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ISSN 1517-2422 cadernos metrópole gestão metropolitana Cadernos Metrópole v. 11, n. 22, pp. 285-640 jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 285 17/3/2010 12:49:31 Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999–, Semestral ISSN 1517-2422 A partir do segundo semestre de 2009, a revista passará a ter volume e iniciará com v. 11, n. 22 1. Regiões Metropolitanas – Aspectos sociais – Periódicos. 2. Sociologia urbana – Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. Observatório das Metrópoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles CDD 300.5 Periódico indexado na Library of Congress – Washington Cadernos Metrópole Profa. Dra. Lucia Bógus Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - Observatório das Metrópoles Rua Ministro de Godói, 969 – 4° andar – sala 4E20 – Perdizes 05015-001 – São Paulo – SP – Brasil Prof. Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - Observatório das Metrópoles Av. Pedro Calmon, 550 – sala 537 – Ilha do Fundão 21941-901 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 São Paulo – SP – Brasil Telefax: (55-11) 3368.3755 [email protected] http://web.observatoriodasmetropoles.net Secretária Raquel Cerqueira Book CM v11_n22.indb 286 17/3/2010 12:49:32 gestão g estão m metropolitana e t ro p o l i t a n a Book CM v11_n22.indb 287 17/3/2010 12:49:33 PUC-SP Reitor Dirceu de Mello EDUC – Editora da PUC-SP Direção Miguel Wady Chaia Conselho Editorial Ana Maria Rapassi, Cibele Isaac Saad Rodrigues, Dino Preti, Dirceu de Mello (Presidente), Marcelo Figueiredo, Maria do Carmo Guedes, Maria Eliza Mazzilli Pereira, Maura Pardini Bicudo Véras, Onésimo de Oliveira Cardoso, Thiago Lopes Matsushita Coordenação Editorial Sonia Montone Revisão de português Sonia Rangel Revisão de inglês Carolina Siqueira M. Ventura Projeto gráfico, editoração e capa Raquel Cerqueira Rua Monte Alegre, 971, sala 38CA 05015-001 São Paulo - SP - Brasil Tel/Fax: (55) (11) 3670.8085 [email protected] www.pucsp.br/educ Book CM v11_n22.indb 288 17/3/2010 12:49:35 cadernos metrópole EDITORES Lucia Bógus (PUC-SP) Luiz César de Q. Ribeiro (UFRJ) CONSELHO EDITORIAL Adauto Lucio Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) Aldo Paviani (UnB, Brasília, Brasil) Alfonso Xavier Iracheta (El Colegio Mexiquense, México) José Machado Pais (UL, Lisboa, Portugal) Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) José Marcos Pinto da Cunha (Unicamp, São Paulo, Brasil) Ana Fani Alessandri Carlos (USP, São Paulo, Brasil) José Maria Carvalho Ferreira (UTL, Lisboa, Portugal) Ana Lucia Nogueira de P. Britto (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) José Tavares Correia Lira (USP, São Paulo, Brasil) Ana Maria Fernandes (UFBa, Bahia, Brasil) Leila Christina Duarte Dias (UFSC, Santa Catarina, Brasil) Andrea Catenazzi (UNGS, Los Polvorines, Argentina) Luciana Corrêa do Lago (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) Anna Alabart Villà (UB, Barcelona, Espanha) Luís Antonio Machado da Silva (Iuperj, Rio de Janeiro, Brasil) Arlete Moyses Rodrigues (Unicamp, São Paulo, Brasil) Luis Renato Bezerra Pequeno (UFC, Ceará, Brasil) Brasilmar Ferreira Nunes (UFF, Rio de Janeiro, Brasil) Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBa, Bahia, Brasil) Carlos Antonio de Mattos (PUC, Santiago, Chile) Maria do Livramento M. Clementino (UFRN, Rio Grande do Norte, Brasil) Carlos José Cândido G. Fortuna (UC, Coimbra, Portugal) Marília Steinberger (UnB, Brasília, Brasil) Cristina López Villanueva (UB, Barcelona, Espanha) Nadia Somekh (UPM, São Paulo, Brasil) Edna Maria Ramos de Castro (UFPA, Pará, Brasil) Nelson Baltrusis (UCSAL, Bahia, Brasil) Eleanor Gomes da Silva Palhano (UFPA, Pará, Brasil) Orlando Alves dos Santos Júnior (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) Erminia Teresinha M. Maricato (USP, São Paulo, Brasil) Ralfo Edmundo da Silva Matos (UFMG, Minas Gerais, Brasil) Félix Ramon Ruiz Sánchez (PUC, São Paulo, Brasil) Raquel Rolnik (USP, São Paulo, Brasil) Fernando Nunes da Silva (UTL, Lisboa, Portugal) Ricardo Toledo Silva (USP, São Paulo, Brasil) Geraldo Magela Costa (UFMG, Minas Gerais, Brasil) Roberto Luís de Melo Monte-Mór (UFMG, Minas Gerais, Brasil) Gilda Collet Bruna (UPM, São Paulo, Brasil) Rosa Maria Moura da Silva (Ipardes, Paraná, Brasil) Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (PUC, São Paulo, Brasil) Rosana Baeninger (Unicamp, São Paulo, Brasil) Heliana Comin Vargas (USP, São Paulo, Brasil) Sarah Feldman (USP, São Paulo, Brasil) Heloísa Soares de Moura Costa (UFMG, Minas Gerais, Brasil) Sérgio de Azevedo (UENF, Rio de Janeiro, Brasil) Jesús Leal (UCM, Madrid, Espanha) Suzana Pasternak (USP, São Paulo, Brasil) José Antônio F. Alonso (FEE, Rio Grande do Sul, Brasil) Tamara Benakouche (UFSC, Santa Catarina, Brasil) Vera Lucia Michalany Chaia (PUC, São Paulo, Brasil) Wrana Maria Panizzi (UFRGS, Rio Grande do Sul, Brasil) Book CM v11_n22.indb 289 17/3/2010 12:49:36 COLABORADORES DESTE NÚMERO Angélica Benatti Alvim (Univ. Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil) Dulce Maria Tourinho Baptista (PUC/SP, São Paulo, Brasil) Ilza Leão (UFRN, Rio Grande do Norte, Brasil) Jupira Gomes de Mendonça (UFMG, Minas Gerais, Brasil) Klaus Frey (PUC-PR, Paraná, Brasil) Lincoln Moraes de Souza (UFRN, Rio Grande do Norte, Brasil) Lucia Cony (UnB, Distrito Federal, Brasil) Maura Véras (PUC/SP, São Paulo, Brasil) Nelba Azevedo Penha (UnB, Distrito Federal, Brasil) Ricardo Hérnan Medrano (Univ. Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil) Roberto Luiz do Carmo (Unicamp, São Paulo, Brasil) Sol Garson Braule Pinto (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) Soraia Maria do Socorro Carlos Vidal (UFRN, Rio Grande do Norte, Brasil) Soraya Vargas Cortês (UFRGS, Rio Grande do Sul, Brasil) Book CM v11_n22.indb 290 17/3/2010 12:49:36 sumário 293 Apresentação dossiê gestão metropolitana Governing metropolises: issues, challenges 299 Governar as metrópoles: questões, desafios and constraints of the constitution e limitações para a constituição de novos of new political territories territórios políticos Christian Lefèvre Metropolitan effect and political culture: 319 Efeito metropolitano e cultura política: new forms of exercising citizenship novas modalidades de exercício da cidadania in the metropolis of Lisbon na metrópole de Lisboa Manuel Villaverde Cabral Metropolises, political culture 347 Metrópoles, cultura política e cidadania no Brasil and citizenship in Brazil Sérgio de Azevedo Orlando Alves dos Santos Jr. Luiz César de Queiroz Ribeiro Political geography of congressional elections: 367 Geografia política das eleições congressuais: a dinâmica de representação das áreas urbanas the dynamics of the representation of urban e metropolitanas no Brasil and metropolitan areas in Brazil Nelson Rojas de Carvalho Political culture and participatory budget 385 Cultura política e Orçamento Participativo Luciano Fedozzi New governance for metropolitan areas. 415 Novas governanças para as áreas metropolitanas. The international scene and prospects O panorama internacional e as perspectivas para for the Brazilian case o caso brasileiro Jeroen Johannes Klink Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 285-640, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 291 291 17/3/2010 12:49:36 Metropolitan areas – diversity and the fiscal 435 Regiões metropolitanas – diversidade e dificuldade difficulty in cooperation fiscal da cooperação Sol Garson Governance, government or management: 453 Governança, governo ou gestão: o caminho the path for metropolitan action das ações metropolitanas Peter Kevin Spink Marco Antonio Carvalho Teixeira Roberta Clemente Participatory urban management agenda versus 477 Agenda de gestão urbana participativa versus elite conservative political elite: the case of Salvador conservadora: o caso de Salvador Antônio Sérgio Araújo Fernandes Urban planning in Belo Horizonte: analysis 495 Planejamento urbano em Belo Horizonte: of the municipal councils’ performance análise da atuação dos conselhos municipais in the management of the city na gestão da cidade Mônica Abranches Between institutionalisation and daily 519 Entre a institucionalização e a vida quotidiana: elementos para repensar o espaço life: some elements to rethink metropolitano de Brasília Brasília’s metropolitan space Igor Catalão Evaluation of new urban projects in metropolitan 545 Avaliação de novos projetos urbanos areas. Limits of the federal municipal entity metropolitanos. Limites do ente federativo municipal Eulalia Portela Negrelos Planning in the network society. Collaborative 571 Planejamento numa sociedade em rede. Práticas practices of planning in Brazil de planejamento colaborativo no Brasil Nilton Ricoy Torres Metropolitan management and integrated 593 Gestão metropolitana e gerenciamento integrado management of water resources dos recursos hídricos Paulo Roberto Ferreira Carneiro Ana Lúcia de Paiva Britto Spatial patterns of idle buildings and Programa 615 Padrões espaciais de ociosidade imobiliária e o Programa Morar no Centro da Prefeitura Morar no Centro, of São Paulo’s municipal de São Paulo (2001-2004) government (2001-2004) Fernando Cardoso Cotelo 292 Book CM v11_n22.indb 292 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 285-640, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:36 Apresentação As metrópoles expressam e em certa medida aceleram a crescente desfusão do Estadonação. Com efeito, o Estado-nação resultou da fusão – em um todo significativo – da autoridade central legítima, com os interesses privados e o sistema de solidariedade, o que implicou a construção da concepção democrática do poder político e a universalização dos direitos de cidadania. Esse processo foi diferenciado historicamente, correspondendo à trajetória histórica de cada sociedade na busca de resposta ao desafio de combinar a simultânea construção da comunidade política e da autoridade pública fundada em largas e profundas bases de legitimidade. Como podemos depreender com base em vários autores a respeito das reformas sociais ocorridas nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França nos 30 primeiros anos do século XX, as cidades foram o laboratório da experimentação histórica da qual nasceram as instituições do moderno Estado-nação. Os desafios gerados pelo crescimento urbano acelerado, pela industrialização, pelas crises sanitárias e pela questão operária levaram as elites nacionais a transformarem a autoridade pública organizada e legitimada sob as bases das concepções liberais do Estado na autoridade que regula os interesses privados e distribui parcelas do bem-estar social através de um sistema público de solidariedade social. As metrópoles, nesta fase do capitalismo mundializado e fundado na economia de fluxos, expressam a crescente fragilização desse arcabouço institucional que, durante o século XX, pôde materializar a fusão entre interesses privados, solidariedade social e autoridade legítima. Este é o tema central dos artigos reunidos neste número dos Cadernos Metrópole. Sob ângulos e temas distintos, os artigos propõem a reflexão sobre os impasses e desafios da construção da autoridade pública legítima sobre um território que concentra a força produtiva da nação, mas no qual a sociedade enfrenta o imperativo de governar a população sem, no entanto, possuir a capacidade de governar os fluxos econômicos que atravessam as metrópoles, as modelam, estruturam e desestruturam. Nas escalas macro e micro, o fenômeno metropolitano está atravessado pela dissociação entre urbes – a forma espacial e arquitetural da cidade – e civitas – as relações humanas e políticas. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 293-298, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 293 293 17/3/2010 12:49:36 Apresentação Isso posto, cabe debater sobre as possibilidades de apreensão dos fenômenos sociais que se manifestam no urbano em toda sua complexidade, buscando superar os entraves que se apresentam ao investigador como produtor de conhecimento, ator social e agente político. Os textos aqui reunidos ampliam o caminho para a realização desse debate. O artigo Governar as metrópoles: questões, desafios e limitações para a constituição de novos territórios políticos, de Christian Lefèvre, utiliza os resultados de suas pesquisas comparativas sobre os problemas da governança urbana de metrópoles europeias, mas não exclusivamente, para sistematizar e refletir sobre as dificuldades da constituição das metrópoles em territórios políticos. Evidencia a contradição entre o que vem apontando a literatura acadêmica a respeito da crescente relevância das metrópoles e a ação dos atores que constituem os principais protagonistas metropolitanos – o Estado, os poderes locais e atores da sociedade e do mercado, que desenvolvem comportamentos dissociados desta importância estratégica. A leitura do texto de Christian Lefèvre nos incentiva à reflexão sobre as forças fragmentadoras da dinâmica política no território metropolitano que bloqueiam a constituição de um sistema de atores organicamente vinculados por valores cívicos compartilhados e por instituições promotoras da solidariedade social, sem o qual é inviável a constituição de uma autoridade pública nas metrópoles, legítima e efetiva. É a partir deste diagnóstico que devemos entender os fundamentos do reiterado fracasso das tentativas de constituição de governança das metrópoles. A compreensão de tais obstáculos pode ser aprofundada com a leitura dos artigos Efeito metropolitano e cultura política: novas modalidades de exercício da cidadania na metrópole de Lisboa, escrito por Manuel Villaverde Cabral, e o Metrópoles, cultura política e cidadania no Brasil, elaborado por Sérgio de Azevedo, Orlando Alves Santos Júnior e Luiz César de Queiroz Ribeiro. Os dois trabalhos têm origem no survey sobre cultura política e cidadania realizado em Portugal e no Brasil, respectivamente pelo Instituto de Ciências Sociais e o Observatório das Metrópoles, no qual foram utilizados os indicadores do Internacional Social Programme (http://www.issp.org). Partem da interrogação sobre os reais fundamentos do crescente desengajamento dos cidadãos em relação à democracia que, para os quatro autores, decorre na realidade do desencantamento com relação ao desempenho da classe política dos atuais regimes representativos e não exatamente com relação aos valores democráticos. Portanto, o traço marcante das sociedades contemporâneas é a crescente erosão da legitimidade da autoridade pública. A contraface dessa erosão é a transformação das atitudes e dos valores que orientam o exercício da cidadania política, cujo traço marcante é a automobilização dos indivíduos em ações políticas pontuais em contraposição ao engajamento coletivo e permanente na área política através da sua associação nas formas estabilizadas de organização cívica. As duas mudanças têm fundamentos societários, mas estão fortemente presentes nas metrópoles em razão da relação entre o fenômeno urbano nesta escala e a exacerbação do processo de individualização. Nestes trabalhos, temos indicações importantes para um dos fundamentos dos obstáculos da politização do território metropolitano que possa sustentar a constituição de uma autoridade pública com a fundada legitimidade para torná-lo governado como sociedade política. Os traços predominantes da cultura política e do 294 Book CM v11_n22.indb 294 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 293-298, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:36 Apresentação ambiente institucional (desconfiança interpessoal, desconfiança nas instituições, distância ao poder, etc.) presentes nas metrópoles, com efeito, traduzem valores pouco propícios à constituição de um sistema de atores. Esta reflexão é enriquecida pela análise feita por Nelson Rojas sobre a dinâmica de representação política oriunda nas áreas urbanas e metropolitanas no Brasil. Embora se trate de um artigo ainda exploratório sobre a geografia social dos votos que constituem a Câmara dos Deputados Federais, o artigo apresenta duas constatações relevantes para o tema do presente número. Por um lado, a identificação de uma subrepresentação das áreas mais urbanizadas e “metropolizadas” do país e, por outro lado, um padrão de votos concentrado de nossos deputados metropolitanos. Como bem assinala Rojas, estamos diante de duas tendências não antecipadas pela tradição da sociologia eleitoral. Enquanto o país se urbaniza e constitui grandes metrópoles que concentram a riqueza, a população e os problemas sociais, os mecanismos de formação do poder legislativo nacional não expressam este fato na composição geográfica dos votos que elegem os deputados federais. Ao mesmo tempo, o artigo constata evidências da concentração dos votos dos deputados federais eleitos como votos metropolitanos, o que pode indicar a existência de um novo fenômeno, este sim ainda menos esperado pela sociologia política, ou seja: a existência de um paroquialismo eleitoral nas metrópoles, o que deveria ser traço em eliminação com o avanço da modernização cultural e o aumento da competitividade eleitoral nos grandes centros urbanos do país. Por outro lado, as dificuldades para arregimentar as forças congressuais para o tema metropolitano podem ser melhor compreendidas se considerarmos também o sistema de federalismo fiscal brasileiro, fundado em princípios de fixação de competências e de mecanismos redistributivos que incentivam a adoção pelos deputados federais de práticas localistas de representação e desincentivam a cooperação entre os níveis de governo em torno da solução de interesses comuns, com enormes consequências negativas nas regiões metropolitanas. Esta é uma das importantes contribuições do artigo escrito pela economista Sol Garson intitulado Regiões metropolitanas – diversidade e dificuldade fiscal da cooperação. O trabalho discute as dificuldades de cooperação para a solução dos problemas comuns em regiões metropolitanas brasileiras. Apesar de sua importância econômica e fiscal, esses territórios não recebem a atenção dos formuladores de políticas públicas. Entre os obstáculos à cooperação destacam-se as dificuldades do sistema federativo brasileiro, a ausência de instâncias de discussão e resolução de conflitos, a rigidez da estrutura fiscal da União, estados e municípios e a própria experiência anterior de gestão metropolitana. A dissociação entre a realidade metropolitana enquanto definição institucional (e acadêmica) e a sociedade tal qual é vivida no cotidiano pela população nos é demonstrada pelo artigo Entre a institucionalização e a vida quotidiana: elementos para repensar o espaço metropolitano de Brasília ; avaliação de novos projetos urbanos metropolitanos de Igor Catalão, que analisa a dissociação entre o espaço metropolitano de Brasília, tal qual está definido institucionalmente e o espaço vivido pela população em seus deslocamentos diários. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 293-298, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 295 295 17/3/2010 12:49:36 Apresentação Temos neste conjunto de artigos elementos para aprofundar a compreensão das raízes dos obstáculos e impasses da construção de instituições de governança das metrópoles: a dissociação entre mercado, sociedade política e a sociedade política. Podemos ler este fato como a consequência concentrada nas metrópoles da crescente dissociação entre Estado e nação, sob os efeitos fragmentadores da economia de fluxos que atualmente organiza a produção, a circulação e o consumo na era da mundialização. O quadro esboçado por estes artigos nos permite aprofundar a reflexão sobre os balanços das experiências de gestão das metrópoles, não apenas no Brasil, pois a mencionada dissociação está presente, com maior ou menor força, em todas as sociedades. Neste sentido, são de grande relevância os cinco artigos Novas governanças para as áreas metropolitanas. O panorama internacional e as perspectivas para o caso brasileiro ; Governança, governo ou gestão: o caminho das ações metropolitanas ; Avaliação de novos projetos urbanos metropolitanos. Limites do ente federativo municipal ; Padrões espaciais de ociosidade imobiliária e o Programa Morar no Centro da Prefeitura de São Paulo (2001-2004) e Gestão metropolitana e gerenciamento integrado dos recursos hídricos. No primeiro, Jeroen Johannes Klink chama a atenção para a necessidade de considerar as diversidades de experiências práticas buscadas pelos atores presentes na cena pública das regiões metropolitanas em várias escalas, através de ações de cooperação intergovernamental em políticas setoriais, como respostas às dificuldades da construção de arcabouços institucionais mais abrangentes. Constata a existência de um caleidoscópio de arranjos institucionais existentes nas regiões metropolitanas brasileiras; ações úteis mas incapazes de fundarem uma autoridade pública sobre o território metropolitano. Peter Kevin Spink, Marco Antonio Carvalho Teixeira e Roberta Clemente utilizam no segundo artigo, resultado de largo estudo empírico, na elaboração de balanço das experiências brasileiras de gestão metropolitana. Concluem também com a reflexão sobre os limites da utilização da ferramenta dos consórcios intermuncipais. O terceiro artigo, de autoria de Eulalia Portela Negrelos, descreve duas operações urbanas na Região Metropolitana de São Paulo para demonstrar os obstáculos das ações de cooperação em projetos de grande vulto decorrentes da inexistência de segurança institucional e de recursos decorrentes do nosso pacto federativo. Em uma linha semelhante de análise, é o quarto artigo, escrito por Fernando Cardoso Cotelo, que examina as falhas do Programa Morar no Centro implementado entre 2001 e 2004 pela Prefeitura de São Paulo em articulação com a Caixa Econômica Federal. Já o artigo assinado por Paulo Roberto Ferreira Carneiro e Ana Lúcia de Paiva Britto analisa as frequentes e dramáticas inundações na periferia da metrópole do Rio de Janeiro como efeitos catastróficos sobre a população, da inexistência de articulação do planejamento do uso do solo, de competência municipal, e a gestão dos recursos hídricos, de competência estadual. Esta desarticulação poderia ser resolvida se estes níveis de governo tomassem as bacias urbanas que reúnem grande quantidade de rios e córregos como espacialidade e conceito de um sistema de gestão integrada dos recursos hídricos da metrópole fluminense. A questão, neste e nos outros artigos mencionados, é despolitização do território metropolitano. 296 Book CM v11_n22.indb 296 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 293-298, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:36 Apresentação É importante frisar que tal hipótese não significa a existência de um território sob uma espécie de anomia política. Entendendo a política como expressão de agregação de interesses privados – materiais e ideais –, ela está sempre presente na complexa realidade metropolitana. O X do problema é a dissociação mencionada ao longo desta apresentação. Encontramos nas metrópoles brasileiras algumas experiências de ação pública que buscaram contornar os limites decorrentes desta dissociação. O artigo Planejamento urbano em Belo Horizonte: análise da atuação dos conselhos municipais na gestão da cidade, de autoria de Mônica Abranches, relata os resultados de pesquisa empírica sobre ação dos Conselhos Municipais de Belo Horizonte, procurando examinar a contribuição destas novas esferas de articulação entre a sociedade civil e os governos locais em regiões metropolitanas na constituição de políticas públicas democráticas e efetivas. O artigo assinado por Luciano Fedozzi, sob o título Cultura política e Orçamento Participativo, descreve interessantes resultados do survey realizado junto aos delegados do conhecido processo decisório do orçamento participativo do município de Porto Alegre, no qual foi utilizada parte importante dos indicadores sobre atitudes e valores de cidadania usados nos surveys brasileiro e português mencionados anteriormente. Já o artigo Planejamento numa sociedade em rede. Práticas de planejamento colaborativo no Brasil, de autoria de Nilton Ricoy Torres, ao analisar algumas experiências de articulação entre atores de movimentos sociais, planejadores e cidadãos, postula a hipótese da emergência, nas metrópoles brasileiras, de um novo paradigma de gestão fundada na interação entre atores através de redes de informações, onde negociação e conflito estariam instaurando uma prática dialógica de planejamento. Os três trabalhos apontam alguns pontos de reflexão sobre possíveis caminhos práticos para a construção da metrópole como território da política. Com efeito, a leitura destes artigos nos induz pensar sobre a possibilidade de a criatividade social gerada por certos projetos políticos desencadear experiências de politização do território por práticas de learning by doing e by interacting, para usar dois termos frequentemente empregados pela economia do conhecimento. Não há dúvida de que a constituição do sistema de atores na escala da metrópole – mencionado no início desta apresentação como condição indispensável da construção de instituições de governança urbana – depende certamente de um processo de socialização política que crie as condições objetivas e subjetivas da mobilização cognitiva necessária para transformar indivíduos em sujeitos com capacidade de agency. Pode ser um caminho para unificar no território metropolitano governos e sociedade civil. Essas experiências de socialização política têm sido empreendidas no Brasil por iniciativas de governos constituídos por coalizões progressistas por razões político-ideológicas e mesmo por governos conservadores sob a pressão de organismos internacionais que passaram a exigir a participação popular como condição de acesso a financiamentos urbanos, como nos mostra Antonio Sérgio Araújo Fernandes no artigo Agenda de gestão urbana participativa versus elite política conservadora: o caso de Salvador. Devemos, contudo, assumir com precauções a hipótese educativa dessas experiências. Para que elas não se confinem a ações empreendidas e comandadas por interesses corporativos territorializados, portanto, fragmentadores, ou à simples instrumentação da população por elites conservadoras, Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 293-298, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 297 297 17/3/2010 12:49:36 Apresentação mas, ao contrário, possam realizar a promessa de socialização política, é fundamental que as experiências participativas tenham como referência um projeto político cuja essência deve ser a fusão entre interesses privados, autoridade pública legítima e sistema de solidariedade social. Em outras palavras, um projeto de transformação da metrópole em metropolis. A pergunta que este número dos Cadernos Metrópole não alcança responder é: que forças