Editorial e
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Editorial e
ESPAÇOS REVISTA SEMESTRAL DE TEOLOGIA 2007 – Ano 15/1 ISSN 1677-4833 INSTITUTO SÃO PAULO DE ESTUDOS SUPERIORES São Paulo Espacos_miolo_15_1.p65 1 18.05.07, 10:25 Espacos_miolo_15_1.p65 2 18.05.07, 10:25 EDITORIAL Este número da Espaços acontece dentro do clima da visita ou da passagem de Bento XVI entre nós. Entretanto, esta visita tem tudo para ser um momento marcante onde esperanças e anseios de muitos podem encontrar uma ressonância, acolhida e até luzes de orientação. É claro que num evento como estes, temos mercadoria para todos os gostos, dependendo do que as pessoas estão dispostas a buscar; corre mesmo o risco de virar um mercado sazonal ou mesmo fugaz. A equipe da Espaços, entretanto, aproveita o momento para refletir sobre a oportunidade que se oferece por ocasião da V CELAM para a reflexão e buscas. Para os que lidam com os grandes desafios que os cristãos — e em especial os católicos — enfrentam hoje em dia para manter a fidelidade radical de sua vocação, este é certamente um momento especial. Que podemos esperar? Com o que podemos sonhar e por que lutar? Que temos a dizer? Como podemos ouvir os clamores? Que leituras podemos fazer das circunstâncias em que vivemos e o que elas nos dizem? No fundo, as respostas vêm mais das perguntas que fazemos que dos textos-documentos. Assim, temos ao longo deste número da Espaços, inicialmente uma reflexão de Luiz Augusto de Mattos cuja temática se volta para os campos da bioética e os desdobramentos das conquistas humanas no campo do conhecimento humano e da convivência humana. As mudanças contemporâneas são, para ele, a chave de leitura sem a qual criamos ilusões e distorções em nossas relações com e compreensões da realidade humana. Paulo Suess sintetiza os desafios da realização da missão radical cristã apresentando uma série de passos ou de contrastes que são úteis para a compreensão dos inúmeros desafios que a missionologia, em geral, e a vida eclesial em especial, enfrenta no momento atual. As alterações da percepção do que seja central na Missão e as descobertas e as riquezas das experiências dos cristãos ao longo dos últimos séculos são uma mina de ouro inesgotável para o estabelecimento dos próximos passos da Igreja. O significado simbólico — e mesmo antropológico — da Aparecida é o tema de Maria Cecília Domezzi que aproveita o ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 3 18.05.07, 10:25 3 momento da V CELAM na cidade de Aparecida do Norte para refletir sobre uma dimensão mais profunda presente na religiosidade do povo brasileiro. As Conferências Episcopais são a um tempo um ponto de chegada e um ponto de partida; trazem consigo as experiências da caminhada da Igreja durante um tempo e buscam estabelecer rumos e horizontes para os próximos anos. Este é o assunto de Marlos Aurélio da Silva quando ele elabora, segundo o seu ponto de vista, quais seriam os principais pontos a serem considerados e aprofundados tendo em mente o momento da Igreja: alterações na cultura, MCS, ecologia e os inúmeros outros de nossa convivência. A vida religiosa passa sempre por algum mediador celebrativo que revela a dimensão espiritual mais profunda e nem sempre de fácil compreensão. Antônio Bogaz e Nivaldo Feliciano Silva buscam iluminar com a sua reflexão o momento litúrgico da vida da comunidade eclesial e as tendências de espiritualidade que subjazem às mesmas. Maria Inês Millen, que participou ativamente na preparação do V CELAM, traz, a partir de sua experiência pessoal uma série de temas candentes na atualidade e que correm o risco de serem nobres ausentes das discussões na Conferência de Aparecida. Em resumo, ela chama a atenção para o ser humano em sua vida concreta com seus dramas e esperanças, com seus lamentos e sonhos; muitas vezes nos documentos trabalhamos com excessivas abstrações, adverte ela. Estimado leitor, aqui estão alguns elementos para pensar o momento eclesial — e não só em vista da V CELAM — e buscar caminhos para o nosso peregrinar. Acolha pois, estas nossas reflexões e que sejam a nossa contribuição. Aproveito a oportunidade, ainda, para comunicar que no dia 27 de março deste ano, o ITESP iniciou, formalmente, em sessão solene e concorrida, as atividades do programa de pós-graduação em Teologia, com a concentração em Missionologia. Estiveram presentes o Dom Sérgio Eduardo Castriani, bispo de Tefé e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Missionária e Cooperação Intereclesial da CNBB, o padre Daniel Lagni, diretor das Pontifícias Obras Missionárias, o professor Paulo Suess, membro do Conselho Missionário Nacional e assessor do Conselho Missionário Indigenista, além de diversos representantes de institutos de vocação precipuamente missionária. José Luiz Cazarotto Diretor Executivo 4 Espacos_miolo_15_1.p65 Editorial 4 18.05.07, 10:25 ARTIGOS APARECIDA: ESPERANÇAS E TEMORES! Luiz Augusto de Mattos* * Professor de teologia moral no ITESP. Resumo: Luiz Augusto de Mattos diante da realidade da Igreja na América Latina, sustenta que a compreensão das mudanças estruturais, religiosas e culturais ocorridas nas últimas décadas é fundamental para entender a situação eclesial atual. Em termos internos, retoma as idéias de discipulado e de opção pelos pobres como centrais para a Igreja na busca do Reino e nos passos de sua realização. Alguns temores, em vista da V CELAM são apresentados: o lugar da mídia, a tecnologia da vida e as respostas incompletas dadas pela Igreja aos problemas que advêm destes campos. Novas idéias quanto ao modelo político, às relações culturais e societárias são apresentadas na forma de sugestão. Palavras-chave: Igreja: América Latina; Bioética; Discipulado; Opção pelos Pobres. Abstract: Luiz Augusto de Mattos having in mind the Catholic Church in Latin Amarica, argues that religious, cultural and structural shifts are central in order to understand its the nowadays situation. Having an eye in the internal ecclesiastical realm he sustains that Discipleship and the Option for the Poor are the core subject of this moment if Church had in mind its mission here in Latin America. Even so, some fears are in the horizon: how to deal with the media culture? How answer some critical questions coming up from the modern technology, mainly those related to the sciences of the life? In the social field, some subjects like political models, cultural relationships and social structures are really meaningful in this moment. ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 5 18.05.07, 10:25 5 Key words: Catholic Church: Latin America; Bioetic; Christian Discipleship; Option for the Poor. A Igreja latino-americana e caribenha está às vésperas da V CELAM a ser realizada em Aparecida. Conferência que, à luz da fé e da esperança, deve e pode ter um clima de agraciamento para a caminhada da Igreja e da sociedade. Em acontecimentos como esse sempre surgem questões como: O que se decidirá em termos de futuro para a Igreja? Haverá avanços, inovações ou recuo, nada de inovação? Será uma Conferência que motivará e fundamentará uma prática pastoral para as próximas décadas? Os cristãos(ãs) engajados(as) nas instituições da sociedade civil e nas lutas em favor de uma sociedade sustentável e mais justa se sentirão percebidos e respaldados? Os grandes desafios para a Igreja e para sociedade contemporânea estarão permeando os debates e decisões da Conferência? Levando em consideração o lema da V CELAM, Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida. ‘Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida’ (Jo 14,6), o Documento de Participação e posicionamentos de alguns teólogos latino-americanos, procurarei levar a cabo uma reflexão simples e curta no intuito de contribuir com o debate em torno da Conferência. 1. DESAFIOS DA REALIDADE ATUAL Procurar refletir a respeito da V CELAM exige compreender pelo menos o que ocorre em nossa realidade nas esferas do sócio-econômico, do cultural e do religioso. É partindo desse chão real e provocador que se poderão enxergar as necessidades e os desafios daqui para frente. Viver o discipulado assumindo uma missionariedade eficaz e profética dentro do contexto, cobra sempre uma lucidez crítica a respeito do que ocorre em âmbito societário. 1.1. Análise estrutural Uma análise estrutural do nível sócio-econômico atual revela que a América Latina e o Caribe estão mergulhados numa sociedade dinamizada pelo Capitalismo neoliberal. Isso implica o surgimento da exclusão da grande maioria, a supervalorização do crescimento da economia ou da produção em detrimento da promoção humana dos pobres, o aumento do poder nas mãos dos que detêm a (bio)tecnologia e o arsenal bélico, 6 Espacos_miolo_15_1.p65 L. A. DE MATTOS — Aparecida: esperanças e temores! 6 18.05.07, 10:25 1 Pela primeira vez na história da humanidade, não há o perigo da escassez: a abundância venceu a escassez! Entretanto, também pela primeira vez na história da humanidade, a pobreza é produzida pela riqueza. Há escassez porque a riqueza se alimenta da escassez da maioria. Cf. A. BRIGHENTI, Fazer teologia desde a América Latina. Novos desafios e implicações semânticas e sintáticas. Em PERSPECTIVA TEOLÓGICA, (2006), 38 (2006), p. 215. 2 Cf. A. BRIGHENTI, A missão evangelizadora no contexto atual. Realidade e desafios a partir da América Latina. São Paulo, Paulinas, 2006. 3 Idem, p. 23. um desemprego estrutural e uma má distribuição da renda que provoca sempre mais o fosso entre os ricos/poderosos e os pobres/excluídos, o poder do capital financeiro e especulativo em nossa realidade destrói a soberania da nações e às deixa sujeitadas ao poder global vindo das corporações mundiais; vale dizer, com o neo-colonialismo ou neo-imperialismo os antigos dominadores e exploradores das colônias têm no sistema comercial e financeiro internacional os mecanismos que fazem dos Continentes empobrecidos dependentes de um centro financeiro hegemônico. E mais: em meio a centenas de milhões de empobrecidos surgem na sociedade as ilhas de prosperidade e uma abundância de produção de alimentos, vestuários, aparelhos eletrodomésticos e o avanço de uma produção sofisticada no campo da informática. Nessa sociedade consumista não falta mercadoria para um sofisticado e grande consumo por parte da nova burguesia.1 Também no campo econômico ocorre uma nova revolução: o advento de uma sociedade do conhecimento.2 A atual fase do capitalismo apresenta a propriedade do conhecimento como a verdadeira propriedade. Com isso, mergulhamos na era do acesso, do acesso à informação, do acesso ao conhecimento. O poder está nas mãos já não mais de donos de capital ou dos meios de comunicação mas daqueles que produzem conhecimento e informação. (…) Assim sendo, os novos excluídos são os não-conectados, os que não têm acesso ao conhecimento.3 Essa situação estrutural do nível social e econômico — que acarreta uma assimetria entre os integrados no Mercado e os excluídos — tem contribuído para o aparecimento da violência desproporcional, da biopirataria ou destruição do meio ambiente, da mendicância, das famílias desorientadas, da favelização, do narcotráfico, da orfandade política, da falta de cidadania. Faz sentido afirmar que a raiz da crise social vem do sonho de superar a condição humana através da acumulação ilimitada de riqueza, fato que culmina na destruição do meio ambiente e na exclusão da maioria da população. 1.2. Mutação cultural 4 Cf. C. PALÁCIO, O cristianismo na América Latina. Discernir o presente para preparar o futuro. Em PERSPECTIVA TEOLÓGICA, 34 (2004), pp. 174-177. Outro fator que tem determinado os rumos da sociedade ocidental, América Latina e Caribe no meio, é a mutação cultural.4 O que ocorre é uma verdadeira mudança radical da cosmovisão — isso significa vivenciar uma diferente autocompreensão da existência, uma outra concepção da vida e da história humanas. Hoje se dá a passagem do social ao cultural, com o protagonismo do indivíduo sobre as instituições. O indivíduo se destaca como hipernarcisista, hiperindividualista e ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 7 18.05.07, 10:25 7 hiperconsumista. Como também a sociedade enfrenta a mentalidade do provisório, do descartável, do efêmero e do passageiro. Não existe a preocupação com o eterno, o perene, ou a vivência a partir da perseverança e da persistência. Por isso, pode-se afirmar que a rapidez vertiginosa com a qual em pouco mais de três décadas modificaram-se instituições, hábitos, costumes, valores, etc. na sociedade ocidental são o indício mais claro de que essas transformações atingem não só os fenótipos da visão cultural do mundo mas modificam os seus genótipos e colocam-nos, portanto, diante de uma verdadeira mutação da cultura.5 Lendo o Documento de Participação fica clara a ênfase no ser humano sem-sentido, que está em busca da felicidade. A preocupação é com o existencial daquele que vive uma crise com o vazio de sentido, com a busca de respostas para questões como: o porquê e o para quê da existência, a destinalidade da vida, a importância da pessoa humana. O Documento de Participação põe como ponto de partida o homem-sem-sentido ou mais concretamente em busca da felicidade (N. 1). A felicidade é realmente uma questão relevante para o ser humano atual. Só que é algo muito diferente do que entende por felicidade um abastado e um pobre, por exemplo. Dá a impressão que o ser humano do Documento é um sujeito abastado, cansado e vazio da aventura tecnológica e consumista, em crise de sentido, em crise existencial (n. 2). Para os pobres a crise é de sobrevivência, não de existência. (…) O ser humano do Documento, enquanto não tem rosto concreto de índio, negro, mulher, operário, desempregado, sem-terra e semteto, jovem, criança etc. e, seu desejo de felicidade, enquanto não tem objeto palpável como pão, casa, educação, trabalho, saúde, acolhida etc., permanece mais essência que existência.6 Indício de que a preocupação de fundo é a visão do mundo, a maneira de entender a vida humana, a história, o cosmo. E ainda: a crise no processo civilizacional tem como causa primeira a razão moderna e as ideologias por ela segregadas. O projeto da modernidade com a ciência experimental foi incapaz de oferecer ao ser humano razões para viver e de dar unidade ao existencial humano. 5 Idem, p. 175. 6 Cf. A. BRIGHENTI, O documento de participação da V Conferência. Apresentação e comentário analítico. Em ENCONTROS TEOLÓGICOS, 42 (2005), pp. 128-129. 1.3. Mutação religiosa Por fim, um terceiro aspecto que tem abalado a estruturação da sociedade é a mutação religiosa.7 Contra as previsões dos que apostavam na morte de Deus, emergiu o fenô8 Espacos_miolo_15_1.p65 7 Cf. C. PALÁCIO, O cristianismo na América Latina, op. cit., pp. 177-181. L. A. DE MATTOS — Aparecida: esperanças e temores! 8 18.05.07, 10:25 8 Cf. C. BOFF, Re-partir da realidade ou da experiência de fé? Propostas para a CELAM de Aparecida. Em REB, 67 (2007), p. 20. 9 Cf. C. PALÁCIO, O cristianismo na América Latina, op. cit., pp. 178-181. meno do retorno do sagrado ou a revanche do sagrado. A experiência no mundo moderno de uma in-transcendência da vida acabou prejudicando a realização mais profunda do ser humano. Nenhum ser humano pode abafar completamente a sede de Deus. O campo religioso na atualidade é invadido por ofertas religiosas de toda índole que prometem felicidade fictícia e mágica, prosperidade material e felicidade imediata. Emergindo, concomitantemente, por um lado, uma experiência religiosa light, e por outro, os fundamentalismos. O teólogo Clodovis Boff afirma: A volta às fontes espirituais da Igreja, tanto no campo da teologia quanto no da pastoral, corresponde de fato às demandas mais profundas de nossa realidade epocal. Tais demandas dizem justamente respeito à questão de sentido e em particular à experiência de sagrado. Desse modo, dá-se hoje uma feliz conjunção entre os imperativos da fé e os anseios dos tempos, uns e outros se exigindo reciprocamente. Essa super-posição configura um kairós promissor, que a Igreja não pode, de modo nenhum, deixar de aproveitar. Falamos, com efeito, do deslocamento de acento porque está passando nossa época que tirou do alto da agenda histórica o tema do social em proveito do religioso. Passamos da vigência do político para a vigência do espiritual (com todas as ambigüidades que este termo carrega). Flertando com as manias discursivas do momento, já se disse provocatoriamente que entramos em tempos pós-libertação.Tal deslocamento pode ser singelamente assim expresso: em Medellín/Puebla se dizia: Não só matar a fome de Deus, mas também a fome de pão; hoje o acento já é outro e se diz: Não basta matar a fome de pão; precisa ainda matar a fome de Deus. Essa é, portanto, o que chamamos a realidade de hoje, o grande sinal dos tempos. E esse também há de ser hoje o ponto de partida da pastoral da Igreja do Continente…8 Isto nos ajuda entender a metamorfose do religioso na sociedade contemporânea e procurar compreender o deslocamento do social para o religioso é possível, captando-se a interação entre os três fatores responsáveis por essas mudanças:9 1.3.1. O fator da virada antropocêntrica da modernidade Com a secularização e a experiência de autonomia e de liberdade na experiência humana, vai surgir uma transformação na relação do ser humano com a transcendência. No munESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 9 18.05.07, 10:25 9 do moderno, na medida em que se alarga a dimensão intelectual do ser humano, verifica-se progressiva perda da função da religião. A distinção, antes tão nítida, entre a Causa Prima (Deus) e as causae secundae (criaturas) tende a ser superada. Parece que as causas segundas se tornaram autônomas e predominantes, não permitindo a percepção da presença e atuação da Causa Primeira. A pesquisa científica e a planificação técnica parecem levar a essa independência. A atuação de Deus tão transparente para o homem medieval, ficou cada vez mais opaca, para muitos modernos. E, assim, tanto a natureza quanto a história perderam a transparência manifestadora do agir divino.10 Aparece uma necessária distinção e separação entre as esferas social e religiosa. A sociedade agora tem autonomia para se organizar em diferentes campos (política, economia, cultura, etc.) segundo os critérios estabelecidos por ela. E mais. Com a virada antropocêntrica o ser humano se apresenta como absoluto de toda a realidade, princípio e fundamento do que é bom, do que tem valor, do que pode ser admitido e do que deve ser rejeitado. Em outras palavras, o ser humano não só se entende a partir de si mesmo mas se funda em si mesmo. E, por isso, pode dispor plenamente de si, do mundo e da história. Esta inflexão de todo o dinamismo humano para dentro da história não podia deixar de ter conseqüências na construção do sentido da vida.11 Enfim, esse primeiro fator revela uma das razões da crise pela falta de sentido na vida, e ao mesmo tempo elucida um primeiro aspecto da mudança na esfera religiosa. 10 Cf. A. GARCÍA RUBIO, Unidade na pluralidade. São Paulo, Paulinas, 1989, p. 28. 11 Cf. C. PALÁCIO, O cristianismo na América Latina, op. cit., p. 178. 1.3.2. O retorno do religioso na sociedade atual Ocorre uma efervescência de experiências do sagrado sob formas heterogêneas jamais vista. Ao mesmo tempo pode-se afirmar que essa manifestação tenha relação com a crise de sentido que afeta as pessoas, as famílias e a sociedade. No retorno do sagrado procura-se dar respostas às questões fundamentais da vida, do sentido, da morte e do amor. Mas há que constatar que essa emergência do sagrado não equivale necessariamente a reencontro com Deus. O fenômeno revela além da novidade uma ambigüidade. O sagrado é reconstruído, de maneira muito subjetiva, numa simbiose contraditória de horizontes e perspectivas na qual é possível encontrar ciência, filosofia, gnose, religiões orientais, esoterismo, ocultismo e até as formas religiosas mais arcaicas. É essa diversidade toda que costuma ser agrupada sob a cômoda denominação de novos movimentos religiosos.12 Com retorno heterogêneo se dá o segundo aspecto para compreender a transformação religiosa. 10 Espacos_miolo_15_1.p65 12 Idem, p. 179. L. A. DE MATTOS — Aparecida: esperanças e temores! 10 18.05.07, 10:25 1.3.3. A experiência do pluralismo religioso 13 Idem, p. 180. Não há dúvida de que se vive na atualidade uma interação, uma aproximação e um encontro entre as religiões. Nessa experiência a aparente univocidade da linguagem (divino, transcendência, Deus, realidade última, experiência mística etc.) esconde experiências diferentes de Deus, da relação do sujeito com Deus e com o mundo, da salvação etc. que não são intercambiáveis.13 Na verdade rompeu-se o mito da religião única, verdadeira e revelada! Tudo aponta para a necessidade de se trabalhar partindo do ecumenismo, o diálogo inter-religioso e o diálogo com o não-crente. A partir dos três elementos apresentados (o aspecto sócioeconômico, a mutação cultural e a transformação religiosa) fica a questão: que esperanças se podem alimentar diante da V CELAM? 2. ESPERANÇAS DIANTE DA CONFERÊNCIA DE APARECIDA Partindo de que é possível ter algumas esperanças diante da Conferência de Aparecida, a seguir se procurará apresentar três fundamentais esperanças de acordo com meu ponto de vista. Esperanças que se apresentam dentro das expectativas positivas que podem ser cultivadas em torno da Conferência, sempre considerando que não se pode esquecer que as decisões do episcopado latino-americano e caribenho serão pensadas, produzidas e assumidas, à luz do Espírito e das condições humanas, institucionais e societárias do momento histórico. Essas realidades são decisivas quando se pensa em apontar algumas esperanças. 2.1. Resgatar e recompor a experiência do Seguimento 14 Cf. J. SOBRINO, La centralidad del Reino de Diós anunciado por Jesús. Em REVISTA LATINOAMERICANA DE TEOLOGIA, 68 (2006), pp. 153-158. Sempre que a Igreja ou o cristianismo tem vivido um momento de crise as pessoas mais lúcidas têm buscado aprofundar a experiência de Deus, a mística cristã, o compromisso de Jesus de Nazaré.14 Pelo fato de estarmos vivendo um momento difícil como cristãos(ãs) e como Igreja na sociedade contemporânea, devido aos grandes desafios vindos da revolução cultural onde tudo é relativo, provisório, efêmero; da exclusão da maioria do povo de uma vida digna e justa; da idolatria do Mercado — pelo fato da visão de que fora do Mercado não existe salvação; da globalização neoliberal que fomenta a voracidade consumista, o desinvestimento no próximo, o cultivo do interesse próprio, o ressentimento e o desejo mimético, etc., ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 11 18.05.07, 10:25 11 parece ser fundamental voltar a cultivar o Seguimento. Em definitivo, Jesus é quem poderá refontalizar e revigorar a Igreja e a experiência cristã, vale dizer, no Seguimento de Jesus (sem reducionismo cristológico que leve a fanatismos, lei sem espírito) é que se pode testemunhar o ser cristão. Em verdade, é do Mestre Jesus e só d’Ele que arranca toda a missão da Igreja. De fato, o discipulado precede a missão. É a lógica do próprio Evangelho: Vinde após mim e eu vos farei pescadores de homens (Mc 1,17).Ele constitui Doze para que andassem com Ele e mandá-los a pregar (Mc 3,15). Portanto, a primeira coisa que a Igreja precisa sempre fazer é retornar à escola de Jesus, como eterna discípula do único Mestre. É voltar da fronteira para o centro, para depois retornar à fronteira. Poder-seá, porém, perguntar: não são estas razões auto-evidentes e como que axiomáticas? Desde quando a Igreja deixou de se entender a partir de Cristo? A prioridade da fé, como fundamento de toda a missão da Igreja, inclusive da opção pelos pobres, é algo absolutamente inquestionável. Essa é literalmente (e rigorosamente) uma questão de princípio, que se dá por pressuposta e que não é necessário discutir. Por isso mesmo, simples razões de princípio não justificam (antes pelo contrário) que se coloque na cabeça da agenda da V Conferência a questão da fé ou da espiritualidade… Em resposta há que dizer que a fé não pode, em absoluto, ser simplesmente dada por descontada, nem do ponto de vista humano, pois ela precisa ser reconquistada cada dia contra a natural tendência humana para a incredulidade; e nem do ponto de vista social, pois ela precisa ser continuamente recuperada contra a atual cultura secularizante. Há, pois, aí um risco duplicado de se olvidar a Cristo, de modo que a Igreja precisa continuamente ouvir a advertência do velho Paulo ao fiel Timóteo: Lembra-te de Jesus Cristo (2Tm 2,8). Por isso, importa exercer sempre o ressourcement, isto é, voltar às fontes. Ora, as fontes da Igreja são o mistério de Cristo e, mais profundamente ainda, o mistério trinitário. É daí que a Igreja tira toda a sua força para sua missão na história. A Igreja tanto mais avança rumo ao futuro quanto mais fielmente volta às fontes.15 O Espírito é a força de Deus que nos coloca na trilha do ser verdadeiro seguidor, ou seja, filhos no Filho. Enfim, o Seguimento de Jesus nos coloca as seguintes exigências: seguir Jesus na vida (Paixão pelo Pai e amor aos pobres, pequenos e oprimidos);16 seguir Jesus no Critério do Reino (proposta de vida onde as relações humanas, sociais e ecológicas, se regem pela 12 Espacos_miolo_15_1.p65 15 Cf. C. BOFF, Re-partir da realidade ou da experiência de fé? op. cit., pp. 16-17. 16 Mt 25; Lc 4,20. L. A. DE MATTOS — Aparecida: esperanças e temores! 12 18.05.07, 10:25 17 Mt 5,1-12. 18 Cf. C. PALÁCIO, O cristianismo na América Latina, op. cit., p. 195. 19 Cf. L. BOFF, Mestre Eckhart. A mística de ser e não ter. Petrópolis, Vozes, 1983, p. 15. 20 A mística em si mesma é libertadora. Ela rompe com os esquemas montados pela vontade de poder e de organização, seja da religião, seja da sociedade. O místico, por natureza, é um criador e não um mero reprodutor do capital religioso. Em razão disto, todo místico padece as suspeitas e os controles das instituições porque a legitimidade de sua experiência não provém dos critérios estabelecidos mas pela verdade intrínseca do que experimenta e testemunha. O místico invoca Deus e não as autoridades religiosas como o garante de sua verdade. Cf. L. BOFF, Mestre Eckhart, op. cit., p. 43. justiça, solidariedade, defesa da vida, reconciliação, etc.); seguir Jesus em seu destino (experiência do verdadeiro despojamento, entrega martirial e bem-aventurança dos perseguidos).17 O futuro do cristianismo (e de uma Igreja misericordiosa, viva e profética na América Latina e no Caribe) é impossível de ser visualizado sem levar-se em conta o excesso que deverá constituí-lo: a referência à pessoa de Jesus Cristo como critério permanente do que é cristão e do que é dado aos cristãos viver em cada momento. Esse excesso, essa reserva de ser, introduzem no cristianismo uma tensão criadora que nos liberta da tirania do passado (com a suas tendências a absolutizar certas traduções históricas do cristianismo), torna possível instaurar uma crítica corajosa do cristianismo atual, e permite-nos pensar o futuro não apenas como projeção do presente que aí está (ou com sua prolongação corrigida) mas como verdadeira invenção criadora de algo novo e inédito.18 A experiência cristã na Igreja e nesse mundo globalizado neoliberal e (pós)moderno tem que ser seivada desde a fé e a esperança nas promessas de Deus. A esperança na palavra fiel e na presença real do Deus de Jesus Cristo na história é que dá coragem, força e ousadia para seguir resistindo e lutando diante de tantos desafios que atravessam a humanidade. A esperança nos arranca da incerteza, da desilusão e do comodismo, e nos coloca numa atitude de paciência histórica, de esperar contra toda esperança (Rm 4,18) e de compromisso responsável frente às dificuldades. A Igreja, cortada da Palavra e da esperança, ela se desfigura, perde o vigor. A esperança é alimentada também pela experiência mística. Pela mística se consegue ver na história e em todas as articulações da existência humana este fio condutor divino que tudo une, tudo ordena e tudo eleva.19 Para o místico, o ordinário do cotidiano e da história se constitui, por excelência, lugares do encontro, da comunhão com o Senhor. Por isso, exigem-se espíritos não medíocres, não distraídos, não acovardados e não medrosos. Ademais, por esse caminho místico não se vê o mundo a partir do mundo, mas a partir de Deus, em Deus, com Deus e para Deus. O que contribui para uma experiência não alienadora, totalitária e opressora.20 E ainda: pela mística, aquele fogo interior que alenta as pessoas e as comunidades cristãs, permite que todos possam manter a soberania, a dignidade e a serenidade diante dos equívocos e fracassos; além de contribuir para que todos mantenham uma abertura curiosa à realidade, uma sabedoria para redimensionar os compromissos diante da riqueza das experiências e uma sensibilidade face aos limites do conhecimento e de toda prática. ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 13 18.05.07, 10:25 13 O Seguimento é possível com o testemunho da fé cristã. Sem a fé se perde o espírito contemplativo, a atitude de uma fidelidade rebelde, o encantamento diante da realidade, a humildade e a experiência do êxodo. Pela fé se dá uma visão contemplativa da realidade. Ela é luz que ajuda desvelar presenças e dimensões que sem ela permaneceriam ocultas.21 Também a fé cristã, na verdade muito mais do que crer o que não vemos, é a teimosia de não crer o que vemos, ou seja, que a realidade desfigurada seja a última palavra. Precisamente porque esperamos, porque acreditamos no excesso do real. A esperança cristã, assim entendida, nos faz levar a sério o presente que nem os condicionamentos do passado, nem as incoerências do presente, podem nos remover da certeza de um futuro novo. Porque o presente é mais, pode dar mais de si, do que ousam afirmar as nossas análises. Para o cristão, a história, e, portanto, o futuro, está entregue à responsabilidade do homem, sim, mas não tem nele o seu fundamento. Porque a história de Deus com o homem começa com uma promessa que abre o presente para uma realização e uma plenitude inesperadas.22 Não há dúvida que sonhar com uma Igreja latino-americana e caribenha que seja atualizada e aberta aos sinais dos tempos, solidária com os últimos da história, compromissada com a causa das minorias discriminadas, aberta à pluralidade religiosa da sociedade, atenta à revolução cultural e suas conseqüências… aponta para uma mística do Seguimento a partir das atitudes do Mestre-profeta-caminho-verdade. Atitudes que lembram: encarnação, liberdade de pobre, atitude de novidade, fidelidade no serviço, comunicação e acolhida, esperança na força do Espírito, conflitividade como fruto da liberdade e da pobreza, da profecia e da honradez ao real.23 Qualidades que devem ser trabalhadas com todo o Povo de Deus (os Pastores, fiéis, agentes das pastorais), em vista de uma recristianização das vidas pessoais e da própria instituição. Realidade que deverá favorecer outra presencialização no seio da sociedade. 21 Hb 11,1. 22 Cf. C. PALÁCIO, O cristianismo na América Latina, op. cit., p. 195. 23 Cf. P. CASALDÁLIGA, El vuelo del Quetzal. México, CEE-SID, 1989, pp. 67-68. 2.2. Conquista da opção básica e inegociável: a Opção pelos pobres e excluídos Com a questão do deslocamento da preocupação com o social, o econômico para o cultural, o religioso e a categoria de gênero no âmbito societário e em algumas ciências, fica a tarefa de se trabalhar para manter a opção pelos pobres. Sobretudo diante de uma globalização neoliberal excludente e antropófaga — onde o pobre não é sujeito histórico e político. Concomi14 Espacos_miolo_15_1.p65 L. A. DE MATTOS — Aparecida: esperanças e temores! 14 18.05.07, 10:25 24 Nossos Bispos em Aparecida não deixarão de retomar a opção preferencial pelos pobres. Pois, como existe o perigo permanente do olvido de Cristo, assim também existe o risco do olvido do pobre. Sim, também a causa do pobre tem que ser continuamente ganha contra nossa tendência natural a fechar-lhe as entranhas (1Jo 3,17) e contra a ideologia sociedade moderna, que, ao contrário do que proclama o Magnificat, eleva os poderosos e rebaixa os humildes (cf. Lc 1,52). A V CELAM, porém, reafirmará a referida opção com uma legitimação renovada, a saber: partindo, mais uma vez, da fé em Cristo e no vigor da mesma. É o modelo da decorrência. Os cristãos optam pelos pobres por causa de Cristo. A opção pelos pobres não é fundante, mas fundada. Cf. C. BOFF, Re-partir da realidade ou da experiência de fé? op. cit., pp. 31-32. 25 Cf. J. SOBRINO, La centralidad del Reino de Dios anunciado por Jesús, op. cit., p. 146-153. 26 Cf. Lc 4,18; …o deficit eclesiológico do Documento se expressa sobretudo no eclipse de Reino de Deus, que não aparece uma única vez em todo o Documento. Aliás, aparece uma única vez, mas não em relação com a Igreja e sim com Jesus, e ainda citando o prefácio da solenidade da festa de Cristo Rei (n. 6). A Igreja se liga diretamente a Cristo e prolonga sua missão, como se Jesus tivesse pregado a si mesmo. Uma Igreja sem Reino de Deus é uma Igreja fora e sobre o mundo, centrada em si mesma, proprietária de todos os meios da salvação. A. BRIGHENTI, A missão evangelizadora no contexto atual, op. cit., p. 130. 27 Cf. Documento de Puebla. São Paulo, Paulinas, 1987, n. 1142. tantemente no interior da Igreja vive-se uma experiência de neoconservadorismo e do fundamentalismo, o que pode contribuir para um detrimento da opção pelos pobres. Apesar do otimismo de alguns teólogos, dentro de algumas ponderações,24 é importante dizer que a opção pelos pobres é um eixo teológico e teologal inegociável, indeclinável, e que deve ser reavivado. Apesar de que essa opção pelos pobres já foi interiorizada pela Igreja, não esquecendo, porém, a matização que recebeu nas Conferências de Puebla e de Santo Domingo, há que seguir resistindo, repropondo e reconquistando essa opção que já é uma tradição nas Conferências de Medellín a Santo Domingo. Penso que em Aparecida deve-se, e essa é nossa esperança, aprofundar e retomar corajosamente a opção pelos pobres e excluídos. Sem considerar que já é algo claro, aceitado e praticado. A discussão deveria partir da centralidade do empobrecido no cristianismo.25 Por quê? Fica complicado na atual sociedade pensar uma re-cristianização ou re-evangelização da Igreja sem partir da vida, do (sub)mundo e do sonho do pobre. Se essa opção foi central em Medellín, na Teologia da Libertação e em muitos compromissos dos cristãos, é porque se compreendeu que sem ela não existe cristianismo jesuânico. E ainda: mesmo sabendo que no Documento de Participação a eclesiologia é apresentada sem referência ao Reino, e que não se pode falar do Reino sem falar dos pobres,26 torna-se fundamental voltar a tratar a perspectiva antropológica, eclesiológica e missionária desde o lugar dos pobres. Isso por, pelo menos, dois motivos: 2.2.1. A razão teologal e a profundidade da opção pelos pobres Quando se diz que é teologal quer dizer que o próprio Deus toma partido do pobre defendendo-o, amando-o incondicionalmente.27 Praticar essa opção de Deus não é fácil na atual conjuntura, é ir contra um modelo de vida idealizado e promovido pelos poderes do mundo; é correr o risco da perseguição e do martírio. As adjetivações ou matizações (preferencial, mas não exclusiva, nem excludente) colocadas junto à expressão opção pelos pobres, já revelam o temor, o ortodoxo. Forma de querer suavizar a exigência de radicalidade. A profundidade da opção surge sobretudo quando se procura falar de um Deus que opta pelos pobres, que quer libertação dos excluídos, diante de um contexto de pauperização da vida da maioria. 2.2.2. Sem os pobres não se pode salvar Num mundo globalizado como o atual, onde tudo é pensado a partir da nova burguesia, há que entender que só assuESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 15 18.05.07, 10:25 15 mindo a causa dos pobres se pode chegar a uma civilização solidária e de paz. Se a humanidade sonha com um mundo mais humano e justo, não existe outro caminho: do mundo dos pobres vem a salvação (extra pauperes nulla salus — Jon Sobrino). Pensar que da abundância, do desprezo e abandono dos pobres vem a salvação é puro engano. Já disse D. Pedro Casaldáliga: Fora dos pobres não há salvação, fora dos pobres não existe Igreja, fora dos pobres não existe Evangelho. Os não-pobres podem também contribuir na re-criação da Igreja ou sociedade, desde que estejam em sintonia com o sofrimento, as lutas e os sonhos dos pobres e excluídos. Na Igreja e na sociedade sempre tem existido pessoas engajadas e proféticas nesse compromisso com os últimos da história. Lógico, a Igreja não existe só para os pobres, senão que através deles se pode encontrar um princípio interno de inspiração e de configuração cristã. Ou seja, é entender que o Espírito de Jesus está presente entre os pobres, e que a partir deles se pode re-evangelizar a Igreja na sua totalidade — para ser con-descendência, a trans-cendência se fez trans-descendência,28 como também a partir dos pobres se pode trabalhar por uma nova civilização. Enfim, a esperança que se alimenta é que na V Conferência se possa levar a sério uma reflexão, um diálogo, um compromisso onde os pobres continuam sendo lembrados como critério de análise, de sentido para a missão, de opção eclesial e de realidade concreta para uma re-estruturação da sociedade. Desde o reverso da história se pode re-verter essa história latino-americana e caribenha de tanto sofrimento. A tradição eclesial que se reivindica da Conferência de Medellín e que tem na teologia latino-americana sua inteligência reflexa da fé situa-se a partir do reverso da história. Não com aqueles e na perspectiva dos que fazem a história de exclusão de ontem e de hoje, mas sim daqueles que a padecem. Uma Igreja dos pobres, para que seja a Igreja de todos, como dizia João XXIII, implica uma mudança radical no modo como o Ocidente tem tratado o outro, o diferente, em sua lógica ora de assimilação, ora de rejeição. Uma missão universal implica romper com o eurocentrismo, os etnocentrismos e os regionalismos, para poder testemunhar um Evangelho Boa-Nova de salvação para todos. Urge superar qualquer resquício e muito mais sonhos quiméricos de uma mentalidade de Cristandade e entrar na idade da razão comunicativa, dialógica, respeitosa da alteridade, vista não como imperativo ético, mas como dimensão sabática da existência, horizonte de novas possibilidades. Não reencantaremos os céticos e críti16 Espacos_miolo_15_1.p65 28 Cf. J. SOBRINO, La centralidad del Reino de Diós anunciado por Jesús, op. cit., p. 150. L. A. DE MATTOS — Aparecida: esperanças e temores! 16 18.05.07, 10:25 29 Cf. A. BRIGHENTI, A missão evangelizadora no contexto atual, op. cit., p. 34. 30 Cf. J. M. CASTILHO, A utopia seqüestrada. Em CONCILIUM, 308 (2004/5), pp. 33-41. 31 …se não criticamos o mundo que temos, nem fazemos propostas sobre o mundo que deveria existir, isto é, se o que rege nossas vidas e nossos projetos não é a razão utópica, esse estado de espírito, essa forma de pensar e de sentir, viria colocar em evidência que nos sentimos bem como estamos, ou seja, estamos satisfeitos com a atual ordem que nos impuseram e que aceitamos de bom gosto. Por outro lado e como é lógico, de gente satisfeita com o que tem não se pode esperar nenhuma mudança. Os satisfeitos defenderão com unhas e dentes que outro mundo não é possível ou, em outras palavras, eles defenderão que o melhor mundo possível é o que estamos desfrutando agora mesmo. Cf. J. M. CASTILHO, A utopia seqüestrada, op. cit., p. 33. 32 Idem, p. 37. 33 Cf. J. MO SUNG, Economia e espiritualidade: por um outro mundo mais justo e sustentável. Em CONCILIUM, 308 (2004/5), p. 117. cos do cristianismo, muito menos a Igreja dos pobres, com a volta às velhas seguranças do passado, muito menos um entrincheiramento identitário ou uma redogmatização da religião.29 2.3. Acreditar e construir a utopia: Um Outro Mundo é Possível! Uma outra esperança parte do potencial de sonhos e de ética que a Igreja poderá manifestar diante da utopia de Um outro mundo é possível. Utopia apresentada no Fórum Social Mundial em janeiro de 2002, na cidade de Porto Alegre. Entendendo por utopia, desde a consciência utópica,30 ou seja, por um lado, a crítica em relação à globalização neoliberal excludente, ao Mercado totalitário e à cultura narcisista, privatista, realidades que causam a morte de milhares de seres humanos todos os dias, e por outro lado, a proposta de sonhar construindo o que deveria existir.31 Ou ainda: viver a utopia significa ter um horizonte de sentido que contribui para uma crítica do mundo atual e, ao mesmo tempo, possibilita trabalhar projetos sociais alternativos. Ademais, frente a um contexto societário como o latino-americano e caribenho, viver na sociedade sem utopia é presenciar uma sociedade sem esperança. É testemunhar uma sociedade na qual alguns, os privilegiados, concentram suas aspirações em não perder o que têm, enquanto que a grande maioria, os marginalizados e excluídos, não passam do desesperado desejo de sobrevivência, expressão mínima do instinto de conservação.32 Numa dinâmica de sociedade para a qual não existe alternativa e onde se corre o risco de absolutizar a ordem sistêmica imperante, é de suma importância uma utopia humanizadora da vida e de sustentabilidade para a própria sociedade. Por isso, a princípio, sempre podemos e devemos afirmar que um outro mundo e um outro sistema econômico são possíveis. Podemos afirmar, pois isso é um fato histórico e social na medida em que todas as formas de sociedade e economias, como todas as instituições humanas, são situadas historicamente e têm início e fim. Além de ser uma constatação factual, devemos sempre anunciar que um outro mundo é possível, pois esquecer isso significa absolutizar o sistema vigente. E sistemas sociais que são tratados ou se afirmam como absolutos — dizendo que não há alternativas a eles — convertem-se em ídolos e exigem sempre sacrifícios de vidas humanas.33 Também se deve ser realista quando se trata de alimentar uma utopia. Através do realismo histórico é possível perceber as limitações humanas, sociais, ideológicas e da própria natureza, para, assim, viabilizar um projeto social factível. ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 17 18.05.07, 10:25 17 Quem luta por realizar desejos impossíveis comete erros que não lhe permitem construir um projeto alternativo possível. Esse reconhecimento dos limites da história e da condição humana não é algo fácil para nós, pois implica em desistirmos dos nossos sonhos mais belos de um mundo liberto de toda injustiça e opressão, um mundo sem vítimas. A existência de vítimas é o ponto de partida de todo profetismo e o critério para criticarmos todas as normas e sistemas sociais, mas — como diz E. Dussel — ‘a vítima é inevitável. Sua inevitabilidade deriva do fato de que é impossível empiricamente que uma norma, ato, instituição ou sistema de eticidade sejam perfeitos em sua vigência e conseqüência. É empiricamente impossível um sistema perfeito’. Essa impossibilidade se deriva do fato de que não podemos conhecer perfeita e plenamente todos os fatores que compõem a natureza e a vida social, nem possuirmos velocidade infinita para gerir de modo perfeito esse sistema. Porque a vítima é inevitável, a ação profética é e sempre será necessária.34 Penso que a Igreja, dentro de sua especificidade ética, deve seguir firme numa crítica à absolutização do mercado capitalista, à idolatria da sociedade consumista e ao mito do progresso econômico que exigem e justificam a morte de milhões de vidas humanas e a destruição da natureza; além da necessidade de combater o desejo mimético de imitar o modelo de vida da elite e dos setores médios dos países pobres, além de combater a ilusão de que esse desejo leva à felicidade, mostrar que o mesmo só é possível à custa de muita exploração e sacrifícios humanos. Terminando, é urgente a Igreja na V Conferência da Aparecida se posicionar a favor de uma sociedade econômica, cultural, social, ecológica e economicamente sustentável. Na conquista dessa sociedade factível, mais humana e justa com as pessoas e a natureza, é possível seguir sonhando com promoção e garantia de vida plena (Jo 10,10) e um futuro possível e melhor. 34 Cf. J. MO SUNG, Economia e espiritualidade, op. cit., p. 120. 3. OS TEMORES DIANTE DA V CONFERÊNCIA Por temores quer se falar das preocupações e dos medos em relação a omissões, silêncios, não compromissos, negligências em relação a alguns temas importantes e sérios quando se fala da realidade latino-americana e caribenha. Temas que se apresentam, cada vez mais, relevantes e preocupantes — sobretudo se quisermos pensar uma Igreja com plausibilidade, credibilidade e autoridade ética em nossa realidade; enfim, uma Igreja preparada para evangelizar o século XXI. 18 Espacos_miolo_15_1.p65 L. A. DE MATTOS — Aparecida: esperanças e temores! 18 18.05.07, 10:26 Com essa intenção, a seguir se abordarão (somente) três temas que são importantes. 3.1. Evangelização e mídia Hoje existe uma preocupação nos meios eclesiais sobre como utilizar as tecnologias de informação para evangelizar, como ter uma pastoral mediática de acordo com as exigências atuais. Sendo que a questão de fundo é como evangelizar o Povo de Deus, e como contribuir para que a mensagem cristã seja conhecida pela sociedade secularizada e pós-moderna. O problema é como relacionar evangelização e mídia. Ou não continuar reproduzindo determinada presença que queira passar simplesmente conteúdos religiosos ou ser o pastor um showman, e, em alguns casos, passando uma catequese desatualizada em relação aos desafios atuais. Há que se observar, em primeiro lugar, que a utilização ou recusa da mídia no trabalho evangelizador estão ligadas ao que se entende por evangelização. Confundir evangelização com pregação de cunho fundamentalista leva aos impasses apontados por Cox ao falar dos rendneck preachers americanos: o caráter soft do médium dissolve o conteúdo hard da mensagem. Olhando o canal católico, Rede Vida, o tom histriônico-tremendista do Padre Bruno Gambarini; o tom contido e professoral do Padre Carneiro; o ar compungido, piedoso, combinado à jovialidade dançante do Padre Marcelo Rossi, podem ser considerados evangelizadores? Quando aparecem fora da rede católica já são outro: há menos fusão entre o padre e o showman do que absorção do primeiro pelo segundo. Desaparece a intencionalidade, o significado profundo, fundante. O padre já está num mundo que gira em si e por si, que se alimenta e se retroalimenta num circuito de imagens auto-referentes. Um mundo que o redefine enquanto padre. Quando a apresentadora Xuxa diz que o Padre Marcelo Rossi é lindo, maravilhoso, define um modo de ser padre conformado à sua imagem e semelhança (dela, Xuxa). Sob esse aspecto quem faz televisão religiosa é a Rede Gospel, exatamente às custas da dissolução do conteúdo. A bispa Hernandez em bate-papo informal, carregado de fofocas, conselhos de beleza, saúde, conforto e bem estar associa Jesus e o emagrecedor X que produzem milagres. É preciso clareza quanto à compreensão do que se entende por evangelização. A referência é, sem dúvida, o Sínodo de 1975, do qual brotou a Evangelii Nuntiandi. Nela, Paulo VI insiste na idéia de serviço à ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 19 18.05.07, 10:26 19 comunidade cristã e a toda a humanidade: levar a boa nova transformando o homem por dentro nos planos individuais e social (mudar as consciências, pessoal e coletiva, propondo, pelo testemunho e pela palavra, modos novos de ser e agir à luz de Jesus Cristo).35 Mas o problema maior é a incompatibilidade entre a mentalidade dos meios de comunicação e o evangelho. Não se pode, em nome de evangelização ou de procurar formar e informar os cristãos, cair no fascínio da mídia. O mundo mediático é atravessado por ideologias, interesses econômicos, perspectiva sócio-cultural que, em sentido negativo, pode contaminar a evangelização. Por isso, é importante discernir como a evangelização é afetada.36 Em primeiro lugar, o mundo da mídia não é neutro e, em segundo lugar, sempre funciona pela lógica do poder e da economia. A questão do poder é evidente. Poder econômico em primeiro lugar, sem o qual nenhuma empresa de comunicação pode subsistir. Uma rede de TV só se sustenta e pode competir quando tem por trás um grupo econômico que a sustente. E a lógica do poder é aumentar o poder. Os MCS visam o lucro. O volume de dinheiro que circula para comprar espaços e fazer publicidade é o aspecto mais visível dessa lógica do lucro. Diante dela não há barreiras éticas. Tudo pode ser sacrificado aos interesses em jogo. Ora, essa mentalidade (que é um modo de ser e de proceder) está nas antípodas do evangelho. É possível anunciar o evangelho com métodos radicalmente antievangélicos? Essa contradição não pode ser eludida quando se trata de utilizar os MCS para evangelizar. Mesmo quando a Igreja é proprietária dos meios. E, mais ainda, quando ela embarca na mídia comercial. Nada escapa à lógica do lucro e do poder; tudo é contaminado por ela — mesmo as boas intenções e os temas mais puros e religiosos — ao ser assimilado e resignificado dentro do contexto dessa lógica voraz.37 E ainda: a evangelização pode ser desvirtuada pelo modo como o mundo mediático se apodera da realidade. A TV, por exemplo, decodifica o real e busca reconstruí-lo depois, selecionando o que lhe interessa em função de seus interesses. Importante é que o fato noticiado dê ibope. Daí uma preocupação quando se trata da mensagem do evangelho. O conteúdo do Evangelho é decodificado para ser transmitido a partir de outros códigos, por exemplo, o espetáculo. Diante da mutação cultural, como exemplo, onde a matriz dos valores não é mais a do cristianismo, a qual determina a mídia em nível de antropologia, ética, etc., nasce uma questão 20 Espacos_miolo_15_1.p65 35 Cf. L. R. BENEDETTI, Evangelização e mídia: aspectos sociológicos. Em PERSPECTIVA TEOLÓGICA, 34 (2002), pp. 319-334. 36 Cf. C. PALÁCIO, Do templo tradicional ao púlpito eletrônico. Considerações teológicas sobre evangelização e mídia. Em PERSPECTIVA TEOLÓGICA, 34 (2002), pp. 301-318. 37 Cf. C. PALÁCIO, Do templo tradicional ao púlpito eletrônico, op. cit., 304. L. A. DE MATTOS — Aparecida: esperanças e temores! 20 18.05.07, 10:26 38 Idem, p. 312. 39 Idem, p. 313. séria para a Igreja: ela (Igreja) consegue evangelizar realmente?, vale dizer, a partir dos meios de comunicação a Igreja conseguirá evangelizar a cultura moderna? Ou o que significa evangelizar um mundo, cada vez mais secularizado, plural e póscristão? Mas por trás dessas questões existe uma outra que preocupa primeiro: o que se entende por evangelização? Se o sentido de evangelizar não é usar um meio (TV; rádio, etc) para apresentar conteúdo de tipo religioso (cerimônia litúrgica; acontecimento eclesial), então como anunciar a Boa-nova? Tudo indica que a Igreja deve se orientar pelo aspecto da vida, do humano… Com lucidez e sabedoria afirma o teólogo Carlos Palácio: O anúncio e a missão da Igreja, hoje, para serem cristãos, i.é. para serem anúncio de Jesus e estar a serviço da sua missão, carecem de uma reconstrução do religioso cristão que não é o religioso natural nem uma religiosidade difusa mas é o humano re-ligado à sua origem em Deus. E por isso passa pelo humano, como a verdadeira fé cristã passa pela carne e pela humanidade de Jesus. Nesse sentido a evangelização da sociedade moderna começa quando a Igreja se faz samaritana do mundo atual, ajudando-o a recuperar a humanidade perdida e trabalhando lado a lado com ele na reconstrução do sentido.38 Ou seja, a Igreja há que ser sábia para apresentar uma outra visão da antropologia e outros valores fundamentais para a vida – nessa interação da evangelização e mídia. E diante de uma compreensão irreal e virtual da vida e da realidade é importante resgatar o princípio da encarnação. Na trilha da prática de Jesus a Boa-nova é conhecida na aproximação, identificação e compromisso com a vida do outro. Por isso, o conteúdo do evangelho não ser virtual porque não pode ser descontextualizado. A Palavra se fez carne. Por isso a carne — essa frágil realidade humana — não pode faltar à palavra do anúncio. O meio não pode ser a mensagem. Do contrário, o evangelho se converteria em puro espetáculo.39 Finalizando, a Igreja corre o risco de continuar falhando na evangelização se não refletir e assumir com seriedade o desafio de saber articular bem o evangelho e as tecnologias de informação. Evangelização que pressupõe também uma formação de qualidade para compreender as grandes mudanças na sociedade. Caso contrário, a evangelização consistente e responsável continuará distante da práxis eclesial. 3.2. Biotecnologia e Bioética Outro tema que não pode ser negligenciado vem do mundo das ciências biológicas, da revolução no campo da genética, ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 21 18.05.07, 10:26 21 do poder da biotecnologia na agricultura, na reprodução humana e dos animais. Realidade que é fato com a produção dos transgênicos, com o Projeto Genoma, com a Reprodução humana assistida (FIV), com as pesquisas com células-tronco, com a clonagem, com novos métodos contraceptivos, com a transgenitalização, com o xenotransplante, etc. Toda essa realidade se apresenta fascinante e preocupante.40 Alguns cientistas tem manifestado preocupações ao pensar sobre para onde vamos? …a nova ciência levanta as mais complicadas questões da história da ciência. Ao reprogramar o código genético, não estaríamos arriscando uma fatal interrupção em milhões e milhões de anos de evolução? A criação artificial não poderia significar o fim da vida natural? A criação artificial não poderia significar o fim da vida natural? Receberemos os alienígenas num mundo povoado por clones, quimeras ou criaturas transgênicas? A criação, a produção em massa e a distribuição no atacado de formas de vida geneticamente engenheiradas causarão danos irreversíveis à biosfera, fazendo com que a poluição genética seja muito pior para a Terra do que a poluição nuclear ou petroquímica? Quais serão as conseqüências para a sociedade e a economia global o fato de patentes sobre seres concentrarem-se como propriedade intelectual exclusivamente nas mãos de algumas poucas corporações multinacionais? Como a patente sobre formas de vida afetarão nossas mais profundas convicções sobre a natureza sagrada e o valor intrínseco da vida? Qual será o impacto emocional e intelectual ao crescermos num mundo onde a vida é tratada como invenção e bem comercial? O que significará ser humano num mundo onde os bebês serão desenhados e personalizados geneticamente no útero e onde as pessoas serão identificadas, estereotipadas e discriminadas com base no seu tipo genético? Quais são os riscos de se tentar desenhar um ser humano mais perfeito? (…) A chegada da tecnologia da engenharia genética ao mercado precisa ser monitorada nos próximos anos, se quisermos minimizar os riscos para as gerações futuras e para todas as criaturas que nos acompanham na jornada da vida.41 Além das grandes conquistas em prol da vida com mais saúde integral, não se pode descartar a força do biopoder,42 a falta de uma legislação para nortear determinadas pesquisas, o desafio do biodireito, a cumplicidade do Poder legislativo em relação a algumas empresas multinacionais, etc. 22 Espacos_miolo_15_1.p65 40 Cf. CNBB, Evangelização e missão profética da Igreja. Novos desafios. São Paulo, Paulinas, 2005, n. 80, capítulo 4. 41 Cf. J. RIFKIN, O século da biotecnologia. São Paulo, Makron Books, 1999, p. XVII. 42 Uma palavra composta pelas iniciais das principais tecnologias expressa muito bem o que está ocorrendo: BANG (bits, átomos, neurônios, genes). Isto significa: as tecnologias da informação controlam os bits; a nanotecnologia (que opera na escala de milionésimos de milímetros) controla e manipula os átomos; as neurociências cognitivas começam a controlar e a manipular os neurônios, e com isto a própria mente; as biotecnologias, interferindo nos genes dos seres vivos, passam a controlar e a manipular a própria vida. Ou seja, agora pode-se entender melhor o que significa biopoder e por que a bioética se tornou tão importante neste contexto. Cf. A. MOSER – A. M. M. SOARES, Bioética. Do consenso ao bom senso. Petrópolis, Vozes, 2006, pp. 57-58. L. A. DE MATTOS — Aparecida: esperanças e temores! 22 18.05.07, 10:26 43 Cf. J. COMBLIN, Quais os desafios dos temas teológicos atuais? São Paulo, Paulinas, 2005, pp. 74-75. 