito. Num dia, sem eu querer, ouvi o que ele falou para outro amigo: – Tudo o que Orlando fala é 90% pura mentira. E ele trata sempre de dizer para as pessoas que me conhecem: ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE /9 os verdadeiros amigos acreditam em mim, os falsos nele, estes são fracos, se deixam convencer. Eu não me importo, ele continua meu amigo mesmo assim, e faço de conta que nada sei. Uma coisa aprendi, que é melhor demonstrar ignorância e não sabedoria, porque aquele que se apresenta como sábio, termina sendo um ignorante, e aquele que se apresenta como ignorante, ele termina sendo algo que eu não sei o que mais. Ortega ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 10 Apresentação do CIBAI Migrações Com a presente publicação, oferecemos aos leitores o livro Orlando Ortega: memórias e aventuras de um migrante - sua vida e sua arte. Com ele, nada mais queremos que simplesmente dar a conhecer a vida invisível de um migrante que reflete a experiência de milhares de outros que, por diferentes necessidades, devem colocar-se a caminho, deixando sua pátria, sua cultura e sua terra na busca de uma melhor qualidade de vida, ou unicamente, para viver. Até o presente momento, a maioria de nossas publicações da Coleção Pastoral & Migrações, foram frutos de pesquisas voltadas para análises e tendências de realidades coletivas, que atendessem a esfera acadêmica, os diferentes níveis institucionais da sociedade e os poderes constituídos. Durante esses mais de 50 anos de serviço com os migrantes aprendemos que todo aquele que parte para uma terra estrangeira aspira, junto com o “trabalho e o pão”, ser reconhecido e acolhido como pessoa e cidadão, com seus direitos e deveres. Por isso, o CIBAI Migrações dá continuidade as suas publicações, com nova série Coleção Histórias de Migrantes, onde enfatiza um olhar voltado para o interior de quem migra: seus sonhos e dramas. Ao Senhor Orlando Ortega nosso agradecimento por tão belo testemunho. Pe. Lauro Bocchi Diretor do CIBAI Migrações ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 11 ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 12 Introdução onsiderando os padrões literários oficiais este texto encontraria fortes obstáculos para ser publicado: a pontuação foge das regras como também a exposição dos acontecimentos, marcada por frequentes repetições. Se quiséssemos modificar o texto retiraríamos a força poética e a qualidade do testemunho. C Como os migrantes que, dentro do ordenamento jurídico de qualquer país sofrem limitações, no entanto se fazem presentes em todos os continentes, cruzam toda e qualquer fronteira em nome de uma humanidade sedenta de vida, com seu rosto de gente suado, empoeirado, marcado pela dor, o mesmo acontece com este texto: não tem lugar privilegiado na estante de uma biblioteca, mas está bem nas mãos dos familiares, dos amigos, dos migrantes e das instituições que acompanham os migrantes. O livro mostra como se pode, pela inteligência, força de vontade e pela paciência de um tecelão, enfrentar tudo sem preguiça, sendo amável e sempre disposto a aprender. Ortega nem pode frequentar a escola por ter uma enfermidade que lhe reduziu a visão, mas suas mãos iluminadas pela agudeza intelectual fazem milagres. A desgraça é oportunidade, porta que se abre, nova vereda para o futuro por estar acordado (levanta cedo), por ser disponível (faz as compras para as vizinhas, puxa o fole para o espanhol), por querer ajudar a mãe na subsistência da família em extrema pobreza (torna-se catador de cobras, cuidador de crianças e idosos, carregador de malas e mercadorias, vendedor de pomada), por querer aprender (pratica mágicas, artes circenses, habilidades de toureiros e até membro de conjunto musical), por aproveitar suas habilidades de trabalhador e sem medo de se lançar (torna-se bombeiro, serralheiro, mestre de escola profissionalizante, escultor). Para ter um ganho estável no apoio à família (aventura-se em dirigir trenó no intenso frio do Alaska). Sempre curioso, sempre correto, sempre serviçal, aprende, tornase amigo de todo mundo e cria uma rede inesgotável para o próprio sustento e de sua família. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 13 O texto não é um simples relato de lembranças, de aventuras ou o desabafo de um eu vencedor que enumera troféus. Sem atitude moralizadora dirige-se ao leitor ouvinte para mostrar que crise mesmo há somente quando falta auto-estima e criatividade. O problema não está fora, mas dentro de nós. Ortega não culpa os outros pelas desgraças e nem procura explicações para mascarar a preguiça e o medo. Proclama que numa sociedade marcada pela exploração é possível viver criando espaço solidário e fraterno. É o que acontece em Porto Alegre. Ortega decide organizar-se com um trabalho fixo, fundar a sua família, construir uma casa, abrir espaço para os migrantes sem rumo e os conterrâneos imigrantes. É o gesto da solidariedade que une amparo físico e espiritual no reconhecimento que a cultura de cada povo é fundamental para sua vida e que cada povo deve pôr em comum sua cultura para o crescimento de todos os povos. Amigo leitor, aqui está um testemunho singelo, até ingênuo, de uma vida de migrante. Toda sugestão que quiseres fazer será bem acolhida para aprofundar a “transgressão” do migrante, superando todos os percalços, em busca de cidadania plena como foi a caminhada de Ortega. Porto Alegre, 2012 Jurandir Zamberlam, Giovanni Corso e Joaquim Filippin Editores do CIBAI Migrações ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 14 1 HISTÓRIAS DE INFÂNCIA E u conto o que minha mãe me contou e que contava para os vizinhos, para os amigos e também contava para as pessoas quando se falava a meu respeito. A espera do pai marinheiro Contava que era 27 de agosto, dia em que se completava um ano de eu ter chegado a este mundo, ou seja, era o meu primeiro aniversário. Segundo ela, nesse dia, madrugáramos, porque coincidentemente, chegaria meu pai, que trabalhava num navio petroleiro. Ele chegaria ao porto de Buenaventura, que está a 130 quilômetros da cidade de Cali, onde morávamos. Ele pegaria o trem e em 6 horas estaria na nossa cidade. Éramos três irmãos e eu era o caçula. Vestidos a capricho na estação ferroviária, esperávamos a chegada do pai, que trazia presentes para nós, inclusive para a mãe. O dia foi de passear, comer sorvete, ir ao parque de diversões. Tudo era alegria, pois era a chegada do pai e meu aniversário! Ela contava que eu era muito tagarela e no parque falava com as pessoas e elas me achavam muito engraçado e simpático. Contava que as meninas adolescentes me pegavam no colo e as pessoas adultas também. Ela me dizia que sentia muito orgulho de ver a atração que eu causava e meu pai era um verdadeiro pai coruja. Já à noite, eu estava um pouco febril e eles acharam que a causa era o corre-corre do dia, porém não era assim, os dias se sucediam e eu continuava de mal a pior, o desespero da minha mãe era muito grande, porque meu pai tinha que viajar e ela estava prestes a ganhar o quarto filho e eu naquele estado deprimente: era puro osso, um verdadeiro ratinho, nada de carne no corpo, os pezinhos sempre encolhidos e com o dedinho indicador sempre no nariz. Estático, parecia mais um cadáver, que de vez em quando, emitia um leve gemido, talvez de dor. Os médicos não ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 15 conseguiam descobrir a minha doença, por mais que tentassem remédios, nenhum fazia efeito, e a febre às vezes diminuía, outras vezes aumentava. Meu pai, quando voltava e ficava em casa fazia serviços de marcenaria, enquanto o navio onde trabalhava era descarregado. Desiludido e cético quanto a minha melhora, fez o meu caixão e orientou minha mãe para, no caso de minha morte, e na ausência dele, como deveria proceder ao meu enterro. Minha mãe me contava que assim chegou outro 27 de agosto, um ano após o primeiro. Ela me asseava, chorando e lembrando que, tão lindo tinha sido o meu primeiro aniversário, um ano antes: o pai presente, todos juntos, tanta alegria e neste ano, a tristeza e a espera da minha morte. Meu pai ausente e minha mãe com mais um filho recém-nascido. Ao me contar isso, ela se emocionava. Eu tratava de acalmá-la, fazendo uma brincadeirinha, mas estava mais interessado em saber como ainda estava vivo neste mundo de Deus e insistia para que continuasse. Então ela contou que me deu um banho com água morna, me perfumou com talco, me enrolou num pano branco e me deitou numa travessa de madeira, tendo o cuidado de colocar almofadas de algodão. Concluindo o serviço, colocou-me na entrada da sala, lugar que sempre me colocava, porque o sol penetrava na maior parte da manhã. Lembra-se rindo que, num determinado momento, viu um tremendo cachorro, do tipo policial, entrar na sala e me cheirar. Diz que pegou uma vassoura e deu-lhe uma vassourada com tanta força, que o dito voou até o meio da rua, e quando caiu, só fez “au”, saiu correndo e gritando “ai, ai, ai...” Me arrepio todo, só de pensar que a intenção daquele cachorro seria devorar-me. Estava muito interessado no final e ela continuou: é claro que comecei a ver uma forma de colocar algum empecilho na porta para evitar um novo susto. De repente apareceu uma senhora pedindo esmola. A senhora ficou me olhando e questionou: – O menino está doentinho, não é? – Sim senhora. – A senhora não sabe o que é que o menino tem, não é? – Não senhora. A minha mãe ficou um pouco pensativa e triste e me falou: parece que estou vendo aquela velhinha e lembro-me quando ela me disse: – Vizinha, o que o menino tem é mau olhado e do bobo. Trate por mau olhado que o menino tem chances de se salvar! Minha mãe continuou: Corri, peguei o que primeiro encontrei, pão, arroz, feijão, farinha, bananas e algum dinheirinho, dei para a senhora e lhe agradeci. Ainda antes de ir embora tornou a me dizer: – Trate-o por mau olhado que o menino há de se salvar. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 16 Minha mãe chamou às pressas sua amiga, que era da mesma terra que ela e se tratavam por comadre: – Comadre, por favor, me cuida meus meninos, é que... E lhe contou da velhinha que tinha lhe dito que, num determinado lugar, tinha uma senhora que fazia essas curas. Salvo pela curandeira Ela emocionada continuou me contando e disse: - Uma vez a minha comadre na minha casa, saí correndo à procura da dita senhora. Não era perto, mas a encontrei. Viemos quase correndo. Quando em casa, olhou para ti e me disse: – É mesmo mau olhado e do bobo. Eu já volto, não se preocupe que o menino está salvo. Saiu e minutos depois regressou com uma quantidade de ervas. Fez uma ervagem, amassando-as. Coou e deu um cálice para tu tomares, depois, com a mesma ervagem, deu três sopros na tua moleira, e orientoume para te dar outro cálice três horas mais tarde. Aconselhou-me a não dormir porque a qualquer momento tu deverias expelir tudo que estava dentro do teu estômago e teria que ser limpo imediatamente. A senhora foi embora prometendo voltar no dia seguinte. Minha mãe me contou que, num determinado momento, estiquei os pés, fiz um pequeno esforço, saindo um ruído da minha garganta. No mesmo momento, expeli alguma coisa como se fosse uma pasta verde, junto com sonoros gases. Embora advertida que estava minha mãe o susto foi pouco. Sua comadre, que não quis deixá-la sozinha, ajudou-a. Minha mãe continuou a me contar: - Te limpamos, tu esticaste os pés, tirou o dedo do nariz e nos olhavas, como querendo descobrir quem éramos. Meia hora depois, com um gritinho tênue, quase ininteligível, disseste: Mãe, tô com fome! A comadre e eu, chorando, corremos para a cozinha. A orientação era para te dar um chá preto com leite e bolachinhas de soda (galletas de soda, na Colômbia. Deve ser por isso que gosto tanto destas bolachinhas. Quando chego na Colômbia, procuro sempre comprar). Acomodamos-te de forma que tu ficasses quase sentado, encostado em travesseiros. Eu te dava o chá de colher e tu, com tuas próprias mãos, seguravas as bolachas e comias. Minha comadre e eu chorávamos de alegria. Nós duas ficamos te dando carinho, felizes ao ver a rápida recuperação. No fim, pegaste no sono e nós duas vencidas pelo cansaço também pegamos no sono. Uma batida na porta nos acordou. Era a senhora Curandeira que trazia mais ervas. Tu dormias em uma paz divina, a senhora aprontou mais um banho de ervas e mandou preparar um mingau de maizena com leite, porque acordarias com fome. Depois do banho de ervas e os três sopros na moleira, após te secar, vestir e perfumar, te sentou e tu, com tuas próprias mãos, sem nenhuma ajuda, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 17 tomavas o mingau e comias as bolachas. A senhora olhava para ti e, tentando brincar contigo, pronunciava estas palavras: – Que é daquele gurizinho que ontem estava para morrer e olha ele ali comendo! Que é dele? Tu nos olhavas sério, a tagarelice e o sorriso estavam apagados. Minha mãe continuou: - Em um determinado momento, perguntei para a senhora se ela conhecia aquela velhinha que a tinha recomendado. Dei-lhe explicações de sua fisionomia, mas não soube me dizer quem era. Queria recompensá-la. Fui de casa em casa perguntando a meus vizinhos, porém nenhum deles tinha visto a velhinha pedindo esmola por aqueles dias. Quando saía na rua, procurava a dita senhora, mas nunca mais a pude encontrar. Paguei a Curandeira o que me cobrou, que por certo foi muito pouco, porém não quis receber além do que cobrou e me deixou a lista dos cuidados que deveria seguir para tua rápida e sadia recuperação. Deveria te alimentar com leite de cabra. Teu pai contratou um velhote, dono de cabras, para que, durante seis meses, trouxesse o leite. Tu cresceste, engordaste, ficaste forte, tornaste a tagarelar, a sorrir e a ser simpático a todos, para a alegria do teu pai, minha e de minha comadre, cujo nome era Lúcia Klinger. Eu a chamava de comadre e vocês, carinhosamente, a chamavam de tia Lucha. Nada disto eu vi nem senti, foi a minha mãe que me contou. E assim se destacam os meus dois primeiros 27 de agosto. Vivendo numa favela Que horas são, que dia é, em que mês estamos, que ano é, quantos anos eu tenho? Nada disso sei. Já não moramos na mesma casa, os vizinhos são outros, o bairro é um aglomerado de casinhas mal feitas, a maior parte forradas com papelão, outras com madeiras mal colocadas, outras ainda eram forradas com latas de banha, que eram abertas e pregadas e que também cobriam muitos telhados. Ruas não existiam, eram fendas cheias de mato. Hoje fecho os olhos e relembro aquele símbolo da pobreza, a gurizada toda andando descalça, quase todos usando shortezinhos bem curtinhos. Andávamos sempre cabeludos, salvo quando um senhor de nome Marcelo reunia a gurizada e nos cortava os cabelos. Lembro-me um pouco do funcionário dele, um baixinho, magro, barba rala, sarará, com falta de dentes, mal vestido e sujo. Com um forte hálito provocado pelo uso do cigarro. Embora o corte do cabelo fosse mal feito, era um descanso para nossas mães. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 18 A minha casa era igual a tantas outras, feita pela minha mãe, com a ajuda de algumas vizinhas. Também era forrada de papelão e era de uma peça só. Interiormente, havia uma cama de casal, onde dormíamos os cinco irmãos homens. Em outra cama menor dormia minha mãe com minhas duas irmãs. Havia também uma caixa grande de madeira, com quatro pés, que servia de mesa, e era onde minha mãe passava a roupa dos fregueses. Era lavando e passando roupa que nos sustentava. Água encanada não havia. Distante umas duas quadras da casa o governo tinha colocado uma torneira e todo casario se abastecia dali. Esgoto cloacal também não existia. Cada casa fazia um buraco e colocava uma tampa de madeira. Ali eram feitas as necessidades. Também eram usados pinicos e depois a sujeira era jogada nos buracos. Para nós homens, nada disso era problema, pois fazíamos as nossas necessidades até no mato. Quando sentíamos vontade de fazer xixi, puxávamos o pipi para fora e fazíamos xixi caminhando e rindo de nossa pouca vergonha. Ao tirarmos o pipi era costume dizer: um colombiano não mija só! Para nós homens, tudo era muito fácil. Fazer as nossas necessidades não tinha nenhum problema, tanto no mato como em nosso buraco, tudo estava solucionado. Quem sofria muito eram as meninas, que tinham medo de ir ao banheiro, ou seja, ao buraco, porque, como em volta tudo era mato. Às vezes escutávamos os berros das meninas. Corríamos, armados de paus, porque sabíamos que os berros eram por causa da existência de cobras. Quase sempre conseguíamos matar e, imediatamente, corríamos com a cobra morta para levar a um tal senhor Corrêa, que vendia ervas, chás, pomadas para todos tipos de doenças. Vendia também filtros para se fazer amar, para conseguir odiar. Muita gente ia à sua procura em busca de remédio para algum mal e, pelo que me lembro, todos eram curados, conseguiam se fazer amar ou conseguiam odiar, segundo o que se comentava. A casa do Sr. Corrêa ficava aproximadamente quatro quadras da nossa choupana. Ocupava uma casa ampla, de construção de aparência muito antiga, porém muito conservada e bem pintada. Na frente tinha um jardim bem cuidado e na entrada havia duas amplas portas que davam bastante luminosidade a seu interior que era um salão amplo, onde se viam muitos bichos empalhados. Também havia cobras empalhadas e algumas vivas em gaiolas. Tinha muitos passarinhos em uma gaiola, que ocupava toda a altura do pé direito da construção, de aproximadamente 2 metros e 80 centímetros por uma largura de 6 metros, sendo sua profundidade de aproximadamente 3 metros. No interior da gaiola, no centro, havia um tipo de pileta que servia de bebedouro para os passarinhos, onde a água jorrava continuamente. Ao lado da pileta, em dois vasos grandes, havia duas árvores de regular tamanho. O chão era de cerâmica. Havia vários depósitos de comida, alguns com alpiste, outros ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 19 com frutas e outros com miolo de pão. Eu ficava horas distraído ouvindo o barulho e o sobe e desce alegre dos passarinhos, outros comendo, alguns tomando banho. Tudo dentro dessa gaiola era bem organizado e lindo de se ver. Entre a gaiola dos pássaros e a gaiola das cobras, a distância era de aproximadamente 1 metro e 20 centímetros, e apesar de estar distante da gaiola dos passarinhos, talvez elas vivessem sonhando com um deles nas suas presas. Dr. Corrêa, o prático Na parte da frente do prédio e na parte superior das portas, havia um letreiro de aproximadamente 5 metros de largura por um metro de altura, com letras caprichosamente desenhadas e com sombras, de onde se lia: Herbanário Dr. Corrêa - Consultório. Ao entrar no amplo local, notavam-se nas paredes laterais, prateleiras com divisões, onde de um lado, estavam caprichosamente arrumados pacotinhos de chá, com seus respectivos nomes e a utilidade, e na outra parede lateral, também com divisões, havia molhos de ervas com diferentes nomes e para diferentes curas. Também havia em vários lugares, couros secos de cobras de variadas cores. Em uma armação de vidro e com várias gavetas, havia uns pós de diferentes cores, vermelho, laranja, branco, cinza, cada um com cheiro diferente e utilidade também diferente. Em caixas de madeira, colocadas de forma inclinada, havia pedras parecidas com enxofre, umas amarelas, outras brancas, algumas quebradas e outras inteiras. Em um poleiro improvisado, estava uma coruja empalhada, com olhos bem abertos, como que olhando os visitantes. Uma linda arara e um pequeno louro, ambos empalhados, se encontravam perto da coruja. Caixas com sementes, presas de javali, colares de penas e caroços. Ao lado direito, quase à entrada e a guisa de dar boas vindas aos visitantes, estava um esqueleto do tamanho de um homem de um metro e 65 centímetros de altura. Nunca pude saber se era de um ser humano ou se era artificial. Ao entrar, a primeira coisa que se sentia, o olfato era atingido por aquele cheiro de ervas misturado com outros tantos cheiros. Era só o primeiro impacto, em seguida a gente se acostumava. Quem mantinha tudo limpo e organizado era a esposa do Dr. Corrêa. Sempre estava ocupada com a organização e limpeza de tudo. O Dr. Corrêa era o contrário da esposa, dona Dora, assim ela se chamava. Tudo que ele pegava para mostrar para a freguesia, deixava em qualquer lugar. Dona Dora, que estava sempre atenta, recolocava novamente no ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 20 seu respectivo lugar. A dona Dora era forte, alta, com 1 metro e 68 centímetros de altura, pesava 110 kg, era branca, de cabelos castanhos e ondulados, dentes não muito brancos, porém bem cuidados, apesar de ter um nariz arrebitado. Seu rosto era bonito. Vestia-se com elegância e sempre estava perfumada. O Dr. Corrêa era o antagônico dela, era baixinho e magro, a altura de 1 metro e 64 centímetros e o peso de 64 qulos, seus cabelos eram pretos, miudamente encaracolados, o nariz grego, olhos claros, pequenos e com um certo olhar picaresco. Um pouco barrigudo, seus dedos da mão, indicador e médio, eram amarelos, igual aos dentes, de tanto que fumava. Era muito descuidado com sua forma de vestir, o cinto estava mais na barriga que segurando as calças. Os dois eram boa gente, muito humanos. Todos que chegassem para lhes pedir algo, sempre levavam. Quem fazia todo o serviço doméstico, inclusive cozinhar, era a empregada, uma mulata não muito alta, jovem, bonita, segundo a fama que tinha. O marido era um crioulo magro, alto, que também trabalhava na casa e era o encarregado da plantação das ervas e da horta. Por certo, os dois eram muito eficientes, segundo diziam o Dr. Corrêa e a dona Dora. Às vezes, nas segundas-feiras, quando os dois chegavam ao serviço, ela apresentava alguns hematomas no rosto, ou nos braços e até nas canelas, e ele aparecia com alguns arranhões na testa ou também nos braços. Os patrões já sabiam do que se tratava. É que eles gostavam de ir aos bailes e tomavam umas que outras. O crioulo, que era muito ciumento, e já alterado, um pouco pela bebida, começava a cuidar da mulher, pois ela despertava interesse com seu bumbum arrebitado e seios protuberantes, especialmente quando o teor alcoólico se elevava. Zecelino, que era o nome do crioulo, pegava a Elvira, nome da mulata, puxava por um braço. Ela não queria ir embora. Ele quase a arrastava, às vezes ela caía, ele a levantava e quando ele caía, ela o ajudava a se levantar, e assim, entre tombos e tombos, xingamentos daqui e xingamentos de lá, chegavam em casa, e aí a briga era aos socos. Ele a insultava e ela outro tanto, e no dia seguinte, quando chegavam ao serviço, a senhora Dora olhava para ela cheia de hematomas e lhe dizia: – Já sei minha filha, brigaram outra vez! Já te disse minha filha, evita essas festas, aí está teu rosto todo machucado! E olha teu marido, cheio de esparadrapos, o que é isso minha filha? Eu, naquela época, não entendia nada, calculo que deveria ter sete anos. Hoje começo a relembrar todos esses fatos e lembro que a mulata Elvira lhe respondia: – Dona Dora, não tem coisa mais gostosa que, após um baile, bebida e uma boa briga, fazer amor até pegar no sono! Os médicos chamavam ao Dr. Corrêa de charlatão e algumas pessoas também, porém ele não se importava. Em conversas com outras ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 21 pessoas, ele dizia: – Eles cobram caro e curam poucos doentes, eu cobro barato e curo muitos doentes! Catador de cobras Dr. Corrêa nos pagava três centavos por cada cobra morta e nos prometia pagar dez centavos estando vivas. Meus amigos, que sempre andavam junto comigo, eram muito dorminhocos, eu sempre fui muito madrugador. Logo que me acordava, saltava da cama e saía à procura de cobras no banheiro, às vezes as encontrava dormindo e com uma paulada, aí ficavam. Para ter certeza que estava morta dava umas quantas pauladas na cabeça. Depois a amarrava numa corda que carregava e a levava arrastando até a ervaria, recebia meus três centavos e ficava muito feliz. Gostava de ficar na horta conversando com Zecelino, que sempre estava às voltas com a plantação, capinando, varrendo, plantando, colhendo. Algumas vezes lhe ajudava a molhar as plantas, a maior parte das vezes, quando ficava, ouvia a voz da Elvira chamando Zecelino para tomar café e ela dizia: – Traz o negro para também tomar café. O negro era eu, assim que me chamavam, por ser o mais negro do bairro e também de meus irmãos. Conversava muito com todos eles na hora do café. O Dr. Corrêa me dizia que bom mesmo era pegar as cobras vivas, porque mortas ele só aproveitava a graxa e vivas aproveitava também o veneno. A graxa era para fabricar pomadas e o veneno para fabricar antídotos para picadas de cobras e de animais com ferrão, era por isso que pagava dez centavos por elas vivas. Como eu não sabia como pegálas vivas ele se prontificou a me ensinar. Primeiro pegou uma corda grossa com aproximadamente um metro de comprimento, pintou uma ponta com tinta verde escura imitando a cabeça da cobra e com tinta verde clara imitando a garganta. Depois pegou duas forquilhas de uma árvore, amarrou uma linha na corda, na parte pintada imitando a cabeça e mandou-me puxar. A explicação era como pegar a cobra em movimento e o mais perto da cabeça, aprisioná-la com uma das forquilhas, ela se remexeria toda tratando de escapar. Com a outra forquilha e no que poderia ser a garganta, a seguraria de forma que a cabeça ficaria imóvel. Era o momento de pegá-la pela cabeça. Primeiro a prática era com a corda, depois tirava uma das cobras da gaiola e eu tinha que aplicar o ensinamento. Mesmo sendo elas muito velozes no chão, tornei-me um craque pegador de cobras. Como era muito madrugador, cedo saía à cata delas, até as farejava, dificilmente em uma semana não pegava uma. Meus três amiguinhos, Piro, Bu e Niro fugiam de mim, porque uma vez, eu quis lhes ensinar a pegar as cobras e larguei no chão uma que eu tinha ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 22 pego. Fugiram gritando e sempre fugiam de mim como o diabo foge da cruz. Um dia o governo mandou abrir e patrolaram as ruas. Com isso o mato desapareceu e as cobras sumiram. Lá pelas tantas aparecia uma. Madrugador que eu era, apenas me acordava, saltava da cama e saía para a rua. As vizinhas já me conheciam e me chamavam: – Negrinho, me compra um litro de leite! Outra: – Negrinho, tu voltas para me comprar o pão de queijo! Sempre andava correndo. Com a abertura das ruas o bairro começava a se organizar, já tinha armazéns. De vez em quando um carro passava por lá. Eu crescia, ficava mais famoso entre a vizinhança. Quando uma vizinha fazia um bolo ou um doce, um pedaço era levado para minha mãe. Elas tinham pena de minha mãe, com sete filhos para criar e sem marido! Eu nada entendia, sabia que os vizinhos falavam para minha mãe que eu era querido, educado, prestativo, um amiguinho muito amado. Sempre ganhava camisetinhas, shortezinhos ou algum brinquedo em datas especiais. O Dr. Corrêa sempre aparecia para nos visitar e não faltava o presentinho. Lembro-me que um dia me levantei como de costume e antes de sair de casa fui fazer xixi no banheiro e quando quis entrar, me dei com uma cobra. Sem fazer barulho, peguei minhas forquilhas e pronto, meus dez centavos estavam ganhos. Como era muito cedo e o Dr. Corrêa estaria ainda dormindo, então, com a cobra na mão, fui pegar o dinheiro para comprar o leite de uma vizinha, a senhora Georgina. Quando me viu com a cobra, deu um berro tal, que acordou todos que ainda dormiam. Dizia: – Negro, sai com esse bicho daqui! Levei um susto com o grito que ela deu, que larguei a cobra. Como eu não tinha as forquilhas na mão, com uma pedrada matei a cobra. Não eram mais dez centavos, agora eram três centavos que receberia. Guardei a cobra enrolada em um papel e fiz as compras para os vizinhos. Tomei café na casa de dona Georgina que, me dando carinho, dizia: – Negrinho, não anda com esses bichos que são perigosos! Estávamos nessa conversa quando chegou o marido dela, que trabalhava por perto, e que ao ouvirem os berros de dona Georgina um vizinho foi chamá-lo. A notícia tinha avançado de forma vertiginosa. Levei a cobra ao Dr. Corrêa e a notícia já tinha chegado lá. Quando ouviram minha voz, dona Dora, Zecelino e a esposa, correram para saber dos acontecimentos contados por mim, porque a notícia que tinham contado para eles, era que eu tinha atirado a cobra no corpo de dona Georgina e que a cobra a tinha mordido e que o marido dela e os vizinhos tinham matado a cobra e com a própria cobra, depois de morta, tinham me dado uma surra. O Dr. Corrêa já estava se aprontando e levando pomadas e remédios para usar no caso ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 23 de terem me ferido. Quando me viu entrar com a cobra, me olhou por todo corpo, me perguntou da surra e de todo acontecimento que tinham inventado. Imitei o tremelico, a bocarra que abriu dona Georgina e todos seus arabescos. Exagerava um pouco e caímos em gargalhadas. Tomei café de novo e o Dr. Corrêa me pagou cinco centavos pela cobra morta. Seu André Não sei por que me lembro de Seu André, calculo que era um senhor idoso, morava em uma maloquinha construída com ajuda dos vizinhos, era doente e tinha dificuldade para caminhar, era aposentado, não tinha profissão, trabalhou por muitos anos em uma fábrica de papelão, sempre fazendo limpeza. Ele me contava que conhecera sua esposa na mesma fábrica, namoraram durante dois anos e casaram. Tiveram uma filha, que estava casada, e tinha um casal de filhos, ele me contava tudo de forma detalhada. O dia que lhe perguntei pela esposa, me disse que ela se aposentara antes que ele, mas tinha fugido com um cara que também trabalhava na fábrica e que tinha sido noivo dela muito antes dele a conhecer, que nunca mais voltou para ver a filha, nem os netos. Contavame que sofrera muito com isso e que por um tempo, tornara-se um bêbado. Minha filha, contava Seu André, me levou a morar com ela, porém meu genro, todos os fins de semana chegava bêbado em casa e a maltratava. Foi aí que descobri que eu, gambá, também trataria mal minha mulher, foi então que parei de beber. Minha filha ama seu marido, ele é um homem bem carinhoso para com ela e seus filhos, só que quando bebe, perde a calma. Uma vez ele me insultou e disse que não queria me ver mais na sua casa. Mesmo sabendo que ele estava bêbado, eu peguei minha trouxinha e vim embora para a minha terra, agora estava com muitas saudades. Ele tinha recebido muitas cartas de desculpas e pediram seu retorno, mas ele não quis mais voltar, depois adoeceu e foi parar no hospital. A aposentadoria dele era pouca e não conseguia mais pagar o aluguel porque não podia fazer biscates para aumentar o ganho, então optou por vir morar nessa terra do governo, onde sempre nos ameaçavam tirar dali. Depois de fazer as compras para todos eu ia lá no Seu André, pegava dez centavos que ele deixava em uma mesinha e a garrafa térmica para comprar café com leite, pão, ou pão de queijo, ou também broa de milho (arepas). O almoço dele era fornecido por um restaurante que ele pagava por mês. Como não tinha água encanada e ele gostava de tomar banho a cada três dias, eu pegava um balde para trazer água da torneira e depois subia em uma escada que ele tinha feito, de forma que eu podia encher uma lata que era fixa no centro por dois parafusos. Na parte da ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 24 frente tinha uma corda, e ao puxá-la, a lata entornava e a água caía sobre uma calha de taquara e da sua ponta, a água saía em forma de torneira. Eu puxava a corda e ele tomava seu banho. Depois, eu tirava minha roupa e ficava pelado e também tomava meu banho, eu mesmo puxava a corda. Lembro-me que quando chovia, toda a gurizada tirava a roupa e saía pelas ruas, felizes, embaixo da chuva. Até hoje não sei por que não tínhamos vergonha de correr pelados nas ruas. Um dia, como de costume, cheguei para comprar o café para Seu André e, ao invés de encontrá-lo na cama, ele estava no chão. Ainda em voz alta eu disse: – Seu André, peguei o dinheiro da gaveta, tá! Silêncio total. Aproximei-me e lhe perguntei: – O senhor quer pão de queijo, broa ou pão? Como ele não me respondeu, corri para a vizinha mais perto e disse: – Dona Emma, acho que Seu André está doente, ele está deitado no chão e nem se mexe. Dona Emma entrou dizendo: – O que, o André está doente? Chegou bem perto dele, se acocorou, tocou nele e disse: – Ele está duro! Gritou: – Ele está morto! Ela saiu correndo e foi chamar outros vizinhos. Eu aproveitei, abri a gaveta e peguei mais trinta centavos que estavam ali e guardei-os no bolso. Em pouco tempo, começou um entra e sai de vizinhos e depois apareceu uma caminhonete com quatro policiais, um senhor e uma senhora vestidos de branco, acho que eram médicos. Pouco depois saíram com ele em uma maca e colocaram-no no interior da caminhonete. Um dos policiais perguntou se sabiam onde moravam os familiares, porém ninguém sabia, alguém disse que ele tinha uma filha que parecia que morava em Bogotá. O homem me perguntou: – Rapaz, sabe onde mora a filha? Eu respondi: – Ele me disse que mora muito longe. Foi um dos presentes que mandou o guarda me perguntar, depois de vasculhar o quarto, levantar o colchão velho, a gaveta da mesa, revistarem os bolsos da roupa e não encontrarem nada, perguntaram o nome dele, mas só se sabia que era André. No fim, após muito sobe e desce e encherem de perguntas aos presentes, foram embora. O bairro choroso só comentava a morte do Seu André. Quando cheguei na minha casa as vizinhas comentavam a dita morte. Botei a mão no bolso, peguei os quarenta centavos e dei para minha mãe e ela perguntou: – De onde tiraste esse dinheiro? É claro que respondi: – Da gaveta do Seu André. Ela ficou brava e me disse: – Vai devolver esse dinheiro e já, esse não é teu! Uma das senhoras presentes ali disse: – Dona Isabel, esse dinheirinho pertence a ele, foi ele quem cuidou do Seu André, se ele vai e coloca na gaveta, alguém vai pegar. O Seu André já morreu e o Negro é o herdeiro, tá! Ninguém se lembrava mais do Seu André, passados dez dias, quando apareceu um dos moradores mostrando um jornal com a foto do ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 25 Seu André, onde ele figurava na participação de roubo a um banco há mais de vinte anos. Eram dois os ladrões: ele tinha sido pego e o cúmplice não. André fugiu, antes de completar um mês, e nunca mais foi capturado. Eu continuei fazendo as compras para os vizinhos e sempre passava pela frente da casinha dele, onde ninguém queria chegar perto. Diziam que tinha assombração, que de noite se ouviam ruídos e, dependendo da hora, se viam luzes. Alguns diziam que o dinheiro do roubo estava enterrado no chão da casinha. Alguns dias depois, apareceram trabalhadores do município e foram desmanchando a casinha. Abriram buracos no chão, mas ninguém ficou sabendo se encontraram o dinheiro ou não. Levaram todo o material e o terreno ficou limpo. Nunca mais se falou do Seu André. O serralheiro Espanhol Um dia, quando estava na padaria, o dono me disse: – Negro, faça o favor de levar estes pães para o Espanhol! – Sim senhor! Peguei os pães, ele me explicou onde ficava o Espanhol, e saí correndo, do meu jeito, e fui entregar os pães. O Espanhol era um serralheiro de nome Antônio e morava sozinho. A padaria ficava a umas três quadras de distância e quem levava o pão todos os dias era o empregado da padaria, porém ele não tinha voltado a trabalhar. Ao chegar na casa do Seu Antônio o encontrei puxando uma corda que movimentava uma geringonça e, do outro lado, o fogo ficava forte e ali esquentava um ferro, que ficava vermelho. Depois, fiquei sabendo que esta geringonça se chamava fole. Pedi para Seu Antônio para eu puxar a corda, e ele deixou, porém, eu mal conseguia movimentar, pois o fole era muito pesado. Decidi subir e pegar diretamente na alça do fole e assim comecei a subir e a descer, carregado pelo próprio fole. Era a minha felicidade, enquanto que para Seu Antônio era uma ajuda e descanso, além de esquentar o ferro mais rápido. Não sei por que me lembro tanto dessa fase da minha infância. Apenas me acordava, saltava da cama e sem me lavar, de pé descalço, corria a comprar o leite, o pão e a carne dos vizinhos para depois correr a levar o pão ao Seu Antônio, o Espanhol. Eu já não tomava café com os vizinhos, preferia tomar com Seu Antônio, que antes de qualquer coisa, me lavava o rosto e me penteava o cabelo. Quando minha mãe se acordava, eu não estava mais na cama. Ela lavava roupas de passageiros de um hotel e ficava até de madrugada passando a ferro a roupa. Eu ficava lhe ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 26 fazendo companhia, porém o sono me dominava e, seguramente, ela tinha que me colocar na cama. Com a abertura das ruas, as cobras tinham fugido, não havia mais mato e eu pouco visitava o Dr. Corrêa, porém ele era amigo do Seu Antônio e, às vezes, nos visitava. Ele me chamava de filho ingrato, claro que de brincadeira. Ele contava para Seu Antônio as minhas façanhas com as cobras. Agora eu era feliz pendurado no fole da forja, subindo e descendo. Um pouco antes do meio-dia ia comprar o almoço no restaurante do Seu Aparício, que, no momento que pegava a vianda gritava: – Comida para o filho do Espanhol! Dentre os que almoçavam, não faltava alguém que dizia uma piadinha, como por exemplo: – Só que o pai é bem branco e ele nasceu queimadinho! É claro que tudo era brincadeira, porque todos me queriam bem e brincavam comigo. Almoçávamos sempre conversando, sobre o quê não me lembro, só me lembro que quando terminávamos de almoçar, ele ficava um pouco triste, dava um suspiro e dizia: – “Ai, ai Rocio de mi baranda”. Passado algum tempo, descobri que Rocio era sua esposa, que estava na Espanha e ele tinha muitas saudades dela. Ele tinha fugido da Espanha porque não simpatizava com o governo do General Franco e pertencia ao movimento anti Franquista e era perseguido. Por isso teve que fugir, primeiro foi para a Inglaterra, porém corria o perigo de ser pego por espiões de Franco, então saiu da Inglaterra e veio direto para a Colômbia. Trabalhou em uma mineradora, mais tarde começou a trabalhar por conta própria. Depois do almoço ele me obrigava a dormir no mínimo dez minutos. No começo era difícil, porque não estava acostumado. Depois me acostumei e este costume até hoje me acompanha. Seu Antonio me ensinou o sistema métrico, a saber o que era um milímetro, um centímetro, um metro e a polegada. Também me ensinou a forjar o ferro, fazer chinegos, furar, serrar e tudo o que era de serralheria. Quando saía para atender um freguês ou tirar medidas, deixava alguma coisa para eu fazer e eu tentava fazer o melhor que podia. Nos fins de semana me dava algum dinheiro, que eu repassava para a minha mãe. Lembro que quando entregava o dinheiro, ela dizia: – Ó meu Deus, abençoa este senhor que tanto ajuda meu filho! Algumas vezes eu saía junto com ele para tirar medidas e o pessoal mexia conosco e perguntava: – Antônio, onde tu arrumaste este baita ajudante? Ele respondia: – Foi um presente de Deus. De regresso, entrávamos em alguma loja e ele comprava para mim um par de sandálias, que era moda, ou uma calça, ou uma camisa, ou cueca, que eu quase nunca usava. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 27 As confusões da vizinhança Eu e meus irmãos mais velhos pouco nos víamos, porque cedo eu já estava na rua e eles se levantavam depois e iam para a escola e lá eles almoçavam. Aos sábados eu também trabalhava. Só no domingo eu ficava até mais tarde em casa e tomávamos café todos juntos. Ficava mais um pouco em casa e depois fugia sem dizer nada. Corria direto a um casarão, que chamavam de O Palácio, por que não sei. Tinha duas entradas, uma na frente e outra nos fundos. Na frente, tinha um portão de ferro todo enferrujado, que não funcionava e nos fundos, estavam chumbados na parede pedaços do marco, sinal que outrora tinha existido ali um portão. Hoje calculo que da frente aos fundos deveria ter uns 35 metros. Havia ali várias moradias, onde habitavam casais com filhos, mães solteiras, separadas com filhos ou sem filhos, senhoras solteironas, gente de todas as cores, espécies e lugares, uma verdadeira Cosmópolis. Era um corredor que deveria ter uns 8 metros de largura e no centro tinha várias pias, onde o mulherio lavava as roupas, e também os homens que não tinham mulher. Guris e gurias que corriam pelo corredor os havia em quantidade. Algumas vezes isto motivava brigas entre vizinhos por causa dos filhos. Nos fundos havia uma rua sem asfalto e bem larga, onde até a gurizada jogava bola. Jogos que, quase sempre, terminavam em briga, às vezes só entre dois. Os que estavam de fora, uns faziam torcida para um grupo e outros torciam pelo outro. Algumas vezes ocorriam discussões no próprio corredor entre mulheres, por causa dos maridos. Uma acusando a outra de estar dando em cima do seu marido. No meio das discussões era freqüente ouvir acusaçoes: – Porque tu dormiste com o marido da fulana, não pensas que vais dormir com o meu, tu te cuida, sem-vergonha, safada, vagabunda! É claro que não vou mencionar tudo o que saía dessas bocas. Em muitas ocasiões, essas discussões se transformavam em atritos ferozes, porque alguém que ouvia o nome do marido corria para o entrevero, queria saber detalhe por detalhe de como, quando e onde o marido tinha dormido com a fulana. A essas alturas mudava o rumo da discussão passando a agredirem-se fisicamente: puxões de cabelo, socos, narizes jorrando sangue, roupas rasgadas, algumas só de calcinhas, seios de fora, filhos berrando, vizinhos gritando, pedindo, por favor, para que parassem. Uns tomavam partido destes e outros daqueles, aumentando o número de briguentas. Muitas vezes, pude ver quando uma das briguentas caía desmaiada. Alguém chamava a polícia, e como já conheciam o local, um camburão entrava pela frente e outro pelos fundos e um ou dois ficavam por fora, já de cassetete na mão, dando pau em todos os viventes e colocando no camburão. Um dia, me tocou ver uma criança chorando abraçada à mãe desmaiada, dizendo: – Mataram minha mãe, mataram ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 28 minha mãe! Pegaram a mulher, colocaram em uma padiola e levaram para o posto de saúde. Um policial pegou a criança e a entregou para uma das moradoras, mas a criança mais berrava e mais gritava pela mãe. Todos os que eram colocados no camburão, eram levados para a delegacia. Lá ficavam sentados em um banco e ficavam até o dia seguinte. Durante a permanência só ganhavam uma xícara de café preto e um pedaço de pão. No dia seguinte o delegado liberava uma por uma, com diferença de dez a quinze minutos. Aquela que se metia à brava ou grosseira era colocada em uma cela e lhe davam um banho de mangueira, com roupa e tudo, e ali ficava por mais um ou dois dias. Morava no palácio um crioulo grande e forte, que tinha sido abandonado pela mulher porque era um tremendo formigão. Diziam que já tinha dormido com a maioria das mulheres do palácio. Comentava-se que as mulheres que tinham estado com ele falavam que tinha um instrumento muito especial, diferente dos demais. Trabalhava em uma fábrica de refrigerantes e jogava em um time de futebol. Era benquisto no palácio e quando se formava aquele pandemônio de briga, muitas vezes se viu que ao invés de chamarem a polícia, corriam para a fábrica e chamavam esse crioulo. Quando ele entrava no palácio, dava um berro e tudo parava. Cada um entrava no seu quarto e, parece mentira, a paz reinava. Duran era o seu nome. Ele era muito querido pela gurizada, porque aos sábados, domingos e feriados jogava futebol com eles e ninguém brigava. Dava-se com todos os homens do palácio e às mulheres as tratava com diminutivos. Era nesta espécie de cortiço que eu ia encontrar Seu Antônio. Morava no palácio dona Elida, um pouco mais alta que Seu Antônio. Todos falavam que ela era muito bonita. Uma senhora séria, quieta, bondosa e querida no palácio onde todos a respeitavam. Era para este lugar que, após varrer, limpar e organizar a serralheria no sábado à tarde, Seu Antônio se dirigia. É claro que no sábado, ele me acompanhava até minha casa, falava um pouco com minha mãe e, ao se despedir, recomendava para me mandar no domingo almoçar com dona Elida no palácio. Era por isso que aos domingos eu ia para lá. No palácio me chamavam de filho do Espanhol e outras vezes, de filho de dona Elida. Hoje penso que caçoavam. Lembro-me de dona Elida, era branca, cabelo igual a Seu Antônio, loiro, de olhos claros, como podiam dizer que eu era filho deles, por acaso não viam que minha cor era parda? ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 29 ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 30 2 OS DESAFIOS DO ESTUDO eu Antônio queria que eu começasse a estudar. Já me aproximava dos oito anos e ainda não sabia ler. Ele tinha me ensinado algumas letras, a escrever meu nome e mais algumas palavras. A dona Elida também me ensinava. Ela me contou que tinha sido casada e que seu marido tinha sido professor universitário e morreu de pneumonia, que recebia uma pensão do governo que dava para viver e mais ainda pagar um aluguel barato como era o do palácio. Ela mesma me matriculou, me comprou lápis e caderno e eu comecei a sonhar com a escola. Contava os dias, enquanto a mãe passava a roupa dos fregueses eu só conversava da escola. Ela me dizia: – É muito bom saber, um homem que não sabe nada é igual a um zero à esquerda! Dava-me como exemplo Marco Fidel Soares, que nasceu muito pobre e que através de uma janela, escutava a professora dando aula e em um papel copiava as letras que estavam no quadro e depois tratava de decifrar o que queria dizer tudo aquilo. Ocupou altos cargos no governo e chegou a presidente do país. Quanto mais ela me falava de grandes personagens eu mais me entusiasmava. S O Reitor Dona Elida me falava de seu marido, que tinha sido um bom professor. Um dia me levou à universidade onde ele lecionara. No centro do pátio, em um tipo de obelisco, estava o busto e uma placa de bronze em sua homenagem. Apareceram vários professores para cumprimentar dona Elida e também apareceu o Reitor. Dona Elida me apresentou a ele e disse que eu também queria ser professor como o marido dela. O Reitor colocou a mão na minha cabeça e perguntou: – Já está estudando? – Não, amanhã ele começa, disse dona Elida. O Reitor era um homem novo, tinha fama de muito inteligente e nos convidou para tomar um café, acompanhado com pão de queijo. Em seguida nos mostrou várias salas e, por último, entramos no seu escritório. Nos sentamos e, em seguida, o senhor Reitor, dirigindo-se a mim, não me lembro textualmente das palavras, porém, mais ou menos foi assim: – ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 31 Orlando Ortega, meu querido, tua visita a esta universidade me dá grande satisfação. Elida me comentou da tua humildade, da tua simpatia, sei que és um menino muito pobre e com grande vontade de aprender. Trata de estudar bastante, quando terminares teus estudos primário e secundário, aqui nesta universidade estudarás de forma gratuita, até te formares! Dona Elida deu um grito quando o Reitor lhe entregou um papel, que parecia um diploma, nele estava a confirmação do que ele acabara de me oferecer, após carimbar e assinar. Ela chorava, me abraçou e eu não entendia. Em seguida levantou-se, deu um abraço no Reitor, agradecendo e chorando, ele secou-lhe as lágrimas. Despedimo-nos e ele nos acompanhou até a porta. Antes de dobrarmos a esquina olhamos para trás e lá ainda estava ele na porta. Acenamos para ele e ele também para nós. Pegamos a primeira “vitória” que passava (tipo carruagem puxada por dois cavalos) e fomos direto para minha casa. A minha mãe estava lavando roupas. Descemos da “vitória” e dona Elida, quase correndo, gritava: – Chavita, Chavita!, assim chamavam carinhosamente minha mãe. Dona Elida explicou tudo para minha mãe e as duas choravam e eu continuava entendendo pouco. Fomos ver o Antônio que nos esperava com o almoço. Elida chegou comentando o acontecimento e apresentando o papel carimbado e assinado pelo Reitor, onde mostrava a gratuidade dos meus estudos na universidade. Após comer, dormi meus dez minutos. Era rotina: me deitava, fechava os olhos, pegava no sono e dormia dez minutos certos. Quando acordei, Elida tinha ido embora. Antônio me felicitou, explicou o que aquilo significava, foi nesse momento que compreendi do que se tratava e mais entusiasmado fiquei à espera do dia seguinte para começar a estudar. Naquela tarde, enquanto trabalhávamos, ele me falava dos vultos da história universal, de grandes escritores e suas obras, me falou muito de Miguel Cervantes Saavedra e sua imortal obra Dom Quixote de la Mancha, da sua vida como guerreiro no estrangeiro e que, ao retornar à sua pátria, foi sequestrado pelos piratas bárbaros e quem pagou seu resgate foram os padres trinitários. Falava-me sempre que havia tido oportunidade de ler os escritores da época de Cervantes. Dizia-me, guarda na memória estes nomes Lopez de Vega, Juan de la Cueva, Gil Vicente, Calderon de la Barca, que escreveu um livro fantástico La Vida és sueño. Quando aprenderes a ler, trata de ler estes escritores, eles te farão um homem culto. Um dia me entregou um papel onde estava o nome de vários escritores. Lê o Celestino, de Fernando de Rojas, também procura ler Garcilaso de la Vega, Dom Francisco de Quevedo. É claro que naquele tempo não conseguia entender nada. Quando me contava as aventuras, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 32 ou melhor dito, as andanças de Dom Quixote e Sancho, eu era todo ouvidos, era um fascínio profundo e à noite sonhava. Também me contou partes de As mil e uma noites de autor anônimo. Tudo aquilo que ele me falava naquele tempo, até hoje tenho na memória. Algumas vezes fico pensando naquele tempo da minha infância e parece que tudo aconteceu ontem, tal como está vivo na minha memória. Um dia, não me lembro por que, começou a falar-me da sua querida Espanha. Contava-me que o General Francisco Franco, para tomar o poder, sacrificou muitas vidas, me falava de Guernica, onde não só morreram seres humanos como também animais, misturados com crianças, homens e mulheres. Um dia me disse que Franco era tão perverso que tinha mandado matar um jovem poeta chamado Federico Garcia Lorca. Ele me falava tudo com muito sentimento. Eu pouco entendia. Hoje chego à conclusão que ele me falava tudo isto para desabafar. É claro que quando li Garcia Lorca, sua poesia tão linda, me emocionava e ao mesmo tempo sentia raiva, pensava e me dizia: – Tirar a vida de um jovem gênio! Que coisas mais lindas poderia ter dado ao mundo e sria orgulho para a Espanha! Porém o mal que não tem cura, sem curar fica. Enfim na sala de aula Chegou o tão sonhado dia, o meu primeiro dia de aula. Acordei-me mais cedo do que de costume. Como a minha mãe tinha me dito no dia anterior eu deveria ir à escola de banho tomado e bem limpo e foi o que fiz naquele dia. Ao entrar no banheiro a primeira coisa que encontrei foi uma cobra. Pensei nos dez centavos que o Dr. Corrêa me pagaria, porém não me importei. Antes de querer pegá-la, a enxotei. A minha mãe veio correndo para ela mesma me dar banho. Após tomar café, peguei meu caderno, lápis e borracha e junto com meus dois irmãos, saímos rumo à escola, porém antes eu quis passar e dar um tchau ao Antônio. Quando chegamos na serralheria ele estava preocupado me esperando na porta, nos disse que pensava que eu não iria passar para lhe dar tchau. Muito feliz ao ver-me com meus irmãos mais velhos, nos fez entrar e nos convidou para tomar café, embora já tivéssemos tomado em casa tornamos a tomar. A mãe tinha dado uma broa de milho (arepa) para cada um levar para o lanche, mas Antônio deu dez centavos para nós três. A escola era uma casa de construção antiga, três quartos convertidos em salas de aula. A cozinha tinha sido aumentada, o comedor e os banheiros eram uma construção nova. Havia um pátio central e no centro do pátio havia uma piscina toda quebrada, faltavam muitos azulejos ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 33 centrais e sobre um pedestal de cimento tinha uma estátua de uma mulher nua. Mais tarde soube que ela representava a virgindade. Estava mal cuidada e lhe faltavam vários pedaços, estava totalmente seca, parecia que nunca tivera água. Quando chegamos na escola notei que muitos dos alunos eram do meu bairro, alguns companheiros de quando vendíamos cobras para o Dr. Corrêa. Ninguém deu importância à minha chegada, era uma barulheira tremenda. Corriam para um lado, para o outro, passavam por cima da piscina; no fundo, havia um potreiro muito grande; bem longe, havia gado pastando; a uns 10 metros da parede da escola havia uma cerca de taquara, este era o local onde as meninas brincavam. No momento que entramos no pátio um grupo de garotos veio correndo e convidou meus irmãos para participarem do jogo. Claro que eles já eram conhecidos de anos anteriores. Meus irmãos colocaram os cadernos e livros junto com outros e se juntaram ao grupo. Eu fiquei em um canto, de pé, olhando o corre-corre da garotada, aquela bagunça, aquele pandemônio. Uns caíam, mas já se levantavam sangrando, porém no mesmo instante ficavam bons e continuavam na correria. Tímido, solitário, fiquei quieto no lugar onde meus irmãos me deixaram. Lembro-me que apareceu uma menina, que na época deveria ter de doze a treze anos, se aproximou e me perguntou: – Você é filho da Chavita? (Isabel) – Sim, respondi. – Cadê seus irmãos, perguntou-me. – Estão brincando, respondi-lhe. Pegou minha mão e disse: – Vem brincar conosco! Quando cheguei ao grupo de meninas, uma gritaria: – Oi magrinho! Outras: - Oi negrinho! Outras: - Oi negro! Já me conheciam, eu fazia as compras para as mães delas. Romélia, que era o nome da minha protetora, gritou: – O Antônio não gosta que o chamem de negro ou de negrinho. O dia que fui à procura dele e perguntei para o Antônio: o negrinho está? Ele me xingou e disse: aqui não tem negrinho, ele chama-se Orlando! Eu disse para ele, e como é que o senhor o chama de “currege”? Ele me respondeu: - Na Espanha chamamos as crianças de “curreges” ou de “chaval”. As meninas diziam: – Eu gosto de chamar ele de negrinho, outras: - Mas eu de negro ou de negrinho, não chamamos ele pela cor, mas sim porque é mais carinhoso, mais familiar, algo mais nosso. Chamar pelo nome Orlando parece que nos afasta dele! Romélia, que escutava, disse: – Eu também acho e vou chamá-lo de negrinho e encerrado o assunto e vamos continuar a brincadeira. A brincadeira era: duas das meninas seguravam-se pelas mãos formando uma espécie de ponte e o resto, em fila, passava por baixo da ponte e cantavam (que passe o rei que tem que passar, que o cavalo do conde há de cair), abaixavam as mãos e aquela que nesse momento passava, ficava presa. Então lhe perguntavam: – Para onde quer ir, para São Pedro ou para São Juan? Estas duas meninas, previamente, separadas do grupo, tinham sido designadas, uma para ser o diabo e a outra para ser um anjo, mas nós só ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 34 sabíamos quem era São Pedro ou São Juan, porém não quem era o diabo ou quem era o anjo. Nós corríamos para o escolhido e este nos recebia de braços abertos. Não deu para saber como terminava a brincadeira, pois bateu a sineta e todos formamos a fila no pátio interno. Romélia me pegou pela mão e me colocou na fila dos que ingressavam pela primeira vez. A Diretora nos cumprimentou, em seguida rezamos o Pai Nosso e a Ave Maria, após cantar o hino nacional, cada grupo foi entrando no seu respectivo salão. Uma vez acomodados em suas cadeiras, a professora nos deu as boas vindas, nos disse que seu nome era Mariateresa e que se escrevia tudo junto e que era descendente de gregos. Explicou-nos a disciplina, o que ela exigia de seus alunos e por último, nos mostrou dois bancos que estavam colocados na parede lateral, um de frente ao outro, separados por uma distância de aproximadamente 4 metros. Um estava pintado todo de branco e tinha uma almofadinha e o outro estava pintado de preto e não tinha almofada. Mostrando o banco branco, nos disse que o aluno que se comportasse bem, que fizesse seus temas, que estivesse penteado, com unhas limpas e tivesse maior presença nas aulas, como prêmio, sentar-se-ia na cadeira branca por uma semana. E quem se sentar mais vezes no banco branco durante o ano letivo, no final das aulas ganhará um prêmio. Após todas estas advertências e explicações, passou a nos ensinar as vogais. É claro que Seu Antônio já tinha me ensinado as vogais, as consoantes, a juntar algumas palavras e já quase que soletrava. A professora se encantava com meu progresso e me achava inteligente demais, claro que não lhe disse que Antônio já tinha me ensinado. A minha professora chamava as professoras de cursos mais adiantados para que com perguntas confirmassem meu prodígio. Um mês de aula e não sei por que, de repente, comecei a ler, lia tudo quanto era letreiro que encontrava no caminho. Lembro-me que meus irmãos levaram a novidade para minha mãe e ela me sentou no seu colo e começou a me dar carinho. O Antônio era todo felicidade e Romélia também. Quando meus irmãos me deixavam sozinho por estarem brincando com amigos, ela me pegava pela mão e me acompanhava até em casa. Eu era muito tímido e na hora do recreio todos os garotos corriam, brincavam e eu me sentava em um canto a comer meu pedaço de rapadura ou a broa que a mãe nos dava. A Romélia, antes de voltar de novo para a sala de aula, me levava na pia e me lavava, penteava e limpava minhas unhas, ela dizia: – Você tem que estar limpinho para que a professora Mariateresa lhe sente no banco branco. Ela me disse: - Eu, no ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 35 primeiro ano me sentei várias vezes no banco branco e no final do ano ganhei uma linda boneca de pano. No trono do “banco branco” Na sexta-feira do mês seguinte ao começo das aulas seria escolhido o aluno que ocuparia a cadeira branca. A cerimônia começava no pátio com a presença de pais. A professora Mariateresa havia conseguido que o governo mandasse aveia e pão de queijo para repartir a todos os presentes Quase todos os alunos, professores e os pais e familiares gostavam de ver a pequena cerimônia. O banco branco era colocado na frente dos assistentes, a professora dizia o porquê desse aluno ser escolhido, elogiava o comportamento, sua higiene, a frequência e também a facilidade de aprender. Depois era chamado o aluno ou aluna que no ano anterior tinha ocupado mais vezes o banco branco, esta parte era feita por outra professora. Romélia, que já tinha me dito que havia ocupado mais vezes o banco branco no ano anterior, foi chamada para levar até o banco o novo escolhido. Uma professora lhe entregou uma coroa feita de papelão pintada em ouro. A esta altura ninguém sabia quem seria o ocupante, mas havia muitos palpites, todos esperando com ansiedade. De repente aparece a professora que deveria dizer o nome do escolhido, depois de cumprimentar os presentes disse estas palavras: – “Srta. Romélia Acosta, é você a chamada para levar até o banco o aluno Orlando Ortega, merecedor por todos seus méritos”. A bagunça foi grande, Romélia veio correndo me abraçar, Antônio me pegou no colo e me levantou feliz da vida, minha mãe em um canto chorava, meus irmãos com um grupo de colegas, em coro, gritavam: – Orlando, Orlando... Eu, um babaca, não sabia do que se tratava. Romélia me pegou pela mão e me levou até o banco branco. Ela me colocou a coroa de papelão, alguns me diziam que eu parecia um rei de verdade. Romélia me deu um beijo na testa, entregaram a cada um de nós nosso copo de aveia e pão de queijo, que juntos, sentados no banco branco, desfrutávamos da bebida que eu tanto gostava. Terminada a cerimônia, o banco era colocado em seu lugar e, de segunda-feira em diante, eu ocuparia esse lugar até a primeira sextafeira do mês seguinte. Quem era Romélia? Saberão! Ela era filha única de um casal que morava perto da minha casa, sua mãe, de nome Rufina, alta, forte, deveria pesar pouco mais de 100 quilos e seu Francisco, que era casado com dona Rufina, porém vivia com outra. É claro que todo fim de mês aparecia, dormia, tomava café, almoçava e à tarde, após jantar, ia embora. Dona Rufina se conformava com esse pouco amor de cada trinta dias, não se importava e parecia feliz. Romélia adorava esse pai que sempre a colmava de roupas e brinquedos. Romélia era loira, de olhos claros, cabelos longos, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 36 lisos, e bastante amarelos, era considerada por todos muito bonita. Era de pavio curto, briguenta, não levava desaforo para casa, enfrentara até um professor que tentou castigá-la por uma briga a socos que teve com um rapaz que lhe levantou o vestido. Deu-lhe um tapa no nariz que fez verter sangue. Este rapaz era sobrinho do professor, e por isso se sentia poderoso e implicava com qualquer um, mas com Romélia ele foi muito mal, a gurizada que não gostava dele começou a gritar “apanhou de mulher, apanhou de mulher...”. O professor, quando viu seu sobrinho nesse estado e sendo acuado pelos outros alunos, chamou Romélia para ficar de castigo por mais de uma hora escrevendo “não bater em mais ninguém”. Ela enfrentou o professor dizendo-lhe que ele deveria era castigar seu sobrinho e colocá-lo a escrever “não levante mais o vestido de ninguém”. Pegou seus livros e se mandou. É claro que isto lhe causaria um grave problema para continuar estudando, pois poderia ser expulsa, de acordo com a legislação, ainda mais que este era o último ano nessa escola. No próximo ano iria para algum colégio secundário e deveria mostrar seu boletim de conclusão, e esta desavença lhe criava esse grave problema. Porém, com a intervenção de dona Rufina, sua mãe, que fora à escola para solucionar o problema e, além de tudo, os alunos de toda a escola tinham paralisado as aulas e estavam em pé de guerra com o professor e o sobrinho, prometendo apedrejá-los se a Romélia fosse expulsa. Ela era muito querida por todos, tanto por sua beleza como também pela sua bondade e carinho que brindava a todos, em troca, o sobrinho do professor, tinha por ela muita gana. A situação não era fácil, a gurizada tinha reunido montes de pedras e estrategicamente se colocado para não deixar escapar o professor e o sobrinho no caso de Romélia ser expulsa. A tensão era grande, os pais dos alunos não se atreviam a querer convencer os filhos a mudar de atitude, porque sabiam o diabo que era o sobrinho do professor. Apareceu o senhor delegado com dois policiais. Os policiais foram convencer a gurizada a desistir, enquanto o delegado e o padre, junto com a diretora, tratavam de convencer o professor a mudar de idéia sobre sua intenção de expulsá-la. Todas as mães levaram os pequenos para casa, Romélia me levou para casa e regressou para se colocar à frente de seu exército em pé de guerra, era ela a comandante. A intermediaçao do delegado e do padre convenceu o professor e tudo voltou à normalidade, Romélia não foi expulsa, continuou estudando e claro, a amizade entre ela e o professor ficou bastante estremecida. Sabem o porquê do carinho de Romélia para comigo? Primeiro, porque ela adorava crianças e me conhecia desde pequenininho. Contava a minha mãe que a paixão dela era vir em nossa casa me pegar no colo e algumas vezes me levava até sua casa. É claro que eu fui crescendo e ela também, mas o carinho continuou; segundo, porque ela era muito dorminhoca, gostava muito da cama. No começo, brigava muito com a ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 37 mãe porque ela a acordava para ir comprar o leite e o pão. Finalmente, depois de muita briga com a mãe, ela se levantava e saía toda brava a fazer as compras. Depois, era eu quem comprava o leite e o pão para dona Rufina, enquanto Romélia dormia mais um pouco. A aula começava às oito horas e trinta minutos. Romélia se levantava às oito horas e quinze minutos, meio se lavava, tomava café à bala e saía correndo para a escola. Como eu era tão madrugador, às seis horas já estava na rua, fazia as compras dos vizinhos, inclusive para sua mãe, depois levava o pão e o leite para Antônio, tomávamos café e esperava meus irmãos para irmos juntos para a escola. Algumas vezes Romélia nos alcançava e íamos juntos. A prática na serralheria do Antonio Eu em todos momentos livres estava na serralheria com Antônio e na escola sempre era acompanhado por Romélia, e mesmo que Antônio tivesse uns cinquenta e cinco anos mais ou menos e Romélia doze anos, os dois eram brancos e eu negrinho, a gurizada, para mexer comigo, me chamava de filho de Antônio e Romélia. As meninas também, ao invés de me chamarem pelo nome, ou de negrinho, como era conhecido, diziam: Romélia traz teu filho para brincar conosco; Romélia, cadê teu filho? Enfim era tudo teu filho, Romélia nem se importava, o Antônio até que gostava. Esta que vou lhes contar lembro-me muito bem, eu estava na hora do descanso, sentado em um murinho, que seguramente tinha sido uma floreira, gostava de sentar-me nesse lugar porque dali podia observar a gurizada correr, gritar, pular... Naquele dia eu estava sentado comendo meu pedaço de rapadura, quando um rapaz chutou uma bola com força e bateu direto no meu rosto. A rapadura voou longe e eu caí de costas. O rapaz correu rapidamente para me levantar e quando ele estava me limpando e eu estava chorando, alguém foi avisar a Romélia. De repente a vi abrindo caminho entre a gurizada que me cercava, vinha vermelha como um tomate maduro, meus irmãos vinham atrás e alguém gritou: – Roberto!, que era o nome do rapaz da bola, foge Beto, que a Romélia te arrebenta. O Beto, ao contrário de fugir, quando viu a Romélia, e antes que ela falasse, ele disse: – Melinha, foi sem querer, e repetia, foi sem querer! Uma das meninas tinha juntado o pedaço de rapadura e queria entregar para o Beto, mas estava cheia de areia. O Beto a pegou e jogou longe, várias professoras vieram ver o que estava acontecendo, inclusive a minha professora Mariateresa. O Beto desapareceu, enquanto Romélia me lavava na torneira da pia. O Beto chegou com dois copos de aveia e dois pães de queijo, um para Romélia e outro para mim. Ele só comia pão de queijo e já havia tomado sua aveia. Romélia aceitou, eu também e fomos ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 38 os três sentar no pátio do fundo. Beto e Romélia conversavam, eram amigos, calculo que tinham a mesma idade, só que, como já disse, Romélia era pavio curto e não consentia nada errado para comigo, mas ela não brigou com o Beto naquele episódio. Às quatro horas bateu a sineta, hora de ir para casa. Meus irmãos, Romélia e eu voltamos juntos para casa, passamos pela oficina de seu Antônio. Lá estava ele me esperando na porta, preocupado porque a notícia da bolada no rosto já tinha chegado até ele. Todos os dias ficava na serralheria para ajudar Antônio a calcular o ferro ou furar a fogo, eu gostava de fazer todo tipo de serralheria. Após terminar, esquentava a água e tomava banho, ajudado por Antônio. Em seguida comíamos alguma coisa que Elida nos levava e então nos sentávamos para ler. Tenho muito na memória que o primeiro livro que Antônio leu para mim foi Dom Quixote de la Mancha. Eu calculo que ele demorou uns quatro meses lendo, e quando terminou, como eu já estava lendo, fez com que eu mesmo lesse. Depois me fez ler Pinóquio e As mil e uma noites, mas claro que o que sempre gostava de ler era Dom Quixote. Pelas dezenove horas Antônio me levava para casa e, às vezes, depois ia à casa de Elida ou senão ficava lendo ali mesmo na serralheria, porque ali ele tinha seu quarto muito bem arrumado, e é claro que ali dormia a maioria das noites. Quando eu chegava em casa, mostrava o caderno para minha mãe, enquanto comia o que ela me guardara. Depois ia lá onde estavam meus irmãos e toda os garotados, inclusive Romélia, era um lugar onde nos reuníamos quase todos para brincar. Um dos jogos favoritos era la lleva, também que pase el rei, sun sun de la calavera, Ralluella. Em todos esses jogos sempre havia um grande ganhador ou senão uma parelha. Tudo terminava quando algum pai ou mãe chamava o filho ou filhos para dormir, mesmo que o jogo estivesse pela metade, todos corríamos para nossas casas. Quase sempre quem chamava era a mãe de Romélia, porque ela era muito dorminhoca e no dia seguinte era difícil de acordar. A garotada, inclusive os grandes, agora ao invés de me chamar como de costume de negro, ou pelo meu nome Orlando, me chamavam de “Oi”. E era assim: - Tu vistes o Oi? Oi ta lá. Oi, me empresta tuas anotações?. Oi, a professora tá te chamando! Este apelido surgiu porque em frequentemente me dava uma ferroada nos olhos e eu inconscientemente dizia oi. Esse oi saía bem no momento da ferroada, e como durava fração de segundo, eu dizia oi e já desaparecia, porém, como isto acontecia inúmeras vezes por dia e também quando estávamos brincando, os companheiros tomavam como cacoete. Às vezes as meninas ou mesmo os rapazes, para mexer comigo, faziam de conta que ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 39 alguém havia batido nele para poder dizer: – Oi,oi,oioioioi... Eu nem me importava, ao contrário, se alguém chamava Oi, eu imediatamente respondia. Até minha mãe um dia me disse: – Oizinho, me dá uma mão! Não achei nada diferente, ao contrário, achei normal e fui atender ao chamado de minha mãe. Josefina ocupava o banco branco nessa época, antes dela tinha sido ocupado por Luiz Diez. A nova candidata era Elvira, que não pode assumir porque teve uma briga com Pedro Malas Artes (na Colômbia Pedro Di Males). O verdadeiro nome dele era Pedrinel Barbosa e o apelido Pedro Malas Artes, porque sempre estava interessado em fazer algum mal para qualquer colega, fosse homem ou mulher. Ele era o mais velho da aula e nós todos tínhamos medo dele. Era a terceira vez que repetia a 1ª série. Seu melhor amigo era Raul da 3ª série, que chamavam El Mono, na Colômbia as pessoas loiras são assim chamadas. Raul era loiro e Pedro Malas Artes era preto e os dois eram muito amigos, sempre andavam juntos, sempre com aquele espírito da maldade, não respeitavam ninguém e sempre andavam à procura de um candidato ou candidata para uma sacanagem. Enquanto a professora dava aula de matemática Pedro Malas Artes, com bastante cuidado, amarrou a Elvira à cadeira. Na hora do recreio quando ela tentou se levantar e sair correndo o banco virou, ela caiu e o banco caiu em cima dela. Lápis e caderno voaram, o vestido recolheu e as calcinhas ficaram à vista (naquela época as meninas tinham um pudor único e os rapazes respeitavam este comportamento). Todas as meninas correram em socorro à Elvira e os rapazes se afastaram. Uma das meninas tinha visto tudo, porém, ameaçada por Malas Artes, ficou calada, mas dado o acontecido, contou tudo. Elvira, livre e recuperada, não falou uma palavra, a não ser para agradecer as coleguinhas. Saiu muito tranquila, foi até o pátio do fundo e lá estava Malas Artes junto com Raul, El Mono, rindo à vontade. De repente viu-se uma pedra voar em direção a Malas Artes e bater na testa dele, ele deu um grito, botou a mão na testa e o sangue jorrou. El Mono, quando viu que Elvira era a causa, avançou contra ela e ela. pressentindo o perigo, atirou outra pedra que tinha na mão contra El Mono, atingindo-o na canela. El Mono caiu no chão berrando e segurando o pé. Vendo o perigo que Elvira corria, todos os colegas foram em seu auxílio. Oliva, uma crioula forte da 4ª série, que não tinha vergonha de nada e que às vezes até mostrava a bunda para os rapazes, quando viu El Mono no chão berrando, parou bem na cara dele, e mesmo em pé, fez xixi na sua cara. Este, quando sentiu o xixi cair na sua cara, levantou-se, e não podendo caminhar, gritava: – Crioula filha da puta, tu me pagas! El Mono e Malas Artes foram levados para fazer curativo no posto de saúde. As meninas, felizes pela valentia, pegaram seus livros, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 40 cadernos e lápis, e sem ordem alguma, foram levar Elvira para casa. O pai de Elvira, que tinha um pequeno negócio de conserto de sapatos em um corredor de uma casa velha, quando alguém foi lhe informar do acontecido, fechou o negócio e correu para casa, onde encontrou toda a gurizada solidária com Elvira. Quando soube de tudo, pegou uma faca, colocou-a na cintura e saiu correndo para a escola sem dar ouvidos aos gritos da mãe e da filha. Todos saíram atrás dele tentando segurá-lo. Quando chegou à escola, o pai de Malas Artes já estava lá e a mãe de El Mono também. Quando a turma chegou, o pai de Malas Artes estava falando em voz alta: – Quer dizer que não se pode mandar os filhos para esta escola porque são agredidos por uma manga de vagabundos! Oliva não aguentou a expressão e enfrentou o velhote: – Manga de vagabundos não senhor! E pegando Elvira pela mão lhe disse: – Olhe quem foi que brigou com seu filho. Foi ela que surrou aquele par de marmanjos! Ainda o velho disse: – Me informaram que foram todos vocês! – Não senhor, foi só ela, nós ficamos de fora. Oliva, que estava louca para surrar o velho, lhe disse: – Não vem aqui cantar de galo porque se fiz xixi na cara do El Mono, na tua cara me cago sem te dar tempo de me morder o cu! Todos os presentes riram. Elvira virou heroína. Uma menina muito franzina, muito delicada, nos seus gestos comportados, de pouca fala, de cabelos pretos lisos, sua pele morena clara, era muito bonitinha, e sozinha tinha enfrentado os dois marmanjos mais temidos por todos os alunos da escola. Oliva e Romélia se juntaram e chamaram a atenção do Mono e de Malas Artes e lhes fizeram uma advertência: – O dia que vocês fizerem qualquer maldade, para qualquer um de nossos colegas, cagaremos vocês de pau. A mãe de Mono pegou-o pela orelha e puxando lhe dizia: – Eu te conheço, sem-vergonha! E ele rengueando e gritando foi saindo, puxado pela mãe. O pai de Malas Artes, um baixinho preto, fedorento de fumaça de cigarro e cachaça, foi se retirando devagar, seguido por Malas Artes, este com a testa cheia de gaze e esparadrapo. Era Elvira que estava escolhida para ocupar o banco branco, segundo ficamos sabendo, porém este incidente lhe tirou este direito, apesar do protesto de alguns colegas das séries mais adiantadas. Ela, ao saber, chorou, mas era uma decisão unânime e de acordo com os princípios adotados na escola. O único sem mácula era eu, portanto fui escolhido para ocupar pela segunda vez o banco branco. Os aplausos foram acompanhados por gritos: - Viva o Oi, Oi, Oi! Agora vocês imaginem a alegria da minha mãe, dos meus irmãos, do Antônio, da Romélia, e da minha professora Mariateresa. Naquele tempo eu não sabia o que era gentileza nem direitos, não sabia de nada, hoje fico lembrando da Elvira em prantos e penso porque não fui um pouco delicado e talvez tivesse renunciado em favor de Elvira. Por quê eu de novo no banco branco? Sinto remorso, saibam, mas não adianta, tudo já passou e me surgem todas ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 41 essas reminiscências. Lembro Oliva, El Mono, Pedro Malas Artes, Josefina, Elvira e muitos outros. Nunca mais os vi. Nunca tinha me preocupado com os acontecimentos havidos na minha infância, porém, à medida que escrevo, eles surgem com tanta evidência que até parece que tudo aconteceu ontem. Lembro-me perfeitamente que as ferroadas nos olhos tinham aumentado com maior intensidade e com mais frequência, isto me deixava um pouco abatido e sem vontade de estudar, porque sempre estava à espera da ferroada, mas a suportava em silêncio. Embora antes não gostasse muito de participar dos jogos com os colegas, agora participava menos, na hora do recreio procurava me sentar perto onde estava Romélia brincando com as colegas. Muitas vezes me convidavam insistentemente para que eu participasse das brincadeiras, mas eu não aceitava, preferia ficar sentado olhando. A doença Lembro-me que um dia, logo que a professora começou a aula, senti uma ferroada tão forte que não consegui suportar a dor, dei um grito e coloquei as mãos no rosto, me levantei e saí caminhando e rodeando como louco e chorando bem alto. O barulho era tanto, que de todos os salões corriam para ver o que estava acontecendo, eram alunos e professores. Romélia veio correndo, me pegou pelas mãos, me levou até à torneira, molhou minha testa, os olhos, a cabeça, porém eu não parava de chorar. A professora Mariateresa, Romélia e meu irmão mais velho me levaram ao posto de saúde, meu outro irmão foi avisar minha mãe e ao Antônio. O médico mandou a enfermeira me aplicar uma injeção. Minha mãe, Antônio e até Elida chegaram quando os médicos estavam me examinando. Lembro que eles diziam que não descobriam o que poderia causar esta dor. Eu já não sentia quase a dor. O médico deu um vidrinho com uns comprimidos para eu tomar de três em três horas e retornar no dia seguinte. É claro que, no dia seguinte, não me levantei cedo e não fiz as compras de ninguém. A mãe da Romélia estava feliz porque, pela primeira vez, a Romélia tinha se levantado cedo e tinha feito as compras. Após tomar o café e antes de ir à aula, foi me ver. Elida também apareceu, Antônio tinha lhe pedido para acompanhar minha mãe para me levar ao posto. Uma vez no posto, me fizeram vários exames, tiraram a temperatura, fizeram muitas perguntas. Como a dor tinha desaparecido, me levaram de volta para casa. A vizinhança já estava sabendo da minha dor nos olhos e ia me ver, e claro, levavam um docinho, um salgadinho, broas e bolo. Nas conversas, cada uma dava um palpite a respeito da minha dor, que poderia ser tal coisa, ou ser tal outra, cada um queria ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 42 diagnosticar o meu problema. A mãe da Romélia estava muito contente com sua filha, porque agora se levantava sozinha, trazia água, tomava banho, ia fazer as compras, tomava café, ia me ver e depois ia para a aula. Ao meio dia Antônio levou almoço e comemos os quatro, a minha mãe, Elida, Antônio e eu. A sopinha que minha mãe tinha preparado guardou-a. Após almoçar eu peguei no sono, quando acordei, Antônio e Elida tinham ido embora. No terceiro dia, como me sentia bem e as ferroadas tinham desaparecido, voltei à escola. Esse dia descobri, apesar de eu não participar muito das brincadeiras com meus colegas, que eles tinham muita simpatia por mim, tanto os grandes quanto os pequenos. Quando me viram entrar, vieram perto de mim e era: Oi, oi, oi! Meninos e meninas me chamavam de Oi e me rodearam, perguntando da dor, é claro que respondia tudo bem, já passou! Faltavam aproximadamente dois meses para o término do ano letivo, os sonhos, a preocupação de todos era passar da 1ª série para a 2ª, os da 2ª série para a 3ª, e assim por diante. Antônio também se preocupava para que eu passasse para a 2ª série, me ensinava, me fazia ler, já tinha terminado de ler Dom Quixote, agora estava lendo Pinóquio e Antônio já tinha comprado As Mil e Uma Noites, Branca de Neve e os Sete Anões e mais alguns. Uns dez dias após a primeira crise surgiu novamente a dita dor. Novos exames, desta vez descobriram que não eram os olhos que me doíam e sim era a cabeça. Depois de medicado, a decisão foi me mandar para um oftalmologista. O dito oftalmologista, após vários exames com alguns aparelhos, receitou que eu deveria parar de estudar por algum tempo enquanto fazia um tratamento com águas preparadas em farmácia de manipulação. O tratamento era que deveriam ser cheios dois recipientes, espécie de cálices, comprados na farmácia, com aquela água preparada, colocar nos olhos e mantê-los abertos, ficar meia hora deitado, três vezes por dia. Aquilo era o maior sacrifício, muito difícil conseguir me deitar com os cálices cheios d’água e os olhos abertos, era preciso três pessoas para conseguir fazer este tratamento, que deveria durar três meses e depois voltar para o oftalmologista. O fato de eu ter que parar de estudar caiu em mim como um balde de água gelada. Vi o rosto de Antônio ficar vermelho, vi minha mãe limpar os olhos, talvez uma lágrima. Ela era muito calma, eu berrava, chorava, ninguém conseguia mais me consolar. O médico tratava de me acalmar. Lembro que ele me disse que tinha que fazer o tratamento para ficar bom e assim poderia voltar a estudar, caso contrário, poderia até ficar cego e ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 43 nunca mais conseguir estudar! De volta para casa, Antônio, talvez para me acalmar, prometeu que me levaria no dia seguinte a um oftalmologista seu amigo e patrício, poderia ser que ele desse outro tratamento que me permitisse estudar. Essa nova esperança, me acalmou. No dia seguinte, Antônio me levou ao oftalmologista patrício e amigo, que me fez vários tipos de exames, me esgarçava os olhos, me puxava as pálpebras, e de vez em quando dava uma batidinha no globo ocular. Depois de todo esse virar e revirar meus olhos, disse: – Esse rapaz tem que fazer um tratamento de no mínimo três a quatro meses. Em seguida, perguntou para o Antônio: – Este rapaz estuda? Antônio respondeu afirmativamente. Ao que o médico respondeu: – Ele vai ter que parar durante o tratamento. A mesma água do outro. A minha tristeza foi profunda ao ouvir tal veredicto. Não faltaram as lágrimas. Poderia ter chorado mais, mas me segurei. Continuei minha rotina, a fazer as compras para meus vizinhos, ajudar Antônio e a noite brincar com a rapaziada, meus irmãos, e inclusive Romélia. De vez em quando pegava uma cobra e ia vender para o Dr. Corrêa que já estava a par do meu problema. Um dia, conversando com ele, me disse que, com o veneno de cobra iria descobrir o remédio para meus olhos. Acho que nunca descobriu. Agora era Antônio que lia os livros para mim, de manhã, antes de começarmos a trabalhar. Lia Pinóquio, que já estava no final, depois seria As Mil e Uma Noites. Antonio já tinha comprado também A Gata Borralheira e Branca de Neve e os Sete Anões. Chegou o dia de voltar ao oftalmologista que me receitou óculos, diminuiu o tratamento com água, agora era para colocar duas vezes ao dia e me liberou para voltar à escola. Embora já fazia quinze dias que tinha começado as aulas, fui aceito sem problemas. É claro que, como não tinha apresentado prova final, continuei na 1ª série, e como era repetente, não tinha direito de participar do banco branco. A promessa que foi feita para minha mãe, era que no final do segundo mês, viria um fiscal da secretaria de educação e faria provas para os repetentes de todas as séries e quem tivesse estudado, passaria, caso contrário, ficaria onde estivesse. Para mim tanto fazia, o importante era poder estudar. Todos os meus colegas eram novos, os anteriores tinham sido aprovados, até Pedro Malas Artes tinha conseguido aprovação. Duas semanas antes de vir o fiscal de Educação, foi a escolha do novo ocupante do banco branco. A escolhida foi uma menina de nome Ofélia, loira, franzina, muito delicada, quietinha e muito inteligente, gostava de estudar. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 44 Os pais dela, um casal novo, festejaram com muita alegria a escolha da filha para o banco branco. Eles eram donos de um tambo de leite. Era tanta a alegria deles, que trouxeram aveia e pão de queijo para todos os alunos e professores. Chegou o dia do meu teste, foi a maior barbada, graças aos ensinamentos de Antonio. Minha mãe, como sempre, deu sua choradinha. Antonio, ao contrário, ria, até o próprio fiscal me deu um tapinha na bochecha e me felicitou. Na segunda-feira me apresentei no salão da 2ª série. Ali estavam meus colegas da 1ª série e me receberam com bagunça e com gritos de Oi, Oi, Oi!!! Romélia não estava mais na mesma escola, como também o Raul, eles estavam em outra escola de grau mais adiantado. Na 2ª série não tinha banco branco, porém a professora, cada dois meses, mandava fazer um boneco de pão de queijo e era sorteado entre os alunos mais comportados e sem faltas, até Pedro Malas Artes participava. Hoje, trazendo à tona reminiscências daquela época, posso garantir que a professora fez alguma trapaça para que eu ganhasse o boneco. Tive a impressão de vê-la segurar o papel com meu nome entre os dedos e a caixa. Festa em casa, todos comendo o tal boneco, com chocolate que a mãe preparou. Estavam Antônio, Romélia, Elida e nós de casa. O que sobrou, ficou para o café do outro dia. Madrugador que eu era, como sempre fazedor de mandados da vizinhança, com um apelido por sempre viver correndo, caçador de cobras, pela doença dos meus olhos, por ter ocupado o banco branco por duas vezes, e quem sabe que mais, por tudo isto, eu era o mais famoso da turma. Quando comecei a usar óculos, pensei que meu problema estava solucionado, mas não foi assim. Três meses depois, tudo começou de novo. Médico, oftalmologistas, dor, berros e parar de estudar. Minha tristeza era profunda, não queria brincar com ninguém, vivia emburrado, bravo, cachorro que se atravessasse levava um coice. Estava me tornando mau, grosseiro até com a própria Romélia. Respeitava só o Antônio e à mãe. A misantropia me embargava, tinha prometido a Antônio estudar literatura, mas que literato pode ser quem não estuda? Vivia triste, só na companhia de Antônio me sentia bem e calmo e à noite acompanhando minha mãe passando roupas à luz de velas. De repente, comecei a notar que a todo o momento vinham compatriotas de Antônio, traziam jornais, liam, conversavam, às noites se reuniam no bar, conversavam muito, riam. Um dia li em um dos jornais: ”O ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 45 General Franco dá anistia a todos os espanhóis que querem retornar à Espanha”. Descobri que era esta a euforia de todos eles. Um senhor com frequência chegava com uma pasta trazendo e levando papéis para Antônio, este senhor não era espanhol. Através de Elida fiquei sabendo que era este senhor que estava organizando a documentação de Antônio e de outros espanhóis que pretendiam retornar à sua pátria. O adeus de Antonio Um dia Antônio me fez sentar, como de costume fazia para ler algum trecho de um livro, porém desta vez se dirigiu a mim desta forma: – Currege, vou viajar à Espanha, vou ver a minha Rocio. Ele quis me dizer mais alguma coisa, só que nesse momento chegava mais um espanhol e a nossa conversa foi interrompida. Como nesses dias eu não estava estudando, trabalhávamos até de noite, aos sábados e domingos. Ele não estava mais pegando serviço. O dia que terminamos e entregamos todos os serviços, recolhemos as ferramentas, as limpamos, o que era ferramenta miúda colocamos em uma mesa, as prateleiras, armários e bancadas nós pintamos, após estar tudo organizado. No dia seguinte, apareceu um senhor que era o dono de tudo, era um ferreiro que, não querendo mais trabalhar, tinha alugado o local e as ferramentas para Antônio. A mobília do quarto era de Elida, que havia emprestado para Antônio. Levamos tudo para a casa de Elida e o Antônio mudou-se para lá. Depois do almoço Antônio me disse que voltaria para a Espanha. Textualmente não me lembro o que ele disse, só sei que quando me explicava dizia: – É claro que se encontrar minha família, o que vou fazer é ficar por lá, caso contrário, antes de um mês estarei de volta. Aquela tarde fiquei com eles, conversamos, rimos, Antônio me leu algumas páginas do Pinóquio. À noite fui para casa, sentia um aperto no peito, algo como um nó na garganta, uma espécie de angústia, algo como uma raiva, uma dor sem dor. Quando cheguei em casa, meus irmãos estavam numa bagunça tomando banho, eu já tinha tomado na casa da Elida, minha mãe estava me esperando com uma xícara de chocolate com queijo e plátano frito (banana da terra frita). Comi e tomei o chocolate sem vontade. Enquanto meus irmãos maiores bagunçavam, minha mãe, eu e meus irmãos pequenos pegamos um banco e nos sentamos na frente da casa, corria uma brisa gostosa, não era frio nem quente, recostado no colo de minha mãe, peguei no sono. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 46 No dia seguinte, minha mãe me disse que à noite, Romélia tinha vindo me buscar para ir brincar, mas como estava dormindo não me acordaram. Sem tomar café, saí a fazer as compras dos vizinhos, só que eu as entregava com pouca vontade, e sem falar, saía correndo, não aceitava nada, sentia a garganta apertada. Quando cheguei na casa de Elida, Antônio estava de pijama lendo o jornal. Elida, quando me viu chegar, disse: – Negrinho, estávamos te esperando para tomar o café. Vamos Antônio, disse ela. Já estávamos no fim do café quando bateram na porta. Era o homem da pasta, entregou um envelope grande para Antônio e aceitou um cafezinho que Elida lhe ofereceu. Antônio revisou os papéis e disse: – Muito bem! O homem levantou-se, alegando que tinha de entregar outros documentos, deu um abraço em Antônio e lhe desejou boa viagem e foi embora. Após o café, Antônio se vestiu e saímos os três e entramos em um armazém. Antônio me comprou um short e uma blusa toda colorida e um par de sandálias da moda na época. Elida ganhou um mantô e um par de sapatos. Também comprou presentes para levar para sua Rocio. Elida não se importava. Em seguida entramos no mercado público. Elida comprou um cesto, eu quis carregar, porém ela não deixou. Um guri se aproximou e disse: – Senhora, levo mercado, e Elida entregou o cesto para ele. O guri colocou o cesto no ombro e, à medida que compravam, iam enchendo o cesto. Era a primeira vez que eu entrava no mercado, nunca tinha visto tantas frutas, tantas verduras, os armazéns cheios de gente comprando, um barulho infernal onde cada um oferecendo sua mercadoria. Quando passávamos pelas bancas chamavam Elida: – Venha freguesa, tenho aipim novinho, beterraba, rabanetes, etc. Elida passava nos conhecidos e comprava e ia colocando no cesto que, aos poucos, ia se enchendo. O garoto, quando Elida parava para comprar, colocava o cesto no chão para descansar, sinal de que estava um pouco pesado. Quando nos dirigimos para pegar a condução, escutei uma voz familiar que gritava: – Negro, negrinho! Era um garoto do meu bairro, filho de uma senhora chamada Gregória, gente muito pobre. Perguntei o que fazia no mercado, me respondeu que carregava cestos. Perguntei: – Ganhas? Ele me disse: – Sim, já tenho alguns fregueses, às vezes ganho oito, dez ou doze centavos no dia e também a gente ganha frutas, verduras e outras coisas que os donos das bancas nos dão. A nossa conversa foi interrompida por uma voz que gritou: – Fabio!, que era ele, olhou e me disse: – É minha freguesa. E saiu correndo, pegou o cesto da senhora, me olhou e fez sinal de tchau. Na porta de entrada do mercado havia vários rapazes com um saco de arpilheira nas costas, igual ao que tinha meu amigo e vizinho. O rapaz que estava carregando o cesto de Elida também tinha um saco de arpilheira, que além de identificá-lo como ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 47 carregador, servia para não sujar a camisa. Saímos do mercado e chegamos no estacionamento de charretes puxadas por dois cavalos, estas eram do tipo carruagem, que em qualquer lugar são chamadas de cabriolé, coches ou vitórias, estes eram os transportes que levavam as mercadorias. O guri cobrou quatro centavos, que era o preço, Antônio lhe deu cinco centavos, o guri saiu correndo, pulando de alegria. Já em casa, Elida preparou o almoço. Após comer, dormi um pouco, à tardinha Antônio e Elida foram me levar em casa, carregando parte da mercadoria que tinham comprado no mercado. É claro que também tinham comprado para mim. Após tomar um cafezinho, se despediram, e Antônio, se dirigindo à mãe, disse: – Por favor, cuide dos olhos do currege, ele só poderá voltar à escola com ordem do médico. Além do rancho, Antônio deu um dinheiro para minha mãe e deu uns trocados para mim, que após ele ter saído, eu dei para minha mãe. Elida me disse: – Negrinho, vai cedo amanhã para irmos à estação nos despedirmos do Antônio. No dia seguinte, após as compras para os vizinhos, fui para a casa de Elida, que estava me esperando para o café. Depois o Antônio me entregou quatro livros, Dom Quixote, Pinóquio, As Mil e Uma Noites e A Gata Borralheira, e me advertiu: – Tu não podes ler, espera que o médico te libere. Uma sineta anunciou a chegada do cabriolé que nos levaria à estação. Sentia Elida muito quieta, quase não falava, Antônio, de vez em quando lhe dizia uma coisa, eu também tinha pouca vontade de falar. Quando chegamos na estação, um garoto veio correndo se oferecer para carregar as malas. Quando Antônio lhe disse que sim, saiu correndo e voltou com um carrinho de duas rodas, colocou as malas e foi com Antônio para o vagão da bagagem. O garoto cobrou dez centavos, fiquei sabendo que cinco centavos eram para ele e cinco centavos para o dono do carrinho. Vi que havia vários garotos à espera de passageiros e vários donos de carrinhos à espera dos garotos que os alugavam. Cobravam dez centavos com carrinho, caso contrário eram só cinco centavos, todos estavam trabalhando. Quando entramos na sala de espera tinha uma quantidade de espanhóis, mais homens, poucas mulheres. Quase todos conheciam o Antônio, conversavam, riam, havia certa euforia em todos eles. Uma sineta bateu forte e um senhor com uma voz fina gritou: – Passageiros para Buenaventura, embarcar. Antônio e Elida se beijaram. Elida chorava, lembro-me que Antônio lhe disse: – Eu gosto muito de ti e estou agradecido, tu me deste vida nova, vigor, amor, mas tu sabes, tenho minha família que me espera, gosto desta terra que me acolheu, mas minha terra e a minha gente me fazem falta. Elida, chorando, mexeu a cabeça de forma afirmativa, em seguida Antônio me abraçou, me deu um beijo na testa e disse: - Cuida dos teus olhinhos. Senti-o um pouco emocionado, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 48 beijou novamente Elida e saiu correndo para subir no trem que deveria partir às treze horas e chegaria ao porto de Buenaventura às dezenove horas. A informação que tínhamos era que eles viajariam em um navio misto, ou seja, de carga e de passageiros, e que partiria de madrugada, à uma hora. No trem, o que mais se ouvia era a voz dos espanhóis que falavam, riam, se despediam dos amigos e das amigas. Elida e eu, parados como duas estátuas. Elida chorava, eu queria chorar, mas não conseguia, sentia um nó na garganta e um aperto no peito. Antônio nos fazia sinal com as mãos, de adeus, e nós também, ficamos ali até o trem desaparecer. Saímos da estação, pegamos um cabriolé, tinha bastante estacionados, e fomos para casa de Elida que já tinha deixado o almoço pronto. A comida passava com dificuldade pela minha garganta, comemos muito pouco, não quis dormir, embora Elida insistisse. Eu estava arrasado, queria ver minha mãe. Abracei Elida pela cintura, ela passou as mãos em meus cabelos e disse: – Não vais me abandonar agora, não é? Agora que o Antônio foi embora? Respondi: – Não senhora, virei lhe ver sempre. Peguei meus quatro livros e saí em direção à minha casa. Elida me acompanhou até a saída do palácio, porque, como sempre, tinha uma briga entre vizinhos. Quando cheguei em casa, minha mãe estava aprontando a roupa que deveria passar naquela noite. Ao lhe questionar porque não passava durante o dia, ela me disse que à noite era mais fresco. Naquela noite eu não quis brincar, fiquei sentado perto de minha mãe enquanto ela passava, falávamos do Antônio, ela me dizia: – Viu meu filho, o bom dura pouco, seu pai era um homem bom, um bom pai, um bom marido e foi embora cedo. Algumas vezes choro ao me lembrar dele, mas não adianta, foi Deus que assim quis. Você viu Antônio, um homem tão bom, foi em busca da sua família, que Deus lhe ajude a encontrar todos bem. Esse dinheiro que ele lhe dava aos sábados era uma grande ajuda, não faltava o leite para seus irmãos pequenos, mas meu filho, Deus quis assim, devemos nos conformar e não nos queixar. Contato com os circenses e o atropelamento No dia seguinte de Antônio ter ido embora, acompanhei minha mãe a entregar roupas. Na frente onde era a entrega, havia uma praça com um círculo de gente que batia palmas. Disse para minha mãe que eu ficaria ali lhe esperando enquanto ela iria entregar a roupa. Ao aproximarme, vi uma menina fazendo acrobacias, depois um contorcionista, eu olhava encantado. Em seguinda um mágico se apresentou, um Antipiodista, outros trabalhando nas cordas, um rapaz caminhava com as mãos, e segurando-se em uma, com a outra tomava um líquido; outro ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 49 colocava os dois pés na nuca e caminhava com as mãos, parecia um sapo; uma menina dava uma volta cambota no ar e ficava novamente em pé; o mágico fazia provas com baralhos, lenços, moedas, cigarros, a maior parte dos truques eu descobria porque estava quase nas costas do mago. Quando a mãe chegou para me buscar, eles estavam recolhendo dinheiro que o público lhes dava. Fiquei sabendo que era uma família que fazia estes números circenses nas praças. Quando cheguei em casa tentei caminhar com as mãos, mas não era fácil, porém, depois de muitos tombos, já estava dando os primeiros passos. Sempre que não tinha o que fazer, e em qualquer parte ou lugar, estava tentando caminhar com as mãos. Por último, já me segurava o tempo que eu queria, mas eu estava sempre cuidando onde aquela família se apresentava para dar uma olhada. Uma vez, lembro-me que a minha mãe me mandou comprar 200 gramas de queijo para fazer broas de milho e não sei por que cargas d’água fiquei sabendo que a família circense estava em uma praça do bairro. Fiquei perto de algumas pessoas que esperavam o ônibus e, enquanto elas subiam, eu me dependurei na parte de trás, e quando vi que estávamos perto da praça onde estavam os artistas e o ônibus não parou, eu desci com o ônibus em movimento, e me soltei. Só percebi alguma coisa, quando ouvia meu irmão mais velho chamando: – Meu irmãozinho! e repetia. Todos tratavam de acalmá-lo. Quando acordei, estava meia vila no hospital. A notícia que tinham era que um carro tinha me atropelado e eu estava morto. Daí a pouco entrou Elida como um furacão, depois Romélia. Eu estava cheio de curativos, o médico estava me examinando e me perguntou o que eu tinha na mão direita, que estava fechada, e mandou que eu a abrisse. Eu abri e disse para o doutor que era o dinheiro do queijo que minha mãe tinha mandado eu comprar. Quis levantar-me, mas o médico disse: – Não, não, não, ainda não! Ele me apertava e perguntava: – Dói? Eu respondia, não senhor. Aqui? Também não! Neste momento entrou minha tia Otilia chorando, correu para onde estava minha mãe e perguntou, desesperada: – O que foi, Chavita? A mãe respondeu: – Nada mana, ele está bem, só cheio de escoriações. Daí o doutor disse que estava tudo bem e que era para passar na secretaria que ele daria alta, só tinha que voltar todos os dias para fazer curativo. Minha tia se prontificou a me trazer. De vez em quando alguém da vila aparecia e perguntava pelo negrinho, alguém respondia: – Ele está bem, já está indo para casa. Eles me faziam sinal de longe e eu também respondia com um sinal. Dentre todos os presentes havia um senhor de terno e gravata, um policial e um senhor em manga de camisa. O de gravata pediu licença ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 50 para o médico, que já se retirava, falou um pouco com ele, depois me perguntou: – Como foi que o ônibus te pegou? Claro que eu respondi: – Não, ele não me pegou, é que eu queria chegar no parque São Nicolau, e quando o ônibus passou no parque e não parou, eu me larguei. E você onde estava? Eu estava pendurado atrás. E quem lhe mandou se pendurar atrás? Ninguém, é que eu queria ver o pessoal do circo. E porque não pediu ao motorista lhe levar? Tinha vergonha. Eu via que o senhor que estava em mangas de camisa, colocava as mãos de um lado para outro, alguém dizia que ele estava rezando. Neste momento, toda atenção foi para a voz de uma senhora que falava alto: – O que aconteceu com meu negrinho? Como se apoiava na bengala e andava em passos lentos, vários correram para ajudar, o policial foi quem chegou primeiro. Era minha professora do primário Mariateresa. Quando me viu sentado, disse: – Disseram que ele estava morto, que um ônibus o tinha atropelado. O senhor de terno que ainda estava do meu lado falou para a professora: – Não, ele não foi atropelado, ele se pendurou no ônibus. Olha o motorista, coitado, está rezando. Ele pensava que ele é que tinha atropelado o menino. O homem se despediu, deu uma batidinha nas minhas costas e me deu cinquenta centavos e foi falar com o homem que supostamente era o motorista. Entregou-lhe um papel, após assinar, despediu-se dele e saiu junto com o policial. O motorista se aproximou, cumprimentou a todos, e com uma voz apavorada nos disse: – Eu pensei que era eu que tinha atropelado o garoto. Quando o vi no chão, daquele jeito, pensei que ele estivesse morto. Quase desmaiei, não conseguia caminhar. Levaram o menino para o hospital, me deram água, me sentia desnorteado. Quando me recuperei, fui para a delegacia e contei que talvez tivesse atropelado um menino. Enquanto falava com o delegado, chegou um policial levando todo tipo de informação, número de placa, nome do motorista e a que empresa pertencia. O delegado me disse que tudo ia depender do estado do menino, para correr o processo, mas quando chegamos aqui, e vi o menino sentado e conversando, vocês não queiram saber a minha alegria, que alívio senti, rezei e agradeci a Deus. Despediu-se de todos e também me deu cinquenta centavos. A minha mãe chegou com o papel da alta e todos saímos. Foram necessários cinco cabriolés para irmos embora. A minha tia Otilia me levava todos os dias para fazer os curativos. Dias depois estava tudo cicatrizado, porém no rosto tinha muitas manchas em consequência das feridas. Até hoje me lembro que minha tia ia para o mato perto de casa e pegava algumas folhas de urtiga, é claro que era com luvas, e fazia um ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 51 preparado para me passar no rosto, nas manchas deixadas pelas cicatrizes, acreditem ou não, as manchas desapareceram. Nunca me esqueço que um dia encostou em frente à minha casa o ônibus da queda. Reconheci o motorista, este nos trouxe um rancho, que durou mais de trinta dias. Ficou conversando conosco, me presenteou com um peso, se despediu e foi embora. Imaginem a alegria da minha mãe. Nesse rancho havia de tudo. Durante a minha convalescença, se é que podemos chamar assim, não faltava uma noite que algum vizinho não fosse me visitar. Não sabia que os meus irmãos gostassem tanto de mim. Às noites, não saíam, como de costume, para brincar, ficavam com Romélia lendo meus livros. Práticas circenses Já recuperado, voltei à minha rotina de sempre e quando não tinha o que fazer gostava de praticar caminhar com as mãos, dar volta cambota e com laranjas praticava malabarismo. Lutei bastante até conseguir colocar os pés na nuca, por último, ao invés de caminhar normalmente, sempre estava caminhando com as mãos. Chegava à casa dos vizinhos caminhando com as mãos, também ia fazer as compras do mesmo jeito. Um dia, quando cheguei no açougue de Gratiniano, ele, a mulher, os filhos e os fregueses que ali estavam, riam. Gratiniano era o mais alegre, dei volta cambota e coloquei os pés na nuca. Naquele dia, Gratiniano mandou um pedaço grande de carne para minha mãe. Um dia, fui visitar Elida e entrei no palácio caminhando com as mãos. Foi a maior esculhambação que se formou quando me viram caminhando daquele jeito, batiam palmas, riam, outros diziam: – Que menino! Ao ouvir toda essa bagunça, Elida veio ver do que se tratava. Quando me viu daquele jeito, gritou: – Negrinho! Endireitei-me, nos abraçamos e entramos abraçados no seu quarto. Preparou-me chocolate com queijo e pão de queijo, falamos bastante, sobretudo do Antônio, a falta que nos fazia, com ele tudo era fácil, tudo era alegria. Aproveitei um momento de silêncio e lhe perguntei se ela tinha condições de me comprar um baralho, e ela indagou: – O que tu vais fazer com um baralho? Como eu tinha recortado o papelão de caixas de sapato e de pastas de caderno do tamanho do baralho, lhe fiz uma demonstração. Ela deu um suspiro e disse: – Que pena que o Antônio não esteja aqui para te ver, ia ficar muito orgulhoso. Trocou os chinelos por sapatos e saímos. Na primeira lojinha de bijuterias que encontramos, entramos. Elida comprou o baralho e me entregou. Eu quis fazer algumas provas, estava um pouco duro, porém assim mesmo consegui fazer. Eu fazia e o dono da loja batia palmas, a mulher e a filha também me viram fazer, pedi para ele me emprestar um ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 52 dedal vermelho e fiz uma demonstração de destreza, ele me deu o dedal de presente. Caminhei com as mãos, dei volta cambalhota, coloquei os pés na nuca, a lojinha se encheu de gente, eles atendiam poucos fregueses, eles queriam era me ver fazer as provas, depois eu disse ao dono: – Um dia, quando comprar outro baralho, vou vir lhe fazer uma prova muito bonita. Imediatamente ele pegou da vitrine outro baralho, a filha dele pegou uma caixa com lenços coloridos e me fez escolher um, eu peguei o vermelho, que era igual àquele do mágico do parque. Elida quis pagar e o dono da loja não aceitou, disse que era presente. É claro que faziam perguntas para Elida: quem eu era, sabiam que ela não poderia ser minha mãe, ela era loira e eu preto. Despedimo-nos, e como era um pouco tarde, fomos direto para minha casa. Elida entrou dizendo: – Chava, tu tens um filho que é um artista! Depois se sentaram e conversaram. Elida falava da tristeza e da falta que Antônio lhe fazia, é claro que também dizia que tinha que se conformar porque ele deveria estar feliz com sua família na sua terra. Às vezes uma tristeza se manifestava em mim e eu saía correndo até a casa que trabalhara com o Antônio. Sentava-me em um banquinho de taquara que sempre esteve na frente, e aí voltava o nó na garganta e aquele aperto no peito. Depois retornava para casa caminhando com as mãos ou dando volta cambota. Não encontrava sossego em parte alguma. Às vezes visitava Elida. Ela sempre choramingando, lembrando Antônio. Tinha mandado emoldurar a foto dele e a tinha colocado na cabeceira da cama. Eu só me sentia tranquilo na minha casa e perto da mãe. Servindo ao Dr. Venavides Um dia, cheguei no açougue para comprar carne para uma vizinha, o açougueiro quando me viu entrar disse, cheio de satisfação: – Oh! Negrinho estava te esperando. E me perguntou: – Será que tu queres trabalhar na casa do Doutor Venavides? São poucas horas e só na parte da manhã. Vamos falar com ele. Tirou o avental, chamou a mulher para ela atender, e saímos. Minutos depois, chegamos em uma casa pintada de cor pêssego, as portas e janelas de madeira eram patinadas entre verde e branco, na parede e à nossa direita, havia uma plaquinha com letras em alto relevo que dizia: Dr. Venavides – Advogado. Gratiniano, esse era o nome do açougueiro, bateu na porta e apareceu um senhor jovem, branco, alto, de cabelos ondulados. Era o Dr. Venavides. Após cumprimentar, Gratiniano me apresentou dizendo: – Doutor, este é o garoto que lhe falei. O Doutor me olhou e disse: – É novinho! Gratiniano respondeu: – É novinho, porém melhor que gente grande! Gratiniano levava consigo dois ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 53 pedaços de carne e o Doutor disse: – Vamos lhe explicar o serviço e entramos na cozinha. O serviço até que não era difícil. Em um fogão elétrico tinha uma armação de arame e dentro da armação de arame tinha uma panela de alumínio com água até a metade, e meu serviço era lavar a carne numa pia que havia na cozinha, depois colocar a carne dentro da panela, ligar o fogão e esperar até ferver. Depois pegava uma concha que estava ali pronta para este serviço, a enchia com aquele caldo de carne e colocava numa caneca esmaltada. Na geladeira já tinha um copo com leite, que colocava no caldo, depois colocava duas colheres de açúcar. Mexia e deixava esfriar até ficar levemente morno e logo colocava numa mamadeira. A seguir, me mostraram um quarto onde, num berço, dormia uma criança bem pequena. Ao lado havia uma cama de casal onde uma senhora dormia. Fiquei sabendo que era a mulher do Doutor e ela estava doente. Enquanto esperávamos que a criança acordasse, o Doutor pegou um copo com água, desmanchou um comprimido, levantou um pouco a esposa e lhe fez tomar. Em seguida, ela falou bem baixinho: – Minha filha? E o Doutor respondeu: – Querida, tem um garoto aqui que está cuidando dela. Gratiniano aproveitou e lhe disse: – Dona Rosalva, não se preocupe que o garoto é bom, é o famoso negrinho. Quando a criança acordou, dei a mamadeira, isto eu sabia fazer porque muitas vezes me tocou dar a mamadeira à minha irmãzinha pequena. Uma vez terminada a mamadeira, instintivamente peguei a criança no colo e, em pé, coloquei-a sobre meu peito dando-lhe tapinhas bem de leve nas costas, para ver se arrotava, assim evitando que, uma vez deitada, vomitasse. O Doutor e Gratiniano festejaram meu comportamento. Gratiniano aproveitou e disse: – Viu Doutor, ele é bom mesmo. E dona Rosalva, que seguramente estava escutando, falou com uma voz tênue, bem fraquinha: – Ele tem razão. O Doutor me deu uma batidinha nas costas e disse: – Gostei de ti, guri. Gratiniano, estou seguro que ele aprendeu tudo. Posso ir trabalhar descansado. Olhou o relógio e disse: – Oito horas e trinta minutos, vou embora. Beijou a criança, a esposa e me disse: – Será que tu consegues chegar pelas sete horas? Quem respondeu foi Gratiniano, que lhe disse: – Antes das seis horas ele já está na rua. O Doutor agradeceu a Gratiniano e saiu, antes, porém me disse: – Diga para tua mãe que vou te pagar um peso por mês, tu ficas até às nove horas ou nove horas e trinta minutos, até que chegue a empregada. Se ela precisar que tu compres alguma coisa, tu vais comprar, e depois estás livre. Como na panela se coloca dois pedaços de carne, tu podes levar um, o outro tu deixas para a empregada. Gratiniano, que ainda estava presente, me ensinando o serviço, disse para o Doutor: – Deixe-o comigo que eu o oriento e falo com dona Isabel (minha mãe). Já na porta, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 54 o Doutor me perguntou: – Como é teu nome? Respondi: – Orlando. Gratiniano disse: – Doutor, ele é conhecido por Negrinho, acredito que ele já se esqueceu de seu próprio nome. O Doutor saiu, Gratiniano ficou comigo até a chegada da empregada, ela me foi apresentada por Gratiniano, eu senti que ela não foi com a minha cara. Gratiniano perguntou se precisava de alguma coisa, ela de muito mau jeito, respondeu que não, e sem me dar muita importância, entrou direto no quarto e começou a assear a menina. Gratiniano pegou um garfo grande, tirou um pedaço de carne e me entregou enrolado num papel. Tchau Rosa, esse era o nome da empregada, e saímos. Na rua ele me disse: – Não te preocupes com a Rosa, ela é assim mesmo, carrancuda, mas boa gente, tu vais te dar bem com ela. Ao chegar na minha casa, Gratiniano já entrou gritando: – Isabel, o negrinho já está trabalhando. Ele explicou tudo à minha mãe, inclusive quanto ganharia, que era um peso ao mês, para trabalhar só duas horas diárias. No dia seguinte, foi a minha mãe quem me acompanhou. O Doutor Venavides a recebeu com muita delicadeza. Eu fui fazer o meu serviço, lavei a carne, coloquei na panela. A minha mãe me olhava enquanto conversava com o Doutor. Fiz tudo direitinho, a minha mãe sempre me controlando de longe. O doutor se despediu, a minha mãe entrou na cozinha e lavou toda a louça que estava suja na pia, varreu, enquanto eu dei a mamadeira da neném, depois enrolamos o nosso pedaço de carne e ficamos esperando a chegada da empregada que não tardou. Ela conversou com minha mãe enquanto fiz algumas compras. Desta vez ela foi mais gentil comigo, fomos embora. Uma semana depois, notei que dona Rosalva estava melhorando. Um dia a encontrei sentada no sofá que estava no quarto. Ela conversava com o Doutor enquanto eu dava a mamadeira à criança, ela me olhava e sorria. O Doutor beijava a criança, depois dona Rosalva, me colocava a mão na cabeça e se despedia. Noutro dia, quando cheguei, encontrei dona Rosalva caminhando devagar dentro do quarto, o Doutor estava se barbeando e quando fui dar a mamadeira ao bebê, ela me pediu para ela dar. Passei a neném e ela a pegou no colo, a beijou e lhe dava a dedeira. Depois me perguntou como era que eu fazia para ela arrotar. Quando expliquei, ela achou engraçado e me disse: – Como é que com a tua idade sabes mais de criança do que eu, que já sou mãe? Enquanto esperávamos a chegada de Rosa, conversamos bastante. Ela me disse que eles eram de Bogotá e que o Doutor era advogado e trabalhava para o governo, que a estadia deles ali era provisória e que depois voltariam para a capital. Perguntou-me muita coisa. Contei-lhe do Antônio, dos meus olhos, que não podia estudar, falei da escola, também das cobras, do Dr. Corrêa, caminhei com as mãos, fiz várias demonstrações, e ela ria ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 55 bastante. Depois deitou a menina no berço e foi tomar banho e de lá de dentro me gritou: – Negrinho, não vai embora, me espera para tomar café. Rosa já tinha arrumado a mesa e minutos depois nós três estávamos tomando café, conversando e rindo das minhas proezas, inclusive com as cobras. Todos os dias me levantava cedo, comprava o leite e o pão para minha mãe e também para os vizinhos, depois corria para o açougue do Gratiniano, pegava a carne e corria para a casa do Doutor Venavides. Agora, quando chegava, a dona Rosalva já tinha ligado o fogão, eu lavava a carne e colocava na panela e esperava até ferver, e enquanto eu preparava a mamadeira, ela asseava a criança (Cristina, este era o nome da menina), e enquanto eu dava a mamadeira, dona Rosalva tomava banho. Meu serviço eu já sabia de cor, fazia as compras que Rosa deixava anotado em um papel, e quando eu chegava de volta, já estavam me esperando para juntos tomarmos café. Ultimamente era dona Rosalva que preparava a mamadeira e dava para Cristina, eu apenas levava a carne e fazia as compras, colocava o lixo na rua, esperava que a Rosa chegasse para ver se ela precisava de mais alguma coisa, e depois tomávamos café, sempre rindo e conversando. Cristina continuava dormindo. Sem mais o que fazer, ficava mais um pouco com dona Rosalva, a seu pedido, e depois me despedia e saía caminhando com as mãos até um bom trecho, escutando as risadas dos que me viam. Quando completei um mês no serviço, quem me pagou foi dona Rosalva. Ela amarrou o peso na ponta da minha camisa. Feliz, cheguei em casa com o dinheiro ganho no emprego. Quando meus irmãos voltaram, corri feliz para lhes contar. Fui contar também para Gratiniano e também fui visitar o Dr. Corrêa, só para lhe contar. Fui na casa da Elida, vibrando de feliz, parecia que tinha ganho o maior prêmio da loteria. Não compreendia que aquele dinheiro mal dava para comprar pouca coisa. Hoje, quando lembro daquela época, fico pensando e me digo: que bobo a gente é quando criança. Calculo que depois de passados mais ou menos uns quinze dias de eu ter recebido meu pagamento, enquanto tomávamos o café, dona Rosalva nos disse: – Meu marido foi chamado de volta para Bogotá. Possivelmente viajaremos daqui uns três ou quatro dias. Três dias depois, quando passei para pegar a carne, Gratiniano me disse: – Hoje é o último dia que levas a carne, o Doutor vai embora. Quando cheguei, a casa estava vazia, já tinham levado a mudança. O ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 56 Doutor não estava, a mamadeira foi preparada como de costume, porém improvisadamente. Cristina estava deitada com cobertores no chão, nós também tomamos o café sentados no chão. Dona Rosalva estava feliz, pois queria ver os pais e irmãos. Rosa estava um pouco séria, não falava, eu pouco entendia. Duas horas depois chegou e estacionou em frente da casa um carro grande preto que trazia o Doutor. O motorista era um senhor moreno com uniforme azul e um quepe com uma cinta ao redor, com as cores da bandeira colombiana. O que restava da mudança foi colocado no porta-malas. Rosa ficou com as chaves da casa para serem entregues na prefeitura. O Doutor disse: vamos levar o negrinho em casa, e mandou que eu subisse no carro, indicou o caminho ao motorista. Uma vez em casa, o Doutor desceu e dona Rosalva também, depois dos cumprimentos, em seguida a despedida. O Doutor deu um peso para minha mãe e a mim deu cinquenta centavos. Dona Rosalva me deu um beijo na testa e me disse: – Tchau negrinho! Como sempre, o Doutor me passou a mão na cabeça, agradeceu e também me disse tchau negrinho. Subiu no carro e partiu. Através do vidro traseiro dona Rosalva me fazia sinal de tchau. Fiquei sentado ali mesmo até o carro desaparecer, depois fui até onde a mãe lavava roupas, lhe dei os cinquenta centavos, me sentia um pouco triste. De volta à rotina das compras matinais e a história do Mudinho À noite, não quis ir brincar, mesmo com a insistência dos meus irmãos, ainda mais sabendo que a Romélia tinha ido passar uns dias com o pai, aproveitando o feriadão. A Romélia, até hoje, é uma das pessoas que mais ficaram em minha memória dos dias da minha infância. Fico lembrando de quando ela e minha mãe me contavam que quando eu era criança de colo, com poucos meses de nascido, a Romélia deveria ter uns sete aninhos, mas ela gostava de ajudar minha mãe a me dar banho. Lembro que algumas vezes ela dizia para minha mãe, e na minha presença: – Lembra Chavita, quando eu lhe lavava a bundinha, o sovaquinho, o pipizinho, e olhe ele agora, o burro de homem que está. E ela dizia ainda para a minha mãe: – Chavita, lembra quando adoeceu? Parecia um ratinho. Nessa vez eu pensei que ele iria morrer e olha ele ali! A minha mãe dizia: – Tu também eras pequenininha. Acho que tinhas a idade que ele tem agora. Continuava na minha rotina diária: de madrugava fazia as compras das vizinhas, algumas vezes visitava Elida, outras vezes perambulava à cata de cobras para o Dr. Corrêa. Enquanto escrevo, surgem muitas lembranças daquela época, paro e começo a relembrar que uma vez, estando à cata de cobras, atravessei o rio por uma pontezinha feita de ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 57 cordas e pedaços de madeira. Não era muito sólida e era mal feita. Na beira do rio existia muito mato com poucas clareiras. Como do outro lado pouca gente andava, calculei que poderia encontrar cobras. Quando estava vasculhando o mato, vi um rapaz sentado em um banquinho, pescando de caniço à beira do rio, estava sozinho, eu estava do outro lado e um pouco distante. Do lado que eu estava, era a fazenda que diziam ser da família Caizedo, que sofria muito com o vandalismo da gurizada que atravessava o rio para ordenhar as vacas e roubar o leite. Algumas vezes roubavam os terneirinhos. Os empregados rondavam a cavalo, cuidando quem atravessasse o rio. Quando um deles me viu, veio correndo com o relho na mão para tirar o intruso, era desta forma que eles afugentavam a gurizada de dentro da fazenda. Quando senti o galopar do cavalo, levantei a cabeça. Era o senhor Martin, empregado da fazenda, e gritei: – Oi senhor Martin! Ele freou um pouco o cavalo e me disse: – Oh campeão, como vão essas cobras, achou alguma? – Nada, senhor Martin, respondi. No momento que ele estava perguntando pela minha mãe e meus irmãos, (a esposa dele era muito amiga de minha mãe), ouvimos um barulho, que parecia de alguma coisa caindo na água e se debatendo. Quando passou pela minha frente, eu vi e gritei: – Senhor Martin, é o Mudinho. Primeiro passou uma lata vazia, na qual li Aveia Quaker. É claro que eu conhecia essa lata. Era a forma que o mudo se comunicava com sua mãe, porque, como ele era mudo, quando queria alguma coisa, batia na lata com uma madeirinha que sempre estava amarrada na lata. De acordo com as batidas, a mãe sabia o que ele queria. Ela também tinha outra lata igual, e de acordo com as batidas, ele também sabia o que ela estava dizendo. Este código tinha surgido instintivamente entre eles. Ele não sabia ler nem escrever e ela era meio analfabeta. Em todo caso, quando vimos o mudinho passar na nossa frente dentro d’água, o senhor Martin desceu do cavalo, amarrou-o em uma árvore, tirou a roupa e saiu correndo pela beira do rio, tentando alcançar o corpo do Mudo. Olhávamos para frente, para trás e nada, por fim cheguei à ponte por onde eu tinha atravessado e gritei para o senhor Martin, que eu ia avisar a mãe dele. – Certo, respondeu, e traga mais gente. Ofegante, cheguei gritando: – Dona Rita, que era a mãe dele, dona Rita, gritei de novo, o mudinho caiu no rio e está se afogando. Um vizinho de dona Rita, que ouviu o barulho, perguntou: – O que foi? Eu disse: – O Mudinho está se afogando. Onde? - Perto da ponte. Outros já ouviram e saíram correndo para a ponte e eu atrás de todos, gritando: – O Mudo está se afogando. A vizinhança, apesar daquela pobreza, era muito unida, e a dor de um era a de todos. Corriam no mesmo sentido e com o mesmo fim, o de socorrer o Mudo. Eu não conseguia acompanhar, porque estava descalço e as pedras e os espinhos me machucavam a planta dos pés. Fiquei totalmente para trás. Quando cheguei, tinha gente por todos os lados, uns dentro do rio, outros fora, tinha até dois policiais que estavam ajudando na busca. A correnteza do rio era forte e muito mais quando se ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 58 aproximava da desembocadura do outro rio. De longe conseguia ver uma canoa dos bombeiros com quatro homens também ajudando. De onde o Mudo caiu até a desembocadura do rio, hoje calculo que havia uns 2 quilômetros, a ponte ficava na metade do caminho. Os bombeiros da canoa estavam com sungas, dois deles estavam amarrados a uma corda e nos olhos tinham uma espécie de máscara para poder abrilos dentro d’água. Mergulhavam até o fundo e levados pela correnteza, saíam mais adiante. Eram puxados pelos colegas até a canoa, descansavam um pouco e tornavam a mergulhar. Os outros dois tinham umas barras compridas com ganchos nas pontas, que colocavam dentro da água tentando enganchar o corpo do Mudinho. Iam de uma margem à outra do rio. Os policiais também procuravam antes da desembocadura, estavam todos molhados, porque, às vezes entravam no rio e andavam com paus cutucando por todos cantos. Alguns vizinhos que sabiam nadar também mergulhavam e procuravam na beira, nas pedras. Um vizinho encontrou o caniço enredado em um galho. Quando levantou o caniço, no anzol tinha um peixinho bem pequenininho. Berrou tanto que todos acreditaram que ele tivesse encontrado o corpo e no meio de tanta gritaria tudo ficou em silêncio quando se deram conta que era só o caniço. Todo barulho recomeçou, um compadre gritava: – Dá uma olhadinha naquela espuma, outro, naquela pedra Uma senhora gritava para o marido: – Amor, procura deste lado! Era aquele berreiro, cada um gritava de forma diferente. Dona Rita, no desespero, corria de um lado para outro com sua latinha de Aveia Quaker, de vez em quando dava uma batida, chorava e gritava: – Oh meu Deus, porque levas meu filho? Meu Senhor me devolve ele! Hoje lembro aqueles gritos de desespero e sinto um calafrio. Essa imagem se manifesta com tanta evidência que parece que estou vendo tudo de novo. Dona Rita era alta, magra, cabelos longos e mal cuidados, seu rosto enrugado mostrava uma velhice prematura, poucos dentes. Sempre calçava um chinelo de sapatos velhos que ela cortava a parte do calcanhar e andava até quando não tinha mais condições de serem usados, só conhecia dois vestidos, um deles dava a impressão de ter sido floreado, só que de tantas lavadas, as flores mal e mal se viam, o outro poderia ter sido cor de rosa, só que mais parecia um branco encardido. Duas a três vezes por semana ia ao mercado levando um saco de arpilheira e voltava com ele cheio de frutas e verduras, tomates, tudo que encontrava nas latas de lixo, alguns donos de banca que a conheciam lhe davam coisas boas, os donos de bancas de carne também lhe davam alguns ossos com carne. Fiquei sabendo que o pai do mudo tinha sido morto numa briga e que gostava muito de beber. Quando bêbado era metido a facão sem ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 59 gume, até que um dia, bêbados, segundo diziam, lhe tiraram a valentia. Os sogros da Rita também eram muito pobres e moravam num povoado distante e, assim mesmo, uma vez por ano vinham, sempre perto do Natal, para visitar a Rita e o neto Mudinho, trazendo alguns presentinhos, roupinhas e alguns trocos. A mãe da Rita era doente, tinha sofrido um derrame e vivia quietinha pelos cantos, sempre que a gente olhava para ela dava a impressão que estava rindo. Às vezes, hoje, aqui sozinho em meu escritório, me vêm à tona reminiscências do meu bairro, daquela época da minha infância e me digo: – Bota pobreza nisto! As buscas continuavam, no horizonte o sol já queria se ocultar sentia-se a exaustão de alguns, que se sentavam para descansar um pouco, e continuar em seguida. Eu voltei para minha casa porque quase não podia caminhar de tantos ferimentos que tinha na sola dos pés. Peguei uns pedaços de panos velhos e enrolei-os nos pés à guisa de sapatos e voltei correndo. Quando cheguei na beira do rio, ouvi um barulho, me aproximei e vi que eram três rapazes, vizinhos do bairro, que tentavam pegar a lata de Aveia Quaker com o palito, que tinha ficado enredada num galho. Eles tentavam resgatá-la com uma madeirinha, só que muito curta. Quando cheguei, eles me pediram para eu tentar, porque eu carregava uma vassoura velha e gasta que tinha encontrado na beira do rio. Tudo era mato, porém fui me aproximando e consegui enganchá-la com o toco da vassoura, e comecei a puxar, até que deu para pegar a lata com o pauzinho. A gurizada saiu correndo para dizer à dona Rita do encontro da latinha. Eu não me atrevi a correr, temendo que as vendas dos meus pés desatassem. Comecei a caminhar, sempre perto da beira do rio. No lugar por onde eu estava passando, o rio fazia uma curva de aproximadamente trinta e cinco graus. Ali havia umas pedras bem grandes, e parte delas ficava fora da água, e entre o redemoinho e a espuma que se formava, me deu a impressão de ver alguma coisa que aparecia e desaparecia por entre o mato. Tratei de me aproximar o mais que pude e vi que era o banquinho do Mudo. Ali o rio era muito fundo e a correnteza muito forte. Tive vontade de pegar o banquinho, mas não me atrevi, era tudo junto, mato, correnteza e, no fundo, tive medo e raiva de não poder pegá-lo. A distância não era muito grande, só que o barulho e a força da água me davam temor, e o temor me dava raiva, e a raiva fez com que eu pegasse o palito e batesse com muita força na lata. E foi nesse mesmo instante que ouvi: – vooo, que era a única forma que o Mudinho sabia falar. Olhei bem por entre o mato e vi o Mudinho nu olhando com olhos esbugalhados e com o rosto ensanguentado. Sua camisa estava toda rasgada, e ele se encontrava enredado nesse mato, que era cheio de espinhos grandes, chamados de unha de gato. Saí rápido dali, até me esqueci dos meus pés e comecei a correr, gritando a todo pulmão: – O Mudinho está aqui! E repetia. Para não me enganar, deixei lá minha ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 60 camisa e a latinha marcando o lugar. Quando todos correram para o meu lado, parei em frente, indicando o lugar. Todos passaram por cima da minha camisa, a lata foi parar longe. Os bombeiros, com foices e facões, foram desbravando o mato e cortando as unhas de gato. Quando abriram a primeira clareira, um bombeiro se deitou por baixo, amarrando o Mudinho pela cintura, outros dois policiais seguravam a corda, enquanto os bombeiros continuavam cortando o mato e tirando com cuidado os galhos que seguravam o Mudo. A Rita chorava e perguntava: – Ele está vivo? – Sim, alguém respondeu, só está um pouco machucado pelas unhas de gato. Ela se ajoelhou, colocando as mãos para o céu, dizendo: – Obrigada, Senhor meu Deus, obrigada! Uma vez liberado, puxaram o Mudinho para fora da água. Quando o puxaram o banco veio junto. A Rita amarrava o banquinho com uma corda na cintura dele quando ia pescar, para que não o esquecesse. Foi isto que o salvou, porque quando chegou na curva do rio, a corda se enredou nas unhas de gato e o mudinho ficou ali todo enredado. Como o Mudinho estava mais baixo que o nível da pedra, nós víamos o banco, porém a corda não. Tiraram as cordas do Mudo, um bombeiro o pegou no colo e saiu correndo com ele em direção ao carro que tinha ficado na rua e todos nós corríamos. Eu fui o primeiro a subir no carro dos bombeiros, quando ouvi um bombeiro dizer que não poderíamos subir todos no carro porque ele não aguentaria. Antes que me mandassem descer me escondi atrás de umas lonas. O Mudo foi colocado no carro, em cima de uma padiola, segurada por dois policiais, enquanto dois bombeiros, um deles dirigia e o outro liberava a sirene. A mãe do Mudo também estava sentada naquela parafernália de cordas, ferros, cabos de aço, foices e facões. Chegamos ao hospital, o mesmo que tinham me levado quando caí do ônibus, vários médicos e enfermeiras correram para atender o Mudo. Eu e mais dois vizinhos que tinhamos conseguido ir junto, olhávamos de longe. Um dos médicos me reconheceu, se aproximou e me perguntou: – Não foste tu quem caiu do ônibus? Respondi que sim. Perguntou o porquê das vendas em meus pés e eu lhe contei. Ele me disse: – E porque andas sem sapatos? Eu respondi: – Porque não tenho. Ele chamou um enfermeiro que me pegou no colo e me levou até a enfermaria. O Doutor veio me examinar e uma enfermeira limpou meus pés, colocando pomada, gaze e esparadrapo. Colocaram meus pés sobre um papelão onde a enfermeira fez seu desenho. Chamaram um senhor, entregando-lhe o desenho do pé. Minutos depois, ele apareceu com uma caixa de sapatos, que o Doutor me entregou dizendo: – Estes sapatos são para usares quando sarar dos cortes. Dentro da caixa colocaram também um tubo de pomada, esparadrapo, gaze e uma receita. O Doutor me disse: ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 61 – Isto tudo é para entregar à tua mãe. Dois vizinhos que tinham vindo conosco, estavam sentados comigo num banco à espera de notícias do Mudo. Duas freiras se aproximaram de nós e perguntaram por que eu estava sem camisa. Os vizinhos contaram o acontecido e elas pediram para eu ir junto a um quarto, onde tinha um guarda-roupa de onde tiraram uma camiseta branca e me entregaram. Era um pouquinho grande, mas fiquei muito feliz. Ao escrever estas memórias e relembrar todos aqueles acontecimentos fecho os olhos e evidencio o exato momento quando vi o Mudinho naquele brejo, com o rosto ensanguentado. Vejo também quando o bombeiro levou o Mudinho no colo e nós correndo atrás dele. A Rita correndo atrás do bombeiro e de repente perde um chinelo, que lhe escapou do pé. Ela, sem perda de tempo, mandou o outro chinelo longe. Eu peguei os dois chinelos, escondi numa moita e continuei correndo. Depois de tanto tempo, agora aqui no meu escritório, dou risada sozinho ao lembrar do jeito que a Rita se desfez do chinelo e da velocidade com que os escondi. Vejo a Rita sentada num banco, agachada com os cotovelos nas coxas e a mão no rosto, sem sapatos, mal vestida, desgrenhada, que pobreza! Lembro e dou risada do jeito que me escondi no meio das lonas, com cheiro forte de óleo. Lembro quando uma enfermeira veio nos dizer: – Podem ir ver o paciente, e todos corremos e o encontramos sentado num banco, todo vestido de branco, inclusive os sapatos. Apesar de ser tudo usado, estava limpo e em perfeitas condições. Já se passaram tantos anos e até hoje guardo na memória aquele olhar que o Mudo deu para a mãe quando a viu entrar. Não consigo interpretar se era de desculpas ou algo como de satisfação por vê-la. O médico entrou com um senhor forte, alto, branco, e o cabelo ralo parecia de sarará. O Doutor disse: – Ele vai levar vocês para casa. Rita agradeceu ao Doutor e às enfermeiras e todos nos despedimos. O Doutor que me deu os sapatos mexeu comigo dizendo: – Viu, chegou pelado e volta vestido, chegou ferido e vai curado e veja se não te penduras em outro ônibus! Lembro-me que eu só sorria, feliz com minha caixa de sapatos na mão. Quando a gente da vila viu o carro da saúde parar em frente a casa da Rita, os vizinhos correram para ver o Mudinho que, para surpresa de todos, estava vestido todo de branco como um doutor. A ambulância foi embora, porém todos ficaram ali. O Mudinho estava cheio de gazes e esparadrapos no rosto e em vários lugares do corpo. Muitos comentaram que quando eu vim do hospital, estava do mesmo jeito. Lembro que a tragédia do Mudo me deu lucro: um par de sapatos novos e uma camiseta. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 62 Quando desci da ambulância a primeira coisa que fiz foi sair correndo para minha casa. Entreguei para minha mãe a caixa com os sapatos e os curativos. Na receita que também estava junto, dizia para lavar com água quente todos os dias, colocando pomada e gazes novas, fixas com esparadrapo e não caminhar por quatro dias. Fico lembrando a tristeza que senti, quando no quarto dia, experimentei os sapatos, eram grandes demais para os meus pés, então minha mãe pediu para que os desse para meu irmão mais velho, que no ano seguinte se mudaria para outra escola, perto do centro, e teria que ir mais bem vestido. Sem mágoa alguma, aprovei o desejo de minha mãe. Os dois amigos Conto-lhes que ali mesmo na minha vila eu tinha dois amiguinhos excepcionais: um deles era o Mudinho, seu nome verdadeiro era Alejandro. Nunca soube sua idade, lembro que sempre estava sério e tinha certa dificuldade para caminhar. Às vezes, aos domingos, nos reuníamos, com vários garotos da vila, e saíamos pelas estradas sem movimento de carros, só de carroças, ou alguém a cavalo. Colhíamos frutas, algumas silvestres, outras dos galhos que saíam das cercas e, muitas vezes, invadíamos lugares particulares, sempre na espreita, para no caso de alguma emergência, poder correr. Meus dois irmãos eram mais destemidos, entravam, subiam nas árvores, colhiam as frutas, atiravam o resto para a gurizada recolher e depois tudo era repartido em partes iguais. Nesses casos, o mais covarde era eu. Da parte que me cabia, eu levava algumas frutas para o Mudinho, e sentia sua felicidade. Ele fazia vários gestos, mexia a cabeça, as mãos, com certa dificuldade, dava a impressão que queria falar, talvez para me agradecer. Normalmente, parecia estar bravo, triste, hoje trato de raciocinar e me pergunto: – Será que ele não compreendia seu estado e isso lhe proporcionava o viver taciturno? É claro que quando eu chegava perto dele, seu comportamento era diferente, fazia gestos como tentando sorrir e fico pensando: coitada da Rita, aquele rapaz poderia ser sua ajuda, infelizmente nasceu assim. O meu outro amigo era um garoto de nome Oscar, ele tinha sofrido de poliomielite e ficado cheio de problemas físicos, caminhava aos pulos, dando a impressão de que poderia cair, movimentava os braços com muita dificuldade, um era menor que o outro. Ele ouvia e entendia tudo, estava sempre sorridente, emitia alguns sons, com os quais se fazia entender. Ficava feliz quando me via, gostava de ser meu amigo. Lembro que quando entrei na escola, no segundo mês fui escolhido para participar de um grupo de teatro entre os alunos da primeira série. Dentro da programação, eu teria que cantar e dançar com um grupo de meninos e meninas e a dança era uma guabina chinquinquirenha, por ser de uma ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 63 cidade de nome Chinquinquira. A apresentação era na sexta-feira cultural, e os pais dos alunos eram convidados a assistir. Oscar foi levado pelos pais que tinham outro filho estudando ali. Muitos me contavam que quando Oscar me viu aparecer no palco com aquela roupa imitando o homem do campo, ria, gesticulava, demonstrava tanta alegria que chamava a atenção de todos. Quando terminamos a nossa apresentação, os presentes batiam palmas, ele também tentava, só que enquanto os outros batiam três vezes ele batia uma só vez. Terminada minha apresentação, fui sentar junto com minha mãe e meus irmãos. Oscar que estava perto, quando me viu chegar, era só alegria, gesticulava, mexia com os braços, era todo euforia e, ao invés de sentar perto da minha mãe, me sentei junto dele. Ele me abraçou pela cintura e eu fiz o mesmo, assim ele ficou quietinho vendo o resto da apresentação. Ao nos ver abraçados, alguém comentou: – Como eles se querem bem! A Romélia, que estava perto, interferiu dizendo: – É que esse negrinho é a coisa mais querida do mundo, veio e me deu um beijo na bochecha. Oscar fez um gesto como de bravo, como quem não gostou, Romélia também o beijou e lhe disse: – Não fica bravo, eu também gosto de ti, ele como pôde, deu um beijo nela. Sempre quando chegava na casa dele, ele tratava de dançar como querendo me imitar e eu também dançava com ele. O pai de Oscar vendia frutas. O dono da banca tinha várias bancas e todas terceirizadas. Ele pagava por porcentagem. A mulher, tal como minha mãe, também lavava e passava roupas, mesmo assim, eram tão pobres como nós. Cumpri a rigor os quatro dias que o médico pediu, é claro que no terceiro dia já não sentia mais nada, só que fiquei, para não dar o contra a minha mãe. Durante o tempo de repouso, Gratiniano, que soube da história, foi com a mulher me visitar e levaram para minha mãe carne e algumas verduras. Elida também foi me ver e, como sempre, alguma coisa levava para a mãe, vários vizinhos também foram me ver. Uma noite a Rita levou o Mudinho, ele ainda estava cheio de curativos. O pai e a mãe do Oscar também foram me visitar. Oscar estava sempre sorrindo e fazendo esforço para me dizer alguma coisa, que não saía. Romélia e meus irmãos não iam brincar na rua, ficavam comigo bagunçando a casa. No quinto dia madruguei e fui fazer as compras para meus vizinhos. Quando entrei no açougue, o primeiro a mexer comigo foi o Gratiniano, que me chamava de herói. Na padaria, quando cheguei, me perguntaram como eu tinha conseguido tirar o Mudinho de dentro do rio, pois ele era mais alto e mais forte que eu. É claro que eu respondia que não tinha sido eu, e sim os bombeiros e a polícia. Faziam-me muitas perguntas e eu contava todos os acontecimentos, até as feridas dos pés. Quando imitava os gestos do Mudinho, com os olhos bem arregalados, todos riam. Naquela manhã, ganhei de dois fregueses da padaria, pão, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 64 arepas, pão de queijo e até um litro de leite. Voltei para casa com tudo que ganhei. Três dias após estar caminhando, apareceu o Dr. Corrêa com a mulher, a empregada e o marido dela, recém tinham sabido de tudo, me levaram pomada cicatrizante à base de veneno de cobra. O Dr. Corrêa me abraçou e a mulher dele quase me afogou com o apertão que me deu, é que ela era um pouco gordinha. A empregada, sempre carinhosa para comigo, também me abraçou, o marido dela, alto e forte, me pegou e me levantou. Lembro-me que ele às vezes me pegava daquele jeito na casa do Dr. Corrêa, quando nos chamavam para tomar café, me levava até a mesa. Senti-me muito feliz com a visita e ficou combinado que eu iria tomar café ou almoçar com eles qualquer dia. Dois dias depois eu fui almoçar. Não faltaram as perguntas a respeito do Mudo e também muitas risadas ao descrever os acontecimentos. Regressei para casa com uns troquinhos e algumas frutas e verduras que ganhei deles. Vendedor na estação de trem Quando se manifesta em minha memória isto que vou contar, sinto uma espécie de raiva, mas é claro que se dissipa ao pensar que faz tantos anos, e que essa raiva agora não adianta nada. O caso é o seguinte: Um dia, minha tia Otilia foi à nossa casa para pedir à minha mãe me deixar cuidar de um carrinho que ela tinha na estação de trem onde ela vendia aveia e bolos. É que ela estava nos últimos dias de gravidez do terceiro filho. Claro que nem eu nem minha mãe negaríamos este pedido. No dia seguinte de manhã, minha tia me deu a orientação necessária. O carrinho era bem bonitinho, pintado de branco e azul celeste, as rodas eram de borracha, com aproximadamente 40 centímentros de diâmetro e estavam pintadas de preto. O carrinho era igual àqueles de cachorro quente ou pipoca Do lado esquerdo tinha duas abraçadeiras onde era fixado um tubo de aço inox de aproximadamente 40 centímetros de diâmetro, e em seu interior, era colocado outro tubo com diâmetro de aproximadamente 25 centímetros. A altura era de 70 centímetros e o tubo externo tinha na parte inferior uma torneira com um tubo pequeno de vidro que marcava a quantidade de litros de aveia existentes. Entre o tubo interno e o externo, era colocado gelo para manter a aveia bem gelada. Tinha duas vitrines de vidro, uma para guardar os bolos e doces e a outra para guardar os copos limpos. Na parte de baixo estava o depósito de água para lavar os copos e ao lado uma espécie de paiol para guardar cachibaches. Naquele primeiro dia fiquei junto com minha tia aprendendo como tudo funcionava, o que me pareceu muito fácil: aveia, bolos e doces, todos ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 65 eram entregues no local, era só vender. O bolo custava dois centavos e o copo de aveia três centavos. Existia uma gaveta pequena para guardar o dinheiro, o movimento maior era na chegada e na saída dos trens, eu era feliz atendendo a freguesia. Algumas vezes havia até dez fregueses tomando aveia, eu pegava o dinheiro, dava o troco e colocava o dinheiro na gaveta. Quando diminuía a venda, para chamar o freguês, eu gritava: – Aveia, aveia, aveia gelada... Se alguém passava perto, eu dizia: – Venha freguês, temos aveia geladinha. Às vezes, um dos colegas vinha me dar uma olhadinha e quando eu estava atendendo muita gente eles me ajudavam. Soube que minha tia é que tinha pedido a eles, por isso que tanto me cuidavam. Às dezessete horas o fornecedor de aveia vinha pegar o seu dinheiro, também o dos bolos, e eu pegava o restante e levava para minha tia, que me pagava cinco centavos. A tristeza pelo Antônio tinha desaparecido. Eu era o cara mais feliz da terra! Uma senhora chegava perto do meio dia com o almoço, levava enrolado em folhas de bananeira, era gostoso. Às vezes era peixe, camarões, carne de gado ou de porco, e outras vezes era lentilhas, feijão, ervilhas, grão de bico, bem preparados, com vários legumes picadinhos e até bacon, custava dois centavos, a gente pagava na hora. Tudo seguia como minha tia tinha orientado, mas a minha felicidade durou pouco. No segundo sábado, quando tinha começado a varrer o lugar que me correspondia, de repente ouvi um barulho de vidro quebrado e vi o carrinho virando, não virou dum todo, pois ficou escorado em uma grade localizada na lateral da estação. Todos os colegas correram a me socorrer. O causador de tudo era um moreno forte, completamente bêbado, que, tentando se manter em pé deu um soco nas vitrines dos copos e bolos e tudo voou longe. Ele estava com as mãos ensanguentadas. Tentei pegá-lo, mas era forte e pesado. Ao ouvir o barulho, dois policiais de plantão na estação correram para auxiliar. No mesmo momento apareceu um camburão com três policiais, deitaram o cara que bufava, algemaram-no e o colocaram no camburão. Um guarda pediu para alguém acompanhar e fazer a queixa. Otávio, um colega, se prontificou e me acompanhou até a delegacia. Lá, colocaram o bêbado num quarto com a porta gradeada de ferro e deitaram-no num colchão sujo. Os policiais deram parte da detenção ao delegado de plantão, que assinou uma carteirinha que eles apresentaram e eles foram embora. Otávio explicou ao delegado o estrago que o homem havia feito e o delegado disse: – Esse cara é o Boxeador, o tal de Kid, vamos esperar que fique bom, o melhor seria que viesse o proprietário do carrinho. Otávio me acompanhou até a casa de minha tia para lhe explicar o acontecido. Minha tia não estava, tinha sido levada para o hospital, pois tinha sentido as dores do parto. Naquele mesmo momento chegou meu tio e Otávio lhe explicou o ocorrido, em seguida saímos os três, primeiro fomos ver o ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 66 carrinho. Os colegas já o tinham guardado, varrido e amontoado os vidros. Um deles me entregou o dinheiro que estava na gaveta e eu entreguei para meu tio, só que ele não me deu meus cinco centavos. Em seguida partimos para a delegacia. Otávio ficou. Quando chegamos na delegacia, o bêbado não estava mais e o delegado não tinha feito nenhum tipo de ocorrência. Meu tio reclamou ao delegado: quem iria então pagar o estrago e começou uma certa discussão entre eles. Por fim o delegado ameaçou meu tio de desacato à autoridade e nos disse que o Boxeador tinha sido levado para o hospital a fim de ser curado. Partimos para o hospital, lá ele não tinha sido levado. Voltamos à delegacia e para nossa surpresa, o delegado não estava mais, era outro, que nos disse não ter nada registrado e que por isso não poderia fazer nada por nós, esse delegado nos dava pouca atenção, dando a impressão que não queria falar conosco. Voltamos para casa, meu tio não falava nada, parecia bravo, eu estava apavorado e triste e ao invés de ir para casa fui para o Gratiniano e lhe contei tudo. Mais tarde ele me levou para casa, minha mãe não estava, tinha ido com meu irmão mais velho à maternidade ver minha tia que estava para ganhar neném. Hoje fico pensando e lembrando a desonestidade desses autoridades. É claro, o mais certo é que pediram algum dinheiro ao tal Boxeador para deixar por isso mesmo, penso na tristeza dos meus tios, quem sabe que sacrifício não fizeram para comprar aquele carrinho, e me pergunto: – Será que aqueles delegados não viram que eu era apenas uma criança e que éramos gente pobre? Será que o dinheiro que pegaram do Boxeador lhes serviu para não morrerem nunca? Lembro-me que fiquei muito triste e andava apavorado. Nunca mais quis ver meus tios. O primo que nasceu naqueles dias fui conhecê-lo depois de quatorze anos. Sempre que algum percalço se me atravessava, lembrava-me do Antônio e pensava: – Se ele estivesse aqui, nada disso teria me acontecido. Até hoje não sei por que fiquei com tanto medo dos meus tios, eu fugia deles. Reconheço que eles foram muito bons para nós quando éramos crianças. Reinício das aulas Sem nada para fazer, de vez em quando saía à cata de cobras, que não encontrava, não deixava de visitar o Dr. Corrêa, Elida. Via o Gratiniano quando ia comprar carne para alguma vizinha. Estava sempre praticando o que sabia fazer, agora estava tentando me equilibrar no rolo, assim passava os dias, fuçando aqui, fuçando ali. Às vezes me lembrava daquele maldito Boxeador, que por culpa dele tinha perdido de ganhar ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 67 meus cinco centavos todos os dias, algumas vezes ia ver o Mudinho, outras o Oscar. À noite nos reuníamos, Romélia, meus irmãos e outros meninos e meninas para brincar. Uma quinta-feira minha mãe me disse: – Meu filho, na segunda-feira tens que ir ao oftalmologista. Já está na hora. Na segunda-feira madruguei, atendi minhas vizinhas, voltei para casa, minha mãe me arrumou e fomos. O oftalmologista me fez vários exames, disse para minha mãe que não podia parar com o tratamento da água nos olhos e disse que tentasse voltar para a escola. Antes de irmos para casa, passamos na escola para informar à diretora, só que ela nos advertiu que dificilmente eu passaria de ano, primeiro pela quantidade de faltas, depois pelo atraso que estava em acompanhar as aulas. Por causa de uma pomada que o Dr. Corrêa me colocava nos olhos e que deixava a visão um pouco turva, e por ter um feriado no meio da semana, ficou combinado que eu recomeçaria as aulas na segundafeira. Vagamente lembro que só o irmão mais velho ia à escola com sapatos os outros de pés no chão. Algo pairava no ar na comunidade e eu sentia medo, talvez os meus irmãos também. Tinha a impressão de que as pessoas corriam tentando se esconder. Ao chegarmos na escola, estavam todos no maior alvoroço, adolescentes, professores... Os mais esclarecidos falavam na guerra que provavelmente chegaria ao nosso país, que iria destruir a nossa cidade. Alguns alunos, talvez os mais cheios de fantasia, diziam que haviam lido nos jornais que os alemães estavam pegando todas as crianças, que as tiravam dos pais e as colocavam em um caldeirão de água fervente e aos adultos queimavam em grandes fogueiras ou os amarravam uns aos outros e fuzilavam. Inconscientemente este era o meu medo. Mas havia alunos que não se importavam com nada, uns corriam, outros pulavam, havia também aqueles que só se importavam em comer, beber refrigerante, comiam doces, bolo, tortas, pastéis, empadas... Estes eram os mais favorecidos, e não se importavam de ver aqueles que não tinham o que comer. Eu e meus outros dois irmãos ficávamos sentados num canto, semi-escondidos, degustando um pedaço de rapadura que nossa mãe nos dava para a merenda. Mesmo assim eu era feliz porque estava conseguindo estudar. A Romélia e meu irmão mais velho tratavam de me ensinar, mais pelas aulas que eu havia perdido, para ver se eu conseguiria fazer o exame no final do ano. Muitas vezes não íamos brincar, eles preferiam ficar me ensinando, é claro que eu também me preocupava em aprender, lia muito sobre tudo, um livro que até hoje guardo na memória: “Alegria de ler”, da 2ª série. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 68 O barulho da tal guerra continuava e nas casas onde tinha rádio, sempre estavam ligados a todo volume, dando notícias da guerra. Os vendedores de jornais passavam pelas ruas gritando: – El Tiempo, El Tiempo, El relator con las ultimas notícias de la guerra! Se a minha memória não falha lembro-me que havia um jornal chamado “El Clarin”, e outro “El Gato”. Um era dedicado mais que todos às charges, de preferência políticas e de gente da sociedade; o outro, a crimes passionais, só que agora, os dois dedicavam suas edições à guerra. A tal da guerra às vezes me assustava sem saber o porquê. Mesmo assim, o que eu tratava era de aprender. O tempo passava e eu continuava feliz, indo à escola, meus irmãos me cuidavam muito, no início da aula não iam embora até eu entrar no salão, na hora da merenda, estavam sempre comigo, e na hora da saída íamos juntos para casa. Calculo que já tinha se passado quase dois meses de minha volta para a escola quando, de repente, senti uma forte ferroada. Imagino que deve ter sido muito forte, pois caí desmaiado e quando acordei estava no posto de saúde; me deu a impressão que o médico estava xingando minha mãe, porque o ouvi dizer a ela: – A senhora insiste em mandá-lo à escola. Ao que minha mãe respondeu: – Foi o oftalmologista que autorizou. No carro do posto de saúde, o médico nos levou para o oftalmologista, que ao me ver e examinar, só dizia: – Pô, ele estava tão bem! Colocou-me pomada nos olhos e disse para minha mãe continuar o tratamento com a tal água no cálice e que tinha que ficar com os olhos abertos. Era colocada a noite, não sei que tipo de água era essa, alguma vez parece que ouvi dizer que era água boricada. A receita que o oftalmologista deu era ficar uma semana de repouso. O médico nos deixou em casa e minha mãe me levou diretamente para cama, meus irmãozinhos pequenos vieram se deitar junto comigo, porém como me viram com os olhos fechados pensaram que eu dormia e foram embora. Só que eu não dormia, estava de olhos fechados, triste e com uma espécie de raiva, por momentos pensava na guerra e sentia medo. Poucos meses tinha ficado na escola e nunca imaginei que em tão curto período tinha feito tantos amiguinhos. É claro que a razão era só uma, que nas horas de descanso eu lhes fazia as minhas acrobacias e eles adoravam. Em casa, contavam para os pais, e quando se deram conta do meu repouso e que não voltaria à escola, incomodavam os pais para irem me ver. Eram meninos de um bairro vizinho e de famílias de um nível econômico um pouco mais alto, todos os meninos eram novos na escola. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 69 Os colegas da minha vila todos me conheciam, por isso não era difícil me encontrar. Uma vez dentro da vila era só perguntar onde morava o Negro ou o Negrinho, que qualquer um dizia, ou era capaz até de levar na minha casa. (Que casa nada, era uma maloquinha de papelão, feita pela minha mãe). Lembro-me que quando chovia, minha mãe nos colocava todos na cama e nos tapava com papelão e panos velhos para não nos molharmos, porque caíam muitas goteiras. Em todo caso, eu ficava muito feliz quando me visitavam, os meninos ao se despedirem diziam: – Negrinho, volta ligeiro para a escola! Os pais dos coleguinhas, quando me visitavam pela segunda vez, levavam aipim, batatas, arroz, etc. Algumas mães já familiarizadas, diziam para minha mãe: – Dona Isabel não pára nunca, está sempre funcionando, de dia lavando, à noite passando e para descansar, entregando. No sábado à tarde foi me visitar um coleguinha de nome André, deveria ter sete ou oito anos. Ele já tinha me visitado com a mãe, só que desta vez apareceu sozinho, nos disse que como não tinha perigo de carros, a mãe o tinha deixado vir, tinha pinta de sapeca, era bem branco, entre o nariz e as bochechas se manifestavam umas poucas sardas e com o queixo rasputiniano lhe dava aquele ar de arteiro. Com um sorriso à Mona Lisa, me disse que já conseguia se equilibrar nas mãos, e realmente se equilibrou, me disse que o que não conseguia era caminhar. Levanteime, lhe segurei os dois pés, de forma a aliviar o peso dele mesmo e assim começou a dar os primeiros passos, expliquei que praticando todos os dias caminharia com facilidade. Aquela tarde ele conseguiu dar vários passos e várias vezes. Já bem tarde, e muito feliz, se despediu, minha mãe o acompanhou até perto de sua casa. Dias depois fiquei sabendo que alguns guris daquele bairro onde morava o André estavam praticando caminhar com as mãos e que até o padre Romero, que era bem jovem, também praticava, e estavam organizando uma festa onde haveria vários concursos, inclusive uma corrida com as mãos. Soube também que até algumas meninas colocavam as calças ou pijamas dos pais ou dos irmãos, para praticar o número. Soube que praticavam nas calçadas, nas ruas, e que com a participação do padre, agora estavam praticando no salão paroquial. Entre as mulheres havia uma gordinha de nome Lucia, era cômica caminhando com as mãos. A Luisa era uma pretinha muito bonitinha, ágil, caminhava bastante, mas era pavio curto, não levava desaforo para casa, enfrentava até rapazes mais velhos do que ela. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 70 A apresentação circense na festa da Igreja Num domingo à tarde apareceram na minha casa o padre Romero, André, Luisa, Lucia e outros meninos e meninas. O motivo da visita era me convidar para participar, como espectador, da festinha da igreja. O padre me disse que eu poderia convidar a garotada e os adultos da vila, e eu convidei todos. No dia da festa houve corrida de saco, galinha cega, jogo da argola, jogo de vôlei com bexiguinhas cheias d’água, grupo de meninas e meninos cantando e dançando música do folclore nacional. Apareceu Pedro Malas Artes com uma menina de nome Susana e apresentaram um diálogo: O Diabo e o Anjo. Foi muito cômico, todos gostaram e riram muito. Um rapaz da quarta série da minha escola recitou uma poesia, que apesar de ser muito longa, não errou em nenhum momento, a poesia era Bálbula. Um trio de meninas, de talvez dez a doze anos, tocaram violão e cantaram muito bonito. A maior expectativa estava na corrida com as mãos. O padre participaria e também André, Lúcia, Luisa e vários outros rapazes. Deu-se a partida, o padre toda hora caía, o André pegou a dianteira e com segurança e sem cair nenhuma vez chegou em primeiro lugar, os pais dele nem sabiam das habilidades do filho e felizes lhe perguntaram: – Meu filho, quem te ensinou? Ele respondeu: – Eu aprendi a me equilibrar e o Negrinho me ensinou a caminhar. Quando foi a vez das mulheres, a Luisa foi a ganhadora. Também foi surpresa para os pais, e quando lhe perguntaram: – Foi o Negrinho que te ensinou?, ela respondeu: – Não, foi o André. O padre Romero que já sabia das minhas habilidades pediu-me para fazer uma demonstração. Não me fiz de rogado, eu estava doidinho para demonstrar, comecei caminhando com as mãos, fiz o percurso da corrida, e o que eles fizeram caminhando, eu fiz correndo, depois fiquei numa mão só, fui muito aplaudido, coloquei os pés na nuca e o público delirava, dei a volta cambota no ar e por último fiz mágicas. O André era um profundo fã, sempre estava perto de mim, nos bancos de trás estava minha mãe com meus irmãos e os amigos deles, num canto vi o mudinho, também Oscar, que não parava quieto, os pais tinham que o estar sentando a todo o momento, bem na frente estava Romélia e a mãe, vários vizinhos eu via por todo canto. Quaisquer demonstrações que eu faizesse, todos aplaudiam. Quando terminei os padres vieram me abraçar, a Romélia, que estava sentada nos bancos da frente, me fez sinal para ir sentar junto dela, e eu fui. A Luisa, que coincidentemente estava sentada junto de Romélia, e as demais pessoas, trataram de se apertar um pouco para eu sentar, só que quando eu tentei me sentar junto de Romélia, a moça que estava do outro lado fez um movimento brusco e quase me derrubou. Como eu iria ficar sentado ao lado dela, ela se levantou e disse: ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 71 – Eu tenho nojo de negro. A Romélia esperou que ela terminasse a palavra “negro” e lhe deu uma tremenda bofetada. A Luisa, que tinha escutado, já foi se levantando, e a primeira coisa que fez foi pegar a moça pelo colarinho dizendo-lhe: – De hoje em diante tu vais aprender a gostar de negro, pedaço de palha. Os pais da Luisa, que já sabiam quem era a filha, vieram rápido.O pai dela, era um crioulo bem alto e forte e a Luisa era um pitoquinho de gente, facilmente a desgrudou do colarinho da moça, justo no momento que o pai dela também chegava. Nesse momento, o pai da moça, vendo a confusão, perguntou: – Que foi minha filha? Romélia, que tinha me abraçado pelo ombro, respondeu: – Ela apanhou porque quase derrubou meu negrinho, dizendo que tem nojo de negro. O pai lhe disse: – É verdade minha filha? E ela confirmou. Os padres vieram correndo, uns foram acompanhar a moça e o pai, e outros ficaram conosco. De repente, vi uma pedra voar e bater no bumbum da moça. Era o André que estava armado com pedras para me defender. Salvo este pequeno incidente, a festa esteve muito bonita, todos nos despedimos dos padres e eles agradeceram a presença. Quando chegou a nossa vez de nos despedirmos, o padre mexeu com a Romélia a respeito da bofetada e a Romélia disse: – Padre, aquela garota faz o secundário junto comigo, ela é muito orgulhosa, metida, deprecia as colegas, ela agiu muito mal. A maior parte dos alunos não gosta dela, só uma meia dúzia de panegiristas. Ela vive dizendo: – Meu pai é coronel! André, Luisa, Romélia e eu, após nos despedirmos dos padres, saímos abraçados, cantando a canção que o trio de meninos tinha cantado, que era quando as aves deixam seus ninhos e voam para outras terras. Esta era a canção que minha mãe gostava. Primeiro deixamos a Luisa em casa, depois o André, que tinha se tornado meu grande amigo, depois, Romélia e eu, continuamos e nos dirigimos para nossa vila. Adiante, encontramos minha mãe e meus irmãos que estavam nos esperando. Junto estavam Oscar e a mãe, o Mudinho e outros meninos, amiguinhos da nossa vila. Na quinta-feira o padre Romero foi me visitar. Tinham contado para ele que éramos muito pobres, que meu pai tinha falecido e deixado sete filhos sem nenhum auxílio, e nos trouxe arroz, feijão, massas, açúcar, e muitas outras coisas. Até hoje não consigo esquecer a alegria que senti quando o padre, entre outras coisas, nos entregou uma lata de leite Nestlé, peguei-a em minhas mãos e comecei a acariciá-la. Esta imagem evidentemente continua na minha memória. Depois de muita conversa, entre risadas, veio a lembrança da festa e dos meus defensores Romélia, Luisa e André. Por último, o padre me pediu para ir à paróquia lhe ensinar alguns truques. É claro que concordei e na saída combinamos que no dia seguinte estaria às quinze horas na paróquia. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 72 No dia seguinte, no horário combinado, estava na paróquia. Os padres, muito sorridentes, me cumprimentaram. Fui convidado a tomar café e depois começamos as nossas aulas. Eu fazia as provas, algumas ele pegava fácil, outras não conseguia. Insistente tentava todas e não aprendia nenhuma. Então combinei que praticaria uma até aprender, e depois outra, e assim por diante, e foi desta forma que ele se tornou um craque. Alguns padres tentaram, mas não conseguiram, não tinham o cacife do padre Romero. Primeiro lhe ensinei os truques, que aprendia com facilidade, depois os de destreza, e por último, nós mesmos fabricávamos os truques. O padre era bastante habilidoso e caprichoso, sempre fabricávamos duas provas, uma para ele e outra para mim. Os moldes eram feitos de papelão e depois mandávamos fazer no funileiro. Todos os dias, antes das quinze horas, eu chegava na paróquia. Os padres me esperavam e às dezesseis horas tomávamos café, às dezoito horas era a missa da tarde, rezada pelo padre Guilherme, que era de Sonson Antioquia. Eu me sentava junto com os fiéis e participava da missa, depois o padre Romero me acompanhava até minha casa. Uma tarde, quando cheguei na paróquia, e após o café, o padre Romero fez uma prova que me deixou de boca aberta. É claro que depois ele me ensinou. Quando lhe perguntei quem tinha lhe ensinado, ele me mostrou dois livros, um em inglês e outro em espanhol, que eram só de truques de mágica. O padre Romero conseguia interpretar rápido os truques e muitas vezes, quando eu chegava, ele já tinha garantido um truque para ele e outro para mim. Na vila e no bairro éramos famosos. Aos domingos, após a missa, a gurizada e mesmo os adultos, homens e mulheres, nos pediam para fazermos algumas provas, e nós sempre os agradávamos. Num dos livros tinha obrinhas de teatro com puras mágicas e já tínhamos combinado com os padres para começarmos a ensaiar para apresentarmos na próxima festa. Mas tudo foi por águas abaixo. Uma tarde, quando tomávamos café, o padre Romero me disse: – Negrinho, vou ter que me afastar por alguns dias para substituir um padre, da mesma congregação, que está doente e será submetido a uma intervenção cirúrgica. Naquela tarde não praticamos nada, a maior parte do tempo passamos rindo e lembrando coisas passadas. Em determinado momento, o padre me disse que os livros de mágica ficariam, e no caso de eu os precisar, poderia pegar, e se precisasse algum dinheiro para fazer algum truque era só pedir para o padre Enrique que ele me daria. Na tarde do dia seguinte fui até a paróquia. O padre Romero já tinha ido embora, tinham vindo buscá-lo muito cedo e ele só conseguiu me deixar saudações. Participei da missa e depois fui embora para minha casa e daí por diante não achei mais interesse em voltar à paróquia. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 73 Como sempre, não esquecia meus amigos, como Elida. Quando a visitava, não faltava motivo para lembrar Antônio. Agora a foto dele estava bem grande, num quadro oval, enquanto que a do falecido era pequena e estava colocada no mesmo quadro, aos pés do Antônio. Quando chegava no Dr. Corrêa, a primeira coisa que fazia, após os cumprimentos, era mexer com as cobras, que até já me conheciam, porque quando abria a portinha da gaiola de uma delas, ela já ia saindo e subindo pelo meu braço até o ombro. Eu brincava com ela, lhe fazia cafuné e ela fechava o olhinho. O nome de uma era Esmeralda, outra Safira e a outra Pérola. Depois de brincar com Esmeralda, a colocava na gaiola e pegava Safira e por último Pérola. Tinha também algumas pequenas que eram bravas, quando chegava perto da gaiola elas ficavam em posição de dar o bote. O Dr. Corrêa me alertava que eram perigosas, algumas delas eu mesmo tinha pego. Também visitava Gratiniano às vezes. Quando não tinha nada a fazer, ficava em casa praticando de tudo um pouco. Isto que a seguir escrevo é algo que não devo ocultar. Quando me lembro desses momentos, chego até a me arrepiar e fico pensando: Como Deus foi e continua sendo bom comigo! A colheita da punsiga Uma tarde, enquanto meus irmãos mais velhos estavam na escola, minha mãe me chamou e disse: – Meu filho, não temos um centavo sequer para o leite e o pão para o café de seus irmãos amanhã. Com você nem me preocupo, sei que em último caso você vai na Elida, no Dr. Corrêa, no Gratiniano e até na casa da Romélia e ganha café, mas seus irmãos não, e isso me preocupa. Meu filho, vamos lá do outro lado do rio que tem bastante punsiga. (folha de planta usada na fervura da água e produzia uma água como anil. Submergiam-se as roupas brancas nesta água e elas ficavam de um branco brilhante). Muita gente conhecia esta planta, só que para colhê-la era perigoso, porque nos lugares onde ela se encontrava, sempre havia cobras. Eu, ao contrário, sentia a presença delas. A minha mãe trouxe um molho da planta e eu trouxe outro. Destes, fizemos vinte pequenos molhos, que no mercado seriam vendidos a dois centavos cada, e no total seriam quarenta centavos. Vendendo todos, teríamos um bom dinheiro, que nos ajudaria até a mãe entregar as roupas às freguesas. Cheios de fé e com muita esperança, às cinco horas e trinta minutos da manhã seguinte, saímos de casa. No meio do caminho minha mãe disse: – Meu filho, ao chegarmos no mercado vou pedir dez centavos emprestado à dona Mariaengracia e volto para casa. Dou café para teus irmãos e você fica vendendo. Quando vender os cinco primeiros molhos, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 74 paga a dona Mariaengracia. Ao meio-dia eu venho trazer o almoço. Caminhávamos a passos acelerados para aproveitar o frescor da manhã, conversávamos, a rua era sem asfalto, úmida pelo orvalho, de longe se ouvia o cantar dos galos e o latido dos cachorros, nenhum carro atrapalhava nossos passos e nem viva alma encontrávamos no caminho. O dia já estava bem claro e o sol começava a se manifestar no horizonte, quando, de repente, a uns 3 metros à frente, enxergo algo conhecido, mas não muito familiar, corro, me agacho, pego e grito: – Mãe, um peso! Estava dobrado e umedecido pelo orvalho, desdobro e digo: – Mãe, são dois pesos! Entrego para ela, que coloca as mãos em posição de oração, olha para cima e diz: – Obrigada Senhor, obrigada! Faz o sinal da cruz e pede para eu também fazer. Chegamos ao mercado e fomos direto onde a senhora Mariaengracia estava. A mãe lhe oferece a princípio três molhos por dois centavos. Lembro-me que ela disse: – Que é isso Chava, é muito barato! Vou te pagar um centavo cada molho, isso é muito procurado e eu vou vender dois por cinco centavos, ou um por três centavos. Deu os vinte centavos para a mãe e também aipim, batata, tomate e algumas frutas. A mãe me deu dez centavos e disse: – Filho, vai em casa, compra leite e pão para teus irmãos tomarem café e eu fico fazendo umas compras e vou em seguida. Eu era o cara mais alegre deste mundo. Saí correndo, e quando cheguei em casa, meus irmãos ainda dormiam. Acordei-os, é claro que mais com o interesse de contar a novidade. Após tomar café, fui correndo contar a Romélia, depois voltei para casa para cuidar de meus irmãos pequenos. Minha mãe não tardou em chegar carregada de compras. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 75 ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 76 3 NO MUNDO DOS NEGÓCIOS U ma tarde, após visitar Elida, vinha voltando para casa e ao passar em frente a um bar, alguém chamou: – Negrinho! Olhei para dentro do bar, era Gratiniano que estava tomando uma cerveja com alguns amigos. Chamou-me novamente e eu entrei. Ele me apresentou aos donos do bar e a alguns amigos dizendo: – O negrinho é um verdadeiro artista. Em seguida me disse: – Vamos negrinho, faz uma demonstração. Comecei a caminhar com as mãos, a seguir com os pés na nuca e assim por diante. Eles riam e aplaudiam, colocados em círculos, daí comecei a fazer mágica. O bar estava cheio, o garçom corria servindo, uns pediam cerveja, outros aguardente, whisky, rum, etc. A última mágica que fiz foi uma que tinha praticado bastante com o padre e que tratava de fazer de conta que engolia uma moeda e tirava pelo popô. Após o término da prova o efeito produziu risadas, gritos, palmas, o barulho era ensurdecedor. Gratiniano me abraçou e disse: – Descansa negrinho. Alguém me pagou um copo de suco com bolachas. No meio da bagunça ouvi uma voz que dizia: – Foi ele que livrou o Mudinho da vila de se afogar, e surgiram vários comentários, outro disse: – Não é ele que pega as cobras? Uma voz questionou se eu não era o que chamavam de filho do espanhol? Talvez questionado, ouvi Gratiniano dizer: – Mora na vila, é filho de uma viúva, o marido morreu e deixou sete filhos, são muito pobres, ela lava roupas para poder sustentar toda filharada, os comentários se sucediam. Um dos donos do bar me deu cinquenta centavos, Gratiniano dez centavos, outros deram vinte, e assim por diante. Como começava a escurecer, eu disse a Gratiniano que ia embora e todos concordaram. Ao sair, só se ouvia: – Tchau Negrinho, várias vozes, tchau Negrinho. O homem misterioso e o convite Quando saí do bar em direção à minha casa, ouvi a voz de Gratiniano me chamando, olhei e ele fez sinal para esperar. Um senhor vinha correndo na minha direção, quando chegou perto de mim disse: – Negrinho, vamos que te acompanho, eu moro perto da vila, vou entregar este pacote à minha mulher e depois te acompanho até tua casa. Ao ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 77 chegar na moradia dele, chamou: – Amor, pega o pacote. Uma jovem senhora saiu, pegou o pacote e ele disse: – Volto já amor, vou acompanhar o Negrinho à casa dele, e continuamos. No caminho, me fez várias perguntas, inclusive se eu estudava. Contei-lhe todo meu problema e ao chegar em casa cumprimentou minha mãe de forma carinhosa e lhe disse: – Aqui lhe trago o Negrinho que nos brindou com um espetáculo lá no bar. Conversou mais um pouco com minha mãe e ao se despedir lhe disse: – Na primeira oportunidade vou lhe apresentar minha mulher e minha filhinha e se despediu. Quando ele foi embora, peguei todas aquelas moedas e coloquei em cima da cama. Quando minha mãe viu, me interrogou da procedência. Claro que lhe contei o show no bar e como tinha moedas de um, dois, cinco, dez e de vinte centavos, Romélia e meus irmãos ajudaram a contar, no total havia dois pesos e cinquenta e cinco centavos, boa grana. No dia seguinte, à tardinha, apareceu o amigo do dia anterior. Seu nome era Manolo, com a esposa e a filhinha de aproximadamente dois anos. Eu estava guardando as minhas mágicas na caixa de papelão e depois colocava embaixo da cama, foi neste momento que ouvi a voz dele. Minha mãe os recebeu, se apresentaram, conversaram e depois tomaram um cafezinho. Em um determinado momento Manolo disse para minha mãe que trabalhava nas ruas vendendo alguns produtos que comprava nas fábricas, inclusive uma pomada cicatrizante e sabonetes tira-manchas. A forma de venda era reunindo o público nas praças ou perto dos mercados, e o mais difícil era reunir o público. Disse também que tinha uma cobra e que para chamar a atenção começava a brincar com ela, mas assim mesmo era difícil conseguir reunir muita gente. Ele disse que, conversando com Gratiniano, ele tinha lhe sugerido me convidar para fazer minhas demonstrações, que o público gostaria, assim teria bastante gente reunida. Ele não tinha feito caso a Gratiniano, porém quando me viu fazer tudo aquilo ficou encantado e falou com sua mulher. Ela aprovou a idéia e agora estavam ali para saber se minha mãe me deixava trabalhar com ele, que me pagaria dez centavos por dia, livres de comida, passagens, hotéis, enfim, qualquer gasto extra, eu receberia meus dez centavos livres. – A senhora não se preocupe, porque quando estou fora de Cali, sempre estou em contato com minha mulher através do telégrafo dos Correios. Minha mãe me olhou e disse: – Meu filho, é você que sabe. Eu estava muito feliz e respondi para minha mãe: – A senhora sabe, não estou fazendo nada, então gostaria de ir. A mulher de Manolo, que estava com a criança no colo, disse para minha mãe: – Dona Isabel, meu marido é boa gente e estou segura, ele cuidará bem do seu filho. A conversa continuou, às vezes em torno de mim, e outras vezes em torno dos familiares deles, que eram de um município de outro estado vizinho, a quatro horas de viagem. Antes da despedida, ficou combinado que na segunda-feira ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 78 começaríamos. Eu iria a casa dele pelas nove horas. Respondi afirmativamente, cheio de felicidade. Naquela noite quase não consegui dormir de contente, pensava: fazendo as compras das minhas vizinhas não consigo ganhar dez centavos por semana, e agora menos, porque abriram vários pequenos armazéns na vila e elas mesmas compravam o que precisavam. As farmácias, ferragens e lojas se encontravam a cinco quadras da vila e para fazer alguma compra lá, me davam dois ou três centavos, e isso esporadicamente, agora, começar a ganhar dez centavos por dia e viajar e conhecer outros lugares, era uma maravilha! Conselhos da mãe No domingo minha mãe me cortou o cabelo, as unhas dos pés e das mãos. A noite foi longa, não amanhecia, a toda hora eu acordava, olhava o relógio, uma, duas, três, quatro, cinco, seis horas, me levantei. A mãe me ouviu e também se levantou, ela mesma me deu banho, examinou ouvidos, unhas, pescoço, colocou limão nas axilas e nos pés e colocou água de colônia atrás das orelhas. Lembro-me como se fosse hoje, ela me vestiu um shortezinho cor pêssego, idem a camisa, as sandálias eram as que Antônio e Elida tinham me dado, me colocou glostora nos cabelos e me penteou. Tomamos café todos juntos, com meus irmãos mais velhos, meus irmãos pequenos ainda dormiam. Após o café minha mãe me chamou e disse, mostrando uma sacola de couro: – Estou te colocando aqui seis shortezinhos, é bom que te mudes a cada dois dias; oito cuecas e oito camisas, as cuecas e as camisas têm que ser trocadas todos os dias. Coloquei sabonete, escova de dentes, creme e um pente, além de vários pedaços de papel para quando for ao banheiro se limpar e depois me mostrou vários pedaços de pano também recortados, e lembro que me disse: – Meu filho, sempre que fizer cocô e após se limpar, molhe bem um pano e passa no popô e joga fora, em seguida pega outro e se seca e joga fora, procura tomar banho todos os dias, de preferência ao deitar, não se esqueça de lavar bem o pescoço, atrás dos ouvidos e eles com muito cuidado; não se esqueça de colocar o remédio nos olhos e a pomada antes de se deitar. Um dos alertas que a mãe me fez eu não queria colocar aqui, porque me parece um tanto nojento, mas na última hora decidi, eu prestava bastante atenção quando ela começou a explicação desta forma: – Meu filho, quando fizer xixi, leve um dos paninhos molhados e quando terminar, puxe o prepúcio para trás e limpe, esse tipo de higiene é muito bom até para a saúde. Também me disse: – Você já está ficando um adolescente e começam a aparecer odores no seu corpo, nas axilas, nos pés, lhe coloquei um limão na bolsa, vai durar só dois dias, depois você vai comprando sempre que precisar, ele é para evitar o fedor de sovaco e de ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 79 chulé, use poucas gotas e para cortes e feridas também é um bom cicatrizante, coloque poucas gotas, arde um pouco, mas cicatriza rápido. O meu irmão mais velho gozava com os conselhos que a mãe me dava e dizia: – Mano, uma vez eu ia ficar dois dias numa casa de uma amiga dela e também me deu um papel cheio de recomendações de como eu devia me comportar, comer, dormir, fazer cocô, etc., e ria. Meu irmão, o segundo, era um pouco calado, poucas vezes se integrava a nós, e na escola, tinha dificuldade de aprender. Às oito horas meus irmãos estavam indo embora e Romélia apareceu para se despedir de mim, em seguida foram para a escola. Um pouco antes de sair de casa a mãe me entregou um bilhete onde estava tudo anotado, o que deveria fazer, quando, como e de que forma. As oito e meia saímos de casa, ela mesma foi me levar, o meu irmão Hugo, que era o quarto irmão, ficou cuidando dos irmãos pequenos, ele recém tinha começado a estudar, mas era só à tarde. Enquanto caminhava ao lado da mãe, pela primeira vez prestei atenção à pobreza de nossa vila, casinhas feitas de papelão, iguais à nossa, outras eram híbridas, partes forradas com papelão, outras partes de tijolos e pedaços de zinco. As ruas de chão barrento, poças d’água, mato, ouviam-se berros de crianças, talvez famintas, latidos de cachorros, gritos de homem xingando sua mulher e ela, por sua vez, lhe respondendo. Com nossos passos, os pássaros voavam de uma árvore à outra e com seus lindos cantos alegravam um pouco nossa vila. O sol deixava sentir seus raios quentes e à sua vez, iluminava nossa vila. Foi nessa manhã que vi a diferença que havia entre nossa vila e os bairros vizinhos. Na nossa vila as casas eram tristes, pareciam moribundas, sem pintura, mais pareciam taperas com escoras para evitar a sua queda. Alguns vizinhos nas portas das suas casinhas nos cumprimentavam, eram seres taciturnos, sem esperança de dias melhores. Ao entrar no bairro onde morava Manolo sentia-se aquele choque da mudança, ruas perfeitamente calçadas, as casas todas de material, a maior parte dos telhados era de cor vermelha, alguns eram verdes e haviam também com telhas vitrificadas cor marrom, todas tinham jardins na frente, alguns bem cuidados com belas folhagens e lindas flores, outros em decadência, entendia-se que um dia foram bonitos e bem cuidados. Todas tinham grades baixinhas, algumas artísticas e outras simples. A praça era bem arborizada, com folhagens e brinquedos para as crianças. Num lado, em frente da praça, estava a igreja Balvanera. Embora estivéssemos passando há uma quadra da igreja, olhá-la de longe trouxe saudades, lembrei do padre Romero, aquela era a igreja das nossas ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 80 mágicas. Ainda faltavam dez minutos para as nove horas quando chegamos na casa de Manolo. Minha mãe bateu, foi a esposa de Manolo quem nos atendeu, estava com a criança no colo e convidou a mãe para entrar, mas ela lhe explicou que meus irmãos pequenos estavam sós em casa. Ao se despedir de mim, minha mãe disse: – Meu filho, não se esqueça de sempre ler o bilhete com as anotações, leia sempre para não esquecer. Quando a mãe foi embora a senhora me fez entrar numa sala decorada de forma humilde, quadros sem arte alguma, não eram pinturas, eram lâminas emolduradas. Naquela época eu não entendia nada de decoração, porém até hoje aquela sala permanece na minha memória. Manolo estava tomando banho, eu fiquei sentado num sofá com minha bolsa ao lado e comecei a ler aquele papel que a mãe tinha me dado. Eu ria sozinho ao me lembrar que quando o Antônio me fazia ler “Dom Quixote”, tinha uma parte que Dom Quixote dava conselhos a Sancho Pança dizendo: – Não se arrota na mesa, e Sancho: – Senhor, não é erutar? Não, Sancho, em castelhano é regoldar. Não sei por que naquele momento, enquanto lia o papel dos conselhos da minha mãe, vinha à minha memória o Antônio, quando ao lermos o livro de Cervantes ele dizia: – O Sancho é um sábio ingênuo e Dom Quixote é um louco sábio, os conselhos que ele dá para Sancho, mais tarde tu saberás o alto valor que eles conservam intelectualmente. Eu estava lendo aquela parte onde a mãe me dizia: – Meu filho, não esqueça que a gula é pecado. Então me lembrei quando Dom Quixote disse alguma coisa parecida a Sancho e ele respondeu: – Prefiro minha barriga cheia, embora seja de cenouras, porém nunca vazia. Eu ria sozinho, quando Manolo entrou onde eu estava. Ele entrou sorridente, estava barbeado, com roupa limpa e perfumado. Cumprimentou-me e convidou a tomar café. Como o meu café eu tinha tomado muito cedo, e já era quase dez horas, aceitei, porque meu estômago já começava a sentir falta de alimento. Durante o café, me disse: – Esta semana vamos nos dedicar a aprontar o material e aproveitar para fazer um treino aqui em casa. Terminando o café, Manolo quis me apresentar Carolina, uma cobra que era a sua ajudante. Ela estava numa gaiola, sob uma mesa, colocada no canto no fundo da cozinha. Ela dormia e estava toda enrolada. Manolo tocou na gaiola e ela nem se mexeu, então ele pediu para a filhinha chamar a Carolina, e a menina gritou perto da gaiola: – Taioinaaa! A cobra começou a se mexer lentamente. Quando Manolo a chamou, rápido ela levantou a cabeça e começou a se desenrolar. Ele a tirou da gaiola e começou a lhe fazer cafuné. A menina também queria a Carolina, o pai deu para ela, mas é claro que não a soltou, porque era muito pesada. Em seguida, ele pediu para eu pegá-la, e ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 81 a primeira coisa que fiz foi pegá-la pelo pescoço, tal como estava acostumado. Manolo gritou: – Não tem perigo, ela não morde, inclusive não tem prezas, elas foram retiradas e ela é bem mansinha. Em seguida a peguei e coloquei no ombro, parte na mão e no braço esquerdo e com a mão direita comecei a lhe fazer cafuné. Desse momento em diante começamos uma grande amizade. Aventuras de um vendedor de pomada Contarei o que vi fazer naquele primeiro dia. Manolo pegou um tacho, colocou uma certa quantidade de gordura e pôs no fogo a derreter, enquanto sua mulher pegou algumas folhas de malva e passou no liquidificador. Depois, colocou o líquido da malva com a gordura que já estava no fogo, e também adicionou bismuto em pó e um pouco de solução mentolada e com uma pá de madeira remexia tudo. Quando começou a ferver, tirou do fogo e deixou esfriar até ficar como manteiga, com cheiro de mertiolato. Enquanto Manolo se dedicava a tal gordura, Tita, que era o nome da sua mulher, se dedicava a preparar o almoço. Eu colocava uns papeizinhos numas caixinhas redondas de metal – hoje calculo que estas caixinhas deveriam ter uns 3 centímetros de diâmetro por 1 centímetro de altura –, o papelzinho era pouca coisa menor, com letras em semicírculo, cor vermelha, onde se lia: pomada cutânea, responsável Wenester do Enqd. Quem é que se preocuparia com o que dizia na tal caixinha! Calculo que seria quatorze horas quando Tita nos chamou para o almoço. Antes de ir à mesa, como de costume, seguindo a orientação da mãe, peguei meu sabonete, toalha e pente e fiz uma pequena faxina no meu corpo, me penteei, coloquei uma gota de água de colônia, que apesar de ser barata, era bem cheirosa. O caso é que quando entrei na copa, mexeram comigo: – Negrinho cheiroso! Durante o almoço a conversa foi em torno de como iríamos nos apresentar perante o público da rua, principalmente a minha parte. Após o almoço, dormi os dez minutos como o Antônio me acostumou e acordei assustado, mas quando vi que Manolo dormia esticado e roncando a baixo volume, o susto passou. Tratando de não fazer ruído, me levantei e fui continuar a colocar os papéis nas caixas. Meia hora depois, Manolo se levantou e foi me ajudar. Era cedo quando terminamos e Manolo me disse: – Negrinho, podes ir, amanhã vamos encher as caixinhas. A mãe ficou surpresa quando me viu chegar e eu lhe expliquei a orientação de Manolo. No dia seguinte, após o café, começamos a encher as caixinhas com aquele preparado de gordura com uma espátula de madeira. Uma vez ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 82 terminada esta parte, colocamos cada caixinha dentro de um saquinho de papel celofane, juntando a bula, onde estava escrito para quê servia e o modo de usar. Uma das coisas que me lembro era que dizia: use como repelente contra mosquitos, é eficaz nas picadas de insetos, para pequenos cortes e feridas, no tratamento contra irritação da pele ocasionada pelo sol, contém proteínas. Em um item à parte, dizia: não é recomendada para senhoras após três meses de gravidez. É claro que hoje, pensando, digo: o que teria a ver esse sebo contra uma grávida, certamente para dar mais prestígio e credibilidade ao tal preparado, do qual eu nada entendia e nem me preocupava entender. Na quarta-feira, após o café, Manolo pegou duas bolsas, deu uma para mim e disse: – Negrinho, vamos procurar mais material. O primeiro lugar foi uma fábrica de pentes. Na entrada, no alto, tinha um néon onde se lia: Fábrica de Pentes Três Luas. No seu interior, Manolo conversou com dois senhores e depois de alguns momentos, apareceu um trabalhador com uma caixa cheia de pentes que não passaram no teste de qualidade por apresentar pequenos defeitos e custou a Manolo vinte e cinco centavos à unidade. Em seguida nos dirigimos a uma fábrica de lápis, o negócio foi similar ao dos pentes, salvo que ali ele pagou quarenta centavos por uma caixa cheia de lápis com defeitos. Como as compras começaram a pesar, pegamos um coche e nos dirigimos a uma fábrica de correntes, onde fabricavam correntes de várias bitolas, desde dois milímetros até quatro polegadas, galvanizadas, cromadas, zincadas. As fininhas, algumas com banho de ouro e outras com banho de prata, sendo que quando o banho de prata não pegava bem, este pedaço era recortado, descartado e jogado numa caixa para ser vendido como sucata. Era atrás desta sucata que Manolo ia. Pegamos tudo o que havia na caixa e colocamos na bolsa que restava vazia. Por todos aqueles pedaços, pagou sessenta centavos. Em seguida, passamos a outro setor, onde se estampavam medalhas. As que o banho não pegava, eram descartadas, e nos forneceram uma caixa de papelão de aproximadamente 30 por 30 e por 20 centímetros cheia daquelas medalhinhas e cobraram de Manolo apenas vinte centavos. Carregados, e já na rua, Manolo comprou sorvete, coisa que eu nunca tinha comido. Pegamos o primeiro coche que passou, com destino a casa. Tita nos esperava com o almoço pronto. Apesar do sorvete, estávamos varados de fome, eram aproximadamente quatorze horas. Cumpri meu dever de limpeza. Depois do almoço Manolo me disse: – Negrinho, estás liberado, é bom descansar bastante que amanhã nos espera muito serviço. Já em casa e enquanto contava para a mãe das compras que tínhamos feito, peguei no sono, dormi os tais dez minutos que o Antônio me acostumou. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 83 No dia seguinte continuamos aprontando o material. Os lápis eram colocados numa bolsinha de papel celofane que era amarrada com uma cinta vermelha, o mesmo processo era feito com os pentes, só que a cinta era azul. A Tita, embora preparando o almoço, às vezes vinha nos dar uma mãozinha. Só paramos para almoçar, dormimos depois do almoço e continuamos. A etapa seguinte era a mais demorada. Tratava-se de recortar as correntes num mesmo tamanho. A medida estava pronta em uma tábua, que de um lado tinha uma agulha fincada e do outro lado estava afixado um alicate de corte frio, com um lado servindo de alavanca, forrado com borracha para não machucar as mãos. Eu recortava as correntes, Tita e Manolo colocavam as medalhinhas e também uns ganchinhos que era o fecho para quando colocada a corrente no pescoço não cair. Era corrente que não acabava mais. Recortar era rápido, enquanto só eu recortava, eles dois colocavam os ganchos e a medalha. Em determinado momento, Manolo pediu para eu também ajudar a colocar os ganchos e as medalhas, tarefa que aprendi com facilidade ao ponto da Tita comentar: – Puxa, o Negrinho aprende tudo rápido. A todo o momento Tita se levantava para cuidar do almoço e ver a menina, que era bem quietinha e ficava brincando sozinha. A todo instante se levantava e abraçava a mãe e o pai pelas costas. Todos os dias quando eu chegava, gostava de ver Carolina e brincava um pouco com ela. Quando eu ia pegar a cobra Carolina ela ia junto e dizia: TAOINA. Veio à minha memória que numa tarde, enquanto colocava ganchos e medalhas nas correntes, a menina se levantou e veio pelas minhas costas e me abraçou, achei uma maravilha e lhe retribuí com carinhos. Finalizada a etapa parte de recortar, colocar ganchos e medalhas, contamos 811 peças prontas. A seguir, Manolo trouxe um saco cheio de uns estojinhos para colocar jóias, que na parte superior, em baixo relevo, dizia: MADE IN USA. De imediato estávamos os três a colocar jóias dentro, cuidando para que a medalhinha ficasse no centro. Terminada esta parte, Manolo trouxe três malinhas, em uma colocou cem lápis, noutra cem pentes e noutra cem estojos e cem caixinhas da famosa pomada, esta mala era um pouco maior e ficou mais pesada. Nosso trabalho aquele dia terminou um pouco mais tarde e foi mais cansativo. Quando cheguei no outro dia e após tomar o café, Manolo me disse: – Negrinho, vamos descobrir o local onde trabalhar amanhã. Após brincar um pouco com Carolina e a menina, saímos. Uma vez descoberto o local, voltamos para casa e na parte da tarde nos dedicamos a treinar. Foi no sábado a minha primeira saída. Conforme combinado no dia anterior, comecei caminhando com as mãos e isto bastou para que o ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 84 público se amontoasse à nossa volta. Enquanto eu fazia as demonstrações, o público era organizado por Manolo, que aplaudia a cada uma das minhas provas. Depois peguei Carolina, colocando-a no ombro e comecei a fazer mágicas. O público ria e aplaudia. Carolina, que já era conhecedora dos aplausos, começou a subir pela minha cabeça até ficar com uma terça parte do corpo bem reta para cima. O público vibrou, e foi neste momento que Manolo, aproveitando a euforia dos presentes, se dirigiu a eles: – Senhores, enquanto o garoto descansa, vocês devem entender que precisamos comer para pagar passagens, atender mulher e filho, etc. Espero a compreensão de todos e gostaria que comprassem um lápis, que só custa um centavo, enquanto no comércio custa dois centavos. Ele me entregou um molho e pegou outro, e todos queriam comprar. Quando terminaram os lápis, ele disse: – Senhores e senhoras, eu não sou vendedor de lápis, sou um representante multinacional da John Bull e vou devolver o dinheiro a quem me devolver a cintinha que amarra a sacolinha. Podem ficar com o lápis. Todos devolviam a cintinha e nós devolvíamos o centavo. Terminada essa primeira parte, pegou um molho de pentes, me entregou, e ele ficou com outros e continuou: – Senhoras e senhores, como lhes disse, represento a multinacional John Bull. Será que vocês comprariam um pente por dois centavos, já que no comércio custa três centavos? Assim ia entregando os pentes, e mesmo os que não tinham comprado lápis, eram todos querendo pente. Manolo, que sabia bem a sua profissão, se mexia de um lado para outro, sempre falando, e de vez em quando soltava uma piadinha e o público ria. Terminados os pentes, de novo Manolo falava: – Eu não sou vendedor de lápis e nem de pentes, eu represento a multinacional John Bull, portanto, devolvo-lhes os seus dois centavos, é só devolver a cinta. E era Manolo de um lado e eu por outro devolvendo os dois centavos. Finalizada esta segunda etapa, pegou um estojinho e mostrando a correntinha com a medalha dirigiu-se ao público: – Senhores, esta corrente com sua medalhinha é de fabricação norte-americana e de prata. Será que vocês comprariam esta correntinha importada dos Estados Unidos por cinco centavos? E eram aqueles gritos, uma para mim, outra aqui, outra ali, e era aquele corre, pega grana, acabado o estoque, de novo Manolo falou: – Eu não vim vender, eu represento uma multinacional, vocês devolvem a fitinha e eu lhes devolvo seus cinco centavos. Eu já começava a ficar meio desnorteado, não entendia aquilo de multinacional, de correntes importadas, já que nós tínhamos comprado aquela sucata, e o que mais me apavorava é que vendíamos e depois devolvíamos o dinheiro. Eu pensava, será que ele não ficou doido? Em todo caso, continuávamos devolvendo o dinheiro. Concluída esta parte, pegou uma caixinha de pomada e a destapou, tirou o que ele chamava de bula, mostrando ao público, disse: – Olhem, Laboratório Oriom, que tem a ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 85 sua sede na Inglaterra, com filiais na Espanha, Itália, Alemanha, Bélgica, Holanda e Estados Unidos, ultimamente na Argentina e agora na Colômbia. Vocês perguntarão: – E para quê serve a tal pomada? Sabem para quê? Para picada de insetos, para pequenos cortes, para feridas, e a cicatrização é rápida, no caso de dor de dente, pegue um pedacinho de algodão e molhe com a pomada, coloque na cárie, o alívio é instantâneo. O preparo desta pomada é à base de caporrosa de minas (eu não sabia o que era isso!), malva, solução mentolada e proteínas extraídas da carne. Comprovaram que não serve para picada de marimbondos ou vespa, embora seu uso deixe uma sensação de alívio, porém não de cura. Foram cinco anos de testes de vários tipos de pacientes para poder ser lançada ao mercado, onde será vendida por vinte centavos. Eu, como representante desta multinacional, vou vender para vocês por apenas dez centavos. Mesmo ele dizendo que desta vez não devolveria o dinheiro, era aquilo, uma aqui, outra ali, outra acolá, e eu por um lado e ele por outro, era entrega pomada e pega dinheiro, até esgotarem as cem caixinhas. Ele não parava de falar enquanto entregávamos as caixinhas, se movimentava dum lado para outro, a Carolina estava agora com ele, no pescoço. E mostrando Carolina dizia: – Esta pomada também contém veneno de cobra, porém não é venenosa. Pegava um pouquinho da pomada e colocava na boca e continuava: – Não faz mal para criança, mesmo que ela engula toda. Enquanto ele colocava Carolina na gaiola e guardava as nossas coisas, eu comecei a fazer algumas mágicas. A última que fiz foi fazer engolir refrigerante a um rapaz e depois tirar pelo traseiro. O público ria, gritava, berrava, aplaudia. Manolo aproveitou para agradecer ao público a atenção dispensada e lhes garantia que tinham feito uma boa compra. Eu esperava uma reação do público porque ele não devolveu os dez centavos e me aprontei para fugir em caso de emergência, só que o público, ao contrário, nos aplaudia enquanto nos retirávamos. Já em casa, e a fome nos castigando, Manolo feliz da vida mostrava para Tita as malas vazias. Em seguida, colocou a bolsinha com o dinheiro numa prateleira que estava num canto do comedor, enquanto Tita servia o almoço. Eu fui para o asseio corporal tanto recomendado pela mãe, mesmo não estando ela presente, não sei por que, tinha medo de não obedecer. Uma vez servidos e após dormir os dez minutos de Antônio, senti ruído no comedor. Era Tita que contava o dinheiro e fazia montinhos de um peso, no total dez montinhos de dez pesos. Enquanto a criança e Manolo dormiam, fui ver Carolina que estava bem enrolada e também dormia. Tita, que sempre estava em atividade durante o dia, quase não descansava. Após guardar o dinheiro ali mesmo no comedor, começou a conversar, e me contou que Manolo nunca tinha vendido tanto em uma apresentação, o máximo vendido era quatro pesos, e algumas vezes, chegou a faltar até cinco centavos, e desta vez, mesmo vendendo tanto, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 86 não tinha faltado nenhum centavo... Quando Manolo acordou, ao invés de me chamar como de costume, me chamou de campeão, me deu um molhinho de um peso e disse: – Negrinho, podes ir embora. Amanhã vamos trabalhar perto do mercado da Alameda. Saí correndo levar o dinheiro para minha mãe. Quando ela contou o dinheiro, me disse: – Ele tinha que lhe dar sessenta centavos e aqui tem um peso. Mãe, ele quis me dar um peso! Então lhe contei a forma dele vender, e ela perguntou: – E o público não fica bravo? Ao contrário mãe, quando nos despedimos, nos aplaudiu. No dia seguinte, domingo, Manolo queria colocar sessenta peças de cada. Tita insistia para que levássemos oitenta: – Com o negrinho, vocês são capazes de vender todas. Eu intervi e disse: – Vamos levar cem, se sobrar, as trazemos de volta. A Tita, rindo, me apoiou e Manolo concordou para levarmos cem conjuntos, porém comentou: – Aos domingos se vende menos. Eu às vezes vendo dois pesos, dois e cinquenta, nunca vendi três pesos. Só que naquele domingo, vendemos todos os conjuntos e até faltaram conjuntos. Após o almoço, Manolo me deu quinze centavos e me liberou. Feliz, muito feliz, cheguei em casa, dei o dinheiro para minha mãe e em seguida, com meu irmão mais velho, Oscar, fomos visitar Elida. Na segunda-feira, quando cheguei na casa de Manolo, encontrei dois sacos daquela gordura. A Tita já tinha colocado uma parte num tacho para derreter. Uma vez tomado nosso café, nos dirigimos para as fábricas onde compramos lápis, pentes e correntes. Desta vez Manolo arrematou todos os estoques de peças com falhas. Na parte da tarde, fomos para o mato pegar malva, voltamos quase escurecendo e Manolo me levou para casa. Na terça, na quarta e na quinta-feira aprontamos muito material. Viagens ao desconhecido Na sexta-feira a mãe estava um pouco preocupada, porque nesse dia seria a minha primeira viagem a uma cidade distante 100 qulômetros. Antes de partir Manolo disse: – Será que vendemos cem conjuntos? Eu respondi: – Podemos levar cento e vinte, mas ele contestou: – Não, vamos levar só cem. Levando mais, nós vamos nos rebentar todos. Tu vês, cem conjuntos vendidos já nos deixam demolidos! Depois da venda, entrávamos em qualquer restaurante, almoçávamos e, em seguida íamos para o hotel descansar. Quando acordávamos, tomávamos banho e saíamos para conhecer a cidade. À noite, íamos ao cinema. Aos poucos pegávamos o seguinte ritmo: dois dias seguidos de trabalho, depois viajávamos para outra cidade. Descansávamos um dia, para depois vender ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 87 a mercadoria. Manolo não queria vender mais que cem unidades por dia, porque seria muito sacrificoso. Na realidade, terminávamos muito cansados. Tínhamos levado oitocentos conjuntos e nos restavam cem. Fazia doze dias que tínhamos saído de casa, estávamos a 400 quilômetros da nossa cidade. Começamos a sentir o cansaço do trabalho intermitente, até Carolina só queria dormir. Estávamos acostumados que, ao chegarmos no hotel à noite, ela se levantava para brincar um pouco, agora quando chegávamos, ela nem se mexia. Pela manhã, quando a estávamos limpando, ela não ficava quieta. Às vezes Manolo tinha que ralhar com ela e gritava: – Carolina, fica quieta! Ela entendia, ficava quieta, mas era só por uns poucos segundos e depois começava de novo. O que ela mais gostava era de um óleo perfumado que Manolo lhe passava para as moscas não incomodarem e a pele ficava brilhante e bonita. Decidimos vender os cem conjuntos e retornar para casa. Viajando de ônibus, levaríamos umas sete horas, só que com Carolina era difícil, devido aos solavancos do ônibus, que lhe poderiam fazer mal, e outro motivo era que não nos permitiam viajar com ela. A solução era o trem, que demorava aproximadamente dez horas. Ele parava em todas as estações, e em algumas Manolo aproveitava para alimentar e refrescar Carolina. Tudo tinha que ser feito escondido, porque no trem também não permitiam levar Carolina. Quando algum curioso nos perguntava o que levávamos na gaiola, respondíamos: uma tartaruga, e nos mostrávamos sérios e não dávamos muita confiança a nossos interlocutores. Às vinte horas chegamos de retorno a nossa cidade e às vinte e duas horas estávamos em casa. A Tita, prevendo que algum dia eu teria que dormir ali, já tinha arrumado uma cama no quarto de hóspedes. A pedido deles e por estar um pouco tarde, fiquei ali. Após comer, conversar e rir dos acontecimentos e sendo meia-noite, fomos dormir. Madrugador que eu era, antes das sete já estava de pé. Observei que na nossa ausência, a Tita tinha aprontado uma quantidade de conjuntos. Pouco tempo depois Tita se levantava para dar a mamadeira à menina. Manolo se levantou, tomou banho e formos tomar café. Em seguida, Manolo pegou uns doces, queijo e costelas de porco salgadas para eu levar para casa. Ele tinha comprado tudo na viagem de regresso. Também me deu três pesos e disse que era para descansar no dia seguinte e voltar só no terceiro dia. Feliz ficou a mãe ao me ver chegar e eu feliz de chegar em casa e ver minha mãe. Os meus irmãos estavam na escola. A mãe contou-me que Tita tinha ido lhe visitar várias vezes e sempre levava a menina e também lhe levava várias verduras, doces ou pães. Como Manolo sempre mandava informações nossas através do telégrafo ela informava a mãe, portanto, não tinha porque se preocupar. Também me disse que tinha ido ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 88 um dia visitar Tita e enquanto conversavam, tinha ajudado a empacotar lápis e pentes. Para os meus irmãos e para ela, tinha dado uma corrente e mais outra que guardara para eu dar para Romélia. À tarde fui visitar o Dr. Corrêa. Fazia muitos dias que não os via. Todos me receberam com muita alegria e carinho. O marido da empregada, como sempre, me pegou no colo. Falando com Dr. Corrêa lhe contei da Carolina. Ele me disse que as cobras, a maior parte do tempo passam dormindo. Depois de lanchar com eles, fui correndo visitar Elida. Contente de me ver, me contou que em vista da minha ausência, tinha ido visitar minha mãe e ela tinha lhe contado que eu andava viajando. Ela, como sempre, deu uma choramingada pela falta do Antônio. Contei-lhe, em parte, o trabalho que fazia, também falei de Carolina. Antes de voltar para casa, me fez tomar um copo de leite. Despedi-me e voltei correndo para casa porque queria ver os meus irmãos mais velhos, pois os pequenos já tinha visto. Curiosos, eles queriam saber tudo. À noite, fomos brincar, estava toda a rapaziada, nossos amigos. Para Romélia dei a corrente e ela a colocou no mesmo momento. No dia seguinte visitei o Mudinho, o Oscar e alguns de meus vizinhos, inclusive a mãe de Romélia, mas a maior parte do tempo fiquei em casa. No dia e hora combinado estava na casa do Manolo. O mesmo de sempre: a menina, ver Carolina, parecia que ela tinha sentido minha ausência, porque ao me pressentir, foi se levantando, como se eu fosse Manolo. Ela foi subindo no meu braço, em seguida subiu um pouquinho na neném e rapidamente voltou para mim. Parecia uma criança arteira. Uma vez terminado o café, e sempre com Carolina no ombro, Manolo começou a olhar o mapa e marcar o nosso próximo roteiro, que se deu no dia seguinte, uma sexta-feira. Permanecemos quinze dias fora e nos distanciamos 520 quilômetros, sempre tratando de vender só cem conjuntos por dia. Na quinta viagem, estando numa cidade a uns 150 quilômetros de casa, aconteceu que não nos deixaram viajar com Carolina. Por mais que Manolo explicasse, mostrasse que ela era domesticada, que não tinha as presas, que era quietinha, não adiantou. Mandaram-nos devolver as passagens e pegar o dinheiro de volta. Estávamos praticamente com toda a mercadoria. Então decidimos voltar para o hotel, deixar Carolina e trabalhar sem ela. Voltamos ao mesmo hotel que tínhamos estado. Manolo acertou com o dono do hotel de pagar uns quinze dias adiantados, deixando com ele Carolina e alguns de nossos pertences. Deixaria dinheiro para alimentar Carolina e explicou como deveria fazê-lo. Também como limpá-la sem ter que tirá-la da gaiola. Assim mesmo, Manolo, que estava com Carolina no ombro, fez com que o dono do hotel a pegasse e lhe ensinou como ela gostava que lhe fizesse cafuné. O homem pegou por ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 89 fim Carolina fez cafuné e ela fechou os olhinhos. O dono do hotel gostou de Carolina e aceitou fechar negócio com Manolo. Ele deixou dinheiro para comprar laranja, banana e carne, era o que ela comia. A carne tinha que ser cozida. Ao meio-dia o hoteleiro mesmo quis alimentar Carolina para ter certeza do que faria no futuro. À tarde descansamos, asseamos Carolina e lhe colocamos óleo e ela ficou perfumada. No dia seguinte cedo já estávamos viajando. Mesmo parando em povoados e cidades pequenas, sempre vendíamos cem conjuntos. Após ter vendido tudo, regressamos para a cidade e o hotel onde tínhamos deixado Carolina para em seguida continuar viagem para casa. Quando o hoteleiro nos viu chegar, veio correndo ao nosso encontro e nos disse: – Desde que vocês foram embora, a Carolina não quis comer nada, não bebeu, não quis nada, nem se mexeu para nada, está muito magrinha. Fomos correndo para o quarto e para surpresa nossa, encontramos uma cobrinha de uns 30 centímetros de comprimento por aproximadamente 2 centímetros de espessura. Manolo ficou bravo e disse: – Não, essa não é Carolina. É sim, disse o hoteleiro, eu fazia de tudo, lhe dava carinho, a colocava no sol e ela não se mexia, nem sequer abria os olhinhos. O hoteleiro todo angustiado repetia: – Ela é Carolina, juro pela saúde de minha família, que tanto amo. Alguém chamou o hoteleiro, ele saiu, estava muito aborrecido. Eu estava sentado em frente ao Manolo e lhe disse: – Manolo, aquele cara vendeu Carolina e nos quer engambelar com essa cobrinha. A Carolina tinha mais de 1 metro de comprimento por 6 centímetros de grossura, só a cabeça tinha uns 8 centímetros de diâmetro por uns 15 centímetros de comprimento e ele quer que acreditemos que aquela é Carolina, nem a pele é parecida. Manolo estava mudo, quase nem se mexia, eu estava pensando mil coisas contra o hoteleiro, sentia muita tristeza. Pensar em Carolina, onde ela estaria, será que ele a havia vendido para ser morta? De repente, Manolo disse: – Negrinho, chame aquela cobra pelo nome de Carolina. Imediatamente cheguei perto da gaiola e gritei: – Carolinaaa! E a cobrinha foi levantando a cabeça. Manolo saltou para perto da gaiola e nós dois, ao mesmo tempo, gritamos: – Essa é Carolina sim, é ela. Manolo correu para a cozinha e trouxe um pedaço de carne cozida. Tiramos a cobra da gaiola e com um conta-gotas colocamos algumas gotinhas de água na boca dela e lhe colocamos pedacinhos bem pequenininhos de carne, que ela quase não tinha forças para mastigar, eu disse: – Manolo, ela está doente, vamos levá-la ao Dr. Corrêa. Expliquei para ele quem era o Dr. Corrêa. Imediatamente Manolo procurou o hoteleiro, acertou tudo e lhe informou que viajaríamos no dia seguinte. Cedo já estávamos no terminal rodoviário. Tínhamos colocado Carolina numa caixa de papelão em cima de panos e a levávamos no colo. De ônibus, em duas horas e meia chegamos. Às nove horas já estávamos no Dr. Corrêa. Explicamos-lhe o acontecido e o Dr. Corrêa a pegou e ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 90 começou a examinar. Ela se mexia como que tentando querer subir no ombro de Manolo. A explicação do Dr. Corrêa foi a seguinte: – Embora vocês não acreditem, estes répteis têm sentimentos quase iguais aos seres humanos. O que aconteceu com ela foi que, acostumada como estava com vocês, com o carinho que vocês lhe davam, a paparicavam, e acostumada a escutar as palmas do público, de repente vocês desapareceram, ela começou a ser tratada por um estranho, que talvez não por maldade e sim por falta de conhecimento, não lhe dava o carinho igual ao de vocês, se sentiu abandonada, com saudades, se sentiu só, e como não tinha condições de se matar, a única forma era se deixar morrer. Agora, com a presença de vocês, vai se recuperar muito rápido e voltará ao seu estado normal. Ela está muito sentida, precisa de muito carinho, a esta altura ela é o mesmo que uma criança. Manolo agradeceu e quis pagar, porém o Dr. Corrêa não quis nada, ao contrário, deu um vidrinho de um remédio que era para dar três gotas à noite. Despedimo-nos do Dr. Corrêa, da esposa e empregados, todos sempre carinhosos comigo, pediram que eu depois informasse o estado de Carolina. Tita surpreendeu-se quando nos viu chegar, não nos esperava, é que Manolo não teve tempo de avisar de nosso regresso. Explicamos-lhe o problema que se apresentou com Carolina. A filhinha dele, ao não ver Carolina na gaiola, perguntou pela Taoina. Manolo lhe disse que era aquela que estava na caixa, mas a menina insistia em perguntar, até que Manolo teve a idéia de lhe mostrar a Carolina na caixinha e lhe disse: – Olha a Carolina, ela está doentinha, daí a menina se acalmou. Em determinado momento, a menina gritou Taoinaaaa e ela foi levantando a cabecinha e começou a subir pelo braço da menina. Era um bom sinal. Tita também a pegou um pouquinho. Depois de um bom banho e mais tranquilos em relação à Carolina, todos almoçamos. Manolo me deu três pesos e me liberou. Fui para casa, deitei na cama e fiquei conversando com minha mãe. Em seguida peguei no sono. À noite, como chovia, todos ficamos em casa. Enquanto meus irmãos faziam seus temas, eu organizava algumas mágicas novas para apresentar nas ruas. Abro um parêntese aqui, a luz não era elétrica e sim à base de velas, existiam umas lamparinas à base de querosene, mas eram pouco usadas pela fuligem que liberavam na queima do querosene. O dia seguinte amanheceu nublado. Quando cheguei na casa de Manolo, estavam todos ao redor de Carolina. Ela adorava Manolo, estava bem esticada no ombro dele, Tita e a menina lhe faziam cafuné. Quando cheguei também me juntei ao grupo dos aduladores. Olhando Carolina deu-me a impressão que tinha crescido um pouco, parecia estar feliz. Depois de tomar café, Manolo me disse: – Negrinho, hoje não vamos fazer nada, vamos esperar um pouco a recuperação de Carolina. Então, fui ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 91 visitar Gratiniano e depois Elida e ali almocei. Fui ao mercado com ela onde além de comprar o que precisava para ela, também comprou algumas coisas para eu levar à minha mãe. À tarde fui para casa. Novas táticas de venda Com Manolo programamos viajar nas quintas-feiras, trabalhar na sexta, sábado e domingo e, se possível, voltar no domingo à noite ou na segunda-feira. Manolo gostava de ir aos lugares com mais de cinquenta mil habitantes, dizia que com menos gente era preciso gritar muito e vender pouco. Por isso, antes de viajar, estudava bem o mapa e depois decidia o povoado a ser visitado. As cidades que ainda não tínhamos visitado se encontravam até 400 quilômetros, de forma que começamos a viajar mais longe. A Carolina ainda não estava em condições de nos acompanhar, embora tivesse voltado ao seu tamanho normal. A razão era que a maior parte das viagens era de ônibus, porque de trem eram muito demoradas. Lembro-me muito bem da última vez que chegamos a um povoado, chovia muito, era frio, um pouco lúgubre, povo triste. Eram três dias que não trabalhávamos, passávamos dentro daquele quarto de hotel. Um dia, Manolo saiu do quarto e começou a conversar com alguns empregados do hotel. A conversa era a seguinte: ele ofereceu dez centavos a cada um deles para ir a algumas farmácias, com a finalidade de comprar aquela pomada que nós preparávamos. Ele entregou para cada um uma caixinha suja de pomada. A pessoa chegaria na farmácia com a finalidade de comprar a dita pomada. É claro que a resposta do vendedor na farmácia era negativa, pois não existia. A pessoa deveria enaltecer os bons benefícios da pomada, todos deveriam ir em diferentes horários. No caso do dono da farmácia perguntar onde tinha comprado, a resposta seria: – Comprei em Cali, mas me informaram que a estavam distribuindo nas farmácias e drogarias de todo o país. Manolo recomendou que observassem a reação do dono da farmácia e deveriam trazer o endereço e o nome da farmácia. Também lhes ofereceu mais cinco centavos se tudo fosse bem feito. A chuva continuava, mesmo assim Manolo viajou para vários povoados próximos. Eu fiquei no hotel, depois ele me contou que tinha conseguido gente e tinha feito a mesma oferta, só pagando cinco centavos. No dia seguinte, à tarde, retornou e me disse que esperava um bom resultado de tudo que tinha planejado. No quinto dia que estávamos encerrados pela chuva, caía um leve chuvisqueiro, de manhã Manolo se vestiu com terno e gravata e numa mala pequena colocou duzentas caixinhas de pomada, se despediu de mim e saiu. Às treze horas regressou feliz da vida. Tinha vendido todas as pomadas. Almoçou, descansou um pouco e saiu com mais duzentas caixinhas. Retornou ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 92 quando já estava escurecendo, contente, sorridente, conseguiu vender tudo de novo. É claro que os donos das farmácias não sabiam que era ele quem tinha mandado gente a comprar pomada, e seguramente pensando que venderiam com facilidade, compraram bastante de Manolo. Eu calculo que até hoje nenhuma farmácia conseguiu vender uma caixinha... Naquela época eu achava Manolo um homem muito inteligente, hoje talvez eu o colocaria no degrau dos vigaristas, claro que cumpria à risca seus compromissos. No dia seguinte procurou os colaboradores e, no lugar dos cinco centavos, lhes deu a cada um dez centavos, que recebiam felizes e sorridentes, agradecendo e abençoando Manolo. Tínhamos bastante correntes, lápis e pentes e caixinhas de pomadas só tínhamos noventa e quatro. Na parte da tarde viajamos a uma cidade distante aproximadamente 80 quilômetros de onde estávamos. Segundo o mapa, tinha trinta mil habitantes. Era frio, nublado, mas não chovia. Manolo me disse: – Vamos vender um pouco aqui e retornamos para casa. Paramos perto do mercado, onde tinha mais gente, primeiro comecei a caminhar com as mãos e começou a juntar gente. Quase todos usavam chapéu e poncho. Riam de tudo que eu fazia, aplaudiam, pulavam. Em determinado momento um deles saiu correndo e minutos depois voltou com duas garrafas de aguardente e começaram a tomar. Um tomava um gole e passava para o seguinte, paravam um pouco e depois continuavam. Quando Manolo começou a vender os lápis, todos compraram, quando Manolo quis devolver o dinheiro, ninguém quis receber o dinheiro de volta. Os pentes também todos compraram da mesma forma, não recebendo o dinheiro de volta. Compravam tudo, porém não queriam o dinheiro de volta. Manolo se movimentava pra lá, volta, falava, fazia demonstração com a pomada começou a vender, e todos compravam, não se importando com o dinheiro, porque, ao invés de pagar dez centavos, quando Manolo ou eu entregávamos a pomada, nos davam vinte centavos, ou cinquenta centavos, ou até um peso, e não queriam o troco. Em agradecimento, Manolo me pediu para fazer mais alguns números. Fiz várias demonstrações e eles riam e aplaudiam. Por último, e como despedida, fiz um rapaz tomar refrigerante e depois tirei pelo popô. Foi a maior bagunça, riam, se acocavam e berravam. Despedimo-nos com muitas palmas, nunca tínhamos gente tão feliz como essa. Um pouco cansados chegamos no hotel, contamos o dinheiro. Como tínhamos vendido as noventa e quatro caixas de pomada, deveríamos ter nove pesos e quarenta centavos. A nossa surpresa foi grande, tínhamos vinte e cinco pesos, portanto, havia dezesseis pesos a mais. Manolo me disse: – Negrinho, metade dos dezesseis pesos a mais são teus, ou seja, oito teus e oito meus, e dizia: – É a primeira vez que trabalhamos numa localidade tão pequena e ganhamos tanto dinheiro. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 93 Tomamos banho, almoçamos, descansamos e à noite saímos a dar uma volta pela praça. Quando lá chegamos, vimos um grupo deles na maior algazarra e tentando alguns caminhar com as mãos. É claro que não conseguiam e caíam, outros tentavam colocar os pés no pescoço. Perto deles vimos umas quantas garrafas vazias de aguardente. Nós os observávamos de longe e notamos que estavam bêbados. Damos algumas voltas pelo centro, mas sem muito que ver, decidimos voltar para o hotel. – Negrinho, me diz Manolo, vamos embora para a casinha? Estou com muitas saudades de minha mulher e da filha e também da Carolina. Ainda estava dia claro quando chegamos em casa. Tita e a filha nos receberam com muita alegria, até Carolina sentiu a nossa presença, começou a querer sair da gaiola. Aquele dia era só de alegria naquela casa. Ao total, Manolo me deu dez pesos, me liberou e fui para minha casa. Porém, antes de chegar, parei para conversar com uma vizinha. A minha mãe me viu e veio correndo ao meu encontro. Na rua mesmo lhe dei o dinheiro. Ele veio tão bem que, com parte dele, a mãe nos comprou roupas para todos. Com Manolo continuei a viajar, mas cuidando para não voltar às mesmas cidades, tratando sempre de vender no máximo cem conjuntos. Eu insistia que era certo que conseguiríamos vender cento e vinte conjuntos. Manolo concordou em começar a aumentar aos poucos, primeiro vender cento e cinco, depois cento e dez e assim por diante, até nos acostumarmos. Parecíamos dois moleques: corríamos, brincávamos, comprávamos e comíamos coisas que vendiam na rua, à noite íamos ao cinema, e também parávamos para ver a gurizada jogar futebol. Como tenho saudades daqueles dias. O pai de Manolo Uma vez, quando nos encontrávamos numa cidade litorânea, após tomarmos banho de mar, e como já tínhamos trabalhado na parte da manhã, como de costume, fomos ao telégrafo para mandar e receber notícias de casa. Recebemos de Tita a mensagem que pedia para voltarmos com urgência. Ela tinha recebido carta da mãe de Manolo, onde lhe informava que o pai estava muito doente e pedia sua presença. No dia seguinte, bem cedo, estávamos em casa. Tínhamos viajado toda a noite. Durante a viagem Manolo me disse: – Negrinho, vou ter que viajar, e não sei quanto tempo vou permanecer fora, mas se tu precisares de algum troco, podes pedir para a Tita. Antes de pegarmos no sono, Manolo me falou do pai. Ele tinha um sítio muito grande, quase uma fazenda, tinha muito gado, cavalos, porcos, galinhas, algumas plantações, só para o gasto. Disse-me também que o pai tinha muitos empregados. Enquanto ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 94 falava, por momentos ficava pensativo e depois se emocionou: colocou as mãos abertas tapando o rosto e, talvez tentando me dizer alguma coisa e não querendo, balbuciando, me disse: – É que meu pai é um carrasco, é radical, brigou com meu cunhado só porque ele queria levá-lo ao médico. Ficou olhando para o chão, pensativo, falou de forma imperceptível: – O meu pai dificilmente se salva, eu sei de sua doença. Calou, ficou em silêncio, depois disse: – Meu pai não me deixou estudar, queria só que eu trabalhasse na fazenda. Desisti de estudar e comecei a lida na fazenda. Eu queria modernizar o sistema de ordenhas, o pai só queria aquele sistema antigo, vaca por vaca e à mão, eu queria manter o tambo limpo, ele achava perda de tempo. Meu cunhado também era partidário da organização, meu pai nos dava o contra em tudo, eu não aguentei, peguei a mulher e me mandei para a cidade. Contou-me que aquele preparo da pomada e a forma de vender tinha aprendido com o cunhado, e que a irmã dele e o cunhado já tinham percorrido toda a América e parte da Europa, sempre vendendo da mesma forma, a única diferença era que ela trabalhava com bicicleta, fazendo vários números de equilíbrio. Eles estavam morando nos Estados Unidos e vinham todo final de ano passar com eles. Ficou de novo em silêncio, tapou o rosto, e quase chorando disse: – O pai vai morrer, eu sei, e por teimoso e carrasco, coitada da mãe, que o atura calada, mas assim mesmo, estou seguro que ela também não quer que ele morra. Pegamos no sono, só acordamos com o barulho da chegada no terminal rodoviário. Quando chegamos em casa, Tita já tinha uma mala pronta com a roupa que deveria levar e numa cadeira, o que deveria vestir para viajar. Tomou banho, trocou de roupa, tomamos café, me deu dois pesos e tornou a me dizer: – Negrinho, se precisares algum troco, Tita dar-te-á e não os abandone. Mexeu um pouquinho com Carolina, pegou a filhinha no colo e a beijou, também abraçou e beijou Tita, me deu um abraço, se despediu de nós e disse: – Vou tentar pegar o ônibus das onze horas, e saiu. Ele estava abatido, Tita triste, a menina brincava com Carolina, que estava um pouco inquieta, eu me sentia meio nervoso, sem saber por que. Fiquei para almoçar, a pedido de Tita. Enquanto ela cozinhava, eu brincava com a menina e Carolina, que estava enrolada no meu pescoço. Neste momento bateram na porta e Tita gritou: – Negrinho, atende para mim. Distraído, e com Carolina enrolada no pescoço, abri a porta. Era um casal e quando a mulher viu a cobra enrolada no meu pescoço, deu um berro e saiu correndo. O homem ficou estático, mudou de cor, espelhando nos olhos o pavor da morte. A criança chegou nesse momento onde eu estava e o homem, no seu torpor, entregou um papel para a menina e saiu correndo, tropeçou umas três vezes antes de chegar do outro lado da calçada onde a companheira o ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 95 esperava, agachada, com as mãos nos joelhos, batendo neles e rindo muito. Ele se aproximou dela, falou alguma coisa e começaram a rir às gargalhadas. Entraram na sorveteria da esquina e saíram chupando picolé. Sentaram-se na calçada degustando o picolé e continuavam rindo. Ela ria tanto que o picolé caiu no chão, então ela se levantou e foi comprar outro. Em seguida saíram caminhando e ao passar em frente da casa, ele a pegou pelo braço tentando puxá-la em direção a casa e foram embora rindo. Fui na cozinha e contei para Tita o acontecido. Peguei o panfleto que o homem tinha entregue à menina, era um convite para assistir a um culto no próximo domingo na Igreja Evangélica. Após almoçar e dormir um pouco fui visitar Elida. Notei que ela estava muito alegre, diferente dos outros dias. Os retratos de Antônio não estavam no lugar de sempre. Quando lhe perguntei por eles, respondeu que os tinha mandado ampliar. Lanchei com ela e em seguida fui para casa, dei o dinheiro para a mãe e lhe contei todos os acontecimentos. No dia seguinte fui ver Tita para brincar um pouco com a menina e com Carolina, só que não encontrei ninguém. Voltei para casa e como não tinha nada a fazer, me dediquei a visitar alguns vizinhos. Este era um costume que eu tinha sempre que andava pela vila. À tarde, eu estava em casa, quando Tita apareceu com a menina no colo. Veio nos dizer que Manolo pedira para que ela fosse o quanto antes para a fazenda, onde o sogro estava muito mal e queria lhe ver. Ela queria que eu ficasse com as chaves da casa para ir alimentar Carolina e brincar com ela para que não adoecesse. Ela viajaria nessa mesma tarde. Fui com ela para casa, as malas já estavam prontas, mostrou-me a comida de Carolina e mais algumas coisas, se eu quisesse comer. Acompanhei-a até a rodoviária. Todos os dias eu ia de manhã e a tarde alimentar Carolina e brincava bastante tempo com ela. O fim da parceria com Manolo e a morte da cobra Carolina Quatro dias depois de Tita ter ido embora, quando cheguei na casa, encontrei Manolo sentado num banco. Notei que estava triste, tinha Carolina no colo. Quando da minha chegada, colocou-a na gaiola e me convidou para ir à sala. Tita estava lá, com lágrimas nos olhos, parecia que não queria me ver. Já na sala, nos sentamos frente a frente, ele me disse: – Negrinho, meu pai faleceu e ele já foi enterrado, a mãe está muito abalada e me pediu para ir tomar conta da fazenda, porque ela não tem condições de administrar sozinha. Em vista da situação proposta, e após conversar, decidi aceitar e vamos entregar a casa e levar nossa mudança. A única coisa é que não sei o que fazer é com a Carolina. Eu disse: – Por que não a deixa com o Dr. Corrêa, assim eu posso ir vê-la sempre. Manolo ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 96 quase querendo chorar, disse: – É a única solução. Sentou-se no banco olhando para Carolina com uma profunda tristeza e os olhos molhados pelas lágrimas. Tita não falava, ensacava uma coisa, amarrava outra, tirava as roupas dos armários, colocava em malas, outras em caixas de papelão. Carolina não parava quieta, estava inquieta, subia e descia dentro da gaiola, parecia que pressentia alguma coisa. Eu ainda não tinha me dado conta do que estava acontecendo, mas não abria a boca, estava quase mudo, a menina brincava sem a menor preocupação. De repente, e como impulsionado por uma mola, Manolo se levantou, limpou os olhos, pegou a gaiola onde estava Carolina e disse: – Vamos Negrinho, vamos deixá-la com o Dr. Corrêa e saímos. Não sei como descrever o recebimento que tivemos por parte do Dr. Corrêa, da esposa e dos empregados. A Carolina continuava demais inquieta, não parava. O Dr. Corrêa foi mexer com ela, mas ela nem se importou com ele, mesmo quando abriu a gaiola. Manolo explicou o motivo de estarmos ali e seu desejo de deixá-la com ele, pagando uma mensalidade. O Dr. Corrêa ficou olhando para Carolina, colocou o dedo indicador nos lábios a guisa de silêncio, a cabeça um pouco curvada para frente, deu dois passos adiante, voltou e nos disse: – Por favor, me acompanhem. Uma vez na sala, dirigindo-se a Manolo e olhando para mim, nos disse: – Lembram-se quando da outra vez que a deixaram no hotel? E do jeito que a encontraram? Eu lhes falei no sentimento dos animais, lhes disse que ela sentia a ausência de vocês e não queria mais viver, como não tinha condições de se dar um tiro ou se fincar uma faca (uma forma de dizer), então queria morrer de fome, de sede. Lembram-se que só com a presença de vocês ela se recuperou? Manolo, você é para ela seu primeiro e único amor, foi você que a desflorou, ela não se importa com nada, só lhe chega a sua presença e ela está pressentindo que alguma coisa não está normal, que alguma coisa vai lhe acontecer. Não vê como está inquieta, não pára, quando o normal dela é dormir? Eu teria muito prazer em cuidar dela, só que no momento que vocês saírem daqui, ela não vai mais querer viver, não aceitará mais alimento, água, nada, nada. Mesmo que o Negrinho venha lhe visitar e brincar com ela, não é o suficiente, não se lembram do estado em que a encontraram no hotel? Mais dois dias e a encontrariam morta. Sofreu muito pela ausência de vocês, e é isto que vai acontecer novamente, e desta vez vai sofrer até morrer. É isto que você quer para ela, Manolo? – Não, não senhor! Então me diga, o que fazer, Doutor? – Manolo, a esta altura, e conforme me tem contado, a única solução é que ela deve morrer sem sofrimento. Mesmo porque ela já está sentindo a ausência de vocês e quando saírem daqui, ela começará o processo da sua morte, não aceitará mais nada de ninguém. Manolo, que até então só choramingava, desandou a chorar com sentimento pueril, as lágrimas lhe corriam pelo rosto e algumas iam parar ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 97 na boca. Num momento de arrebato e com a voz um pouco alta, perguntou para o Dr. Corrêa: – Doutor, o que fazer para não sentirmos o sofrimento de sua morte? Dr. Corrêa colocou sua mão no ombro de Manolo e lhe perguntou quando pretendia viajar. – Amanhã ao meio-dia, disse. – Manolo, me diga uma coisa, interpelou o Doutor, você não gostaria que ela ficasse sofrendo, não é? – Certamente que não, Doutor, disse ele. – Então você gostaria de ver ela descansando e viajar tranquilo? – Sim senhor. O Doutor disse: – Então deixa tudo em minhas mãos. – Sim senhor! O Doutor então disse: – Você vai se sentar naquele sofá que está na sua frente e o Negrinho vai até a gaiola e brinca um pouco com a Carolina, sem a tirar da gaiola. Depois ele pega a gaiola com Carolina dentro e coloca perto de você, que começa a brincar com ela e depois a tira da gaiola e coloca em cima das coxas, fazendo cafuné. Mas você tem que ficar bem relaxado, se possível dar uma cochiladinha, para ela se sentir sem estresse. Você não tira a mão da cabecinha dela, ela sentir-seá feliz e até pegará no sono. O Negrinho se senta ao lado e pega a parte de trás dela e também faz carinho, passa as mãozinhas por todo o corpo, verão que ela ficará quietinha. O Negrinho pega esta pomada e passa no rabinho dela. E este é todo o serviço de vocês. Tudo foi feito conforme ele indicou. Dito e feito, Carolina adormeceu igual a Manolo. Uns cinco minutos após eu ter passado a pomada na cauda de Carolina, o Dr. Corrêa aplicou uma injeção de um líquido verde claro. A Carolina nem se mexeu. Manolo de vez em quando abria os olhos, se mexia e tornava a cochilar. Havia muitas pessoas que estavam comprando ervas e chás e tudo aquilo que o Doutor vendia. Faziam muito barulho, alguns perguntando a respeito de plantas ou de problemas que apresentavam seus animais de estimação, algumas pessoas ficavam nos olhando (que espetáculo, dois caras com uma cobra no colo!). Algumas mulheres nem queriam chegar perto de nós, as crianças é que eram mais curiosas, algumas chegavam a tocar Carolina com o dedo. Ela nem se mexia. Quando os compradores diminuíram e os poucos que ficaram eram atendidos pela esposa do Doutor e a empregadao, o Dr. Corrêa chegou perto dele, perguntou: – Como ela está? – Dormindo, Doutor, disse Manolo. – Dormindo o sono eterno, ela dormiu feliz, sendo acarinhada pelos seus dois amores e no colo deles, disse o Dr. Corrêa. Foi neste momento que Manolo entendeu o que ele estava falando. Mexeu e chamou Carolina e ela não se moveu, estava dura. Manolo apertou-a no seu peito e a beijou, deu um leve sorriso, parecia descansado, satisfeito, e a entregou para o Doutor, que por sua vez lhe perguntou se não gostaria de ter ela em sua casa, empalhada. Manolo gostou da idéia. – Claro, disse ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 98 o Doutor, que vai demorar uns trinta dias. Manolo concordou e quis pagar a morte de Carolina, mas o Doutor não quis cobrar. – Você só vai pagar o taxidermista, a empalhada, pegou uma lista e lhe deu o preço. Com muito carinho nos despedimos de todos. Manolo não mais chorava, era só sorriso. Em casa nada se comentou do acontecido, pra menina nada saber. Em determinado momento ela perguntou: – Pai, cadê a Taoina? Manolo foi rápido e respondeu, todo sorridente, pegando ela no colo, lhe disse: – Ela ficou para ganhar uns filhinhos bem bonitinhos. – Tu dá um para mim? – Claro, minha filha e daremos um para a mãe também. – Oba, gritou a menina. Após almoçar, Manolo me pediu para vir cedo no dia seguinte, que tínhamos o que conversar. Em casa contei todo o acontecido para a mãe e os meus irmãos e à noite contei também para Romélia. No dia seguinte, antes das oito horas, já estava na casa de Manolo, onde ele me explicou aquilo que eu já sabia: a morte do pai, a mãe sozinha queria que ele tomasse conta da fazenda, etc. Às nove horas, aproximadamente, encostou um caminhão e entre três carregaram a mudança em meia hora. Manolo me deu vinte lápis, vinte pentes, vinte correntes, também me deu cinco pesos. Tinha sobrado três caixinhas de pomada, que ele me deu, dizendo: – Experimenta, para ver se realmente serve para alguma coisa. As levei, mas nunca as usei... Manolo foi entregar as chaves para a dona da casa que morava perto dali, quando voltou disse a Tita: – Vamos tomar café na casa do Negrinho. Em casa, após os cumprimentos, a Tita pediu para minha mãe umas xícaras, e da bolsa tirou uma garrafa térmica cheia de café com leite, também tinha pão de queijo e broas. Até a mãe tomou café conosco. Findo o café, Manolo e Tita com abraços nos agradeceram e nos convidaram para passar uns dias na fazenda, assumindo o compromisso de nos mandarem as passagens. Nunca fomos. Eu os acompanhei até onde pegaram a condução que os levaria à estação do trem. Despedimo-nos com beijos de Tita e da criança e Manolo, com voz trêmula, me abraçou, dizendo: – Negrinho, vou sentir muitas saudades de ti. Vendendo nossas pomadas íamos ficar ricos! (hoje eu penso, ele sim, eu não!). E um abraço marcou a nossa despedida. Eu fiquei pensando comigo: - Adeus às viagens, aos cinemas, às diferentes comidas e às falas raras. Adeus Carolina, a quem tanto aprendi a querer, adeus àquele dinheiro que Manolo me pagava e que era sempre a mais do prometido, e que com ele minha mãe tinha conseguido comprar alguns tijolos, areia e cimento para melhorar o nosso barraco. Foi nesse momento que comecei a sentir falta dessa família, que eu sentia fazer parte da minha, incluindo Carolina. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 99 O adeus a Elida Não voltei para casa, me dirigi àquela casa onde Antônio tinha serralheria, que agora era um armazém e estava todo pintado. Só o banco de taquara na frente continuava igual. Entrei, comprei um centavo de balas. Sentei no banco e tratei, sem vontade, de comer uma bala. Olhei tudo ao redor: tudo estava modificado para melhor, o chuveiro que Antônio tinha improvisado não estava mais lá. Voltei para casa e a mãe me disse: – Elida esteve aqui e quer que tu vás almoçar com ela. Saí em seguida, quando cheguei na casa dela, um casal vizinho estava retirando um guarda-roupa, o apartamento de Elida estava praticamente vazio, só restava um armário para louças tipo colonial, vários copos, xícaras, pratos, panelas, talheres e algumas frigideiras, tudo enrolado em jornais. Ao notar meu assombro e antes de eu perguntar o motivo, se adiantou, me dizendo: – Negrinho, estou me mudando para minha terra, aqui estou muito sozinha. Eu vim para esta cidade porque meu marido trabalhava aqui. Após a morte dele, fiquei para receber o seguro e começar a receber a pensão. Quando tudo estava pronto, me apareceu o Antônio. Adorei a sua companhia, pensei que seria duradoura, mas foi efêmera, ele foi embora já faz mais de ano e nem sequer nos mandou uma carta informando se chegou bem, se encontrou a família, nada, absolutamente nada. Então para quê ficar aqui, longe dos meus, aqui só tenho um amiguinho, que quero muito, que sempre vem me visitar, que chamamos de Negrinho. Enquanto almoçávamos lhe perguntei: – E quando a senhora vai? – Hoje mesmo, às vinte horas, disse ela. Após almoçar, e sem sair da mesa, continuamos conversando. Alguém gritou: – Dona Elida! Era o homem da carroça, que morava na entrada dos fundos. Ele tinha encostado a carroça bem na porta da casa de Elida e ela indicou o que tinha que carregar, inclusive a mesa onde tínhamos almoçado, os quatro banquinhos e também as panelas com a comida que tinha sobrado. Uma vez tudo carregado, me disse: – Vamos Negrinho, que tudo isso é para tua mãe. Subimos na carroça e fomos para minha casa. O carroceiro descarregou tudo e foi embora. Elida ficou conversando com a mãe, eu fiquei recostado e peguei no sono. Às dezessete horas Elida despediu-se, alegando que iria levar as malas na estação e depois iria se despedir duma família amiga. Abraçou minha mãe, me abraçou e me beijou, me deu cinquenta centavos e foi embora. Fiquei olhando seus passos, até desaparecer. Entrei, sentei-me perto da mãe e disse-lhe: – Mãe, perdi dois amigos no mesmo dia. Continuamos conversando, falamos de Antônio, Manolo e de Elida. A mãe, em determinado momento me disse: – Não se preocupe, ainda lhe restam amigos como Gratiniano, o Dr. Corrêa e os vizinhos, que gostam muito de você, e mais ainda a Romélia, sua grande amiga. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 100 4 NOVAS PERALTICES E O RETORNO AOS ESTUDOS A proveitando que meus irmãos estavam de férias, a mãe nos mandava a mim e a meu irmão mais velho entregar a roupa que ela lavava e passava aos hóspedes de um hotel. Lembro que o nome do hotel era o mesmo do número do prédio, “1930”, ou seja: “Hotel 1930”. Na ida, como a roupa estava limpa e passada, nós dois íamos bem quietinhos, percorrendo uma distância de aproximadamente 3 quilômetros. No regresso trazíamos roupa suja, vínhamos aquela pândega, corríamos, subíamos nas escadas das casas que deixavam o portão aberto, batíamos nas campainhas e saíamos correndo. Uma das coisas que mais gostávamos de fazer era de pegar latas vazias nas lixeiras das casas do leite Klim ou Lactógeno. Sempre andávamos à cata destas latas, e na falta delas, íamos aos bares e pedíamos as tampinhas de refri ou de cerveja, e com um prego abríamos um furo nas tampinhas e enfiávamos um arame, deixando livre um pouco mais de um metro. É claro que a primeira tampinha era amarrada de tal forma para que as outras não saíssem. Com as latas fazíamos o mesmo, abríamos um furo e passávamos o arame, sempre deixando mais de um metro livre. Antes de sairmos de casa, sempre escondíamos a lata ou as tampinhas e quando a mãe nos mandava entregar as roupas, sem que ela visse, pegávamos a peça e a levávamos conosco. Depois de entregarmos a roupa, voltávamos para casa, mas onde encontrávamos estacionamento para carros, permitido por quinze minutos, esperávamos que alguém estacionasse o carro. Quando o motorista saía, esperávamos que ele entrasse em algum lugar, para em seguida correr para o carro. Eu ficava de vigia, enquanto meu irmão amarrava no pára-choque traseiro a lata ou as tampinhas, depois íamos mais para frente para ver o carro passar fazendo aquela barulheira. Alguns andavam um pouco e já paravam, pegavam a lata e a colocavam na lixeira mais próxima, e nós, após tudo calmo, pegávamos de novo a lata e íamos embora. Alguns guardavam a lata dentro do carro, outros a deixavam no cordão da calçada e outros ainda nem percebiam o barulho, tinha uns tão distraídos que só descobriam quando um motorista dentro de outro carro lhes avisava. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 101 O senhor Maturana Maturana era um senhor que tinha uma fabriqueta de vassouras. Num terreno muito grande tinha construído um ranchinho de taquara, e para conseguir o arame para amarrar as vassouras, ele queimava pneus, porque a parte onde se firmavam nas rodas, era toda de arame coberto de borracha. Íamos aos nos postos de gasolina recolher peneus velhos e o sr. Maturana nos pagava três centavos por unidade. Muitas vezes ficávamos Também cuidando quando ele saía a vender as vassouras e retirávamos de seu ranchinho um pneu cada um, para tornar a vendê-lo ao Sr. Maturana. Às vezes ele queimava tantos pneus que as labaredas se viam de longe e ardia durante a noite. No outro dia só restavam as cinzas, os rolinhos de arame e alguns pedacinhos de borracha ainda fumegantes. As brincadeiras e os corretivos Hoje fico pensando: qual era o gosto que se tinha para fazer tanta peraltice! Ver alguns motoristas, brabos, amassando com os pés as latas e atirando-as em qualquer lugar, uns calmos até sorrindo, outros olhando para todos os lados à procura dos culpados, e nós bem escondidos, observando tudo, ou colocando os sacos de roupa na cabeça e passando por eles com um olhar ingênuo. Quem é que iria desconfiar de dois rapazes carregando bolsas na cabeça? Uma vez, para bisbilhotar o que estava acontecendo, porque se havia formado um grupo do lado do carro que tínhamos colocado a lata, botamos os sacos de roupa na cabeça e fomos em direção ao grupo. Tudo orientado pelo meu irmão, eu pedia para alguém me ajudar a descer o saco de roupa da cabeça para eu descansar. Desta forma, ficávamos a salvo de que desconfiassem de nós, permanecendo no meio dos comentários. Outra vez, aconteceu que o motorista do carro que tínhamos colocado a lata achou que o saco de roupa que eu levava era muito pesado para mim e enquanto riam pela invenção do rabo no carro, ele nos perguntou para onde íamos. Com a nossa resposta, ele nos disse: – Eu vou lá perto, subam no carro que levo vocês. Realmente, nos deixou a umas duas quadras de casa. Quando o homem desapareceu de nossa vista, aí sim, começamos a rir e a desfrutar de nossa peraltice. Naquele tempo os carros tinham no centro do volante da direção um botão, que com um leve aperto tocava a buzina. Como nessa época ninguém roubava carros, os motoristas desciam e nem se preocupavam ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 102 em fechar vidros ou chavear portas e muitos até deixavam as chaves na ignição. Meu irmão, que era o mentor de tudo, e a quem eu seguia, descobriu que grudando um chiclete o botão de cima, este continuaria buzinando. Então, qual era a nossa felicidade: comprávamos chiclete, cada um mastigava a pastilha e depois de bem mastigada, com os dois chicletes fazíamos uma bolinha. Como sempre, cuidávamos alguém chegar de carro e ficávamos até o motorista desaparecer. Depois eu pegava as duas sacolas de roupa e dobrava a esquina e esperava meu irmão. Não demorava muito e começava a ouvir o barulho da buzina. Meu irmão chegava, pegava a sacola dele e saíamos correndo. Dávamos a volta no quarteirão, colocávamos as sacolas na cabeça e começávamos a ir no sentido onde estava o carro buzinando. É claro que esperávamos primeiro que o motorista chegasse, depois nós passávamos e o víamos limpando o chiclete e dizendo cada palavrão! Nós continuávamos e íamos rir noutro lugar. Tenho escutado um ditado que diz: “O diabo fez a panela, mas se esqueceu de fazer a tampa”. É o que aconteceu: um dia, após colocar o chiclete no botão da buzina, o dono do carro nos viu e saiu atrás de nós, até nos alcançar. O homem pegou meu irmão e começou a sacudi-lo. Meu irmão gritava e eu corri para uma obra ali perto e peguei duas pedras, vim correndo e comecei a gritar: – Solta meu irmão! E ameaçava atirar a pedra. Nesse momento um senhor que passava me perguntou o que era, e eu respondi: – Ele quer bater no meu irmão. Perguntou o senhor: – Ele é parente? – Não senhor, respondi, ele não é nada nosso. O senhor chegou perto do cara e lhe perguntou: – Você vai bater numa criança? O que ela lhe fez de tão grave? O cara respondeu: – O senhor não está ouvindo meu carro buzinando? Foram estes moleques que grudaram com chiclete o botão da buzina. – O senhor, ao invés de bater na criança, deveria ter ido desligar a buzina. Diga-me uma coisa, o senhor quando criança não fez arte? Se o senhor nunca fez, pode bater no rapaz. Uma senhora que tinha parado para observar gritou: – Não senhor, na minha frente o senhor não vai bater no menino! A esta altura havia muita gente ao nosso redor. Um motorista que tinha diminuído a marcha do carro para assistir, gritou de dentro do carro: – Larga o garoto, covarde! Outra senhora gritou: – Onde é que se viu, tremendo marmanjo querendo bater numa criança, será que ele não tem filhos? Com todo esse tumulto a nosso favor, o homem largou meu irmão e foi embora. A buzina parou, e se ouviu um ranger de pneus. Seguramente arrancou todo brabo. Um casal que estava presente chegou perto de mim, ela colocou suas mãos na minha cabeça, e muito carinhosa me disse: – Me dê essas pedras, meu filho! Eu as entreguei e ela as deu para o marido, que as devolveu na obra. Ao ver os sacos de roupa nos perguntaram o que eram. Respondemos que eram roupas sujas de uns hóspedes de hotel para a mãe lavar. O homem me disse: – Ninguém vai ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 103 bater no seu irmão, o homem mau já foi, se despediram de nós e nos deram cinco centavos para cada um. O senhor que primeiro nos tinha defendido, nos convidou a tomar um sorvete e nos disse: – O susto já passou. Na sorveteria pediu três sorvetes com salada de frutas. Pela primeira vez comia coisa tão gostosa e até hoje é meu paladar preferido. Enquanto comíamos o sorvete, ele nos aconselhou para não fazer arte na rua porque era muito perigoso. Tinha homens muito violentos e ficavam cegos quando lhes era tocado no seu patrimônio. Contou-nos que ele e alguns amigos, quando ainda estava na escola, gostavam de colocar pedras nas rodas dianteiras dos carros, e quando o carro arrancava apagava, patinava ou senão subia na pedra e a direção puxava para um lado. É claro que isto criava embaraço para o motorista, e isto lhes causava satisfação. Disse: – Um dia, um motorista que já tinha sofrido por causa disso, me pegou bem na hora que eu estava colocando uma pedra no carro dele. Arrastou-me, e quando eu estava no chão, começou a me dar pontapés, todos direcionados na bunda. Eu, querendo me defender dos coices, coloquei a mão no traseiro no momento em que ele me dava o chute, e com o bico do sapato me fez um corte no braço. Quando o homem viu minha roupa ensanguentada, pegou o carro e se mandou. Um vendedor ambulante que estava do outro lado da rua viu quando o homem fugiu me deixando no chão e começou a pedir socorro. O dono de uma loja situada na frente do local onde eu tinha apanhado, me levou para o hospital e depois chamaram meu pai, que era delegado de polícia. Uma vez feitos os curativos, voltamos ao local, mas nunca conseguimos localizar o tal motorista, nem o carro. O que consegui foi esta cicatriz, e nos mostrou o braço esquerdo. Quando eu vi aquele cara que queria lhe bater, me lembrei do cara que me bateu aquela vez, sem que ninguém me defendesse e imediatamente pensei: Se aquele cara bate no rapaz, eu estou disposto a sair de socos com ele. Sorte que tudo terminou de maneira calma. Por isso, é bom vocês não fazerem arte na rua, para um dia não apanharem. Claro que é gostoso, mas é melhor não se aventurar. Há caras que não respeitam ninguém e são selvagens e furiosos. A uma quadra dali, pegou um cocheiro amigo seu e nos mandou para casa e também nos deu cinco centavos para cada um. Isso nos serviu de lição. Nunca mais tornamos a fazer arte, nem com chiclete, nem com latas. A luta pela recuperação de vinte centavos Uma tarde, quando voltávamos de entregar a roupa, um senhor desceu de um coche e, ao guardar no bolso o dinheiro do troco que o cocheiro lhe deu, uma moeda de vinte centavos caiu no chão e rolou para dentro de um ralo de um esgoto pluvial. O homem tentou tirar o ralo, porém este era muito pesado e vendo a impossibilidade de tirar a moeda, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 104 o homem foi embora. Eu tentei botar a mão numa fresta um pouco mais larga do ralo. A minha mão entrou um pouco e ali ficou entalada. Puxei com força, a mão saiu, mas também se raspou, como me doía, eu chorava. Um par de senhoras idosas que ia passando, quando me viram chorando, uma delas perguntou o motivo do meu pranto, ao que meu irmão respondeu rapidamente: – É que a mãe deu vinte centavos para ele comprar leite, pão e café e a moeda caiu ali dentro, e agora, quando chegarmos em casa, a mãe vai xingá-lo por ser distraído. A senhora tirou da bolsa duas moedas de vinte centavos e me disse: – Chega de chorar meu filho, deixa essa moeda lá dentro e vai comprar aquilo que a mãe encomendou. Limpei as lágrimas, agradecendo à senhora e fizemos de conta que íamos embora. As senhoras pegaram um coche e desapareceram. Nós voltamos ao ralo e começamos a fazer de conta que queríamos tirar a grelha. Um gordinho que passava se acercou de nós querendo saber o porquê de querermos tirar o ralo. Eu fiz de conta que ia chorar e meu irmão se adiantou e disse para o gordinho: – Ele vai apanhar da mãe porque deixou cair a moeda que era para fazer as compras para o café da manhã. O homem botou a mão do bolso, tirou uma moeda de vinte centavos e nos deu, dizendo: – Deixe essa moeda ali. Agradecemos e saímos, sempre cuidando o homem para ver aonde ele ia, mas o que nós realmente queríamos era tirar a moeda do bueiro. Como tirar aquela bendita moeda? Começamos a nos lembrar e falar do 20 de julho, dia da pátria na Colômbia. As professoras da escola, para deixar as bandeirinhas, feitas por elas, ficarem em pé, colocavam um pedaço de sabão na haste da bandeira, e embaixo do sabão colocavam uma moeda. Desta forma, as colocavam em qualquer lugar, sem que elas caíssem e as moedas também não caíam. Partindo deste princípio, fomos até um posto de gasolina e pedimos para o lavador de carro nos dar um pedacinho de sabão, e este, ao invés de um pedacinho, nos deu um pedaço que calculo deveria pesar mais de um quilo. Pegamos um galho de uma árvore parecida com chorão, limpamos, colocamos um pedaço de sabão na ponta e retornamos para o ralo. Tirar a moeda foi muito fácil. Pegamos a moeda e saímos correndo, deixando o galho ali mesmo no chão. Um senhor que nos viu, correu e nos alcançou. Xingando-nos, mandou que recolhêssemos o galho e botássemos no lixo. Como a mãe nos disse que não deveríamos ser grosseiros com os adultos, agüentamos a xingada caladinhos. Juntamos o galho e o colocamos no meio da roupa suja. Tínhamos oitenta centavos, é claro que antes de chegarmos em casa, compramos sorvete e balas e gastamos seis centavos. Meu irmão guardou cinco centavos para comprar doces na escola na hora do recreio, ele era bom pra comer, enquanto era muito difícil para eu comprar alguma guloseima. A mãe às vezes me dava algum dinheiro que eu terminava dando para meu irmão mais velho ou para o segundo, ou senão para o ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 105 quarto, e muitas vezes terminava devolvendo para a mãe. Eu não precisava comprar nada, se chegava no Gratiniano, sempre me convidava para comer alguma coisa, igual no Dr. Corrêa, quando visitava meus vizinhos, tinham sempre tinham guardado algum doce para mim. A mãe de Romélia sempre fazia um pão que eu adorava, era pão de forno (Pan de horno), sempre que fazia mandava por Romélia ou vinha ela mesma trazer. Bom, o caso era que agora tínhamos que dar conta da origem do dinheiro, coisa que não foi difícil, graças ao galho que tinha o pedaço de sabão na ponta e estava no meio da roupa suja. Uma pequena mentira, dizer para a mãe que tínhamos tirado todas as moedas do bueiro. Levar dinheiro para minha mãe era minha felicidade. As safadezas dos irmãos Parar de fazer arte, na realidade era difícil, mas tínhamos certo receio, porém a vontade de fazer era forte, e unicamente quando andávamos juntos, meu irmão Marino e eu. Um dia, meu irmão colocou em prática o que ele tinha lido num jornal. O negócio foi o seguinte: Com uma madeirinha bateu na campainha de uma casa, saiu correndo e se escondeu, eu fiquei olhando de longe. Uma senhora abriu a porta, mas como não viu ninguém, entrou e fechou a porta. Meu irmão foi, bateu de novo e se escondeu. A senhora abriu novamente, procurou por todos os cantos e fechou de novo a porta. Neste momento ia passando um senhor de baixa estatura e meu irmão lhe pediu para bater na campainha. Enquanto o homem se esforçava para bater, meu irmão se escondeu. Parece que a senhora estava esperando que batessem, porque apenas o homem bateu, ela abriu a porta. É só calcular a raiva da mulher quando pegou o homem batendo na campainha. O homem tentava explicar e olhava para todos os lados procurando meu irmão, que chegou onde eu estava. Pegamos as sacolas de roupa, colocamos na cabeça e passamos do outro lado da calçada. Quando passávamos bem em frente, ouvimos a mulher perguntando: – Onde está o rapaz que o senhor fala? Em que terminou não sei, só sei que nós dobramos a esquina e começamos a correr e paramos bem longe, onde conseguimos dar vazão às nossas gargalhadas. Outra artimanha: num pau de vassoura amarrávamos uma lata, onde colocávamos um pouco d’água. A corda era curta, mais ou menos uns 20 centímetros. Encostávamos o pau na porta, um pouquinho inclinado, e tocávamos a campainha. No momento que abriam a porta, o pau rolava, a lata fazia barulho ao cair no chão e a água saltava fora. É claro que nós, ao batermos a campainha, fugíamos, e de longe ouvíamos os gritos das mulheres, do susto que levavam. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 106 Também pegávamos uma corda ou um pedaço de arame, de aproximadamente um metro, e numa ponta amarrávamos uma lata, ou uma pedra, ou até podia ser um pedaço de madeira e na outra ponta fazíamos um gancho. Nós íamos para um parque e quando víamos um casal de namorados sentados nos bancos de madeira, eu passava pela frente deles caminhando com as mãos e meu irmão pela parte de trás do banco, se acocorava e por uma fresta do banco encaixava o ganchinho de arame no passador da calça por onde passa o cinto. É claro que, quando o homem se levantava e queria dar o passo, não podia, porque a pedra ou a lata ou a madeira não passava pela fresta do banco. A pessoa que o acompanhava começava a tirar o gancho e ria e nós de longe também. De volta às aulas O movimento do retorno às aulas já se fazia sentir, o corre-corre das matrículas, os livros, o uniforme. Um dia a mãe me disse: – Filho, amanhã é dia de ir ao oftalmologista, porque já vão começar as aulas. Este convite eu não recebi com muito bom grado. Eu não queria ir mais a nenhum oftalmologista e disse para a mãe: –Parei de usar o remédio e não senti mais nada. Ela me disse: – Meu filho, eu sei, mas vamos só por um desencargo de consciência. No dia seguinte fomos ao oftalmologista. Lembro-me que estava um pouco nervoso, tinha uma vontade de chorar, O médico examinou os olhos e disse: – Tudo está bem. Voltamos para casa, mas dentro de mim sentia uma sensação de raiva, acompanhada de uma vontade de chorar. Em casa, fui direto para a cama e peguei no sono. A mãe, dizendo que era gripe a se manifestar, me deu um chá preto que tomei acompanhado de uma aspirina e dormi novamente. No dia seguinte, a mãe me levou à escola, eu não me sentia bem. Na aula todos eram pequenos, o marmanjo era eu, a professora nos cumprimentou, disse para a gurizada quem eu era e do meu problema nas vistas. A última coisa que lembro é que um dos guris disse: – Ele é o Negrinho, ele às vezes vai à minha casa. Depois, quando abri os olhos estava no posto de saúde. Ouvi quando o médico, um pouco alterado, disse para minha mãe: – Porque a senhora insiste em mandá-lo para a escola? Porque não espera que ele fique um adolescente? Nesse momento uma enfermeira me aplicou uma injeção na nádega. Em seguida, o médico disse para a mãe: – Ele está bem, pode levá-lo. E dirigindo-se a mim, um pouco ríspido, me disse: – Por enquanto você não pode estudar, espera mais um pouco, estamos entendidos? – Sim senhor e desandei a chorar. No caminho reclamava para a mãe: – Se a senhora não me levasse para esse médico, eu poderia estudar. Hoje eu lembro o ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 107 desespero da mãe, tratando de me consolar, e sinto raiva de ter me comportado daquele jeito, de ter feito isso com ela, mas fiz, já passou! Eu ainda chorava quando chegamos em casa, não quis saber de nada, fui para trás de casa e lá continuei chorando. Acho que a mãe mandou chamar Romélia, porque de repente, ela apareceu toda carinhosa: – Por que estás chorando, Negrinho? Deu-me um pão de forno que a mãe dela fazia e eu adorava, ela sentou-se do meu lado e me fez comer. Ela tinha levado o pão para minha mãe e meus irmãos. De noite, fomos na escola ver um teatro de fantoches, era pago pelo governo, rimos bastante, e tudo passou. A mãe não me mandava sozinho entregar a roupa, às vezes eu ia junto com ela. Já que não tinha meu companheiro de artes, porque meu irmão Marino estava estudando, eu perambulava sem nada a fazer. Quando a Estelita, filha de Gratiniano completou quinze anos, ela fez uma festança e eu fui convidado. Gratiniano falou com minha mãe para que me deixasse ir. O que me chamou muito a atenção foram os músicos. Eram três violões, nunca tinha visto um violão de perto. Um dos músicos, de nome Túlio, me deixou pegar o violão enquanto ele descansava um pouco. Em determinado momento, Gratiniano me apresentou aos presentes. Alguns já me conheciam, porém, não sabiam de minhas habilidades, de tudo que eu sabia, fiz um pouco de tudo. Túlio ficou interessado pelas provas de mágica e me perguntou: – Gosta de violão? – Sim senhor, respondi. E ele perguntou: – Gostaria de aprender? – Sim senhor. – Então vamos fazer um trato: você me ensina a fazer algumas mágicas e eu lhe ensino a tocar violão. Eu disse que gostaria, só que eu não tinha violão. Ele disse: – Não se preocupe, eu lhe dou um, que tenho lá em casa. No dia seguinte, eu lhe ensinava mágicas e ele me ensinava violão. Por algum tempo eu ia três vezes por semana na casa de Túlio aprender a tocar violão e ensiná-lo a fazer mágicas. As trucadas ele aprendia, só que as de destreza ele não conseguia. Da minha casa, à casa de Túlio, não era perto, mesmo assim eu colocava o violão debaixo do braço e ia receber as aulas. Ultimamente, quando Túlio era convidado para tocar e os companheiros não podiam ir, Túlio me convidava para lhe acompanhar, e por último, eu já fazia parte do conjunto. Eu era feliz indo nessas festas para tocar junto com eles e era bom porque tocando eu aprendia mais. Para tocar, eles não cobravam nada, é claro que eu também não ganhava nada. A gente tocava só para se divertir, era costume em determinado momento das festas, e quando já estavam cheios de cerveja ou aguardente, os donos da casa servirem uma sopa de galinha muito gostosa, que tinha, é claro, aipim, batata inglesa, milho verde e banana da terra verde (plátano). Este tipo de sopa é tradicional na Colômbia e chama-se Sancocho. Quando é de galinha, seu nome é ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 108 Sancocho de galinha. Em algumas regiões o preparo é diferente, leva rabada, carne de porco e galinha, e este é denominado Sancocho Trifásico. Músicos e sua fama de ladrões de galinha Naquele tempo os músicos tinham fama de ladrões de galinha. Alguém tinha que ficar na cozinha cuidando o Sancocho nas festas onde havia músicos, porque enquanto todos estavam felizes dançando, um dos músicos ia à cozinha, pegava um prato e tirava as melhores partes da galinha, comia e depois escondia o prato com os pedaços da galinha, entrava de novo para tocar, dizia a outro músico onde estava escondido o prato. A gente começava a tocar música alegre e demorada para que o outro pudesse ir comer, até que todos fossem. Eu tinha medo, por isso não participava. Em algumas casas, preparavam a galinha ao molho, com batata inglesa. Os músicos comiam os melhores pedaços. Eram tão rápidos e práticos que nem eu conseguia ver, e quando os donos da casa davam falta da galinha, os primeiros a quem olhavam era para os músicos, mas eles, com aqueles gestos de ingênuos, ninguém podia acreditar que eram eles. Algumas vezes conseguiam ouvir os donos da casa dizer: agora, como músico tem fama de ladrão de comida, os outros comem a comida para botar a culpa nos músicos. Mal sabiam eles que era mesmo os músicos que tinham comido a galinha. Dentre os músicos, havia um senhor magrinho, bem baixinho e com bastantes cabelos brancos, que tocava o bandolim muito bem e gostava de uma cerveja como nenhum dos outros. Quando chegávamos nas casas, a primeira coisa que fazia, e a qualquer pretexto, era olhar o pátio da casa, e como naquela época, todos tinham criação de galinhas, patos, até peru, ele se importava mais era em saber onde se encontrava o galinheiro. Sempre levava consigo alguns ossos de gado para se tornar amigo dos cachorros. Como tinha algumas casas que, ao invés de Sancocho, ou galinha ao molho, ofereciam salgadinhos, coisa que não agradava a nossos músicos, então ali entrava a atividade de nosso tocador de bandolim, seu nome era Erazo. No melhor da festa, e enquanto todos dançavam, ele desaparecia, depois voltava trazendo qualquer coisa enrolada num jornal, guardava o pacote no estojo do bandolim, fechava e continuava tocando. Uma vez, pelas duas e meia da madrugada, alegando outros compromissos, nos despedimos. Nesse momento que eu descobri o porquê do desaparecimento de Erazo e a origem do pacote. Como não havia Sancocho, e nem galinha ao molho, ou um prato também muito típico, cujo nome era Tamal, então Erazo foi para o galinheiro, pegou uma galinha, lhe torceu o pescoço e a enrolou no jornal, entrando na sala ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 109 normalmente. Longe da festa, nos dirigimos a casa de um deles, entramos caladinhos preparamos a galinha com uma mesa farta de batatas, pão, cerveja, aguardente, rum e coca-cola. Túlio gostava era de cuba livre e já preparou seu copo. Erazo gostava era de cerveja, e os outros de aguardente e eu tomei coca-cola. Pronta a sopa, todos comemos, depois cada um foi para sua casa, eu fiquei na casa de Túlio. Era por isso que os músicos tinham essa fama, eram quase todos, e quando se encontravam os grupos, riam ao comentar os roubos das carnes do Sancocho, ou da galinha ao molho, tamales, ou as galinhas da festa na casa do fulano, e era só gargalhada. Por isso que os músicos daquela época tinham essa fama. A bicicleta, presente do Polaco Perto da casa de Túlio tinha um ferro velho, o dono era um polaco magro, alto, loiro, tinha os dentes manchados de tanto que fumava. Lembro que quando Antônio foi embora, recolheu um monte de ferro velho e me deu e fui vender no ferro velho do Polaco, mas ele não quis comprar porque desconfiava era coisa de roubo. Expliquei a origem da sucata e nem assim Polaco quis comprar. Voltei no Antônio e lhe contei a desconfiança do Polaco e Antônio foi lá junto comigo. Eles já se conheciam, então o Polaco comprou a sucata e terminamos ficando bons amigos. Calculo que o Antônio lhe falou a meu respeito, porque o Polaco me convidou para lhe visitar quando eu quisesse. Assim foi, quando ia no Túlio, entrava no Polaco. Ele pegava o violão e tocava algumas modinhas da terra dele, eu não entendia nada do que ele cantava, mas gostava de ouvir. Ele morava nos fundos do ferro velho, era uma casa bem bonitinha, tinha muitas folhagens e quem cuidava era dona Elga, mulher do Polaco, ela era alemã. Um dia eles me convidaram para almoçar com eles. Enquanto esperava, senti um cheiro parecido com o que às vezes sentia na casa de Manolo, era que dona Elga estava derretendo aquela gordura, ou sebo, com a qual Manolo preparava a pomada. O Polaco a usava para lubrificar os parafusos ao passar a tarraxa. Alguns dias eu ia ajudar o Polaco na separação de parafusos, porcas e arruelas. Um dia ele me convidou para ir no domingo almoçar com eles, era para ir bem cedo e levar uma mudinha de roupa para lhe ajudar a tirar uns ferros. Às oito horas do domingo eu já estava na casa do Polaco. No momento que eu chegava, dona Elga estava indo à padaria. Eu me ofereci para ir comprar, e ela aceitou. Quando voltei o Polaco estava lendo o jornal, me convidou para sentar enquanto dona Elga preparava o café. Antes de me sentar, comecei a olhar os quadros da sala, esta muito bem organizada, tudo limpo, cuidado, com capricho. Havia um quadro oval onde estava retratado o Polaco e dona Elga no dia do casamento. Num outro quadro um pouco ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 110 menor, havia uma foto de um rapaz com traje de primeira comunhão. No momento que o Polaco virou a folha do jornal, aproveitei para perguntar quem era o rapaz da foto e ele me respondeu que era o filho dele no dia que fez a primeira comunhão. Havia muitas outras coisas, quadros, estantes, um relógio grande que a cada hora tocava a Ave Maria, tudo era decorado com gosto, tudo muito bonito. Havia uma estatueta que talvez fosse de bronze, perguntei quem era, e ele me respondeu que era Copérnico. Hoje sei quem foi Thomas Copérnico, mas naquele dia, entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Quando estávamos tomando o café, perguntei pelo filho e me responderam que estava na Alemanha fazendo o serviço militar para conseguir naturalidade alemã, mas quando retornasse, também teria que fazer o serviço militar na Colômbia, porque era colombiano. Ao terminarmos o café nos embrenhamos no depósito de ferro velho, ele me pediu para subir num tipo de mezanino onde havia uma quantidade de esqueletos de motos e bicicletas. Disse-me para ir passando as peças uma por uma, e por último, passei uma bicicleta que estava quase completa. Aí pediu para suspender, e começou a me passar de volta as peças que eu tinha passado primeiro. Em seguida desci, a bicicleta estava na bancada. Ele a desmontou, lubrificou, me ensinou a lixar e eu a lixei, depois ele a montou de novo. Em seguida ligou o compressor e a pintou à pistola. Calculo que seria umas treze horas e trinta minutos quando dona Elga nos chamou para almoçar. Depois do almoço, dormi os dez minutos do Antônio, e quando acordei, Polaco estava enchendo os pneus, a bicicleta estava pintada de azul celeste e com umas decorações com tinta branca, que a deixou muito bonita. O Polaco a examinava, mexia com os pedais. Era uma bicicleta diferente de todas as que eu tinha visto. No centro e onde estavam os pedais, tinha um tipo de caixa de mudanças e na parte mais alta do marco, tinha uma alavanca, quando colocava a alavanca para frente, a bicicleta andava rápido no plano, porém era muito difícil subir lomba, o pedal era muito duro, a gente pedalava pouco, porém ela rolava muito. Colocando a alavanca para baixo, o pedal ficava bem mole, se pedalava muito e ela andava pouco, é claro que subia qualquer lomba. Estando a alavanca no centro, era normal, igual às outras bicicletas. A marca desta bicicleta estava em letras em alto relevo, na caixa de mudanças, dizia Hadhler made in England, mais ou menos isso, não me lembro bem. Uma vez pronta a bicicleta, o Polaco chamou dona Elga e me disse: – Esta bicicleta é um presente nosso para você. Muitas vezes tenho me lembrado da alegria que senti: ganhar uma bicicleta! Até hoje me lembro que dona Elga disse: – Negrinho, tu mereces, é um menino bom, continua sempre assim! Em seguida, o Polaco me disse: – Querendo, podes ir embora, a bicicleta ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 111 é tua. Abracei o Polaco e dei um beijo em dona Elga e saí. Como não sabia andar, fui empurrando até minha casa. Agora imaginem a bagunça que se formou à minha chegada em casa, falavam da cor, porque naquela época as bicicletas eram todas pintadas de preto e com uns riscos cor ouro, a minha era azul celeste e branca, o que mais chamava a atenção era a caixa de mudanças. Meu irmão Marino quis dar uma volta. Romélia também andou, em seguida meu irmão e Romélia começaram a me ensinar Após três tombos, consegui me equilibrar e fiquei praticando até às vinte e uma horas No dia seguinte, às cinco horas já estava praticando, e só parei na hora do almoço, com alguns raspões nos tornozelos e nos joelhos. Após o almoço saí de novo de bicicleta e fui até o Polaco. Ele e dona Elga foram à rua para me ver andar. O Polaco descobriu a minha afobação e me orientou a melhor forma de eu não ser afobado. Dona Elga me fez curativos nos raspões. Daí fui visitar Gratiniano, foi aquela bagunça quando cheguei, ele me perguntou quanto havia pago, é claro que lhe respondi que o Polaco tinha me dado de presente. Os que estavam presentes se surpreenderam, e me disseram: – Que estranho, porque aquele Polaco é um unha de fome, é o maior mão de vaca que já se viu. Queriam saber se tinha feito algum serviço para ele, respondi que não, e me perguntaram: – Quem pintou a bicicleta? Respondi: – Foi o Polaco mesmo, eu só a lixei, ele a pintou com pistola e fez os riscos com pincel bem fininho. Outros mais curiosos me perguntaram: – Você o conhecia? – Claro, às vezes eu ficava lá no ferro velho conversando com ele, e a mulher dele até já me convidara para tomar café, só isso. No final, disseram: – É que o Negrinho tem sorte, conseguiu abrir a mão do Polaco. Terminada a recepção e satisfeita a curiosidade, me despedi de todos com o carinho que sempre recebia dos amigos e muito em especial de Gratiniano e sua família. Saí em direção à casa do Dr. Corrêa. Como a todos, ali também a minha chegada lhes causava alegria, mais ainda agora que chegava de bicicleta, o primeiro a sair foi o Doutor, em seguida a empregada, seguida pelo marido. A esposa do Doutor também veio correndo. O que lhes vinha na mente primeiramente era quanto eu teria pago, e a minha resposta era: – Foi presente do Polaco do ferro velho. – Não pode ser, o Polaco não dá nada a ninguém, ele vende tudo, não dá, não empresta nada pra ninguém, é um tremendo pão duro, mas o Doutor interveio: – Ele está certo, que seria dele se desse tudo que teve que comprar, não é mesmo? Ele deu a bicicleta para o Negrinho porque ele é prestativo, e além disso, tem sorte. Todos achavam linda a bicicleta e o que mais lhes chamava atenção era a bicicleta com mudanças, e diziam: – Agora o Negrinho está motorizado. Foram muitos os garotos da minha vila que aprenderam a andar na minha ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 112 bicicleta, também muitas meninas, apesar de tantos tombos, a bicicleta nunca estragou. Eu gostava de ir ajudar o Polaco porque me lembrava do Antônio, só que ao invés de fole, a forja era de ventoinha e era manual. Ele colocava uns quantos parafusos enferrujados na forja com as porcas que nem se mexiam, quando eles estavam bem quentes e querendo pegar cor, os jogava no óleo queimado e quando estavam frios tirávamos do óleo e nem precisava passar tarraxa, a porca corria bem macia. Ultimamente era eu que fazia este serviço e gostava de fazer, enquanto o Polaco separava os parafusos de diferentes bitolas, também os de rosca fina e os de rosca grossa. O que mais se vendia eram parafusos, arruelas de pressão e lisas, os parafusos sempre eram vendidos com suas respectivas porcas, quem mais comprava eram os mecânicos e chapeadores. Também vendia ferro, de diferentes bitolas, e por metro, quando chegavam os caminhões cheios de ferro ou sucata, dona Elga e eu ajudávamos a arrumar. É claro que, como todos falavam, o Polaco era muito miserável. Digo isto porque, depois de lhe ajudar toda a semana e queimar centenas de parafusos, me dava às vezes três ou cinco centavos apenas. Eu não me importava, gostava muito deles. A dona Elga às vezes me fazia calções tipo bermudas, ela mesma tirava as medidas e costurava, até camisas ela me fez. As lembranças dos amigos De vez em quando eu visitava meus amigos, o Gratiniano, a mãe de Romélia, visitava também o Mudinho, o Oscar e meus vizinhos. Quando ia visitar o Dr. Corrêa ficava vendo a cobra Carolina numa espécie de galho de árvore, tal como se estivesse viva. Eu ficava longo tempo olhando para ela e sentia uma espécie de tristeza, lembrando dela viva, quando subia no meu ombro, quando se levantava no ombro de Manolo como querendo saudar o público. Queria tocar nela, só que ainda não podia, porque não estava bem seca. Alguns dias depois, apareceu Manolo em minha casa, levando um saco onde tinha aipim, batata, cebola e muitas outras coisas, como carne, tomate, etc., tudo da fazenda dele. Disse que tinha vindo para levar Carolina, se despediu da minha mãe e fomos até o Doutor Corrêa na minha bicicleta, ele pedalava e eu ia na carona. O Doutor já tinha a cobra pronta numa caixa de papelão, passei a mão na cabecinha dela, dei um beijo e fecharam a caixa. Manolo pagou, despediuse do Doutor, pois estava apressado, me abraçou, me deu um peso, pegou a primeira liteira que passou e foi-se embora, ainda me abanou, e nunca mais o vi. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 113 Continuei recebendo as aulas de violão, agora ia de bicicleta e quase sempre passava na casa do Polaco e também durante o dia ia lhe ajudar. Um dia a mãe recebeu uma carta de uma de suas irmãs, que lhe pedia para receber o filho que viria ingressar na universidade Del Valle, para estudar Direito. Ela pedia para minha mãe esperá-lo na estação do trem e levá-lo até a faculdade, onde tudo já estava acertado, inclusive o local onde ele iria morar. A minha mãe respondeu a carta colocando-se à inteira disposição. A resposta não tardou a chegar, onde a mãe era informada que meu primo deveria chegar no segundo domingo do mês seguinte, no trem do meio-dia. Como minha mãe não conhecia seu sobrinho, na carta resposta vinha todo tipo de informações a respeito do meu primo, inclusive da forma como viria vestido. Às dez horas e trinta minutos daquele domingo, estávamos, minha mãe e eu, esperando a chegada do meu primo as onze horas e dez minutos. Por alto falante anunciaram que o trem que vinha do ocidente chegaria com duas horas de atraso, devido à queda de uma barreira nos trilhos, interrompendo a passagem, mas que os operários já estavam trabalhando para desobstruir a via. Às onze horas e cinquenta minutos, chegou o trem que vinha do oriente e que deveria continuar para o ocidente. Mas este não poderia continuar viagem até que o trem que vinha do ocidente não chegasse. Rumores se ouviam em quantidade, uns diziam que a barreira tinha caído em cima do trem, que havia mortos e feridos, que alguns vagões tinham saído dos trilhos. Existia muita preocupação entre as pessoas que esperavam familiares, muitas pessoas se amontoavam no escritório do gerente à procura de informações, uns corriam de um lado para outro, os rumores continuavam. Um senhor perguntou a um que saía da gerência: – Amigo o que é que o gerente disse? – Falou que não tem condições de entrar em contato com o maquinista porque o telégrafo não responde, pois os fios foram cortados. Eu sentia que a mãe, mesmo não conhecendo seu sobrinho, estava um pouco preocupada, e direcionava o ouvido para todos os rumores. Já era quase treze horas, e como tínhamos tomado café muito cedo, eu sentia fome, mas não me atrevia a dizer à mãe. Acredito que ela estava na mesma situação, porque quando passou um rapaz vendendo pasteis e suco de limão, ela comprou para nós dois. Gostoso é matar a fome quando ela está bem acelerada! No momento mais ativo das nossas mandíbulas, escutamos uma voz vinda de dentro de um dos vagões que tinha chegado do oriente e que ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 114 deveria continuar para o ocidente, mas só poderia fazê-lo após a chegada do trem que estava atrasado por causa da barreira. A voz gritava: – Chavita... Chavita...! Olhamos para o lugar de onde vinha a voz. Era uma senhora de idade avançada, que estava na janela do vagão. Quando a mãe a viu, gritou: – É Maria Ruiz! E saímos correndo ao seu encontro. Elas se abraçaram, algumas lágrimas saíram das duas, o abraço foi longo, eu só via e ouvia, mas não entendia nada. Terminado o primeiro impacto, a dona Maria Ruiz me pegou pela mão e perguntou para minha mãe: – Este é teu, Chavita? A mãe respondeu: – Sim, ele é o terceiro. Dona Maria, em tom de lamento disse: – Pena que o velho Julio não conheceu os netos, filhos da Chavita. Ela me abraçou e disse: – Eu trabalhei mais de vinte anos na casa de seu avô, a sua mãe era uma pirralha, danadinha, arteira, briguenta, brigava por qualquer coisa com as irmãs, era os dengues do velho Julio por ser a caçula. Chavita, como fui feliz no tempo que trabalhei com teu pai. Tu casaste muito nova, lembro que naquele dia, o velho quase chorava, e no baile do teu casamento, ele que era tão alegre, não dançou muito, estava sentado, só te olhava, que pena eu sentia dele. Chavita, nós duas éramos muito amigas, te lembras? – Claro, como não hei de lembrar, em todas as cartas que enviava para meu pai, perguntava pela Maria e ele me informou quando iria se casar. – Eu sei, lembro da carta que tu mandaste. Chavita, teu pai foi muito bom para mim, foi ele que me deu o enxoval, o vestido de casamento, a festa, foi ele quem pagou tudo, estava alegre na festa, dançou toda à noite, que tristeza de madrugada quando o baile terminou. Dois dias depois viajamos para o Porto e nunca mais tornei a ver o velho. Mas chega de reminiscências, disse dona Maria, falemos do presente e um pouco do futuro. A mãe perguntou à dona Maria para quem levava tanta mercadoria e ela respondeu: – Chavita, é este o meu ganha-pão. Meu marido vive com outra e esta é a forma que tenho de ganhar algum dinheiro para me sustentar, velha como estou, ninguém me dá serviço. A mãe perguntou: – E a senhora ganha bem? – Chavita, se não é por tanto que me surrupiam, até que seria bom demais. Eu saio do Porto na sexta-feira e chego no povo à tardinha, durmo no hotel e no sábado faço as compras. À medida que vou comprando, vou amontoando as compras num determinado lugar, mas enquanto saio a comprar outras coisas, ao voltar, encontro os sacos rasgados pelos pirralhos para levar o aipim, as batatas e tudo o que mais podem, às vezes levam até os cachos inteiros de plátanos, e são esses pequenos roubos que diminuem o lucro. No domingo, pego o trem de regresso. Quando chego ao Porto, meu filho caçula, o Angelito, está me esperando na estação. Na segunda-feira ele me ajuda nas entregas e nas vendas, só que enquanto vou nalgum freguês, ele vende alguma mercadoria, se faz de bobo e não me entrega o dinheiro, ou às vezes me dá só a metade, quando muito. Meu próprio ex-marido é outro que quer ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 115 pagar a mercadoria ao preço que ele quer, e quando eu não quero lhe vender, ele chega bonzinho, e até paga adiantado. Essa é a minha vida, Chavita, para poder sobreviver e para poder ter meu dinheirinho. Este trabalho não me cansa e até que eu gosto. Meus filhos estão todos casados, o Julio tem dois filhos, ele é o mais velho; o segundo, Santiago, também tem dois; Daniel, o terceiro, por enquanto tem um; a Inês, a filha mulher, tem um filho de meses; o único solteiro é o Angelito, o caçula, só que ao invés de me ajudar, às vezes me dá até prejuízo. Chavita, eu tinha um guri muito bonzinho, com menos idade que o teu, era muito esperto, cuidava da mercadoria, me ajudava, viajava comigo, e eu lhe pagava vinte e cinco centavos por semana, livres, e dependendo do lucro, às vezes lhe dava até três centavos. Ajudou-me durante três meses, depois teve de ir à escola e perdi meu ajudante, com ele nem o próprio Angelito conseguia me roubar. Eu escutava a conversa delas e pensava: será que ela não me daria essa vaga? Mas não me atrevia a lhe perguntar nada, para não interromper a conversa. Em determinado momento, uma amiga da mãe passou por ela, se cumprimentaram e começaram a conversar. Eu aproveitei para perguntar à dona Maria: – Será que a senhora não gostaria que eu trabalhasse com a senhora? Eu poderia viajar e cuidar da mercadoria. – Mas será que a Chavita vai te deixar? Contei-lhe que viajava com Manolo e o que vendíamos. A mãe voltou e dona Maria disse para ela: – Chava, teu filho quer viajar comigo, será que tu deixas? Prontamente a mãe respondeu que sim, contando minhas viagens com Manolo. Dona Maria ficou muito contente e eu muito mais. – Maria, não vou deixar ele ir agora, para não ir só com essa muda de roupa e também porque estamos esperando meu sobrinho e ele quer conhecer todos os seus primos. Na sexta-feira que vem estaremos lhe esperando, e ele poderá viajar com a senhora. Elas continuaram nas suas reminiscências. O sino bateu anunciando a chegada do trem que estava atrasado pela queda da barreira e onde deveria vir meu primo. Os rostos dos passageiros estavam sorridentes, nada de mortos e feridos como se comentava. Um passageiro conversava com um familiar que lhe esperava e lhe dizia: – Não, o maquinista parou o trem longe da barreira. Entre o tumulto dos passageiros, e bem levantado, vimos um letreiro que dizia: “Tia Isabel, sou seu sobrinho Walter Mário”. Corremos, abrindo cancha entre os passageiros que chegavam e os que subiam no trem. Quando a mãe conseguiu vê-lo, disse: – Ele é meu sobrinho, é muito parecido com meu pai. Ele reconheceu minha mãe e sorriu. Abraçaram-se, me abraçou, não quis que nós carregássemos as malas, chamou um carregador. O apresentamos à dona Maria. Ele comentou que muito se falava dela em casa, sobretudo as tias, lembravam dos bailes, das festas em casa, e ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 116 muito mais. Dona Maria quase chorou. Despedimo-nos dela, prometendolhe estar na estação na sexta-feira seguinte. Enquanto caminhávamos, meu primo disse para a mãe: – Tia, eu sei do ranchinho onde a senhora mora, segundo a senhora explicou para minha mãe na sua carta, só que eu gostaria de dormir esta noite na sua casa, porque queria conhecer meus primos e lhes entregar algumas coisinhas que minhas tias lhes mandaram, e também minha mãe. Quando chegamos em casa, meu irmão Marino tinha pronto o almoço, e a mesa estava bem arrumadinha. Enquanto almoçávamos, o primo nos contava as novidades sobre os conhecidos da mãe, as amigas do tempo da sua juventude, as que ainda viviam e as que já haviam morrido. Lembro da admiração da mãe ao saber que algumas pessoas, que já eram idosas quando ela ainda era criança, e ainda viviam. A mãe se lamentou muito ao saber daquelas pessoas que quando ela era adolescente, elas eram crianças, e já tinham falecido. Apesar do primo ser um rapaz novo, se notava que estava cansado. O sol já não iluminava mais o planeta terra e uma certa escuridão nos envolvia, quando o primo pediu para tomar banho. Parece piada, porém o que melhor tínhamos em casa, era o banho, apesar da pobreza, a mãe lhe emprestou um par de chinelos, conto esta parte porque merece ser contada. Aconteceu que quando o primo tirou os sapatos, ficou pela casa um fedor de chulé que nem o diabo suportava, todos sentimos, porém ficamos em silêncio e tratando de não respirar. Quando o primo saiu do quarto para ir ao banheiro, Marino, que era capaz de fazer franjas na cabeça de uma caveira, pegou um pano e tapou os sapatos, chegando perto deles tapava o nariz com os dedos, fazendo gestos que nos faziam rir. Na hora de dormir, Marino e Tulio foram à casa da Romélia; Hugo, meu quarto irmão, foi dormir na casa da madrinha, que morava perto; o quinto foi dormir na casa do Mudinho, que era com quem sempre brincava. Eu fui dormir na casa do Gratiniano, a mãe ficou em casa com minhas duas irmãs e o primo que dormiu na nossa cama. Tudo isto tinha sido previsto pela mãe durante a semana. No dia seguinte, segunda-feira, cheguei cedo em casa, a mãe e o primo já estavam acordados, o primo já estava vestido. Uma vez nós estarmos prontos, tomamos o café e fomos levar o primo na universidade. Lá foi recebido, estavam lhe esperando, e quando já estava alojado, nos despedimos. Poucas vezes nos veio visitar, a mãe era quem sempre ia vêlo. Naquela noite, após o primo ter ido para a universidade, Marino nos fez rir às gargalhadas, fazendo micagem a respeito do chulé do primo. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 117 Secretário de dona Maria Na sexta-feira a mãe e eu estávamos na estação à espera de dona Maria de Ruiz. Meu coração pulava de alegria, a minha sacolinha era a mesma de quando viajava com Manolo, com igual conteúdo e as mesmas observações: o remédio nos olhos, o asseio, e tudo aquilo que já sabemos. Na chegada do trem, de longe enxergamos dona Maria na janela do vagão com os olhos bem arregalados, parecia nervosa, podia ser pela expectativa. Quando nos viu, deu a impressão que se acalmou, nos sorriu e desceu junto com os demais passageiros, nos abraçou, parecia feliz, conversou muito pouco com a mãe porque minutos depois batia a sineta anunciando a partida do trem. Despedimo-nos da mãe e o trem começou sua marcha lenta, a mãe do lado de fora parecia que era ela quem se distanciava e que o trem estava parado. Ela me abençoava, vi seus lábios se mexer, talvez dizendo: – Senhor, abençoa meu filho, ou podia ser a Santa Sara Kaly, a santa do meu pai, para me abençoar, como era de costume sempre ao nos despedirmos. À tardinha chegamos na cidade, que não me era estranho, já tinha estado ali com Manolo e tínhamos trabalhado perto do mercado. Saímos da estação carregados de bolsas e fomos direto para o hotel. Era o mesmo que estive com Manolo, o pessoal me reconheceu, e curiosos ao ver-me desempenhando minha nova profissão, perguntaram por Manolo e Carolina. Todos ficaram lastimando quando lhes contei o triste fim de Carolina. Marcelo era um senhor alto, forte, sarará, e fazia o mesmo comércio que dona Maria, também vendia no Porto. Ao encontrar dona Maria, se cumprimentaram carinhosamente, eram muito amigos, a maior parte das vezes viajavam juntos. Marcelo tinha me visto trabalhando na praça, me cumprimentou de forma engraçada e a seguir me perguntou por Carolina, a cobra, também lhe contei da morte dela. Quando Marcelo soube que eu cuidaria das mercadorias de dona Maria, teve a idéia de deixar as compras dele perto das dela e eu cuidaria das duas. Dona Maria concordou e eu também. No dia seguinte os dois amontoavam as compras e eu ficava cuidando. Em determinado momento, dois rapazes passaram olhando a mercadoria e a mim, de forma estranha. Calculei que fossem alguns dos que roubavam. Minutos depois passaram três e senti o perigo, quando se afastaram me armei com um arsenal de pedras e fiquei com uma em cada mão, as restantes as coloquei de forma estratégica, quando passaram, um deles disse para os outros: – Esse garoto é parecido com aquele da cobra, outro disse, acho até que é ele mesmo, e ficaram me olhando. Como eu fixava meus olhos neles, eles desapareceram. Dona Maria voltou com um senhor, trazia um saco com alguma coisa, era um vendedor que lhe entregava a mercadoria no lugar onde ela ia ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 118 amontoando tudo e assim ficava perto da estação. Marcelo também amontoava sua mercadoria junto da nossa e eu também cuidava. Uma vez terminadas as compras, nós três ficávamos esperando que abrissem a estação para carregar as mercadorias nos vagões, eram muitas pessoas que viviam deste tipo de negócio. Nós três estávamos junto das compras e vi que passavam umas meninas, me olhavam, riam e diziam: – Sim, é ele. Eu olhava para elas e elas olhavam para mim e riam, até que desapareceram. Quase no mesmo momento, ia passando uma senhora segurando um garoto pela mão, quando ele me viu, soltou-se da mão da mãe e começou a tentar caminhar com as mãos, porém caía, ele insistia, dava dois, às vezes três passos e tornava a cair. A mãe do menino me olhava e sorria, em seguida me fez um sinal de tchau, e o garoto, enquanto se limpava as mãos, também me fez o mesmo sinal, eu respondi para os dois da mesma forma. Dona Maria disse para Marcelo: – Este filho da Chavita é famoso por aqui. Guardadas todas as mercadorias no vagão de carga, o guarda chaveou as portas, quando o relógio batia às quatorze horas e trinta minutos. Os nossos estômagos roncavam de fome, dona Maria disse: – Vamos almoçar, meu filho. Marcelo veio junto, se notava que ele era um bom amigo. Vendo que dona Maria era uma senhora de idade e eu um garoto ainda, sempre estava nos cuidando e auxiliando em tudo. Nem dona Maria e Marcelo sabiam que meu apelido era Negrinho, ou Negro. Enquanto almoçávamos, Marcelo disse para dona Maria: – Hoje o nosso lucro foi bom, não nos rasgaram os sacos, nem roubaram mercadoria. Onde foi que a senhora arranjou este secretário que deu tão boa cobertura às nossas mercadorias? Ela respondeu: – Ele é filho de uma amiga que conheci ainda criança, trabalhei na casa do pai dela, entrei moça e saí só quando me casei. Foi o pai dela que bancou desde o vestido de noiva até a festa, lembro que ele dançou muito alegre toda a noite, porém de madrugada, na despedida, ele silenciou, me abraçou, não disse uma palavra, abaixou a cabeça e eu acho que algumas lágrimas saltaram de seus olhos. E eu que nem me importei, nem via a hora de estar nos braços de meu marido, eu era apaixonada por ele. Muito tempo depois e já no meu lar, quando tinha passado o fogo da lua de mel e meu marido começou a trabalhar e eu ficava sozinha em casa, comecei a sentir falta daquela casa, da bagunça que fazíamos com os filhos do velho Julio, como ele era chamado. A mãe dele, disse, assinalando para mim, era uma pirralhinha, sempre estava grudada em mim, eu a levava para todos os lugares onde eu ia. Quando ia à minha casa ver minha mãe e minhas irmãs e não a levava, todos perguntavam: – O que é da tua filha? Chava era a caçula, era os dengues do velho Julio. Um dia pedi para meu marido me levar para visitá-los. Lembro como se fosse hoje, que bagunça, que alegria na minha chegada, avisaram ao velho Julio, ele era o Prefeito naquele tempo, e ele largou a Prefeitura e veio me ver. A Chavita já estava ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 119 mocinha e estava namorando, já para noivar, e como quando criança, ficou todo tempo ao meu lado: que lembranças!, suspirou dona Maria. Lembro também que quando voltamos para casa, meu marido me disse: – Que prestígio tu tens naquela casa, que até o senhor Prefeito largou a Prefeitura para te ver! Ele, todo orgulhoso, contava para os amigos. Que tempo lindo! Ela calou, ficou olhando para o chão e depois disse: – De repente, meu marido se apaixonou por outra e me largou, me deixando com cinco filhos, que consegui criar e educar, graças a Deus. Aqui parou a conversa e fomos para o hotel para descansar, só que eu fiquei matutando: meu avô Prefeito, minha mãe nunca falou dele para nós. Aos domingos o trem saía mais cedo, às sete horas, porque ia parando em todas as estações para ir descarregando as mercadorias de algumas vendedoras, iguais à dona Maria Ruiz. Cedo já estávamos acordados, tomamos um cafezinho no hotel. Uma vez na estação fomos subindo no trem e pegando o banco, minutos depois apareceu o Marcelo e sentou-se perto de nós. De repente, começaram a subir os passageiros correndo, mães puxando os filhos. Uma senhora entrou com uma criança no colo, outras três iam caminhando, o marido trazia numa mão um pequeno, caminhando, e na outra mão uma mala, e pendurada no ombro, uma bolsa. A mulher, além de levar a criança no colo, também levava uma mala. Outra senhora entrou, seguida por dois rapazes, e atrás deles vinha um cachorro, quando um dos rapazes viu o cachorro, pegou-o pela coleira e o puxou para fora do trem, deu um coice nele e gritou: vai embora, e ameaçou lhe jogar uma pedra, o cachorro correu até a porta da estação e de lá ficou olhando para o trem. A bagunça era infernal, era criança chorando, outra gritando, pai e mãe mandando os filhos calarem, eu só olhava aquele tumulto e escutava aquela bagunça. De repente, tudo começou a ficar em silêncio, na parte de fora o barulho era das máquinas que iam de frente e voltavam de ré e por outros trilhos, quando todos já estavam calmos, se ouviu um violão, era um jovem cego que começou a tocar e a cantar um pasillo colombiano, até que o cara cantava bonito. Terminada a segunda canção, pedia para os ouvintes uma ajuda, quase todas as pessoas davam um troquinho, quando o cego chegou perto de nós, pela fala reconheceu o Marcelo e dona Maria, e lhes agradecendo de forma especial lhes disse: – Senhor Marcelo e dona Maria, vocês como sempre, muito gentis. Perto da saída tocou e cantou mais uma, se despediu de todos e agradeceu novamente. De longe se ouvia seu violão e sua voz, tocando e cantando noutro vagão. Minutos depois o trem começou sua lenta marcha, tudo estava calmo, se ouviu o choramingar de uma criança, a mãe deu o seio e ela silenciou. Dentro do vagão e também os passageiros do lado de fora pareciam mudos, se ouvindo só o barulho do trem, já atingindo a sua ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 120 velocidade normal. Agora o barulho era apenas de alguns dorminhocos que formavam uma sinfonia de roncos, uns roncavam em “si”, outros em “dó” bemol, alguns ainda conseguiam roncar em oitavas acima e outros em tons graves, oitavas abaixo. Descobrindo um avô Advogado e Prefeito Eu continuava com meu cérebro ocupado pensando: meu avô Prefeito! Isto me parecia algo grandioso, neto de um Prefeito! Pena não ter vivido com ele naquele tempo, não tê-lo conhecido. Por momentos olhava para dona Maria, ela continuava firme, acordada, por vezes parecia lembrar de alguma coisa, gesticulava, pronunciava algumas palavras, olhava para fora, sabia de cor os lugares por onde estávamos passando e os que passaríamos, os bosques, as pontes, os casarios. Olhou-me, levantou-se e me disse: – Vou ao banheiro, só que antes dela entrar, uma menina entrou. Ela esperou na porta, a menina não demorou, eu sentado, pensava e me dizia: quando dona Maria voltar, vou lhe perguntar o que é Prefeito, e porque meu avô era Prefeito. Quando ela voltou e sentou-se, antes de arrepender-me, ataquei: – Dona Maria, o que é ser Prefeito? Ela me respondeu: – Prefeito é quem governa o município, é como se ele mandasse nessa cidade ou povo. – E meu avô mandava? – Sim, meu filho. Eu insistia nas minhas perguntas e ela me explicava tudo, só que eu pouco entendia, quando lhe perguntei: – E como foi que ele tornou-se Prefeito? Ela respondeu: – Seu avô era um bom advogado, defendia as causas de ricos e pobres, quando os pobres não tinham dinheiro para lhe pagar, ele não lhes cobrava, mesmo que ganhasse as causas, e quase sempre ganhava, era considerado muito inteligente. Quase todo povo gostava dele, até os ricos eram seus amigos, foi por isso que quando houve eleições para Prefeito, ele ganhou, e com ampla vantagem. Quando terminou o período dele como Prefeito, houve novas eleições, pela Constituição ele não poderia se candidatar novamente. Embora não tenha se candidatado como ninguém se apresentou como candidato, o povo votou nele. As autoridades da capital não aceitaram, porque feria a Constituição. O Presidente da República mandou uma delegação de autoridades e políticos para fazer uma nova eleição e empossar outro candidato. Seu avô os recebeu muito bem e através da rádio local pedia para o povo tratar bem os visitantes, que eram enviados do governo. Eles escolheram como candidato um tal que era presidente de não sei que diabo daí do povo. Ele aceitou, mas contaram que o povo votou nele em obediência ao velho Julio, só que na hora de assumir, e no momento de assinar, para surpresa dos presentes, passou a caneta para seu avô, para ele assinar. E dirigindo-se às autoridades locais e às enviadas do governo, disse: – Senhores, eu renuncio ao cargo ao qual fui eleito e passo o cargo ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 121 para Sua Excelência, o senhor Prefeito, Dr. Julio Cabeça, que assim é a vontade do nosso povo, que de forma democrática votou nele na eleição oficial, sem nenhum voto contra e sem a intervenção dele em propaganda política. Contam que ele falou bem alto e disse: – Pela vontade do povo ele continuará sendo nosso amado Prefeito! Eu era muito novinha, mas ainda me lembro, porque em todo lugar por onde a gente passava só se falava nisso. No jornal local saiu a notícia em letras grandes, junto da foto do velho Julio, com o renunciante e as demais autoridades. Os jornais que vinham da capital e do estado falavam do acontecimento inédito. Em todos estava a foto do velho Julio. A gente ligava o rádio e as notícias eram dadas como um grande acontecimento, e sempre se ouvindo o nome do excelentíssimo senhor Prefeito, Dr. Julio Cabeça. Dona Maria abaixou a cabeça, ficou pensativa, parecia se lembrar de alguma coisa. Mas eu não parei, ataquei de novo: – E como foi que a senhora conseguiu trabalhar lá no vô? – É que meu pai era pescador, eram quatro companheiros. Eles saíam de noite a pescar com redes e voltavam de madrugada e durante a manhã o peixe era vendido e o dinheiro repartido. Nós éramos pobres, porém com o trabalho do pai, nada nos faltava e até algumas vezes íamos ao cinema, éramos três irmãs, eu era a caçula, mesmo sendo pobres, éramos muito felizes. Não eram todas as noites que eles saíam a pescar, mas quando saíam tratavam de sair com várias barcas, em algumas iam quatro pescadores, em outras três, nas maiores iam até dez e todas voltavam cheias de peixe. Como me lembro de tudo isso! As histórias de dona Maria Uma madrugada, disse dona Maria, bateram na porta de nossa casa. Todos nós acordamos e ouvimos vozes que gritavam: – Dona Berta... A mãe abriu a porta, as pessoas falavam, mas nós não entendíamos nada. Lá de fora a mãe gritou: – Já volto, filhas, e saiu. Nós ficamos acordadas, não conseguimos dormir mais. Fazíamos conjecturas, estávamos nervosas, as minhas irmãs prepararam um café, só que não conseguíamos engolir. Esperamos ansiosos o retorno da mãe e do pai. Comentávamos o porquê de nos terem acordado e levado a mãe de madrugada. Estávamos nessa inquietude quando ouvimos a mãe que vinha chorando, em altos brados. Amigos a traziam, entraram e a sentaram no sofá e no meio do pranto, nos disse: – Minhas filhas, o pai morreu, e o mais triste é que morreu afogado, um homem que nadava como um peixe. Vistam-se filhas, que ele está no necrotério. Dona Maria se emocionou, e com esforço disse: – Como choramos nesse dia! ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 122 Em tudo que era jornal saía: ”Tragédia em alto mar mata mais de vinte e cinco pescadores nas costas do Pacífico. Temporal quebra e afunda embarcações em várias partes do país”. No necrotério se ouvia o pranto por todo lado. Do meu povoado, seis morreram. Quando trouxeram o pai, nós avançamos sobre ele, a mãe o acariciava, tinha a cabeça e o rosto cheio de ferimentos, os médicos nos informaram que a morte foi ocasionada pelas batidas, provavelmente quando a onda virou a embarcação é que pode ter recebido as batidas. Eu ainda era uma criança, porém desta cena nunca esqueci. O trem continuava a marcha, e dona Maria estava muito triste. Eu olhava seu rosto, as suas pupilas estavam molhadas, pouco faltava para as lágrimas saltar fora, eu sentia pena daquela velhinha, gostaria que ela não continuasse falando, só que a curiosidade por saber mais do meu avô era muito forte, e ela, sem perder a meada da conversa, continuou a me dizer: – Seu avô foi um homem incansável. Naquele tempo, ele já era Prefeito, foi ele que organizou o enterro de todos, os feridos foram para o hospital, o enterro dos mortos foi por conta da Prefeitura, as coroas, os caixões, o enterro todo ele pagou. É por isso e por muito mais que o povo nunca esqueceu dele. O povo ficou arrasado com aquela tragédia, ninguém ligava o rádio, os bares, os cafés todos ficaram fechados, o silêncio era profundo, parecia uma cidade fantasma, sem habitantes. O luto decretado pelo senhor Prefeito foi por dois dias e só depois de uma semana que o ostracismo lentamente foi passando. Seu avô se preocupou muito com os que ficaram órfãos de pai. Naquela época havia quatro indústrias, uma era a que produzia Tanino, duas processadoras de peixe e uma serraria, todas vendiam para o interior e para o exterior do país, todas elas ajudaram de uma forma ou de outra os que perderam familiares. Digame meu filho, se é possível esquecer seu avô! Quando tudo estava calmo, numa tarde, ele apareceu na nossa casa para informar à mãe que as minhas duas irmãs estavam empregadas em dois grupos escolares do município e poderiam estudar ali mesmo. Recebemos esta notícia com tanta alegria que você nem imagina, as minhas irmãs estavam mesmo à procura de emprego, a mãe já estava trabalhando. Em seguida ele se dirigiu para a mãe e disse: – Se a senhora quiser e a Maria gostar, ela vai para minha casa e viverá como se fosse minha filha. Eu pulei de alegria, eu já admirava aquela casa, sempre que passava em frente a ela, ficava olhando, eu gostava dessa família sem a conhecer. Até ali tudo bem, por último, da pasta que sempre carregava consigo, tirou uns papeis. Desta cena sempre lembro, mesmo agora velha que estou. Ele disse: – Berta, este ranchinho eu comprei para a senhora, aqui está a escritura, é seu, não precisa mais pagar aluguel, e enquanto eu for Prefeito, não precisa pagar imposto. A mãe desandou a chorar, éramos as quatro chorando, não sabíamos como agradecer tanta bondade de parte do senhor Prefeito. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 123 Ficou combinado que eu poderia ir a qualquer momento, em qualquer dia, que a sua família estaria me esperando. No dia seguinte, e após alguns conselhos por parte da mãe, ela me levou. Eu tinha dez anos incompletos, casei com vinte e nove. Nessa casa vivi muito feliz, era tratada como se eu fosse da família, a Chavita era a menor da casa. Eu adorava cuidar dela, eu a penteava, banhava, vestia, ela era grudada em mim. Quando as suas tias iam aos bailes, que seu avô as levava, nós duas ficávamos em casa com a empregada e quando eu já estava na idade de ir aos bailes, às vezes não ia, para não deixar a Chavita só com a empregada. Eu sempre a levava para a escola quando ela estava no primário. Eu estava fazendo o secundário num liceu e de manhã, a deixava na escola e me dirigia ao liceu. Como ela terminava a aula primeiro, eu saía correndo para pegá-la e a encontrava sentadinha num banco que estava no pátio da escola me esperando. Que saudades, como me lembro! Saíamos na rua brincando como duas molecas. Antes dos quinze anos, seu avô já a deixou ir aos bailes, então nós duas sempre íamos a todos. A dona Marcelina eu não conheci. Perguntei: – Quem era ela? – Ela era sua avó, que morreu quando a Chavita tinha um aninho. O velho Julio criou sua mãe com muito carinho, muito cuidado e educação. Ele criou e educou todas as suas filhas, ele teve só um filho homem, o mais velho, o Jacobo, que era músico e foi para os Estados Unidos dirigir uma orquestra. Quem conheci foi a sua bisavó. Nunca soube o nome dela, porque todos a chamavam de mamita. Até o velho Julio, ao invés de chamar de mãe, também a chamava de mamita. Ela era teimosa que nem uma mula, nunca quis morar com o velho Julio e as netas, morava sozinha numa casa que tinha só um quarto e uma cozinha, o banheiro era no fundo do terreno, tinha um forno de barro onde assava o pão e saía a vender. Muita gente gostava do pão que ela fazia e sempre compravam. Um dia, seu próprio filho, seu avô, a botou na cadeia. Eu fiquei apavorado, perguntei para dona Maria, já que não podia acreditar que, segundo ela, meu avô, que era tão bom, como poderia ser, que o próprio filho, mandasse para a cadeia a própria mãe? – Por que, dona Maria? – É que naquele tempo, várias pessoas faziam pão em casa, e bem quentinho, colocavam num cesto e saíam a vender, e o povo adorava esses pães quentinhos. Só que naqueles dias, quase todas as ruas estavam esburacadas porque estavam abrindo valos para instalar o esgoto cloacal. A terra estava toda solta e nas tardes, com a brisa do mar, essa poeira se levantava, e como o velho se preocupava muito com a saúde, então se reuniram na Prefeitura e concordaram em não deixar vender os pães naqueles cestos, porque a poeira penetrava pelas fendas, e a população que consumia aquele pão, futuramente poderia apresentar problemas de saúde. Então mandaram fabricar uma espécie de caixa envidraçada pelos lados e com a tampa também de vidro, só que esta ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 124 tampa, ao mesmo tempo era menor que a caixa, que mal dava para retirar um pão, e com um garfo de aço inox. A caixa tinha um cinto para ser pendurado entre o ombro e o pescoço, colocaram uma de amostra na Prefeitura. Naquele tempo, três policiais saíam, um com um bumbo, outro com um cornetim e o terceiro lia o decreto, chegavam a determinadas esquinas, tocavam para chamar a atenção do público, uma vez com bastante gente reunida, liam o decreto. Isto já tinha sido feito várias vezes e muitos dos vendedores tinham feito suas caixas conforme a amostra. Dona Maria continuou contando as histórias: O senhor Prefeito, que costumava sair todas as tardes para ver o serviço das ruas em andamento, encontrou a mãe (mamita senhora) vendendo pão na cesta e o velho ficou que era uma fera, chamou a mãe, e em tom ríspido lhe disse: – Mamita senhora, porque não obedece a lei? Não sabe que está proibido vender pão em cesto, para preservar a sua própria saúde e do nosso povo? Não vê quanta poeira, ela se gruda no pão e seus fregueses podem adoecer! Se a senhora não tem dinheiro para fazer a caixa, porque não me pediu? – Dinheiro eu tenho, só que não quis fazer a tal da caixa. – Então a senhora desafia a autoridade? Os que estavam presentes, e muita gente estava reunida dando fé ao que estava acontecendo, ouviram que ela respondeu de forma grosseira: – Como o senhor Prefeito queira entender. E ele disse: – Ah, é assim, e chamou um policial dos que lhe acompanhavam e lhe disse: – Senhor guarda, pegue aquela cesta e leve para o convento e diga para as freiras que é bom esquentar bastante antes de comer. Chamou outro policial e lhe disse: – Senhor policial, pegue minha mamita senhora e entregue na delegacia para ela ficar detida durante vinte e quatro horas. Diga ao senhor Delegado que fui eu mesmo que a detive por desobedecer a lei, diga também que ela é minha mãe, a quem quero muito, amo, adoro, a quem devo a vida, só que a esta altura, a lei começa a ser cumprida de dentro de casa. Eu escutava atento, e dona Maria continuava, em seguida me disse: – Naquele tempo, quando alguém era pego por algum delito cometido, o policial se algemava junto com o preso para levá-lo para a delegacia. O guarda, que conhecia a mamita senhora e sabia que ela era a mãe do Prefeito, falou: – Senhor Prefeito, lhe devo muito respeito, tanto ao senhor como à sua senhora mãe, e quase chorando lhe diz, por favor, me permita que não a leve algemada! O velho, que ainda não lhe tinha passado a raiva, respondeu: – Leve-a como o senhor quiser, o importante é que a leve. O guarda a enganchou no braço e como um par de namorados, saiu em direção à delegacia. Como tinha se amontoado muita gente, alguns seguiam atrás e outros ficaram. Quando o guarda chegou na delegacia com a mãe do Prefeito o Delegado ficou mudo, não conseguia pronunciar uma palavra, gaguejava, não sabia o que fazer, não acreditava no que o policial lhe informava, se levantava, se sentava, colocava as mãos no rosto. O guarda impaciente disse: – A ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 125 mamita senhora está entregue. E se retirou. O senhor Prefeito sem se abalar, de forma alguma, continuou revisando as obras. A notícia se espalhou por toda a cidade, uns opinavam a favor do Prefeito, outros não aceitavam saber que a mamita senhora fora presa pelo próprio filho. No dia seguinte, a notícia saiu no jornal da cidade e em todos os jornais do país, em letras grandes e em primeira página: ”Prefeito manda prender a própria mãe por desrespeito à lei”. Eu vibrava e queria que ela continuasse. Dona Maria disse: – É claro que algumas pessoas não concordavam com a atitude do velho filho, mas a maior parte estava de acordo. Quando as netas (suas tias) souberam do acontecido, correram à delegacia para lhe levar colchão, roupa de cama e comida. O senhor delegado a tratava não como detenta, e sim como se fosse a própria mãe, era mamita por aqui e mamita por lá e nos momentos livres sentava-se junto dela e conversava coisas que não tinha nada a ver com o acontecido. No caso do velho Julio, nada se comentava, ele era muito respeitado e uma ordem dele era cumprida à risca. Na Prefeitura nada se comentou, nem na Câmara, e muito menos na Assembléia. Às dezesseis horas e dez minutos do dia seguinte, completaramse vinte e quatro horas da pena. Vestida, penteada e perfumada pelas netas, saía da cadeia a mamita senhora. O próprio Delegado a levou até a porta, abraçado a ela e a apertou contra o peito, dando-lhe um beijo na testa e se despedindo. Acompanhada pelas netas, por muitas amigas que a esperavam na porta e muitos curiosos, não faltando o famoso fotógrafo, onde muitos gritavam: “viva mamita senhora”, ela sorria e abanava, mais parecendo uma heroína do que uma contraventora. O velho não compareceu, as netas queriam levá-la para a casa delas, mas ela não quis, preferiu ir para seu ranchinho. Depois daquele dia, nunca mais se viu ela vendendo pães. Eu estava muito feliz por ter ouvido a história do meu avô e de minha bisavó. Fechava os olhos e via os dois, governando o povo, mesmo que nunca tivesse visto os dois. Dona Maria tirou de uma bolsa que sempre carregava consigo, dois canecos de metal que estavam enrolados num pano, ela quis ir lavá-los, mas eu não deixei e fui eu mesmo. Minutos depois o trem parava numa estação, onde muitos vendedores ofereciam seus produtos. Uma senhora se aproximou e disse: – Dona Maria, vai querer café? – Sim, minha filha, duas canecas. Ela me olhou e disse: – Estou louca de fome... Eu, na emoção de ouvir a história do meu avô, nem me dei conta que meu estômago também roncava de fome. Além do café, ela comprou arepas (broas de milho), chicarrón (toucinho frito) e patacones (banana da terra frita, amassada e refrita). Que gostoso comer com fome o que a gente gosta! O Marcelo, perto de nós, também comia, tinha roncado no caminho a maior parte do tempo. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 126 O barulho dos vendedores, compradores e das crianças que gritavam, porque não queriam esperar sua vez de receber sua parte, foi diminuindo, à medida que o trem recomeçava sua lenta marcha. Alguns começaram a roncar e outros continuavam comendo. Através da janela, a gente via que por uma estrada de chão, paralela à linha do trem, iam homens de bicicleta, mais adiante uma carroça cheia de mercadoria, de repente passamos por um caminhão todo velho e caindo aos pedaços, carregado com lenha, de vez em quando aparecia uma casinha, pintada de branco, com telhas vermelhas, às vezes com alguém na porta vendo o trem passar, noutras ninguém, em uma destas casas, que tinha uma calçada estreita, estava umas cinco crianças sem sapatos, seminuas, só de shortezinhos bem curtinhos e que abanavam com as duas mãos levantadas, pulando e gritando na passagem do trem. Não se via mais ruazinhas transversais, agora era só campo, onde tinha homens e mulheres com chapéus de palha, agachados, talvez capinando ou plantando. Tudo isto ia desaparecendo à medida que o trem avançava. Agora só se viam campos, alguns com pouco gado, e bem longe, outros com bastante gado, amontoado, ruminando e nem davam importância à passagem do trem. Olhei pela janela do Marcelo e era o mesmo panorama. De pronto, deu a impressão que escurecia, mas não, a sensação de escuridão estava sendo ocasionada por árvores altas dos dois lados. De vez em quando parecia clarear, era quando atravessávamos alguma pontezinha sobre algum riachozinho, que passava transversalmente, depois continuava o arvoredo por muitos quilômetros. Práticas políticas de Seu Júlio De vez em quando eu dava uma olhada para dona Maria para ver se ela estava cochilando, porém sempre estava de olhos bem arregalados. Quando ela me olhou, aproveitei para perguntar: – Dona Maria, minhas tias não ficaram zangadas com o vô por ele ter prendido a própria mãe? Respondeu-me: – Meu filho, naquela época eu ainda não estava lá, me lembro porque o barulho foi grande e meu pai era fanático pelo velho Julio. Ele comprava todos os dias o jornal e comentava os acontecimentos com minha mãe, que também era fanática por ele, só a minha irmã mais velha é que não gostava dele, mas quando o nosso pai morreu e ele a colocou a trabalhar na escola, aí virou a casaca. Quando o convidavam para alguma festinha na escola, ela fazia questão de recitar uma poesia para homenageá-lo. No dia em que anunciou que a cidade teria água encanada, era a minha irmã que mais o abençoava, porque ninguém tinha água encanada, a gente se abastecia de uma bica, que não estava muito perto de casa. O que sempre ouvi dizer é que o velho Julio foi até a capital ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 127 pedir dinheiro para o Presidente. Ele não queria emprestado, queria dado, porque não queria deixar dívida para o próximo Prefeito. Ele pedia para tudo que era empresário, fazia bailes, sorteios, concursos, para angariar fundos para que a água chegasse até dentro das casas. Até o governo dos Estados Unidos, dizem, mandou técnicos para ampliar a hidráulica, e tudo de graça. Eu lembro das ruas todas esburacadas, dos canos por tudo quanto era canto, hidrômetros, torneiras grandes e pequenas. Sempre se falou que foi a melhor época que se viveu em nossa cidade em todas as cinco gestões que ele foi Prefeito. Colocou esgoto cloacal e pluvial e serviço hidráulico em todas as casas, e até nas vilas mais distantes do município calçou ruas. Tinha serviço para todos que ali chegassem, querendo trabalhar, e não foi pouca gente que veio, famílias inteiras se mudaram para lá. Entre elas chegou uma senhora que era viúva e tinha um filho, que parecia ser muito educado. Ela chegou trabalhando com um turco, para vender louças para banheiros, pias, torneiras, wc, entre outras mercadorias. Estefita era seu nome, ela alugou uma casinha num bairro pobre, e seu filho começou a ter amizades com rapazes de conduta duvidosa. Estefita trabalhava todo dia, porque o turco vendia muito, como todos queriam fazer seu banheiro, colocar azulejos nas cozinhas, nos pisos, agora com água encanada era muito gostoso tomar banho e fazer as necessidades em banheiros confortáveis e bonitos, era só apertar um botão e a água lavava o wc. O povo estava acostumado a fazer as necessidades numa casinha feita nos fundos do terreno. Abriam um buraco, e quando este enchia, o tapavam e abriam outro e colocavam duas tábuas, uma de cada lado do buraco, deixando uma abertura no centro e ali acocados faziam as necessidades. Agora, com a chegada da civilização e o luxo, se justificava que todos queriam se modernizar. Dona Estefita, que ganhava por comissão nas vendas, ficava até a saída do último freguês, isto já na entrada da noite. O filho aproveitava para malandrear com os amigos e já quase nem frequentava a escola. Uma noite, no momento que Estefita entrava em casa, apareceu o dono de uma loja de cosméticos para dizer-lhe que seu filho tinha furtado uns vidros de loção, batons e outras coisas. Estefita ficou quase louca ao ouvir o que o homem lhe dizia. Chamou o filho, que ao ver o dono da loja, tinha se escondido, interpelou o rapaz e em seu bolso encontrou o corpo do delito. Devolveu tudo para o dono, e quando o homem saiu, amarrou as mãos do rapaz numa árvore que havia nos fundos da casa, e com um relho de couro, começou a lhe bater enfurecida, gritando impropérios ao rapaz, que berrava. Os vizinhos correram para ver de que se tratava e encontraram Estefita encarniçada, batendo de forma violenta no filho. Levaram-na para o quarto e lhe deram um chá, outros pegaram o rapaz e levaram-no para o hospital, quase desmaiado e todo ensanguentado. O delegado de plantão, ao ver o estado do rapaz, e informado que a ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 128 causadora era a própria mãe, mandou prendê-la e colocá-la atrás das grades. Como em toda cidade pequena, a notícia rapidamente se espalhou. Estefita continuava presa e o rapaz, com as feridas quase cicatrizadas, foi mandado para casa do juizado de menores. Estefita escreveu uma carta para o turco, pedindo-lhe o favor de contratar um advogado, que quando saísse da cadeia, lhe pagaria, só que a mulher do turco, que era a administradora do negócio, se negou. Ela tinha ciúmes de Estefita, seguramente porque era uma mulher jovem, bonita e simpática. Estefita prometia pagar tudo uma vez livre, mas a resposta era sempre negativa. Informada da benevolência do senhor Prefeito, lhe escreveu pedindo para tirar o filho do juizado e interná-lo no colégio dos padres, que quando ela fosse libertada, lhe pagaria, que por favor confiasse nela, pelo amor de Deus! Quando o velho recebeu a carta, no mesmo momento foi para a cadeia, conversou com Estefita, e regressando para casa nos pediu para acompanhá-lo até o juizado. Depois de ler a carta, o juiz entregou o rapaz, e em seguida o levamos ao internato onde poderia estudar e sair pronto para a universidade. No dia seguinte, o velho se apresentou ao juiz para lhe informar que era o advogado de Estefita. No dia da audiência, ele não quis que fôssemos. Contaram-nos que a sala estava cheia de gente e sem muitas delongas Estefita foi absolvida. Ela chegou em casa chorando, e o velho, todo feliz, nos convidou para irmos todos ver o filho de Estefita (Elvio). O padre nos mandou entrar numa sala bem ampla e nos sentamos nos sofás existentes. Nunca esqueço daquela cena, quando Elvio viu a mãe, correu, abraçando-se nela e aos prantos, em voz alta, disse: – Mãezinha, me perdoa, juro por Deus que nunca mais vou te fazer sofrer. Ela também chorava e lhe dizia: – Meu filho, sou eu que devo te pedir perdão, quase te mato meu filho, olha tuas mãozinhas, cheias de cicatrizes. Todas nós também chorávamos. O turco queria que ela voltasse a trabalhar na loja, só que a mulher dele não quis, tinha muito ciúme da Estefita. Então teu avô lhe conseguiu trabalho na Prefeitura, como aos sábados a Prefeitura não funcionava e na loja do turco era dia de muito movimento, ela ia dar uma mãozinha. A mulher do turco ficava sempre de olho nela, terminado o movimento lhe pagavam o dia trabalhado. No domingo nos ajudava a limpar a casa, a cozinhar, era muito prendada, sabia fazer doces, bolos, tortas, salgados, etc. A casa era muito grande, o pátio também, só tínhamos tempo aos sábados e domingos, durante a semana estudávamos, mas com a ajuda dela no domingo, cedo terminávamos tudo. O velho queria lhe dar algum dinheiro, porém ela de forma alguma recebia. O serviço na Prefeitura ela fazia de bicicleta e já estava muito conhecida. Um dia o velho nos reuniu a todas para dizer que talvez se casasse com a Estefita e que só faltava a nossa aprovação. O grito de ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 129 alegria foi geral, até eu que não era filha dele, vibrei com a notícia. O Elvio, que uma vez por mês saía do internato, e quando caía no domingo, passava conosco, adorava o velho e sempre ficava perto dele. O velho aproveitou a presença de Elvio para comunicar-lhe o seu desejo. Estava um pouco temeroso se ele iria aceitar ou não. Quando ouviu o velho Julio lhe dizer, deu um grito de alegria, pulou da cadeira onde estava, correu e abraçou-o, lhe dando um beijo na testa. Estefita, nervosa, estava escondida na cozinha. A trouxemos quase carregada e a colocamos perto do Julio, fazendo com que se abraçassem. O casamento teve que ser feito na rua e num altar improvisado, tal era a multidão. Quando Estefita ficou grávida, as más línguas comentavam que aquele filho não podia ser do senhor Prefeito e sim do turco, que era um homem mais novo, pois o velho beirava os sessenta e cinco anos, enquanto o turco tinha quarenta e oito anos. Estefita completou quarenta anos no mesmo dia que ganhou a criança, nunca tinha visto guri nascer tão parecido com o pai como este Era o velho Julio em miniatura. Agora os comentários eram para as línguas mudas. Alguns diziam: – Bem feito, Deus não castiga nem com pedra nem com pau, ali está a pinta do velho Julio. O coitado do turco sempre dizia: – Nunca toquei Tafita, nem lhe falei nada, minha mulher era que tinha ciúmes dela. Tafita mulher muito séria, agora bonita isso sim é verdade. O trem tinha parado em várias estações, mas eu nem me importei, queria só ouvir falar de meu avô. No horário normal chegamos na minha cidade, a mãe tinha me dito que nesse domingo ela não estaria na estação, era muito longe para vir a pé e muito caro para vir de coche, eu nem a procurei, como realmente não estava. Muita gente desceu e outros tantos subiram, a permanência foi pouca, quando ninguém mais subia o trem novamente começou sua marcha. Talvez uma hora depois o trem parava na primeira estação, ali vendiam comida enrolada em folhas de bananeira, dona Maria comprou três e mais dois canecos de salada de frutas, tirou talheres da bolsa e duas tabuinhas, onde apoiamos a comida, e que almoço gostoso! Minutos depois, peguei no sono e dormi os famosos dez minutos. Quando acordei, dona Maria continuava firme, de olhos bem abertos, apesar de seus sessenta e dois anos. Perguntei: – Dona Maria, cadê minhas tias e primos? – Meu filho, muitas ainda estão vivas, o velho Julio morreu com oitenta e sete anos, a Estefita morreu dois anos após inaugurarem o busto do velho Julio na praça central. Quando ela falou do busto, me lembrei de um tal de Eli, que tinha um pequeno defeito no pé direito e uma cicatriz no lado direito da cara, em sentido vertical, saindo da sobrancelha atravessando a pálpebra até o começo da bochecha. Apareceu um dia muito feliz na nossa casa, contente de encontrar a minha mãe, ela também ficou muito feliz de ver o seu ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 130 conterrâneo, pois se conheciam desde crianças. O Eli morava perto da nossa casa, só que no bairro organizado. Um dia, andando na rua com meu irmão Túlio, o encontramos, e quando nos viu perguntou: – Vocês são filhos da Chava? – Sim senhor, respondemos. Ele nos disse: – Vocês têm que ir limpar o busto do seu avô que está todo cheio de mato. A esta altura não entendemos nada. Ao chegarmos em casa contamos para a mãe, ela ficou furiosa e mandou chamar o tal de Eli. Quando ele chegou em nossa casa, a mãe toda brava lhe perguntou: – Qual é essa de mandar limpar o busto do meu pai? Se meus filhos nunca moraram lá e nem conheceram o avô, quem tem que limpar são vocês que usufruíram as bondades do meu pai, não meus filhos, que nem sequer lhes contei quem foi meu pai. O Eli saiu rengueando muito mais do que quando chegou, nunca mais foi visto por nós. A má fama de Angelito As casas, ruas transversais, morrinhos, pedacinhos de mato que passavam lentamente, me eram conhecidos, claro, era a parte que já tinha estado com Manolo! Uma vez em terra, apareceu um rapaz que dona Maria me apresentou para ele: – É meu filho caçula, o Angelito. Ele me cumprimentou utilizando o vocabulário de um verdadeiro malandro, começou me tratando como se fôssemos velhos amigos. De vez em quando colocava seu braço nos meus ombros, seus gestos eram estranhos para mim, mexia com as mãos e com o corpo de forma que eu nunca tinha visto, às vezes ria sem motivo algum, estalava os dedos junto com um barulho formado entre a língua e a gengiva (ichiiiú). Puxava um tremendo carretão com as rodas de automóvel, carregamos tudo nele, ele puxava, dona Maria e eu ajudávamos empurrando. Quando chegamos em casa, entrou diretamente num puxado tipo garagem, e o que me chamou a atenção foi que o Angelito entrou com o carretão num tipo de piscina feito no chão, cheio de água misturada com óleo queimado de carro. Perguntei para que servia isso. Informaram-me que o cheiro das frutas e verduras chamava muitos ratos e que numa só noite faziam muitos destroços, rasgavam as bolsas e roíam tudo e dessa forma eles não se atreviam a passar, e o que se aventurava morria afogado, às vezes até encontravam dois ou três mortos. Naquela noite dona Maria me colocou a dormir no quarto do Angelito, que era um tremendo pilantra, fumava escondido de dona Maria, tinha várias revistas pornográficas escondidas, lenços manchados de batom numa caixinha de papelão, tinha um soutien e duas calcinhas sujas, de mulher, debaixo do colchão, tinha três pôsteres grandes de mulheres totalmente nuas que estavam pendurados perto da cama e me disse: – ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 131 Agora vou dormir com as minhas mulheres. No dia seguinte, antes que dona Maria nos acordasse, eu já tinha visitado a sala, a cozinha, o pátio, e já tinha tomado banho. Ela se levantou, preparou o café bem reforçado, daqueles que eu mais gostava: café com leite, arepas, patacones e chicarrón. Em seguida saímos para o mercado. Angelito puxando o carretão e nós empurrando. Uma vez no mercado, dona Maria e o Marcelo, que também estava com sua mercadoria ali perto, me disseram que cuidasse muito porque havia alguns rapazes que gostavam de roubar as mercadorias, qualquer coisa era para eu gritar “ladrão!”. Mas o que era mais gato era o Angelito, ele não conseguiu levar nada. O Angelito tentou com vários estratagemas me afastar das mercadorias, mas não conseguiu me convencer. Depois de meia hora os dois já tinham terminado suas mercadorias. Naquele dia conheci o ex-marido de dona Maria, era um crioulo alto, forte, com dentes brancos, a dentadura era completa, ele pechinchava os preços das coisas para dona Maria, mas terminava pagando o preço pedido. Ajudei-o a levar uma das bolsas, conheci a nova esposa, era uma sarará forte e bonita, seu corpo era três vezes o de dona Maria, ele me deu cinco centavos de gorjeta por ter lhe ajudado. Dona Maria, Angelito e eu almoçamos ali mesmo no mercado. Marcelo me deu dois centavos, se despediu de nós e foi almoçar em casa. Depois de termos almoçado, carregamos os sacos no carretão do Angelito e fomos para casa. Após dormir, fiz minha faxina corporal. O Angelito me convidou para ir dar uma volta no cais do porto, não foi do agrado de dona Maria. Ela lhe fez mil recomendações, onde lhe pedia, por favor, cuida deste menino, ele é como se fosse meu sobrinho, fui criada pelo avô dele como se fosse filha, me deu tudo, me educou, foi de lá da casa dele que saí casada com teu pai, por favor, não me vai dar dor de cabeça! Angelito lhe prometeu que só iríamos vender umas bananas nos navios. No mercado fomos direto onde vendiam as bananas, só que ao nos aproximarmos da banca onde tinha umas bananas bem maduras, a dona da banca não queria o Angelito perto e nem lhe vender as bananas. Angelito lhe disse, me sinalizando, as bananas são para ele, ela pediu o dinheiro adiantado, ele pagou e ela lhe entregou as bananas. Quando estávamos saindo da banca, ouvi que uma senhora disse para a outra: – Ele já conseguiu outro guri para torná-lo safado como ele, como fez com o outro que por aí anda todo cheio de cicatrizes de tanto apanhar. Fiz-me de bobo, como se não tinha escutado. Eu prometi a mim mesmo me cuidar e ver até onde ele queria me levar. Quando chegamos no portão da aduana o guarda não o deixou entrar e lhe disse: – O guri pode entrar a vender, você não. A estas alturas não estava entendendo mais nada, o guarda me disse: – Vai meu filho, vai, e lhe perguntei: – E onde vendo? Ele me perguntou: – Você nunca vendeu aqui dentro? – Não ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 132 senhor, respondi. – Olha aqui, você vai até aquele navio que é americano, os gringos lhe trocam uma penca desta banana por duas carteiras de cigarros, tem que ser, preste atenção: Kool, Camel ou Chesterfill. Quanto lhe custou cada penca? – Cinco centavos, respondi. – Você pode vender aqui fora as carteiras de cigarro por dez centavos cada, as compram bem rápido. Vai lá e quando voltar nos deixa uma carteirinha de presente. Angelito de longe me olhava. Eu entrei correndo e repetindo Kool, Camel, Chesterfill, quando me aproximei do navio um cara me perguntou: – Quanto? Respondi: – Duas carteiras de cigarro por cada penca, Kool, Camel ou Chester. Acho que não demorei dez minutos e estavam todas trocadas por dez carteiras, eram cinco pencas. Quando cheguei na portaria, o guarda conferiu e me disse: – Tá certo, preste atenção, sempre que vier vender é bom que dê de presente uma carteira para quem estiver de plantão e assim sempre vão lhe deixar entrar. Cuide-se daquele safado que andava com você. Ele é seu parente? – Não senhor, recém ontem o conheci. – Cuide-se, ele é tramposo, salafrário, sem vergonha, safado, ladrão, não ande com ele porque vão pensar que você é igual. – Sim senhor. Agradeci ao guarda e lhe disse: – Hoje vou ter que dar as carteiras para ele porque foi ele que pagou as bananas. – Tá, mas não se deixe enganar por esse sem vergonha, ele terá que, ao menos, lhe dar a metade, porque foi você que fez o negócio. – Sim senhor, respondi e saí correndo à procura do Angelito. Ele estava me esperando na praça, todo sorridente. Entreguei-lhe as nove carteiras, me deu uma e disse: – Se quiser vender ela, em qualquer bar a compram até por doze centavos. No primeiro bar que entramos as vendemos por doze centavos cada. Guardou uma para ele. Não me importei com o que ele me deu, porém jurei que não andaria mais com ele. Voltamos para casa, dona Maria nos esperava com a janta pronta, estava escurecendo e preocupada por mim, sabendo o filho que tinha. A janta era arroz, patacones e peixe ao molho. Adorei, pois gosto muito de peixe. Após o jantar dona Maria me convidou para visitar a filha Inês que tinha ganho neném naqueles dias. No caminho ela me pediu para eu não pegar os vícios do Angelito, que quando ela se separou do marido ele ficou com o filho, mas ele terminou pegando os mesmos costumes do pai, que se enriqueceu roubando os clientes, ajudado pela tetona, era dessa forma que ela denominava a rival que lhe tirou o marido. E continuou: – Várias vezes o Angelito foi pego pelo pai roubando dinheiro do caixa. A última vez lhe deu uma surra e o tocou para fora de casa. Ele apareceu chorando e me contou da surra que levara, só que não me contou o porquê e eu nem quis saber, claro que sabendo dos seus vícios, tratamos de endireitá-lo, com meus outros filhos, só que já cresceu torto e está difícil de endireitar, embora tenha melhorado bastante. É claro que a culpa é do próprio pai, ele roubava os fregueses e o Angelito roubava dele, até que não aguentou ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 133 mais ser roubado e tocou-o de casa. É o caso que ladrão não gosta de ser roubado, em todo caso ele é meu filho e rezo para que um dia se regenere, peço para você, pelo amor de Deus não pegar os vícios dele. Eu estava com certo medo de que o Angelito fosse me tirar o dinheiro, então disse para dona Maria que no dia seguinte viajaria para minha casa e que na sexta-feira lhe esperaria na estação. Ela concordou e no dia seguinte ela mesma me levou à estação, comprou a passagem e me pagou o prometido. Ao meio-dia cheguei na minha cidade, como levava algumas coisas que dona Maria mandara para a mãe, tive de ir caminhando sem poder correr, como era meu costume. Um dia descobri que um ônibus saía do porto à minha cidade às quinze horas. Era um pouco mais caro que de trem e demorava menos, então para evitar o Angelito, uma vez terminadas as vendas, almoçava e em seguida saía para o terminal rodoviário levando o que era mandado para a mãe. A viagem demorava quatro horas, o ônibus chegava às dezenove horas no terminal, dali até minha casa, caminhando, demorava uma hora e dez minutos. A mãe ia me esperar ou meu irmão Marino. O Angelito várias vezes me convidou para irmos vender bananas nos navios e eu sempre me esquivava, lhe dizendo que não podia porque à noite a mãe estava me esperando no terminal. Ele insistiu de várias formas e promessas de dividirmos as carteiras e eu nunca aceitei. Quando chegou o dia de voltar à escola, eu não quis ir, embora a mãe e a Romélia insistissem e as convenci dizendo: – Este ano vou tratar de ficar bom para o ano que vem conseguir estudar durante todo o ano. Aceitaram meu fraco argumento. Fazia quase três meses que viajava com dona Maria e o Marcelo. Ultimamente dona Maria andava um pouco adoentada. Lembrome que no domingo quando chegamos ao porto e já em casa, foi direto para a cama. Em seguida mandou chamar Marcelo para pedir-lhe que entregasse a mercadoria para os fregueses dela, a mim pediu que cuidasse para que o Angelito não pegasse nada. No dia seguinte, o Marcelo se desdobrou atendendo os fregueses dele e os de dona Maria, eu de olho no Angelito, que não conseguiu levar nada. À noite, em casa, contei sobre a doença de dona Maria para a mãe e senti que ela ficou triste. Novas andanças Nas terças, quartas e quintas eu ajudava o Polaco, lubrificava os parafusos, fazia roscas nos que estavam batidos, os separava por bitola e como já sabia o preço de algumas coisas, até vendia para os que iam comprar. Como sempre, nas sextas esperava dona Maria e viajávamos junto com Marcelo. Só naquela última sexta-feira não veio, procurei ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 134 Marcelo e também não vi. Voltei para casa um pouco triste, pensando que não ganharia meus quarenta centavos, que somados aos dez que ganhava do Polaco eram cinquenta. À noite, conversando com a mãe, lhe falei que tinha vontade de ir no dia seguinte ao porto ver dona Maria. – Você sozinho? – Sim mãe, me encosto em alguma senhora ou senhor que está só e assim não pago passagem. Foi bastante conversa, até que convenci a mãe a me deixar ir ver dona Maria. Pouco antes das onze horas já estava almoçando, disse para a mãe que não precisava me levar à estação, que eu ia correndo, ademais era longe para ela ir e voltar a pé. Concordou, me entregou a minha já acostumada e famosa bolsinha, que além das mudas e demais utensílios de sempre tinha colocado uma garrafa de café, algumas arepas e patacones. Depois do beijo e a bênção que sempre me dava, saí correndo. Algum tempo depois de estar na estação chegou o trem que ia para o porto. Uma vez dentro do trem, tive sorte porque no primeiro vagão de passageiros que subi encontrei uma senhora que viajava com uma menina e um menino, que ocupavam um banco, e no outro banco estava a senhora com mais um carrinho de bebê onde estava uma criança, portanto sobrava um lugar. Olhei para a criancinha e comecei a lhe fazer carinho e a criancinha sorria. Seguiram-se as perguntas da senhora: – Com quem você está viajando? Respondi que viajava sozinho e sem passagem, e que ia visitar a senhora com quem trabalhava, que achava que estava doente. Ela me pediu para sentar junto com eles e assim não me pediram a passagem. Nossa conversa continuou, me contou que morava no porto, que tinha vindo à cidade visitar parentes. Na primeira estação que o trem parou, comprou pamonhas e me deu uma, eu a convidei com arepa e patacones. Ela não quis, ao contrário, comprou mais uma pamonha e a colocou na minha bolsa. A viagem foi muito gostosa, divertida, conversamos, rimos, enquanto o pequeno dormia. A viagem foi tão boa que num abrir e fechar de olhos já estávamos no porto. Uma vez fora da estação nos despedimos com muito carinho, eles iam no sentido norte e eu em sentido sul. Saí correndo. Quando cheguei em casa de dona Maria não tinha ninguém, todas as portas estavam chaveadas. Sentei-me um pouco e em seguida saí correndo para a casa da filha de dona Maria, a Inês, e também não tinha ninguém. Dei uma volta pelo mercado, eram mais de dezessete horas, estava tudo fechado. Retornei para a casa de dona Maria, pensando que o Angelito viria dormir, sentei-me encostado na porta de entrada, as casas vizinhas estavam todas com suas portas fechadas e tudo em volta estava em profundo silêncio. Senti fome, retirei da minha bolsa café, patacones e arepas, guardei um pouco de café e a pamonha para o dia seguinte. Continuei sentado, na esperança do Angelito aparecer a dormir. A um casal que ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 135 entrava na casa da frente perguntei por dona Maria e a resposta foi muito rápida. Sem esperar novas perguntas, me responderam que os filhos a tinham levado para a casa de um deles. Eu só conhecia o Angelito e a Inês, e ela não estava em casa. Quando estava agradecendo ao casal apareceu um rapaz, talvez filho deles e me disse: – O Angelito daqui a pouco virá, porque ele está dormindo ali. Agradeci e contente fui me sentar de novo na frente da porta. As luzes da rua estavam acesas, mas pareciam libélulas, umas distanciadas das outras, tudo era silêncio, nem os cachorros latiam, o céu era bem escuro, dando margem a se destacar o brilho das estrelas. Senti pulsar com força meu coração a lembrar o Antônio, uma mistura de saudades com tristeza, em seguida lembrei Manolo, sua esposa, a filhinha deles e com misto de alegria e tristeza aparecia a Carolina. Aparece o Polaco e dona Elga, minha bicicleta, meus amigos, Dr. Corrêa, Gratiniano, minha querida e amada Romélia e sua mãe, os vizinhos, enxergo Oscar caminhando sem problemas e o mudinho falando comigo, eu ia na minha bicicleta visitando todos meus amigos quando vi o André que vinha correndo e parou na minha frente e eu, para não o atropelar, travei e não consegui me equilibrar e caí. Com o esforço de me levantar acordei, estava era sonhando, tinha pego no sono e não sabia em que momento havia colocado minha bolsa como travesseiro. Levantei-me, olhei para todos os lados, era cedo demais, além disso era domingo, na rua nenhum ser humano, de longe só se ouvia o bater dos sinos de alguma igreja. Para quebrar a monotonia daquele silêncio, daquela solidão, passou um gato correndo a toda velocidade e a poucos metros atrás dele vinha um cachorro no seu encalço, o gato pulou para cima dum muro e em seguida o vi em cima do telhado. O cachorro, que não conseguiu pegar o gato, regressou, passou pela minha frente, nem sequer olhou para mim. Mais adiante entrou numa casa, deu meia volta, se enrolou e ali ficou dormindo. Como não tinha água para me lavar, peguei a escova de dentes, coloquei creme, me escovei e enxaguei com café, peguei a toalha e passei pelo rosto, me penteei mesmo com o cabelo seco, e por último tomei o resto do café com a pamonha, pensei: O Angelito não apareceu. Peguei minha bolsa e saí em direção ao mercado, meu pensamento era chegar até o ex-marido de dona Maria e lhe perguntar por ela. A minha grande alegria foi quando entrei no mercado e me encontrei com Marcelo com toda mercadoria. Recebeu-me com muito carinho, me apresentou o filho de uns quinze ou dezesseis anos, me disse que nas férias da escola ele sempre lhe ajudava, e disse também que teve que viajar na quinta-feira de ônibus, regressando no sábado, chegando à noite, para hoje poder visitar dona Maria que estava internada no hospital. Contei-lhe toda minha aventura desde o sábado quando saí de casa. Lamentou, eu podia ter dormido na sua casa que tinha tanto lugar! Perguntei-lhe se me deixariam entrar no ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 136 hospital para ver dona Maria, ele me respondeu que sim, só que ainda era muito cedo. Perguntei-lhe também pelo Angelito e ele me disse: – Aquele sem-vergonha, faz pouco que passou por aqui todo bêbado, seguro que recém iria dormir. Eu pedi licença para ir no banheiro do mercado, mas ele disse: – Não, não, esses banheiros são muito sujos, e pediu para o filho me levar à sua casa. A sua senhora me recebeu com muito carinho, apenas entrei ela me disse: – Então, você que é o Orlando? Eram os únicos que me chamavam pelo meu nome. O rapaz voltou para o mercado, eu que estava um pouco apurado pedi licença para a senhora para ir ao banheiro, fiz as necessidades e aproveitei para tomar banho, me escovei de verdade, mudei de roupa, agora me sentia bem e perfumado com a minha água de colônia barata. Quando entrei na cozinha para lhe agradecer, a primeira coisa que falou foi: – Hum, que cheiroso! A mesa estava preparada, me convidou a tomar chocolate com leite, chicarrón e pão de queijo. Que banquete! Enquanto tomávamos café me contou que o marido sempre falava de mim, que eu era um menino muito bom e educado e que ele gostava muito de mim. Ela pediu que me cuidasse daquele tal do Angelito, que era um tremendo safado, conversamos bastante, depois me despedi agradecendo muito e voltei ao mercado. Marcelo não estava e o filho me demonstrou muita amizade, depois de conversar um pouco lhe disse da vontade que tinha de ver dona Maria. Ele me pediu que esperasse o pai, que ele me acompanharia até o hospital. Marcelo não tardou e autorizou o filho a me levar e retornar ligeiro, saímos correndo. Uma vez no hospital ele voltou e eu entrei. Uma enfermeira me levou onde estava dona Maria, ela estava na cama encostada em travesseiros e quase sentada, quando me viu evocou a Deus e a muitos outros santos, me abraçou e em um tom lastimoso me disse: – Cadê minha Chavita? Sentado na cama, ela me tinha encostado sobre seu colo, e me perguntava coisas e eu lhe respondia, também lhe contei que tinha dormido na porta da sua casa esperando o Angelito e ele não tinha vindo. Ela se lamentou dizendo: – Aquele infeliz do meu ex-marido e aquela desgraçada da tetuda estragaram meu filho, entortaram tanto que velha como estou já não consigo endireitar. No meio da conversa ela me disse que talvez não poderia viajar mais e que os filhos também não queriam, que iria morar com o filho Julio porque a sua nora Marina era quem mais cuidava dela, que a única condição que ela tinha imposto era que não queria ser tratada com dinheiro do ex-marido e da tetuda porque esse era dinheiro sujo. Eles também me impuseram uma cláusula, era ficar longe do Angelito porque eles já o tinham tirado várias vezes da cadeia e que se fosse preso mais uma vez, lá iria apodrecer. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 137 Bananas por cigarro americano Enquanto conversávamos, eu pensava que a mãe poderia estar preocupada e eu iria pedir a passagem de volta para Marcelo. Comecei a me despedir e no momento de sair, dona Maria disse: – Meu filho, abra aquela gaveta do bidê, ali tem dez centavos, pegue-os. Agradeci-lhe e saí descansado porque já tinha a passagem. Na rua comecei a pensar: Voltar para casa só com quatro centavos e sem comer nada até a noite? Aí me perguntei: Será que vou vender bananas? Será que os caras me compram? Fui até o cais do porto, quem estava lá de guarda era o mesmo do outro dia. Fiquei contente, quando me viu me reconheceu e perguntou: – Não vai trazer bananas? – Claro que sim. Ele mesmo disse: – Têm vários Santas, não perca tempo. Senti a força que o guarda me dava, saí correndo, cheguei até a senhora da primeira vez e ela também me reconheceu. Pedi-lhe para me vender duas pencas, ela me perguntou se ia vender no porto, respondi que sim. Ela me disse: – Duas pencas é pouco, leve mais, que eles lhe compram tudo. Eu lhe disse que só tinha doze centavos. – Ta bom, leve três por doze centavos, lhe agradeci. Quando ia saindo, me chamou e disse: – Meu filho, vou lhe fiar duas pencas e me paga depois com uma carteira de Camel. – Sim senhora, e saí rápido. Mal cheguei no porto, vários caras me chamaram e pegaram as pencas. Parecia que eles já conheciam como eram feitas as trocas, porque cada um já foi me dando as duas carteiras de cigarros. Uns me deram Camel, outros Chester e também Kool. O guarda se admirou com a rapidez da troca, quis lhe dar duas carteiras, ele aceitou só uma. Perguntei-lhe porque era só na base da troca e não por dinheiro. Explicou-me que para eles comprarem as bananas teriam que sair do porto e às vezes não lhes era permitido. Tinham que trocar a moeda deles pela nossa, e em todas essas voltas eles perdiam dinheiro, e na troca por bananas lhes saía muito barato, porque na terra deles uma carteira de cigarros lhes custava, de acordo com o câmbio, no máximo dois centavos. Saí feliz com minhas nove carteiras de cigarros. Peguei doze centavos por cada uma sem muita demora. Guardei uma de Camel para a senhora das bananas. Quando estava saindo do bar, um senhor me chamou, era o dono do bar, que disse: – Meu garoto, quando trouxer cigarros, venda-os para mim, eu lhe compro todos e lhe dou mais uma gorjetinha. Confirmei e me despedi. Quando entreguei os cigarros para a senhora, ela me disse que não era só no porto que compravam bananas, nos navios também. Ensinou-me como devia dizer em inglês dez centavos de dólar por cada penca, e por esses dez centavos me dariam quinze centavos em moeda nacional. Pegou outras quatro pencas e me disse: – Corra meu filho, vai vender essas, se não conseguir vender, eu as pego de ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 138 novo. Nem precisei ir noutro navio, naquele mesmo me trocaram todas. Na saída o guarda amigo não estava, dei uma carteira para aquele que estava e deixei outra para o guarda amigo. Tinha corrido bastante, estava com muita fome, já não tinha mais chance de pegar o ônibus das quinze horas, poderia pegar o das dezoito horas. O mercado estava fechado, mas na parte de fora tinha umas barracas que vendiam comida. Pedi peixe ao molho, com arroz e patacones. Agora faltava só dormir meus dez minutos, antes porém fui ao banheiro do mercado, que estava na parte de fora, não era tão sujo como tinham me dito. Fiz uma boa faxina geral, voltei para a banca onde tinha comido e falei com a senhora que eu tinha corrido muito. Ela, vendo que eu estava um pouco cansado e que iria dormir na frente da barraca dela, naquele banco, muito gentil ela me disse: – Vai meu filhinho, que daqui eu lhe cuido. Dormi, quando acordei fui ver novamente dona Maria no hospital. Fui me despedir e lhe contar do rendimento que deram seus dez centavos. No hospital, estava os filhos de dona Maria, alguns parentes e amigos e também estava Marcelo, a mulher e o filho. Todos já sabiam que eu tinha dormido na frente da casa de dona Maria e me perguntaram se eu não tinha medo. Respondi que nem sequer me lembrei de ter medo, riram. Agora me sobravam convites para eu dormir quando viesse ao porto. Dona Maria falou: – Quando ele vier ao porto dormirá na casa de meu filho Julio e minha nora Marina, que é onde vou permanecer. Aceitei e lhe disse que ia embora aquela tarde no ônibus das dezoito horas porque a minha mãe deveria estar preocupada, sem saber onde eu andava, mas que no próximo sábado voltaria para negociar com bananas. Sentia que todos simpatizavam comigo, fiquei mais um pouco e logo me despedi, não queria perder o ônibus. Às vinte e três horas e dez minutos estava em casa. A mãe, preocupada, não tinha conciliado o sono. Ainda a alguns metros distante de casa ela reconheceu meus passos e quando cheguei em casa ela estava na porta me esperando. Serviu-me a comida, que estava quentinha em cima do fogão, enquanto meus irmãos dormiam. Nós deitados continuamos conversando, lhe contei como trocava as bananas por cigarros, lhe falei do Angelito e que ninguém gostava dele porque era muito safado, assim mesmo ele é que tinha me mostrado o negócio das bananas. Só me lembro de ter ouvido a mãe me dizer: – Procure fugir dele meu filho, claro, eu tinha pegado no sono. Férias escolares No dia seguinte, como sempre fazia, peguei a minha bicicleta, primeiro fiz as compras dos meus vizinhos, depois visitei o Dr. Corrêa, o Gratiniano, e para a Romélia e a mãe lhes contei o meu novo ganha-pão. Como estavam em férias escolares, à noite, toda a rapaziada se reunia para brincar. Para nenhum deles contei de como trocava bananas por ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 139 cigarros americanos. Algum deles era capaz de se deslocar para o porto e quem sabe até estragar meu negócio. Na terça-feira fui ajudar o Polaco, também na quinta e sexta-feira. No sábado pedi para a mãe trinta centavos que tinha dado para ela guardar, ela me deu os trinta, com mais dez que o Polaco me deu, reuni quarenta centavos e no trem do meio-dia viajei para o porto sem comprar passagem, e para que o cobrador não me pedisse o tíquete, eu me encostava em qualquer adulto. Os cobradores andavam desconfiados, sempre ao lado de alguém diferente, e antes que eles me perguntassem, um dia contei a verdade para um, e acho que este contou para os outros, porque quando me viam no trem, ao contrário de me pedirem a passagem, me olhavam e sorriam. De vez em quando lhes levava uma carteira de cigarros, entregando para quem estivesse de cobrador. Eles à sua vez, às vezes me davam presentes, camisas, meias, bonés ou também pacotes de bolachas ou doces. Quando andava pelas ruas do porto não faltava alguém que já tinha me visto com Manolo e a cobra, mexiam comigo, alguns até faziam perguntas. Um dia, quando fui subir num navio, um estivador que estava descansando num banco em cima do navio, ao me ver chegar com as bananas, começou a mexer comigo e contava para os marinheiros o que ele tinha me visto fazer. Um deles pediu para eu fazer alguma coisa, e não me fiz de rogado. Coloquei as bananas no chão e comecei a fazer tudo o que sabia. Cada número que fazia eles aplaudiam, fiz mágicas também. Um deles, que era o cozinheiro do navio, me perguntou se já tinha almoçado, respondi que não, e ele me convidou para ir até a cozinha comer. Todos aprovaram, mas antes, cada um me deu uma moeda, ou várias de dez, de vinte, os que ficavam com as bananas, ao invés de duas carteiras, me davam duas outras. O capitão, que também estava presente, me deu dez dólares, outros também me deram notas. O cozinheiro, que era um italiano, me serviu vários tipos de comida muito gostosas, coisas que eu nunca tinha comido. Depois de almoçar me pediu para lhe ensinar algumas mágicas, lhe ensinei e dei de presente algumas trucadas que eu mesmo fabricava com baralhos e outra com cigarros. Aprendeu fácil, também aprendeu uma com cordas, era o homem mais feliz que eu já tinha visto. As trucadas aprendia com facilidade, só que as de destreza lhe eram mais difíceis, assim mesmo lhe deixei praticar uma de destreza com uma moeda. Expliquei-lhe que as provas de destreza eram mais bonitas e mais difíceis do público descobrir e imaginar. Conversando, me disse que o navio ia entrar em reparos e que permaneceria mais para o fundo do cais, talvez por uns três meses, porque tinham que consertar filtros de água, fazer várias soldas, tirar ferrugem, pintar, e outros problemas mais. Pediu-me para que na próxima vez que viesse, fosse almoçar no navio, confirmei, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 140 me deu de presente uma jaqueta, um boné e cinco dólares. Eu olhava aquela comida gostosa que tinha sobrado e me lembrava de como minha mãe e irmãos gostariam de experimentar. Para nós era comida rara, me decidi e lhe perguntei se não poderia levar aquela comida, que sobrara, para minha casa. Sem demora pegou uma lata de conservas de cinco litros, a lavou, secou, pegou papel celofane, enrolou pedaços de gelo e colocou no fundo da lata, depois forrou por dentro com o mesmo papel e foi colocando a comida. Primeiro colocava um tipo de comida e separava com o mesmo papel e colocava outro tipo, e por último, na parte de cima, colocou outro pacote com gelo, amarrou bem, e com a mesma corda fez uma alça para eu segurar. Acompanhou-me até a escadaria onde me despedi, prometendo voltar no próximo domingo, feliz, com os bolsos cheios de dinheiro e com muitas carteiras de cigarro. E sem tempo de viajar no ônibus das quinze horas, fui vender algumas carteiras de cigarros, outras guardei para dar de presente. Fui me despedir de dona Maria ela ficou muito contente de me ver, lhe contei e mostrei tudo, e ela me amarrou o dinheiro no bolso da calça. Despedi-me, peguei o ônibus das dezoito horas e às vinte e três horas e dez minutos já estava em casa. Meus irmãos estavam tomando banho e como estavam em férias a mãe lhes dava maior tempo para aproveitar nos jogos. Eu comi a comida que ela tinha me guardado, e a lata ela não destapou, colocou numa bacia até mais da metade com água. Eu me sentia um pouco cansado e fui dormir. Lembro que aos sábados e domingos, também nas férias escolares, a mãe costumava repartir o serviço de casa com meus irmãos, é claro que sempre mudando, e eram repartidos da seguinte forma: Marino deveria cozinhar, Túlio lavar nossa roupa e Hugo arrumar as duas camas e varrer, inclusive o pátio. A mãe lavava a roupa dos fregueses durante o dia e à noite passava, no dia de entrega, algumas vezes eu acompanhava a mãe ou ia com o Marino, ou com quem estava livre. Quando a mãe começava a repartir o serviço de casa eu me escapava, não gostava nada de serviço doméstico, meus irmãos reclamavam da mãe por ela não me dar uma tarefa também. Algumas vezes conseguia ouvir as reclamações, lhe diziam que eu era o dodoizinho dela, outras que era o peixinho, e assim por diante. Lembro uma vez que não consegui fugir com a minha bicicleta quando a mãe começou a repartir o serviço, me escondi na parte de fora da casa, ao lado de uns tijolos, à espera de uma oportunidade para tirar a bicicleta, e ouvi quando lhe reclamaram: – A senhora tem que dar serviço para o Negrinho também, sempre somos nós. Ouvi quando a mãe, com muita calma lhes disse: – Meus filhos, eu não posso obrigar vosso irmão a fazer mais do que ele faz por nós, é ele que traz quase sempre a comida para esta casa, com o dinheiro que ganha também serve para lhes ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 141 comprar roupa, cadernos, livros, lápis, enquanto vocês, todas as noites brincam, ele chega às vezes e vai direto dormir. Por quê? Será que não chega cansado? Quem sabe o esforço que não fará carregando peso nos seus ombrinhos de criança ainda, para trazer esse dinheiro para casa. Às vezes fico imaginando, quem sabe quantas pencas de banana carrega desde o mercado até o cais do porto, que não é perto, e quem sabe quantas vezes ele vai e volta correndo, para ganhar mais, enquanto vocês dormem ele vem chegando, tarde da noite, correndo por esta cidade. Na última noite veio carregando aquela lata com comida, por certo gostosa, não acham? Quando é que nós teríamos condições de comer aquele tipo de comida? Enquanto ele está na rua eu estou rezando e pedindo a Deus e a Santa Sara Kaly para que cuidem de meu filho. Vocês não o enxergam com seus dedinhos cheios de esparadrapos pelas feridas que se faz mexendo nos ferros lá no Polaco para ganhar dez centavos? Ele nunca se queixou e nem nunca foi capaz de me dizer: mãe mande eles também a ganhar dinheirinho. Por que razão vou lhe dar mais uma tarefa? Vocês deveriam era de amar, venerar esse irmão de vocês, já que ele não pode estudar, estudem vocês e se um dia ele precisar da ajuda de vocês, obrigatoriamente deverão de lhe ajudar. E por favor, nunca mais me peçam nada contra ele, vocês não sabem às noites, quando estou passando e calculo que ele já deve estar vindo, largo o ferro e vou até a avenida a lhe esperar, e da alegria que sinto quando vejo ao longe aquele vultinho correndo, naquela penumbra da noite, grito: – Meu filho, é você? – Sim mãe, me grita! Corro para me encontrar mais rápido com ele, voltamos para casa abraçados, eu feliz por estar de novo com meu filho e ele contente me contando tudo que fez durante o dia, meu coração fica aliviado. Em casa lhe sirvo sua comidinha, muitas vezes nem consegue terminar de comer e já está dormindo. Eu continuo passando e olho para ele, fico pensando como lhe impedir, se essa é sua válvula de escape, já que não pode estudar. E recordo às vezes que me disse de como gostaria de ser escritor igual a Cervantes que escreveu Dom Quixote De La Mancha. Não, meus filhos, por favor, não me peçam nada que magoe esse irmão de vocês, brindem-lhe amizade e lhe dêem muito carinho. Acho que Marino estava chorando, porque escutei a mãe lhe dizer: – Não precisa chorar meu filho, você como mais velho, deve dar exemplo para seus outros irmãos e que eles entendam o que lhes acabo de dizer. Ainda estes dias ele me disse que não era para matriculá-lo na escola, que era melhor tentar curá-lo, para no ano que vem poder estudar. Não vou lhe contrariar, pode ser que ele esteja certo. Tudo ficou em silêncio, fazendo de conta que não tinha ouvido nada, aproveitei para entrar em casa, e vendo todos reunidos disse: – Mãe, vamos contar o dinheiro? Marino, a mãe e eu começamos a contar, tudo estava em notas e moedas de dólar, quando tudo foi trocado deu ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 142 quarenta e oito pesos. A mãe, como sempre, agradeceu a Deus e à Santa Sara Kaly. A alegria era grande, o Natal se aproximava e ela poderia comprar roupas, presentes. As viagens nos finais de semana Continuei viajando, pegava o trem no sábado ao meio dia e voltava no domingo no ônibus das dezoito horas, dormia na casa da Marina, mulher do Julio, filho de dona Maria. Ela tinha colocado uma cama no mesmo quarto de dona Maria, à noite conversávamos bastante, me contava muitas coisas do meu avô, das minhas tias, da Estefita e do Elvio, também da mamita senhora, contava dos maiores acontecimentos daquela época e dizia: – Como gostaria que o tempo retrocedesse e de me ver novamente naquela casa onde passei os mais felizes anos da minha vida! Ela quase não podia caminhar, caminhava com muita dificuldade e mesmo assim, após tomar o café, me acompanhava até a porta, me abençoava e desejava bom domingo. O ônibus das dezoito horas chegava à cidade às vinte e duas horas, às vezes minha mãe e Marino estavam me esperando. Sempre regressava com um peso e sessenta centavos, ou um e oitenta, agora trazia também a lata cheia de comida que o cozinheiro italiano do navio sempre me dava. Ultimamente almoçava junto com a tripulação no comedor, eu trazia algumas novas provas que serviam de diversão para todos e não faltava que alguém me desse um presentinho ou mais uma carteira de cigarros. Antes de viajar sempre ia me despedir de dona Maria, conversávamos um pouco e em seguida me dirigia à estação rodoviária. No horário das dezoito horas viajava mais passageiros que no das quinze horas, mas por cheio que estivesse, eu sempre encontrava um cantinho para viajar sentado. Num sábado, para amanhecer de domingo, tinha chovido toda a noite, nas ruas muitas poças de água, era um domingo lúgubre, triste, pouca gente nas ruas, no mercado também pouca gente. Marcelo nos domingos não trabalhava. Atravessei o mercado e comprei as bananas, a dona da banca me cumprimentou com carinho, em determinado momento me perguntou: – Estás vendendo tudo, meu filho? Respondi que sim. Enquanto enrolava as bananas, olhou para o céu e disse: – Hoje é um dia de poucas vendas, quando o tempo está assim, as pessoas não saem de casa. Despedi-me dela. – Deus te abençoe, meu filho, e saí. Passava do meio-dia quando cheguei no navio, entrei no comedor e alguns gritaram: – Orlando, estamos esperando estas bananas. Peguei as carteiras de cigarros e as moedas que alguns me davam, almocei, ensinei novas provas a meu amigo cozinheiro e, ao me despedir, ele me deu a lata cheia de comida. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 143 Acidente de ônibus: salvo milagrosamente Dona Maria, como sempre, se despediu na porta com uma bênção. O ônibus ia com bastante passageiros, calculo que já estávamos viajando há uma hora e meia e sabia que após aquela longa subida, começávamos a descer. Eu estava ansioso. A maior parte dos passageiros dormia, eu acordado controlava a minha latinha de comida, que com uma corda, amarrava na cintura, assim, mesmo se dormisse, não a perderia. Chuviscava e a noite estava preto fosco, não sei o porquê me acompanhava uma certa alegria, pensava na minha bicicleta, no dinheiro que levava, também na comida e as carteiras de cigarros que levava para o Gratiniano e para o Polaco, que eram os dois amigos que fumavam. Lembrava do italiano, como ficou feliz quando lhe dei o baralho trucado, o grito e o salto que deu quando conseguiu com aquele baralho fazer o leque cascata. Estava feliz curtindo meus pensamentos, vendo que o ônibus entrava numa curva, e no mesmo momento, ouvi um ruído forte na parte da frente do ônibus e consegui ver uma quantidade de pedras que caíam do barranco levando o ônibus para o abismo. Vi o cobrador voar e cair fora do ônibus, eu me segurava no banco que estava na minha frente, era gente voando dentro do ônibus, uma senhora passou dando cambalhotas, me pisou com seu salto pontudo do sapato e me feriu o braço. O ônibus descia a ribanceira à alta velocidade, derrubando árvores, mato, e pulando pedras, em seguida o ônibus começou a rodear de lado, era gente voando e caindo fora, eu me segurava firme, o motorista também estava firme segurando-se no banco dele. Numa árvore que estava caída e atravessada, o ônibus deu uma parada violenta e o banco do motorista quebrou, ele saiu voando pelo pára-brisa, o ônibus continuou rodeando e passou por cima do motorista, e quando deu essa cambalhota, o meu banco também rebentou e fui parar na parte de trás do ônibus, onde estava um senhor se segurando no banco que não tinha rebentado. Com a força da cambalhota, bati nele com meu corpo e ele gritou aiiiiiiii... eu caí de cabeça e nada mais vi, nem senti. Ouvia ruídos lentos, distantes, vozes desconhecidas, passos acelerados aumentavam e diminuíam. Às vezes os ruídos também aumentavam, comecei a sentir que eu estava deitado, sentia uma espécie de letargia, pensava que sonhava, que estava sonhando, que talvez não fosse sonho, sentia que me encontrava sobre um colchão macio, parecido com o da Elida, mas a Elida tinha ido embora, o da minha casa não era, ele era duro, aquele da casa da Marina também não era, era um pouco macio, mas não tanto como aquele que eu estava. Apalpava para saber se meus irmãos estavam deitados, eles não estavam, então não estava em ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 144 casa. De repente comecei a sentir que eu estava com a cobra Carolina enrolada no pescoço, e no navio trocando bananas por cigarros. Ouvi que a Carolina me dizia: vamos embora que o Manolo está bêbado, pensei, mas o Manolo não bebe! Gratiniano, esse sim que bebe, me senti no colo da mãe ouvindo meu avô defendendo uma acusada e quando ele parava de falar eu batia palmas. No momento que estava batendo palmas ouvi uma voz que disse: – Ele morreu. Veio à minha mente a lembrança do ônibus, quando estourou o suporte do banco em que eu estava me segurando e caí em cima daquele cara que gritou aiiii... e caí de cabeça no piso do ônibus. Então foi aí que eu morri, por conseguinte eu estou é morto. Onde será que eu estou? No inferno não pode ser, não estou sentindo fogo. Se for no purgatório, a culpa é do meu irmão Marino, por ele ter me levado a fazer todas aquelas trapaças, lembrei das moedas do ralo, das buzinas dos carros, da carne que tirei daquele prato de feijão e de tantas outras que fazíamos. Continuava no sonho pensando: no céu não devo estar porque não ouço vozes de anjos e sons de clarins, e outra, São Pedro não veio falar comigo. Que pena que morri e não pude ser escritor como Cervantes. Neste momento senti que alguém se sentou bruscamente sobre a cama e uma voz feminina me disse: – Vamos meu jovem, não é para dormir mais. Há tempo que me batia levemente nas bochechas, lentamente fui abrindo os olhos, pensei que era São Pedro que vinha falar comigo, meio confuso olhava para a pessoa que estava na minha frente sorridente e me perguntou: – Estás me vendo? – Sim, respondi. Abrindo os dedos e levantando a mão me perguntou: – O que é isto? Respondi: – Sua mão. – Como estou vestida? – De branco. Tirou uma caneta do bolso, e isto o que é? – Uma caneta. – Muito bem, senhorito, me disse. Com muito cuidado me levantou o braço e colocou o termômetro. Curioso como estava, lhe perguntei: – Onde é que estou? – No hospital, perto do lugar onde o ônibus tombou. – Será que a minha mãe sabe? – Deve saber, porque as rádios estão passando esta notícia a todo o momento. – Nós não temos rádio em casa. – Hoje também saiu no jornal, e a sua foto está entre os sobreviventes. Perguntei-lhe pelo motorista e respondeu-me: – Ele morreu. – Eu vi quando ele saiu voando pelo pára-brisa e o carro caiu por cima dele. Quando o meu banco estourou, eu também saí voando, só que para trás do ônibus, e caí em cima de um cara que estava atrás, bem seguro no banco. – Ah ele foi encontrado bem seguro, não queria se soltar do banco tremia e chorava, ele só sofreu algumas escoriações no rosto e nos braços, mas é muito chorão, chora por tudo. Neste momento apareceu outra enfermeira com a minha bolsa e me mostrou o vidrinho com a água e os cálices e perguntou para que era aquela água. Eu lhe expliquei que era para colocar nos olhos na parte da manhã e à noite, e tinha que ficar com os olhos abertos e ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 145 contar até trezentos. Quando quis lhe explicar como eu fazia, não pude me mexer, estava amarrado. Ela me disse que era para eu ficar quietinho porque tinham me feito uma cirurgia do lado esquerdo, porque no raio X da noite anterior, detectaram uma costela quebrada e o médico tinha feito um corte para aplicar um cicatrizante. Não entendi nada, achei que ela estava me engambelando, depois descobri que ela não queria que eu pegasse no sono. Em seguida apareceu outra enfermeira, trazia um pinico raro, tinha um tubo dum lado, em seguida abriu a camisola, separou meus pés, colocou o pinico no meio das pernas e sem me dizer nada, pegou o meu pipi e colocou no tubo do pinico e me pediu para fazer xixi. A verdade é que eu estava com vontade, porém tinha vergonha de pedir para a enfermeira, e a outra veio e solucionou o meu problema, foi embora levando o xixi. Minutos depois ela voltou com uma bandeja com chá e bolachinhas salgadas, a enfermeira que estava comigo me ajudou a tomar o chá sem me mexer muito. Ela tinha me auscultado e visto a minha temperatura, às vezes dizia alguma coisa e em seguida desmentia, entregou minha bolsa para a outra enfermeira e lhe falou alguma coisa que eu não entendi. Quando a enfermeira ia indo com a minha bolsa, eu lhe disse: – Guarde bem a minha bolsa que ali está o dinheiro. Não se preocupe que está tudo bem guardado, em seguida apareceu outra enfermeira, trazia a lata de comida e me perguntou: – Por acaso não sabe de quem é esta lata? – É minha, e o que tem dentro é comida, e fora da geladeira estraga. – Não se preocupe, permanecerá sempre na geladeira, só tiramos as bolsinhas porque tinham um pouco de água, colocamos mais gelo e foi para a geladeira. A enfermeira me fazia muitas perguntas e eu respondia, não tardou muito e apareceu um doutor, ela lhe entregou o papel onde tinha feito anotações enquanto estava comigo. Ele me examinou de forma minuciosa, dirigindo-se à enfermeira lhe disse: – Daqui a uma hora pode trocar os curativos, suspenda o soro e pode deixar livre. Antes de retirar-se me disse: – O senhor está muito bem, vão lhe desamarrar, mas procure se mexer o menos possível. – Sim senhor, respondi. Ao sair, o doutor e a enfermeira trocaram algumas palavras e ele foi embora. Enquanto a enfermeira me tirava a agulha do soro chegou outro doutor, trazia uma pasta, a enfermeira se levantou e ele ocupou o lugar, examinou meus olhos, pingou algumas gotas e com aparelhos que carregava na pasta fez vários exames, falou com a enfermeira e foi embora. Outra enfermeira trouxe um carrinho cheio de vidros, panos, gaze, esparadrapo, etc, e em seguida a enfermeira começou a tirar uma faixa que tinha enrolada na minha cabeça, recém aí eu descobri que estava cheio de curativos, inclusive na cabeça, braços, barriga e pernas. Ela tirava um curativo e já colocava outro, por último tornou a enfaixar a cabeça. Perguntei-lhe o que tinha na cabeça, e ela me respondeu que ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 146 tinha vários ferimentos, inclusive em alguns foi preciso colocar pontos. Levantou-se e me recomendou para tratar de ficar quieto, não demorou e voltou com uma bisnaguinha e começou a pingar nos olhos. Neste momento escutei um berro: – Mãe, ali está ele. E foram chegando perto da enfermeira o meu irmão Marino, que chorava, e a mãe, meio que choramingando, perguntou para a enfermeira: – Como é que está meu filho, por favor? A enfermeira se levantou e numa forma muito alegre respondeu: – Ele está muito bem, já conversamos bastante. Fiquei olhando para a mãe e tive vontade de chorar ao vê-la tão triste. A enfermeira, em tom meio áspero me disse: – Agora não vai chorar, lhe fiz os curativos e não deu um pio, agora que o mano e a mãe estão aqui, tem que dar demonstração de valentia, como até agora deu, ou quer ser igual aquele velho chorão que só incomodou? Ela pediu licença e continuou pingando o remédio nos olhos, em seguida se levantou e começou a conversar com a mãe. Marino carregava um jornal enrolado debaixo do braço, onde estavam as notícias do acidente, eu figurava entre os vivos, mas na foto parecia que estava morto. A enfermeira contava para a mãe que seis pessoas tinham morrido, inclusive o motorista, que foi esmagado pelo próprio ônibus, o cobrador quebrou algumas costelas, uma das pernas, e teve escoriações pelo corpo e na cabeça. Uma senhora grávida estava muito mal na UTI. Nas fotos do jornal aparecia o ônibus semi destruído. Enquanto a mãe conversava com a enfermeira, meu irmão me mostrava as fotos da tragédia, que estavam no jornal, também tinha as fotos dos mortos e dos feridos. No centro de uma das folhas do jornal, e em tamanho grande, se destacava a foto de um homem que, segundo dizia, não parava de chorar, e no hospital era conhecido como chorão. A mãe tinha comprado três jornais diferentes e os doentes pediam emprestado para ver, a enfermeira também pegou um para ler. O doente que estava perto da minha cama começou a rir e mostrou que eu estava numa foto com o nome de Moisés Vasto, e noutra foto o chorão estava com o nome de Orlando. Sorte que só colocaram o nome, foi o momento de maior descontração de todos, doentes e sãos. As risadas não tinham terminado quando vi entrar Gratiniano, acompanhado da esposa e a filha, também trazia dois jornais. Quando me viu disse: – Parece um beduíno com turbante. A enfermeira pedia para eu não me mexer muito, porque tinha vários pontos. Gratiniano ia de cama em cama a cumprimentar os outros doentes e distribuiu os jornais. Até esse momento eu era chamado de Ortega, após a visita do Gratiniano, todos passaram a me chamar de Negrinho. O médico e a enfermeira informaram à mãe que eu teria que ficar mais uns três dias para observação porque tinha levado várias batidas na cabeça e estava ainda fazendo exames. A enfermeira continuava dando ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 147 explicações para a mãe do meu estado, quando vi entrar o Dr. Corrêa e a esposa, e mais atrás Romélia e a mãe, todos com os rostos tristes, mas quando me viram sorrindo, mudaram por completo a fisionomia. Eu estava feliz de ver minha mãe, meu irmão e meus amigos. Gratiniano mexia comigo. Mais de uma hora depois, a enfermeira pediu para que todos se retirassem, porque iam começar a fazer os curativos para os outros doentes e fazer a faxina no salão. Em seguida a enfermeira falou para a mãe que ela poderia retornar tranquila para casa, que não se preocupasse comigo, porque ela estaria toda essa semana de plantão, e me cuidaria. Era para ela voltar só na quarta-feira à tarde, que se não desse nada nos exames, poderia me levar para casa. Entregaram-lhe a lata de comida e a bolsa. Eu pedi para a mãe me deixar cinco carteiras de cigarros, e ela colocou no bidê. A alegria e as risadas do Gratiniano falando do Negrinho gravaram meu apelido a tal ponto que daí por diante o sobrenome Ortega desapareceu, e apareceu o de Negrinho. Reparti os cigarros entre os médicos e as enfermeiras que me atendiam. De vez em quando uma delas chegava e me perguntava se tinha fome ou se sentia alguma dor. Eu nada sentia. No dia seguinte, a enfermeira foi me mostrar umas placas, tipo negativos de raio X e me disse: – Não tem nada nessa cabecinha. No outro dia, quando estava fazendo o curativo, à medida que tirava as vendas e os esparadrapos, ela dizia: – Tá muito bom, amanhã já podes ir para casa. Tudo estava em silêncio, o corre-corre tinha terminado, já estava escuro, a enfermeira que sempre estava me cuidando pegou uma cadeira e sentou-se perto de mim, quando íamos começar a conversar apareceu outra e em seguida outra, ao todo três enfermeiras e um médico. Eles me faziam perguntas, eu lhes falei do Antônio, do Manolo, da cobra Carolina e a forma da sua morte e o porquê, falei de dona Maria de Ruiz, de Gratiniano, do Dr. Correa, também falei de Roméria, de Polaco, da bicicleta e de como a tinha ganho. Contei-lhes da doença dos meus olhos, que me atrapalhavam para poder estudar, falei bastante da minha vida, como ajudava a mãe e do dinheiro que ganhava ultimamente no porto. Escutaram-me atentos, de vez em quando um doente dava um gemido e uma das enfermeiras saía correndo para ver quem era, ia de cama em cama, como não era nada, voltava correndo. Muitos doentes já estavam dormindo, alguns roncavam e soltavam gases bem barulhentos, que mais pareciam motores de dois tempos. Uma das enfermeiras saiu e voltou com um copo de leite quente e bolachinhas doces que achei gostoso. A última a sair foi a minha enfermeira, se despediu, me arrumou, me deu um beijo na testa e foi embora, mas antes fez várias recomendações. Antes de conciliar o sono, passava na minha mente a imagem da mãe com aquela cara triste ao entrar na sala onde eu estava, do meu irmão chorando, e pensei nos meus amigos, que largaram seus afazeres ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 148 só para vir me ver. Eu pensava: como dou trabalho, tanto desgosto para minha mãe, para meus amigos. Aparecia o Antônio e me dizia que se ele estivesse aqui, seguro que nada disso me aconteceria. Mas pensava também, é claro que eu não tenho culpa de tudo o que me acontece. Não foi nada grave. Coitado do motorista, que morreu esmagado. Também ele não teve culpa e nem todos aqueles que morreram e os que estão feridos. E que culpa tem aquela criancinha que ainda está no ventre da mãe e já está sofrendo sem ter visto ainda o mundo. Quantas vezes minha mãe já correu por mim, claro que aquela vez que me feri todo quando o Mudinho quase se afogou, também não foi culpa minha. A única vez que me sinto culpado foi quando subi atrás daquele ônibus e me feri todo. Continuava a pensar. Como meu irmão sempre chora quando alguma coisa me acontece. Será que aquelas safadezas que fazemos, eu e ele nas ruas, Deus não me castiga? E porque ele não é castigado, se é ele quem as inventa? Não me lembro por quanto tempo mais estive pensando. Acordeime quando ouvi vozes, já era dia e fiquei de olhos bem abertos. Em seguida a enfermeira veio me fazer os curativos, mas antes me levou ao banheiro onde, após fazer as necessidades e tomar um rápido banho, voltei para a cama, sempre aos cuidados dela. Em seguida me trouxeram café com leite, pão de queijo e ovo cozido. Sentia-me feliz, a tarde viria minha mãe para me levar para casa. Após o café, me colocou umas pantufas, me pegou na mão e me fez caminhar a passos lentos, depois um pouco acelerados, e depois enganchada em meus braços. Atravessamos um jardim e entramos na casa das freiras, que nos receberam com muito carinho. A enfermeira lhes disse: – Aqui está o Negrinho. Uma das freiras, toda sorridente, me pegou na mão e me levou até a capela. Lá estava um padre que me fez rezar e agradecer a Deus por não ter me acontecido nada grave. Rezamos juntos, em seguida me abençoou. Saímos e a enfermeira me levou a um consultório médico, o doutor me recebeu todo sorridente e nos disse: – O chorão acaba de sair daqui, não tinha nada, só raspõezinhos, era mais de nervos, saiu bem calmo. O doutor me examinou e disse: – Está tudo bem. Assinou um papel, entregou para a enfermeira, nos despedimos e nos dirigimos ao consultório do oftalmologista, e ao entrar ele perguntou: – E como é que está este general? Respondi: – Muito bem. A enfermeira lhe disse: – Ele está pronto para ir embora, em seguida me examinou e também disse: – Está tudo bem. Entregou-me uma caixa com doze bisnagas e disse que não era para usar mais aquela água que o outro médico tinha me dado, só porque era mais barata e o governo dava de presente. Ademais, a bisnaga era um produto novo e mais caro, e essas bisnagas que estava me fornecendo, durariam um ano. Começou a chegar mais gente e nos despedimos. Entramos no salão, eu estava com a bata de doente. Antes de ela ir atender um doente que a chamou, eu lhe ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 149 perguntei se poderia caminhar por fora, respondeu que sim, mas com cuidado e devagar. Saí e comecei a andar pelo jardim, cheguei a uma fonte muito bonita com azulejos coloridos, onde no centro havia uma estátua representando um anjo nu e fazendo xixi. Perto dali estava o jardineiro, que começou a me dizer o porquê do anjo estar fazendo xixi. Disse-me que tinha alguns doentes que, após a cirurgia, dependendo do que tinham sido operados, não conseguiam urinar, então os levavam para perto do anjo que estava fazendo xixi, abriam bem as torneiras e só com o barulho da água caindo, conseguiam urinar. O jardineiro me convidou para ver todo o jardim. Em alguns lugares vi estatuetas de santos, e em algumas pedras grandes estavam embutidos quadros, também de santos, protegidos por vidros. Mais adiante havia o busto de um padre, de bronze. O jardineiro me explicou que era do fundador do hospital e do colégio das freiras. Ele me mostrou quase todo o imenso jardim. Em alguns lugares tinha laguinhos com peixes, muitas folhagens na beirada do caminho e muitas flores diferentes na parte externa. Depois de rodear todo o jardim, chegamos ao lugar donde começamos, ao nos se despedir ele me disse: – Meu nome é Geraldo Penhaloza, seu servidor. Felicitou-me por nada grave ter me acontecido no desastre, ele tinha lido todas as notícias dos jornais e já tinha me visto nas fotos. Retornei ao salão e já estavam servindo o almoço. Fui primeiro ao banheiro e quando saí as moças que serviam estavam à minha procura e uma delas disse: – Vamos almoçar? O meu almoço já estava servido na mesa perto da cama. Quando estava quase no fim do almoço, a mãe chegou, acompanhada de Romélia. Parei de comer, embora a mãe, a Romélia e a enfermeira insistissem para eu terminar, não quis, peguei a sacolinha com a roupa que a mãe trouxe e fui no banheiro me mudar. Despedi-me de todos os doentes, do pessoal do serviço e das enfermeiras. A minha enfermeira amiga entregou para a mãe o tratamento que deveria seguir. Teria de ir ao hospital San Juan de Dios e entregar esses papéis, que iriam continuar o tratamento, inclusive todos os dias me fariam curativos. A enfermeira me levou pela mão até a porta, me deu um beijo, e de lá dei o último adeus para todos do salão. Nós três seguíamos a pé, pois a rodoviária era perto. As pessoas, ao me ver com a cabeça toda enfaixada, diziam: – Olha o guri que ia no ônibus que caiu na ribanceira. Cada grupo dizia uma coisa, e nós continuávamos, algumas senhoras até chegaram perto de nós e perguntaram para a mãe: – É seu filho? – Sim, respondia a mãe. – Que susto a senhora levou! Em um grupo de senhores que estava perto da rodoviária, um deles gritou para a mãe: – Senhora, ele não morre mais, parabéns! Entramos na rodoviária e alguns curiosos nos seguiam de perto. Quando chegamos ao guichê para comprar as ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 150 passagens, um senhor veio correndo para nos dizer que não precisávamos comprar passagens, porque tínhamos lugares reservados. Ele também entregou um papel para a mãe e disse que era para ela ir com aquele papel e no endereço que ali estava, que lá iriam lhe dar dez pesos, e lhe deu também outro papel que autorizava a retirada de mais doze bisnagas de remédio para os olhos, em uma determinada farmácia, e de forma gratuita. Minutos depois de termos chegado em casa, começaram a chegar os amigos. O primeiro foi o André, que segundo me informaram, após ter saído a notícia nos jornais, ele sempre andava perto de casa, ficou contente ao me ver. O Mudinho também apareceu, o Oscar, os padres da igreja, gente da vila e do bairro vizinho. O André, mesmo sendo o primeiro a chegar, foi o último a sair. No dia seguinte, a mãe me levou ao hospital para me fazerem os curativos. A minha chegada foi uma verdadeira festa, quando me viram, com a cabeça toda enfaixada e cheio de esparadrapos e curativos por todos os lados. Já tinham me visto através dos jornais e me reconheceram e sabiam também que eu deveria continuar o tratamento naquele hospital. Por todo canto aparecia gente para me ver, eram freiras, médicos, enfermeiras e até doentes vinham para completar a bagunça que ocasionou a minha chegada. Dias depois me tiraram os pontos e aos poucos foram eliminando os curativos, até que um dia os médicos me disseram que tudo estava cicatrizado, mas que era bom de vez em quando lhes fazer uma visita. A verdade é que deram os dez pesos prometidos para a mãe. Um dia ela me levou ao oftalmologista que sempre me atendia. Ele nos disse que o remédio das bisnagas era muito bom, só que muito caro, ademais era um produto novo no mercado. No período que fiquei de repouso não faltaram as visitas. Diariamente dona Elga aparecia e gostava de conversar bastante com a mãe. Às vezes me levava um shortezinho costurado por ela. O Polaco apareceu uma vez, veio me visitar rengueando e com o pé todo enfaixado. Contou-nos que um pedaço de ferro lhe fez um corte de aproximadamente seis centímetros na canela, lugar difícil de curar e que devido ao ferro estar enferrujado, a ferida infeccionou. Alguns dias depois, as minhas feridas já tinham cicatrizado, só ficaram as marcas, e estas, minha tia Otilia as fez desaparecer com urtiga. Eu gostava de ir ajudar o Polaco, só que a mãe tinha medo que eu fosse me ferir com um desses ferros todos enferrujados, e também ele só me pagava dez centavos por semana, é claro que ele e a mulher eram muito bons para mim. Um dia apareceu em casa Marina, a nora de dona Maria Ruiz, e nos contou que dona Maria tinha ficado muito mal quando soube ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 151 da tragédia, e chorava, querendo que alguém viesse me ver. E para acalmá-la, ela decidiu vir. O Marcelo me mandou muitas lembranças, ele não pôde vir porque pegou um cacho de plátano e não viu que tinha um escorpião que lhe picou no ombro. Está com o corpo todo doído e duro, está sendo tratado, porém quando ficasse bom viria me visitar. Marina, conversando com a mãe, lhe disse que ultimamente estava havendo muitas quedas de barreira naquela estrada e também na rota do trem, devido às muitas chuvas. Sentindo-me bem e sem problemas de saúde, falei para a mãe que queria voltar ao porto para ganhar uns trocos. Ela pediu, pelo amor de Deus, que não era para eu ir, e teve o apoio do Gratiniano, do Dr. Corrêa, da dona Elga e da Romélia. Ouvi todos e não voltei ao porto, tanto me falaram que até fiquei com medo. O recomeço A mãe também não queria que eu fosse no Polaco, então eu passava o dia perambulando, às vezes algum vizinho me mandava fazer uma compra, procurava cobras, mas não se achava mais, acho que tinham ido embora para outro lugar. Praticava tudo que sabia fazer, estava praticando também malabares, à noite brincava com a garotada, inclusive meus irmãos, algumas vezes a mãe me mandava com Marino entregar a roupa. Eu sentia que a situação não estava boa. Com os dez pesos, a mãe tinha comprado telhas, tijolos e areia, faltava comprar portas, janelas, pisos e por último o cimento, segundo os seus planos. Tudo estava amontoado no pátio, o sonho dela era terminar nossa casinha de material. Algumas vezes ia ajudar o Polaco, a mãe me fazia mil recomendações, que me cuidasse para não me ferir e eu tratava de fazer as coisas sempre pensando nas recomendações dela. O que mais se vendia no ferro velho do Polaco eram parafusos, com suas respectivas porcas, arruelas lisas e de pressão, também se vendia muitos pedaços de chapas de diferentes bitolas e tamanhos, os maiores compradores eram os chapeadores. Os torneiros compravam ferro de bitolas acima de uma polegada. Os serralheiros sempre compravam ferros redondos, quadrados, cantoneiras, ferro “T”, etc. Algumas vezes apareciam os tais inventores de máquinas sem utilidade, compravam roldanas, engrenagens, parafusos, peças raras, que encontravam na sucata. Mexiam e remexiam naquele monte de sucata, pegavam uma peça, pegavam outra, largavam uma, depois outra, até que no final encontravam a peça desejada. Sentavam-se no chão e armavam um quebra-cabeça ali mesmo no chão, com as peças escolhidas, ficavam olhando, pensando, se levantavam, trocavam uma peça, trocavam outra, uma, duas, três vezes, até que acertavam na invenção desejada. Pegavam todo esse monte de ferro, colocavam num ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 152 saco que traziam para esse propósito, colocavam na balança e pagavam sem pechinchar o que o Polaco lhes cobrava. Saíam felizes com seu monte de ferro velho. Nunca ouvi dizer que alguém deles já tivesse inventado alguma coisa que prestasse. De vez em quando aparecia um destes loucos inventores todo engessado e cheio de curativos. Contava que sua invenção tinha funcionado, só que houvera um pequeno descuido e o invento tinha pulado, derrubado uma parede da casa, queimado a instalação elétrica, sem contar que depois de todo aquele insucesso, tinha ficado todo ferido e machucado e tinha ido parar no hospital. Quando se recuperavam, voltavam ao Polaco para ver outra peça e trocar por aquela que tinha sido a causadora de todo aquele estrago. A poucas quadras do Polaco havia uma oficina grande de mecânica, chapeação e pintura e eletricidade para carros. Lá trabalhavam quatro mecânicos e usavam todos a mesma ferramenta. Os eletricistas, que eram três, também usavam a mesma ferramenta para eletricidade. Os chapeadores eram só dois. Os mecânicos e eletricistas se davam muito bem, se ajudavam, trabalhavam em harmonia e sempre brincando. Agora os chapeadores, que eram dois, viviam em eterna guerra, só por causa da ferramenta. Um deles era forte, alto, quase loiro, e lhe chamavam El Paisa. O outro era magro, moreno claro e um pouco mais baixo do que El Paisa, era equatoriano e lhe chamavam Camacho, que era seu sobrenome. El Paisa era carrancudo e não brincava com ninguém, vivia de mal com a vida, Camacho, ao contrário, brincava com todos e sempre estava cantando Pasillos equatorianos, enquanto trabalhava, com o que matava as saudades da terra. Todos eles eram fregueses do Polaco e sempre iam comprar parafusos ou pedaços de chapa e outros materiais, sempre estavam com pressa, faziam o pedido, pagavam, ele ou dona Elga ia entregar. Quando eu estava, Polaco me mandava fazer a entrega, de tanto ir até lá, tinha me tornado muito amigo de Camacho. Quando ia entregar material ficava algumas horas lhe dando uma mão, às vezes para colocar um pára-lama ou qualquer outra peça do carro que estava chapeando para depois pintar. Quando ele estava lixando a massa eu ficava olhando e ele me perguntava: – Será que consegues? Não sabia o que responder, então ele pegava um balde com água e lixa e começava a me explicar. Tanto treinei até que me tornei um bom lixador. Também me ensinou a dar o fundo com a pistola, quando tinha que entregar algum carro com urgência me convidava para lhe ajudar de noite e aos sábados e domingos. Quando entregava o carro me dava trinta centavos, dependendo do carro, me dava quarenta e até cinquenta centavos. Para atender o Polaco e também Camacho, dividi o tempo da seguinte forma: na segunda-feira, terça e quarta, ajudava Polaco. Na quinta-feira, sexta, sábado, e se fosse preciso, no domingo, ajudava ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 153 Camacho, isso era o que eu gostava, do movimento, eu estava muito contente, não ganhava tanto como no porto, mas algumas vezes conseguia ganhar até um peso na semana. Era bom trabalhar com Camacho, sempre estava brincando, e para mexer comigo inventava canções, me levava a almoçar na sua casa, a sua esposa era pouca coisa mais alta do que ele e o chamava de baixinho. O princípio que adotava na sua casa naquele tempo, se ela fosse aplicar hoje, seria chamada de besta quadrada, e quem sabe de quê mais. O primeiro dia que fui almoçar com eles, após terminar, quis bancar o educado e comecei a recolher os pratos para lhe ajudar na limpeza, porém ela, em um tom não muito suave, me disse: – Por favor, não faça isso, eu não gosto de ver homem fazer serviço doméstico. O serviço da casa é para mulheres, nós somos chamadas para manter a cozinha e a casa limpa e arrumada e nós estamos sempre asseadas e perfumadas para receber o nosso consorte. Eu acho que o homem que gosta de fazer serviços domésticos tem tendência a ser maricas, ou ter uma filha sapatona, ou um filho marica. O homem tem que se preocupar para que não falte nada em casa e a mulher tem que economizar e guardar para o futuro. Uma quinta-feira, quando cheguei na oficina, Camacho estava esperando El Paisa desocupar um martelinho que era especial para endireitar frisos. De acordo com o ambiente que encontrei, tive a impressão que El Paisa e Camacho tinham discutido, porque enquanto eu passava um pano num carro que estava pronto para ser pintado e Camacho limpava a pistola para começar a pintar, vi que El Paisa lhe jogou com força o martelinho. Jogou com tanta força, que primeiro bateu no carro que estava pronto para ser pintado, afundando o pára-lama, e com a mesma velocidade saltou e bateu na cabeça de Camacho, abrindo uma ferida longa e profunda. Ele deu um grito e caiu, mas sem demora se levantou, pegou o martelinho e com força jogou contra El Paisa que bateu no rosto e lhe abriu uma ferida um pouco abaixo do olho direito. O Paisa também gritou, perdeu o equilíbrio e caiu em cima de uma caixa de ferramentas, cortando a orelha do lado esquerdo. Vários mecânicos pegaram Camacho, junto com os eletricistas, colocaram-no numa camioneta e o levaram para o Pronto Socorro. Ele ia com o rosto, as mãos e a roupa toda ensanguentada, eu fui junto e enquanto o atendiam, saí correndo e fui avisar a esposa. Ao saber da notícia, saímos rapidamente e pegamos o primeiro coche que passava. Entramos correndo no Pronto Socorro, onde tinha ficado um mecânico e um eletricista. Informaram-nos que ele estava dormindo, porque foi preciso anestesiá-lo, uma vez que o corte era grande e foi necessário dar vários pontos. Eles foram embora e nós dois ficamos, a enfermeira nos disse que ele ficaria internado até ver se não se manifestava alguma infecção e nos aconselhou a ir embora e voltar à noite quando ele já poderia falar. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 154 Dirigimo-nos à oficina para recolher as coisas de Camacho. Na oficina nos disseram que El Paisa tinha ido ao Hospital San Juan de Dios. À noite, quando chegamos no Pronto Socorro, Camacho estava na sala à nossa espera. O médico o tinha liberado, com a condição de ficar ao menos três dias de repouso e sem fazer esforço algum e ir um dia sim outro não fazer curativos. Uma semana depois lhe tiraram os curativos e pontos, ele dizia que estava pronto para outra. O proprietário da oficina, que naquele dia não estava, foi lhe visitar, lamentando o ocorrido pediu para Camacho voltar a trabalhar. Ele lhe respondeu que de forma alguma voltaria, começando que a mulher dele tinha lhe pedido, pelo amor de Deus, que os unia, que era melhor não voltar. No fim de semana fui visitar Camacho, só que não estava, me informaram que tinha ido viajar, foi só essa a informação que me deram. Como não tinha mais o que fazer, me conformei indo no Polaco ganhar dez centavos, a mãe me dizia: – Meu filho, na falta de pão, boas são tortas. Continuei indo entregar os pedidos na oficina mecânica. Um dia, quando fui entregar parafusos, vi que El Paiso estava pintando o carro que Camacho não terminara, estava com o rosto todo costurado e também a orelha. Quando me viu, começou a mexer comigo pela primeira vez, antes nunca me olhava. Às vezes eu ficava pensando que já fazia mais de quinze dias que o Camacho tinha ido embora e não fora capaz nem de se despedir de mim. Era tão legal trabalhar com ele, me lembrava que todos os dias, pelas nove horas e trinta minutos, ele dizia: – Negrinho, vamos tomar café. Na frente da oficina tinha uma cafeteria, eu pedia uma taça com leite, patacon com chicharrón, ou arepas, ou senão pão de queijo, que café gostoso! Consertador de fogões Eu continuava minha vidinha com o Polaco, algumas vezes ia, outras não. Uma tarde, quando o rei sol já queria se esconder, e após ter estado todo o dia ajudando o Polaco, estava em casa me aprontando para tomar banho, quando ouvi uma voz que perguntou para um vizinho: – Onde é que mora o Negrinho? A voz parecia conhecida, saí correndo ver quem estava me procurando. Para minha surpresa, era o Camacho. Nos abraçamos, como no encontro de dois namorados, me pediu para lhe apresentar à minha mãe, ela estava no tanque lavando roupa, nós fomos até lá e ele sorridente, falando com a mãe, me elogiava. Em determinado momento, no meio da conversa, disse para a mãe: – Dona Isabel, eu peguei um serviço muito grande e gostaria que o Negrinho me ajudasse. Um armazém daqui importou uma grande quantidade de fogões, eles são modernos, só que com o solavanco do navio, chegaram amassados e é claro que daquele jeito ninguém vai querer comprar e me contrataram para ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 155 eu endireitar e pintar e gostaria que o negrinho me ajudasse. Pretendo lhe pagar dois centavos por fogão, calculo que podemos aprontar de seis a oito fogões por dia. Enquanto eles conversavam, fiz o cálculo, seis fogões são doze centavos e oito fogões dezesseis centavos por dia, está muito bom, no Polaco só ganho dez centavos por semana, no pensamento e sem abrir a boca eu disse: Oba, coisa boa! Ouvi a mãe dizer: – Senhor Camacho, seria muito difícil meu filho lhe dizer que não, ele tem me falado muito do senhor, da sua esposa, ele tem andado um pouco triste pelo senhor ter desaparecido. – Dona Isabel, depois do que me aconteceu, ele deve haver lhe contado, decidi com a minha esposa fazer uma pequena viagem para descansar. A senhora não se preocupe com a comida, que ela é por minha conta, ele conhece meu jeito. Ficou combinado que no dia seguinte nos encontraríamos numa determinada esquina perto do mercado. Ele se despediu e eu fiquei louco de contente. Quando ele foi embora a mãe me disse: – Viu meu filho, como Deus é bom com você! Não faz mal que não ganhe doze, e nem dez, que ganhe oito, no Polaco você só ganha por semana dez centavos. O local onde íamos trabalhar era um prédio de dez andares em final de construção, só para estacionamento de carros. As caixas com os fogões ocupavam o térreo e o primeiro andar, era caixa que não acabava mais. Entramos e já fomos abrindo as caixas. Havia fogões de duas e de três bocas. As partes onde iam as panelas e os queimadores eram pretas, e os pés eram brancos. A parte onde se afixavam os queimadores e os próprios queimadores saíam um pouco além do fogão, era onde se colocava a garrafa com o querosene. Camacho já foi endireitando e eu abrindo caixas, as partes mais danificadas eram as partes pretas, sobretudo as beiradas. Algumas estavam tortas no centro. Quando Camacho já tinha endireitado vários fogões, parei de abrir caixas e comecei a lixar. Aquele dia consegui lixar oito fogões, eu vibrava de contente e cheguei contando para a mãe como era fácil e rápido o serviço. Fiquei amigo do zelador e sempre conversava com ele enquanto lixava, o horário de trabalho dele era da meia-noite até às oito horas da manhã. Camacho era muito rápido. Eu pegava entre às sete horas e trinta minutos e às nove horas, mas como a minha parte do serviço estava se acumulando muito, decidi madrugar para alcançar o Camacho. Então perguntei para o zelador se ele não se importava de eu vir cedo, ele me respondeu que podia vir na hora que quisesse. Saí de casa às cinco horas na minha bicicleta e às cinco horas e trinta minutos já estava aprontando material para Camacho. Lembro que aquele dia aprontei doze peças e por último não baixava de quinze. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 156 O dono das lojas que vendiam os fogões morava em frente ao prédio onde trabalhávamos. Era um sobrado muito bonito, na parte de cima tinha uma grade de ferro artística bem trabalhada, parecia as que fazíamos com Antônio. Ele se chamava Evaristo, era um senhor de idade, já o tinha visto várias vezes, era muito dinâmico e madrugador Cedo estava na sacada lendo o jornal e tomando o café. Às vezes ia ver o andamento do serviço durante o dia, conversava sempre conosco e nos comentava que eram muitos fogões que vendiam durante o dia. Ele era o único representante desses fogões a querosene no país, e já tinha feito um novo pedido de mais dois mil fogões, só que estes viriam em armações de ferro, para evitar o problema surgido no primeiro pedido. Um dia, o senhor Evaristo, que não sabia quem era que madrugava para trabalhar, desceu do seu sobrado para ver, e quando me viu, disse: – Eta guri trabalhador e madrugador, vai ser um dos bons! Enquanto eu lixava, ele conversava comigo, me fazia várias perguntas e eu respondia. Pouco depois ele saiu, voltando em seguida, trazendo uma garrafa térmica e duas xícaras. Serviume café em uma xícara e na outra para ele. Continuamos conversando e tomando café por mais uma meia hora, depois se despediu e foi embora. No dia seguinte novamente me levou café, desta vez trouxe bolachinhas também. Daí por diante todos os dias levava o café com bolachinhas ou sanduíches, também trazia o jornal e se sentava nos sacos de cimento para ler até que o dia clareasse, aí se despedia e ia embora. Aos domingos eu chegava lá pelas oito horas, antes do guarda ir embora, e ficava até o meio-dia. Evaristo pelas dez horas me mandava um lanche pela empregada. Na casa morava ele, a mulher, a empregada e um filho da empregada. Eu sempre via um senhor que dirigia uma carroça puxada por um cavalo, entrar na casa. Fiquei sabendo que era quem entregava as mercadorias para os fregueses, fazia as compras para a casa de Evaristo e ele era, como a gente diz, pau para toda obra. Chamava-se José, mas chamavam-no de Chepe, algumas vezes vi o senhor Evaristo ir com ele na carroça. Chepe era brincalhão, alegre, nós tínhamos nos tornado amigos, ele morava mais ao sul de onde eu morava. Quando coincidia dele ir para casa na mesma hora que eu colocava a minha bicicleta na carroça e íamos conversando pelo caminho. Muita gente mexia com ele, notava-se que era muito conhecido. Usava um chapéu velho, todo seboso, andava com as calças arremangadas com um tipo de chinelo especial, faltava-lhe dois dentes na parte superior da boca. Por onde andava estava sempre mexendo com os conhecidos. Algumas vezes levava também o Camacho para casa. Colocávamos nossas bicicletas na carroça e era aquela farra até nos despedirmos. A mulher de Evaristo era uma senhora de idade, baixinha e magra, tinha um problema num pé e andava com uma bengala. Quando tinha que ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 157 ir ao médico, era Chepe quem a levava de carroça, não gostava que os filhos a levassem de carro. Chepe pegava a mulher de Evaristo no colo e descia as escadas quase correndo, só para ouvi-la gritar: – Devagar! Chepe ria quando ela gritava, xingando. Ele ria que se matava. Ao colocála na carroça era aquela bagunça, até alguns vizinhos, sabedores do que se tratava, saíam nas sacadas só para mexer com o Chepe. Evaristo ficava na calçada olhando e rindo. Uma vez o Evaristo estava no lugar onde eu estava trabalhando e vendo sua esposa naquela bagunça, me disse: – Negrinho, você já viu dois velhos brincando que nem criança? E apontou-os no momento que o Chepe a colocava na carroça. Enquanto isso, ela batia nele com a bengala. Eles iam embora e o Evaristo ficava rindo e mexendo a cabeça. Algumas vezes antes de ir para casa eu gostava de dar uma olhadinha onde estavam expostos os fogões, achava-os tão bonitos! Um dia, indo com Chepe na carroça lhe perguntei: – Aqueles fogões de duas bocas são muito caros? Ele me respondeu: – Sim, são muito caros, não são para bico de pobre, só rico é que se dá esse luxo. Aos domingos, antes de ir para casa, eu ia devolver as louças onde tinham me mandado o lanche, à dona Lusdari, que era o nome da mulher de Evaristo. Evangelina era o nome da empregada, mas a chamavam de Eva, o filho dela e Evaristo é que estavam em casa nesse dia, e me recebeiam com muito carinho, me convidavam para tomar um suco de frutas. Enquanto eu tomava o suco, todos se sentavam perto de mim, eu me sentia Cristo, quando, com doze anos, conversava com os doutores. Quando Eva foi trabalhar com eles, ela ajudou a criar os filhos de Evaristo e Lusdari, que ainda eram pequenos e eram uns pestinhas. Chepe, quando falava deles, me dizia: – Eva e eu ajudamos a criar os filhos de Evaristo, eram uns bundinhas, meio amaricados, quantas vezes me tocou livrá-los de apanhar de outros rapazes. Hoje são uns merdas orgulhosos, não gostam de pobres, a filha casou-se com um cara pior que eles e os outros dois casaram-se com mulheres iguais a eles, metidos que nem fio dental em rabo de mulher. Quando eles ainda eram pequenos, Evaristo, Lusdari e eu, trabalhávamos e nunca tivemos uma pequena discussão, eles faziam gato e sapato da Eva. Coitada, como sofreu. Tempo calmo foi quando eles foram para a Europa estudar, de lá voltaram mais cheios que pinico de pobre. Chepe ficou pensativo e em seguida me disse: – Negrinho, vou te contar um arranca rabo que tive com o Luzio, o caçula de Evaristo. Um dia o Luzio pediu para eu ligar um carro que ia ser vendido e o freguês queria vê-lo funcionando. O carro não pegava, porque o encarregado de manter os carros em dia, no momento de limpar o pó do motor, sem querer, tinha soltado o cabo da bobina, mas nesse momento ele não estava ali. O Luzio, vendo que o carro não ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 158 pegava, chegou até onde eu estava, e me olhando como se eu fosse o culpado pelo carro não pegar, me chamou de burro e me xingou. Eu desci daquele carro como fera ferida, peguei-o pelo colarinho, a minha intenção era lhe dar um soco no nariz, só que a rápida intervenção dos colegas não me deram tempo. Então o larguei com força e ele caiu sentado. Eu estava com tamanha raiva, pois nunca alguém tinha me xingado, que só pude lhe dizer: – Fedelho de merda, você vai ter que me respeitar, eu te vi crescer. Peguei a pasta com os endereços de entrega, joguei nos pés dele e me mandei. Para que a raiva me passasse, fui a pé até a minha casa, demorei duas horas. No caminho ia pensando em trabalhar com carroça alugada ou comprar uma com cavalo, eu era muito conhecido e freguês não ia me faltar. À tardinha, eu estava rachando lenha para o fogão quando vi o Nelson, o filho da Eva guiando a carroça, e com ele vinham Evaristo, Lusdari e Eva, que desceram mexendo comigo. O Evaristo me tirou o machado da mão e começou a rachar lenha, dizendo: – Isto eu fazia quando morava no campo. Enquanto isso, os outros estavam cumprimentando minha mulher, eu convidei Evaristo a largar o machado e ir para a sala onde eles estavam. Eu conhecia bem o Evaristo, tantos anos trabalhando com ele, nunca tivemos um pequeno desencontro. Na sala, se falou de tudo, menos do acontecido com o filho. Evaristo se levantou, após tomar o seu inseparável cafezinho, que minha mulher havia preparado, inclusive para todos nós. Eu pensei que era uma visita de amizade, porém, antes de sair da sala, me disse: – Chepe, pega a carroça e leva-nos para casa, depois podes voltar com a carroça, e, como de costume, traga a pasta para amanhã fazer as entregas. Sabes que o dia de amanhã vai ser puxado, porque hoje não se fez nenhuma entrega. Do jeito que a gente se gostava, respondi: – Sim senhor. Subiram todos, até minha mulher fizeram subir, e com Chepe, no caminho, como sempre, era só farra, em momento algum se falou da briga. No dia seguinte me apresentei para trabalhar normalmente. A dona Mercedes, mulher do Chepe, era uma senhora muito bonita, elegante, mesmo estando dentro de casa, estava arrumada, enquanto Chepe andava todo esculhambado, mesmo que dona Mercedes lhe fizesse trocar de roupa todos os dias, ele saía de casa bem arrumadinho, todo alinhado, mas quando chegava na firma tirava os sapatos e calçava chinelos, arremangava as calças e por último, colocava aquele seboso chapéu e era feliz trabalhando. Um presente para a mãe Durante meus anos de menino sempre tive momentos tristes e muitos momentos de bastante alegria. Quando aqueles momentos que me ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 159 proporcionaram tanta felicidade surgem na minha memória e vivo hoje as emoções que vivi naquele tempo. Esta que vou contar é uma das que muitas vezes lembro, fico quieto, esboço um sorriso, fecho os olhos e vivo ainda aquele momento. Numa quarta-feira à tarde terminamos de consertar e pintar o último fogão. Combinamos com Camacho que viríamos no dia seguinte para limpar o local e as ferramentas e entregar os últimos oitenta fogões. Acostumado que estava a madrugar, cheguei cedo, Evaristo apareceu como sempre com café, bolachas e com o jornal. Comecei limpando o compressor, depois o resto das ferramentas. Organizei: lixas, massas e tintas. Lá pelas dez horas chegou Camacho e eu estava varrendo o local. Em seguida ele pegou outra vassoura, e como o local era grande, conseguimos terminar lá pelas treze horas. Fomos almoçar no mesmo local de sempre, desta vez sem pressa, entre a conversa Camacho me perguntou: – Negrinho, que tal o serviço? Respondi: – Muito bom, deu para ganhar uns trocos. – Ah, se deu, disse Camacho. Eu estava para viajar para Guaiaquil quando me apareceu Evaristo, pedindo para fazer o serviço. No começo eu não queria, estava pensando em levar minha mulher para apresentar aos meus parentes e aproveitar para o filho nascer em Guaiaquil. A minha mulher, que já conhecia Evaristo, porque eu tinha feito vários biscates para ele, interveio e me disse: – Amor, temos tempo, faz o serviço para o senhor Evaristo! Daí aceitei e quando ele me explicou que era para consertar fogões, me pareceu um bom biscate e adiamos a viagem. – E quando vão viajar, perguntei-lhe. Ele me disse que seria na próxima semana, porque faltava pouco para a mulher ganhar o neném. Perguntei: – Vai de forma definitiva, ou volta? – Calculo que a mulher deve ganhar daqui a um mês, depois ficamos mais dois ou três meses, vai depender do neném ficar forte. No meu regresso vamos trabalhar juntos de novo. Fez-me vários elogios, depois regressamos para esperar o fiscal que iria receber os fogões. Nós tínhamos revisado um por um e nada nos preocupava. Evaristo veio junto com o fiscal, que era da companhia de seguros, revisou como sempre, um por um, assinou a ordem para Camacho receber no banco e se despediu. Evaristo ficou conversando conosco e brincando, de repente me invadiu um não sei o quê de força e perguntei para Evaristo: – Senhor Evaristo, quanto custa um fogão de duas bocas? Ao que me respondeu: – Para que tu queres um fogão de duas bocas? Respondi: – Para dar de presente à minha mãe no dia das mães! Colocou a sua mão na minha cabeça e mexendo nos meus cabelos disse: – Negrinho, pega um fogão de três bocas, eu dou de presente para você, e você dá para sua mãe! Fiquei mudo e como outras vezes, se formou um nó na minha garganta. Queria chorar, as lágrimas não saíam, estava estático, não conseguia me mexer, até que Evaristo disse: – Camacho, ajude o negrinho a pegar um ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 160 fogão de três bocas e coloque junto às ferramentas, que Chepe vai lhes levar em casa. Uma vez colocado o fogão junto com as ferramentas, corri e me abracei a Evaristo. Como ele era alto e um pouco gordo, só consegui me abraçar da cintura, ele também me abraçou. Como noutra ocasião tinha lhe contado o problema dos meus olhos, ele me disse: – Negrinho, Deus há de permitir que tu fiques bom de teus olhos e possas estudar. Um empregado veio chamar Evaristo, alguém precisava falar com ele na loja. Na despedida, Camacho estava emocionado, algumas lágrimas correram pelo seu rosto. Vi a figura de Evaristo desaparecer a passos rápidos pela calçada, imagem que até hoje lembro tudo claramente. Carregamos ferramentas e bicicleta e saímos com Chepe, como sempre, naquela alegria, descarregamos as ferramentas na casa de Camacho, me despedi dele e da mulher e continuei com Chepe na carroça. No caminho Chepe me dizia: – Negrinho, aquele velho é bom, o céu para ele já está ganho! Com o dinheiro que ganhei com o Camacho, a mãe tinha construído uma casinha de material, o Chepe aproveitou e armou o fogão dentro dela. Como a mãe ainda não tinha feito o fogão à lenha, que era o que se usava então, quando Chepe armou aquele fogão que não ocupava quase espaço, a cozinha ficava toda livre. A mãe tinha ido entregar roupa, ao chegar, peguei-a pela mão e a levei até a cozinha e lhe disse: – Mãe, este é o teu presente do dia das mães, que é no próximo domingo. Chepe lhe ensinou a mexer nele e ela viu que era fácil. Em seguida ela se ajoelhou perto da porta da cozinha, colocou as mãos em sentido de graça e disse: – Obrigada Senhor, abençoe meu filho e todos aqueles que o tratam bem. As lágrimas lhe corriam em quantidade pelas bochechas, se levantou, abraçou Chepe e lhe agradeceu. Chepe se despediu, prometendo vir nos visitar. A mãe e eu ficamos na cozinha contemplando nosso fogão. Aquela noite dormi feliz, sonhei mil coisas, com Chepe, Evaristo, Camacho, até com dona Lusdari, Eva e Nelson. Sonhei que estava lixando fogões e tomando café com Evaristo, até o guarda apareceu no sonho. Meus irmãos e a Romélia se encarregaram de espalhar a notícia, a vizinhança vinha ver o dito fogão, a mãe tinha colocado também a mesa e cadeiras que Elida tinha nos presenteado, inclusive o armário com porta de vidro. Apareceu o Gratiniano, Dr. Corrêa, o Polaco e dona Elga, até o André veio ver o fogão. Uma vizinha disse para a mãe: – A senhora parece que adivinhou que ia ganhar este fogão, porque fez uma boa cozinha. Também diziam: – A cozinha de Chava é de gente rica. Até hoje não consigo entender o porquê que algumas mães, quando estavam olhando o fogão, em determinado momento, se referindo a mim, comparando-me com seus filhos, diziam: – Esses meus filhos são uns palermas, só sabem comer, dormir, sujar roupa e brincar. Aquele Negrinho é que vale ouro! A ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 161 gente também ouve os rapazes falando que vão dar um jeito de comprar uma bicicleta, “puro papo”! Elas ainda falavam: – O meu filho agora diz que vai comprar um violão, só que até agora não vi nele o arranque do Negrinho, que consegue tudo o que quer, até comida estrangeira já comemos trazida por ele! É que quando eu trazia comida do porto, a mãe repartia com diferentes vizinhos. Eu estava no quarto praticando com baralhos e escutava todas as conversas, mas eu não dava importância. Continuei indo na casa do Polaco. A dona Elga estava sempre me dando muito mimo, na hora de ir embora me fazia tomar banho ali mesmo na casa dela. O banheiro era todo em azulejos e as torneiras eram cromadas. Eu achava tudo muito bonito e a água era morna. Ao sair do banho ela me fazia colocar um shortezinho novo, costurado por ela. Ela me penteava e colocava perfume. A vida continuava, mas entrava pouco dinheiro para ajudar a mãe, era só os dez centavos que o Polaco me dava e às vezes três, quatro ou cinco que ganhava fazendo algum serviço para os vizinhos. Continuava indo no Túlio receber aulas de violão e nos fins de semana ia com os companheiros dele, os ladrões de galinha. Num sábado, eles tinham sido convidados para tocar numa escola em homenagem ao dia das mães e também no aniversário de uma professora. A festa começou às dezesseis horas e terminou antes das vinte horas. Fomos brindados com salgadinhos e refrigerantes. O baixinho que tocava bandolim era o mais cachaceiro e estava desesperado para tomar uma cachaça. Enquanto caminhávamos, ele dizia para os companheiros: – Vamos na Sefa que lá temos tudo de graça, vamos lá! Insistia. Quando chegamos na primeira esquina ele já foi dobrando e seguiu a passos acelerados, os outros iam a passos lentos. Eu ainda não sabia que o problema dos outros era eu, e acompanhava o passo deles. Daí a pouco vi que ele entrou numa casa, quando nós chegamos lá, ele saiu e disse: – Vamos entrar que tem mulher de montão. Eles estavam com pouca vontade de entrar, chegaram perto do porteiro, eu estava um pouco retirado e não ouvi o que falaram, só vi o porteiro mexer a cabeça em sentido negativo. Túlio veio e me disse: – Negrinho, nos espera um pouco aqui que já saímos. Confirmei e eles entraram. Foi nesse momento que compreendi que o empecilho era eu. Quando desapareceram da portaria, cheguei perto do porteiro e pedi o favor de avisar para eles que eu tinha ido embora para casa. Perguntou onde eu morava, respondi que era perto, mal sabia ele que eu morava do outro lado da cidade. Coloquei meu violão debaixo do braço e a passos lentos fui me afastando em direçao da minha casa. Atravessei por um bairro de sociedade abastada, de casas muito bonitas, com jardins na frente, janelas envidraçadas e com o interior bem iluminado. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 162 O violeiro Eu caminhava bem lentamente, não me lembro se pensava ou não pensava, e no momento que passava por um bar localizado num terraço, alguém chamou: – Hei garoto, ó do violão! Olhei para cima, era comigo, me disse: – Sobe um pouquinho. Como um autômato, fui subindo, me receberam com gritos e me deram uma cadeira e já me pediram para tocar alguma modinha. Túlio tinha me ensinado a tocar e cantar um fox (mis arapos), como tinha praticado muitas vezes com Túlio em casa e às vezes com a rapaziada da vila, apesar de minha voz ainda ser de criança, senti que saiu bem. Estes momentos são difíceis de esquecer. A segunda foi Índia, Guaranha Paraguaia, que estava na moda e que na minha voz saía muito bem. Lembro que quando estava reunido com a turma da vila, as meninas, a primeira coisa que me pediam era que cantasse Índia. No bar, quando estava tocando e cantando, ficavam em silêncio, e quando terminava batiam palmas. Também estava na moda um porro El Caimam, toquei, após uma garçonete trouxe um suco de frutas e um sanduíche. Enquanto comia, se apresentou para mim um garoto bem vestido, de terno e gravata e me disse: – Eu toco acordeom de botão, quer que o traga e toque com você? – Sim, respondi. Ele desceu correndo e em seguida já estava de volta. Quando o viram entrar, também gritaram e bateram palmas. Combinamos que ele tocaria e eu o acompanharia, rapidamente nos entendemos, daí para frente foram merengues, porros, cumbias, ballenatos, alguns boleros. Em uma pausa, escutamos uma voz que gritou: – Efraim, tá na hora. Levantou-se e me disse: – A mãe está me chamando. Eu disse: – Eu também vou, moro muito longe. Quando levantei, um grupo que estava com o que me chamou, me deu um peso, em seguida a garçonete me entregou umas moedas que outro grupo tinha me mandado, desci conversando com Efraim, a mãe dele estava esperando na frente da casa, ele me apresentou. Quis repartir o dinheiro com ele, mas os dois, ao mesmo tempo, disseram que não, que era todo para mim. Ao me despedir, a mãe de Efraim disse para eu vir quando quisesse para tocarmos juntos, que éramos uma dupla muito bonita de se ouvir. Quando cheguei em casa, a mãe estava acordada me esperando. Cheguei feliz, tinha ganho um peso e sessenta centavos, depois de tantos dias só ganhando dez a quinze centavos na semana, um peso e sessenta num dia era bom demais. Contei para a mãe todo o acontecido, lhe falei de Efraim, da mãe dele, da casa, contei que a mãe do Efraim tinha me oferecido um copo de leite, só que eu não quis porque tinha tomado aquele suco. Falei para a mãe também que ela tinha me convidado para ir à sua casa sempre que quisesse. A mãe ficou em silêncio e em seguida disse: – Tá, meu filho, você é que sabe, não confie muito em rico, porque rico não gosta de ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 163 pobre, e finge gostar para poder lhe explorar, é claro que tem casos isolados, tal como o senhor Evaristo. Dois dias depois do encontro com Efraim, o Polaco me mandou entregar um pacote de parafusos numa ferragem no centro da cidade. Quando estava entregando os parafusos, a surpresa, me encontro com Efraim. Corremos um ao encontro do outro, sem saber por que, estávamos felizes, ele me pegou pela mão, me levou e apresentou à sua irmã. Ela era mais velha do que ele e ao me cumprimentar, perguntou: – Tu és Ortega? – Sim senhora, respondi. – Imaginei, porque nestes dois dias, em casa só se tem falado em ti. Após um pouco de conversa ela me disse: – Vamos até nossa casa e almoçamos juntos. Eu lhe disse que teria que levar o dinheiro dos parafusos ao Polaco e que ele estava me esperando. – Vamos então levar o dinheiro ao Polaco. – Mas é muito longe. – Não importa, vamos lá. Quando saímos da ferragem, Efraim pegou a minha mão e saímos correndo até chegar num auto que estava estacionado. Ele abriu a porta de trás e me pediu para entrar, em seguida entrou também, sua irmã sentou ao volante e saímos em direção ao endereço que lhe informei. Nós dois, eu e Efraim brincamos no banco de trás como dois irmãos, parentes, ou como dois antigos amigos. Ele estava vestido de terno e gravata e eu com um shortezinho de fazenda barata. Depois de entregue o dinheiro ao Polaco, saímos para a casa deles. Amparo, que era o nome da irmã de Efraim, ao entrar em casa gritou: – Mãe, olha quem está aqui. Ela veio, e de forma familiar, abraçou-me como se fossemos veljhos amigos e disse: – Olá Orteguita! Depois do cumprimento, a primeira coisa que me disse foi: – Tu ficas para almoçar conosco. – Sim senhora, respondi. Efraim me pegou pelo braço e me levou para o quarto dele, que era maior que a minha casa. O guarda-roupa ocupava uma parede, era laqueado, cor marfim com filetes dourados, o bidê fazia jogo com o guarda-roupa, tinha um abajur de bronze, vários quadros nas paredes e o maior de todos era o Sagrado Coração de Jesus. A cama era de ferro, toda trabalhada com chinegos e aplicações de bronze, o quarto tinha duas janelas que lhe davam iluminação natural. Numa mesa auxiliar, estava o acordeom, e encostado a ele estava um violão, que me entregou e disse: – O meu irmão comprou para aprender e nunca aprendeu. Após tê-lo afinado, tocamos músicas e quando escutou ruídos de talheres, olhou para o relógio e disse: – Daqui a pouco vão nos chamar para o almoço. Abriu o armário e pegou um terno dele dizendo: – Vista-o para almoçar. Ajudoume a vestir e colocar a gravata e, pela primeira vez, vestia um terno. Sentia-me um pouco incômodo, porém era gostoso ver-me bem vestido. Quando chegamos à mesa, estava a avó de Efraim e um irmão também adulto, me receberam de forma carinhosa e sorridente. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 164 Isso que vou relatar tenho contado para muitos amigos, também às noivas que tive, em diferentes países, e hoje tenho contado para meus filhos e sempre tem sido à mesa nas refeições. A mãe de Efraim ocupou uma parte da cabeceira da mesa, a avó a outra, Efraim e eu ocupamos um lado e Amparo e o irmão à nossa frente. Duas empregadas com guarda-pó azul celeste nos serviam. Novidade para mim: na mesa, já colocados anteriormente, havia um prato raso, e em seu contorno, um garfo, uma faca e uma colher. Na hora de servir a sopa, uma das empregadas colocou um prato fundo sobre o raso. Outra novidade para mim: terminada a sopa, nos serviram um prato com arroz, junto estava uma batata inteira, acompanhando carne cortada de forma retangular, com um molho cheiroso de cebola, tomate e pimentão. Eu os via comerem com garfo e faca, eu nunca tinha usado essa ferramenta. Olhando para eles, os imitava, e com muita dificuldade consegui comer o arroz com o molho e a batata, mas a carne não me atrevia a cortar, tinha medo de cometer a maior gafe da minha pouca existência. Conforme hoje interpreto, comi tudo, menos a carne. Que vontade tinha de pegá-la com as mãos, que sofrimento, como estaria gostosa! As empregadas retiraram os pratos, menos o meu. Lembro que a mãe de Efraim me disse com voz doce, calma, uma voz maternal: – Ortega, come a carninha. Para me livrar do pesadelo, imediatamente respondi: – Desculpe, é que não gosto de carne. Saí do apuro, porém o desejo de comer a carne perdurou. Ainda ela me disse: – Tu tens que aprender a comer carne, tu estás crescendo e precisa da proteína animal. – Sim senhora, menti de novo, já me disseram isso. Esse pedaço de carne ficou gravado na minha mente de forma tão profunda, que nos momentos que tive fome, ela se me apresentava bem evidente. Hoje, em reuniões entre amigos, lhes conto isto, mas como passagem cômica na história da minha vida. Já contei para minha mulher, para meus filhos e em todo lugar e onde há oportunidade sempre conto, apesar de ter passado tantos anos, continua viva na minha memória. Tomada a sobremesa, voltamos para o quarto, tirei o terno e coloquei meu short e blusa, em seguida tocamos um pouco e calculei que estava na hora de ir embora. Antes de sair, Efraim pediu-me para vir no domingo para tocar um pouco, porque na segunda-feira teria de voltar ao internato. No domingo à tarde, peguei a minha bicicleta e fui à casa de Efraim. Como da outra vez, fui bem recebido por todos, tocamos, rimos e brincamos bastante. No momento da despedida, me disse, de forma natural: – Nas férias da metade do ano, tu vens para tocarmos de novo, tá! – Sim, respondi. Ao me despedir dos familiares de Efraim, a mãe dele me disse que ele estudava interno num colégio de padres, mas que quando eu quisesse poderia visitá-los. Sem a presença do novo amigo, não tive coragem de ir visitá-los. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 165 Continuei o meu ritmo de vida, indo no Polaco e ganhando dez centavos por semana. Toda a garotada da vila gostava de mim, tanto homens como mulheres. Às vezes, à noite, levava o violão e cantávamos. Muitos deles tinham vontade de ter um violão e aprender a tocar, só que não tinham condições de comprar e o sonho ficava ali. Outro sonho de muitos era ter uma bicicleta, era só sonho. Muitos aprenderam a andar na minha bicicleta, homens e mulheres. Quem mais gostava de andar nela era Romélia, mesmo eu não estando em casa, ela pedia emprestado para a mãe, sabia que eu não me importava. Ela sempre estava com o tornozelo do pé direito todo ferido de tanto roçar na corrente da bicicleta e quando ia entregá-la, estava toda molhada de suor de tanto andar. As histórias de Ocoró Tudo o que conto nestes escritos são os fatos que me marcaram na minha infância e também depois de adulto. Bom, esta é da minha infância. No fundo da nossa vila começava um bairro já organizado. No começo deste bairro, lindeiro à nossa vila, morava um senhor alto, forte, de cor preta, que tinha muitas cicatrizes nos braços. Seu nome era Roberto Ocoró Caizedo. Sua casa era de material, bem pintada, a parte superior era branca, a parte inferior era de cor verde. Em uma altura aproximada de quarenta centímetros, entre a cor branca e a verde, tinha pintado uma faixa de aproximadamente dez centímetros com a cor vermelha. Estas três cores davam à casa uma vista muito bonita, completava esta beleza um jardim na frente da casa muito bem cuidado, quase sempre estava florescido. Num canto tinha jasmim, quando florescido mantinha perfumado o ambiente, tinha rosas brancas e vermelhas e muitos cravos também brancos e vermelhos. Nos fundos da casa viam-se muitas árvores, além de uma horta. Ocoró era muito conhecido do pessoal da vila e também do bairro dele. Tinha um filho, que apesar de Ocoró ser preto, o rapaz era branco e seu nome era Carlos. Como no bairro que eles moravam ainda habitavam poucas famílias, mesmo sendo um bairro organizado, as ruas eram calçadas, tinha água, luz, esgoto pluvial e cloacal, e existiam muitos terrenos à venda. O Carlos gostava sempre de estar reunido com a garotada da vila, andava sempre bem vestido e não era orgulhoso, era bom amigo, além disso as gurias achavam-no lindo. Fiquei sabendo que a mãe de Carlos tinha sido uma loira muito bonita, de família de imigrantes italianos e que também tinha sido casada com um descendente italiano, que tinha falecido antes de Carlos nascer. Virginia era o nome dela, e sentindo-se só na cidade dela, e grávida, sem o auxílio dos pais já falecidos, temerosa de ganhar a criança longe de ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 166 familiares, sem socorro médico e sem recursos, procurou os familiares de Ocoró, que eram do mesma cidade, e lhes pediu para que eles falassem com Ocoró lhe dar uma mãozinha na cidade enquanto ela ganhava o bebê. Ocoró, que conhecia Virginia desde criança, tinha sido convidado para o casamento dela e também para o enterro do marido, aceitou de imediato ajudar a amiga de infância. O que todos sabiam era que, após o nascimento de Carlos, Virginia não voltou para a cidade deles. Soube também que eram vistos os dois juntos e muito felizes. Ela ia ajudá-lo no armazém de secos que ele tinha no mercado. Tempos depois eles casaram, o menino passou a chamar-se Carlos Caizedo, por parte de Ocoró, e Lanzaratti por parte da mãe, sobrenome que o Carlos pouco usava, sempre que se apresentava era Carlos Caizedo, o que deixava Ocoró muito orgulhoso. Ocoró e Virginia, diziam o povo, brincavam feitos crianças, que em momento algum deixavam Carlos sozinho, soube também que como Ocoró era um homem forte e alto, pegava Virginia no colo, sem o menor esforço. Foram muitas histórias lindas que ouvi daquele Otelo e Desdêmona da minha vida. Os mais chegados a eles contavam que Ocoró enchia o quarto de Carlos de brinquedos e Virginia de presentes. Os aniversários de Carlos e Virginia eram sempre festejados com pompas, não gostava de festejar o dele, pois festejando os de seus dois amores, ele se sentia festejado. Desta vez não foi “Otelo que matou Desdêmona”, ninguém tinha inveja deles, porque até eram benquistos por todos os vizinhos. As histórias que ouvi de Ocoró e Virginia eram todas lindas, cheias de amor, de amizade e de carinho. A única história tétrica, cheia de horror e de tristeza, foi o que me contou um amigo chamado Atanázio, que também morava perto de Ocoró. Ele conheceu Virginia desde o primeiro dia que ela chegou na casa de Ocoró. Era uma gringa bonita, começou me dizendo Atanázio. Um dia, estávamos eu, minha mulher e minhas duas filhas trabalhando na fabricação de móveis e cestos de vime, quando ouvimos Virginia gritar. Como tínhamos visto Ocoró sair com o Carlos para fazer as entregas das encomendas de arroz, feijão, açúcar, etc que os vizinhos pediam, ao ouvir os gritos saímos correndo. Ao chegar onde ela estava, foi a cena mais arrasadora nunca vista. Deparamo-nos com um cachorro, quase do tamanho de um terneiro, bravo como uma fera, cujo proprietário era o dono de um tambo, e que além daquele tinha mais uns vinte cachorros, este dito estava sempre amarrado e ninguém do pessoal do tambo sabia como tinha se soltado o tal cachorro. O caso é que, quando chegamos, vimos Virginia no chão e o cachorro em cima dela arrancando-lhe partes do corpo. Vários vizinhos, que também tinham ouvido os gritos, estavam com pedaços de pau e batiam com força no ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 167 animal, mas as pauladas não adiantavam, parecia que quanto mais apanhava, mais furioso ficava, até que um vizinho pegou uma corda e o laçou, mas como não conseguiu pegar o pescoço, pegou perto das patas dianteiras do cachorro. Passou a corda no galho de uma árvore e puxaram-no até ficar pendurado. Mesmo assim, o maldito, pendurado como estava, fazia esforço para alcançar e morder a corda. Temendo que ele alcançasse a corda e a mordesse até arrebentar, pegaram outra corda e amarraram sua cabeça contra a própria árvore. Ocoró, que também tinha ouvido os gritos da mulher, voltou correndo. Quando ele chegou, estávamos carregando o corpo de Virginia, que nem se mexia. Ocoró pegou sua mulher nos braços, subiu na charrete, os dois choravam, Carlos e Ocoró. O caso foi que um vizinho se encarregou de dirigir a charrete e outro trouxe um facão para degolar o cachorro, porém, no momento que ele ia dar a primeira facada, apareceu o velho Antão, dono do tambo e do cachorro. Quando ele viu que o homem ia dar a facada, como ele trazia uma espingarda, gritou, apontando a arma: – Não te atreve maldito, se não queres levar a mesma sorte. Quando Antão tirou uma faca da cintura para cortar a corda que amarrava o cachorro, Palácio, um moreno alto e magro que tinha fama de pavio curto e briguento, deu um pulo e caiu em cima de Antão. A faca voou para um lado e a espingarda para outro. Palácio gritava: – Ninguém toque na espingarda nem na faca. Em seguida, todos caíram em cima do Antão e o amarraram na mesma árvore onde estava o cachorro. Dois policiais chegaram e se inteirando da gravidade dos fatos, um deles saiu e em seguida voltou com mais quatro. Um deles mandou desamarrar o velho Antão, que bufava de raiva, ameaçava e exigia que seu cachorro também fosse solto. Os policiais foram descendo lentamente o cachorro, e este, quando colocou as patas em terra, com uma fúria incrível, tentou se avançar sobre os presentes. O Antão gritou o nome dele e o cachorro tentou se avançar até sobre o dono. Parecia possuído pelo demônio. O policial que deveria ser o chefe disse para o Antão: – Senhor, se soltarmos seu cachorro ele é capaz de matar até o senhor mesmo, e quem sabe quantos mais, ele tem que ser morto. O Antão gritou: – Nãooooooo... Todos os presentes gritaram sim, ele tem que morrer antes que cause mais danos. O chefe pediu para retirar as crianças e as senhoras e em seguida autorizou um dos policiais, que tirou a arma do coldre, deu um tiro, e ali ficou o bicho morto. Todos bateram palmas, o chefe disse que tinha que levar o cão e pediu para alguém conseguir uma caixa de papelão. Apareceram mais de três, enquanto os policiais baixavam o cachorro, o Antão, esbravejando jogava terra nos policiais sendo imediatamente algemado. Assim mesmo tentou fugir. Daí algemaram-lhe os pés. No momento que estavam levando o Antão para o carro da polícia, chegou Ocoró e Carlos chorando de forma desesperada. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 168 Quando a conversa chegou neste ponto, a mulher de Atanázio largou a vime, se levantou, passou a mão no rosto, e quase chorando disse: – Não, não quero lembrar aquele dia. Uma das gurias também se levantou, limpou as lágrimas e disse: – Esquece mãe, faz tanto tempo que quase todos já esqueceram. Senta mãe, deixa o pai contar para o negrinho, quem é que não fica curioso quando enxerga o Carlos, um rapaz branco, elegante, bonito, filho de um pai negralhão e feioso como o Ocoró. Se o Carlos fosse albino, podia se dizer que era filho de dois pretos, sempre ouvi dizer que às vezes o filho de um casal de pretos, bem pretos, nasce tão branco que quase não consegue abrir os olhos. Nós sabemos que o Carlos é filho de dois brancos, descendentes de europeus, e o Carlos conserva essas feições. A outra menina disse: – Continua pai, que eu também quero ouvir e saber, porque naquela época eu era muito criança. Atanázio continuou. – O caso é que Carlos e Ocoró choravam naquele desespero. Ocoró estava sem camisa, tinha tirado para limpar o sangue e cobrir os ferimentos da Virginia. Desceu com ela no colo e dirigindo-se a todos disse: – Está morta, morreu por asfixia e estrangulamento ocasionado por aquele cão maldito e seu maldito dono. Estas palavras proferidas por Ocoró deixaram todos os presentes atônitos, pois nunca tinham ouvido Ocoró dizer o mais leve palavrão. O povo ficou enfurecido e queria linchar Antão. O chefe policial interveio imediatamente dizendo não, não pode matá-lo, ele tem que viver, se morrer, quem é que vai indenizar o Ocoró e o menino? Antão, de olhos bem arregalados, olhava para todos os lados, parecia um selvagem recém saído da selva. Ocoró entregou um papel para o oficial que tinham lhe dado no hospital. O oficial assinou e devolveu para Ocoró. Naquele tempo os mortos eram velados em casa. À noite, quase toda a vila estava no velório, e também a maior parte dos vizinhos do bairro. Atanázio interrompeu a história e me disse: – A vila de vocês recém estava se organizando, só existia a parte de baixo. Depois continuou: – Ocoró e Carlos não paravam de chorar, dava dor, muita dor, os presentes também choravam ao vê-los chorar. Ocoró, de vez em quando se levantava e com muita delicadeza limpava pequenas manchas de sangue e a beijava. Era quando o Carlos se abraçava ao pai, chorando, e nesse momento fazia chorar a maior parte dos presentes. Atanázio fez um parêntese e, dirigindo-se à mulher e às filhas, disse: – Como o Palácio foi tão prestativo nesse momento para Ocoró. Foi buscar os parentes de Virginia e desde aquele dia o Palácio não mais bebeu e nem brigou. Ao regressar do cemitério, todo mundo estava arrasado, tudo era silêncio profundo, as crianças não davam o menor grito, até parecia que entendiam a dor das pessoas. Atanázio me disse: – Negrinho, o Ocoró era um homem alegre antes da chegada da Virginia e depois mais ainda, brincalhão, era muito prestativo, entregava as encomendas aos vizinhos brincando, sempre carregava balas no bolso e dava para as crianças. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 169 O Carlos era um rapaz humilde, gostava de estar reunido com nossa turma, participava de nossas brincadeiras. Eu sentia que ele gostava de mim, eu lhe ensinava a fazer mágicas trucadas, aprendeu a andar de bicicleta na minha bicicleta, tinha aprendido a cantar e a acompanhar uma valsa (quando as aves deixam seus ninhos). Um dia me disse que estava juntando dinheiro para comprar um violão, que da mesada que o pai lhe dava, guardava um pouco, e quando não tinha muito movimento no armazém, o pai lhe deixava ganhar uns trocos carregando cestos dos fregueses, porque tinham poucos carregadores e os compradores andavam a cata de um. Fiz muitas perguntas ao Carlos, até lhe disse que o Polaco só me pagava dez centavos por semana e ele me disse: – Negrinho, tu podes ganhar cinco ou seis centavos por dia, ou mais, carregando cestos se tu quiseres experimentar vai e eu te ajudo a conseguir fregueses. Quando cheguei em casa, contei para a mãe. Uma vizinha, que tinha ido visitar a mãe, porque estava curiosa para conhecer a cozinha e o famoso fogão a querosene, quando falei de Carlos, o filho de Ocoró, ela, que morava perto deles, e que assistira a tudo, começou a contar e disse: – Chava, Ocoró era um homem alegre, cuidava do jardim, dos canteiros, ele sabe de tudo quanto se refere à plantação e gostava de ajudar os vizinhos a cuidar dos jardins e dos canteiros. Aos domingos à tarde, quando fechava o mercado, saía pela rua a mexer com a vizinhança, mas após a morte de Virginia, a mãe de Carlos, ele tornou-se um taciturno, triste, não se vê ele mais nas ruas. Um dia, fui com meu marido visitá-lo, e ele nos disse que a única razão de ainda estar vivo era o Carlos, que é tão parecido com a mãe, e é a sua única alegria. Ele é feliz por vê-lo crescer, vê-lo estudando, e nele sente a presença da Virginia. Fica contente à noite, quando ele regressa das brincadeiras com os amiguinhos, na hora marcada, e também aos domingos, quando regressa da matiné, contandolhe algumas cenas do filme, embora o sangue não seja o mesmo, sente correr o sangue dele nas suas veias. Combinei com o Carlos que no dia seguinte iria ao mercado e ele me convidou para ir junto na charrete com o pai. Antes das 7 horas eu já estava na casa deles. Enquanto Ocoró dirigia a charrete, Carlos e eu brincávamos e conversávamos. Uma vez no armazém do Ocoró, o Carlos me disse: – Espera um pouco que há de aparecer um freguês, em seguida me deu um saco que era para colocar nos ombros para não sujar a camisa, ademais assim se caracterizavam os carregadores. Enquanto estava parado do lado de fora do armazém, vi passar vários rapazes com o saco nas costas e gritavam: – Levo o mercado, levo... Alguns já passavam com o cesto no ombro e o dono ou a dona da mercadoria ia na ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 170 frente. Eu estava distraído vendo o movimento do mercado quando uma senhora entrou no armazém de Ocoró. Enquanto Carlos atendia, ela olhava para fora, e o Carlos que a conhecia, lhe disse: – A senhora pode pegar o Negrinho, ele é de casa. A mulher disse: – Que bom. E já me foi entregando o cesto. Ao sair, Carlos me fez sinal com os dedos (quatro), e eu compreendi, quando a deixei no coche, ela sem me perguntar, me deu quatro centavos. Naquele dia ganhei doze centavos, a tarde cheguei em casa feliz com o novo ganha-pão. O relato de experiências À noite, reunido com a garotada, eu lhes contava a minha nova forma de ganhar uns trocos. Dias depois eu já tinha vários amigos, que ganhavam a vida da mesma forma que eu, eram garotos pobres iguais a mim, também moravam em vilas miseráveis iguais à que eu morava, nos queríamos muito, nos ajudávamos, nos cuidávamos uns aos outros, éramos muito amigos. Ultimamente não ia mais com Ocoró e Carlos, porque eu tinha que caminhar muito até a casa deles e agora tinha combinado com meus amiguinhos de nos encontrar no Parque São Nicolas e daí íamos correndo e brincando até chegar ao mercado, éramos quatro e sempre estávamos juntos. Lembro-me que na barraca onde vendiam comida e café, a dona era uma morena bem gorda, mas mesmo sendo tão gorda era muito ágil. Ela nos cobrava dois centavos para os quatro tomarmos café com pão ou arepa e no almoço nos cobrava cinco centavos pelos quatro. Servia bastante comida e nos dizia que tínhamos que nos alimentar bem para podermos carregar peso. A verdade era que não sabíamos se conosco ela tinha lucro, empatava ou perdia. É claro que nós lhe retribuíamos ajudando na faxina da barraca, ou com outros serviços. Também ajudávamos na limpeza as donas das bancas de frutas e verduras. Cada um tinha a sua cliente e se por alguma circunstância um de nós não podia atender a sua cliente, outro de nós a atendia. No mercado já éramos bastante conhecidos, tanto das barracas de comidas, das de frutas, verduras, as bancas de carnes e dos armazéns, até os próprios compradores nos achavam educados e prestativos. Além de nós quatro, também havia outros carregadores adultos e rapazes. Alguns deles nem nos olhavam. Às quintas-feiras eu ia dar uma mãozinha ao Polaco e também nos domingos à tarde, após o mercado fechar. Num domingo, quando cheguei no Polaco, ele me informou que aquela moça que um dia havia me levado de carro junto com o guri, estiveram à minha procura na quarta-feira anterior. Fiquei muito contente e no mesmo domingo, antes de escurecer, eu disse ao Polaco que iria visitar meus amigos. Dona Elga me penteou, colocou ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 171 vaselina nos cabelos e me botou perfume. Ao chegar na casa de Efraim, quem me recebeu foi uma das empregadas, que me informou que eles tinham ido passear num cidade chamado La Cumbre, um lugar muito frio, onde eles costumavam passar os três meses de férias escolares e voltariam só depois do Natal. Ela também me disse que eles tinham ido à minha procura para me levar junto. Efraim tinha ficado muito triste por não ter me encontrado. Fiquei um pouco sentido pelo desencontro, mas ao mesmo tempo pensei: até que foi bom, porque eu não conseguiria ficar três meses sem levar algum dinheirinho para casa, para ajudar a mãe. Expectador escondido das touradas Hoje calculo que já fazia uns cinco meses que carregava cestos no mercado. Lembro que nas quintas-feiras, como tinha pouco movimento no mercado, íamos na estação do trem carregar malas para ganhar uns troquinhos. Algumas vezes, hoje, sozinho em meu escritório, surge na minha mente todo aquele passado, e fico pensando que, apesar de nós quatro sermos tão pobres, éramos felizes. Às tardes, quando regressávamos para nossas casas, estávamos contentes, cada um de nós levava frutas, verduras e até pedaços de carne. Nós não pedíamos, nos chamavam e nos davam, e nós regressávamos felizes para nossas casas, brincando pelas ruas. Aos domingos, quando tinha touradas, nos encontrávamos na praça de touros, e como esta era feita de taquara, conseguíamos entrar por uma brecha aberta por nós e assim podíamos ver toda a corrida sem pagar, na parte debaixo dos tendidos, suportando a sujeira que caía dos sapatos dos espectadores. Um dia, no momento mais emocionante da corrida, e quando estávamos distraídos, dois caras nos pegaram e nos levaram numa sala que servia de escritório. O diretor nos fez várias perguntas: onde morávamos, o que fazíamos, se estudávamos... Após todas estas perguntas, nós morrendo de medo, respondemos a todas, e ele nos disse: – Aos domingos, quando houver touradas, vocês entram por aqui, pelo escritório, e veem a corrida acomodados, sentadinhos. Ele não nos xingou, só nos disse que não entrássemos mais por aquele buraco porque alguém poderia nos ver e fazer o mesmo. As temporadas taurinas começavam em dezembro e terminavam em fevereiro. Durante o resto do ano, as touradas eram esporádicas, se apresentavam novilheiros do Município, do Estado, ou de outros estados, mas eram principiantes. Um dia, estávamos tomando café na barraca da preta velha, era assim que nós chamávamos a dona, quando vimos chegar os dois homens que nos pegaram vendo a tourada embaixo dos tendidos. Levamos ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 172 tremendo susto, eles, muito sorridentes, nos cumprimentaram, nos deram até a mão e nos perguntaram se já tínhamos pago o café. Respondemos que não, então um deles disse: – O café é por nossa conta, quanto é, senhora? – Dois e cinqüenta cada, então são dez centavos, e pagaram. Nós ficamos caladinhos, em seguida um deles, dirigindo-se a nós, enquanto o outro pedia dois cafezinhos à preta velha, que estava atenta nos cuidando, nos disse: – Lembram-se do diretor da praça? – Sim, respondemos. – Ele mandou perguntar se vocês gostariam de limpar a praça de touros após as corridas, ele lhes paga dez centavos para cada um. Nós tínhamos uns rapazes, mas às vezes não apareciam e o chefe brigou com eles e nos mandou procurar vocês. Também mandou dizer que, mesmo que vocês não queiram, podem continuar vendo as corridas. Nós nos olhamos, mexemos as cabeças de forma afirmativa e respondemos para eles que sim. Pagaram os cafezinhos e se despediram dizendo: – Então, no domingo nos encontramos? – Sim, sim... No domingo, antes das 13 horas, os quatro amigos estávamos na praça de touros. Terminada a corrida e orientados para o serviço que devíamos fazer de vassoura na mão varríamos e limpávamos os tendidos, e por último a arena do redondel. Os monosábios são os trabalhadores que cuidam dos touros que vão ser toureados, colocam as rosetas, substituem os touros que não reagem na arena e os que são mortos. Em todas as corridas sempre são lidados quatro touros e no caso de um não ser brabo há mais sobressalentes. Terminada a corrida, e após todos terem ido embora, inclusive os empresários e diretores, e enquanto nós limpávamos os tendidos, os monosábios tiravam um dos touros sobressalentes e começavam a tourear. Faziam todo tipo de faenas, banderilhas e até simulacro de morte, quando este estava bem cansado soltavam outro touro e a história se repetia. Como não podíamos limpar e nem emparelhar a areia, ficávamos olhando eles tourear, depois eles nos ajudavam a fazer o trabalho. Com o passar do tempo descobrimos que isto, que eles faziam depois das corridas com aqueles touros, lhes servia de prática. Nos domingos, quando não havia touradas na cidade, eles iam nos povoados proximos organizar corridas e se anunciavam como grandes novilheiros, que tinham toureado em vários países, inclusive na Espanha. Na propaganda eram grandes matadores de postim, prestes a receber a alternativa, ou seja, o título de toureiro. Algumas vezes eles retornavam alegres porque lucravam um bom dinheiro e outras vezes mal e mal lhes sobrava para as passagens. Um dia Lorenzo, o chefe dos monosábios nos procurou no mercado e pediu para abrirmos o portão da praça para um espanhol que dava aulas de ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 173 tauromaquia a vários alunos, homens e mulheres, todos entre quinze e dezesseis anos. As aulas eram dadas na própria praça, com todas as formalidades, como se realmente fosse uma corrida normal. Como não haviam touradas programadas eles foram organizar um festival taurino noutra cidade, um pouco distante ao nosso. Então, no dia marcado e um pouco antes da hora, abrimos o portão, em seguida os alunos começaram a chegar, entre eles duas meninas. Logo o espanhol também chegou, acompanhado de outro senhor, que tirou de um quarto uma armação de madeira com uma roda de bicicleta imitando um touro, tinha cabeça e chifres de touro, o corpo era uma lona imitando a cor. O morrinho era uma bola de alcatram onde eram colocadas as banderilhas. O companheiro do espanhol sabia de cor os movimentos e as investidas de um touro bravo, desta forma os alunos aprendiam a arte da tauromaquia. Eram orientados pelo espanhol de como deveriam pegar o capote, a forma de se perfilar, como ludibriar o touro e saber correr para os burladeiros, enfim, tudo o que era relacionado para tourear um touro bravo durante meia hora. Quando o aluno fazia uma faena errada, esta era repetida até acertar a forma correta. O espanhol gritava Olééé...! A disciplina era parelha, tanto para os homens quanto para as mulheres. Eu estava feliz, observava tudo de forma minuciosa. Ultimamente eu chegava primeiro, abria a praça, para poder praticar sozinho, depois abria o portão e esperava os alunos e o espanhol. As aulas eram as quintas e segundasfeiras e eu estava sempre presente. Já tinha me tornado amigo do espanhol, do ajudante e dos alunos. Quando terminavam as aulas e os alunos iam embora, eu ajudava o espanhol e seu auxiliar a organizar os trastes e a emparelhar a arena, e também a colocar o papel colorido nas banderilhas, que de tanto praticar, se rasgavam e o espanhol gostava de tudo organizado, para que na hora de dar as aulas tudo parecesse uma autêntica corrida. O espanhol me disse que era de Jerez, Espanha. Um dia, conversando com ele, lhe contei tudo o que o Antônio tinha sido para mim e as saudades que sentia dele. Certa vez o espanhol me convidou para ir almoçar na sua casa. Aquele dia fui no mercado só na parte da manhã, meus companheiros concordaram em atender minhas freguesas. Esse dia a mãe me vestiu com o melhor e mais novo shortezinho feito por dona Elga. A tiracolo levava a minha inseparável bolsinha com os utensílios de higiene. Na hora e lugar combinado o espanhol chegou num coche, ao mercado, onde tínhamos acertado o encontro. Uma vez no coche, ele me perguntou o porquê de lhe esperar no mercado. Contei-lhe que era porque ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 174 no mercado eu ganhava uns troquinhos carregando cestos para os fregueses. Lembro que ele me abraçou, me passou a mão nos cabelos, me apertou contra seu peito e disse: – És um homem! As agruras na casa de um aristocrata Como é que posso esquecer aquele abraço amigo da minha infância e naquela pobreza. A sua casa era bonita, num bairro aristocrático, as grades eram de ferro forjado tipo colonial e no jardim havia muitas folhagens, a grama era bem aparada, a porta de entrada era de madeira com altos relevos também artísticos coloniais. Ao entrar na casa, nos recebeu uma senhora muito bonita, bem vestida, muito perfumada, que me abraçou e em seguida disse: – Seja bem vindo! Meu marido tem falado muito do amiguinho Ortega. Pegou-me pela mão, não antes de dar um beijo no marido, e me levou para a sala. Ele falou para ela que queria me levar ao gabinete, ela concordou, e ao se retirar nos disse: – Ainda falta um pouco para o almoço. Antes de chegar no gabinete, atravessamos uma ampla sala onde havia sofás, pufes, mesinhas de canto com abajures e uma mesa central em madeira e toda caprichosamente esculpida, o lustre central era todo de bronze. Tudo naquela sala era muito bonito para mim, um lindo tapete cobria toda a sala. Ao entrar no gabinete, o que primeiro me chamou atenção foi um traje de luzes azuis com bordados dourados e alguns salpiques vermelhos, era lindo demais para os meus olhos. Numa vitrine havia um par de sapatilhas, uma monteira, e colocados em pé dois estoques, havia também três rabos e várias orelhas de touro, todas empalhadas. Nas paredes estavam pendurados vários quadros onde se podia ver o amigo espanhol toureando. Tudo era organizado neste gabinete, os jornais, que eram muitos, estavam colados em papelão e em forma de livro. Um único quadro pintado a óleo mostrava o amigo com a muleta num lindo trincheraço, esta vista também estava num dos jornais, repetida de vários ângulos. Em alguns dos jornais podia se ver o momento da estocada e a morte do touro. Havia recortes de jornais de diferentes lugares mostravam-no dando a volta ao ruedo, os troféus ganhos. Tinha jornais da Espanha, Portugal, México e também da Colômbia. Eu me sentia no paraíso vendo tantas coisas lindas e tão bem organizadas. Capotes pendurados, muletas, rosetas, banderilhas, lenços grandes e coloridos, pentes, leques grandes, tudo isto estava neste gabinete. Num quadro grande que estava em frente à porta de entrada via-se uma linda Magnola, toda sorridente, o rosto me parecia familiar. Perguntei para o amigo quem era ela, ao que ele me respondeu: - É a minha mulher, aquela que conhecestes agora mesmo. Essa foto foi tirada num festival taurino na praça de Santa Maria, era um ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 175 festival beneficente, foi ali que conheci minha mulher. No baile após a corrida, dançamos a maior parte da noite e foi a minha melhor conquista, tudo isto que estás vendo foi vivido a seu lado. Noutra foto estava um casal de jovens e, antes de lhe perguntar quem eram, ele me disse: – Eles são nossos filhos. Estão na Espanha. O filho estuda e ela está casada e espera um filho. Foram na frente para mandar consertar, pintar e organizar a nossa casa que ficou muito tempo desocupada. Enquanto esperamos a conclusão das obras este é o nosso santuário, é aqui que eu e a minha mulher nos sentamos a relembrar o passado, os momentos felizes. Cada uma destas peças que tu estás vendo tem uma história. Nesse momento a senhora se apresentou à porta e nos disse: – Vamos! Pedi licença para me lavar as mãos. Que banheiro! Até aquele momento era o mais lindo que tinha visto. Indo para o comedor, passamos por uma sala estreita, pequena, bem iluminada, onde estava a imagem de uma santa, ele me disse: – Esta é a Virgem de La Macarena, padroeira dos toureiros. Ele se abençoou e eu também. Antes de chegar ao comedor comecei a pensar: e se me servem um pedaço de carne igual àquele que me serviram na casa do Efraim, será que me aventuro a cortar? A filha do Gratiniano sempre que eu ia à casa deles me ensinava a comer com garfo e faca, só que lá, qualquer erro era motivo de risada, porém naquele comedor, com aquela toalha branquinha, guardanapos bordados, talheres de prata, copos com desenhos de flores e fadas, que provavelmente seriam de cristal, ali era diferente. Nunca passou na minha mente que eu não era daquela sociedade, hoje, após tantos anos passados, fico pensando porque seria que, apesar de ser um negrinho miudinho, feio, e morador de uma das vilas mais pobres da minha cidade, sempre me via sentado às mesas das mais altas sociedades, mesmo com minha roupinha de fazenda barata? O que sempre ouvi foi: – Ele é uma simpatia e tem um lindo sorriso. Continuemos, eu via todo esse luxo, essa beleza, porém no meu interior permanecia aquele pedaço de carne, como deveria cortá-lo, e se saltar longe? Que vergonha! Não, melhor não me aventurar e tornar a dizer que não gostava de carne. E se vier com aquele aroma provocativo? Que tristeza não o comer, pensava, se consigo sair desta, vou comprar um garfo e uma faca, praticar bastante para não me ver nestes apuros. Falava a respeito de touros com o amigo quando a esposa entrou com uma sopeira fumegante, com um aroma para mim desconhecido e gostoso, além de tudo, a sopeira era uma peça bonita, cor marfim, com desenhos em alto relevo em cores azul e vermelho. Ela me serviu primeiro e depois o marido, era um creme gostosíssimo. A primeira colherada me trouxe à mente a minha mãe, meus irmãos, que comidinha estariam comendo, e eu, quem diria! Tentou manifestar-se-me um começo de pranto, que consegui superar sem eles sentirem e continuei saboreando meu delicioso creme. Da cozinha vinha ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 176 um cheirinho gostoso, mas aquele pedaço de carne me atormentava, o cheiro era igual ao da casa de Efraim. Antes de nós terminarmos de comer o gostoso creme ela se levantou e foi em direção à cozinha que estava ao lado do comedor. Quando ela se levantou, me correu um frio para baixo do peito, passando pelo estômago. Ela não demorou e entrou trazendo um tacho de cobre, e ao colocá-lo na mesa me perguntou: – Ortega, gostas de paella? Respondi: – Nunca comi, mas eu gosto de tudo. Ela me serviu, que alívio, não era aquela carne que tanto me perseguia. Comecei a comer, que coisa boa, camarões grandes, mexilhões, peixe, tinha de tudo quanto era frutos do mar, me grudei a comer que nem fiz questão de outros pratos que ela nos serviu, ela me repetiu a paella e eu aceitei, que alívio, fácil de comer com garfo. Enquanto comíamos, conversávamos, ríamos, eles me perguntavam e eu respondia. Depois do almoço passamos para a sala, que gostoso sentir a maciez daquele sofá, os dez minutos do Antônio se manifestaram com força, a salvação foi um chá de jasmim que a senhora nos trouxe, passando o dito sono. No meio da conversa ela me disse: – Ortega, vou te fazer uma pergunta, me diga, noutro dia saiu no jornal um menino Ortega que sobreviveu no acidente de um ônibus. Antes de ela terminar a pergunta respondi: – Sim, era eu e contei toda a história, eles vibraram me ouvindo, lhes contei do senhor chorão que também se salvou, falei de como as enfermeiras e os médicos me tratavam, dos cigarros, da lata com comida que não se perdeu, eles queriam saber tudo. Quando lhes estava contando que a minha tia Otilia me eliminava as cicatrizes com urtiga, bateram na porta, entrou uma senhora com uma pasta, o espanhol me apresentou, lhe dizendo: – Aqui temos um futuro toureiro e com sobrenome de toureiro famoso, Ortega. Ela disse: – Sim, já ouvi toureiros com este sobrenome. O espanhol disse: – Na Espanha temos dois, no México um, e aqui na Colômbia tem um e com este chaval, serão dois. Ela sentou-se e a conversa mudou, abrindo a pasta lhes deu notícias boas: – A casa foi vendida, e pelo valor acertado, aqui está o cheque do arras e o restante vem na escritura, que demora de vinte a trinta dias, terão que deixar tudo o que foi acertado, o resto poderá ser enviado direto a Jerez através de uma companhia de navegação, eles se encarregam de empacotar e entregar no lugar indicado. À medida que falava, lhes ia entregando documentos, por último lhes disse: – Num edifício do centro tem vários apartamentos mobiliados, cobram por dia. Eu estava caladinho, ouvindo e fazendo conjecturas. Após entregar os documentos e dar informações, a senhora despediu-se. Uma vez a sós, a esposa dirigiu-se ao marido e lhe disse: – Amor, graças a Deus que está ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 177 tudo dando certo, estou com muitas saudades de nossos filhos, quero estar presente ao nascimento do meu neto ou neta, seja lá o que for, quero ver minha família, a nossa casinha. Ele, com muito carinho lhe disse: – Já falta pouco, meu amor. De novo nós três continuamos conversando, num momento oportuno lhes perguntei: – E quando vocês vão embora? Ele me respondeu: – Quando meus alunos tiverem enfrentado os primeiros touros, eles praticamente já estão em condições, daqui a uns quarenta dias vamos ter uma tenta na fazenda de um conterrâneo meu que cria touros de casta, é perto daqui, são touretes de dez meses a um ano, vai ser a primeira tenta deles, devem ser uns vinte e cinco animais, e tu também vais tourear. Um ou dois, todos vão tourear, minha mulher também. Ele ficou um pouco pensativo e em seguida me disse: – Ortega, será que tu poderias pedir as chaves a Lorenzo e abrir o portão da praça nas terças e quintas? É que os alunos chegam às 14 horas e eu só poderei estar depois das 15 horas. Como sou o Presidente da Casa de Espanha, e como vou embora, estou apresentando as contas à diretoria e passando a presidência ao vice. Eu tinha um rapaz que fazia este serviço, só que ele desapareceu, pagarei o mesmo que pagava para ele. Era impossível não aceitar. Achei que estava na hora de ir embora. Ao me despedir, ela me entregou um pacote e disse: – Leva essa paella para tua mãe. Fiquei feliz. Saí com o espanhol, ele queria me mostrar o serviço a ser feito na praça antes dele chegar, depois queria me levar em casa, mas eu pedi que me deixasse no mercado porque tinha que pegar a minha bicicleta. No mercado me encontrei com o Carlos que insistiu para que eu pegasse o dinheiro pago pelas minhas freguesas, terminamos dividindo, embora eu não quisesse nada. Contei-lhe todo o acontecido na casa do espanhol, e o que tinha visto, e o serviço que ele tinha me dado. Ele prometeu que atenderia minha freguesia nesses dias. Nas terças e nas quintas eu esperava os alunos na praça com tudo organizado, imediatamente as aulas começavam dirigidas pelo homem que movimentava o touro falso, eu também participava dos treinos. O que mais gostava era de colocar as banderilhas que a maior parte das vezes acertava e todos batiam palmas. Antes de continuar, quero lhes dizer que a paella foi uma festa lá em casa, a única que ganhou um prato também foi a mãe de Romélia, o resto fomos nós que comemos. Eu percebia que o espanhol gostava de mim, todas as terças e quintas a esposa dele me mandava algum doce ou salgado, que eu levava para casa e comia com a mãe e meus irmãos. A minha rotina tinha modificado: na segunda-feira ficava todo dia no mercado, na terça ficava de manhã, pela tarde ia abrir a praça, chegava cedo, organizava e ajudava a controlar tudo até a chegada do espanhol. Quando terminavam as aulas e todos iam embora, eu ficava guardando os ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 178 trastes e emparelhando a areia, o mesmo fazia na quinta. Na sexta e no sábado, trabalhava todo dia no mercado, eram os dois dias que ganhávamos mais, no domingo só trabalhávamos de manhã, na parte da tarde nos reuníamos com os alunos do espanhol na praça para praticar. Cada um por vez lhe tocava empurrar o carrinho “touro”. O que eu mais gostava era aplicar as banderilhas, uma vez terminadas as práticas, todos em conjunto organizávamos os trastes e emparelhávamos a areia, as meninas também ajudavam. Aos domingos, quando havia touradas, saía com meus amiguinhos na parte da tarde diretamente do mercado à praça de touros para depois da corrida limpar tudo. Quase sempre após a corrida era solto na arena um touro daqueles que era levado como sobressalente para a gurizada e adultos se divertirem toureando, só que eu achava que quem mais se divertia era o touro, porque a cada momento, o que a gente via era alguém voando, outros o touro passava por cima, alguns já iam com seu capote e conseguiam dar uns bonitos passes, e quando isso acontecia, todos se retiravam para que o rapaz pudesse tourear, estes rapazes eram chamados de espontâneos. Os monosabianos antes que o touro ficasse cansado recolhiam-no para o touril e depois que todo mundo ia embora, então éramos nós os toureiros, primeiro toureávamos um e depois o outro. Eu me divertia aplicando banderilhas, meus amiguinhos só gostavam de ver. O Carlos esperava que o público saísse, depois batia no portão e eu abria, ele entrava e se sentava nos tendidos para nos ver tourear. Eu acho que foi através do Carlos que a gurizada ficou sabendo que eu toureava e aplicava bem as banderilhas. O enfrentamento do touro Numa quinta-feira após as aulas, o espanhol nos reuniu e informou que dentro de quinze dias seria a tenta, onde todos teriam a oportunidade de mostrar que sabiam tourear. Seria na fazenda de um amigo seu que ficava a duas horas dali. Ele disse: – Gostaria que vocês convidassem seus pais, que não ultrapasse de dois convidados, é tudo de graça, sairemos no dia 18 de julho, dia 19 será a tenta, no dia 20 pátrio passearemos pela fazenda, levem lápis e cadernos que lhes mostrarei algumas características dos touros, de acordo com a posição dos chifres e a forma de nos encarar. No mesmo dia 20, às 15 horas, estaremos de regresso. Conforme combinado, o dia 20 será meu último dia com vocês, mas gostaria de treinar mais na terça e na quinta-feira para ver o resultado de vocês depois de estarem frente aos touros. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 179 Dois dias antes da viagem, recém que falei para a mãe, mas só lhe disse que a esposa do espanhol tinha me convidado para uma festa numa cidade perto dali, ela me disse: – Tá, meu filho, mas procure se comportar bem direitinho. O dia chegou e todos enfrentamos os touros com naturalidade, observando as orientações de nosso professor. Acostumado com touros grandes como eu estava, aqueles terneirinhos não eram nada para mim, é claro que só eu sabia atuar com o capote, fiz verônicas, chiquelinas, gaoneiras, e com a muleta fiz passes de peito e até trincherasos, apliquei dois pares de banderilhas. O espanhol e a esposa eram só felicidade ao me ver fazer tudo aquilo, claro que ele não sabia que eu já estava acostumado a tourear os touros do touril junto com os monosábios depois das corridas. A esposa do espanhol também toureou, também o espanhol, o dono da fazenda e os filhos. Eles elogiaram a desenvoltura das meninas, ninguém, em momento algum, demonstrou medo, todos pareciam já acostumados com os touros. O espanhol foi felicitado pelo dono da fazenda pela eficiência dos alunos. Antes de subir para o ônibus, quando todos estavam reunidos, o espanhol nos disse: – Na terça os espero na praça, quero lhes corrigir alguns pequenos erros, com isto não quero dizer que vocês fizeram mal, ao contrário, tudo foi bem feito e me sinto feliz, são pequenas coisas para o futuro de vocês. Também quero me despedir de vocês na própria praça e com a presença da minha esposa, porque nos primeiros dias de agosto estaremos partindo para nossa pátria, a Espanha. Vamos nos reunir com nossos filhos e estar presente no nascimento do nosso primeiro neto, que deve nascer no fim do mês de setembro. Agradeceu a presença dos pais que acompanharam os filhos. Eu percebia o orgulho e a felicidade dos pais ao ver a valentia, o estilo e garra dos filhos frente aos touros. O dono da fazenda e os filhos nos colocaram à disposição a fazenda para quando quiséssemos praticar. Dentro do ônibus, em direção a nossas casas, tudo era alegria, risadas e comentários do touro que tocou a cada um, o barulho era geral. Na terça todos estávamos presentes, foram algumas poucas dicas nos treinos, na quinta de novo todos estávamos na praça. O espanhol felicitou um por um, repartiu os capotes e as muletas, a esposa que estava presente pegou um pacote e me entregou, era um shortezinho e uma blusa de seda, em seguida o espanhol abriu um capote novinho e me colocou como capa e disse: – Esse é o teu. Depois tirou do bolso dez pesos e me entregou dizendo: – Pelos serviços prestados e me disse: continua que estás muito bem. Um dia quero te ver na Espanha na frente de um miura. Abracei-o, depois fui abraçar sua esposa, que também me abraçou e me deu um beijo na bochecha. Nesse momento bateram no portão, era o pessoal da Casa de Espanha que vinha à sua procura para a ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 180 despedida, era também seu último dia como presidente da Casa de Espanha. Ela de novo me abraçou e beijou dizendo: – Adios mi querido Orteguita, me gustó haverte conocido, adios. Todos saímos para fora do portão e todos batemos palmas no momento da partida deles, senti um friozinho na barriga, uma sensação de tristeza e vontade de chorar. Que pena, nunca mais soube deles. A mãe estava feliz com os dez pesos, era mais um empurrãozinho em casa. Continuei indo ao mercado às quintas. Até meio-dia na estação, a tarde e no domingo também ia no Polaco, sempre eram três ou cinco centavos que ganhava e trabalhava toda a semana. Quando tinha toureada aos domingos os quatro estávamos lá para limpar a praça e eu aproveitava para dar meus capotaços e colocar umas quantas banderilhas. As lembranças Surge-me na memória Evaristo e hoje tenho uma vaga lembrança de como ele era conhecido na minha cidade. Lembro de algumas vezes, quando estávamos pintando os fogões com Camacho, o dia em que Chepe me convidou para ir com ele e o senhor Evaristo na carroça para entregar dois sofás e outra vez quando fomos trazer bebidas para festejar o dia do trabalhador, eles dois iam à frente e eu dentro da carroceria. Apesar do tempo que já se passou vejo os dois, parecidos como duas crianças, mexendo com todos os que eram conhecidos, cumprimentando em voz alta e com piadinhas a todos, eram risadas após risadas desde que saíamos até voltarmos. Evaristo tinha um carro muito bonito, só que ele preferia andar na carroça com Chepe. Sempre falava: – Meu “FORD” é para os domingos. Tinha esquecido meus amigos, ocupado que vivia entre o mercado, a praça de touros e o Polaco. Um dia, por acaso ou impulsionado por alguma sensação, fui visitar Gratiniano, que no meio da bagunça que a sua família fez com a minha chegada pelo tanto tempo desaparecido, Gratiniano me disse: – Negrinho, teu amigo, o dono das lojas, aquele que te deu o fogão, sabes quem é? – Sim, respondi, o Evaristo. – Sim, ele mesmo, sabes que ele está muito doente, está internado no hospital? Aquela notícia me caiu como uma pedrada na cabeça. Gratiniano me mostrou o jornal onde estava a notícia, eu disse: – Vou ao hospital para vê-lo. – A esta hora não te deixam entrar negrinho, me disse Gratiniano. Despedi-me e saí correndo para minha casa avisar a mãe que ia na casa do Chepe. Meia hora depois chegou Chepe, a primeira coisa que me disse foi: – Nosso amigo está muito mal no hospital, agora ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 181 mesmo deixei a Eva em casa. A Lusdari ficou no hospital. Perguntei: – Será que amanhã me deixarão entrar? – Entrando comigo, acho que sim. No dia seguinte cedo eu estava na casa do Chepe. Coloquei a minha bicicleta dentro da carroça, embora já tivesse tomado café na minha casa, tomei de novo a convite de Chepe e Mercedes, em seguida saímos. Primeiro Chepe teve de fazer duas entregas e depois nos dirigimos para o hospital. Quando estávamos entrando no quarto onde estava Evaristo, nos encontramos com seu filho caçula, o Luzio que ia saindo, e ao me ver com Chepe, antes de o cumprimentar, num tom grosseiro, me disse: – Você não vai entrar, vai incomodar. O pai está doente, volte para sua casa. – Sim senhor, respondi tímido e humildemente. Até hoje me revolto só em me lembrar da forma tímida como lhe respondi. Ele se dirigiu para o subsolo pela escadaria e eu me dirigi para o portão de saída. Chepe me alcançou e disse: – Volte Negrinho que ele não manda em você, em seguida nos sentamos num banco do corredor. Chepe me disse: – Esperemos, o doutor está no quarto de Evaristo. Chepe tinha verdadeiro ódio de Luzio. Disse-me: – Negrinho, foi bom você ter vindo, porque quando o Evaristo ficar bom, você vai trabalhar conosco lá nas lojas, o próprio Evaristo me disse que ele gostava muito de você e que o desejo dele era que você crescesse trabalhando nas lojas para poder te ajudar. Negrinho, minha casa é tudo que eu tenho e foi ele quem me deu. Espera, que quando Evaristo ficar bom, vai te dizer para ir trabalhar com ele. Eles já tiveram várias discussões a esse respeito com os filhos, por ele te querer por lá, eles em princípio não queriam, porém ele lhes gritou: – Quem sempre deu as ordens do que tem que ser feito fui eu, e continuarei dando e o Negrinho virá trabalhar aqui conosco sim senhores. Chepe continuou e disse: – Negrinho, eles não gostam de ninguém, do que eles gostam é deles mesmos e do dinheiro que o Evaristo lutou para ganhar junto com a Lusdari. Eles são uns crápulas e o que me assombra é que a guria era tão meiga e desinteressada, mas casou-se com o cara mais sovina que a terra há de desmanchar um dia e os outros dois não sei como é que casaram com mulheres da mesma laia, são orgulhosas, não gostam de pobre, o que não entendo é como eles puderam sair tão diferentes desse par de velhos. O Evaristo e a Lusdari, eu os conheço desde que chegaram aqui, trabalhadores incansáveis, nunca foram miseráveis, não eram usureiros, quando vendiam fiado e a pessoa não conseguia pagar, eles não se importavam, esperavam até a pessoa poder pagar. Negrinho, eu comecei de guri a trabalhar com eles, fazem uns quarenta e cinco anos. Evaristo e Lusdari têm sido meus pais, é pena não poder dizer que aqueles merdas são meus irmãos. Paramos de ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 182 conversar quando vimos sair o médico acompanhado de duas enfermeiras, uma delas fez sinal para que entrássemos. Quando abrimos a porta e Lusdari me viu, veio rápido, me abraçou e disse: – Negrinho, porque tu não apareceste mais, ingrato? Lembro que eu não sabia responder. Em seguida me disse: – Sabes que o Evaristo vai te levar a trabalhar nas lojas, ele tinha falado com Chepe para um dia destes irem te procurar. Evaristo me viu e a primeira coisa que disse foi: – Oh Negrinho, vem sentar perto de mim! Sentei-me na cama e ele me passou o braço pela cintura e perguntou: – O que estás fazendo? Contei-lhe do mercado, de Ocoró, do Carlos, do Espanhol e quando falei dos touros ele disse: – Perigoso! Em seguida me disse: – Assim que me levantar desta cama, tu vais trabalhar conosco lá nas lojas, tu gostarias? Muito alegre respondi: – Sim senhor! Pegou-me no braço e disse: – Nós vamos dar um jeito nesses olhos para que consigas estudar. Meu coração pulava de alegria, ele com carinho ficou me olhando e disse estas palavras, (textualmente não me lembro) mais ou menos começou assim: – Negrinho, tu vais crescer, serás um grande homem, receberás honras e se continuares com essa meiguice, esse sorriso, essa educação e simpatia, em todos os lugares onde chegares, serás bem acolhido, e o mundo para ti será pequeno. A voz dele era muito fraca, não era aquela voz de trovão que tinha quando andava com Chepe na carroça mexendo com todo mundo. Lusdari me passou um copo de suco de graviola, que eu adorava, e inconscientemente eu disse: – E para ele? – Ele já tomou, e mostrou o copo ainda sujo em cima do bidê. Notei que ele estava um pouco sonolento, Lusdari confirmou dizendo: – São os remédios que está tomando, dormiu um pouquinho e acordou, me chamou, me deu um beijo na testa, eu retribuí, dando um beijo no rosto e outro na mão, ele sorriu, me deu um leve aperto na mão e em seguida pegou no sono, sua respiração era ofegante, quase roncando. Chepe se levantou, o cobriu com o lençol e com uma sutileza de menino, lhe ajeitou os cabelos, cruzou os braços e o ficou olhando com um olhar carinhoso. Evaristo se mexeu, abriu os olhos e com uma voz entrecortada disse: – Dari, dá cinquenta centavos para o Negrinho. Lusdari em seguida se acercou a ele, lhe deu um beijo, sim amor, eu dou, imediatamente pegou a niqueleira e me deu todo o troco que tinha, sessenta e cinco centavos, eu não queria pegar, mas Chepe interveio: – Pega Negrinho, foi ele quem mandou. Peguei e guardei. Minutos depois Chepe disse: – Vou embora porque tenho que fazer várias entregas, vamos junto Negrinho!. Lusdari me apertou em seu colo e me passou as mãos nos cabelos, eu prometi voltar no dia seguinte, ela me disse: – Negrinho, se um dos meus filhos estiver aqui e te disser alguma coisa, não faz caso, entra, é que eles são meio birutas. Pedi para o Chepe me deixar ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 183 no mercado. Contei para meus amigos que ia trabalhar nas lojas de Evaristo. Quando contei para Carlos, Ocoró que estava ouvindo, começou dizendo: – Aquele Evaristo é um homem muito bom, é humano, e mesmo sendo rico, não é miserável, é um trabalhador incansável, é muito conhecido e querido por todos os que o conhecem. Ele é de um povo perto de minha terra, enriqueceu dando duro, a mulher e ele trabalhavam parelhinho, coitado, que Deus ajude, ele há de ficar bom. Eu não via a hora de chegar em casa e contar para a mãe que Evaristo tinha me prometido trabalho em suas lojas, que era só ele sair do hospital que mandaria Chepe me buscar. Quando contei para a mãe ela ficou muito contente e como sempre, agradeceu a Deus e à Santa Sara Kaly. Enquanto estou escrevendo esta parte da minha vida vêm à tona todos aqueles momentos vividos, lembrei que aquela noite me deitei pensando em estar trabalhando, atendendo fregueses, ajudando a organizar as mercadorias, vestido com o uniforme que usavam os empregados, me deitei feliz. Sonhei que já estava trabalhando, orgulhoso com meu uniforme feito por dona Elga, porque nas lojas não tinha o meu tamanho. Vi o Dr. Corrêa na loja, me vi na casa de Gratiniano vestido com o uniforme. Neste momento acordei, abri os olhos e vi que era só um sonho, que pena! Mas não faz mal, quando o Evaristo ficar bom vou trabalhar com ele, pensei, como me sentia feliz, não parava de contar para a mãe que ele tinha me dito que quando eu crescesse iria receber muitas honras, é claro que me lembro que não sabia o que era isso, e nem sabia explicar para a mãe. Após tomar café peguei a minha bicicleta e primeiro fui até o mercado pedir para o Carlos e meus amigos atender os meus fregueses, em seguida saí com destino ao hospital, pedalava cheio de alegria, sorria sozinho, se alguém chegasse a me ver poderia pensar que estava doido. Deixei a minha bicicleta com o zelador e subi correndo, não vi a carroça, portanto Chepe não tinha chegado ainda. A porta do quarto estava aberta, havia várias pessoas, ouvi o pranto de Lusdari, meu coração pulou, fui entrando e abrindo caminho entre os presentes, quando a Lusdari me viu, chorou mais alto, me apertou contra si e disse: – Negrinho, ele morreu! Senti correr por todo meu corpo uma espécie de calafrio, as minhas pernas ficaram bambas, se a Lusdari não me mantivesse apertado talvez eu tivesse caído. Voltou a se formar aquele nó na garganta, sentia fogo nos meus olhos, Lusdari chorava amargamente, não me largava. Chepe chegou abrindo caminho bruscamente, e já perto de Evaristo, em voz alta perguntou: – O que foi doutor? O doutor calmamente respondeu: – Ele faleceu. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 184 A morte da mulher de Ocoró, aquela tragédia toda me foi contada, eu não presenciei o pranto de Ocoró, de Carlos e de alguns familiares, nada disto eu vi. A morte de Evaristo, o desespero de Lusdari, as palavras de Chepe chorando eu presenciei. Agora que estou escrevendo aquele passado, torno a ver e a sentir com evidência aqueles momentos, apesar dos anos que já se passaram. Quando o doutor falou para Chepe: - Ele faleceu, Chepe deu um berro: – Não, não, não pode ser, não Evaristo, não faz isso comigo, por quê? Com as duas mãos pegou uma das mãos de Evaristo e olhando para o corpo inerte, como se estivesse vivo, lhe dizia: – Risto, tu tens sido meu benfeitor, meu companheiro, meu pai, meu amigo, meu confidente. Nesse momento entrou em crise, em desespero, e chorando mais forte gritou várias vezes: – Porque me deixas? O que será da minha vida sem a tua companhia? Vendo o desespero em que Chepe se encontrava, Lusdari chorando se acercou, e entre o médico e alguns presentes, pegaram Chepe e o foram retirando. Lusdari com voz calma falou: – Não adianta mais, ele já foi embora, tu perdeste teu amigo, eu perdi meu marido, meu companheiro, o pai dos meus filhos. Deus nos dará forças para suportar esta dor, calma Chepe, calma. Lembro-me que vi entrar dona Mercedes, seu vestido era cor azul marinho, sem mangas, nos ombros vestia um xale preto, seus cabelos lisos estavam soltos e seus olhos vermelhos cheios de lágrimas. Quando viu o estado em que se encontrava o marido, o abraçou, e soluçando disse-lhe: – Velho, não adianta mais, ele nos deixou, Deus o chamou, perdemos aquela jóia que nunca mais encontraremos outra igual. Evangelina (Eva) e Nelson entraram choramingando igual que Mercedes, tinham ouvido a notícia pelo rádio. A filha de vez em quando ajeitava os cabelos de Lusdari e o Luzio também, idem o irmão, quando não lhe arrumavam os cabelos, lhe secavam as lágrimas. Uma das noras trouxe um jarro d’água com açúcar, deu um copo para Lusdari e outro para Chepe, que com a cabeça encostada no ombro da mulher continuava choramingando. Lusdari, sentada ao lado dele lhe segurava uma das mãos. Eu, sentado num canto, observava todos os movimentos. Os filhos, o genro e as noras limpavam as lágrimas e de vez em quando o nariz, os que não queriam chorar tinham os olhos vermelhos, o médico num canto, imóvel, estático, como petrificado com um olhar distante. Hoje, passado tanto tempo é que consigo interpretar o olhar daquele médico, era um olhar de derrota. Através das notícias do rádio, a morte de Evaristo grassou por todos os cantos e começaram a chegar coroas de flores com nomes de firmas, de famílias, entidades, alcancei ler algumas que eram de grupos escolares. Dois senhores chegaram com o caixão, dois enfermeiros que ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 185 entraram junto pediram para as pessoas se retirarem, pois queriam limpar e vestir o defunto. Todos saímos. O corpo foi velado no prédio da esquina onde tinham sido pintados os fogões. Já estava terminado, aquela esquina era toda envidraçada, pintada, o piso tinha uma cerâmica muito bonita. Meu estômago roncava de fome, sem me despedir de ninguém fui saindo de mansinho, peguei minha bicicleta e fui para o mercado, dos sessenta e cinco que Lusdari tinha me dado, cinquenta tinha dado à mãe e ficado com quinze, fui almoçar na preta velha, meus companheiros já tinham almoçado. Feita a refeição, depois do asseio e perfumado, fui ver Carlos, Ocoró já tinha comprado o jornal e quando me viu disse: – Que pena, morreu o velho! Na primeira página e em letras grandes estava escrito: Morreu “Ernst Eckert”, mais conhecido pelo nome de Evaristo, casado com Lusdari Edil Del Rio, tinha três filhos, dois homens e uma mulher, morre aos 82 anos, era nascido na cidade de Dusseldorf na Alemanha, seus pais emigraram para este país quando Ernst só tinha dois anos, seus pais eram agricultores que se radicaram num povo a 90 quilômetros da cidade. Evaristo e Lusdari se mudaram para a cidade após a morte dos seus progenitores, trabalhadores incansáveis fizeram uma merecida fortuna, filantropo, fez muitas doações e colaborava com muitas instituições, sua felicidade era andar na carroça com seu inseparável amigo José, mais conhecido como Chepe. No jornal anunciava que seu enterro seria no dia seguinte às 10 horas. Como o cemitério era perto da nossa casa, minha mãe quis ir e esperar na porta do cemitério, Romélia nos acompanhou. Era muita gente acompanhando o enterro. Uma banda tocava músicas fúnebres, num carro de bombeiros vinham pessoas idosas, noutro vinham crianças excepcionais, a pé vinham alunos de escolas uniformizados, um grupo de soldados e outro de policiais, vários padres e o sacristão rezavam. De longe vi quando Lusdari descia dum coche chorando, também vi o Chepe, estava transfigurado, inconsolável, chorava sem parar, vi os filhos com suas esposas e a filha com o seu marido, todos vestidos de preto. Com tanta gente, não vi quando saíram, regressamos para casa, me sentia triste, desolado, pensava: se foi o meu sonho de trabalhar com Evaristo. No dia seguinte saiu em todos os jornais a morte e o enterro, fotos dele quando jovem, do casamento com Lusdari, da multidão que acompanhou o enterro. Eu não sabia até esse momento que o Evaristo era tão conhecido e que tinha ajudado tanta gente, e morreu justamente quando queria me ajudar. Conheci-o quando estive auxiliando Camacho a pintar os fogões, e isso fora há alguns meses. Segundo Chepe me contou, ele queria me ajudar, sobretudo para curar meus olhos, queria que eu me ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 186 criasse trabalhando nas lojas, depois, no hospital, ele também me prometeu isso, era só ele ficar bom. Queria era me ajudar, foi isso que o Chepe me adiantou. Após o enterro de Evaristo, voltamos, a mãe, Romélia e eu, me sentia um pouco abatido, mas acredito que não era pela morte de Evaristo e sim de ver o desespero de Chepe, dele chorar, de se lamentar, de ver tanta gente chorando, lembro Lusdari tentando acalmar o Chepe, relembro as palavras dela para ele: – Chepe, tu perdestes teu amigo, eu perdi meu marido, o pai dos meus filhos! Não sei por que aquelas palavras ficaram gravadas na minha memória. Uma vez chegando em casa, fui direto para a cama, me sentia cansado, embotado, lembro que a mãe tentou me acordar para jantar, mas eu não quis, e continuei dormindo. Alguns momentos depois meu irmão Marino me chacoalhava, dizendo: – Mano, mano, vamos jantar. Acordei-me, tinha dormido toda a tarde, estava escurecendo e chuviscava, me levantei, jantei, ainda na minha cabeça rodeava toda aquela bagunça daqueles dois dias, enquanto meus irmãos brincavam, eu não tinha vontade, me deitei novamente, porém fiquei acordado. A missa de sétimo dia No dia seguinte continuei minha rotina, fui ao mercado, me faziam muitas perguntas, respondia o que sabia, apesar de tudo sobravam resquícios das sensações vividas naqueles dois dias. No domingo, como não tinha touradas, fui para o Polaco ajudá-lo a organizar os parafusos por bitolas, a passar a tarraxa e a lubrificar, tarefa muito importante, porque era o que mais se vendia durante a semana. Eu estava com o avental de couro que sempre usava quando trabalhava no Polaco, as minhas mãos estavam sujas de óleo e acho que meu rosto também, quando me pareceu ouvir uma voz conhecida, em seguida a voz da minha mãe que descia de um coche, levei um pequeno susto. Vi o Chepe também descendo com dona Mercedes, todos foram entrando, pedindo licença e cumprimentando. O Chepe quando me viu disse: – Ele está bonito todo engraxado. E sem me dar tempo para nada, me pegou no colo e levou correndo para o coche dizendo: – Vamos que alguém quer te ver. A mãe e dona Mercedes riram quando me viram no colo de Chepe, ele me colocou dentro do coche e ali estava dona Lusdari, que devido aquele problema que tinha nos pés, não desceu. Ela me pegou, me abraçou, e como se eu fosse uma criancinha, me beijou. Eu tratava de abrir os braços para não engraxar sua roupa. – Me abraça, ela me disse. – É que estou com as mãos sujas de óleo. – Não faz mal, quero sentir esses bracinhos. Enquanto estávamos abraçados, dirigindo-se à mãe que estava presente, disse-lhe: – Isabel, este seu filho é uma jóia. O propósito da visita era para convidar-nos para ir no dia ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 187 seguinte a uma missa em homenagem a Evaristo, que estando vivo, faria aniversário, depois da missa almoçaríamos na casa de Lusdari. A mãe também foi convidada, mas respondeu que não poderia ir porque tinha que entregar as roupas de uns passageiros, mas que eu iria. Ao despedir-se, Lusdari deu cinco pesos de presente para minha mãe. No dia seguinte Chepe me pegou em casa e fomos direto para a igreja, a missa era exclusiva para a família. Quando chegamos, lá estavam os dois filhos com suas esposas, a filha com seu marido, estavam dois empregados com os netos de Lusdari, dona Mercedes, Eva e Nelson, havia algumas pessoas conhecidas da família e outras que estavam só para assistir a missa. Uma vez terminada a missa fomos para a casa de Evaristo, só o grupo que realmente pertencia à família. Um quadro grande com a foto de Evaristo tinha sido colocado em frente à mesa do comedor. Chepe, que sempre carregava Lusdari, a colocou em frente ao quadro, e ela começou a falar: – Velho, hoje é o teu aniversário e estamos aqui reunidos para te homenagear. Lusdari não conseguiu falar mais porque começou a chorar, os dois filhos a pegaram e a sentaram à mesa. Chepe estava de pé em frente ao quadro e olhando para ele, estava mudo, sentimos que não conseguiria falar, de pronto, com uma voz trêmula, quase chorando, começou a falar: – Risto, te lembra o ano passado no teu aniversário, a farra que fizemos? Hoje, no teu aniversário, rezamos para que tenhas merecidamente o Paraíso. Sentou-se à mesa chorando e a sua mulher tentou acalmá-lo. No almoço pouco se falou. Uma coisa que notei foi que os filhos de Evaristo, que nunca tinham falado comigo e nem me olhavam, naquele dia me trataram com carinho. Um deles até me perguntou: – Negrinho, o que tu fazes? Os três chegaram a conversar comigo, mas foi só isso. Cheguei a pensar que eles iriam me convidar a trabalhar, mas nada falaram. Chepe notou que eu estava louco de sono e se prontificou me levar para casa. Todos se despediram de mim de forma carinhosa e, ao me despedir de Lusdari, ela me deu cinco pesos. No caminho, Chepe me contou que o Evaristo tinha deixado assinado a sua aposentadoria. Tinha lhe deixado um dinheiro como indenização por tempo de serviço e também a carroça e o cavalo. A Lusdari lhe contou que Evaristo tinha feito isso a mais de um ano e registrado em cartório. Perguntei se ele ia continuar trabalhando com eles, Mercedes e Chepe me responderam em uníssono: – Não! Não vou trabalhar com aqueles merdas. Agora eles estão bonzinhos, mas espere que passem alguns dias, voltarão a ser os mesmos diabos, e para não ter que dar uma surra num deles, não vou continuar. Deixaram-me em casa, prometendo encontrarmo-nos a qualquer momento. Passada aquela ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 188 tempestade em que entrei de gaiato, continuei minha vida indo ao mercado, na estação do trem, limpando a praça de touros com meus amigos, e ajudando o Polaco de vez em quando. Às vezes visitava o Dr. Corrêa e o Gratiniano, duas vezes por semana ia no Túlio receber aulas de violão e quando tinham alguma festa me convidavam. Preocupava-me sentir que o dinheiro que ganhava era pouco, alguns dias oito, outros dias dez ou doze, nos domingos, quando havia tourada, ganhava mais dez centavos e também aproveitava para praticar colocar alguns pares de banderilhas e tourear um pouco aqueles touros que eram levados como sobressalentes, no caso de algum sair manso, dos que seriam toureados. Dificuldades financeiras Eu notava que aquele dinheirinho que ganhava era pouco para ajudar a mãe e sempre vivia pensando na forma de ganhar mais. Só que me sentia um burro por não conseguir um meio de aumentar os ganhos e amaldiçoava por não poder estudar, mas ao mesmo tempo pensava: se eu não ajudar a mãe por estar estudando, quem a ajudaria, quem levaria verduras, frutas e às vezes carne, que ganhava no mercado? Para não dizer que nunca mais vi Efraim, num domingo à tarde, quando cheguei no Polaco, ele me disse que o meu amiguinho tinha estado à minha procura com a irmã, no sábado. Fiquei ajudando o Polaco até às 5 horas da tarde, em seguida fui avisar à mãe que iria visitar o Efraim. Quando cheguei na sua casa, todos me receberam com muito carinho. Efraim me pegou pela mão e me levou para o seu quarto e em seguida começamos a tocar as músicas que sabíamos. Quando conversamos, me disse que na segunda-feira, ou seja, no dia seguinte, iria para o internato e que só voltaria nas férias da metade do ano. Foi esta a última vez que vi o Efraim naquele tempo. Uma noite, quando nos reunimos, Carlos apareceu todo faceiro porque tinha comprado um violão. Apresentei-lhe a Túlio, que se prontificou a ensiná-lo a tocar. Eu continuava na mesma rotina, de casa para o mercado e vice-versa. Aos domingos, quando havia corridas, limpávamos a praça e eu ganhava mais dez centavos, fora dos cinco ou seis que ganhava no mercado e também alguns troquinhos que o Polaco me dava. Um dia, quando a minha mãe conversava com uma vizinha, falavam de mim e ouvi a mãe lhe dizer: – Daqui a quatro meses o negrinho vai completar onze anos. Não me importei com isso, também nem sabia o mês. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 189 De vez em quando apareciam toureiros de outros lugares, uns que se diziam ser de Portugal, outros eram mexicanos, e tratavam de imitar as falas, ou venezuelanos, peruanos, espanhóis, etc. Uma vez, apareceu um toureiro que dizia ser espanhol, tinha certa quantidade de fotos e recortes de jornal dos países segundo ele dizia ter toureado. Ele era baixinho, de cabelos ralos e eu me encantei com ele. Lembrava-me do meu amigo espanhol de Jerez e, sobretudo, do Antônio. Hoje, quando me recordo daquele senhor, acho que na realidade ele não deveria ser espanhol e não poderia ter toureado em tantos países. Interpretando sua pobreza, lembro que dormia na praça de touros, seu travesseiro era o capote e o lençol eram duas muletas que tinha. Eu estava encantado com ele, de manhã, antes de chegar ao mercado, lhe fazia uma visita e encontrava-o tomando café preto, que ele mesmo preparava, não tinha mistura. Ultimamente eu pedia para a mãe me enrolar uma arepa ou alguns patacones para ele acompanhar o café. Ele não comia, devorava tudo aquilo que eu levava. Um dia lhe perguntei por que ele não ia ao hotel onde chegavam todos os toureiros, ele me respondeu que todo seu dinheiro estava na Espanha e que já tinha pedido para lhe mandarem um pouco, mas que o dinheiro estava demorando e que enquanto esperava, ia levando a vida dessa forma. Naquela época saiu nos dois jornais mais importantes da cidade, algumas fotos dele toureando e anunciavam a futura corrida na cidade. Certa manhã, quando cheguei para levar mistura para o café, estava com ele um senhor forte, bem vestido, de terno escuro e de chapéu, que fumava charuto ao estilo Churchill. Não demorou muito e o homem guardou uns papéis numa pasta e se despediu. O dito espanhol o acompanhou até o portão da praça e voltou correndo, todo alegre, esfregando as mãos e me disse: – Ele é o meu empresário. Eu não sabia o que era isso. Dias depois a cidade estava cheia de cartazes anunciando a corrida do tal famoso toureiro espanhol. Também se escutava propaganda nas rádios, e eu estava todo orgulhoso de ser amigo do dito toureiro. O Lorenzo, monosábio, apareceu um dia no mercado para me convidar a ir na praça de touros, a pedido do espanhol e do seu empresário. Uma vez na praça, o espanhol e o empresário me receberam todos sorridentes. Foi o espanhol quem falou, me dizendo que ele reconhecia que eu tinha sido seu melhor amigo e que os monosábios tinham me recomendado como bom nas banderilhas e por isso ele queria que eu fosse seu banderilheiro nessa corrida e que talvez me levasse para outras corridas noutras cidades. Aceitei imediatamente, me recomendou que não era bom falar a ninguém para evitar problemas, porque eu era menor, também prometeu pagar um peso e vinte centavos. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 190 A corrida por certo foi muito bonita, os toureiros foram Lorenzo, tendo como monosábio um rapaz que tinha por apelido O Espontâneo, Raul e Jair, que eram monosábios foram banderilheiros, e eu também, o toureiro de cartel era o espanhol. Foi bastante aplaudido, os touros eram bons e os soube aproveitar. No dia seguinte, o espanhol, na hora de me pagar, fez uma proposta na frente dos monosábios: – Ortega, tu és bom nas banderilhas e gostaria que tu fosses meu sócio numa corrida que vou fazer no país vizinho, os empresários seríamos nós dois, cada um entra com um peso e setenta centavos e o lucro repartimos em partes iguais. Pode ser que ganhemos cem pesos cada, pode ser duzentos, e até trezentos. Tu vais ter que conseguir mais cinquenta centavos, e com este um e vinte que tenho que te dar, completa o um e setenta, só que não podemos demorar muito. Eu vou na frente e vou organizando tudo, de forma que quando chegares está tudo pronto, vou encher aquela cidade de cartazes por todos os lados, onde se lerá: – Grande apresentação do toureiro mais jovem do mundo, Orlando Ortega. Falou-me tanto, e tanto me prometeu, que eu, muito ingênuo, acreditei nele e comecei a sonhar com duzentos pesos de lucro a mais para a mãe fazer uma casa igual a de Chepe ou a de Ocoró. Agora só tinha que conseguir os cinquenta centavos que faltavam. Naquela noite quase não dormi pensando em como arranjar aquele dinheiro. Tirar um pouquinho do dinheiro que ganhava no mercado demoraria muito, o máximo que poderia seriam dois ou três centavos e o espanhol não iria esperar. Outra solução seria vender a bicicleta, porém, por eu ser menor, dificilmente alguém compraria, e se pedisse para a mãe vender, ela iria querer saber para que era o dinheiro. Penhorar a bicicleta, não tinha recibo, não sei por que me acompanhava uma certa esperança de alguma coisa. Um dia comecei a perguntar nas bicicleterias quanto poderia custar a minha bicicleta. Uns me disseram quatro pesos, outros cinco pesos, em uma que entrei, mais perto de casa, me encontrei com o André que estava consertando um pneu da sua bicicleta. Ficou feliz quando me viu. Uma vez pronta a sua bicicleta, saímos juntos, ao atravessar por um campo, André encontrou uns amigos que estavam jogando bola, e para mexer com eles, deu um forte chute na bola, que foi parar embaixo de uma casa de madeira, construída do tipo palafita, muito antiga, que não era muito levantada, deveria ser uns 25 centímetros. O André ficou vermelho, ele estava vestido com uma roupa que mais parecia um terno. Vendo o André naquele apuro, e como a minha roupa era toda surrada, corri para tirar a bola. Fui me arrastando até tirar a bola, vi que o piso da casa era de madeira e estava todo furado. Alguns buracos eram tão grandes que cabia uma mão, dentro da casa funcionava ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 191 uma fábrica de picolé. Por uns buracos fiquei olhando e lá dentro vi um senhor com botas de borracha e de avental preto. Ele puxava os picolés de umas caixinhas e jogava numa caixa de madeira que estava no chão, perto de onde eu estava. Não fiz caso e saí com a bola e André entregou para os amigos que continuaram jogando. Sem subirmos nas bicicletas, saí com André conversando. Ele me contou que quando tinha vontade de comer picolé, ele entrava se arrastando até chegar ao buraco onde estavam os picolés e quando o homem ficava de costas, mexendo com a manivela de uma roda que estava dentro da caixa de água, ele aproveitava para pegar uns dois ou três picolés dos que estavam enrolados, os colocava dentro de uma bola furada que tinha consigo e depois ia ao parque chupar seus picolés. Ele disse: – Quando tu quiseres, vem que eu te mostro. Perguntei: – E a gurizada não vê? – Não, eles só jogam à tarde e o fundo da casa fica para o campo e não tem porta nem janela, por isso não tem perigo. Eu primeiro fico jogando com uma bola furada, depois dou um chute para baixo da casa, aí eu me arrasto até chegar à bola e depois aos picolés. O André ficou na sua casa e eu continuei para a minha, sempre com o pensamento nos cinquenta centavos: pedir vinte e cinco para o Dr. Corrêa e vinte e cinco para Gratiniano, eles iriam querer saber para quê era esse dinheiro. Vender o capote, mas me lembrei que o toureiro tinha dito que era para levar o capote. A solução seria ir ao porto, só que agora tinha que pagar a passagem, mesmo indo com um adulto, e eu não tinha esse dinheiro. Ademais, o navio dos meus amigos não estaria ainda lá, faltavam uns quinze dias para eles estarem no porto. O sono me pegava, sempre pensando nos tais cinquenta centavos, como conseguir? Regressava do mercado cedo e saía à procura de cobras, nessa rota encontrava ninhos com ovos das galinhas, e como sabia quem era a dona, ia e os entregava, só que desta vez me dediquei a procurar em todos os ninhos que já conhecia. Em um deles encontrei uma galinha ainda no ninho e fiquei esperando até que ela levantasse. Havia quatro ovos, naquela tarde reuni onze ovos. Vendi para Gratiniano a um centavo cada, em todo lugar custava dois centavos. Quando Gratiniano me perguntou de onde eram, lhe disse que ia ganhar dois centavos por vendêlos e que eram de uma senhora que tinha muitas galinhas. No dia seguinte encontrei só um ovo, que levei para casa, os onze centavos guardei junto das mágicas, era pouco dinheiro e o tempo corria. Naquela noite pensei: quem sabe se a solução não está nos picolés, me lembrei que André tinha me dito que os guris só jogavam nos domingos à tarde porque durante a semana estudavam. Decidi-me, na quinta-feira, só que não iria contar para o André, deveria fazer tudo ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 192 sozinho. Peguei uma bola que eu equilibrava, tirei um dedal que tinha colado e fiz um corte, nessa quinta-feira enquanto a gurizada estudava, fui para o campo decidido a pegar os picolés. Tudo estava em silêncio. Das casas que se encontravam retiradas do campo tenuemente se ouviam barulhos, talvez de panelas e choro de crianças, chegando bem perto do casarão se ouvia o ruído da roda movida pelo homem dentro da água. Olhei para todos os lados, fiz de conta que jogava bola sozinho, dei um chute e mandei a bola para baixo do casarão. Em seguida, fazendo de conta que ia atrás da bola, entrei me arrastando até chegar ao lugar da bola e onde estavam as caixas cheias de picolés. Em uma das caixas os picolés já estavam enrolados. Deitado, e pelo buraco fiquei olhando o movimento do homem naquele momento, e como bênção de Deus, o homem tirou o avental e entrou no banheiro, fechou a porta, e eu, sem perder tempo, comecei a puxar os picolés. Não os colocava dentro da bola, mas sim no chão. Quando ouvi a descarga d’água do wc parei, coloquei os picolés dentro da bola e saí o mais natural e rápido que pude. Fui para casa, sabia que a mãe andava entregando roupa, peguei uma travessa enlouçada que a mãe tinha ganho da Elida, limpei os picolés que estavam sujos de terra e contei, tinha vinte e dois. O preço do picolé era dois centavos em qualquer lugar. Peguei a bandeja e primeiro fui na Romélia, lhe disse que era uma fábrica nova e que tinham dado para vender a um centavo cada. Comprou-me cinco, e entre os vizinhos vendi o resto. Guardei o dinheiro junto com o outro, devolvi a travessa e fui para o Polaco. No domingo trabalhei no mercado pela parte da manhã, atendi minhas freguesas, sempre com o pensamento nos picolés. Não almocei, me despedi dos meus companheiros alegando que tinha que fazer um serviço para a mãe. A bola eu já tinha levado enrolada e amarrada na grelha da bicicleta. No armazém de Ocoró pedi uma caixa de papelão e amarrei junto com a bola. Quando cheguei no campo, a gurizada estava jogando, me desanimei um pouco, mas reagi imediatamente, tirei a bola e comecei a chutar contra a minha bicicleta. Dei um chute forte proposital em sentido ao casarão e a bola entrou lá onde eu queria. Um guri que estava perto me olhando, quis entrar e tirar a bola. Não deixei, dizendo-lhe que ia sujar sua roupa e que eu estava com roupa suja, ademais, lá embaixo tinha até cobras. O guri ficou quieto e eu entrei rápido. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 193 Faltava ainda ir até o porto e lá ganhar para viajar ao lugar indicado pelo espanhol. Na segunda procurei o espanhol para lhe entregar o dinheiro, só que ao invés de lhe dar cinquenta, lhe dei quarenta e sete, e prometi que quando ganhasse, lhe daria os outros três centavos. Aceitou, inclusive me disse que achava que eu tivesse desistido e pensava em me deixar o peso e vinte com Lorenzo. Em um papel me deu anotado como, onde e de que forma poderia chegar ao local combinado e quanto me cobrariam. Conversamos mais um pouco, por último me pediu que, por favor, não lhe deixasse ficar mal, lhe prometi que talvez até chegaria antes da data da corrida. Ao nos despedirmos, me deu as dicas de como viajar num navio escondido. Dinheiro para viajar ao porto eu já tinha, agora só me faltava para viajar ao exterior, ou então viajar escondido. Só tinha dez centavos, pensei em tentar a sorte no porto, o navio onde trabalhavam meus amigos deveria chegar por esses dias, pensava a melhor e mais rápida forma de chegar ao espanhol. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 194 5 FUGA PARA OUTRO PAÍS N o domingo houve corrida. Uma vez terminada a corrida eu com meus amigos limpamos a praça, depois, indo para casa, decidi que na manhã, segunda-feira, iria para o porto tentar embarcar de uma vez por todas. Sabia que na segunda a mãe ia cedo entregar a roupa e meus irmãos iam para a escola. Decidido, saí como se fosse para o mercado e me escondi num lugar onde poderia ver a mãe passar com a roupa que iria entregar. Não demorou muito e ela passou, quando vi que estava distante, voltei para casa, escondi a bicicleta no meio dos tijolos que eram para a construção, era um lugar que quase a gente nunca ia, peguei dois baralhos, dois dedais, algumas moedas trucadas, alguns shorts, cuecas, camisas, o capote e a minha inseparável bolsinha, coloquei o dinheiro no bolso e saí correndo. Em busca de dinheiro para a mãe Quando cheguei na rodoviária um ônibus estava para sair rumo ao porto. Comprei a passagem e sem nada de dúvida embarquei. Agora o meu pensamento era no dinheiro que ganharia toureando, talvez cem pesos, ou mais e quando voltasse para casa a mãe ficaria feliz recebendo todo aquele dinheiro, e com ele, ela iria querer fazer uma casa igual a de Chepe. Peguei no sono, sonhei toureando, sonhei repartindo o dinheiro com o espanhol e ele me convidando para tourear em outro país, cheguei até a sonhar entregando o dinheiro para a mãe, não senti a viagem. Acordei com o barulho da chegada do ônibus na rodoviária, desci e saí correndo rumo ao cais do porto, ia pensando se teria alguns navios. Se tivesse, voltaria ao mercado e compraria bananas, e assim iria aumentando o dinheiro, enquanto descobriria a forma de viajar. Tinha vontade de procurar o Angelito, ele conhecia todo o movimento ali no porto, inclusive ele já tinha viajado, e por dinheiro e cigarros ele me ajudaria. Corria sempre, e de vez em quando trocava a minha sacola de ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 195 ombro, mas não parava. Uma grande alegria embargou meu coração quando de longe vi o navio onde trabalhavam meus amigos. Corri mais e com mais vontade. O guarda que estava na portaria do cais era meu conhecido e me deixou entrar. Perguntou pelas bananas, respondi: – Primeiro vou cumprimentar meus amigos, depois vou trazer. Dentro do navio, a alegria era total, tanto do pessoal de bordo como a minha. Após cumprimentar os que encontrei, me dirigi à cozinha para cumprimentar meu amigo, o italiano. Ele me recebeu com um abraço, enquanto conversávamos eu lhe ajudava na cozinha. Na hora do almoço todos queriam saber como era que eu tinha conseguido me salvar, lhes contei todo o acontecido. Eles me disseram que antes de zarpar tinham escutado a notícia, onde tinham dado o nome dos passageiros e ficaram sabendo que eu estava entre eles. Todos ficaram muito tristes e o italiano tinha até mostrado algumas lágrimas. Quando regressaram procuraram informações, conseguiram jornais daqueles dias, onde tinham me visto e ficaram sabendo que eu me salvara e todos comentavam e ficaram muito contentes. À tarde, enquanto o pessoal da limpeza limpava a cozinha, peguei o baralho e comecei a ensinar algumas provas novas para meu amigo. Ele me contou que fazia muito sucesso na terra dele nos bares com os amigos, que ele lhes falava de mim e também para a mulher e para os filhos. Muitos queriam que ele me convidasse para ir à Itália, e ele tinha prometido de um dia me levar a passear para que eles pudessem ver tudo o que eu fazia. Conversamos bastante, até que tive a oportunidade de lhe contar do compromisso assumido com o espanhol e que eu queria ganhar aquele dinheiro para que a mãe pudesse terminar a casa. Pedi-lhe se num momento de folga ele não poderia ir até um navio daqueles que fossem para aqueles lados ver se poderiam me levar cobrando barato. Ele ficou pensando, depois me disse: – Nós vamos parar num porto daquele país e zarparemos daqui a dois dias, atravessaremos o canal do Panamá e o primeiro porto que o navio parar é o país que tu tens que estar, só que ali tu vais ter que pegar um ônibus que te leve àquela cidade. Deu-me muitas explicações, depois disse: – Eu vou falar com o imediato para que nos facilite a descida nesse dia. Ofereci-me para ir lhe comprar bananas, aceitou e me deu o dinheiro. Subi a estibordo e perguntei quem queria bananas, é claro que todos queriam. Saí correndo a comprar, no caminho pensava: que bom que não precisaria procurar o Angelito. Ao regressar, o italiano me disse que o imediato tinha concordado, só que lá, na chegada, tinha que descer do navio antes das 6 horas para o Capitão não me ver. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 196 Escondido no navio No dia que o navio tinha de sair o italiano aconselhou que me escondesse no camarote dele. Lembro que naquela tarde fiquei escondido debaixo da cama. De vez em quando dava umas cochiladas até que comecei a ouvir ruídos de ferro, gritos, sinetas, correria e o navio se movimentando. Algumas horas depois, ouvi o ruído do apito do navio, e minutos depois tudo ficou em silêncio. Olhei pela clarabóia e vi que as luzes do porto se distanciavam, em seguida entrou o italiano e me disse: – Já estamos indo embora, daqui a três dias tu estarás na terra que te sagrará toureiro, gostaria de te ver toureando, fazes tantas coisas, imagino como serás toureando, pena que não posso parar de trabalhar por uns dias, preciso do dinheiro para sustentar minha mulher, dois filhos e minha mãe, mas não faltará oportunidade. Pediu-me para ficar dentro do camarote e tratar de não fazer ruído, sempre me levava o almoço, lanche, café, quase não conseguia comer tudo o que me levava. Todos os dias ele madrugava para preparar o café da tripulação, o camarote ficava perto da cozinha, depois do café começava a preparar o almoço e para que eu não ficasse aborrecido, me levava bacias cheias de batatas para descascar, ou cenouras, beterrabas, picar temperos, tirar as impurezas do arroz, do feijão, lentilhas ou grão de bico, com este serviço eu me distraía e o tempo passava rápido. No dia seguinte à partida e após dormir meus dez minutos, comecei a olhar pela clarabóia do camarote que ficava na popa e vi aquela imensidão de água onde não se via nenhum pontinho preto. Deu-me uma espécie de desânimo e comecei a pensar, se este navio começar a afundar para que lado é que a gente toca? De tanto olhar para fora fiquei meio mareado e fui me deitar. Comecei a me lembrar da minha mãe, dos meus irmãos, de Romélia, de Carlos, dos meus amigos do mercado, era melhor estar lá do que estar indo quem sabe onde, a um lugar que nem sequer eu conhecia. Quem sabe se a minha mãe estaria me procurando, porque não avisei nem para o Carlos, ou ao menos aos guris do mercado? Estava me arrependendo do que tinha feito, porque não falei para alguém? Peguei no sono, sei que sonhei, porém não me lembro o quê, me acordei quando o italiano entrou para me levar um lanche e ao entrar disse: – Vamos, toureiro, alimentar este cadáver para poder enfrentar os touros. Levou-me grostolis, chocolate com leite e queijo. Quando ele saiu comecei a pensar: se eu ganhar aquele dinheiro toureando, minha mãe e os meus irmãos também irão comprar salame e presunto, tudo aquilo que eu como aqui eles também irão comer, devo ter paciência, o tempo corre depressa e daqui a pouco já estarei toureando e voltando para minha casa e com dinheiro. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 197 Devo lhes dizer que dentro do camarote não tinha banheiro, este estava na frente, e para evitar sair fora do camarote, o italiano me levou uma lata onde fazia as minhas necessidades durante o dia; à noite, após às 22 horas, quando tudo estava calmo e muitos dormiam, então saía, esvaziava a lata, fazia cocô e tomava banho. Lembro a tarde em que o italiano entrou no camarote e me disse: – Estamos atravessando o canal do Panamá, chegaremos ao porto aí pela uma hora da madrugada, quer dizer que amanhã mesmo deverás te encontrar com teu amigo. Noutro país: a ilusão Realmente, às 5 horas e trinta minutos da manhã, desci do navio acompanhado do italiano que me levou até o portão do cais. O guarda era conhecido, o cumprimentou, enquanto lhe dava uma carteira de cigarros, em seguida me disse: – Bata forte na porta da lavanderia e diga para o homem que precisamos da roupa para hoje mesmo, sem falta, e volta rápido para tomar café. – Sim senhor, respondi, e saí correndo, tudo tinha sido anteriormente combinado. Seguindo a orientação que ele tinha me dado, quando cheguei na rodoviária, com o dinheiro da moeda nacional que o italiano tinha me fornecido, comprei a passagem. No terminal me informaram que o ônibus sairia às 9 horas. No bar do terminal tomei café e depois me sentei a esperar, apesar de estar feliz, meu coração dava de vez em quando uns pulinhos. A forma da gente se movimentar, o jeito de falar, tudo me era estranho, ficava olhando e prestando atenção para o que e como falavam, me lembrava de quando andava com o Manolo, que em cada cidade que chegávamos era o mesmo e aqui tudo diferente. O ônibus saiu lotado, era um carro velho, a estrada era sem asfalto e toda esburacada, a carroceria batia tanto que parecia que ia se desmanchar. A maior parte dos passageiros ia descendo, foram poucos os que chegaram na rodoviária. Em seguida me acerquei do motorista e perguntei-lhe onde ficava a praça de touros. Ele me olhou meio surpreso, e como que me questionando repetiu: – Praça de touros? Desceu do ônibus e perguntou para um senhor que ali se encontrava: – Aqui tem praça de touros? O homem ficou pensando e em seguida respondeu: – Só se for aquilo que resta e que parece que foi uma praça de touros. Indicou-me como deveria chegar lá. Ainda tinha esperança de me encontrar com o espanhol, mas olhava para todos os cartazes das paredes e não via nenhum que anunciasse a corrida de touros e só faltavam cinco dias. Calculo que caminhei umas dez quadras por uma fenda, não estrada, mato de lado a lado, muito ruído de passarinhos e alguns ruídos dentro do mato, seguramente de bichos fugindo da minha presença. Que ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 198 tristeza senti quando dei com uma tapera que parecia ter sido uma praça de touros de madeira, se viam pedacinhos do que teriam sido os tendidos, pedaços de paredes da frente de madeira com uma pintura azul, que mais parecia cinza de tão desbotada, e em volta de todo esse destroço só mato, nenhuma viva alma. Invadiu-me a desolação, triste, abandonado, roubado e enganado, sem dinheiro para voltar para casa. Tinha treze centavos colombianos, aqui o valor era a metade do dinheiro que o italiano tinha me dado, me sobravam quatro reales. O silêncio era total, a tarde avançava, onde dormir? E mais que tudo, o que comer, tive vontade de chorar, mas o pranto não se manifestou, voltou a lembrança da mãe, dos meus irmãos, nessa noite não teria com quem brincar, minha amiga Romélia, a gurizada da vila, meus amiguinhos do mercado, o Carlos, Ocoró que me tratava com tanto carinho, já fazia uma semana que saíra da minha casa, que desaparecera, o que será que estariam pensando Gratiniano, Dr. Corrêa, será que no bar já sabiam que havia fugido? Coitada da mãe, como será que está se virando sem o dinheirinho que eu levava todos os dias, meus pensamentos pulavam de um lugar para outro, culpava o Antônio por ele ter ido embora, eu poderia estar trabalhando com ele na serralheria. Em seguida o meu pensamento pulou para aquele tal de toureiro, que se dizia espanhol, mas que eu tinha minhas dúvidas dele ser espanhol, e agora eu confirmava, ele não podia ser espanhol! Os dois que conheci foram meus benfeitores e queriam me fazer o bem, e deste tal toureiro só tinha raiva de tê-lo conhecido, ele era o causador deste aperto em que me encontrava, e pensava: será que ele não estará ainda na minha cidade e dirá para minha mãe onde estou? Será que ele não conseguiu viajar? Mas então porque não me avisou? Mas em que praça ele iria tourear aqui, se não existe outra, a não ser esta tapera? Depois de olhar por todo aquele mato, e às vezes gritar: espanhol e só o eco me respondia, decidi voltar para a cidade, mas antes me lembrei de colocar o remédio nos olhos, eu tinha trazido todas as bisnagas do remédio, me sentei naquilo que parecia um tronco de árvore ali deitado, coloquei o remédio e aproveitei para descansar um pouco. Alucinação e novas amizades Isto que vou contar parece exagero, mas na realidade me aconteceu, se um dia você ler esta parte da minha vida e quiser acreditar, será muito bom, e se não, paciência. O caso é que estando sentado no tronco, e após colocar o remédio, tirei uma das sandálias para sacudir uma sujeira que tinha entrado, e bati com ela no tronco, bati várias vezes, e senti uma espécie de câimbra por todo meu corpo, olhei e me deu a impressão de que o tronco se mexia. Para colocar a sandália botei a mão ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 199 no tronco e senti nele como que algumas escamas e parecia que se mexiam, me levantei e fiquei olhando detidamente e vi que tinha dois pequeninos olhos, e muito vagarosamente botava a língua para fora como a de uma cobra. O susto que levei foi tremendo, peguei a minha trouxa e saí correndo, e de vez em quando olhava para trás para ver se o bicho não me seguia. Tal foi a corrida, que rápido já estava na cidade e ainda sentia arrepio de lembrar que tinha estado sentado naquele sabe lá que bicho era. Quando entrei na cidade, segui o caminho que o ônibus tinha feito em sentido à rodoviária, porque na frente tinha visto um parque. Agora não corria, caminhava, estranhei ver que a essa hora, em todas as frentes das casas estavam colocadas latas de lixo, pensei, seguro aqui o carro do lixo passa cedo. Distraído tentava não pensar em nada, já era mais da metade da tarde, estava triste, cansado, assustado e com fome. Não sei por que me lembrei que a mãe tinha me contado que aquela vez que adoeci quando era criancinha, e como meu pai tinha que viajar, deixou o caixão pronto, se caso na sua ausência eu morresse, e antes de sair me beijou, dizendo estas palavras: Santa Sara Kaly, nas tuas mãos deixo meu filho, salva ele ou lhe tira desse sofrimento, eu prefiro que ele não morra minha Santa! E minha mãe me disse: – Quando seu pai voltou, a Santa tinha ouvido sua prece, você comia e já até corria. Fiquei pensando: se a Santa Sara ouviu meu pai pedindo por mim, será que ela também não me ouvirá, ela que foi jogada ao mar numa barca sem remo, sem água e sem comida e se salvou, será que ela não me salva desta situação em que me encontro? Já enxergava o parque, queria chegar e me sentar. Ao me aproximar de uma esquina vi em uma lata de lixo algo que me chamou a atenção. Voltei, olhei para o interior da lata de lixo e vi dois plátanos assados. Um estava inteiro e o outro não, olhei para todos os lados, como não vi ninguém, peguei os dois e guardei na minha bolsa. No parque havia um trailer para venda de refrescos a um real o copo, (equivalente a dez centavos), peguei uma moedinha de meio real e perguntei para o homem se me vendia meio copo. Sem me responder, pegou a moedinha, colocou no bolso e me serviu o copo cheio. Sentei-me num banco perto dele, tirei o plátano já começado, e que almoço mais gostoso! Enquanto tomava o suco e comia o plátano, me veio à memória aquela carne que não comi na casa de Efraim. Devolvi o copo, agradeci ao homem e fui me sentar um pouco longe, satisfeito pensei: bom, a janta está garantida, me resta um plátano, posso comer meio esta noite e o resto amanhã no café, agora me faltava dormir aqueles dez minutos do Antônio. Aqueles bancos eram de cimento, portanto duros demais, então tirei meu capote, dobrei e me sentei sobre ele e peguei no sono. Não sei quanto tempo dormi, me acordei com a conversa de uns rapazes que me olhavam curiosos pelo capote, eram três, cada um estava sentado na sua caixa de engraxate, ao vê-los não me assustei, abri bem os olhos e fiquei ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 200 olhando para eles. Dois estavam sem sapatos e um tinha uns chinelos iguais aos que usava Chepe de sapatos cortados. Em seguida lembrei deles, não tinha mais nem Chepe nem Mercedes, que será de Lusdari, Eva e Nelson? Os rapazes me vendo tão quieto, um deles perguntou: – O que é aquele pano vermelho? Respondi: – É capote de tourear. – E você é toureiro? – Sim, respondi. – Só que aqui não tem praça de touros, outro disse, parece que havia uma lá onde está a cobra gorda. Perguntei: – Aquele bicho que parece um tronco de árvore é uma cobra? – Sim, responderam. Disse-lhes: – Eu me sentei nela pensando que fosse uma árvore caída, ela não fez nada, não pôde nem se mexer de tão gorda. – Ademais, disseram eles, mesmo quando era magra não era venenosa. Perguntei: – E como ela ficou assim? Um deles respondeu: – A gente não sabe. O que temos ouvido dizer, é que o tipo dessa cobra é grande, como de 3 metros, e é um pouco preguiçosa e dorminhoca, e o cheiro dela atrai os bichos, que quando chegam perto dela, os come e pega no sono. Dizem que naquele lugar tem tanto bicho, que ela ficou ali comendo e dormindo, e como não se mexia foi crescendo e engordando, até ficar daquele tamanho e não poder se mexer mais. Continuamos conversando e familiarizados me perguntaram de onde eu era, respondi que era colombiano, me perguntaram onde morava, lhes disse que não tinha casa, que recém tinha chegado naquele mesmo dia. Imediatamente se prontificaram a me levar num parque onde dormiam, embaixo dos bancos, que naquele parque pouca gente ia. – Aqui neste parque não dá, porque o guarda manda prender a gente, ele não gosta que durmamos aqui. Com a companhia deles me sentia bem, olhava a roupinha deles, toda surrada e me lembrava dos meus amigos do mercado e a gurizada da minha vila. Eles começaram a falar do dinheiro que cada um tinha ganho nesse dia, um deles me disse: – Se você não tem onde comer nós o levamos lá na velha Georgina, ela nos vende comida bem barato e também nos fia quando não temos dinheiro. Só ao Manoel que ela não fia, porque não gosta de pagar, e o Biche também não lhe fia. O Manoel alegou: – Sim, a Georgina e o Biche me fiam, só não paguei uma semana porque tive que comprar um remédio para a minha mana que estava doente. Um deles me perguntou se tinha dinheiro, respondi que algumas moedinhas, e as mostrei. – É pouco, ele disse, mas a velha Georgina igual lhe fia, ou até lhe dá de graça. Um deles disse: – Eu pago o café, o almoço e a janta de amanhã, outro disse: – Eu pago tudo depois de amanhã, e o terceiro disse: – Depois me toca a mim e assim nós vamos turnando. Um deles me perguntou: – Sabe engraxar? – Sim, respondi. – Nós vamos lhe conseguir uma caixa com o senhor Aristisaval e enquanto não consegue freguesia nós vamos lhe ajudando com a comida. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 201 Engraxate e malabarista Com os novos amigos a tristeza foi embora. Notei que os amigos tinham boa organização, quando passava alguém um deles lhe oferecia a graxa, depois lhe tocava ao outro sem ninguém mandar e sem se atropelar ou discutir. Chegou um momento que os três estavam engraxando, depois um por um ia chegando onde eu estava, o último que chegou foi o Henri, contente porque o freguês tinha lhe pago a mais, só porque ele tinha lhe mostrado o que fazia com a mão e com os dedos. Em seguida começou a fazer para eu ver, pegou o dedo polegar e o colocou bem horizontal por cima da mão sem a ajuda da outra, depois pegou o dedo indicador e dobrou a primeira falange também sem ajuda, em seguida juntou o dedo anelar com o mingo e o do meio com o indicador e os abriu formando um V bem aberto. Ele nos desafiava a fazer o mesmo, é claro que para nós era difícil, eu me levantei e dei uma volta cambota total no ar e lhe disse: – Faz essa aí, fiz mais duas vezes. Depois comecei a caminhar com as mãos, subi no encosto do banco e dele pulei para o chão. Eu não tinha reparado que muita gente estava prestando atenção e quando pulei do encosto todos bateram palmas. Em seguida coloquei um pé no ombro até a nuca e depois o outro e com as mãos pulava que parecia um sapo, todos riam e aplaudiam, me lembrei de Manolo. Peguei minha bolsa, tirei o baralho e comecei a fazer provas de mágica, meus amiguinhos me olhavam sentados nas suas caixas de engraxar, em volta de mim tinha bastante gente, homens, mulheres e crianças, e quanto mais riam e aplaudiam mais gente chegava. Ouvi uma voz que disse: – Como ele fala bonito, seguro que não é daqui, disse outro. Um senhor que estava de terno e gravata perguntou para um de meus amigos: – Vocês são amigos dele? – Sim, responderam os três. – E de onde é que ele é? Um respondeu: – Ele é colombiano e é toureiro. – E com quem anda? – Sozinho! Uma senhora disse: – Mas ele é uma criancinha! Quando terminei de fazer uma prova com um dedal e enquanto o público ria e batia palmas, o senhor de terno me perguntou: – O que anda fazendo por aqui meu filho? Sem saber o que dizer, respondi: – Me virando. Em seguida ele tirou o chapéu e disse: – Meus amigos, ele é nosso irmão, vamos lhe ajudar, olhem, ele é uma criança que faz coisas bonitas. A maior parte dos presentes colocava uma moedinha, ouvi a voz de Biche pedindo licença e me entregou um copo de suco de abacaxi e disse: – Deve estar cansadinho e com sede. Não faltou alguém entre os presentes que disse: – Você está certo Biche. O homem que estava recolhendo o dinheiro pegou com muito carinho e virou o chapéu com o dinheiro em cima da minha bolsa que estava no chão. Agradeci-lhe e ele me disse: – Bonitos seus números! Sentei-me no banco a tomar meu suco, meus amigos puxaram a bolsa com o dinheiro e pedi para comprarem suco para eles. O Biche chegou com um jarro cheio e três copos e nos disse: – A venda foi demais. Quando todo o público foi ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 202 embora comecei com meus amigos a contar o dinheiro e no final tinha o equivalente a quarenta e oito pesos colombianos, ou seja, vinte e quatro em dinheiro do país. Dei para cada um o equivalente a cinco pesos colombianos, pularam de alegria, me disseram que às vezes eles não conseguiam ganhar nenhum peso na semana. Estava com fome, perguntei onde poderíamos comer, me informaram que só comprando, porque não podiam menores entrar sozinhos nos restaurantes que era proibido. – Aquele chefe de polícia daqui é muito mau, ele quer que usemos sapatos, só que não conseguimos reunir o suficiente para comprar. Alberto, o que tinha chinelos, e que parecia dirigir o grupo, disse: – Eu vou lhe comprar a comida. Eu disse: – Tem que ser para nós quatro. Pegou algumas moedas e saiu correndo, quando regressou trazia uma caixa de papelão enrolada em papel manteiga, com arroz, feijão, grão de bico preparado com bacon, por certo muito gostoso, quatro batatas com casca e molho e também quatro pedaços de linguiça assada. Colocamos tudo no papel, de boca para baixo, e sobre a grama, como quatro irmãos, começamos a comer com as mãos, porque não tínhamos talheres. Tirei o plátano que sobrara, dividi em quatro pedaços e também o desaparecemos, eu não disse para eles que tinha pego no lixo. Um cachorrinho, ao farejar a comida, deu fim no que sobrou. Em seguida fomos para o Biche tomar suco, Alberto pagou, eu não queria, ele falou que era o troco que havia sobrado, mandei repartir entre eles. De tudo isso me lembro como se fosse hoje. Biche já simpatizava comigo, eu via que ele tratava bem meus novos amigos e eles também o tratavam de igual forma. Como já era noite e o Biche estava fechando, eles ajudavam, um trazia água da torneira, outro varria, e o outro ajudava a lavar, eu só olhava, não sabia o que fazer. Ríamos e conversávamos, Alberto disse para o Biche: – Nós estávamos nos programando para cada um pagar a comida dele e ele terminou pagando e ainda nos dando dinheiro, todos tiraram o dinheiro do bolso e mostraram para o Biche. Um deles disse: – Nós íamos no doutor Aristisaval pedir uma caixa de engraxate para ele e agora não precisa mais. – Sabem por que aconteceu tudo isso, disse o Biche, é porque vocês estavam agindo de boa fé com um garoto estrangeiro, por isso Deus os premiou. Continuem sendo assim que Deus vai lhes dar muito mais. Terminado o serviço, todos guardaram suas caixas de engraxate no carrinho de refrescos do Biche e tiraram uns cobertorzinhos. A pedido deles eu levei o meu capote, o resto guardei no carro do Biche. Nos despedimos dele com muita algazarra, eu os seguia. Conversamos, se comentava das risadas do público e a admiração de algumas pessoas quando eu fazia desaparecer e aparecer coisas. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 203 Dormindo sob o banco da praça Caminhamos quase uma hora até que chegamos ao parque. Localizava-se quase no fim da cidade, era pouco iluminado, a uma quadra passava uma avenida pouco movimentada. Quando chegamos nos bancos, cada um foi tirando um pacote de jornais e papéis escondidos entre a parte do assento e o suporte do mesmo. Cada banco tinha três suportes e eles guardavam os papéis no suporte do centro, quando tiraram os rolos de jornal, cada um entregava um pouco para Alberto, que a sua vez ia organizando o que seria a minha cama debaixo de um banco, Alberto era quem dirigia tudo e os outros obedeciam, eu também estava me acostumando a obedecer. Após minha cama estar pronta, cada um arrumou a sua, os bancos não estavam muito longe uns dos outros. Meu dia, além de alegre, tinha sido muito cansativo, dormi como um bendito, como dizia Sancho Panza. Como de costume me acordei cedo, me sentia sujo, no dia anterior não tinha tomado banho nem escovado os dentes, enrolei os jornais e guardei no lugar de onde tinham sido tirados. A cidade era quente, pouca gente passava pelas ruas em torno do parque e por dentro ninguém, estava sentado no banco quando ouvi o ruído do chinelo de Alberto que chegou e se sentou ao meu lado, não demorou muito e apareceu Henri e por último foi chegando Willian, que vinha bocejando. Alberto tinha o apelido de manequim, perguntei por que, Willian se adiantou e me respondeu: – É que as senhoras e as meninas das escolas o acham muito bonito e parecido com um rapaz que está num cartaz de propaganda. Hoje lembro de sua fisionomia e confirmo que era um rapaz bonito, sua pele era de uma cor morena puxando a um chumbo claro, seus olhos eram cor de mel, seus cabelos encaracolados e pretos onde levemente se notavam umas manchas ou mechas claras, que eram naturais, porque naquele tempo ainda não se usava pintar os cabelos. Falei-lhes do desejo de tomar banho. – Sim, respondeu Alberto, vamos lá no Biche, pegamos nossas coisas e vamos lá perto da Georgina, a gente paga meio real e tem até sabão. O Biche nos recebeu muito contente, estava organizando seu negócio, os rapazes pegaram suas caixas, eu peguei minha bolsa, tirei a camisa, o calção e a cueca, também peguei a bolsinha dos meus produtos de higiene. Biche disse que guardaria o capote no carro, aceitei e entre Alberto e ele o dobraram e guardaram. Alberto era um rapaz muito prestativo, não só comigo, mas com todos, em todo lugar e em qualquer momento. Saímos em direção à Georgina, muito alegres me apresentaram, enquanto ela atendia alguns fregueses eles lhe falavam de mim, ela lhes disse: – Fiquei preocupada ontem porque vocês não vieram jantar. Disse ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 204 que tinha esperado até tarde. É claro que eles contaram tudo, ela começou a me tratar como se eu fosse um velho amigo, me tratava com carinho, eu me sentia como se estivesse na preta velha junto com meus amigos do mercado, só que a minha preta velha era gorducha e preta e Georgina era alta, magra e branca, de nós quatro eu era o mais escuro, ao saber meu nome, me chamavam de Ortega. Enfim, um banho – Vamos tomar banho, disse Alberto e saímos correndo, as caixas ficaram na Georgina. Ela gritou: – Leve trocado! – Sim, respondeu Alberto. O lugar não era muito longe, ao chegar pagamos e cada um entrou numa privada para fazer suas necessidades fisiológicas, em seguida cada um foi entrando no chuveiro, eram coletivos, a água vinha por umas taquaras cortadas ao meio tipo calha e corria constantemente, caíam dez jorros, separados 2 metros um do outro. Quando entramos, tinham dois senhores completamente nus tomando banho, meus amigos tiraram as roupas, não usavam cuecas e pelados, sem nenhuma vergonha, foram banhar-se, eu nunca tinha ficado nu nem na frente de meus irmãos, então me lembrei de um ditado que a mãe sempre dizia em castelhano (ala tierra que fueres hace lo vieres) então tirei o calção, camisa e cueca e a vergonha estava perdida. Entrei no chuveiro, eles não paravam de fazer barulho, eu entrei no mesmo ritmo, estavam felizes e eu também, esquecido da tristeza do dia anterior. Dentro de uma caixa de madeira havia bastante sabão, só que era de lavar roupa. Quando lhes passei o meu sabonete cheiroso, presente de dona Elga, vibraram e mais barulho fizeram quando já estavam ensaboados e cheiravam meu sabonete. Também não tinham escova de dente, a escova era o dedo indicador. Eu me escovei e eles cheiravam o meu creme dental. Pente também não tinham, todos nos penteamos com o meu pente, e com o perfume que ganhei da esposa do toureiro de Gerez, todos nos perfumamos. Georgina elogiou o nosso cheiro, eu tinha trocado a minha roupa, eles continuavam com a mesma. Enquanto tomávamos café, Georgina me fazia perguntas, uma delas foi: – A mãe onde está? Respondi, está na Colômbia. E contei que tinha fugido de casa, tive que contar tudo, ela chamou algumas pessoas das outras barracas de comida para me ouvirem, quando terminei, Georgina me beijou na cabeça, os outros começaram a amaldiçoar o tal toureiro. Antes de sair, ela recomendou para que de tarde me levassem numa praça perto do correio, onde se reunia muita gente e pediu para eles me cuidarem. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 205 Eles tinham compromisso com alguns fregueses de engraxar seus sapatos e também em algumas casas. Nos despedimos de todos e como de costume, saímos correndo, quando chegamos já tinham alguns esperando, lendo o jornal. Sem perda de tempo já foram pegando os sapatos de seus fregueses, à medida que terminavam iam chegando outros, até senhoras, alguns deles, na sua maioria os chamavam pelo nome. No momento que nós tínhamos chegado, o sino da igreja tinha batido 9 horas, às 12 horas eles ainda não tinham parado. Só pararam as 13 horas. Alberto sugeriu: – Vamos almoçar? Vamos, todos em coro respondemos. O costume deles era correr quando iam para algum lugar. Uma vez na barraca da Georgina, Alberto perguntou: – Gina, tem peixe frito? Tem, ela respondeu. Todos fomos unânimes em comer peixe que vinha acompanhado de arroz, salada e um molho de tomate e por último um suco de graviola, me lembrei de Evaristo no hospital, mas rápido tratei de dissipar a lembrança. Após comer, sentado num canto dormi meus dez minutos, quando acordei eles tinham combinado com a Georgina de me levar num parque onde à tarde se reunia muita gente, só que os rapazes não podiam levar suas caixas porque os engraxates de lá iam querer briga. Tudo combinado, a Georgina também iria junto, queria me ver. Uma vez no parque lembrei de Manolo e a forma que utilizávamos para reunir o público. Comecei, e em pouco tempo tinha gente por todos os lados. Quando fazia mágicas eu tinha que falar, aí se escutou uma voz que disse: – Aquele menino não é daqui, como fala bonito. Num momento de maior hilaridade surge a voz de Georgina: – Senhores, este menino é colombiano, portanto é nosso irmão, é de família pobre, seu trabalho é bonito, vamos ajudá-lo. Foi esta forma que ele encontrou para ajudar sua mãe que é viúva, por favor, não neguem essa ajuda. Pegou a minha bolsinha de asseio e colocou no chão, no centro. Não demorou e começou a correr notas, moedas grandes e pequenas, quando alguma moeda rolava fora da bolsa os rapazes a colocavam junto com as outras. Terminada a apresentação e o público já retirado, colocamos todo o dinheiro na bolsa e nos dirigimos para a barraca da Georgina. Contamos o dinheiro, como já estava familiarizado com o câmbio, calculei quarenta e oito pesos colombianos, pensava é bom demais. Peguei o dinheiro e comecei a dar o equivalente a dois pesos para cada um. Não queriam aceitar, alegando que já tinha lhes dado, insisti e aceitaram. Perguntei se tinha mais alguma praça e Georgina falou: – Tem sim, no centro, depois da missa se reúne muita gente, como amanhã é domingo não abro a barraca, vou junto, gostei da idéia. A fome me atacava e como estávamos com ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 206 Georgina convidei: – Vamos num restaurante, vamos? Terminada a janta, cada um queria pagar a sua conta, eu não deixei dizendo-lhes que era eu quem tinha convidado, aceitaram. Era tarde, o Biche não estaria mais no parque e não teríamos como nos abrigar esta noite. Pernoitando na casa da Gina Gina nos convidou para ir dormir na sua casa, os rapazes já tinham dormido algumas vezes lá, a Gina me disse: – Ortega, eu moro num ranchinho muito pobre com meus dois filhos, meu marido e a minha mãe, o meu marido trabalha no campo e vem de quinze em quinze dias, chega às sextas-feiras de noite e retorna no domingo à noite. Num mercado ela fez um rancho, me adiantei para pagar, ela não quis. Nunca me esqueço destas palavras que ela me dirigiu: – Meu filho, você tem que cuidar seu dinheiro, não é porque ganha bastante que vai gastar ele à toa, senão vai terminar não levando nada para sua mãe, nada de estar nos pagando tudo, já nos deu o que chega. – Sim senhora, foi tudo que respondi. Sim, realmente sua casinha era de madeira, a salinha era estreita, também a cozinha, no quarto tinha duas camas, uma para o casal e a outra para os filhos, eu olhava e pensava: Apesar de ser uma casinha humilde, era muito melhor que a minha. Já em casa me apresentou a mãe e os filhos, um de sete e outro de nove, os rapazes já eram conhecidos. Gina nos acomodou o melhor que pode na sala e no chão, para a mãe ela tinha feito uma divisão na cozinha. Lembro que naquela noite estava feliz. Eu me sentia em família, no meio de brincadeiras e risadas, os primeiros que pegaram no sono foram as crianças. Dos outros não sei qual foi o último, só lembro que meu sono foi profundo. No domingo no parque, e com o pregão de Georgina, arrecadei mais trinta e sete pesos. Georgina sugeriu que fôssemos no mercado que tinha feira e haveria muita gente. Sentia muita pena de Gina, pois era aos domingos que tinha tempo de estar com seus filhos. Os rapazes no domingo à tarde iam ver seus pais, mas por acompanhar-me e ajudar, tudo tinha se modificado, então lhes fiz uma proposta: Que o dinheiro que recolheria no mercado o repartiria em partes iguais e não aceitava contraproposta. Ficaram calados. Arrecadamos quarenta e cinco pesos. Na hora da partilha não aceitaram tanto dinheiro, só aceitaram três pesos cada um. Dei os três pesos para cada um com a condição de que compraria roupa para todos. Com um pouquinho de esforço eles aceitaram. A primeira coisa que fiz foi comprar sapatos para todos, depois calções, camisas e cuecas, boné para eles três e para os dois filhos de Gina, eu não quis boné, eles quiseram meias coloridas, as minhas eram ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 207 brancas. Para a mãe de Gina compramos um vestido igual ao de Gina, compramos também presentes para os filhos dela e para os parentes e as mães e pais dos rapazes, o gasto foi de quinze pesos, mesmo assim sobrou muito dinheiro. O almoço foi bem suculento, misturado com felicidade. Os rapazes queriam ir para a casa para dos pais deles, para não deixá-los preocupados e queriam que eu fosse junto. A Georgina, sabendo que era longe, aconselhou que pegássemos o carro de Bigode, que nos cobraria um peso para nos levar e estaríamos lá em quinze minutos, a pé em três horas. Vibramos pelo conselho. Eu sugeri: – Vamos comprar quatro ranchos, três para levar e um para Gina. Não esperei resposta e já fui entrando no armazém, comprei de tudo o que eu mais ou menos conhecia. Alberto foi à procura de Bigode e uma vez ele presente, acertamos que ele nos levaria e na terça de manhã nos procuraria. A vila era quase igual a minha na construção das casas, em tamanho um pouco menor. A chegada de carro dos rapazes, as caixas, as sacolas e mais a minha presença chamaram a atenção da vizinhança. Alguns vieram ver quem eu era, os rapazes todos alegres me apresentaram, cada um correu para sua casa para levar o rancho e os presentes, eu fiquei na casa do Alberto, que foi onde Bigode nos deixou. Willian veio correndo me apresentar aos pais e irmãos, em seguida apareceu Henri, corríamos de uma casa para outra, íamos visitar os vizinhos e amigos deles, eu me sentia completamente familiarizado com a vila e com sua gente, parecia que estava na minha casa, só faltava escutar me chamarem de negrinho, só escutava Ortega por todo lado, até as gurias se juntaram a nós, como na minha vila, rapazes e meninas queriam estar bem perto de mim. As perguntas eram muitas, eu respondia, perguntei onde poderia tomar um refri, responderam ali no velho Omar, eu acho que ele nunca tinha vendido tanto à vista e em poucos minutos, todos tomamos e mandei levar para as casas deles, eu calculo que na vila também nunca se tinha ouvido tanto grito e corre-corre da gurizada. Na segunda-feira fomos tomar banho numa cachoeira que havia perto, todos vestimos as nossas roupas e sapatos novos. Naquele dia tomei café na casa de Alberto, que foi onde dormi, almocei com eles na casa de Willian e os três jantamos na casa de Henri. A vila estava em polvorosa, nunca tinham visto um estrangeiro de perto, fiquei sabendo que a gurizada não queria ir à escola porque queriam estar comigo. De noite fiz uma demonstração para todos na rua mesmo, até o Omar fechou o bolicho para vir me ver, eu acho que proporcionei um momento de alegria para aquela gente que nunca via nada. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 208 Na terça, conforme o combinado, Bigode chegou, nos deixou na barraca da Gina, que nos recebeu como se fôssemos seus filhos, nos serviu café, que embora já tivéssemos tomado, tomamos de novo. Na hora de pagar ao Bigode, ele viu que tinha muitas moedas e disse que era bom trocar tudo por notas, porque as moedas pesavam muito. Mandou falar com o Biche que ele sempre trocava. Como os rapazes tinham compromissos para engraxar, nos despedimos de Gina. No parque, enquanto eles engraxavam, fui conversar com Biche, apenas me viu ele disse: – Bigode me disse que você tem muito dinheiro em moedas! Sim. Para que não carregue tantas moedas e como vai levar esse dinheiro para sua terra, é bom que troque por dólares e por notas de cem. Ele mesmo me acompanhou até a casa de câmbio, e ao regressar me levou a um alfaiate amigo para fazer uma bolsinha para guardar o dinheiro e amarrar na cintura por dentro das calças, esta idéia me pareceu muito boa. Quando andava pela rua, a gurizada mexia comigo: – Olha o guri mágico, e assim por diante. Ao chegarmos ao carro de refrescos do Biche, encontramos a Georgina toda apavorada porque um delegado tinha mandado um guarda à minha procura. Ele queria saber se eu tinha documentos, se andava sozinho ou com alguém e se tinha licença de meus pais. Georgina me levou para sua casa e pediu para Biche avisar os rapazes. Gina pediu para eu ficar escondido, me advertindo que aquele delegado era um tremendo mau caráter. À noite vieram os rapazes junto com Gina e Biche. Alberto nos informou que dois guardas tinham perguntado por mim, mas que Alberto, sabendo quem era aquele delegado tinha respondido que eu tinha viajado com a minha mãe. Biche elogiou o Alberto pela resposta. Conversamos bastante e a solução que encontramos foi de que eu viajaria a uma cidade distante 100 quilômetros onde morava um irmão do Biche, que também vendia refrescos, que ele me recomendaria ao irmão. O Biche também falou que era bom eu ficar escondido por mais uns dois dias, esperando que eles não estivessem mais me procurando, todos concordamos. Como eu ainda tinha dinheiro nacional, Gina sugeriu que era bom eu comprar uma bolsa tipo mala de couro para não carregar aquele saco de arpigera. Pareceu-me excelente idéia, eu já tinha pensado algo parecido. Depois de tudo acertado, Biche foi embora e os rapazes ficaram, nada nos abalou. Gina nos preparou comida, a mãe dela lavou a minha roupa que estava suja. Na janta rimos, eles comentavam a mentira do Alberto, mexiam comigo porque as gurias da vila queriam estar perto de mim, até do coitado do Omar, dono do boteco, ríamos do susto que levou quando invadimos seu armazém, e a cara que fazia destapando refrigerantes. Gina queria saber como eles tinham me tratado, é claro que contei a verdade, melhor não podia ser e provavelmente me esperariam no próximo domingo. Na quarta à noite ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 209 chegaram todos de novo, Biche me informou que na sexta-feira teria ônibus às 6 horas. Indo para o interior A Gina pediu para comprar a passagem, me disse que ainda tinha sobrado dinheiro da compra da bolsa. À noite de quinta-feira, quando todos chegaram, Gina nos disse que tinha falado com o motorista, para fazer o favor de dar uma cuidadinha em seu sobrinho que viajaria com ele na sexta-feira e ele tinha concordado. O Biche me deu uma carta para entregar a seu irmão e me passou as informações de como chegar até ele. Também me falou de duas praças que poderia fazer os meus números de mágica. Biche aconselhou para não me acompanharem até a rodoviária, porque se houvesse um guarda, poderia desconfiar. Guardei tudo na minha nova bolsa, que tinha vários bolsos e coloquei tudo separado. Por último, pensando na pobreza deles, comecei a dar para cada um dois pesos, em princípio não queriam, terminaram recebendo, até a mãe e os filhos de Gina. O Biche não aceitou de forma alguma, ao contrário, me agradeceu, me abraçou e minutos depois se despediu. Todos fomos dormir cedo. Às 4 horas e 30 minutos o relógio despertou, todos nos levantamos, tomamos café e às 5 horas e 15 minutos saímos. Os rapazes não levaram as caixas para não chamar a atenção, estavam bem vestidinhos, com as roupas novas. Hoje fico lembrando aquele momento da despedida: ao me despedir de dona Berta, mãe da Gina, sua voz era trêmula, quis chorar, mas se segurou. Na rodoviária Gina chegou perto do motorista e lhe disse: – Por favor, cuide bem do meu Negrinho. Fazia vários dias que não ouvia me chamarem de Negrinho. O motorista me pediu para ficar sentado perto dele, coloquei minha bolsa no lugar indicado e desci para me despedir, notava nos meus amiguinhos profunda tristeza, abracei um por um, eles não conseguiram falar, quando chegou a vez de Gina, ela me abraçou e desandou a chorar e me disse: – Que a Virgem te socorra! Quando ela pronunciou estas palavras, me lembrei que eu tinha pedido à Santa Sara Kaly para me ajudar a sair daquela situação em que me encontrava e ela tinha me ajudado e eu nem sequer tinha rezado uma prece para lhe agradecer. O motorista subiu no ônibus e todos os passageiros também. Antes de eu subir, olhei para todos eles, que estavam perto de Gina Ela pegou o vestido no colarinho e puxando-o me mostrou e o beijou. Compreendi, era o vestido que eu tinha lhe dado de presente. O ônibus se movimentou lentamente e os quatros estavam numa tristeza que se notava ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 210 de longe, até o último momento me faziam o sinal de despedida com as mãos. Desapareceram dos meus olhos e senti um certo vazio. Hoje, ao me lembrar, fico pensando que amizade, e em tão poucos dias. Já fora da cidade tornei a me lembrar de Santa Sara, de como eu tinha sido ingrato, nem sequer uma prece para ela. Acomodei-me bem no banco, fechei os olhos e sem mexer os lábios, comecei a rezar, a agradecer a Deus e à Santa Sara Kaly, eu estava triste, mas com dinheiro e tinha aprendido como ganhar. A estrada não era asfaltada, razão pela qual o ônibus não desenvolvia muita velocidade e demoramos mais ou menos três horas para percorrer poucos quilômetros. Quando chegamos na rodoviária, o relógio estava marcando 9 horas e 30 minutos. Como tinha tomado café tão cedo sentia um pouco de fome e no primeiro bar que encontrei entrei para me alimentar. O irmão de Biche O dono do bar me orientou como poderia chegar para encontrar o irmão do Biche. O tempo estava se armando para chuva, caminhei uns dez minutos até que enxerguei um carro de refrescos igual ao do Biche. Chegando mais perto vi que o homem do carro de refrescos se mexia de um lado para outro igual ao Biche, mais parecido não poderia haver outro, e comecei a sorrir. Ele me olhava, porém continuava atendendo a freguesia sem me dar importância. Em seguida lhe cumprimentei e falei que vinha de parte do Biche. Enquanto abria minha bolsa para tirar a carta, ele se aproximou de mim todo sorridente e me deu um tapinha nas costas e disse: – Fale meu amigo, que novas traz de meu irmão? Entreguei-lhe a carta, à medida que lia ele ria, começava a cair uns pingos d’água, rápido ele guardou algumas coisas, botou a carta no bolso e me convidou para irmos na sua casa porque já começava a chover. Pegou sua bicicleta, que era igual a do Biche, saímos caminhando e conversando, notava que até a forma de falar era igual a de Biche, ficava olhando para ele e era o mesmo Biche, tivemos que acelerar o passo porque a chuva estava engrossando. Uma vez em casa, quem nos recebeu foi sua esposa. Na entrada ele já foi dizendo: – Amor, o mano nos mandou este rapazinho para passar alguns dias conosco, ele é colombiano, o mano disse que é um grande artista apesar da idade, que faz coisas muito bonitas. Em seguida lhe entregou a carta e foi através dessa carta que fiquei sabendo que a mulher de Biche estava na capital cuidando da mãe que estava doente. Já um pouco familiarizado com eles me faziam algumas perguntas, de como tão ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 211 pequeno tinha conseguido chegar até ali, tão longe de casa, a estas alturas tive de contar o porquê, ela se levantou e falou: – Vish amor, enquanto apronto o almoço, arruma o quarto para ele. Lá fora chovia e trovejava. Vendo a chuva cair através da janela, pensava onde estaria eu neste momento, talvez triste, vendo a chuva cair, sem saber para onde me dirigir. Deus e Santa Sara são muito bons para mim, pensava. Eu ajudava a organizar o quarto, que por certo era grande, a cama era de casal, todo decorado, testei o colchão, era bem macio, lembrei de quando dormia embaixo daquele banco no parque, mesmo sendo o chão duro, dormia que era uma maravilha. Quando dormíamos na casa da Gina, no chão, pegava no sono e nem sentia o piso de tábuas. Agora dormiria num quarto bonito e num colchão macio. Se naquele tempo eu soubesse interpretar a vida, teria me sentido um monarca, hoje lembro a satisfação que sentia no dia seguinte, após ter dormido naquele colchão e naquele quarto. No almoço contei-lhes o episódio de ter me sentado na cobra, pensando que era o tronco de uma árvore, riam que dava gosto, na conversa aproveitei para perguntar porque chamavam ele de Vish e o irmão de Biche, e a resposta foi: – É que o costume é chamar as pessoas pelo sobrenome e como o sobrenome é WISCHENGTONOSKI, era um pouco complicado pronunciar todo sobrenome, então escolheram Biche, que poderia ser Wiche, aqui se aproximaram mais, pronunciando Vish, que seria o mesmo que Wish. Na segunda-feira parou de chover, mas o dia continuava nublado, saímos com Vish para o carro, lhe ajudei um pouco, sobretudo na limpeza do local. Como não tinha mais nada a fazer fui dar umas voltas para conhecer a cidade que era um pouco menor que a anterior, a única praça que existia era aquela onde estava Vish e o mercado. Quando voltei, a esposa de Vish quem estava atendendo. Vish me convidou para ir almoçar na sua casa que o almoço estava pronto. Era desta forma que todos os dias se turnavam, na parte da manhã ela ficava em casa e depois de preparado o almoço ia atender o carro e Vish ia para casa almoçar, descansava um pouco e voltava. Para fazer a minha apresentação, Vish me informou que o melhor horário seria aí pelas 17 horas, quando se juntava mais gente. Apresentei-me e mesmo com o tempo nublado foi se juntando muita gente. Aproveitei o momento e comecei fazer vários números, eu mesmo pedindo a colaboração. Em seguida as pessoas começaram a colocar dinheiro na minha bolsa, de repente apareceram dois guardas e um deles me gritou: – Vamos, vamos parando com esse ajuntamento, e vocês vão se retirando, dirigindo-se ao público. Vish quando viu os guardas veio correndo e falou para um deles: – Carlos, ele mora na minha casa, ele é da família do meu irmão. Imaginem vocês o contraste, todos eles baita alemães, bem brancos, com aquele sobrenome ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 212 tão difícil de pronunciar, como é que eu poderia ser parente deles, em todo caso, se o guarda engoliu deve ter sido pela amizade que tinha com Vish, que em seguida começou a recolher minhas coisas e as moedas. O público foi se afastando e de longe, pelas folhagens e por entre as árvores, alguns gritaram: – Malditos, um dia se lhes há de acabar o poder, desgraçados...! Estando sentado com Vish, passou um casal e me perguntou: – Lá na sua terra também existe aquele tipo de canalhas? Ignorante que eu era, nada respondi. A notícia tinha se espalhado e de repente vimos Estefani que vinha correndo para saber o que tinha me acontecido, Vish a recebeu com muito carinho: – Não amor, não foi nada, apenas não querem grupos, vivem com medo. Eu nada entendia, ficamos os três conversando, me tratavam como se na realidade eu fosse parente deles. Estefani lavava e passava minha roupa, não me deixava gastar nenhum centavo, me tratava de filhinho, amorzinho, queridinho e assim por diante, sempre estava pendente do meu remédio dos olhos, sempre era ela que o colocava, tudo me era feito com tanto carinho, como se na realidade fosse filho deles. Por este casal fui tão bem tratado que hoje, pai de dois filhos e passados tantos anos, às vezes lembro de uma coisa que nunca fiz para meus filhos, mas que Estefani fez para mim. Uma noite, no momento em que ela estava me colocando o remédio nos olhos e, como surpreendida, me disse: – Eu nunca lhe senti mau hálito, o que será que lhe fez mal? Em seguida me mandou respirar de boca aberta e colocou seu nariz perto para sentir o meu hálito, e disse: – Está com mau hálito, e ela mesma se perguntava: – O que será que lhe fez mal? Perguntou-me: – Não sentiu dor de estômago? – Não senhora, respondi. – Não durma, me espere! Voltou com uma xícara de chá que vinha esfriando, e como se fosse uma criancinha me fez tomar. Hoje me lembro que era de funcho e que o paladar era gostoso. Vish que estava tomando banho e se barbeando, entrou no quarto, estava de pijama, me apertou de leve o estômago, e perguntou se tinha feito cocô. – Sim senhor. – Em algum momento sentiu dor de barriga? – Não senhor. Olhando para Estefani falou: – Não deve ser nada. Deu-me um apertãozinho no nariz e me deu boa noite. Antes de Estefani sair me recomendou para que quando me levantasse, não lavasse a boca antes dela saber se tinha passado o mau hálito, me deu um beijo na testa e se despediu. Digam-me: será que posso esquecer todo esse carinho? No dia seguinte me fez a mesma operação, confirmando que não tinha mais nada, me senti contente. Nem pensar em fazer alguma apresentação, estava com medo, se eles chegassem a me pegar, o que seria de mim? ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 213 Na quarta noite comuniquei-lhes o desejo de partir e tentar noutras cidades a sorte para poder ganhar alguma coisa, assim conseguiria comprar a passagem e levar mais algum dinheirinho para a minha mãe fazer a nossa casa. Notei que não lhes agradou muito a minha partida, todos ficamos em silêncio. Estefani foi quem falou: – Orteguita, fica mais uns dias, no sábado à noite nós vamos viajar a um povado que fica a 60 quilômetros daqui, lá moram meus pais e gostaria que tu fosses conosco. Aceitei imediatamente, falei para eles que eu queria lhes dar aqueles dez pesos que havia ganho no dia que os guardas não me deixaram trabalhar, porque eu só comia, dormia e não fazia nada, e ainda Estefani lavava e passava minha roupa, me cuidava e eu não colaborava com nada. Estefani se levantou, me abraçou pelas costas, encostou minha cabeça no seu colo falando: – Meu amorzinho, tu não precisas dar nada. Vish no mesmo momento falou: – Orteguita, a tua presença aqui já é o bastante, tu és um menino educado, dócil, simpático, quem não gostaria de ter um filho como tu? As suas palavras saíam trêmulas ao me dizer: – O único filho que tivemos nasceu com problemas de saúde e morreu. Ele se levantou, abraçou a esposa com um braço e com o outro me abraçou, eu me virei de frente para os dois e me abracei a eles, em seguida ele falou: – O melhor que meu irmão pode ter feito é ter te mandado para nós, fora todas as coisas boas que ele nos faz. Estas são coisas que dificilmente a gente esquece. Novos caminhos No sábado, antes de escurecer, saímos numa espécie de táxi, cujo motorista já estava acostumado a levá-los, pó uma estrada sem asfalto, porém era boa e em pouco mais de uma hora chegamos. Estavam à nossa espera o pai e a mãe de Estefani e também os pais de Vish. Perguntaram por Frank, que era o nome de Biche, e Vish respondeu: – A mulher dele está na capital porque a mãe dela está doente, o filho também está lá, mas em troca nos mandou este filho. Estefani lhes disse: – É a coisa mais querida e, além disso, é um grande artista. Tinha muita gente, primos, primas, sobrinhos, irmãs, cunhadas, etc, todos bem brancos, alguns de olhos claros, outros azuis. Todos fomos passando para um galpão amplo, nos fundos da casa, havia várias prateleiras cheias de garrafas de cerveja, chimias em vasilhames de louça, garrafas de vinho feito de laranja, cucas, pães, salgados e doces, todos fabricados por eles, se sentia um cheiro gostoso de comida, quem cozinhava era um senhor alto com avental, muito engraçado, contava piadas em espanhol e em alemão, seu espanhol era um pouco arrastado, mas se entendia perfeitamente. Como todos ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 214 estavam interessados em me ver fazer as provas, comecei como sempre com contorcionismo, depois mágicas com baralho, moedas, eles riam, gritavam, batiam palmas, a alegria era total, o cozinheiro, quando ia dar uma olhada na comida me pedia para esperar, ia correndo e voltava correndo. Após o jantar fiz mais algumas provas, já era passada da meianoite e a gurizada nada de querer dormir, a Estefani sempre estava perto de mim e se preocupava para eu comer, me fez tomar um copo de cerveja, não era amarga, por certo muito gostosa. Um ruído de carro se ouviu, era o Biche, a mulher e o filho. Foram recebidos com muita alegria. A mulher do Biche não tinha pinta de alemã, era morena clara, eu continuava sendo o mais negrinho de todos, imagino que deveria parecer uma mosca no leite. Daí a pouco apareceu uma vitrola à corda e o baile se formou. No domingo, depois do café, a gurizada me convidou a conhecer o pomar e a plantação de bananas, saímos correndo, a Estefani foi junto, sempre perto de mim. Próximo ao galpão tinha plantação de diferentes frutas, mais para frente tudo era plantação de bananeiras a perder de vista, num clarão encontramos um riacho de água bem cristalina, tinha um lugar onde a água tinha sido represada e parecia uma piscina, entre gritos e risadas a gurizada foi tirando os sapatos e com roupa e tudo foi entrando, eu também. Estefani nos acompanhou, parecia uma criança brincando conosco, entre os guris alguns a chamavam de prima, tia e outros de Nié. Depois de bagunçar na água, voltamos com as roupas molhadas para casa, havia quatro chuveiros, cada um foi entrando e os outros esperavam, cada mãe trazia roupa para seu filho e filha, nesse caso, minha mãe foi a Estefani que, mesmo molhada, me trouxe toalha e roupa, me secou e até me ajudou a vestir, ela foi a última a chegar à mesa onde nos esperava o almoço. Depois daquele corre-corre era justo que estivéssemos mortos de fome. Fiquei sabendo que o alemão que cozinhava não era da família e sim um amigo, viajava por vários países vendendo produtos de uma firma alemã, gostava de falar comigo, era um cara muito simpático, soube também que sempre que vinha ao país não deixava de visitá-los, os velhos eram da mesma cidade que ele lá na Alemanha. Ele mesmo me contou que gostava de cozinhar, me pediu para lhe ensinar aquela prova de tirar moedas do corpo das pessoas, lhe expliquei que essa prova precisava muita destreza nas mãos e era muito difícil, lhe dei uma prova de baralho trucada, aprendeu rápido, lhe dei mais algumas, praticou tanto que até chegou a fazer para os presentes, por certo bem feita, foi muito aplaudido, não havia outro mais feliz do que ele, correu e me abraçou. Continuei fazendo outras provas que ainda não tinha feito para o Biche, a mulher e o filho verem, às vezes pedia para o alemão fazer algumas das que eu tinha ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 215 lhe ensinado e ele, muito feliz, fazia e com perfeição e os presentes adoravam. Ensinei para todos a prova de equilibrar os garfos num palito, alguns conseguiram, outros não. A gurizada começou a cochilar e as mães foram arrumando cada um na cama, eu queria dormir meus dez minutos também, estava cansado. Estefani me pegou pela mão, como se fosse seu bebê e me levou e deitou da mesma forma como as outras mães deitaram seus filhos, não senti pegar no sono. Quando acordei peguei a minha bolsinha dos utensílios de limpeza e fui escovar os dentes e me lavar. Estefani, como sempre, me acompanhou e me penteou, arrumou a camisa, me pegou pela mão e me levou onde todos estavam. Quando cheguei o Biche me chamou, e na frente de todos me entregou vinte e cinco pesos, o equivalente a cinquenta pesos colombianos. – Este é um presente de todos nós, mereces muito mais pela tua simpatia, pelo teu trabalho, que é muito bonito, lhe desejamos muita sorte e quando voltares para tua terra, leve muita alegria para os teus pela tua volta e pelo dinheiro que levas, segundo entendemos, essa é a tua meta. É claro que isto não é textual, porém calculo que seria isto que eles queriam dizer. O alemão me deu de presente um mapa do país e marcou as cidades onde poderia trabalhar sem problemas. Eram povos que ele conhecia, vendia sua mercadoria e sabia que era gente boa, marcou o roteiro que deveria seguir e me aconselhou a ir por último na capital. Começaram as despedidas bem à tarde, a gurizada me pedia que fosse na casa deles e eu prometia ir. Biche ao se despedir me ofereceu sua casa, que desta vez a sua mulher e filho estariam, os pais da Estefani também me ofereceram a casa. Chegou o carro que nos levaria e nos despedimos dos pais dela e do alemão. No banco de trás Estefani e eu, ao lado do motorista Vish. Eles comentavam as provas, riam, ela me paparicava, o motorista tinha me visto na praça o dia que os guardas não me deixaram trabalhar. Na segunda-feira Estefani me levou no cemitério para ver o túmulo do filho, levou água, ajudei a limpar, a varrer, a rezar. Na hora de sair me abraçou e ficamos frente à tumba, ela como se falasse com o filho vivo e ainda me segurando abraçada falou em voz alta: – Filho, olha teu irmãozinho. Com a voz que parecia chorar colocou as duas mãos no rosto, ficou vermelha, porém não chorou. Quando saímos do cemitério fomos numa loja, me comprou camisa, cueca, calça, meias e sapatos, me levou numa barbearia e me fez cortar os cabelos. Saímos da loja e fomos numa ótica que era de amigos deles, queria que me trocassem os óculos porque os meus eram muito feios. O senhor que nos atendeu pediu para Estefani me levar no oftalmologista e pedir a receita das lentes, ela quis me levar, mas eu alertei a ela que a minha mãe tinha feito isso uma vez e que as novas lentes me provocaram muita dor de cabeça e quando voltamos para ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 216 o oftalmologista que me atendeu ficou brabo com a mãe e me mandou trocar de novo as lentes. Ela ficou pensativa, em seguida me disse: – Que pena, eu queria trocar por uns bonitos que vi na loja, então vamos almoçar. Entramos num restaurante, cujos donos eram conhecidos, e perguntaram por Vish. – Ele anda em busca de frutas. Almoçamos e retornamos para casa, ela não quis que fosse dormir no quarto, me arrumou no sofá, colocou um travesseiro, me tirou os sapatos, me abrigou com um lençol, me deu um beijo na testa e sentou perto de mim a fazer crochê. Dormi meus dez minutos, quando acordei ela continuava seu tecido, fiquei de olhos fechados pensando, pelo que sentia, ela não queria que eu fosse embora, mas o que é que eu ficaria fazendo ali? Precisava voltar para casa, ver a minha mãe, meus irmãos, meus amigos, o Dr. Corrêa, o Gratiniano, o Polaco, a minha querida amiga Romélia, o Carlos, o Ocoró, também meus amigos do mercado, ainda tinha chance de ganhar mais dinheiro para levar para minha mãe e quando chegasse em casa iria levar um calção e uma camisa para Oscar, o coitado só usava roupa usada e toda cheia de parches, fiquei imaginando ele todo feliz vestindo roupa nova e rindo. Perguntei-me: Será que o André terá ido à minha casa? Neste momento me lembrei do dito toureiro, que hoje desconfiava que não fosse espanhol, fiquei pensando em um ditado que ouvi muitas vezes a minha mãe dizer: – Não há mal que para bem não seja. Se não fosse por ele, eu não teria aprendido a ganhar dinheiro e estaria no mercado ganhando dez ou doze centavos por dia. Estava naquele pensamento quando ouvi a voz de Vish. Pensando que eu dormia, Estefani lhe fez sinal de silêncio, em seguida começou a lhe mostrar tudo que tinha comprado para mim. Eles conversavam em voz baixa, assim mesmo pude ouvir que ela disse: – Meu amor, ele é meu, foi Deus que me mandou. – Não amor, foi o mano que nos mandou para que lhe déssemos uma mãozinha, porque a polícia andava investigando se ele tinha documentos, ele é ainda uma criança que fugiu de casa para ajudar a mãe, se ficarmos com ele, mais cedo ou mais tarde vão descobrir e nos tiram, e quem sabe o que estes desgraçados farão com ele, e nós não podemos fazer nada por ele. Tu não ficarias triste de ver ele encerrado e depois deportado, e quem sabe onde trancariam ele na sua terra. É melhor que ele siga o conselho e a orientação que o mano e o alemão lhe deram, trabalhar um dia em cada lugar, ou no máximo duas apresentações e se mandar, até conseguir chegar à capital e procurar voltar para a sua terra. Tu vês, ele pode ganhar muito dinheiro trabalhando dessa forma, nem eu nem o mano ganhamos num dia o que ele ganha entre duas e três horas de trabalho. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 217 Ouvi o que ela lhe disse: – Amor, como gostaria que ele ficasse conosco! – Eu também, respondeu ele. Eu gosto muito dele, mas não podemos fazer nada, estive falando com o Carlos a respeito dele e ele me aconselhou a procurar que a polícia não saiba quem ele é e nem falemos com ninguém sobre ele. Vish continuou: – Eu até tinha pensado em ir no domingo visitar meu irmão, porém estou com medo. Ele me contou que aquele delegado de lá andava a cata dele. Imagina se a polícia nos vê chegar e queira saber quem ele é, não teremos nada para falar, é menor, estrangeiro, e sem nenhum documento que nos garanta tê-lo conosco. Livre poderá de vez em quando vir nos visitar e o Carlos nos dar uma mãozinha. Quando pararam de falar fiz de conta que recém me acordava, bocejei, me estiquei e me sentei. Em seguida me convidaram para ir até o carro. Estefani também quis ir conosco, rápido se lavou, trocou de roupa, se perfumou, me perfumou e saímos. Quem estava atendendo no carro de refrescos era um senhor preto, magro e alto, seu nome era Julio e lhe chamavam de Chambimbe. Recebeu-me com muita simpatia, era empregado de Vish e pau para toda obra. À noite, depois que ela me deixou deitado, comecei a pensar em como iria fazer para ir embora sem magoar Estefani. No dia seguinte quando acordei Vish não estava, tinha madrugado para trazer frutas já encomendadas. Enquanto tomávamos café Estefani e eu, em determinado momento tomei coragem e falei: – Estefani, eu tenho vontade de continuar viajando e trabalhando para ganhar mais um pouco de dinheiro para comprar a passagem e voltar para casa levando algum dinheiro para a mãe, ela não sabe onde é que eu ando, porque fugi sem lhe dizer nada. – Eu sei, respondeu Estefani, um pouco triste. É claro que, como eu tinha ouvido a conversa, então lhe prometi que daria umas voltas, ganharia um pouco de dinheiro e sempre voltaria, porque eu gostava muito dela e de Vish, que tão bem me tratavam. Levantei-me e lhe dei um beijo no rosto, seus olhos estavam um pouco úmidos, combinamos que partiria na sexta-feira. À noite, quando terminamos de jantar, falei para Vish o combinado com Estefani, de eu viajar na próxima sexta-feira. Continuamos na mesa conversando e rimos de certas coisas passadas entre nós e na casa dos pais dela, e das piadas do alemão. Notei que o riso da Estefani não era sincero, era um riso triste, acredito que Vish sofria um pouco, não pela minha partida e sim pela sua mulher que tanto desejava ter um filho para cuidar. Hoje em dia fico imaginando Estefani e penso que deveria ser uma mulher bonita, lembro que era alta, cabelos longos, lisos e castanhos. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 218 É pena que naquela época eu não sabia apreciar a beleza feminina, fico a imaginar como é que uma mulher que tinha de tudo, que nada lhe faltava, a não ser um filho, e por esta falta se apegasse a mim em tão curto tempo e chegasse a dizer ao marido que era Deus que tinha me mandado para ela. Continuo lembrando aquele tempo e penso como uma mulher do tipo dela poderia gostar como seu filho um negrinho feinho, baixinho, miudinho e usando óculos, sem futuro, porque não poderia ser ninguém na vida por não poder estudar, e saber que a ela nada disso importava, me queria como seu filho para poder cuidar como um frágil bibelô de cristal. Na sexta-feira os dois me levaram à rodoviária. Na despedida Vish me abraçou, e quando Estefani me abraçou e beijou, ela chorava forte, com desespero, Vish tratava de consolá-la. Sem parar de chorar, Estefani me ajudou a subir no ônibus, eu não conseguia dizer nenhuma palavra, engolia em seco, a língua estava pesada. Quando o ônibus arrancou, tentei olhar para trás, porém os passageiros me impediram, não podia vêlos, o motorista notou a minha amargura e me perguntou: – São seus parentes? É claro que ele notava a diferença de cor e eu não consegui responder. O motorista notou meu estado e arrodeou pela quadra, só que quando chegou na esquina, eles já tinham passado. O motorista buzinou, eles olharam, eu lhes dei o adeus com as duas mãos e eles também, e reciprocamente nos mandamos beijos, parece mentira, me senti aliviado ao ponto de que, daí para frente, fui só tagarelando com o motorista. Como ia parando, descendo e subindo passageiros, a demora foi de uma hora e meia para chegarmos na cidade dos familiares de Estefani, de Bishe e Vish. Dirigi-me à casa deles para entregar uma carta que Estefani mandou para os pais. No teatro paroquial e a amizade com motoristas O recebimento foi como de um personagem famoso, melhor não poderia ser. Foram momentos vividos que a gente não esquece. Calculo que Estefani deve ter lhes pedido alguma coisa a respeito dos meus números, porque não demoraram nada a me levar para a igreja, falaram com os padres e ficou acertado o espetáculo para o domingo à tarde. Rapidamente a notícia se espalhou e a gurizada, os parentes de Estefani e os vizinhos se encarregaram de fazer a propaganda. O prefeito autorizou e no domingo o teatro paroquial estava lotado. O senhor prefeito pediu para os padres que me dessem todo o dinheiro da bilheteria que ele ressarciria os gastos da igreja e daria mais uma colaboração. Aquela família de Estefani, Vish e Biche era uma maravilha de pessoas, começando pela ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 219 gurizada. Lembro que as meninas estavam sempre bem vestidinhas e me tratavam com muita delicadeza, todos me pediram para ficar na segundafeira porque não tinham aula, fiquei. Na terça-feira me despedi, e seguindo o conselho e o roteiro que o alemão tinha me dado, segui para o povo seguinte, no mapa marcava 110 quilômetros de distância. Orientado pelo motorista, consegui quarto numa pensão, a caminha não era ruim, o povo era pequeno, à tarde trabalhei e no dia seguinte parti, seguindo o conselho do alemão. Daí por diante, quando chegava numa cidade, procurava trabalhar só uma vez e, dependendo do tamanho do povo, até duas vezes no máximo. Sempre procurava viajar junto ao motorista e pedia informações para eles onde me alugariam quarto só para dormir, comer não era problema, comia nas barracas de comida dos mercados, ou dos portos. Alguns motoristas me levavam nas suas casas quando tinham filhos, as suas esposas não me cobravam nada e nem me deixavam gastar em presentes. Outros motoristas me levavam em familiares que tinham pensão. Aprendi o câmbio monetário e sempre que tinha para trocar por cem dólares fazia a troca, e guardava os dólares na minha bolsinha que sempre tinha amarrada por dentro das cuecas. Só tirava para tomar banho e dentro do banheiro, e era a primeira coisa que amarrava antes de me vestir. Parece mentira, mas o que menos me preocupava era com o tempo passando, a minha preocupação era de ganhar o dinheiro para levar para a mãe. Procurava seguir à risca o asseio que a mãe sempre me falava, e quanto aos paninhos, eu comprava fazendas baratas e pedia para que as recortassem, procurando que não me faltassem. Os perfumes eu já sabia comprar também, o creme dental, o sabonete, e quando as toalhas estavam demasiado usadas, comprava novas. A minha roupa sempre mandava lavar, as cuecas, camisas e meias que já usava, trocava todos os dias. Depois que tive conhecimento da forma de conseguir dormir em pensões, nunca mais dormi debaixo de bancos de parques. Dinheiro sempre ganhava, no mínimo dez pesos colombianos. Apesar de tudo ir correndo muito bem, uma noite me tocou dormir numa rodoviária. O motorista do ônibus que viajei não morava naquela cidade e teria de voltar ao ponto de partida na mesma hora. Os passageiros desceram e imediatamente os outros subiram e o ônibus partiu. Chovia muito forte, assim mesmo o movimento na rodoviária não parava, crianças corriam, gente entrava e outras saíam, eu não tinha para onde ir e nem me atrevia a sair da rodoviária. Em frente havia vários hotéis, mas o alemão tinha me dito que não me hospedasse em hotel, porque sempre pediam documentos e que para menores sozinhos não alugavam quartos e que eles mesmos podiam me entregar para a polícia. Decidi ficar na rodoviária até parar de chover. Sentava-me, me levantava, caminhava, jantei no restaurante da rodoviária, já era noite e a chuva não parava. Um pouco ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 220 cansado, me sentei do lado de um casal que cochilava e peguei no sono. Quando acordei eram outras pessoas que estavam ao meu lado, olhei o relógio da rodoviária, marcava 6 horas e 30 minutos. Procurei o banheiro, fiz as minhas necessidades, tomei banho e, perfumado, apesar de haver dormido sentado, me sentia muito bem, roupa limpa, nada me incomodava. Dinheiro eu tinha, e sempre me acompanhava a esperança de que era só trabalhar e em poucas horas embolsava até vinte ou vinte e cinco pesos em moeda colombiana. Em outros lugares consegui reunir até cinquenta pesos. Já fazia muito tempo que tinha saído da casa de Vish e Estefani. No começo sentia muitas saudades deles, lembrava o Biche, a Gina, meus amiguinhos engraxates, também da vez que fui na vila deles, de suas gentes, senti vontade de voltar e passar uns dias com eles, mas estava muito longe. Um dia sonhei que estava dormindo na casa de Vish, que Estefani me passava a mão nos cabelos e dizia: – Meu menininho. Naquele dia sim senti que a saudade quase não me deixava trabalhar. Lembrava quando ela disse: – Amor, foi Deus que me mandou ele, e Vish respondeu: – Não amor, foi o mano que o mandou para que lhe déssemos uma mãozinha. Eu segui à risca o roteiro que o alemão me marcou. Em alguns lugares até a polícia estava presente, mas até colaboravam, em outros lugares fiz amizade com policiais e me levavam nas suas casas e quando estavam de folga saíamos a passeio com sua mulher e filhos e familiares. Em algumas cidades os policiais chegavam perto de mim e me diziam que não demorasse muito porque as reuniões nas ruas e parques estavam proibidas. Apesar de tudo, tinha me dado muito bem, a não ser naquela chuva quando tive que dormir sentado na rodoviária. Agora me faltava só uma cidade para depois chegar à capital, só que era tanta a vontade de chegar, que decidi não parar e seguir diretamente à capital, onde procuraria a forma de poder viajar para minha casa. Sentia-me feliz: tinha dinheiro, iria dar a maior parte para minha mãe e iria ficar com algum pouquinho para pagar o almoço para meus amiguinhos do mercado, comprar um presente para Romélia, e para cada um dos meus irmãos iria dar um pouco de dinheiro. Lembrava todos os amigos onde sempre chegava ou visitava lá na minha vila. Lembrava-me do Italiano, cozinheiro do navio, se pudesse encontrá-lo e contar a aventura que vivi desde o momento que me deixou naquele porto. Ria sozinho pensando qual seria a cara de alegria da mãe quando eu estivesse chegando em casa e mais ainda quando estivesse lhe entregando o dinheiro. Estava tão distraído que nem senti a viagem. Como de costume olhei o relógio da rodoviária, faltava pouco para as 18 horas, fui ao banheiro, me lavei, penteei, e depois me dirigi a um restaurante em frente à rodoviária, bem iluminado, amplo, bonito, os ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 221 garçons bem vestidos. Embora tivesse muita gente, sobravam mesas vazias. Quando estava entrando fui barrado por um guarda que estava na porta, que me disse: – Menor sozinho não pode entrar. Saí sem rumo me afastando da rodoviária, sempre que passava em frente a um restaurante perguntava para o guarda se poderia jantar e a resposta era não. Bastante longe da rodoviária, um guarda de um restaurante que estava perto da porta, sentado em uma cadeira, e ao receber resposta negativa, lhe perguntei: – Onde poderia jantar? Respondeu-me que era melhor ir até o porto, só que era um pouco longe, que era bom pegar uma condução. Perguntei: – E se for a pé? Deu-me todas as dicas para chegar. No porto, dormindo ao relento Passei por alguns parques muito bem iluminados, o último perto do porto era só penumbra. Após caminhar quase duas horas, cheguei ao porto, de ruas bem iluminadas, muitos bares cheios de gente bebendo, música em alto volume, mulheres paradas nas esquinas, em grupos de duas ou três, algumas sozinhas. Uma grande fileira de barracas de comida, muitos carrinhos de vendedores de refrescos, vendedores de bijuterias. No fim até podia se encontrar de tudo, a qualquer hora a bagunça era ensurdecedora, cada um gritando, anunciando seu produto. Comecei a percorrer as barracas de comida, me aproximei da que me chamou mais atenção, a mulher que me atendeu foi um pouco grosseira, me perguntou de forma brusca: – O que você quer? Perguntei o que tinha para comer. Com muito má vontade enumerou várias comidas. Pedi peixe ao molho, salada de tomates e patacones. De forma áspera me disse: – Isso aí é caro. É quanto? Dois pesos. Pode ser, respondi. Ela sempre grosseira me disse: – Tem que pagar adiantado. Paguei, por último me serviu um copo de leite e um doce de côco, senti que a mulher não era de boas pulgas, por isso não me atrevi a lhe perguntar nada a respeito de onde poderia dormir. Sem me despedir saí, ela ficou me olhando com certo olhar suspeito, senti um pouco de medo e tratei de me afastar o mais rápido que pude daquele barulhento lugar. Olhando para todos os lados, e quando tive certeza de que ninguém me seguia, me dirigi àquela praça que tinha visto com pouca luz, calculo que já passava da meia-noite, assim mesmo tinha alguns casais em alguns bancos. Procurei um banco bem isolado, me sentei, mas gostaria mesmo era de me deitar e dormir. Olhando para todos os lados fui tirando o meu capote e uma toalha de banho, presente de Estefani. Olhando sempre para todos os lados arrumei debaixo do banco e me deitei, com a toalha enrolei a bolsa que servia de travesseiro. Ainda estava me organizando quando um casal se sentou no banco, fiz ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 222 tudo o que pude para não fazer barulho, no meu entender era um par de namorados, discutiam em voz alta, quem mais alto falava era ela. As poucas chances que ele tinha para falar, com calma dizia: – Não é assim meu amor, é mentira. Eu lá embaixo não conseguia dormir, ficava quieto e quando cansava desse lado mudava de posição bem devagar. Ficaram em silêncio um bom tempo, eu estava pegando no sono e de novo ouvi as vozes, só que desta vez não brigavam, ele dizia: – Amor, eu te amo, porque iria te trair, podes estar certa disso. Ela: – Amor, eu te amo muito, e é por isso que sinto ciúmes e tu me dás motivo para tal. Ouvi o estalar dos lábios, por certo se beijavam, não passaram muitos minutos e já estavam brigando de novo e assim entre brigas e reconciliações passaram umas quantas horas, até que entre as tênues luzes do parque vi eles se afastarem de mãos dadas e de vez em quando se beijando. Retido e encaminhado ao Consulado da Colômbia Calculo que já era madrugada, mas o sono me dominou e só acordei quando um senhor com uniforme, não de policial, me cutucou com um rolo de madeira e disse: – Acorda vagabundo, sem vergonha, ligeiro, ligeiro. Abri os olhos, o dia estava bem claro, o cara quase que não me deixou enrolar o capote, tive que guardar a toalha e o capote cheios de folhas. Antes de guardar, me puxou a bolsa perguntando o que tinha ali. Respondi: – Minhas roupas, mais nada. O cara era um gigante, me pegou com suas mãozonas e me puxou gritando: – Vamos, vamos! Ele caminhava a passos largos, sempre me segurando, eu, para acompanhar, tinha quase que correr, e corria todo apavorado. Enquanto ele me puxava, algumas pessoas lhe gritavam: – Larga o guri, infeliz! Outros lhe gritavam: – Larga o rapaz, cafajeste. Uma senhora lhe gritou da sacada: – Deixa a criança em paz, brutamontes, aquele poderio se lhes há de acabar. O homem não se importava com os insultos das pessoas. Em poucos minutos entramos num prédio antigo, onde atrás de uma escrivaninha antiga e grande estava um senhor baixinho e gorducho com bigode, vestido com uniforme igual ao do gigante que me atirou contra um banco de madeira. Como pude, consegui me equilibrar, o gorducho nos recebeu todo sorridente e de forma sarcástica, dizendo: – Um para a limpeza. Na mesma sala havia várias pessoas, pretas e brancas, homens e mulheres, um casal de pretos mostrava nos seus rostos muita tristeza, uma senhora branca gemia e quando o gigante me empurrou, ela desandou a chorar, o porquê nunca soube. O gordinho pegou um livro grande e perguntou para o gigante: – Onde pegou ele? No parque tal. O que fazia? Dormia. Em seguida me perguntou: – Qual o teu nome? Orlando Ortega. O de teu pai? Ele já ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 223 morreu. Mas como se chamava? Nicolas Ortega. Tua mãe? Isabel Cabeza. Quantos anos tu tens? Doze, vou fazer treze em agosto. Então tu já tens treze, agosto já passou. De onde tu és? Respondi da Colômbia. Os dois ficaram mudos, o gordo largou a caneta e fechou o livro, em seguida com muita delicadeza me perguntou: – Com quem tu andas? Sozinho, respondi. A tua mãe te deixou? Não senhor, eu fugi. Uma das senhoras disse: – Olha onde é que anda essa criança, longe da família! O gordo me perguntou: – Já tomou café? Não senhor. O gigante entrou para o interior do prédio, em seguida apareceram duas senhoras, uma me pegou pela mão e me levaram para dentro, o gigante com muita delicadeza se despediu de mim, meio desenxavido. As senhoras me levaram para uma sala que tinha sofá e mesa de centro, folhagens e quadros, uma delas me disse: – Agora vamos lhe preparar um café. Eu perguntei se não havia um lugar para tomar banho. – Sim, sim, e me mostraram o banheiro. Uma delas me prometeu trazer uma toalha, eu falei que tinha tudo. Saí do banho de roupa limpa, penteado e perfumado! Que cheirinho gostoso. O café estava pronto, café com leite, pão, queijo e manteiga. Terminado o café me escovei, estava agora como eu gostava. Notei que a todo momento passava alguém me olhando, como se fosse algum bicho raro. Uma senhora bastante reforçada, de avental branco e com um pano amarrado na cabeça chegou onde eu estava, me olhou, sorriu meio que sem graça, mas não falou nada e foi embora, em seguida passaram duas moças, uma branca e outra morena clara, elas só passaram me olhando e rindo. Um senhor do tipo sarará que vinha atrás delas, também de avental branco e gorro de cozinheiro, entrou, me deu a mão, me cumprimentou e disse: – Bem vindo! Seu sorriso era franco, e ao se despedir colocou-se às minhas ordens, me deu uma palmadinha nas costas e foi embora. Ouvi ruído de carro estacionando na rua, me levantei e fiquei olhando através da grade da janela, um senhor de uniforme militar desceu do carro e se dirigiu à entrada do prédio, o motorista ficou no carro. O militar junto com o gordinho chegou onde eu estava, o militar me cumprimentou me dando a mão, perguntou se tinham me dado café, respondi que sim, se despediu e saiu. Horas depois me convidaram para almoçar, o comedor era um salão grande que tinha vários uniformizados, onde inclusive estava o gordinho, que ao invés de sarcástico, agora era todo delicadeza para comigo. Muitas perguntas me eram feitas, eu respondia, por último terminei fazendo provas, pelo que entendi, pouco gostavam do gigante, todos foram saindo e eu voltei para a sala, e sentado no sofá, peguei no sono. Bem à tarde me chamaram e com a minha bolsa subi num carro, junto comigo ia um guarda vestido igual ao gigante, uma senhora à paisana e o motorista. Saímos, a cidade era grande, após atravessar ruas, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 224 avenidas e parques, chegamos num prédio cercado de grades. Num mastro alto estava a Bandeira Colombiana, na entrada do prédio uma placa dizia: Embaixada da Colômbia. O porteiro abriu o portão, uma vez dentro, a senhora e eu descemos, o guarda continuou no carro junto com o motorista. Eles se despediram de nós e foram embora. A senhora não falava, apenas me indicava o caminho a seguir com gestos e movimentos das mãos. Atravessamos vários corredores, alguns jardins e passamos por vários escritórios. Após um longo espaço vazio, chegamos num prédio, sempre dentro do mesmo complexo, entramos numa sala onde estava um casal de jovens, o rapaz se levantou e tratou de falar com a senhora que me acompanhava, a sós. Tive a impressão que falavam de mim e que haveria uma ordem a meu respeito. Saímos do escritório e subimos por uma escada que dava numa sala na parte superior do mesmo escritório que acabávamos de sair, não era muito grande. A sala tinha um sofá grande e um pequeno, uma mesa de centro onde havia várias revistas colombianas um pouco antigas, havia uma ampla sacada que dava para uma movimentada avenida. Do fundo da sala saía um corredor estreito, e no fundo deste tinha um banheiro. Ela me mostrou tudo, e antes de sair me disse: – Você vai ficar aqui. Amanhã o senhor Cônsul estará aqui e falarás com ele. Procure não sair, porque se lhe pegarem dormindo no parque, se os guardas lhe pegam, lhe vão encaminhar à Febem e lá, se não apanhas dos guardas, apanhas dos garotos detentos. Logo mais um senhor vai lhe trazer comida, um lençol e travesseiro, podes dormir em qualquer sofá. Saiu sem se despedir e chaveou a porta. Não tinha comido meu acostumado lanchinho e sentia fome, me sentei num sofá e tentei pensar, mas a fome não me deixava, já estava escurecendo quando apareceu o senhor me trazendo um prato de comida, tudo junto, arroz, feijão com pedacinho de carne de porco, pedacinho de milho verde e uma garrafinha pequena de refrigerante. Enquanto comia, o homem me olhava de soslaio, gesticulava palavras ininteligíveis, eu sentia que ele queria me dizer alguma coisa, só que não falava, quando terminei me perguntou: – Porque o guarda te pegou? – Cheguei aqui muito tarde da noite, fui comer nas barracas do porto, e como não conseguia onde dormir decidi dormir no banco da praça, e lhe contei porque tinha pego no sono, devido à briga e romance dos namorados, dormi de madrugada, e foi por isso que o guarda me pegou dormindo e me levou para uma casa. – E como lhe trataram? – No começo muito rudes, quando lhes falei que era colombiano, começaram a me tratar bem, me deram café e depois almoço e por último me trouxeram aqui. – Você sabe onde está? – Não senhor. – Aqui é a Embaixada da Colômbia, esta parte pertence ao Consulado, tudo isto aqui é como se fosse território colombiano, a maior parte do pessoal que trabalha aqui é colombiano, muito poucos não o são. É claro que naquela época, tudo o que ele me falava de Embaixada e Consulado eu ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 225 não entendia nada, porém respondia: sim senhor. Após me dar algumas explicações, disse que o senhor Cônsul viria no dia seguinte e falaria comigo, que ele trabalhava com o senhor Cônsul e ele tinha lhe encarregado de ver o que eu carregava na bolsa, nos meus bolsos, se os homens me tinham ocasionado algumas feridas, se tinham me batido. Mandou tirar tudo o que tinha na bolsa, viu o capote, lhe expliquei o porquê dele, um carnezinho que eu carregava, eu falei que era a identificação escolar, era de cor marrom e estava escrito em letras de imprensa: Governo da República de Colômbia, Ministério de Educação, em manuscrito estava o nome do pai, da mãe e o meu, onde dizia a série, 2º ano, leu tudo e me perguntou: – Estudou só até a segunda série? – Sim senhor, respondi e tive de lhe contar o porquê. Pegou uma tesourinha que a mãe tinha me dado para cortar as unhas e quis saber para que eu a tinha. Dei-lhe a explicação para que a usava. Contou o dinheiro que eu tinha em moedas e notas, me mandou tirar a camisa, me examinou as costas, o peito e os braços. Notou a protuberância na minha barriga, perguntou o que era que tinha, lhe mostrei e lhe disse que eram dólares. Pegou, contou, me lançou um olhar como de desconfiança, ele tomava nota de tudo, dos dólares não me perguntou nada, guardou tudo na bolsa, só me deixou os utensílios de limpeza pessoal, menos a tesoura, por último assinou o papel onde tinha tomado nota de tudo, me entregou uma cópia e disse: – Guarde e não perca. Posso garantir que este senhor em nenhum momento foi ríspido comigo. Antes de sair chamou um senhor e lhe entregou todas minhas coisas, pedindo para guardar no escritório do Cônsul. Em seguida o senhor me disse: – Este senhor fica toda a noite por aqui, se precisar alguma coisa é só gritar “Isidoro”. Despediram-se de mim, e o Isidoro, ao se despedir do senhor, lhe disse: – Boa noite senhor doutor. O doutor foi embora e o Isidoro ficou pelo corredor. No dia seguinte, após ter tomado o café, chegou até o quarto uma senhorita e me falou que o senhor Cônsul queria falar comigo, ela desceu na frente e eu a segui, entramos num escritório e me mandou sentar. Ela sentada atrás da sua escrivaninha, de vez em quando me lançava um olhar como sem vontade de me olhar e no seu rosto surgia um leve sorriso, algo assim como picaresco. Querendo entrar em conversação com ela lhe perguntei: – A senhorita é colombiana? – Sim. Foi tudo o que me respondeu, notei que ela não queria falar comigo e preferi ficar calado. Um senhor jovem, alto, de barba, apareceu na porta e me perguntou: – Você é Orlando? – Sim senhor. – Passe aqui! Entrei, me mandou sentar, bastante ríspido e sem nenhuma delicadeza me dirigiu a palavra desta forma: – Você vai ser deportado para sua terra num navio colombiano que está para chegar, lá vai ser entregue na correcional de menores (FEBEM). Sabe o endereço de sua casa? – Sim senhor. – A sua mãe vai ser avisada, o restante é com eles. Você vai ficar naquele quarto, a mulher de Isidoro ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 226 lhe levará a comida e procure não se afastar muito longe daqui e nem tente fugir, porque aqui tem soldados dia e noite e se te pegam, então será chaveada a porta, entendido? – Sim senhor, respondi. Falando forte me disse: – Pode ir. Foi me empurrando e fechou a porta, não me deu chance de nada, nem de perguntar se me devolveriam as minhas coisas e o meu dinheiro. A senhorita que me trouxe me abriu a porta para sair, mas sempre acompanhada daquele sarcástico sorriso, saí e fechou a porta. Confinado no Consulado A minha cabeça começou a ser invadida por muitos pensamentos, me deitava e não conseguia dormir, tomava um banho de noite e outro de manhã, não tinha sossego, me deitava, me levantava, mesmo à noite me sentava na sacada, ficava longas horas na sacada, via muita gente entrar e sair do escritório do Cônsul, as vozes eram de colombianos, soldados andavam pelos jardins. Uma vez vi muito movimento de soldados bem uniformizados, oficiais hasteando a Bandeira Colombiana e outra não sei de onde era, toque de clarim e uma orquestra sinfônica, primeiro tocou o hino nacional e depois outro hino. Da sacada via o movimento contínuo de veículos, via passar o vendedor de frutas oferecendo-as aos gritos, era nesta sacada que eu passava a maior parte do dia. Uma senhora, que depois fiquei sabendo que era a mulher de Isidoro, me trazia a comida, era só um prato, quase sempre o mesmo, arroz, feijão com um pedaço de carne, às vezes de porco, outras de gado, uma espiga de milho verde cozida ou aipim, algumas vezes era uma broa de milho, uma garrafinha pequena de refri, sempre o mesmo. O café da manhã era uma xícara de café com leite, um pão tipo cacetinho, que já vinha com manteiga. Acostumado que estava a comer um lanchinho entre o café e o almoço, mas nada disso me era brindado, e quando chegava aquele horário a fome se manifestava, então quando traziam aquele pratinho de comida, eu estava varado de fome. A mulher do Isidoro não me dava chance de falar com ela. Chegava, pegava o prato do dia anterior, me deixava a comida e saía quase correndo. Um dia quem me trouxe a comida foi um rapaz, calculo que da minha idade. Ele foi até mais rápido do que a mulher de Isidoro. Deixoume a comida, nem levou o prato anterior e desceu as escadas correndo. Guri bobo que eu era, e sem malícia alguma, nunca tive uma idéia de fazer algo para mudar essa situação. Não sei como foi que uma noite, como não conseguia dormir, acho que era porque sentia fome, chamei Isidoro aos gritos, ele subiu as escadas lentamente, entrou, não me cumprimentou nem me perguntou nada, fui eu quem falou: – Senhor Isidoro, estou com forte dor de estômago, será que o senhor poderia me conseguir um chá ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 227 preto? Também uma aspirina, e se o senhor puder me comprar umas bolachas salgadas, é que a aspirina me produz uma ardência no estômago e só passa comendo alguma coisa salgada. O senhor me faz esse favor, que quando o senhor Cônsul me devolver meu dinheiro eu lhe pago. Eu me retorcia como se realmente sentisse dor. Ele saiu, não demorou muito e apareceu com o chá, a aspirina e um crocante bolachão que não consegui nem comer a metade. Ele colocou tudo na mesa e saiu sem me dizer uma palavra. Satisfeito depois de tomar o chá e comer parte do bolachão me deitei, era fome, em seguida peguei no sono. No dia seguinte, seguramente avisado por Isidoro, apareceu o doutor e começou a me auscultar, como era justamente o horário do meu lanche, o meu estômago roncava de fome, o doutor me perguntou: – Está com fome? – Sim senhor um pouco. Ele mexeu a cabeça e entre os dentes disse: – Esses seus patrícios, falou em tom de crítica, tirou da pasta uns comprimidos vermelhos que estavam num vidro. Tome um por dia, são vitaminas, não vão lhe fazer mal, ao contrário, muito bem para sua saúde, me espere, já volto. Saiu, pouco tempo depois voltou me trazendo um pacote de bolachinhas salgadas e outro de doces, dois refrigerantes grandes e cinco bananas. Pegou sua pasta e me disse: – Você está muito bem. Despediuse e saiu, em seguida me aferrei no pedaço de bolachão do dia anterior e numa banana. Tratava de economizar os meus lanches o mais que podia. Os meus lanches eram bem pouquinhos, é claro que mesmo economizando, dias depois tudo já estava no fim, só tinha um golinho de refrigerante e uma bolachinha. Aquela noite, deitado no sofá e pensando que todos os meus lanches se tinham terminado e que voltaria a sentir fome antes da chegada daquele pratinho de comida, sem querer falei: – Deus me há de ajudar. Fiquei meditando e eu mesmo me recriminava e dizia: – Eu só me lembro de Deus e de Santa Sara quando estou em apertos, caso contrário nunca me lembro deles. Sentei-me, rezei um Pai Nosso, duas Ave Marias em voz alta, pedi a Deus e Santa Sara Kaly, meu Deus, minha Santa, me ajudem, não me abandonem, sabem, eu sou um burro que não sei pensar para conseguir me defender, não sei nem falar. Tornei a rezar e me deitei. Isto que escrevo realmente aconteceu, coisa que me pareceu estranha. Sonhei com meu pai, que ele estava todo bravo comigo, me xingava, me dizia que eu realmente era um bobo, que me deixava humilhar dessa forma, abre a boca, aprende a falar e não te esqueças que quem sempre te salva é Deus e a nossa mãezinha Santa Sara Kaly. Aquela noite eu vi o rosto do meu pai, porém quando acordei não consegui lembrar sua fisionomia. Como de costume me levantei, tomei meu banho, troquei de roupa interior, que só restava uma muda, tinha vontade de lavar minha roupa, mas não tinha ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 228 sabão, o sabonete estava no fim, também o creme dental, e o perfume só restava o cheirinho do vidro, mesmo assim não estava triste, ao contrário, sentia uma sensação de alegria. Desta vez foi o Isidoro que me trouxe o café, o mesmo de sempre e do mesmo jeito, entrou, colocou na mesinha sem dizer uma palavra e saiu, me lembrei que no sonho meu pai tinha me dito: Abre essa boca e grita, então quando vi o Isidoro sair quase que correndo, lhe gritei: – Porque é que vocês não querem falar comigo? Ele não me respondeu nem sequer me olhou, desceu a escada bem tranquilo. Tomei o café e fiquei pensando, se tivesse seguido à risca conforme o alemão tinha me aconselhado, talvez não estivesse nesta situação em que me encontro! Não sei por que pulei aquele povo, lembrei de todos os lugares por onde passei, de pensões que dormi e fui bem tratado, motoristas que me levaram para suas casas, passeei com eles e seus familiares, dormi em ônibus autorizado pelos motoristas e uma vez cheguei a dormir numa rodoviária porque chovia. Em todos os lugares fui bem tratado, e aqui, desde que cheguei, não tive muita alegria. O doutor tinha me dito que a maior parte do pessoal que trabalhava aqui era da minha terra, só que aqui nem sequer me dão importância. Falei quase em voz alta: – Onde estará a linda Estefani e o Vish? Porque será que lembro tanto deles mais do que dos meus? Lembrando o sonho que tive com meu pai gritei: – Pai... pede para Santa Sara Kaly me ajudar! Sem pensar em nada fiquei olhando, sentado no sofá, quando vi a moça, aquela do sorriso picaresco, entrou no quarto sorrindo do mesmo jeito e me disse: – O senhor Cônsul lhe manda chamar. Tudo se repetiu como da primeira vez, ela na minha frente e eu a seguindo atrás, entramos no escritório, me mandou sentar e com aquele sorriso de malvada me olhava de vez em quando. Minutos depois apareceu o jovem alto e barbudo e da mesma forma grosseira me mandou entrar no seu escritório e sentar. O show Ele tinha todas as minhas coisas na sua mesa, inclusive o dinheiro que tinha tirado da bolsinha que eu mantinha amarrada na cintura. Sem nenhuma delicadeza, ao contrário, bem grosseiro, me perguntou: – Tudo isto aqui é fruto de roubo? Como é que veio parar tudo isto nas suas mãos? Quase tremendo, não sei se de raiva ou de quê, respondi: – Não senhor, eu não roubo, eu ganho fazendo provas nas praças e contorcionismo. – Contorcionismo? Questionou ele. – Sim senhor. E sem perda de tempo, comecei a caminhar com as mãos, subi na mesa, pulei, ele bateu palmas, em seguida gritou: – Lusdari, vem. Talvez você lendo isto não possa imaginar o pulo que o meu coração deu quando ouvi aquele nome. Quando a moça do tal sorriso entrou, eu estava lembrando Lusdari, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 229 Evaristo, Chepe, Mercedes, e mesmo distraído, ouvi quando o Cônsul lhe disse: – Apague a luz e feche o portão da entrada e vem ver uma coisa bonita, um espetáculo de circo. Quando ela voltou comecei tudo de novo, a cada prova batiam palmas, riam e falavam: – Que lindo! Tão novinho, como é que sabe tanta coisa? Aquele sorriso picaresco desapareceu da moça, agora era um doce sorriso e sincero. O Cônsul me perguntou: – Quer café? Eu que estava pensando, quando voltasse ao quarto iria comer a última bolachinha e tomar o último gole de refri e pedir para ele me deixar comprar coisas, porque me dava muita fome entre o café e o almoço e também à tarde. Por isso, quando me perguntou se queria café, respondi afirmativamente. Lusdari se levantou e ao sair, o Cônsul lhe disse: – Fale para o Isidoro que nos mande o café bem acompanhado. Quando Lusdari saiu, nós ficamos conversando, me perguntou para que eram aqueles paninhos. Quando lhe contei que minha mãe tinha me ensinado que sempre que fizesse minhas necessidades fisiológicas era para me lavar bem com um paninho e jogar fora, que era bom andar sempre limpo e prevenido para o caso de ter de ir a um médico com urgência por um mal súbito ou por qualquer coisa não estar fedorento de cocô ou de xixi. O Cônsul se levantou, colocou as mãos na cabeça e olhando para cima dizia: – Meu Deus, como é que minha mãe não me ensinou isso! Ele caminhava de um lado para outro e dizia: – Que mulher mais sábia essa tua mãe, Ortega. Naquele momento entrou Lusdari tomando café preto num caneco na mão, em seguida entrou a mulher de Isidoro com uma bandeja onde fumegavam duas xícaras de café com leite, várias fatias de pão, manteiga, queijo e salsichão frito. Para mim, tudo aquilo era um tremendo banquete, depois de tanto tempo comendo um cafezinho com aquele pãozinho lambido de manteiga. Uma das coisas que sempre me lembro de quando já estava um pouco civilizado, é quando a mulher de Isidoro, ao me ver junto com o Cônsul, tratando de deixar o cinismo de lado, disse: – Ah, o menino está aqui? Pela primeira vez a ouvi falar. Até hoje, quando me lembro, sinto raiva por não ter sabido responder de forma grosseira. Lusdari tomava seu café preto, saboreando com gosto, ela também, pela primeira vez falava comigo amistosamente. Enquanto estávamos no escritório, às vezes entrava alguém para ele assinar alguns papéis. Ele lia, assinava e carimbava, outros só lia e deixava na mesa, a todas as pessoas que entravam ele me apresentava e lhes dizia: – É nosso conterrâneo, é um artista, faz coisas muito bonitas. Todos me davam a mão e sorriam, mas a única coisa que eu pensava nesse momento era que antes de sair ele me deixasse pegar algum dinheiro, para pedir ao Isidoro me comprar algumas coisas, porque a comida era pouca e eu ficava com fome. Pensava também em pedir, sob juramento de ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 230 que não fugiria, para que me autorizasse a sair de vez em quando para conhecer um pouco a cidade. Mas a todo o momento eu mudava o pensamento. Nós continuamos conversando. Eu estava à espera de uma oportunidade para fazer o pedido, mas não conseguia porque continuava entrando gente levando papéis para ele assinar e carimbar, ou funcionários pedindo informações, etc. Eu só olhava e pensava. Terminado o movimento ele me disse: – Não gostaria que continuasse aqui detido, vou levá-lo para minha casa e lá esperará até a chegada do navio que vai levá-lo de volta. Como você não tem documentos e está fugido de casa, o capitão vai ter que entregá-lo ao juiz de menores em Barranquilha, que é onde o navio vai ficar por alguns dias, eu vou lhe dar uma carta para que a entregue ao capitão para que o trate bem e até possa libertá-lo. Procure não se apresentar em nenhum parque, porque se tornarem a detê-lo, vão lhe confinar onde estão os menores infratores, que são muito maus, e vai me criar problemas. Eu vou lhe organizar num quarto lá na minha casa e procure não ficar até muito tarde da noite na rua. Suba, pegue suas coisas e volte. Subi correndo, peguei o pouco que tinha e voltei. Organizei muito feliz todas as minhas coisas na bolsa e rápido já estava pronto. O senhor Cônsul antes de sair deu algumas ordens e também informou a Lusdari que não viria à tarde. Saímos, um carro preto nos esperava no portão, o motorista era o mesmo que tinha me trazido até ali. Poucos minutos depois de ter rodado algumas ruas e avenidas, chegamos na casa, não era um sobrado, só que a casa ficava a cinco degraus acima do nível da rua. Hóspede na casa do Cônsul A esposa do Cônsul nos recebeu um pouco assustada, seu olhar era de desconfiança, entramos direto na sala, nos sentamos e ele falava para ela: – Amor, o nosso patrício não é nada daquilo, nós descobrimos que ele é um artista, ele não é nada daquilo que nós falamos e que imaginamos que ele era, tu vais ver as coisas lindas que ele faz, e é dessa forma que ganha dinheiro. Contou-me que por todos os lugares onde passou sempre foi muito bem atendido bem tratado, que tem deixado muitos amigos, só que aqui, desde que chegou, não tem sido bem tratado. – Orteguita, nós não sabíamos quem tu eras, e ver um guri na tua idade com tanto dinheiro e com todos esses badulaques, a gente só podia pensar que tu eras um gato, sem saber o artista que és, e em nome de todos, te peço desculpas. O Cônsul se levantou, chegou à janela e gritou para o motorista: – Jan, sobe querido. O tal Jan entrou e o Cônsul lhe disse: – Olha as coisas que ele faz. Eu estava pronto e comecei, sempre caminhando com as mãos e assim continuei, a cada prova que fazia, batiam palmas, e não ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 231 faltavam as risadas. O Cônsul convidou o Jan para almoçar conosco, e depois do almoço e de um descanso, íamos dar uma volta pela cidade. Enquanto almoçávamos, me faziam perguntas. Perguntaram o que ia fazer com aquele dinheiro, eu lhes contei que éramos muito pobres, lhes falei também como era nossa casa, e esse dinheiro era para minha mãe fazer a casa nova. Contei-lhes como eu tinha saído de casa, fui lhes contando tudo, ponto por ponto, quando lhes contei que tinha sentado naquela cobra pensando que era um tronco ou uma árvore caída, riram à vontade, mas quando lhes contei da fome e dos plátanos que peguei na lata de lixo, o Cônsul estava quietinho, nem piscava, os olhos de sua esposa estavam molhados de lágrimas e também os de Jan. Terminado o almoço ela começou a recolher os pratos e talheres, eu já fui me levantando e ajudando, mesmo que ela não quisesse, eu insistia em ajudar, até que ela deixou. Desde a minha chegada, o que não parou de me incomodar e quase não nos deixava conversar era um cachorrinho que eles tinham, e que desde o momento que entrei não parou de me latir. Colocaram-no numa caixa de madeira, mas ele não parava, quando me levantei da mesa para ajudar, parecia que ele tinha enlouquecido, latia com mais força, não sei de que forma conseguiu pular fora da caixa e veio direto para a cozinha onde eu estava varrendo e se avançou sobre mim. Como ele era pequeno, o afastei com a vassoura. Nesse momento ela entrou, pegou o cachorro, xingou, deu um tapinha nele e colocou de novo na caixa, mas assim mesmo ele não parava de latir. O Cônsul, que tinha saído com o motorista, ao voltar foi direto brincar com o cachorrinho e lhe perguntava: – Tá com ciúme? Bobo! Após tomarmos o cafezinho ela me mostrou o quarto onde eu iria ficar, o quarto estava perto da sala, me pediu para descansar porque mais tarde iríamos sair. Entrei, me deitei e dormi os meus dez minutos do Antônio. Continuei deitado e os ouvi conversando, ouvi o meu nome, fiquei atento, calculei que estavam falando de mim, mas não conseguia entender o que falavam. O motorista o chamou e os dois saíram, ela ficou e eu aproveitei, me levantei, fazendo de conta que recém me acordara. Ela me convidou a sentar, mas quando o cachorrinho ouviu minha voz, começou de novo a latir. Sentados na sala, ela me fazia várias perguntas, lhe falei de Romélia, da escola, dos meus olhos, mas aquele cachorrinho não parava de latir e atrapalhava a nossa conversa. Ela o pegou no colo mas foi pior, ele se escapou dela, saltou e veio na minha direção, como querendo me morder. Eu fiz ameaça de pegá-lo e ele saiu berrando e se escondeu debaixo do sofá onde ela estava sentada. Ela o xingou e mandou calar a boca, ele ficou quietinho embaixo do sofá, mas de vez em quando dava umas latidas. Estava contando para a senhora Consulesa como era o negócio de trocar bananas por cigarros nos navios num porto ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 232 colombiano, nesse momento o Cônsul entrou e nos convidou para dar uma volta pela cidade. Saímos e por onde passávamos, iam me dizendo os nomes das igrejas, dos parques e dos monumentos. Passamos por muitos lugares, também passamos pelo parque onde o guarda me pegou e tive que lhes contar a história dos namorados que brigavam e se reconciliavam e que foi por culpa deles que peguei no sono e assim o guarda me pegou. Também lhes contei da fome que sentia entre o café e o almoço e entre o almoço e o jantar e que às vezes não conseguia dormir de tanta fome. Falei também da mentira que inventei para que me dessem um chá, então ela me apertou sobre seu colo e me disse: – Coitadinho! E dirigindo-se ao Cônsul disse: – Amor, porque judiaste deste menino? Porque não o levaste direto para casa? O Cônsul respondeu: – Amor, só agora estou sabendo da comida que o Isidoro lhe dava, essa eu vou cobrar dele, outra coisa, o guarda que veio me entregar ele, disse que estava seguro que o rapaz era ladrão, e quando vi na bolsa dele tanta geringonça pensei que realmente tudo era fruto de roubo e mais ainda, quando encontrei todo aquele dinheiro amarrado no seu corpo, não tive mais dúvidas. Aquele abraço que ela me deu me fez lembrar Estefani e fiquei pensando neles. Já estava escuro quando entramos num restaurante para jantar, como não entendia nada desse negócio de cardápio, a Consulesa me explicava o que era cada prato. Comi o mesmo que todos, depois retornamos para casa, nos sentamos na sala, e em seguida o Cônsul me disse: – Ortega, tu não tens nenhum documento e vai ser difícil sair do país. No momento da saída eles podem te prender e até averiguarem quem realmente és, tu vais passar muito tempo lá na correção e eles te judiam muito e eu muito pouco posso te ajudar. Estive falando com a minha mulher para tu ficares mais algum tempo conosco até encontrarmos a forma de te conseguir um passaporte para menor, não vai ser fácil, mas vou tentar. Tu podes ficar lá em casa, nós recém estamos chegando aqui, os nossos dois filhos estão estudando na Europa, a minha mulher não sabe se fica aqui ou retorna para a Colômbia e tu serias uma boa companhia para ela. E para que não fiques sem ganhar nada, lhe vamos dar três dólares por mês e não precisa te preocupar pela roupa lavada, comida e mais algumas coisinhas, que procuraremos te dar. Pelo que já tinha notado como eram duras as autoridades, e também o alemão já tinha me advertido, imediatamente aceitei. Ela pulou de alegria, sentou-se ao meu lado e me abraçou, mas não sei de onde saiu o cachorrinho, que latia com raiva na minha frente como se me provocasse. O Cônsul lhe dizia: – O que é isso Firpo? O dito, ao invés de se acalmar, mais brabo ficava e não saía da minha frente. A dona Amanda, que era o nome da mulher do Cônsul, também o chamava com carinho: – Vem, Ortega é teu amiguinho! Só que ele não queria saber de carinho, ao contrário, quanto mais carinho lhe davam, mais brabo ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 233 ficava. Quando tentei pegá-lo, chamando-o com carinho, ele fugiu da sala e de lá continuou seu concerto. Eu já estava pegando nojo dele e pensando: No momento que ficar sozinho comigo vou lhe dar uns quantos coices para que aprenda a me respeitar. Despedimo-nos e fomos dormir. Como de costume, cedo me levantei, após tomar o meu banho fui para a copa. O cachorrinho sentiu meus passos e começou a latir, eu não fazia caso, comecei a arrumar a mesa tal como Estefani a arrumava. Uma vez tudo pronto, comecei a olhar para o fogão e as panelas e sozinho falava: Que pena não saber fazer o café! O meu irmão Marino e meu irmão Túlio, eles sim sabem tudo de cozinha, só eu que não pretendo aprender. Ouvi ruído de carro, o portão abriu, era o motorista, mexeu comigo: – Oi madrugador! Em seguida entrou na cozinha, pegou um cesto de vime e um vasilhame de alumínio e me perguntou: – Quer ir junto? – Sim senhor. Saímos, a três quadras havia um armazém grande, tipo mercadinho, muita gente comprando e também vários atendentes. O motorista era bem conhecido por todos os funcionários, eles sabiam que ele levava leite e pão. No momento de pagar, o caixa dava um selo parecido com o dos correios, este era de cor vermelha e se lia propina em letras pequenas nos quatro lados e no centro estava desenhado em número médio real. O motorista me explicou que quando conseguisse reunir em selos o valor do leite e o pão, ao invés de pagar com dinheiro pagava com os selos e que quanto mais comprava, maior era o valor do selo propina. Regressamos para casa com o leite e pão. Vínhamos conversando, lhe perguntei seu nome, me respondeu que era conhecido por Salazar, que era seu sobrenome. Informou-me que fazia muitos anos que trabalhava na Embaixada, que sempre lhe tocava receber os novos Embaixadores e Cônsules e outras autoridades, que quase sempre ficavam quatro anos e depois retornavam para a Colômbia e vinham outros. Também sempre era ele o encarregado de atender e orientar as esposas ou empregadas e depois ele só ficava a serviço da Embaixada, salvo quando as esposas do Embaixador, Cônsul ou oficial lhe chamavam para alguma ajuda. Quando chegamos em casa, dona Amanda estava coando o café, nós chegamos com o leite e o pão, quando ela nos viu entrar disse para Salazar: – Viu como ele arrumou bem bonita a mesa para o café? O Cônsul que estava tomando banho, em seguida veio se sentar à mesa, todo perfumado e disse: – Opa! Esta mesa está arrumada para um rei. Amanda respondeu: – É obra de Ortega. Na mesa se conversou de tudo um pouco. Com os casos engraçados rimos, mas parece que isso não agradava ao cachorrinho, porque lá de onde estava encerrado se ouvia ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 234 seus latidos. O Cônsul e Salazar após o café foram embora, Amanda e eu ficamos arrumando a casa, eu ajudava, ajudei até a limpar o cocô do cachorro, que tinha feito no quarto. O cachorrinho me olhava com um olhar de ódio e eu também já odiava o dito animal. Eu nunca tinha limpado cocô de cachorro, agora pela primeira vez estava limpando. Amanda lhe deu banho e o amarrou nos fundos da casa no corrimão de uma escada, lhe colocou a comida, e mesmo comendo me olhava, parava de comer e latia para mim, sentia que ele me odiava, e eu também. Naquele dia dona Amanda não fez almoço, ela me indicou onde era o restaurante e eu fui comprar a comida. Ao meio-dia o Cônsul veio sozinho para casa. Após o almoço e a cesta, o Cônsul voltou para a Embaixada. Dona Amanda me informou da vinda de um grupo de senhoras e senhores que viriam nessa tarde porque gostariam que ela entrasse para o grupo que procurava ajudar crianças pobres. A dona Amanda me pediu para levar Firpo, que era o nome do cachorrinho, a dar umas voltas pelo parque enquanto acontecia a reunião, para que ele não incomodasse com seus latidos. Prontifiquei-me a levá-lo. Ela desceu a escada pegando-o no colo e subindo com ele lhe dando carinho e falando para ele: – Firpo, você tem que se comportar com Orteguita, ele vai levar você a passear pelo parque. Estávamos na sala quando notamos a chegada do pessoal. Peguei da corrente e tentei sair rápido, porém o cachorro não queria ir, me parecia que ele pressentia o que lhe esperava. Ela teve que puxá-lo para a rua. Uma vez fora, e enquanto ela recebia o pessoal, puxei-o e saí correndo, ele também saiu à bala, como tentando fugir, mas eu segurava firme na corrente e corria atrás dele. Quando dobramos a primeira esquina não era mais ele que dominava a situação, puxei a corrente e trouxe-o contra mim, e como se fosse um ser humano comecei o sermão: – Aqui é amigo, porque não late para mim agora? Olhei para todos os lados, e como não vi ninguém, lhe apliquei o primeiro coice, dizendo: – Por favor, em casa tu não late para mim mais, viu! Agora vamos, lhe dei mais dois coices, parece que ele entendia a situação em que se encontrava e começou a caminhar sem correr. Já na praça, eu sentado num banco e ele deitado no chão, quietinho, olhei para ele e pensei: Está domado. Minutos depois apareceram umas meninas com uma cadelinha bem branquinha, seu pelo parecia um algodão, as meninas acharam o Firpo bonitinho e deram carinho, a cachorrinha e o Firpo começaram a brincar, minutos depois um carro buzinou e as meninas chamaram: – Vamos Lanuda. Pegaram a cachorrinha e saíram correndo, eu peguei a corrente do Firpo antes dele sair atrás. Sentado, olhava as meninas, ou quem sabe se não ficara apaixonado por Lanuda. De longe as meninas se despediram e entraram no carro. O sol começava a se ocultar e achei que estava na hora de retornar a casa. – Vamos, gritei, ele parecia entender que estávamos voltando para casa, porque seu passo era acelerado. Antes de ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 235 dobrar a esquina perto de casa puxei a corrente, e como se falasse com gente lhe disse: – Agora que chegamos em casa tu vais te comportar, nada de querer me morder! Dei-lhe um coice e continuamos. Uma vez em casa, quando tirei a corrente e se sentiu livre ficou valente e começou a latir para mim. Agora quase todos os dias eu o levava a passear, e todos os dias lhe dava um par de patadas. Ele continuava humilde na rua e valente em casa. O meu serviço, todos os dias, era pela manhã, quando me levantava, pegar a lista que dona Amanda me deixava e o dinheiro para as compras, já tinha aprendido a coar o café, e embora ela não me pedisse, eu o coava, arrumava a mesa e esperava na sala eles se levantarem. Após o café o Cônsul ia embora e eu ajudava a dona Amanda na limpeza da casa, também varria o pátio, às vezes levava a roupa à lavanderia, a minha ia junto. Quando ela não cozinhava, perto do meio-dia eu ia trazer a comida. Às vezes o Salazar vinha junto com o Cônsul e almoçávamos os quatro, ou senão, só nós três e o cachorrinho, que continuava não gostando de mim. Um dia dona Amanda me disse que viajaria para a Colômbia para resolver alguns problemas familiares e também trazer a empregada que sempre tiveram. Quando ela viajou, eu preparava o café para o Cônsul, depois ele ia embora e só voltava à noite, e eu, após limpar a casa, dar comida ao Firpo e algumas outras coisas, saía a dar algumas voltas pela cidade, às vezes a pé ou de ônibus, por último já conhecia quase toda a cidade. Embora dona Amanda tivesse deixado dinheiro para eu comprar a comida, eu almoçava no restaurante, e bem à tardinha voltava para casa, levava o Firpo a passear, lhe dava alguns coices e quando voltávamos, largava ele que se escondia no quarto e só saía quando sentia o Cônsul chegar. Como eu sabia que o Cônsul gostava de tomar cafezinho antes de se deitar, eu o preparava e tomávamos juntos. Conversávamos até a hora de dormir. Uma noite me entregou um papel para no dia seguinte ir tirar umas fotos. Três dias depois me entregaram as fotos e à noite dei-as para o Cônsul, que as guardou na sua pasta junto com outros papéis e o carnê escolar que por casualidade eu carregava. Com passaporte consular Uns dias depois, enquanto tomávamos o cafezinho, tirou do bolso do casaco um envelope que me entregou dizendo: – Aqui está seu passaporte, com ele já pode regressar à Colômbia sem que lhe criem problema. Também pode viajar a qualquer parte do mundo, é claro que só vai lhe servir enquanto for menor de idade, depois terá de trocar por outro, que só lhe dura quatro anos. Deu-me muita explicação a respeito e me ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 236 pediu para cuidar bem dele, porque eu sozinho, e com a minha idade, não me seria fácil tirar outro. Agradeci-lhe com muito carinho. Hoje, lembrando este momento, confesso que naquele dia eu não senti nenhuma emoção. Alguns dias depois a dona Amanda chegou, vinha acompanhada de uma senhora morena clara, não era muito alta, notei que eles se tratavam de forma familiar. Comigo foi tudo ao contrário, já no carro quando estávamos indo para casa, me deu a primeira alfinetada. Senti quando ela perguntou para eles de forma sarcástica: – De onde vocês arranjaram este escurinho? Dona Amanda sem demora respondeu: – Ele é a minha paixão. O Cônsul também falou: – Helena, ele é boa gente. E dirigindo-se à esposa disse: – Amor, ele já tem seu passaporte. Em seguida ela me passou a mão na cabeça me parabenizando. Helena, para modificar a conversa, perguntou: – E o Firpo? O Cônsul respondeu: – O Ortega tem cuidado muito bem dele, sempre vejo na sobra do prato que ele lhe dá boa comida. Está sempre cheiroso a sabonete e também o leva a passear! Coitado do Firpo pensei, eles não sabem quanto apanha de mim. Em casa ajudei a descarregar a bagagem, corria e levava para dentro e depois voltava para buscar mais. Quando voltei e peguei uma mala para levar para dentro como estava fazendo, a Helena puxou a mala com raiva e me disse: – Essa é minha. Desse momento em diante compreendi que ela não simpatizava comigo. O Firpo para ela era todo festa e para mim era tudo ao contrário. Agora com a presença da Helena, ele ficou mais violento comigo, então percebi que tinha dois inimigos. O Cônsul tinha me dito que nas férias viajariam para a Colômbia e poderíamos ir juntos e não precisaria me entregar à justiça. Um dia fui na Embaixada visitar Salazar, eu tinha muito carinho por ele, fora a única pessoa que tinha me tratado bem desde o começo. A Lusdari não visitei porque ela não demonstrou amizade, quando mais eu precisava, assim como o Isidoro, a mulher e o filho. Conversando com Salazar, lhe perguntei quando o Cônsul sairia de férias, e ele me respondeu: – Falta muito, ele recém chegou. Pensei, melhor esperar a ter que ir parar na correção de menores. Em casa fazia todo o possível para ser amigo de Helena, só que ela não aceitava, complicava comigo por tudo, como eu tomava banho todos os dias ela dizia: – Para quê tomar banho todos os dias, seria porque eu queria ficar branco? Mandava-me fazer as compras e quando eu retornava sempre reclamava com grosseria, porque tinha demorado tanto, e tinha comprado tudo errado, que eu não prestava para nada, então acuava o Firpo para ele me morder. Enquanto dona Amanda estava em casa, a Helena cantarolava na cozinha e se precisava de mim me chamava com delicadeza. Mas dona Amanda pouco permanecia em casa, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 237 porque dava aulas para meninos pobres e também recolhia fundos para instituições que ajudavam famílias carentes. Animando festa religiosa O senhor Cônsul, dona Amanda, as senhoras colaboradoras, junto com os padres religiosos, organizaram um festival para arrecadar fundos para a igreja, que também ajudava famílias pobres. No dia da festa, meninos e meninas dançaram, outros cantaram, outros ainda declamaram poesias e a mim coube apresentar o meu espetáculo. O senhor Embaixador, que ainda não me conhecia, esteve presente. Uma vez terminado o espetáculo veio me cumprimentar, também compareceram funcionários da Embaixada, a maior parte eram colombianos, e todos me felicitaram, pela bela apresentação. O cumprimento de Salazar, que também tinha visto, foi do mesmo jeito que o empregado do Dr. Corrêa, me levantava, me abaixava umas duas ou três vezes, depois me abraçou e disse: – Muito bonito Orteguita. Todos os presentes adoraram. O dinheiro das entradas era todo para a paróquia, eu não cobrei nada. No dia seguinte o Salazar chegou em casa à minha procura. Eu estava varrendo o pátio quando o vi chegar onde eu estava e gritou: – Orteguita! Dá-me um abraço. E me entregou um envelope que o senhor Embaixador me mandara. Abri e no seu interior tinha uma carta e mais cem dólares. Na carta fazia referência à minha apresentação e me felicitava pelos bonitos números apresentados, e os cem dólares era um presente de todos os funcionários da Embaixada, finalizava: Um abraço de todos os teus conterrâneos, O Embaixador. Fiquei muito feliz, tanto pela carta como pelo dinheiro. Esta carta guardei por muitos anos, mais adiante contarei como a perdi. Não me lembro por que razão contei para Salazar da forma como a Helena me tratava. Expliquei-lhe que ela não gostava de mim, porém eu não fazia caso. Salazar se despediu com outro abraço e saiu. Helena estava curiosa e queria saber quem ele era e o que tinha vindo fazer, é claro que lhe respondi: – Ele é funcionário da Embaixada e tinha vindo me trazer uma carta e também cem dólares que o Embaixador e os funcionários me mandaram. Ela, que também tinha assistido ao espetáculo, e talvez não querendo se sentir menos do que eu, disse: – Você tem que estudar, aprender uma profissão, tem que trabalhar, aquilo que você faz é coisa de vagabundos, que como não têm profissão, vivem disso, porém não têm futuro e morrem pobres. Eu não contava nada para dona Amanda nem ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 238 para o Cônsul. Ultimamente, como eles não vinham almoçar em casa, eu fazia as compras, molhava as folhagens e varria a frente e os fundos. Terminado meu serviço, saía a dar voltas pela cidade, às vezes almoçava no porto ou nos mercados, que eram dois, um perto do centro e o outro bem longe. Eu gostava muito era de andar a pé. Quando estava muito longe e era hora de passear com o Firpo, eu pegava um ônibus, chegava em casa, pegava o Firpo e o levava a lhe dar um par de patadas, porque quando na companhia da Helena, muitas vezes se avançava querendo me morder. Algumas vezes encontrávamos as gurias donas de Lanuda e os deixávamos brincar. Hoje compreendo que a Lanuda poderia ser a paixão dele e então ele se resignava a receber meus coices. As confusões de Helena Uma manhã, estando no meu quarto, ouvi que algumas coisas caíram no chão no quarto do Cônsul e fui correndo para ver o que era e encontrei Helena recolhendo tudo o que estava no chão. Ofereci-lhe ajuda e ela me xingou me mandando sair da frente dela. Quando entrei no quarto eu vi um anel grande com uma pedra que estava em cima da cama do casal. Escorraçado que fui, saí do quarto e fui me sentar na sala, em seguida senti que a Helena saía do quarto bem devagar. Eu fiz que não estava vendo nada, ela entrou no meu quarto e saiu rápido. Quando percebi que ela estava na cozinha, curioso que estava para saber o que ela tinha ido fazer no meu quarto, fui entrando devagar. Uma vez no quarto, a primeira coisa que me chamou a atenção foi que minha bolsa estava virada ao contrário de como eu sempre a deixava e um dos bolsos estava aberto. Com cuidado comecei a olhar, e para minha surpresa, encontrei o anel que tinha visto na cama do Cônsul. Antes que a Helena me presentisse, peguei o anel, entrei no quarto do Cônsul e de dona Amanda e o coloquei debaixo do colchão e saí rapidamente. Chavei a porta e botei as chaves no meu bolso, entrei no meu quarto, arrumei todas as minhas coisas, inclusive o meu passaporte e enquanto ela estava lavando a roupa no tanque, peguei o Firpo e o amarrei na escada do fundo, dei-lhe os dois últimos coices, peguei minha trouxa e me mandei, levando também as chaves do meu quarto. Fui direto para a Embaixada e procurei o Salazar. Foi Isidoro que o chamou, quando ele me viu me recebeu com a alegria de sempre, o que me fazia lembrar o Chepe e o empregado do Dr. Corrêa. Como ele não tinha nada a fazer, me convidou para ir a um barzinho que tinha na frente da Embaixada. Sentados no bar contei-lhe tudo o que acontecera e falei que eu achava que a Helena queria me fazer passar por ladrão, assim o Cônsul me mandaria prender ou me tocaria para fora da sua casa. Salazar ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 239 insistiu para que eu fosse falar com o Cônsul ou com o Embaixador, que segundo Salazar me disse, tinha ficado encantado comigo, assim como sua esposa e os filhos. Depois, Salazar me pediu para ir onde dona Amanda estava. Falei que eu não queria incomodá-los, que tinham sido bons para mim, que eu os adorava e sentia muita dor em lhes deixar dessa forma, mas que tinha muita vontade de voltar para a minha casa. O Cônsul tinha me dito que nas férias iríamos juntos para a Colômbia, só que ainda demoraria muito e eu estava com muitas saudades da minha mãe e de meus irmãos e amigos. Compreendendo que não me convenceria, Salazar me deu algumas informações, e antes de me despedir, lhe pedi para me fazer o favor de transmitir minhas desculpas a eles por não ter ido me despedir e lhes agradecer por tudo o que tinham feito por mim e também que podiam ter certeza que nunca os esqueceria e que jurava perante Deus e Santa Sara Kaly que eu não seria capaz de roubar nada de ninguém! Pedi para entregar-lhes as chaves e dizer-lhes que o anel o havia escondido debaixo do colchão. Pedi-lhe também que lhes contasse o porque de minha decisão, lhe falei com tanta tristeza que ao nos despedirmos com um abraço, seus olhos estavam cheios de lágrimas. Ofereceu-me a sua casa no caso de não ter onde ficar e assim nos despedimos. Eu estava seguro de que se eu fosse pegar ônibus na rodoviária ou na estação do trem e o Salazar tivesse falado para o Cônsul e dona Amanda, eles iriam me procurar, e para estar longe do alcance deles, peguei um ônibus que ia até o mercado central. Acostumado que estava a comer um lanchinho pelas 10 horas, o meu estômago já estava pedindo. Desci do ônibus e fui direto numa barraca onde já tinha almoçado várias vezes após a chegada da Helena, a dona até que por certo me tratava de querido ou de meu colombiano. Aquele dia quando cheguei ela me perguntou: – O que vai querer meu colombiano? Pedi café com leite e broa de milho frita. Um senhor que também tomava café e estava sentado na minha frente perguntou: – Você é colombiano? – Sim senhor, respondi. Disse-me que onde ele trabalhava também trabalhava um colombiano e morava na mesma pensão que ele morava. Perguntei se lá me alugariam um quarto para dormir, é claro que contei todo o acontecido, desde que cheguei até o que seguramente me estava aprontando Helena para me desmoralizar, também lhe manifestei o porquê queria me ocultar em algum lugar até eles não me procurarem mais. A dona da barraca se dirigiu ao senhor para que me desse uma mãozinha. Moisés, este era o nome daquele senhor, respondeu que sim, que me ajudaria, ele me informou que a pensão não era na cidade e sim num município vizinho. Tanto melhor, falei. A dona da barraca repetiu: – Moisés, ajuda meu colombiano, que Deus há de lhe abençoar. Moisés respondeu: – Sim tia, vou levá-lo lá na ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 240 pensão onde eu passo, não te preocupa, deixa comigo. Nos despedimos e a poucas quadras dali pegamos um ônibus. Durante toda a viagem conversamos. Uma hora e meia depois chegamos em um pequeno casario perto do mar, onde havia alguns estaleiros, com navios que estavam ancorados, outros menores estavam fora d’água, e em todos eles muita gente trabalhando. O ônibus chegou até o fim da linha, descemos e continuamos caminhando até chegarmos numa casa onde na frente tinha um letreiro pintado na própria parede que dizia: Pensão da Margarida. Moisés foi entrando e gritando: – Quem é a dona deste bolicho? Em seguida apresentou-se uma senhora elegantemente vestida, reparei que seus olhos eram bem azuis e a pele morena clara, ela já perguntou: – O que é que tu queres Moncho? Esta não é a casa da tua sogra para entrar gritando. – Quero um quarto para meu amiguinho, é recomendado pela tia Dalila, ele é conterrâneo do Gustavo. Moisés olhou para o relógio e disse: – Vou embora, pego ao meio-dia, deixo ele contigo. E saiu quase correndo e já lá fora gritou: – Às 15 horas venho almoçar. Soldador Margarida me levou para um quarto pequeno e bem arrumadinho e limpo, no interior da porta estava o regulamento e o preço, me deitei para acalmar a tensão em que me encontrava, agora me sentia mais tranquilo e pensava: definitivamente o Cônsul e dona Amanda não vão me encontrar neste fim de mundo. Peguei no sono, me acordei quando ouvi muitas vozes, em seguida Margarida chamou: – Vamos almoçar? Levantei-me, dei uma ligeira lavada e penteada e me dirigi ao comedor. Pela vestimenta eram todos operários vestidos de macacões pretos e outros azuis, também havia mulheres, algumas vestidas iguais aos homens, só que ao invés de macacões eram saias, algumas com guarda-pós brancos. Tinha muitos cabides nas paredes e todos estavam cheios de capacetes. Quem servia a mesa era uma tremenda bicha, que só no falar e nos requebros dava para conhecer de longe, uma jovem senhora servia as bebidas e a sobremesa, o marido de Margarida ajudava em tudo. Margarida me apresentou para o pessoal e para o marido: – Ele é conterrâneo de Gustavo. Alguém gritou: – Se é conterrâneo do Gustavo é boa gente. À medida que iam terminando iam saindo e minutos depois outros iam chegando. Terminei de comer e como já tinha dormido não tinha sono, então saí para dar uma volta e conhecer o povo. As poucas ruas não eram asfaltadas, havia poucas casas, umas bem separadas das outras, mais distante encontrei um conjunto de casas bem bonitas, com jardins na frente das portas e as janelas todas tinham telas para mosquitos, muitas crianças brincavam nos pátios, outras nas ruas, perto havia uma igreja e junto uma escola e um grande ginásio onde se ouvia barulho de gurias e ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 241 rapazes brincando. Mais adiante poucas casas e na beira do mar algumas canoas e também lanchas. Comecei a retornar, as poucas pessoas que via andavam de bicicleta, encontrei dois senhores que estavam conversando, um deles me perguntou: – Você é colombiano? – Sim. – Eu também, sou o Gustavo, se despediu do amigo e saímos caminhando e conversando. A conversa era toda relacionada a nossas vidas e o porque de andarmos por estas terras. Eu, em poucas palavras, contei-lhe os episódios de mais destaque e ele contou-me que teve que fugir porque queriam fazê-lo casar com uma guria que andava com vários rapazes e ficou grávida e ela o escolheu como vítima. Estou falando daquela época em que, quando um homem engravidava uma moça, só tinha três opções: a primeira era casar, a segunda ser preso e a terceira fugir, e ele, não se sentindo culpado, optou por fugir. À noite a pensão estava cheia de operários, homens e mulheres, inclusive Moisés. Aproveitei para divertir o pessoal e fiz minhas provas, contei algumas piadas, de pronto uma voz: – Eu sabia que se era conterrâneo do Gustavo era boa gente e está dando do bom mesmo. Todos confirmaram batendo palmas. O comentário era que um patrício de Gustavo fazia coisas muito bonitas. Fiquei famoso naquela pequena comunidade. Moisés era chamado de Moncho e Gustavo de Colômbia, os dois sempre me convidavam para ir onde trabalhavam. Gustavo trabalhava na recuperação de filtros de água dos navios e ganhava por filtro consertado e Moncho por metro linear de solda elétrica. Todos trabalhavam por empreitada, nem todo pessoal da pensão trabalhava no mesmo estaleiro, as firmas eram quase todas sociedades anônimas e a maior parte dos chefes eram europeus e norte-americanos. Os operários também eram de vários países, muitos jamaicanos, alguns centroamericanos e muitos das ilhas do mar do Caribe. Tornei-me muito conhecido de todos, me chamavam de paisano. Moncho me ensinou a soldar com solda elétrica e por último terminei trabalhando com ele. A maior parte das soldas era em tubos para caldeiras, alguns tubos tinham 30 centímetros de diâmetro, outros com 60 centímetros, 80 centímetros, um metro e até dois metros. Os tubos de 60 centímetros em diante eram soldados por dentro e por fora, eu adorava fazer este serviço. No fim da semana o Moncho me deu cinco dólares e se despediu, porque a família dele morava na capital. Na segunda-feira à noite, quando estávamos na pensão, Moncho falou para todos: – Senhores, como a lei aqui é de que os ajudantes ganhem vinte por cento do que ganha o oficial, eu vou deixar o paisanito como meu ajudante e vou lhe pagar os vinte por cento como manda a lei. Gustavo foi o primeiro a se ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 242 levantar e abraçar Moncho e todos fizeram o mesmo. Ao ouvir tantos gritos, apareceu Margarida, o marido, a garçonete e até a bicha, todos felicitavam Moncho. A Margarida disse para Gustavo: – Malandro, nos trouxeste um paisanito tão bom como tu. Moncho reclamou: – Um momento, fui eu que o trouxe. Gustavo era muito querido por todo o povo, era prestativo, segundo falavam. A gurizada gostava dele. No fim de semana era quem organizava vários tipos de brincadeiras, o professorado gostava muito dele e sempre era consultado para orientar qualquer tipo de diversão. A minha fama também se espalhou, todos me cumprimentavam quando me viam. Eu era feliz soldando tubos, eu dava o cordão de solda fino e Moncho o cordão de acabamento. Como o Moncho era um pouco reforçado, e para poder soldar por dentro dos tubos pequenos tinha que entrar se arrastando de boca abaixo, por esta razão demorava muito, eu ao contrário, entrava acocorado, dava o cordão de solda fino e também o de acabamento. Até os chefes iam me ver e sorriam. Como sempre gostei de madrugar, me levantava cedo, entrava no galpão, ligava o soldador e começava a soldar, quando Moncho chegava eu já tinha uns quatro metros soldados. Não era a ambição de ganhar que me levava a madrugar e sim o gosto por soldar. O comentário na pensão era grande devido a que os ajudantes conseguiam ganhar vinte e cinco ou trinta dólares na semana, é claro que quanto eu mais ganhava o Moncho também aumentava seu salário e todos mexiam com ele, que comigo como ajudante ficaria rico. A moeda que mais circulava nesta comunidade era o dólar, a moeda nacional pouco circulava. Neste momento o único garoto que trabalhava ali era eu, notei que no fim de semana eram poucos os que ficavam, a maior parte morava na cidade ou nos municípios vizinhos, saíam na sexta à tarde e voltavam na segunda de manhã bem cedo. Celebrando a festa Pátria Para festejar a festa pátria, me convidaram para participar da apresentação que fariam alguns alunos, eu aceitei e convidei Gustavo para que nós dois nos apresentássemos. Ele aceitou e já começamos a treinar, ensaiávamos todas as noites e também aos sábados e domingos escondidos de todos. Eu treinava Gustavo com números cômicos que tinha visto na minha cidade, daquela família que se apresentava nos parques com números de circo. Para Gustavo escolhi o que faziam os palhaços, lembrava que foi desta família que aprendi a caminhar com as mãos, dar voltas, cambalhotas e muito mais coisas. Gustavo aprendeu com facilidade a sua parte. Chegado o dia da apresentação, o espetáculo foi um sucesso, as meninas e os meninos se apresentaram muito bem, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 243 uns cantaram, outros dançaram muito bonito e também as poesias que foram bem declamadas. Gustavo e eu apresentamos o número final. Gustavo vestido de palhaço e eu de mágico. Gustavo fez tudo muito bem, fez rir e gritar crianças e adultos, fomos muito aplaudidos. A arrecadação também foi muito boa. O Gustavo não houve quem o fizesse pegar algum dinheiro, então a arrecadação foi dividida em três partes: uma para a igreja, uma parte para a escola e outra parte para mim que me tocou cento e cinquenta e seis dólares. O ginásio estava lotado, os operários e funcionários que não moravam na cidade trouxeram seus familiares, mesmo os que moravam na capital. Na segunda-feira Gustavo e eu éramos os mais famosos. Na pensão mexiam com Gustavo: artista e não dizia nada, hein! Os filhos dos europeus e norte americanos se tornaram meus amigos, seus pais me convidavam para jantar ou almoçar em suas casas, me davam presentes, calças compridas, relógios de pulso, coisas que eu nunca tinha sonhado comprar, também camisas, algumas coloridas. As minhas calças eram todas curtas, conforme a moda para crianças na Colômbia, ganhei correntes de ouro com crucifixo, ganhei sapatos, alguns de duas cores, preto e branco e também marrom e branco. Tinha tanta coisa, que tive de pedir a Gustavo para ir à capital e me comprar uma mala, eu não quis ir junto por temer que alguém da Embaixada fosse me ver. Os operários também me convidavam para almoçar nas suas casas, se reuniam em grupos e também me convidavam. Gustavo e eu ultimamente sempre andávamos juntos, ele me cuidava muito e me tratava com muito carinho. No começo, se algum dos operários por alguma razão perguntasse por mim ao Gustavo, era assim: – Cadê o paisanito? Depois, era assim: – Gustavo, cadê teu filho? Ele respondia como se realmente fosse meu pai. Às vezes ele levava o colchão para o meu quarto, o colocava no chão, trazia um travesseiro e um lençol, se deitava e pegávamos no sono conversando. Outras vezes era o contrário, eu é que levava o colchão para o quarto dele, sobretudo quando lhe tocava trabalhar à noite, então eu ficava acordado lhe esperando, conversávamos um pouco e pegávamos no sono. Uma noite lhe perguntei se ele não pretendia voltar para a Colômbia para ver sua família. Ele me respondeu que sim, pois agora não tinha mais perigo, porque a guria tinha ganhado uma menina, que era muito parecida com um rapaz moreno, de apelido Barbadilho, e a maior prova era que o Barbadilho, apesar de ser de pele bem escura, tinha olhos bem claros, quase amarelos, e a menina também tinha os olhos iguais aos de Barbadilho. Outra prova era que a guria era branca e a menina tinha nascido bem escurinha, também disse que a família dele era toda branca, porém ninguém tinha olhos claros. Falou-me que a mãe lhe escrevia periodicamente e lhe informava de tudo, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 244 e em uma das cartas lhe contou que a mãe da criança tinha ido lhe visitar após o nascimento da menina e, quase chorando tinha lhe pedido perdão por lhe ter feito perder seu filho. Na carta também lhe contava que a vizinhança, quando comprovou sua inocência, tinha ficado revoltada com a mãe da criança e pela minha ausência a culparam. Também me contou que sua mãe numa carta lhe informava que provavelmente o Barbadilho casaria com ela. Perguntei: – Seus familiares sabem que você está aqui? – Só minha mãe e minha avó, eu mando as cartas para a avó entregar para a mãe, meu pai também não sabe, se ele soubesse já teria vindo me buscar. Eu estou noivo de uma menina daqui da capital, o pai dela é aquele senhor que trabalha no guincho, ela está na França estudando Engenharia Naval, este ano termina, após se formar vamos nos casar e a lua de mel vamos passar com os meus, em casa. – E quanto tempo faz que não a vê? – Ela passa os três meses de fim de ano aqui e nas férias de metade do ano eu pego as minhas férias e fico com ela lá em Paris, às vezes ela vem passar as férias de metade do ano aqui. Amigo do oftalmologista No povoado havia um centro médico que era pago pelas empresas ali existentes, o oftalmologista atendia duas vezes por semana. Um dia Gustavo me levou para ser examinado. O médico que me atendeu, tinha estado no espetáculo, os outros e as enfermeiras também, quando nos viram entrar, foi aquela bagunça, inclusive o pessoal que estava na sala de espera também participou, porque todos tinham nos visto. O oftalmologista quando viu meus óculos todo amarrado com arame, a primeira coisa que disse foi: – Vamos trocar esses óculos. Examinou-me, depois a enfermeira experimentou a armação e na semana seguinte eu estava com óculos novos. Na pensão, quando me viam com óculos novos mexiam comigo, e diziam que eu parecia um doutor. O oftalmologista tinha poucos pacientes, então eu lhe ensinei umas provas. Algumas vezes ele me levou para almoçar na sua casa na capital, a esposa era radialista, tinham um casal de filhos, as enfermeiras e quase todos os médicos me convidavam para ir em suas casas, todos gostavam que lhes contasse desde que fugi de casa até chegar ali, o pessoal ria muito quando lhes contava que tinha me sentado naquela cobra, crendo que era um tronco de árvore. Algumas vezes as mulheres amaldiçoavam o tal de toureiro, sobretudo quando lhes contava que peguei os plátanos da lata de lixo. Algumas vezes se formavam discussões, porque uns diziam que graças ao mentiroso daquele toureiro, eu estava ganhando dinheiro, caso contrário eu continuaria ganhando oito, dez ou ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 245 doze centavos por dia. Uns diziam que fora Deus que me mandara aquele tramposo para me mostrar o caminho da minha sorte, outros alegavam que esse era meu destino, que de uma ou outra forma ele se manifestaria. Eu só ouvia, algumas vezes chegaram a me perguntar: – Estás ganhando algum dinheiro? Respondia: – Sim senhor, e estou feliz porque com o dinheiro que levarei à minha mãe, ela poderá continuar a nossa casa. Gustavo sempre me acompanhava. Realmente estava feliz, com as minhas malas cheias de presentes e o dinheiro escondido na bolsinha amarrada na cintura e por dentro das calças, que passara a usar só calça comprida, como agora a bolsinha com o dinheiro era de couro, eu não a tirava nem para tomar banho. Saudades da mãe Eu sentia muitas saudades da minha mãe, pensava muito nela, sonhava estar lhe entregando o dinheiro e os presentes. Gustavo me contava que sentia saudades da noiva, que contava os dias para a sua formatura e que ele pretendia estar com ela nesse dia lá em Paris. Ele sentia saudades da noiva e eu da minha mãe. Uma noite, quando conversávamos, lhe comentei da vontade que tinha de voltar para minha casa e ele me respondeu: – Eu acho que realmente você deve voltar para casa, você ainda é muito criança e tem que levar essa alegria para sua mãe, que nem sequer sabe por onde você anda, até pode pensar que você está morto! Que alegria para ela quando lhe ver de novo! Combinamos que à noite, na hora do jantar, Gustavo falaria do meu retorno para casa. No primeiro momento, todos ficaram em silêncio, quase mudos. Foi Moncho quem quebrou o silêncio, e dirigindo-se a mim, disse: – Paisanito, eu gosto muito de você, igual que a minha família, gosto muito também de trabalharmos juntos, mas acho bom voltar para casa e levar felicidade para sua família e mais que tudo para aquela mãe, que segundo eu já tinha lhe dito, ela não sabe por onde é que você anda. Todos concordaram, cada um me dizia uma coisa. No dia seguinte já se comentava da minha partida. À noite falei para o Gustavo que eu achava que teria de voltar ao porto onde tinha desembarcado. Ele achou que era muito longe e complicado e também não era seguro que eu conseguisse embarcar. No jantar, e sabedores da minha viagem, os chefes pediram para Gustavo que como ele era conhecedor de todo esse movimento, dado às tantas viagens que tinha feito, seria bom ele me orientar até me deixar embarcado. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 246 Despedida O que conto a seguir é coisa para nunca esquecer. Uma semana antes de partir, várias senhoras, entre elas Margarida e as enfermeiras do centro médico me levaram a uma costureira, a única na localidade, ela tirou minhas medidas para fazer uma roupa. Eu me sentia um pouco embotado pelo movimento que havia no povo só por causa da minha despedida. No domingo e num dos galpões, como não lembrar, acho que estava todo o povo reunido para o almoço da minha despedida. Ouvi muitos elogios, inclusive dos próprios chefes, que também se encontravam presente, a gurizada queria estar perto de mim. Naquele dia eles também me deram presentes, as esposas dos operários tinham se reunido para me dar de presente roupa. Era tanto presente que tive que comprar outra mala. Todas as calças que recebia eram compridas, toda a gurizada se vestia desta forma. Naquele dia recebi sapatos, calças, camisas, etc. Como sempre, em todo lugar que chegava, os casais que não tinham filhos, sentia que indiretamente me adotavam, o que também aconteceu com Margarida e o marido, eles me acarinhavam, me davam mimo. A Margarida não permitia que eu mandasse lavar a roupa, ela mesma a lavava. Estefani me cortava as unhas das mãos e dos pés e também gostava de me pentear. Quase sempre ela se sentava perto de mim e a todo momento me abraçava e passava a mão nos meus cabelos. Sempre que eu queria pagar ela me dizia que pagasse no final. Naquele domingo Margarida me fez experimentar uma calça comprida e uma camisa, como se usava, por fora das calças, e que estava na moda, seu nome era guaiavera. Quando saí vestido com aquele conjunto todos bateram palmas. Em seguida o tirei e Margarida o dobrou e empacotou e me recomendou: – Antes de chegar em casa, procura um lugar para vestir este conjunto, para chegar bem vestido na tua casa, para que todos vejam que a tua fugida não foi à toa. Este presente é de todas as mulheres que moram e também as que não moram neste povo. Logo Moncho levantouse, e mostrando outro conjunto, porém de cor diferente, falou: – Este é um presente de todos os operários destas empresas. Um médico do centro médico que estava presente levantou-se, entregou uma carta para Gustavo e pediu para ele ler em voz alta. O teor não me lembro textualmente. Esta carta era dirigida a um irmão deste médico, que era o chefe da imigração do porto por onde Gustavo me ajudaria a embarcar, e ele lhe pedia para que não complicasse a minha saída se por acaso tivesse algum problema por eu ser menor. Todos bateram palmas. No final, os padres e as freiras nos pediram para rezar e ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 247 pedir a Deus que me levasse são e salvo para minha casa. Eu lembro como se fosse hoje, vi alguns olhos lacrimejantes. Aquela noite eu era todo felicidade e quase não conseguia dormir. Não sei em que minuto peguei no sono, acordei quando ouvi uma voz que me dizia dorminhoco, e me passava a mão no rosto. Abri os olhos, era a Margarida preocupada comigo porque às 6 horas já estava acordado, olhei o relógio e eram 8 horas. O marido de Margarida estava na porta também preocupado, quando me viu acordado falou para Margarida: – Toca ele para ver se não tem febre. Ela passou a mão na minha testa e me fazendo cócegas nas costelas disse para o marido: – Ele não tem nada, está é com preguiça. Ele se retirou nos dizendo: – Espero-os para tomarmos café. Como posso esquecer aquele momento, me colocou os chinelos, me deu uma toalha e fui tomar meu banho. Já feitas todas as minhas necessidades voltei para o quarto, tinha colocado roupa limpa na cama para eu usar, e a suja tinha levado para lavar, me vesti e dirigi-me para o comedor. Os dois estavam na mesa me esperando, notei-os tristes, pena que eu não sabia falar para dizer-lhes algumas palavras de consolação. A bicha, quando nos servia o café disse: – O paisanito não madrugou! Lembro que ele era muito carinhoso comigo, me tratava com muita delicadeza. Uma senhora que estava no café voltou-se para mim e disse: - Paisanito, não fique por nenhum lado, vai direto para casa, tire o sofrimento de sua mãe. A Margarida me sentou no seu colo e me segurando apertado falou para os presentes: – Ele vai sim, e leva muitos presentes para ela e os irmãos, ele vai ver a mãezinha e quando a abraçar vai dizer a ela que aqui deixou outra mãezinha. Eu a abracei e apertei, todos ficaram em silêncio, até hoje sinto uma espécie de raiva por não ter sabido falar e nem pensar. Naquela época, no fundo, o que mais me importava era só o dinheiro e os presentes, e neste momento estava mais preocupado com o retorno à minha casa. Com o relógio no pulso aprendi a me preocupar com as horas. O relógio que mais gostei para ficar para mim foi o que me deu de presente uma família européia, a marca era Mulco, um relógio a corda, chapeado em ouro, que me acompanhou durante vinte anos. No dia da despedida um jamaicano me deu de presente um relógio de pulso da marca Wulova. No dia seguinte da festa, Gustavo me levou ao centro médico a pedido dos médicos, lembro do sorriso, tanto dos médicos como das enfermeiras e dos que estavam na sala de espera, todos nos acompanharam até a porta para se despedir. Com Gustavo saí para a capital onde me fez cortar os cabelos, depois fomos almoçar no restaurante de um colombiano que, segundo ele, sempre ia visitar a família na Colômbia e nos deu as informações de como viajar mais fácil. Na terçafeira Gustavo me levou para conhecer todos os galpões e até entramos em ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 248 alguns navios em reparo, devo dizer que por todos os lugares que passávamos nos cumprimentavam com muitos sorrisos e mexiam conosco. Na quarta-feira, dia da minha partida, quem ajudou a me vestir foi a Margarida, calça comprida, camisa, guajavera e sapatos marrom e branco. Lembro que quando a bicha me viu vestido daquele jeito falou com sua voz afeminada e cheia de requebros: – Olha Margarida, ele chegou pequenininho, de calção curto, óculos todo amarrado com arame, agora parece um adulto, cresceu, está bonitinho! Chamei a Margarida e o marido para lhes pagar, não quiseram me cobrar nada, só choravam, ele mais do que ela, todos os trabalhadores da pensão vieram me abraçar. O marido da Margarida me disse: – Quando quiseres voltar, volta que aqui te esperamos. Quando estávamos na porta da pensão à espera do ônibus, ouvimos uns gritos, era o Moncho que vinha correndo: – Não podia ir embora sem lhe dar o meu abraço de despedida, sabendo que fui eu quem lhe trouxe. Abraçou-me, me levantou e disse: – Volta para continuarmos trabalhando juntos. O ônibus chegou, todo pessoal da pensão estava na porta, também das casas vizinhas, todos me davam tchau. O ônibus nos deixou no porto, em seguida pegamos outro para a rodoviária, eu sentia um pouco de temor que talvez ainda estivessem me procurando. Nada aconteceu, saímos, depois de duas horas chegamos ao porto onde deveria embarcar. Gustavo procurou o senhor da imigração e entregou-lhe a carta que o doutor tinha lhe dado, nos convidou para ir até o escritório, lá carimbou o meu passaporte, me entregou um papel e um ticket para viajar de forma gratuita. O navio sairia às 14 horas, ainda era cedo, mas fomos almoçar. Entre o que conversamos Gustavo me disse: – Esta gente aqui imagina que todos os colombianos são gente fina, só porque eu procuro me comportar como gente, aquele conterrâneo do restaurante também é muito benquisto. Agora você chegou aqui, um gurizinho ingênuo, contando a verdade, que fugiu de casa, e o porquê da fuga, e fazendo tudo aquilo tão bonito, sua forma dócil de se comportar e a sua simpatia fez eles acreditarem ainda mais que assim somos todos os colombianos. Mal sabem que lá dentro tem muito safado e safadas, tal como aquela minha vizinha que me acusou de ser o responsável pela sua gravidez, para poder se casar comigo ou ser preso, porém Deus é grande e fez provar a minha inocência, e você pode ter certeza que aquele tal toureiro espanhol não é nada espanhol, ele é colombiano mesmo, e quem sabe quantos guris ingênuos estará enganando? Agora você volta com os olhos bem abertos, se cuida e não se deixa enganar mais, quem sabe se você volta a encontrar o dito cujo ainda pobre e vai querer se desculpar, mentindo, e ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 249 ainda todo pobre, enquanto que você, com seu carisma, simpatia e honestidade volta para sua casa com dinheiro que em vinte anos de carregador no mercado não conseguiria nem a quarta parte do que conseguiu ganhar. Ouça este conselho: procure, embora seja aos poucos, estudar e faça o que seu amigo Antônio lhe ensinou: ler, sempre ler. Deume um beijo na testa, me abraçou, em seguida olhou para o relógio e disse: – Vou ver se consigo pegar o ônibus das 15 horas. Pegou a minha mão com as duas dele e saiu correndo para poder alcançar o ônibus das 15 horas, caso contrário, só às 20 horas. Lembro perfeitamente aquela tarde, a tristeza que me invadiu após me despedir dele no parapeito da popa do navio, parado olhava com uma espécie de desespero, olhava, olhava, queria ao menos ver ele correndo, não me importava se fosse pelas costas, eu queria ver Gustavo ir embora, só aquele momento, só aquele pequeno momento. Olhava para um lado, para outro, me movimentava para a esquerda, para a direita e nada, no meio de tanta gente era impossível, se alguém tentasse falar comigo eu não conseguiria, estava mudo, sentia uma pressão entre o peito e a garganta, pensei em descer um pouco e ir até a rodoviária, mas já era tarde, era 14 horas e o navio começou a se movimentar. Fiquei olhando as casas e os galpões do porto se afastarem, o meu pensamento insistia: pode ser que ele não tenha conseguido pegar o ônibus e volte e de longe me abane, com as mãos me dando tchau. Fiquei estático, com a mirada fixa para o porto, até só enxergar um montículo preto muito distante, e Gustavo não apareceu mais. Lá dentro do salão se ouvia o barulho dos passageiros, ali fora um vento leve batia no meu rosto, agora só se via no mar pequenas embarcações que passavam velozes bem perto, outras muito distantes, dava a impressão de que estavam paradas. Entrei no salão, procurei o número do meu banco e me sentei. Acreditem, até hoje me questiono porque senti tanta tristeza, tanta saudade de Gustavo e porque não de Estefani que tanto me mimava, a qualquer hora me pegava no colo, me ajudava a vestir, me penteava, limpava e cortava as unhas, as orelhas, as palavrinhas: foi Deus que o mandou para mim! O Vish respondeu: não amor, foi o mano quem nos mandou para lhe darmos uma mãozinha. Apesar de todas estas lembranças, as despedidas não foram tão sentidas como ao me despedir de Gustavo. Porque não senti tanto meus amiguinhos engraxates que foram os que me deram as primeiras alegrias nesta terra, que me brindaram aquela sincera amizade, a Gina, o Biche, ultimamente Moncho, a Margarida e o marido que me tratavam como se eu fosse o bebezinho deles, porque tanta paixão por Gustavo? Inclinei um pouco o banco e peguei no sono, comecei a sonhar com Gina me ajudando a ganhar dinheiro, pulei para a praça de touro toda destruída, em seguida o Biche, os três engraxates e eu fugíamos da cobra que nos ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 250 estava perseguindo, aí eu acordei, porém não me mexi, até ficar ciente de que era só um sonho. Levantei-me, fui no bar tomar café com leite e sanduíche, tornei a me deitar e sonhei, só que desta vez quando acordei não consegui me lembrar do sonho. Já estava escuro, me levantei e ainda me acompanhava uma leve sensação de tristeza, mas o aperto do peito e da garganta tinha passado. Saí e me dirigi para o estibordo, me recostei no parapeito, tinha mais gente ali olhando o mar, alguns fumavam, outros conversavam. De longe se enxergava uma multidão de pequenas luzes, a dizer libélulas na noite, me aproximei de um senhor que estava perto e perguntei o que eram aqueles pingos de luzes, me respondeu: – Essa é a cidade de Barranquilha, daqui a umas duas horas estaremos lá. Como arrancada pela mão, me passou a tristeza, agora era a alegria que me invadia, pensava na mãe, a alegria de me ver e ainda mais com dinheiro e três malas cheias de presentes. A minha cabeça era um turbilhão de pensamentos, ria sozinho e continuava pensando, o presente da Romélia vou escolher com a mãe, para Oscar darei um conjunto de calça e camisa novas, coitadas sempre usa roupa usada, desta vez ele terá roupa nova, ficava imaginando o eterno sorriso dele e os gestos que fazia quando me enxergava, me lembrava de todos, do Gratiniano, Dr. Corrêa, etc. Me dizia, garanto que todos os vizinhos vão querer me visitar, como quando voltei para casa depois do acidente no ônibus. No meio de todos estes pensamentos veio na minha memória o Antônio e pensava que bom se quando eu chegasse em casa o Antônio tivesse regressado. Na minha imaginação ouvia ele chegando, e às pessoas que chegavam perguntando pelo negrinho, ele bravo, respondia: – Aqui não tem ninguém com esse nome, aqui tem Orlando Ortega. Ele não gostava que me chamassem de negrinho. De repente me lembrei de Salazar, do Cônsul, de dona Amanda, me perguntava o que será que eles pensaram quando Salazar lhes falou do anel e da safada da Helena, lembrava do ódio que tinham de mim a Helena e o Firpo. As luzes aumentavam de tamanho, já se enxergava a cidade, o pessoal começava a se movimentar para o desembarque, que alívio, que alegria, agora o pensamento se voltava para a minha vila. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 251 ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 252 6 O REGRESSO omo seria a primeira noite, reunido com meus irmãos, meus amigos, eu contando minhas proezas, a Romélia, seu gurizinho que ajudou a cuidar quando nenezinho agora voltava com grana, bem vestido, com relógio de pulso e sapatos de duas cores? Ria pensando qual seria a bagunça que faria o pessoal do bar quando me visse entrar? Imaginava a cara do Gratiniano, a do Dr. Corrêa, todo meu pensamento estava cheio de alegria, tantos presentes que repartiria, para o André teria que dar um bom presente e de novo lembrava que foi pelas dicas que me deu que consegui o dinheiro para o tal toureiro espanhol. C A alegria de pisar na terra pátria O navio atracou e todos começavam a descer, vocês não podem imaginar a grande alegria que me envolvia quando dei o primeiro passo em minha terra colombiana. Coloquei as minhas três malas num carrinho e todos em fila foram apresentando os passaportes, eram carimbados e continuavam, as malas eram revisadas na saída, quando chegou a minha vez o guarda ficou me olhando, abriu o meu passaporte, me perguntou pela minha autorização dos meus pais para viajar sozinho. Eu respondia tal como Gustavo tinha me orientado, mesmo assim o guarda me mandou entrar noutra sala e pediu para eu esperar. A minha alegria se apagou, tudo virou tristeza e medo. Pensava: O que será que vai me acontecer? Através das vidraças via que outros navios chegavam, os passageiros desciam, ficava cheio de gente e daí a pouco tornava tudo a ficar vazio. E eu continuava naquela sala, sem saber o meu futuro, foi neste momento, e como sempre, só nos momentos de aperto é que me lembrava de Deus e Santa Sara Kaly. Sentado onde estava cruzei os braços e comecei a rezar e pedir a Deus e à Santa Sara que nada me fosse acontecer, que me ajudassem a chegar a minha casa são e salvo e livre e com todas as minhas coisas. Após rezar me senti tranquilo e confiante. Olhei para o relógio, faltavam dez minutos para a meia-noite. Às vezes alguns guardas passavam, me olhavam, e nada me diziam, olhei o relógio novamente, meia-noite e dez. Hoje fico ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 253 pensando, que falta de respeito para com os menores, meia noite passada e eu naquela sala, sem que ninguém solucionasse o meu problema, com fome e nem sequer me ofereciam um copo d’água. Ouvi um barulho de passos e vozes, dando a impressão que falavam de mim, em seguida entrou, a meu entender, um oficial, pegou o meu passaporte, olhava a foto e olhava para mim. Diga-se de passagem, a foto do passaporte fora tirada com aqueles óculos todo amarrado com arame, redondos e feios, e como o meu cabelo era liso, o penteava com uma franja. Agora, meus óculos eram modernos, bonitos, e meus cabelos tinham sido cortados por um profissional, por conseguinte, havia certa diferença entre a foto antiga e o eu moderno. O oficial foi muito educado comigo, ao entrar tinha me cumprimentado e a sua presença me deixava confiante. Em determinado momento, e como quem encontra um ser querido, deu um grito de alegria dizendo: – Este passaporte foi emitido pelo meu irmão, e imediatamente me perguntou: – Você conseguiu ver ele? Perguntei: – Ao senhor Cônsul? – Sim, disse ele. Respondi: – Eu morava na casa dele, a dona Amanda era muito querida comigo, todos os dias eu levava o Firpo a passear na praça. Ele fez um gesto: – Ah... o Firpo, o dodói da minha cunhada. O que você fazia lá? Contei em parte, falei da Helena, claro que não contei nem dos socos que dava no Firpo e nem das maldades da Helena Ele falou: – Quer dizer que levaram a Helena? Ele mesmo disse: O pior que fizeram. Eu pensei e sem falar: Eu que o diga! Peguei a carta que o Embaixador me mandou e mostrei, ele a leu, o oficial era todo felicidade, me perguntou o porquê de tantas malas, respondi: – Em todos os lugares que me apresento ganho muitos presentes, lhe contei que quando saí de casa levava um saco de arpejeira com um só calçãozinho, uma camisa e os produtos de asseio e agora voltava para casa com três malas. Ao ler a carta do Embaixador e se dirigindo aos outros guardas que lhe acompanhavam, lhes disse: – Estamos na frente de um grande artista. E lhes mostrando a carta entregou para um dos guardas lhe dizendo: – Leia e vai saber que coisa linda o meu tio lhe disse, ele é o Embaixador agora, e dirigindo-se ao militar que tinha pego a carta para ler lhe perguntou: – Lembra quando eu fui adido militar lá? Eu também estava lá, lembra? O oficial perguntou se tinha onde ficar ali em Barranquilha, lhe menti dizendo que o senhor Cônsul tinha me recomendado um hotel em frente à rodoviária. Perguntou-me se tinha jantado, respondi que não, os guardas pegaram as minhas malas e nos dirigimos a um bar que estava dentro do terminal. Enquanto comíamos conversávamos, me perguntou quem era a secretária do Cônsul, rápido respondi: – Lusdari. – Bonita menina, disse ele. Confirmei, menti quando disse para ele que sempre que chegava ao consulado ela me convidava para tomar café com leite ou chocolate com misturas, falei também de Salazar. – Bom motorista, me respondeu. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 254 Terminado o jantar assinou e me devolveu o passaporte e a carta, me perguntou para onde iria viajar. – Para Medellín amanhã, e depois para Cali depois de amanhã. Em seguida falou: – Eu não posso sair hoje daqui, só amanhã ao meio-dia, você pode dormir no quartel lá no meu quarto. Eu queria era me ver livre deles, mas naquele horário só podia aceitar. Chamaram o motorista, que era um cabo, e ele lhe disse: – Cabo, faz favor, leve o menino para o quartel e diga para o oficial de plantão que ele vai dormir no meu quarto, e amanhã você pega ele antes das 9 horas e leva na rodoviária e lhe ajuda a pegar o ônibus para Medellín, e procure que tome café antes de sair. Ele se perfilou, sim senhor, respondeu, pegou duas malas e eu peguei a bolsa e se despediram com muito carinho. Tudo foi cumprido à risca. Até o cabo foi muito gentil, recomendando ao motorista para que me mostrasse o hotel para dormir à noite onde ele também ficava em Medellín. No dia seguinte, no hotel, quando o motorista foi tomar café, eu já estava à mesa, paguei e saímos, como ele era o motorista, viajaríamos no mesmo ônibus e durante toda a viagem conversamos. Falei-lhe do Firpo e da Helena. Em todas as paradas descíamos juntos e comíamos na mesma mesa. Às 16 horas estava na minha cidade, a rodoviária já me era conhecida, na rua era tudo igual. Despedi-me do motorista com tanto carinho, como se fôssemos antigos conhecidos. Como lembro este momento! Com as minhas malas, peguei um coche, o meu coração pulava de alegria rumo a minha maloquinha, ia pensando: com o dinheiro não será mais maloca, poderá ser uma casa parecida com a do Chepe ou a do Ocoró. O galope do cavalo me parecia lento, mas era a vontade de chegar que a mim parecia que o coche andava devagar, todas as ruas por onde passava me eram conhecidas, por todas elas sempre andei a pé e correndo, muitas vezes tarde da noite, e quando as noites eram muito escuras a mãe vinha me encontrar. Esses lugares não me traziam muitas reminiscências, mesmo porque eu não dava muita importância àquele passado e porque eu não entendia, não compreendia o que era bom e o que era mau, para mim tudo era igual. Deixamos a avenida e entramos na ruazinha estreita que nos levaria até a minha casa. Continuava tudo igual, com cerca de arame farpado dos dois lados, que dividia um potreiro do outro. Inquieto que estava olhava para todos os lados tentando descobrir algum dos rapazes da vila, claro que nesse horário era difícil ver algum, estavam na escola. Ansioso e sempre olhando para diante, bem perto da entrada do casario enxerguei na frente uma senhora magrinha, vestia uma saia preta e blusa branca, o cabelo estava em forma de moinho na parte de trás, aquele caminhar não me era estranho, observei que os saltos de seus sapatos estavam bem gastos de um lado, senti dor de ver aquela ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 255 pobreza. À medida que nos aproximávamos dela eu ficava mais intrigado. Parecia-me que o coche não andava, tinha vontade de descer e empurrar para que andasse mais ligeiro. De volta! Nos braços da mãe Eu não olhava para outro lado, meu olhar estava fixo na senhora, olhava com tristeza aqueles saltos tortos, no momento que o coche se aproximou da senhora ela se encostou na cerca para dar passagem e ficou de frente para nós. Gritei: – Mãe! Pedi para o cocheiro parar, desci e peguei-a pelas mãos, ajudando-a a subir no coche. Uma vez dentro do coche começou a chorar e agradeceu a Deus e a Santa Sara Kaly por ter lhe mandado de volta seu filho. Abraçada a mim me disse: – Meu filho, porque não mandou dizer onde estava preso? Fiquei surpreso ao ouvir estas palavras de parte da mãe. Imediatamente lhe respondi: – Mãe, eu nunca estive preso! Porque a senhora acha que estive preso? Eu nem sequer tenho estado aqui na Colômbia! Puxei do bolso o passaporte e mostrei, também a carta do Embaixador, e ela continuava chorando. Chegando em casa ela me pediu para que descesse rápido, pois não queria que algum vizinho me visse. Lá dentro de casa, sentados, ela um pouco mais calma me apertou contra seu peito e disse: – Meu filho, como você está bonito, elegante! Mãe, falei, tudo isso que vem dentro das malas são presentes que ganhei das pessoas que gostavam de mim. Em seguida tirei a bolsinha com o dinheiro e mostrei para a mãe lhe dizendo: – Este dinheiro ganhei me apresentando em praças, mercados e em alguns palcos, como a senhora pode confirmar lendo aquela carta que o senhor Embaixador me deu, e aos poucos fui reunindo, guardei peso por peso, centavo por centavo, com o único desejo de trazer para a senhora terminar a nossa casa. Mãe! Falei com muito sentimento, eu nunca estive preso em lugar nenhum. Senti-a mais tranquila. Ela me pegou pelas mãos, começou me dizendo com voz muito calma: – Meu filho, depois que você desapareceu, fiquei muito preocupada, lhe esperei por três dias, sempre com a esperança de você aparecer, pedia a Deus, à Santa Sara Kaly, que me trouxessem meu filho são e salvo. Nos desesperamos, rezamos todas as noites, eu e seus irmãos e perguntávamos para um, para outro e ninguém tinha lhe visto, até ao porto seu irmão foi e nada. Romélia também vinha rezar conosco, fomos nos hospitais e nada, porém meu coração me dizia que meu negrinho estava vivo, só que eu não suportava a ausência e o silêncio. Acho que foi no sexto dia que veio o Geraldo, o filho daquela senhora que vende ovos e frangos, chegou me dizendo que o tinha visto ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 256 ser preso, porque tinham lhe pego roubando e que como se recusasse a ir para o juizado e tinha tentado fugir, a polícia lhe bateu e para que ficasse quieto, tinham lhe amarrado e colocado dentro de um camburão. Ele ainda falou que quando você o viu, tinha gritado: – Geraldo, avisa para minha mãe! E em seguida se espalhou por toda a vila que você foi pego roubando e que estava preso, e todos os vizinhos me viraram as costas, até a própria Romélia e a mãe dela não falaram mais comigo. Um dia, desesperada que me encontrava, fui pedir um favor ao seu amigo Gratiniano, e ao invés de me ajudar, me insultou, e gritou que eu era a culpada por você ter se tornado um ladrão. Saí toda envergonhada porque o açougue estava cheio de gente. O Carlos, filho do Ocoró, que tanto lhe admirava e falava tão bem de você, agora passa pela minha frente e sequer me olha. Seu irmão Marino fez várias perguntas ao tal Geraldo, e desconfiou que ele estava mentindo, e o pegou pelo pescoço obrigando-o a falar a verdade, e se os vizinhos não interviessem, poderia até ter enforcado o rapaz. A mãe continuou a falar e eu a escutar: – Meu filho, aqui todos acreditam que você está preso em algum juizado para menores e por você se comportar com rebeldia não me mandam dizer onde é que você está, para que ninguém lhe visite. Além de sofrer sua ausência eu tenho sofrido o desprezo dos vizinhos e de seus amigos. Quando ela parou de falar, tornei a lhe dizer: – Mãe, eu nunca estive preso. É claro que não contei aqueles momentos críticos que tive. Continuei: – Mãe, fui muito querido pelas pessoas que me conheceram. Muitos casais me trataram como se eu fosse o filho deles, vivi na casa de um Cônsul, a esposa dele me tratava como se eu fosse o seu filho, ela mesma lavava a minha roupa, e à noite ia ver se no meu quarto não tinha mosquitos. Recebi dinheiro e felicitações de um Embaixador, como a senhora pode ver naquela carta, tenho muito a lhe contar das minhas andanças, mas a senhora pode acreditar que em nenhum lugar me portei mal, todos me achavam muito simpático e educado. Mãe, esse tal de Geraldo mentiu, porque o primeiro dia que eu viajei para o porto, fui no navio daquele mesmo italiano que me dava comida para trazer para casa. Por casualidade o navio estava no porto e fui direto para o Italiano, lhe contei que tinha sido convidado para tourear no país vizinho e que ganharia um bom dinheiro. Ele me indagou bastante, e sentindo que eu falava a verdade, prometeu me ajudar. Eu lhe contei tudo como aconteceu. Quando estava contando do toureiro espanhol, chegou meu irmão Marino, feliz de me ver me abraçou. A mãe lhe contou que nunca estive preso e que eu não estava na Colômbia. Mostrei-lhe o passaporte e a carta do Embaixador. Ele, todo emocionado, disse para a mãe: – Eu desconfiava que aquele cara estava mentindo, é por isso que lhe dei uma boa surra, e agora que podemos provar a sua mentira vou lhe ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 257 dar outra. A mãe falou: – Não meu filho, não é preciso, seu irmão já está aqui, graças a Deus, é o que importa. Estavam todos meus irmãos em volta de mim e quando contei do toureiro espanhol, Marino falou: – Faz mais ou menos dois ou três meses que prenderam um toureiro que se fazia passar por espanhol. Quando ele chegava nas cidades, organizava as touradas e contratava os toureiros, e depois das corridas fugia e não lhes pagava, ao contrário, aos mais ingênuos ainda pedia mais dinheiro, prometendo levá-los a tourear em praças de cidades grandes e outras tantas mentiras. Também tinham descoberto que ele não era espanhol. Ao ouvir esta notícia do meu irmão, me vi obrigado a contar tudo para a mãe e meus irmãos. Quando terminei a mãe disse: – Garanto que ele sabia onde você estava! – Claro mãe, respondi, se foi ele quem me mandou lá. A mãe lançou muitas maldições contra ele e o meu irmão disse: – Deixa, que quando ele sair da cadeia, fazemos outra denúncia por enganar um menor. – Não, não precisa mano, se não fosse pela mentira dele eu não ganharia tanto dinheiro e tantos presentes. A mãe, que de vez em quando ainda dava uma choramingadinha, agora na presença de todos os meus irmãos estava mais calma, de vez em quando me abraçava e beijava. Depois de contar parte das minhas aventuras e da forma de ganhar dinheiro e de me apresentar, estavam todos curiosos para ver o que tinha dentro das malas. Fomos abrindo e repartindo, para a mãe dei um relógio pequeninho, muito bonito. Marino, Túlio e Hugo também ganharam relógios. Todos ganharam roupas novas e sapatos de duas cores. Marino falou que sonhava ter uma guaiavera, estava feliz com a que lhe dei e já vestiu, para todos dei dinheiro, para mãe dei dois mil dólares para a casa e mais alguns para nós comermos e também lhe dei dinheiro para comprar sapatos. Em seguida falei: – Mãe, eu trouxe duas correntes com o Cristo na Cruz, são de ouro, queria dar de presente uma para Romélia e outra para a mãe dela, em seguida a mãe me disse: – Não meu filho, não dê nada porque são capazes de pensar que são roubadas, para elas você é um ladrão, aqui todos acreditam na mentira daquele Geraldo, que um dia Deus lhe há de castigar. A mãe ficou um pouco pensativa e em seguida me disse: – Agora que eles vão ver seus irmãos bem vestidos e de relógio no pulso e eu construindo a casa seguramente vão dizer que tudo é fruto de roubo. Marino que era pavio curto se levantou e nos disse: – Eu vou trazer aquele tal de Geraldo e vou lhe mostrar a carta do Embaixador e o seu passaporte para que nos diga de onde ele inventou tal mentira. A mãe interveio: – Não meus filhos, pensem um pouco, lembre-se que você quase enforcou esse cara. Eu compreendia que o meu irmão queria era se vingar. Jantamos ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 258 mateia a saudade especialmente dos pequenos que os enchi de afagos. Como era diferente estar longe deles e a satisfação de estarmos juntos, a comida tinha um paladar gostoso, aquele carinho, aquele mimo que recebia de todos sentia penetrar dentro do meu coração. Marino me pediu para que no dia seguinte fosse à escola onde eu antes estudava, inclusive onde meus dois irmãos ainda estudavam, me pediu também para levar o passaporte e a carta e mostrar para a professora Mariateresa, que sempre perguntava por mim, pois ela não acreditava que eu fosse um ladrão. A mãe me sugeriu para eu levar de presente para ela uma das correntes com crucifixo. A noite foi muito gostosa, dormi como um bendito, como Sancho Pança dizia. Reencontro com os ex-professores De manhã, depois do café, os quatros irmãos fomos em direção à escola. O Marino não estudava mais lá, ele cursava o secundário. Quando entramos na escola a única pessoa que me deu importância foi justamente a professora Mariateresa, que quando me viu veio correndo me cumprimentar e toda sorridente disse: – Negrinho, que elegância! E sem demora me pegou pela mão e me levou para o seu escritório, me fez sentar de frente para ela e bem perto. Olhando-me no rosto perguntou: – Negrinho, é verdade o que andam dizendo? Fala-me, é verdade que agora tu viraste ladrão e estavas preso? Como sempre, com toda calma respondi: – Não senhora, nunca roubei e nunca estive preso, foi um rapaz lá da vila que inventou todas essas mentiras. Mostrei-lhe o passaporte e a carta do Embaixador, contei-lhe que era para aquele país que tinha fugido, que ganhava muito dinheiro nos parques fazendo contorcionismo e provas de mágicas. Com a carta e o passaporte na mão, saiu e em poucos minutos voltou, vinha acompanhada de três professoras e um professor, que entraram, me elogiaram, tanto pela carta como pela elegância no vestir. Queriam saber o porquê de ter fugido, tive de lhes contar a história do toureiro. Segundo entendi, eles tinham lido alguma coisa a respeito desse toureiro tramposo nos jornais há algum tempo atrás. Perguntaramme se eu não ia lhe cobrar o meu dinheiro, respondi que não, porque se não fosse pela trampa dele eu não teria ganho o que ganhei e nem aprendido a ganhar, mas ao contrário, deveria era lhe agradecer. A professora Mariateresa era toda felicidade com a minha presença e ainda mais ao saber que aquele rapaz tinha mentido ao espalhar a notícia de que tinham me pego roubando. No meio da conversa perguntei se no próximo ano poderia ser matriculado porque pretendia continuar estudando. A diretora imediatamente me respondeu que sim. Como eu não ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 259 tinha parado com o remédio me sentia muito bem, ademais naquele centro clínico o oftalmologista tinha feito um profundo exame. Quando bateu a hora do café várias professoras vieram perto de mim. Algumas me olhavam com certo ar de desprezo, porém após lerem a carta e verem o passaporte, me felicitavam e mudavam o comportamento para comigo. Um dos professores chegou a dizer: – Olha o Negrinho com passaporte... eu nunca consegui tirar um e ele já andou até pelo exterior! Convidaram-me para ir tomar café, e eu aceitei. Ao entrar no comedor, no meio da bagunça ouvi um murmúrio de uma voz que disse: – Olha o Negrinho que virou ladrão! Eu me lembro que ao ouvir estas palavras senti como que uma espécie de dor que não doía, um vazio no estômago que não era de fome, um aperto no coração que me entristecia. Uma vez todos nos seus respectivos lugares, a professora pediu silêncio e em seguida se dirigiu aos alunos, textualmente não me lembro, mas ela mostrou o passaporte e dirigindo-se para todos, em voz alta lhes falou: – Em nenhum lugar do mundo dão passaporte para criminosos e muito menos para ladrão, e nenhum Embaixador daria uma carta destas para um ladrão porque seria um escândalo e poderia perder seu posto, um dos mais altos cargos do governo. Em seguida leu tudo o que estava escrito no passaporte e também leu a carta, todos bateram palmas. A diretora continuou: – Foi a maior injustiça que cometeram com o Negrinho acusando-o de ladrão, a pessoa que inventou tal mentira merece ser presa por difamação e calúnia. Vamos aconselhar a mãe do Negrinho a fazer a denúncia na polícia. Enquanto tomávamos o café, a diretora terminou de falar, e a professora Mariateresa também falou, com uma voz muito trêmula disse para todos: – Essa é a maior injustiça que se tem cometido contra o Negrinho e o caluniador terá de ser preso. Será que não chega o sofrimento que o Negrinho passou por causa dos olhos e até não pode estudar, ele que tanto gosta e agora mais essa infâmia contra ele! Ela parou de falar quase chorando. Um dos professores também falou: – Peço a todos meus alunos palmas para o Negrinho para lhe demonstrar o nosso carinho. Alunos e não alunos bateram palmas, só um não bateu, depois fiquei sabendo que era o irmão do Geraldo. Quando lembro este momento fecho os olhos e enxergo claramente as duas cozinheiras da escola com seus aventais brancos e o pano branco na cabeça. Elas estavam atentas ouvindo as palavras do professorado, se acercaram e me abraçaram, seus olhos estavam úmidos de lágrimas. Segundo a mãe me contou, elas a tinham visitado várias vezes e sempre disseram para a mãe que elas não acreditavam que eu havia me convertido num ladrão, choravam de felicidade ao saber que não tinham errado a respeito da minha idoneidade. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 260 O quadro agora estava mudado na escola: os alunos que quando cheguei me olhavam com olhar de desprezo, agora me sorriam, idem as professoras e professores. Alguns rapazes e meninas adolescentes me pediam para ver o passaporte, o liam, choravam, liam a carta, ouvi uma voz que disse: – Coitado do Negrinho, quem seria o infeliz que inventou essa história? Outra voz falou: – O Negrinho nem tem pinta de ladrão, a pinta que ele tem é de artista, como diz no passaporte, “profissão: artista”. Meus dois irmãos Túlio e Hugo sabiam e conheciam o irmão do Geraldo, mas permaneceram calados. Prometendo me matricular para o próximo período, me despedi, porém antes de sair dei o presente para a minha primeira professora Mariateresa, ela me beijou e abraçou e deu um suspiro de satisfação. Saí com meus dois irmãos Túlio e Hugo. Chegamos em casa e lá estava a mãe ansiosa nos esperando com o almoço pronto. Durante o almoço se comentou da recepção na escola. A mãe me contou que o André sempre lhe visitava e também o pai dele, que ofereceu ajuda. À noite fui lhe visitar, toda família dele e ele ficaram muito alegres ao me ver, me convidaram a entrar, todos reunidos na sala, contei-lhes as minhas aventuras, os poucos momentos ruins e os muitos bons. O passaporte e a carta pareciam que eles é que tinham recebido, de tanta alegria que sentiram. Os presentes que não dei para os outros reparti entre eles. Em um momento oportuno o pai de André me disse: – Negrinho, o meu filho nunca acreditou que você tivesse virado ladrão, as minhas filhas falavam: – Pai, tem algo errado nessa história. A visita foi longa, me despedi, me sentia feliz em saber que tinha gente que acreditara na minha inocência. André e o pai me levaram em casa. A dúvida dos moradores da vila: artista ou ladrão? No dia seguinte, a notícia da minha chegada tinha circulado por toda a vila. Falavam que eu tinha chegado vestido como doutor, soube também que falaram que tudo era fruto de roubo. Como o pai do André foi me acompanhar até minha casa, no dia seguinte o murmúrio era de que na noite anterior tinha estado a polícia à minha procura. Na manhã seguinte, e antes de ir vender os seus ovos e frangos, a mãe de Geraldo, autor da mentira, bateu na minha casa, e quando a mãe lhe atendeu, em voz alta a senhora falou: – Estou sabendo que o meu filho vai ser denunciado à polícia por mentiroso. Ao ouvir aquela senhora falando tão alto e temendo que ela agredisse a mãe, saí para ver se ela se atrevia. Como eu estava ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 261 vestido pronto para sair, estava vestindo calças compridas e guaiavera, sapatos preto e branco e com relógio no pulso, ela mesma, continuando a falar em voz alta, me olhava de cima a baixo e aproveitou para gritar mais alto: – Eu quero ver se a senhora se atreve a fazer a tal denúncia. E me olhando, disse: – Quer maior prova do que o meu filho disse, de onde será que ele tirou tanto dinheiro para comprar relógio e roupas tão caras? Até seus filhos, todos já andam de relógio e modificaram o jeito de vestir, por quê? Porque aí tem gato encerrado. Como em todos os lugares não faltam os dadores de fé, muitas pessoas tinham parado na frente da nossa casa. A mãe tentava falar, mas a mulher não parava de gritar, em determinado momento a mãe conseguiu lhe dizer: – Senhora, não sou eu quem vai denunciar, são os professores da escola onde seu filho estuda, ele está sabendo de tudo, pergunte para ele. Eu já não estava aguentando tanto berro daquela senhora, me armei de coragem e lhe gritei: – Senhora, eu não sou vendedor de ovos e muito menos de jornais, eu sou um artista, e como sou bom, me pagam bem, e mostrando-lhe meu passaporte griteilhe: – Aqui está a prova, leia senhora! A mãe disse: – Meu filho, esta mulher é uma ignorante, ela não sabe ler. As palavras ditas pela mãe parece que lhe caíram como um balde d’água fria, porque calou a boca e eu aproveitei e pedi para um senhor que estava presente: – Por favor, leia para esta senhora e os presentes quem sou eu. O senhor leu tudo em voz alta e ainda mais alto a parte que dizia: profissão “artista”. As pessoas praticamente nos tinham cercado, a vendedora de ovos dava a impressão que queria escapar, só que tinha muita gente em volta e não conseguia sair. Aproveitei e pedi para que lesse também a carta do senhor Embaixador, ele leu em voz alta, e quando terminou de ler me disse: – Pelo que esta carta diz você é um grande artista, esta carta foi dada por um Embaixador! – Sim senhor, respondi. Deu-me a mão e me felicitou, perguntando o motivo dos gritos daquela senhora. Contei-lhe o porquê, dizendo que o filho dela tinha espalhado na minha ausência que eu era ladrão e que estava preso, e todos na vila acreditaram no que ele tinha espalhado e quem queria denunciá-lo à polícia não éramos nós e sim os professores. O homem chamou a atenção da mãe dizendo-lhe: – Senhora, tem que denunciar aquele sem-vergonha, isso se chama calúnia e a lei castiga de forma severa e ainda mais que seu filho é menor, bote ele na cadeia senhora, para que deixe de ser mentiroso. Muitos dos presentes eram vizinhos e eram meus amigos e amigos dos filhos da vendedora de ovos e a quem eu muitas vezes tinha feito mandados e ajudado em alguma coisa. Quando aquele senhor se retirou, dando-nos a mão, em seguida a vendedora de ovos foi se retirando em silêncio, e todos foram se retirando também, mas nenhum me cumprimentou. Uma das coisas que mais tristeza me causava era ter visto a mãe com aquele salto de seus sapatos todos tortos. Convidei-a para ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 262 comprarmos sapatos novos no centro, íamos caminhando em direção à avenida para pegar um coche quando vimos que um rapaz me chamava insistentemente, gritava: – Negrinho... Olhei e era o Nino, um guri que sempre tinha gostado de mim. Quando nos alcançou, a primeira coisa que falou foi: – Dona Isabel, eu gosto muito do Negrinho, só que o pai e a mãe nos proibiram de nos juntar com ele, só que eu quero continuar sendo amigo de vocês. A minha irmã mais velha diz que, embora ela apanhe, também vai continuar sendo amiga de vocês. Nino disse que o Roberto, filho de dona Branca, um dia, discutindo com o pai, lhe gritou: – O Negrinho é meu amigo e vai continuar sendo, porque ele não é ladrão, isso é uma mentira inventada pelo Geraldo, porque ele tem inveja do Negrinho. Dos rapazes daquele tempo me lembro do Dandi, que segundo as gurias, era lindo e elas eram apaixonadas por ele, também lembro do Hector, do Toninho, do Pablo, que os pais mantinham bem limpinho e perfumado e apesar de receber muito mimo dos pais era muito bom e bom amigo, quando ele descobriu que eu tinha regressado passava em frente da minha casa várias vezes por dia, como o Nico tinha me dito que os pais dele também não queriam que ele se juntasse comigo, eu tratava de me esconder e não me deixar ver por eles. Um dia perguntei à mãe por Chepe, ela me respondeu que fazia algum tempo que não o via, que várias vezes ele tinha lhe levado de carroça quando ela andava à minha procura, ele e a esposa dona Mercedes tinham sido muito prestativos e nos momentos que mais precisava dessa ajuda. Pelo que a mãe me contava a respeito do comportamento dos vizinhos, eu entendera perfeitamente que todos acreditaram na mentira do Geraldo, e a mãe dele continuava dizendo para os vizinhos que sim, que eu era um ladrão, que seu filho não mentira e que a maior prova estava na maneira de eu vestir, que trabalhador nenhum teria condições de comprar a roupa que eu usava, que de manhã saía com uma roupa e à tarde já estava com outra, e a coisa que ela mais mencionava era que eu tinha lhe gritado: – Senhora, eu sou um artista! E que ela terminara dizendo: – Grande ladrão, um artista de merda! O Nino, que sempre dava um jeitinho de se encontrar comigo escondido dos pais me contava todos os boatos que a mãe de Geraldo espalhava. O Nino me falou que o Pablo queria conversar comigo, queria me ver de perto e combinamos um encontro, que seria no dia seguinte, quando eu iria à procura do Chepe, nesse dia nos encontramos, ele e o Pablo, estavam muito felizes de me ver. O Nino, o Pablo e eu fomos juntos à procura do Chepe, a nossa conversa só era a respeito do que eu fazia para ganhar dinheiro. Não encontramos o Chepe, nos informaram que eles tinham ido ao povo deles visitar parentes. Ao regressarmos, nos ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 263 encontramos com alguns rapazes, eles não nos cumprimentaram, embora nós os cumprimentássemos com carinho. O Joãozinho estava com eles, lembro que ele sempre foi o mais orgulhoso da turma, fanfarrão, metido a namorador, tremendo gabola, me olhou com ar de desprezo, quando estávamos à pouca distância deles consegui ouvir a voz de Joãozinho que disse: – Não me junto com negro ladrão. Fiz de conta que nada ouvia. Perto da vila nos despedimos e disse-lhes que tinha alguns presentes para eles, mas talvez os pais não aceitassem. Dei a cada um cinco pesos, que aceitaram. Só faltou me beijarem. Eles foram por um lado e eu por outro. Ao passar pela casa de dona Elvira ela ficou parada fixando-me insistentemente. Pensei que ia me cumprimentar e lhe sorri, só que ela fechou a porta da casa e falou para alguém de dentro da casa: – Olha a pinta do negro bandido! Ainda tem a petulância de me sorrir. Claro que tudo isto me doía, mas me aliviava ao lembrar que tinha três amigos: O André, o Nino e o Pablo. No dia seguinte, uma das irmãs do Nino, às escondidas, me disse que o Nino não poderia estar presente em um encontro que tínhamos marcado porque alguém tinha dito aos pais deles que o tinham visto na minha companhia e estava de castigo junto com a irmã mais velha porque ela me defendia. Escrevo estas minúcias porque vem à tona aqueles dias amargos que passei no lugar que sonhava um mundo de felicidade, tudo foi por águas abaixo. Depois que a irmã do Nino foi embora, eu estava com a mãe em frente de nossa maloquinha, a mãe estava mostrando como pretendia continuar a obra. Justo neste momento passava o Joãozinho em companhia dos amigos do dia anterior e sem olhar para nós falou em voz um pouco alta: – Foi por culpa daquele negro ladrão, veado, um puto, que o Pablo apanhou! Eles continuaram caminhando e quando estavam perto da esquina parece que se desentenderam porque um deles gritou: – A culpa foi tua que contou para os pais dele! Parecia que iam se dar socos, só que uns foram para um lado e o Joãozinho ficou sozinho. Acostumado que já estava a ganhar bastante dinheiro não tinha mais vontade de voltar ao mercado e carregar cestos. Tinha vontade de ver meus amigos do mercado, ver a preta velha, ir à praça de touros, só que agora tinha medo de todos e de tudo, não deveria ficar sem fazer nada, só gastando o dinheiro, tinha que trabalhar, mas limpar a praça de touros nem pensar. O que me chamava a atenção era voltar ao porto e trocar bananas por cigarros, era mais rentável e ademais tinha muita vontade de rever meu amigo Italiano e mais ainda contar para ele as ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 264 minhas aventuras, lhe contar tudo que aconteceu depois que nos despedimos. Ultimamente, e, sobretudo à noite, depois de conversar e rir com a mãe e meus irmãos e quando todos pegavam no sono, sentia certa saudade dos meus amigos engraxates, da Gina, do Biche e do Vish e também uma vontade de sentir o carinho da Estefani, fechava os olhos e sentia suas mãos me fazendo cafuné, a minha mente percorria todos estes lugares. Até não me importaria de tornar a dormir debaixo do banco da praça ou sentado na rodoviária, também lembrava quando dormia no chão na casa da Gina com meus amigos engraxates, a bagunça e as risadas até pegarmos no sono. Como esquecer aquela vila onde moravam meus amigos engraxates tinha sido tratado como um rei, tinha sido tocado, admirado e abençoado por tanta gente estranha! Tudo ao contrário da vila que me viu crescer, onde a quase todos os vizinhos lhes fiz mandados, lhes carregando água, tanta ajuda que lhes brindei, onde tantas vezes tomei café ou almocei, gente que tanto me elogiou perante minha mãe, hoje me odiavam, sem uma razão justa, sem saber a verdade sobre o meu comportamento, acreditavam num safado inventor de mentiras. Não era mais aquele negrinho abençoado. Agora eu era aquele negro ladrão e me depreciavam, quando passava em frente a suas casas me fechavam as portas. Meu irmão Marino tinha vontade de encontrar Geraldo para lhe dar uma segunda surra, pior que a da primeira vez. Na escola onde ele estudava, por ficar um pouco distante, alguns sabiam a meu respeito, porém estavam divididos, uns acreditavam na minha inocência e para outros eu era mesmo um ladrão, sobretudo para os que moravam na minha vila. Eu compreendia o sofrimento da mãe e de meus irmãos, mas eu fazia de conta que nada sentia. Um dia decidi ir ver meus amigos do mercado, ia com certo receio de que me recebessem de cara feia, fui de bicicleta e bem vestido, procurei chegar no horário que não tinha movimento. Que coisa gostosa a alegria com que fui recebido: me abraçaram, riam, gritavam e me puxaram para a barraca da preta velha, porém antes passamos pelas bancas de frutas e verduras e dos vendedores de carne, que segundo eles, sempre perguntavam por mim, todos me recebiam com muita alegria. Quando alguém me perguntava o que fazia para andar naquela pinta, respondia: – Agora trabalho em teatro e ganho bem. Em seguida corremos para a preta velha, porém antes de chegarmos me contaram que a mãe tinha me procurado na barraca da preta, querendo saber se ela não tinha me visto, e que a mãe saiu chorando. Eu não quis mais ouvir a esse respeito e disse: – Vamos comer comida cara que eu pago. Saímos correndo em ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 265 tremenda bagunça, quando a preta me viu, deu um grito, correu e me abraçou dizendo: – O Negrinho voltou, benza Deus, feito um doutor! A dona da barraca do outro lado perguntou: – Não era por esse menino que aquela senhora procurava? – Sim, respondeu a preta. A mulher continuou: – Onde é que você se meteu, meu filho? Um dos rapazes respondeu por mim: – Tia, agora ele é artista. Como a senhora não entendia, peguei o passaporte e mostrei e para maior fanfarronice mostrei também a carta. Os que estavam comendo nas outras barracas, ouvindo tanta bagunça, ficaram cheios de curiosidade, queriam saber o que a carta dizia, um senhor, vendo a curiosidade de tantos me pediu a carta e leu em voz alta, primeiro o passaporte e depois a carta. Finda a leitura, todos bateram palmas, os mais felizes eram meus amigos. Alguém perguntou o que eu fazia no teatro, em seguida tirei a guaiavera, arremanguei as calças e comecei, como sempre, todos deixaram a comida de lado e ficaram em volta de mim, e as pessoas que passavam também. Minha apresentação foi curta e o público me felicitava e aplaudia. Eu estava com fome, pedi à preta para servir para meus amigos o que eles quisessem comer que eu pagava, mas tinha que ser comida boa, eu pedi peixe ao molho com arroz, patacones e salada. Enquanto comíamos, a dona de uma das barracas veio falar com a preta. Ela disse que aquele rapaz branco, cujo pai era preto, dono de um armazém de secos, um dia desses tinha lhe dito que o filho daquela senhora que tinha estado uma vez na barraca da preta à procura do filho, e que o filho era eu, era ladrão. Nós estávamos escutando a mulher falar, me levantei e expliquei para a senhora que esse rapaz e o pai moravam perto da minha vila e que eles tinham sido meus amigos, mas que um rapaz que vendia jornais perto dali e que morava na minha vila, tinha inventado tamanha mentira. Contei para todos os presentes que por causa desse vendedor de jornais, todos na vila me odiavam e nem sequer me ouviam para lhes dizer que eu não era um ladrão, e sim um artista. A senhora me disse: – Meu filho, eu não acredito na conversa desse rapaz, ademais, você não tem pinta de ladrão e sim de um menino bom. Eu lhes dei toda informação onde o Geraldo vendia jornais, que era perto dali. A senhora se desculpou e voltou para sua barraca. Nós continuamos conversando, me contaram que a praça de touros tinha sido fechada porque tinham pego um toureiro que se fazia passar por espanhol e que contratava os toureiros e depois das corridas inventava qualquer história para não lhes pagar, eu não quis lhes contar que também tinha caído no conto dele, porque no fundo, eu era grato a ele. Ao me despedir, paguei tudo, não quis receber o troco da preta e a meus amigos dei dois pesos a cada um de presente e saí prometendo voltar em qualquer momento. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 266 Voltei para casa muito feliz. A mãe e meus irmãos ao sentir-me feliz, também ficaram felizes, só que aquela felicidade desapareceu no dia seguinte ao me sentir depreciado pelos amigos a quem tanto tinha servido, fazendo-lhes compras, e muitas vezes debaixo de chuva, e eles mesmo me acusavam de algo que nunca pensei ser. A casa de Oscar ficava perto da minha, porém eu não o tinha visto desde a minha chegada, porque a porta da casa dele permanecia fechada. Um dia por casualidade passava pela frente da casa dele e a porta estava aberta, vi o Oscar fazer um gesto de alegria, aquele eterno sorriso dele, mas no mesmo momento apareceu sua mãe e o puxou para dentro fazendo gesto de que eu era gato e fechou com força a porta. Tudo isto me deixava amargurado, mas toda esta amargura passava dentro de casa vivendo com a mãe e meus irmãos, também me deixava muito feliz saber que a mãe estava lavando menos roupa, que só lavava para a dona do hotel, porque sempre tinha sido muito boa para com a mãe, nos momentos difíceis lhe emprestava dinheiro e a mãe lhe pagava aos poucos, com lavadas, eu sentia a mãe mais tranquila e despreocupada. A mãe tinha me dito que Efraim tinha ido lá em casa saber se eu tinha aparecido e tinha pedido para lhe avisar alguma coisa a meu respeito. Eu, com receio de que ele também tivesse o mesmo conceito não queria ir visitá-lo, até que um dia convidei o André para irmos de bicicleta, quando chegamos na casa dele as empregadas nos receberam com o mesmo carinho e atenção de sempre e me informaram que como o menino tinha passado de ano, o prêmio era fazer uma viagem à capital e que por lá andava com toda a família. Nos despedimos e saí todo contente porque a minha fama de ladrão não tinha chegado até lá. A visita à dona Maria Ruiz Sem saber o que fazer decidi ir até o porto visitar dona Maria de Ruiz, a mãe concordou, só me pediu para não viajar de ônibus. Viajei de trem. Ao chegar na casa, dona Maria, quando me viu, ficou feliz, estava muito franzina, caminhava com muita dificuldade, conversamos bastante, lhe contei minhas aventuras, riu muito quando lhe contei que me sentei numa cobra pensando que era um tronco de árvore. Quando estava lhe contando que estando com fome tinha pego os plátanos da lata do lixo, tive que acelerar a conversa porque notei que se entristeceu e tive a impressão de que iria chorar. Quando lhe contei que nessa mesma noite tinha ganho muito dinheiro, mudou completamente e até chegou a aplaudir. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 267 O Angelito chegou à noite, ficou contente de me ver. Na hora que estávamos jantando, falou para dona Maria que naquele posto de gasolina de seu amigo, estavam precisando de um frentista e disse: – Pena que estou trabalhando com o pai, senão era capaz de pegar essa vaga. A dona Maria lhe falou com voz calma: – Meu filho, fique com seu pai, seja como for ele é seu pai e está precisando de você, cuide da tetuda que não roube, porque também estão roubando de você. Tenha em conta que se ele vai primeiro, eu não quero nada disso, o mais provável é que vamos os dois juntos e são vocês os que têm que continuar o negócio. Pareceu-me o Angelito muito mudado, sentou-se ao lado de dona Maria, abraçou-a e a beijou. À noite ficou em casa. Partilhamos o mesmo quarto. Ele não fumou e não falou bobagens. Os pôsteres das mulheres nuas tinham desaparecido. Trabalhando no posto de gasolina No dia seguinte, na hora do café lhe perguntei: – Será que não me receberiam no posto de gasolina? Imediatamente se prontificou a me levar e apresentar ao chefe que era seu amigo. Após o café falamos para dona Maria, ela concordou, nos abençoou e saímos. Fui aceito, poderia pegar no dia seguinte. Para não preocupar a mãe, decidi ir avisá-la. Só que indo de trem não conseguiria ir e voltar naquele dia. A solução era pegar o ônibus das 9 horas e voltar no das 15 horas e foi isso que fiz. Ao meio-dia e trinta estava em casa, contei para a mãe, ela gostou, só não gostou de eu andar de ônibus. Senti que estava preocupada e lhe falei que dificilmente aconteceria um acidente por uma segunda vez - A senhora sempre diz que o raio não cai duas vezes no mesmo lugar! Agora bem vestido, com uma bolsa decente, com a bênção da mãe saí e peguei o ônibus das 15 horas. Às 18 horas e trinta minutos estava onde dona Maria morava. Naquela noite dormi ali. No dia seguinte me apresentei no posto, onde recebi todo tipo de instrução, inclusive os cuidados que deveria ter com gasolina e os demais combustíveis. Gostei do serviço. Éramos dois frentistas, pegávamos às 6 horas e largávamos às 14 horas; os outros pegavam às 14 horas até às 22 horas. Depois pegava um velhote, que era o guarda e também fazia o trabalho de frentista, embora à noite não tinha quase movimento. O nome do velhote era Erazo, mais conhecido por mestre Erazo, ele tinha uma cadeira especial, se sentava e pegava no sono, porém ao mínimo ruído se acordava. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 268 Meu companheiro frentista morava num bairro da periferia, um pouco distante e por esta razão dormia no posto numa espécie de mezanino, que servia de paiol e ficava dentro do armazém de peças para carros. O gerente tinha um quarto especial nos fundos do armazém. Como dona Maria também morava um pouco distante do posto, o gerente Roldão, que era seu nome, me facilitou para dormir no paiol onde dormia meu colega de serviço, que era conhecido por cara de Machete. Desde o começo nos tornamos bons amigos. Ele já trabalhava há mais de um ano no posto e nem por isso era orgulhoso, ao contrário, me ensinava tudo, inclusive me convidou para depois do horário de serviço ganhar mais uns trocos. Como as ruas do porto, na sua maioria não eram asfaltadas, eram muitos os pneus que furavam e nós arrumando ganhávamos mais uns trocos. Sempre tínhamos três ou quatro para arrumar. Roldão, vendo nossa vontade de trabalhar e ganhar dinheiro, nos ofereceu o serviço da lavagem dos carros, lubrificação e pulverização após o nosso horário, eles cobravam quinze centavos pela lavada e nos dariam a terceira parte em tudo, aceitamos sem demora. Machete ficou muito contente, segundo me disse, fazia tempo chuleava aquele serviço. Muitos proprietários deixavam os carros à noite e os retiravam no dia seguinte. Machete um pouco mais velho do que eu, sempre procurava fazer o serviço mais pesado, mas na hora de repartir o dinheiro, era metade e metade. Lembro-me que mal largávamos o serviço já estávamos arrumando os pneus dos fregueses e em seguida nos pegávamos a lavar e lubrificar os carros deixados pelos fregueses. Tinha dias que lavávamos até à meia-noite, sobretudo nos fins de semana. Quem movimentava os carros era Machete, eu não sabia dirigir, mas Machete começou a me ensinar a dirigir e depois das 23 horas. Saíamos em carro de algum freguês que deixara para ser lavado. Andávamos pelas ruas do porto e ao voltar lavávamos o carro, colocávamos a gasolina gasta. Cansados íamos dormir. No dia seguinte a rotina era a mesma, e eu sempre dirigindo. No quinto dia chegou a dona do posto. Eu sem saber e sem que ninguém me pedisse, comecei a ajudar a descarregar a camionete e a levar as caixas para dentro da loja, depois fiquei sabendo que ela era a dona do posto, e seu nome era dona Matilde, e ela parecia simpatizar comigo, sempre que me olhava sorria, e na hora de ir embora me presenteou com um bolo, claro que este comi com meu amigo Machete. Na parte da tarde, enquanto estávamos consertando um pneu, ouvimos gritos do frentista do turno da tarde, seu grito era de desespero porque uma das bombas tinha pegado fogo. Roldão que era o gerente, imediatamente mandou tapar os respiros enquanto ele, com um extintor tentava apagar o fogo. Com a colaboração dos bombeiros o fogo foi extinto sem maiores danos. No dia seguinte ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 269 vieram técnicos para consertar a bomba danificada pelo fogo. Com Machete, durante nosso turno, tínhamos trabalhado só com uma bomba. Salvo milagrosamente do incêndio À noite e depois de ter dado minhas voltas dirigindo e sendo passado da meia-noite, fui dormir. O meu amigo Machete roncava. Calculo que eu tinha dormido cerca de uma hora quando senti que ele me sacudia dizendo: – Ortega, acorda, fogo! Nos vestimos e descemos. De longe escutávamos os gritos de mestre Erazo que dizia: – Roldão, a bomba pegou fogo e os rapazes estão dentro da loja Machete e eu olhamos as labaredas do fogo através da porta de ferro gradeada. O calor que chegava até nós era muito forte e não poderíamos continuar na frente da porta. Procuramos refúgio dentro da loja, tentando escapar das labaredas. As duas únicas janelas existentes eram muito altas e mesmo quebrando os vidros, o máximo que passariam seriam as mãos. A porta não tinha fechadura e estava com um cadeado forte pela parte de fora. Roldão também dormia na loja de peças, ele tinha seu quarto organizado, quando ele ia dormir a porta era trancada com ferrolhos internos e quando saía colocava cadeado pela parte de fora. Roldão tinha conseguido uma namorada que morava perto do posto, separada algum tempo do marido, soube que tinha três filhos e Roldão esperava a gurizada dormir para entrar na casa da namorada. Foi o que aconteceu naquela noite, depois que eu entrei para dormir ele colocou o cadeado pela parte de fora, como de costume, quando ia visitar a namorada, pois antes das 6 horas já estava no posto. Mestre Erazo ia embora às 6 horas e Machete e eu pegávamos até as 14 horas. Continuávamos lá dentro sem saber o que fazer, o fogo fazia barulho como máquina a vapor. Meu amigo começou a chorar e quando a bomba estragada deu um estouro e voou longe pelo ar ele começou a gritar dizendo: – Minha mãe! Minha mulher! Meus filhos! Em seguida ouvimos outro estouro, era a outra bomba que também voava. O barulho do fogo agora era mais forte. Víamos muita gente se movendo a certa distância. Ouvíamos gritos e choro de senhoras que gritavam: – Meu Deus, os dois trabalhadores do posto estão lá encerrados! Ouvimos outro estouro, era a parede dos respiradouros que caiu, e pelos tubos saíam duas longas labaredas. O calor já começava a nos sufocar, enquanto meu amigo chorava me sentei atrás de um armário para me amparar um pouco do calor e comecei: – Meu Deus e Santa Sara Kaly me perdoem que eu só me lembro de vocês nestes momentos críticos. Nos ajudem, por favor! Fiquei pensando: coitada de minha mãe, mais uma dor de cabeça que vou lhe dar. Foi nesta hora que ouvi a voz de Roldão que gritou: – Machete! – ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 270 Senhor, respondeu ele chorando. – Cadê Ortega? – Ele está aqui sentado. Pela frente era difícil Roldão entrar, tudo era fogo. Roldão tornou a gritar dizendo-nos: – Fiquem embaixo do balcão grande. Mal terminamos de entrar para baixo do balcão quando ouvimos um forte ruído e um clarão de luz. Entrou alguém e gritou: – Saiam por aqui rapazes. Olhamos para o clarão e vimos Roldão e um senhor que nos fazia sinal para sairmos por ali. Saindo pelos escombros, Roldão me deu a mão e o senhor deu a mão para Machete. Já na parte de fora ouvimos um estouro muito forte e de lá, onde estávamos, víamos pelo ar pedaços de cimento, tijolos e ferros. Conduziram-nos a uma quadra do posto e Machete continuava chorando. Uma senhora nos trouxe água, meu amigo tomou, eu, como de outras vezes, mudo, engolindo seco e com aquele nó na garganta, não aceitei. A senhora insistia, me chamou de filhinho. Nesse momento vi os bombeiros chegarem, mestre Erazo vinha num dos carros, desceu e se juntou com Roldão, que estava só de meias, sem sapatos e com os lábios cheios de batom. Mesmo a esta hora da madrugada, continuava chegando gente. Enquanto os bombeiros apagavam o fogo, os policiais pediam para o público se afastar mais um pouco, porque poderia haver mais explosões. Machete tinha parado de chorar e estava sentado quietinho na calçada. Ouvi uma voz conhecida discutindo com um policial, era o Angelito, que não queriam que chegasse perto de mim. Eu saí correndo para onde ele estava, me pegou na mão e disse: – Vamos, que a minha mãe está desesperada, chorando, pensando que algo lhe pode ter acontecido, de mãos dadas saímos correndo. De longe vi dona Maria, naquela hora da madrugada, na porta da casa, curvadinha para frente e apoiada na bengala.O Angelito de longe gritava: – Mãe, ele está bem. Neste momento soltei a voz e gritei: – Dona Maria, estou bem. Quando ela nos viu, levantou a bengala e o olhar para o céu e em voz alta disse: – Louvado seja Nosso Senhor! Quando entramos em casa, não lhe contei o sufoco que passei e quando me perguntou onde eu estava na hora do incêndio menti e lhe respondi que estava no centro, num restaurante com Machete jantando, porque até que não terminávamos os biscates não íamos comer. O Angelito e dona Maria acreditaram na minha versão. Depois fomos nos deitar. Acordei às 9 horas, o Angelito já não estava, após tomar café comuniquei para dona Maria que ia no posto ver se era para trabalhar ou não. – Cuide-se, ela me disse. Abençoou-me e saí. Os bombeiros tinham feito um cordão de isolamento, havia muita gente olhando. Na frente da loja onde dormia com Machete tinha uma cratera funda, larga e comprida, era onde estava o tanque do depósito da gasolina que tinha explodido. Do pessoal que trabalhava no posto não tinha ninguém, a porta de ferro continuava com cadeado. Para esperar se alguém aparecia, me sentei num morrinho em frente ao posto, fiquei olhando os destroços que o incêndio tinha deixado, quando passou um rapaz vendendo o jornal e ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 271 gritando: – O Vigia, com notícias do incêndio do posto de gasolina, daí que me lembrei que se a notícia chegasse aos ouvidos da mãe, o desespero dela seria grande e pensei não esperar ninguém e ir embora para minha casa. No momento que me levantei para ir embora, vi chegar dona Matilde e corri para perto dela. Quando me viu, me cumprimentou e em seguida disse sem nada de tristeza: – Ortega, tu viste o jeito que ficou o nosso posto? Perguntou-me se tinha visto Roldão, respondi que o tinha visto desde o começo do incêndio até de madrugada, quando fui embora e ele ficou. Ela tentou entrar pela frente, mas era impossível, lhe falei que pelos fundos, no buraco aberto na parede, onde na frente estava um caminhão todo amassado, deduzi que fosse o caminhão utilizado para derrubar a parede. Uma vez dentro, me lembrei da minha bolsa e peguei-a, embora estivesse toda molhada, por dentro estava tudo seco. Tentava dizer para dona Matilde que tinha vontade de viajar para ver a mãe, só que neste momento começaram a chegar pessoas de terno e gravata, oficiais de bombeiros e outros, que me pareciam jornalistas e não tive mais chance de falar com ela. Fui para a casa de dona Maria, ela me esperava para o almoço, lhe informei o porquê queria voltar para casa. Almocei, me despedi, ela me abençoou e fui para a rodoviária, onde peguei o ônibus das 15 horas e às 18 horas e trinta minutos estava em casa. A mãe não estava em casa, tinha ido entregar roupa no hotel, saí correndo ao encontro dela e a encontrei olhando rádios em uma vitrine, ao me ver se surpreendeu e disse: – Ouvi as notícias no rádio do hotel, de que o posto de gasolina tinha pegado fogo, é verdade? – Sim senhora, respondi. – E você onde estava, meu filho? (Menti) – Na casa de dona Maria, mas fomos com o Angelito ver. – E vai continuar trabalhando? – Não sei mãe, aquilo ficou destruído. Maio, mês das mães Estávamos no mês de maio, mês de Maria, mês das mães, eu tinha reservado um dinheiro para o presente do dia das mães, e quando a vi olhando os rádios, tive a idéia de lhe dar um de presente. Começamos a caminhar em direção a casa e a mãe começou a me contar que, primeiro tinha aparecido lá em casa o pai do Nino, perguntando por mim, e ela respondeu que eu estava no porto, trabalhando num posto de gasolina. Aí ele tinha dito, aquele desgraçado, levou meu filho para lá, mas eu vou procurar ele. E dois dias depois tinha aparecido o pai do Joãozinho, que também tinha fugido de casa, e ele estava seguro que o filho andava comigo, e tinha dito para mãe: – Viu senhora, o mau exemplo que seu filho trouxe para a nossa vila! Além da dor de cabeça que está nos causando! Soube também que o Roberto fugiu e o pai e a mãe dele acreditavam que eu é que os aconselhara a fugir. – Meu filho, disse minha mãe, se você ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 272 sabe onde estão esses rapazes, diga para aquela gente, para eles irem à procura dos seus filhos e não nos incomodarem mais. Compreendi que a mãe também acreditava que eu tinha culpa no cartório. – Mãe, aquele Joãozinho nem fala comigo, ele é todo orgulhoso, nunca gostou de mim porque sou negro. O Nino e o Roberto me acompanharam o dia que fui ver o Chepe, porém em nenhum momento me falaram da intenção que tinham de fugir e acredito que nenhum deles deve estar no porto, porque eu não falei para ninguém que ia trabalhar num posto de gasolina no porto. Quando chegamos em casa, Túlio e Hugo a primeira coisa que me falaram foi que lá na escola a notícia que corria era que vários rapazes tinham fugido de suas casas e andavam comigo. Pelo que deduzi, meu irmão Marino também acreditava que eu tinha ajudado aqueles rapazes a fugir. Dei para a mãe e meus irmãos todo tipo de explicação, comprovando a minha inocência, coloquei como testemunhas o Angelito e dona Maria, se em algum momento tinham me visto com alguém. Fora o Angelito que me conseguira esse emprego, que cara de Machete e Roldão poderiam confirmar o que eu lhes falava. Convidei a mãe para irmos ao porto para ter certeza do que eu lhe dizia. Estávamos ainda reunidos eu, a mãe e meus irmãos, falando dos fujões, quando bateram na porta chamando pela mãe, ela saiu e em seguida ouvimos uma voz que dizia: – Dona Isabel, gostaríamos de falar com seu filho, a senhora sabe como estamos aflitos. Eram cinco pessoas e só caberiam na cozinha onde a mãe os mandou entrar, e me chamou, como nada devia, nada temia. O primeiro a falar e em tom drástico, foi o pai do Joãozinho, que me disse: – Por favor, queremos que nos diga, onde estão os nossos filhos? – Senhor, lhe respondi, eu não sei onde anda seu filho, ele nunca falou comigo, ele sempre falou para todos que não gostava desse Negro, ou seja, de mim, e porque agora ia querer falar comigo, se outro dia, só porque o Nino me cumprimentou e o Roberto também, queria brigar com eles? Agora que regressei ele nem me olha. A mãe do Nino quase que chorando me disse: – Negrinho, por favor, me diga, onde está meu filho? – Senhora, respondi, eu não sei, nunca depois do meu regresso falei com ele, a não ser um dia quando fui visitar um senhor amigo, o Nino e o Roberto e de longe me disseram: Oi Negrinho! O Joãozinho estava com eles e foi naquele dia que ele queria brigar com eles. O pai do Joãozinho tornou a falar e me disse: – Os rapazes daqui dizem que viram você com eles num povoado. Eu sempre fui calmo, e com calma lhe respondi: – Não senhor, o único lugar onde eu estava trabalhando era num posto de gasolina que pegou fogo anteontem e só voltarei quando tornarem a organizar tudo. Se os senhores quiserem, podem ir perguntar para o gerente, para o pessoal que ali trabalha e para a senhora onde eu dormia, se alguma vez me viram em companhia de alguém. O pai do ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 273 Joãozinho parece que não acreditou em mim. Levantaram-se para ir embora e ele disse: – Nós vamos continuar buscando até descobrir a verdade e foram embora. No dia seguinte, depois que meus irmãos foram para a escola, pratiquei um pouco de destrezas e um pouco de contorcionismo. À tarde saí e comprei um rádio para dar de presente para a mãe pelo seu dia. Quando regressei entrei pelos fundos, como na minha ausência tinham instalado a luz de forma provisória, e tinham deixado algumas tomadas, enquanto a mãe estava na cozinha entrei, liguei o rádio e me escondi. Segundo ela me contou, ao ouvir o barulho de vozes no quarto, foi ver o que era, e encontrou o tão sonhado rádio. Fico emocionado ao lembrar aquele dia e suas primeiras palavras: – Ai meu Deus, isso é coisa de meu filho, Senhor abençoai-o, não permita que mal algum lhe aconteça. Saí do esconderijo, e quando me viu, veio a mim e me abraçou, me beijou nas bochechas e aproveitei para lhe dizer: – Este é o presente do dia das mães. Em seguida lhe repassei as informações que tinha recebido, ela mexeu nos botões, trocou muitas vezes de estação, estava feliz, porém dentro dessa felicidade eu lhe sentia com um pouco de tristeza. Passados alguns momentos, pegou um papel, e quase que chorando disse ao me entregar uma carta: – Essa gente foi denunciar você no juizado de menores e me pediu para levar você amanhã até às 10 horas. Não senti medo nem raiva. A mãe me pediu para não contar a meus irmãos. No Juizado de Menores Eu, como sempre, só nos momentos de aperto era que me lembrava de Deus e Santa Sara Kaly. Assim quando senti que todos dormiam comecei a rezar e pedi a Deus e à Santa Sara que não me deixassem preso. Prometi que se não ficasse detido, ia andar por qualquer lugar e quem sabe um dia chegar até Estefani. No dia seguinte, antes do horário marcado, estávamos na sala de espera do juizado, não demorou muito e chamaram a mãe, só ela, eu sentado e em silêncio, evocava a Deus e Santa Sara Kaly. Meia hora depois a mãe saiu e mandou-me entrar. Um pouco assustado, confesso que estava, e pensando: porque não fiquei por onde eu andava, ou já era para ter ido embora daqui. Um senhor uniformizado me levou até um amplo escritório, atrás de uma grande escrivaninha estava sentado um senhor de terno e gravata, com cara de bravo; de um lado da sala, sentada num sofá, estava uma jovem senhora elegantemente vestida, com papel e caneta na mão, no seu olhar não havia nada de doçura e nem feminilidade. O homem que me trouxe ficou na porta, timidamente cumprimentei, ninguém me respondeu. O ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 274 senhor de terno, quase berrando e sem me olhar mandou sentar, tive a impressão de que lia um papel que estava na sua escrivaninha, levantou o rosto e à queima-roupa me disse: – Quer dizer que anda roubando! Lembro como se fosse hoje, me correu um suor entre frio e quente por todo o corpo. Não sei qual foi o tipo de voz que respondi: – Não senhor, eu não roubo, essa história foi inventada por um rapaz da vila que moramos porque ele não gosta de mim por eu ser negro. Em seguida me falou: – Eu sou o Juiz de Menores e quero que você me diga toda a verdade, caso contrário terei que encerrá-lo. – Sim senhor, respondi, sem querer olhei para a senhora que estava no sofá, notei que no seu rosto se desenhava uma espécie de sorriso meigo, no mesmo momento largou no sofá o papel e a caneta, só hoje compreendo o porquê desta atitude. O Juiz continuou: – A denúncia que fazem contra você é que você fugiu de casa, é verdade? – Sim senhor, respondi e contei o porquê e de que forma. – Na denúncia que eles fazem é que você anda com muito dinheiro, fruto de roubos, que trouxe relógios para mãe, irmãos e roupas que só rico tem condições de comprar. De onde tirou tanto dinheiro? – Senhor Juiz, para eu ganhar dinheiro eu faço isto, e como em todo lugar, comecei a fazer demonstrações, riam e aplaudiam de forma que me faziam lembrar tantos outros lugares. O Juiz pediu para chamar uma doutora do escritório ao lado, quando entrou me pareceu ver a Luzdari, secretária do Cônsul. Continuei fazendo destreza, depois contorcionismo, tudo que fazia, eram risadas, gritos, foi entrando mais gente, agora o próprio Juiz me tratava de Orteguita. A doutora do sofá me pediu, como muitos presentes não estavam desde o começo: – Orteguita, faz aquela prova de engolir a moeda e tirar pelo popô, não teve outra, essa prova sempre causou fortes risadas e palmas espontâneas, para simplificar as tantas perguntas que me eram feitas, tive de lhes contar as minhas aventuras desde que fugi de casa. Agora mais descontraído, contava tudo com gestos, sobretudo quando contei da cobra riram bastante. Um dos presentes comentou que lá na terra dele também tinha acontecido de uma cobra crescer dessa forma, a terra dele era Tolima. Contei dos plátanos que peguei do lixo, notei que sempre que contava essa parte as pessoas ficavam tristes e modificavam. Quando contava que depois de fazer bastante demonstrações, as pessoas me davam dinheiro, ficavam aliviados ou livres de um peso. A doutora parecida com Luzdari, a secretária do Cônsul, disse: – Ele é todo uma simpatia! Quando falou de simpatia, me lembrei da carta do Embaixador, tirei do bolso e entreguei para o Juiz, este a sua vez entregou para a doutora que estava no sofá e ela leu em voz alta. O Juiz, que tinha ficado com o passaporte, também leu em voz alta e fez uma pausa para pronunciar: profissão “artista”. A doutora me abraçou e me beijou na testa e dirigindo-se aos presentes disse: – Ele é muito queridinho! Mostrei-lhes a assinatura do Cônsul e a assinatura do Chefe ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 275 de Emigração e lhes falei que ele era o irmão do Cônsul. O Juiz ficou me olhando e disse: – Você é um lutador. Eles começaram a comentar as denúncias feitas contra mim, estavam todas escritas no papel que eles levaram, no meio da conversa e comentários, contei-lhes que morara na casa do Cônsul e porque tive que fugir. Contei do comportamento de Helena, tentando me incriminar de qualquer forma, quando contei os socos que dava no Firpo, a doutora se levantou e disse: – Ele não tinha culpa coitadinho, ele tinha todo carinho da dona, ou seja, a esposa do Cônsul, e não queria dividir com ninguém. Explicou-me muita coisa e falou de seu cachorrinho, foi tanto que me falou em defesa dos animais e o carinho para com seus donos, que comecei a me arrepender por ter judiado tanto do Firpo, até hoje quando me lembro dele sinto pena e arrependimento. O Juiz me disse que na denúncia que tinham feito me acusavam de incentivar os rapazes a fugir. – Não senhor, respondi, eu não falei para ninguém fugir, primeiro os pais deles os tinham proibido de falar comigo, o filho daquele senhor, que é o que mais me acusa, nunca gostou de mim, ele sempre foi muito orgulhoso porque os pais o mantém sempre bem vestido, enquanto nós andávamos com roupinhas surradas e remendadas, ele quase não gostava de se juntar conosco. Fiquei sabendo que o Nino também fugiu, um dia que ia para o centro com minha mãe ele nos alcançou, ele sempre gostou muito de mim e desde que voltei, queria me ver de perto. Senhor Juiz, eu não preciso roubar, em qualquer lugar que me apresento o público me dá dinheiro, ganho muitos amigos, alguns até me convidam para ir à suas casas, me apresentam suas esposas e filhos. Ele me perguntou: – O que você faz com o dinheiro? – Eu dou para minha mãe para ela poder fazer nossa casa igual a do Chepe, meu amigo. O juiz me perguntou: – Aquele Chepe da carroça que trabalhava com Evaristo? – Sim senhor. O diálogo continuou, lhe contei até da morte de Evaristo: – Ele ia me levar para trabalhar nas lojas dele, para me mandar a um bom oftalmologista, para me curar os olhos e poder estudar. Ao lembrar do Evaristo fiquei muito triste, tive a impressão de que ia se formar aquele nó na garganta, porém se dissipou. E me perguntou: – E porque não ficou trabalhando com os filhos dele? – Eles são muito maus e foi por isso que o Chepe não continuou trabalhando com eles. Todos me faziam perguntas e eu respondia. O Juiz me ofereceu café ou suco, preferi o suco, em seguida me trouxeram, tomei meio copo e pedi se podia levar aquele meio copo para a mãe, a doutora me respondeu que já tinham levado para ela. O Juiz mandou o guarda chamá-la, quando entrou notei em seus olhos que tinha chorado. O Juiz se levantou e a abraçou dizendo: – Dona Isabel, a ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 276 senhora tem uma jóia de filho, como é que a senhora permite que tratem seu filho de tal forma? Eu vou chamar aquele vagabundo que anda espalhando que seu filho é ladrão. O Juiz perguntou para a mãe: – A senhora também acredita que seu filho seja ladrão? Ela respondeu: – Como é que vou acreditar, se eu sei como criei meus filhos, e ainda menos ele, que sempre desde pequeno foi muito trabalhador, as pessoas que o conhecem gostam dele, justamente pela sua honestidade e a forma como ele trata as pessoas. Ela começou a chorar dizendo: – Agora vejo meu filho acusado de ladrão e todas aquelas pessoas que ele tanto ajudou, hoje lhe viram as costas. Senhor Juiz, isso me dói. As duas doutoras pegaram-na nos braços e lhe deram um copo de suco, uma lhe secou as lágrimas e a outra lhe dizia: - Senhora, seu filho vale ouro e como o Juiz disse, é uma jóia. Que menino com essa idade vai se preocupar em querer ganhar dinheiro para levar à mãe para construir sua casa? A gurizada só quer brincar e malandrear. A mãe disse: – Não só a casa, Senhor Juiz, já me deu um fogão daqueles modernos de três bocas, me deu um rádio de presente no dia das mães. O Juiz me disse: – Ortega, esses fogões são caros! Tu compraste? – Não senhor, seu Evaristo me deu de presente. Em seguida contei como tinha acontecido. A mãe falou de Chepe, da esposa, da Luzdari, esposa de Evaristo, abaixou a cabeça e em tom triste disse: – Pena que ele morreu! O juiz olha o relógio, era meia hora e disse: – Com Orteguita o tempo passou sem sentir, em seguida deu uma carta para a mãe e pediu para entregar para o pai de Joãozinho. Estou citando inclusive o tal do Geraldo, nós vamos apertar com ele para que fale a verdade, na segunda eles devem comparecer, vocês dão um pulinho na quarta para lhes contar o que falaram. Todos os presentes nos deram a mão de despedida, as doutoras me beijaram, o Juiz me abraçou. Saímos muito felizes e abraçados como dois namorados. Em casa e após almoçar, fomos entregar a carta e após a entrega voltamos para casa, eu fui dormir os meus dez minutos. Quando acordei fiquei deitado pensando, o que fazer no caso de não me acontecer nada no juizado, era sexta-feira e teria que esperar até quarta-feira. Falei para a mãe que gostaria de ir até o porto cobrar meus dias que trabalhei no posto de gasolina. Iria de trem e voltaria no outro dia, também de trem, convidei meu irmão Marino para ir junto e ele aceitou. Dona Maria ficou muito feliz de conhecer o filho mais velho de sua amiga de infância. Depois de almoçar, convidei meu irmão para ir até o cais do porto, queria saber quando chegaria o navio do meu amigo, o cozinheiro italiano. A informação que recebi era de que esse navio não estava mais fazendo a rota da América do Sul, a nova rota era Nova Iorque, Japão e alguns portos asiáticos. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 277 Fomos ao posto, me encontrei com Roldão, ficou contente ao me ver, imediatamente me entregou quatro pesos que dona Matilde tinha me deixado. Meu irmão, que não acreditava que eu soubesse dirigir, teve a oportunidade de me ver. Roldão me pediu que quando ele tirasse um caminhão de determinado lugar, eu deveria colocar uma caminhonete que estava naquele lugar mal estacionada, e tive a satisfação de meu irmão andar junto. No dia seguinte voltamos para casa, a primeira coisa que meu irmão fez foi contar para a mãe que eu sabia dirigir. Na quarta-feira estava com a mãe no juizado, no horário marcado. Na sala, além das três pessoas do primeiro dia, tinha mais um senhor. O Juiz veio ao nosso encontro, a primeira coisa que nos falou todo contente foi: – O semvergonha confessou toda a verdade na primeira pergunta que a doutora lhe fez. Quando ela lhe perguntou por que havia me desmoralizado dessa forma, dizendo que tinha me visto sendo levado pela polícia por ter roubado, respondeu que ele pensava que Ortega tivesse morrido.Quando a doutora lhe disse que por essa calúnia teria que ser preso, desandou a chorar, sabe o que eu disse para ele? Não seja covarde, Ortega nos enfrentou sem soltar uma lágrima. Entraram outras pessoas na sala, e o Juiz me apresentou a elas, elogiando o meu trabalho. Em seguida nos falou que já sabiam para onde tinha fugido o Nino, que a irmã dele também sabia. Era igual que o Geraldo, eles tinham denunciado que o Geraldo quase apanhou porque sabia muita coisa e a doutora, apertou com ele e ele já foi falando tudo que sabia. Eles começaram a rir ao lembrar da cara de pau que o tal pai do Joãozinho fez quando o Diretor que estava presente, lhes disse: – Sabem que, de acordo com a lei, vocês devem ser presos e o Geraldo mandado à correção de menores pela calúnia que levantaram contra o Negrinho, sabem o que está sofrendo a mãe dele? Aquele rapaz é um artista e tem condições de ganhar qualquer dinheiro e em qualquer parte do mundo. O pai do Joãozinho, a todo o momento fazia gestos como querendo chorar, e a doutora perguntou para o Geraldo: – Você o que faz? Ele respondeu: – Vendo jornais. – E ganha? – Algum pouquinho. – E que faz com o dinheiro? – Compro roupas, sapatos e ajudo a mãe com a comida. E a doutora tinha lhe dito: – E vocês sabem para que o Negrinho lutou? É para construir uma casa para a mãe, e os irmãos poderem estudar, já que ele, por causa do problema nos olhos não pode. Vestir bem, ele tem que andar bem vestido por causa da profissão, ele é um artista! O Diretor lhe disse: – Podem ir embora, o que vocês devem é ir pedir desculpas à mãe e ao Negrinho por tanto sofrimento que vocês lhes têm causado. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 278 Quando eles saíram, se ouviram gritos e eles foram ver pelas janelas, era a mãe do Geraldo querendo se pegar aos socos com o pai do Nino, que era o mais bravo e estava com o Geraldo. Depois de rirmos dos comentários, o Juiz me disse: – Eu vou lhe dar uma carta para que quando esteja trabalhando não lhe incomodem, só que ela também tem que estar assinada pelo Diretor e ele agora não está, venha amanhã à tarde, pelas 16 horas. Ao sair o doutor me disse: – Negrinho, traz algumas provas para o Diretor ver. Confirmei. Às 16 horas eu estava firme fazendo rir um grupo grande de pessoas que se tinha reunido para assistir, entre elas o Diretor. Lembro tanto esse dia, a última prova que fiz foi tirar o soutien da doutora, que em princípio chamava a do sofá, o nome dela era Miriam. A prova consistia em tirar o soutien sem tirar o vestido e sem tocar nela, a prova era feita através do lenço de algum dos presentes, que entregava para ela colocar no peito, claro que por dentro do vestido, deixando uma pontinha para fora, que em determinado momento, e sob o meu comando, ela puxava, e na outra ponta o soutien estava amarrado. Ela tinha se tornado minha amiga, por isso fiz com ela. É difícil descrever os gritos, as risadas, a hilaridade dos presentes na conclusão da prova. A doutora foi a primeira a me abraçar demoradamente, a alegria era geral, hora e meia quase fazendo provas. Após a doutora ter recolhido dinheiro entre os presentes, o Juiz me perguntou: – O que pretendes fazer daqui para frente depois de se ver livre do peso desses bandidos? Respondi-lhe que gostaria de voltar àquele país onde fora tão bem tratado e tinha ganho um bom dinheiro, e que também ainda me faltavam muitas cidades para trabalhar. Falei-lhe que sentia falta daquele carinho que recebia sempre das pessoas, nos lugares onde chegava, só que iria ser difícil voltar porque o Cônsul tinha me dito que sempre que saísse fora do país tinha que levar uma autorização da mãe, assinada por ela e pelo Juiz de Menores do Estado. Rápido o Juiz disse: – Se for por mim já está assinada, o senhor Diretor também assina e a doutora chefe também assina, em seguida pegou uma carta padrão já escrita, assinou e carimbou, o Diretor fez o mesmo e também a doutora. Colocou dentro de um envelope e me disse: – Aqui onde está o nome de sua mãe ela tem que assinar e colocar o número da identidade, isso quero ver, se ela assinar você está com tudo e pode viajar para qualquer país do mundo. Em seguida me disse, preste atenção e começou a ler uma carta, textualmente não me lembro, porém o começo era este: O Juiz Alexandre Tudor, com identidade tal, registrado em tal, etc... Fazia uma declaração de ser meu amigo pessoal, me recomendava como rapaz idôneo e pedia para as autoridades colaborarem no meu trabalho, foram seis pessoas que assinaram. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 279 Ao me despedir, o Juiz disse: – Se a mãe não assinar, traga ela aqui que a convenceremos a assinar. Já na rua, muito feliz com minhas cartas, só pensava a forma de fazer a mãe assinar. Quando cheguei meus irmãos já estavam em casa, Marino não poderia ler a carta porque ele explicaria para a mãe que ela estava me autorizando a viajar para fora da Colômbia e seguramente não assinaria. Antes de chegar em casa escondi as cartas, quando a mãe me perguntou o que o Juiz queria, lhe respondi que ele não pode atender porque tinha muita gente e que era para ir no dia seguinte pelas 8 horas. Autorização para viajar ao exterior No dia seguinte saí junto com meus irmãos, eles foram para a escola e eu fui em direção ao centro, fiquei dando voltas pelas ruas, uma hora depois voltei para casa, fazendo de conta que estava com pressa, tirei a carta de recomendação e dei para a mãe, quando ela estava lendo falei: – Mãe, assina este papel que tenho que levar para o Juiz ligeiro que é o comprovante de que nada devo à justiça, eu tinha a caneta na mão, entreguei para ela e ela assinou, eu saí correndo, fazendo de conta que ia entregar o papel para o Juiz, a mãe ficou lendo a outra. Quando regressei ela me disse: – Viu meu filho, não há mal que para bem não seja, eles tentaram lhe fazer mal, olha que carta linda que você ganhou, é claro que a outra nunca mostrei para a mãe. Após os nossos espíritos mais calmos, uma noite conversando com a mãe, lhe falei a respeito de viajar para alguas cidades e ganhar algum dinheiro, caso contrário daqui a pouco íamos começar a gastar o dinheiro da casa em comida. Ela concordou, me aprontou algumas roupas e dois dias depois saí após ter estudado o mapa. Procurei não ir nos cidades onde já tinha estado com Manolo. Na primeira saída fiquei dois dias fora, não foi muito que ganhei, porém muitíssimo mais do que ganharia no mercado. Lembrava que no mercado ganhava oito a dez, ou no máximo doze centavos durante todo dia, agora trabalhando no máximo duas horas ganhava de quatro a seis pesos, claro, em comparação ao que ganhava no exterior era pouco, mas de toda forma estava bom. Eu nunca fui rancoroso nem vingativo, digo isto porque na terceira saída que fiz, estando numa cidade à procura de um lugar para trabalhar na praça central, de pronto vi sentado um rapaz que me pareceu conhecido, quando olhei ele me sorriu, e ao chegar perto dele, a surpresa, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 280 era o Joãozinho. Foi difícil reconhecê-lo à primeira vista porque estava cabeludo e as calças sujas, lhe falei do desespero dos pais e lhe pedi para voltar para casa, me respondeu que não tinha dinheiro para a passagem, lhe prometi que ia trabalhar e depois lhe daria o dinheiro, concordou. Ele ficou olhando eu trabalhar e quando terminei veio e me disse: – Bonito seu trabalho! Convidei-o para jantar, lhe paguei o quarto para dormir porque, segundo ele me disse, dormia debaixo dos bancos. No dia seguinte e após tomar café, lhe dei cinquenta centavos para a passagem, que custava trinta e cinco centavos, para voltar para casa, me despedi e pedi para fazer o favor de dizer à minha mãe que eu estava bem e que voltaria em três ou quatro dias. Eu queria aproveitar que havia várias cidades próximas onde residiam pecuaristas e me renderiam alguns bons pesos. Cinco dias depois de ter despedido o Joãozinho, estando numa cidade onde se ouvia música por todo lado. Depois de ter ganho uns pesos, me dirigi em direção ao mercado à procura de uma barraca para jantar, quando vi o Joãozinho encostado num poste, ainda sujo, cabeludo, pescoço preto de sujeira, quando me viu se surpreendeu. Ao lhe perguntar o porquê de não ter ido para casa, me respondeu que ele tinha comprado a passagem e que se sentou num banco a esperar que encostasse o ônibus e pegou no sono, e quando acordou o ônibus já tinha ido embora e não quiseram mandar-lhe em outro ônibus e nem lhe devolveram a passagem. Convidei-o para jantar e depois lhe falei para ir ao hotel onde eu estava, ficou aparentemente contente. No hotel peguei uma roupa minha e lhe pedi para tomar banho e trocar a roupa suja e que depois me esperasse, eu iria até a farmácia comprar um remédio para os meus olhos e depois o levaria para cortar o cabelo. Com tudo concordava calmamente, enquanto tomava banho saí e fui para o correio e mandei um fonograma urgente para os pais dele, lhes informando o povo, o endereço e o hotel onde estávamos. Quando voltei, ele tinha tomado banho e estava bem vestido, em seguida levei-o na barbearia para cortar o cabelo, depois damos umas voltas pelo centro, tomamos um lanche e então fomos dormir, ele em um quarto e eu em outro. Eu calculava que o fonograma deveria chegar durante a noite, e que depois do meio-dia alguém estaria à procura do filho. No dia seguinte lhe convidei para tomar café e depois fomos dar umas voltas. O ônibus chegava todos os dias ao meio-dia e convidei-o para irmos ao hotel descansar, porque à tarde eu tinha que trabalhar e deveria estar descansado. Eu calculava que se o ônibus chegasse ao meio-dia, alguém deveria estar no hotel à meia-hora, poderia ser o pai ou a mãe. Meu cálculo deu certo, ao meio-dia e vinte ouvimos a voz deles, nós dois estávamos sentados conversando, quando o pai e a mãe entraram. A mãe ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 281 correu para o filho, o abraçou e beijou, quase que chorando, o pai pegou-o pelo braço, e sem sequer ter me cumprimentado, saíram. Na portaria ouvi que perguntaram quanto ele devia e o porteiro respondeu: – O jovem Ortega pagou tudo. Através da janela vi que levavam o rapaz, quase que arrastando. Ele conseguiu olhar para trás e gritou: – Tchau Negrinho. Deume a impressão que ele queria se safar deles e não conseguiu, deram a volta na esquina e desapareceram. Fiquei dez dias fora de casa, no meu regresso a mãe me contou que o Joãozinho tinha ido lhe visitar, escondido dos pais e tinha lhe contado que eu era um cara muito bacana. Que tinha lhe dado comida, roupa limpa, feito cortar os cabelos e levado para dormir no hotel, porque ele dormia nos bancos dos parques, e tinha lhe dado o recado que eu lhe mandei. A mãe também me disse que ele agora, sempre que passava em frente de casa, procurava cumprimentá-los. Fiquei sabendo que ele tinha contado tudo para a rapaziada, como era que eu ganhava dinheiro, e agora a onda da gurizada era praticar, dar volta cambotas, caminhar com as mãos, e já tinham até rola-rola, fiquei sabendo que o Roberto foi parar no hospital, porque ao dar uma volta cambota caiu mal de jeito e fraturou um braço, e os pais dele tinham me culpado. Dois dias depois saí de novo e fiquei quatro dias fora, no meu regresso soube que o Toneno tinha fugido de casa e tinha deixado uma carta para os pais, onde lhes dizia que não suportava mais essa vida de pobreza e de um pai bêbado, e ia fazer como o Negrinho, que depois de ser um dos mais pobres da vila, regressara bem vestido e cheio da grana. A irmã do Nino também tinha fugido, e ninguém sabia se sozinha ou provavelmente com algum rapaz, ou quem sabe se com o Negrinho. Porém o Joãozinho me defendia firmemente, ademais porque a guria tinha 18 anos e o negrinho tinha só 14, mesmo assim, no dia seguinte ao ter chegado de uma viagem, os pais dela foram à minha casa perguntar se eu sabia alguma coisa a respeito da filha. Meu irmão Marino, que era pavio curto, e além de ter um pouco de estudo e saber falar, lhes saiu com uma tremenda grosseria ao lhes dizer: – Quer dizer que se um dia a sua filha ficar grávida o senhor vai vir perguntar ao meu irmão se ele é o pai? O homem não gostou muito e foi necessário a intervenção da mãe e da mulher dele para que não se pegassem a socos. Eu vi com muita tristeza os meus outros irmãos armados com paus, dispostos a nos defender, sorte que a mulher puxou o marido e foram embora. Novamente girando o mundo Para organizar o meu roteiro de viagens comprei um mapa, Marino me ajudou a marcar as cidades que tinham mais de vinte mil habitantes. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 282 Marcamos várias cidades dos estados de Caldas, Antioquia e Atlântico. Com a ajuda de meu irmão falei para a mãe que viajaria para os povos do norte e como pretendia chegar até Barranquilha, passando por Medellín, que eram cidades grandes, com muitos parques e que por esta razão demoraria um pouco para voltar, mas que eu iria lhe escrevendo e lhe mandaria dinheiro através do correio. Ela concordou e ainda me disse: – Vai meu filho, que Deus e Santa Sara Kaly hão de proteger você e pode ser que quando você regresse esta gente esteja mais calma e não nos incomode mais. A primeira passagem fui de ônibus para Armênia, boa praça, fiquei dois dias, em seguida Pereira, também bom mercado e também fiquei dois dias, a seguinte foi a cidade de Manizales. No dia seguinte, após terminar de trabalhar, chegaram onde eu estava dois monosábios da praça de touros de Cali, imaginem vocês a minha alegria encontrar dois amigos da minha terra e nada menos que o Lorenzo, que foi quem mais me ensinou a conhecer a touromanquia. Depois dos abraços e de falar da minha apresentação e de me dar os elogios a respeito, me informaram que estavam organizando uma tourada e já me convidaram a participar como peão de brega, é claro que aceitei com muita alegria e já comecei a sonhar de me ver de novo no redondel. Aquele domingo amanheceu nublado, teve pouco público e não foi muito o dinheiro que recebi, porém restava a satisfação de haver toureado com amigos. O empresário era um senhor muito esperto e aproveitou que havia um circo na cidade, organizou uma corrida noturna e acertou com o dono do circo para ser levado um leão, é claro que dentro da gaiola, onde ele entraria, mesmo estando o leão lá dentro. O domador deu várias informações ao senhor empresário, para seu descanso prometeu que alimentaria o leão minutos antes dele entrar na gaiola, porque estando o leão bem alimentado não haveria perigo de lhe atacar, também prometeu estar dentro da gaiola o domador para maior segurança. A propaganda foi intensa, da forma que ele fez a propaganda dava a impressão que ele entraria na gaiola e até tocaria e brincaria com o leão. O público foi em massa, não havia lugar vazio nos tendidos. Primeiro foram tourados quatro, podemos dizer terneiros, eram bem bravos, eu sentia uma certa vergonha de tourear terneiros, assim mesmo tive que colocar dois pares de banderilhas. Depois de toureados quatro terneiros foi anunciado com muita ênfase a entrada do homem na gaiola do leão, o locutor anunciava aos gritos: – Pela primeira vez um homem que nunca esteve perto de um leão, hoje, agora, neste momento, ele entrará na gaiola do leão. Vários funcionários do circo empurraram a gaiola até o centro do redondel, dentro da gaiola estava o domador junto com o leão, que estava acocorado, e o domador em pé. Os ajudantes ficaram cada um do lado de fora das portas, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 283 que eram de correr, eles estavam vestidos com trajes coloridos, idem o domador. No meio dos gritos do speaker anunciando a tal façanha, em seguida apareceu o nosso homem vestindo terno e sapatos brancos e chapéu branco também, só a gravata contrastava. Eufórico, sorridente, levantava os braços, ia girando para poder cumprimentar o público que aplaudia sem parar. Uma escada facilitava a subida na gaiola, ele agora estava todo nervoso, teve de ser ajudado e quase puxado para subir a curta escada da gaiola onde estava o leão, de longe se notava seu nervosismo, dava a impressão que tremia. A uma ordem do domador, foi aberta pouca coisa uma das portinholas, nosso amigo, tremendo como vara verde, entrou, não demorou nenhum segundo e já saiu, não desceu a escada, pulou, enquanto o speaker fazia propaganda de algo inédito, nosso personagem desapareceu. O público ficou mudo, o silêncio era profundo, todos estavam estáticos. O primeiro que conseguiu sair do ostracismo no meio do silêncio, conseguiu se ouvir que ele disse: – Nós esperávamos mais, nos informaram que ele entraria na gaiola do leão e ele entrou. Outro falou em voz alta: – Foi uma grande piada. As que não se conformavam eram as mulheres, que lhe chamavam de safado, trambiqueiro, gato cafajeste e por aí em frente. Nos jornais do dia seguinte eram só charges e críticas ao empresário, só que nada disso lhe importava, o que lhe interessava era o dinheiro que recebera. Apesar de tão materialista, não me pagou tão mal, eu estava muito contente estando com meus amigos. Falaram-me do cara que se fazia passar por espanhol, me contaram que estava preso, não comentei nada a respeito dele. Contei-lhes que tinha permanecido no exterior desde que sumi e com meu espetáculo nas praças tinha ganho um bom dinheiro e que pretendia voltar para conhecer outros países. Conversamos bastante e lembramos muitas coisas. Por último me convidaram para visitar o Nevado del Ruiz, uma fazenda onde o proprietário só criava gado de raça, touros bravos para lida, o proprietário nos recebeu atenciosamente, primeiro foi café bem quentinho com variadas misturas, depois nos levou para ver o gado e por último nos convidou para tomar banho de águas termais. Apesar do frio, a água era bem quente. Edmundo, que era o nome do proprietário, não quis que fôssemos embora sem antes almoçar, então ficamos. Sua família era numerosa, entre esposa, filhos, filhas, sogra, cunhadas, etc., todos nos foram apresentados. Na hora do almoço só se falou do tal empresário. Edmundo dizia: – Aquele desgraçado estragou a praça, o público não vai mais acreditar no que a gente pretender fazer. Na despedida me disse: – Estás convidado a participar como banderilheiro de uma corrida que estamos organizando, vai ser um festival taurino, Lorenzo te explicará o programa. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 284 A primeira coisa que Edmundo fez foi criticar pela imprensa o tal empresário, dizia que isso que ele tinha feito era lesar o público, em algum trecho dos jornais prometia organizar um festival taurino para mostrar àquele senhor como deve ser tratado o público. Lorenzo me informou que o festival seria na sexta semana, aproveitando um feriadão, eu deveria estar uma semana antes para organizar a programação. Prometi voltar e nos despedimos. No dia seguinte viajei para uma cidade perto e continuei viajando para cidades pequenas no mesmo estado de Antioquia, porém tratava de não me afastar muito, pendente que estava do festival taurino. Conforme prometido, uma semana antes eu já estava na cidade Por todos os cantos era festa, já tinha sido eleita a rainha de beleza do estado, quem tinha ganho era uma jovem muito bonita, de um povo vizinho. Nos cartazes e nos volantes eu figurava como novilheiro, título que ainda não tinha. Anunciavam a presença da rainha com todo seu séquito, também anunciavam a apresentação do touro passarinho, propriedade do criador de gado de casta no Nevado del Ruiz, senhor Edmundo. Para maior atração da tarde tourearia um toureiro bastante conhecido na cidade porque era mudo. Meus colegas e amigos me receberam com muita alegria e já me foram mostrando a programação. Faço um parênteses para contar o que me foi contado do toureiro mudo. Era uma tarde de touros, muito ensolarada, touros bons e de raça, como os outros toureiros, o toureiro mudo também se destacava, porém num determinado momento resvalou na areia e meio que perdeu o equilíbrio, o touro veio e o levantou, só que no momento que o touro o levantou, bateu-lhe no peito e o mudo gritou alto: – Mamãe! E dizem que foi a única vez que se ouviu ele falar. A corrida em si esteve muito bem organizada, a rainha com suas damas deram a volta no redondel saudando o público, que entusiasmado, batia palmas. O público também adorou a apresentação do touro passarinho. O seu proprietário, Edmundo, abriu o touril e passarinho saiu com fúria atrás do toureiro, que estava perto de um burladeiro e quando passarinho chegou perto se escondeu nele, passarinho era pura fúria, queria demolir o burladeiro. Previamente tudo combinado, o outro toureiro se deixou ver e o touro correu atrás dele e este rápido se escondia, era tanta a fúria de passarinho que queria destruir os burlandeiros com os chifres. Como tudo estava combinado, ninguém deveria tourear o passarinho, no momento que ele ia atrás de um toureiro, a toda velocidade, Edmundo entrou no redondel, deu um assovio e o passarinho parou, olhou para Edmundo e se dirigiu a passo lento para ele, e quando chegou perto lhe passou a mão pelo corpo e lhe fazendo cafuné perto dos chifres, deu uma batidinha nas patas dianteiras e o passarinho levantou uma, a guisa de cumprimento, o público delirava, aplaudia. Tudo o que o ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 285 Edmundo fazia, o passarinho aceitava calmo. Ele tirou sal do bolso e o passarinho comeu nas mãos do Edmundo, foram muitas as demonstrações e o público adorou. Para despedida, Edmundo subiu no lombo do touro e se deitou, depois desceu, tocou-lhe o pescoço e disselhe: – Vamos! E os dois saíram juntos até desaparecerem no touril. Público e imprensa elogiaram o festival, eu feliz apliquei meus três pares de banderilhas e fiz mais de uma dúzia entre verônicas e chicuelinas, além do dinheiro que recebi. Mandei parte do dinheiro recebido para a mãe e pedi para me responder à cidade de Medellín. Percorri Caldas e Antioquia, até chegar a Medellín onde encontrei a carta da mãe, que me informava do recebimento do dinheiro. Respondi pedindo que me escrevesse à cidade de Barranquilha. Demorei aproximadamente quarenta dias até chegar à Barranquilha, no correio tinha carta onde a mãe me informava do recebimento do dinheiro que eu lhe enviara desde Medellín. Voltando a Barranquilha: a carta do Cônsul Uma vez em Barranquilha, me dirigi ao cais do porto onde tinha desembarcado, fui à procura do oficial irmão do Cônsul, eu estava com certo temor de que o irmão tivesse se comunicado com ele e lhe contado da minha fugida da sua casa, ao mesmo tempo fiquei pensando o porquê do temor se não tinha feito nada que me desabonasse. Ao chegar não encontrei o oficial, só estaria de turno no dia seguinte às 6 horas. Como estava se armando um temporal, voltei para o hotel, não demorou e a chuva começou. Deitei-me, lá fora a chuva caía com força e eu deitado pensava: Será que viajo para o exterior para visitar meus amigos? Comecei a sonhar com o reencontro com Estefani, a alegria quando me visse de novo, estava neste pensamento quando senti alguma força me puxar. Sentei-me na cama, sacudi a cabeça e comecei a falar comigo mesmo: chega de sonhar, é melhor não pensar em ninguém, basta o que me aconteceu por tanto sonhar com a garotada da minha vila, que tínhamos nos criado juntos e, ao invés de encontrar amigos, encontrei problemas para minha mãe e para meus irmãos, e sobretudo para meu irmão Marino. Alguma coisa me empurrava para aquele país. Como a chuva continuava, não trabalhei aquele dia. No dia seguinte, às 8 horas, estava no cais do porto, não tinha movimento, tudo vazio, nada de gente, perguntei a um soldado pelo oficial e me levou até ele. Quando me viu, veio ao meu encontro sorridente, me abraçou, me fez entrar no escritório, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 286 o soldado foi embora e nós dois ficamos conversando. Contei-lhe alguns trechos da chegada à minha vila, mostrei-lhe a carta de autorização para viajar, menti quando falei que a mãe mesma tinha ido ao Juiz, também mostrei a carta de recomendação que o Juiz me deu. No meio da conversa me disse: – Eu escrevi para meu irmão e ele me respondeu. Senti um calafrio quando ele foi procurar a carta e começou a ler, mais um susto quando ele leu: De Ortega te direi que Amanda sentiu a ida dele embora, sua ausência nos deixou um pouco tristes, seguramente ele te contou o motivo da sua ida. Mano, se por um acaso tornar a lhe ver, fala para ele que nós lhe queremos muito. Mano, ele é um bom menino, se ele precisar, e tu puderes, ajuda-o. Senti que ele estava curioso para saber o motivo da minha viagem, ou seja, a saída da casa do Cônsul e contei-lhe tudo conforme tinha acontecido. Ele ficou um pouco pensativo e em seguida me argumentou: – É que a Helena e Amanda foram criadas juntas e a Helena tem muito ciúme de Amanda, não falou mais a respeito. Perguntou-me o que pretendia fazer agora. Falei-lhe do desejo de viajar de novo para aquele país e visitar algumas cidades que não havia visitado e rever alguns amigos, e ele sem demora disse: – Vamos pegar o visto, chamou o motorista. Saímos e a poucas quadras estava o consulado, no escritório uma senhorita nos atendeu. O oficial explicou o motivo da nossa visita entregou-lhe o passaporte e a carta do Juiz. A senhorita entrou, porém não demorou e apareceu o senhor Cônsul pedindo desculpas por não ter vindo pessoalmente receber-nos. Pela conversa deles notei que já se conheciam. Depois de comentarem alguns acontecimentos entre eles, e muitas risadas, acompanhadas com gostoso cafezinho, pegou meu passaporte junto com a carta do Juiz, após ler me perguntou: – Quer dizer que quer voltar para minha terrinha não? – Sim senhor, respondi. – Quanto tempo vai permanecer? O oficial respondeu por mim: – Não sabemos quanto tempo, meu irmão vai segurar ele lá, ele vai para a casa do meu irmão, que é o Cônsul lá. Pelo que falaram os dois Cônsules também se conheciam, me deu visto por um ano. Como naquele dia não haveria movimento de saída e de chegada de navios, o oficial convidou ao senhor Cônsul para ir jantar com outros oficiais do porto, o jantar seria peixe preparado por um especialista muito conhecido na cidade e que poderia levar a esposa, que era tudo informal. Ao sair do consulado me perguntou quando queria viajar, respondi que o mais breve possível. Fomos ao seu escritório e me deu um bilhete de passagem gratuito para o dia seguinte às 14 horas, me convidou para estar no jantar à noite. Despedi-me, dei uma volta pela cidade, sobretudo pelo centro. À noite estava no jantar, recebi aplausos e felicitações. Na hora de me despedir, o oficial me entregou uma carta que era para fazer o favor de entregar para o senhor Cônsul, seu irmão. Diga-se de passagem, fiquei uma hora na capital e a carta nunca ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 287 entreguei. Após me entregar a carta, o oficial informou-me que no dia seguinte não estaria no cais na hora da minha saída porque passaria o turno às 6 horas, e já nos despedimos, e me disse que poderia ficar tranquilo que não teria nenhum problema para viajar, mandou lembranças para o irmão, Amanda, a cunhada, também para Luzdari e o Salazar, nunca cheguei até eles para dar as lembranças. Embarquei no dia seguinte sem nenhum problema, desembarquei no mesmo lugar onde me despedi de Gustavo, em seguida peguei um ônibus para a capital e sem demora, já na capital, peguei ônibus para um das cidades que o alemão tinha me recomendado, e por querer chegar ligeiro na capital, não tinha parado. Bem documentado que estava, não foi difícil para eu conseguir quarto em um hotel. No dia seguinte quando estava recolhendo o dinheiro que o público tinha me dado, após minha apresentação, chegaram dois guardas e me levaram para a delegacia. Fui entregue ao delegado e lhe informaram a meu respeito e que eu estava formando tumulto na praça, em seguida foram embora. O delegado, um moreno muito simpático me perguntou: – O que foi meu filho? Expliqueilhe, mostrei-lhe os documentos, ele leu as cartas, viu o passaporte e me perguntou: – Eles viram estes documentos? – Não senhor, respondi. Ouvio dizer em voz baixa: são uns bestas. Falou-me diversos assuntos e, por último, disse: – Meu filho, não sou deste país, estou aqui porque estudei, me formei, me casei com uma moça daqui e os meus filhos também são daqui, e é por isso que trabalho aqui, este é um bom país, só que neste momento o governo atual não permite nenhum tipo de grupos reunidos em lugar nenhum. Trabalhar dessa forma aqui vai ser muito difícil, tem que ir longe da capital ou ir para o país vizinho, lá não tem esses problemas. Pegou um mapa e me marcou o roteiro que deveria seguir até chegar à fronteira. Desejou-me boa sorte e me despedi. Naquela noite dormi na cidade. Não fiz caso do delegado e no dia seguinte viajei para a cidade vizinha, que estava a 160 quilômetros. Naquela tarde não trabalhei, fui para a delegacia, falei com o delegado, o meu desejo era de me apresentar na praça no dia seguinte. Mostrei-lhe meus documentos, me deu um papel onde me autorizava a trabalhar. Naquele dia havia pouco movimento, mesmo assim peguei uns troquinhos. Faltava ainda a última cidade das que o alemão me aconselhara, e no dia seguinte eu já estava lá. Era mais morto que o anterior, pouca gente nas ruas e não tinha um parque sequer, vi que era difícil reunir o público e decidi aceitar o conselho do delegado e viajar para o país vizinho, que estava à 60 quilômetros da fronteira, ônibus só haveria no dia seguinte ao meio-dia. Voltei para o único hotelzinho que havia de frente à rodoviária e as passagens eram vendidas no próprio hotel, enquanto a rodoviária era uma espécie de garagem, onde entrava um só ônibus.. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 288 Outra vez no exterior O ônibus era para vinte passageiros, embarcamos doze, dentro do ônibus ninguém falava, pelo que notei alguns eram do país vizinho. Em menos de uma hora estávamos na fronteira, todos desembarcamos, outros passageiros que esperavam já foram embarcando e em seguida o ônibus partiu. Fiquei olhando o ônibus ir embora, me sentia um pouco nervoso, não sabia o que me esperava neste novo país. O pessoal tinha formado uma pequena fila para carimbar a saída do país. Há umas quadras daí estava o posto de imigração do outro país. Um rio dividia os dois países e atravessando uma ponte a poucos metros estava a alfândega. As pessoas que tinham muita bagagem utilizavam carregadores para atravessar a ponte e apenas recebiam seus passaportes carimbados, saíam rápido para fazer a travessia. Eu procurei ficar por último, como carregava só uma bolsa não precisei carregador e fui indo devagar. Uma vez do outro lado, também era o último da fila, não sei por que me acompanhava um certo receio, uma espécie de medo e tratei de ficar distante dos outros. Sem muita demora me apresentei, entreguei a carta de autorização e o passaporte. O guarda me olhava e sorria. No fundo da sala havia mais funcionários, uns escrevendo à máquina e outros revisando papéis. O guarda que me atendia pegou meu passaporte e foi até o resto do pessoal do escritório. Quando vi o guarda ir para o fundo da sala com meu passaporte levei um tremendo susto, meu coração pulou e quase sem mover os lábios disse: minha Santa Sara não me abandone! Em seguida ouvi o guarda que falou em voz alta: – Senhores, estamos recebendo um menino que é um artista colombiano. Ele estava com o passaporte aberto e mostrava para todos a parte onde dizia “artista”, um por um foi se levantando e veio de perto olhar o passaporte. Enquanto todos olhavam, o guarda me olhava sorridente e me disse: – Chegue aqui perto meu filho. Eu ainda sem saber ao certo meu futuro, estava sempre com o pensamento em Santa Sara Kaly. Um dos guardas me perguntou: – Paisanito, o que você faz no teatro? Sem demora e confiante, peguei o baralho e comecei o espetáculo, a cada prova riam e aplaudiam, com o barulho das palmas e as risadas, foram entrando mais guardas, também nesse momento entrou um guarda de uniforme um pouco diferente, parecia ser o chefe, porque na entrada dele todos lhe renderam continência. Agora era ele que tinha meu passaporte. Quando parei de fazer provas ele me levantou, me deu um beijo na testa e falou para todos: – Ele tem a mesma idade do meu filho Pipo, o mais velho, porém ele é um bosta teimoso que nem mosca e pouco ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 289 fala, não faz nada e só quer andar grudado na saia da mãe. Eu que tinha escutado um pensamento não sei de quem, aproveitei e falei para ele: – Senhor, o teimoso calado às vezes é sábio. Todos bateram palmas e muitos até me abraçaram. Na casa do chefe da gendarmeria Eram muitas as perguntas que me faziam, numa das respostas falei que me apresentava nas praças e que recolhia dinheiro do público, em seguida começaram a tirar dinheiro dos bolsos e foram me dando. Perguntaram-me se tinha algum compromisso, respondi que não, me pediram para ficar uns dias para eles organizarem uma festa e eu poderia apresentar meus números, e ao invés de cobrar entrada, cada um colaboraria com o que quisesse. Naquela mesma tarde cada um assumiu uma tarefa, o local seria a cancha de esportes do salão paroquial. O pai de Pipo, chamado por todos de Capitão Gaspar e que era o chefe da gendarmeria, me convidou para permanecer na sua casa. Uma vez lá me apresentou a sua esposa Celi, o filho Pedro Pablo, chamado de Pipo, que era o mais velho, o segundo chamava-se Fortunato e era chamado de Nato, e a terceira era Celina, a caçula, e era chamada de Lina. Fui muito bem recebido pela família. Lembro que desde o primeiro momento me trataram como se eu fosse um membro da família. O Capitão Gaspar me tratava como se eu fosse mais um filho, o Nato aficionado por escultura, me levou no seu quarto para me mostrar suas esculturas todas feitas em barro, eram santos, bustos de vultos da história nacional e do mundo, a maior parte estavam quebradas, porque quando o barro secava se esfarelavam sozinhas, ele já tinha feito algumas exposições na casa paroquial. O povo não era muito grande e os habitantes eram familiares da gendarmeria, pescadores, agricultores e funcionários de uma fábrica de beneficiamento de peixes. O Nato também tinha feito uma exposição na cidade ali perto e na prefeitura, por isso no povo todos o conheciam como o artista da fronteira. Gostei muito do Nato, ele também simpatizou comigo e pediu ao pai para que me deixasse dormir no quarto dele. O Capitão e dona Celi não se negaram e arrumaram uma cama no quarto dele. Fiquei com Nato até que fomos chamados para jantar, na mesa me fizeram muitas perguntas, como um guri da minha idade andava tão longe do seu país com passaporte e ainda com autorização da mãe. Aproveitei para mostrar a carta que o Juiz de menores tinha me dado e também a carta do Embaixador, que ainda não tinha mostrado, e com tantas perguntas, me vi obrigado a contar o porquê fugi da minha casa a primeira vez. Contei as ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 290 minhas aventuras, minhas andanças, contei-lhes da mágoa, da tristeza que sentia pelo recebimento de maus tratos dos meus antigos amigos da vila onde morava, contei da cobra, agora eu tratava de teatralizar de forma cômica, para evitar que o pessoal ficasse triste, mas assim que eu contava a parte que peguei os plátanos do lixo, as senhoras ficavam tristes e às vezes os homens também, embora não querendo contar essa parte não adiantava, ela estava ligada ao resto da conversa. O Nato ficou muito feliz quando falei que eu também fazia esculturas, que não eram tão expressivas como as dele, lhe contei que um amigo espanhol me ensinara a trabalhar com o ferro, cobre, bronze e alumínio, e que ele estava me ensinando a desenhar, só que teve de voltar para a Espanha, mas que com ele eu tinha aprendido muitas coisas. A Celina que tinha permanecido calada falou: – Ortega, tu só viste os trabalhos do Nato, porém não viste meus bordados. Em seguida me levantei e falei: – Vamos. E Celi, Celina, Nato e eu fomos para o quarto da Celina, em seguida me mostrou uns lindos bordados, eram desenhos bem miudinhos. Quando lhe perguntei por que não fazia também uns desenhos maiores, me respondeu que fazia do mesmo tamanho que estavam nas revistas, que algumas vezes tentou desenhar, mas não conseguiu. Expliquei-lhe que o Espanhol, ou seja, o Antônio, me ensinara a desenhar em folhas quadriculadas, ou com pantógrafos. Ela me disse que tinha um pantógrafo, só que as figuras saíam torcidas, que pareciam fantasmas. Trouxe o pantógrafo e vi que estava mal armado. Desmontei e montei corretamente e começamos a desenhar. Uma vez feito o primeiro desenho, a bagunça foi grande, a Celina praticou bastante em vários tamanhos. Vibrava de contente a cada desenho feito. Com um pedaço de barro fiz a cabeça de um índio que o Antônio tinha me ensinado a fazer e já tinha feito muitas vezes. Era uma hora da madrugada, o Capitão tinha ido para o escritório na fronteira, a dona Celi e o Pipo tinham ido dormir e nós três nem tínhamos sentido o tempo passar e se não fosse pela chegada do Capitão, teríamos varado a noite. Nato e Celina, felizes mostravam para o pai o progresso e me elogiavam. O Capitão me abraçou em seguida e nos pediu para ir dormir, e no dia seguinte continuar. Deixamos tudo na mesa e fomos dormir, lembro que botei a cabeça no travesseiro e dormi até as 8 horas, hora que acordei. Na hora do café era o Nato do meu lado e a Celina do outro, a dona Celi me tratava como se eu fosse seu filho, às vezes me chamava de meu filhinho, outras vezes de negrinho ou também de Orteguita, o Capitão mexia muito com o Pipo e às vezes dizia-lhe: – Este meu bundinha não ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 291 sabe nada. Pipo nada falava, a única coisa que um dia ouvi dizer foi: – Eu não quero ser nada disso, o que eu vou ser é jockey! Todos eles se tratavam com carinho e à Celina tratavam com muita delicadeza. Apresentação na residência dos religiosos O Capitão pediu para os filhos me levarem e apresentarem aos padres e também para ver o local da apresentação. Eu me sentia muito feliz com aquela família, eram muito bons para mim, não existia diferença entre os filhos e eu, mesmo que eles fossem claros e eu bem escurinho. Na noite da apresentação, estava quase todo o povo presente, para não ser eu o único a se apresentar, tinham convidado um pescador que escrevia poesias cômicas, foi ele o primeiro a se apresentar, fez rir bastante o público. Um casal de meninos se apresentou a seguir, dançando e cantando músicas indígenas muito bonitas, por último foi minha vez. A minha apresentação, como em todo lugar que me apresentava, foi bem aplaudida, para completar a festa, tinham contratado um trio de violões e um percussionista, que tocavam às vezes timbales, bomgo ou maracás, o baile se formou, os músicos começaram tocando ritmos alegres e dançavam adultos e crianças, a Celina me convidou a dançar, eu nunca tinha dançado, porém com a ajuda dela, até que me saí bem. O Pipo tinha seu par, era uma coleguinha de aula, não se desgrudaram enquanto a festa durou. O Nato tinha muitas admiradoras, embora ele quisesse estar junto com a Celina e comigo, as gurias tiravam ele para dançar. A Celina em momento algum me deixou só, e não dançou com mais ninguém. A dona Celi também não deixavam descansar, todos queriam dançar com ela. O Capitão não se importava, ele também dançava com diferentes senhoras. No auge da festa alguém gritou: – Nato, queremos as novas esculturas! Em seguida todos começaram a gritar: – Queremos ver também os bordados da Celina. Nenhum dos dois tinha levado nada e ficaram surpresos e sem saber o que fazer. O Capitão, ao ver o embaraço dos filhos, subiu ao palco e falou: – Senhores e Senhoras e todos os presentes, desta vez meus filhos não trouxeram nada porque eles, a minha senhora e eu queríamos que vocês vissem o espetáculo que o meu filho Ortega lhes apresentaria. Coincidentemente Celina e dona Celi tinham me abraçado, eu estava no meio das duas, neste momento todos os olhares eram dirigidos a nós. Eu acredito que o Nato e o Pipo, que não estavam junto de nós neste momento, sentiram ciúmes, porque vieram correndo e se abraçaram a nós. É claro que hoje pensando, não imagino que aquela gente pudesse acreditar que eu fosse filho deles, eu bem ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 292 escurinho e eles todos brancos, e mais ainda, um filho já crescido e num lugar onde todos já se conheciam. O Capitão continuava falando: – Senhores, eu lhes prometo que os meus três filhos Nato, Celina e Orlando lhes apresentarão na próxima reunião algumas novas obras. No meio das palmas, alguns gritavam: – Vamos esperar. O Capitão veio juntar-se a nós, me abraçou e disse: – Orteguita, te coloquei nessa empreitada, agora vocês três que se virem. O baile terminou de madrugada e todos juntos fomos para casa comentando a festa. Notei que o Pipo agora só queria andar grudado em mim, e na hora de dormir pediu para o Nato deixá-lo dormir junto no quarto dele, claro que o Nato deixou, e em seguida foram trazer um colchão, e a Celina e eu fomos trazer a roupa de cama. Ela se despediu, em seguida entrou o Capitão e nos disse: – Como é malandros, já estão dormindo? Durmam bem. Foi embora e minutos depois entrou dona Celi, mas estávamos mais dormindo do que acordados, nos abrigou e saiu. Devo confessar que quando ela me beijou na testa eu senti o cheiro, o calor e a respiração da minha mãe, dormi e sonhei com ela. Eu nunca tinha tomado banho junto com meus irmãos, a não ser moleque no rio ou aquela vez com meus amigos engraxates, naqueles banheiros coletivos no povo, onde os conheci, lhes digo isso porque quando nos acordamos e depois de fuzarquear um pouco no quarto, a empregada bateu na porta e nos disse: – Meninos, a dona Celi disse que é para irem tomar banho que o café está pronto. Pipo foi o primeiro a se levantar, saiu correndo de cuecas, em seguida o Nato também se levantou, me puxou e disse: – Vamos Teguita! E os dois corremos de cuecas para o banho. O banho estava no fundo do pátio, a água saía por um cano que tinha vários furos e a água saía em quantidade, a bagunça que formamos era tremenda e aumentou mais quando vimos o Capitão Gaspar que vinha correndo, também de cuecas, ele parecia uma criança brincando conosco, ele nos ensaboou e nos limpou com um pano os ouvidos, pescoço, garganta e pés, depois nos passou o sabonete e disse: – Agora vocês se lavem o tutuleno (o pipi). Todas as cuecas ficaram dentro do banho no chão e cada um foi saindo enrolado em uma toalha que a empregada foi nos entregando. A dona Celi foi nos alcançando a roupa que deveríamos vestir e uma vez vestidos fomos para a mesa tomar café. A dona Celi e a Celina estavam de chambre, elas tinham tomado banho no chuveiro que havia dentro de casa, as duas estavam com o cabelo molhado. Agora que estou escrevendo, a imagem desta família se manifesta com muita evidência. Lembro a Celina que era uma menina meiga, delicada, os irmãos Pipo e o Nato a tratavam como uma rainha. Agora imaginem vocês se era assim tratada pelos irmãos, era também tratada ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 293 pelos pais. O Capitão era um brincalhão, sempre estava de bom humor, brincava com todos nós, eu me sentia como se fosse seu filho, a dona Celi me chamava às vezes de Orteguinha, outras de meu filho ou de filhinho, a Celina sempre me chamava de maninho, o Pipo e o Nato de mano. Eram já cinco dias que estava naquela casa e eu me sentia em família. Não se tinha cobrado entrada para o espetáculo, recolhemos o que cada um quis colaborar de forma voluntária e tínhamos três latas com moedas e notas. O Capitão nos convidou a contar o dinheiro recolhido, não me lembro quanto foi, só me lembro que não era pouco, em seguida entregaram tudo para mim, perguntei: – E para vocês? – Não, é tudo para você, me responderam. Falei: – Então eu quero colaborar nas despesas da casa. Em seguida o Capitão levantou-se, me pegou, me levantou e disse: – Você não tem que ajudar com nada nesta casa, esse dinheiro é seu, guarde-o. Em seguida perguntei: – Será que tem como eu mandar este dinheiro para minha mãe pelo correio, que é para ela terminar a nossa casinha? A dona Celi quando me ouviu dizer que era para mandar para a mãe veio correndo, me abraçou e, com lágrimas nos olhos me disse: – Sim meu amor, nós vamos dar um jeito. E sempre me tendo abraçado a ela disse para todos: – Que filho, não esqueceu a mãe! O Nato e o Pipo me seguravam pelas mãos, a dona Celi falou mais algumas coisas, que até a empregada notei que limpava as lágrimas. O Capitão estava sentado num canto da mesa pensativo e observava tudo. De pronto falou e disse: – Amores, amanhã, terça-feira, vamos todos à cidade para que nosso guri mande o dinheiro para a mãe e aproveitaremos para dar uma volta, que lhes parece? Todos gritaram: – Obaaa!... Auuuu!... Reminiscências, o Capitão às vezes me chamava de meu garoto, outras de filhote, gurizinho, filhinho, Orteguita, etc., mas sempre de forma delicada e carinhosa. Quando o Capitão terminou de falar, dona Celi abraçou e deu um beijo no marido. Hoje eu compreendo que isto foi em gratidão ao marido porque ele tinha compreendido o desejo dela de me levar mais que tudo na cidade para que eu mandasse o dinheiro para minha mãe. Celina, Pipo e Nato fizeram o mesmo, beijaram o pai, eu também abracei e beijei o Capitão, ele nos pegou os quatro pela cintura, brincou conosco e nos beijou. Gosto de escrever estes detalhes porque me trazem muitas recordações daqueles dias agradáveis que estive com tão linda família num país onde ninguém me conhecia, porém desde que atravessei a fronteira, foi tudo alegria, desde o primeiro momento, todos me trataram com carinho. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 294 Depois deste emocionante momento, o Capitão nos lembrou do compromisso que tinha assumido com o público e que nós deveríamos pensar o que íamos preparar para não ficar mal. Celina prometeu fazer bastante bordado, de vários tamanhos, agora que podia ampliá-los e diminuí-los com o pantógrafo que o maninho organizou, o maninho era eu, era assim que ela me chamava. Falei para o Capitão que para fazer algumas esculturas e peças bem feitas que eu tinha aprendido fazer com meu amigo Antônio, precisaríamos de algum material como gesso, parafina, arame de cobre ou de latão, ele me respondeu: – Amanhã compraremos tudo na ferragem da cidade. No dia seguinte embarcamos todos na caminhonete do Capitão e fomos à cidade e depois de mandar o dinheiro para a minha mãe, fomos na ferragem e compramos tudo que precisávamos para trabalhar, inclusive uma panelinha de ferro, que por casualidade me lembrei. Foi fácil conseguir tudo, arame de cobre, gesso, tinta à base de água, parafina, borracha látex, verniz e alguns pincéis. O resto do dia foi de fuzarca, almoçamos num restaurante, à tarde tomamos banho no rio, e no final da tarde voltamos para casa, todos cansados. O Nato estava curioso, queria saber para que era tudo aquilo que tinha comprado. Lembro que dona Celi tinha uma estatueta da Virgem do Carmo, era de gesso, como estava um pouco danificada a ajeitei com gesso e látex, fiz uma matriz para fabricação em série, ensinei o Nato que, ao invés de esculpir em barro, esculpia em gesso, eu fazia os moldes em látex. O fato foi que se organizou uma pequena indústria familiar, comandada por mim, porque tudo o que era para ser feito sempre perguntavam primeiro. O Nato era bom na escultura, eu lhe aprontava os blocos de gesso ou de parafina, desenhava e ele esculpia. Foram feitas estatuetas de Dom Quixote e Sancho, de Santos, de Virgens. Fizemos rostos de músicos famosos, tais como Beethoven, Chopin, Tchaikovsky, Liszt e muitos outros, também foram feitas obras famosas como Vênus de Milo, a Última Ceia, David, etc. Como eram feitas as matrizes de todas as esculturas realizadas pelo Nato, a produção em gesso era rápida, o Pipo tinha aprendido a fundir as peças no gesso, a dona Celi adorava pintar, e sempre estava conosco pintando, a Celina não gostava de ficar longe de nós e ficava junto bordando. O Capitão, quando estava em casa, também gostava de pintar. Quando estávamos todos juntos trabalhando, qualquer coisa que acontecia era motivo de risada e fuzarca. Lembro o dia que dona Celi virou o vidro de tinta, foi aquela bagunça, agora imaginem um dia que o Pipo fundiu o David e saiu sem o pipi, até a empregada participou da farra. A nossa oficina estava num galpão nos fundos do pátio. Segundo fiquei sabendo, a Celina fazia seus bordados encerrada no quarto, só que agora tinha organizado seu atelier junto conosco e participava de todas as ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 295 brincadeiras. Às vezes eu lhe ajudava a fazer os desenhos nas telas, do tamanho que ela queria, com ajuda do pantógrafo. Como não éramos bons pintores, imitávamos as pinturas das revistas e ao mesmo tempo aproveitávamos para copiar os desenhos e fazer as esculturas, até dois quadros nos atrevemos a pintar, um foi a Última Ceia e o outro foi um toureiro fazendo um passe de peito. O entusiasmo era grande, ficávamos trabalhando até meia-noite, e no dia seguinte cedo já estávamos firmes no trabalho. Ao todo foram feitas duzentas peças, dez de cada, a Celina tinha feito trinta peças com bordados muito bonitos. Uma tarde o Capitão ficou olhando todas as peças e disse: – Tudo está muito lindo, acho que vou conversar com meu amigo, o senhor prefeito, daremos para ele um Quixote e Sancho e para cada um dos padres uma santa, e para a madre diretora, daremos uma virgem. Eu fiquei pensando, estava tão quieto que o Capitão me perguntou: – Teguinha, porque estás tão quieto? Respondi para o Capitão: – Estou pensando se ao invés de dar de presente para eles peças iguais a todas poderíamos fazer peças especiais e de alumínio, o Capitão me disse: – Meu filho, nós vamos por ti, me diz o que precisas. Fiquei me lembrando como era que fundíamos as peças com o Antônio. Pedi para o Nato esculpir um Quixote e um Sancho em cera um pouco maiores que as que tínhamos, e uma Virgem do Carmo também maior, um Santo Antônio e um Jesus no jardim das oliveiras. À medida que as peças ficavam prontas, eu fazia três negativos em gesso de cada uma. Fiz tudo como fazíamos com Antônio, fiz por onde deveria entrar o material e os respiradouros, durante três dias sequei as negativas de gesso no fogo lento. Fizemos um fogão com tijolos alimentado com lenha, a panelinha de ferro onde derretíamos a cera serviria para derreter o alumínio. Uma colher feita com jarro em lozado, o cabo com várias voltas de arame grosso servia para retirar o alumínio derretido da panela para encher as conquilhas, ou seja, as negativas. Agora tudo pronto, só nos faltava o alumínio. A idéia veio do Capitão, no pátio do quartel tinha várias panelas velhas atiradas, dona Celi nos deu outras, por último a idéia foi sair a pedir aos vizinhos peças velhas de alumínio que estivessem fora de uso. Combinamos para que uns fossem por um lado, e os outros pelo outro. Como éramos quatro, então iríamos em dupla, o Pipo rápido falou: – Eu vou com o mano Ortega. Nato e Celina iriam juntos. Quando estávamos sós, o Pipo me pediu que lhe ensinasse algumas mágicas, que ele gostaria de apresentar no dia da exposição. Voltamos para casa, peguei alguns números truncados e um baralho. Enquanto íamos caminhando e pedindo alumínio, eu ia lhe ensinando, ele pegava com facilidade as provas e tinha bastante destreza. Eu pensei que ao invés de colocar as peças em bases de alumínio ou gesso, poderiam ser colocadas em base de madeira, o Pipo sabia onde havia um marceneiro que poderia nos fornecer as peças cortadas e ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 296 lixadas. Em todas estas saídas com o Pipo, aproveitávamos para praticar. A pretexto de não estar dormindo bem, voltou para seu quarto onde se aferrava a praticar encerrado em seu quarto. Algumas vezes quando o Nato e eu estávamos deitados, me levantava e dizia: – Não dei boa noite para o Pipo. Era só um pretexto para ver o progresso dele, que ficava até de madrugada praticando. Para utilizar o arame de cobre precisava de um alicate de Vico, este teria de ser comprado na cidade. O Capitão, sempre que ia para lá gostava de levar todos, porém desta vez pedi que me deixassem com o Pipo para organizarmos a fundição e que eles fossem. O Capitão sempre aceitava meu pedido, eles foram e nós ficamos. Quando todos saíram, organizamos o programa e praticamos bastante, o Pipo era muito inteligente, aprendia tudo com facilidade e tinha um bonito estilo, me apresentava tudo como um experiente artista. Antes que eles chegassem limpamos a panela de ferro que estava com cera e derretemos um pouco de alumínio no fogão de tijolos e com lenha de galhos, coisa simples, mas para eles foi de admiração ver o alumínio derretido. No dia seguinte fundimos todas as peças que estavam nas matrizes de gesso, como estavam bem secas todas saíram perfeitas. O Capitão estava entusiasmado e admirado por tudo o que eu fazia e me abraçava. No dia seguinte o Capitão foi convidar o senhor Prefeito, que era seu amigo. Ao entrar no gabinete do Prefeito, lá estava o Governador e se viu na obrigação de convidá-lo também. O colégio onde nos apresentaríamos e onde seria a exposição era o Santo Antônio. Todos os convites eram só para a exposição, ninguém contava com a apresentação do Pipo como mágico. Eu prometera fazer uns números de contorcionismo, porém combinei com o Pipo de apresentar um esquete cômico entre nós dois, o que tínhamos praticado bastante. Quando tudo que era de gesso e de alumínio ficou pronto, pegamos umas tábuas, onde dona Celi, que tinha uma letra muito bonita, escreveu nomes da maioria das pessoas que moravam na cidade, com letras grandes, de aproximadamente 3 centímentos, depois fincávamos uns preguinhos em volta das letras e com o alicate de Vico íamos moldando as letras em volta dos pregos com arame, e o nome escrito saía completo. Sempre se deixava uma ponta de arame no começo e outra no final, se fazia uma dobra como suporte e o nome ficava em pé, eu fiz as primeiras três, depois estávamos todos fazendo. Era divertido, todos fazendo letras com arame, e era mais divertido quando alguém errava uma letra, pois a fuzarca era tremenda. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 297 Lembro que era uma quarta-feira, já fazia quinze dias que eu estava com aquela família e estava totalmente esquecido dos meus. Naquela quarta-feira o Capitão combinou conosco que a apresentação seria no próximo sábado, que as peças seriam vendidas para quem quisesse comprar, também ficou combinado que eu daria o presente para o senhor Governador, um Quixote e Sancho de alumínio. A seguir, a dona Celi daria igual presente para o senhor Prefeito, o Capitão entregaria o prêmio para a madre diretora, uma virgem do Carmo, também de alumínio. Pipo, Nato e Celina entregariam para os padres, Santo Antônio, a Última Ceia e Santo Expedito. Na quinta-feira falei para o Nato: – Coitado do Pipo, nunca dormi no quarto dele, que lhe parece Nato? Ele me respondeu: – É verdade mano, acho bom. É claro que era pretexto para podermos ensaiar um pouco, fizemos uma cartola de papelão e forramos com pano preto e dentro dela armamos o truque. Perguntei se era mais fácil conseguirmos um coelho pequeno ou uma pomba, ele falou o coelho. Ficamos até às três da madrugada praticando e aprontando as provas. Na sexta-feira também dormi no quarto do Pipo, ensaiamos bastante o esquete, organizamos o programa e como eu deveria apresentar o Pipo, o pseudônimo que escolhemos foi “O Mágico Pipolim”. No sábado, depois do meio-dia, o Capitão achou que era bom levar tudo para onde seria apresentado o espetáculo para evitar correrias de última hora. Sabedores da presença do senhor Governador e do senhor Prefeito, os padres tinham decorado o palco de forma muito bonita, o corredor onde seria a exposição estava decorado com bandeiras do país, do estado, da cidade e com bandeiras colombianas, de um lado tinham organizado um lugar onde estaria um conjunto de músicos da cidade que tinham contratado. Enquanto nós descarregávamos a camionete, o Pipo desapareceu, só eu que dei pela ausência dele. Como no lugar não havia nenhum tipo de diversão, a não ser alguns bailes organizados pelos padres ou pelo dono de um bar, lugar que se reunia o pessoal do povo, sobretudo os militares, era muito grande o entusiasmo que havia no povo. Ninguém imaginava da apresentação do Pipo. Sem saber por onde e em que momento vi o Pipo varrendo um lixo feito por nós, só eu sabia do desaparecimento e o aparecimento dele. Exposição e show de contorcionismo A apresentação estava marcada para as 20 horas, mas às 19 horas já tinha bastante público. O interesse era geral, uns pelas esculturas do Nato, que eram famosas, também pelos bordados de Celina e muitos ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 298 queriam ver de perto o senhor Governador e o senhor Prefeito. Como eu tinha prometido números de contorcionismo, às 20 horas e com o salão lotado, o Capitão anunciou a minha apresentação. Como já expliquei anteriormente, a diversão neste lugar era só esporadicamente um baile, e como nunca tinham visto alguém caminhar com as mãos e fazer tudo o que eu fazia com meu corpo, o público ficou encantado. Quando terminei, e antes de dar oportunidade ao Capitão de subir ao palco, eu mesmo peguei o microfone e anunciei: – Senhores, Senhoras e a toda rapaziada e criançada, enquanto eu falava o Pipo já estava pronto atrás do telão que eu tinha mandado fechar e continuei, tenho o prazer de apresentar (todos estavam em silêncio que nem a respiração se ouvia) o grande mágico “Pipolim”. Enquanto abria o telão e o Pipo bem vestido, com gravatinha borboleta, completei: – Com vocês, Pipolim... Nunca esqueço o Pipo como um experiente artista, com o garbo de verdadeiro mágico, pegou a cartola, mostrou ao público por todos os lados, como tinha colocado as luvas brancas do uniforme de Celina, com muita destreza tirou as luvas e as colocou dentro da cartola. Em seguida, com a varinha mágica feita por nós, deu três batidinhas na cartola e com a técnica de um mágico foi puxando o coelhinho. Agora vocês podem imaginar a sensação, a surpresa os levou ao delírio, eram aplausos, gritos, Pipo sereno e meio sorridente esperou o fim dos gritos e palmas e continuou, fez muitas outras provas bem feitas, quando anunciou a última prova, pediu a colaboração de um rapaz da platéia. Um rapaz da cidade subiu primeiro que outros no palco, eu ajudaria nesta prova atrás dos bastidores, a conclusão da prova foi tirar as cuecas do rapaz sem tirar as calças. Se na primeira prova foi aquela bagunça, imaginem esta última, gritos e palmas eram ensurdecedores, não consegui ver em que momento tiraram o Pipo do palco, só vi quando os colegas levaram ele nos ombros gritando: – Pipo, Pipolim... Pipo bem orientado que estava, agora sorria e mexia levemente a cabeça, todos o abraçaram e felicitaram. Nato, Celina e eu olhávamos de longe o triunfo de Pipo, eu não saberia se após toda essa homenagem ele iria querer apresentar o esquete que tínhamos programado. De repente, ele me olhou, se desvencilhou de todos e correu para o palco, perguntei se estava em condições, me garantiu que sim, fiz o anúncio e a nossa apresentação foi um sucesso. O Capitão era autoridade máxima do povo e era muito querido por todos os habitantes, que na sua maioria eram também militares. Antes de abrir a exposição, o Capitão subiu no palco e me fez grandes elogios, de que tudo aquilo que tinham visto do Pipo era obra minha, que em momento algum eles viram e desconfiaram dos planos de nós dois. – E lhes digo mais, o dia que conheci este garoto, quando me referi a ele sobre o Nato e a Celina, disse: estes meus dois filhos são artistas, mas meu filho Pipo é um bosta, é um bundinha, que não sabe ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 299 fazer nada, ademais é teimoso. Sabem, hoje lembrei, ao ver meu filho se apresentando de forma desembaraçada, das palavras que ele me disse: – Capitão, o teimoso calado pode chegar a ser um sábio. Que palavras! O Capitão continuou: também quero lhes dizer que tudo isto que agora vocês vão ver na exposição foi feito sob orientação dele, à minha esposa e a mim também muito nos ensinou este menino de tão curta idade. Em seguida chamou ao senhor Governador, e como antes combinado entreguei o presente feito em alumínio. O Governador me abraçou e me felicitou. A seguir tudo foi entregue de acordo com a orientação do Capitão, que antes de descer do palco falou que quem quisesse comprar peças da exposição poderia fazê-lo e que os preços estavam marcados nas próprias peças. Não esqueço que quando abrimos as portas da exposição, todos correram para comprar, em menos de uma hora estava tudo vendido e tivemos que aceitar encomendas daqueles que não conseguiram comprar. Muitos pediram nomes no arame de cobre. Por último se dançou e a festa terminou às 2 horas da madrugada, voltamos para casa felizes, ninguém foi dormir nos quartos, todos, inclusive o Capitão e dona Celi, dormimos na sala, cada um trouxe seu colchão. Comemos, falamos, rimos até pegarmos no sono e nos acordamos às 10 horas do dia seguinte, e como movidos por uma mola, todos corremos para o chuveiro na mesma fuzarca de sempre, só dona Celi e Celina tomavam banho no chuveiro interno. Na hora do café o comentário continuou. O Capitão mexendo com Pipo lhe disse: – O Pipo não é mais um bundinha, agora é “Mister Pipolim”. Diga-se de passagem, todo dinheiro das vendas me foi dado. A encarregada de entregá-lo foi dona Celi que me disse: – Este dinheirinho é para a mamãe da Colômbia. Todos eles me tratavam como se na realidade eu fosse da família, o casal me paparicava igual como paparicava os filhos, antes dela se deitar entrava nos quartos, nos abrigava e um por um ia nos beijando. Compras, lazer e retorno Há coisas que não sei por que sempre me lembro, uma delas é que um dia o Capitão convidou todos para irmos à cidade. Uma vez lá, comprou roupas para todos nós. Uma coisa interessante, eu aceitava tudo de maneira como se realmente eles fossem meus pais e os guris meus irmãos. Depois de comprar as roupas o Capitão gritou: – Agora vamos passear, e foi aquela gritaria, fomos almoçar num restaurante que estava bem longe da cidade, tinha piscina e muitos brinquedos, a comida era à la carte, a gente pedia e eles preparavam, enquanto isso nós fomos bagunçar na piscina e nos brinquedos. À noite voltamos para casa cansados, todos fomos dormir, cada um no seu quarto. De manhã cedo ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 300 me acordei e fiquei pensando na minha mãe, nos meus irmãos, esqueci da minha família e já fazia uns vinte e cinco dias que chegara ali. Era muito feliz, essa família me tratava muito bem. A gente deste povo gostava de mim, sempre me convidavam a tomar chá, a jantar ou almoçar, claro que tudo era para que eu pudesse ir à suas casas e eles poderem conversar comigo, me ouvir falar, diziam que meu sotaque era muito bonito. Deitado, comecei a pensar, e eu mesmo me dizia: Que diferença este povo onde faz pouco tempo que cheguei, onde ninguém me conhece e como todos me brindam com sua amizade, muito carinho me é demonstrado em todos os momentos, pelas crianças, pelos adultos, bem ao contrário da minha vila onde me viram nascer, onde quase a todos lhes servi. Eu, burro, puxasaco, levava presentes para os mais amigos e eles me receberam com pedradas, me trataram mal, me odiavam, me chamavam de ladrão, de bandido, e como me vestia bem, diziam que toda a minha roupa era fruto de roubos. Os adultos fechavam as portas das suas casas quando eu passava, sabia que era para me ferir mais e proibiam seus filhos de falarem comigo, quem nunca viveu esse pesadelo não imagina como é triste, decepcionante, me sentia humilhado, tudo ao contrário daqui, longe dos meus, da minha terra. Eu era muito feliz com aquela família, todos me queriam, desde os pequenos até os adultos, poderia viver o resto da minha vida ali, porém eu tinha condições de ajudar a minha mãe, de ajudar a terminar a nossa casinha, ainda tinha irmãos pequenos para ajudar a criar. Durante o tempo que estive ali, só tinha ganho o dinheiro das estatuetas, era muito pouco, trabalhando eu ganhava muito mais, portanto deveria continuar o meu modo de ganhar dinheiro, trabalhando nos parques e nos mercados, inventaria uma mentira ou um pretexto para poder ir embora. Tomei uma decisão: na quarta-feira deveria partir. Na hora do café não tive coragem de falar. O Capitão se despediu de todos nós com um beijo e um abraço, porém antes de sair falou para os guris irem na escola para saberem qual era o material escolar, em seguida falou alguma coisa para dona Celi e ela lhe respondeu: – Amor, pode deixar comigo. Quando o Capitão estava saindo lhe falei: – Capitão, mais tarde vou lhe fazer uma visita. Tá, vou te esperar. Fiquei na mesa conversando com dona Celi e a empregada, por momentos tinha vontade de falar da minha decisão de viajar, mas não tive coragem. Os guris me convidaram para ir junto na escola, aleguei que tinha que ir ao escritório do Capitão, os três me deram um beijo na testa e saíram, poucos minutos depois eu também saí em direção à fronteira, no caminho ia pensando qual seria a melhor forma de falar ao Capitão. Antes de chegar me sentei numa pequena pracinha que parecia abandonada, ou ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 301 talvez inacabada, fiquei um pouco, em seguida me levantei e saí decidido a falar para o Capitão. Após ele e seus subordinados me receberem com carinho, criei coragem e falei para o Capitão o propósito de viajar, seria muito cansativo repetir aqui o diálogo que tive com o Capitão, em determinado momento apliquei a mentira que um tio que morava em Nova Iorque estava me esperando para eu operar os olhos, que tudo estava combinado e que eu estava demorando muito, mas o problema dos meus olhos não poderia demorar tanto. O Capitão ficou pensativo, se levantou da cadeira, veio e me abraçou dizendo: – Vamos para casa. No caminho falamos bastante, uma das coisas que me disse foi que justamente naquele dia dona Celi iria me matricular no mesmo colégio onde estudavam os filhos, eu me segurei no problema dos meus olhos e na espera do meu tio. Uma vez em casa o Capitão chamou: – Amor, o nosso filhinho vai embora! Ela veio correndo, me abraçou dizendo: – Não meu filhinho, não vai embora deixando a mãezinha chorando, não é? Começava a me formar aquele famoso nó na garganta. Ela sentou-se ao meu lado e colocou-me no seu colo como se eu fosse uma criancinha, me abraçando e colocando minha cabeça sobre seu ombro, me fazia todo tipo de perguntas: se eu não gostava deles, se não estava contente, se alguém tinha me dito alguma ofensa, eu respondia a tudo. O amor que sentia por eles, feliz que me encontrava estando com eles, o carinho que sentia pelos meninos, porém eu tinha que fazer aquela cirurgia, pois meu tio tinha levado todos os papéis que o médico que me atendia tinha lhe entregue, e meu tio pagaria tudo, e eu ficaria por algum tempo na casa dele e depois voltaria para minha casa. Foi neste momento que me surgiu outra mentira. Falei-lhes que eu não tinha vontade de voltar para minha vila onde era maltratado por todos e chamado de ladrão, de bandido e que se eles me queriam após a cirurgia, ao invés de ir para casa voltaria para eles. O Capitão estava em silêncio e vi os olhos de dona Celi meio que lagrimejantes. Nos levantamos, ela começou a me arrumar a camisa que estava amarrotada, foi até o banheiro, trouxe um pente e começou a me pentear. Neste momento me veio a lembrança de Estefani, quando ela me penteava e me perfumava, fechei os olhos e tratei de esquecê-la. O Capitão me perguntou quando pretendia viajar, respondi que na quarta-feira, para poder estar em Nova Iorque na próxima quarta-feira. – Ele tem razão, disse o Capitão para dona Celi. Apronta as coisinhas dele, vamos ajudá-lo, os guris vão ficar tristes, mas eles terminam entendendo. Nos dois dias seguintes fui muito paparicado até pela empregada que também me tratava com muito carinho. Na quarta-feira após o café, todos saímos na camionete do Capitão, o Pipo sentou-se na frente, eu no centro entre dona Celi e Celina, Nato estava no centro. Ninguém fuzarqueava, todos íamos em silêncio. Eu tinha dito para o Capitão que aquele dia viajaria até a capital e que no dia seguinte continuaria até a fronteira para ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 302 atravessar ao país seguinte. Foi o Capitão que me comprou a passagem, o ônibus sairia ao meio-dia, eram 11 horas. Junto com a passagem o Capitão me entregou um pergaminho onde me elogiavam. O Capitão pediu para o Pipo ler, estava assinado pelo Governador, pelo Prefeito, pela madre diretora, pelos padres e é claro que não faltou a assinatura do Capitão, dona Celi, a empregada, e do Pipo, Nato e Celina. A cena que presenciei no momento da despedida é uma coisa que tenho lembrado muitas vezes e que agora que estou escrevendo se manifesta com maior evidência. As palavras de dona Celi foram: – Filhinho, se tu quiseres vir e não tiveres dinheiro, nos escreve que nós te mandaremos, se adoeceres, nos manda dizer, não te esqueces que após a cirurgia tu vens para cá. Primeiro me despedi do Pipo que chorava, em seguida do Nato que não dizia uma palavra, quando foi a vez da Celina, na hora do abraço, soltou um leve gemido, a dona Celi era a que mais chorava, o Capitão, igual que Celina, estava vermelho. Subi no ônibus e já o motorista arrancou, eles juntos me mandavam beijos, a última palavra que ouvi foi de dona Celi que disse: – Tchau filhinho, quando o ônibus já se distanciava. Olhei através da janela e vi que eles cinco iam abraçados em direção à camionete, nesse momento senti uma leve sensação de vazio que desapareceu quando a companheira de banco, toda curiosa, perguntou: – Eles são seus parentes? É claro que despertava a curiosidade de ver eles brancos e eu escuro. – Não senhora, respondi, são meus amigos. A senhora continuou me fazendo várias perguntas e eu respondendo, até que ela pegou no sono, eu fechei os olhos e comecei a pensar na minha mãe, nos meus irmãos, na minha vila, que me viu nascer, enquanto eles não querem me ver nem de longe, por aqui tudo ao contrário, nestes lugares onde ninguém me conhece, todos me querem e não só isso, todos me querem adotar, querem que fique com eles para sempre. A Estefani me chamava de meu bebê, me colocava o pijama para dormir, me abrigava, me beijava, no dia seguinte me vestia, me penteava, me perfumava, me queria ter como uma dondoca, sorte que consegui sair de lá. Depois a dona Amanda, a mulher do Cônsul, graças a Helena que não me queria, consegui me escapar, a dona da pensão onde morava o conterrâneo Gustavo também me queria, sorte que também consegui escapar. Agora me sentia livre e feliz por ter conseguido sair do amparo desta tão linda e tão querida família e não só isso, de um povo onde todos me queriam. E naquele solilóquio me dizia: Não adianta, eu quero é minha mãe, meus irmãos, pode ser que um dia eu volte e construa uma casa noutro lugar. Fiquei pensando que sempre que ficava em casas de família, parava de ganhar. Fiquei quase um mês na casa do Capitão Gaspar e só ganhei na primeira apresentação e na venda das estatuetas, era pouco, se comparado com o que ganhava me apresentando nos parques e nos mercados. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 303 A promessa Fiz uma promessa para mim, não ficaria mais em casa de famílias, só em pensões ou hotéis. Em todo caso eu me sentia feliz, livre, eu não tinha nada a ver com eles, este era meu pensamento, talvez de um malagradecido ou de alguém que amava sua família. A minha companheira de banco dormia e roncava, eu também peguei no sono. Acordei quando o ônibus parou numa lancharia, apenas lanchamos e o ônibus continuou, a companheira tornou a dormir, eu achava a paisagem muito bonita, o verde era bem verde. Já estava escuro quando chegamos à cidade, a companheira de banco se levantou como impulsionada por uma mola e desapareceu. No tumulto de gente na rodoviária notei que muitas pessoas falavam outra língua além de espanhol, algumas até misturavam as duas línguas. Como estava bem documentado, nada me preocupava e com entrada legal no país, carimbado e assinado pelo Capitão Gaspar, sabia que poderia trabalhar, também tinha a carta do Capitão onde pedia às autoridades para colaborarem comigo no caso de eu precisar. Com receio de ser barrado entrei num restaurante, estava com fome e queria jantar, me sentei perto da porta na primeira mesa que encontrei, para se no caso de não me deixarem jantar não passar vergonha perante as pessoas que estavam jantando, era só dar dois passos e já estava na rua. Uma senhora veio me atender, quando vi ela vir a passos acelerados meu coração cutucou, me aprontei para pegar a minha bolsa e sair, no caso de não poder comer ali. A primeira coisa que a senhora fez foi colocar sua mão na minha cabeça e com voz meiga me perguntou: – Vai jantar filhinho? – Sim senhora, respondi. Nomeou vários tipos de comidas, eu não conhecia nenhuma, ela perguntou de onde eu era, respondi que era da Colômbia, ela em seguida falou em voz alta para os presentes: – Ele é colombiano, escutem como fala bonito. Os presentes me olhavam e sorriam. Um deles disse: – Bem-vindo a nossa terra. Eu não sabia falar, só respondi: – Muito obrigado. Um senhor jovem, que parecia estar com a esposa e um casal de filhos, disse: – É da terra de José Maria Vargas Vila, homem inteligente, grande escritor, adiantadíssimo para sua época e por isso foi muito combatido pelo clero. A senhora pegou a minha bolsa, me levou até a cozinha para ver o que eu queria comer, pedi peixe frito, arroz, salada e suco de frutas. Enquanto comia ela sentou-se a meu lado e em seguida vieram as perguntas: – Papai, mamãe, irmãos? O que faz? Para abreviar mostrei passaporte, cartas e documentos, ela toda feliz, como se eu fosse seu parente, lia em voz alta e mostrava para todos que queriam ver. Quando terminei de jantar peguei o baralho e fiz muitas provas, muitos me achavam simpático, o casal com filhos pagou a minha ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 304 conta, o resto do pessoal colocava dinheiro na minha mesa. A senhora que me atendia era a dona do restaurante e me disse: – Não vou lhe cobrar nada e me devolveu o dinheiro que o casal tinha pago. Para dormir me recomendou a pensão da esposa do guarda Melito, olhou para a rua e chamou o guarda, ele veio correndo, pensando que era algum problema. Ao saber do motivo do chamado respondeu que sim, que tinha vagas, como não podia abandonar o lugar, a senhora mandou o filho que atendia o bar me levar à pensão da esposa do Melito. Ela me recebeu com muito carinho. Quando fechei a porta do quarto, ouvi que ela falou para alguém: – Ele é uma criança! Não é que tinha gostado muito do que ouvi, porque por aí começava tudo de novo. Cansado que estava dormi como um bendito, estava feliz porque não sentia nenhum perigo nem saudades da casa ou da família do Capitão Gaspar. O guarda Melito e sua família eram todos bem pretinhos, muito mais do que eu, mas eram muito educados, tratavam a todos com carinho, tinham quatro filhos, três homens e uma menina que era a caçula. Quando a mulher de Melito, que era a dona da pensão começou a me chamar de meu filhinho, o Melito e os filhos queriam me levar com eles para dar passeios, a primeira vez apresentei evasivas e depois procurava ficar pouco na pensão, saía cedo e voltava só para dormir. Nessa cidade trabalhei durante quatro dias, no quinto descansei e no sexto viajei. Quase todas as cidades eram próximas e pequenas, trabalhava no máximo dois dias e partia para outro. O interessante era que às vezes estava no oceano Atlântico e outras no oceano Pacífico, quando menos pensava me via na fronteira de outro país. Curioso por saber como seria tratado neste país, decidi entrar nele. Chamou-me muito a atenção ver muitas crianças mal vestidas, me lembravam quando eu antes de conhecer o Antônio também andava mal vestido e sem sapatos. Curioso era que quando me apresentava nos parques, até estas crianças colocavam moedas na minha bolsa. Como os povos também eram pequenos, ficava no máximo três dias, dois trabalhava e um descansava ou viajava para outro. Lembro que os países eram tão perto um do outro que às vezes passava de um para o outro no mesmo dia e para aproveitar determinado povo, voltava ao mesmo país depois de dois dias. Chegou a tal ponto que os guardas das fronteiras já me conheciam e nem precisava apresentar documentos, gostavam de mim e muito mais do meu sotaque, que me proporcionava fazer amizades, porém sempre longe de morar na casa de alguém, embora muitas vezes fosse convidado por famílias para economizar em pensões, eu preferia pagar e inventava qualquer história. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 305 O passado Hoje e sempre, apesar do tempo decorrido, nunca esqueço amigos, professores que gostavam de me ensinar, me davam aulas de matemática, ciências, religião, etc., me emprestavam livros para estudar sozinho. Tive um amigo que escrevia para um jornal, sempre que eu estava naquela cidade ia lhe visitar porque ele gostava de me ensinar, ele tinha sido professor secundário, ou seja, do segundo grau, porém teve que se retirar para continuar no jornalismo. Ele me lembrava muito o Antônio, me lia livros, me aconselhava a ler, dizia que o saber não tira lugar. Sempre que eu chegava na casa dele, a primeira coisa que eu fazia era organizar o escritório, porque sempre estava bagunçado, livros, jornais, papéis, cascas de laranja, de banana andavam pelo chão, enquanto ele preparava café num fogãozinho elétrico eu aproveitava para organizar o melhor que podia. Ele preparava os sanduíches e enquanto comíamos conversávamos, e isto me fazia lembrar o Antônio, que também enquanto comíamos conversávamos. Um dia meu amigo jornalista me falou à queima roupa: – Ortega, quero te confidenciar algo muito importante, mas tu tens que prometer sob juramento, primeiro de não te impressionar e guardar este segredo, me juras? Eu lhe jurei e prometi guardar segredo, em seguida, muito naturalmente me perguntou: – Tu achas que sou homem ou sou mulher? Olhou bem para mim, rápido respondi: – Claro que homem. – Engano-teu, eu sou mulher, coisa que nunca gostei de ser, e é por isso que me visto como homem e namoro mulheres, e em seguida mostrou-me os seios, realmente lembro, eram seios femininos, depois baixou as calças e me mostrou o sexo, e também era feminino, eu não me impressionei com o que havia visto, e continuei lhe chamando como todos lhe chamavam, professor Rubens. Vai e vem nas fronteiras Ultimamente atravessava aquelas fronteiras a qualquer hora do dia ou da noite, os guardas das fronteiras já me conheciam, me chamavam de paisanito, eu me sentia feliz atravessando a qualquer momento, até cheguei num país muito pequeno onde só se falava inglês, eu sozinho, sentia um orgulho bobo de andar por estes mundos e pensava nos meus ex-amigos da vila, que pena não poder voltar e lhes contar estas minhas andanças. Lembro que muitas pessoas me diziam que nunca tinham visto um colombiano, outras vezes cheguei a ouvir dizer: – Eu gostaria de ser estrangeiro e falar como você fala. É claro que hoje compreendo que era a própria ignorância daquele tempo. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 306 Já tinha percorrido todos aqueles países e era pouco o dinheiro que arrecadara nas cidades, mas dava para meus gastos e para guardar um pouco para poder mandar para a mãe. Decidi avançar para o norte e passar para outro país, que segundo o mapa era muito maior que os anteriores. Uma vez na fronteira, não me criaram nenhum problema, ao contrário, como em todas as partes, eu causava admiração, nunca tinham visto um guri da minha idade andando sozinho, todos tratavam de me amparar, me cuidavam, queriam ser meus amigos, era convidado para as casas de famílias para almoçar, queriam me ouvir, conversar bastante e eu contava um pouco da minha vida. Ouvia falar desta forma: – Coitada dessa mãe, olhem por onde anda esta criança. Eu não entendia e nem sabia o que queriam dizer. Meu juramento era o de não ficar a dormir em casa de ninguém, inventava qualquer pretexto e me mandava. Apresentações de rua para casas de teatro Um dia trabalhava na praça de uma cidade muito bonita, tinha bastante gente reunida, me aplaudiam e colocavam dinheiro na minha bolsa, alguns comentavam a minha habilidade com as mãos e o corpo. No meio de toda aquela gente que me assistia, havia um casal que se destacava pela sua forma elegante de vestir. Quando terminei de guardar o dinheiro e meu material de trabalho, se aproximaram de mim, me felicitaram e me convidaram para jantar com eles num restaurante. Enquanto comíamos e conversávamos, me faziam muitas perguntas e eu a todas respondia. Terminado o jantar ele me disse: – Meu filho, seu número é muito bonito para vender ele dessa forma, seus números são para teatro, em seguida me perguntou: – Você quer trabalhar em teatro? Na minha mente, nesse momento, apareceu o toureiro, que não era espanhol, e pensei: vou ver de que se trata, mas dinheiro não dou nada. Respondi que sim, foi então que eles me disseram que eram empresários de muitos artistas. Abriram uma pasta que carregavam e me mostraram fotos e recortes de jornais de vários artistas que trabalhavam com eles. Como eu estava numa pensão, combinamos que no dia seguinte nos encontraríamos no mesmo restaurante. Aceitei, eles me acompanharam até a pensão onde eu estava pernoitando. O dono da pensão era um senhor alto, forte, gordo e barrigudo, foi ele que me abriu a porta, ele e o casal se cumprimentaram muito familiarmente, senti que já eram conhecidos. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 307 Quando o casal se despediu, a primeira coisa que me perguntou foi: – Você vai trabalhar com eles? Respondi: – Não sei senhor Aguirre, eles me disseram que são empresários de artistas, me ofereceram para trabalhar com eles, também me prometeram orientação, ao que Aguirre me disse: – Meu filho, se eles lhe convidaram é porque você é bom mesmo, encoste-se neles que vai se sair muito bem, todos os artistas que eles encaminharam ficaram famosos e você não vai ser exceção. Naquela noite não consegui quase dormir pensando se não estaria me aventurando demais, e se eu não fosse bom e o espanhol me desse um chute? Ao mesmo tempo pensava no que Aguirre havia me dito, que se o espanhol me convidara era porque eu era bom mesmo, em todo caso iria esperar. No dia seguinte chegamos juntos no restaurante, enquanto jantávamos me disseram que eu viajaria com eles para a capital, que era onde eles moravam. De fato as 6 horas já estávamos viajando de trem, durante a viagem conversamos tanto, rimos, contei-lhes algumas poucas coisas das viagens e de alguns lugares por onde tinha passado. O nome dele era Alberto, era espanhol de Madri, o nome dela era Estela e era da capital do México. A viagem demorou todo dia, chegamos ao anoitecer, a casa deles era uma linda mansão, nos recebeu a governanta e o marido dela, mais tarde fiquei sabendo que o marido da governanta era o faz tudo. Também saiu ao nosso encontro um cachorro bem grande branco, com algumas pintas pretas, pulava de alegria e recebia o carinho deles, quando me viu parou, me olhou, me cheirou e em seguida dona Estela o pegou pela coleira e o aproximou de mim dizendo-lhe: – Dodi, ele é amigo. Não gostei muito quando ela o aproximou de mim, eu estava louco de medo. A cara dele não era de bom amigo, me lembrava Firpo, que eu dominava porque era pequeno, porém este Dodi não seria fácil, ele era quase do tamanho de um terneiro, juro que este tal Dodi quase me fez desistir dos novos amigos. Na verdade lhes digo, que Dodi e eu nos tornamos grandes amigos. Quando eu saía, ao retornar ele me recebia todo alegre, mexia o rabinho e sempre estava perto de mim. Já no segundo dia de nossa chegada, começamos os ensaios num teatro que eles tinham na própria casa, muito bem decorado com muitas fotos de artistas famosos igual a pôsteres. Eu me apresentei para uma platéia de duas pessoas, algumas vezes para quatro, que eram Alberto, Estela e o casal de serviço. Quem me corrigia às vezes era Estela e outras vezes era Alberto. Os ensaios duravam três horas na parte da manhã e três na parte da tarde. Eles me mandaram fazer um smoking, as provas trucadas feitas por mim de madeira, chapa ou papelão, eles mandaram fazer por profissionais que as entregaram bem pintadas em diferentes cores e decoradas conforme eu pedira. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 308 Um mês depois de estar ensaiando, Alberto me chamou e disse que estavam próximas as festas da padroeira da cidade e que num determinado dia haveria um festival onde se apresentariam vários artistas e que eles iriam me inscrever para ser meu dia de debutante perante uma grande platéia, para começar a perder o medo do teatro. Confesso que no primeiro momento senti um friozinho na barriga e fiquei pensando como iria me sair daquela empreitada. À noite deitado pensei: Vou fazer de conta que estou me apresentando na praça. Uns três dias antes do festival chegaram quinze artistas que formavam uma companhia que tinha se apresentado durante trinta dias num teatro em uma cidade italiana. Alberto me apresentou para todos eles, ficaram umas duas horas conversando, a conversa era mais com o que dirigia a companhia. Alegando cansaço foram se despedindo, Alberto lhes informou que só poderiam descansar dois dias porque eles tinham uma turnê de vinte e cinco dias em alguns países centro americano. Quase todos os dias chegavam companhias de diferentes lugares, algumas com dez artistas, outras quinze e até de vinte, eu era apresentado a todos eles e quase sempre ensaiava em companhia deles, entre os quais havia equilibristas, cantores, antipiadistas, cômicos, etc. Vendo todos estes artistas tão bons me sentia um mosquito perante um elefante, às vezes sentia vontade de ir embora e continuar com meu trabalho nos parques e mercados e recolhendo as moedinhas que o público jogava dentro da minha bolsa, porém em seguida pensava: Eles são tão bons para mim, têm gasto tanto dinheiro me comprando roupas, organizando meus aparelhos de mágica, me tratam bem, até o cachorro parece um ser humano, tal o carinho que me dedica, não é daqueles cachorros que se atiram em cima da gente para demonstrar sua amizade, ao contrário, quando chego após ter passado o dia fora ele me recebe mexendo o rabinho, a cabeça, dando a impressão que sorri, emite um som como os mudos quando querem dizer alguma coisa. Quando fechava a porta do meu quarto ele dormia na frente da porta. Agora não a fecho e ele dorme no pé da minha cama, embora tenha uma casinha com panos e muito cômoda prefere me acompanhar. Lembrava da mãe quando algumas vezes me dizia que a gente não deve ser mal-agradecida. Chegado o dia do festival, a Estela me apresentou a programação, o espetáculo começava às 14 horas e estava previsto para terminar às 23 horas. Tinha muitos artistas inscritos, cada um tinha de 15 a 20 minutos de tempo para se apresentar, o júri era composto de artistas de diferentes países e participavam dos prêmios até o vigésimo lugar. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 309 Enquanto estava em casa, me sentia indiferente e confiante, de acordo com a programação, a minha apresentação deveria ser às 18 horas. Às 15 horas já estávamos no camarim, de onde podíamos ver as apresentações dos artistas, cada um melhor que o outro, todos bonitos, eu pensava no fraco do meu número e começava a ficar nervoso, o temor de ser vaiado se manifestou em mim, fiquei sem vontade de me apresentar, comecei a pensar num pretexto para me escapar daquele compromisso, pensava, pensava. Alberto e Estela estavam ao meu lado, fugir de que forma se nem sequer tinha prestado atenção por onde tínhamos entrado, o tempo passava e a minha angústia aumentava e eu pensava, tenho que encontrar uma forma de me escapar, correr para casa, pegar a minha bolsa e fugir para o norte do país e voltar a trabalhar em público nos parques. Escutei a descarga de um banheiro e foi ali que achei a solução, me animei um pouco e pensei, quando faltarem 5 minutos para a minha apresentação dou um gemido, aperto a barriga e saio correndo para o banheiro, e quando eles me chamarem, faço barulho como se estivesse vomitando e faço de conta que não posso falar por motivo do vômito, fico lá dentro uns 15 minutos e depois saio me fazendo de doente, calculando que a estas alturas já teriam colocado outro no meu lugar. Por estar pensando na melhor forma de fingir, não me dei conta da minha vez de me apresentar. Estela correu, me pegou pela mão, e ligeiro me levou ao palco. Alberto colocou a mesa das provas no centro do palco, neste momento não pensava em nada. Antes de abrir o telão Alberto me abraçou ligeiro e disse: – Faz de conta que está se apresentando para nós lá em casa. Desejou-me boa sorte e se retirou para trás do telão onde estava Estela e quando abriram o telão ela me apresentou, primeiro falou da minha nacionalidade, em seguida destacou a minha valentia, que na minha idade, sozinho, percorria o mundo me apresentando em vários palcos. A estas alturas tinha me esquecido da dor de barriga e do vômito e quando ela se retirou comecei da forma que começava em casa. Aquele sorriso que Estela e Alberto me faziam repetir, ali saía espontaneamente e procurava apresentar as provas tal como eles tinham me orientado e sempre acompanhadas do sorriso, acompanhadas do meu sotaque que quase todos gostavam, procurando estilizar meus movimentos. Cada prova demorava em média 5 minutos, portanto apresentei só quatro provas. O público que a cada prova me aplaudia, ao me despedir começou a pedir mais uma aos gritos, o diretor da programação perguntou para Alberto se podia apresentar mais uma, respondeu que muitas, e saí novamente, o diretor me advertiu que só uma prova. Terminada a prova e fechado o telão alguém gritou: – Um último sorriso e o coro se formou: – Um sorriso... Sem autorização do diretor, Estela abriu um pouco o telão e ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 310 me disse: – Vai, cumprimente e sorria. Fiz rápido, porque já estavam no palco outros artistas. Quando entramos no camarim Estela e Alberto me abraçaram, estavam todos sorridentes. Às 21 horas terminou o espetáculo, nenhum dos artistas cobrava cachê, os prêmios eram oferecidos por empresas, lojas e armazéns, também pelo Governo do Estado e a Prefeitura. Sucesso e prêmio Enquanto Alberto guardava meu material de trabalho, o camarim foi invadido por vários artistas que trabalhavam com Alberto e Estela, todos me felicitavam, um casal de argentinos que também trabalhava com Alberto e que também entrou no camarim, eles dançavam tango, se aproximaram de mim, nunca me esqueço que foi a primeira vez que ouvi esta expressão: – TCHÊ, como sorris bonito, é a tua melhor arma, em seguida ela agregou: – Mexes o corpo como um cigano dançando uma buleria e combina com as tuas provas que ficam bem apresentadas e lhes dão um efeito espetacular, todos eles, homens e mulheres me felicitavam, e como muitos achavam bonito meu castelhano, alguns chegaram a perguntar para Alberto: – Ele vai conosco? Ao que Alberto respondia: – Não, estou assinando uns contratos para uma turnê em todas as capitais do país e em alguns locaise já começamos na próxima semana. Confesso que a única satisfação que sentia era a de não ter sido vaiado pelo público, me sentia um pouco distante de mim, sentia uma certa saudade da mãe e de meus irmãos, me dava vontade de voltar para casa, mas pensava: O que é que vou fazer lá? Faltando 15 minutos para às 21 horas, terminou o espetáculo. O diretor agradeceu ao público e aos colaboradores. Em seguida o corpo de jurados começou a entrega de prêmios, o vigésimo lugar foi um mímico que tinha feito rir muito o público. Eu estava distraído, não lembro se sonhava ganhar algum prêmio, só lembro que pensava como será que eu sorrio que todos que me conhecem gostam da forma que eu rio ou sorrio. Confesso que até hoje continuo sendo simpático pelo tal do sorriso, mesmo já estando idoso, me olho no espelho, me vejo e não acho graça nenhuma. O sexto prêmio foi para uma senhora que cantou muito bonito, sempre que era entregue o prêmio para o artista, lhe eram destacados seus méritos e o porquê do prêmio. Encontrava-me tão distraído que quase não prestava atenção aos ganhadores dos prêmios e ao que se falava deles, estava só com o pensamento na minha casa. Quando ouvi que um dos jurados falou, textualmente não me lembro, porém foi mais ou menos assim: – O quinto prêmio é para aquele dono de tanta simpatia e daquele sorriso. Quando o homem disse aquele menino que veio da Colômbia, não consegui ouvir o ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 311 restante, porque Estela deu um grito, se levantou da cadeira que caiu, Alberto e todos os que nos acompanhavam me levantaram e me levaram até o palco, no meio das palmas e dos gritos da platéia. O prêmio que recebi foi o equivalente a duzentos dólares e uma ordem para um terno completo da alfaiataria mais famosa da cidade. Jantamos quase a meia-noite, conversamos bastante e depois fomos dormir. Quando entrei no quarto o Dodi estava enrolado ao pé da cama, entrei e ele nem se mexeu. São esses os momentos da minha vida que nunca esqueço, pela primeira vez não tinha pedido socorro à Santa Sara Kaly, então o que fiz a seguir foi: me ajoelhei, ficando de frente para a porta do quarto e olhando para o alto rezei e agradeci a Deus e à Santa Sara Kaly pelo triunfo, pelo prêmio, pela alegria que sentia e por não ter feito o que pensava fazer, que era fugir para não me apresentar. Há coisas que acontecem na vida da gente que dificilmente esquecemos e esta é uma delas. Estou escrevendo e revivo aqueles momentos como se recém tivessem acontecido ontem. Aconselhado e orientado por Alberto e Estela, mandei os duzentos dólares para a mãe. No dia seguinte ao festival saiu em todos os jornais os ganhadores dos prêmios do festival, eu saí na foto junto com o juiz, os jurados, Estela e Alberto, e alguns artistas. Comprei dois jornais, recortei e mandei pelo correio numa carta para a mãe. Na terça-feira nos visitou um jornalista colombiano atraído pelas notícias do quinto lugar ser um garoto colombiano. Falou com Alberto naquela linguagem jornalística, me fizeram vestir o smoking, coloquei as luvas e também a cartola, me tiraram várias fotos no palco, como se estivesse me apresentando, o conterrâneo ao se despedir me desejou sorte e muitos triunfos. Tantos anos passados e eu tão garoto que era, não consigo me lembrar bem deste detalhe que foi, antes de viajar para a turnê, Estela de um lado e Alberto na minha frente me falaram da forma que trabalhavam, me parece que 80% do contrato era repartido entre os artistas e 20% ficava com eles, eu não entendia nada de porcentagem e o que me pagavam era bom para mim. Comia, dormia, treinava, procurava ser disciplinado, obedecia a orientação daquele que chefiava o grupo, não sentia preocupação nenhuma. A turnê demorou algum tempo, quanto não sei. Alberto ou Estela aparecia às vezes onde estávamos. Lembro que uma vez apareceram os dois e foi para festejar o meu aniversário e foi muito bonito, cantos, brindes e presentes. Confesso que eu nunca sabia quando era meu aniversário. Alberto e Estela sabiam, quando chegavam cartas da mãe, eles procuravam me levar onde eu estava. Terminada a turnê voltamos para casa. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 312 7 NOVOS HORIZONTES SE ABREM: EUROPA E ALASKA oube que Alberto já tinha programado para eu viajar com outro grupo para a Europa, segundo fiquei sabendo o que dirigia o grupo se queixou para Alberto que tinha pouca gente para segurar duas horas de espetáculo. Foi aí que Alberto me incluiu nesse grupo, foram vários ensaios antes de partir, os meus novos companheiros gostaram muito de mim, enquanto que meus primeiros companheiros ficaram um pouco chateados. Alberto lhes apresentou um senhor que trabalhava com um casal de cachorros que faziam coisas extraordinárias. S Na Europa Dias depois parti com meus novos companheiros rumo à Europa e desse momento em diante o mundo ficou pequeno para mim. Ficávamos longas temporadas numa cidade, em seguida partíamos para outra, de repente mudávamos de país e às vezes voltávamos ao mesmo, cada um carregava e cuidava de sua indumentária e de seu material de trabalho. Durante aquele longo período de trabalho na Europa Alberto nos visitou uma só vez. Terminados os contratos retornamos para casa e ao chegar a alegria era geral, eu era o personagem central, Estela me perguntava se haviam me tratado bem, se não tinha passado fome, se não tinha adoecido. Talita, a governanta, veio e me abraçou, o marido dela também, Dodi era todo alegria. Depois de toda bagunça Alberto me entregou duas cartas enviadas pela minha mãe, na primeira ela agradecia o dinheiro enviado, era Alberto que tinha mandado, dei um abraço nele por essa gentileza. Na outra carta vinha um recorte de jornal da minha cidade onde aparecia eu de corpo inteiro e vestido a rigor e em letras grandes dizia: Artista colombiano triunfa em festival artístico, falava da minha apresentação. Foi Estela que leu a carta em voz alta para todos os presentes. Na carta a mãe me contava que quase todos os vizinhos tinham comprado aquele jornal, que a visitavam para felicitá-la e se lamentavam ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 313 por terem me tratado de ladrão e culpavam o tal do Geraldo por ter inventado aquela história. Contava-me também que a Romélia tinha mandado colocar o jornal numa moldura e tinha dependurado no quarto dela, que queria que eu lhe mandasse uma foto minha, me falava do Joãozinho, que ele tinha mudado muito, que não era mais aquele rapaz orgulhoso, que agora era calmo e um dia tinha aparecido em casa com a folha do jornal. Quando chegou, a primeira coisa que disse para a mãe foi: – Dona Isabel, venho lhe felicitar pelo triunfo do Negrinho. E a mãe me dizia: – Meu filho, ele me contou tudo, como você o tinha ajudado, já que você não me contou, fiquei sabendo por ele mesmo. Lamentou que os foram mal-agradecidos e grosseiros com você, que quando eles chegaram no hotel onde vocês estavam encontraram-no limpinho, penteado e perfumado e que eles nem sequer tinham falado com você e que só em casa ele teve chance de lhes dizer que a roupa que ele vestia era sua, e nem sequer tinham se importado quando ele lhes mostrou e lhes falou que a única calça que ele tinha era aquela toda suja e encardida que usava quando você o encontrou, a calça estava preta de sujeira. E quando você voltou, não o deixaram vir agradecer, e agora, o pai e a mãe dele têm, escondido dele, aquela folha do jornal, e ele já os pegou com o jornal aberto olhando a foto do Negrinho. Dizia minha mãe na carta: – Meu filho, agora nem eu nem teus irmãos precisamos nos esconder, ao contrário, todos nos cumprimentam e nos visitam e mandam lembranças para o Negrinho. A mãe me dava informações de todos os acontecimentos após ter saído no jornal, gente que ela nunca tinha visto antes quando passavam perguntavam: – A senhora é que é a mãe do Negrinho? Ela respondia que sim e lhe felicitavam. Contava-me também que o Dr. Corrêa e senhora tinham lhe visitado, Gratiniano e a filha, que a Elida, pensando que a situação era a mesma de antes, tinha levado um rancho, o mesmo tinha feito o Manolo, que veio com toda família e tinha levado uma boa quantidade de verduras, carne e ovos. – Meu filho, você deve se lembrar o quanto o André gostava de você, ele esteve aqui com o pai, a mãe e os irmãos, lembra-se que você deu uma foto toureando, ele colocou-a na sala junto com um quadro do jornal, ele fala muito de ti, te acha o máximo. Filho, eu não guardo rancor com ninguém, ao contrário, estou feliz com toda essa mudança, porém teu irmão continua rebelde, não quer saber de ninguém daqui, não se reúne com a garotada da vila nem participa dos convites da Romélia, mal fala com ela, ele prefere ouvir rádio e ler. É claro que não vou contar tudo o que a mãe me contava nas quatro folhas que me mandou, porém sim vou contar-lhes o que ela me escreveu a respeito do meu irmão Marino, é que um dia ela o questionou a respeito daquele ódio que ele guardava e ele tinha respondido: – Mãe, ninguém me viu chorar pelo sofrimento do meu irmão, chorei em silêncio e solitário de ver tanta injustiça para com ele e quando li o jornal, novamente ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 314 chorei, porém desta vez de alegria, só que na minha mente continua aquele desamor que tiveram para com ele apesar de tão pequenininho que era, e ter sido tão prestativo para com todos, eu os odeio. O André e seus familiares te mandam muitas lembranças, teus irmãos também mandam lembranças e beijos. Receba abraços e beijos da tua mãe que tanto te ama, Isabel. Quando Estela terminou de ler as cartas Alberto veio perto de mim e me disse: – Quer dizer que é toureiro e está caladinho? Em seguida Estela me disse: – Quer dizer que te chamam de Negrinho? Ninguém estava interessado na turnê pela Europa, queriam era saber o porquê das desculpas e da rebeldia do meu irmão. Estela com a carta na mão ia me perguntando, tive que contar tudo desde quando vendia cobras, o por que do Negrinho bonzinho, quando e porque fugi, o retorno bem vestido e com dinheiro e, ao invés de encontrar amigos, encontrei ódio e me tratavam de ladrão, só porque um rapaz tinha inventado uma história que ele tinha me visto ser preso pela polícia por estar roubando. Contei também que três pessoas não acreditavam de eu ser ladrão: uma minha professora Mariateresa, o André, e da família do nino Efraim não podia dizer nada, porque não sabia se a história tinha chegado aos ouvidos deles. Adoraram a minha história, a Estela e a Talita deram razão para meu irmão, ao contrário de Alberto e José, marido de Talita. A Estela dizia que foi o pontapé mais gostoso que meu irmão deu na bunda de todos eles. Alberto comentou: – Eu acho que ele não deveria ser tão radical. Ao contrário, deveria voltar para o seio dos amigos e poder desfrutar com satisfação a inocência do irmão. O José me perguntou: – Aquela Romélia que a tua mãe falou é bonita? Respondi: – Não prestei atenção, mas todos que a conhecem dizem que é linda. A mãe dizia na carta que Romélia já tinha tentado convencer meu irmão a não odiá-la tanto, mas ele respondeu que quem deveria ter me defendido era ela, porque me viu nascer, me deu banho, era ela que vinha em casa me dar mamadeira, me viu crescer e ver que desde pequeno já era um trabalhador, incapaz de tirar um centavo de ninguém. E foi ela a primeira a me virar as costas. Passei a não gostar muito quando Estela começou a se preocupar demais por mim, organizava minha roupa, engraxava meus sapatos, no almoço se sentava ao meu lado, por isso, quando viajávamos eu era feliz porque ela ficava em casa. Na companhia éramos uma família, todos nos queríamos, as nossas apresentações eram muito aplaudidas. O senhor Alípio era o diretor, todos o respeitavam, na hora do ensaio todos estávamos presentes e pontualmente, ele sempre nos dizia que estava velho e cansado e que gostaria de parar. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 315 Viajávamos muito, de trinta em trinta dias trocávamos de teatro e de cidade. Lembro que sempre que um de nós fazia aniversário nos reuníamos em algum lugar para festejar. Um dia antes do meu aniversário Estela apareceu onde estávamos nos apresentando, foi ela que se encarregou de organizar a festinha, que por certo foi muito bonita, porém eu não gostava muito da presença da Estela porque ela a toda hora estava me paparicando e isto me fazia lembrar Estefani e a família do Capitão Gaspar, enxergava dona Celi e o Pipo chorando e não queria que isso fosse acontecer de novo. Idas e vindas Muito tempo se passou entre viagens e voltas para casa e um dia, após uma longa turnê por vários países, ao chegar em casa, o senhor Alípio nos reuniu, inclusive Alberto, e nos informou que não pretendia continuar trabalhando, que estava velho e cansado e que queria curtir seus três netos. Alberto patrocinou a despedida, estavam presentes muitos artistas, além da esposa de Alípio estavam também os filhos com seus cônjuges e seus netos. Alberto me colocou em outro grupo com antigos companheiros, inclusive alguns tinham me visto no festival. Alberto e Estela queriam que no meu próximo aniversário eu estivesse em casa com eles e por isso após uma turnê chegamos em casa quinze dias antes do meu aniversário e não me mandaram com nenhum grupo, alegando que estava na hora de eu descansar um pouco. Meu aniversário foi festejado com colegas artistas, música, comida, bebidas e presentes. Na frente do palco tinham colocado um cartaz colorido que dizia: Feliz Aniversário Negrinho! Isto me trouxe uma reminiscência de quando era guri, quem organizava meus aniversários era Romélia, fazia um bolinho, preparava uma jarra com refresco, convidava algumas crianças da vizinhança, cantávamos os parabéns, comíamos o bolo, bebíamos o refresco e pronto, tudo ao contrário daqui, Alberto e Estela trouxeram um conjunto musical, Talita preparou muitos doces e salgadinhos, o salão foi decorado e compraram diferentes bebidas e ganhei roupa nova, nunca tinha dançado tanto, a Estela e Talita não me deixavam descansar. A festa terminou às 4 horas da madrugada, todos fomos dormir. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 316 Dois dias depois da festa fui mandado com um grupo para uma turnê em várias ilhas do Caribe. Alberto sempre acolhia a todos os artistas que lhe procuravam e mais que tudo se eram bons. Ao retornar da turnê pelas ilhas do Caribe estava em casa de Alberto um jovem sul americano ilusionista, fazia provas muito bonitas e bem apresentadas. Alberto o colocou no grupo que eu estava e quis que eu ficasse em casa para atender os pedidos de espetáculos que eram feitos na cidade e municípios vizinhos, também quando faltava algum artista num dos grupos que eu viajava eu o substituía. Uma vez tive de sair com um grupo o qual já tinha andado várias vezes e que era benquisto por todos eles. Nesse grupo trabalhava um patinador que viajava junto com a esposa, o número dele era muito bonito, arrancava muitos aplausos do público, eles eram europeus, a esposa não trabalhava na companhia, ela sempre ficava no hotel e procurava um lugar onde pudesse ser vista, comprava os canudos para bebidas, que naquele tempo eram de papelão encerados, os recortava em diferentes larguras, os tingia de diferentes cores, comprava vasos de cerâmica, os pintava e os decorava com aquelas tirinhas em desenhos diferentes muito bonitos e quase sempre os vendia no mesmo hotel. Os treinos eram das 14 às 16 horas, enquanto o marido ia para o ensaio ela aproveitava para descansar e ficava no quarto dormindo. Porém, como dizem que o diabo fez a panela e esqueceu-se da tampa, uma tarde Walter, que era o nome do patinador, se esqueceu de levar para o ensaio uma bengala que era para praticar um novo número, voltou para o hotel à procura da bengala, ao chegar ouviu os gritos da mulher pedindo socorro, entrou correndo e como pode arrombou a porta do quarto e lá dentro encontrou um cara tentando tirar a roupa da mulher, rasgando-a para deixá-la nua. O Walter se lançou sobre o cara, lhe encaixou o braço pelo pescoço, puxou e os dois caíram no chão, o Walter ficou embaixo e o cara em cima dele. De barriga para cima o Walter segurava firme no pescoço tentando asfixiar o homem, que se debatia para se livrar. Quando a mulher viu o marido embaixo do brutamontes, pegou rápido uma garrafa vazia e a quebrou, passando-a pelo rosto, pelo peito e pela barriga do cara. Walter não o largava, tentando asfixiá-lo. Quando chegamos encontramos a mulher do Walter num estado lamentável, chorava, algumas senhoras do hotel lhe limpavam o sangue e lhe cobriam o corpo com os lençóis da cama, outros tiraram o homem de cima do Walter. O cara jorrava sangue por todos os lados, ocasionado pelos cortes feitos pela mulher de Walter com a garrafa. Walter tinha um corte na parte de trás da cabeça e um pequeno corte do lado direito do nariz. Quando tiraram o homem de cima do Walter, ele gemia e ficou deitado no chão com dificuldade de respirar. Alguém tinha chamado a polícia, que chegou nesse momento. Walter, a mulher e o homem foram ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 317 levados para o hospital. Nós fomos juntos, assim como duas senhoras do hotel que tratavam de consolar a mulher de Walter que ainda chorava. Walter também tentava consolá-la lhe dando carinho. O casal foi medicado, ele levou dois pontos na cabeça, o resto das feridas eram só escoriações, idem da mulher. Um policial conversando com o pessoal do hotel dizia que aquele homem tinha sido solto da cadeia fazia dois dias, que havia estado preso durante quatro anos também por tentativa de estupro. Aquele dia seria a nossa última apresentação naquela cidade, porém não estávamos em condições, estávamos profundamente abalados. Quem dirigia o grupo era um cômico chamado de Villamizar, ele falou com o dono do teatro sobre nosso estado de ânimo, que foi compreensivo, e no dia seguinte voltamos para casa de Alberto que estava preocupado porque a notícia já tinha saído no jornal. Lembro-me que se lia na primeira página mais ou menos assim: Na tentativa de estupro, estuprador é ferido gravemente pela vítima com uma garrafa quebrada, depois falava do acontecido e da vida do estuprador. Walter e a esposa ficaram numa cidade que estava à uma hora da capital. Villamizar, que era primo de Walter e morava na mesma cidade, não quis ficar para poder entregar o grupo para Alberto, do qual era diretor. No dia seguinte ele voltou para a terra onde morava, ao se despedir senti o carinho que ele tinha por mim, me deu um forte abraço e disse: – A qualquer momento voltaremos a trabalhar juntos. As viagens temerárias em pequenos aviões À tarde apareceu uma senhora, Emma, que dirigia um grupo e para completar o elenco faltava um artista, ela queria que a vaga fosse preenchida pelo filho de dezoito anos que estava praticando para ser ilusionista, só que Alberto achava que ele ainda não estava apto para se apresentar em palco e outra coisa, só fazia números trucados e não se preocupava em aprender a praticar destreza. Quando Alberto me apresentou ao grupo que ela dirigia senti que ela não simpatizou comigo. Embora Estela tivesse pedido para Alberto me deixar mais alguns dias em casa ele alegou os muitos compromissos e ainda mais agora com um grupo a menos. À tarde estava todo elenco reunido e fui apresentado, alguns já me conheciam por termos trabalhado juntos. Diga-se de passagem, eu não queria ficar em casa porque a Estela a toda hora me paparicava e a Talita também às escondidas de Estela. Eu gostava muito de Alberto, sempre chegava, me entregava os recibos do correio onde constava o dinheiro enviado para minha mãe e sempre deixava um troco para mim. Dois dias depois nos despedíamos, porém antes de sair ouvi ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 318 que Emma me olhando de soslaio disse para Alberto: – Tu sabes como sou exigente. Alberto respondeu: – Podes estar tranquila que a peça é segura. Como viajávamos para um país centro americano, nos tocou viajar num teco-teco bem rampeiro, diziam que era um bimotor. O barulho dos motores era ensurdecedor, por momentos pulava, fazia uma barulheira, parecia que andávamos de carro por uma estrada de chão, toda esburacada, tal era o desassossego, que terminou me mareando. A aeromoça corria, tratando de nos atender porque éramos vários passageiros mareados. Meus companheiros também me socorriam, dona Emma nem se importava comigo, ao contrário de outros diretores que sempre estavam pendentes em mim, esta senhora de vez em quando me olhava de cara feia e com um olhar de censura. Às 17 horas estávamos no aeroporto, a aeromoça tinha me dado um vidrinho com umas gotas para tomar com chá antes de deitar. Após tomar banho no hotel, fui até uma das cozinheiras pedir o favor de me fazer um chá conforme tinha me dito a aeromoça, o que a cozinheira, muito gentil, imediatamente fez, só que quando dona Emma me viu sair da cozinha com o chá, chegou toda braba dizendo que não era para estar incomodando os outros. A cozinheira, no mesmo momento falou-lhe que eu não estava incomodando, que elas tinham obrigação de atender ou auxiliar os hóspedes e que eu não incomodava. No outro dia, depois que fiz a minha apresentação, ela apareceu no meu camarim, e com palavras ríspidas disse: – O Alberto sabe que sou muito exigente e quero que você aplique um pouco de simpatia à sua apresentação. Eu nunca lhe respondia nada, sempre ficava calado. Terminada a nossa temporada naquela cidade, teríamos de nos apresentar noutra cidade e noutro país e viajaríamos de avião. Uma das colegas tinha me aconselhado que quando fosse viajar de avião não tomasse líquido, no mínimo uma hora antes de viajar, e deveria cheirar limão. Tinham lhe passado a receita e ela nunca mais se mareou. Antes de viajar comprei dois limões e os levava numa mão e na outra levava minha bolsa, na mão que levava os limões também segurava o cartão de embarque e tive pouca sorte, pois no momento de entregar o cartão na porta de embarque, caiu no chão um dos limões e no momento que me agachei para pegar o limão, a dona Emma chegou até onde eu estava e me deu um coice na bunda e gritou: – Deixa essa porcaria aí rapaz! Uma das colegas que vinha junto com o marido viu a cena e não gostou. Bom, nem é preciso falar que a dona Emma ouviu o que tinha e o que não tinha que ouvir, inclusive a ameaçaram de abandonar a companhia. No grupo andavam dois casais de ciganos que tocavam violão e dançavam música espanhola, o público gostava do número deles, era ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 319 muito bem apresentado. Eles não gostavam do jeito que a Emma me tratava e algumas vezes discutiam por minha causa. A Emma tinha um filho que sempre me procurava para lhe ensinar a fazer as provas de destreza, eu lhe ensinava, porém tudo errado. No grupo também havia dois atiradores de facas, eles eram irmãos, um era casado e o casal tinha uma filha, eles eram muito amigos de Emma. O filho de Emma era apaixonado pela filha do atirador de facas, e todos sabíamos que o irmão solteiro do atirador andava de chamego com Emma. O atirador de facas, a mulher, o irmão solteiro dele e a Emma, eu sentia que não gostavam de mim. Nuvia, que era o nome da filha do atirador de facas, não gostava de Tito, que era o nome do filho da Emma. Nuvia um dia me confessou que sentia verdadeiro nojo do Tito, que ela se fazia amiga dele para não contrariar os pais. Eu era muito amigo de Nuvia, e mesmo que os pais não quisessem, ela sempre me procurava para conversar. O risco Um dia saí para dar uma volta pela cidade, quando vi a Nuvia me alcançou, vinha escondida dos pais e me disse que enquanto ela estava tomando banho, escutou os quatro combinando que no dia seguinte a mãe ia se fazer de doente e iam me convidar e ao Tito para ficar na tábua enquanto eles atiravam as facas. Este era o trabalho da mãe de Nuvia, mas eles combinavam para que Tito e eu a substituíssemos. Uma vez Tito ficaria na tábua e outra vez eu, e um deles trataria de colocar a faca bem perto de mim para me cortar, desta forma me mandariam para casa e tratariam de colocar o Tito no meu lugar. Na noite do espetáculo, mesmo que a Emma tivesse me pedido para ficar, apenas terminei meu número, desapareci. O Tito, que já estava acostumado, teve que enfrentar todas as facas. Pela forma como os atiradores e a Emma me tratavam, de uma forma rude, tinha se formado uma certa tensão de inimizade na companhia. Quando estávamos na casa do Alberto eles me tratavam com um falso carinho, que eu entendia. Sempre eu pedia para os ciganos e aqueles que na companhia gostavam de mim que, por favor, não contassem nada para o Alberto e para a Estela porque eles eram muito bons para mim. Sempre que faltava um artista num dos grupos e não tinha a quem colocar, tocava a ele correr, ir até o sindicato dos artistas, até conseguir preencher a vaga. Com toda certeza posso dizer que eu não entendia o porquê eu preferia andar com a Emma e ser maltratado a ficar em casa e ser bajulado pela Estela e a Talita... ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 320 Depois de várias turnês por diferentes países ficamos em casa durante três dias descansando, no quarto dia saímos para uma turnê numa ilha do mar do Caribe, lá nunca tínhamos estado, o contrato era por quinze dias, ou seja, quinze apresentações. Lembro que a cidade era muito bonita, tinha muitas palmeiras, os prédios eram antigos, de construção tipo colonial, me levantava cedo e andava por tudo quanto era lugar da cidade, a única coisa que não gostava é que havia muita pobreza, mendigos por todas as partes, meninas bem novinhas já eram prostitutas, que se vendiam aos muitos estrangeiros que ali chegavam. Eu gostava muito de ir até a beira do mar, apreciava muito ver os navios ancorados, por toda a parte encontrava senhoras ou rapazes que vendiam doces, salgados, frutas, melancias em fatias, igual que o abacaxi. Como fazia muito calor encontrava vendedores de picolé, eu gostava de comer alguma coisa, o meu lugar predileto era um lugar que eles chamavam de Malecom, era naquele lugar que mais gente se reunia. O convite do Padre Missionário Um dia, quando estava sentado num banco de uma praça comendo um picolé, um padre sentou-se ao meu lado. O padre suava, tirou o lenço, se limpou e queixou-se do calor, me cumprimentou, o sotaque dele me era familiar, vestia-se como era usual naquele tempo, terço pendurado na cintura, breviário na mão e chapéu de copa baixa, que por momentos lhe servia de leque. Perguntou-me a idade, de onde era, claro respondi da Colômbia, estava disposto a não lhe contar que trabalhava no teatro e o que fazia. Quando me perguntou o porquê estava tão longe da minha terra e o que fazia, respondi a primeira coisa que me veio à mente: – À procura de trabalho. – E conseguiu? – Não senhor, respondi. A seguir me falou que era um padre com a missão de catequizar esquimós no Alaska. Em seguida tirou do bolso da batina um pequeno mapa e me mostrou onde ficava aquele lugar, me falou que lá era tudo coberto de gelo, que os dias duravam seis meses, idem as noites, eu lhe fazia muitas perguntas e ele me respondia. Falou-me tanta coisa do lugar, que a cada minuto eu ficava mais curioso e quando me disse que se locomoviam em trenós, que era um tipo de carroça puxada por cachorros, acho que ele notou a minha curiosidade, o meu entusiasmo, que em determinado momento me disse: – Se tivesses licença dos teus pais eu te daria emprego lá nas missões. – Que faria eu lá, perguntei. Ele respondeu: – Meu filho, o que não falta lá é trabalho, tu poderias ganhar um dólar por dia, livre de comida, dormida, algumas roupas e roupas lavadas. Ele me falou que um dos trabalhos que teria seria percorrer muitos quilômetros em trenó trazendo garotos e garotas esquimós para serem catequizados. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 321 Quando ele falou de viajar de trenó, me entusiasmei, e foi recém aí que eu disse: – Padre, eu tenho passaporte, tenho licença da minha mãe e do Juiz para viajar. Em seguida o padre me disse: – Vamos, quero ver essa licença. Menti de novo para o padre e lhe disse: – Padre, agora eu tenho que levar um cesto do mercado para uma senhora, que além de me pagar e me dar comida, às vezes me dá algumas roupas. Mas prometi para o padre que no dia seguinte traria a carta da mãe me autorizando a viajar e a licença do Juiz. Mesmo com certa desconfiança, notei que o padre estava interessado em mim e eu também estava interessado na vaga que ele me oferecia. Conversamos mais um pouco e combinamos de nos encontrar no dia seguinte no mesmo lugar e na mesma hora. Antes de me despedir perguntei-lhe se viajaríamos de avião. – Não, me respondeu, vês aquele navio que está fora do porto? Mostrou-me o navio e disse: – Aquele navio amanhã vai atracar no porto para ser carregado com açúcar, café, milho e mais algumas mercadorias para depois de amanhã partirmos de madrugada. No dia seguinte eu estava no lugar e hora combinados e ele também. Mostrei a carta do Juiz e a autorização da mãe, ele gostou, sorriu e colocando sua mão na minha cabeça disse: – Então vamos viajar. Mostrou-me o navio e falou, já está sendo carregado, de madrugada partiremos. Em seguida me levou até o navio, me apresentou para as freiras e para outros padres e o pessoal civil que também viajavam junto e alguns marinheiros. Quando calculei que meus companheiros estivessem no ensaio, falei para o padre que ia trazer minha roupa, ele concordou e saí correndo, nesse horário o hotel estava quase vazio, peguei minha bolsa, que já havia deixado pronta e voltei correndo para o porto. No navio todos me receberam com alegria e me levaram para o camarote que tinham me reservado. Com o pretexto de organizar as minhas coisas, tratei de ficar lá dentro para evitar que alguém pudesse me ver. Na madrugada do dia seguinte acordei com o barulho de gritos, batidas de sinetas e aquele corre-corre dos marinheiros. Tudo isto me trouxe lembranças daquela primeira vez que fugi da minha casa, escondido no camarote do cozinheiro italiano daquele navio onde tantas vezes vendi bananas e muito fiz as minhas refeições. Senti uma leve sensação de nostalgia, mas rápido se sumiu ao me lembrar que estava me livrando da Emma, que sempre me maltratava, igual que seu amante e o casal de atiradores de faca, o resto dos companheiros todos me queriam em. Mesmo quando tudo ficou em silêncio não quis me deitar, fiquei olhando pela clarabóia, me dava a impressão que não era o navio que se ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 322 movimentava e sim o porto que se afastava. Não lembro em que momento me deitei, peguei no sono, sonhava alguma coisa, o quê não sei. O sol entrava através da clarabóia e batia no meu rosto, continuei deitado, de pronto ouvi que batiam na porta, levantei, corri e abri, era meu amigo o padre, estava preocupado porque eu ainda não tinha tomado café e o dia estava bem avançado. Falei para o padre que tinha conciliado o sono só na madrugada, me lavei bem rápido, me vesti e acompanhado do padre nos dirigimos ao comedor. Lá encontrei os padres e as freiras que conversavam e riam. Ao chegar lhes contei o porquê tinha me acordado tão tarde, o café estava pronto numa garrafa térmica, numa bandeja tinha pão, queijo, salame e alguns doces. Terminado o café pedi licença para ir me escovar os dentes, me pediram para depois voltar ao comedor. Novamente no comedor me fizeram todo tipo de perguntas, que eu respondia, algumas vezes mentia, outras vezes falava a verdade, sempre escondendo a parte artística e também não falava que tinha fugido da companhia. Atravessando o canal do Panamá A hora do almoço nos pegou ainda no comedor conversando e rindo, antes de começarem a servir o almoço os padres fecharam as portas do comedor para rezar, fiquei sabendo que os marinheiros não gostavam de orações em alto mar, por isso as portas eram fechadas para eles não ouvirem, meia hora depois da oração foi servido o almoço. Após o término e com o pretexto de ir me lavar fui dormir os meus famosos dez minutos. Meia hora depois voltei ao comedor, mas não tinha ninguém, todos tinham ido dormir a sesta, subi para a cobertura onde encontrei vários marinheiros, alguns fumavam, soube que estavam de plantão, porque em alguns minutos atravessaríamos o canal do Panamá. Continuei a conversar com eles e como em todo lugar e com todas as pessoas que falavam, eles também achavam meu sotaque bonito. Estávamos em divertida conversa quando escutamos a batida forte de um sino, em seguida todos correram, uns para a popa outros para a proa, estibordo e bombordo. Naquele momento o prático autorizou o rebocador a puxar o navio para dentro das eclusas com sua orientação. Eu estava na proa olhando todo aquele movimento e no momento que o navio foi entrando na eclusa me invadiu um não sei o que de tristeza, meu coração batia um pouco mais acelerado ao lembrar que por ali passei naquela madrugada quando pela primeira vez fugi da minha casa, tinha vontade de chorar, as lágrimas não saíam, quis se formar aquele nó na garganta, pensava que bom se estivesse voltando para casa, mas eu não ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 323 sei nem para onde eu estava indo, se para muito longe da minha terra, comecei a sentir arrependimento por ter aceito o convite do padre e eu mesmo me dizia: porque não fiquei na companhia, que importava a Emma e seus amigos me tratarem mal, era só dizer para Estela que ela seguramente me tiraria daquele grupo, mesmo Alberto não querendo. Longe estava de mim, completamente afundado nas minhas reminiscências, encostado no parapeito da proa, quando senti que alguém colocou a mão na minha cabeça e disse: – Ô correge, andava a tua procura! Mais uma lembrança se manifestou, era desta forma que o Antônio me tratava, o sotaque, a voz eram parecidos, só que desta vez era o padre que me perguntou: – Porque estás aqui tão solitário? Respondi: – Estava conversando com os marinheiros, só que cada um foi desempenhar a sua função. Em seguida ele me disse. – Como é lindo ver a travessia do canal, não achas? – Sim senhor muito bonito, respondi. Porém eu não estava olhando e nem queria ver. Em seguida me convidou para ir ao comedor onde estavam todos reunidos e me convidaram para tomar um cafezinho, junto com comentários e conversa até a hora do jantar. Fiquei sabendo que as freiras e alguns padres davam aulas para alguns jovens marinheiros, fiquei interessado em participar das aulas e fui aceito de imediato e depois de um breve exame recebia aulas de segundo ano primário, dias depois comecei a participar com alguns padres de aulas de matemática, linguagem, ciências e geografia. A minha professora, freira, me emprestava livros, que eu adorava ler e que se não fosse pelos livros, a viagem seria monótona. Quanto tempo andamos não sei, só lembro que o navio parou num porto, era madrugada, o frio era intenso, tal era que não tive coragem de me levantar. No dia seguinte quando o sol penetrava pela clarabóia me levantei, vi que o porto estava a certa distância, coloquei o remédio nos olhos, fui tomar café e em seguida estudar. Os dias se sucediam e eu aproveitava para estudar o máximo que podia e feliz porque os olhos não estavam incomodando. À noite, antes de me deitar, praticava provas diferentes, no navio ninguém sabia das minhas habilidades. O tempo passava, o navio andava de noite e de dia sem novidades, sem algum acontecimento de importância. Dias depois, quanto não me lembra, só lembro que começava a escurecer e ao longe comecei a enxergar o brilho de pequenas luzes dando a impressão de milhares de libélulas, eu estava enrolado até a cabeça com cobertores de lã devido o frio, eu olhava de dentro do meu camarote pela clarabóia e comecei a sentir saudades daquela tarde em que me despedia do Gustavo no cais daquele porto e depois de algumas horas de viagem comecei a ver aquelas pequenas luzes se aproximarem ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 324 do navio e no meio de uma tristeza por deixar aquela terra e aqueles amigos que tão bem me trataram e tantos presentes me deram, também sentia alegria porque estava voltando para minha casa, para minha terra, para o lado dos meus, para a minha Colômbia, mas neste dia pensava o contrário, mais me afastava dos meus e da minha terra e sem saber aonde é que eu iria parar. Cansado de tanto olhar pela clarabóia, porém as luzes tinham desaparecido, só se viam umas tênues sombras, dando a impressão de serem torres de igrejas ou algumas chaminés. Vesti três calças, três camisas e três pares de meias e com uma toalha enrolada entre a cabeça e o pescoço me dirigi ao comedor onde o pessoal me esperava com uma xícara de café com leite bem quente, não houve coisa melhor para amortecer um pouco o tremendo frio, é claro que o comedor era quentinho e era ali que recebíamos as aulas. O frio Um dia após uma noite bem dormida acordei com o barulho de gritos, ronco de motores e uma certa vibração do navio, como de costume corri para a clarabóia e vi que o navio estava atracado num porto e o barulho era dos guinchos descarregando a carga que era colocada em reboques e puxados por um trator e levados para um trem de carga que estava a poucos metros do navio. Calculo que deveriam ser mais de vinte vagões de carga, duas máquinas seriam necessárias para movimentar aquele trem, as máquinas eram alimentadas a carvão mineral. Uma máquina puxava na frente e a outra empurrava atrás, a seguir desta máquina estava um vagão cilíndrico que transportava combustível e depois estavam os vagões com carga. Eu estava deitado, com três cobertores, e mesmo assim sentia muito frio, estava arrependido de ter aceitado tal viagem, ou melhor, o tal emprego, o sol ao invés de esquentar dava a impressão que era gelado. O padre chefe apresentou-se com um casacão preto e pediu para eu vestir, era grosso e pesado, as mangas eram compridas, sobrava quase 10 centímetros. Para não arrastar no chão foi necessário amarrá-lo na cintura, se notava perfeitamente que aquele sobretudo pertencia a alguém alto e gordo. Eu não sei o que parecia vestido daquela forma, com luvas pretas e com um gorro que cobria até minhas orelhas, é claro que uma vez vestido com o dito casaco ajudado pelos padres e freiras, cheguei a sentir calor, em seguida o padre convidou-me para sair, naquele dia não tivemos aula. Agora imaginem a minha dificuldade para descer as escadas com aquela parafernália toda, aquele peso todo no meu corpo. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 325 No trem Abandonamos o porto, nas ruas se viam vendedores de todo tipo de bijuterias, chapéus, capas, roupas, sapatos, etc., havia de tudo, o barulho era infernal, todos gritavam anunciando as suas mercadorias, as ruas estavam molhadas, dando a impressão que tivesse chovido durante a noite. As ruas não eram asfaltadas, eram de um pedregulho fino, agora imaginem o barulho que se produzia ao caminhar de tanta gente, ao passo das carroças, de cavalos, misturados com os gritos dos vendedores, era um verdadeiro Mercado Persa. Atravessamos no meio de toda aquela bagunça até chegarmos na loja de um conterrâneo do padre, fomos bem recebidos por ele, pela esposa, filho e filha, ele tinha um nome difícil de esquecer, Luiz Divino, quando a jovem me viu vestido daquele jeito exclamou: – Coitadinho! Pegou-me pela mão e foi me puxando para dentro da casa e me desamarrando, tirando aquele peso do meu corpo. Em seguida me trouxe uma geringonça que era chamada parky, sem me tirar a roupa me fez vestir o tal parky. Que alívio ao me sentir livre daquele peso e por certo era bem aconchegante. O padre entregou algumas encomendas, seguramente vindas da Espanha, a seguir nos convidaram à mesa onde nos foi servido um gostoso café com leite e bem reforçado, lembro a maneira carinhosa que esta família me tratou, também os empregados, a conversa foi pouca. Após o café nos despedimos e fomos cumprimentar o pároco da única igreja existente, que também era seu amigo, a seguir fomos para um hospital de crianças e por último visitamos um colégio dirigido por religiosos. Às 14 horas estávamos de regresso. A bagunça da descarga continuava, alguns padres dirigiam o lugar onde deveria ser colocada a carga nos trens e em seguida deram informações para o padre, que era o chefe, depois subimos no navio onde nos esperava nosso almoço. Uma vez terminado, o padre foi descansar e eu fui dormir meus 10 minutos que se prolongaram por meia hora. Aquele barulho, aquela correria da descarga demorou quase uma semana. Uma hora depois de terminada a descarga, nos mudamos para os coches dormitórios, o padre teve o cuidado de escolher para que eu dormisse na parte de cima do camarote e ele na inferior. As refeições também passaram a ser no coche restaurante. Doze dias após a nossa chegada nosso trem partia puxado por uma máquina na frente e empurrado por outra na parte de trás. Apesar disto, a marcha do trem era lenta, mesmo que a subida não fosse muito íngreme o pendente era contínuo e para as rodas não patinarem, no centro dos trilhos havia uma engrenagem que encaixava com outra que estava na máquina, tipo cremalheira. No segundo dia da nossa partida o padre me deu um par de ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 326 óculos bem escuros, me informou que em poucos dias veríamos neve por todos os lados e olhar sem aqueles óculos poderia queimar a retina. Sem nada a fazer lia bastante, eram livros que o padre me emprestava. Depois de alguns dias de viagem, notei que não clareava, a noite era contínua, o padre me deu algumas explicações a respeito deste fenômeno da natureza, eu perdi a noção do tempo, não sabia quando era dia ou quando era noite. Às vezes quando dormia escutava ruídos, gritos, risadas. Olhava através dos vidros das janelas e notava que o trem não estava em movimento, via gente se movimentando, carregando sacos, correndo, e os depositando em galpões que estavam perto da estrada de ferro, depois de algumas horas de bagunça e corre-corre o trem continuava sua monótona marcha, eu ficava mais tempo olhando para fora, é claro que com os óculos escuros não se via nenhum tipo de movimento, tudo era escuridão, a neve parecia um lençol sujo de barro. Na hora das refeições todos se reuniam no coche restaurante, padres, freiras e civis, o único menor era eu. Antes do jantar era a hora da oração. Uma vez era dirigida por um padre outra por uma freira, depois do jantar se conversava, e quando o deus morfeu se manifestava, cada um se despedia e ia à procura do seu camarote. Quase sempre eram as freiras, e eu também era um dos primeiros a me despedir. De vez em quando o trem parava e a bagunça começava, eu já não fazia caso, sabia que era em lugares onde havia missões religiosas e as paradas eram para deixar produtos para a manutenção do pessoal das missões. Às vezes me acordava, não sabia se era dia ou noite, sentia fome, me dirigia ao coche restaurante, na cozinha destampava as panelas e comia o que mais me apetecia, esta atitude não era proibida, às vezes encontrava alguém na mesma situação, eu às vezes comia comida quente, outras preparava um sanduíche e comia acompanhado de refri, em seguida voltava para meu camarote, procurava não fazer ruído, ia a passos lentos, ouvia cada ronco que eu ria, alguns roncos eram acompanhados de assovios. Se a gente prestasse atenção aos roncos acompanhados de assovios, todos juntos davam a impressão de se escutar uma sinfonia com raros instrumentos. O meu padre protetor também era um bom roncador, gostaria de saber como era o meu ronco. Numa destas noites, subi para minha cabine, deitei, não tinha vontade de ler, fechei a cortina, apaguei a luz e comecei a pensar na minha família. Sentia-me arrependido de ter empreendido aquela aventura. O ronco dos companheiros de viagem Já fazia dias que aquele trem andava, andava e nunca chegava a lugar nenhum, coitada da mãe que não sabia por onde eu andava. Fiquei meditando um pouco e comecei a rir dizendo: Agora, que é bom aventurar, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 327 é bom mesmo! Um dia estarei contando para a mãe e para meus irmãos os lugares por onde andei, os países que passei, as pessoas com quem tratei, as amizades. Contar-lhes-ei a respeito desta viagem que nunca termina, desta escura e longa noite sem saber quando vai terminar, quando vai clarear, contar-lhes-ei que para poder olhar para fora do trem tenho que usar óculos bem escuros, que não se vê gado pastando, não há ruas nem gente, ao menos andando a cavalo, nem a pé, tudo que se enxerga é neve, um imenso lençol branco, não se vê torres de igrejas nem chaminés de fábricas espalhando fumaça. Um ronco forte acompanhado de uma risada me chamou atenção, abri a cortina e vi que era o meu vizinho de camarote, tinha a cortina aberta, acho que com o próprio ronco tinha se acordado, me olhou e disse: – Oi! Respondi, tudo bem? Ele foi até o banheiro e quando voltou ficou escutando o ronco do padre e me disse: – Eta! Que o padrezinho ronca lindo! Eu não quis falar nada a respeito do ronco dele, subiu no camarote e poucos minutos depois estava firme na roncadeira. Fiquei pensando: Como é o ser humano, ele criticou o ronco do padre sem se dar conta que o ronco dele era mais alto e ainda acompanhado de risada. Não conseguia dormir, desci do camarote e me veio a ideia de escutar o ronco de cada um para em qualquer oportunidade imitá-los, claro que já me dava com todos, eram muito legais, todos mexiam comigo e eu com todos. Quem diria, um menor, vivendo uma eterna noite, esperando um amanhecer que nunca chegava, indo num trem que andava e também nunca chegava em parte alguma, dentro dele a mesma gente, os mesmos cumprimentos, o mesmo horário para cada coisa, sem muito espaço para andar, a não ser do coche dormitório ao coche restaurante e vice-versa, rezar, comer, dormir e descansar sem estar cansado. Após o almoço eu dormia os 10 minutos do Antônio, que ultimamente tinham se transformado em horas e mais horas de sono, em nenhum outro lugar dormi tanto como naquele trem. Lembro que quando passávamos do coche dormitório para o coche restaurante, naquele pequeno trecho onde se uniam os dois vagões, ao passar por ali o frio era intenso, entrávamos com nossas roupas cobertas de gelo, sorte que o coche restaurante era bem quente e rápido o frio desaparecia. Eu já não suportava mais aquela monotonia, não tinha mais vontade de ler nem mexer com o baralho, não tinha vontade de fazer nada, dentro daquela monotonia até o ruído do trem me incomodava, ultimamente só tomava o café da manhã, almoçava e jantava, não fazia os lanches intermediários como de costume. Uma vez, no momento que estava tomando o café, chegou o padre e me perguntou se eu gostaria de escrever para a minha família da Colômbia, claro, respondi todo entusiasmado, em seguida me entregou três folhas de papel pautado e alguns envelopes. Explicou-me como ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 328 deveria escrever o remetente e em um dos envelopes já estava escrito o endereço para onde a correspondência deveria regressar. Fiz tal como o padre me explicou, me aventurei e coloquei duzentos dólares e entreguei a carta para o senhor Henry Mac. Senhor Mac era funcionário da viação férrea, ele todos os dias e seguidamente frequentava todos os vagões, tanto os nossos como os de carga, e até cuidava de algum gado que também viajava em um vagão especial, também entrava nos banheiros, e se alguém não tivesse dado a descarga, ele aproveitava para limpar, tudo era feito de três a quatro vezes por dia. Sempre que nos encontrávamos me cumprimentava fazendo alguma brincadeira. Quando lhe entreguei a carta, ele leu o envelope, colocou sua mão na minha cabeça e disse: – Oh, Colômbia! E continuou a sua tarefa. A escura noite continuava. A monotonia era cada vez maior, eu tinha vontade de fazer alguma coisa, mas não tinha o que fazer. O trem continuava sua lenta marcha. “E o vento levou” foi o livro que conseguiu me prender, imaginava aquela sociedade, ricos plantadores de algodão, donos de muitos escravos, Margaret Michel caprichou de tal forma que eu chegava a estar presente naqueles bailes e chegava a evidenciar o rosto de Scarlet Ohara, que sacrificou seu amor e depois da guerra enfrentou a pobreza com firmeza e com mão de ferro. Aquele livro me tirou daquela misantropia, lia-o até pegar no sono. Uma vez, que tinha pegado no sono, com a impressão de que sonhava, ouvia vozes, latido de cachorros, gritos, ruídos de atritos com ferro, lentamente fui abrindo os olhos e vi que a minha cabine estava toda iluminada, dei um salto e me levantei, feliz porque pensei que tinha clareado, que era dia, mas não era, e sim a luz da estação do trem. Olhei através da janela e vi que o trem estava parado e na parte de fora tinha muita gente que descarregava o trem, uns levavam caixas de papelão, também caixas de madeira, latas rolavam, também daquelas de dois litros. Nunca tinha visto tanto cachorro, todos atrelados nos trenós, muitos já estavam carregados e imediatamente partiam em grupos de aproximadamente uns trinta trenós, sempre acompanhados por dois ou três padres, era bonito ver aqueles cachorros puxando aqueles trenós, era como se fossem cavalos puxando carroças. Enquanto uns carregavam os trenós outros depositavam a carga num galpão grande e bem iluminado que também servia de estação. Viagem de trenó na terra do eterno gelo Após me lavar e vestir, dirigi-me ao coche restaurante onde encontrei o cozinheiro e o ajudante. Ao me ver, chamaram-me para tomar café. Enquanto tomava perguntei o que era ali naquele lugar, e a resposta que recebi foi: – Aqui terminamos a viagem de trem, daqui para frente não ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 329 tem mais trilhos. Olhei para fora e realmente, não havia mais trilhos, tudo era só gelo e a noite continuava. Vestido com o parky fui saindo e olhando para aquele infinito lençol branco, ali pelo menos se viam umas casas, visitei algumas, me sentia melhor, com mais ânimo dando aquela caminhada, embora por sobre a neve. Ainda foram vários cafés, almoços, jantas e orações, até que chegou o dia em que os que restavam partiram, porque alguns dos padres companheiros foram para outras missões. Eu e os que ficaram partimos de trenó, geringonça que nunca tinha andado. Nos acompanhavam calculo que mais de duzentos trenós, todos carregados e puxados por cachorros, que por certo eram cachorros muito bonitos. Depois de muitas horas andando, olhei o relógio, e o padre que sempre ia à frente num trenó vazio, e eu a seu lado, mandou parar, primeiro todos reunidos, padres, freiras e nativos rezamos, em seguida foi servido o jantar que já vinha pronto noutro trenó exclusivo para este fim e com fogareiros à base de querosene. Após o jantar e um pouco de conversa e brincadeiras, cada um foi se acomodando no lugar já previsto de seu respectivo trenó. Depois de ter dormido um bom sono me acordei com o barulho dos cachorros, que tinham sido desatrelados dos trenós e alimentados e agora estavam sendo atrelados novamente, tarefa que faziam com muita eficiência os nativos. Tudo pronto e após tomar o café partimos, sempre sob aquela escuridão da noite eterna, que até hoje lembro. Foram muitas as paradas para comer e dormir e muitas horas que andamos até chegar ao prédio das missões, que assim era chamado por todos. Na nossa chegada saía gente de tudo quanto era lado, eram padres, freiras, professores, alunos. Nos recebiam com muita alegria, é claro que o pessoal que vinha no trem, a maior parte era dali mesmo da missão. Os trenós eram descarregados pelos nativos com muita bagunça, todos ajudavam, homens, mulheres, eu só observava, não entendia nada. Fui apresentado para todos os presentes, duas freiras me mostraram o prédio por dentro, inclusive a igreja, por último me levaram ao quarto que me tocaria, tinha cama, guarda-roupa, mesa, um sofá e duas cadeiras, banheiro, onde o chuveiro tinha água quente, luz elétrica, toda comodidade, como em qualquer hotel de luxo. Desta minha permanência nesta missão não tenho muito a contar. Dias depois da chegada me designaram um serviço que era por turno, e não era sempre o mesmo. Um engenheiro elétrico era o chefe geral, era da Costa Rica, me mostrou todas as instalações, para o fornecimento de luz elétrica tinham três geradores grandes, que ficavam funcionando durante dez dias seguidos, depois eram desligados e eram ligados outros, e assim sucessivamente. A água era do próprio gelo, através de uma ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 330 caldeira alimentada à base de lenha. O prédio era de aproximadamente 80 metros por 30 metros, tudo era aquecido através de uma tubulação de chapa, tudo era bem organizado, todos tínhamos nossas tarefas a cumprir, que em determinado tempo trocávamos. A rotina na Missão Aos domingos era rezada a missa que todos assistíamos, o que nunca pude saber de onde era que vinha tanta gente para assistir a missa, a parte de fora ficava cheia de trenós. Eu digo aos domingos porque as missas quase sempre são aos domingos, porém, na realidade, não sabia se era domingo ou que dia era, vivia desnorteado com aquela noite que nunca clareava. Como existia falta de pessoal para cumprir todas as tarefas, eram utilizados aqueles esquimós que já estavam civilizados. Lembro que quando recém cheguei encontrei crianças esquimós choramingando continuamente, me informaram que nos primeiros dias, quando elas chegavam, eram assim mesmo, até se adaptarem, melhor dito, para se tornar civilizadas. Um dia, na minha hora de descanso, eu dormia, quando alguém bateu na minha porta gritando: – Ortega, acorda, vem ver. Quando abri a porta vi o Delfin, um funcionário antigo na missão, que ultimamente tinha se tornado meu grande amigo, era australiano e tinha se criado naquela região, tinha chegado com os pais muito criança, ele me pegou pela mão e disse: – Vem, vem ver! Saímos correndo, lá fora os esquimós estavam numa espécie de rito, todos eles, pequenos, jovens, adultos, idosos. Não era para menos, fiquei posso dizer de boca aberta, nunca tinha visto espetáculo mais lindo. O sol parecia se esconder atrás do globo terrestre, dando a impressão que seu diâmetro era de uns 30 centímetros, só mostrava a terceira parte, seus raios, em contraste com a neve, formava uma extensa gama de cores belas, nunca vistas. Não estava totalmente claro, era um amanhecer divino, me sentia feliz por ver tal maravilha, e agora não me sentia mais arrependido de estar ali, suportando aquela longa e interminável noite, ao contrário, sentia um grande júbilo por estar lá. Quantas milhares de pessoas gostariam de observar aquela beleza e eu tinha este privilégio. Delfin, observando a minha emoção, disse: – A este fenômeno se dá o nome de Aurora Boreal, agora daqui para frente não vamos ter mais noite, só será dia! Antes de clarear totalmente chegaram vários trenós com mercadorias, também traziam muita correspondência, entre elas uma carta para mim, era a mãe que me escrevia, me agradecia pelos duzentos dólares que tinha lhe mandado. Fiquei feliz ao saber que tinha recebido a minha carta, quando li a data de envio vi que faltavam poucos dias para completar três meses da mãe ter me escrito. Depois de ter lido a carta ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 331 continuei me sentindo arrependido de ter fugido da companhia e não ter me queixado para Estela. Aqui neste lugar onde me encontrava não tinha nenhuma chance de fugir, não sabia para que lado pegar nesta imensidão. Todo o pessoal que recebeu carta começou a escrever, eu também fiz o mesmo, coloquei cem dólares, e como todos, entreguei para o mesmo que me deu a carta. Estava tomando café quando o padre chegou à mesa onde eu estava, vinha junto com Delfin, o australiano, e o padre me disse: – Ortega, tu vais ter que ir com Delfin para trazer umas crianças esquimós que já nos foram prometidas, eu não entendia, mas obedeci. Após alguns cafés, almoços, orações e jantares, o trenó pronto com mantimentos e demais coisas, vestidos com nossos parky Delfin e eu partimos. Vi que era bastante a quantidade de mantimentos que levávamos, comidas prontas e cruas, querosene, fogareiros, várias garrafas térmicas com café e bastante comida para os cachorros. Delfin conhecia aquela região como a palma de sua mão, eu não sentia nenhum tipo de emoção, depois de algumas horas de viagem olhei para trás e da missão só se via um pedacinho do telhado, nada de casas, nada de gente, só aquela imensidão de gelo. Aventuras no País dos esquimós Enquanto avançávamos, conversávamos, Delfin me contava que tinha chegado muita criança, tinha vindo com os pais, que vieram para garimpar ouro, que naquela época havia muito. A notícia do ouro tinha se espalhado por toda Europa e tinha vindo uma quantidade de europeus, de diferentes países atrás dessa riqueza, muitos voltaram para seus países cheios de ouro, outros gostavam de jogar e às vezes perdiam todo o ouro que tinham conseguido, muitos gostavam da cachaça, os comerciantes se enriqueciam cobrando a cachaça a preço de ouro, alguns bem bêbados tentavam ir para suas moradias e sem conseguir ficar em pé, caíam na neve e ali morriam congelados. Contou-me que o pai dele tinha sido morto por um esquimó porque ele dormiu num iglu e não quis possuir a mulher do esquimó, dono da casa, me explicou que é uma grande ofensa não possuir a mulher do dono da casa. Eu lhe fazia muitas perguntas e ele me respondia, me explicava, e foi por estas geleiras que comecei a me orientar e foi por estas geleiras que comecei a dar os primeiros passos na vida sexual. Delfin me ensinou muitas coisas de como viver naquelas temperaturas de até 30 graus abaixo de zero me ensinou a beber aquele óleo de foca, que no começo não conseguia engolir, aquele líquido grosso e com paladar para mim desconhecido e pensar que com o passar dos dias, aquela bebida era uma necessidade para o meu corpo. Depois de muitas horas de estarmos andando, os nossos relógios marcavam 14 ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 332 horas, Delfin decidiu que deveríamos parar, nos alimentar e alimentar os cachorros. Primeiro os desatrelou e alimentou-os, enquanto eu arrumava o lugar onde deveríamos comer. Feita a refeição, descansamos alguns minutos e continuamos. Nas explicações que o Delfin me dava, disse que os esquimós gostavam de ter muitos filhos, para ajudar na caça de coelhos, na pesca, e em tudo que se referia à alimentação, também me dizia, por exemplo, que se uma esquimó ficasse viúva e com mais de dez filhos, facilmente conseguiria se casar de novo, ao contrário de uma esquimó com quatro ou cinco filhos, que dificilmente conseguiria marido, a não ser que aparecesse um viúvo com uns doze ou quinze filhos, se juntassem, e a prole continuasse crescendo. Às 20 horas encontramos o primeiro iglu, Delfin encostou o trenó bem perto da porta, desatrelou e alimentou a cachorrada, em seguida pegou pratos e panelas e foi entrando no iglu sem cumprimentar e nem pedir licença, o fogo estava aceso, o fogão estava no chão, era feito de pedra e forrado com barro. Delfin foi colocando as panelas para aquecer a comida. O iglu era bem amplo, lá dentro estava a mulher esquimó, que nos olhava e sorria, havia mais cinco crianças entre um e cinco anos, todos dormiam, não em camas, estavam numa espécie de tarima, não existia qualquer tipo de mobília. Toda tarima era forrada por peles de urso, peles de coelho, penas de favegam e talvez outros bichos, todos estavam colocados em cima da tarima, feita de galhos de árvore. A tarima chegava perto de onde estava o fogão, e dum lado deste estavam penduradas carnes e peixes. Lá dentro o fedor era insuportável, era fedor de fumaça, de peixe e de carne podre. Delfin me explicara que eles quando caçavam os bichos, tiravam a carne e as vísceras para se alimentar, e os couros, os colocavam na tarima, e claro, com o calor produzido pelo fogo aceso dia e noite, e o calor do corpo, os couros apodreciam, porque não eram lavados e nem curtidos. Ele também falou que era bom ir se acostumando àquele fedor, porque em todos os iglus que entrássemos, o fedor seria o mesmo, às vezes até pior. Notei que a tarima era bem feita, a madeira bem trançada. O iglu, que também era feito de galhos e forrado com pele de foca, era tão bem forrado que o gelo da parte de fora derretia com o calor interno, não entrava um pingo de água. Por fora do iglu era só gelo, a porta era de pele de urso pendurada ao centro e ficava como uma porta giratória, tudo parecia bem feito e feito para durar. Quando já tínhamos terminado de comer e o Delfin estava organizando tudo no seu lugar, escutamos uma bagunça e várias falas raras, era o esquimó dono da casa com oito filhos, uns traziam arapucas e outros peixes e bichos mortos que tinham caçado, ou melhor, pegado nas arapucas, todos nos olhavam e sorriam. Eu calculo que os bichos mortos eram três, eles já tinham tirado a carne, que foi pendurada junto com a outra e os couros foram jogados na tarima. Notava-se que a gurizada ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 333 estava com fome porque cada um foi pegando um pedaço de carne que estava pendurada e colocavam dentro do fogo e em seguida a tiravam e comiam igual a pedaços de peixe e bebiam óleo de foca a vontade, depois todos foram deitar-se. A mulher do esquimó deitou bem longe de todos, até do marido, o Delfin me levou perto dela e disse: – Agora o negócio é contigo, para nós sairmos vivos daqui quando nós acordarmos. É claro que para evitar problemas, eu quebrei o galho, e muito satisfeito com minha primeira experiência. Com a canseira das horas anteriores, digo horas, porque eu não conseguia me orientar com facilidade quando era dia ou quando era noite, porque agora era tudo ao contrário, sempre dia, a noite não se manifestava, continuava com a canseira da viagem e com a canseira da esquimó, que me acordara calculo a cada duas ou três horas. Dormi oito horas, me sentia descansado, Delfin já tinha pronto o café, me serviu e me olhava com malícia e eu só ria. Os padres tinham mandado umas caixas com bolachas doces e salgadas, pão e muito peixe seco, a gurizada estava grudada no peixe e no pão, sempre acompanhado do óleo de foca. Num canto e alheia a tudo estava uma das crianças esquimó, não participava da algazarra dos outros, estava chorando, deveria ter uns doze anos. Depois de tudo organizado no trenó e os cachorros atrelados, o esquimó falou alguma coisa para a criança chorona e ela subiu sem nenhuma resistência no trenó, porém sempre chorando, tudo pronto, partimos. No caminho, enquanto conversávamos, o Delfin sempre me falava a respeito da forma de vida dos habitantes daquelas regiões geladas. A criança não parava de choramingar, de vez em quando Delfin lhe falava na língua deles, parecia que lhe falava algo carinhoso, a criança nem fazia caso, só choramingava. No meio da conversa, perguntei para o Delfin porque ele não pediu licença para entrar no iglu e nem cumprimentou ninguém, ele me respondeu que na língua esquimó não existiam essas palavras, que a linguagem deles era muito reduzida, ele me disse que a língua era o INUI, mas não me disse como se escrevia. Perguntei por que levava o menino, me respondeu que era para alfabetizá-lo, que muitos dos rapazes que estavam nas missões tinham ido da mesma forma, choramingando, e que hoje muitos deles eram professores ali mesmo, alguns falavam até espanhol e inglês. Um dos padres ali nas missões era esquimó e na Espanha estavam vários seminaristas e alguns até eram ordenados padres. Também tinha meninas freiras e outras estudando, e nas missões por onde passamos quando ainda era noite, havia muitos padres e freiras esquimós. Soube também que muitos esquimós eram casados com gente de sua raça ou de outras raças, mas tinham aprendido que sua esposa só ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 334 deveria ser tocada por eles, e elas por sua vez tinham aprendido a respeitar seus maridos. Na missão também havia casais esquimós que eram professores, lutando por modificar a mentalidade dos da sua raça e da vida primitiva. Os nossos relógios marcavam 13 horas quando chegamos a outro iglu. Quando o Delfin encostou o trenó no iglu, ouvimos alguém que começou a chorar, ao entrarmos, tinha qualquer quantidade de crianças, soube que estavam fabricando arapucas para pegar bichos, faziam pontas numas madeiras compridas, segundo me disse Delfin, para caçar ursos. Uma coisa que me chamou muito a atenção é que, só hoje, e depois de tantos anos, compreendo perfeitamente a explicação que Delfin me deu, foi a seguinte: que os esquimós não matavam um urso fêmea quando ele ia com o filhote e muito menos quando estava prenha, o que eles gostavam de enfrentar era o macho, era mais que tudo por isso que gostavam de ter bastante filhos, porque quanto mais lanças eram jogadas contra o bicho, mais rápido era dominado, não gostavam de matar fêmeas. Eu sabia que era ali que íamos almoçar e peguei as viandas com comida que, diga-se de passagem, estavam sempre congeladas. Entramos, não havia nada de diferente do primeiro iglu, o guri esquimó pegava carne, peixe e colocava no fogão por pouco tempo e comia e bebia óleo de foca sem pedir licença para o dono, nós lá no trenó fizemos nossa refeição, o menino quando terminou de comer e beber, sempre choramingando, foi ao trenó e se sentou no seu lugar. Tudo pronto Delfin entrou no iglu e saiu com a criança que tinha começado a choramingar, subiu no trenó e agora eram duas choramingando. A nossa viagem continuou, o que não conseguia entender era como que o Delfin se orientava naquela imensidão de gelo onde não havia caminho algum, estrada, nem sinalização, quando lhe perguntava a respeito ele me respondia: – É fácil você aprenderá. Teríamos andado umas quatro horas, os relógios marcavam 19 horas. Delfin acendeu três fogareiros que levávamos, em um colocou peixes, que os meninos sem falar e sem parar de choramingar e sem pedir, iam pegando e comendo, comiam pão e bebiam óleo de foca que também tínhamos levado e não se congelava. Eu também, após comer, tomava um caneco de óleo, me sentia bem, uma espécie de calor por dentro, gostoso, parecia que tirava o cansaço do corpo. Outra coisa que me chamou a atenção é que quando parávamos, Delfin soltava os cachorros e os alimentava, em seguida eles se deitavam e dormiam. Mal sentiam Delfin se mexer, todos em uníssono se levantavam, mexiam o rabo, o corpo, as orelhas, demonstravam alegria, parecia que sorriam, à medida que cada um era colocado no seu lugar iam ficando quietos. A chegada no próximo iglu foi mais ou menos às 22 horas, claro estava dia. As crianças entraram, pegaram carne, peixe, botaram no fogo, comeram e beberam e depois se deitaram junto com uma quantidade de outros meninos que dormiam e que ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 335 nem se acordaram. Os únicos que se acordaram foram o casal e uma esquimó bem velhinha, os três nos olharam e só sorriram, como que felizes pela nossa chegada, pela primeira vez ouvia Delfin em uma longa conversa com o dono da casa e na língua deles. Como no primeiro iglu, a mulher se deitou bem retirada de todos, primeiro deitou a velhinha, o esquimó a cobriu com uma pele grande de urso, deveria ser de vinte ou mais ursos. Ela era intocável, segundo me explicou depois Delfin. Como o esquimó via que éramos dois homens, podia ser que um quisesse ficar com a velhinha e o outro com a mulher. Delfin após longo tempo me fez sinal para ir me deitar com a esquimó, que sacrifício, fui para lá, a única coisa que não era muito agradável naquele romance era que o cobertor era grande e era feito de tudo que era pele de animal, era pesado. O pelo era para o lado da gente, a esquimó pegava esse peso até a cabeça e era como ficar dentro de um forno, mesmo peladão suava como atleta em maratona, esta esquimó se portou um pouco melhor, só me acordou pelas 5 horas, quando eu acordei faltava pouco para às 8 horas. Delfin já estava com o café pronto e bem quente. Ao sair, o próprio esquimó entregou para Delfin uma menina que deveria ter de doze a quatorze aninhos, quieta, humilde, resignada, sem choramingar subiu no trenó. Delfin sempre entregava duas caixas grandes com mantimentos para o esquimó. Ao sair dali Delfin me disse: – Nós estávamos viajando no sentido oriente, agora vamos pegar para o norte. Teremos que entregar mantimentos para um casal que deverão ser pais pela primeira vez, eles fizeram seu iglu nas proximidades de um pequeno bosque. Mesmo choramingando, num determinado momento, um dos meninos gritou na língua deles, falou algo que eu não entendi. Delfin parou o trenó, os dois guris e a guria desceram correndo, olhando para baixo à procura de alguma coisa, um deles botou a mão numa pequena poça d’água e tirou um peixe preto, tentou novamente e tirou mais um, a menina e o outro guri também pegaram noutras poças. Eles com Delfin falavam, mas eu nada entendia, como já estava na hora do almoço Delfin acendeu os fogareiros e os fritou, todos nós comemos, a viagem continuou. Não encontramos mais nenhum iglu, na hora do jantar Delfin preparou tudo no próprio trenó, após o jantar a gurizada pegou no sono, nós também nos acomodamos e dormimos, horas depois e após tomar café, a marcha continuou. A propósito, eu escovava os dentes e lavava a boca com gelo, segundo Delfin, era melhor do que usar água quente. Poucas horas depois chegamos na casa da parturiente, só ele entrou no iglu e entregou as caixas e já partimos, uma hora depois chegamos noutro iglu, foram entregues duas caixas e pegamos mais um guri também chorão, agora eram três chorões, só a menina era bem comportada e caladinha. Ao sairmos do iglu Delfin disse: – Agora vamos para casa. Às vezes Delfin dava um grito para os cachorros na linguagem esquimó e os cachorros pareciam gostar de ouvir aquele grito. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 336 Era minha primeira viagem e não conhecia os fenômenos que a qualquer momento se manifestavam naquele país gelado. Eu estava querendo dar uma cochilada quando ouvi a menina falar em voz alta, olhava para o firmamento, olhava para o Delfin como querendo lhe dar um alarme, ele parou o trenó e começou a desatrelar os cachorros, a gurizada, sem Delfin dar ordem alguma foi pegando cada um uma pá, inclusive a guria, e rapidamente começaram a fazer um buraco na neve, eu ficava de boca aberta vendo eles, da forma ligeira com que abriam aquele buraco, eu não entendia nada e ficava pensando: como é que eles sabiam onde estavam as pás? Desatrelados os cachorros, Delfin começou a tirar umas peles de urso que, ao contrário das dos esquimós, estas estavam bem branquinhas, macias e cheirosas. Também tirou um rolo de pele de foca, eu ficava pasmo de ver aquela gurizada, do jeito que trabalharam, abriram aquele valo sem fazer uma pausa, não lhes via nem respirar. Pronta a vala, que era de aproximadamente uns 2 metros e 50 centímetros de comprimento por mais ou menos 1metro e 20 centímetros de largura e poderia ter 1 metro e 20 centímetros de profundidade. Tudo foi feito com rapidez, todos ajudaram Delfin a colocar o trenó em cima da vala, as peles de urso foram colocadas dentro da vala no fundo, e as peles de foca foram penduradas no trenó de forma a cobrir as paredes do buraco, outras peles foram colocadas como teto. Tudo organizado, os cachorros foram colocados dentro do buraco, a gurizada deixou as pás deitadas com a maior parte para fora e o cabo para dentro, e por último nós nos acomodamos da melhor forma lá dentro, o calor que os cachorros transmitiam dava a impressão que estávamos com uma lareira acesa. Como a pele de foca é parecida com plástico transparente, embora um pouco difuso podia se ver o céu, em determinado momento a menina olhou para cima, gesticulou algumas palavras, Delfin olhou e seguramente na língua deles e no movimento da cabeça entendi que lhe confirmava, até esse momento nada entendia, só vim a entender quando deu a impressão de escurecer, em seguida uma ventania fazia tremer o trenó e segundos a seguir começou uma tempestade de neve, de vez em quando Delfin se levantava e mexia com a pá, me explicou que era para a entrada de ar, caso contrário morreríamos asfixiados. Depois de uma meia hora tudo passou, a menina foi a primeira a se levantar, seguida por Delfin. Desmontar tudo e tapar o buraco foi fácil e rápido, e já estávamos de novo a caminho, fizemos várias refeições e algumas vezes dormimos no trenó até chegar à missão. Nesta viagem notei que a menina era muito esperta e que saberia sobreviver a qualquer circunstância naquele Ártico. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 337 O retorno da 1ª missão e novas viagens Foi grande a euforia manifestada por todos quando da nossa chegada, queriam saber de tudo, e do meu comportamento. Estavam curiosos e a maior parte das perguntas eram a meu respeito. Delfin respondia, sempre me enaltecendo. O relatório que ele apresentou da viagem deixou os padres satisfeitos, só que no relatório não falava que quem dormia com a mulher do esquimó era eu, é claro que a esse respeito não se falava, porque justamente este costume os padres estavam tentando terminar. Pelo que fiquei sabendo, entre ir e voltar, a nossa viagem demorou oito dias. As crianças que vieram conosco foram apresentadas às outras crianças já acostumadas com a disciplina sacerdotal, brincavam, tomavam banho, escovavam os dentes, estudavam, cantavam e rezavam. Os meninos que trouxemos continuaram choramingando, ao contrário da menina, que com facilidade se acostumava à nova vida. Alguns dias depois me tocou a portaria, o plantão era de seis horas seguidas, descansava seis horas e tornava a pegar, foi assim durante uma semana, depois mudava para outra tarefa. No terceiro dia do meu plantão apareceu o padre chefe para conversar comigo, e num momento oportuno me disse que depois de terminar o plantão eu não precisava cumprir nenhuma tarefa, que era para descansar porque em uma semana sairíamos com Delfin para trazer quatro crianças já oferecidas pelos pais, esta notícia me deixou muito feliz, contava os dias. Chegado o dia partimos, no caminho, como dantes, Delfin me contava da vida e dos costumes dos esquimós, que ele conhecia de cor. Perguntei como poderiam saber quando deveriam pegar as crianças, a resposta foi que a maior parte dos padres já conhecia quase todos os habitantes, mesmo ficando longe o seu iglu. Algumas vezes os padres saíam a pedir as crianças para catequizá-las e após algumas negativas, o esquimó cedia, só que daria a criança passadas determinadas quantidades de luas, controle que os padres faziam e sabiam que os esquimós cumpririam a promessa e que mesmo tendo vinte filhos, só dariam um, e que seria aquele que tivesse tantas luas, mesmo sendo menina. Eu era o companheiro predileto do Delfin. Foram muitas viagens que fiz com ele, por último ele não precisava me levar ao lado da esquimó, eu já sabia o meu lugar para dormir e tinha aprendido a suportar o calor “arroupado” com aquele couro grosso de urso e também estava acostumado às acordadas que as esquimós faziam durante o sono, já não sentia mais aquele fedor de carne podre, de peixe misturado com fumaça, bebia óleo de foca com o maior gosto, eu já tinha até aprendido a guiar o trenó e me guiar pelo firmamento naquela imensidão de gelo. Parece ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 338 mentira, qualquer coisa serve de referência para a gente se guiar. Às vezes Delfin cochilava e eu assumia as rédeas, me dava a impressão que o cachorro chefe não gostava quando isso ocorria e emitia uma espécie de ranço, mas não parava, continuava firme dando exemplo para o resto dos cachorros. Sempre que saíamos, demorávamos de cinco a oito dias, dependendo dos meninos que era para trazer, às vezes eram dois ou três, as distâncias, na realidade, não eram tão longas entre um iglu e outro, o que tornava demorado era a neve, porque tinha lugares onde ela era mole e o trenó era grande e quase sempre levava caixas com alimentos para entregar às famílias de esquimós. A nossa marcha era lenta e por isso a demora de chegar de um lugar a outro. Um detalhe muito importante que descobri nos esquimós desta região é que eram muito inteligentes para mecânica, eles descobriam qualquer defeito que se manifestasse nas máquinas, sem nunca ter estado em oficina mecânica nem ter visto alguém consertar motores. Lembro que uma vez o relógio do Delfin parou de funcionar e um dos rapazes esquimó pegou o relógio e o desmontou totalmente, olhando peça por peça, no fim descobriu que uma das engrenagens tinha formado uma pequena protuberância, como não tinha uma lima adequada, pegou uma faca e raspou até a peça ficar lisa, em seguida, como alguém com muita experiência em relojoaria, montou-o novamente e o relógio ficou funcionando perfeitamente. Uma outra vez tivemos de sair levando dois trenós, um levava Delfin e o outro eu. O motivo era que íamos à procura de quatro meninos e duas meninas, desta vez estávamos indo ao sentido oeste, após andar umas seis horas encontramos um iglu bastante diferenciado dos anteriormente encontrados, este era bem grande, o diâmetro era quase o dobro dos outros, idem na altura, a porta era bastante ampla, mas nada a cobria. Paramos, Delfin me convidou a entrar, não tinha ninguém. Como todos os iglus, na parte de fora estava coberto de neve, no interior e no centro havia um buraco retangular de aproximadamente 3 metros de comprimento por 2 metros de largura e talvez 1 metro de profundidade, estava cheio de galhos de árvores, tantos que chegava a ultrapassar a altura do buraco. Delfin é claro, notando a minha curiosidade, começou a me explicar dizendo: – Este é o lugar onde tomam banho os esquimós, o banho é feito numa determinada lua, durante todo tempo, antes da lua do banho, cada um vai trazendo galhos e os vai colocando aí. Chegado o dia do banho, se reúnem e começam a cantar e a dançar em volta do fogo, só participam os homens, todos completamente nus, as mulheres só são espectadoras, as crianças também não participam. A dança é composta de canto, pulos e arabescos, o calor aqui dentro fica infernal, os homens suam, lhes corre água por todo corpo e em determinado momento saem correndo e se atiram na neve, rolam nela e voltam para dentro e continuam pulando, gritando e dançando. Por causa deste tal banho, algumas ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 339 mulheres ficam viúvas, quando não são duas ou três, devido ao choque térmico o coração não resiste e ali mesmo na neve morrem. Ninguém se preocupa e a dança continua. Sempre que retornávamos à missão, ficávamos aproximadamente uns quinze dias sem sair e nosso serviço na missão era pouco e leve, examinávamos o trenó, cuidávamos dos cachorros, nos reuníamos com os padres para nos informarmos dos iglus que deveríamos ir para buscar crianças. Informavam-nos se a meta para completar o grupo de crianças que deveríamos trazer estava ainda longe de completar, e também sobre outros padres que andavam a procura de conquistar pais para mandarem crianças com o propósito de educá-las e serem catequizadas. O conflito da liderança canina Uma vez, quando voltávamos com duas crianças, uma menina e um menino, eu notei que o cachorro chefe, na maior parte da viagem ia grunhindo. Delfin lhe dava um grito, lhe falava na língua esquimó e ele parava, mas poucos minutos depois continuava. No retorno, quando vínhamos com as crianças, os grunhidos eram mais fortes, contínuos e até com latidos. De pronto o trenó parou, o cachorro chefe se virou e se avançou diretamente para o cachorro da sua esquerda e se formou uma tremenda briga. O trenó virou, nós quatro voamos longe, algumas coisas que não estavam bem amarradas também saltaram para fora do trenó, a guria foi a primeira a se levantar e correu até o trenó, pegou umas hastes de madeira que tinham um gancho numa das pontas, enganchou o cachorro, segundo fizera o Delfin, que também tinha pegado outro gancho igual e enganchado o cachorro dianteiro e puxado para frente. A menina puxou o segundo para o seu lugar, enquanto o menino batia naqueles que não queriam terminar com a briga. Os três gritavam em tom ameaçador para os cachorros. Como não tinha acontecido isto antes, eu não entendia nada, só ficava olhando. Quando tudo ficou calmo, começamos a recolher as coisas, a endireitar o trenó e continuamos a marcha. Como não tinha visto tal briga antes, perguntei para o Delfin, que com sua calma característica começou me dizendo que era porque os cachorros iam subindo de grau como os militares e que todos queriam chegar a ser cachorros dianteiros, ou chefe, como eram chamados, e eles sabiam quando já estavam aptos para essa chefia, então faziam de tudo para sabotar a direção do chefe até obrigá-lo a brigar. Sabiam que se este ficasse sem condições de continuar, então o segundo assumiria a chefia, e no caso de nada acontecer, o chefe continuaria e o segundo se resignaria a esperar sua vez, era isso que tinha acontecido. O segundo queria derrubar o chefe para assumir a chefia. Interessante, soltos eu nunca os ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 340 havia visto brigarem, comiam, dormiam, corriam na neve e pareciam felizes quando eram atrelados ao trenó. A temperatura era de aproximadamente cinco graus abaixo de zero, dentro daquela roupa o calor era insuportável e se a gente tirasse alguma peça não aguentaria o frio. O sol era quente, o corpo coçava todo, a neve ficava mole, às vezes se escutavam ruídos fortes, eram blocos de gelo que se desprendiam, não eram pequenos, calculo alguns com 10 metros de largura por uns 20metros de comprimento, saíam a toda velocidade lomba abaixo. Lembro que na primeira viagem que fiz com Delfin, o meu nariz fluía bastante devido ao frio porque eu não estava acostumado. Eu carregava vários lenços para me limpar aquele fluxo. Eu sei que o que vou contar muitos não vão acreditar, vão até achar que estou exagerando, não sei qual a necessidade de mentir, acreditem ou não acreditem, continuo. Eu carregava três lenços, como o fluxo era contínuo, me limpava, guardava o lenço, porém o fluxo era quase que contínuo e não conseguia me limpar a terceira vez porque o lenço ficava congelado, solucionei o problema levando papel higiênico. A saudade decide Ficava olhando aquela imensidão e pensava na minha família, estava tão longe da minha casa, perdido naquele mundo raro, e se adoecesse, será que me curariam? Se por uma fatalidade morresse, não seria rápido e fácil avisar para a mãe. Seguramente seria enterrado por lá e talvez a mãe não ficasse sabendo onde havia morrido e nem onde estava enterrado. Invadia-me uma certa tristeza, pensava: daqui não é tão fácil fugir. Ficava pensando: e porque fugir, todos me tratam tão bem, o padre, quando era fim de mês me pagava os cem dólares prometidos, não gastava em nada, para mim as viagens pela neve não me cansavam, ao contrário, gostava, e ainda mais quando nos tocava dormir nos iglus, era a minha maior felicidade. Para ver se me mandavam num hospital em uma cidade que passamos na vinda, pensei em me fingir de doente, gemer, gritar de dor e se me dessem algum comprimido, faria de conta que tomava e depois jogaria fora. Sozinho no meu quarto treinava como deveria fingir, mas não tive coragem, não fiz. Ouvia rumores de que a noite se aproximava e que as nossas viagens seriam esporádicas. Certa vez nos mandaram trazer dois meninos, tivemos que levar bastante comida porque a viagem seria demorada, pois a neve estava muito mole, e ademais, os iglus onde moravam as crianças eram um ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 341 pouco longe. Medo não sentia, no caso de qualquer circunstância, saberia voltar. Delfin era um super e grande conhecedor de cada quilômetro daquele lugar. Saímos, pegamos as crianças e voltamos, como todos outros, estas também choramingavam. Fiquei sabendo pelos padres que tínhamos demorado dez dias. Como sempre, na nossa chegada à missão, éramos recebidos com muita alegria, recebíamos abraços dos padres, das freiras, das funcionárias e funcionários, eram sorrisos por todos os lados e cumprimentos. As esquimós, que quase já eram professoras, pegavam os novos meninos, que chegavam choramingando, e com a técnica que tinham, faziam calar os chorões em poucas horas. Paravam de chorar e em poucos dias via-se eles correndo e brincando com os outros meninos e junto com seus professores. Um dia após o retorno de uma viagem o padre me pediu para eu dar uma chegada no escritório. Uma vez lá, me entregou uma carta enviada pela minha mãe em resposta à que eu tinha lhe enviado. Com aquela ansiedade por saber dos meus, rasguei o envelope e comecei a ler. Um pouco mais calmo no momento que a mãe me dizia: – Filho, já está na hora de você se apresentar ao serviço militar, seus irmãos já cumpriram seu dever para com a pátria, agora chegou sua vez. Filho, trate de apresentar-se antes do fim do prazo, para no futuro não ter problemas com as autoridades. Fingindo ter ficado triste, entreguei ao padre para ele ler. O meu pensamento era que ele iria me dizer: não, isso para ti não é necessário, tu não estás lá, ou ia me dizer algo parecido. Tratei de pensar na resposta que daria, mesmo que fosse com grosseria, só que foi tudo ao contrário, ele ficou de pé e me disse: – Meu filho, vais ter que ir cumprir com esse dever pátrio que a todos nós toca, eu sendo seminarista tive de fazer o serviço militar. Falo-te com sinceridade, nos fará muita falta, todos vamos sentir a tua ausência, imagina o Delfin quando lhe informarmos da tua partida, ele que te acha o máximo, sempre fala que tu tens sido seu melhor companheiro, que outro igual iria ser muito difícil. O padre foi enumerando um por um do pessoal que lhes causaria tristeza a minha partida, coisa que eu não sabia ser tão benquisto. O padre imediatamente tratou de saber com o esquimó que tinha trazido as cartas e cargas quando partiria o trem e a informação foi que o trem estava na estação e que partiria em doze dias. É claro que seria muito cansativo contar todos os acontecimentos desse dia em diante, foram rezadas as missas como de costume e em todas pediam a Deus para me levar à minha terra sem nenhum problema e com muita saúde. A capela ficava lotada e lembro que no meio do sermão e na hora da reza o padre exaltava o pronto regresso, é claro que eu dizia que no momento que me visse livre regressaria, porém no meu pensamento não existia a menor idéia de voltar. A despedida foi muito ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 342 bonita, as freiras cantavam canções religiosas acompanhadas de violão, jovens esquimós tocando vários instrumentos, cantavam cumbias, porros, bambucos, todos os ritmos colombianos. O Delfin não se separava de mim, a maior parte do tempo colocava seus braços sobre meus ombros, participava de todas as homenagens que me faziam, mas sempre evidenciava aquele elo de tristeza. Eu fingia tristeza, mas no fundo estava borbulhando de alegria, contava as horas, os minutos, e procurava não pensar em nada. Chegado o momento da partida, o refeitório estava cheio de gente, e depois de meia hora de abraços, partimos com Delfin e mais outros dois, um era o carteiro e o outro era um esquimó civilizado, e o destino era rumo à estação. Durante a longa viagem conversamos bastante, a mesma promessa que fiz para todos antes de sair, também reforcei para Delfin. Para todos falei que com o meu problema nas vistas, provavelmente não seria aceito como recruta e consequentemente em breve estaria de volta. Com um forte abraço e um pouco de umidade nos olhos de Delfin nos despedimos, me acompanhou até dentro do coche, não esperou a partida do trem, subiu no trenó e rapidamente partiu. Não estou seguro, mas me deu a impressão que chorava. Foi grande a bagunça que fizeram os cozinheiros, os garçons e todos os funcionários do trem quando me viram, eram os mesmos que conheci na vinda, depois de organizar minhas coisas no camarote olhei para fora para ver se enxergava Delfin, porém naquela imensidão, só vi um pontinho preto bem distante, estava seguro que era o Delfin. Naquele momento me invadiu uma certa tristeza e comecei a lembrar tudo que ele tinha me ensinado a respeito da vida dos esquimós e sobre a sobrevivência naquele país gelado, em seguida comecei a pensar: não devo sentir tristeza de nada, o que devo pensar é na alegria de estar junto dos meus familiares. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 343 ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 344 8 O RETORNO À CASA MATERNA regresso foi muito mais rápido do que a vinda por vários os fatores: as paradas nas missões eram curtas (enquanto que na vinda eram até de 6 a 8 horas, agora eram no máximo de 10 minutos), éramos poucos os passageiros, quase nada de carga. Consegui dormir duas vezes quando ainda era dia e uma vez quando escurecia e me sentia feliz em retornar ao normal: o dia e a noite. O As angústias da volta Cumpri à risca a orientação que o padre me deu, as cidades onde deveria chegar, conduções a pegar, os vôos a tomar. Carregava na mão o mapa que o padre tinha feito como guia para mim e com frequência o olhava. Sem tropeço algum, quatro dias depois o avião, um trimotor, aterrissava em Bogotá. Como a minha passagem era até Cali, uma hora depois partia noutro para a minha cidade, chegando trinta e cinco minutos depois. O meu relógio marcava 12 horas, não sabia se era do dia ou da noite, no relógio da estação eram 17 horas e estava claro. Com temor de não ser bem-vindo pelos vizinhos, não quis ir para casa com o dia claro. Peguei a mala e a minha bolsa e fui me sentar na sala de espera para aguardar que escurecesse, não queria ser visto pelos vizinhos. Eram 20 horas e dez minutos e eu estava sem descobrir onde era minha casa, porque o bairro estava totalmente mudado. Tinham aberto ruas, havia muitas casas de material, enfim, mudança total. Depois de rodear pelo bairro o motorista do táxi, a meu pedido, perguntou para alguém: – Onde mora dona Chava? A resposta foi: – Ali na frente. Não sei de que forma descrever o grito de alegria da minha mãe ao me ver chegar. Aquele abraço que fazia tanto tempo não sentia, também as minhas duas irmãs se grudaram em mim. Amanda era já uma mocinha, me tocava e não parava de sorrir, a minha irmã pequena que estava na sala fazendo os temas, ao escutar o barulho veio correndo, subiu no meu colo, enredou seus braços no meu pescoço e ficou assim por longo tempo. Hoje lembro com emoção aquele momento em que ela com uma voz clara e suave disse: – Hermanito! (irmãozinho). Pela primeira vez a ouvi falar, não é que ela ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 345 falasse de forma especial, é que meus ouvidos não estavam acostumados a ouvi-la, e que som mais lindo bateu nos meus tímpanos quando ela me disse: – Landinho venha conhecer o nosso sobrinho. A emoção não era pelo sobrinho e sim por escutar essa voz que antes não tinha ouvido. Fomos até o quarto do meu irmão Marino onde fui apresentado à minha cunhada. A mãe entrou e já foi pegando seu neto e lhe dando carinho. Em seguida eu o peguei com temor que fosse chorar por ser a primeira vez que me via, porém foi ao contrário, sorriu e brincou como se fôssemos dois velhos amigos. Soube que meu irmão Marino trabalhava vinte e quatro horas contínuas e folgava quarenta e oito horas, portanto deveria chegar na manhã seguinte. Naquele momento entrou meu irmão Hugo, falava grosso, tinha bigode e barba, tudo era estranho para mim porque na minha mente ainda eles continuavam crianças. As peripécias de Túlio Eu sentia que algo pairava no ar, entre eles se olhavam e parecia que me escondiam alguma coisa. Surpreendi a minha cunhada com um olhar suspeito com a mãe, vendo-se apanhada, minha cunhada abriu a boca dizendo: – Eu acho que nós temos que contar para o Orlando o que aconteceu com o Túlio. Um frio me correu por todo corpo, em seguida a mãe, com voz trêmula me disse: – Filho, seu irmão está na cadeia, ele fez mal a uma menina, (naquela época usava-se esta expressão), o pai dela fez a denúncia e o delegado mandou prendê-lo e se não casar com a menina ficará preso durante quatro anos. A alegria da minha chegada se apagou. A mãe tratava de dar demonstrações de alegria, porém no fundo eu notava a sua tristeza, a cunhada falou: – Estamos esperando o Marino para providenciar um advogado. Quando ela falou advogado, me lembrei daquele advogado que tinha ido participar de um torneio internacional de xadrez na mesma cidade onde morava com Alberto e Estela. Ele era da minha cidade, inclusive eu tinha mandado uma carta com dinheiro para a mãe e ele a tinha entregue. Lembrei que ele tinha me dado um cartão com seu telefone e endereço, eu sabia que o guardara na minha mala e fui à procura dele até que achei. Em seguida falei para a mãe que lhe visitaríamos no dia seguinte para ver qual seria o melhor caminho a seguir, senti que a mãe ficou mais calma. Meus outros dois irmãos que estudavam à noite chegaram, ficaram contentes de me ver e depois de um pouco de fuzarca com eles tomei um banho e fui dormir. Sonhei muito, o quê, nem sei. Acho que já estava me acordando quando ouvi uma voz grossa e desconhecida que me disse: – Acorda irmão! Era Marino, completamente diferente daquele irmão companheiro das nossas travessuras de criança, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 346 estava alto, forte, barba de dois dias e voz grossa. Sentados na cama conversamos, primeiro de sua família, esposa e filho, depois passamos ao pessoal do bairro, me contou que foi grande o comentário quando me viram no jornal, que a minha imagem tinha mudado por completo quase todos, um por um vinham felicitar a mãe e vários chegaram a dizer que se sentiam arrependidos por ter tratado tão mal e desconfiado do Negrinho e de o ter até tratado de ladrão. Perguntei pela Romélia. Depois da notícia do jornal continuou a nos visitar, ela casou-se com o dono de um posto de gasolina, ficou grávida e na hora do parto morreu ela e a criança. Senti só um pouco de tristeza e depois passou. Meu irmão continuou me dizendo que o marido dela chorava como criança. A vila toda ficou chocada porque ela, além de bonita era muito querida por todos, o fato é que na hora do enterro ninguém ficou na vila, era triste ver dois caixões, um grande e um pequeno. A mãe dela ficou um pouco desequilibrada, era sua única filha e companheira, teve de ser internada, agora ela já está bem. Marino foi dormir e eu com a mãe, após tomar o café, saímos à procura do advogado amigo. Conhecedora que a mãe era da cidade foi fácil achar o escritório. O amigo nos recebeu com forte abraço, me enalteceu demais, falou da gentileza de meus amigos para com ele. Contava para a mãe que conosco passou momentos muito felizes, que o levamos às bibliotecas, museus, etc., eu sentia a ansiedade da mãe para falar de Túlio, mas eu não conseguia interrompê-lo, até que me perguntou por Alberto e Estela. Menti, porém me saí bem e aproveitei este momento para expor a situação do meu irmão. Nos deu algumas explicações e em seguida perguntou para a mãe: – A senhora não sabe se ele quer se casar? A mãe respondeu que não sabia, que ela estava esperando o domingo, que era o dia de visita, para falar com ele. O advogado apertou a gravata, colocou o casaco e nos disse: – Vamos lá, vamos à cadeia. Nos levou no seu carro. Uma vez na delegacia cumprimentou o delegado, mostrou seu documento jurídico, falando com certa prepotência disse para o delegado: – Por favor, preciso falar com o detento Túlio Ortega, e por favor, não vá trazê-lo algemado que não é um bandido. A senhora é a mãe dele e ele é o irmão, que é um artista de renome internacional. O delegado, um senhor jovem parecia dominado pela forma prepotente do advogado. Em seguida mandou um auxiliar trazer meu irmão, minutos depois ele entrava cabisbaixo, triste, com aquela sua misantropia característica, quando me viu me abraçou e começou a chorar, em seguida abraçou a mãe, que também chorava e falou: – Mãe, não consigo entender porque o pai da guria mandou me prender se eu gosto dela e pretendemos nos casar. O advogado, sem perder tempo, falou, dirigindo-se ao delegado: – O senhor está ouvindo a confissão do rapaz sem sequer ainda ser questionado? Foi uma arbitrariedade que ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 347 cometeram com ele, eu preciso a imediata liberação dele. Foi pela primeira vez desde que estávamos ali que ouvi a voz do delegado, olhando para o advogado e falando com firmeza disse: – Sim doutor, vou liberar o rapaz, com a condição que em quarenta e oito horas me apresente o atestado de matrimônio, caso contrário será declarado fugitivo, e em qualquer momento poderá ser preso. Eu falei: – Senhor, em menos de quarenta e oito horas o senhor terá o atestado. Meu irmão assinou como réu, eu como responsável, o advogado e a mãe como testemunhas. Uma vez no carro o advogado perguntou: – Túlio, marcamos o casamento para às 16 horas de hoje? Foi a mãe que respondeu dizendo: – Sim meu filho, case o quanto antes, você não sabe o sofrimento de uma mãe em ver um filho preso! O advogado disse: – Túlio, se você gosta da menina é bom que case de uma vez, vamos avisá-la. Partimos para a casa da menina, ela nos recebeu com muita ternura, o pai, ao contrário, carrancudo e prepotente. O advogado amigo nos informou que tinha uma audiência às 11 horas e se despediu, prometendo voltar às 15 horas. Tentei lhe pagar e me respondeu: – Nunca mais fale em me pagar, o que vocês fizeram por mim lá vale muito mais que esta bobagem que eu estou fazendo. Organize tudo, que às 15 horas venho levá-los para o casamento, e foi embora. Nós também, depois de combinar a hora do casamento nos retiramos. Após sair da casa da futura esposa de Túlio, íamos a pé com a mãe atravessando as ruas da vila, mas eu ainda guardava aquele temor de ser insultado por algum vizinho e que na minha passagem fechassem as portas como dantes. Mas agora eles saíam para me cumprimentar, me abraçavam e a maior parte da gurizada daquela época já estava casada e com filhos. O mais fanático por mim era o Joãozinho, me apresentou sua mulher e seus dois filhos. Foi difícil para nós chegarmos em casa, todos queriam me abraçar. Fomos visitar a mãe de Romélia, estava bem velhinha, me abraçou e começou a chorar, a minha mãe também chorava. Levaram-me ao quarto que era da Romélia, na parede estava pendurado um quadro grande, era a folha do jornal onde eu tinha saído. Visitamos também o André, estavam todos em casa, me receberam com muita alegria. Que gostoso sentir aquele carinho sincero depois de muitas risadas, abraços e palmas nas costas de todos e um convite para um jantar. Nos despedimos e voltamos para casa, o almoço estava pronto. Túlio já estava em casa e Marino já estava de pé. O almoço foi cheio de histórias, tanto deles como minhas, me disseram que Ocoró tinha falecido, a casa estava alugada, o Carlos morava no centro e continuava com o negócio de Ocoró. Todos queriam me contar que o Antônio tinha vindo da Espanha visitar a ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 348 Colômbia, tinha ido à minha procura e ficado muito triste por não me encontrar e sem saber como se comunicar comigo. Queria que eu conhecesse sua esposa e filhos, me deixou um presente, uma jaqueta muito bonita, não me serviu, eu tinha crescido e engordado. Perguntei pelo Mudinho, soube que estava numa escola para surdos e mudos, que ele e a esposa, também muda, colaboravam com a direção e organização da escola. Não foi preciso perguntar pelo Oscar, todos queriam contar que ele era o concubino de um vendedor de bananas. Mesmo o Oscar todo entrevado, o homem o amava, a mãe tinha morrido de desgosto ao saber que o filho era boiola. Era uma informação atrás da outra, contaram-me que Manolo e também Elida quando me viram no jornal vieram felicitar a mãe. A conversa estava gostosa, porém o sono me dominava e tive de dormir os dez minutos do Antônio. Quando acordei Túlio vestia uma camisa de mangas curtas e uma calça um pouco surrada. Achei ele mal vestido para um casamento. Quando questionei a este respeito me respondeu que agora era que pretendia começar a se organizar para aquele momento, só que como o sogro preferiu de outro jeito, não teve tempo. Lembrei-me que Estela tinha me comprado um terno azul-marinho que eu não tinha usado, e embora o Túlio fosse um pouco mais alto, o terno lhe ficou perfeito, também dei camisa de manga comprida e gravata, ele ficou vestido como manda o figurino. Quando chegamos na igreja, a vila estava toda lá. Entre todo o pessoal da vila havia fortes rumores que o pai da menina andava garganteando que tinha mandado meu irmão para a cadeia e por isso agora casava com a filha, que com ele era assim, escreveu não leu, o pau comeu. Pelo que notei era que aquele garganteio dele só lhe proporcionava nojo perante os vizinhos, porque segundo eles, Túlio era um rapaz sério, calado, trabalhador, quieto, não gotejava nem pingava, era amigo de todos e por isso ninguém aprovava o que o sogro tinha feito. Fiquei sabendo que existia uma crendice naquele tempo, que as filhas mais novas não deveriam casar antes que as mais velhas casassem, caso contrário estas ficariam para titia. Acontecia que a filha segunda estava noiva e com data de casamento marcada e por isto tinha usado este estratagema para acelerar o casamento da filha mais velha, que nesse momento estava se tornando a mulher do meu irmão, e a filha segunda estaria livre para se casar. O encontro com Efraim Passada a turbulência entre minha chegada e o casamento, me apresentei ao exército. No primeiro exame visual fiquei livre e com o dever cumprido. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 349 Embora tenha ouvido dizer que os alfarrábios não apresentam nada importante, eu sou um fanático pelos sebinhos, e foi num sebo do centro da cidade que encontrei o amigo Efraim, que como eu, tinha paixão pelos livros usados. Foi grande a alegria do nosso encontro, os livros ficaram para depois, ele falava grosso e já se lhe manifestava a sombra do bigode e barba, me falou da sua vida e dos estudos, e eu lhe contei as minhas aventuras. Falamos de música, ele continuava tocando, e eu, por sempre estar viajando, não tinha condições, combinamos ensaiar na minha casa, porque na dele não poderíamos, em respeito ao avô que tinha falecido há pouco tempo. Depois de alguns dias de ensaios e conversas, decidimos fazer um giro pelo país tocando nos bares, restaurantes e nos lugares onde houvesse público. Mandamos imprimir cartões onde se lia: Os Granadinos intérpretes da música nacional colombiana solicitam sua ajuda para continuar seu giro pelos países da América. Sem muita demora um dia partimos. Nossa música tinha um ritmo alegre e todos gostavam, só que a arrecadação mal dava para cobrir os gastos de hotel, transporte e alimentação. Andávamos um pouco desmoralizados, porém assim mesmo continuávamos. Um dia chegamos num povo de fazendeiros onde o acontecimento do ano era o casamento de um jovem fazendeiro com uma prostituta com mais de quinze anos na zona de tolerância, era justamente a mais procurada por fazendeiros solteiros e também por alguns casados, por ser muito bonita. Nós chegamos no momento que os nubentes partiam para desfrutar da lua de mel, iam os dois num lindo alazão. Quando um dos fazendeiros amigo dos desposados nos viu num bar tocando, em seguida nos contratou para ir fazer uma serenata aos recém-casados. Este fazendeiro era conhecido pelo apelido de Mano, era o que mais sentia dor de cotovelo, porque era com ela que tinha desfrutado algumas de suas melhores noites de orgia. Subimos numa carroça aonde também iam amigos de Mano e do casal, cada um levava uma garrafa de aguardente. Ao som de nossos boleros e ao grito dos amigos, o casal abriu a porta, brindaram com aguardente e em seguida se despediram, só que o Mano estava disposto a não deixá-los dormir. Foi até a zona de tolerância e trouxe três amigas do casal para cantarem, quando eles abrissem a porta, elas brindariam com eles e em seguida se despediriam. O casal abriu a porta ao chamado das amigas e ex-colegas da esposa, brindaram ao som da nossa música. Enquanto nós tocávamos e o casal brindava com os amigos, o Mano tinha ido convidar o irmão do desposado para que viesse brindar com seu irmão e a cunhada. Quando começamos a tocar, vimos o casal sair a todo galope por um portão lateral, todos ficaram pasmos de vê-los desaparecer na escuridão da noite por uma estradinha estreita e de chão batido. Uma vez refeitos da ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 350 surpresa, o dono da carroça foi embora, nós procuramos o Mano para cobrar nosso serviço, porém o Mano tinha desaparecido, tentamos cobrar dos que tinham participado, mas ninguém quis nos pagar, alegando que quem tinha nos contratado era o Mano. Um deles nos aconselhou a ir à delegacia fazer a denúncia, que o delegado sabia onde ele morava e mandaria que nos pagasse. Ao chegarmos na delegacia o guarda que nos atendeu nos informou que o delegado estava dormindo, nos perguntou qual era o problema, lhe informamos o acontecido e ele nos respondeu: – O delegado não vai fazer nada, o tal do Mano é irmão dele, é um safado, deve para muita gente e não paga ninguém, eles dois fazem o que querem, os dois são iguais e se alguém os enfrenta botam na cadeia, surram, deixam alguns dias a pão e água e depois soltam e ninguém faz nada, todos aqui têm medo deles. Claro que eu também sou autoridade e não quero perder meu emprego, pois seria difícil conseguir outro. Vocês que não são daqui deveriam levar esta denúncia para as autoridades da capital. Nos mordendo de raiva fomos dormir na pensão mixuruca em que estávamos hospedados. No dia seguinte tentamos encontrar o tal do Mano, porém tinha sumido, sentimos que o povo o odiava e ao delegado também, e estavam jurados de morte. A única alternativa era abandonar aquele amaldiçoado povo do gatuno do Mano. Continuamos nosso giro e após passar por várias povoados e pequenas cidades, desembarcamos numa cidade muito bonita, famosa pelos seus cafezais, nesta cidade a maior parte dos bares e hotéis estavam perto da zona de tolerância. À noite saímos a ganhar nosso dinheiro, no primeiro bar que entramos estava na zona, nas mesas homens e mulheres se divertiam bebendo whisky, rum e em poucas mesas tinha cerveja, foi nesse bar que após tocarmos, nossos poucos recursos começaram a aumentar, todos nos gratificavam com notas de valor alto. Já tínhamos nos despedido quando um casal que se encontrava perto da porta do bar nos chamou e pediu para tocar para eles. O homem não estava muito bem vestido, como o clima era um pouco frio, quase todos usavam chapéu e poncho, este senhor quando terminamos de tocar levantou o poncho, botou a mão no bolso das calças, tirou uma nota de alto valor e nos pagou, nos pediu para sentarmos e mandou nos servir um gostoso jantar com peixe frito, arroz, patacones e salada mista. Enquanto jantávamos a mulher pediu o acordeom emprestado e com orientação que o Efraim lhe dava, tirava alguns sons, o homem perguntou ao Efraim: – Quanto custa um acordeom? Ele extrapolou e lhe deu o preço, em seguida o homem ofereceu um pouco mais do preço que Efraim tinha dito pelo acordeom. Efraim aceitou, o homem tirou do bolso um rolo de notas e pagou, em seguida pegou meu violão e perguntou quanto custava, falei ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 351 que não sabia, porque o tinha ganhado, ele me ofereceu um xis, Efraim me fez um sinal de aprovação e aceitei no ato. O casal se despediu de nós, pegaram um cavalo Zaino que estava na parte de fora e saíram a todo galope. Nós fomos para o hotel, sem instrumentos, porém cheios da grana. Comentando o acontecido Efraim me disse: – Preste atenção que estes caras mal arrumados são os mais ricos. Viu este senhor, sempre que colocava a mão no bolso tirava um rolo diferente de dinheiro, ao contrário do Mano, todo bem vestido, escondia um tremendo tramposo. No dia seguinte retornamos para nossa cidade. Compramos novos instrumentos e nos sobrou dinheiro. Entusiasmados por este último acontecimento, decidimos nos aventurar para o exterior, e sem muitas delongas, um dia partimos em direção ao sul da Colômbia e por ali tentaríamos sair do país. Colocamos num baú muito antigo, que tinha pertencido às bisavós de Efraim, as nossas roupas, traje andaluz que Efraim toureava, arte que também tinha aprendido, o meu traje era totalmente branco, que era a minha especialidade apresentar a sorte de dom Tom Credo. À parte dos trajes de tourear, também colocamos dentro todo meu equipamento para apresentar as provas de ilusionismo, na mão levávamos os nossos instrumentos. Dentro do país tentamos várias praças. Não era muito que ganhávamos, os nossos sonho sem dúvida era que no exterior ganhássemos mais. A tourada e a fuga noturna do hotel Certa vez chegamos numa pequena cidade, e como em todos os lugares onde chegávamos, fizemos amizade com o pároco que nos acolheu com muito carinho. Quando descobriu que éramos aficionados à arte taurina, teve a grande idéia de organizar um festival taurino, idéia que adoramos e aprovamos. A praça de touros foi preparada no pátio central de uma escola. Como éramos só dois toureiros, Efraim chamou dois amigos toureiros da nossa cidade, que inclusive já tinham toureado junto com ele. Ficaram hospedados no mesmo hotel que nós estávamos. Era um prédio antigo de dois andares, também o único na cidade. Até aquele momento nós estávamos em dia com refeições e pernoites, mas com a chegada dos amigos o dinheiro terminou. Combinamos com o dono do hotel que ao invés de estar pagando pingado lhe pagaríamos no momento de irmos embora, ele concordou e nós comíamos, dormíamos sem preocupação alguma e de vez em quando até pedíamos pratos especiais, sonhando com o dinheiro que ganharíamos no dia da tourada. O sonho, porém, deu errado e depois de um mês de organizar tudo, justamente no ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 352 dia do festival taurino, num domingo que a expectativa era geral, choveu. O público foi pequeno e o dinheiro que entrou não daria nem para pagar o aluguel dos touros, o aluguel do local, a propaganda na rádio, a tipografia e muito menos o hotel. Ficar por mais tempo até fazer outra toureada complicaria mais ainda a situação, na mesma praça deliberamos, e a conclusão foi que deveríamos fugir com o dinheiro arrecadado e não pagar ninguém, ali mesmo se programou a fuga e o horário, às 2 horas da madrugada. Os dois companheiros vindos perguntaram para o guarda que ficava no hotel da meia-noite até às 8 horas, onde tinha uma farmácia de plantão, receberam a explicação e saíram. Eles deveriam esperar o baú na parte de baixo. Quatro lençóis serviram de corda para descer o baú, uma vez o baú embaixo e também as malas, Efraim desceu amarrado nos mesmos lençóis e eu fiquei. Eles deveriam ir embora eu saberia onde alcançá-los, desamarrei os lençóis arrumei as camas, organizei o quarto e desci, perguntei para o guarda: – Amigo, sabe onde fica a farmácia? É que os companheiros foram comprar um medicamento e não voltaram. O homem mais dormindo que acordado me deu as dicas e eu saí. Uma vez na rua corri na direção combinada, o silêncio era total, nenhuma viva alma, nem sequer os cachorros latiam, as ruas muito mal iluminadas. Corria para alcançar os companheiros, antes do término do perímetro urbano Efraim me esperava, corremos até alcançar os amigos que aceleravam o passo, mesmo carregando aquele pesado baú. Pediram para nós ajudarmos, e assim, entre troca-troca, avançamos sem parar. Poucos minutos depois das 6 horas chegamos num pequeno casario, entramos num boteco, o dono e a esposa nos atenderam solicitamente. O homem em tom alegre perguntou: – Aonde vai ser a festa? Efraim, de forma inteligente e rápida respondeu: – A festa já foi, numa fazenda lá pra dentro, num casamento, eles nos mandaram levar até a próxima cidade num trator, mas ao sair na estrada ele quebrou e o motorista do trator teve que voltar à fazenda a pé para pedir socorro, mas como nós temos muitos compromissos e não poderíamos ficar esperando, ele nos informou que por aqui perto passaria um ônibus que nos levaria até a próxima cidade. – Sim, passa pela estrada, mas ela está longe, entrem, tomem um café que eu mando lhes levar. Sentindo a curiosidade do homem, e sem nos pedir, Efraim e eu pegamos nossos instrumentos e começamos a tocar, não demorou muito e o bolicho do homem estava cheio de gente que aparecia de tudo quanto era canto, entre todos apareceu um gordo brincalhão que ao saber da história inventada se prontificou a nos levar até a cidade em seu caminhão. A marca do caminhão era Studebaker e apesar da bagunça da lataria, andava que era uma beleza. Uma hora e meia demorou, numa estrada de chão, para percorrer 65 quilômetros. O simpático gordo nos deixou numa pensão, lhe agradecemos e ele se mandou. Quando o gordo desapareceu trocamos de ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 353 pensão e concordamos em não ficarmos os quatro na mesma pensão. Num bar repartimos o dinheiro, e a nossa maior surpresa foi na hora que pedimos desculpas a nossos parceiros pelo transtorno que tínhamos causado, rindo às gargalhadas eles nos responderam: – Não se preocupem, que nós já estamos acostumados a este tipo de aventura, ultimamente não gostamos de pagar a ninguém e a nada, onde toureamos sempre fugimos com a arrecadação. Para eles era uma satisfação, tanto quanto tourear, e nos felicitavam porque éramos os primeiros que tinham visto conseguir ludibriar um padre, pois os padres eram muito vivos, eles e outros colegas nunca tinham conseguido este feito, porque sempre que organizaram toureadas com os padres, quando eles corriam para pegar a arrecadação, os padres já a tinham pegado. Enquanto para Efraim e para mim era o maior crime que tínhamos cometido, para eles era a maior alegria termos saído dessa sem nenhum tropeço. Riam às gargalhadas e falavam qual seria a cara do dono do hotel quando entrasse no quarto e encontrasse as camas arrumadas, mas seus hóspedes tinham sumido, riam de todos, do Prefeito que não arrecadaria os impostos, do padre, do dono da impressora, tão gentil conosco, do coitado do rapaz que tinha espalhado fotos e recortes de jornais e um dia antes tinha recolhido tudo e esperava sua gorda gorjeta, nós, ao contrário, sentíamos pena. Com fortes abraços, no mesmo bar se desfez a quadrilha de toureiros composta por Lucho Perez, Charlot Junior (Faro De La Cruz), Efraim (Zuro Giraldo) e Orlando Ortega (Dom Tom Credo). Eles partiram rumo a nossa cidade e nós rumo ao sul, dispostos a sair do país o quanto antes. O feito para nós era degradante, para eles era mais uma proeza, era a maior felicidade. O adeus ao baú e a Efraim Foram várias mudanças de ônibus, noites mal dormidas, até alcançar a fronteira. Com a nossa documentação em dia a atravessamos. O lucro sonhado não se apresentou, as cidades e povoados, além de pequenos, eram pobres e o dinheiro que arrecadávamos mal dava para cobrir as despesas, mesmo assim, com a esperança de melhores lucros, continuamos para o sul. O Zuro (Efraim), que não estava acostumado a este tipo de vida sacrificada, com alimentação bastante precária, às vezes adoecia, eram cólicas, desarranjos, até um forte resfriado se manifestou, eu com minhas ervas e raízes, que a mãe tinha me ensinado para me curar no caso de alguma moléstia, com elas curava Zuro. O sul era a meta, e continuávamos. O dito baú nos ocasionava gasto e cansaço, sempre que viajávamos, nos tocava pagar o preço de uma passagem, e algumas vezes até mais, pelo transporte dele, então resolvemos vendê-lo em qualquer ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 354 casa de antiguidades. Em nossa terra nos dariam um bom dinheiro pelo baú, mas lá, ninguém quis comprar, e para não perder tempo oferecendo o dito cujo, tentamos dar de presente, e também ninguém quis, a solução seria jogar em algum lugar. Onde? Num rio, qual? Aquele que divide os dois países. Tiramos toda nossa bagagem e colocamos em duas bolsas, caminhamos até a ponte e o jogamos no rio, porém não afundou, a correnteza era forte e rápido foi desaparecendo de nossa vista, dava a impressão de ver um rosto triste e choroso, e com o balanço das águas parecia nos dizer adeus, me invadiu uma profunda tristeza. Olhei para Zuro e notei que também estava triste e me disse: – Aquele baú, depois de tantos anos na minha família, agora quem sabe onde irá parar, paciência! Entramos num novo país, para Zuro era novidade, para mim não, já tinha atravessado tantas fronteiras, que mais uma me parecia normal, estávamos otimistas, pelo menos o cansaço que nos ocasionara carregar o dito baú terminara e as despesas no transporte. Neste novo país o povo era alegre, gostavam da nossa música, aonde chegávamos e tocávamos muitas vezes até dançavam, porém o povo era de pouco poder aquisitivo, o que arrecadávamos era ínfimo. Percorremos todo o norte deste país até chegarmos à capital. Era inverno, estava frio, quando chegamos na rodoviária dois senhores se aproximaram de nós, curiosos ao nos ver com os instrumentos, queriam saber de onde éramos e de onde vínhamos, era um periodista e um fotógrafo, nos fizeram muitas perguntas e nos tiraram fotos. No dia seguinte saímos no jornal em primeira página com letras grandes e foto, onde se lia: Em plan de pativilca a Baires. Chegam dois colombianos a nossa capital, um pouco a pé e outro pouco andando de ônibus, percorrem a nossa América do Sul. À noite saímos para tentar a sorte, por motivo do frio havia pouca gente nos bares, era interessante que quando entrávamos para tocar em qualquer bar não faltava alguém que falasse: – Olha, são eles os dois colombianos que percorrem a América tocando! Nos recebiam com carinho, nos brindavam. Por último já não gastávamos em janta, sabíamos que qualquer dono de bar nos convidaria para jantar, apesar do pouco público nos bares as arrecadações não eram tão ruins. Depois de termos percorrido os maiores bares da cidade as arrecadações não eram tão boas, com instrumentos um pouco desafinados, e como já estávamos muito conhecidos na cidade, decidimos continuar mais para o sul. A cidade seguinte era pequena e só vimos um bar. Continuamos. A segunda também era pequena, tinha uns três bares e a arrecadação não foi boa. Eu notava que Zuro andava um pouco triste, pensativo, comia pouco, e começou a sofrer de insônia. Eu também comecei a ficar preocupado, estávamos numa cidade pequena, as ruas eram largas e compridas, solitária, dificilmente passava um carro e gente muito menos, o único ruído ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 355 que se ouvia era quando o sino da igreja dava a hora, às 9 horas deu nove badaladas, às 9:15 horas deu uma, idem às 9:30 horas, às 10 horas deu dez badaladas. Caminhávamos sem rumo, a cidade era fria, cinza, era uma cidade balneária e só no verão tinha movimento, por casualidade encontramos duas senhoras, perguntamos para que lado estava o mar, responderam: – nós vamos para lá. As seguimos, elas entraram na igreja, Zuro me convidou para entrarmos também, havia pouca gente, homens só nós dois. Zuro rezava em silêncio, eu não entendia o porquê da tristeza de Zuro. Saímos da igreja e nos sentamos num banco da praça que estava à frente. Sentados, o Zuro me disse: – Ortega, voltemos para casa, estamos perdendo tempo, aproveitemos agora que temos este dinheirinho que nos alcança para chegar à nossa terra. Não respondi nada, naquele momento fiquei pensando: Voltar para casa nesta pobreza! Eu sempre cheguei em casa com presentes, dinheiro, e mais que tudo: alegria, qual não seria a tristeza da mãe em me ver chegar naquela pobreza e desmoralizado. Pensava o que vou fazer lá, me empregar fazendo o quê? Voltar para o norte, para os países onde fui bem tratado, procurar Alberto e Estela, continuava pensando, claro, agora não sou mais aquele Negrinho simpático, ágil, esperto, paparicado, que muitos queriam ficar com ele como filho. Hoje quem é que vai querer ficar ou paparicar este negrão que sou agora? Uma certea certa tristeza me invadiu e que me ajudou a decidir e falei para o Zuro: – Irmão, vamos fazer o seguinte: você regressa, e com o dinheiro que temos me deixe um pouquinho, ao menos para me sustentar durante dois dias, o resto podes levar que dá para chegar folgado. Eu só volto quando conseguir reunir algum troco, você sabe que a esperança da minha família sou eu, não se preocupe comigo, você me conhece e sabe que me viro lindo. Ele colocou a mão no meu ombro e disse: – Orteguita, meu irmão, me dói te deixar, mas estou desesperado para voltar para casa. Juntamos as malas e fomos à rodoviária, pegamos o ônibus para a capital e às 23 horas Zuro partia. No abraço de despedida senti que ele estava emocionado, e porque não dizer, eu muito mais. O ônibus começou a marcha, ele do lado da janela, com as mãos me fazia o sinal de despedida, seus olhos estavam umedecidos. Quando o ônibus já estava distante, pela primeira vez compreendi que é menos doloroso partir que ver partir, me senti só, senti toda a solidão do mundo e uma tristeza profunda, estática. Da rodoviária até o hotel a distância era de apenas 2 quilômetros, porém não quis pegar condução, era meia hora da madrugada. Voltei a pé, a minha cabeça estava cheia de pensamentos, falava sozinho, eu não ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 356 havia pedido para Zuro ficar, porque ele tinha sido criado com todo tipo de regalia e a verdade era que sofríamos muitas privações, além de dormir em pensões baratas, em camas cheias de pulgas e até percevejos. Meus passos eram lentos, não queria chegar no hotel, mas queria me deitar e dormir, nas ruas nada de pedestres, de vez em quando passava um carro, em alguns bares tinha gente, noutros quase ninguém, sentia vontade de entrar num bar e beber, mas beber o quê se eu nem sabia beber. Comecei a lembrar a primeira vez que fugi de casa para me encontrar com o tal toureiro, a tristeza que senti quando não encontrei praça de touros alguma, o que encontrei foi uma tapera, lembrei que faminto peguei aquele plátano assado da lata do lixo, lembrei que depois daquele dia de tristeza e de pobreza a situação mudou, embora bem comido, com dinheiro e três amigos, aquela noite dormi embaixo do banco de uma praça. Estava feliz, tinha dinheiro. Hoje tenho dinheiro para pagar o hotel e comer por alguns dias, portanto, tchau tristeza, vou acelerar o passo, chegar rápido ao hotel, esquecer, descansar, dormir, que amanhã será outro dia. O recomeço No dia seguinte, enquanto tomava o café lia o jornal e numa das páginas havia uma propaganda que anunciava o festival num município vizinho, na Paróquia de Santo Expedito. Peguei o jornal, procurei saber a forma de chegar lá, e uma vez no local, falei com os padres organizadores e já me incluíram nas apresentações avulsas, que eram em barracas separadas. Uma era do homem borracha, noutra a mulher gorila, havia também um teatro de fantoches e na quarta barraca o famoso mágico colombiano que percorre o mundo, era esta a propaganda pintada na barraca. Em cada barraca cabiam quinze pessoas, o espetáculo durava 45 minutos e o preço era o equivalente a R$ 3,00 por pessoa, 20% era para a igreja, 20% para o senhor que vendia os bilhetes e fazia a propaganda na porta da barraca. O festival durou uma semana, começou num domingo e terminou no outro domingo. Na minha barraca terminava uma sessão e já começava outra, as apresentações começavam às 10 horas da manhã e terminavam às 23 horas. No último dia e após o acerto de contas, um gostoso jantar com todos os participantes numa alegre confraternização. Nos despedimos, como era o único estrangeiro, eram muitas as atenções para mim, esqueci a falta do meu amigo Zuro e tornei a lembrar o primeiro dia que fugi de casa, naquele povoado, com fome, com míseros treze centavos no bolso, onde um almoço custava quinze centavos, e em poucas horas mais tarde estava cheio da grana. A história se repetia, dias atrás com pouco dinheiro e agora com bom dinheiro no bolso. Fiquei por mais algum tempo nessa capital, me apresentava em escolas, quartéis do ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 357 exército, clubes, na cadeia e até em cabarés, algumas vezes saía nos jornais e uma vez numa revista. Tinha muitos amigos artistas, tanto de palco como de circo, já era conhecido por muita gente. Uns amigos que eram artistas de circo me convidaram para fazer uma turnê num circo que estava guardado porque o dono tinha falecido, mas um filho queria reativálo. Depois de muitos ensaios e todo material revisado, saímos. No primeiro povoado que armamos o circo estava a 120 quilômetros da capital, o entusiasmo era muito e ao que tudo pintava, teríamos um bom público. Pretendíamos nos apresentar na quinta, sexta, sábado e domingo, na segunda fazer um espetáculo para os alunos das três escolas existentes. Só que na quinta choveu de forma torrencial, também na sexta e nos demais dias, e segundo informações que nos deram, naquela zona dificilmente chovia, mas quando começava, chovia o mês inteirinho. No domingo deu uma “estiadinha” e enchemos o circo, só que o dinheiro arrecadado deu apenas para pagar as despesas, hotel, imposto, aluguel do terreno, água, luz. Continuamos noutras cidades, tentamos, porém a situação não era das melhores. Dois meses de sofrimento, enfrentamos chuvas, enchentes. Um dos caminhões que carregava parte do circo atolou, a saúde de duas companheiras estava em declínio e, para completar nossa situação, armamos o circo numa localidade um pouco frio, apto para criação de cabras. Com um público regular estreamos na sexta-feira, no sábado um pouco mais, e a esperança era o domingo. Entre os artistas havia um jovem senhor que era bailarino, sua especialidade era dançar música tropical, arte perfeita, no meu entender, eu que não fui um bom observador não percebi que o tal não era chegado em mulheres e sim em homens, na nossa primeira apresentação na sexta-feira, não sei de que forma, nem em que momento conheceu um criador de cabras, e daquele momento em diante não mais se separaram. No sábado, na hora do espetáculo, chegaram juntos ao circo, ele fez sua apresentação e depois foram embora. Na localidade nosso amigo das cabras era conhecido como o homem que tinha por esposa uma cabra, segundo nos contavam quando ele ia fazer suas compras ela ia junto com ele, era uma companheira inseparável. No domingo, vendedores do único jornal existente gritavam: – Leia o jornal com a notícia: Criador de cabras e bailarino do circo foram atacados por cabra enfurecida. O texto certo do jornal não lembro, mas mais ou menos era o seguinte: A cabra se encontrava no curral, onde não era acostumada a dormir, cheia de ciúmes, ao ver-se trocada por um bailarino e ao escutar os gemidos de romance, não aguentando o desaforo do seu homem, enfurecida arremeteu contra a janela envidraçada, quebrou o vidro e mesmo ferida, atacou os dois a coices, cabeçadas e ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 358 mordidas. Contam os vizinhos que ao escutar os gritos dos dois amantes, correram e encontraram os dois completamente nus, com seus corpos ensanguentados, e a muito custo conseguiram laçar a cabra, maniatar e levar para o curral. Os dois amantes foram levados para o hospital, onde se encontram em estado grave. Corremos para o hospital, a informação que recebemos do médico foi que o pipi do criador de cabras estava em frangalhos e com feridas por todo corpo, idem o bailarino, e como não tinham recursos para o tratamento no hospital, iam ser transferidos para a capital. Com o circo quase demolido, pobres, desmoralizados, retornamos ao ponto de partida. Ao ler um jornal da capital, em letras grandes e em primeira página estava: Cabra macha fez respeitar seus direitos de esposa fiel perante marido infiel. Em seguida contava o que já sabemos e muito mais. Nada ganhei, também nada gastei do meu dinheiro. Dada a circunstância, sem mais nada a fazer, me despedi dos amigos e continuei viagem em zigue-zague rumo ao sul. Fui parando em várias cidades, em algumas ganhava mais, noutras menos, mas sempre me sobrava para guardar um pouco, me sentia bem, estava contente. Dias depois cheguei numa pequena cidade muito bonita, a sua construção era colonial, a catedral era estilo barroco e as imagens, algumas com partes chapeadas em ouro, as ruas eram calçadas com paralelepípedos. A cidade se encontrava próxima à fronteira do outro país. Quando me apresentei ao dono do teatro, único existente na cidade, me falou que gostaria que me apresentasse no mesmo espetáculo onde se apresentaria o cantor do momento, era um bom cantor e também compositor, suas músicas eram ouvidas a toda hora, em todos os lugares, o conjunto musical também era muito bom, era do melhor que havia na ocasião. Entre todas as músicas, havia uma que se escutava a todo momento e por todos os cantos, a letra falava do índio nacional que tinha mudado seus costumes e já quase não queria falar a língua nativa. A letra, além de apresentar um alerta, também tinha um toque de chacota. Os habitantes desta cidade, na sua maioria eram índios e descendentes, que tinham abandonado suas aldeias e vindo para a cidade e tinham abandonado seus costumes, porém no fundo guardavam o orgulho de serem índios. Chegando o dia da apresentação e em se tratando de atuar no mesmo palco e teatro com o cantor mais famoso do momento no país, procurei levar os melhores números do meu repertório. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 359 Os primeiros a se apresentar foram um casal com suas duas filhas menores, uma tinha dez e a outra oito anos. Até hoje não consigo esquecer esta família, lembro deles com muito carinho, nas poucas horas que estivemos juntos senti a amizade sincera e o muito carinho que me brindaram e me fizeram sentir feliz, quando lembro deles, sinto muitas saudades. Ela se apresentava com pseudônimo de Acla Zurarai, ele como O Cholo Pancho. Ela cantava algo parecido como Ima-Zumac, com um timbre de voz muito agradável. O Cholo contava piadas e também apresentava esquete cômico com a esposa e filhas, as meninas também cantavam e dançavam músicas regionais. Foram muito aplaudidos, em seguida foi a minha vez, enquanto me apresentava notei que a maior parte do público era de jovens, alguns vestidos com trajes típicos de índio da mesma região, usavam umas bolsas penduradas no ombro, características da vestimenta. A revolta dos indígenas Terminei, recebi os aplausos e passei para trás do telão onde estavam os músicos, enquanto guardava os meus utensílios de trabalho eles se organizavam no palco, o cantor fez a apresentação dos músicos, em seguida anunciou que a primeira canção seria justamente aquela que mais se ouvia nas rádios, e era aquela que os índios e descendentes sentiam-se ofendidos. Quando os músicos tocaram as primeiras notas, como avalanche começaram a chover ovos, laranjas podres, tomates, sacos de papel com farinha de trigo misturada com areia, gritavam em coro e a todo pulmão: – Nós os índios falamos a nossa língua nativa. Em seguida subiram no palco, alguns levaram pedaços de pau e davam pauladas nos músicos, e entre dois ou três os pegavam e jogavam longe, sempre gritando: – Falamos a nossa língua nativa. Quebraram os instrumentos de madeira e amassaram os de sopro, o piano era um emaranhado de pedaços de madeira e cordas, me confundiram com o trompetista que era da minha cor, me levantaram e iam me jogar longe, apesar dos meus gritos lhes dizendo que eu era o Mágico. Nesse momento apareceu o Cholo Pancho e gritou brabo: – Ele não é músico. Cholo e Acla me puxaram para junto das meninas que gritavam: – Ele não é músico. Naquele esforço, os meus óculos voaram longe, como as lentes eram de vidro, ficaram em pedacinhos e a armação ficou toda torta. Acla empurrava longe todo aquele que passava perto de mim, e as meninas chorando recolhiam os meus pertences. O Cholo colocou-me no seu ombro e tirou-me do local da batalha. Quando chegamos na porta, estava a polícia e soldados pegando e amarrando os índios que continuavam gritando, e os músicos feridos eram levados para o hospital, eu também fui levado devido as manchas de sangue na minha roupa, mas eram apenas ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 360 escoriações. O Cholo e sua família não me abandonaram. Enquanto faziam curativos chegou o senhor Prefeito cumprimentando um por um os feridos. Quando o Cholo informou-lhe do estado dos meus óculos, ele pediu para o médico-chefe que solucionasse o quanto antes o meu problema. Através de uma receita que eu carregava e um exame do oftalmologista, às 2 horas da manhã foram-me entregues novos óculos. No dia seguinte os jornais mostravam em fotos a destruição ocasionada pelos nativos, que achavam a tal canção uma ofensa para eles. Fiquei mais três dias na cidade em companhia do Cholo Pancho e sua família, ele queria que continuássemos juntos, só que eles iam para o norte e eu para o sul. Não nos interessamos em cobrar o nosso trabalho, porém o dono do teatro nos procurou no hotel e nos pagou o preço combinado, nos disse que nós tínhamos trabalhado e ademais não tínhamos nada a ver com o acontecido. Ficamos muito contentes, porque não contávamos com aquele dinheiro. No dia seguinte me despedi, levando uma saudade que me acompanhou por muito tempo. Mesmo não tendo nenhuma queixa daquele país, pois fui bem recebido e bem tratado, tive vários amigos, principalmente artistas, entre eles o Cholo Pancho, sua mulher Acla e suas duas filhas, mas fiquei traumatizado e decidi sair do país. Acostumado que estava a atravessar a fronteira, e com meus documentos sempre em ordem, não tive nenhum problema em entrar no país seguinte, onde encontraria sotaque diferente, costumes diferentes, moeda diferente e até o nome de muitas coisas também diferente. Rápido me adaptei, e o que me chamou a atenção era que a população era toda branca, não via ninguém da minha cor, mesmo assim, já desde a fronteira fui bem recebido. E em todas as cidades onde chegava sempre me era facilitado tudo para me apresentar, podia ser nas escolas, teatros, nas cadeias, nos quartéis. Nas escolas as professoras e alunos me recebiam com manifestações de carinho. Após as apresentações me rodeavam, gostavam do meu sotaque e até em alguns lugares ouvi dizer que a minha cor era bonita. Alguns alunos me convidavam para ir à suas casas para jantar, ou almoçar, os pais deles me recebiam como a um antigo conhecido, e isto se repetia quase sempre, em todos os lugares aonde ia. Macareno Quando chegava às capitais dos estados, me dirigia aos correios e sempre tinha uma carta mandada pela minha mãe, lia e imediatamente respondia e lhe informava qual a próxima capital a me responder. Sempre ela colocava no envelope: favor não devolver esta carta, que ela será ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 361 retirada. Em todos os países e em todas as cidades em que eu chegava, para retirar as cartas me era exigida a carteira de identidade, e eu apresentava o passaporte. Depois de ter estado em vários povoados e cidades, cheguei à capital do país, onde encontrei também o mesmo calor humano. Em poucos dias da minha chegada já tinha alguns amigos, todos artistas, homens e mulheres. Em um domingo pela manhã, estávamos vários colegas reunidos em um bar tomando café e conversando, e no meio da conversa, um dos colegas perguntou para o outro: – Sabes como está Macareno? O outro respondeu: – Não está bem, quase não consegue caminhar. Um deles sugeriu irmos visitar o Macareno, o que todos concordaram e eu me juntei ao grupo. Fomos caminhando e o tema da conversa era Macareno, a sua chegada, sua vida, seus amores e muito mais. Entramos num casarão antigo e através de um corredor fomos até o fundo, onde encontramos um quarto com a porta aberta. Um por um íamos entrando e cumprimentando o Macareno. Deitado em um colchão que estava sobre o piso, não tinha cama, também nenhum móvel, perto da cabeceira e no próprio chão um pires com restos de vela, alguns fósforos, onde ainda restavam alguns palitos sem ter sido usados, no mesmo pires havia algumas moedas, espalhados pelo chão, muitos tocos de cigarros e perto dos pés muitos jornais mal arrumados. Os colegas me apresentaram para o senhor Macareno, sua voz não era clara, era rouca e falava de forma ofegante. – Ortega, eu lhe disse. – Macareno, me respondeu, quase não podia se mexer. No rosto tinha muitas feridas, também nos braços e corpo, ele mais parecia um defunto do que um ser vivo, tal era sua palidez. Numa das paredes que ficava de frente à porta de entrada estava dependurado um quadrinho de aproximadamente 20 centímetros por 20 centímetros, onde se via um jovem numa pose muito bonita de dançarino, talvez dançando um passo doublé, segundo a posição dos braços e das castanholas, vestia um traje andaluz, demonstrando um garbo e estirpe de matão. Fiquei tão cismado vendo o quadro que me pareceu ver nele a figura de um toureiro fazendo um arremate de gaonera com o capote, curioso perguntei para o doente, indicando o quadro: – Este é o senhor? Com a voz quase ininteligível me respondeu: – Aquele era eu, fiz o mesmo barulho, quando cheguei aqui, igual que você está fazendo; tal como você, eu saía a maior parte dos dias nos jornais, nas revistas, nos noticiários das rádios, sendo o tal, o grande, me dediquei à farra, festas, luzes, alegria, e de pronto tudo escureceu, a escuridão da noite me surpreendeu e estou aqui prostrado sem conseguir ver a luz do dia, sem poder voltar à minha terra para ver os meus, que tantas vezes me pediram para voltar. Eu fui um ingrato, nem sequer uma carta lhes mandei, não sei quem ainda vive nem quem já foi embora. Notava que quanto mais falava, sua voz ficava mais clara, falava com tanta emoção que alguns dos colegas estavam com ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 362 os olhos cheios de lágrimas; todos em um silêncio profundo, rostos tristes, mais parecia um velório. Pelo meu cérebro passava a minha família, principalmente minha mãe, me sentia triste, tinha se formado em mim o tal nó na garganta, queria chorar e não conseguia. Toda aquela monotonia foi quebrada por uma senhora que entrou levando um copo de leite e um comprimido receitado pelo médico, ela entrou toda sorridente e perguntando: – Como está esse velho doente? A alegria dela nos tirou do torpor em que nos encontrávamos. Em seguida entrou, segundo nos disse a senhora, seu marido, com uma bacia cheia d’água com algumas folhas, e dirigindo-se a Macareno lhe disse: – Amigo, vamos tomar um banho? Neste momento, para nos despedir, cada um foi colocando algum dinheiro no pires, e prometemos voltar. Uma vez fora do casarão nos despedimos, cada um tinha que organizar sua função da noite. Combinamos nos encontrar na hora e lugar de sempre. Dirigi-me para o hotel para preparar minha apresentaçao da noite. A imagem daquele senhor eu não conseguia esquecer, o que ele me falou: “a escuridão da noite me surpreendeu, aqui prostrado sem poder voltar a ver a minha gente”, estas palavras me doíam bastante, sentia medo de um dia não poder voltar à minha terra para ver a minha gente. Ele disse que tinha sido ingrato, que não tinha mandado nem uma carta, porém eu acho que não sou ingrato, me comunico sempre com a mãe através de cartas e quando posso vou lhe visitar, não gosto de farra, menos da bebida e nem do cigarro, meus romances são efêmeros. Mas mesmo pensando desta forma, a imagem daquele senhor não se afastava de mim. À noite, após a apresentaçao, voltei para o hotel, deitei, dormi e sonhei com ele numa alegre farra, ele bebia e eu também. Quando acordei, com muito esforço consegui lembrar o sonho, já não pensava mais nele, me dirigi ao comedor para tomar café, como sempre o rádio estava ligado, a maior parte dos programas era de notícias, num determinado momento se escutou uma música sacra e em seguida o locutor com voz pausada disse: Morreu o velho Macareno, amigo de todos nós, foi embora deixando muita saudade. Depois de mais algumas palavras informava: o enterro será hoje às 16 horas. Eu não sabia se ficava contente porque ele descansara ou se ficava triste pela morte sem alcançar seu desejo de voltar à sua terra e rever sua gente, me sentia num dédalo sem encontrar a saída. Lembrei do sonho que tive que estava com ele de farra, mas como nada entendia de sonho, deixei por isso mesmo. Dirigi-me para a associação dos artistas para saber mais a respeito. Na primeira banca que encontrei, vi num jornal que estava aberto, duas fotos de Macareno, uma de meio corpo, ainda jovem, sorridente, e na ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 363 outra, estava dançando com as castanholas nos dedos. Em letras grandes lia-se: Morreu Macareno, o grande bailarino de música espanhola. Não parei para ler nem comprei o jornal. Quando cheguei na associação, encontrei vários colegas, inclusive os que tinham visitado Macareno no dia anterior, numa mesa havia jornais, em todos eles se lia a respeito da morte de Macareno. Comecei a ler um deles que dizia: Aos 58 anos, morre o bailarino espanhol que encantou o público do nosso país com seus lindos movimentos. Uma página era só de elogios, sua chegada, suas apresentações, seus alunos, muitos deles já percorrendo o mundo e se apresentando. Tinha chegado com 22 anos, quando li esta parte senti um calafrio, eu estava chegando também com 22 anos, lembrei que ele me disse: eu fiz o mesmo barulho que você está fazendo na minha chegada. Pensei: Não vou ficar aqui esperando que me pegue a escuridão sem sentir, o quanto antes me toco daqui. Orações, palestras, poesias e palmas, tudo isso houve no enterro de Macareno. Enquanto o sarcófago recebia o caixão, eu falava comigo e dizia em silêncio: Obrigado Macareno, me abriste os olhos, saberei me cuidar para que não me aconteça o que lhe aconteceu. Obrigado Macareno, adeus. Poucos dias depois, continuando para o sul, e sempre recebendo a mesma bênção e o mesmo carinho dos habitantes dos lugares onde chegava. Novos obstáculos Uma vez na fronteira, entrei no seguinte país sem tropeço algum e trabalhando em todos os povoados e cidades, até chegar na capital. De tanto viajar me sentia meio cansado, meu guarda-roupa estava até surrado, era bom parar um pouco, comprar roupas novas e organizar as provas, que também estavam bastante deterioradas, por isso era importante uma parada. Fiquei sabendo que este país tinha boas relações diplomáticas com o meu país e que não teria nenhum problema para residir e trabalhar. Dias depois procurei as autoridades para legalizar a permanência, descobri que meu passaporte estava vencido e que teria que atualizá-lo para residir. Exigiram-me atestado de antecedentes, teria que pedir na Colômbia, e só com a documentação em dia poderia me associar à associação dos artistas, que era bem organizada e os próprios artistas fiscalizavam os clandestinos, portanto ninguém se atrevia a infringir a lei. Sabendo que meus gastos eram diários, e para não diminuir as economias, procurei serviço como ajudante numa serralheria, que não me exigiu nenhum tipo de documento e me aceitaram sem problema. A serralheria era bastante grande, com muitos operários. Comecei a trabalhar de ajudante de um senhor que me recebeu com muito carinho, ele estava trabalhando sozinho porque seu ajudante tinha saído por motivo ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 364 de uma briga que teve com outro ajudante. O mestre geral me informou que todos trabalhavam por empreitada, que eu ganharia 30% do que o mestre ganhasse durante a semana, portanto deveria colaborar bastante com meu chefe para tirar um bom dinheiro no fim de semana. Nada questionei, eu queria era salvar o meu rango diário. Antes de começar a trabalhar o chefe me perguntou: – Conheces o metro? – Sim senhor. – Sabes cortar ferro? – Sim senhor. – Sabes ler a escala de desenho? – Sim senhor. Em seguida me mostrou a planta onde estava desenhada uma porta de 1 metro e 50 centímetros por 2 metros e 20 centímetros, mais 30 centímetros de bandeirola; era artística, toda em ferro quadrado de média polegada e com muitos chinegos, que me fazia lembrar uma que tínhamos feito eu e Antônio. Eu cortava o material enquanto o chefe batia os chinegos, por certo muito bonitos, bem batidos. Uma coisa me chamou a atenção, era que meu chefe, a todo momento se acocava ou se sentava apertando o estômago, e quando se levantava estava vermelho como um tomate maduro, na hora do almoço só tomava um copo de leite, igual na hora do lanche. Ao ver o sofrimento do homem me atrevi a lhe perguntar se era dor que sentia, me respondeu que estava com pedras nos rins, que tinha tomado muitos chás, porém nada resolvera, que por enquanto não poderia parar de trabalhar porque estava devendo um dinheiro a juros e para não atrasar o pagamento teria de trabalhar todo aquele mês. Prometi lhe trazer umas ervas para chá, que segundo a minha mãe, eram boas para aliviar a dor renal e às vezes conseguiam fazer expelir as pedras através da urina. Deu um sorriso meio verde, um tapinha nas minhas costas e se despediu. No dia seguinte não apareceu, eu continuei trabalhando normalmente, não era o costume na firma, quando o chefe não aparecia o ajudante cumpria o horário sem fazer nada. Eu liguei a forja e comecei a bater os chinegos. Na hora do almoço se comentava que o Grego, assim que era chamado, fazia vários dias que andava doente, mas que de teimoso não ia ao médico. Uma vez pronto todo material, comecei a armar a porta do jeito que fazia com o Antônio embora ali tudo era soldado e mais rápido. Como era quarta-feira e o Grego não tinha mais aparecido me dediquei a terminar a porta, enquanto eu trabalhava, ajudantes e serralheiros desfilavam para dar fé no meu serviço, eu olhava para eles e lhes dava um leve sorriso. Ninguém falava, o máximo que faziam era enrugar a testa e ir embora. Procurei observar estritamente o desenho, a medida conforme a escala e a bitola do ferro. Tive o cuidado de examinar todas as soldas, dobradiças e fechadura, em seguida procurei o mestre geral que era quem recebia os serviços e conferia. Muito tímido entrei no escritório e falei para o mestre: – Senhor, a porta está pronta. O homem ficou vermelho e talvez com raiva atirou a caneta na mesa, saiu rápido do ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 365 escritório quase correndo, quando os proprietários da serralheria viram o mestre sair correndo eles também correram atrás dele, eu fiquei pasmo, meu coração pulava lentamente, em seguida fui me aproximando deles, o mestre com o metro e o esquadro na mão olhava a planta e examinava de forma minuciosa. Pensei: vou embora sem receber nada. Os proprietários examinavam os chinegos, parecia que os acarinhavam; o mestre começou a sorrir de leve e este sorriso me aterrorizou, meu coração começou a bater com mais força, os sócios se olhavam, eu mais me apavorava, me sentia como um condenado à morte. Mestre e sócios sorriram. O mestre chaveou, “deschaveou” a porta, vi ajudantes e serralheiros em volta bisbilhotando, imaginei que seriam os que me condenariam, vi o mestre mexer a cabeça em sinal de aprovação, em seguida me deu a mão dizendo: – Bonito serviço, meus parabéns! Um dos sócios me disse: – Você se apresentou como ajudante e não como profissional, porque de acordo com o tempo e a qualidade do serviço: só um profissional! Vou lhe dizer mais, aqui só temos dois serralheiros que fazem serviço artístico, que é aquele velhote dos fundos e o Grego. O velhote, vendo tanta gente reunida, estava vindo para bisbilhotar, a pinta do homem era de cachaceiro, olhou a porta, examinou os desenhos, se aproximou de mim e soltando aquele bafo de cachaça me disse: – Chinego bem feito, bonito serviço, parabéns! Na hora do almoço era aquela bagunça no comedor, todos falavam no meu serviço. Um que era bastante desbocado falou: – Colombiano, nós pensávamos que tu estavas fazendo cagada. Os patrões me pagaram o total da empreitada. Fiquei sabendo que o Grego tinha sido operado e no domingo fui visitá-lo, me recebeu sorridente, e disse que já sabia de tudo. Ele voltaria a trabalhar em trinta dias. Da segunda-feira em diante o mestre só me dava pequenos serviços artísticos. Três semanas depois chegaram meus documentos, me deram a permanência e em seguida fiz parte da associação dos artistas e ficava na obrigação de me apresentar nos teatros ou salas indicadas por eles, o pagamento era combinado, assim como as despesas extras. Artista, serralheiro e mestre Fiquei feliz ao me sentir legal no país e mais ainda de já poder trabalhar nos teatros e muito contente fiquei quando recebi o aviso para me apresentar já no sábado seguinte num povo perto da capital. A programação também indicava vários povos e bairros da cidade, não iria parar em dez dias, por este motivo não poderia continuar trabalhando na serralheria. Na sexta-feira, quando informei os patrões da minha saída da firma. Queriam saber os motivos, me ofereceram um bom salário e ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 366 algumas regalias. Tive que lhes explicar tim-tim por tim-tim o que eu fazia, o compromisso assumido e que no caso de não cumprir, poderia me ocasionar alguns problemas e até ser expulso do país. Na hora do almoço falei para os companheiros sobre minhas apresentações no teatro, também falei onde seria a minha primeira apresentação. À tarde, na hora do pagamento, me despedi de todos, escutei muitas palavras de carinho, inclusive dos patrões. Sábado à noite a minha surpresa foi grande, no momento que apareci no palco fui recebido com muitas palmas e gritos de Orteguita, Orteguita. Na penumbra da platéia consegui distinguir alguns dos meus companheiros da serralheria e os patrões. Depois da apresentação, e quando acenderam as luzes da platéia, vi que todos estavam em é e me aplaudiam com força, gritavam meu sobrenome. Soube que eles tinham levado suas mulheres, filhos e familiares, eles eram quarenta empregados, com os familiares e amigos, encheram o teatro, me senti feliz de saber que em tão pouco tempo tinha conquistado tantos amigos. No dia seguinte, quando me apresentei na associação para receber o dinheiro do cachê, ao entrar no prédio escutei vozes que gritavam: – Colômbia, bonito teu espetáculo! Outro gritou: – Ortega, tu ganhaste o povo! No escritório estava o presidente e o tesoureiro que me cumprimentaram com muito carinho. O presidente me disse: – Ortega, o dono do teatro ficou muito contente com tua apresentação, nos falou que nunca tinha visto um artista ser tão aplaudido, tão ovacionado, parecia que o teatro ia despencar com o barulho de tantos aplausos e gritos. Felicitaram-me. Mal sabiam que quase todos os assistentes eram meus amigos e seus familiares e que foram eles que fizeram toda aquela bagunça que me tornou famoso, tudo devido a meus colegas serralheiros, porque fiz uma porta artística, tinha entrado como ajudante e tinha feito o trabalho de um fino profissional, era o que eles comentavam. Durante um ano trabalhei em vários teatros de povoados e cidades. Nunca mais visitei a serralheria. Cansado do teatro, decidi parar um pouco e trabalhar de serralheiro por conta própria. Mudei-me para a cidade. Aluguei um galpão abandonado, com a condição de que quando fossem construir, teria que desocupá-lo. Comecei fabricando suportes para vasos, floreiras, cadeiras artísticas, cadeiras de balanço, etc. Os meus primeiros fregueses foram os padres de um oratório que ficava perto do galpão que eu alugava. Os padres reuniam as crianças todas as tardes no oratório para a oração, em seguida lhes serviam um lanche e depois iam brincar no pátio onde havia ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 367 vários brinquedos. Às 20 horas os padres levavam as crianças às suas casas. Eu tinha feito boa amizade com os padres, participava da oração com a gurizada e ajudava a levar as crianças em casa. Aos sábados, algumas crianças iam brincar pela manhã e à tarde, e aos domingos também, sendo que a missa no domingo era de manhã. Adultos assistiam também a missa, eu não faltava. Todos os domingos eu almoçava com os padres. Quando algum brinquedo estragava, eu consertava e não cobrava nada. Alguns meses depois, o dono do galpão informou-me que em breve começaria a construir e me ofereceu outro galpão, que ficava a umas oito quadras dali, aceitei, não tinha alternativa. Quando informei aos padres da mudança, não lhes pareceu uma boa idéia de eu ficar longe dos olhos deles. No mesmo instante ofereceram-me um galpão grande, localizado no fundo do pátio da sacristia, onde eram guardados os badulaques, sem demora aceitei. Informaram-me que eles já tinham pensado na possibilidade de me oferecer aquele local, com o propósito de ensinar à gurizada o que eu fazia, me prometeram conseguir tudo que eu precisasse, ferro, tinta, carvão e algumas máquinas. Era só dizer que eles providenciariam. Fariam a propaganda e se encarregariam da venda da produção, era só informar os preços. Naquele dia tudo ficou combinado, 60% do resultado das vendas seria para mim, 30% para repartir entre os alunos que estavam aprendendo e 10% para a igreja. Eu não pagaria nada e também poderia ocupar dois quartos que estavam ao lado do galpão como moradia. Gostei muito da idéia e no dia seguinte já estava no novo local. Com a ajuda deles organizei tudo. Apresentaram-me à dona Regina, secretária encarregada da contabilidade da igreja. Era ela que organizava as festas religiosas e eventos também relacionados com a igreja, ficou muito contente com a idéia de eu ensinar a gurizada, ela achava bonito meu trabalho e gostaria que seus dois filhos também aprendessem. A Regina, no primeiro momento, foi meu braço direito, me ajudava a organizar tudo, matriculava a gurizada, até criou um tipo de estatuto, onde em um item rezava que nos primeiros três meses os alunos não ganhariam nada, porque ainda não estavam produzindo, estavam aprendendo a conhecer a escala métrica e as bitolas dos materiais, que só começariam a ganhar a partir do terceiro mês. A Regina organizou uns panfletos para serem distribuídos nas missas do domingo, além do reforço dado aos fiéis pelos padres nas missas. Na segunda-feira se matricularam vinte e dois alunos pela parte da manhã e doze pela parte da tarde. No dia combinado todos estavam presentes, os da manhã e os da tarde. A gurizada era muito inteligente: ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 368 forjar a cabecinha dos chinegos, que era o mais difícil, mas na terceira ou quarta tentativa já conseguiam fazer, e mais que tudo, gostavam de fazer e de aprender. Eu sentia um gosto imenso de ser professor, meu pensamento chegava até os professores, eles deveriam sentir o mesmo gosto de ensinar, pena que ganhavam tão pouco. Perante eles eu levava uma vantagem, meus alunos me bajulavam e faziam o possível para que eu me sentisse bem, ao contrário de muitos professores de muitos lugares, que são vítimas de seus próprios alunos, que os maltratam, xingam, ameaçam e muitas vezes com a conivência dos próprios pais. Eu era um professor feliz, era amado pelos meus alunos e bem tratado pelos seus progenitores e além de tudo, ganhava bem. Uma coisa que eu não sabia era que cada igreja tinha uma determinada zona para atender seus fiéis, fazer os batizados, primeira comunhão, casamentos, as crianças para orações só podiam ser da zona correspondente. A existência da escolinha grassava como nenúfar num lago. Os casais que tinham filhos queriam que ao menos um dos filhos aprendesse a profissão e começaram a frequentar nossa igreja, vindo eles de zonas um pouco distantes, que não pertenciam à Paróquia. Aos domingos nossa igreja ficava superlotada. A procura por vaga para a escolinha era muita, os rapazes que terminavam o curso, que durava nove meses, não queriam sair, queriam continuar. Os padres conseguiram muitas máquinas para aumentar a oficina e assim davam oportunidade para os rapazes que terminavam o curso poderem continuar, eles também ajudavam a ensinar aos novos alunos. Tínhamos rapazes muito inteligentes, que até criavam bonitos desenhos e fabricavam peças. Até adultos tivemos que aceitar, e por último, três meninas também foram aceitas. Coordenada pela Regina, com ajuda dos padres, a escola ia de vento em popa, tudo funcionava muito bem, só que os padres das outras igrejas não estavam muito contentes vendo suas igrejas quase vazias nas missas de domingo. A gurizada dos outros bairros não esperava que os padres fossem recolhê-los em suas casas para irem nas orações. A maioria fugia e corria para nossa igreja, não adiantava os padres pedirem para os adultos e crianças frequentarem suas próprias igrejas, era o mesmo que pregar no deserto. O galpão teve de ser aumentado, construímos um palco, ganhamos vários aparelhos de solda, furadeiras, bigornas, esmeril e diversas ferramentas, doadas por firmas que inclusive compravam nossos produtos para serem revendidos. Muitos donos de floriculturas vinham de longe comprar e fazer encomendas. O sucesso era tanto que Regina teve a idéia de fazer uma exposição, todos nós aprovamos a idéia. Eu prometi fabricar com a gurizada peças com aplicações em bronze, alumínio e aço ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 369 inox. O entusiasmo da rapaziada era tanto que chegavam a trabalhar até 12 horas por dia e não queriam saber de parar nem aos sábados e domingos. Os padres tinham que insistir para eles irem descansar. Eu gostava de desenhar e esculpir durante a noite, quando todos iam embora e enquanto esculpia me lembrava da família do capitão Gaspar, quando esculpíamos peças também para uma exposição. Lembrava o pranto da Celina na hora da despedida, pensava que ela já deveria estar casada, pois se eu ficara adulto, é claro que ela também. Interessante que sempre sonhava com eles, principalmente quando estava esculpindo à noite. Festejos natalinos No dia 24 de dezembro, na missa do galo, a nossa igreja estava lotada de fiéis, enquanto que nas igrejas dos bairros vizinhos eram poucos os fiéis presentes. Isto incomodava os padres das outras igrejas. No dia 25 houve duas missas, uma na parte da manhã e outra na parte da tarde, sempre com a igreja lotada. Passadas as festas natalinas, à tarde, me vi frente a frente com um padre de outra igreja, que me lançou um olhar felino, nesse olhar senti o ódio que sentia por mim. Assim mesmo lhe sorri levemente. Notei que ele não gostou. Isto me ocasionou uma tristeza, uma espécie de dor no coração, não sabia se contava para Regina e para os padres ou se calava, preferi calar. Justamente naquele dia 26 tínhamos combinado uma apresentação, eu, claro, como mágico, os meninos e as meninas dançando, cantando, outros recitando poesias, os adultos também participavam, entre eles um bombeiro, que sempre colaborava na igreja. Com ele apresentamos uma toureada, eu toureiro sério, o bombeiro toureiro cômico; o touro era tipo de bumba-meu-boi do norte do Brasil, o corpo era feito de lona, os chifres e a cara eram do esqueleto de um touro, pintado e adaptado ao corpo, que parecia verdadeiro. Dois rapazes colocados na parte interna da lona faziam as patas do touro, os diálogos foram organizados por um arquiteto, também colaborador, o bombeiro fez o público rir à vontade. A programação e a organização do espetáculo foram a cargo do arquiteto e de Regina, mas parece mentira, quem levou as láureas fui eu. Muitos dos presentes e algumas autoridades felicitavamme, diga-se de passagem que tudo esteve muito bonito. No dia 27 foi aberta a exposição, esta deveria durar até o dia 1º de janeiro. No dia 31 de dezembro, todas as 840 peças já estavam vendidas, no dia 1º se encerrou a exposição com a entrega das peças a seus respectivos compradores. O dinheiro arrecadado foi repartido da forma combinada no começo, entre alunos, igreja e eu. O bombeiro e o arquiteto, de forma alguma quiseram receber dinheiro, melhor para mim, pois mais me tocou. Tinha me tornado ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 370 o ídolo da gurizada da escolinha, eram felizes ao meu lado. Os pais deles, após verem meu espetáculo me achavam o máximo, as mães às vezes me mandavam doces ou salgadinhos feitos em casa, com frequência aos domingos eu era convidado para almoçar na casa da família de um ou de outro. Alguns jovens alunos, que no começo tinham se mostrado apáticos, agora eram meus melhores amigos, me convidavam para ir ao cinema, aos concertos, às festas das universidades onde eles estudavam, alguns queriam aprender a fazer mágicas, eu lhes ensinava as fáceis, as mais difíceis eu lhes dizia que para aprender essas provas, era preciso ligeireza de mãos e agilidade de dedos. Eles popularizaram essas palavras e para todos, e a toda hora, se ouvia: ligeireza de mãos e agilidade de dedos. Às meninas que também queriam aprender, lhes dizia que tinham que dizer bem ligeiro e sem errar as seguintes palavras: marajá, marapá, marajá, marapá, marajá, marajú. Aprendiam, mas as provas não saíam, eu lhes dizia que continuassem praticando que no final a prova sairia. Adorava ir nas casas de amigos onde havia crianças pequenas. Elas ficavam felizes quando me viam chegar, corriam para me abraçar e subiam no meu colo. Alguns mal e mal conseguiam pronunciar meu nome. Nas casas que os adultos me chamavam de Ortega, o máximo que as crianças conseguiam pronunciar era Tega, nas que me chamavam de Orlando, a pronúncia era, uns Lando, outros Ando. Como era gostoso, tinha amigos por todos os cantos, quando me chamavam pelo telefone, a voz do outro lado falava: – Negrinho, vem almoçar conosco no domingo, vamos fazer ravióli. Como era bom ouvir aquela palavra “Negrinho”, dita com tanto carinho, outras vezes era: – Negro, domingo vamos preparar o que tu mais gostas, peixe, te esperamos para almoçar conosco. Outros era: – Colômbia, Orteguita, Landito (Landinho), nunca antes tinha ouvido me chamar de tantas formas. Não tinha festa, aniversário, batizado, casamento que eu não fosse convidado. Ultimamente na escolinha, tínhamos guris, adolescentes e adultos, e também três meninas. A Regina tinha tudo organizado e todos disciplinados, tínhamos também três times de futebol, um de crianças, um de adolescentes e outro de adultos, às vezes se organizavam torneios com times de outros bairros de perto, e distantes também. A escola de aprendizes e o conflito entre paróquias As outras igrejas vizinhas continuavam com poucos fiéis aos domingos nas missas e nas orações. A nossa sempre tinha gente rezando na missa e na oração, sempre lotada, os batizados e casamentos eram seguidos. Na escolinha, como era chamada, continuávamos fabricando peças, a freguesia aumentava, diariamente vinha gente de muitos lugares ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 371 e até de outros municípios para fazer encomendas e quase sempre em grande quantidade, tudo o que se fabricava era vendido. Dia a dia a escolinha ficava mais famosa. Muita gente queria conhecer o tal colombiano que ensinava à gurizada a arte da ornamentação em ferro. Muitas autoridades vinham nos visitar, prefeitos, ex-prefeitos, vereadores, deputados, homens e mulheres das letras, artistas plásticos, até a esposa de um ex-presidente do país já falecido foi nos visitar. As notícias de todas as visitas se espalhavam e isto provocava certa raiva nos padres das outras igrejas. Ficamos sabendo que aos domingos, no púlpito, davam um toquezinho contra a escolinha, e mais que tudo contra aquele cidadão estrangeiro, claro que era eu. Nada me preocupava e ninguém fazia caso, o que nos importava era o andamento da escolinha. Uma ferragem tinha doado brocas e alguns parafusos, eu mesmo fui pegar. Quando regressava, me abordou aquele padre que eu tinha visto anteriormente e que não tinha feito cara boa para mim. Sem me cumprimentar, e de forma grosseira, me perguntou: – Qual é teu país? Respondi: – Colômbia. Em seguida me disse: – Sabes que tu vais ser preso? – Não senhor, respondi, nada fiz de errado. – Sim, desde que chegaste estás perturbando a harmonia que aqui sempre existiu, e tu, com tua mentirosa escola, tens provocado muitas brigas entre vizinhos. Porque tu não vais embora antes de seres pego? Sem esperar resposta, ele se mandou quase que correndo, fiquei um pouco confuso vendo aquela batina desaparecer. Naquela época os padres usavam batina preta. Fiquei um pouco amedrontado, sem saber o que fazer, o que pensar, começava a me invadir uma certa melancolia. A sorte foi que naquele momento ouvi várias vozes que gritaram: – Negrinho! No mesmo momento um casal de crianças se grudou em mim, em seguida chegaram os pais, era um casal de amigos que eu sempre visitava. Muitas vezes me convidavam para almoçar e às vezes eu até dormia na casa deles. Eu adorava essa dupla de crianças, queriam entrar na escolinha, começamos a fuzarquear, meu estado de ânimo mudou e esqueci de tudo e também não contei nada do acontecimento para o casal. Imigrante, um intruso? Passados aproximadamente uns dez dias do encontro com o tal padreco, estávamos com a gurizada tomando café da manhã, não gostávamos de ir nos sentar no comedor, ali mesmo na oficina era mais gostoso, tudo era gozação, riso e brincadeira. Foi neste momento que vimos entrar quatro policiais, um deles muito grosseiro perguntou: – O que vocês estão fazendo? Um dos rapazes, sem maldade nenhuma, respondeu: – Tomando café. O policial ar de brabo respondeu: – Cala a ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 372 boca, não é com você. Com raiva perguntou: – Quem é o colombiano? Levantei-me e respondi: – Sou eu, senhor! O guarda me fez assinar um papel e me entregou a cópia dizendo: – Tem quatro dias para se apresentar na delegacia. O delegado quer falar com você, há denúncias de desordem e bagunça. As gurias, todas nervosas, começaram a chorar, ficando perto de mim. Quando a Regina viu os policiais saindo e escutou o pranto das meninas, ela e um padre alemão vieram correndo e leram o papel. Disseram: – Não é nada. Em seguida levou as meninas para o escritório. Claro que nosso café ficou estragado, senti o impacto que os policiais causaram na garotada, eram meninos de famílias humildes, pobres, que moravam em bairros pobres, meninos bons, sem maldade, senti que a revolta deles era profunda. Aquela noite não consegui dormir, fechava os olhos e via as meninas chorando, certamente nunca tinham visto policiais tão grosseiros como aqueles, arrogantes e sem educação. Continuava pensando: se um menino desses que ficou revoltado, mantendo aquela raiva, e se um dia um daqueles guris, pela própria vingança virar um guri mau, perverso, que não respeita ninguém e enfrenta até a polícia, a culpa não será dele, nem dos pais, e sim da própria autoridade, pois com ela aprendeu a ser mau. No dia seguinte fiquei sabendo que os pais das meninas e de alguns garotos e adultos que faziam parte de nosso grupo, revoltados se dirigiram à prefeitura para falar com o senhor prefeito, denunciar a invasão indevida à nossa escolinha. Naquele dia ninguém apareceu na escolinha, eu aproveitei para ir à delegacia cumprir a intimação deixada pelos policiais. O padre alemão queria me acompanhar, porém os padres não deixaram, porque a presença dele poderia ser tomada como afronta. Apresentei a intimação ao delegado presente, não era ele que assinava a intimação, porém tudo estava escrito na ordem do dia anterior. Quando o delegado soube quem eu era, a primeira pergunta que me fez foi: – É você que fabrica aquelas peças tão bonitas em ferro? – Sim senhor, respondi. Ele continuou: – Já compramos várias peças; na exposição minha mulher queria comprar tudo; vimos também seus números de mágica e me felicitou dizendo: - O que você e os padres estão fazendo pelas crianças é muito meritório. Ao contrário de falar a respeito da intimação, era só elogios. Quando lhe perguntei por que o outro delegado tinha me intimado, me respondeu: – Estou seguro que ele só fez isso para satisfazer os padres das outras igrejas, que a toda hora estavam enchendo o saco para que mandássemos fechar a escolinha, mas que poderia estar seguro que nenhum dos delegados mandaria fechar o que para eles era algo de muito valor. Todos eles tinham comprado nossas peças. Sentia-me muito bem conversando com o delegado, pena que começou a chegar gente, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 373 aproveitei para me despedir, me acompanhou até a porta, prometendo ir nos fazer uma visita. Na escolinha todos me esperavam nervosos, pensando que iriam me deter. Quando me viram chegar, todos queriam saber o acontecido na delegacia. Quando lhes contei da conversa com o delegado, a alegria foi geral. Os que foram falar com o prefeito me contaram que ele tinha prometido procurar saber o motivo da invasão e tomar as devidas providências. No dia seguinte tudo estava na santa paz. Como se aproximava a semana da pátria, a Regina e os padres, que se preocupavam por organizar eventos para toda a comunidade, decidiram organizar um torneio de futebol com a gurizada, e já tinham até times organizados. Na oração, nas missas e com o pessoal da escolinha, era feita a divulgação. O interesse era tanto que em poucos dias doze times já tinham inscritos. Para organizar o torneio foram convidados os dirigentes de cada time. Pelo pouco que eu entendia de futebol, fiquei sabendo que tudo estava organizado ao gosto. Para apitar os jogos foram convidados juízes da federação, inclusive bandeirinhas. O juiz que apitou o jogo da nossa equipe era um senhor loiro, jovem, e que tinha fama de ser bom juiz. A nossa torcida estava em peso, idem a do outro time. O estádio era improvisado, o barulho das duas torcidas era ensurdecedor, o jogo era tenso, nada de gol, no segundo tempo continuava o mesmo escore, a informação que recebi era que no caso de empate seriam jogados mais 15 minutos e o primeiro que fizesse gol seria o vencedor e o jogo terminaria, e se persistisse o empate, cada time cobraria cinco pênaltis, seria ganhador quem mais gols fizesse. As duas torcidas estavam em completo silêncio, faltavam poucos minutos para o fim do jogo, os dois times lutavam para fazer o gol do triunfo. Em um determinado momento, formou-se um entrevero na goleira do time contrário, quando, de repente o goleiro se atirou de forma violenta contra um de nossos jogadores que estava com a bola e saiu rodeando como um pneu. O juiz apitou, ouvi que alguém gritou pênalti, a nossa torcida começou uma tremenda gritaria, em poucos segundos o campo foi invadido por torcedores do outro time, que queriam bater no juiz. Foi necessária a intervenção dos padres e gente deles mesmos para evitar que batessem no juiz. O pênalti foi cobrado e os nossos venceram. Todos gritavam, pulavam, se abraçavam, era pura alegria, enquanto os outros saíam tristes e em silêncio, inconformados com a derrota. Após um lanche oferecido pelos padres e organizado pela Regina, o juiz se despediu, eu que durante o lanche tinha feito amizade e conversado bastante com o juiz da partida, me prontifiquei a lhe acompanhar onde havia estacionado o carro. ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 374 A surra, o trauma e o fechamento da escolinha Íamos conversando animadamente quando, de repente, vimos que se aproximava uma quantidade de rapazes e juntos alguns adultos; nos pegaram e começaram a rasgar a nossa roupa, outros nos batiam com pedaços de pau, gritando: Juiz ladrão, Negrinho safado, vai embora daqui. Eu não oferecia resistência, me atiraram no chão, procurei ficar de boca para baixo e tratar de cobrir a cabeça com as mãos, trancava a respiração e tratava de deixar o corpo duro para sentir menos as pauladas e as pedradas que caíam sobre meu corpo. Aos gritos dos vizinhos vieram os padres junto com a gurizada para nos defender, a polícia que tinha sido chamada chegou nesse momento e evitou-se uma verdadeira batalha campal, dois rapazes que me batiam no momento em que a polícia chegou, foram presos, outros que batiam no juiz também foram levados para dentro do camburão. O pai de um deles queria que soltassem o filho e discutia com os policiais, então também foi colocado no camburão. Quando tentei me levantar não consegui, minha cabeça rodava, Regina e os padres tentaram me ajudar, porém os policiais não deixaram, eles me deitaram em uma tábua larga e me amarraram, em seguida me colocaram em uma ambulância e fui levado para um hospital. O senhor juiz de futebol foi levado da mesma forma que eu, amarrado a uma tábua e em um carro de bombeiros. Da minha roupa só restaram frangalhos, só um sapato no pé esquerdo, o do pé direito fui informado que fora levado como troféu da surra. Todo atendimento no hospital pelos médicos e enfermeiras foi excelente, todos mexiam comigo. No dia seguinte, e após vários exames, me informaram que nada grave havia acontecido comigo, eram só escoriações e me liberaram. Na saída do hospital me esperavam vários padres, a Regina, a gurizada e alguns pais e também muitos amigos do bairro me receberam com palmas e gritos de Orteguita. Como era gostoso me sentir querido por tanta gente, claro que não era muito bom sentir-se surrado. Nas duas noites que fiquei no hospital não pensei em nada porque ficava até meia-noite conversando com médicos e enfermeiras que me perguntavam o porquê da surra, outros queriam saber como tinha chegado ao país, o maior interesse era ouvir como havia fugido de casa pela primeira vez. Já na escolinha, e à noite deitado, sentia meu sistema nervoso um pouco alterado, lembrava tantas provas de carinho por parte de alguns e talvez ódio por parte de outros, as lembranças vinham aos montes, não conseguia dormir, lembrava as vezes que tinha estado em hospitais, a primeira vez foi quando me joguei daquele ônibus em movimento, quando ainda era muito guri. Também quando o ônibus capotou, passavam pela ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 375 minha mente os momentos ruins, mesmo assim os bons eram superiores. O que nunca tinha pensado era que um dia ia ser surrado. Peguei no sono, mas dormindo continuava lembrando das minhas andanças, as minhas vivências por este mundo de Deus. No momento que acordei me lembrei de minha Santa Sara Kaly, tinha esquecido dela, talvez se antes de apanhar tivesse pedido socorro para ela, não teria levado tal surra. Naquela mesma madrugada fiz uma promessa, que todos os dias na hora da oração iria rezar para ela. Os acontecimentos tinham me deixado traumatizado, sentia medo de andar na rua. Ao me deitar colocava arapucas na porta e na janela, com medo que alguém tentasse entrar no quarto, colocava latas, panelas em cima das cadeiras para que com o barulho me acordasse para que não me pegassem dormindo. Escondido no meio da fronha do travesseiro tinha um pedaço de ferro de 1 metro de comprimento, em um dos lados tinha feito uma ponta bem aguda para me defender, no caso de alguém me atacar. Era tanto trauma, o pavor, que quando alguma das famílias amigas me convidava para jantar ou almoçar, inventava qualquer mentira para não ir, só para não sair na rua. Vivia pensando na minha família. O Macareno a todo momento aparecia no meu cérebro e para completar o meu trauma e ficar mais nervoso. Soube que a cúria metropolitana tinha mandado um ofício para que os padres fechassem a escolinha até nova ordem. O motivo alegado era que os padres das outras igrejas tinham se queixado que a escolinha tinha afastado a maioria dos fiéis das igrejas. A ordem foi obedecida, a escolinha foi fechada. Passados alguns dias do fechamento, ainda a gurizada e alguns pais sempre apareciam à procura de notícias, de informações. Esta situação me irritava, eu permanecia a maior parte do tempo encerrado no quarto, só saía quando me chamavam para as refeições, depois do almoço, como sempre, ia dormir os 10 minutos do Antônio, só que chegava a dormir até duas horas. Empresário falido Certo dia recebi uma carta da minha mãe onde me dizia que meus irmãos, cunhadas e cunhado queriam festejar meu aniversário e gostariam que eu estivesse presente. Pareceu-me ser uma boa oportunidade para viajar. Sem pensar muito, na hora do almoço comuniquei à Regina e aos padres o desejo de visitar meus familiares enquanto se solucionava o problema de poder reabrir a escolinha. Todos aprovaram, fiz um pedido, não queria nenhum tipo de festa de despedida. Três dias depois estava viajando, meu pensamento era de não voltar, levava algum dinheiro e poderia abrir qualquer tipo de negócio. Sem nenhum contratempo, minha ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 376 chegada em casa foi de muita alegria, todos meus irmãos estavam casados e todos tinham filhos, em casa só ficavam minha mãe e minhas duas irmãs caçulas. Entre todos, festejaram com muita pompa o meu aniversário. Dias depois falei com a mãe e meus irmãos do interesse que tinha de instalar algum tipo de negócio. Meu irmão Marino me falou que no porto estavam precisando de ônibus-lotação, pois estavam organizando a frota de lotação urbana. No porto me apresentou aos diretores, que me receberam de braços abertos e me deram todas as dicas de como deveria ser a lotação, portas, bancos, pintura, ano, etc. Voltamos à cidade, fomos a uma revendedora, encontramos o carro com as características exigidas, em seguida o levamos a uma oficina especializada neste tipo de serviço. Um mês depois me apresentei com o carro pronto para trabalhar, porém a surpresa foi grande, quando soube que tinha mudado a diretoria e que os novos diretores só aceitavam carros de determinados anos, no qual o meu não se encaixava, pois tinha um ano a menos do exigido, não adiantou choro nem vela para que aceitassem a minha lotação. Voltei para casa não triste nem com raiva, porque se este negócio não deu certo, outro poderia dar. O dono de um ônibus urbano de linha da cidade, sabedor que foi da existência e do estado da minha lotação, se apresentou querendo trocar o ônibus pela lotação, alegando que pretendia se mudar para sua terra natal, que era um município que ficava em outro estado, onde morava a esposa, filhos e toda sua família, pois já estava aposentado e também um pouco cansado, e com a lotação pretendia fazer pequenos transportes, aproveitando assim para estar mais perto da família. Orientado por um advogado, fechamos o negócio. Como ele não tinha todo o dinheiro, fazendo parte do negócio para completar o valor da lotação, deu de entrada uma geladeira, um fogão elétrico e um roupeiro, tudo novo, sem uso, mais o ônibus, e parte em dinheiro. Uma vez meu o ônibus, ele, para demonstrar sua idoneidade, se prontificou a dar a primeira volta comigo: o ônibus se portou muito bem, na viagem de ida foi lotado, idem na viagem de volta. Ao chegar ao fim da linha, recolhi todo o dinheiro arrecadado, ele me perguntou: – Que tal? – Muito bom, lhe respondi. Até o fim do dia ainda tenho de fazer mais três voltas. – Sim, me disse ele, só que não deve se iludir, porque sempre tem um gastinho extra nessas máquinas, porém sempre sobra. Com as sobras eu fiz a minha casa, eduquei meus filhos e por isso quero voltar para o meu povoado, trabalhar menos, descansar mais. Uma hora depois fiz a segunda saída, a ida foi lotada de passageiros e a volta também. Às 20 horas e 30 minutos saí para fazer a última volta, que durava 90 minutos. Não acostumado a este tipo de serviço, estava um pouco cansado. Após ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 377 um bom banho, e muito contente com o resultado, fui dormir. No dia seguinte a minha primeira volta seria às 13 horas e a última terminaria à meia-hora da manhã. Às 12 horas, quando cheguei ao paradeiro dos ônibus, tinha uma notícia, os motoristas estavam escandalizados, o colega, amigo de todos e ex-dono do ônibus que agora era meu, para se despedir tinha convidado alguns dos colegas para jantar, e no jantar tinha tomado umas que outras. Sem ouvir os conselhos dos colegas, e alegando que estava muito bem, partiu a uma hora da madrugada, só que, segundo informações da polícia rodoviária, às 4 horas, em uma curva, tinha batido contra um morro, demolido o carro e sua morte tinha sido instantânea. Eu tinha que cumprir o horário, e às 13 horas saí, era horário de poucos passageiros, enquanto recolhia os passageiros eu pensava: que pena, todos morrem e eu fico vivo, mal conheci o Macareno e o cara morreu, não conseguiu realizar seu desejo de ver os familiares; este outro me vendeu o ônibus para ir viver junto com os seus, morreu, também não conseguiu. Muitos passageiros que conheciam o dono do ônibus comentavam a morte, nenhum sabia que agora o dono do ônibus era eu, e que o carro em que ele tinha se matado era meu. Lembrava da felicidade dele quando deu algumas voltas na lotação e bem contente me disse: – É isso mesmo que eu preciso. Os passageiros continuavam subindo, sobravam poucos bancos vazios, de repente o dito ônibus deu uma tossida, apagou e não pegou mais. Devolvi o dinheiro para os passageiros e o ônibus foi rebocado para a oficina mecânica, o orçamento que me deram não compensava o valor do ônibus, na garagem todos comentavam: – Era um carro bom, quase nunca incomodava, ele cuidava muito bem desse carro, foi dono por vários anos, o ônibus não gostou da troca de dono, e ao saber da morte de seu antigo dono ele também morreu. Sem chance de conserto, vendi-o ao ferro velho. O desejo de uma companheira Eu comecei a sentir receio de tentar outro tipo de negócio, já tinha perdido algum dinheiro naqueles dois, não podia contar com a ajuda dos meus irmãos porque todos trabalhavam e também não moravam em casa. Toda a gurizada da vila tinha se casado e tinha filhos, uns haviam se mudado, alguns idosos tinham morrido, outros estavam muito velhinhos e mal me reconheciam, outros estavam vivendo com os filhos que não moravam mais na vila. As minhas cunhadas me tratavam como a um estranho, claro, tinham razão, só agora que estavam me conhecendo; as minhas irmãs caçulas permaneciam todo o dia na escola, saíam pela manhã e voltavam somente à noite. Para abrir uma escolinha eu não encontrava ambiente e não fazer nada me deixava nervoso. Fazia todo o ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 378 possível para a mãe não notar, algumas vezes saía para dar algumas voltas na cidade, mas voltava ligeiro para casa, me sentia só, lembrava da Regina, dos padres, das famílias que me queriam bem, dos gurizinhos filhos dos meus amigos, aqueles gurizinhos que quando eu chegava nas casas era aquela alegria, brincávamos, deixando a casa toda revirada. Lembrar tudo isto me entristecia, tanta alegria longe dos meus e quanta tristeza e solidão na minha própria pátria. A única amiga e companhia era minha mãe, eu sentia que ela se entristecia com a minha tristeza. O amigo Efraim tinha se mudado de casa e os vizinhos não sabiam para onde. Sobre o André, soube que tinha se casado e suas irmãs também, e todos tinham filhos, porém ninguém sabia onde moravam, tinham vendido a casa e cada um tinha comprado a sua. Às vezes tinha vontade de ter uma noiva, mas não tinha coragem, tinha receio de receber um fora, embora naquela época as meninas esperavam que os homens as namorassem e era coisa não muito fácil; a gente tinha que ir devagar, primeiro receber de longe o sorriso da menina, algumas vezes sorriam e se escondiam, com temor que os pais as vissem sorrindo para algum rapaz. Claro que se ela sorria para a gente já era bom começo, sempre se procurava a amizade de um irmão, a pretexto de qualquer coisa se entrava na casa com ele, dar demonstração de bom comportamento, educado e trabalhador, para elas era o principal. O passo seguinte era granjear amizade com a mãe, e aí sim começar a dar demonstração de interesse pela menina, toda a rapaziada sabia que a mãe chegava para o marido: – Amor, parece que aquele rapaz, amigo do nosso filho, está interessado na nossa filha, se vê que é um rapaz educado, bom filho e trabalhador. O pai, depois de averiguar a que família pertencia, então dava carta branca para o namoro, que era na sala, ela em um sofá e o pretendente em outro, sempre acompanhados por um irmão, irmã ou até pela própria mãe ou o pai lendo o jornal. O horário de visita era das 20 horas até as 22 horas, aos sábados, domingos e nas quartasfeiras. Na despedida, o máximo permitido era com as mãos, nada de selinhos, nem beijo desentupidor. Eu não tinha saco para tudo isso, e nem tempo para começar, e meu estado de ânimo me dava menos condições ainda. A minha mãe fazia de tudo para me ver feliz, me dava todo carinho que podia, eu não tinha coragem de empreender nenhum tipo de negócio, observava a vila, mas tudo tinha mudado por completo, as malocas da minha infância quase todas tinham desaparecido, as poucas que restavam, seus donos não eram os mesmos, existiam algumas totalmente abandonadas, nada se sabia dos donos. Agora existiam ruas asfaltadas, muitas casas bonitas, com jardins na frente, muitos sobrados e até prédios com três andares. O movimento de veículos era constante, os bairros que ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 379 antes eram separados da nossa vila, tinham se tornado uma coisa só, tudo isso me causava uma certa dificuldade de orientação, por exemplo, a maloquinha onde morava a mãe da Romélia, agora era um bonito sobrado, na parte térrea era um grande armazém. Por toda parte havia negócios, padarias, farmácias, bares e até danceterias. Um dia acompanhei a mãe a um armazém, passamos em frente a um ferro-velho muito decadente e a mãe me disse: – Você lembra do Polaco? Não podia acreditar ser aquele o ferro-velho do amigo Polaco. A mãe me falou: – Ele está muito velhinho e cego, a esposa dele, dona Elga morreu, e ele, mesmo assim, cego, continua vendendo seus pedaços de ferro e parafusos. Tem um filho que mora na capital, já tentou levá-lo para lá, a nora também, só que ele não quer, prefere continuar vendendo seus ferros. Aquele casal que mora na frente é que cuida dele, são pagos pelo filho. Eu convidei a mãe para entrarmos, pois gostaria de falar com ele. Estava sentado em uma cadeira com acento e encosto todo rasgado, perto da porta, me aproximei dizendo bom-dia. Com pouca vontade me respondeu, e com voz um pouco grosseira me perguntou: – O que você quer? Eu continuei: – Não sei se lembra de mim, sou o Ortega, aquele guri que às vezes vinha lhe ajudar a separar os parafusos. Lembra-se que o senhor me deu de presente uma bicicleta? Dona Elga costurava camisas e shortezinhos. Com certa raiva me respondeu: – Bicicleta não tem mais e a Elga não está costurando mais, volte outro dia. Eu queria continuar tentando, só que neste momento apareceu um rapaz moreno de bicicleta e em voz alta disse: – Polaco, tem parafusos de 2” x ½” com porca? O Polaco ficou um pouco pensativo e em seguida respondeu: – Tem! – Preciso de dois. O Polaco levantou-se com certa dificuldade, apoiado em uma bengala e um pouco inclinado para frente, antes de continuar disse-me: – Espere aqui. Dirigiu-se até o fundo do galpão onde havia uma prateleira com várias gavetas, na primeira que tocou pegou os dois parafusos, se abaixou um pouco e pegou as porcas. Desde lá perguntou: – Quer arruelas? – Quero quatro, respondeu o moreno. O Polaco dirigiu-se a mais ou menos um metro e meio de distância, à direita, e sem nenhum tipo de dúvida pegou as quatro arruelas. Com passos lentos chegou até nós, entregou o material ao moreno que por sua vez lhe entregou uma nota. O Polaco tirou um rolo de notas e colocou a nota recebida, em seguida do outro bolso tirou um rolo de notas de menos valor, deu o troco para o moreno, este deu um tapinha nas costas do Polaco, agradeceu e foi embora. Eu aproveitei e falei: – Quer dizer que o senhor não se lembra de mim? Não se lembra do seu Negrinho? Ele, como com uma espécie de raiva me disse: – Volte outro dia que a gente conversa. Notei que ele parecia longe deste mundo e que na realidade não se lembrava de mim e que minha presença não lhe agradava. Saí dali muito triste, retornei ao passado de guri quando eu lhe ajudava a separar porcas, parafusos, arruelas, ferros, lembrei aquele ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 380 domingo que ele me deu de presente aquela bicicleta que nunca me esqueço da marca, “ADLER”, tinha até caixa de mudanças. Com as bênçãos da mãe De noite, deitado, a figura do Polaco não saía da minha mente, pensava: Elga está morta, o Polaco está vivo, mas é como se estivesse morto, falei comigo mesmo, não quero mais ver aquela miséria humana, aquela amiga dos vivos, a dona morte, o que é que eu estou fazendo aqui? Nada, eu devo ir embora daqui, voltar para lá onde tenho amigos. Amanhã mesmo falarei com a mãe, mas a minha preocupação era a tristeza que a mãe ficaria quando lhe informasse da minha decisão. Mas foi tudo ao contrário, quando lhe falei a respeito, com voz calma e com um certo sorriso leve me disse: – Sim, meu filho, é o melhor que você pode fazer, compreendo que sua vida, sua felicidade não está aqui e com a bênção de sua mãe, vai meu filho, você sabe que Santa Sara Kaly é sua protetora. Reze sempre para ela, não deixe de me escrever, me informe de sua vida, de suas andanças e sempre que puder venha nos visitar. Pedi para a mãe que não falasse para ninguém da minha decisão, nem mesmo para meus irmãos, pois só iria me despedir dela. Dois dias depois estávamos no aeroporto, na hora do embarque nos abraçamos, lhe dei vários beijos ela também, com muitas bênçãos, não estava triste, estava calma, parecia sorridente, satisfeita com a minha viagem. Talvez eu estivesse triste ao subir no avião, dei a última olhada, lá estava ela na passarela, lhe abanei, ela me abençoou várias vezes e entrei no avião. Tentei olhar, mas já não se enxergava o público, o avião partiu, fechei os olhos, e no pensamento comecei a me censurar e me dizia: coitada da mãe, como a tenho feito sofrer. E me perguntava: será que após tantas viagens ela continuava sofrendo nas minhas partidas? A minha viagem não seria direta, porque o dinheiro não dava, programei para só fazer esta primeira escala de avião, o resto faria de ônibus e trataria de viajar de 500 em 500 quilômetros e permaneceria em cada povoado ou cidade no máximo três dias para chegar o quanto antes na cidade dos padres da escolinha e da Regina. Assim foi meu retorno por diversas cidades que ainda não estivera: apresentava-me em escolas, quartéis de soldados, cadeias, clubes, bares, teatros. Nas horas livres do dia, fabricava moldes de borracha látex com diversas figuras, também fabricava umas serrinhas tipo tico-tico manual e moldes para pintar, em diferentes tamanhos e figuras. Nas escolas ensinava a garotada a utilizar o material e depois vendia; a minha ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 381 apresentação era gratuita, o dinheiro que arrecadava cobria todas as despesas e sempre sobrava para guardar. Depois de vários meses viajando e parando, felizmente cheguei ao país que tanto desejava chegar. Agora só faltava chegar à cidade dos meus amigos. Após passar por vários povoados e pequenas cidades, cheguei em uma cidade que me pareceu muito bonita, tinha muito comércio e bastante indústrias. Primeiro tratei de me organizar numa pensão, depois saí para dar uma volta e conhecer um pouco a cidade. No dia seguinte fui à procura de apresentações, como sempre me guiava por intuição, me dirigi ao quartel do exército, o soldado que me atendeu me levou até o capitão, que depois de examinar meus documentos, fotos, recortes de jornais, me levou até o coronel chefe de divisão que me recebeu com carinho e educação, e depois de ver fotos e documentos começamos a conversar. Fez-me perguntas a respeito do meu país, de meu trabalho, etc. Notei que simpatizara comigo, depois me disse: – Nunca fizemos espetáculos aqui no quartel, mas vamos reunir os recrutas recém ingressados. Em seguida chamou o coronel e lhe apresentou a idéia de fazer o espetáculo no ginásio de esportes. Ofereceu-me uma quantia X, dizendo: – É pouco, mas não temos verba. Ele achou pouco, eu achei bom demais. No dia seguinte, às 16 horas, como combinado, comecei meu espetáculo. Os soldados eram bem disciplinados e educados. Quando entrei ficaram de pé e bateram palmas. Durante a apresentação riam e aplaudiam. Terminada a apresentação, o coronel que estava presente veio me felicitar, achou bonitos meus números. Em seguida me convidou para jantar na sua casa, também convidou o capitão, lá me apresentou sua mulher e filhos. Antes do jantar, fiz algumas provas de salão. Enquanto jantávamos o coronel falou para o capitão do interesse que tinha de apresentar um espetáculo para o dia do soldado que seria em vinte dias. Pediu-me informações de meus gastos e depois de uma pouca conversa ficou combinado que dormiria e faria as refeições no quartel dos bombeiros e que o espetáculo seria apresentado no ginásio municipal que tinha capacidade para dois mil espectadores. A idéia era convidar o maior número de autoridades com suas esposas, filhos e parentes. Meu pagamento ficaria por conta do Governador, que uma vez informado, imediatamente se prontificou a colaborar. Naquela mesma noite fui apresentado ao chefe dos bombeiros, o major Zelada, que entusiasmado com a idéia, já me mostrou onde dormiria e o comedor onde faria as refeições, que seriam feitas junto com os oficiais. No dia seguinte já tinha me mudado e encontrei vários bombeiros com afinidades artísticas dispostos a colaborar. Quando lhes falei do touro assumiram o compromisso de conseguir tudo e, realmente no dia seguinte o touro ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 382 estava armado. Ensaiamos todos os dias pela manhã, tarde e noite. Chegado o dia, o ginásio estava lotado. Antes do espetáculo o senhor Prefeito falou exaltando o dia do soldado, em seguida falou o presidente da Câmara, também falaram alguns vereadores, deputados até chegar o coronel e por último falou o senhor Governador. A seguir, conforme o programa, o primeiro a se apresentar foi um senhor muito conhecido, compositor de letras e músicas muito bonitas que estavam na parada de sucessos, falou e cantou acompanhado de um trio de violões. Depois foi minha vez, seguindo outras apresentações, meninas cantando, meninos e meninas dançando. A tourada deixamos por último, porque o bombeiro que fazia o papel de toureiro cômico era muito engraçado, até nos ensaios nos fazia rir. Pelas risadas do público, pelas palmas e pela satisfação que o público demonstrava, dava para entender que o espetáculo havia agradado. O bombeiro que tinha feito o papel de toureiro cômico o fez muito bem, o público ria às gargalhadas, eu fiz o papel de toureiro sério, quem levou as felicitações, como em outros lugares, fui eu, talvez porque me apresentei quatro vezes, primeiro como mágico, segundo apresentei um monólogo cômico, a terceira apresentação que fiz foi com uma dupla de músicos bombeiros que tocavam e cantavam muito bem músicas regionalistas, a pedido deles ensaiei bastante e aquele dia, acompanhado por eles, cantei uma cúmbia e uma valsa colombiana que tinha aprendido com meu professor de violão Túlio e com meus companheiros músicos e cachaceiros que roubavam galinhas, enquanto alguns tocavam, um deles roubava a galinha, a quarta e última apresentação foi o toureiro. Felicitaram-me, até o compositor me felicitou e disse que adorou minhas modinhas. O capitão e o coronel estavam felizes, não me deixavam só em nenhum momento. Dos que tinham assistido ao espetáculo, do que mais se ouvia falar era do mágico e da tourada. Os que não tinham visto queriam ver. Os diretores das escolas procuraram o coronel para me contratar, o espetáculo era só o mágico, a dupla cantora e a tourada. O coronel nos franqueou o carro dele ou o do exército, quem dava o preço era ele e a maior parte do dinheiro era para mim. A maioria das vezes os bombeiros não queriam receber nenhum centavo e tudo ficava para mim. Apesar disto, eu não ficava contente e ameaçava que se da próxima vez não pegassem um pouco de dinheiro eu não iria convidálos para outro espetáculo. Fiquei muito feliz quando recebi uma carta da mãe, era a resposta de uma minha onde eu lhe contava que sentia muito lhe causar tanto sofrimento com as minhas viagens, com as minhas despedidas. A carta dela eu a li várias vezes porque nela me dizia: – Meu filho, eu sei que sua vida está longe dos seus, longe da sua terra, é sempre fora daqui que você encontra muitos amigos, que bem lhe querem. Meu filho, a única vez que ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 383 sofri e tive vontade de morrer foi quando você desapareceu, gurizinho ainda, implorava pela minha formiguinha, era como eu lhe chamava, lembra? Não sabia se estava vivo ou morto, pensava nos seus olhos: será que ele aplica seus remédios? Confesso meu filho que muitas noites eu chorei a sua falta, sempre rezava para a Santa de seu pai, a Santa Sara Kaly, e lhe pedia que se você estivesse vivo o trouxesse de volta, e se estivesse morto me tirasse desta espera, desta angústia. Ela ouviu as minhas preces e me devolveu você forte e com saúde. Hoje você está um homem feito, soube se cuidar e cuidou de seus olhos, não acompanhei seu crescimento, mas estou segura de seu bom comportamento e isto me faz feliz. Sempre rezo e peço a nosso Senhor e à Santa Sara Kaly que derramem muitas bênçãos sobre você. Meu filho, tenho certeza que todos os meus filhos são bons, porém entre todos, o melhor é você, seus irmãos também falam e me dizem: Mãe, entre todos nós, seu melhor filho é o Negrinho. É só por hoje, beijo meu filho..., sua mãe. Guardei por muito tempo esta carta, gostava de ler sempre que podia. Os desafios da enchente O coronel ficava feliz quando era procurado para me mandar para mais um espetáculo, e lá ia eu contente porque todos os dias ganhava dinheiro e como não tinha despesas com comida nem dormida, meu gasto era mínimo. De um município vizinho vieram falar com o coronel, eram da polícia civil, e era para fazer uma apresentação com todo o pessoal que havia se apresentado na festa do soldado. Não foi difícil reunir este pessoal, que só queria se apresentar, pois dinheiro não lhes interessava. A festa seria no dia 4 de janeiro quando festejariam 30 anos de emancipação. Os organizadores faziam bastante propaganda, convidando o público para participar dos festejos, onde teria comidas típicas da região, corridas de parelheiros, pinhatas, jogo de vôlei com bexiguinhas cheias de água e outras atividades. Pelo entusiasmo que sentia na cidade, o turismo seria grande e a festa seria um sucesso. Porém não foi o sonhado, porque no primeiro dia de janeiro, na parte da manhã, quando ainda muitos dormiam devido a ressaca dos festejos da entrada do ano novo, e horas antes do meio-dia, desabou um temporal, algo de não acreditar, as ruas e as avenidas desapareceram, eram como rios caudalosos e barrentos, que arrastavam tudo que encontravam pelo caminho. Passavam árvores arrastadas pela água, gado afogado e tudo quanto era bicho, os bombeiros eram chamados de todos os cantos, os pedidos de socorro não paravam, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 384 os carros não conseguiam entrar e já saíam de novo, e o temporal não dava trégua. Já se notava o cansaço dos bombeiros, não tinham parado durante todo o dia, além do cansaço estavam mal alimentados. Às 4 horas a chuva parou de vez, o firmamento sorria enquanto os habitantes desta parte do planeta choravam, pela destruição da cidade, das suas casas, e outros pela perda de seus entes queridos, ou no mínimo com familiares feridos internados em algum hospital. O exército e a polícia também ajudavam, era pouca gente, o desastre era muito grande. No dia seguinte se viam muitos carros de bombeiros parados, só dois bombeiros à disposição, alguns estavam no hospital feridos ou tinham desmaiado de cansaço ou de fome. Assistindo tal situação, a falta de material humano, sem que ninguém me pedisse, quando entrava um carro no quartel e o motorista descia, muitas vezes deixando o carro até mal estacionado, correndo para o banheiro, e como eu sabia o que tinha que ser feito no carro o pegava e levava até a bomba, abastecia o tanque de gasolina, examinava o óleo, se faltava completava, calibrava os pneus, fazia uma rápida faxina e colocava em condições de poder novamente sair. O motorista vendo tudo aquilo aproveitava e entrava na cozinha, tomava um cafezinho, e saía com os bombeiros que estavam à sua espera, ele ainda comendo um pedaço de pão, saía em disparada com a sirene ligada a todo volume para atender mais um chamado. Em um determinado momento pediram socorro para ir retirar o pé de um rapaz que tinha ficado preso na grade de um bueiro. No quartel havia dois carros estacionados, dois bombeiros recém ingressados, porém não tinha motorista, foi quando ouvi o chefe gritar no telefone: – Tenho dois carros, dois bombeiros, só que não tenho motorista. Ao ouvir estas palavras gritei de lá onde eu estava: – Zelada, eu sei dirigir, só que não tenho habilitação nacional. Ele me respondeu: – Ortega, não interessa a carteira, por favor, dê uma mão. Sem demora corri para a oficina, peguei três folhas de serra e um marco, peguei o carro e fiz o que os motoristas faziam, arrancar e ligar a sirene a todo volume. Já no local vi que não era difícil, cortei o marco do ralo em dois pedaços, o pé do rapaz ficou livre. Quando eu estava ajudando o rapaz sair, apareceu o coronel meu amigo com dois soldados, e ao me ver me abraçou, não havia tempo a perder, ajudado pelos bombeiros tiramos a grade enquanto o coronel e os soldados pegaram o rapaz e colocaram-no dentro do carro e saíram sem demora para o pronto socorro. Regressamos para o quartel, encontrei o chefe sentado e com a cabeça sobre a mesa, tinha sucumbido pelo sono. Fui direto para a cozinha à procura de um restinho de comida que tinha sobrado nas panelas, porque com tanto pedido de socorro até os cozinheiros estavam de serviço, e ninguém cozinhava. O chefe entrou na cozinha, fiquei de pé rendendo continência como se fosse da corporação, no seu rosto se notava o cansaço, com voz calma me disse: – Ortega, ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 385 quero te pedir mais um favor, pega um carro e um bombeiro daqueles com quem fizestes o socorro e vai lá no hospital central, lá tem dois bombeiros que controlam um motor que está bombeando água do porão do hospital onde estão as geladeiras e está cheio de água. Aqueles bombeiros estão lá desde cedo e devem estar exaustos e mal alimentados. O serviço é controlar o filtro por onde passa a água para que não fiquem entupidos, pois no caso de entupirem o motor apaga e não é fácil fazer pegar novamente. Os dois bombeiros que estão lá são motoristas, entrega o carro para um deles. No momento que chegar um bombeiro descansado mando-o te substituir. – Sim senhor, respondi. Dei as duas últimas garfadas da comida que restava no prato, mastigando ainda e sem me preocupar em escovar os dentes, subi no carro com a sirene a todo volume e arranquei, o bombeiro que me acompanhava, segundo as regras, não poderia sentar-se ao meu lado, só um oficial poderia, e a regra foi cumprida. Olhei o relógio, faltavam 10 minutos para as 21 horas, os poucos carros que circulavam se encostavam, me deixando espaço livre para passar, me sentia o tal, meu coração se estremecia, era gostoso sentir essa emoção. Chegamos no local e os dois bombeiros ao me ver gritaram: – Paisanito! Era essa a forma que todos me chamavam no quartel. Falei: – O Major Zelada mandou substituí-los, é para vocês irem direto para o quartel. Antes de partir me deram algumas explicações do funcionamento do motor, os rostos deles pareciam mais de defunto do que de vivos, o hálito era insuportável, pegaram o carro e se mandaram. Em seguida calçamos as botas e as luvas de couro, examinamos a altura da água, dava quase nos nossos joelhos, lá fora a água saía com força e em quantidade, puxada pelo motor, frequentemente examinávamos o filtro para verificar se não tinha sujeira, nos revezávamos uma vez cada um. Olhei o relógio, eram 2 horas, a água tinha diminuído bastante, chegava pouco acima dos tornozelos, era a vez do companheiro ir examinar o filtro, segundos depois de entrar no porão escutei um grito que parecia de voz feminina, pensei: será que alguma morta ressuscitou? Corri para dentro do porão para socorrer o companheiro, encontrei-o cuspindo, sacudia as mãos, dava pulinhos e mexia o tórax com gestos que parecia uma verdadeira bicha. O motivo do grito e dos gestos era que perto do filtro boiava uma mão e ele, pensando que era lixo, tinha pegado, e quando descobriu que era a mão de um morto, foi aí que se desesperou. Como já havia pouca água no porão, boiavam muitos pedaços de corpos, que com a pressão da água, as geladeiras tinham se aberto e os corpos saltado fora. Estes corpos eram de indigentes e de gente sem parentes, eram para estudo de estudantes de medicina das diferentes universidades. Retirei a mão do filtro e a coloquei em um lugar do porão que já estava ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 386 sem água. O companheiro continuava dando aqueles pulinhos de bicha, e com os lábios fazia um ruído como criança (bruuuu...). Contornada a situação, voltamos para a rampa onde permanecíamos sentados, era daí que escutávamos a todo momento a chegada de viaturas da polícia e ambulâncias de hospitais, todas as sirenes a todo volume, enfermeiros corriam com macas levando doentes ou talvez mortos, iam para dentro do hospital, lá se ouviam gritos, gente chorando, talvez parentes de mortos ou feridos, o movimento era contínuo. O bombeiro estava calmo, não gritava mais, não cuspia nem dava aqueles pulinhos de marreca. Nossos relógios marcavam 4 horas e 15 minutos da madrugada do dia 2 de janeiro. Falei para o companheiro: – Hoje é o aniversário da minha mãe, todos meus irmãos estarão reunidos festejando e levando presentes, só eu, como sempre, não estarei presente. Meu pensamento estava na minha casa, foi neste momento que ouvimos um ruído estranho dentro do porão, entramos correndo, o bombeiro na frente e eu atrás. No momento que ele entrou no porão, uma das portas da geladeira deu um forte estouro e se abriu e começaram a saltar braços, cabeças, pés, troncos, todos congelados e caíam no chão. Meu amigo deu um berro e caiu desmaiado, era um lugar onde ainda tinha muita água e lhe cobriu quase todo o rosto, com medo que se afogasse, puxei-o e coloquei-o em cima de vários corpos de cadáveres e depois corri para dentro do hospital e pedi socorro Dois enfermeiros vieram correndo e levaram-no para dentro, fiquei sozinho controlando o motor e o filtro. Sem condições de colocar todos aqueles corpos na geladeira, comecei a amontoá-los nos lugares onde não tinha mais água. Como nessa hora o porão estava quase seco, coloquei o filtro dentro de uma espécie de cisterna. Havia muitas partes de corpos espalhadas e fui amontoando-os em um lugar só, havia corpos inteiros, que com certa dificuldade conseguia arrastar para junto dos outros. Enquanto os amontoava e arrastava ficava olhando, todos de olhos fechados, homens, mulheres e crianças, eu pensava que todos eles já haviam estado vivos, caminharam, alimentaram-se, riram, choraram, talvez foram felizes, outros não, hoje ali, inertes, congelados, alguns costurados de forma grosseira em alguma parte do corpo. Olhei o relógio: 8 horas da manhã. Eu estava com fome e com muito sono, para não dormir falava sozinho e me perguntava: será que aquele bombeiro é bicha? Distraído com o pensamento no companheiro, ouvi o barulho de sirene, pensei: mais um morto ou ferido. Na realidade era o carro de bombeiros se aproximando, vinham dois oficiais, dois bombeiros, como sempre, quando me enxergaram começaram a mexer comigo. Um deles disse: – O Paisanito agora pertence ao corpo de bombeiros. Todos me cumprimentaram sorridentes, sabia que me queriam bem. O oficial me perguntou pelo bombeiro, contei-lhe todo o acontecido, inclusive que estava lá dentro do hospital. Um deles subiu para o hospital e eu e os outros entramos no porão onde estavam os mortos. Contei-lhes que ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 387 quando o companheiro viu todo aquele pessoal saindo do congelador deu um berro e desmaiou, como ainda tinha bastante água, eu havia colocado a cabeça dele em cima de um morto para evitar que se afogasse e subi para pedir socorro, dois enfermeiros vieram e o levaram, para não abandonar o filtro não subi e também não podia fazer nada. Os oficiais examinaram a geladeira e me perguntaram se todos aqueles corpos estavam ali dentro, respondi que sim e falei: – Foi por isso que quando o companheiro viu toda essa gente sair dali dentro, desmaiou. – Quem lhe ajudou a amontoá-los? – Ninguém, não tenho medo não senhor! Estão mortos, não podem fazer mal a ninguém. O oficial voltou do hospital dizendo que o bombeiro estava bem e que já iria ser liberado, o chefe do hospital veio junto e aproveitaram para mostrar que tudo estava em ordem e livre da água. Ele me levou para dentro do hospital, me fez tirar toda a roupa, antes me aplicaram uma injeção, não soube para quê. Colocaram-me dentro de um banheiro. Aproveitei para fazer minhas necessidades fisiológicas retidas durante a noite e até então, em seguida tomei um longo e gostoso banho com água morna. Ao sair do banho um enfermeiro me fez colocar um guarda-pó branco, em seguida me levou até o comedor onde me serviram um reforçado e apetitoso café. Após o café, uma doutora me fez vários exames, depois me entregaram uma sacola onde estava minha roupa suja, me advertindo que era para usar só após ser lavada. Estava ainda de guarda-pó e o diretor veio me agradecer o bom trabalho que tinha feito, pois qualquer outro teria fugido de tantos mortos, algo macabro, em um porão quase na penumbra, durante a noite, e ainda solitário, longe de qualquer ser vivente: – Só de pensar em você me arrepio todo, falou ele. Nos despedimos, em seguida fui levado para um carro estacionado em frente ao hospital, lá encontrei o bombeiro também de guarda-pó, conversamos até chegar no quartel. Não havia nenhum carro e nem bombeiros, só havia um oficial de plantão, que veio nos cumprimentar, se notava o seu cansaço, fez algumas perguntas ao bombeiro a respeito de sua saúde e também deu informação da sua esposa. Eu ficava olhando para ele e não tinha pinta de bicha. O oficial, dirigindo-se ao bombeiro, disse-lhe que deveria estar cansado e que podia ir descansar, o bombeiro respondeu: – Senhor, dormi a noite toda e posso ficar para o caso de uma emergência, quem não tem dormido é o Paisanito. Realmente, eu estava quase dormindo em pé. Em seguida me despedi dos dois e corri para me deitar, só acordei no dia seguinte, era 3 de janeiro. Nada funcionava, tudo era silêncio. Alguns estados vizinhos também tinham sofrido a fúria do temporal. No dia 4, todos mais calmos, todos os bombeiros e carros estavam no quartel, a notícia dos mortos que eu tinha amontoado tinha se espalhado, o comentário era geral, precisaria muitas páginas para tantas vezes que eu tive que contar o episódio de ter ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 388 amontoado tantos corpos de cadáveres, eu contava como tinha feito e enquanto explicava, aproveitava para imitar os gritinhos do amigo e as cuspidas, acompanhado dos pulinhos, ele ria que se matava, foi ali que descobri que o jeito dele rir era assim mesmo, de bicha não tinha nada. O município onde faria o espetáculo era um dos mais destruídos. No dia seguinte o coronel mandou me chamar, ao ver-me chegar veio correndo, abraçou-me e fomos direto para seu escritório. Disse-me que tinham lhe contado da minha façanha e da grande colaboração que eu tinha prestado em momento tão triste, agradeceu-me e disse que se sentia muito feliz em ter me conhecido. No meio da conversa falei-lhe da minha vontade de continuar a viagem, falei-lhe da escolinha, dos padres, da surra que tinha levado e como tinha prometido voltar lá, esse era meu desejo. No dia 8 fui homenageado com um almoço de despedida. Vários oficiais do exército, policiais e bombeiros estavam presentes. As palavras alusivas à homenagem foram ditas pelo Zelada que se pronunciou cheio de emoção, meu amigo, o coronel, me entregou uma placa em agradecimento à minha colaboração. No dia 10 o coronel me acompanhou até a rodoviária, na despedida entregou-me um cartão, nele estava escrito à mão uma recordação para seu irmão que morava na capital. No momento que me entregou, ele disse: – Quando chegares na capital procura este general, ele é meu irmão, é conselheiro do Presidente, qualquer coisa que precisares procura-o que ele te dará uma mãozinha, já falei com ele pelo rádio amador. Como meus gastos foram poucos, consegui economizar uns bons trocos. Sendo o meu maior interesse chegar na capital, eram poucos povoados ou cidades onde parava para trabalhar, às vezes viajava de trem ou de ônibus, feliz pensava na Regina e sua família, nos padres, nos amigos, nas criancinhas com quem tanto brincava, e também se tudo estaria igual. Fazia tanto tempo, só uma carta mandei-lhes e só uma recebi. Com a família da Regina Uma tarde cheguei à capital, não sabia para onde ir. Já na rua me chamou atenção um letreiro que dizia Hotel Cosmopolita. Achei interessante o nome e lá me hospedei. No dia seguinte, após o café, sem mais nada pensar, me dirigi para a igreja para ver os padres, a Regina, e depois visitar alguns amigos. Bati na casa paroquial e quem me abriu a porta foi aquele padre que me perseguia e que tinha me perguntado porque eu não ia embora, pois eu estava criando problemas para as paróquias. Ele me recebeu todo sorridente, mandou-me entrar, em seguida, com muito barulho, chamou o padre alemão, que ao saber que ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 389 era eu que estava lá, veio correndo, abraçou-me, o padre safado sorria, sentia que ele estava feliz, mas tudo me parecia fictício, até pediu para nos trazerem cafezinho. Uma senhora trouxe cafezinho, serviu-me com um sorriso de puxa-saco. O padre alemão estava ao meu lado, perguntei-lhe pelos outros padres, me respondeu que o pároco tinha ido para a Itália a chamado do Papa, dois deles tinham ido para o povoado do sul, onde a população maior era de índios, e ele voltaria para a Alemanha. A Regina não quis ficar e estava trabalhando em uma empresa de cosméticos. O padre safado aproveitou para dizer: – O bom filho a casa torna, você voltou, eles também voltaram. Quando o padre safado foi atender um casal que queria batizar o filho no próximo domingo, o padre alemão aproveitou para me dar o endereço de Regina e disse: – Vá visitá-la, aquela família lhe quer muito bem, nunca o esqueceram. Eu pressentia que o safado queria falar comigo, só que não se atrevia perto do padre alemão. Ao me despedir, o safado disse: – Orteguita, volta que precisamos falar. Em seguida foi atender uma pessoa e o padre alemão pediu meu endereço para se despedir de mim quando tivesse que viajar, quando estava indo embora me perguntou se tinha dinheiro, disse-lhe que sim. Em seguida disse-me: – Trate de sair daqui de táxi, esta zona está politizada, tem surgido uma grande bandidagem, incrível é pensar como era nosso bairro. Despedi-me, peguei um táxi e fui direto para o hotel. Depois de almoçar dormi os 10 minutos do Antônio. Quando acordei fui procurar a Regina e como não tinha pressa, fui a pé, eram aproximadamente oito quadras. É muito difícil descrever a bagunça que se formou com a minha chegada. A Regina virou a cadeira ao se levantar e assustou o pessoal do escritório, ela correu, gritou, me abraçou, tornou a gritar, chamando a filha que trabalhava na outra sala: – Vem minha filha, que nosso Negrinho chegou! Como é gostoso sentir o carinho sincero das pessoas, no abraço que a filha da Regina me deu, senti aquele carinho, aquela sinceridade tão diferente do cumprimento do padre safado. A Regina me cheirou de um lado da orelha e disse: – Até o perfume ainda está ali. Uma das funcionárias falou em voz alta: – Regina, tu nos disseste que ele era bem Negrinho, só que ele é moreninho, cor canela. Cada um falava um pouquinho a meu respeito, alguém chegou a dizer que eu era todo simpatia. – Minha filha, disse Regina, pega a tua bolsa que esta tarde estaremos de férias. A guria disse: – Mãe, avisa o pai que ele é capaz de não ir para casa cedo. Lembro que o marido da Regina brincava comigo como se fosse uma criança. Em casa a Regina falou-me que os patrões eram vereadores e que estavam em plena campanha política pela reeleição. Também me disse que eles compravam muitas peças de ferro, tais como mostruários e ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 390 brindes, só que sofriam muito porque compravam da Espanha e da Itália e que dificilmente chegavam a tempo, que ela tinha falado muito com os patrões a meu respeito, de tudo que eu fabricava em ferro, em peças de alumínio, cobre e latão. Depois de muita conversa me perguntou o que eu pretendia fazer. Respondi que ainda não tinha pensado. Perguntou-me se eu gostaria de trabalhar com o dono da empresa, que ele organizaria um local. Gostei da idéia, eu não queria mais trabalhar com teatro. Eles não me deixaram ir para o hotel, me levaram para um quartinho que eles quando se mudaram tinham organizado, como se tivessem certeza do meu retorno. Antes de me deitar lhes mostrei o cartão dado pelo coronel e lhes falei do desejo de visitar o general, irmão do meu amigo coronel, no dia seguinte. Antes de dormir continuamos conversando. A Regina me falou que descobriram que o culpado do fechamento da escolinha fora o padre Nernecio, este era o nome do padre que eu chamava de padre safado. Ele tinha se valido da influência do arcebispo metropolitano que era seu amigo. Contou-me também que o padre Nernecio tinha convidado vários de meus alunos para reabrirem a escolinha, mas que ninguém tinha comparecido. O marido da Regina disse-me que eles também tinham descoberto e desconfiavam que o padre Nernecio tivesse pagado para que nos surrassem. Falei para eles que o padre Nernecio tinha me convidado para ir falar com ele. Eles me informaram que a intenção dele era convidar-me para reabrir a escolinha e disseram: – Ele sabe que contigo à frente toda a gurizada é capaz de voltar. Falei para eles que eu não pretendia voltar a falar com aquele “padreco” e que eu não gostava dele. – Ortega, tem outra coisa, aquele nosso bairro mudou totalmente. Encheu-se de uma rapaziada vinda de outros estados e vivem pesquisando a que partido político pertencem as famílias, se descobrem que não são do partido deles os surram e até matam, e ninguém fica sabendo quem foi, e mesmo sabendo, ninguém fala, para salvar o couro, foi por isso que nós saímos de lá. Muitas coisas mais me contaram. Depois de um cafezinho, fomos dormir. Como sempre, essas emoções me tiravam um pouco o sono. Comecei a pensar no recebimento que o pessoal onde trabalhava a Regina tinha me feito, que bonito, quanta coisa bonita ouvi de Regina, quanta coisa linda ela tinha falado para os colegas a meu respeito. Veio-me à tona o coronel, o capitão, o Major Zelada, os Bombeiros, que gente! que amizades! Comecei a lembrar um trecho da carta da mãe onde me dizia: meu filho, a sua felicidade está longe dos seus, longe da sua terra. E eu pensava: é verdade, na minha terra fui acusado de ladrão, de ser ovelha negra da vila, de ser mau exemplo, só porque fugi de casa, e quando me viram chegar bem vestido, de relógio no pulso e com dinheiro, tentaram fazer a mãe me internar na Febem. Com tudo isso, nenhum dos rapazes da vila progrediu ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 391 economicamente, familiarmente sim, muitos ainda bem novos chegavam a ter três, quatro e até cinco filhos. Não queria lembrar o passado, era melhor desfrutar do presente, assim mesmo me veio a imagem do coronel, a alegria dele quando me viu lá no porão do hospital, aquele abraço que me deu, lembrei seu rosto pálido, demarcado, notava-se nele o cansaço, talvez de tanto correr salvando vidas. Vi o rosto do Major Zelada quase dormindo, aqueles dois bombeiros com os rostos como defuntos e aquele hálito insuportável, quem sabe quantas horas sem se alimentar, surgiram na minha mente turbilhões de pensamentos e censurava-me por não ter ficado mais um tempo ajudando na recuperação daquela tragédia, com tanto carinho que eu tinha recebido, tanta amizade e a única coisa que eu tinha feito era amontoar aquela quantidade de mortos nus, homens, mulheres, crianças. Lembrava daqueles corpos femininos, quem sabe em vida qual não seria o pudor ocultando o mais íntimo de seus corpos, aos olhares masculinos e agora sem pudor, sem poder se defender do meu olhar obrigatório. Eles achavam que eu tinha feito muito, que fora um herói. Eu acho que fiz pouco, que devia ficar mais um pouco ajudando. Acho que foi neste momento que peguei no sono. Madrugador que sempre fui, cedo já estava acordado, depois de um bom banho fui à sala, peguei o jornal do dia anterior, ainda se falava do famoso temporal, não quis ler, passei adiante, não queria ler, só lia os títulos. De repente, ouvi uma voz que me disse: – Aí madrugador! Era o Caco, assim é que chamavam o marido da Regina. Após o café me levaram para o hotel e me pediram para não sumir que precisavam de mim. Mudei de roupa e me dirigi à procura do general, que me recebeu como se já fôssemos velhos amigos. Sabia de tudo a meu respeito, o irmão coronel tinha lhe contado tim-tim por tim-tim. Levou-me até sua casa, apresentou-me sua mulher e filhos, perguntou-me onde morava, respondi que morava em um hotel. Achou que gastaria muito, e ofereceu para que eu morasse no quartel, que lá não gastaria com nada, tinha comida e dormida, claro, aceitei. Depois do almoço, fomos ao hotel, pegamos as minhas coisas e fomos para o quartel, apresentou-me para o oficial de plantão, informando-lhe que eu era hóspede oficial, passei a viver uma vida de rei. Quando um oficial saía, o que entrava já tinha informações a meu respeito. Oficiais e soldados me consideravam como um herói, porque o general contava para todos, como um fato heróico, eu ter amontoado aqueles mortos, segundo seu irmão coronel tinha lhe contado. Na hora do almoço, e às vezes à noite, me faziam perguntas a respeito, eu respondia, de vez em quando exagerando, algumas vezes me faziam perguntas pitorescas referindo-se aos mortos. Oficiais ou ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 392 suboficiais às vezes me convidavam para ir a suas casas almoçar ou jantar. Aos domingos a Regina vinha me buscar para passar o dia com eles, quando os patrões da Regina ganharam a eleição fomos a um clube festejar. Algum tempo depois me mudei para o local que os chefes da Regina tinham organizado para eu começar a trabalhar, inclusive com um quarto para morar. Primeiro comecei sozinho fabricando mostruários em ferro, com aplicações de latão, que eram para o uso da empresa, mas os trabalhos foram aumentando, começaram a chegar pedidos de prateleira, de suporte, e muitas outras coisas, e sozinho não dava conta, então a Regina, em comum acordo, trouxe dois rapazes da turma da escolinha. Diga-se de passagem, o nosso encontro foi de muita alegria. Ficou acertada nossa jornada de trabalho, começávamos às 8 horas e parávamos às 16 horas, de segunda à sexta-feira. Eu nunca aprendi a cozinhar, e também não gostava, melhor dizendo, nunca gostei, embora tivesse todas as comodidades para preparar meus alimentos, preferia comer no restaurante, onde em pouco tempo fiz muitos amigos. Às 7 horas da manhã já estava no restaurante conversando e tomando café, aquele cafezão, às 8 horas todos estávamos trabalhando, parávamos ao meio-dia durante 30 minutos para almoçar e em seguida continuávamos. Eu ganhava por peça e os rapazes eram pagos pelos proprietários, a Regina ganhava uma pequena comissão por peça vendida, a maior parte eram encomendas e sempre em quantidade, diariamente chegavam pedidos. Às 16 horas parávamos, como eu estudava numa escola estadual, fazia um lanche, e às 18 horas já estava na aula até as 22 horas. As aulas eram nas segundas, quartas e sextas-feiras, nos dias que não tinha aula eu ficava trabalhando até as 21 horas, era meu interesse produzir. A Regina me paparicava: – Ortega, eles cobram bem caro as peças. Respondia: – Não faz mal, eles também me pagam bem, consigo mandar dinheiro para minha mãe e ainda me sobra. Tinha muitos amigos, me sentia feliz, sempre me lembrava da carta da mãe que me dizia: Meu filho, sua vida está longe dos seus e de sua terra. Noiva e revolução Na escola havia desde o primário até preparativo para o vestibular e eu estava terminando o secundário e pretendia ingressar no preparatório. Tinha uma professora que dava aula no primário e que estava fazendo o preparatório para ingressar na universidade e fazer literatura. Nós nos dávamos muito bem e começamos um lindo romance, pela primeira vez tinha uma noiva, me deitava pensando nela, sonhava com ela, as horas não passavam para me encontrar com ela e passavam muito rápido quando estava junto dela, seu perfume me acompanhava por ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE / 393 todo lado, e falando comigo mesmo, dizia: Ortega, chega! Chega de andar sozinho por este mundo, está na hora de organizar um lar. E desde então só pensava em me casar. Eu não conseguia sentir perfume em outras mulheres, também todas me pareciam feias, só ela era a mulher mais linda do mundo, quando combinávamos para almoçar ou jantar em um restaurante, me desesperava e ficava nervoso quando ela não chegava no horário combinado, claro que quando chegava eu era o homem mais feliz do planeta. Algumas vezes ficava acertado para irmos ao cinema na sessão das 18 horas. Chegava a sua casa e ela não estava pronta, às vezes terminávamos não indo, pois quando ela ficava pronta o filme já devia estar na metade. Para ela o atraso era normal, eu não reclamava, a paixão tudo relevava, porém com o passar do tempo, os atrasos por parte dela começaram a me cansar, e a chama da paixão começ