da sociedade brasileira estão verdadeiramente interessadas em tal projeto? Responder a esta pergunta tornou-se um imperativo e um desafio para a coesão do Estado com a nação brasileiros. Apesar do aumento das assimetrias, as metrópoles aumentaram seu papel indutor do desenvolvimento econômico nacional. Para que as metrópoles sejam, porém, mais do que mera plataforma de atração de capitais, mas, ao contrário, constituam-se em territórios capazes de reterritorializar a economia e de impedir o aprofundamento da disjunção entre Estado e nação é necessário que contenham os elementos requeridos pela nova economia de aglomeração da fase pós-fordista, entre os quais se destacam os relacionados aos meios sociais germinadores da inovação, confiança e da coesão social. As metrópoles devem, portanto, se constituir em meios sociais capazes de promover a inovação, a confiança e a coesão social, tornando-se veículos da junção entre Estado e nação. Apesar de seus desequilíbrios, o nosso sistema urbano constitui importante ativo para o desenvolvimento nacional. Ele é composto por 37 grandes aglomerados urbanos onde residem aproximadamente 45% da população (76 milhões de pessoas) e concentram 61% da renda nacional. Entre os 37 grandes aglomerados urbanos, temos 15 metrópoles, isto é, aglomerados que apresentam características próprias das novas funções de coordenação, comando e direção das grandes cidades na “econômica em rede”. Os quinze espaços considerados metropolitanos têm enorme importância na concentração das forças produtivas nacionais. Mas, ao mesmo tempo, neles estão concentrados também os grandes desafios a serem enfrentados, na forma de passivos resultantes de um modelo de urbanização organizado essencialmente pela combinação entre as forças de mercado e um Estado historicamente permissivo com todas as formas de apropriação privatistas das cidades. Como consequência de sua história e do caráter de sua configuração, as metrópoles brasileiras estão hoje despreparadas, material, social e institucionalmente para o crescimento econômico baseado na dinâmica da inovação, na economia do conhecimento e na eficiência que mobilizam não apenas a lógica do mercado, mas também os efeitos positivos da coesão social. Nelas está conformado um conjunto de passivos cujo enfretamento é imperativo para que forças produtivas consteladas na complexidade de nossa rede urbana possam alavancar o desenvolvimento nacional. Lucia Bógus Luiz César de Q. Ribeiro Editores científicos 298 Book CM v11_n22.indb 298 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 293-298, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:36 Governar as metrópoles: questões, desafios e limitações para a constituição de novos territórios políticos* Governing metropolises: issues, challenges and constraints of the constitution of new political territories Christian Lefèvre Resumo Neste artigo, aborda-se a questão das dificuldades da constituição das metrópoles em territórios políticos. De fato, enquanto as metrópoles surgem cada vez mais como os espaços onde se apresentam os interesses e os desafios das sociedades capitalistas atuais, elas custam a se constituir em verdadeiros lugares políticos. A partir de uma análise comparativa, principalmente europeia, mas não exclusivamente, o autor mostra em que e por que os principais protagonistas metropolitanos – o Estado, as coletividades locais e a sociedade civil (as populações e as forças econômicas) – desenvolveram comportamentos e políticas em que as metrópoles não ocupam o lugar que lhes é dado pela literatura científica sobre a questão e pela retórica de inúmeros atores. Abstract In this paper, we address the difficulties involving the constitution of metropolises as political territories. In fact, while the metropolises are increasingly emerging as the spaces where the interests and challenges of current capitalist societies are presented, it takes a long time for them to be constituted as real political places. Based on a comparative analysis, mostly European, but not exclusively, the author shows where and why major metropolitan protagonists – the State, local governments and civil society (populations and economic forces) - have developed behaviors and policies in which the metropolises do not occupy the place given to them by the scientifi c literature on the issue and the rhetoric of many actors. Palavras-chave: metrópoles; governança; Estado; coletividades locais; território político. Keywords: metropolises; governance; State; local governments; political territory. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 299 17/3/2010 12:49:36 Christian Lefèvre Desde as pesquisas iniciais de Friedmann políticas, sociais, ambientais, levantadas pelo e Wolfe (1982) e de Sassen (1991), as grandes desenvolvimento do capitalismo contemporâ- cidades ressurgiram em nível internacional co- neo. Por outro, elas permanecem politicamente mo um dos principais lugares do desenvolvi- quase inexistentes, salvo raras exceções, o que mento do capitalismo mundial. Desde então, as torna dificilmente governáveis. geógrafos economistas, como Scott (2001), Para apresentar as dificuldades das me- geógrafos políticos, como Brenner (2004) ou trópoles em se constituírem como territórios sociólogos, como Veltz (1996), destacaram a políticos, debruçar-nos-emos sobre os com- importância das metrópoles na globalização. A portamentos dos principais protagonistas que eles, sucederam-se organizações internacionais são os Estados, as coletividades locais e a so- como a OCDE (2001 e 2006) ou as Nações Uni- ciedade civil (populações e atores econômicos), das (UN-Habitat, 2000). As metrópoles se tor- salientando, para cada um deles, sua relação naram os lugares onde se colocam os grandes com a metrópole. Por isso, na primeira parte, desafios, antigos e novos, de nossas sociedades acentuaremos a atitude desfavorável dos Esta- modernas. As metrópoles se tornaram lugares dos e das populações à constituição de novos estratégicos, lugares de produção de riquezas e territórios políticos metropolitanos; na segun- do desenvolvimento econômico, espaços onde da parte, trataremos das dificuldades das me- acontecem as solidariedades e o viver em con- trópoles em relação a esse empreendimento, junto de populações sempre as mais diversas interessando-nos pelo fracasso da criação das nos âmbitos sociais, culturais e étnicos (Jouve instituições metropolitanas, elemento emble- et al., 2006), territórios onde se apresentam mático do território político; na terceira parte, com acuidade os problemas ambientais, etc., abordaremos o papel de oposição das coletivi- em todos os âmbitos da vida humana. dades locais e a falta de mobilização dos meios Mas se as metrópoles se tornaram um econômicos na escala metropolitana. dos principais lugares onde se apresentam os desafios econômicos e sociais das sociedades modernas, elas custam a se constituir em atores coletivos, capazes de produzir as políticas adequadas para responder, ao mesmo tempo, O Estado e a população contra a metrópole a esses interesses e desafios e orientar seu futuro. Dito de outra maneira, as metrópoles têm Os processos de descentralização observados dificuldade em se tornarem verdadeiros territó- ao redor do mundo se chocam ao fato metro- rios políticos, dimensão ao mesmo tempo ne- politano porque esse, dando crédito à ideia de cessária e constitutiva de sua governabilidade. um novo espaço político, vem abalar as rela- Assim, as metrópoles encontram-se hoje ções de poder entre as coletividades locais e em situação paradoxal. Por um lado, a litera- o Estado. Nesse contexto, o Estado fica, na tura e a maior parte dos atores não deixam de melhor das hipóteses, prudente, quando não apresentá-las como espaços pertinentes pa- oposto ao crescimento do poder político dos ra tratar das inúmeras questões econômicas, territórios metropolitanos. 300 Book CM v11_n22.indb 300 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:37 Governar as metrópoles: questões, desafios e limitações... Pelo menos na Europa, a metrópole é política e institucional, é forçoso constatar que uma aporia da descentralização, salvo alguns além da retórica governamental, que parece raros “acidentes” como no caso de Madri. Na sempre dar crédito às abordagens do reesca- França, as leis mais recentes se apresentam co- lonamento político, a realidade é muito mais mo paliativos imperfeitos ao fracassado encon- nuançada. tro dos anos 1980 entre a descentralização e a Na França, o Estado expõe há vários metrópole. De fato, neste país a descentraliza- anos veleidades de políticas metropolitanas, ção reforçou as instituições existentes, comu- particularmente desde 1999 com a lei sobre a nas e departamentos, e simplesmente esque- intercomunabilidade que cria comunidades de ceu o fato metropolitano. Na Itália, as “cidades aglomeração e a lei de instalação do territó- metrópoles” previstas, desde 1990, por várias rio que instaura os contratos de aglomeração. leis de descentralização continuam a não apa- Mais recentemente, o Estado lançou um ape- recer. Na Espanha, a questão metropolitana lo à cooperação metropolitana visando que as não é prevista na lei de 2003 sobre as cida- coletividades locais pertencentes a territórios des de grande população (Rodriguez-Alvarez, metropolitanos de grande extensão cooperem, 2004) e apenas no Livro Branco de 2005 sobre a partir de um projeto de desenvolvimento a reforma das coletividades locais. Na Holanda, estratégico. Ainda recentemente, em 2008, a na Alemanha, no Reino Unido, mesmo que os questão metropolitana ressurgiu com a publi- debates aconteçam, eles não se traduzem em cação do relatório parlamentar Imaginar as metrópoles do futuro, exortando o Estado a produzir políticas metropolitanas. E – cereja no bolo – o governo criou em 2008 uma Secretaria de Estado para o desenvolvimento da regiãocapital. Nem por isso, além de uma retórica forte, as ações concretas acontecem, o Estado não financiou cooperações metropolitanas, e suas políticas continuam a não ter como alvo as metrópoles. Em outros lugares da Europa, a atividade do Estado no domínio metropolitano não é mais forte, quando não é menor. Na Itália, o Estado parece ter jogado a toalha. A Lei 142, de 1990, que havia criado as cidades metropolitanas, nunca foi executada, e nenhuma iniciativa do Estado foi tomada para sua atualização. Na Espanha, a ideia metropolitana balbucia, o Livro Branco de 2005 menciona apenas a ideia de convenções metropolitanas (convênios metropolitanos) sem que por hora avanços legislativos sobre a questão. Uma literatura recente que se interessa pelo “reescalonamento político” (political rescaling) considera que as metrópoles estão se tornando um novo território da regulação societária em nível mundial e que, nesse processo, o Estado desempenha um papel crucial (Brenner, 2004). Referindo-se ao período atual como “pós-keynesianismo espacial”, esta literatura, principalmente de origem neomarxista, estima que hoje os Estados estão desenvolvendo políticas visando tornar as metrópoles territórios fundamentais ao crescimento econômico, rompendo assim com uma visão equilibrada do território nacional. A Europa é um terreno privilegiado destes trabalhos que anunciam o fim das políticas de redistribuição espacial dos governos centrais e anunciam uma “metropolização” das ações territoriais dos Estados. No entanto, ao se observar de perto a situação Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 301 301 17/3/2010 12:49:37 Christian Lefèvre o momento das realizações concretas tenha pode-se perguntar se estas formas de demo- visto o dia. Na Holanda, o debate sobre a cria- cracia local, particularmente em razão de sua ção de uma estrutura ou de um dispositivo escala territorial, não concorrem a novamen- de governo no nível da Randstad(a) não avan- te pôr em discussão a metrópole como lugar ça de maneira concreta, apesar de inúmeras pertinente e legítimo para o debate e a ação propostas locais. Na Alemanha, a questão me- política. De fato, por ela repousar essencial- tropolitana parece estar igualmente em pon- mente sobre uma concepção restritiva da cida- to morto. Apenas na Grã-Bretanha, reflexões dania e por ela abraçar os territórios das insti- em nível governamental foram conduzidas no tuições locais e, principalmente, das comunas, âmbito das cidades-regiões (city-regions), mas em suma, por ela não considerar ou considerar elas não levaram a nenhum projeto concreto, muito mal o fato metropolitano, a democracia até o presente momento. local contribuiria a deslegitimar a metrópole. As observações que acabamos de fazer Nos últimos anos, a democracia local de- sobre o caso europeu poderiam ser ampliadas senvolveu-se principalmente nas cidades, por à maior parte dos continentes (Rojas et al., meio do estabelecimento de dois instrumen- 2008; Weir e Lefèvre, 2009). Se o Estado não se tos: as instituições inframunicipais e os dispo- apressa para dar uma base política, administra- sitivos de participação da população. Há mui- tiva e financeira às metrópoles, não é porque to, certo número de cidades europeias (Berlim, se desinteressa por estes territórios. É por es- Amsterdã, Roma, Madri, etc.) criou instituições tar, ao contrário, muito presente e por quase inframunicipais. Ao longo dos últimos anos, sempre vê-los como contrapoderes potenciais à a tendência foi a da multiplicação desse tipo sua autoridade sobre o território nacional. Essa de instituição na maior parte dos países e das situação é ainda mais evidente quando se trata metrópoles europeias e não europeias (Monte- de capitais como os exemplos de Paris, Londres vidéu, Paris, Roma, Berlim, Montreal, etc.) e da e Lisboa o mostram para os Estados unitários. tomada de força de sua legitimidade política e Quanto a ela, a população das metrópo- de suas competências. Progressivamente, es- les não parece mais favorável que os Estados sas instituições, que eram apenas escalões ad- quanto à emergência desses espaços como ter- ministrativos, tornaram-se quase-coletividades ritórios políticos. O caso da democracia local locais de exercício pleno. parece particularmente demonstrativo. Além disso, as reformas visando enco- O desenvolvimento da democracia lo- rajar a democracia direta em nível local, prin- cal, entendida como todas as formas de in- cipalmente autorizando os referendos e as tervenção direta dos habitantes nas questões iniciativas, multiplicaram-se em vários lugares. políticas locais, leitmotiv na maior parte dos Na Alemanha, os Länder introduziram essas países democráticos, está repleto de virtudes: disposições nas suas constituições. Na Itália, ele permitiria políticas públicas mais eficazes, na Holanda a prática do referendo também se a criação de uma sociedade política local mais desenvolveu. Durante muito tempo reticente, forte e a luta contra o mal-estar democrático a França seguiu o movimento. Se, fora da Eu- ao aproximar eleitos e habitantes. No entanto, ropa, países como o Canadá frequentemente 302 Book CM v11_n22.indb 302 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:37 Governar as metrópoles: questões, desafios e limitações... autorizaram o referendo local, continentes até instituições metropolitanas, por outro, quando então pouco envolvidos como a América Latina eles apresentam a questão da secessão de par- ou a Ásia (Japão e Coréia do Sul no início dos tes da metrópole. anos 2000) começam a praticá-lo (CGLU, 2007). Na Europa,1 os exemplos mais célebres Ora, esse desenvolvimento de procedimentos de referendos “antimetropolitanos” são os de de democracia direta concerne essencialmente Amsterdã, Roterdã e Berlim, em meados dos às coletividades locais existentes, dito de outra anos 1990, que viram eleitores recusarem, em maneira, elas não são quase nunca de interesse esmagadoras maiorias (93% em Amsterdã, por da metrópole enquanto tal, mas simplesmen- exemplo), o estabelecimento de uma autorida- te de partes dela. A situação é idêntica para a de metropolitana. Para ser justo, convém, no grande maioria das estruturas de participação. entanto, mencionar o único sucesso de refe- Instituições inframunicipais, referendos rendo sobre esse tema na Europa, o de Londres locais, comitês de bairros fazem hoje parte do em 1999, mas esse sucesso se deve a circuns- panorama das metrópoles. Resta saber se esse tâncias muito particulares (existência de insti- desenvolvimento serve à democracia metro- tuições metropolitanas há mais de um século, politana ou se lhe é obstáculo. Três elementos particularmente ausência de cidade-centro). nos inclinam à segunda resposta: o papel das Mas os referendos locais também foram instituições inframunicipais na autonomiza- usados para conseguir a secessão da metrópo- ção dos territórios que cobrem, as estruturas le. É nos Estados Unidos que encontramos os e os dispositivos de participação como vetor exemplos mais fortes com os sucessos de West do Nimbismo (b) e o uso dos procedimentos de Hollywood nos anos 1980 e a tentativa nos democracia direta na recusa de “pensar como anos 2000 de Hollywood e de San Fernando metrópole”. Valley (Boudreau, Didier e Hancock, 2004) ou Frequentemente, as consultas aos habi- em Nova York o desejo abortado de Staten tantes se traduzem por reivindicações e pedi- Island. No entanto, o desejo de secessão não dos “localistas” que desdenham ou ignoram se limita aos Estados Unidos e começa a ser completamente as questões e os problemas encontrado cada vez mais no Canadá (em da metrópole. Não se trata aqui de novamente Montreal em 2003) ou na Itália (várias tentati- pôr em discussão a existência e o bem fundado vas até aqui infrutíferas da zona de Mestre de dessas estruturas de participação, mas denun- chegar à secessão da cidade de Veneza). Se, ciar sua falta de articulação com outras escalas na Europa, poucas cidades estão submetidas além de seus próprios territórios. São prova- a tais pressões secessionistas, provavelmente velmente os procedimentos referendários que isso se deve ao fato de a maior parte das cons- foram os mais usados em um sentido “localis- tituições não dar esse direito às populações, ta”, por um lado quando permitiram a popula- contrariamente ao que acontece na América ções se pronunciarem contra a instauração de do Norte. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 303 303 17/3/2010 12:49:37 Christian Lefèvre O fracasso da constituição de instituições metropolitanas tais são algumas das observações feitas em referência às unidades institucionais que povoam a metrópole. Uma das obras mais antigas e mais célebres sobre o assunto leva um título A metrópole não é uma entidade política, mas sugestivo: 1400 governments. Publicada em é um território que faz sentido para inúmeros 1961 e escrita por R. Wood, que se tornaria o atores e atividades. É também um território que primeiro-ministro federal do urbanismo do go- faz sentido para algumas políticas públicas, co- verno democrata de L. B. Johnson, ela denun- mo os transportes ou a moradia. A literatura cia a fragmentação extrema da organização econômica e geográfica está repleta de análi- político-administrativa da grande cidade ame- ses mostrando e demonstrando a pertinência ricana, aqui Nova York, resultando em uma da escala metropolitana para abordar e resol- quase impossibilidade de seu governo caso es- ver certo número de problemas econômicos, sa situação se perpetuasse. R. Wood não teria mas também sociais; e especialistas e homens um sucesso político igual ao seu sucesso aca- políticos que lamentam a ausência ou a inade- dêmico, mas seria um dos primeiros a apontar quação da organização político-institucional o problema metropolitano do ponto de vista de seu governo, a saber, a inadaptação, a inadequação entre o território funcional da metrópole e sua organização institucional. na escala metropolitana, pois, diante de uma metrópole, território funcional das atividades humanas, o sistema político-administrativo pa- Desde então, a literatura sobre a questão rece mal elaborado e inadaptado. As evoluções tecnológicas, particular- foi prolífica e os debates numerosos no âmbito mente nas comunicações, e a urbanização acadêmico. No plano político, pelo menos na que dela é parcialmente tributária, levaram a Europa, o objetivo foi praticamente constan- uma extensão urbana de grande amplitude, te: adequar o território funcional com a orga- um alastramento (sprawl) que continuamente nização institucional para chegar ao que um ampliou os limites físicos da cidade. Geógrafos, geógrafo como Bennet (1989) chamou truly estatísticos e economistas se empenharam em bounded, expressão que pode ser traduzida por “corretamente administrado, pois adaptado territorialmente”. identificar e compreender esses fenômenos elaborando várias noções e conceitos: metrópole, megapolo, megalópole, aglomeração, área urbana, metápole, todos igualmente imperfeitos para contê-los. Os especialistas da geografia administrativa, das ciências administrativas e O debate entre reformadores e os defensores das escolhas públicas2 de gestão, alguns juristas, mais recentemente os cientistas políticos, debruçaram-se sobre o Nos anos 1950 e 1960 nos Estados Unidos, duas sistema político-administrativo desses territó- correntes de pensamento se afrontam diante da rios funcionais, insistindo na maior parte dos questão do governo metropolitano. De um lado, casos em denunciar sua inadaptação. Muito os reformadores, seguindo Wood, um de seus pequenas, muito grandes, muito numerosas, líderes, estimam que o problema número 1 é a 304 Book CM v11_n22.indb 304 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:37 Governar as metrópoles: questões, desafios e limitações... fragmentação institucional das cidades ameri- de reforma, mas igualmente uma forte razão canas, fragmentação tanto mais danosa por se política. Se os habitantes da metrópole come- fazer em proveito das coletividades locais dis- çam a ser cada vez mais interdependentes e pondo de uma forte autonomia que lhes per- a fundar uma comunidade de vida, é preciso mite relativamente desdenhar o seu ambiente então que essa comunidade seja politicamente econômico e social. A forte urbanização que representada. atinge as metrópoles americanas se traduz por Suas propostas de reforma são verdadei- uma suburbanização que julgam excessiva e ros projetos para uma nova e total fundação da que se deve combater particularmente porque sociedade local americana. Julguemos então! ela tem, segundo eles, um custo econômico Inicialmente, eles pedem a abolição do princí- e social enorme, tanto maior por ela não ser pio do Home Rule(c) para as municipalidades, controlada. Eles denunciam a onipotência das espécie de garantia jurídica de sua autonomia. municipalidades e dos distritos especiais, pe- Pedem uma redução das competências dessas quenos e verdadeiros reinos dispondo de elei- mesmas comunas. Em paralelo, desejam o es- tos, de recursos fiscais e de competências sobre tabelecimento de autoridades metropolitanas territórios e/ou setores de políticas muito limi- poderosas. Eleitas por sufrágio universal di- tadas em relação aos desafios apresentados reto, seu território de jurisdição seria a área à metrópole. Para os reformadores, é urgente metropolitana. Disporiam de competências im- planejar o território metropolitano para trazer- portantes no domínio do planejamento e dos lhe coerência em termos de políticas públicas transportes que elas poderiam usar contra as e para conter a suburbanização. Eles consi- outras coletividades locais. Desempenhariam deram que a fragmentação institucional é a igualmente um papel de coor denação. En- principal responsável daquilo que chamam de fim, elas possuiriam recursos fiscais próprios caos, assim como duplicações de serviços que permitindo-lhes exercer suas funções. A essas observam um pouco em todas as cidades, pois autoridades metropolitanas, eles dão um nome não há coordenação nem cooperação entre os sugestivo, Gargantua. governos locais. Julgam igualmente que essa A escola das escolhas públicas rejeita fragmentação é responsável pelo desenvolvi- com força essas alegações e as proposições dos mento da segregação socioespacial particular- reformadores. Para os defensores dessa escola, mente em razão das políticas de zoneamento como V. Ostrom ou C. Warren, a organização (zoning) que são decididas pelas comunas. institucional das metrópoles americanas é tudo, A análise dos reformadores provém menos caótica. Eles preferem falar de sistema igualmente da visão que têm da metrópole, a policêntrico ou de economia pública local com- saber, a visão de uma nova comunidade po- plexa e recusam o termo fragmentação. Eles lítica emergente especialmente em razão do afirmam que tal sistema reflete a vontade dos desenvolvimento de tecnologia de comunica- habitantes e, mais ainda, estimam que se tra- ção que permite trocas cada vez mais intensas te de um sistema desejável. Eles consideram de entre os homens. Não há apenas razões eco- fato que tal organização permite às populações nômicas, sociais e técnicas para seus desejos uma escolha em sua localização. Assim, dizem Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 305 305 17/3/2010 12:49:37 Christian Lefèvre que é preciso haver uma multiplicidade de cole- institucionais serão o problema número um do tividades locais para que essas formem um mer- governo das metrópoles, pois não apenas não cado. Em tal mercado, o habitante poderá assim resolverão as questões atuais, mas se tornarão escolher viver no território da coletividade local obstáculos à democracia e à livre escolha dos que lhe oferecerá o montante de serviços que habitantes. melhor corresponda às suas necessidades. Eles denunciam os erros de análise dos reformadores, especialmente sobre a noção de território funcional. Para os defensores das A pertinência atual do debate e os novos argumentos escolhas públicas, não existe território funcional único, o da metrópole, mas, ao contrário, Ninguém tem razão neste debate, pois aí, como múltiplos territórios funcionais de acordo com o diz substancialmente o próprio Wood, trata- o setor de atividade, o equipamento conside- se de um “combate de valores”. Combate en- rado. Não há então uma resposta única para tre, por um lado, os reformadores que colocam a questão da inadequação entre território fun- o coletivo à frente, uma noção do interesse cional e institucional. Mas a crítica mais forte geral como sendo diferente da soma dos inte- que fazem aos reformadores diz respeito à resses individuais e devendo por isso ser levado questão institucional. Eles se opõem assim em pelo público e uma instituição democrática, e pelo menos dois pontos cruciais. O primeiro diz por outro, os defensores das escolhas públicas respeito à pertinência da constituição de uma que afirmam a primazia do indivíduo sobre o institucional metropolitana, a fortiori de um coletivo e não falam de segregação, mas de es- Gargantua, para regrar o problema da duplica- colha de localização. ção de serviços e de sua coordenação. Segun- Este debate, principalmente norte- do eles, as economias de escala como as ne- americano, não marcou fortemente a Europa, cessidades de coordenação podem muito bem com exceção relativa da Grã-Bretanha, parti- ser consideradas pelos próprios operadores de cularmente no período de Thatcher. Por isso, serviço, aí compreendidos então os operadores parece-nos sempre digno de interesse, por- privados, sem ter automaticamente recurso à que provavelmente remete justamente a va- criação de novas instituições. O segundo ponto lores. Não é de fato um debate técnico, mas concerne à democracia. De fato, eles acusam os um debate político. Se a questão das econo- Gargantua de serem antidemocráticos, pois se mias de escala e da coordenação dos serviços tratará estruturas burocráticas muito grandes e foi em grande parte regulada na maior parte pesadas para estarem próximas dos habitantes dos países europeus (com exceção uma vez e dos eleitores. Mais ainda, esse peso e esse mais da Grã-Bretanha onde as posições da distanciamento dos habitantes não incitarão escola das escolhas públicas foram em parte estes últimos a participarem da vida política da executa das nos anos 1980 e 1990), outros metrópole. Concluindo, os defensores das es- elementos vieram a se acrescentar e dar vigor colhas públicas consideram que os Gargantua a esse debate. 