44 Para sustentar seu discurso, a argumentação católica dificilmente encontra apoio na Bíblia, na Igreja primitiva ou nos Santos Padres. Freqüentemente recorre-se ao argumento da natureza. A ética cristã consistiria em respeitar a natureza, a ordem natural da vida humana – sobretudo no início e no fim, no nascimento e na morte. A sabedoria seria não intervir, mas deixar que a natureza faça seu percurso, ou seja, que as coisas se realizem sem intervenção por meio de técnicas inventadas pela mente humana. O argumento da natureza não tem base bíblica nem patrística. O conceito de natureza vem dos gregos. Porém, o que os filósofos gregos entendiam por natureza era o que eles podiam observar imediatamente, o que lhes era visível de modo imediato. Os antigos erraram em assuntos muito importantes. Ignoraram a ovulação e a fecundação, ou seja, toda a participação da mulher na origem do ser humano. Achavam que o papel da mulher era somente ser o recipiente que acolhia e fazia amadurecer a semente do ser humano depositada pelo homem. O corpo da mulher era compreendido como passivo. (…) Hoje surge a pergunta: o que é a natureza para o ser humano? O ser humano não é justamente chamado a se construir?. Idem, pp. 76-77. Quando se procura entender o papel da Igreja Católica diante da revolução biotecnológica ou dos temas polêmicos de boética, aí fica complicado. A Igreja tem dificuldade em dialogar com a sociedade (pós)moderna e os cientistas de ponta, em abrir-se, à luz de uma nova sensibilidade, à vida do povo e da nova realidade dos pobres com suas necessidades. A bioética e, na atualidade, um terreno de conflito relevante entre os que invocam argumentos científicos e a Igreja Católica… O primeiro grande conflito foi estabelecido com o surgimento dos contraceptivos — essencialmente, a pílula contraceptiva que invadiu o mundo ocidental desde os anos 60. O problema surgiu porque essa pílula facilitava enormemente a contracepção. Era um método de fácil aplicação, barato, ao alcance das grandes massas. Surgiu no primeiro mundo, a pílula alcançou rapidamente também os outros continentes. Na América Latina, numa geração, ela reduziu a natalidade por mais da metade. Contra o pensamento da maioria da comissão nomeada por Paulo VI, este simplesmente condenou todos os métodos não naturais de contracepção. Neles estava naturalmente a pílula, que havia provocado a controvérsia. Essa condenação teve imensa repercussão. No primeiro mundo, a maioria das mulheres católicas rompeu com sua Igreja e, desde então, critica abertamente tudo o que vem do Vaticano em matéria de bioética. Na América Latina, as massas populares não tomaram conhecimento da proibição do Papa e muitos sacerdotes tiveram a sabedoria de não falar do assunto, de tal modo que não houve conflito, salvo em alguns setores das classes letradas. Depois vieram as controvérsias sobre o aborto, que se transformaram em problema político em quase todos os países de grande população católica — isso por causa das novas tecnologias que podiam levar ao aborto sem perigo para a gestante. Apareceram as disputas sobre a eutanásia, sobretudo porque houve controvérsias a respeito do fim da vida humana: quando se pode afirmar que uma vida humana terminou? Seria simplesmente quando o coração deixa de bater? E de novo houve um problema político e muitas controvérsias públicas.43 As dificuldades da Igreja surgem pelo fato da mesma não repensar seus critérios ético-teológicos, seu paradigma naturalista,44 suas visões de verdade perenes, imutáveis e divinas, seu método dedutivo, sua visão elitista e eurocêntrica. Analisando o Documento de Participação o enfoque metodológico utilizado é o Dedutivo. Postura metodológica que incide sobre os ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 23 18.05.07, 10:26 23 conteúdos e, por isso, a perspectiva de como lidar com temas com os da bioética. Afirma o teólogo Brighenti: O método dedutivo que perpassa todo o documento veicula uma visão essencialista da verdade, sobre a qual não a história. Trata-se de uma verdade que não passa pela veracidade, ou seja, por sua comprovação histórica. Como a Igreja já a possui, a revelação é mais um depósito a ser guardado e comunicado, do que um mistério a ser continuamente perscrutado. É preciso não perder de vista que não é a Igreja que possui a Verdade, é a Verdade que a possui e a ultrapassa infinitamente. Do contrário, a missão consistirá basicamente e anunciar um Kerigma já compreendido, em que quase que ajuda mais o catecismo do que a Bíblia, pois esta, fora da instância do magistério, está à mercê das subjetividades e suas múltiplas verdades. Nesta perspectiva missionária, há um movimento ad extra, mas em vista de um ad intra, um movimento centrípeto, próprio da mentalidade de cristandade, em lugar de centrífugo, que supera o eclesiocentrismo.45 Tudo dificulta para se trabalhar uma bioética e uma postura em relação ao avanço da biotecnologia a partir dos desafios latino-americano e caribenho. Partir da vida e da história do nosso povo, implica necessariamente, retrabalhar o objeto formal da bioética e descobrir temas novos e desafiantes no campo material da bioética.46 O pesquisador V. Garrafa afirma: a partir dos anos 1990, novas perspectivas teóricas críticas emergiram no contexto da bioética. Esses questionamentos trouxeram para a pauta dos debates mundiais aspectos até então considerados apenas tangencialmente pelas abordagens tradicionais. Problemas persistentes constatados no cotidiano dos países periféricos — como a exclusão social e a concentração de poder; a globalização econômica internacional e a evasão dramática de divisas das nações mais pobres para os países centrais; a inacessibilidade dos grupos economicamente vulneráveis às conquistas do desenvolvimento científico e tecnológico; e a desigualdade de acesso das pessoas pobres aos bens de consumo básicos indispensáveis à sobrevivência humana com dignidade, entre outros aspectos — passaram a ser parte obrigatória da pauta dos pesquisadores que desejam trabalhar com uma bioética transformadora, comprometida e identificada com a realidade dos chamados países em desenvolvimento.47 Não se pode aceitar que milhões de vidas vulneráveis e excluídas sejam vitimizadas por um ordem social injusta cons24 Espacos_miolo_15_1.p65 45 Cf. A. BRIGHENTI, O documento de participação…, op. cit., 111. 46 Cf. GARRAFA, V. et alii, Bases conceituais da bioética: Enfoque latino-americano. São Paulo, Gaia, 2006; DINIZ, D. (Ed.), Admirável nova genética: bioética e sociedade. Brasília, UnB, 2005. 47 Cf. V. GARRAFA, Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção. In GARRAFA, V. – PESSINI, L. (Eds.), Bioética: poder e injustiça. São Paulo, Loyola, 2003, p. 35. L. A. DE MATTOS — Aparecida: esperanças e temores! 24 18.05.07, 10:26 48 A tecnologia impulsionada pela crença amplificou exponencialmente a assimetria de poder desde o pós-guerra, tornando as relações totalmente desiguais. Saber e poder, associados, instituíram a Santíssima Trindade da nova crença imposta pela minoria dominante. O saber, a ciência, é o Pai. O poder, a tecnologia, é o Filho, corporificado nos artefatos tecnológicos que transformam, maravilham e atemorizam o cotidiano. E o Espírito Santo é a mão invisível que entre eles toca, com as garras do sistema econômico, os corpos e os espíritos. A eficácia santifica a crença nessa ideologia que conduz os rumos do saber e alimenta o poder da minoria dos habitantes do planeta. A associação entre a eficácia e o bem, e entre a ciência e a verdade, sustenta a exploração do sistema econômico e a opressão política. Idem, p. 43. 49 Cf. L. BOFF, Duas utopias urgentes para o século XXI, In SUSIN, L. C. (Ed.), Teologia para outro mundo possível. São Paulo, Paulinas, 2006, pp. 239242. 50 Idem, p. 241. truída pela voracidade vampiresca do sistema.48 E mais. O que está ameaçada não é só a vida humana, mas também todo o Planeta. Por isso se fala da utopia da salvaguarda da Casa Comum.49 É tão séria e importante a temática da defesa do Planeta que se afirma: ou nos salvamos todos ou perecemos todos. Tal urgência funda uma nova centralidade. A questão não é mais saber que futuro possui o cristianismo ou a teologia da libertação. A questão é saber que futuro possuem a Terra e a humanidade e em que medida a tecnociência, a Igreja e a teologia da libertação ajudam a assegurar um futuro de esperança para todos.50 Falar de bioética é também promover e defender um compromisso em salvar a Terra de uma destruição já anunciada, e quase sem retorno. Uma evangelização que não combate o aquecimento global, a poluição em todos os níveis, a salvação de todos os espécies de seres vivos, a sustentabilidade ecológica, não será uma verdadeira e séria evangelização. Finalmente, não se pode descartar como tema importante e desafiador na evangelização da Igreja na América e no Caribe, a bioética e a revolução biotecnológica. Desse mundo surgem, cada vez mais, questões que provocam conflitos entre as pessoas, na instituição eclesial e na sociedade. Mas ainda, quando ONGs, movimentos sociais e outros, reivindicam o direito da liberdade, da autonomia e da consciência para decidirem frente a questões polêmicas, nasce a responsabilidade de se dialogar e vivenciar uma atitude nova e atualizada. Como também a emancipação da mulher e das minorias exige um postura diferente em relação a determinados temas no nível da reprodução humana, da convivência. Espero que em Aparecida se levem a sério a relevância, o poder e os desafios que emergem todos os dias desse mundo da genética, da bioética e da biotecnologia. Do contrário, a Igreja seguirá perdendo sua plausibilidade e eticidade nessa sociedade moderna. 3.3. Novas emancipações e seus desafios Um outro temor passa pela enorme quantidade de experiências que nascem do mundo da afetividade, da família ou do matrimônio, de gênero, etc., vale dizer, como a Igreja vai se pronunciar a respeito de questões ligadas a esse mundo do novo, das novas reivindicações, dos novos sujeitos históricos, das novas organizações que trabalham com a categoria de gênero e com o aspecto pluri-étnico e pluricultural. Não dá para ignorar ou desconsiderar esse novo momento histórico! Entender esse novo momento sócio-histórico é aprofundar a dinâmica democrática que se instaura na sociedade. A socieESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 25 18.05.07, 10:26 25 dade é construção na atualidade a partir de um processo democrático, o qual tem as seguintes características:51 3.3.1. A luta pela democracia deve ser uma luta pela demodiversidade Não é possível trabalhar apenas com a forma de democracia liberal representativa. Há que incluir da democracia participativa, intercultural ou multicultural. Todos os povos e todas as culturas deverão ter o espaço de co-participação garantido na construção da democracia.52 51 Basearemos, com liberdade, no estudo do sociólogo Boaventura de Sousa Santos. O autor apresenta quinze teses para o aprofundamento da democracia. Aproveitaremos três teses. Cf. B. SANTOS SOUSA, O fórum social mundial: manual de uso. São Paulo, Cortez, 2005, pp. 103-112. 52 Idem. p. 106. 53 Ibidem. 54 Idem, p. 112. 3.3.2. Há que desenvolver critérios transculturais Estes devem permitir identificar diferentes formas de democracia e as permitam hierarquizar segundo a qualidade de vida coletiva e individuais que proporcionam. Importa favorecer um processo democrático considerando, não relações de poder, mas relações de autoridade partilhada. A autoridade partilhada assenta na dupla lógica de reciprocidade entre o princípio da igualdade e o princípio do reconhecimento da diferença: temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.53 Pensar na conquista de um processo de democratização é fundamental para os sempre discriminados, violentados e marginalizados na atual sociedade. 3.3.3. A imaginação democrática Os processos de democratização têm de incluir a democratização das subjetividades;54 na atual sociedade deve-se entender que a democracia não tem um sujeito histórico. Na luta pela democracia de alta intensidade são sujeitos todos os que se recusam a ser objetos, ou seja, a serem reduzidos à condição de súditos. Implementar a democratização, nessa perspectiva apresentada implica levar a sério as reivindicações, os sonhos, as lutas dos que querem a cidadania (direitos humanos, afetivos, reprodutivos, familiares, sociais, religiosos, etc.) promovida e garantida. E pensando numa verdadeira democracia devem-se esquecer conceitos ultrapassados, que já não dão conta das complexidades envolvendo etnia, gênero, raça e classes da contemporaneidade. O conceito utilizado por alguns autores é o da Multidão.55 Parte-se da idéia de que uma ação política orientada para a transformação e a libertação só pode ser conduzida na atua26 Espacos_miolo_15_1.p65 55 Cf. M. HARDT – A. NEGRI, Império. Guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro–São Paulo, Record, 2005. L. A. DE MATTOS — Aparecida: esperanças e temores! 26 18.05.07, 10:26 56 Como os diferentes indivíduos ou grupos que constituem a turba são incoerentes e não identificam elementos compartilhados em comum, sua coleção de diferenças mantém-se inerte e pode facilmente parecer um agregado indiferente. Os componentes das massas, do populacho e da turba não são singularidades – o que fica evidente pelo fato de que suas diferenças tão facilmente se esvaem na indiferença do todo. Além disso, os sujeitos sociais são fundamentalmente passivos, no sentido de que não são capazes de agir por si mesmos, precisando ser conduzidos. A turba, o populacho ou a plebe podem ter efeitos sociais – não raro efeitos horrivelmente destrutivos –, mas não são capazes de agir por conta própria. Por isto é que são tão suscetíveis à manipulação externa. Idem, p. 140. lidade com base na multidão. Multidão não é unificada, mantendo-se plural e múltipla. Ela (a Multidão) é composta de um conjunto de singularidades – e com singularidades queremos nos referir aqui a um sujeito social cuja diferença não pode ser reduzida à uniformidade, uma diferença que se mantém diferente. (…) A multidão… embora se mantenha múltipla (singularidades plurais), não é fragmentada, anárquica ou incoerente. Assim é que o conceito de multidão também deve ser contrastado com uma série de outros conceitos que designam entidades coletivas plurais, como a turba, as massas e o populacho.56 A multidão pode ser considerada um social ativo, cuja constituição e ação não se baseiam na identidade ou na unidade, mas naquilo que têm em comum. E mais. A multidão, embora se caracterize por ser múltipla e internamente diferente, é capaz de agir em comum e de se governar. Também o conceito de multidão se encaixa em uma ação em que entram os conceitos de gênero, de diferenças de identidades sexuais, de raça, etc. Quando na sociedade deparamos com as reivindicações que apontam, por exemplo, para a defesa dos direitos reprodutivos e sexuais, para a homoparentalidade, para vários modelos de se constituirem as famílias, para a discussão da descriminalização ou da legalização do aborto provocado, está no momento de se posicionar desde uma visão democrática co-participativa, dialógica e respeitadora das diferenças e das subjetividades. Só indo, com lucidez crítica e ternura, ao encontro da Multidão que se organiza e mobiliza com firmeza, determinação e ética, é que se poderá pensar numa Igreja viva, sensível, humana e samaritana. Do contrário, a Igreja continuará na contramão da história. Temo que na V Conferência de Aparecida não se reflitam seriamente e com ousadia questões ligadas a esse desafio de contribuir com uma democracia que inclua os sonhos e as lutas dessa Multidão. ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 27 18.05.07, 10:26 27 I T E S P INSTITUTO SÃO PAULO DE ESTUDOS SUPERIORES FILIADO AO PONTIFÍCIO ATENEU SANTO ANSELMO – ROMA Protocolo 450/81/8 da Congregatio Pro Institutione Catholica O ITESP sonha ser uma comunidade de reflexão teológico-críticocriativa. Nessa comunidade, todos os membros são convocados a participar no processo acadêmico pela fraternidade, solidariedade e compromisso com o estudo teológico e no empenho de vivência do Reino de Deus. Todos assumem o compromisso de fazer uma teologia séria, equilibrada e realista, fruto da vida em Igreja. É questão de justiça para com os participantes, para com as comunidades religiosas e para com a Igreja universal. Partindo da realidade latino-americana, opta-se por julgá-la com os critérios da revelação na Bíblia e na Tradição eclesial, respondendo aos apelos de Deus que se fazem através das pessoas e dos fatos. Visa-se desenvolver a prática de uma teologia, que evitando o monolitismo radical, assuma o respeito a uma ciência teológica mais pluralista e universal. 1. Curso de graduação em Teologia Para formação de religiosos, presbíteros. 1.1. Seguindo todo o currículo, com duração de quatro anos, recebem Diploma de Curso Seminarístico. 1.2. Submetendo-se às exigências suplementares do Ateneu Santo Anselmo, Roma, receberão o Diploma de Bacharelato. Pré-requisitos: Curso completo de filosofia e inscrição aprovada. 2. Curso de teologia para religiosos e leigos Currículo de quatro anos completos durante o mês de Janeiro, no Colégio Emilie de Villeneuve com certificado final. Pré-requisitos: Preparação religiosa suficiente, incrição aprovada com trabalho científico final. 3. Alunos ouvintes: Participam de reciclagem organizada ou participação livre em cursos escolhidos, com certificado final. Pré-requisitos: formação adequada, inscrição e programa aprovados a critério da direção do Instituto. Para informação: Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP) Rua Dr. Mário Vicente, 1108 (Ipiranga) 04270-001 SÃO PAULO, SP Espacos_miolo_15_1.p65 28 18.05.07, 10:26 CINCO PASSOS PARA RETOMAR E CONTINUAR A CAMINHADA1 Paulo Suess * Professor do programa de Missionologia do ITESP. Resumo: Paulo Suess apresenta na forma de passos, uma síntese dos grandes desafios da atividade missionária da Igreja nos dias de hoje: a mudança de enfoque entre o território e a Igreja Povo de Deus; a passagem da ação missionário ad gentes para uma ação inter gentes especialmente a partir da experiência contemporânea na Ásia, a criação neste campo a partir do nada e a continuidade e rupturas tendo em mente a história, a centralidade do Reino na mensagem do Evangelho e não a Igreja e a emergência de novos caminhos da inculturação. Palavras-chave: Missionologia: desafios; Missão: mudanças; Missão: passos. Abstract: Paul Suess using the metaphor of the steps write down a synthesis of the main challenges of the mission activities in the Church nowadays: form the idea of mission territories to Church as People of God; from the mission activities ad gentes to inter gentes (mainly from the Asian mission experiences), in this realm the criation activities ex nihilo and the continuity of the Church experiences having in mind their history and the possibilities of break trough, the central place of the God’s Kingdom in the Gospel Message and not Church and the new ways of inculturation on the way. Key words: Missiology: challenges; Church Mission; Mission: New steps. 1 Contribuição à sessão solene de abertura de pós-graduação em teologia, com concentração em Missiologia, no ITESP, (27/ 02/2007). ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 29 18.05.07, 10:26 29 Imaginemos que neste momento pré-Aparecida a Igreja latino-americana esteja esperando numa estação de ônibus. Já se passaram algumas horas e nenhum ônibus chegou. No outro lado da rua, na direção oposta, chega um ônibus depois do outro. Ao anoitecer, muitos estão tomando um ônibus de volta, ao menos até o abrigo Vaticano II. Alguns – certamente são da Igreja Caminho ou da Igreja dos Peregrinos que não baixam a voz quando falam da Teologia de Libertação – propõem caminhar na direção do destino, em vez de esperar mais algumas horas. Andam decidida e alegremente no ritmo dos cinco passos que seguem, nem samba nem tango. 1O PASSO DO TERRITÓRIO MISSIONÁRIO À NATUREZA MISSIONÁRIA DA IGREJA POVO DE DEUS O Vaticano II iniciou processos eclesiológicos e pastorais que livraram a missão da Igreja de fixações a territórios geográficos. A Igreja se declarou Povo de Deus que é por sua natureza missionário. Desde seu batismo, os cristãos participam dessa natureza missionária como adeptos do caminho (At 9,2) e seguidores de Jesus Cristo. Ele é o primeiro missionário, enviado por Deus Pai-Mãe ao mundo.2 Ele é o Caminho. E esse Caminho é escolha e escola. A partir dessa natureza missionária, a Igreja Povo de Deus procurou reconstruir a sua identidade, seus serviços pastorais e sua teologia. Ela procurou lentamente assumir o deslocamento de uma Igreja que tem missões territoriais sob a responsabilidade da Congregação pela Propagação da Fé (Propaganda Fide) ou de Ordens Religiosas, missões pelas quais faz coletas e pede orações, para uma Igreja na qual a missionariedade representa a orientação fundamental de todas as suas atividades e do seu ser, em nível local (nas comunidades), regional (nas dioceses e Conferências Episcopais) e universal (Cúria Romana). Nas relações entre as diversas instâncias eclesiais deve prevalecer o princípio da subsidiariedade, consagrado na Doutrina Social. 2 Ad Gentes. São Paulo, Paulinas, 1966, nn. 2 e 6. 2O PASSO DA MISSÃO AD GENTES À MISSÃO INTER GENTES A missão ‘ad gentes’, no seu sentido tradicional, hoje, de fato, é missão ‘inter gentes’, missão entre povos e continentes, entre Igrejas locais e comunidades. O paradigma da missão inter gentes surgiu no contexto do pluralismo religioso da Ásia, onde vivem mais de 60% da humanidade. É um contexto de diálogo 30 Espacos_miolo_15_1.p65 P. SUESS — Cinco passos para retomar e continuar a caminhada 30 18.05.07, 10:26 3 Cf. J. Y. TAN, Missio inter gentes. Towards a new paradigm in the mission theology of the Federation of Asian Bishops’ Conferences (FABC). Em Mission Studies, 21(1) (2004), p. 65-95, aqui p. 82ss. com as religiões, as culturas e os pobres. A teologia da missão da Federação das Conferências Episcopais da Ásia/FABC pode ser sintetizada como teologia da missão inter gentes.3 E nós, Igreja Povo de Deus da América Latina e do Caribe, ainda com algumas deformações da cristandade, podemos aprender muito da Ásia. O paradigma da missio inter gentes corresponde ao espírito do Vaticano II: leva em conta a situação do pluralismo religioso e da diáspora crescente da Igreja no mundo de hoje; enfatiza a responsabilidade da Igreja local para a missão; quebra o monopólio de uma Igreja que envia missionários e uma Igreja que os recebe; admite a reciprocidade e conversão mútua entre agentes e destinatários da missão e da Igreja em seis continentes e valoriza o diálogo intercultural e inter-religioso; sublinha a missão não como uma atividade entre indivíduos, mas entre comunidades. Vai ser importante que a ex-cristandade latino-americana se prepare para a nova situação religiosa que se apresenta concomitantemente como religiosidade popular herdada e diáspora do pequeno rebanho. Quem são os gentes de hoje? Nos primórdios do cristianismo havia três destinatários da Boa-Nova: os judeus, os cristãos e os pagãos. Pagão tornou-se sinônimo de “gente” (não-cristão e não-judeu). O Vaticano II contemplou a atividade e o ser missionário da Igreja no Decreto Ad gentes, o diálogo e as relações entre católicos e cristãos não-católicos no Decreto sobre o Ecumenismo (Unitatis redintegratio), e o diálogo e as relações com as religiões não-cristãs na Declaração Nostra aetate. A expressão missão ‘ad gentes’ pode apontar em duas direções: na dos antigos pagãos, considerados sem verdadeira religião e que seriam hoje os que se declaram ateus, portanto, sem religião, ou em direção de povos de outros continentes ou países onde se encontram, como na América Latina, cristãos no meio de outras religiões e grupos sociais ou indivíduos que se declaram sem religião. Mas para a América Latina e o Caribe, que passou por um aprofundamento na leitura da Bíblia e pela renovação de Medellín, Puebla e Santo Domingo, missão “ad gentes” significa seguir Jesus, convocar seus destinatários preferenciais, os pobres, e enviá-los como protagonistas de seu Reino. Em seus discursos axiais da Sinagoga de Nazaré (Lc 4), das Bem-Aventuranças (Mt 5) e do Último Juízo (Mt 25), Jesus de Nazaré é muito claro. Os protagonistas de seu projeto, que é o Reino, são as vítimas (pobres, cativos, cegos, famintos, oprimidos, estranhos, enfermos). Reconhecer o outro-pobre em sua dignidade e alteridade significa inclusão e participação. ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 31 18.05.07, 10:26 31 Puebla dedicou uma das cinco partes de suas Conclusões à comunhão e participação.4 Impulsionar práticas significativas de participação do povo de Deus é uma expressão coerente da natureza missionária da Igreja. A partilha fraterna dos serviços e poderes dinamiza a opção pelos pobres através de uma opção com os pobres, que são porta para a Vida. Eles são os protagonistas e destinatários do projeto missionário, mas são também os representantes de Deus no mundo. Como missionários da missão universal inter gentes apontam para um outro mundo que é necessário, possível e real. 4 Documento de Puebla. São Paulo, Paulinas, 1979, nn. 563891. 3O PASSO DA CRIAÇÃO DO NADA (EX NIHILO) À CONTINUIDADE COM RUPTURAS Fazemos parte de uma caminhada de Deus conosco (história de salvação) e de uma caminhada da Igreja universal e latino-americana e caribenha. Não precisamos começar na estaca zero nem inventar a roda. Na caminhada fizemos experiências transcendentes e históricas, experiências de Deus e de fé. 3.1. A caminhada da Missão 3.1.1. Deus já está lá Onde a Igreja com suas missionárias e seus missionários chega, Deus já está presente. Ele nos precede em todos os povos. Cabe aos missionários e às missionárias ouvir como Deus agiu nos outros povos, ouvir seu clamor e perceber neles os sinais de ressurreição. Esse clamor faz parte de sua “história de salvação” (não confundir com a história da Congregação). 3.1.2. Aparecida: mais um passo? Aparecida será a quinta Conferência, não a primeira. Poderá ser a quinta essência de toda a caminhada. As grandes contribuições, que a fila do povo e os próprios bispos elencaram desde Medellín, precisam ser realmente assumidas, recontextualizadas e transformadas em ações concretas. 3.2. Imperativos do Evangelho As contribuições dessa caminhada podem ser nucleadas como imperativos que emergem do Evangelho: 32 Espacos_miolo_15_1.p65 P. SUESS — Cinco passos para retomar e continuar a caminhada 32 18.05.07, 10:26 3.2.1. Realidade como sinal 5 Cf. Puebla 400. A assunção da realidade, compreendida como sinal de Deus no tempo, deve tornar-se novamente ponto de partida de qualquer reflexão teológica e ação pastoral, segundo o princípio do Santo Irineu: o que não é assumido não é redimido.5 3.2.2. Opção pelos pobres A opção pelos pobres, que pode ser aprofundada em duas direções: como opção pela pessoa de Jesus Cristo, que se identifica com os pobres (Mt 25) e como opção pelos pobres e com os pobres, respeitando sua subjetividade e seu protagonismo na construção do Reino. 3.2.3. Lugar da Igreja Local O reconhecimento teológico-pastoral da Igreja local, que exige mudanças estruturais; a Igreja local deve romper com qualquer tipo de tutela colonial e assumir sua idade adulta. 3.2.4. Um lugar dos ministérios A ampliação, descentralização e reestruturação dos ministérios para que na prática pastoral possam responder à diversidade sociocultural, dispersão geográfica e necessidade espiritual do povo de Deus. 3.2.5. Participação comunitária A participação qualitativa e diferenciada dos leigos, sobretudo das mulheres, na Igreja. 3.2.6. Co-responsabilidade A co-responsabilidade significativa do povo de Deus na escolha dos seus pastores, sem os formalismos democráticos da sociedade civil, porém com regras de participação estabelecidas. 3.2.7. Formação A formação dos agentes pastorais (diáconos, futuros padres, leigos) a serviço e na proximidade do povo simples e pobre. 3.2.8. Diálogo A continuidade e aprofundamento do diálogo ecumênico e inter-religioso. ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 33 18.05.07, 10:26 33 Tudo isso já foi decidido e textualmente assumido. A novidade de Aparecida pode emergir da síntese histórica, da assunção e operacionalização estrutural dessas decisões tomadas nas conferências anteriores. O povo de Deus está cansado de sempre se promoverem novas conferências, análises e interpretações sem encaminhamentos concretos. Realizemos o que prometemos e aprofundemos essas caminhadas marcadas pela graça e pelo pecado, sem continuísmo. Medellín, mas também Puebla e Santo Domingo descrevem essa continuidade com rupturas em termos teológicos como conversão, criação nova, opção pelos pobres e libertação. A Igreja se evangeliza a si mesma através da denúncia e da ruptura com o sistema que cria vítimas e do anúncio da Boa-Nova de um outro mundo que está se gestando no meio de nós.6 Os delegados da V Conferência precisam ter clareza sobre os passos concretos que devem, podem e querem dar. A voz do povo está documentada, a interpretação da realidade está ao alcance de todos, a alteridade dos povos indígenas e dos afroamericanos está ameaçada, o grito dos pobres e dos migrantes está no ar. 6 Cf. Evangelii nuntiandi, 15. 