306 Book CM v11_n22.indb 306 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:37 Governar as metrópoles: questões, desafios e limitações... De maneira um tanto paradoxal e des- entre o território funcional metropolitano e viante, um dos argumentos dos reformado- sua organização institucional seja sempre um res em favor da criação de uma institucional problema a resolver mesmo se as razões para metropolitana era o fato de que a metrópole resolvê-lo tenham evoluído. Nessa maneira de que se via nascer estava se constituindo em pensar, o que dizer então de sua execução? comunidade social e política. Mesmo por já se tratar de uma visão do espírito no contexto americano dos anos 1960, hoje é por razões Estado da arte da questão institucional inversas, pois a metrópole se fragmenta no plano social e político, que muitos apelam a uma Não existe nenhum balanço internacional re- instituição ou a um dispositivo institucional cente da constituição de autoridades metropo- que permitiria remediar essa fragmentação. Na litanas, de seu funcionamento e de seus resul- mesma ordem de ideias, as questões de soli- tados. Em compensação, encontram-se nume- dariedades territoriais estão hoje na agenda do rosos estudos mais ou menos precisos sobre governo das metrópoles, problema pouco pre- esta questão, realizados por associações como sente politicamente na Europa nos anos 1960, Metrópolis, alguns relatórios e artigos publicados em diferentes períodos por pesquisadores e especialistas, entre os quais o autor (Lefèvre, 1998 e 2001). Esse balanço, é preciso dizer, não é globalmente positivo do ponto de vista quantitativo. Mais ainda, as poucas estruturas institucionais metropolitanas que se encontram no mundo são de natureza disparatada em função de seu estatuto político (verdadeiras coletividades locais como em Lima, Londres, Portland, Quito ou Stuttgart, entidades intercomunais como em Lisboa, Montevidéu ou Montreal, administrações de Estado como em Santiago ou no Cairo, simples associações como em Barcelona ou Turim, que ampliaremos mais adiante, de suas competências (principalmente estratégicas como em Londres ou Barcelona, amplamente operacionais como as comunidades urbanas francesas) e de seus recursos financeiros e fiscais (com fiscalização própria, fortemente dependentes de outros níveis de governo, etc.). Enfim, no plano territorial (a adequação entre o território metropolitano e embora bastante presentes nos Estados Unidos nesse período. Em terceiro lugar, o sujeito das competitividades dos territórios em uma economia globalizada volta a dar força à questão institucional metropolitana. Na competição territorial levada pelas metrópoles entre si, os territórios municipais não são mais suficientes para produzir a força econômica, as amenidades e os equipamentos necessários para melhor se posicionarem nessa competição. As alianças institucionais entre as coletividades locais, particularmente, são então importantes para que certas políticas mudem de escala, para que estratégias comuns de desenvolvimento sejam executadas, para que a promoção da área metropolitana seja eficaz. Isso não significa que a questão institucional seja a única boa questão neste novo contexto, mas significa que, tanto nos anos 1960 quanto hoje, a maior parte dos atores, pelo menos na maioria dos países europeus, com ou sem razão, considera que a adequação Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 307 307 17/3/2010 12:49:37 Christian Lefèvre um dispositivo institucional), aí ainda se encon- mas todas essas instituições não cobrem o con- tra de tudo: uma Grande Londres ou uma Gran- junto dos espaços funcionais metropolitanos de Tokyo tão pequenas em relação à metrópole e, sobretudo, não dispõem forçosamente de real, uma comunidade autônoma de Madri ou competências e de recursos adequados para uma região Île-de-France que a circunscrevem produzir políticas necessárias ao tratamento bem... mas por quanto tempo ainda? dos problemas e desafios metropolitanos. As experiências “bem-sucedidas” de instituições metropolitanas são quase sempre tributárias da história do sistema político nacional e local e de acidentes ou de situação excepcionais. Neste sentido, elas devem raramente sua Novas experiências: a instituição metropolitana como resultado de um processo existência às considerações teóricas e técnicas das quais acabamos de falar. É o caso, por exemplo, da metrópole madrilenha que dispõe Diante do desaparecimento de estruturas me- hoje de uma verdadeira autoridade metropoli- tropolitanas (caso espanhol) e/ou da incapaci- tana com a comunidade autônoma de Madri. dade do estabelecimento de instituições metro- Ora essa comunidade autônoma, essa região, politanas (caso italiano das cidades metropoli- que viu o dia no início dos anos 1980, é uma tanas), algumas metrópoles (Barcelona, Bilbao, construção ad hoc cujo território é fruto de um Bolonha, Florença, Turim, Veneza, etc.) se lan- compromisso político entre os dois grandes çaram em empreendimentos visando construir partidos políticos espanhóis pós-franquistas um sistema de direção da cidade no âmbito de e no qual a questão da área funcional nunca políticas de procedimentos. Frequentemente, foi considerada (Rodriguez-Alvarez, 2002). A essas políticas adotaram o planejamento estra- autoridade metropolitana de Stuttgart só pode tégico como instrumento e dispositivo de dire- ver o dia com a ocorrência excepcional de cir- ção, colocando à frente a importância da cons- cunstâncias com a constituição de uma Grande trução de alianças, coalizões e de cooperações Coalizão no seio do Land de Bade-Wurtemberg entre atores na base de uma adesão progressi- que forçou um compromisso entre o conjunto va e da procura por consenso. Essa adesão pro- das coletividades locais da metrópole alemã gressiva a um projeto e a orientações de desen- (Albrecht e Benz, 1999). volvimento se efetua ao longo de um processo Resta a situação francesa, em vários marcado por dispositivos e procedimentos vi- aspectos original e única no mundo, mas cujo sando enquadrar e assegurar o sucesso. Na Eu- balanço deixa a desejar. Com certeza, a quase ropa, hoje, provavelmente são as experiências totalidade das aglomerações francesas possui de Barcelona e de Turim que são as melhores hoje uma estrutura institucional de direção de ilustrações desta maneira de fazer. seus territórios – exceção notória da região Île- Em Turim, a direção do desenvolvimento de-France – sob a forma de estabelecimentos da metrópole está assegurada por uma assem- públicos de cooperação intercomunal (comuni- bleia metropolitana, uma estrutura associativa dades urbanas e comunidades de aglomeração), cuja missão principal é a execução do segundo 308 Book CM v11_n22.indb 308 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:37 Governar as metrópoles: questões, desafios e limitações... plano estratégico e a coordenação das ati- (enlace) (estruturas cuja missão é articular as vidades e das políticas dos principais atores reflexões e as ações do plano estratégico com implicados. Essa assembleia agrupa 122 mem- os outros procedimentos e documentos em bros representando as coletividades locais, as andamento sobre a metrópole como o plano empresas e suas associações, a Câmara de Co- territorial, mas também com as reflexões das mércio, as universidades e centros de pesquisa, outras coletividades locais e nacionais). Essa as agências de desenvolvimento, as sociedades comissão executiva é igualmente presidida paramunicipais e intercomunais, os sindicatos, pelo prefeito de Barcelona e age por meio de os bancos, os meios culturais, etc. Um comitê uma verdadeira mobilização do conjunto da de coordenação de 10 membros toma as deci- sociedade de Barcelona. sões. É presidido conjuntamente pelo prefeito No entanto, mesmo se os procedimentos da cidade-centro, Turim, e pelo presidente da e os dispositivos associam o conjunto da so- província (que garante assim os interesses das ciedade metropolitana, eles permanecem em outras coletividades diante da cidade-centro e ambos os casos direcionados por instituições é assistido por uma estrutura de gerenciamen- políticas, geralmente as cidades-centro. Nes- to, Torino Internazionale). te sentido, o político e o público permanecem Em Barcelona, a direção da metrópole no comando. É também o caso da iniciativa se realiza pelo ângulo do plano estratégico da cidade de Paris por meio da realização de metropolitano que concerne a AMB (Área Me- uma conferência metropolitana em 2006 e tropolitana de Barcelona, ou seja, 31 comunas sua transformação progressiva em uma ins- e mais de 3 milhões de habitantes). Lançado tituição de estudos e de reflexões no âmbito após os três primeiros planos estratégicos da aglomeração, mesmo se contrariamente às focalizados principalmente na comuna-centro, experiências de Turim e de Barcelona os meios o novo plano visa à escala metropolitana. Para econômicos e a sociedade civil são muito pou- que aconteça, ele é elaborado e realizado por co solicitados. meio de uma engenharia institucional sofisti- As iniciativas de Barcelona e Turim são cada: uma assembleia geral de 300 membros interessantes porque procuram resolver um que reúne a quase totalidade dos atores me- problema espinhoso da questão institucional tropolitanos: as coletividades locais, as estru- metropolitana, o das relações entre a cidade- turas intercomunais, a CCI, as universidades, centro e as outras coletividades locais. As for- os sindicatos, as uniões patronais, os bancos, mas de organização estabelecidas em Barcelo- os meios culturais e associativos, etc. Essa as- na e Turim associam um leadership da cidade- sembleia é presidida pelo prefeito da cidade- centro no seio das estruturas cuja composição centro. A administração do plano é confiada garante ao mesmo tempo a representação das a uma comissão executiva de 30 pessoas (co- principais forças econômicas e sociais, mas missio delegada) que dirige certo número de também a dos outros atores político-institucio- comitês e de conselhos (prospectiva, desen- nais, no caso de Turim com um papel específico volvimento estratégico, planejamento, seto- atribuído à província, o de representar os inte- res estratégicos, etc.) técnicos e de “ligação” resses das outras municipalidades. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 309 309 17/3/2010 12:49:37 Christian Lefèvre especialmente porque na França, contraria- As coletividades locais e as forças econômicas contra as metrópoles? mente à maior parte dos Estados europeus e mesmo em outros lugares do mundo, existe um instrumento, o acúmulo dos mandatos, que dá às coletividades locais um acesso privilegia- As coletividades locais contra a metrópole do à instância nacional, a que vota as leis. O acúmulo dos mandatos explica assim em grande parte por que as leis de descentralização dos Grande parte da história da constituição das anos 1980 se fizeram por sistema institucional instituições metropolitanas é a das lutas das constante (exceto a criação das regiões, que coletividades locais existentes seja para re- foram, no entanto, pensadas como coletivida- jeitá-las seja para esvaziá-las de seu sentido des fracas). (Lefèvre, 1998). Nessa história, são as coletivi- Em outros lugares a situação não é me- dades locais que ganharam um pouco em todo lhor, inclusive nos países que conseguiram o mundo. Fortalecidas por sua longa história, por que alguns cientistas políticos chamaram de sua legitimidade democrática e pela identifica- modernização da sua organização territorial e ção das populações com seu território e seus institucional (compreender a forte redução do eleitos, particularmente em nível municipal, as número de coletividades locais), como Alema- coletividades locais quase sempre chegaram a nha, Grã-Bretanha ou Holanda. seus objetivos ou a “limitar os prejuízos”. Na Espanha, o poder dado às regiões pe- Na França, a comuna é a “célula de base la Constituição de 1978 traduziu-se inicialmen- da democracia”. Ela faz parte do “patrimônio te para as maiores cidades pela abolição das genético da nação”. Tais expressões emprega- únicas autoridades existentes neste país. Assim das correntemente denotam o caráter intocável a comunidade autônoma do País Basco aboliu dessa coletividade. Aliás, todas as reformas ou a Corporação Metropolitana do Grande Bilbao projetos de reforma da organização territorial em 1980. Alguns anos mais tarde, em 1986, é francesa prestaram atenção, especialmente nos a vez da Corporação Grã Valência de desapa- seus preâmbulos, para não colocar em causa a recer após uma lei da Generalitat de Valência. existência municipal. Essa mesma Generalitat aboliria em 1999 o A constatação é clara. As coletividades Conselho Metropolitano de Horta, órgão criado locais delegam ou transferem o mínimo de em 1986 para remediar a supressão da Corpo- competências possível e o mínimo de recursos ração Gran Valência. Enfim, a Catalunha supri- à sua disposição às estruturas de governo das me a Corporação Metropolitana de Barcelona áreas metropolitanas. Quando obrigadas a is- em 1987. Mesmo se o fato de todas essas es- so, como no caso das comunidades urbanas no truturas administrativas metropolitanas terem final dos anos 1960, os eleitos municipais se sido criadas sob o regime franquista justifique esforçaram para esvaziar de sentido as transfe- politicamente em parte essas abolições, não rências de competências. Com certeza, as coi- deixa de ser verdade que a principal razão sas mudam, mas evoluem muito lentamente, é elas não poderem fazer sombra às jovens 310 Book CM v11_n22.indb 310 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:37 Governar as metrópoles: questões, desafios e limitações... regiões recentemente criadas (Rodriguez-Alva- leis regionais (Toscana e Emília-Romanha, rez, 2004). De resto, a lentidão dessas regiões particularmente) que lhes deram relativa legi- em delegar competências em nível municipal, timidade, apesar das inovações em sua con- como o pede o processo de descentralização di- cepção e execução, como em Bolonha (Jouve e to do “pacto local” e a não concretização das Lefèvre, 1996), elas ficaram letra morta porque propostas de constituição de novas entidades contra elas se voltou o conjunto do sistema de sobre essas metrópoles, ilustram a reticência coletividades locais, uma maioria dos partidos das coletividades locais a se engajarem em pro- políticos pelo menos no âmbito local, e porque cessos que fortaleceriam o nível metropolitano. nunca receberam o apoio do Estado. Em 1999, A situação é idêntica na Alemanha. Es- a lei 142 foi “revisitada” dando a iniciativa do se país que foi dado como exemplo, pois sou- processo às municipalidades. Quase dez anos be dividir por três o número de suas comunas depois é o status quo que prevalece. nos anos 1960 e 1970, mostra-se desde então O continente europeu não é o patinho incapaz, salvo algumas exceções, de organizar feio da metrópole no âmbito mundial. Todos politicamente e mesmo administrativamente os continentes estão na mesma situação. Nes- suas maiores cidades como Berlim, Hamburgo, te contexto, o país onde a idéia metropolita- Frankfurt ou Munique. Aqui domina a potência na de um ponto de vista político-institucional das cidades-centro, que têm um estatuto espe- percorreu o menor caminho são os estados 3 cial e que recusam todas as estruturas locais Unidos. Salvo raras exceções, nenhuma grande dirigindo-as. metrópole americana dispõe de qualquer es- Na Holanda, são as grandes cidades e as trutura de governo. Aqui, país da democracia províncias que se opõem aos projetos de cria- local, dizem-nos, são as municipalidades e as ção de uma “Delta Metropolis” na Randstad. populações que constantemente rejeitaram há Na Grã-Bretanha, são as municipalidades décadas os projetos, frequentemente tímidos, (boroughs em Londres e districts nas outras de constituições de instituições metropolitanas cidades) que se opõem ao fortalecimento dos (Lefèvre, 1992). Nos Estados Unidos, a ideia poderes da autoridade da Grande Londres ou metropolitana causa medo, pois ela aparece que se preocupam com a criação de cidades- como o inimigo do local, do entre si, das co- regiões. munidades que as municipalidades encarnam. Nos anos 1990, a Itália quis sair de seu Aliás, é nos Estados Unidos que se expressa a imbróglio político-institucional votando um projeto de lei, a lei 142. Todo um capítulo dessa lei concerne à constituição das cidades metropolitana (città metropolitane) nas dez maiores cidades do país. Essas città metropolitane, autoridades eleitas por sufrágio universal direto e dispondo de competências fortes e numerosas, nunca viram o dia. Não obstante algumas rejeição à metrópole por movimentos de secessão urbana que têm frequentemente a aprovação das “legislaturas” dos Estados federados. Os processos de descentralização, quaisquer que sejam suas formas, não parecem então resultar em uma ordem institucional que consagraria politicamente o fato metropolitano. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 311 311 17/3/2010 12:49:37 Christian Lefèvre A metrópole é um território de mobilização das forças econômicas? principais atores do governo das metrópoles. No Reino Unido, mesmo sendo verdade que as empresas estão presentes, o âmbito geral da ação pública é fixado pelo Estado que, in- A governança, dizem-nos, corresponde a uma clusive, intervém fortemente com suas normas, abertura do sistema de atores na condução suas regras e financiamentos, quando não age das políticas públicas. A literatura nos repete diretamente tomando o controle das estrutu- que as metrópoles se tornaram um dos princi- ras de desenvolvimento, como se vê para os pais territórios onde está em jogo o futuro de novos estabelecimentos (Urban Development nossas sociedades, e o processo de globaliza- Corporations) da capital. A questão da participação dos atores econômicos na condução das metrópoles, de sua implicação nas políticas que modelam o futuro desses espaços é objeto de debates. Por um lado, autores como Moulaert et al. (2003) mostram uma forte implicação dos meios de negócios, sobretudo das firmas do setor bancário, dos seguros e da promoção imobiliária (setor FIRE em inglês) na elaboração e execução dos grandes projetos urbanos nas cidades europeias. Outros autores que trabalham sobre redes técnicas, as infraestruturas e os serviços urbanos (Campagnac, 1992; Lorrain, 1992) mostraram a intervenção crescente dos construtores e dos operadores desses setores na governança das metrópoles com uma evolução mais recente da implicação dos grandes bancos internacionais em razão da “financeirização” das infraestruturas urbanas (Torrance, 2008). Para esses autores, os meios econômicos estão cada vez mais mobilizados para essas questões por causa dos processos de desregulamentação e de privatização que lhes outorgam mais poder e legitimidade na governança da metrópole. Boudreau e Keil (2004), baseando-se nos trabalhos de Sklair (2001), vão particularmente mais adiante e identificam uma “classe capitalista transnacional” implicada no âmbito das cidades-regiões. ção insiste nos elementos de competitividade econômica no âmbito de uma competição entre as metrópoles em âmbito mundial. Em tal contexto, não é sempre ilegítimo colocar-se a questão da implicação dos atores econômicos (principalmente as empresas e suas estruturas de representação) na conduta das metrópoles. O que realmente acontece? A Grã-Bretanha é provavelmente o país onde a abertura do sistema de atores nas cidades mais se fez em proveito do mundo da empresa. Quando o partido conservador toma o poder em 1979, a análise que faz da situação econômica e social o predispõe diretamente a fazer essa escolha. De fato, o novo governo considera que tanto o excesso de Estado quanto de público são uma das causas principais da crise. É a partir desse diagnóstico que ele vai então iniciar profundas reformas que vão abalar a sociedade britânica e a marcam fortemente até hoje. Assim as empresas estão presentes em todo lugar, a parceria público-privado tendo se tornado um dos paradigmas das políticas urbanas. No entanto, ao serem considerados os outros grandes países europeus, a abertura dos sistemas de atores não é tão evidente. Na França, Itália, Alemanha e mesmo na Espanha, o setor público e o setor político permanecem os 312 Book CM v11_n22.indb 312 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:37 Governar as metrópoles: questões, desafios e limitações... No entanto, de encontro a Moulaert et al. Provas parciais de tal mobilização podem se (2003), Salet e Gualini (2007) não encontram encontrar igualmente em uma metrópole co- nenhuma prova sistemática da mobilização de mo Londres, particularmente com a criação de tais atores nos grandes projetos urbanos, mes- London First em 1995 e as numerosas ativida- mo quando eles estudam os mesmos projetos! des dessa associação de grandes firmas inter- As conclusões de Salet e Gualini são claras: nacionais em âmbito metropolitano (Lefèvre, Nossos resultados mostram nitidamente que a promoção do desenvolvimento econômico é realizada com prioridade pelas coletividades locais e regionais nos sete estudos de caso... A natureza dos interesses econômicos implicados não é nada evidente. Uma pressão explícita da parte do capital internacional é apenas evidente no caso do projeto de Zuidas em Amsterdã. (p. 270) 2008). Mas resta demonstrar que se trata aí de uma tendência geral mais do que de casos muito particulares como o sugere Lefèvre (ibid.) que quanto a ele antes acentua a não mobilização das forças econômicas no âmbito metropolitano. Enfim, resta demonstrar que mesmo quando há implicação dos meios econômicos, estes últimos ocupam um lugar suficientemente importante para dispor de influência, parti- Se a implicação dos meios econômicos cularmente na sua participação em regimes po- na condução das políticas urbanas gera deba- líticos urbanos (Stone, 1989). Por um lado, não te, o mesmo acontece com a escala desta im- apenas os exemplos de regimes políticos me- plicação. De fato, se é certo que as empresas tropolitanos são muito pouco numerosos, mas são partícipes em numerosos projetos urbanos não está demonstrado que esses regimes são e operações urbanas, estes são geralmente eles próprios dominados pelos atores políticos muito localizados. Mesmo se é verdade que al- indicados. Em seus importantes trabalhos com- guns desses projetos urbanos possuem por sua parativos sobre as políticas de desenvolvimen- amplitude e seus interesses uma envergadura to urbano das cidades-centro, Kantor e Savitch metropolitana, é por isso que as empresas se (2002) mostram de maneira convincente que implicam na governança da metrópole em seu a composição dos regimes políticos urbanos e conjunto? das estratégias que eles elaboram e executam Boudreau e Keil parecem responder é resultado de quatro variáveis (as condições afirmativamente. Em seu estudo sobre To- econômicas, as relações entre coletividades pú- ronto, eles identificam um grupo de atores blicas, a cultura local e o controle dos eleitores privados que se investe no âmbito do conjun- e dos habitantes). A combinação das duas pri- to da metrópole. Eles definem esse grupo co- meiras variáveis produz uma situação de nego- mo uma classe transnacional composta “por ciação (barganing situation) que, cruzada com responsáveis das firmas transnacionais, por as duas outras, explica amplamente a natureza chefes dos PME e por grandes agricultores, dos regimes políticos urbanos e o conteúdo de por burocratas globalizados, por políticos e suas estratégias. Esses dois autores mostram especialistas globalizados e pela classe média igualmente que, enquanto cidades possuem urbana consumista (consumption-oriented)”. regimes políticos dominados pelos meios de Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 313 313 17/3/2010 12:49:37 Christian Lefèvre negócios, outras são dirigidas por regimes em políticas e estratégias porque as cidades são que as coletividades públicas são preponderan- atores que “não são simples folhas no vento da tes. Esses regimes não produzem as mesmas globalização”. Christian Lefèvre Formado em Ciência Política e Planejamento e Urbanismo. Professor Pesquisador do LATTS e do Institut Français d’Urbanisme, da Université Paris Est Marne La Vallée (Paris, França). Responsável pela especialização Stratégies Métropolitaines du Master de l’IFU. [email protected] Notas * Gouverner les métropoles: enjeux, défis et contraintes de la constitution de noveaux territoires politiques – Texto traduzido por Eveline Bouteiller. (a) (N.T.) Randstad – zona metropolitana que se estende de Amsterdã a Roterdã. (b) (N.T.) Nimbismo – Síndrome dos indivíduos que não desenvolvem atitudes comunitárias, por sua responsabilidade ou das políticas urbanísticas. ‘NIMBY’ (not in my backyard, não no meu quintal) pode ser uma comunidade que resiste à instalação de um equipamento ou instituição (por exemplo, um centro de atendimento a tóxico-dependentes) que considera necessária... mas nunca no seu bairro. O “nimby” reclama os seus direitos, mas não se sente obrigado perante a colectividade. (http://www.esas.pt/~defacto/o_urbanismo.htm) (c) (N.T.) Home rule – Solicitação de autonomia de governo por parte de um Estado diante do governo central. (1) Limitamo-nos aqui à Europa, mas é claro que os Estados Unidos são o país onde os referendos negativos sobre as autoridades metropolitanas foram os mais numerosos. (2) Para ter uma ideia sintética deste debate e de seus resultados, o leitor poderá ler com utilidade os seguintes artigos citados nas referências: Wood (1958), Ostrom, Tiebout e Warren (1961), Newton (1982) e Keating (1995). (3) Estas cidades são kreisfreie stadt, quer dizer comunas ”isentas de kreis”. As kreise são estruturas políticas e administrativas no nível de nossos départements (N.T. Départements – Divisão administrativa da França.) 314 Book CM v11_n22.indb 314 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:37 Governar as metrópoles: questões, desafios e limitações... Referências ALBRECHT, L. e A. BENZ (1999). “Les politiques institutionnelles dans un Etat fédéral: la création du Verband Region Stuttgart”. In: JOUVE, B. e C. LEFÈVRE. Villes, métropoles: les nouveaux territoires du politique. Paris, Anthropos. BENNETT, R. (1989). Territory and administration in Europe. Londres, Pinter. BOUDREAU, J. A.; DIDIER, S. e HANCOCK, C. (2004). Homégénéisation résidentielle et indépendance politique: de la sécession urbaine et autres incorporations à Los Angelès. L’espace géographique, v. 33, n. 2, pp. 131-148. BOUDREAU, J. A. e KEIL, R. (2004). “In search of a new political space? City-regional institutionbuilding and social activism in Toronto”. 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Texto recebido em 10/maio/2009 Texto aprovado em 19/jul/2009 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 299-317, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 317 317 17/3/2010 12:49:37 Book CM v11_n22.indb 318 17/3/2010 12:49:37 Efeito metropolitano e cultura política: novas modalidades de exercício da cidadania na metrópole de Lisboa* Metropolitan effect and political culture: new forms of exercising citizenship in the metropolis of Lisbon Manuel Villaverde Cabral Resumo Desde o final do século passado vem se falando de um desengajamento em relação à democracia. Na realidade, não se trata de desencanto com os valores democráticos, mas sim com o desempenho da classe política e dos atuais regimes representativos. O autor tem estado envolvido numa pesquisa sistemática sobre as principais dimensões do conceito de cidadania política e sobre os obstáculos objetivos e subjetivos ao seu pleno exercício. Neste capítulo, pretende-se explorar o impacto da metropolização sobre o conjunto de questões envolvidas no exercício dos direitos cívicos e políticos. A capital portuguesa, Lisboa, é assim estudada na perspectiva das relações entre metrópole e cultura política, de modo a averiguar a existência ou não de um efeito metropolitano específico sobre o exercício individual da cidadania. Abstract Since the early 1990s many authors have been talking about a disengagement from democracy. Actually, there is no popular disenchantment with democratic values, but with the performance of politicians and of the representative system. The author has been involved in a systematic research on the main dimensions of the concept of political citizenship as well as the objective and subjective obstacles to its full exercise. In this paper, the impact of metropolisation upon the whole set of issues involved in the exercise of civic and political rights is explored. The Portuguese capital, Lisbon, is thus studied in the perspective of the relationship between metropolis and political culture, in order to show whether there is a specific metropolitan effect on the individual exercise of citizenship. Palavras-chave: cidadania; cultura política; metrópole; efeito metropolitano. Keywords: citizenship; political culture; metropolis; metropolitan effect. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 319 17/3/2010 12:49:37 Manuel Villaverde Cabral principais dimensões envolvidas no conceito de Enquadramento teórico e metodológico cidadania política, bem como dos obstáculos objetivos e subjetivos ao seu pleno exercício, desde os direitos sociais e a equidade do sis- Embora os direitos de cidadania sejam habitual- tema de recompensas socioeconômicas até à mente valorizados pela teoria democrática, literacia e à representação partidária, passan- nem sempre as condições que permitem o seu do pela distância ao poder entre governantes pleno exercício atraíram no passado a atenção e governados, com ênfase recente numa pers- que têm vindo a adquirir na última década e pectiva histórica e comparativa entre Portugal meia. Existe, na realidade, um longo lapso de e Brasil (Cabral, 1997; 1998a; 2000; 2001a; tempo entre o clássico de Marshall (1950) e a 2001b; 2003; 2004a; 2006). reativação dos estudos sobre a cidadania com No presente texto, pretendo explorar os livros de Bryan Turner (1993, 1994). E não agora o impacto da urbanização e daquilo que se trata apenas de um lapso temporal mas a literatura norte-americana designa por urban também teórico, já que o interesse atual por sprawl, correspondente a formas variadas de suburbanização e periferização, frequentemente diversas das prevalecentes nos Estados Unidos, em suma: explorar as consequências da metropolização das grandes aglomerações urbanas contemporâneas sobre o mesmo conjunto de questões envolvidas no exercício dos direitos cívicos e políticos. Dito de outro modo, pretende-se não só averiguar a existência ou não de um efeito metropolitano sobre o exercício da cidadania, como explorar também as eventuais relações entre as grandes metrópoles e a cultura política atual. Com a importante excepção de Robert Putnam (2000), a literatura corrente tem tido pouco a dizer sobre os efeitos positivos e negativos que a vida metropolitana possa exercer sobre o exercício efetivo da cidadania assim como as suas modalidades específicas. Na verdade, a dimensão urbana da cidadania, embora crucial nas primeiras formulações do conceito, como em Max Weber (1958 [1921]), perdeu importância na literatura recente, especialmente naquela que se baseia em dados de pesquisas quantitativas (surveys) estas questões despertou de forma totalmente diversa à abordagem positiva de Marshall num momento em que os direitos cívicos e políticos estavam precisamente a ser reforçados, a seguir à 2ª Guerra Mundial, pela consolidação dos direitos sociais nas sociedades mais desenvolvidas; em contraste com isso, as abordagens atuais partem da observação de um défice crescente da participação política convencional, assim como do declínio da identificação com instituições democráticas tais como os partidos e parlamentos. Efetivamente, pelo menos desde o início dos anos 90 do século XX que se observam diversas formas de “desengajamento em relação à democracia” (Johnston, 1993), o qual revelou ser, na realidade, não propriamente um desencanto com os valores democráticos enquanto tais, mas sim com o desempenho da classe política e da maioria dos atuais regimes representativos, colocando desde logo um problema de “auditoria democrática” (Beetham, 1994). Eu próprio tenho estado envolvido desde então numa pesquisa sistemática acerca das 320 Book CM v11_n22.indb 320 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:37 Efeito metropolitano e cultura política que pretendem captar a formação e o exercício também em formações sociais com tradições da cidadania ao nível nacional e internacional políticas que se afastam da corrente demo- ( cross national ), como tem vindo a acontecer liberal dominante nos estudos de cidadania, desde o início dos estudos quantitativos so- em suma, sociedades como a portuguesa e a bre a cultura política (Almond e Verba, 1963; brasileira, mas também a espanhola e a italia- 1980). Veremos, contudo, que a vida urbana na por exemplo (Alabart, Garcia e Giner, 1994). enquanto tal, pelo menos no que diz respeito Por último, teremos ainda em conta as críticas à área metropolitana de Lisboa, tem um im- teóricas (Cohen e Arato, 1992, pp. 177-341) e pacto mensurável tanto na dimensão da ação sociológicas (Alexander, 1998) às visões con- coletiva como nas concepções dos direitos e vencionais – na realidade, idealizadas – da deveres cívicos, e ainda nas diferentes moda- chamada sociedade civil. Em derradeira ins- lidades de exercício da cidadania. Com efeito, tância, o objetivo do estudo é contribuir para o nosso projeto tem o objetivo de revisitar com um melhor entendimento do exercício da cida- novas bases empíricas as teses segundo as dania e do papel que as populações urbanas e quais o exercício da cidadania é não só favore- metropolitanas desempenham na vida cívica cido pelo modo de vida urbano como constitui, e política. Os debates correntes sobre a teoria na realidade, uma manifestação fenomenoló- democrática poderão também beneficiar das gica do urbanismo no sentido sociológico clás- nossas aquisições, nomeadamente em demo- sico (Wirth, 1938). cracias da “terceira vaga”, como Portugal e o Simultaneamente, teremos oportunidade Brasil. de testar tendências contrárias à manifestação da cidadania que levaram autores como Robert Putnam a acreditar que determinadas evoluções recentes das grandes aglomerações urbanas, tais como a transformação de muitas cidades A composição sociodemográfica da metrópole de Lisboa1 modernas em enormes áreas metropolitanas substancialmente diversas daquelas cidades É importante conhecer a composição da popu- que estiveram na origem da teoria de Weber e lação metropolitana, por contraste com a res- da sociologia urbana clássica de Simmel a Park tante população portuguesa, porquanto é pre- (Grafmeyer e Joseph, 2004), estariam de fato visível que muitas das diferenças de atitudes e a gerar efeitos opostos à produção de capital comportamentos entre a metrópole e o resto social e à manutenção daquelas redes de so- do país se devam, precisamente, às diferentes lidariedade que contribuíam para favorecer as composições demográficas e socioculturais de modalidades convencionais do exercício da ci- cada um dos conjuntos. Com efeito, só podere- dadania (Putnam, 2000). mos falar de um autêntico efeito-metrópole na A isto acresce a necessidade de estudar medida em que o simples contraste entre viver todas estas tendências e contratendências não ou não na metrópole venha a se verificar ne- só nas sociedades onde convencionalmente cessário, estatisticamente, para explicar as di- prevaleceria a chamada cultura cívica, mas ferenças que subsistirem depois de os impactos Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 321 321 17/3/2010 12:49:38 Manuel Villaverde Cabral Tabela 1 – Classe social2 Percentagens (%) Burguesia Nova burguesia assalariada Pequena burguesia tradicional Salariato não manual Trab. manuais independentes Salariato manual Total N Metrópole de Lisboa 8.9 19.5 2.8 36.0 3.7 29.0 100 830 Portugal não metropolitano 7.9 10.9 3.4 25.5 9.7 42.8 100 746 Portugal (média ponderada) 8.6 14.8 3.2 27.9 8.0 37.6 100 1.575 x2= 75.99; p <.000 das restantes variáveis sociodemográficas das Uma nota suplementar de extrema im- respectivas populações. Portanto, é necessário portância acerca da composição social da po- ter consciência que estas populações diferem pulação metropolitana é o fato de ela contar de forma significativa a quase todos os níveis hoje com a presença de 14,5% de pessoas de relevantes. nacionalidade estrangeira (contra apenas 2% A composição de classe, para começar, fora da metrópole lisboeta), na sua grande é muito diversa, residindo as diferenças mais maioria trabalhadores imigrantes e seus fami- significativas no fato de as duas categorias liares. Também aqui é notória a diferença entre típicas da modernidade – a nova burguesia o centro e a periferia da metrópole, com 5% assalariada e o salariato terciário, por contras- de imigrantes no primeiro e 16% na segunda.4 te sobretudo com os trabalhadores manuais Se é certo que este segmento populacional (assalariados e independentes) – terem muito contribui para conferir à metrópole de Lisboa mais peso na população metropolitana do que esse cosmopolitismo que tipifica as megacida- no resto do país: 55,5% contra 35,5%; inversa- des atuais, nem por isso a difusão do multicul- mente, os trabalhadores manuais representam turalismo deixa de entrar em contradição com apenas um terço da população na metrópole as modalidades de exercício da cidadania as- contra 52,5% no resto do país. Vale a pena no- sociadas às sociedades étnica e culturalmente tar que, dentro do conjunto metropolitano, há homogêneas. diferenças significativas quanto à composição Esta é apenas a primeira manifestação de classe entre o centro (concelho de Lisboa) da operação simultânea, nas áreas metropoli- e a periferia (agrupando os demais 11 conce- tanas contemporâneas, de fatores favoráveis e lhos por impossibilidade amostral de distin- fatores desfavoráveis ao exercício da cidadania guir entre eles), apresentando a periferia uma demoliberal convencional, como veremos mais percentagem muito superior de trabalhadores adiante. Note-se, contudo, que as diferenças assalariados, sejam manuais ou não manuais, objetivas na composição social da população 3 exatamente 66%. 322 Book CM v11_n22.indb 322 metropolitana e no resto do país só em parte é Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:38 Efeito metropolitano e cultura política Tabela 2 – Nível de instrução Percentagens (%) Nenhum Até ao 1º Ciclo Até ao 3º Ciclo Secundário Superior Total N Metrópole de Lisboa 16.7 24.7 14.0 25.4 19.2 100 845 Portugal não metropolitano 20.5 38.4 14.5 16.8 9.8 100 756 Portugal (média ponderada) 18.6 21.2 15.1 20.4 14.7 100 1.601 x2= 65.21; p <.000 Média (0 – nenhum a 4 – superior) 2.05* 1.57* 1.82 *Teste: t (1599) = 7.34; p <.000 reconhecida, subjetivamente, pelos inquiridos. isto, se necessário fosse, a capacidade da cida- A previsível concentração subjetiva em torno de – para mais, capital do país e antiga sede das classes médias é, afinal, o reflexo do cha- do império colonial – para captar e reproduzir mado efeito de classe média induzido pela mo- recursos humanos qualificados em função da bilidade social e pela desindustrialização, mas sua estrutura econômica e político-adminis- também pelos padrões do consumo de massas trativa. Esses traços combinados da população e da exposição aos meios de comunicação metropolitana sustentam, sociologicamente, igualmente massificados (Estanque, 2003; uma maior exposição à vida política, bem como Cabral, a publicar). uma maior propensão para o envolvimento na Previsivelmente, esta composição de esfera pública. O mesmo acontece com as di- classe aponta no sentido de a população me- ferenças de rendimento, que se correlacionam tropolitana possuir, em média, níveis de ins- com padrões atitudinais e comportamentais trução francamente superiores aos do resto similares, como veremos mais tarde. do país: quase 20% de diplomados do ensino superior contra menos de 10% fora da metrópole e 44,6% nas duas categorias superiores Composição cívica e cultural contra 26,5% no resto do país. Reproduzindo as diferenças já observadas entre centro e pe- Porém, as diferenças na composição das duas riferia, esta última apresenta previsivelmente populações não são apenas de ordem socio- menos pessoas com nível superior de instrução demográfica e econômica; são também de (17.6%) do que o concelho de Lisboa (43,6%)5. natureza cultural em sentido forte: valores que Numa escala de 0 a 4 níveis, a média situa-se implicam por seu turno atitudes e comporta- em 2.05 na região metropolitana e 1.57 no res- mentos. É a este nível que vão operar as teorias to do país, apesar da universalização e da des- sobre a especificidade da vida urbana, tais co- centralização do aparelho escolar. Demonstra mo as expostas por Simmel (1903; 1909), Park Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 323 323 17/3/2010 12:49:38 Manuel Villaverde Cabral Tabela 3 – Estado civil Percentagens (%) Casado(a) Viúvo(a) Divorciado(a) Separado(a) Solteiro(a) Total N Metrópole de Lisboa 48.7 11.2 6.0 1.8 32.4 100 840 Portugal não metropolitano 60.9 13.3 4.6 0.8 20.3 100 757 Portugal (média ponderada) 56.9 12.2 4.9 1.0 25.0 100 1.598 x2= 38.34; p <.000 (1925; 1926; 1929) e Wirth (1938), ao chama6 isolados é superior a 40% na metrópole de rem a atenção para a estimulação nervosa e a Lisboa contra menos de 28% no resto do país, diversidade de experiências que concorrem na onde os casados e viúvos se elevam a perto de grande cidade, em contraste com as tendências três quartos da população contra menos de simultâneas para o bowling alone, igualmente 60% na metrópole. Para os homens a diferença próprio da metrópole e ao qual Putnam alude é ainda maior! no título do seu livro. Uma vez mais, estamos Ora, do ponto de vista da participação diante da vida metropolitana enquanto com- cívica e da mobilização política, sabemos des- binatória de efeitos positivos e negativos para de Durkheim que a anomia tende a prevalecer o desenvolvimento de atividades individuais e entre as pessoas isoladas, imigrantes por exem- coletivas habitualmente associadas à participa- plo, que se revelam, tudo ponderado, menos ção ativa na esfera pública. proeminentes na esfera cívica do que os indiví- Com efeito, independente da estrutura duos com laços familiares e locais mais fortes. etária, a propensão da população metropolita- Tipicamente, em Portugal os casados votam na para a conjugalidade convencional é signi- mais do que os solteiros e divorciados (Cabral, ficativamente menor do que no resto do país. 1998a). De novo se verifica, pois, como acon- Demonstra-se assim, por contraste, que um tecia com as situações de multiculturalismo dos traços característicos da vida nas grandes étnico e religioso, a operação de fatores me- metrópoles modernas reside no peso que nelas tropolitanos que jogam contra o exercício das têm as pessoas isoladas, sobretudo entre os jo- modalidades convencionais da cidadania políti- vens, ou seja, exclusive dos viúvos e viúvas que ca, como é o caso do celibato e do isolamento, predominam nos meios pequenos. Agregando por seu turno correspondentes à metáfora do solteiros, divorciados e separados, verifica-se bowling alone, como à do próprio estrangeiro (Simmel, 1909). que o peso desta categoria sociológica dos 324 Book CM v11_n22.indb 324 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:38 Efeito metropolitano e cultura política Tabela 4 – Prática religiosa Percentagens (%) Prática religiosa nula Prática religiosa rara Prática religiosa irregular Prática religiosa regular Total N Portugal não metropolitano 14.9 34.6 18.0 32.5 100 757 Lisboa 33.5 41.6 10.4 14.5 100 846 Portugal (média ponderada) 19.9 37.0 15.6 27.5 100 1.602 x2= 132.93; p <.000 Média (1 – nula a 4 – regular) 2.06* 2.68* 2.51 * Teste: t (1601) = -11.81; p <.000 Outro fator de ordem cultural, ligado de resto à mobilidade espacial e à menor pro- média de 2.08 nesta última e no centro menor ainda (1.84).7 pensão para constituir agregados familiares Não surpreende pois que, dada a ligação tradicionais, distingue de forma muito signifi- histórica inversa entre religiosidade católica e cativa a população metropolitana e a do resto progressismo político, os cidadãos da metrópole do país. É a prática religiosa. De acordo com se situem francamente à esquerda dos do resto a teoria convencional da secularização, a me- do país, incluindo mais uma vez os do Sul, na trópole de Lisboa, além de estar culturalmente habitual escala Esquerda/Direita (4.70 contra integrada na região meridional do país, histori- 5.17), sendo de notar a elevada percentagem camente caracterizada pela fraca implantação de entrevistados, sobretudo fora de Lisboa mas das estruturas da igreja católica, é conhecida também na metrópole, que recusaram situar- há mais de um século pelos observadores con- se nesta escala. Em compensação, a percen- temporâneos como acentuadamente seculari- tagem de entrevistados que não se identifica zada, tendo mesmo sido palco de continuadas com qualquer formação do espectro partidário manifestações anticlericais (Cabral, 1979). Nu- nacional é francamente superior entre os resi- ma sociedade como a portuguesa, marcada por dentes na região metropolitana (perto de 44%) práticas religiosas comparativamente elevadas do que no resto do país (cerca de 32%), o que e pela forte influência do catolicismo (Cabral, constitui desde logo um indício de autonomia, 1998a), a metrópole lisboeta destaca-se, por- senão mesmo de rebeldia, em relação à oferta tanto, pelo fato de a prática religiosa regular partidária, de acordo com o modelo do cidadão ser inferior a metade e a prática nula mais do crítico (Norris, 1999). Note-se, contudo, que is- dobro do resto do país, incluindo o Sul. A dife- so se deve sobretudo à população da periferia, rença entre o centro e a periferia da metrópole que a este respeito se mostra muito mais rebel- é pequena mas significativa, sendo a prática de do que a do centro da metrópole.8 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 325 325 17/3/2010 12:49:38 Manuel Villaverde Cabral Assim, embora a orientação ideológica à esquerda esteja historicamente associada verbal, para interiorizar as normas demoliberais, como veremos a seguir. ao exercício ativo da cidadania, não deixa de ser exato que a anomia urbana, bem como a secularização e talvez a quebra da identificação partidária, contribuem negativamente, em concurso com outros fatores identificados por Os deveres e os direitos do “bom cidadão” Putnam (2000), como por exemplo o urban sprawl, para a integração social e a formação de redes de confiança e participação habitualmente associadas à geração de capital social e à mobilização cívica e política. Podemos deste modo aperceber-nos já de que, na grande metrópole moderna, devido às suas próprias características de modernidade, cujas dimensões psicossociológicas foram admiravelmente identificadas por Simmel e por Walter Benjamin (1986 [1935]), há fatores contrários operando em simultâneo, por assim dizer, a favor e contra o envolvimento cidadão na esfera pública e na vida política. É isso que sucede a nível da participação eleitoral, que tende atualmente a ser menor na metrópole do que fora dela.9 O mesmo acontece com os valores convencionalmente associados aos chamados deveres do “bom cidadão”. Temos aqui várias linhas de interpretação, possivelmente operando mais uma vez em simultâneo: por um lado, maior tendência dos residentes na metrópole, por causa do seu capital social e cultural comparativamente maior, para se entregar ao “cinismo político” ou, então, para resistir à “espiral do silêncio” (Noelle-Neuman, 1995), ou seja, para ter menor relutância em admitir publicamente o desrespeito pelo dever cívico de votar; por outro lado, no resto do país, é possível que a população revele maior disposição, pelo menos 326 Book CM v11_n22.indb 326 Dependendo daquilo que se entenda por “bom cidadão”, acabamos de ver que os cidadãos lisboetas, apesar de possuírem em maior grau do que os do resto do país muitos dos atributos sociodemográficos associados ao exercício da cidadania, mas também alguns desfavoráveis a isso, assumem mais facilmente do que a população não metropolitana a dissensão relativamente às normas demoliberais. Em todo o caso, se é difícil dirimir a questão da maior ou menor orientação cívica dos residentes na metrópole, sendo exato que não é só ao nível dos valores mas também das práticas que eles votam menos do que no resto do país, já não é verdade que participem menos em associações nem há motivo para pensar que são menos vigilantes em relação à atividade governamental, ao contrário do que dão a entender quando aderem verbalmente menos do que os outros inquiridos àquelas normas cívicas. Embora a maioria das diferenças observadas não seja estatisticamente significativa, os cidadãos metropolitanos tendem sistematicamente a aderir de forma mais reservada aos valores demoliberais do que os do resto do país no que diz respeito às atitudes esperadas do “bom cidadão”, mesmo quando sabemos que os seus comportamentos efetivos não são menos cívicos, antes pelo contrário, do que o dos outros portugueses. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:38 Efeito metropolitano e cultura política Tabela 5 – Deveres do bom cidadão Escala: 1-não importante 7-muito importante (médias) Metrópole de Lisboa Portugal não metropolitano Teste -t Portugal (média ponderada) Votar sempre nas eleições N 5.89 843 6.00 746 n.s. 5.97 1584 Nunca tentar fugir aos impostos N 6.23 840 6.27 746 n.s. 6.26 1580 Obedecer sempre as leis e regulamentos N 6.30 843 6.33 744 n.s. 6.32 1580 Manter-se atento à atividade do governo N 5.75 836 5.90 708 t(1542)= -2.39; p<.01 5.89 1519 Participar nas organizações sociais ou políticas N 4.67 836 4.91 709 t(1543)= -2.75; p<.01 4.88 1523 Tentar compreender diferentes opiniões N 5.92 842 6.00 743 n.s. 5.99 1578 Usar produtos bons para a natureza, mesmo que caros N 5.50 835 5.64 724 n.s. 5.62 1545 Ajudar pessoas em Portugal, que vivem pior N 6.04 839 6.15 749 n.s. 6.13 1585 Ajudar pessoas do resto do mundo que vivem pior N 5.70 836 5.83 732 n.s. 5.81 1557 Disposto a prestar serviço militar N 4.82 802 4.90 680 n.s. 4.87 1461 A importância atribuída a cada um dos interiorizados pelo conjunto das população, so- deveres enunciados é, de resto, muito seme- bretudo fora da metrópole; nesta última, o de- lhante e bastante alta, sendo de notar que, ver menos interiorizado é a participação cívica, tanto para os habitantes da metrópole como o que poderá refletir o distanciamento ante a para os outros, a participação cívica e a vigi- oferta partidária ao qual nos referimos há pou- lância política são dos deveres menos valori- co, embora não tenha, comparativamente ao zados por ambas as populações, indiciando as resto do país, tradução nos comportamentos. baixas percentagens que viremos a encontrar Do mesmo modo que ante os deveres, nestes domínios. Os deveres mais interioriza- os cidadãos metropolitanos também interio- dos são, tanto para uns como para outros, a rizaram menos os seus direitos, verbalmente obediência à lei e o pagamento dos impostos, pelo menos, do que os do resto do país. É difícil mas não atingem os valores extremamente ele- dizer se é a população metropolitana que exi- vados que se observam em países de cultura be, comparativamente, maior grau de cinismo cívica arreigada.10 Reminiscência das guerras político ou, com igual probabilidade, se são os coloniais nas décadas de ‘60 e ‘70 ou de atitu- outros entrevistados que revelam menor so- des mais arreigadas no passado rural, a pres- fisticação e maior pressa, por assim dizer, em tação do serviço militar é dos deveres menos aderir às normas demoliberais veiculadas pelas Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 327 327 17/3/2010 12:49:38 Manuel Villaverde Cabral Tabela 6 – Direitos dos cidadãos Escala: 1-nada importante a 7-muito importante (médias) Metrópole de Lisboa Portugal não metropolitano Teste -t Portugal (média ponderada) Nível de vida digno N 6.64 846 6.71 755 n.s. 6.69 1600 Autoridades respeitarem os direitos de minorias N 6.41 843 6.54 476 t(1588)=-2.77; p<.01 6.51 1586 Autoridades tratarem todas as pessoas por igual N 6.54 845 6.62 751 n.s. 6.61 1593 Políticos escutarem os cidadãos N 6.40 846 6.62 747 t(1591)= -5.17; p<.000 6.56 1589 Ter mais oportunidade de participar nas decisões de interesse público N 6.24 6.43 842 734 Participar em ações de desobediência civil quando se está contra as ações governamentais N 5.03 5.66 816 663 t(1574)= -3.75; p<.000 t(1478)= -7.31; p<.000 6.39 1566 5.49 1443 elites e pela comunicação social, de acordo na prática, surgindo assim o “cinismo político” com os mecanismos da “espiral do silêncio”. aparente dos residentes na metrópole como Seja como for, esta última pesa sobre ambas as uma manifestação do “cidadão crítico”, afinal populações, as quais apresentam, como ante- mais associado e mobilizado do que no resto riormente, um ordenamento muito semelhan- do país. te dos valores e lhes atribui sempre elevada importância. Dito isto, ambas as populações consideram que o primeiro direito dos cidadãos é “um Contudo, as diferenças entre elas são nível de vida digno”, o que não só confirma a graficamente exemplificadas pelo fato de, ape- mitigada adesão da população portuguesa aos sar de os residentes na metrópole valorizarem valores pós-materialistas, como constitui um menos do que os outros o direito a “ter mais efetivo desvio à norma demoliberal, segundo a oportunidades de participar em decisões de qual a liberdade, designadamente a liberdade interesse público”, são eles quem mais recor- de organização e de protesto, é supostamente re, na prática, a esse direito, como veremos o mais alto valor democrático. O segundo direi- adiante. Portanto, tanto no plano dos “deve- to mais valorizado por ambas é “o tratamento res” como no dos “direitos”, a adesão verbal igual por parte das autoridades”, o que indicia às normas demoliberais prevalece sistematica- indiretamente a reivindicação de mais equida- mente entre aquela população, não metropoli- de processual (Vala e Marinho, 2003), uma vez tana, que menos revela identificar-se com eles mais com prioridade sobre a liberdade. 