4O PASSO DO ECLESIOCENTRISMO À CENTRALIDADE DO REINO A comunidade missionária vive no interior da Igreja Povo de Deus, comunidade constituída por comunidades que vivem sua missão na luta pela vida a partir de sua fé. Essa missão não é uma entre muitas atividades da Igreja. Ela decorre de sua natureza, que tem sua origem no envio do Filho e na missão do Espírito Santo, segundo o desígnio de Deus Pai. Falar da Igreja significa falar de missão. A estrutura dessa Igreja-Missão é trinitária. Ela é Povo de Deus, Corpo do Senhor e Templo do Espírito Santo.7 Por ser essencialmente missionária, a Igreja não vive para si. Ela não está nem se coloca no centro. Ela vive a serviço do Reino. Esse Reino é central para todas as suas atividades e reflexões. A meta da Igreja é o Reino de Deus (cf. LG 9). Ela é serva e testemunha do Reino. No Espírito Santo, é enviada para articular universalmente os povos numa grande rede (cf. Jo 21,11) de solidariedade. Do envio nascem comunidades pascais que tentam contextualizar a utopia do primeiro dia da nova criação. Das comunidades nasce o envio. A missão, com seus dois movimentos, a diástole do envio à periferia do mundo e a sístole que convoca, a partir dessa periferia, para a libertação do centro, é o coração da Igreja. Sob a senha do Reino, propõe um mundo sem periferia e sem centro. 34 Espacos_miolo_15_1.p65 7 Cf. Ad Gentes, 2; Lumen gentium 17. P. SUESS — Cinco passos para retomar e continuar a caminhada 34 18.05.07, 10:26 Converter-se ao Reino é tarefa cotidiana dessa Igreja Povo de Deus. Suas realizações históricas necessitam permanentemente da purificação, inspiração e animação do Espírito Santo, que é o pai dos pobres. Por isso, são pobres os sinais que marcam sua trajetória: o vazio, a abertura, a partilha, a ruptura, a caminhada, a cruz e a hóstia sagrada. O presépio e o sepulcro estão vazios; a porta do cenáculo está aberta, a genealogia, interrompida pelo Espírito. Essa Igreja não tem pátria nem cultura, nem é dona de verdades. Ela é serva, peregrina, hóspede, instrumento, sinal. Mas ela tem rumo. Quem nasce e renasce ao pé da cruz, na fuga e na peregrinação, desconfia dos brilhantes falsos dos vencedores. A missão da Igreja se realiza com urgência escatológica. O anúncio do Reino através da realização do novo mandamento é uma questão urgente, de vida e morte. A missão não pode esperar para amanhã porque a vida não pode esperar. A caridade de Cristo nos compele (2Cor 5,14) a destruir as estruturas da morte, interromper a lógica dos sistemas e questionar a lentidão das burocracias. A vida é sempre para hoje. Os sinais de justiça são para já. O anúncio da esperança é para agora. E essa esperança não deve ser imaginada como progresso quantitativo, numa sociedade de classes. No horizonte da justiça e da esperança está uma sociedade que supera a divisão de classes sociais. O anúncio do Reino é historicamente relevante para além da história, portanto, escatológico. 5O PASSO DA SUPERVISÃO À INCULTURAÇÃO 8 Cf. Lumen gentium. São Paulo, Paulinas, 1977, n. 8c. 9 Cf. J. RATZINGER, Der Dialog der Religionen und das jüdischchristliche Verhältnis. In RATZINGER, J (Ed.), Die Vielfalt der Religionen und der Eine Bund. Bad Tölz, Urfeld, 2003, 93-121, aqui 116. Na lógica do Reino, os pequenos, os que vivem do lado sombrio do mundo, são caminhos da verdade e porta da vida. Para eles, a comunidade missionária reserva sempre o melhor: o melhor tempo, o melhor vestido, o melhor espaço. As vítimas do anti-reino não são apenas os protagonistas e os destinatários do projeto de Deus; são lugar da epifania de Deus, por excelência. A questão social está estreitamente vinculada à questão da ortodoxia. Pecado significa indiferença diante da exploração dos pobres e do desprezo que sofrem. Neles, a Igreja reconhece a imagem de seu Fundador pobre e sofredor.8 No cristianismo, essa pobreza do próprio Deus tem muitos nomes: encarnação, cruz e eucaristia. A pobreza é a verdadeira aparição divina da verdade.9 A partir da teologia latino-americana, faríamos um acréscimo: a pobreza vivida pelos pobres e diferentes, pelos que sofrem e pelos migrantes. Sobretudo os migrantes de hoje representam Jesus Cristo em seu despojamento radical. Eles são portadores do Evangelho ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 35 18.05.07, 10:26 35 do caminho. Uma Igreja a caminho é uma Igreja simples, transparente e pascal. Com os pobres e os outros trabalhamos e convivemos com o culturalmente disponível. A solidariedade missionária se realiza através da inculturação concreta nos contextos. Não somos os supervisores do projeto de Deus nem das obras sociais que inspiramos. Meios sofisticados e lugares de comando são um contra-testemunho para a missão. A supervisão, muitas vezes, nos afasta do chão e dos rostos concretos dos pobres. A eficácia missionária não está nos instrumentos utilizados nem na liderança em nossas obras, mas na coerência entre a mensagem do Reino e sua contextualização, também através do nosso estilo de vida. Isso a reestruturação dos ministérios deve levar em conta. Entre todos os meios nunca deve faltar a partilha simbolicamente celebrada na Eucaristia. Ao repartir o pão, os discípulos de Emaús reconheceram Jesus ressuscitado. Só o pão repartido vai saciar a fome do povo. Na mística da militância missionária procuramos, a partir de gestos alternativos, brecar a lógica do sistema: contra a exclusão propomos a participação, contra a acumulação, a partilha, e contra a exploração, a gratuidade. Na gratuidade se concretiza nossa resistência contra essa lógica que substituiu o penso, logo existo (Descartes) pelo pago, logo existo (custo-benefício). A Igreja Povo de Deus nasceu na festa do Espírito Santo (Pentecostes) que é Deus no gesto do dom. A gratuidade aponta para a possibilidade de um mundo para todos. Em Pentecostes, a comunidade missionária foi enviada ao mundo plural — na gratuidade e unidade plural do Espírito Santo. 36 Espacos_miolo_15_1.p65 P. SUESS — Cinco passos para retomar e continuar a caminhada 36 18.05.07, 10:26 A SIMBÓLICA DE APARECIDA E A V CONFERÊNCIA DO CELAM Maria Cecilia Domezi* * Professora de História da América Latina no ITESP. Resumo: Mesmo que a escolha do Aparecida tenha sido motivada pela redução do número de católicos, ela é também uma oportunidade para se refletir a inculturação. A estátua de Maria, aparecida quebrada e enegrecida, assume o povo brasileiro submetido, deformado desde a gênese e com seus laços rompidos. No corpo significante da imagem oficial da Senhora da Conceição, apropriada na forma híbrida, os pobres constroem sua simbólica através da reciclagem de fragmentos e de uma bricolagem, ao mesmo tempo em que recompõem as relações humanas através da sua religião popular. Maria de Aparecida revela o rosto materno de Deus e chama a Igreja ao serviço da recuperação da vida humana com toda a sua dignidade. Palavras-chaves: Nossa Senhora Aparecida; imagem religiosa; simbólica popular; inculturação. Abstract: Even if the place of the 5th Conference of CELAM (Latin American Bishops Conference) was elected having in mind the somewhat huge number of Catholics leaving behind the Church, it’s also an opportunity to be open to the inculturation meaning of the place. Mary’s statue appeared (aparecida) broken and blackened takes over Brazilian people slaved and deformed from the very beginning of his history with the break down of the human relationship ties. In the significance of the body’s official image of Our Lady of Conception, accommodated in a hybrid form, the poor build up their symbolic system, recycling ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 37 18.05.07, 10:26 37 fragments and using a kind of bricolage alongside with the composing again and again the human relationship via popular religion. Mary’s image in this way shows up the motherly face of God and it summons the Church to the service of the human life recovering in all their dignity. Key Words: Our Lady Aparecida, Religious image; Popular symbolic system; Inculturation. INTRODUÇÃO O lugar escolhido para a realização da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano — CELAM — foi o santuário de Aparecida, no Brasil. Esta decisão do papa Bento XVI mudou significativamente a primeira determinação, tomada no final do longo pontificado de João Paulo II, de que a Conferência se faria em Roma. O CELAM, na oportunidade de celebrar seus cinqüenta anos em 2005, propunha uma assembléia do episcopado na forma de conferência, e que fosse realizada na América Latina, assim seguindo a tradição das quatro anteriores. É verdade que o Papa estava gravemente enfermo e não poderia se locomover, mas não é menos verdade que sínodos continentais haviam sido desviados de suas Igrejas Locais para um acentuado centralismo romano. Ante a aprovação de João Paulo II para a forma de conferência, os setores curiais da hierarquia tentavam fazê-la acontecer em Roma. Mas, venceu a identidade e autonomia da Igreja Local com a força das suas Conferências Episcopais, num eco às aspirações de integração latino-americana neste momento em que, nas rachaduras do neoliberalismo, há uma ascensão de governos de cunho popular, como os de Hugo Chaves, Lula, Tabaré, Evo Morales. Este eco, que em Medellín esteve bastante presente, tem que passar por maiores complexidades agora, quando as pressões do mercado global dificultam os pactos regionais. A decisão quanto ao lugar não é exatamente uma preferência pelos criativos avanços da Igreja latino-americana-caribenha, em sua opção de justiça em favor dos pobres e excluídos e com seu serviço à libertação integral. O escolhido foi o Brasil, com seu grande santuário mariano de Aparecida, mais pela ameaça de perda da identidade católica deste país continental que ainda é majoritariamente católico. Entretanto, as inconsistências têm marcado historicamente esta hegemonia, devido ao longo tempo em que vigorou o seu caráter de obrigatoriedade. E os dados censitários evidenciam uma persistente e implacável perda numérica, numa perspectiva de dez por cento a cada década.1 Este fato vem acompanhado pelo fenômeno das 1 Conforme análise de Ferreira de Camargo, os censos demográficos brasileiros das décadas de ’40, ’50 e ’60 já evidenciavam a tendência geral para um declínio moderado, mas constante, de adeptos da Igreja Católica. Cf. C. P. FERREIRA DE CAMARGO (Ed.)., Católicos, Protestantes, Espíritas. Petrópolis, Vozes, 1973, p. 24. E o período que vai de 1970 para o ano 2000 mostra uma queda de 18% no número de católicos. Cf. Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano 2000. Da parte do CELAM pode-se verificar um susto ante a acentuada diminuição no número de católicos na última década, que chega a 10%, ao mesmo tempo do êxodo de católicos para as comunidades pentecostais. Cf. Conselho Episcopal Latino-Americano. Documento de Participação: Rumo à V Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe. São Paulo, Paulinas/Paulus, 2005, n. 155-158. 38 Espacos_miolo_15_1.p65 38 18.05.07, 10:26 2 Pesquisas mostram que a identidade cultural dos brasileiros está passando por transformações, dentro dos processos de modernização que, entretanto, tem suas ambivalências. Cf. A. D. MARTINS, Crenças e Motivações Religiosas. In GOMEZ DE SOUZA, L. A. – ALVES FERNANDES, S. R. (Eds.), Desafios do Catolicismo na Cidade: pesquisa em regiões metropolitanas brasileiras. São Paulo, Paulus/CERIS, 2002, pp. 62-76; 87. 3 Cf. C. PARKER, Religião Popu- lar e Modernização Capitalista: outra lógica na América Latina. Petrópolis, Vozes, 1996, pp. 8093; 102-103. 4 Orlando Espín afirma o caráter diferenciado do modo de ser católico dos latinos de classes populares que vivem nos Estados Unidos, onde sofrem carências e exclusões. Com críticas ao descaso doutrinal e pastoral com que a hierarquia da Igreja tem tratado quase sempre esta forma de catolicismo, insiste em que na heterodoxia do catolicismo tradicional popular se mantém o sensus fidelium. Cf. O. ESPÍN, A Fé do Povo: reflexões teológicas sobre o catolicismo popular. São Paulo, Paulinas, 2000. 5 Cf. P. SANCHIS, O campo religioso brasileiro será ainda hoje o campo das religiões? In HOORNAERT, Eduardo, et al. História da Igreja na América Latina e no Caribe – 1945-1995. Petrópolis/São Paulo, Vozes/ CEHILA, 1995, pp. 81-131. efervescentes mutações que ocorrem no campo religioso brasileiro, em meio à secularização.2 Entretanto, na América Latina e Caribe, onde se agravam as múltiplas faces da pobreza, o processo de secularização segue uma outra maneira. O capitalismo neoliberal estabeleceu e mantém neste continente uma forma de modernização periférica, com outra lógica e com tendências estruturais e conjunturais típicas, geradoras de profundas desigualdades. Os grandes segmentos pauperizados da população são mantidos intencionalmente numa heterogenia estrutural. No Brasil, especialmente, uma urbanização extremamente rápida fez ampliar as desigualdades estruturais, com uma alta segmentação das massas empobrecidas. E a pressão da hegemonia do catolicismo diminui à medida do aumento do impacto da modernização desigual e excludente. Transformam-se continuamente não só o campo religioso, mas também a consciência e o sentimento religioso das pessoas. É em meio à segmentação que os empobrecidos e excluídos obrigam-se a buscar sentido em fontes parciais de símbolos, de onde extraem o que necessitam para reconstruir sua própria ordem simbólica significativa.3 O catolicismo latino-americano-caribenho é profundamente mariano. Com seu pluralismo interno, é vivido pela maioria das pessoas que o constituem sob uma forma de tradição popular devota. Nesse jeito cultural de ser católico, que é heterodoxo em diversas expressões, mantém-se a fidelidade ao senso comum da fé da Igreja.4 As opressões estruturais, geradoras de gritantes desigualdades, têm obrigado as pessoas devotas a contínuos rearranjos e declinação no plural. No Brasil, de um modo especial, imensos contingentes de pessoas desenraizadas encontram no sincretismo um dos modos possíveis de convivência plural com os modos diferentes.5 As indefinições, ambigüidades, ambivalências, porosidade e inacabamento das identidades tornam-se espaços para um vivo e constante processo de adaptação, pluralidade e resistência libertadora. Os colonizadores implantaram em todo este continente uma imagem de Deus como juiz cruel, aterrorizador dos subjugados e favorecedor dos senhores. Mas trouxeram também, em sua tradição devota, traços de uma outra face de Deus, escondida no olhar de misericórdia da Virgem Maria. A esta importante contribuição juntou-se a rica herança cultural-religiosa dos povos ameríndios e dos africanos aqui escravizados. Através dos dinamismos da cultura popular, inusitadas formas de resistência dos grupos subjugados forjaram uma religião que dá sentido à vida constantemente ameaçada. A religião popular é viva, e seu constante dinamismo opera na circularidade6 de elementos simbólicos, entre a oficialidade estabelecida e as ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 39 18.05.07, 10:26 39 tradições populares, compondo e recompondo continuamente o seu próprio imaginário.6 Toda a expressão simbólica mariana do catolicismo brasileiro traz possibilidades para além de uma reafirmação ou reconquista da hegemonia católica. O lugar teológico da quinta Conferência continua sendo, desde a segunda, realizada em Medellín, o mundo dos pobres e seus caminhos de libertação integral. Na terceira, em Puebla, visualizaram-se, nas massas injustiçadas e oprimidas, os rostos concretíssimos e diferenciados de Jesus Cristo. Na quarta, em Santo Domingo, apesar dos posicionamentos contraditórios da hierarquia da Igreja e do seu empenho em retroceder da libertação integral, a opção pelos pobres foi reafirmada e acrescida do apelo à inculturação do evangelho. Oxalá em Aparecida se mantenha fidelidade a estas opções fundamentais, acrescentando-se, na inculturação, a abertura aos dinamismos do modo culturalmente diferente com o qual multidões de empobrecidos dão sentido à vida através da religião. Assim, a simbólica de Aparecida fará a Conferência situar-se, sensível e profeticamente, no chão do catolicismo tradicional popular, com suas ambigüidades e ambivalências, seu núcleo provedor de sentido para a vida e para o mundo, suas formas de resistência contra as opressões e sua capacidade de adesão ao projeto do Reino de Deus. 6 Segue-se aqui o conceito de circularidade cultural de Mikhail Bakhtin. Cf. M. BAKHTIN, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo, Hucitec, 1987. Há uma relação de complementaridade entre religião popular e religião erudita. A diversificação e combinação de elementos diferentes servem para ampliar as possibilidades de proteção. Cf. R. DA MATTA, O que faz o brasil Brasil? Rio de Janeiro, Rocco, 1986, pp. 115-116. O SÍMBOLO MARIANO OFICIAL A Senhora da Conceição era a imagem oficial da Cristandade colonial. Dom João IV, após a vitória da restauração portuguesa contra o domínio espanhol, cumpriu uma promessa de consagrar a ela Portugal com todas as suas colônias, atribuindo-lhe o significado de protetora do domínio lusitano ultramarino.7 Destronada a monarquia através de um golpe militar, Dom Pedro I a declarou padroeira do império brasileiro, tolerando o acréscimo popular de Aparecida por ver neste nome uma sutil relação de continuidade e mudança na soberania religiosa do país.8 Nossa Senhora da Conceição era festejada com gala no dia 8 de dezembro e invocada todas as noites pelo exército brasileiro. Porém, no segundo império já era visível a influência do positivismo comtiano, tanto no exército como na intelectualidade. A República foi estabelecida com essa ideologia e nos moldes das elites brancas. O episcopado brasileiro, que por longo tempo estivera ausente do espaço da fé do povo, passou a utilizar-se das peregrinações populares ao santuário de Aparecida em seu movimento de restauração católica.9 Em 1854, o papa Pio IX havia proclamado sozinho, sem um concílio, o dogma da Imaculada Concepção de Maria. Como 7 O domínio espanhol se estendeu de 1580 a 1640. A consagração foi a 25 de março de 1646. Cf. E. HOORNAERT, et al. História da Igreja no Brasil: ensaio e interpretação a partir do povo. Primeira Época. 4a. ed. Petrópolis/São Paulo, Vozes/ Paulinas/CEHILA, 1992, p. 349. 8 Cf. R. C. FERNANDES, Romarias da Paixão. Rio de Janeiro, Rocco, 1994, p. 107. 9 Cf. A. BOSI, Dialética da Colonização. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, pp. 273307; E. VILHENA DE MORAES, A Padroeira do Brasil. Rio de Janeiro, Dom Vital, 1929. 40 Espacos_miolo_15_1.p65 40 18.05.07, 10:26 10 Cf. H. KÜNG, A Igreja Católica. Rio de Janeiro, Objetiva, 2002, p. 204. 11 Cf. R. C. FERNANDES, Roma- rias da Paixão, op. cit., p. 107; C. BOFF, Maria na Cultura Brasileira: Aparecida, Iemanjá, Nossa Senhora da Libertação. Petrópolis, Vozes, 1995, pp. 21-22. 12 Essas marchas ocorreram nas capitais mais importantes do país. O que se apontava como perigo comunista eram as reformas de base que o governo Goulart prometia. Cf. F. PRANDINI, (Ed.), As Relações IgrejaEstado no Brasil. São Paulo, Loyola, 1986, Vol. 1, p. 23. 13 Ao avesso da imagem de Deus distante e dura, a imagem da Virgem Nossa Mãe se constitui numa providencial hierofania. Ela mostra, através de seu rosto de mãe, o rosto materno de Deus. Cf. A. GONZALEZ DORADO, Mariologia Popular Latino-Americana: da Maria conquistadora à Maria libertadora. São Paulo, Loyola, 1992, p. 93. O tema do rosto materno de Deus é desenvolvido por Leonardo Boff. Cf. L. BOFF, O Rosto Materno de Deus: ensaio interdisciplinar sobre o feminino e suas formas religiosas. Petrópolis, Vozes, 2000. observa Hans Küng, era uma pretensão de demonstrar a plenitude do seu poder papal e infalibilidade de fato, além do empenho em aumentar a devoção tradicional e fortalecer o sistema romano, contra os ventos da modernidade.10 O nome popular de Aparecida foi assumido pela hierarquia católica, mas como apêndice ao título oficial de Nossa Senhora da Conceição. O antigo santuário construído por escravos no Morro dos Coqueiros, em Guaratinguetá, foi ampliado e declarado santuário episcopal em 1893, sendo confiado aos missionários redentoristas alemães no ano seguinte. A imagem recolhida do rio Paraíba do Sul por pescadores pobres teve solene coroação em 1904. Quatro anos depois, o santuário recebeu da Santa Sé o título de basílica menor. A devoção popular a Nossa Senhora Aparecida foi abraçada pelos bispos brasileiros no contexto dos populismos latinoamericanos. Grandes manifestações de massa foram promovidas, no intuito de despertar a consciência de nação católica contra os princípios secularistas da República. Em 1930, o papa Pio XI declarou Nossa Senhora da Conceição Aparecida rainha e padroeira do Brasil. O cardeal Sebastião Leme dirigiu a proclamação desse título a 31 de maio de 1931, junto de cerca de um milhão de fiéis e diante das autoridades civis e militares, na Esplanada do Castelo, Rio de Janeiro. Nas mãos da hierarquia, uma pequena, frágil, enegrecida e reciclada imagem de Maria passava a simbolizar o poder da Igreja Católica.11 Nas semanas que precederam o golpe militar de 1964, Nossa Senhora da Conceição Aparecida foi especialmente invocada, nas “marchas da família com Deus pela liberdade”, com centenas de milhares de pessoas que compareceram às manifestações contra um suposto perigo comunista.12 Mas, não existe um centro religioso católico no Brasil. A nova basílica de Aparecida, mesmo sendo um grande santuário mariano, faz parte do policentrismo religioso brasileiro com seu complexo calendário de festas. Congrega especialmente os romeiros do centro-sul do país, enquanto outras romarias dirigem-se a outros santuários, como o de Nossa Senhora do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, e o de Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte, na tradição do Padre Cícero Romão Batista. A devoção mariana, que tem absoluta centralidade, não encontra uma coesão interna de nação. A oficialidade da Igreja Católica estabeleceu Maria como rainha e padroeira de diversas nações da América Latina e Caribe. Mas, na simbólica construída pelos oprimidos, as diversas imagens da Virgem, com feições índias, negras, mestiças, humanas, revelam o rosto materno de Deus.13 Desde o início da conquista colonizadora, o dinamismo da encarnação de ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 41 18.05.07, 10:27 41 Jesus, no paradigma guadalupano, possibilita que Maria se apresente aqui como a Mãe da compaixão, irmã e companheira das etnias e povos condenados à mais angustiante orfandade. A imagem da Virgem de Guadalupe está num marco referencial de identidade, como afirma o documento de Puebla: O evangelho encarnado em nossos povos congrega-os numa originalidade histórica cultural que chamamos América Latina. Essa identidade está simbolizada mui luminosamente no rosto mestiço da Virgem de Guadalupe que surge no início da evangelização.14 Os significados da deusa Tonantzin, cultuada na religião popular asteca, fundem-se com o novo significado da Virgem Maria, cultuada no Cristianismo. Surge, então, um novo culto que dá sentido à vida dos mestiços e lhes possibilita integrarse à sociedade colonial contando com uma poderosa aliada no plano simbólico-religioso, frente à humilhação e opressão sofridas da parte dos senhores cristãos.15 Nessa mesma dinâmica está Nossa Senhora Aparecida, cultuada por multidões de pobres e sofredores no Brasil. A SIMBÓLICA POPULAR DE APARECIDA No Brasil, Maria é Aparecida na dor, na resistência e na práxis libertadora dos empobrecidos. Sua pequena imagem apareceu16 na experiência de fé de pescadores explorados, em 1717, num contexto de duríssima escravidão negra e de convulsões sociais, em pleno ciclo de mineração de ouro e diamantes. A fé desses trabalhadores deu sentido sagrado ao fato de recolherem, em sua rede, primeiro o corpo de uma imagem sem cabeça, depois a cabeça desse corpo, seguindo-se uma pesca milagrosa. Tratava-se da imagem oficial de Nossa Senhora da Conceição, quebrada e escurecida no fundo do rio. A devoção dos pobres dá sentido à luta pela sobrevivência, em sua cultura de bricolagem e reciclagem de pedaços heteróclitos.17 A imagem aos pedaços foi respeitosamente guardada num pano. As pessoas devotas a limparam e colaram com cera de abelha do arapuá, preta e pegajosa. Durante quinze anos lhe renderam um culto familiar que reunia os vizinhos. Dada a crescente afluência do povo, com seu testemunho de graças alcançadas, os pobres lhe construíram uma capelinha de beira de estrada, onde puderam expô-la num altar de paus. Mesmo com as intervenções oficiais, da parte do governo e da parte da Igreja, a simbólica de Aparecida vem sendo construída dia a dia pelos pobres e excluídos, desde a experiência de fé cristã de escravos, tropeiros explorados, mulheres submetidas e violentadas, índios expulsos de suas terras e reduzi- 14 A Evangelização no presente e no futuro da América Latina. Conclusões da III Conferência Geral do Episcopado Latino Americano – Puebla. São Paulo, Paulinas, 1979, n. 446. 15 Cf. C. PARKER, Religião Popular e Modernização Capitalista, op. cit., p. 33. 16 Há uma teologia popular, formulada na oralidade e envolta em mito, na forma de narrativa do achado da imagem de Nossa Senhora Aparecida. Pode-se ver os primórdios desse culto na obra de Brustoloni. Cf. J. BRUSTOLONI, História de Nossa Senhora da Conceição Aparecida: a imagem, o santuário e as romarias. 10a. ed. rev. e ampl. Aparecida, Santuário, 1998. O autor é um sacerdote redentorista, que fez um cuidadoso estudo a partir de documentos originais. 17 A inteligibilidade dos sujeitos da cultura popular brasileira pode ser vista a partir da teoria de Lévi-Strauss de ciência do concreto, cujo modo de operar é a bricolagem. Cf. C. LÉVI-STRAUSS, O Pensamento Selvagem. São Paulo, Nacional/ USP, 1970, pp. 38-39. Cada elemento que se presta à bricolagem é um heteróclito, segundo Gramsci, isto é, representa um conjunto de relações concretas e virtuais ao mesmo tempo. Cf. A. GRAMSCI, Il Risorgimento. Torino, Riuniti, 1975. Diferentemente da racionalidade erudita ocidental, a filosofia popular compõe e recompõe o imaginário com os escassos e frágeis pedaços de que dispõe, numa familiaridade com o inacabado, o provisório, os arranjos possíveis. 42 Espacos_miolo_15_1.p65 42 18.05.07, 10:27 18 A imagem tem a medida de 36 cm de altura. Foi esculpida no século XVII, muito provavelmente pelo monge beneditino Frei Agostinho de Jesus, um brasileiro, que era discípulo do santeiro português Frei Agostinho da Piedade. Feita de terracota paulista, adquiriu uma coloração acinzentada e se foi enegrecendo, no lodo do fundo do rio e depois também pela fumaça das velas e tochas. Cf. J. BRUSTOLONI, História de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, op. cit., pp. 18; 21-23; 50. Em 1978, um homem que sofria de perturbação mental derrubou-a de seu nicho e ela partiu-se em 165 fragmentos. Foi quando, na restauração feita por peritos, revelou-se sua forma original da Senhora da Conceição. 19 A imagem tem uma forma sorridente dos lábios, pequena cova no meio do queixo, o penteado longo e solto, flores nos cabelos e na testa e um porte levemente empinado para trás. Ibid., pp. 21-23. 20 Houve desarranjos e destruições familiares, quebras culturais, rompimento de laços étnicos, cortes de tradições religiosas, mestiçagem acelerada, estupros de mulheres negras e índias. Por um tortuoso caminho, brasilíndios e afro-brasileiros, na condição de não-europeus, desindianizados e desafricanizados, obrigaram-se a uma busca de coesão no plano emocional. E a identidade étnica teve a ambigüidade como único espaço. O próprio processo de implantação de uma europeidade adaptada aos mestiços, contraditoriamente, criou uma ninguenidade neste povo que é tanto deseuropeu quanto desíndio e desafro. Cf. D. RIBEIRO, O Povo Brasileiro. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, pp. 26; 44; 47; 70; 131-132. 21 Cf. L. GIRARD, Apresentação. In CERTEAU, M. de. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1998, pp. 13-18. dos de sua identidade e modo de vida, trabalhadores com sobrevivência ameaçada. Uma apropriação da mensagem cristã se fez em outras chaves culturais, num amálgama de cosmovisões e cultos ancestrais dos indígenas e dos africanos com as expressões de devoção popular trazidas pelos cristãos que vieram de Portugal. A imagem-signo é pequena e frágil.18 O escultor, que não deixou assinatura, imprimiu-lhe traços característicos da Mãe de misericórdia e compaixão. Pode-se dizer que são traços transgressores em relação à representação branca e européia, e que a tornam mais parecida com as mulheres brasileiras pobres.19 Sua identidade de mulher pobre e negra é construída no coração do povo que só tem a ambigüidade como espaço de identidade étnica e o plano emocional como espaço de coesão. Como afirma Darcy Ribeiro, o povo brasileiro surgiu e cresceu de uma maneira constrangida e deformada, num choque de cosmovisões, dizimação por epidemias e pestes mortais, guerras de extermínio e escravização, sofrendo quebras de laços de todo tipo.20 A reciclagem da escultura visualiza a recomposição da religião que dá sentido à vida. Como uma colagem de destroços com novo sopro de vida, os pobres, desde logo, passaram a criar novos laços de compadrio e vizinhança, de irmandades e confrarias leigas, apropriando-se do batismo cristão num sentido de dignidade humana e de cidadania. Ela é santa de um não-lugar, com significado construído no corpo significante da imagem oficial da Senhora da Conceição. Pensando com Certeau, pode-se dizer que o significado da Aparecida legitima, por um desvio, o processo sócio-culturalreligioso empreendido pelos sujeitos reduzidos à condição de fracos. No quadro de sua própria tradição e num outro registro, o povo faz a proliferação disseminada de criações anônimas e perecíveis, invertendo e subvertendo as leis e representações da ordem dominante.21 A imagem permanece híbrida, aberta à circulação entre os espaços oficial e popular e a constantes reinterpretações, que possibilitam ao seu simbolismo adaptarse aos processos da modernidade. Na significação popular, ela é a Mãe sempre presente e protetora, especialmente nos momentos mais difíceis. É a minha Nossa Senhora Aparecida, respeitada como Senhora, não tão rainha num sentido político; nossa segundo as regras oficialmente estabelecidas, mas também minha na intimidade da relação de filhos e filhas com sua mãe. Esta significação está na continuidade com o paradigma da Virgem de Guadalupe, que possibilitou a inculturação do Cristianismo na antiga tradição asteca da Nossa Mãe. Numa complementaridade com esta sigESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 43 18.05.07, 10:27 43 nificação, ela se faz ícone do povo oprimido e libertador, companheira do povo que está na caminhada de libertação. Foram pessoas leigas, pobres, humildes e anônimas que iniciaram seu culto, administraram essa devoção nos primeiros anos e a propagaram. Embora os movimentos abolicionistas não a tenham invocado, e nem o clero a tenha reconhecido como libertadora dos escravos, ela assumiu a cor da raça mais desprezada e o primeiro favorecido por um milagre de sua proteção foi um escravo.22 Ao realizar a V Conferência nessa casa de Maria, a Igreja deste continente tem uma oportunidade de abrir-se mais à inculturação. Mas, será preciso descer ao esvaziamento de si, na kenosis de Jesus (Fil 2,5-11). É condição para inserir-se, com gratuidade e eficácia, nos caminhos dos pobres e oprimidos que, em romaria, resistem contra a morte causada pelo sistema capitalista neoliberal. Nossa Senhora Aparecida chama a Igreja à evangelização através das formas insuspeitadas de resistência do povo, de sua capacidade cultural de reciclar destroços e recompor a vida, de sua simbólica sagrada que se adapta a diferentes contextos e situações, de sua criatividade, ethos festivo, testemunho de fé viva e sensus fidelium. Na simbólica da Mãe Aparecida se revela o rosto materno de Deus e se expressa o evangelho dos pobres. Ela, a primeira discípula do Reino, atua através dos pequenos e humildes para recuperar o humano, santuário de vida digna. A Igreja dos Pobres se faz evento de salvação lá onde a imagem quebrada denuncia as agressões à vida. Entre a interação da fé com a práxis política transformadora e a bricolagem popular há uma fértil complementação, que se torna eficaz na gratuidade da devoção que cola a cabeça ao corpo, harmoniza razão e sentimento, supera as dicotomias, estabelece relações igualitárias e fraternas, recompõe o sentido sagrado do universo. As cicatrizes e a cor negra de sua imagem de mulher do povo chamam à ação profética e libertadora que vence todas as desigualdades e exclusões, como as de classe, raça/etnia, gênero, cultura. Sua fragilidade chama a tecer a rede comunitária e participativa, na comunhão e no ecumenismo, no diálogo inter-religioso e nas parcerias com os movimentos sociais. Sua aparição nas águas chama à defesa e ao serviço da vida, que deve ser integral e em abundância para todas as pessoas humanas e toda a criação. A opção preferencial pelos pobres, com suas ricas culturas e devoções, com sua vocação para o trabalho digno, é caminho para uma sociedade justa e fraterna e um planeta sadio, mediação para a plenitude do Reino de Deus. 22 As Romarias dos Trabalhadores e outras romarias libertárias vêm mostrando o crescimento na consciência social e religiosa dos negros e mestiços do Brasil. Cf. C. BOFF, 1995, op. cit., pp. 38-43. No Brasil, o problema racial tem, como complicador a mais, a persistência de uma hierarquização social que acentua desigualdades. Desde o violento processo de mestiçagem, a cor que vigora é mais social que étnica. Cf. D. RIBEIRO, O Povo Brasileiro, op. cit., pp. 224-225; F. OLIVEIRA, Ser negro no Brasil: alcances e limites. Em ESTUDOS AVANÇADOS, 18 (2004), pp. 57-58. 44 Espacos_miolo_15_1.p65 44 18.05.07, 10:27 COMENTÁRIOS PERSPECTIVAS PARA A V CELAM EM APARECIDA Marlos Aurélio da Silva* * Professor de Teologia no ITESP. Resumo: Marlos Aurélio da Silva tendo em vista o V CELAM em Aparecida, apresenta em linhas gerais e a partir da perspectiva histórica destas conferências, uma série de temas que a seu ver seriam importantes serem considerados. Esperando que um Espírito vivificador e de esperança esteja presente no Vale do Paraíba, o autor elenca uma série de temas importantes a serem considerados: uma relação mais vital entre a fé e a vida, a formação cristã mais sólida, a consideração do lócus teológico do pobre, a aproximação do povo, o desafio urbano, a crise das estruturas familiares, a cultura mediática e a necessidade de diálogo com os outros e a ecologia. Espera também dos bispos ali presentes, uma voz profética e de esperança. Palavras-chaves: Aparecida: V CELAM, América Latina: Igreja; Igreja: desafios. Abstract: Having in mind the 5th Latin American Bishops Meeting at Aparecida, Marlos Aurelio da Silva presents in broad ways and in a historical view of such a conferences, some subjects he sees as central at this moment, in the hope of a new blow of the Spirit of life: the relationship between life and faith, Christian deep formation, the locus of the poor in the theology, a more closeness to the people, the challenges of urban pastoral, the family structures crisis, media culture, dialogue with the others and ecology. Da Silva hopes also hear a prophetic voice from the bishops. Key Words: Aparecida: 5th CELAM; Latin America: Bishops Conference; Church: challenges. ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 45 18.05.07, 10:27 45 INTRODUÇÃO De antemão, é importante considerar que aquilo que passaremos a apresentar reflete tão somente uma leitura prospectiva de um evento marcante da vida eclesial, mas que poderá ter outro desfecho muito diferente do que será por nós indicado. Contudo, não nos sentiremos por causa disso frustrados em nossas expectativas, pois na verdade não se trata jamais de futurologia inconsistente.1 Aliás, aqui é preciso salvaguardar a magnitude que o imprevisível comporta em coisas desta natureza. Entretanto, mesmo assim, acreditamos ser válido sinalizar algo em torno daquilo que é a aspiração que brota do nosso contexto social e eclesial. Além disso, escapa ao nosso propósito querer exaurir tudo o que se possa projetar ou esperar sobre a CELAM. Nossa modesta contribuição se insere no conjunto de muitas outras formas de análise, todas igualmente importantes, porém sempre relativas e parciais. Afinal, um acontecimento vale por aquilo que é e pelo que deve ser com sua força antecipadora! Pois, a Igreja não é só Igreja da fé e da caridade. É também Igreja da esperança.2 Por isso, tem sentido acreditar e esperar! Em síntese, um misto de intuições, desejos e percepções a partir de nossa realidade perfará o texto que segue. 1 Cf. J. B. LIBÂNIO, Olhando para o futuro. Prospectivas teológicas e pastorais do Cristianismo na América Latina. São Paulo, Loyola, 2003, pp. 21-22. Aplicamos aqui o termo prospectiva do modo como o autor apresenta em sua obra. 2 Cf. C. BOFF, Uma Igreja para o novo milênio. São Paulo, Paulus, 2003, p. 32. 1. POR QUE UMA CONFERÊNCIA EPISCOPAL PARA A AMÉRICA LATINA E CARIBE? Como instituição, a Igreja também tem necessidade de tempos em tempos reunir seus representantes para revisar e planejar sua vida e missão. Mormente em conjunturas como a nossa na qual a velocidade das mudanças tem sido intensa. Da análise que se faz da realidade, avaliando e percebendo as tendências e desafios existentes num contexto mais amplo que o seu, depende o alcance e pertinência da sua própria atuação. Justamente por isso nos causa certa perplexidade a morosidade com que a Igreja trata a realização destas Conferências. Pois, desde 2001 os bispos latino-americanos já haviam pedido a realização desta V CELAM. Portanto, não é sem tempo sua ocorrência! E conforme já é sobejamente sabido, nosso continente goza de uma situação privilegiada, sendo ainda no momento presente, a maior reserva de religiosidade cristã da Igreja universal.3 Portanto, não se pode menosprezar este dado que remete à própria vitalidade da presença eclesial nesta parte do Globo. E, por conseguinte, isso lhe cobra uma grande responsabilidade de não permitir que seu dinamismo seja tragado pela inércia institucional. 46 Espacos_miolo_15_1.p65 3 Cf. M. de FRANÇA MIRANDA, A Igreja numa sociedade fragmentada. São Paulo, Loyola, 2006, p. 159. M. A. DA SILVA — Perspectivas para a V CELAM em Aparecida 46 18.05.07, 10:27 4 Cf. S. PIÉ-NINOT, Celam. Diccionario de Eclesiologia, p. 156. 5 O legado das Conferências anteriores está sobretudo nas opções proféticas e evangélicas que fizeram. A tradição do Concílio na recepção de Medellín merece ser retida com coragem e tenacidade. Cf. J. B. LIBÂNIO, Aparecida: desejos e esperanças. Em JORNAL SANTUÁRIO, 2007, 3 a 9 de fevereiro, p. 3. 6 Por causa da influência que o CELAM foi adquirindo na vida eclesial, grupos conservadores o assumem a partir do ano de 1972, com o que se perdeu muito da sua tônica original. Cf. R. OLIVEROS, Antecedentes da V Conferência Geral do Episcopado na tradição latino-americana. Em Convergência, 42(2007), p. 24. E para uma visão panorâmica da evolução eclesiástica na América Latina nas últimas décadas cf. J. B. LIBÂNIO, A caminho da V Conferência de Aparecida. Em PERSPECTIVA TEOLÓGICA, 38 (2006), pp. 190-191. 7 A Igreja do Brasil tem uma dívida a pagar nesta Conferência. E quem sabe Bento XVI, ao escolher Aparecida, também sentiu esta, ou outras dívidas para com a própria Igreja do Brasil. Ele tem a grande oportunidade de quitar estas dívidas com os discursos que ele fará no Brasil, especialmente na abertura da Conferência em Aparecida. Cf. D. VALENTINI, Expectativas da Quinta Conferência, p. 2. Veja dados do site 1 no final. 8 A literatura deste tema em visão retrospectiva é abundante. Cf. A. LORSCHEIDER, A caminho da 5ª Conferência geral do Episcopado latino-americano e caribenho. Retrospectiva histórica. Aparecida, Santuário, 2006. 9 Cf. J. B. LIBÂNIO, Aparecida: desejos e esperanças, op. cit. p. 3. Junte-se a isso o fato de que já existe um lastro consolidado de experiências que permitiram delinear os traços peculiares da Igreja neste continente. Aliás, o CELAM é a primeira organização continental de bispos da Igreja Católica.4 Devido ao esforço já engendrado no passado para tornar a mensagem do Evangelho encarnada em nossa realidade, há motivos de sobra para auspiciar que se realize um encontro que seja digno da história que foi construída e por aquilo que está por vir.5 2. E EM APARECIDA, NO VALE DO PARAÍBA, O ESPÍRITO SOPRARÁ? Ainda que eu caminhe por um vale tenebroso, nenhum mal temerei, pois estás junto a mim; teu bastão e teu cajado me deixam tranqüilo (Sl 23,4). A impressão que se tem é que o incerto está a nossa frente e que o ceticismo tende a dominar nossas expectativas por causa da estação invernal que abateu sobre a Igreja nos últimos tempos.6 Nesse sentido, por saber que o discurso inaugural do papa na abertura de uma Conferência condiciona grande parte de seu desdobramento posterior, existe em particular para esta, tanta curiosidade em saber que tonalidade lhe será dada pelo atual pontífice. Pois, Bento XVI, quando era o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, não comungou de muitas das posições e conclusões de grande parte dos teólogos latinoamericanos identificados com a Teologia da Libertação. Porém, na função que ocupa atualmente, poderá ser mais tolerante sem permitir, contudo que a nau navegue a esmo ou numa direção muito contrária à sua. Portanto, tem razão pairar a expectativa e a apreensão por aquilo que pode ser o desenrolar desta conferência. E, tanto verdade como isso, seria o desastre que poderia representar uma intervenção arbitrária na tentativa de cancelar uma memória eclesial que marcou e definiu a Igreja neste Continente.7 Destarte, não seria supérfluo nem difícil evocar aqui um resgate histórico das Conferências anteriores com seus alcances e limites.8 Aliás, para se tratar desta que está na iminência de acontecer, faz-se mister um olhar retrospectivo das demais em seus devidos contextos e conjunturas. Mas em razão do escopo que perseguimos neste artigo e pelo limite de espaço que temos, damos isso por pressuposto. De qualquer maneira, é preciso ser realista o suficiente para pensar que esta CELAM não inaugura nenhuma tradição nem pretende romper com ela, mas pode direcioná-la mais para uma direção que outra.9 É de esperar que haja tensões, pois existem modelos eclesiais contrastantes e as expectativas dos particiESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 47 18.05.07, 10:27 47 pantes são diferentes. Além disso, o contexto social e eclesial que vivemos hoje é mais plural e complexo que todos os outros de quando houve as Conferências anteriores. E quando se trata de entender a realidade e nela fazer opções, muitas conseqüências brotam para a prática de vida e de fé.10 Contudo, o que não pode ser negligenciado, sem grandes prejuízos, são os apelos e reclamos que ecoam deste tempo.11 Portanto, queremos acreditar de modo despretensioso que é possível entrever algo que certamente estará na agenda dos participantes desta V Celam. Mas, se tomássemos unicamente como ponto de partida o Documento de Participação poderíamos correr o risco de restringir por demais nossas expectativas, mesmo, porque segundo a análise de tantos, este não promete muito pela metodologia dedutiva adotada, pela concepção cristológica, eclesiológica etc que apresenta.12 Deste modo, julgamos ser relevante e importante captar os anseios latentes na vida de nossas comunidades cristãs e nas urgências e desafios de cada dia daqueles(as) que teimosamente querem viver e guiar-se pela fé. 3. O QUE NÃO DEVERIA E NÃO PODERIA FALTAR Conforme acenamos anteriormente a pertinência desta V CELAM estará em posicionar-se dentro do contexto atual perguntando-se quais são os desafios para a vida cristã e para a evangelização. É nesta linha que optamos em fazer um inventário de realidades que impreterivelmente terão de ser contempladas neste evento eclesial. É evidente e indiscutível que em nosso continente, mais que reclamar por ortodoxia, na verdade temos um desafio no âmbito da ortopráxis. Pois, já está impressa a marca do catolicismo em nossa gente e em nossas culturas. Porém, a carência ainda está numa postura político-social condizente com os princípios da vida cristã, explicitados na Doutrina Social da Igreja Católica. Daí que tem de haver um esforço evangelizador que vise justamente diminuir este abismo que separa a religião da vida pública. E neste sentido, de onde talvez se esperasse mais iniciativas e exemplos de cuidados pelas coisas do bemcomum, é que brota nossa maior indignação. Pois o âmbito do exercício político partidário tem se mostrado inoperante e tem feito adiar por demais o sonho de uma sociedade mais justa e ética. A corrupção que grassa nesta esfera e a crescente desigualdade que continua assolando nosso continente despontam como terrenos a serem fecundados pelo Evangelho e pela ação evangelizadora de uma Igreja que tem a coragem de se 48 Espacos_miolo_15_1.p65 10 Cf. J. B. LIBÂNIO, Igreja contemporânea. Encontro com a modernidade. São Paulo, Loyola, 2000, pp. 153-176. 11 Uma acrescida consciência do valor da pessoa humana, uma razão crítica que não mais acolhe o tradicional por ser tal, uma maior sensibilidade social, uma insegurança generalizada pela velocidade das transformações em curso, uma crise das diversas instituições sociais incapazes de andar no mesmo ritmo, uma crescente desigualdade social, uma generalizada corrupção da classe política são outros tantos fatores que desafiam hoje a Igreja entre nós. Cf. M. de FRANÇA MIRANDA, Mário de. A Igreja numa sociedade fragmentada, op. cit., p. 161. 12 Cf. A. BRIGHENTI, V Conferência do Episcopado da América Latina. Nesta mesma linha há a crítica do bispo emérito de Palencia, Nicolas Castellanos. Veja dados de sites 2, no final deste artigo. M. A. DA SILVA — Perspectivas para a V CELAM em Aparecida 48 18.05.07, 10:27 13 A formação teológica não é mais um luxo para católicos desocupados, mas uma necessidade para todos os cristãos na sociedade em que vivemos. Nunca foi tão verdadeira como em nossos dias a proclamação por uma nova evangelização, que ponha fim ao déficit teológico crônico de nossas populações. Cf. M. de FRANÇA MIRANDA, Mário de, A Igreja numa sociedade fragmentada, op. cit., p. 170. 14 Estamos em uma nova época cultural pós-moderna e da imagem, com um impressionante avanço da cibernética e dos meios de comunicação. Ao contrário, a pobreza e as injustiças que milhões de pessoas sofrem é bem antiga e vai se agravando com novas formas de marginalização e exclusão de milhões de pessoas. Na América Latina, a desigualdade alcançou níveis históricos. A pobreza e as suas conseqüências passou [sic] para o primeiro plano até para instituições como o FMI e o Banco Mundial. Sem dúvida, no atual contexto mundial, viver a opção evangélica profética pelos pobres, aparece, cada vez mais, como um esperar contra toda esperança. Cf. R. OLIVEROS, Antecedentes da V Conferência Geral do Episcopado na tradição latinoamericana, op. cit., p. 35. 15 Cf. F. J. COMBLIN, Um novo amanhecer da Igreja? Petrópolis, Vozes, 2003, pp. 11-14. 16 Cf. L. BOFF, Novas fronteiras da Igreja. O futuro de um povo a caminho. Campinas, Verus, 2004, pp. 73-142. É óbvio que nossa motivação não pode ser proselitista. Mas por coerência com o Evangelho, temos de evitar que tantas pessoas sejam enganadas pelas Igrejas. 17 Cf. J. COMBLIN, Viver na cidade. Pistas para a pastoral urbana. São Paulo, Paulus, 1996, pp. 54-55. posicionar profeticamente neste momento da História, evitando os discursos anacrônicos sem eficácia alguma. Por isso então, a esperança de que o Projeto de Missão pensado para todo o Continente após esta V CELAM possa ser de sapiencial decisão quanto à qualidade de evangelização que almejamos.13 Está comprovado que uma cultura católica apenas não resolve nossos problemas. Se de fato não houver maior cuidado com a formação espiritual e teológica do povo de Deus, será difícil enfrentar os desafios hodiernos e ulteriores e realizar a tão necessária ligação da fé com a vida, dando as razões daquilo em que realmente acreditamos. E na era da globalização e de neoliberalismo, os emergentes mais notáveis são de fato os novos pobres, ou seja, aqueles que são excluídos porque não acessam, afinal, esta é também a era do acesso! Eis o novo jeito de gerar exclusão! Entretanto, a questão dos pobres não poderá ser uma entre tantas outras a serem tratadas pela V CELAM.14 Aqui se joga definitivamente aquilo que dará a identidade desta Igreja e de sua missão. É o que foi tão bem captado por Jon Sobrino quando diz do extra pauperes nulla salus, entendendo o pobre como sujeito de uma sociedade justa e solidária. Afinal, estamos situados no continente da pobreza!15 A convocação da Igreja latino-americana que soaria mais cristã e pertinente para o momento seria a de uma cultura de solidariedade em tempo de globalização excluidora. No que concerne ao campo propriamente religioso, mais que evocar números que novamente confirmarão a migração religiosa/eclesial católica para as Igrejas evangélicas é hora de perguntar-se pelas causas disso. Não seria uma delas o nosso abandono do mundo popular?16 Bem como a falta de acreditar e potencializar nossos leigos em seu real protagonismo, em especial as mulheres? Temos de decidir se optaremos por conservar o clericalismo em vista de uma Igreja do futuro somente para o clero ou por acreditar e fazer de tudo para que a Igreja Povo de Deus se realize com a valorização de todos os ministérios. Por conseguinte, não se pode esperar que o burocratismo responda a nossos problemas. Se não houver uma aposta séria nas pequenas comunidades que demande responsabilidade e compromisso cristão e eclesial, estaremos fadados a garantir as estruturas, todavia perderemos as pessoas. A pastoral urbana recolocará à Igreja muitas questões vitais e urgentes. Ela não poderá furtar-se deste embate. Não se poderá responder aos desafios atuais na pastoral com métodos obsoletos que visavam um contexto marcadamente rural e agrícola. Muito menos ainda viver na cidade como se não fizesse parte dela.17 É hora de a Igreja flexibilizar suas estruturas em ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 49 18.05.07, 10:27 49 vista do serviço que deseja prestar às pessoas, sem tornar-se refém de modismos, contudo firmando-se como espaço alternativo e de acolhida no caos urbano. Por mais paradoxal que possa parecer, mas em tempos de exacerbados individualismos, é preciso continuar apostando na formação de comunidades. Em tempos de crises das instituições, facilmente nos recordamos da família que sofreu tantas alterações em sua configuração. Porém, continua sendo tratada pela Igreja como se nada tivesse ocorrido em seu seio, ou quando muito, aproveita somente para lamentar suas perdas. Ora, a exigência que se requer é de realizar uma pastoral familiar dentro do que é real e considerando as pluralidades existentes. E um cuidado especial se deve ter para com os jovens que se sentem constantemente ameaçados em suas esperanças, pois as chances de realização profissional, humana e relacional vão tornando-se exíguas. Isso sinaliza para o comprometimento de gerações e de rumos novos para toda a sociedade. A pós-modernidade propicia uma postura de relativismo e fundamentalismo que atinge a vivência cristã e religiosa em sua raiz.18 Em contrapartida ainda resta algo de contribuição peculiar que os cristãos podem e devem oferecer à medida que tiverem clareza e consciência da mensagem do Evangelho.19 A Igreja que, com o Concílio Vaticano II, entrou na modernidade depois de quatro séculos de hesitação, é chamada agora a fazer mudanças muito mais rápidas dentro de tempo recorde. Instituição de porte mundial e de tradição bimilenar, facilmente presa de seu gigantismo, está a viver a era das mudanças, do provisório, do descartável, da fragmentação, do pluralismo. Responder ou não a tal momento é seu destino. Responder não significa necessariamente adotar acriticamente o ethos da pós-modernidade, mas, em entendendo-o, oferecer-lhe propostas viáveis e convencíveis.20 Neste sentido, cabe muito bem pensar o que poderá ser feito na pastoral enquanto vivemos numa cultura midiática. Se quisermos estabelecer verdadeiro contato com as pessoas, não podemos prescindir disso. Na dimensão do diálogo é onde talvez a Igreja mais precise dilatar seus interesses. Pois são tantos os interlocutores: as ciências (novos conhecimentos), as várias denominações cristãs (históricas e atuais), as religiões etc. São desafios inadiáveis deste porte que somente com base num esforço conjunto, se poderá chegar a algum tipo de ganho comum. O reclamo que brota em relação à ecologia é outro terreno para a profecia eclesial e que tem se tornado globalmente sentido. E tantos outros desafios que poderiam ser elencados aqui, mas que apenas apresentamos a título de menção, pois dada a complexidade, seria quase impossível tratar de todos em 50 Espacos_miolo_15_1.p65 18 Cf. A. BRIGHENTI, Agenor. A Igreja do Futuro e o Futuro da Igreja. Perspectivas para a evangelização na aurora do terceiro milênio. São Paulo, Paulus, 2004, pp. 41-48. 19 Cf. J. COMBLIN, Os desafios da cidade no século XXI. São Paulo, Paulus, 2003, pp. 47-50. 20 Cf. J. LIBÂNIO, Igreja contemporânea, op. cit., pp. 188189. M. A. DA SILVA — Perspectivas para a V CELAM em Aparecida 50 18.05.07, 10:27 21 Transformações radicais que ocorrem, por exemplo, no campo da tecnociência, dos indivíduos (crise de identidades), da cultura, da sociedade (pós-social, secularização da secularização), dos sentidos, significados e significações, do âmbito religioso (a exculturação do Cristianismo e a auto-suficiência da sociedade sem religião) etc. 22 Cf. C. BOFF, Uma Igreja para o novo milênio, op. cit., p. 31. 23 Basta lembrar que Medellín foi a que produziu o texto mais curto, mas com uma densidade que lhe deu o mérito de figurar entre todas a mais importante. pormenores.21 É óbvio que não caberá à Igreja a solução de todos os problemas sociais, pois ela não tem sempre resposta imediata para todos os problemas, como diz a Constituição Gaudium et Spes em seu número 33. Porém, existe uma contribuição que é específica dela, e, se for omissa, poderá comprometer sua própria credibilidade. Pois, em última instância, a exigência menos facultativa à Igreja atual é que ela se sinta necessitada de uma profunda conversão; de viver seu momento de Kénosis para que o Reino de Deus possa se expandir. Por isso, permanece válido o axioma eclesiológico de Ecclesia semper reformanda est! Aliás, somente assim, buscando responder de modo inovador aos desafios contemporâneos ela poderá cumprir bem sua missão e ser significativa para seus membros. Enfim, é certo que o Espírito não deixará de se manifestar para além de todas as estratégias humanas e políticas que estarão presentes num acontecimento que tem muitos interesses em jogo. Contudo, por mais que os cristãos façam esvaziar a força de irrupção da fé, existe nela um componente de rebeldia congênita impossível de evacuar. ‘Não vos conformeis com esse mundo, mas renovai-vos em vosso entendimento’ (Rm 12,2).22 E sabemos o quanto existe de fé na vida de nossa gente que espera por uma decisão de rumo da Igreja! Portanto, seria muito triste menosprezar essa riqueza, fazendo da CELAM apenas um encontro para se produzir documentos. Assim, o desejo mais ardente é que nesta CELAM se façam menos discursos, menos documentos e mais discernimentos, mais projetos pastorais com fundamentação teológica e alcance para nossa realidade.23 Que o papa venha sim confirmar nossa fé, e seja também confirmado a ele nosso sonho de ser uma Igreja encarnada em nossa realidade e cumprindo nossa missão de conduzir as pessoas à condição de vida mais digna. 