328 Book CM v11_n22.indb 328 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:38 Efeito metropolitano e cultura política Atributos políticos das populações metropolitanas e não metropolitanas da metrópole, onde a média, numa escala de 1 (confiança mínima) a 5 (confiança máxima), é de 2.12 contra 2.47 no centro.11 A avaliação da democracia, feita de forma genérica, sem referência ao desempenho concreto do regime Por atributos políticos, entendemos proprieda- português, situa-se ligeiramente acima da mé- des tais como a compreensão e a eficácia polí- dia, mas também não diferencia a população ticas, que por seu turno configuram o próprio metropolitana e não metropolitana; em com- interesse pela vida pública e a atenção à vida pensação, diferencia a população do centro política, as quais medeiam, por assim dizer, en- da metrópole e a periferia, onde a avaliação é tre os caracteres sociodemográficos, econômi- francamente mais negativa: 5.63 contra 6.30 cos e culturais, e as atitudes e comportamentos numa escala de 1-10.12 Em suma, a relativa in- políticos propriamente ditos. De uma forma diferenciação entre as populações, bem como geral, as médias são superiores na metrópole os níveis baixos de compreensão, eficácia e mas, ao contrário do que se poderia esperar, confiança políticas podem ser interpretados co- o sentimento de eficácia política é baixo tanto mo sintomas da crise da representação política na metrópole como no resto do país e as dife- (Porras Nadales, 1996), à qual tenho aludido renças observadas, embora no sentido previsí- no caso de Portugal (Cabral, 2004b). vel, não são estatisticamente significativas. Em compensação, a população metropolitana considera-se melhor informada sobre os principais acontecimentos políticos do país do que os restantes cidadãos, devido entre outras razões à Socialização política e confiança social sua proximidade física e social aos diversos organismos do Estado (maioritariamente localiza- Obviamente, isso dever-se-á também à socia- dos em Lisboa), mas a verdade é que, em agre- lização e à experiência políticas dos portugue- gado, a compreensão política dos dois univer- ses. Estas questões não foram inquiridas no sos não apresenta diferenças estatisticamente módulo do ISSP, mas foram testadas no módu- significativas. Ambos partilham um acentuado lo especial aplicado em Portugal e no Brasil.13 sentimento de impotência e alheamento em re- Embora as diferenças entre os residentes na lação ao processo político-partidário. metrópole de Lisboa e fora dela sejam relevan- Algo de semelhante se passa com a confiança política, isto é, a confiança declarada tes, elas acabam por não ter mais impacto do que as variáveis anteriores nas análises finais. nos agentes partidários e governamentais. Ain- Dois indicadores diretos sobre a socia- da que ambas as populações apresentem graus lização para a vida política recebida na ado- elevados de desconfiança no pessoal político, lescência e juventude, junto da família e na registam-se entre os habitantes da metrópo- escola, apontam para níveis de motivação mui- le graus de cinismo político superiores aos do to baixos, mas que mesmo assim diferenciam resto da população, especialmente na periferia claramente os universos metropolitano e não Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 329 329 17/3/2010 12:49:38 Manuel Villaverde Cabral Tabela 7 – Socialização primária Escala: 0 - baixa a 3 – elevado Média N Metrópole de Lisboa 0.91* 817 Portugal não metropolitano 0.67* 704 Portugal 0.78 1506 * Teste: t(1519)=5.40; p <.000 metropolitano no sentido esperado, isto é, uma país. No conjunto, as diferenças não são sig- socialização para a vida política claramente nificativas, mas é importante reter que é no superior entre a população metropolitana à do local de trabalho e com os familiares e amigos, resto do país; o mesmo acontece entre o «cen- sobretudo estes últimos, que os habitantes da tro» e a «periferia» da metrópole de Lisboa, região metropolitana de Lisboa reconstroem, sendo a socialização política primária nesta por assim dizer, a sua socialização política, última muito inferior à do centro (0.81 contra consideravelmente mais do que isso ocorre no 1.46),14 mas mesmo assim superior à do resto resto do país, onde se fala menos de assuntos do país. políticos, mas em compensação se usam mais Quanto à socialização secundária, há as dimensões comunitárias – vizinhança e as- manifestamente duas variáveis que funcionam sociações locais – do que na metrópole, como de forma inversa na metrópole e no resto do aliás acontece também no Brasil. Confirma-se, Tabela 8 – Socialização secundária Falar de política… (médias) ... no local de trabalho N … encontros com amigos N ... em casa/familiares N ... reuniões associativas N ... conversas de bairro N Média Escala: 1 baixa – 4 elevada N Lisboa 2.09 790 2.27 842 2.28 845 1.53 750 1.71 836 Lisboa 1.96* 716 Portugal Portugal não Teste -t (média ponderada) metropolitano 1.94 t(1509) = 2.91; 2.01 721 p < .01 1518 2.10 t(1595) = 3.63; 2.17 755 p < .000 1597 2.17 t(1598) = 2.46; 2.23 755 p < .05 1599 1.55 1.56 n.s. 696 1457 1.80 1.78 n.s. 744 1574 Resto do país 1.89* 678 Portugal 1.93 1412 Alpha de Cronbach =.86 *Teste-t = n.s. 330 Book CM v11_n22.indb 330 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:38 Efeito metropolitano e cultura política contudo, que o fato de se viver em contexto ainda na periferia do que no centro da metró- metropolitano influencia a ressocialização pole, o que poderá ficar a dever-se à subur- política. Neste caso, a discussão política é banização maciça e relativamente recente da não só uma prática mais frequente entre os periferia da Lisboa, onde a confiança média é cidadãos da metrópole, como também ocorre de 2.24 contra 2.43 no centro da metrópole15 e em círculos de sociabilidade mais alargados do 2.58 no resto do país. que a família ou a vizinhança, podendo pois Confirma-se, pois, que também em já falar-se de processos de geração de capital Portugal a confiança tende a diminuir com a social. Não é impossível, antes pelo contrário, dimensão dos aglomerados populacionais e com que a ressocialização, por exemplo em con- a metropolização. Contudo, só um indicador – texto laboral, influencie retrospectivamente a as pessoas tentarão aproveitar-se de mim – se reconstrução da própria socialização primária revelou estatisticamente discriminante, já que (Inkeles e Smith, 1974). a consistência do índice é muito baixa. Esta Finalmente, no que diz respeito à con- quebra da confiança interpessoal seria, segundo fiança social, já sabemos através de múltiplas Putnam, um fator relevante na explicação pesquisas que ela não é um atributo da socie- do declínio do envolvimento cívico e político dade portuguesa (Halman, 2001). Acresce que, nas atuais grandes áreas metropolitanas de acordo com as teorias prevalecentes a este em virtude da sua fragmentação recente. respeito, a confiança social tende a diminuir Na realidade, em Portugal, a confiança não nas grandes metrópoles, correlativamente à figurará entre os preditores de qualquer das anomia e ao isolamento, em relação às comu- nossas duas variáveis dependentes, a saber, as nidades mais pequenas. Com efeito, é isso que atitudes e práticas ante o associativismo e a acontece na metrópole de Lisboa e é menor automobilização. Tabela 9 – Confiança interpessoal Pessoas tentam aproveitar-se de mim ou serão honestas N Pessoas são de confiança ou todo o cuidado é pouco N Metrópole de Lisboa 2.36* 794 2.18** 796 Portugal não metropolitano 2.52* Portugal 2.48 729 1536 2.20** 2.19 742 1558 * Teste: t(1521) = -3.97; p <. 000 ** Teste-t: n.s. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 331 331 17/3/2010 12:49:38 Manuel Villaverde Cabral previsível, o interesse pela política está mais O interesse pela política e as suas manifestações difundido na metrópole do que no resto do país, embora a diferença não seja significativa, o que se poderá explicar, porventura, pelo fato O interesse pela política, independente dos fa- de ele estar bastante mais difundido, dentro do tores sociodemográficos que eventualmente o espaço metropolitano, no centro do que na pe- expliquem, tem revelado em múltiplas pesqui- riferia: 2.63 contra 2.16 numa escala de 1 (ne- sas funcionar virtualmente como uma variável nhum interesse) a 4 (muito interesse).16 independente; noutros casos, como sucede A mobilização cognitiva é a designação com os resultados desta pesquisa, ele não vai técnica dada no Eurobarômetro, realizado re- figurar como preditor na maioria das análises gularmente pela Comissão Europeia em todos de regressão, mas manifesta-se através de os países membros da União, a um conjunto de alguns dos seus correlatos potenciadores, co- dois indicadores que medem a frequência com mo a mobilização cognitiva e a exposição aos que os inquiridos falam de política e a sua pro- media informativos. Em todo o caso, como era pensão para tentar influenciar outras pessoas Tabela 10 – Mobilização cognitiva 1.27* Portugal não metropolitano 1.12* 842 742 Metrópole Média N Portugal 1.18 1578 Escala: 0 – nula a 3 – máxima * Teste: t(1582)= 4.09; p <.000 Tabela 11 – Exposição aos media informativos Médias Lê assuntos políticos nos jornais N Vê noticiários da televisão N Ouve noticiários da rádio N Utiliza a Internet para saber notícias e informação política N Metrópole 1.61 845 3.59 846 2.01 844 0.69 Não metrópole 1.33 745 3.62 750 1.87 748 0.30 841 742 Teste -t t(1588)= 4.07; p<.000 n.s. n.s. t(1581)= 7.13; p<.000 Portugal 1.44 1581 3.61 1590 1.93 1587 0.45 1575 Escala: 0 – nula a 4 – total Média N Lisboa 1.98* 841 Resto do país 1.78* 740 Portugal 1.86 1571 Alpha de Cronbach =.55 * Teste: t(1578)= 4.96; p <.000 332 Book CM v11_n22.indb 332 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:38 Efeito metropolitano e cultura política quando estão convictos das suas opiniões política, por sua vez potenciadoras da ação (r=.52). Por outras palavras, trata-se de um individual e coletiva, a mobilização cognitiva índice psicossociológico de liderança, nomea- e a exposição aos meios de comunicação no- damente em matéria política. Previsivelmente, ticiosos irão surgir com bastante relevo como a presença de indivíduos com um papel de lide- preditores da cidadania ativa. rança nas discussões políticas é muito maior na Para terminar a análise da cadeia de in- metrópole do que no resto do país e também centivos e obstáculos que surgem no caminho no centro desta última em relação à periferia.17 da ação cívica e política, sendo certo, como A mobilização cognitiva parece refletir a maior nos tem lembrado uma série de autores desde complexidade da vida metropolitana e terá, co- Mancur Olson (1998) a Wanderley Guilherme mo tal, um peso elevado na predição das variá- dos Santos (1998), que a relação custo-bene- veis dependentes. fício da iniciativa política é de difícil cálculo e, No que diz respeito à exposição aos frequentemente, os riscos são percepcionados media, o problema, como sabemos pela literatura mais sofisticada (Sapiro, 2002), não reside tanto no acesso a uma informação superabundante, mas sim na motivação para procurar a informação mais relevante entre o ruído constante produzido pela multiplicidade de meios de comunicação. Os habitantes da região metropolitana informam-se mais; já tínhamos visto que se consideravam de fato melhor informados e assim parece ser. Sobretudo no que diz respeito aos jornais, que têm sido o meio mais discriminante até surgir a Internet; em contrapartida, a periferia diferencia-se do centro por consumir um pouco mais informação através da televisão e muito menos através dos jornais, da rádio e da internet.18 Enquanto manifestações fenomenológicas do interesse pela como demasiado elevados para serem corridos, a verdade é que os atores só conhecerão o resultado das suas eventuais iniciativas depois de as tomarem. Ora, de acordo com o índice criado para o módulo luso-brasileiro utilizado neste estudo, há uma relação virtuosa (r=.47) entre a tomada de iniciativas e a resposta das autoridades ( responsiveness): a expectativa de obter uma boa resposta incita a tomar iniciativas e o fato de estas se repetirem acaba por originar, et ceteris paribus, melhores expectativas quanto aos resultados. O índice construído é bastante grosseiro ainda, não permitindo ultrapassar a “questão do ovo e da galinha”, como acontece tipicamente na relação entre confiança e capital social (Newton, 2001), mas ele surgirá com algum poder preditivo dentro Tabela 12 – Iniciativa e resposta política Média N Lisboa 1.97* 781 Resto do país 1.88* 651 Portugal 1.92 1407 Escala: 1 – mínima a 4 – máxima r=.47 *Teste: t(1430)= 2.19; p <.05 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 333 333 17/3/2010 12:49:38 Manuel Villaverde Cabral em pouco. Como seria expectável nesta fase do ções enquanto proxy do capital social conven- argumento, a propensão para tomar iniciativas cional (Putnam, 1973; Field, 2003), e por ou- de natureza cívica e política é substancialmen- tro, a automobilização, isto é, uma modalidade te maior na metrópole do que fora dela, mas distinta de envolvimento cívico e político indi- entre o centro da metrópole e a periferia não vidual ou grupal em manifestações, petições, há diferenças significativas, sento até margi- debates na internet, etc. Com estas duas no- nalmente superior nesta última, em parte da ções pretende-se marcar a diferença entre, por qual continua a operar politicamente a tradição um lado, formas relativamente passivas de en- operária da Margem Sul. volvimento como membro de uma associação, especialmente grandes instituições históricas como os partidos políticos e os sindicatos, que se ocupam de aspectos gerais da vida social e Associativismo e automobilização económica; e por outro lado, formas pró-ativas de mobilização, de tipo pontual e geralmente orientadas para questões específicas ( issue- Debruçando-nos finalmente sobre os comportamentos cívicos e políticos que pretendemos explicar, as duas variáveis dependentes do presente modelo de análise são, por um lado, o associativismo, ou seja, a pertença a associa- oriented ). Como podemos ver, apesar de todos os fatores associados à vida metropolitana que operam genericamente contra o envolvimento no espaço público e a ação cívica e política, os Tabela 13 – Associativismo Médias Metrópole Partido político N Sindicato, grémio ou associação profissional N Igreja ou organismo religioso N Grupo desportivo, recreativo ou cultural N Outra associação voluntária N 0.17 842 0.47 844 0.82 843 0.59 844 0.35 838 Portugal não Teste -t metropolitano 0.16 n.s. 754 0.36 t(1599)= 2.71; 757 p <.01 0.84 n.s. 754 0.42 t(1597)= 3.80; 756 p <.001 0.27 t(1591) = 2.07; 755 p <.01 Metrópole 0.48* 835 Portugal não metropolitano 0.41* 749 Portugal 0.17 1597 0.40 1601 0.84 1597 0.48 1599 0.31 1596 Escala: 0 - nunca pertenceu a 3 – participa activamente Alpha de Cronbach=.55 Média N Portugal 0.43 1586 * Teste: t(1578)= 4.96; p <.000 334 Book CM v11_n22.indb 334 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:38 Efeito metropolitano e cultura política fatores positivos da condição metropolitana re- capital social – o bonding, de cariz identitário, velam ser mais fortes do que os primeiros. As- e o bridging, que remete para redes de nature- sim, na metrópole de Lisboa as pessoas tendem za funcional e impessoal – a população da me- a associar-se mais do que no resto de Portugal, trópole apresenta valores mais elevados, tan- em especial no que diz respeito aos sindicatos to no que respeita à pertença a sindicatos ou e às associações profissionais, mas também associações profissionais (bridging), o que vai em todo o gênero de agrupamentos sociais, ao encontro do que se espera, como no caso culturais e desportivos; em compensação, não da pertença a grupos desportivos ou culturais há diferenças significativas entre metrópole e (tendencialmente do tipo identitário: bonding), não metrópole no que respeita aos partidos o que já era menos de esperar. Por outras pa- políticos e às associações religiosas. Entre o lavras, o tipo de associativismo não parece aju- centro e a periferia da metrópole só a diferença dar a distinguir as populações em análise; em na participação em associações profissionais é contrapartida, confirma-se que quem participa significativa, sendo previsivelmente mais forte mais, o faz independentemente do tipo de as- 19 sociação em causa. Adiante veremos os atribu- no centro. Contrariando até certo ponto as teses de tos e atitudes que contribuem para explicar o Putnam quanto à distinção entre dois tipos de conjunto dos comportamentos associativos. Tabela 14 – Automobilização Metrópole Portugal não metropolitano Teste -t Portugal Assinar uma petição N 1.40 835 1.04 735 t(1568)= 9.13; p<.000 1.15 1562 Comprar ou não produtos por razões políticas, éticas e ambientais N 1.17 0.92 823 724 Participar numa manifestação N 1.17 837 0.86 739 t(1574)= 7.78; p<.000 0.96 1570 Participar num comício N 0.97 838 0.80 738 t(1574)= 4.40; p<.000 0.86 1569 Contactar político ou alto funcionário do estado N 0.91 834 0.71 734 t(1565)= 6.36; p<.000 0.77 1559 Dar dinheiro ou recolher fundos para causas públicas N 1.66 842 1.61 750 n.s. 1.63 1590 Contactar/aparecer nos media N 0.84 837 0.63 731 t(1566)= 6.75; p<.000 0.69 1556 Participar num fórum através da internet N 0.79 823 0.54 699 t(1519)= 6.67; p<.000 0.63 1500 Médias t(1545)= 6.08; p<.000 1.01 1541 Escala: 0 - nunca o faria a 3 – fez no último ano; Alpha de Cronbach=.84 Média N Metrópole Portugal não metropolitano Portugal 1.11* 783 0.89* 651 0.97 1405 *Teste: t (1432) = 8.17; p <.001 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 335 335 17/3/2010 12:49:38 Manuel Villaverde Cabral Mais do que o capital social acumulado sejam eles traços estruturais da condição me- através da adesão a organizações pré-consti- tropolitana como o isolamento e a falta de tuídas, tais como um partido ou um sindicato, confiança, ou fenômenos como o declínio da possivelmente instrumentais para a carreira prática religiosa e, mais recentemente, a su- dos indivíduos, é sobretudo a automobiliza- burbanização. No balanço entre os fatores que ção, de caráter tendencialmente expressivo e operam a favor e contra o envolvimento cívi- frequentemente desinteressado (apoio a cau- co, a população da metrópole de Lisboa exibe sas, por exemplo), que mais socializa e resso- uma predisposição bastante maior para se en- cializa os cidadãos, parecendo ser ela também volver nesse tipo de atividades do que os habi- que deixa maior lastro de memória política. Em tantes das áreas não metropolitanas. Quanto suma, é através destas formas individualizadas às diferenças entre o centro e a periferia da e grupais de automobilização cívica, política e metrópole, são significativas mas menores,20 social que os direitos de cidadania são crescen- concentrando-se na participação em manifes- temente exercidos, em especial na região me- tações e nos contatos com a comunicação so- tropolitana. A utilização da expressão formas cial, que são ambos mais frequentes do centro, não é trivial. Com efeito, o elemento distinta- como era de esperar. mente novo nas práticas políticas dos habitan- Existe previsivelmente uma correlação tes da metrópole de Lisboa relativamente aos significativa entre a pertença a associações e do resto do país, não é tanto o tipo de temas o conjunto das modalidades de automobiliza- que compõem a sua agenda como sobretudo ção, tanto na metrópole como fora dela.21 Co- as formas de mobilização utilizadas. mo veremos adiante, essa relação é virtuosa, Sendo estas formas de mobilização ati- no sentido em que tanto o associativismo pode va, mais dependentes da iniciativa pessoal e predizer a mobilização como o inverso, mas é grupal do que da convocatória das associa- a mobilização que se revelará o preditor mais ções formais, aquelas que se revelarão mais forte dos dois, embora apresente correlações estreitamente associadas ao exercício da ci- negativas com algumas formas de associação, dadania, era lícito formular a hipótese de que nomeadamente as partidárias e as religiosas. as diferenças entre os cidadãos metropolita- Assim, as duas modalidades de exercí- nos e não metropolitanos fossem ainda mais cio da cidadania apresentam uma certa so- substanciais do que as diferenças relativas ao breposição entre elas, mas não deixam de se associativismo, como efetivamente são, com a revelar formas distintas de exercer os direitos única exceção de “dar ou pedir dinheiro para de cidadania. Na realidade, tratam-se de três causas públicas”, que é de fato mais frequente modalidades e não apenas de duas como o na metrópole de Lisboa mas a diferença não é modelo teórico postulava, já que a automo- estatisticamente significativa. Todos os outros bilização acaba por se dividir entre, por assim indicadores, cobrindo um vasto leque de for- dizer, uma mobilização politizada (Fator 1 com mas de automobilização, mostram que as pes- o maior peso na variância explicada) e uma soas da grande cidade ultrapassam os fatores mobilização despolitizada, oposta simultanea- que possam inibir a atividade cívica e política, mente às associações religiosas e sobretudo 336 Book CM v11_n22.indb 336 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:38 Efeito metropolitano e cultura política Tabela 15 – AFCP dos indicadores de mobilização e associativismo – Portugal Factor 1 Factor 2 Factor 3 Participar em comício ou reunião política (mob) 0.766 0.206 0.036 Participar num fórum ou grupo de discussão através da Internet (mob) 0.732 0.017 0.119 Contactar/tentar contactar político ou alto funcionário (mob) 0.730 0.105 0.226 Participar numa manifestação (mob) 0.710 0.150 0.237 Contactar/aparecer na Comunicação Social para exprimir opiniões (mob) 0.694 0.073 0.174 Partido político (ass) 0.498 0.437 -0.449 Outra associação voluntária (ass) 0.061 0.686 0.317 Grupo desportivo, cultural, recreativo (ass) 0.217 0.657 0.161 Igreja ou outra organização religiosa (ass) -0.089 0.599 -0.117 Sindicato, grêmio ou associação profissional (ass) 0.220 0.530 0.104 Dar dinheiro ou participar em peditórios para uma causa pública (mob) 0.186 0.230 0.646 Comprar/não comprar produtos por razões políticas, éticas ou ambientais (mob) 0.508 0.230 0.646 Assinar petição ou abaixo-assinado (mob) 0.529 0.163 0.554 Variância explicada (Total = 54%) 35% 11.1% 8.1% às partidárias (Fator 3 com o menor peso), por demandas competitivas” (Baron, Field e enquanto a pertença a um partido político se Schuller, 2000, p. 14). A automobilização – ca- distribui, quase com o mesmo peso e sinal po- suística, pontual e muitas vezes espontânea – sitivo, entre a mobilização mais politizada e o parece ser cada vez mais a regra do exercício associativismo (Fator 2 com peso intermédio da cidadania política. Como veremos adiante, na variância explicada). é este último tipo de capital social que melhor A pertença a associações formais tende, pois, a inserir-se num processo de acumula- explica hoje, na metrópole de Lisboa, o exercício pró-ativo dos direitos de cidadania.22 ção de capital social de tipo convencional, que poderá efetivamente estar em declínio, como Putnam sugere, desde logo em termos geracionais e de gênero. Em vez disso, a mobilização pró-ativa – politizada e não politiza- Para uma explicação do exercício da cidadania da – parece gerar sobretudo um tipo de capital social que tem vindo a ser reconstruído, teori- O argumento do presente capítulo desenvol- camente, como um capital de ligação (linking veu-se em torno de dois eixos principais. Por social capital, por contraste com o bonding e o bridging) , ou seja, um conjunto de “redes soltas e abertas (open ended) , com participantes variados, normas partilhadas e objetivos comuns”, cujos níveis de confiança e de reciprocidade podem ser, contudo, “circunscritos um lado, aquilo que apelidamos de efeitometropolitano, isto é, a influência específica do fato de viver numa grande zona metropolitana sobre o exercício da cidadania política. Por outro lado, a evolução das diferentes modalidades desse exercício, sob a influência não Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 337 337 17/3/2010 12:49:39 Manuel Villaverde Cabral só do efeito-metropolitano, mas globalmente indivíduos dotados de mais recursos sociais das mudanças societais que têm vindo a afe- e cognitivos, se articula com os conteúdos da tar a nossa área geopolítica. A relação entre chamada nova cultura política. os dois temas é tanto mais estreita quanto a Para já, a primeira conclusão ao nível do metropolização e a suburbanização estão inti- país é que o efeito-metrópole só é perceptível mamente ligadas à emergência da cultura de junto daqueles que exercem a sua cidadania massas e, posteriormente, de uma “nova cultu- política segundo a modalidade da automobi- ra política” (Clark e Hoffman-Martinot, 1998), lização. Em contrapartida, ao nível da região com uma acentuada marca urbana, orientada metropolitana, não se observa qualquer efeito- a valores e comportamentos frequentemente cidade, ou seja, um eventual efeito diferencia- designados como pós-materialistas (Inglehart, dor do centro