4. TRANSFORMAM O VALE DA ARIDEZ NUMA FONTE BORBULHANTE (Sl 83,7) Indubitavelmente somos uma Igreja que realmente goza de vitalidade. Por isso mesmo temos de aproveitar responsavelmente do momento que Deus está nos concedendo viver e experimentar nesta história que vamos construindo. Todavia, sem nos acomodar, pois ainda há muito a ser feito. Basta ver como cresce em ritmo acelerado o indiferentismo religioso (na verdade uma aversão mais às Igrejas) no Brasil e a qualidade de fé que nossa gente nutre, ou seja, são situações de crença que refletem quase um estágio de quem ainda não foi evangeESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 51 18.05.07, 10:27 51 lizado.24 Em contrapartida, se a Igreja novamente voltar-se somente para suas preocupações internas de organização e doutrina, perderá a grande oportunidade de dialogar com esse mundo e de avançar nas conquistas já realizadas. É por isso, que esta V CELAM deve resgatar as opções fundamentais da Igreja do Continente e resistir às forças que as vêm minando desde décadas.25 Com freqüência, ouve-se dizer que falta ainda efetivar algumas propostas do Concílio Vaticano II. Portanto, aí está uma oportunidade imperdível de nossos bispos traduzirem o alcance disso para nossa realidade. Aliás, a partir de um espírito de colegialidade praticável, eles devem se unir para que isso se realize. Mas para tal empresa, eles precisariam de fato se sentir livres e responsáveis para dizer o que precisa ser dito.26 Oxalá, que os bispos sejam os novos bárbaros deste império nefasto que quase tenta abortar nossa esperança continental! A V CELAM poderá ser uma voz profética de resistência aos que querem instrumentalizar a fé ou perpetuar a desesperança (quase desespero) do povo. Se a Igreja se comprometer definitivamente com os segmentos sociais que desejam dignificar essa história humana, teremos chance de ser uma instituição significativa no processo de libertação da nossa gente. E somente assim se poderá dizer com propriedade que esta conferência foi de fato um momento kairológico para a Igreja deste continente e que ainda há razões para se continuar esperando.27 Ora, o Espírito seguramente sopra para esta direção, pois Ele é gerador de vida e de liberdade até mesmo onde aparentemente seria impossível! E encoraja-nos saber que Deus mesmo é nosso bastião nas horas difíceis. E a história nos testifica a força desestabilizadora de sua graça capaz de reverter e subverter situações! Se a Igreja se eximisse disso fazendo um caminho contrário, poderia incorrer no risco de tornar-se uma instituição registrada nos livros de história, mas desconhecida das novas gerações. Portanto, o anseio é de que futuramente, ao evocarmos a CELAM de Aparecida, possamos nos lembrar de uma Igreja viva, livre e comprometida! Que o Vale do Paraíba não se torne, para nossa esperança, o vale de lágrimas, mas do lugar teológico no qual nossos sonhos ganhem consistência e densidade como na fisionomia afro-latina de Maria, em Aparecida! 24 Cf. C. SOARES, Em que você acredita? Seleções Reader’s Digest, 12 (2006), p. 96-101. 25 Cf. J. B. LIBÂNIO, J. B. A caminho da V Conferência de Aparecida, op. cit., p. 202. 26 Eles precisariam se sentir ao mesmo tempo pastores e porta-vozes do povo cristão, sendo por isso, exímios conhecedores das lutas e sacrifícios da nossa gente. Mas infelizmente esqueceu-se que episkopein, na linguagem da Bíblia Grega, significa olhar por e entendeu-se o termo epískopos no sentido de inspetor. Deveria antes refletir um olhar de cima, de quem contempla os fiéis, o povo, os pobres, a realidade com os olhos misericordiosos de Deus e que confere ao ministério uma missão, uma tarefa e não um simples cargo. Editorial, Perspectiva Teológica, 38 (2006), p. 183. 27 Sobretudo pelo respeito que se … possa desenvolver uma pastoral adequada a essa situação, que não se envergonhe de ser específica, regional, contextualizada. Cf. M. de FRANÇA MIRANDA, M. A Igreja numa sociedade fragmentada, op. cit., p. 167. Dados de sites: 1. http://www.proconcil.org:80/document/VCELAM/belohorizonte.htm, acessado em 21 de março de 2007. 2.www.adital.com.br; www.proconcil.org/document/Especiales/VCGELC/ 00VCELAM.htm 52 Espacos_miolo_15_1.p65 M. A. DA SILVA — Perspectivas para a V CELAM em Aparecida 52 18.05.07, 10:27 UM POVO QUE CELEBRA Evolução e involução da vida litúrgica na América Latina Antônio Sagrado Bogaz* Nivaldo Feliciano Silva * Professores de teologia litúrgica e pastoral no ITESP. Resumo: Bogaz e Nivaldo buscam elaborar uma síntese dos principais traços da vida litúrgia da Igreja contemporânea, dando especial relevo a estas atividades na Igreja no Brasil. Reconhecem uma certa pendularidade na história desde momentos de maior rigidez até outros mais espontâneos. No Brasil, graças a duas espiritualidades diversas — vertente libertadora e a pentecostal — assiste-se, segundo os autores, a duas tendências diversas na Liturgia, uma mais engajada na vida cotidiana das pessoas e outra mais espiritualizada. Estas tendências estão presentes nos modelos celebrativos, nas alfaias, na concepção de presença do divino, nos cantos e nas fontes da espiritualidade. Os autores olham com esperança, neste sentido, para o que a V CELAM poderá dizer sobre este momento e as orientações de futuro. Palavras-chave: Liturgia: elementos da história; Liturgia: Espiritualidade; Movimento Litúrgico: Brasil. Abstract: Bogaz and Nivaldo write down in synthesis the nowadays liturgical moment in the Catholic Church, with a special focus in Brazil. They realize that in the history of the Church it happened a kind of pendulousness in the liturgical tendency from a more rigid model to a more spontaneous one. In contemporary Brazilian Catholic Church we get two somewhat different traditions, one having its roots in the Liberation Theology and the other in the Pentecostal spirituality. Both this ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 53 18.05.07, 10:27 53 ways are different in kind of celebrative models, use of liturgical dresses and songs, in the way they understand the presence of sacred and in the source of their spirituality. Bogaz and Nivaldo have an special hope when they see the 5th Conference of Latin Amarican Bishops at Aparecida and this subject. Key words: Liturgy: some historical steps; Liturgy: spiritual foundations; Liturgical Movement: Brazil. INTRODUÇÃO Somos herdeiros de uma grande tradição que vem desde os primeiros séculos do cristianismo, quando a vida cristã alimentava espiritualmente da coragem e do testemunho dos mártires, que corajosamente comungavam o projeto de Jesus Cristo, até mesmo nas fronteiras do martírio. A vida litúrgica se inspirava, respirava e transpirava este ideal, comungando sua proposta salvífica, seus símbolos litúrgicos, seus ritos e sua espiritualidade com seus ideais de vida e de seguimento. A vida litúrgica sempre se relacionou profundamente com a vivência cotidiana, com as experiências comunitárias e os sentimentos da fé dos fiéis, elaborando seus ritos a partir dos elementos naturais da comunidade e, mais ainda, de sua história de vida, buscando na cultura e nos valores e formas de expressões rituais. Considerando que os elementos rituais não são dados pela mensagem evangélica, estes foram se encorpando ao longo das décadas, constituindo nossos rituais. O encontro da mensagem cristã com a realidade das comunidades, permeado pela fé, sustentava as práticas litúrgicas do povo. A vida litúrgica se alimentava da experiência das comunidades, ao mesmo tempo que esta vivência alimentava a vida litúrgica. Com o passar dos séculos, os ritos foram se solidificando e, ao mesmo tempo, se cristalizando, dificultando a interação entre novos valores culturais e os ritos cristãos. Tornou-se cada vez mais grave esta realidade, chegando ao ponto extremo onde os ritos prescindem totalmente das experiências dos novos grupos evangelizados. O Concílio Vaticano II reabre esta inspiração original e, novamente, os ritos litúrgicos tornam-se solícitos aos clamores do povo de Deus e susceptíveis de suas culturas, devoções e costumes. Passaram algumas décadas do reavivamento deste diálogo. Esta dialogicidade é difícil e complexa, pois exige integração das tradições e das inovações, respeito aos bens antigos e abertura aos novos bens da vida litúrgica. 54 Espacos_miolo_15_1.p65 A. S. BOGAZ e N. FELICIANO — Um povo que celebra 54 18.05.07, 10:27 Com este trabalho estamos nos preocupando em refletir sobre esta evolução e a involução deste processo, para nos abrirmos aos novos tempos da vida da Igreja e sua expressão litúrgica mais fecunda e eficaz. 1. CRISTALIZAÇÃO DA BELEZA. A FORMAÇÃO DOS RITUAIS AO LONGO DOS SÉCULOS 1 Cf. J. J. FLORES, Introdução à Teologia Litúrgica. São Paulo, Paulinas, 2006, p. 39. 2 Cf. A. CATELLA. Teologia della liturgia: Manuale di liturgia. Casalle Monferrato, Piemme, 1998, vol. 2. 3 Cf. HIPÓLITO de Roma, Tradição Apostólica. In TREVIJANA R (Ed.), Patrología. Madrid, BAC, 1994, pp. 140-142. A fé em Jesus Cristo é o centro absoluto de nossas ações litúrgicas. Nos reunimos na fé para celebrar seu mistério pascal. Aos poucos ao longo da história, os ritos foram criando formas, a partir do encontro entre a mensagem evangélica e as culturas dos povos evangelizados. O culto espiritual, como um culto invisível não basta para as comunidades, que devem efetivar e manifestar a sua crença em símbolos, palavras e gestos. Como entendemos, o culto espiritual que os cristãos celebram faz a diferença: com efeito é um culto invisível, mas muito eficaz na ação e nos gestos, desde o momento em que não é somente uma composição de mistérios humanos, mas que o mistério deste culto não é compreensível para os seres humanos.1 O mistério, para ser celebrado, exige um ritual e este ritual vai aos poucos se institucionalizando e ficando sempre mais complexo. Sabemos bem que é incorreto afirmar que o culto se organiza e se institucionaliza com a cristandade, inaugurada pelo Edito de Milão de 313, por Constantino, pois embora não reconhecida pelo poder civil e político, a Igreja vive sua fé em ritos muito criativos, dinâmicos e ricos. Com o reconhecimento do Império Romano, estes ritos ganham uma nova conotação e tornam-se sempre mais sólidos, formais e solenes, refletindo cores e movimentos dos ritos profanos imperiais. A vida litúrgica que se nutria dos acontecimentos históricos e culturais e que era fortemente comunitária, celebrando o mistério em comunhão com a vida, vai se tornando sempre mais jurídica e ritualística.2 Percorrendo as trilhas da história, notamos uma evolução da vida litúrgica da Igreja, enquanto se enriquece fortemente de novos símbolos, movimentos e textos; mas a sua involução também se faz perceber, pois vai se tornando sempre mais jurisdicista, formal e menos espontânea. Não que a criatividade e a inculturaçao cessaram, mas o cuidado com a ortodoxia levou a fixar formas rituais sempre mais rigorosas. A própria obra de Hipólito de Roma, denominada Tradição Apostólica, apresenta um modelo celebrativo para as comunidades, o qual, ao mesmo tempo que garante a correteza dos ritos, propõe formas celebrativas que vão aos poucos se cristalizando nas comunidades.3 ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 55 18.05.07, 10:27 55 A vida litúrgica da Igreja assumiu formas de jurisdicismo e exteriorismo nos séculos medievais, sendo cada vez mais um culto hierárquico, centralizado na Igreja universal, celebrada em ritos esteriotipados, numa linguagem desconhecida. A celebração em Latim, desconhecido pelo povo, com rituais importados de culturas antigas distanciaram o povo do significado da própria celebração.4 As conseqüências são bem evidentes, seja na cristalização do culto, seja na perda do sentido teológico-mistico das celebrações e a materialização do culto. Por outro lado, surge a criação de ritos e celebrações paralelas pelo povo, carregado positivamente de devoções populares, muito ricas, e de superstições, que comprometem o verdadeiro sentido de nossa fé. Em termos de Brasil, a carência de sacerdotes e a escassa presença destes em regiões mais rurais e sertanejas, possibilitaram um grande desenvolvimento de procissões, promessas, peregrinações e outros ritos que são, em nossos dias, uma característica fundamental da vida litúrgica de nossas comunidades. A cristalização mais forte da vida litúrgica aconteceu com a resposta católica às contestações da Reforma, a qual, mais que buscar o sentido mais originário da liturgia cristã, retomou a centralidade do culto hierarquizado, retomou a centralidade do culto, canonizou o Latim como língua exclusiva e determinou uma forma rígida, sem variações, do culto cristão católico. Certamente, houveram muitos valores na reforma litúrgica tridentina, mas fortaleceu-se o sentido de culto externo e clerical, as práticas devocionais, bem como a perda das Sagradas Escrituras como fonte da vida espiritual de nossos fiéis.5 O período barroco transforma a celebração litúrgica numa manifestação artística da cultura católica, com uma tendência as triunfalismo, plasmando-se na exuberância das formas, na musicalidade, nas devoções marianas e santorais excessivas, que firmaram o culto como um espetáculo bonito, mas pouco participativo do povo.6 Estão presentes, no entanto, as preocupações com uma nova visão da Liturgia, como a participação ativa dos fiéis na Ceia Eucarística, a comunhão sob as duas espécies, a participação dos fiéis nas hóstias consagradas no mesmo dia, a língua vernácula. Estes elementos, que se tornam fatores que exigem a reforma litúrgica já haviam sido destacadas no Sínodo de Pistóia,7 na Itália, que infelizmente não foram assumidos pela Igreja, deixando para mais tarde a verdadeira reforma litúrgica provocada pelo Movimento Litúrgico que se originou na segunda metade do século XIX e culminou no Concílio Vaticano II (1962-1965). O nascimento do Movimento Litúrgico faz parte do contexto histórico do Concílio Vaticano II e, especialmente no 56 Espacos_miolo_15_1.p65 4 Cf. S. MARSILI, A liturgia, momento histórico da salvação. São Paulo, Paulus, pp. 68-70. 5 Cf. J. J. FLORES, Introdução à Teologia Litúrgica, op. cit., p. 61. 6 Cf. P. ARGÁRATE, A Igreja celebra Jesus Cristo: Introdução à celebração litúrgica. São Paulo, Paulinas, 1997, pp. 46-47. 7 Os decretos deste sínodo, realizado em 1786, propunham uma reforma litúrgica radical. Embora tenha sido proibido pela igreja oficial, este evento eclesiástico deixou marcas, pois expressava algumas lutas internas dentro da compreensão da Liturgia. Na ocasião, foram propostos alguns passos significativos: proibição da cobrança de sacramentos por parte do clero, participação dos fiéis nas duas espécies eucarísticas, unificação dos altares das igrejas, num único altar principal e redução das procissões devocionais, para despertar maior participação e integração na vida sacramental da comunidade. Cf. A. S. BOGAZ, Celebrar sem fé, é possível? São Paulo, Paulus, 2002, p. 27. A. S. BOGAZ e N. FELICIANO — Um povo que celebra 56 18.05.07, 10:27 8 Idem, p. 28. campo litúrgico, da Constituição Sacrossantum Concilium. Os mosteiros beneditinos tiveram uma contribuição fundamental no período que antecedeu o grande Concílio. Anotamos a atividade litúrgica de Próspero Guéranger (1805-1875) e o Motu Próprio de Pio X (1903) Tra le sollecitudini, que destaca a participação ativa dos fiéis na liturgia: Confirmamos nosso mais vivo desejo que de todas as formas volva a florescer o verdadeiro espírito cristão… encontrado na sua primeira e indispensável fonte, que é a participação ativa nos sagrados mistérios, na oração pública e na solene liturgia. Essa participação se marca pela comunhão sacramental, pela sua frequência e idade mais propícia.8 A Igreja se abre aos novos tempos e não renuncia à sua missão de ser a luz dos povos. O Concílio Vaticano II é esta resposta da Igreja para os novos tempos e a vida litúrgica da Igreja realiza estes bens em nossas comunidades. A partir da reforma proposta pelo Concílio, iniciamos um período de grande força e transformação em nossas celebrações litúrgicas. 2. O ESPÍRITO SOPRA ONDE QUER: AS INTUIÇÕES LITÚRGICAS DE NOSSOS TEMPOS 9 Cf. C. VAGAGGINI – MARSILI, S., Costituizione sulla sacra Liturgia. Torino, LDC, 1964, p. 17; Constituição Sacrosanctum Concilium: sobre a sagrada liturgia. São Paulo, Paulinas, 2002, n. 10. 10 Cf. M. AUGÉ, Espiritualidade litúrgica. São Paulo, Ave Maria, 2002, p. 98. A ansiedade em dinamizar a vida litúrgica da Igreja é uma das motivações do Concílio Vaticano II. Se as ciências humanas e mesmo as outras ciências abordavam novos temas na vida social; se as relações humanas passavam por grandes mutações; e, se os meios de comunicação social renovavam a intercomunicação planetária, a Igreja precisava integrar-se no processo, para continuar sendo a luz iluminadora dos caminhos da humanidade. A pastoral da Igreja e sua vida litúrgica precisam renovar-se para continuarem sendo significativa no cotidiano das pessoas. Considerando que a Liturgia é fonte da vida cristã, de onde se emancipa toda sua força, ela se torna fundamento das relações entre os vários aspectos da vida da Igreja.9 Este é o novo horizonte da vida litúrgica da Igreja. Ela se ilumina da fé dos fiéis e os sustenta, na busca de viver profundamente o mistério cristão e integrá-lo na própria história. Com a coragem de desvincular o mistério pascal das formas rígidas seculares, a liturgia cristã passa a aprofundar o significado de seus temas fundamentais, como memorial, rito, eficácia e ministérios. A comunidade cristã torna-se o sujeito histórico da ação litúrgica. De fato, é a comunidade que na sua existência vive de Cristo, manifesta sua ação na história e o celebra com seus ritos.10 ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 57 18.05.07, 10:27 57 A renovação das intuições da espiritualidade litúrgica propiciam a renovação de suas práticas celebrativas, que vão aos poucos se transformando.11 A Igreja se encontra na liturgia, pois admite que esta é o lugar privilegiado da experiência de fé dos seus fiéis, que trazem diante do altar de Jesus Cristo, como matéria prima da ação litúrgica, suas dores, conquistas e sonhos, em forma de súplicas e agradecimentos. Ainda mais, o instrumental simbólico e lingüístico é formado pelas experiências culturais, étnicas e históricas da própria assembléia. Com isso, passa-se a uma teologia litúrgica que sustente, aprofunde e compreenda os passos do ritual, sua evolução e seus desafios.12 Temos que destacar sempre que a inspiração destas transformações se encontra no próprio Vaticano II; quando se trata da vida litúrgica da Igreja, as celebrações são, entre outras, manifestações da fé viva dos batizados.13 As celebrações de nossas comunidades são reveladoras de nossa fé, em formas culturais e rituais propícias ao encontro da comunidade reunida e seu Senhor. A teologia litúrgica é merecedora de créditos. Com a nova concepção de liturgia, emanada do Concílio Vaticano II, os pastores da Igreja, bem como os formadores da ciência teológica e, finalmente, todos os fiéis, reconhecem que é preciso compreender o significado da vida litúrgica e como integrá-lo em nossas vidas. Superamos, assim, a fase do rubricismo e entramos na fase da fecundidade litúrgica, onde as rubricas deixam de ser o cerne das ações litúrgicas, com significado em si mesmas e se tornam instrumentos dos fundamentos teológicos da liturgia, exigindo assim renovação, atualização, inserção cultural e interação com a assembléia.14 A memória do mistério pascal não é simplesmente uma história que se repete ao longo dos séculos de forma estável e cristalizada; antes exige a iluminação divina, para compreender como este memorial é vivido, celebrado pelo nosso povo, na sua caminhada cotidiana. A partir desta interação entre a história milenar do evento pascal e a história cotidiana dos povos, os ritos passam a ser revistos e reordenados, promovendo a renovação litúrgica. Reconhecemos o sopro do Espírito na vida litúrgica da Igreja, o que nos provoca a novo aprofundamento, atualização e compreensão dos ritos litúrgicos e da pastoral litúrgica. Os tempos pós-conciliares foram difíceis e belos na vida da Igreja, pois havia um grande entusiasmo e vontade de dinamizar e renovar os ritos litúrgicos. Assim, a criatividade, a inculturação e a adaptação tornaram-se palavras de ordem. Todas 58 Espacos_miolo_15_1.p65 11 Idem, p. 99. 12 Cf. P. ARGÁRATE, A Igreja celebra Jesus Cristo, op. cit., pp. 207-208. Para o autor trata-se de dar à teologia seu sentido teológico e à liturgia sua dimensão litúrgica. 13 Constituição Sacrosantum Concilium, op. cit., n. 41. 14 Cf. A. NOCENT, La messa prima e dopo San Pio V. Casale Monferrato, Piemme, 1985, pp. 83-84. A. S. BOGAZ e N. FELICIANO — Um povo que celebra 58 18.05.07, 10:27 15 Cf. P. ARGÁRATE, A Igreja celebra Jesus Cristo, op. cit., p. 55. as comunidades queriam implantar formas celebrativas que contemplassem o novo espírito litúrgico, considerando sua história, sua realidade, sua cultura. Donde tivemos a grande inclusão das questões sociais nas celebrações, além da aproximação cultural das etnias e as modelações do repertório litúrgico, a partir do rosto das assembléias celebrantes. Podemos considerar que esta foi uma tarefa fenomenal das comunidades cristãs, sem precedentes na história.15 Desde então, a Igreja se prepara para celebrar o mistério de Cristo no mundo, com as culturas e simbologias do mundo. Celebrar Jesus Cristo no mundo, com a rosto do mundo, para transformar o mundo. Com um desafio ainda mais delicado: sem perder a unidade universal da Igreja, representada historicamente pelos rituais romanos. 3. BRISA E VENTANIA: OS MOVIMENTOS DA AÇÃO LITÚRGICA NA IGREJA Os padres conciliares do Concílio Vaticano II e com eles todos os presbíteros, diáconos, religiosos e religiosas e especialmente as forças vivas dos leigos nas comunidades assumiram profundamente os princípios e o espírito da renovação da Igreja e, por conseqüência, da vida litúrgica de nossas comunidades e seus fiéis. As primeiras décadas foram muito importantes e deram passos firmes e seguros nesta renovação, não obstante incorressem em desvios a serem corrigidos na própria experiência cristã. As conferências episcopais no continente latino-americano foram fundamentais para impulsionar a vida litúrgica da Igreja. A Conferência de Medellin (Colômbia, 1968) ressalta a tríplice dimensão de Jesus Cristo, que é celebrado como profeta, voz viva na realidade das comunidades; como pastor, protetor e libertador do povo e como liturgo, celebrante da vida em todas as suas forças. Esta vida litúrgica se enriquece da dimensão social e política. Alguns elementos são fundamentais, como a adaptação aos gênios da culturas, a acolhida da pluralidade e a abertura à experiência vital entre fé, liturgia e vida cotidiana. Neste período, conhecemos uma grande dinamização da vida litúrgica, como conseqüência das celebrações em pequenos grupos, da intensificação das, celebrações comunitárias, valorização das devoções populares e dos meios de comunicação social. A Conferência de Puebla (México, 1979) eleva a comunhão e participação dos fiéis, particularmente o resgate dos pobres e suas experiências de fé e de vida comunitária. Neste período, ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 59 18.05.07, 10:27 59 notava-se uma grande preocupação para superar o formalismo e o neo-ritualismo. Cuidando sempre da unidade eclesial, destacava-se a importância da criatividade e dos valores dos grupos étnicos e etários. Houve, nestas décadas, uma grande secularização da vida litúrgica, a questão social torna-se vital para os ritos e a espiritualidade litúrgica e os maltratados do tecido social são assumidos como referência da profecia no culto cristão. Os pequeninos, os mais humildes são aqueles que vivem em suas vidas as agruras do próprio Cristo.16 Por sua vez, a Conferência de Santo Domingo (1992) ressaltou a dinâmica comunicativa da liturgia, cuidando da pedagogia dos sinais. A criatividade e a introdução de elementos culturais são valorizados como elementos da animação litúrgica, embora haja sempre a preocupação com a fidelidade à tradição e a unidade com a Igreja universal. A introdução dos símbolos deve ser incrementada com expressões e devoções das comunidades eclesiais, aportando à vida litúrgica as formas, sinais e expressões culturais dos povos.17 Este período é muito fecundo e elevado, do ponto de vista espiritual, comunitário e simbólico, tornando a liturgia uma expressão viva de nossa fé e de nossa história. Na vida litúrgica encontra-se a vida do povo com a vida e a mensagem de Cristo, no mesmo rito e na mesma comunhão. Mas o processo não está finalizado, afinal, além da inculturação nas várias etnias, não se pode esquecer o imenso desafio da inculturação no meio urbano e no meio dos pobres.18 Estes passos nos preparam para vivermos sempre mais a Conferência de Aparecida, como o evento que nos aporta aos tempos contemporâneos. Nosso olhar se envaidece ainda mais, quando contemplamos os caminhos da vida litúrgica no Brasil. Certamente, todos os países fizeram experiências preciosas, mas nossa realidade litúrgica, apesar dos breves desvios, deixaram marcas que nos inserem na vida da Igreja universal, sem perder a integração com a fé vivida por nosso povo simples, devoto e muito empobrecido. Nos primeiros anos pós-conciliares, constatou-se a celebração nas línguas vernáculas, a mudança de estilo celebrativo, a simplificação dos ritos, a alegria e participação dos cantos e um grande número de cursos de formação litúrgica. Na década de 70, tivemos a realização das traduções dos rituais, embora sem grandes adaptações, por certo despreparo e urgência dos livros em vernáculo.19 A liturgia assumiu a riqueza das experiências e documentos eclesiais de dimensão social. Mesmo os meses temáticos, as 60 Espacos_miolo_15_1.p65 16 Cf. L. MALDONADO, A ação litúrgica, sacramento e celebração. São Paulo, Paulus, 1998, pp. 97-100. 17 Cf. A. BECKHÄUSER, Os fun- damentos da Sagrada Liturgia. Petrópolis, Vozes, 2004, pp. 284-290. 18 Cf. G. LYRIO ROCHA, 40º. Aniversário da Sacrosanctum Concilium. Apostila, p. 7. 19 Cf. CNBB, Animação da vida litúrgica no Brasil, São Paulo, Paulinas, 1989, n. 43. A primeira parte deste trabalho apresenta um panorama da reforma litúrgica no Brasil, suas conquistas, seus desvios e seus desafios. Merecem ainda atenção os desafios apresentados: participação, criatividade e adaptação, civilização urbanoindustrial, o ano litúrgico e os meses temáticos, a festas civis e religiosas, a inserção da piedade popular na liturgia, a inculturação e a fidelidade à tradição, entre outros (pp. 17-18). A. S. BOGAZ e N. FELICIANO — Um povo que celebra 60 18.05.07, 10:27 20 Cf. P. ARGÁRATE, A Igreja celebra Jesus Cristo, op. cit, pp. 66-71: é uma descrição da evolução da ministerialidade dentro dos atos litúrgicos, suas razões e suas preocupações. 21 CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E DOUTRINA DOS SACRAMENTOS, Diretório sobre piedade popular e liturgia: princípios e orientações. São Paulo, Paulinas, 2003, pp. 117-120. 22 Cf. A. S. BOGAZ, Celebrar sem fé, é possivel? op. cit., p. 66-69. festas religiosas e civis, bem como as Campanhas da Fraternidade realizadas no Brasil dinamizaram a vida litúrgica das comunidades celebrantes. A beleza e a profecia dos ministérios leigos especialmente nas periferias e nas comunidades eclesiais de base são uma página bonita da vida litúrgica de nossa Igreja.20 Nas décadas posteriores ao Concílio, houve grande inclusão de valores culturais dentro dos rituais, criando as celebrações etárias (para crianças, jovens, casais, idosos, etc.) e as celebrações eucarísticas étnicas (missa crioula, nordestina, afro, indígena, migrantes, vaqueiro, camponesa, caipira, sertaneja, entre outras). As celebrações litúrgicas manifestaram forte espírito profético e comprometimento com as lutas sociais dos grupos oprimidos. As procissões, novenas, vias sacras eram a expressão da interação entre o mistério pascal de Cristo encarnado na realidade das comunidades, compondo uma aproximação entre o mistério pascal de Jesus Cristo e de nosso povo.21 Com a delicada preocupação de não perder o sentido da unidade universal da liturgia, popularizou-se o rito, simplificou-se as rubricas, enriquecendo com as culturas e a religiosidade popular as nossas celebrações.22 Nos últimos anos, particularmente nas décadas de 90 e no início deste milênio, sopraram novos ventos, com força de ventania. Esses sopros merecem atenção muito particular e ainda exigem uma análise crítica mais cuidadosa 4. ENCRUZILHADAS, BINÔMIOS DA VIDA LITÚRGICA: AS TENDÊNCIAS DA AÇÃO LITÚRGICA EM NOSSAS COMUNIDADES Nas últimas décadas, particularmente ao redor das celebrações de passagem do milênio, vivemos momentos curiosos na vida litúrgica do Brasil. Sempre é difícil admitir as coisas mais óbvias, sobretudo quando elas são mais chocantes, mas tivemos que nos curvar diante da evidência dos fatos. A vida litúrgica foi assaltada por modelos pouco ortodoxos de celebrações, que visavam particularmente o acesso às grandes multidões de fiéis, como forma, inclusive, de afrontar as grandes celebrações de massa presentes nos grupos cristãos pentecostais evangélicos. Estes por sua vez, de forma geral, serviam-se (e ainda se servem) de formas de propagação de seus grupos, por meio de sistemas modernos de empresariamento, como marketing, leasing e outras metodologias mercadológicas. Isso do ponto de vista estrutural, pois do ponto de vista da espiritualidade, servem-se de coações como o medo e ameaças e da propaganda de milagres, similares às loterias, onde os deESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 61 18.05.07, 10:27 61 sesperados acorrem na esperança de serem contemplados. Falamos de pseudo-religiões, desconectadas da ética e da racionalidade, necessárias para uma vida religiosa salutar. Voltemos aos nossos celeiros litúrgicos. A vida litúrgica de nossas comunidades tomaram dois rumos diferentes e delicados. Por um lado, as práticas litúrgicas com a tradição pós-conciliar, de engajamento nas realidades mais dramáticas do povo, optando pelo profetismo e pela inserção. Trata-se de grupos pequenos, cada vez mais silenciosos e discretos, esquecidos pelos meios de comunicação social. Estes grupos que se nutrem da espiritualidade das Comunidades Eclesiais de Base e do aprofundamento bíblico continuam sua caminhada e participam discretamente das lutas do povo. Estão nos porões, quase que na diáspora da Igreja. Por outro lado, grandes movimentos mais espiritualistas, com tendência ao pentecostalismo, desta vez de matriz católica, cresceram e adentraram as massas religiosas, marcadas por grandes celebrações, fortemente assinaladas pelos meios de comunicação social, talvez por serem considerados inofensivos às estruturas sociais, devido ao seu aspecto mais louvante e personalista. No campo litúrgico, deparamo-nos diante de uma grande encruzilhada, que exige opções, uma vez que nossa espiritualidade nos propõe novos modelos celebrativos e estes, nova forma de viver. Vemos alguns aspectos destas encruzilhadas, que são mais significativos: Vamos caracterizá-los como binômios de nossa espiritualidade litúrgica. 4.1. Modelo de celebração Muitas celebrações ocorrem em pequenos grupos, comunidades afinadas e afins, com uma caminhada particular bem específica. São pequenos grupos que se reúnem regularmente e que comungam os mesmos ideais, como grupos de rua ou étnicos, entre tantos. Estes grupos celebram em locais mais fechados, partilham os fatos de suas vidas e se fortalecem na sua caminhada. Encontramos igualmente, muito mais visíveis as celebrações de grandes grupos, com traços litúrgicos muito diversos.23 São celebrações mais explosivas, cheias de cantos, instrumentos e movimentos, ao modelo de grandes encontros ou espetáculos, onde todos são entusiasmados por animadores, destacando a força de ser cristão e a felicidade pessoal, como fruto da graça de ser filhos e filhas de Deus. Estes dois modelos estão presentes na Igreja do Brasil e, embora o modelo mais sóbrio e silencioso não seja anunciado em grandes canais de comunicação, têm muita presença em nossas comunidades. 62 Espacos_miolo_15_1.p65 23 Cf. N. CASTRO TEIXEIRA, Comunicação na Liturgia São Paulo, Paulinas, 2003, pp. 220223. Nesta passagem o autor trata das celebrações litúrgicas nos meios de comunicação social, avaliando sua importância e sua validade pastoral. A. S. BOGAZ e N. FELICIANO — Um povo que celebra 62 18.05.07, 10:27 4.2. Presença real do divino Na celebração litúrgica buscamos o Cristo, o Senhor de nossas vidas, que alimenta nossos espíritos e fortalece nossa caminhada. Muitas celebrações propõem este encontro com o Senhor numa direção mais vertical, expressando sua presença nos mistérios celebrados, por meio da contemplação e certa fuga da realidade, esquecendo as agruras cotidianas, para elevar-se marcando o encontro com o Senhor. As celebrações com conotação mais sociológica anotam a presença real do Senhor na vida das pessoas, professando que a história é o lugar místico da presença divina no mundo. Assim, o encontro com Deus se realiza na contemplação e no afago ao pobre, ao sofredor, enfim, no encontro com os filhos de Deus, mormente os mais miseráveis. Nenhum destes grupos, negará jamais a outra dimensão, mas certamente dará mais atenção à sua concepção de espiritualidade que lhe é mais agradável e verdadeira. 4.3. Alfaias sagradas 24 Cf. G. LYRIO ROCHA, 40º aniversário da Sacrosanctum Concilium, op. cit., p. 8. Todo aparato litúrgico é fundamental para vivermos o rito com mais intensidade e clareza. Notamos, no entanto, que estes objetos apresentam grande variação em nossas celebrações. Para além dos exageros que podem ocorrer, onde estas alfaias desandam para o carnavalesco e o exibicionismo, ambos passíveis de críticas, notamos duas posturas bem diferentes. A postura mais conservadora (desculpamo-nos por este conceito, muito criticável) estrutura suas alfaias em formas mais ricas e tradicionais, cuidando das roupas e recuperando elementos das alfaias que haviam caído em desuso, retomando as cores fortes (dourado, prateado), com traços barrocos e muitos enfeites. Os objetos do altar são mais ricos e mais valiosos, do ponto de vista do valor comercial. Em outras comunidades, que primam pela inserção e pela simplicidade, notamos que as alfaias são simples e as vestimentas dos ministros menos enfeitadas, expurgando a tendência ao barroco de nossas alfaias tradicionais. A própria estola dos celebrantes, seus desenhos e seus modelos, revela sua espiritualidade e sua formação teológica. Igualmente seus trajes revelam sua inspiração litúrgica fundamental. Não estamos falando de contradições, erros ou heresias versus ortodoxia; apenas a convergência da espiritualidade de nossas comunidades celebrantes. Ainda, quando falamos dos livros litúrgicos, entendemos que os ministros das celebrações devem ser o mediador entre o ritual e a assembléia, entre as normas litúrgicas e a dinâmica da vida comunitária.24 ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 63 18.05.07, 10:27 63 4.4. Cantorias litúrgicas Quando observamos nossas comunidades, notamos seu rosto exposto nas práticas litúrgicas. Um elemento basilar para entender esta encruzilhada de nossa vida litúrgica são os cantos. Não estamos tratando da incorreteza dos cantos escolhidos, quando trazemos para a celebração dos sacramentos (sobretudo a Ceia Eucarística) os cantos compostos para grupos de oração e louvor. Esses erros são comuns, mas são facilmente corrigíveis, se a equipe de canto for solícita ao espirito da liturgia e suas partes. Pela poesia dos cantos, pelos instrumentos e pelos ritmos reconhecemos facilmente modelos variados de espiritualidade, expressa no canto litúrgico.25 Notamos cantos mais espiritualizantes, com aclamações e louvações emocionadas a cantos mais engajados, trazendo os dramas humanos para dentro da mensagem dos cantos, unindo assim a mensagem evangélica com a história da comunidade. Estes dois modelos de cantos litúrgicos, com suas variações entre eles, expressam seguramente a espiritualidade litúrgica.26 Não estão, certamente, em oposição, pois, na correteza, ambos expressam o mistério pascal de Jesus Cristo, mas denotam a diversidade das tendências dos modelos litúrgicos. É importante que se tenha em mente que o canto litúrgico deve estar em sintonia com o mistério celebrado na Liturgia; e mais, deve ajudar a comunidade a fazer a experiência desse mistério da vida. No entanto, notamos uma forte tendência de se fazer da celebração uma ocasião de apresentação de espetáculo musical na liturgia. O desafio, portanto, é cantar a Liturgia. 25 N. CASTRO TEIXEIRA, Comunicação na Liturgia, op. cit., pp. 71-79. Sobre o canto, estamos sempre buscando formas de discernir suas novas formas concernentes ao espírito litúrgico. 26 CNBB, A música litúrgica no Brasil. São Paulo, Paulus, 1999, Estudos, 79, pp. 72-85. 4.5. Fontes da espiritualidade Finalmente, compreendemos que a vida litúrgica se nutre de duas fontes da espiritualidade de nossa Igreja no Brasil. Num modelo de Igreja, a liturgia vive o espírito da teologia da libertação tem a missão de descobrir a voz de Deus na sociedade, servindo-se da revelação e dos dogmas, para descobrir o verdadeiro seguimento de Jesus Cristo. Descobre-se a beleza das culturas humanas, a tragédia da opressão dos pobres, a nobreza da presença feminina e a importância dos ministérios. A liturgia tornase a voz profética da luta pela justiça, da solidariedade entre os povos e da transformação histórica. Noutra fonte, a vida litúrgica se nutre da espiritualidade de Pentecostes. Vida litúrgica, como toda a Igreja católica inaugura um novo estilo de pastoral e com nova força espiritual. Surgem em todas comunidades grupos de oração, com tendência pentecostal, valorizando a intercessão e as louvações mais efervescentes.27 No campo litúrgico, 64 Espacos_miolo_15_1.p65 27 Cf. A. S. BOGAZ – R. THOMAZZELLA, Edificar a Igreja, século XXI. Campinas, ASJ, 2006, p. 92. A. S. BOGAZ e N. FELICIANO — Um povo que celebra 64 18.05.07, 10:27 28 Idem, p. 93. despertam-se líderes espirituais, assumidos como animadores de culto, que se tornam líderes espirituais e congregam grandes grupos em noites de oração, missas festivas e celebrações festivas. Apesar da dimensão apologética, a espiritualidade carismática renovou a alegria de ser católico, diante do crescimento dos grupos evangélicos. A Igreja fomentada pela espiritualidade carismática eleva a devoção Mariana e a piedade eucarística, com momentos elevados de contemplação e louvação.28 5. NAS ÁGUAS DO RIO PARAÍBA: A VIDA LITÚRGICA EM TEMPOS DE UMA NOVA CONFERÊNCIA EPISCOPAL 29 Cf. L. MALDONADO, A ação litúrgica, sacramento e celebração, op. cit., p. 107. Muitos e muitos anos, décadas e mesmo séculos se passaram, desde que os pescadores, cheios de fé e esperança, oprimidos e confiantes, lançaram as redes nas águas barrentas do Rio Paraíba. As águas de nossos tempos continuam barrentas. Temos a impressão que não tem peixes no rio, mas precisamos confiar e pescar. Vivemos tempo de pouca esperança, talvez mesmo um parco sentimento de profecia nas nossas comunidades eclesiais. A teologia bíblica, a hermenêutica e as novas visões de liturgia nos mostram a relação intrínseca entre culto e vida e a dimensão existencial e profética dos ritos.29 Mais ainda, vivemos tempos de injustiças silenciadas e escondidas, de governantes corruptos, de comandantes bélicos no mundo e de confusão religiosa, onde o mercado da fé tem suas ações em grande valorização. Mas, com a força de Maria de Aparecida, que socorreu os pescadores naquela noite triste de agonia, nossa gente, com fé, espera tempos melhores. Nas últimas décadas, surgiram novos movimentos na Igreja, com o objetivo de fortalecer e animar a vida eclesial. Estes novos movimentos reforçaram a vida da igreja e particularmente a vida consagrada no Brasil. Surgiram vários movimentos ou grupos religiosos, revivendo espiritualidades tradicionais, sobretudo oriundas no tempo medieval. Neste período, ao lado de grupos que se dedicavam à inserção nos meios mais pobres e de conflitos, denominadas pastorais de fronteira, surgem os movimentos de seguimento radical a Jesus Cristo. Nestes anos, surgiram grupos de consagração religiosa oficial ou espiritual, despertando para a necessidade de viver os votos religiosos de forma mais radical, particularmente a pobreza. Alguns grupos que surgiram procuram viver na austeridade, como se tivessem imigrado entre nós os movimentos franESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 65 18.05.07, 10:27 65 ciscanos medievais. Estes grupos procuram viver na pobreza mais radical, vestindo-se com simplicidade e habitando em meios mais humildes. Destacamos particularmente a Toca de Assis. Outros grupos, que se vestem em hábitos medievais, como expressão de consagração e pobreza, como Aliança da Misericórdia, Shalom, Servidores de Javé, entre outros. Numa cisão da tradicional TFP, surgiu e cresceu um grupo de imitação dos movimentos de cavaleiros medievais, denominado Arautos do Evangelho. Suas vestimentas e sua espiritualidade reporta ao estilo de cristandade combativa e de exibição da catolicidade. Em nossa Igreja atual, crescem grupos conservadores de origem européia, como os Legionários de Cristo, os Neo-catecumenais, a Opus Dei, a Comunhão e Libertação, que, apesar de sua autonomia e sua introspecção, encontram grande número de seguidores. O neo-catolicismo é uma expressão da Igreja em nossos dias que fortalece a espiritualidade católica, alimenta-se de sua própria espiritualidade e suas devoções e contrapõe-se aos movimentos evangélicos de nossa sociedade. O neo-catolicismo é uma força na Igreja que procura viver, embora anacronicamente, a consagração a Deus, em votos e na prática das virtudes.30 30 Cf. A. S. BOGAZ – R. THOMAZZELLA, Edificar a Igreja, século XXI, op. cit., pp. 94-96. PARA TERMINAR: TIRAR AS REDES DAS ÁGUAS Quando os pescadores levantaram as redes, vieram os peixes. Antes dos peixes, encontraram-se com Maria a Mãe de Jesus, numa simbologia humilde e delicada de terracota. E ainda por cima, em duas partes. A fé exige insistência, perseverança e humildade. No ritmo de Deus! A nova Conferência dos Bispos da América Latina deverá retirar das águas barrentas de nossa realidade socio-política a força da fé, simbolizada na imagem de Maria, Mãe de Deus e dos nossos povos. Mas haverá de trazer para os fiéis uma farta pescaria. Deveremos renovar nossas pastorais, nossa missão evangelizadora, nossas atividades missionárias e a força para a luta dos povos maltratados, sejam indígenas, afro-descendentes, crianças e jovens em penúria, camponeses, caipiras e caboclos, mulheres humilhadas e todos os fiéis que esperam por um novo tempo. O olhar de Puebla na sua introdução, que despertava para a Igreja os rostos dos oprimidos, continua a sondar a realidade de nossa gente, em formas diferentes, ainda sofrendo dores e torturas cruéis. 66 Espacos_miolo_15_1.p65 A. S. BOGAZ e N. FELICIANO — Um povo que celebra 66 18.05.07, 10:28 31 Cf. A. BECKHÄUSER, Os fundamentos da Sagrada Liturgia, op. cit., pp. 306-314. A vida litúrgica deverá buscar caminhos para unir os binômios da nossa espiritualidade. Sem jamais abandonar a dimensão mistérica das celebrações, incorporar as lutas dos povos e, inserindo-se na história concreta de nossos fiéis, animá-los, pela celebração dos ritos, na busca de um novo porvir. A Pastoral Litúrgica deverá abrir caminhos para esta nova conquista da Igreja. Novos tempos da Igreja exigem a organização de equipes de celebração, equipe de pastoral litúrgica e formação litúrgica, para tratarem os temas como cantos, ministérios, gestualidade, subsídios, símbolos, adapatações e criatividade, tanto nos rituais sacramentários, como em todos os demais rituais.31 Sem estes elementos a vida litúrgica ficará em situação deprimente, pior que nos tempos do ritualismo, pois os paradigmas do ritualismo e do rigorismo foram quebrados e esta nova fase exige reordenamento da vida litúrgica, buscando sínteses, purificações e discernimento nas atividades dos grupos e equipes de liturgia. Sonhamos com comunidades, teologia e magistério que alimentem a vida litúrgica com o testemunho da vida, com a abertura ao espírito e a força da teologia litúrgica, como reflexão desta caminhada; esperamos por comunidades celebrantes que valorizem os fatos da história, a realidade dos pobres e os apelos do Espírito Santo e, finalmente, lutamos com nossos dons e nossa humildade, para que os fiéis sintam nos serviços litúrgicos a graça divina que vem fortalecer sua caminhada na comunidade eclesial e nas suas realidades civis cotidianas. A liturgia é o espaço de crescimento na fé e de fortalecimento dos propósitos de viver o Reino de Deus na marcha cotidiana: animar os vínculos espaço-temporais e tanscendê-los, na solidificação dos vínculos eternos. Voltamos nossos olhares para Aparecida, para que nos inebrie de esperança e fé, para que a vida litúrgica de nossas comunidades tenha a força e o fervor de nossos antepassados, com a dinâmica e a criatividade destes tempos modernos. ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 67 18.05.07, 10:28 67 REVISTA E S P A Ç O S Estamos enviando-lhe o número 15/1 de nossa revista. Esperamos continuar a ser úteis. Para algumas comunidades e seminários mais pobres mandamos nossa revista gratuitamente. Outros tiveram a gentileza de mandar a colaboração que lhes pedíamos pelo serviço que estávamos prestando. Queremos agradecer aos que pagam suas assinaturas e nos permitem de continuar trabalhando. Mas gostaríamos de receber a participação de todos. Nossos recursos para mandar alguns números gratuitos estão perto do limite. Em breve estaremos restringindo nosso envio para aqueles que pagam sua assinatura. Experimente pagar já neste ano se você não pagou no ano passado. Acho que nossa revista merece. A Redação. ASSINATURAS Para o Brasil e América Latina: 15 U$A ou valor correspondente em real. Para outros países: 25 U$A Envie: cheque cruzado pagável em São Paulo em nome de: ASSOCIAÇÃO SÃO PAULO DE ESTUDOS SUPERIORES ou, se preferir: Deposite em nome do ASSOCIAÇÃO SÃO PAULO DE ESTUDOS SUPERIORES Banco Bradesco, Ag. 2720-0, c/c 4950-6, e mande carta com o comprovante e explicando o destino de seu pagamento. Espacos_miolo_15_1.p65 68 18.05.07, 10:28 PREPARANDO O V CELAM: TEMAS ESQUECIDOS1 Maria Inês de Castro Millen* * Professora do curso de Teologia do CES/JF. 1 Esta contribuição foi oferecida na aula inaugural do ano letivo no ITESP. Em novembro de 2006 estive em Bogotá, para um Seminário de Mulheres da América Latina e Caribe, organizado pelo CELAM, em preparação à Conferência de Aparecida. Indicada pela CNBB, representava o Brasil nesta ocasião juntamente com outras dezoito mulheres dos demais países latino-americanos e caribenhos. Fomos motivadas a participar a partir de uma questão, a nós enviada antecipadamente: realidade e processos atuais na AL e Caribe mais determinantes para nossa sociedade e para a Igreja que podem ser considerados como sinais de vida ou, pelo contrário, sinais de enfermidade e de morte. O texto que compus e enviei previamente ao CELAM, depois de dialogar com mulheres provenientes de diversos setores no Brasil, pode ser assim resumido: Vivemos um tempo de transição e nele estão presentes sinais positivos e negativos, que precisam ser desvelados e acolhidos em sua ambigüidade. Começamos apontando os sinais de vida, seguindo a indicação do Papa João XXIII, que, por ocasião do Concílio Vaticano II, diz que a observação dos sinais dos tempos deve primeiramente permitir a identificação dos sinais positivos, geradores de vida, e só depois a dos sinais negativos que devem ser vistos como desafios a serem enfrentados. ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 69 18.05.07, 10:28 69 SINAIS DE VIDA: Uma série de fenômenos pode ser arrolados como sinais de vida: a valorização da pluralidade e biodiversidade como riqueza; o desenvolvimento das ciências e das novas tecnologias; as novas possibilidades comunicativas; o fomento da liberdade individual e coletiva e a real possibilidade da autonomia dos sujeitos e das instituições; a consciência de um mundo que necessita expressar a solidariedade e fazer do diálogo um instrumento indispensável; o surgimento de projetos sociais que valorizam e defendem a vida; as pastorais e movimentos eclesiais que se articulam em função das necessidades do povo sofrido; a perspectiva de uma Igreja Povo de Deus, toda ministerial, voltada para a comunhão e a participação; as Comunidades eclesiais de base; o rosto misericordioso e paraclético de uma Igreja que se apressa em salvar e curar mais que julgar e condenar; o incentivo à formação e participação laica nos diversos setores e organismos eclesiais. SINAIS DE ENFERMIDADE E MORTE, VISTOS COMO UM GRANDE DESAFIO: Por outro lado, alguns aspectos de nossa realidade apresentam-se como sinais de morte, ou pelo menos, como grandes e consideráveis desafios: a injustiça social e suas funestas conseqüências; o preconceito que mata e exclui por múltiplas razões; a violência (individual, grupal e estrutural) considerada a partir de suas causas e suas conseqüências; a situação das mulheres que enfrentam, hoje, muitas jornadas de trabalho e ainda são desrespeitadas e desconsideradas pela sociedade e pelas instituições machistas; a situação dos homens que, educados para cumprirem um papel social verificado pela força e pelo sucesso conseguido a qualquer preço, encontram-se perdidos da sua verdadeira identidade pessoal, vivendo sufocados pela própria solidão e desamparo, tornando-se violentos e se refugiando muitas vezes na bebida, nas drogas e no jogo; a situação das crianças e dos jovens que, muitas vezes, sem infância, sem futuro, sem esperanças, sem referências significativas, sem amor, sem escola, sem assistência, sem alimento, sem casa, vítimas de maus tratos e obrigados ao trabalho prematuro, se encontram destinados a uma vida triste e a uma morte prematura; a indiferença, reverso do amor, fruto maduro do individualismo; o pouco investimento na educação; a corrupção dos bons; a situação da Igreja quando se deixa seduzir pelas tentações satânicas do dinheiro, do poder e do privilégio/prestígio. 70 Espacos_miolo_15_1.p65 M. I. DE C. MILLEN — Preparando o V CELAM: Temas esquecidos 70 18.05.07, 10:28 O Seminário em si teve a duração de três dias e reuniu vinte e uma pessoas; o Cardeal Presidente do CELAM, o atual secretário e dezenove mulheres representando os diversos países estiveram presentes e participando. Pessoalmente, confesso que senti um certo desconforto nesta participação, pois nos textos recebidos e nas discussões lá desenvolvidas percebi a quase ausência total de temas muito caros à Igreja latino-americana neste nosso tempo pós-conciliar. Para melhor compreensão deste momento, sintetizo o que estou chamando de temas esquecidos: O próprio tema da Conferência. Após uma bem posta introdução do Secretário geral do CELAM, que justificou o tema: Discípulos e missionários de Jesus, para que nele nossos povos tenham vida, o próprio Jesus, o Evangelho e o Reino de Deus ficaram esquecidos. Toda a ênfase recaiu sobre a Igreja e seus projetos. A categoria sinais dos tempos foi desconsiderada na sua matriz histórica mais ampla e retomada unicamente a partir da Igreja. O ser humano concreto também esteve ausente: aquele que pode ser situado, denominado. A antropologia que sustentou o discurso foi a essencialista, que não leva a sério a existência, a história, a evolução, a ciência, o contexto. O que apareceu foi o ser humano sem gênero, sem nome, sem história, sem cultura, sem etnia, sem cor, sem classe social. Algumas categorias foram desconsideradas: os pobres, os migrantes, os indígenas, os afro-descendentes, as próprias mulheres. Estas foram consideradas de modo preferencial a partir de sua função materna e familiar. O ser humano mais considerado: aquele que tem tudo, que pode tudo, mas que está entediado, esvaziado, sem razões, em crise de sentido. O real humano latino-americano pobre, desamparado, adoecido, sofrido, oprimido, cuja crise maior é a da sobrevivência e não a da existência, não apareceu concretamente. Não foram nomeadas e relembradas como significativas para alavancar a Conferência de Aparecida as outras quatro Conferências anteriores e nem mesmo o Concílio Vaticano II. Expressões mal vistas: gênero, ecologia, direitos humanos, direitos e saúde reprodutiva e sexual, tolerância, feminismo, teorias sociais, evolução, libertação, acesso à terra, inter-religiosidade, culturalismo. Todas estas categorias foram consideradas ideologias perigosas, pois suscitadas por ideais comunistas e ateus, que, no fundo, tentam destruir os valores cristãos e, sobretudo, a família. A vida foi considerada de forma redutora, pois se privilegiou quase de modo exclusivo a vida do embrião e a do doente ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 71 18.05.07, 10:28 71 terminal. Aborto, contracepção e eutanásia apareceram como os temas de maior relevância para a América Latina. Não se considerou a vida dos que estão enfrentando as batalhas cotidianas, nem a vida do planeta. Os que são abortados na história, os pobres e a Terra continuaram esquecidos. A família foi considerada em termos de natural, normal, sadia. A mulher é a grande responsável pelo sucesso ou fracasso das famílias, caso priorize ou não o seu lar, e os grandes inimigos dos tempos atuais são o divórcio, a mentalidade contraceptiva e abortista e as uniões de fato, pois adoecem as famílias e a colocam em situação de perigosa anormalidade. A preocupação com a situação de desumanização das pessoas, apontada pelo Vaticano II e pelas demais conferências latino-americanas, foi substituída pela preocupação com a felicidade do ser humano sem a devida pergunta: no que consiste a felicidade? O foco é o mesmo para os ricos e para os pobres? Expressões como vocação para o céu e cidadãos do céu, foram usadas de forma redutora, desconsiderando o Reino que é já e ainda não. A única história, que é também história da salvação, a encarnação de Jesus, a cruz de Jesus, os crucificados da história e a necessária construção de uma vida que sinalize os tempos futuros foram desconsiderados. A preocupação com a defesa da Igreja foi maior do que com o anúncio do Reino. Tive a impressão de que a prioridade estava posta no marketing católico, pois o que aparece é a necessidade de buscar cada vez mais pessoas para a Igreja e não para Deus. Faltou a disposição para o diálogo ecumênico, inter-religioso, com as ciências, com o mundo intelectual, com os formadores de opinião, com o mundo secularizado. Esta foi uma percepção que não me causou poucas angústias e preocupações. Apesar disto tudo e, talvez, por causa disto tudo, sinto uma grande esperança. Creio que a V Conferência será um momento de graça especial, pois além de quem convoca e dos que são convocados, lá estarão presentes, sobretudo, o Espírito Santo de Deus e a Senhora Aparecida, estrela da evangelização, padroeira do Brasil, que não deixará de fora de sua casa e de seus cuidados maternais os pobres, os sofridos, os necessitados e todos aqueles que compõem o rosto concreto desta Igreja tão fecunda da América Latina, regada muitas vezes pelo sangue de seus inúmeros mártires. Que Deus abençoe e ilumine a todos que lá nos representarão é, neste momento, o meu maior e melhor desejo. 72 Espacos_miolo_15_1.p65 M. I. DE C. MILLEN — Preparando o V CELAM: Temas esquecidos 72 18.05.07, 10:28 NOTA BIBLIOGRÁFICA OPERÁRIOS DE UMA VINHA ESTÉRIL. Uma radiografia da crise das missões jesuíticas no Brasil (Século XVI e século XVIII) Ênio José da Costa Brito* *Professor do programa de estudos pós-graduados PUC/SP e da Unifai. Resumo: Enio Costa Brito percorre uma obra de Castelnau-L’Estoile que por sua vez seleciona um momento do Brasil Colônia e dentro deste âmbito, os desafios enfrentados pela Companhia de Jesus, especialmente no que diz respeito às opções entre as aldeias e os colégios. Os quarenta anos entre o final do Século XVI e o início do século XVII são retratados, no que diz respeito à atividade missionária jesuítica a partir da documentação elaborada pela Ordem. Os limites quanto à realização dos objetivos e nas relações internas são evidenciados. Castelnau-L’Estoile chama a atenção de que a avaliação crítica dos trabalhos na vinha estéril foi o passo decisivo para a renovação da presença jesuítica no Brasil Colônia. Palavras-chave: Companhia de Jesus: Brasil; História da Igreja no Brasil: Jesuítas; Colégios Jesuíticos; Aldeias Missionárias: Jesuítas. Abstract: Enio Costa Brito in this synthesis follows the open path Castelnau-L’Estoile built with her study over a special moment of Brazil Colony in the realm of the Jesus Company challenges having in mind its colleges and Indian settlement. She had as target of her research forty years between the end of the XVI Century and the beginning of the XVII Century with a focus on ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 73 18.05.07, 10:28 73 the Jesuitic missionary activities and their internal documents. She deals mainly with the difficulties Jesuits had to reach the Order aims in Brazil and also she casts some lights on the internal relationships of the Company. Casltenau-L’Estoile reckons that this critical job over the eventually barren vineyard was actually a very meaningful step to get a new kind of presence of the Jesuits in Brazil Colony. Key Words: Jesus Company: Brazil; Church History: Brazil; Jesuits; Jesuitic Colleges; Indian Settlement: Brazil. A Editora da Universidade do Sagrado Coração lançou recentemente Operários de uma vinha estéril. Os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil:1580-1620 de Charlotte de Castelnau-L’Estoile,1 obra que contribuirá com a renovação da historiografia sobre os jesuítas que lentamente vem sendo realizada entre nós. O objetivo de Castelnau-L’Estoile é compreender como, no decorrer desse período [1580-1620], o projeto jesuíta inicial de conversão dos índios se transforma, readapta, reformula… frente a uma colônia em movimento.2 A autora coloca o projeto jesuítico no centro de sua pesquisa e procura abordá-lo a partir dos textos fundadores da ordem e do contexto colonial. Organizada em cinco partes, convida seus leitores a um diálogo renovado com a ampla documentação escrita deixada pela província do Brasil. Seu ponto de partida é a Instrução dada pelo padre geral da Companhia ao visitador, o padre jesuíta português Cristóvão de Gouvêa, para que console os trabalhadores de vinha tão estéril, laboriosa e perigosa. 1 CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Operários de uma vinha estéril. Os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil: 1580-1620. Bauru: EDUSC, 2006. 2 Idem, p. 20. 3 Idem, p. 51. A PEQUENA PROVÍNCIA DO BRASIL Em maio de 1585, o visitador Gouvêa e seu secretário Fernão Cardim estão de volta ao amplo e bem arranjado e rico colégio da Bahia, após visita de dois anos às obras da província. Os 140 jesuítas da província, distribuídos pelos colégios, residências ou aldeias, têm como provincial o padre José de Anchieta. A vida dos jesuítas organizava-se ao redor dos colégios. De fato, assim como nas outras províncias, no Brasil o colégio ocupava o centro do dispositivo da Companhia, era fruto de uma evolução iniciada desde os primeiros anos de existência da Companhia, embora não tivesse no projeto original do fundador.3 Os textos sobre a província jesuítica, produzidos durante a visita, não se limitam a descrever a sociedade colonial em intenso processo de mudança, mas descrevem a inserção dos 74 Espacos_miolo_15_1.p65 E. J. DA C. BRITO — Operários de uma vinha estéril 74 18.05.07, 10:28 4 Idem, p. 66. 5 Idem, p. 71. jesuítas nesta sociedade. Inserção com reflexos no projeto missionário. Os textos revelam as relações de poder entre os centros (Roma e Portugal) e a periferia (Província), a rotinização do carisma e a burocracia missionária. A especificidade do poder burocrático passa por sua relação com a escrita: é um poder regulado por regras formuladas e escritas.4 Castelnau-L’Estoile garimpa, nas Constituições e nos Exercícios Espirituais, dados que possibilitem uma compreensão mais refinada tanto da teoria como da prática desse controle à distância. As Constituições descrevem o processo de aquisição da identidade jesuítica, garantia da unidade desse corpo disperso e que se visibiliza no nosso modo de proceder, pautado pela adaptabilidade e pela necessária liberdade de agir. Esse duplo aspecto do governo da Ordem, ao mesmo tempo centralizado e colegial confirma que a Ordem jesuíta funciona como uma burocracia.5 Burocracia que tem na correspondência epistolar seu eixo articulador ao favorecer a união dos corações entre si e com sua cabeça. A correspondência epistolar jesuítica escrita e lida dentro de um preciso quadro institucional, consola os membros dispersos e informa os superiores, os provinciais e o Geral. AVALIAÇÃO DA VINHA ESTÉRIL 6 Idem, p. 94. O visitador Gouvêa, representante do Geral na Província, juntamente com seu conselheiro e secretário Fernão Cardim, produziu um conjunto de textos que confirmam a importância dada pelo Governo Geral da Companhia à redação de documentos e ao funcionamento da burocracia missionária, como instrumento de controle, não só administrativo mas espiritual e intelectual. O regimento de 1586, escrito pelo visitador, se insere na dinâmica de …dotar a província do Brasil de prescrições específicas inspiradas nas Constituições e adaptadas às condições locais.6 Entretanto, deve ser lido à luz das Constituições, que afirmam ser a salvação das almas dos membros e do próximo o ideal missionário. A missão é um meio. Pensada como um deslocamento, supõe disponibilidade, pobreza, itinerância e desapego. A experiência das aldeias, solução encontrada para superar as dificuldades e a pouca eficácia da evangelização na vinha estéril do Brasil, contradiz este ideal. Dois pontos preocupam o visitador: a dificuldade da missão e a experiência das aldeias, pontos já presentes no Diálogo da Conversão dos Gentios (1547-1548) de José da Nóbrega. A possibilidade de conversão existe, pois, os índios são dotados das três potências da alma, mas falta uma política pastoral adeESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 75 18.05.07, 10:28 75 quada capaz de desenvolvê-las. Para Nóbrega, a solução é mudar o método de conversão dos índios e lutar contra o desânimo e a perda dos missionários. O projeto de aldeamento que ocorre após um ano do Diálogo é assim tanto uma solução para os índios como para os missionários.7 A proposta de transformação social e política do indígena conta com a colaboração do Governador Mem de Sá (15581572) e exige adaptações no projeto missionário inicial. A experiência dos aldeamentos é avaliada num texto escrito em 1584, por Luis de Fonseca, reitor do Colégio da Bahia, intitulado, O Discurso das Aldeias. Tanto o Governador quanto os padres estão empenhados na evangelização dos índios. Para Fonseca, a crise das aldeias, depois de sua expansão entre 1562-1587, teve como principal responsável os agentes externos, os portugueses. De fato, o Discurso é uma defesa da ação jesuíta e um ataque aos colonos e ao poder político, que se explicam pelo contexto imediato extremamente difícil para a província.8 A década de 1580 é particularmente difícil para os jesuítas, hostilizados pelo governador Manuel Telles Barreto (1583-1587), pelos senhores de terra, pelos colonos e pelos próprios índios. O tempo dá ao visitador uma visão mais matizada, tanto das aldeias como do próprio trabalho apostólico. Assim, o visitador parece progressivamente adotar o ponto de vista dos padres do Brasil, e reconhecer na aldeia a forma missionária melhor adaptada a essa terra tão difícil e conflituosa.9 O regimento acolhe o desafio de conciliar a experiência missionária dos últimos anos com o espírito da Companhia. Ele integra o espaço perigoso da aldeia ao resto da Companhia, criando uma série de mecanismos capazes de preservar o espírito da Companhia: visita anual do superior do colégio ou residência; os exercícios espirituais feitos anualmente nos colégios, seguidos da renovação dos votos; a carta anual e as trimestrais a serem enviadas para o colégio; a manutenção da hierarquia entre os missionários na aldeia e a insistência na preservação da disciplina religiosa e da devoção. No entanto, a clausura imaginária — resultado da internalização e de normas — revela-se insuficiente na aldeia. Daí a necessidade de reforçar os traços identitários dos jesuítas, que trabalham na aldeia, para que continuem jesuítas, buscando sua salvação e do seu próximo, o índio. A salvação do índio passa pela sua civilização, o que implica na modificação pela força, se necessário, de seus costumes. O regimento de Gouvêa desenvolve um arsenal de técnicas de sujeição que visam controlar ao mesmo tempo o corpo e o espírito dos índios,10 tutela limitada é verdade. 76 Espacos_miolo_15_1.p65 7 Idem, p. 113. 8 Idem, p. 122. 9 Idem, p. 129. 10 Idem, p. 142. E. J. DA C. BRITO — Operários de uma vinha estéril 76 18.05.07, 10:28 11 Idem, p. 150. Nessa década de muitas tensões, o tom conciliatório do regimento aparece na recusa ao conflito sistemático, na questão da utilização da mão-de-obra indígena, na proposta de se realizar missões nas fazendas e de se acatar o poder do bispo. Enfim, o regimento tenta fazer a Companhia existir no lugar da missão, isto é, ‘aonde ela não existe’11 na aldeia. A POLÍTICA LINGÜÍSTICA E A ATIVIDADE MISSIONÁRIA 12 Idem, p. 208. Desde os primórdios de suas atividades missionárias, os jesuítas onde quer que estivessem, implantaram uma clara política lingüística no Brasil e acabaram criando uma língua geral, próxima das línguas indígenas. O aprendizado do Tupi, pelos jesuítas da Província, revelou-se problemático. Os estágios lingüísticos foram implantados sem muito sucesso, tanto que a primeira congregação Provincial, em 1568, pediu a Roma a permissão de admitir candidatos que soubessem tupi e a de 1575, propõe delegar o trabalho das missões aos coadjutores temporais, proposta recusada por Roma. A política lingüística evoluiu ao longo dos anos na província. Num primeiro momento, considerava útil o aprendizado da língua nativa; mais tarde, uma prioridade, enfim, uma obrigatoriedade. Obrigatoriedade, que Gouvêa deveria implantar na Província do Brasil. No entanto, o contato com a realidade local fez com que ele, também, percebesse as dificuldades. Em 1598, quantos jesuítas na Província estavam envolvidos de fato com o trabalho missionário? Para responder esta questão e traçar o perfil desses jesuítas a autora analisa os Catálogos, instrumentos da política de pessoal seja na dimensão individual como coletiva. Cabe aos Provinciais redigirem o Catálogo anual e a cada três anos o trienal. Este, bem mais minucioso, constando de duas partes, ou seja, de dois Catálogos. O primeiro, apresenta um Curriculum Vitae de cada jesuíta, e o segundo, uma avaliação de cada membro da ordem. Em 1574, a Companhia já dispõe de um primeiro Catálogo Geral. Os Catálogos oferecem dados sobre a saúde, nível intelectual e sobre o temperamento dos membros. Em 1598, Pero Rodrigues preparou o Catálogo trienal da Província do Brasil. Para medir a dimensão missionária da Província, a autora elege três das rubricas do Catálogo: ‘… o tipo de estabelecimento em que reside o jesuíta, o conhecimento que tem da língua brasílica, os serviços que ele ocupa ou ocupou.12 Ela constata que ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 77 18.05.07, 10:28 77 a atividade missionária envolve um número significativo de jesuítas, especialmente, os que sabem falar o tupi, mas, está longe de envolver toda a Província. Em 1598, cerca de 30 missionários — coadjutores espirituais, de curta formação acadêmica, maduros, especialistas — estão à frente do projeto missionário. Para a Província, o missionário é aquele que não sabe fazer outra coisa. Esta especialização negativa o afasta da elite da província.13 À falta de vocações missionárias — vocação do Brasil — acrescente-se a experiência negativa com o recrutamento local, seguida da proibição feita, em 1579, por Mercuriano e ampliada, por Aquaviva, em 1596, para os portugueses que viviam no Brasil. A pedido de Fernão Cardim — procurador da província em Roma — em 1598, Roma cede a contragosto permitindo a admissão na Companhia de mamelucos e filhos de portugueses. O número reduzido de missionários exigia do Provincial uma cuidadosa política de pessoal. Para Roma, o ideal era ter em cada aldeia quatro jesuítas. O Catálogo de 1598 revelou a dificuldade de se acolher esta diretriz na Província, mas o de 1600 procurou cumpri-la. Assim, o exame do Catálogo [1600] mostra um inchaço dos efetivos das aldeias provocado por todos os meios: envio de jovens talentos que exerciam outras atividades que não a missão, reutilização de missionários que já tinham atingido plenamente a idade de aposentadoria, envio daqueles que acabavam de chegar de Portugal.14 O Catálogo não revela a crise que se seguiu na Província, no entanto, uma carta do provincial Pero Rodrigues deixa claro a impossibilidade do cumprimento pleno e permanente da ordem romana. Não se pode esquecer que o fim último da política de pessoal é contribuir para a salvação do missionário ameaçado pelos perigos da aldeia. Através da correspondência da ordem podese perceber os abusos de ordem econômica e às vezes moral que ocorrem na aldeia. A nova orientação romana exigindo quatro religiosos na aldeia e vetando os línguas de serem superiores, leva Pero Rodrigues a defender uma política de valorização dos missionários, promovendo-os. Essa posição explica a ambivalência da política dos superiores com relação a eles: eles procuram controlá-los reforçando a dimensão disciplinar e a vigilância mútua e, ao mesmo tempo, tratam-nos com indulgência e procuram consolá-los.15 13 Idem, p. 217. 14 Idem, p. 249. 15 Idem, p. 268. A CRISE DAS ALDEIAS Inúmeros problemas circunscrevem a questão missionária no final do século XVI e início do século XVIII: a questão das 78 Espacos_miolo_15_1.p65 E. J. DA C. BRITO — Operários de uma vinha estéril 78 18.05.07, 10:28 16 Idem, p. 294. 17 Idem, p. 299. 18 Idem, p. 310. aldeias, o papel do missionário e o estatuto do índio na sociedade colonial. Até 1581, os jesuítas, graças ao Regimento de Tomé de Souza (1549-1553) e ao Estatuto das Aldeias de Mem de Sá (15571572), eram os responsáveis pela implantação da política real e conversão e proteção dos índios. As leis de 1595 (condições da guerra justa) e de 1596 (descidas do sertão), ao ampliar o poder dos padres, suscita um novo ânimo missionário na província, mas desencadeia fortes reações por parte dos colonos. A crescente inserção dos jesuítas na sociedade colonial preocupa o Generalato em Roma, preocupação manifestada nas cartas de 20 de outubro de 1597 e de 30 de julho de 1598 dirigidas ao provincial Pero Rodrigues. Nelas, o geral Aquaviva condena a administração temporal das aldeias pelos missionários e insiste na dimensão espiritual da missão e ordena a implantação de medidas concretas: cada aldeia deve contar com quatro jesuítas; ter um visitador permanente e não ter como superior um língua. Em resposta, aos 20 de fevereiro de 1600, o Provincial, consciente de que para Roma a crise das aldeias tem raízes internas, oferece, habilmente, para o discernimento do centro, elementos externos como: a vontade real, as rendas dos colégios, o prejuízo dos portugueses16 para se manter as aldeias. Uma nova carta de Aquaviva, de 16 de abril de 1601, permite a manutenção das aldeias, proibindo a abertura de novas. A Congregação Provincial convocada pelo novo provincial Fernão Cardim, em 1604, reivindica a possibilidade de os missionários praticarem a tutela moderada sobre os índios, isto é, uma autoridade política; sem esta tutela a conversão revela impossível. Os jesuítas querem poder administrar sua própria justiça e se reservar o direito de punir alguns delitos dos índios.17 O Geral acata as propostas da Congregação Provincial mas reitera o caráter ilícito da administração temporal, dando como justificativa a natureza do índio brasileiro. Compreender os problemas da província do Brasil é ter presente a crise espiritual vivida pela Companhia no início dos anos setecentos. Aquaviva preocupa-se com a renovação espiritual, a identidade e a união do corpo da Companhia, que já em 1581 possuía 5 mil membros. Ele vê na missão um meio eficaz para renovar o mundo e a própria Companhia. Pouco a pouco a relação com o mundo que era o modo do jesuíta de atingir a Deus é posta em questão, aparecendo daí em diante como um risco de se desviar de Deus.18 Este fechamento refletirá na administração das aldeias; elas precisam ser segredadas no mundo colonial e os missionários isolados da população indígena, especialmente, das índias. ESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 79 18.05.07, 10:28 79 O terceiro visitador, Manuel de Lima, está encarregado pelo Geral de implantar a reforma espiritual da província brasileira levando em conta os desafios locais. Ele vê problema nas aldeias, mas não as condena como seu secretário, Jacome Monteiro, que, solicitado por Roma, se posiciona, em carta de 28 de setembro de 1610, contra as aldeias por serem uma ferida na vida da Província. Os padres brasileiros, que já não viam com bons olhos a presença de visitadores de fora, reagem. Em 1617, o provincial Henrique Gomes pede ao novo Geral Vitelleschi que as visitas sejam feitas por pessoas da Província. O pedido é negado, sendo deferido apenas em 1622. Um interessante documento intitulado Algumas advertências para a província do Brasil,escrito para a congregação de 1609, deixa transparecer a visão dos padres brasileiros com relação às missões. Para o autor, as missões colaboram com a segurança, a manutenção e a expansão da Colônia. Jesuítas e índios participam ativamente da vida colonial. Quanto às aldeias, elas devem adaptar-se aos costumes indígenas para sobreviverem. Em 1609, Felipe III, ao confiar a administração temporal e espiritual dos índios aos jesuítas, suscitou uma ampla revolta na colônia. Pressionado, o superior jesuíta, em Salvador, assumiu o compromisso de não aplicar a lei. A lei de 1611, que substitui a de 1609, retira dos jesuítas o controle temporal e espiritual das aldeias; este último é entregue aos regulares. Os jesuítas recorrem ao Geral e pensam em abandonar as aldeias, pois o controle externo lhes é insuportável. Despojados de sua autonomia espiritual, de sua dimensão política e econômica que garantiam à província um lugar fundamental na sociedade colonial, as aldeias são agora apresentadas apenas como o lugar de perdição dos missionários, ‘o lugar de tantas penas, tantas infâmias, tantas desgraças espirituais’.19 Mas, a colônia precisa dos jesuítas para domesticar e cristianizar os índios, tanto que em 1614 eles continuam trabalhando na vinha estéril, conscientes de que os frutos nela colhidos, por serem mais difíceis, agradam a Deus. 19 Idem, p. 349. A PRÁTICA MISSIONÁRIA LEGITIMADA PELA ESCRITA Qual é a imagem que a vinha estéril produz de si mesma? Para responder a esta questão, Castelnau-L’Estoile volta-se para os textos literários e públicos, lidos à luz dos textos administrativos. Escolhe os Relatos de dois secretários de visitadores da Província: Fernão Cardim (1585) e Jácome Monteiro (1610). Cardim escreveu um texto de consolação, enquanto Monteiro 80 Espacos_miolo_15_1.p65 E. J. DA C. BRITO — Operários de uma vinha estéril 80 18.05.07, 10:28 20 Idem, p. 433. 21 Idem, p. 387. 22 Idem, p. 433. 23 Idem, p. 446. optou por um texto de saber, inspirando-se no novo modelo apresentado por Acosta. As descrições dos índios, em sua versão consoladora, erudita ou prática, participam do registro de missão pois, através do retrato que fazem dos índios, esses são testemunhos sobre a missão e suas dificuldades.20 Descoberto, em 1847, por Varnhagem, na Biblioteca de Évora, Informação da missão do P. Gouvêa às partes do Brasil anno 1583, título português das Narrativas de Cardim, o texto apresenta a Província, a terra e os habitantes. Escrito sob a influência dos relatos marítimos, o texto de Cardim é uma obra de encomenda e deve ser lido no conjunto dos textos produzidos por ocasião da visita de Gouvêa. Para a autora, a Narrativa é um texto inteiramente construído sobre a noção inaciana de consolação.21 Daí, o perfil jesuítico do texto, que tem um vocabulário marcadamente religioso. Destinado a apresentar a Província e a suscitar vocações, esmera-se nas descrições, especialmente, dos costumes indígenas, isto é, deve levar em conta as duas categorias norteadoras da escrita dos missionários jesuítas: curiosidade e edificação. O outro texto analisado é a Relação do Brasil de Jácome Monteiro (1610), escrito sob a influência de Acosta, que, com suas obras, mudou a concepção de missão. Para Monteiro, o fracasso das missões deve ser creditado aos missionários que desconhecem o mundo indígena e são violentos, fornicadores e negligentes. Entende-se, então, seu empenho para compreender as superstições indígenas, consideradas por ele como a forma de religião dos índios. Ao descrever a fauna e flora, recorre aos conceitos científicos da época. Para dar maior credibilidade aos relatos, relembra com freqüência sua observação e experiência pessoais. Monteiro, mesmo escrevendo dentro da instituição, afirma serem os índios evangelizáveis e aponta para eles um futuro não cristão. As descrições [de Cardim e de Monteiro] são certamente testemunhos sobre os índios e sua cultura, mas também sobre os jesuítas e a missão.22 Os missionários do além mar, com suas cartas, relatos de viagens e missões, muito contribuíram para a construção da imagem e do prestígio da Companhia na Europa. A correspondência da Província do Brasil com o Centro deixou transparecer muitas tensões envolvendo as missões. Castelnau-L’Estoile relembra que, na análise dessas Relações, deve-se ter presente sua dupla lógica interna: edificante e política. Trata-se, ao mesmo tempo, de encontrar os acentos heróicos dos primeiros relatos de missão e de mostrar a utilidade do papel político dos jesuítas.23 A autora, atenta a esses presESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 81 18.05.07, 10:28 81 supostos, analisa mais duas cartas escritas pelos missionários Francisco Pinto e Jerônimo Rodrigues e a Relação do Maranhão de Luís Figueira. Padre Francisco Pinto realiza com sucesso a pacificação dos Potiguar, em 1598, e dá conta dessa missão numa carta de 19 de maio de 1599. Através da leitura, toma-se conhecimento das estratégias diplomáticas e da importância da palavra no processo de pacificação. A missão entre os Carijó (1605) no Sul, realizada pelo padre Jerônimo Rodrigues e João Lobato, revelase um fracasso. As cartas e o Relato escritos pelo primeiro confirmam uma vez mais a importância do medo e da sujeição para a conversão dos índios. Luis Figueira relata a importante missão do Maranhão sob a responsabilidade do Padre Francisco Pinto, realizada em 1609, para tentar a pacificação dos Tapuia e abrir um caminho por terra entre Pernambuco e Maranhão. O texto de Figueira é visto como um modelo de escrita missionária, engloba as dimensões literária, política e diplomática. No plano diplomático, a missão é um fracasso. No entanto, o relato dessa missão, em compensação é um sucesso: mostra que o engajamento dos jesuítas para a expansão da colônia chega ao sacrifício. Do ponto de vista religioso, a missão é sob todos os aspectos, edificante: sob a pena de Figueira, a entrada se torna peregrinação, e a morte de Francisco Pinto uma cena de martírio (sem que a palavra seja jamais pronunciada).24 24 Idem, pp. 471-472. 25 Idem, p. 507. O APOSTOLO DO BRASIL E AS FESTAS JESUÍTICAS A imagem que a Província procura dar de si e apresentar é uma imagem missionária que Anchieta como apóstolo do Brasil encarna perfeitamente. No momento em que a atividade missionária não é mais do que um negócio confiado a especialistas, em que os colégios mobilizam o essencial das forças dos padres, quando as relações com o poder político são difíceis e o monopólio missionário jesuíta é questionado, a Província do Brasil constrói uma figura de santo missionário que cristaliza, em sua própria pessoa, todas as dificuldades da missão.25 Quirino Caxa é o primeiro a escrever sobre Anchieta, em 1563, apresenta-o como missionário, como um padre admirável mas não como santo. Cuidado que a biografia escrita por Pero Rodrigues, a pedido de Fernão Cardim (1604), não tem. Obra redigida segundo os cânones da escrita hagiográfica que erige Anchieta como santo modelo dos missionários e será a base da biografia elaborada por Sebastiano Beretarri, jesuíta italiano, em 1607, responsável por tornar conhecida na Europa a figura do Apostolo do Brasil. Rodrigues criticará a biografia 82 Espacos_miolo_15_1.p65 E. J. DA C. BRITO — Operários de uma vinha estéril 82 18.05.07, 10:28 26 Idem, p. 497. 27 Idem, pp. 528-529. escrita por Beretarri e suas traduções de terem traído não o retrato de Anchieta mas do Brasil.26 A escrita hagiográfica realiza o milagre de transformar a aldeia de lugar de perdição em lugar de salvação dos missionários além de possibilitar escrever sobre a missão não como vinha estéril mas fecunda. Os jesuítas perceberam serem as festas uma excelente mediação com o mundo indígena, o que explica o recurso constante a elas no processo de evangelização. Recurso que suscitou tensões com a hierarquia religiosa e mais tarde com os próprios indígenas. O fenômeno das santidades confirma os limites dessa estratégia. A Província do Brasil viu na festa de canonização de Santo Inácio e São Francisco Xavier, em dezembro de 1822, uma maneira de celebrar a Província e reforçar nela o ideal missionário que se enfraquece. Esse triunfo da missão se expressa num espetáculo religioso múltiplo onde se encontram as diferentes linguagens artísticas: música e dança num cenário espetacular.27 O jesuíta italiano, Corrado Arizzi, num texto sintético, descreve a festa, em especial o espetáculo da procissão, com seus carros alegóricos, com suas construções efêmeras, com sua estrutura repetitiva e com seus efeitos visuais e musicais. Festa erudita, múltipla, política, espetáculo total que sonha com uma sociedade colonial reconciliada tendo nos jesuítas seus artífices principais. CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS 28 Idem, p. 534. Entre os temas do Brasil colônia, o das missões tem gerado muitas polêmicas e não poderia ser de outra forma. As relações entre missionários e índios abre uma porta para a compreensão da questão da alteridade, questão complexa em si mesma e mais ainda no âmbito de relações assimétricas. Operários de uma vinha estéril, trilha essa vereda com equilíbrio, ou nas palavras da autora, sem recorrer a julgamentos de valor feitos a posteriori, mas usando as próprias categorias de análise e de percepção dos missionários.28 Ganha evidência, no livro, o exame cuidadoso das fontes históricas, lidas com rigor analítico, articulando sempre histórias particulares com contextos vastos e globais, o local com o geral. Esta dinâmica capta com nitidez as tensões que se manifestam no governo da província, nas suas relações com o centro, como na resistência das congregações provinciais a certas imposições romanas sobre questões vitais para a identidade jesuítica. Castelnau-L’Estoile mergulha nas entranhas da missão, mostrando ser ela um campo árido que acabou exigindo senESPAÇOS (2007 – 15/1) – Instituto São Paulo de Estudos Superiores Espacos_miolo_15_1.p65 83 18.05.07, 10:28 83 síveis modificações no projeto missionário além de exigir uma certa especialização. A percepção das especificidades da missão em terras brasílicas leva a autora a desvelar o caráter ambíguo e contraditório da mesma. A missão, razão de ser da presença dos jesuítas no Brasil, entre 1598 e 1610, instaura uma profunda crise na Província. Pensada para ser itinerante e eminentemente espiritual se fixou nas aldeias, acarretando a administração temporal das mesmas. São poucos os jesuítas que querem pregar aos índios, em 1598, apenas 30, em geral coadjutores espirituais, que se sentem isolados na Província. É para os jesuítas, operários desta vinha estéril, que a autora se volta, desvelando para seus leitores, processos de reconstrução de algumas de suas experiências psico-religiosas e sociais vividas no coração de uma Colônia em movimento . Operários de uma vinha estéril dá uma contribuição singular para a reconstituição de nossa memória e de nossa identidade cultural. Livro escrito com paixão e rigor que agradará não só aos especialistas mas também àqueles que se interessam por conhecer um pouco mais de nossas raízes culturais e religiosas. E. J. DA C. BRITO — Operários de uma vinha estéril Espacos_miolo_15_1.p65 84 18.05.07, 10:28 Relação das Revistas em Permuta com a Revista Espaços 2006 ESTRANGEIRAS Alternativas-Revista de análisis y reflexión teológica (Manágua – Nicarágua) Anthropos (Bonn – Alemanha) Anuario Argentino de Derecho Canónico (Buenos Aires – Argentina) Cadernos Forum Canonicum (Lisboa – Portugal APMJ – Asian and Pacific Migration Journal – Scalabrini Migration Center (Filipinas) Cadernos Forum Canônicum – UCP (Lisbora – Portugal) Cuadernos de Teología (Buenos Aires – Argentina) Chakana (Aachen – Alemanha Efemérides Mexicana (México – México Isidorianum (Servilha – Espanha) Forum canonicum – Inst. 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Metodista (São Bernardo do Campo – SP) Caminhos – Revista de Ciências da Religião (Goiânia – GO) Coletânea – Revista de Filosofia e Teologia (Rio de Janeiro – RJ) Consciência Latinoamericana – Rev Latinoamericana de CDD (São Paulo – SP) Espacos_miolo_15_1.p65 85 Cultura e Fé – Inst. de Desenvolvimento Cultural (Porto Alegre – RS) Educativa – Universidade Católica de Goiás (Goiânia – GO) Em foco – Revista de Public. Acadêm. da Pós-Graduação do IESPES (Santarém – PA) Encontros Teológicos (Florianópolis – SC) Espírito – Revista de Animação Vocacional (Vitória da Conquista – BA) Estudos – Univ. Católica de Goiás (Goiânia – GO) Estudos de Religião (São Bernardo do Campo – SP) Estudos Teológicos (São Leopoldo – RS) Fragmentos de Cultura (Goiânia – GO) Habitus – Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia (Goiânia – GO) Horizonte Teológico (Belo Horizonte – MG) Interações Rev. Inter. de Desenv. 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Espacos_miolo_15_1.p65 86 18.05.07, 10:28 Espacos_miolo_15_1.p65 87 18.05.07, 10:28 Espacos_miolo_15_1.p65 88 18.05.07, 10:28