em relação à periferia. Por outro 1997) e gradualmente desvinculada das cliva- lado, para Terry Clark, a nova cultura política gens de classe clássicas bem como das antigas caracteriza-se basicamente pela novidade dos lealdades partidárias. Iremos vendo, pois, em seus temas. Ora, na verdade, há independência que medida a evolução das formas de envol- das formas em relação aos conteúdos da ação vimento cívico e ação colectiva, porventura coletiva, embora se detecte, do associativismo menos passivas e institucionais, mobilizando para a mobilização, uma convergência gradual Tabela 16 – Regressão Linear Múltipla: associativismo e mobilização – Portugal Interesse pela política Mobilização cognitiva Iniciativa e resposta política Exposição aos media noticiosos Confiança interpessoal Classe social Classe social subjetiva Escolaridade Rendimento Sexo Idade Prática religiosa Socialização primária Socialização secundária Efeito-metropolitano Posição política (esquerda versus direita) Adjusted R2 N (Minimum) Associativismo Mobilização – – 0.144*** 0.155*** – 0.078* – – 0.135** -0.065* 0.111** 0.182*** – 0.220*** – -0.103*** – 0.141*** 0.112*** 0.132*** – 0.110*** – – 0.082* 0.055* -0.083* – – 0.217*** 0.081** – 21.4% 1152 48.5% 1152 Nota: Os valores são coeficientes de regressão estandardizados (betas) estatisticamente significativos: *p < 0,05; **p < 0,01; ***p < 0,001. As células vazias correspondem a coeficientes de regressão estandardizados estatisticamente não significativos (p > 0,01) 338 Book CM v11_n22.indb 338 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:39 Efeito metropolitano e cultura política entre novos temas e novas modalidades de muito diferentes. Ter opinião própria sobre um envolvimento na esfera pública. No caso pre- leque alargado de temas, tomar a iniciativa de sente, a nova cultura política é efetivamente se associar e mobilizar para defender essas opi- nova porque são jovens os seus agentes. Tipi- niões e suportar os custos da iniciativa política camente, o fator etário está presente em am- exigem um conjunto de recursos socioculturais bas as modalidades de exercício cívico: com e até econômicos que não estão ao alcance de o sinal mais no associativismo e menos na todos, como aliás indica a presença da variá- mobilização, daqui resultando que o primeiro vel rendimento em ambas as modalidades; ao é, objetivamente, uma modalidade antiga em mesmo tempo, ambas requerem também uma relação à segunda, já que são mais velhos os forte socialização política favorecida pela socia- seus aderentes. bilidade metropolitana e que revela ter o maior Paralelamente, o associativismo surge como uma modalidade preferencialmente mas- peso na explicação de ambas as modalidades de exercício da cidadania. culina (gênero presente com sinal negativo), Uma vez que a capacidade explicativa do enquanto a mobilização se distingue pela pre- modelo analítico se revela muito superior pa- sença preferencial das mulheres (gênero pre- ra o caso da mobilização (49%) do que para sente com sinal positivo). Associada à juventu- o do associativismo (22%),23 é lícito concluir de e à saliência da mulheres, mas dissociada que, hoje em dia, o exercício dos direitos de ci- da classe social e do nível de escolaridade, esta dadania tende a manifestar-se de forma mais modalidade de participação política revela-se expressiva através da “geometria variável” da mais sofisticada e seletiva do que as anteriores automobilização do que da pertença associati- formas de exercício da cidadania, como se de- va, ou seja, através das formas convencionais preende do fato de o fator com maior peso na do capital social.24 O declínio destas formas automobilização ser a “mobilização cognitiva”, convencionais observado por Putnam (2000) por sua vez ausente do associativismo, o qual parece ser real, mas isso não dá conta da evo- mantém, por seu turno, uma relação parado- lução das novas modalidades de produção de xalmente positiva com a maior orientação re- capital social, especialmente do tipo linking, ligiosa dos inquiridos e a sua maior inclinação do mesmo modo que são reais a fragmentação para a esquerda. Já na região metropolitana urbana e o declínio das sociabilidades tradicio- este resultado paradoxal não se observa: o as- nais, sem que isso impeça a grande metrópole sociativismo está associado à prática religiosa de continuar a produzir, por si só, um efeito es- e a automobilização às posições de esquerda; a timulante para a abertura dos indivíduos à vida maior diferença passa pela superior exposição pública e à participação individual ou coletiva aos media noticiosos dos cidadãos mobiliza- nos movimentos cívicos. dos; a socialização secundária continua a ser a Contudo, Associativismo e Mobilização variável com mais peso em ambas as modali- não se excluem mutuamente, como de resto dades de exercício da cidadania. já vimos. Com efeito, é possível clarificar, para À parte os traços assinalados, os perfis concluir, a importante relação subsistente, tan- da população associada e mobilizada não são to na metrópole como no resto do país, entre Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 339 339 17/3/2010 12:49:39 Manuel Villaverde Cabral Tabela 17 – Preditores do Associativismo25 MRA (Method Enter – block by block) Portugal Metrópole Portugal não metropolitano 1º bloco Sexo Idade Escolaridade Rendimento Prática religiosa Socialização I Socialização secundária Efeito metrópole (Lisboa versus resto do país) -0.076** 0.134*** – 0.114** 0.188*** – 0.193*** – -0.127** 0.158** – – 0.220*** – 0.157* – – – – 0.163** 0.167*** – 0.206*** – 2º bloco Interesse pela política Iniciativa e resposta política Mobilização cognitiva Exposição aos media noticiosos Posição política (esquerda versus direita) – 0.110*** – 0.109** -0.086** – – – – – 0.249*** 0.362*** 0.204*** 25% 1152 33% 595 22% 539 19% 26% 17% 4% 2% 6% 3% 6% 2% 3º bloco Mobilização Adjusted R2 N minimum 1º bloco R2 Change 2º bloco R2 Change 3º bloco R2 Change – 0.132** – 0.140** -0.121** Nota: Os valores são coeficientes de regressão estandardizados (betas) estatisticamente significativos: *p < 0,05; **p < 0,01; ***p <0,001. As células vazias correspondem a coeficientes de regressão estandardizados estatisticamente não significativos (p> 0,01) essas duas modalidades da cidadania através sociodemográficos, acrescidos no 3º bloco pe- de duas análises de regressão segundo o mé- lo impacto significativo da mobilização (6%), todo enter block-by-block, fazendo entrar isola- muito mais forte do que no resto de Portugal. damente a mobilização como preditora do as- Ou seja, em todo o país, mas especialmente sociativismo e, depois, o associativismo como na metrópole, a mobilização acaba por se re- preditor da mobilização. velar a variável com maior peso na explicação Ao distinguirmos entre a região me- do associativismo, por outras palavras, o ca- tropolitana e o resto do país, verifica-se que pital de ligação que sustenta muita da auto- a adesão do associativismo ao modelo analí- mobilização converte-se, frequentemente, em tico da cidadania, sendo maior na metrópo- capital social convencional, através da adesão le, é no entanto nula ao nível das variáveis de associações formais ou até da criação de políticas propriamente ditas, ficando a ex- novos tipos de associações, como as ONGs, plicação da variância a dever-se aos fatores típicas da nova cultura política. 340 Book CM v11_n22.indb 340 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:39 Efeito metropolitano e cultura política Tabela 18 – Preditores da Mobilização MRA (Method Enter – block by block) Portugal Metrópole Portugal não metropolitano 0.077** -0.096** 0.132*** 0.084* -0.067* – 0.184*** 0.083*** 0.108** -0.126** 0.133* 0.201*** – – 0.136** – – – 0.140** – -0.089* – 0.211*** – 2º bloco Interesse pela política Iniciativa e resposta política Mobilização cognitiva Exposição aos media Posição política (esquerda versus direita) – 0.086** 0.152*** 0.111*** – – 0.090* – 0.153*** – – 0.080* 0.163** 0.104* – 3º bloco Associativismo 0.166*** 0.246*** 0.146*** 50% 1152 54% 595 44.4% 539 44% 46% 40% 5% 5% 5% 2% 4% 1% 1º bloco Sexo Idade Escolaridade Rendimento Prática religiosa Socialização primária Socialização secundária Efeito metrópole (Lisboa versus resto do país) Adjusted R2 N minimum 1º bloco R2 Change 2º bloco R2 Change 3º bloco R2 Change Nota: Os valores são coeficientes de regressão estandardizados (betas) estatisticamente significativos: *p < 0,05; **p < 0,01; ***p <0,001. As células vazias correspondem a coeficientes de regressão estandardizados estatisticamente não significativos (p> 0,01) Quanto à automobilização, não só ela contribuía para explicar a adesão às associa- adere mais plenamente ao modelo da cidada- ções, também a pertença a estas últimas se nia, sobretudo na Metrópole (54%), como o revela o preditor mais forte para explicar a modelo se revela mais sofisticado, pois quase automobilização cidadã, embora um pouco todas as variáveis consideradas contribuem menos do que o inverso (4% em vez de 6%). pata a sua explicação. Curiosamente, apesar Neste sentido, o primado e a generalização de o efeito-metropolitano estar presente no que esta última modalidade de exercício da conjunto do país, o que não sucedia com o cidadania vem gradualmente assumindo con- associativismo, a diferença entre metrópole tribuem afinal, de maneira muito significativa, e não metrópole é menor do que no caso an- para alimentar as formas mais convencionais terior. Finalmente, assim como a mobilização da ação coletiva. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 341 341 17/3/2010 12:49:39 Manuel Villaverde Cabral Manuel Villaverde Cabral PhD em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales-Paris. Pesquisador Coordenador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (Lisboa – Portugal). [email protected] Notas * Este ensaio insere-se numa série de estudos promovidos no ICS enquanto membro do International Social Survey Programme [http://www.issp.org/] e, concretamente, no inquérito de 2004 relativo ao exercício da cidadania, cujo questionário foi complementado em Portugal e no Brasil por um conjunto de variáveis destinadas a avaliar o efeito-metropolitano sobre as modalidades de exercício ativo da cidadania política em grandes aglomerações urbanas como Lisboa e o Rio de Janeiro, por meio de uma sobrerrepresentação das populações metropolitanas em relação ao resto de cada um dos países (Cabral e Silva, 2007). (1) A expressão “metrópole de Lisboa” não corresponde exatamente ao conjunto administrativo da chamada Área Metropolitana, mas sim a um conjunto sociológico formado pela cidade de Lisboa e 11 concelhos limítrofes (por ordem alfabética): Almada, Amadora, Barreiro, Cascais, Loures, Moita, Odivelas, Oeiras, Seixal, Sintra e Vila Franca de Xira. (2) O quadro resulta de uma adaptação da grelha concebida por John Goldthorpe (Erikson e Goldthorpe, 1993), correspondendo à presente redução da agregação em 7 categorias para 6, dada a impossibilidade técnica de distinguir os ativos agrícolas. Basicamente, as 6 categorias apresentadas resultam do cruzamento entre os dois eixos principais da estratificação social: o eixo da propriedade (a que pertencem as categorias da grande burguesia empresarial e das profissões liberais, da pequena burguesia patronal e dos trabalhadores manuais por conta própria) e o eixo do salariato, em que se incluem os quadros médios e os profissionais técnico-científicos por conta de outrem, os assalariados do setor terciário e o operariado de fábrica, da construção civil e dos transportes, comunicações e energia. As distribuições entre as 3 categorias de topo foram controladas pelo nível de rendimentos e de instrução. Os reformados foram classificados de acordo com a última profissão exercida e os estudantes segundo a condição socioprofissional do pai. Finalmente, as mulheres inativas foram classificadas segundo o estatuto socioprofissional dos maridos quando casadas ou dos pais quando solteiras (Cabral, 1998b). (3) A diferença é estatisticamente significativa: x2= 25.52; p <.000. (4) x2= 6.23; p <.01. (5) x2= 31.44; p <.000. (6) O fundamento psicológico sobre o qual se constrói a individualidade das grandes cidades é a intensificação da estimulação nervosa, que resulta da mudança rápida de estímulos externos e internos (Simmel, 2004 [1903], p. 62). (7) *Teste: t (407) = -1.91; p <.01. (8) x2= 24.40; p <.01 342 Book CM v11_n22.indb 342 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:39 Efeito metropolitano e cultura política (9) A percentagem de cidadãos da metrópole de Lisboa que declarou não ter votado nas eleições precedentes (legislativas de 2002) é muito superior à do resto do país: 40% contra 25% (x2= 37.21; p <.000). (10) Não é possível apresentar estes dados fornecidos pelo mesmo inquérito do ISSP-2004, ao qual dedicaremos no futuro outro artigo. (11) * Teste: t (388) = 3.41; p .001. (12) * Teste: t (382) = 2.53; p < .01. (13) Testamos não só a socialização como também a experiência política, nomeadamente sob o fascismo em Portugal e sob a ditadura militar no Brasil. Contudo, os dois testes sobre a experiência política ficaram prejudicados pelo elevadíssimo número de não respostas. Algo de semelhante aconteceu com um dos três testes sobre a socialização política, pelo que aqui apenas apresentamos os dois testes sobre a socialização primária e a secundária. (14) Teste: t (399)= 5.13; p .<.000. (15) Teste: t (378)= -2.12; p <.05. (16) Teste: t (405) = 4.04; p <. 000. (17) * Teste: t (400)= 3.44; p .001. (18) Teste: t (405)= 3.43; p .001. (19) Teste-t(407) = 2.23; p<.05. (20) *Teste: t (376) = 2.51; p <.01. (21) Correlações entre Associativismo e auto-mobilização Spearman Rho Portugal Metrópole Não metrópole .38 .46 .31 * p < .05; **p < 001 (22) O estudo comparativo em curso entre uma série de países europeus e americanos mostra que o fenômeno, com variações substanciais entre esses países, é contudo geral. (23) Na Metrópole, R2 ajustado=50% no caso da mobilização contra 27% no caso do associativismo. (24) Independentemente do efeito-metropolitano, que só foi possível testar para Portugal e para o Brasil, a adesão da mobilização ao modelo das modalidades de exercício da cidadania é superior à do associativismo em todos os países europeus onde testamos este modelo num artigo a publicar em breve. (25) 1º bloco: variáveis sociodemográficas (sexo, escolaridade, rendimento, idade, prática religiosa, socialização, efeito metrópole); 2º bloco: indicadores do módulo Cidadania (interesse pela política, mobilização cognitiva, iniciativa e resposta política, exposição aos media, posição política – esquerda versus direita); 3º bloco: mobilização/associativismo. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 319-346, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 343 343 17/3/2010 12:49:39 Manuel Villaverde Cabral Referências ALABART, A.; GARCIA, S. e GINER, S. (orgs.) (1994). Clase, poder y ciudadanía. Madri, Siglo XXI. ALEXANDER, J. C. (ed.) (1998). 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Apesar disso, constatam-se em todas as cidades pesquisadas, grupos de cidadãos expressando opiniões, valores e atitudes associadas à Nova Cultura Política. Não obstante a identificação desses traços, a análise indica que os valores e comportamentos relacionados à Nova Cultura Política estão longe de se constituírem na principal gramática cultural existente. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que no Brasil há um entrelaçamento de múltiplas gramáticas culturais criando cenários extremamente diversificados de percepções, valores e comportamentos dos agentes. Abstract The article discusses Brazil’s political culture, in the light of what has been called the New Political Culture – NPC, aiming at evaluating the limits and possibilities of this approach to analyze the current political culture. The analysis, based on a national survey, indicates that there are significant differences in the political culture of Brazil, when one takes into account the different metropolitan cities of the country. Nevertheless, there are, in all the surveyed cities, groups of citizens expressing opinions, values and attitudes associated with the New Political Culture. Despite the identifi cation of these elements, the analysis indicates that the values and behaviors related to the New Political Culture are far from being the main existing cultural grammar. In this sense, one could say that in Brazil there is a mixture of multiple cultural grammars, creating extremely diverse perceptions, values and behaviors of the agents. Palavras-chave: cultura política; metrópoles; nova cultura política; cidadania; associativismo. Keywords: political culture; metropolises; new political culture; citizenship; active participation. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 347 17/3/2010 12:49:39 Sérgio de Azevedo, Orlando Alves dos Santos Jr. e Luiz César de Queiroz Ribeiro O debate em torno da relação entre as esferas econômica e cultural tem sido objeto de uma diversidade de abordagens nas ciên- Nova cultura política e as idiossincrasias do Brasil cias sociais. Reconhecendo sua complexidade, o objetivo deste artigo é refletir sobre a cultura Na abordagem da Nova Cultura – NCP, que política e o exercício da cidadania no Brasil, a tem como seu principal formulador o sociólogo partir dos primeiros resultados de um survey Terry Clark,3 a cidadania política contemporâ- nacional realizado sobre o tema.1 nea associaria valores pós-modernos, com ên- O processo de globalização contemporâ- fase na defesa dos direitos individuais, maior nea tem suscitado discussões envolvendo diver- tolerância para diferentes padrões de com- sos aspectos da dinâmica socioeconômica. Na portamento, abertura para experimentação no ciência política, em especial duas questões têm plano individual, menor grau de subordinação emergido como objeto de reflexão. A primeira às normas preconizadas pelo Estado (com uma pode ser sintetizada no tema da globalização e diminuição da valorização, entre outros, do pa- seus impactos sobre a dinâmica democrática e gamento de imposto e da prestação do serviço a concepção clássica de cidadania, envolvendo militar como expressão do bom exercício da a relação dos cidadãos com o Estado, o associa- cidadania moderna), quase sempre acompa- tivismo, a representação de interesses e a par- nhada de certo conservadorismo no nível de ticipação sociopolítica. A outra questão parece políticas econômicas. estar diretamente relaciona aos impactos que Tendo em vista as transformações apon- os processos de diferenciação, segmentação e tadas, poder-se-ia dizer que nas áreas mais segregação socioespacial têm ocasionado na urbanizadas, caracterizadas pela heterogenei- vida social, nas instituições democráticas, nos dade social e habitadas por classes e grupos padrões de interação e na cultura cívica das com maior capacidade de poder político e eco- grandes cidades. Ambas as questões estão in- nômico, tenderiam a prevalecer traços dessa terligadas ao que vem sendo designado pela cidadania pós-moderna em contraposição às literatura como Nova Cultura Política (NCP), demais áreas urbanas, que manteriam maior que busca evidenciar a emergência de novos cristalização dos valores da cidadania clássica laços entre a cidadania e a condição urbana. hegemônica desde o século passado, composta O presente artigo tem como objetivo discutir por suas dimensões civil, política e social. Com alguns aspectos teóricos relacionados a esse efeito, como afirmam Cabral e Silva (2007), na debate, de forma a refletir sobre a tese clássica contemporaneidade, o exercício dos direitos de da sociologia urbana segundo a qual o exercí- cidadania tenderia a manifestar-se de forma cio da cidadania, sobretudo na sua dimensão mais expressiva através da “geometria variá- da cidadania política, seria não só influenciada vel” da automobilização do que através do pelo modo de vida citadino como constituiria associativismo clássico, vinculado fundamen- 2 mesmo a manifestação do “efeito cidade” em talmente às formas convencionais de “capital sentido sociológico. social”. 348 Book CM v11_n22.indb 348 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:39 Metrópoles, cultura política e cidadania no Brasil Podemos dizer que a NCP tem sua ori- das melhorias ocorridas na última década e de gem nas transformações políticas, econômicas, termos entrado para o grupo dos países cha- sociais, culturais e institucionais associadas à mados “emergentes”, em virtude da nossa im- globalização, tendo forte relação com a ascen- portância econômica e política internacional. são de valores pós-materialistas em sociedades Mesmo assim, a desigualdade estrutural brasi- que alcançaram níveis de desenvolvimento leira – em parte uma herança do nosso passado econômico. escravocrata – continua sendo um elemento- Os autores que abordam a questão da chave que marca nossa modernidade e nossa cidadania contemporânea identificam, em cultura política. Ainda que o universalismo de maior ou menor grau, as mudanças na cultura procedimentos no Brasil – predominante nos política e nas modalidades de ação coletiva à países democráticos desenvolvidos – venha pós-modernidade, que, no nosso entender, não aumentando paulatinamente sua importância pode ser compreendida fora do contexto atual ao longo das últimas décadas, ele está longe da globalização. Como afirma Harvey (2004, de constituir a gramática hegemônica do nosso p. 88), podemos conceber a globalização con- dia-a-dia. Isto é ainda mais óbvio nas regiões temporânea como “um processo de produção menos desenvolvidas do país. Como lembra de desenvolvimento temporal e geográfico Edson Nunes, no Brasil se usam diferentes gra- desigual” na atual fase de desenvolvimento máticas políticas dependendo do momento e do capitalismo. No novo cenário internacional, do local de forma entrelaçadas: universalismo algumas características do panorama político de procedimentos, clientelismo, corporativismo global se destacam. A mais evidente delas é o e insulamento burocrático (Nunes, 1997). enfraquecimento relativo do Estado nacional, Além disso, é necessário chamar a aten- instituição central da política desde a "Era das ção para as idiossincrasias das nossas grandes Revoluções", devido tanto ao seu monopólio regiões metropolitanas para compreensão da do poder público e da lei quanto porque cons- sociedade brasileira. O Brasil possui cerca de tituía o campo efetivo de ação política para a 29 regiões metropolitanas, nove delas institu- 4 maioria dos atores (Hobsbawm, 1995). cionalizadas na década de 70, numa iniciativa Atualmente, embora variando em função do Governo Federal que, à época, estava nas das características locais, há uma tendência mãos dos militares. As demais foram criadas de diminuição da participação direta do Esta- nos anos 90 por iniciativa de governos esta- do como produtor direto de bens e serviços. duais, quando já havia sido resgatado o regi- Além disso, em um contexto internacional até me democrático. As regiões metropolitanas, recentemente fortemente desregulado, o siste- segundo a contagem da população de 2007, ma financeiro reduzia fortemente as margens reúnem aproximadamente 43% da popula- de manobra econômica e política dos gover- ção brasileira.6 Vale lembrar que a população nos nacionais, especialmente na periferia do metropolitana situa-se tão somente em 463 sistema. 5 Ressalte-se, ainda, no caso brasileiro, a nossa extrema desigualdade estrutural, apesar municípios (distribuídos em 18 estados e no Distrito Federal) dos 5.560 existentes no país (Garson, 2009). Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 349 349 17/3/2010 12:49:39 Sérgio de Azevedo, Orlando Alves dos Santos Jr. e Luiz César de Queiroz Ribeiro O ritmo de crescimento demográfico das regiões metropolitanas institucionalizadas na última década foi um pouco superior à média O exercício da cidadania nas metrópoles brasileiras nacional, indicando que essas regiões, apenas com algumas exceções, não são mais polos Tomando como referência a pesquisa realizada de intenso crescimento populacional (Moura, pelo Observatório das Metrópoles, em parceria 2004). Ressalte-se, entretanto, que as gran- com outras instituições nacionais e internacio- des metrópoles brasileiras continuam se ca- nais, podemos traçar um quadro da cultura racterizando não só por concentrarem a maior política do Brasil buscando entender e explicar parte da riqueza nacional, como também por o exercício da cidadania e traçar uma radiogra- possuírem expressivos focos de pobreza e de fia comparativa da motivação dos brasileiros exclusão social: encontram-se nas regiões na ação política.7 Nessa análise, busca-se, de metropolitana 8% dos pobres e 90% dos do- um lado, comparar o Brasil com outros seis micílios localizados em favelas (Davidovich, países onde a mesma pesquisa foi realizada, 2001). Muitas dessas metrópoles e aglomera- envolvendo o Canadá, os Estados Unidos, a ções urbanas se articulam configurando novos França, a Suécia, a Espanha e Portugal; e de arranjos espaciais, com redobrada importância outro, ressaltar a cultura política dos principais no plano econômico e social e também redo- centros urbanos metropolitanos do país, com- brada complexidade política e cultural. Ao la- parando os dados nacionais com os de outras do das evidências do aumento da importância sete cidades selecionadas – São Paulo, Porto demográfica e econômica, as metrópoles bra- Alegre, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, sileiras concentram hoje inúmeros problemas Natal e Goiânia – buscando capturar diferen- sociais complexos, cujo lado mais evidente e ças que possam ser relacionadas à dinâmica dramático é a exacerbação da violência, com metropolitana. seus impactos sobre as formas de exercício da cidadania. É a partir desse sucinto “pano de fundo” delineado nesta seção e das informações sobre Associativismo e mobilização sociopolítica o exercício de algumas das práticas da cidadania nas metrópoles brasileiras que poderemos De uma forma geral, no caso brasileiro, so- refletir até que ponto a denominada “Nova bressaem os níveis de filiação a igrejas ou Cultura Política” apresenta peso relevante, se- organizações religiosas seguidas dos grupos ja de forma mais ampla, seja em setores espe- desportivos nas áreas metropolitanas e dos cíficos dos moradores das cidades brasileiras. sindicatos, quando se consideram as áreas não 350 Book CM v11_n22.indb 350 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:39 Metrópoles, cultura política e cidadania no Brasil Tabela 1 – Associativismo – Brasil, 2006 Brasil - Formas de associativismo Metropolitano Não-Metropolitano Partido político 0,17 0,25 Sindicato, grêmio, associação profissional 0,50 0,44 Igreja ou organização religiosa 0,99 1,24 Grupo desportivo, cultural ou recreativo 0,58 0,39 Outra associação voluntária 0,34 0,25 Obs.: avalia-se a atitude através de índice de 0 a 3 (3 - Participa ativamente; 2 - Pertence, não participa ativamente; 1- Já pertenceu; 0 - Nunca pertenceu). Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2006. metropolitanas. Essas três categorias de asso- organizações associativas, ao mesmo tempo ciativismo aparecem, qualquer que seja a área em que estes níveis se mostram mais elevados considerada, com maior peso que as demais nos polos metropolitanos do que nas demais “Associações Voluntárias” e os “Partidos Políti- áreas urbanas do país, o que poderia se apro- cos” (Tabela 1). ximar da adoção de práticas vinculadas à nova Deve-se frisar que as metrópoles apre- cultura política, tal como apontado na litera- sentam maiores níveis de associativismo no tura, apesar de constatarmos níveis extrema- que concerne à filiação a sindicatos, associa- mente baixos de mobilização política no país. ções profissionais, grêmios esportivos e cultu- Ressalte-se que os índices de mobilização po- rais e a outras associações voluntárias, enquan- lítica para aqueles que possuem nível superior to as áreas não metropolitanas se destacam são fortemente superiores aos que apresentam por apresentarem maiores níveis de filiação a baixa escolaridade (Tabela 2). igrejas ou organizações religiosas e a partidos No caso brasileiro, mesmo os índices de políticos. Poder-se-ia dizer que as metrópoles “mobilização social e política” para aqueles tendem a ser um pouco menos religiosas que o que possuem escolaridade superior e residem restante das áreas urbanas. Ressalte-se, ainda, em áreas metropolitanas são bastante infe- que – apesar de suas baixas representativida- riores aos percentuais de Portugal, que ocupa des – os partidos políticos nas cidades meno- nesse campo um dos mais baixos ranking entre res, vis-à-vis às metrópoles, se apresentam os países desenvolvidos. Nesse quesito, entre instrumentalmente com maior cacife. os sete países comparados, Canadá, Estados Em geral, tal como observado nos de- Unidos, Suécia e França ocupam as primeiras mais países onde a pesquisa foi aplicada, o posições, sendo o Brasil o último colocado, Brasil apresenta níveis de mobilização so- bastante distanciado do penúltimo colocado ciopolítica superiores aos níveis de filiação a que é a Hungria (Tabela 3). Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 351 351 17/3/2010 12:49:39 Sérgio de Azevedo, Orlando Alves dos Santos Jr. e Luiz César de Queiroz Ribeiro Tabela 2 – Mobilização sociopolítica e escolaridade – Brasil, 2006 Ação político-social Até 4ª série 5ª a 8ª série fundamental fundamental Ensino médio Superior Brasil Assinar petição ou fazer abaixoassinado 0,90 1,11 1,28 1,65 1,15 Boicotar produtos 0,34 0,52 0,57 0,81 0,51 Participar em manifestações 0,54 0,70 0,92 1,15 0,76 Participar em comícios ou reuniões políticas 0,95 1,05 1,19 1,23 1,07 Contatar políticos para expressar sua opinião 0,43 0,58 0,69 0,89 0,60 Dar dinheiro para causas públicas 0,53 0,64 0,65 0,75 0,61 Contatar ou aparecer na mídia 0,30 0,43 0,53 0,74 0,45 Participar de fórum ou grupo de discussão pela internet 0,20 0,40 0,54 1,01 0,44 Participar de greve 0,30 0,50 0,63 0,89 0,51 Obs.: Avalia o comportamento com índice de 0 a 3 (3 – fez no último ano; 2 – fez em anos anteriores; 1 – não fez, mas poderia fazer; 0 – nunca o faria). Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2006. Tabela 3 - Índice de mobilização social e política (médias) por países selecionados – 2006 Índice de mobilização social e política N Canadá 1,36 1.068 Estados Unidos 1,22 1.485 França 1,22 1.485 Suécia 1,19 1.295 Espanha 0,96 2.481 Portugal 0,97 1.602 Brasil 0,70 2.000 País Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP (2006). Escala: (3) fez no último ano; (2) fez em anos anteriores; (1) não fez, mas poderia ter feito; (0) nunca o faria8 352 Book CM v11_n22.indb 352 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:39 Metrópoles, cultura política e cidadania no Brasil Tabela 4 – Deveres do Bom Cidadão Ajudar pessoas do resto do mundo que vivem em situação precária País Média Brasil* 6,23 Espanha 5,82 Portugal 5,81 Canadá 4,83 Suécia 4,78 Hungria 3,80 Obs.: o indicador varia de 1 a 7 (7 – Muito importante, e 0 – Nada importante). Fonte: International Survey Programme (ISSP) e European Social Survey (ESS) (2006), Observatório das Metrópoles - IPPUR/UFRJ (2006). Por outro lado, no que diz respeito aos “Deveres do Bom Cidadão: ajudar pessoas do individualistas, visto como reprováveis socialmente (Damatta, 1979). resto do mundo que vive em situação precária”, A persistência desse comportamento em relação aos mesmos países da Tabela 3, a cultural de forma mecânica e, portanto, pré- situação se inverte completamente, ocupando reflexiva, ou seja, visto como natural, explica- o Brasil o primeiro lugar no ranking. Ressalte- se, no nosso entender, particularmente, pelo se, na Tabela 4, que os países com melhores papel do familiarismo como instrumento de programas de welfare states, como o Canadá sobrevivência pessoal em uma sociedade on- e Suécia, apresentam pontuações muito meno- de historicamente tanto o mercado capitalis- res que a brasileira. ta, em termos econômicos, como o Estado, Poder-se-ía arguir que alto índice no enquanto provedor de direitos sociais básicos, quesito em pauta apresentado pelo Brasil vis- não foi capaz de proteger adequadamente as a-vis aos demais países poderia, em parte, estar vinculado a uma cultura cívica de solidariedade ou mesmo a nossa forte cultura cristã, que designa como mandamento primeiro “amar ao próximo como a si mesmo”. Entretanto, é mais provável que esse comportamento seja decorrente, sobremaneira, do caráter fortemente relacional da nossa sociedade, que em termos de valores prioriza as necessidades do grupo familiar em sua perspectiva ampliada – que comporta, inclusive, amigos e agregados – em detrimento de interesses pessoas em momentos de crises. Ressalte-se, que essa estratégia é um traço que corta transversalmente toda a sociedade, sendo mais forte, evidentemente, entre setores populares e médios que apresentam famílias estruturadas de forma tradicional. Como no Brasil é comum se utilizar, concomitantemente, mais de uma gramática política (Nunes, 1997), não é por acaso que, mesmo mantendo o top de linha na Tabela 4, essa opinião de Ajudar as Pessoas, seja levemente inferior nas regiões metropolitanas em relação Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 353 353 17/3/2010 12:49:39 Sérgio de Azevedo, Orlando Alves dos Santos Jr. e Luiz César de Queiroz Ribeiro às demais áreas urbanas. Essa diferença, ainda média nacional, com exceção de Belo Horizon- que pequena, poderia ser decorrente, tanto de te, que nos dois casos atingiu o menor índice. uma maior desestruturação da chamada família clássica nas grandes cidades – onde cresce fortemente o número de famílias monoparentais, chefiadas por mulheres – como de uma Indicadores de predisposição para a ação sociopolítica maior força relativa da gramática oficial do universalismo de procedimento, baseado no mérito individual e na valorização da privacidade pessoal. Uma outra possibilidade analítica está relacionada à comparação entre as diferentes cidades onde a pesquisa foi realizada.9 Nessa perspectiva, os dados indicam que São Paulo e Porto Alegre se diferenciam do conjunto das demais cidades por alcançarem índices bem superiores à média nacional, tanto no que se refere à intensidade de associativismo quanto à de mobilização sociopolítica (Tabela 5). As demais cidades se situam mais próximas da Os níveis de associativismo e mobilização sociopolítica certamente estão relacionados às percepções em torno do sistema político. Mas os comportamentos sociopolíticos são resultados de processos de socialização e aprendizagem, resultando, segundo o contexto social e as opções pessoais, em atitudes políticas ativas ou passivas. Entendendo que os comportamentos sociopolíticos são passíveis de aprendizado, podemos dizer que o comportamento de uma pessoa “como sujeito ativo ou como indivíduo politicamente passivo tem muito a ver com a própria trajetória” (Schmidt apud Baquero e Tabela 5 – Associativismo e ação política e social (médias) Brasil e cidades selecionadas – 2006-2008 Cidade Associativismo Mobilização Média N Média N São Paulo 0,66 d 384 0,91 c 384 Porto Alegre 0,60 c, d 383 0,84 c 383 Rio de Janeiro 0,51 b 499 0,69 b 498 Belo Horizonte 0,37 a 383 0,57 a 378 Recife 0,42 a 381 0,70 b 374 Natal 0,42 a 379 0,64 a, b 376 Goiânia 0,55 b, c 381 0,69 b 380 Brasil 0,52 2.000 0,70 2.000 Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP (2006-2008). Escala: (0) nunca pertenceu a (3) participa ativamente.10 Anova: F (6,2783) = 18,341; p < 0,001. Letras diferentes representam grupos estatisticamente diferentes entre si; letras iguais, grupos não estatisticamente diferentes entre si (Duncan a p < 0,05). 354 Book CM v11_n22.indb 354 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:39 Metrópoles, cultura política e cidadania no Brasil Baquero, 2007), o que coloca em questão o Paulo e de Porto Alegre, desta vez acompanha- processo de socialização para a cidadania vi- das da cidade do Rio de Janeiro (Tabela 6). venciado pelos agentes sociais. Tendo em vista Não obstante a importância dos proces- esse quadro de referência, a pesquisa tomou sos de socialização primária, é preciso levar como indicador do processo de socialização em consideração os novos processos de dife- política – como um dos fatores que podem in- renciação decorrentes da exposição a novos fluenciar a predisposição para a ação sociopolí- grupos de referência e novas experiências de tica – a frequência com que se discutia política vida. Nesse sentido, também é importante em casa e/ou na escola ou universidade, consi- avaliar em que medida as pessoas conversam derando a fase adolescente e a juventude. sobre política no seu cotidiano, levando-se em Considerando esse fator como um ele- consideração seu local de trabalho, encontros mento de socialização primária na política, informais com os amigos, em sua casa ou de podemos perceber que, em geral, os brasileiros seus familiares, em reuniões associativas ou não têm o costume de falar de política quando ainda em conversas com vizinhos. No âmbito jovens nos espaços onde vivem ou estudam. De da pesquisa, consideramos essas práticas co- fato, em geral, na média os brasileiros apenas mo processos de socialização secundária. Em raramente discutem política nesses espaços. geral, os índices nesse quesito se mostraram Nesse tema, comparando-se as cidades brasi- muito coerentes com o anterior, acompanhan- leiras, mais uma vez se destacaram, situando- do o baixo grau de socialização primária na se acima da média nacional, as cidades de São política. Em outras palavras, em geral, apenas Tabela 6 – Socialização política, Brasil e cidades selecionadas – 2006-2008 Cidade Socialização primária Socialização secundária Média N Média N São Paulo 2,38 d 380 2,26 d 382 Porto Alegre 2,42 d 378 2,24 d 380 Rio de Janeiro 2,11 c 486 2,09 c 496 Belo Horizonte 1,92 a 364 1,53 a 383 Recife 1,92 a 366 2,01 c 372 Natal 1,98 a, b 362 1,89 b 378 Goiânia 2,07 b, c 379 2,01 c 379 Brasil 2,06 1.979 2,06 1.979 Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP (2006-2008). Escala: (1) nunca a (4) frequentemente.11 Anova: F (6,2704) = 20,287; p < 0,001. Letras diferentes representam grupos estatisticamente diferentes entre si; letras iguais, grupos não estatisticamente diferentes entre si (Duncan a p < 0,05). Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 355 355 17/3/2010 12:49:40 Sérgio de Azevedo, Orlando Alves dos Santos Jr. e Luiz César de Queiroz Ribeiro raramente discute-se política nesses espaços. destaca-se o alto índice de alcançado em todas Também aqui, destacaram-se, situando-se aci- as cidades pelo acesso à televisão como prin- ma da média nacional, as cidades de São Paulo cipal fonte de informação política. No caso de e de Porto Alegre, novamente acompanhadas Porto Alegre, cabe mencionar a alta frequência da cidade do Rio de Janeiro (Tabela 6). de leitura de jornais como fonte de informação Como já mencionado anteriormente, um política, ficando muito acima das demais cida- outro aspecto importante na construção das des brasileiras (Tabela 7). Aqui é preciso consi- percepções em torno da política diz respeito ao derar o impacto diferenciado das várias fontes acesso e à exposição à mídia informativa. Nes- de informação na construção da opinião crítica se ponto, é interessante observar as diferenças dos cidadãos, quando consideramos o acesso entres as cidades brasileiras pesquisadas. Sem às informações decorrentes do rádio e da te- grandes surpresas, repete-se o destaque para levisão em comparação com diários e revistas as cidades de Porto Alegre e de São Paulo, on- semanais, no caso brasileiro agravado pela de seus moradores aparecem mais expostos à extrema desigualdade social, que torna a ca- mídia informativa, nesse item seguido por Belo pacidade cognitiva extremamente diferenciada Horizonte. Olhando os dados relativos ao Brasil, segundo os níveis de escolaridade. Tabela 7 – Exposição à mídia informativa Brasil e cidades selecionadas – 2006-2008 Mídia informativa Brasil São Paulo Porto Alegre a) Lê assuntos políticos nos jornais 2,22 2,84 3,18 Rio de Belo Janeiro Horizonte 2,69 2,57 Recife Natal Goiânia 2,26 2,16 2,53 b) Vê noticiários na televisão 4,10 4,50 4,32 3,98 4,07 4,04 4,02 4,19 c) Ouve noticiários no rádio 2,95 2,92 2,89 2,76 3,31 2,67 2,36 2,80 d) Utiliza a internet para obter notícias e informação política 1,37 1,95 1,93 1,62 1,54 1,51 1,45 1,65 Média 2,66 3,05 3,09 2,77 2,88 2,64 2,51 2,79 N 2.000 384 382 498 383 377 378 384 Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2006-2008. Nota: Anova: F (6,2765) = 23,534 ; p < 0,001. Escala: (1) nula exposição e (5) máxima exposição.12 356 Book CM v11_n22.indb 356 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:40 Metrópoles, cultura política e cidadania no Brasil Percepções sobre deveres e direitos relativos ao exercício da cidadania De uma forma geral, quando analisamos as médias para o Brasil, destaca-se o fato que os dois temas menos valorizados foram “es- Quando analisamos as opiniões em torno dos colher os produtos que consome” e, bastante deveres relacionados ao bom exercício da ci- preocupante, “participar em associações, sin- dadania, podemos perceber a tendência dos dicatos e partidos”. A relativa menor valoriza- brasileiros valorizarem, pelo menos no plano ção do primeiro tema talvez possa ser explica- discursivo, práticas comumente relacionadas do pelo ainda fraco movimento de defesa do aos deveres associados ao exercício da cidada- consumidor vis-à-vis aos países do chamado nia, envolvendo o dever de votar nas eleições, primeiro mundo. Por um lado, os avanços ins- pagar impostos, obedecer às leis, ajudar as titucionais nessa área – entre eles a criação do pessoas e prestar serviço militar, entre outras Código de Defesa do Consumidor e a criação de questões (Tabela 8). órgãos governamentais municipais de defesa Tabela 8 – Opiniões sobre os deveres relativos ao bom exercício da cidadania Brasil e cidades selecionadas, 2006-2008 Brasil São Paulo Porto Alegre a) Votar sempre nas eleições 5,68 5,56 5,63 5,44 b) Nunca sonegar impostos 5,71 5,76 5,81 c) Obedecer sempre às leis 6,12 5,93 d) Manter-se informado sobre o governo 5,68 e) Participar em organizações sociais ou em partidos Deveres relativos à cidadania Rio de Belo Janeiro Horizonte Recife Natal Goiânia 5,96 5,89 5,90 5,88 5,70 6,09 5,91 6,20 5,99 6,01 6,07 6,00 6,27 6,26 6,25 5,64 5,77 5,71 5,05 5,84 6,17 6,01 4,61 3,98 4,62 4,62 4,03 5,07 5,32 4,99 f) Tentar compreender diferentes opiniões 5,74 5,74 5,72 5,84 6,01 6,14 6,21 5,88 g) Escolher produtos por questões políticas, éticas ou ambientais 4,36 4,04 4,80 4,50 4,78 4,89 5,37 4,77 h) Ajudar as pessoas necessitadas do Brasil 6,46 6,30 6,23 6,42 6,33 6,67 6,71 6,34 i) Ajudar as pessoas de outras partes do mundo 6,23 6,06 5,63 6,17 5,86 6,45 6,59 6,26 j) Serviço militar 5,05 4,23 4,51 5,20 4,91 5,35 5,74 5,25 Média 5,57 5,32 5,47 5,57 5,50 5,85 6,05 5,76 N 2.000 384 384 497 384 381 381 382 Escala: 7 – Muito importante a 1– Nada importante.13 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 357 357 17/3/2010 12:49:40 Sérgio de Azevedo, Orlando Alves dos Santos Jr. e Luiz César de Queiroz Ribeiro do consumidor – possuem menos de três déca- Na comparação entre as diferentes cida- das. Por outro, devido à extrema desigualdade des onde a pesquisa foi realizada, o que mais do país, a maioria da população pobre tenderia chama atenção são as diferenças que opõem, a priorizar o acesso à quantidade dos produ- novamente, as cidades de São Paulo e de Porto tos necessários para sua sobrevivência, em re- Alegre, caracterizadas por serem os lugares on- lação à qualidade, o que implica a escolha de de menos se valorizam comportamentos comu- mercadorias mais baratas. De qualquer forma, mente relacionadas aos deveres da cidadania é possível dizer que isso tem mudado de for- moderna, e Recife, Natal e Goiânia, em outro, ma incremental primeiramente em relação aos pela razão inversa, ou seja, pela maior valoriza- produtos consumidos pela classe média e, de ção dessas mesmas práticas, com as cidades do forma mais lenta, no referente aos produtos de Rio de Janeiro e de Belo Horizonte ocupando consumo de massa. um lugar intermediário nessa escala.14 Em relação ao segundo tema, a menor Esse quadro se repete quando analisa- valorização da participação em associações, mos as opiniões relativas aos direitos de cida- sindicatos e partidos pode ser explicada tendo dania (Tabela 9). Os brasileiros, em geral, con- em vista as características do sistema político e sideram muito importante ter um nível de vida social brasileiro, onde o universalismo de proce- digno, o respeito aos direitos das minorias, o dimentos – ainda que, na qualidade de retórica tratamento igualitário, ser escutado e ter mais oficial, venha aumentando paulatinamente o oportunidades de participação nas decisões de seu espaço na história republicana do país – é interesse público. Mas também nesse caso po- sobrepujado ou aparece entrelaçado por outras demos perceber que os cidadãos de São Paulo gramáticas políticas como o corporativismo, o e de Porto Alegre, desta vez acompanhados clientelismo e, em menor grau, com o insula- pelos de Belo Horizonte, valorizam menos es- mento burocrático (Nunes, 1997). ses temas vinculados aos direitos de cidadania No que concerne aos valores com índices e que, inversamente, os moradores de Recife, mais elevados, destacam-se as opiniões rela- Natal e Goiânia, agora com os do Rio de Ja- tivas a Ajudar Pessoas Necessitadas, tanto as neiro, expressam maior importância a essas brasileiras como, inclusive, de outras partes do questões. mundo. É provável que esse comportamento Diante dos valores e das percepções que seja decorrente, sobremaneira, do caráter for- ficaram evidenciadas ao longo dessa sessão, temente relacional da nossa sociedade, que não é de estranhar que os brasileiros não de- em termos de valores prioriza as necessidades monstrem muito interesse pela política, pelo do grupo familiar em sua perspectiva amplia- menos da forma como percebem a política da – que comportaria, inclusive, agregados e oficial no Brasil. Na média, poder-se-ia definir amigos – em detrimento de interesses indivi- a posição do brasileiro como sendo de quase dualistas, visto como reprováveis socialmente. nenhum interesse. Coerente com as diferenças (Damatta, 1979). observadas ao longo da análise, de novo São 358 Book CM v11_n22.indb 358 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:40 Metrópoles, cultura política e cidadania no Brasil Paulo e Porto Alegre são as capitais que mais Goiânia, do Recife e do Rio de Janeiro também se diferenciam da média nacional, ultrapas- ficaram levemente acima da média, apesar de sando a barreira do pouco interesse. De qual- distantes das duas anteriormente mencionadas quer forma, vale registrar que as cidades de (Tabela 10). Tabela 9 – Opiniões sobre os direitos de cidadania Brasil e cidades selecionadas, 2006-2008 Brasil São Paulo Porto Alegre a) Nível de vida digno 6,64 6,55 6,58 6,71 b) Autoridades respeitarem os direitos das minorias 6,46 6,45 6,56 c) Autoridades tratarem todas as pessoas como iguais 6,66 6,57 d) Políticos escutarem os cidadãos 6,55 e) Ter mais oportunidades de participar das decisões de interesse público Direitos do cidadão Rio de Belo Janeiro Horizonte Recife Natal Goiânia 6,68 6,67 6,79 6,68 6,61 5,62 6,67 6,69 6,73 6,57 6,76 6,63 6,70 6,77 6,81 6,38 6,54 6,73 6,46 6,53 6,55 6,67 6,46 6,23 6,35 6,69 6,41 6,41 6,65 6,46 Média 6,55 6,44 6,52 6,70 6,36 6,60 6,69 6,67 N 2.000 384 382 499 384 378 381 383 Escala: 7 - Muito importante a 1 - Nada importante.15 Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2006-2008. Tabela 10 – Grau de interesse na política Brasil e cidades selecionadas – 2006-2008 Média N São Paulo Cidade 2,29 d 381 Porto Alegre 2,24 d 378 Rio de Janeiro 1,90 b 487 Belo Horizonte 1,65 a 375 Recife 1,95 b, c 370 Natal 1,68 a 375 Goiânia 2,07 c 380 Brasil 1,88 1.954 Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP (2006-2008). Escala: (1) não tem interesse nenhum a (4) muito interessado.16 Anova: F (6,2736) = 27,829 ; p < 0,001. Letras diferentes representam grupos estatisticamente diferentes entre si; letras iguais, grupos não estatisticamente diferentes entre si. Duncan a p < 0,05. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 359 359 17/3/2010 12:49:40 Sérgio de Azevedo, Orlando Alves dos Santos Jr. e Luiz César de Queiroz Ribeiro Considerações finais: a multiplicidade de gramáticas culturais nas metrópoles brasileiras ligadas ao trabalho assalariado urbano de alta qualificação ou do setor público. Um segundo aspecto é que no caso brasileiro as demandas sociais baseadas em objetivos redistributivos permanecem pressionando fortemente a política econômica e fiscal, tendo Segundo Clark e Inglehart (2007) a NCP se ca- em vista o grau de carência e desigualdades racterizariam por sete elementos-chave: (1) a sociais que vigoram em nosso país. Em terceiro modificação da dimensão clássica entre direi- lugar, no Brasil, ao contrário do primeiro mun- ta e esquerda; (2) a explícita separação entre do, as necessidades econômicas tradicionais, as questões sociais e econômico-fiscais; (3) o voltadas para a reprodução social, permane- maior crescimento da importância das ques- cem tendo uma grande relevância na agenda tões sociais decorrentes da exacerbação da di- política. ferenciação sociocultural do que as demandas Em quarto lugar, no Brasil, mesmo com econômicas; (4) o crescimento concomitante nuances e talvez sem a direta associação com do individualismo de mercado e da responsabi- a dualidade esquerda-direita, observa-se ten- lidade social; (5) a existência de diversos ques- dência similar de fortalecimento dos partidos e tionamentos ao Estado de Bem-Estar Social; líderes que associam o liberalismo econômico (6) a emergência de políticas centradas em com uma postura progressista na dimensão questões-chaves e a ampliação da participação social. Em quinto, em relação à defesa da des- cidadã, por um lado, e o declínio das organi- centralização político-administrativa para os zações políticas hierárquicas, por outro; (7) a níveis de governo local e mesmo para esferas existência dos mais fervorosos defensores da da sociedade, pode-se observar relativa difusão NCP nas sociedade menos hierárquicas e entre de valores semelhantes no Brasil. Entretanto, os indivíduos mais jovens, mais instruídos e os nos últimos anos, o revigoramento da crença que vivem mais confortavelmente. no planejamento público e, por outro, a disputa Contrastando essas características com sobre o sentido e conteúdo da descentralização, o contexto brasileiro, podem-se levantar di- tem se tornado objeto de polêmicas e de fortes versas questões para o debate. Em primeiro críticas entre acadêmicos e os atores sociais lugar, a questão é que enquanto no contexto mobilizados a chamada ideologia “neolocalis- europeu a divisão entre direita e esquerda tra- ta”, muito mais susceptível tanto à corrupção dicionalmente organizou – e em certa medi- como à chantagem por parte de grandes em- da permanece balizando – o comportamento presas e interesses privados das elites locais. político e cultural da sociedade, no Brasil, em Em quinto lugar, a análise da história brasilei- contraposição, essa clivagem somente fazia ra sugere maior cautela nessa dicotomia entre sentido para a pequena parcela da população mobilização e associativismo, possibilitando detentora da cultura letrada e para a que se por como hipótese a existência de vínculos encontrava organizada nas formas associativas não negligenciáveis entre esses dois processos, 360 Book CM v11_n22.indb 360 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:40 Metrópoles, cultura política e cidadania no Brasil especialmente nas áreas urbanas não metropo- Grosso modo, poderíamos caracterizar a litanas, apesar de podermos verificar também média da população brasileira como apresen- no Brasil a introdução de movimentos sociais tando um discurso fortemente comunitarista em torno dos direitos difusos. e solidário a povos em situação de carência, Por último, divergindo das diferenças an- paralelamente a uma prática de mobilização teriores, o caso de a chamada NCP tender a ter social e política pífia em relação aos países mais força nas metrópoles e centros urbanos do primeiro mundo anteriormente citados. mais modernos – caracterizados por alcança- Essa nossa fragilidade permite elaborar uma rem elevados padrões de qualidade de vida – e hipótese de que países com altos graus de atingir de forma mais forte os jovens. Tal ten- mobilização social e política – como Canadá, dência também pode ser observada no Brasil, Suécia e França – mesmo que retoricamente mesmo que em menor escala de intensidade sejam bem menos “altruístas” que o Brasil, em relação aos países do Primeiro Mundo, na prática concreta seria capazes de mobilizar devendo ainda ser destacada a possibilidade ajudas a terceiros relativamente maiores que de esses valores da NCP estarem associados as nossas. mais fortemente à vida metropolitana – o que Ao longo deste ensaio exploratório podemos denominar “efeito metrópole”, con- buscamos evidenciar a emergência de novos siderando-se as históricas e fortes desigualda- laços entre a cidadania e a condição urbana. des culturais entre os mundos sociais agrário e Pretendemos continuar gerando novos conhe- urbano na sociedade brasileira. cimentos tanto a partir da reaplicação desta Em termos relativos ao Brasil, quando pesquisa em diversas metrópoles brasileiras comparamos as pessoas moradoras em áreas como desenvolvendo análises comparativas metropolitanas com aquelas que habitam áreas internacionais. não metropolitanas, essas últimas parecem va- Acreditamos ser possível de forma in- lorizar mais ações e comportamentos vincula- cremental levantar um conjunto de informa- dos aos valores republicanos tradicionais. Esses ções empíricas de caráter cross-national que dados, em princípio, aparentemente paradoxais nos permitam revisitar a referência clássica de podem ser explicados pelo que denominamos Max Weber sobre a dimensão urbana da cida- “efeitos metrópoles” – na verdade um comple- dania. Partimos do suposto que estas bases xo resíduo de interações entre inúmeras variá- empíricas nos permitem atualizar a tese clás- veis não passíveis de serem desagregadas – do sica da sociologia urbana segundo a qual o ponto de vista estatístico após serem expurga- exercício da cidadania – máxime, a cidadania das, no limite do possível, variáveis clássicas política – seria não só influenciado pelo mo- como renda, educação, classe, gênero, etnia, do de vida citadino, como constituiria mesmo acesso a infraestrutura física, a serviços de con- a manifestação do “urbanismo” em sentido sumo coletivos, saúde, entre outras. sociológico. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 361 361 17/3/2010 12:49:40 Sérgio de Azevedo, Orlando Alves dos Santos Jr. e Luiz César de Queiroz Ribeiro Sérgio de Azevedo Professor Titular da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Pesquisador da rede Observatório das Metrópoles e Consultor Ad Hoc de diversas agências governamentais na área de políticas públicas. Graduado pela Escola Brasileira de Administração Pública, realizou pós-graduação na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais e mestrado no Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro. Realizou seu doutorado em Sociologia na Universidade Católica de Louvain e o pós-doutorado na Universidade de Stanford. Foi Professor Titular da Universidade Federal de Minas Gerais, Professor do Mestrado em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Na Universidade Estadual do Norte fluminense desempenhou as funções de Coordenador de Mestrado, Chefe de Laboratório, Diretor do Centro de Ciências do Homem e Vice-Reitor. Publicou inúmeros trabalhos na área de políticas públicas em livros e revistas aacadêmicas no Brasil e no Exterior (Rio de Janeiro, Brasil). [email protected] Orlando Alves dos Santos Junior Sociólogo, doutor em planejamento urbano pelo IPPUR/UFRJ, atualmente é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro da coordenação da Rede Observatório das Metrópoles/CNPq, desenvolve pesquisas na área da política urbana e da cultura política. Autor de diversas publicações sobre a política urbana, entre as quais se destacam As Metrópoles e a Questão Social Brasileira (em co-autoria, ed. Revan) e Democracia e Governo Local (ed. Revan, Fase) (Rio de Janeiro, Brasil). [email protected] Luiz César de Queiroz Ribeiro Mestre em Desenvolvimento Econômico e Social pela Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne e doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É o coordenador geral do Observatório das Metrópoles. Desenvolve estudos sobre os temas: metropolização, dinâmicas intrametropolitanas e o território nacional, dimensão socioespacial da exclusão/integração nas metrópoles, governança urbana, cidadania e gestão das metrópoles. Co-editor da revista Cadernos Metrópoles www.observatoriodasmestropoles.net. Autor de diversas publicações, entre as quais destacam-se As Metrópoles e a Questão Social Brasileira (em co-autoria, ed. Revan) e Metrópoles: entre a coesão e a fragmentação, a cooperação e o conflito (organizador, ed. Fundação Perseu Abramo, Fase) (Rio de Janeiro, Brasil). [email protected] Notas (1) O Observatório das Metrópoles – IPPUR/UFRJ e o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) vêm desenvolvendo um projeto comparativo sobre a análise das atitudes sociais e políticas de brasileiros no marco das redes do International Survey Research Programme (ISRP) e da European Social Survey (ESS). No Brasil, o projeto conta também com a participação do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). 362 Book CM v11_n22.indb 362 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:40 Metrópoles, cultura política e cidadania no Brasil (2) Por “efeito cidade” consideramos – após isoladas as variáveis clássicas como renda familiar, formação educacional, socialização primária, instruções dos pais, etc. – um “resíduo” decorrentes de trade offs entre diversas variáveis existentes em maior grau nas grandes metrópoles, ainda que difícil de serem isoladas, como ambiente cultural diversificado, maior interação com diferentes equipamentos de acesso à cultura, livrarias, restaurantes internacionais, jornais, bibliotecas, livrarias, teatros, cinemas e concertos músicas, entre outros. (3) Ver, entre outros, Clark e Inglehart (2007); Clark e Hoffmann-Martinot (1998) e Clark e Navarro (2007). (4) Esse processo de regulação do mercado pelo Estado é inerente ao próprio capitalismo. Como destaca Karl Polany (2000), subordinar a substância da própria sociedade às leis do mercado (p. 84) resultaria no desmoronamento da sociedade. Segundo o autor, esta ameaça torna inevitável o surgimento (como ocorreu ao longo dos séculos XIX e XX) de algum forma de protecionismo que limitasse o poder do livre mercado: Despojados da cobertura protetora das instituições culturais, os seres humanos sucumbiriam sob os efeitos do abandono social (p. 85). É para proteger a sociedade do desse moinho satânico (p. 86) que surgem os contramovimentos de proteção social. De fato, inclusive as próprias transações capitalistas devem ser também protegidas do funcionamento irrestrito do mercado. (5) Somente depois da recente crise internacional que afetou, em diferentes graus, todos os países desenvolvidos, além da periferia do sistema, resolveu-se discutir seriamente as alternativas de regulação do mercado financeiro internacional. (6) Nesses números não foram consideradas cerca de uma dezena de iniciativas de criação de novas regiões em andamento. (7) Foram entrevistadas 2.000 pessoas no país, na amostra nacional, e complementarmente mais 1.304 pessoas distribuídas nas seguintes cidades: São Paulo (384), Rio de Janeiro (500), Porto Alegre (384), Belo Horizonte (384), Recife (384), Natal (384) e Goiânia (384). No que se refere à amostra nacional, temos 51,2% de mulheres e 48,9% de homens, todos maiores de 18 anos, distribuídos entre as seguintes faixas etárias: (a) 34,6% entre 18 e 29 anos; (b) 31,6% entre 30 e 44 anos; (c) 19,9% entre 45 e 59 anos; (d) 11,8 entre 60 e 74 anos; e (e) 2,2 com mais 75 anos. A maior parte dos entrevistados é solteira (49%), mas também é significativo o percentual de casados (37%). A amostra também contou com 7% de viúvos e 7% de separados ou divorciados. Em geral, o nível de escolaridade dos entrevistados é baixo, prevalecendo pessoas que cursaram até o nível médio incompleto (68% da amostra). (8) No questionário, a pergunta foi formulada da seguinte forma: “Abaixo são listadas algumas formas de ação política e social que as pessoas podem ter. Por favor, indique, para cada uma delas se: (1) fez no último ano; (2) fez em anos anteriores; (3) nunca fez, mas poderia ter feito; (4) nunca o faria. Formas de ação política e social: assinar uma petição ou fazer um abaixo-assinado; boicotar ou comprar determinados produtos por questões políticas, éticas ou ambientais; participar em uma manifestação; participar em um comício ou em uma reunião política; contactar, ou tentar contactar, um político ou um funcionário do governo para expressar seu ponto de vista; dar dinheiro ou tentar recolher fundos para uma causa pública; contactar ou aparecer na mídia para exprimir suas opiniões; participar em um fórum ou em um grupo de discussão pela internet”. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 363 363 17/3/2010 12:49:40 Sérgio de Azevedo, Orlando Alves dos Santos Jr. e Luiz César de Queiroz Ribeiro (9) Para controlarmos estatisticamente a comparação das médias dos índices para cada cidade, realizamos uma análise de variância para distinguirmos médias que não se diferenciam significativamente e formando grupos de médias que diferenciam significativamente entre si. (10) Os índices de associativismo e de mobilização foram construídos com base nas médias das respostas das questões relativas a cada um dos índices (ver Tabelas 1 e 2), tendo como resultado um índice que varia de 0 a 3. (11) Na socialização primária, o índice corresponde à média alcançada em duas perguntas: “(a) quando o(a) senhor(a) tinha 14/15 anos, com que frequência se falava de política em sua casa?; (b) na escola/universidade, com que frequência se fala, ou se falava, de política?”. Na construção do índice, foram dados pesos diferenciados, de acordo com as seguintes respostas: “(4) frequentemente; (3) algumas vezes; (2) raramente; e (1) nunca”. Na socialização secundária, o índice corresponde à média alcançada em uma pergunta dividida em cinco itens: “Hoje em dia, fora dos meios de comunicação (televisão, rádio e jornais), com que frequência ouve falar de assuntos políticos em cada um dos seguintes locais: (a) local de trabalho; (b) encontros com os amigos; (c) a própria casa ou a de seus familiares; (d) reuniões associativas; (e) conversas com os vizinhos. Na construção do índice, foram dados pesos diferenciados de acordo com as seguintes respostas: (4) frequentemente; (3) algumas vezes; (2) raramente; e (1) nunca”. (12) O índice corresponde à média alcançada para a seguinte pergunta: “Com que frequência o(a) senhor(a) faz cada uma das seguintes coisas?: (a) lê assuntos de política nos jornais; (b) vê os noticiários na televisão; (c) ouve os noticiários da rádio; (d) utiliza a internet para obter notícias e informação política. Sendo: (5) todos os dias; (4) 3-4 dias por semana; (3) 1-2 dias por semana; (2) menos de 1 dia por semana; e (1) nunca”. (13) A pergunta do questionário era a seguinte: “Há muitas opiniões diferentes sobre o que se deve fazer para ser um bom cidadão. Numa escala de 1 a 7, em que 1 significa nada importante e 7 muito importante, que importância o(a) Sr(a). atribui, pessoalmente, a cada um dos seguintes aspectos: (a) votar sempre nas eleições; (b) nunca sonegar impostos; (c) obedecer sempre às leis e aos regulamentos; (d) manter-se informado sobre as atividades do governo; (e) participar em associações, sindicatos e partidos; (f) tentar compreender a maneira de pensar das pessoas com opiniões diferentes das suas; (g) escolher produtos por razões políticas, éticas ou ambientais, mesmo que eles custem mais caro; (h) ajudar as pessoas que, no Brasil, vivem pior do que o(a) senhor(a); (i) ajudar as pessoas que, no resto do mundo, vivem pior do que o(a) senhor(a); e (j) estar disposto a prestar serviço militar quando for preciso.” (14) Se levarmos em conta apenas as médias gerais, Rio de Janeiro e Belo Horizonte se aproximariam das cidades de São Paulo e Porto Alegre, mas, de fato, olhando os diferentes componentes da pesquisa percebe-se que elas flutuam fortemente na importância atribuída aos diferentes valores. (15) A pergunta do questionário foi a seguinte: “Há muitas opiniões diferentes sobre os direitos das pessoas numa democracia. Nesta escala de 1 a 7, em que 1 significa sem importância e 7 muito importante, que importância o(a) sr(a). atribui a: (a) todos os cidadãos terem um nível de vida digno; (b) as autoridades respeitarem e protegerem os direitos das minorias; (c) as autoridades tratarem todas as pessoas da mesma maneira, independentemente da sua posição social; (d) os políticos escutarem os cidadãos antes de tomarem decisões; e (e) dar às pessoas mais oportunidades de participar nas decisões de interesse público.” (16) A pergunta do questionário foi: “O senhor(a) diria que é interessado em política? Sendo: (4) muito interessado; (3) interessado; (2) não muito interessado; e (1) não tem interesse nenhum”. 364 Book CM v11_n22.indb 364 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:40 Metrópoles, cultura política e cidadania no Brasil Referências AZEVEDO, S. de e MARES GUIA, V. R. dos (2004). “Os dilemas institucionais da gestão metropolitana no Brasil”. In: RIBEIRO, L. C. de Q. (org.) Metrópoles: entre a coesão e a fragmentação, a cooperação e o conflito. São Paulo/Rio de Janeiro, Fundação Perseu Abramo/Fase. BAQUERO, R. e BAQUERO, M. (2007). Educando para a democracia: valores democráticos partilhados por jovens porto-alegrenses. Ciências Sociais em Perspectiva. Cascavel, v. 6, n. 11, pp. 139-153. BOSCHI, R. (2004). Instituciones políticas, reformas estructurales y ciudadania: dilemas de la democracia en Brasil. Revista Política. Santiago, v. 42, pp. 281-308. CABRAL, M. V. (2000). “O exercício da cidadania política em Portugal”. 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Texto recebido em 10/maio/2009 Texto aprovado em 19/jul/2009 366 Book CM v11_n22.indb 366 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 347-366, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:40 Geografia política das eleições congressuais: a dinâmica de representação das áreas urbanas e metropolitanas no Brasil Political geography of congressional elections: the dynamics of the representation of urban and metropolitan areas in Brazil Nelson Rojas de Carvalho Resumo Este artigo tem por finalidade proceder a uma análise de natureza exploratória sobre a geografia do voto dos deputados federais eleitos em nossas regiões metropolitanas e nas áreas mais urbanizadas do país. Duas são as preocupações que atravessam o artigo apresentado: avaliar a extensão da subrepresentação dessas regiões e das áreas urbanas na Câmara dos Deputados, por um lado, e identificar, por outro, o padrão de distribuição de votos do que podemos designar por bancada metropolitana. Testamos e comprovamos ao longo do artigo duas hipóteses: a existência de uma significativa sub-representação daquelas áreas no Congresso e um padrão de votos concentrado de nossos deputados metropolitanos, padrão não previsto na tradição da sociologia eleitoral e que pode estar na base de um novo fenômeno: um paroquialismo metropolitano. Abstract This paper aims at carrying out an introductory investigation into Brazilian congressmen’s geography of votes. The congressmen who were elected in the country’s metropolitan regions are our main target. Two main concerns underlie this study: to evaluate the extent to which the metropolitan and more urbanized regions are underrepresented in Congress, on the one hand, and to identify the spatial distribution pattern of votes of congressmen elected in the metropolitan areas, on the other hand. We have tested and confirmed two main hypotheses in this research: the more urbanized areas of Brazil, including the metropolitan regions, find themselves severely penalized as regards the fair amount of representatives they should have in Congress, and there is a concentrated pattern of spatial distribution of votes of our representatives that come from the metropolitan regions, which may uncover a new phenomenon – a kind of urban localism. Palavras-chave: geografia eleitoral; localismo; áreas metropolitanas. Keywords : electoral geography; localism; metropolitan areas. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 367 17/3/2010 12:49:40 Nelson Rojas de Carvalho legislativo, no segundo caso, os eleitores, su- Introdução jeitos à estrutura social fortemente verticaliza- Este trabalho tem por finalidade fornecer topografia exploratória sobre a geografia política das eleições legislativas no Brasil. Se o poder político se expressa e se exerce ao longo do território, o campo de estudos associado à geografia eleitoral deve constituir área de primeira relevância no campo da ciência política. Embora a área já ocupe esse lugar de centralidade no âmbito da comunidade acadêmica internacional, sobretudo nas universidades europeias, da e hierarquizada, seriam prezas do clientelismo e os representantes se moveriam segundo a lógica do particularismo e do paroquialismo no terreno legislativo. Uma das conclusões da presente investigação é demonstrar que, no caso das eleições para a Câmara Baixa, há sub-representação siste mática das áreas mais urbanizadas em benefício dos chamados grotões. De fato, com base na análise de quatro eleições para o Con- entre nós as investigações sobre geografia elei- gresso – 1994, 1998, 2002 e 2006 – verifica- toral ainda se mostram incipientes. As questões mos quase sem variação que aquelas áreas en- e resultados aqui levantados são, portanto, viam para o legislativo número de deputados quase que forçosamente novos e fornecem in- em proporção significativamente inferior a seu sumos para pesquisas posteriores. percentual de eleitores. Uma bancada de algo Informa a presente investigação e a pes- em torno de 100 deputados deixa de ser en- quisa empírica correspondente indagação cen- viada das áreas urbanas para o Congresso na tral que guarda, por sua vez, preocupação de operacionalização do nosso sistema eleitoral. fundo normativo: na operacionalização de nos- Tão ou mais importante do que a ve- so sistema eleitoral, em que medida se veem as rificação para o conjunto do país, em quatro áreas urbanas – notadamente as capitais dos eleições sucessivas, da sub-representação das estados, as regiões metropolitanas e as maio- áreas urbanizadas é uma segunda constatação res cidades – representadas de forma justa, ou decorrente da investigação empírica: também seja, estão essas áreas a eleger deputados em de forma sistemática, a quase totalidade dos proporção que respeite a orientação democrá- deputados de extração urbana entre nós apre- tica consagrada no princípio one man, one vo- senta um perfil de votação espacialmente con- te? Tal questão traz subjacente uma motivação normativa, desdobramento de hipótese clássica da sociologia eleitoral: segundo a matriz da sociologia eleitoral, o voto de extração urbana implicaria representação de qualidade superior ao que figuraria para essa literatura como seu oposto, o voto de origem rural. Enquanto no primeiro caso, o corpo de votantes se moveria, sobretudo, por orientação ideológica e os representantes, pelo universalismo no campo centrado. Como sabem aqueles familiarizados 368 Book CM v11_n22.indb 368 com a literatura consagrada à conexão eleitoral – ou seja, a perspectiva que infere as políticas favorecidas pelos deputados dos incentivos oriundos de suas respectivas bases eleitorais de origem –, deputados com votação concentrada tendem a se mover segundo a lógica do particularismo, buscando favorecer a produção de benefícios desagregados para seus distritos. Ao contrário, deputados com votação Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:40 Geografia política das eleições congressuais espacialmente dispersa tendem a se pautar pelo universalismo legislativo. Ora, se os deputados egressos de nossas áreas urbanas, das regiões metropolitanas, em particular – ambas sistematicamente sub- Do debate sobre as disjuntivas urbano-rural, capital-interior, à disjuntiva concentraçãodispersão espacial dos votos represesentadas no Congresso –, apresentam padrão de votação espacialmente concentrado Os estudos pioneiros no campo da sociologia estaríamos, então, diante de um híbrido perver- eleitoral no país identificaram na dimensão ur- so, não previsto pela tradição de nossa socio- bano/rural linha importante de clivagem atra- logia eleitoral: a sub-representação das áreas vessando a política brasileira. Essa dimensão urbanas, de um lado, e o paroquialismo metro- abrigaria a um só tempo indicadores socioeco- politano, de outro. Embora de origem urbana, nômicos diversos, realidades eleitorais distintas a representação metropolitana no Brasil, ao e culturas políticas antagônicas. Da infraes- concentrar sua votação no espaço geográfico trutura, a variável dotada de maior poder de 1 de um único município, se moveria – tal qual impacto sobre a esfera política, consistiria no os congêneres das áreas rurais – pela lógica do grau de urbanização, variável que, para autores particularismo, deixando fora de sua agenda como Soares (2001), não seria redutível a ou- temas de natureza universalista, como a gover- tros indicadores socioeconômicos: nança metropolitana. Embora a urbanização se correlacione com industrialização e muitas outras variáveis estruturais, as análises de regressão e de correlação revelam que, eleitoralmente, a urbanização foi mais importante durante o período democrático – acima e além da industrialização e do desenvolvimento social. (p. 187) O trabalho aqui exposto divide-se em duas partes. Na primeira, situamos os principais termos oriundos da sociologia eleitoral, com a respectiva qualificação da disjuntiva rural versus urbano. Nesta seção apontamos, ainda, para o estabelecimento de uma linha de continuidade entre a matriz da sociologia eleitoral e aquela batizada por “conexão eleito- A atividade política nas áreas rurais e ral”: ambas as matrizes procuram correlacionar urbanas do país estaria, então, associada a a base dos representantes com as prioridades dois universos de valores distintos, um primei- e orientações de policy. Deputados oriundos ro com ênfase nas dimensões particularistas, de áreas rurais e áreas urbanas, num caso, adscritas e sagradas da vida social, e um se- ou de distritos concentrados e dispersos, no gundo caracterizado por orientações univer- outro, estariam orientados, respectivamente, salistas, adquiridas e seculares. De um lado, por valores paroquiais e universais. Na segun- estaria situada a “política do atraso”, em que da parte, expomos os resultados empíricos da prevaleceriam a tradição e outras orienta- pesquisa, que confirmam a sub-representação ções não ideológicas, de outro, “a política do das nossas áreas urbanas no congresso. desenvolvimento”, caracterizada pelo papel Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 369 369 17/3/2010 12:49:40 Nelson Rojas de Carvalho mais relevante desempenhado pelas classes das cidades pequenas, alguns deles coronéis sociais e pela ideologia, assim como por proje- rurais descontentes com as decisões dos par- tos orientados para o conjunto do país. tidos conservadores no plano estadual e cujas Se a clivagem urbano-rural daria lugar a posições variavam de um conservadorismo duas culturas políticas antagônicas, refletir-se- declarado a um reformismo suave (p. 275). Ou ia também em configurações político-eleitorais seja, representantes de áreas distintas, muito de cortes diferenciados nas duas áreas. Ao ana- embora pertencendo a uma mesma agremia- lisar de forma pioneira o impacto da variável ção partidária, distinguiam-se por ostentarem geográfica sobre as preferências políticas, no comportamentos políticos diversos. mesmo estudo, Soares (ibid.) afirma que uma Ora, não só é possível, como também nítida clivagem urbano-rural surgiu logo após legítimo, estabelecer nexo de continuidade en- a redemocratização, a qual teve início com a tre a linguagem tradicional da sociologia elei- queda da ditadura de Vargas. “Na maioria das toral e a orientação institucionalista centrada capitais do país, o Partido Comunista Brasilei- nos estudos sobre conexão eleitoral: segundo ro teve uma presença eleitoral marcante, mas os estudos clássicos com o foco na conexão no interior ele recebeu uma proporção bem eleitoral, representantes voltados à maximi- reduzida do total de votos “(p. 185). Na mes- zação de suas carreiras políticas, mas associa- ma direção, verificava-se à época forte corre- dos a origens geográficas de natureza diversa lação negativa (-, 080) entre o perfil espacial apresentarão comportamentos legislativos da votação do que o autor denomina partidos diferenciados. Nos termos da linguagem neo- oligárquicos – o PSD e a UDN – e as taxas de institucionalista e dentro da perspectiva da urbanização. conexão eleitoral, deputados eleitos com base Importante é destacar aqui o impacto da nas capitais se veem sujeitos a incentivos no variável urbanização: estaria na raiz da iden- que se refere à ação legislativa: a) de priorizar tificação da heterogeneidade das preferências o posicionamento pessoal em relação a temas, dos representantes no interior de uma mesma ou seja, darão ênfase à tomada de posição, agremiação partidária, como decorrência da seja por meio de projetos de lei, pronuncia- extração ora urbana, ora rural desses repre- mentos e a da ação legislativa de uma maneira sentantes. Ao se referir ao PTB, Soares (ibid.) geral; e b) de pautar a conduta legislativa por observa que o conflito existente dentro desse orientação de caráter universalista. Os depu- partido tinha também uma dimensão estadual: tados provenientes do interior, ao contrário, por um lado, os votantes das grandes cidades tenderão a centrar seus esforços na direção da e capitais, principalmente do Nordeste, repre- obtenção de recursos desagregados para suas sentando as massas operárias, subempregadas respectivas localidades, pautando sua ação e desempregadas, e em geral com posições pela lógica do particularismo e do paroquialis- bastante radicais; por outro, os representantes mo legislativo. 370 Book CM v11_n22.indb 370 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:40 Geografia política das eleições congressuais Padrões nacionais de concentração e dispersão do voto expressivo de deputados com votação concentrada, nos termos de Indjaian, ou de deputados "distritáveis", nos termos de Dias. Desse conjunto de estudos sobre geogra- Ao lado da visualização da distribuição espacial fia eleitoral surgiram questões centrais do pon- dos votos segundo o critério dicotômico capital/ to de vista analítico e normativo. Indagou-se, interior uma segunda dimensão da distribuição inicialmente Lamounier (1982), se um sistema dos votos no espaço geográfico vem ganhando proporcional que, em sua operacionalização, se lugar na literatura: o grau de concentração e mostrava concentracionista não teria seu prin- dispersão dos votos dos representantes eleitos cípio orientador deformado. É no que pareciam ao longo do território. crer um conjunto de autores como Lamounier e Como a ponderação do peso da repre- Martins (1983). Ambos convergiam para admi- sentação da capital e do interior nas instâncias tir que a fragmentação do voto seria princípio legislativas, cabe sublinhar, antes de mais na- inerente – do ponto de vista doutrinário – aos da, que a análise da concentração e dispersão sistemas proporcionais. Nas palavras categóri- espacial dos votos vem ocupando lugar de re- cas de Martins, levo não só nos estudos sobre as consequênA constatação de que no Brasil a dispersão espacial dos votos não é a regra e, sim, a exceção precisa ser encarada de frente: trata-se de um efeito contraditório, uma consequência não esperada da premissa proporcional... Para funcionar como se supõe que deve funcionar, o voto proporcional tem que se mostrar capaz de cumprir sua missão específica, que é a de retratar as correntes de opinião compartilhadas pelos eleitores que votam (tanto concentrada, quanto dispersamente) na totalidade da circunscrição territorial. Se, em lugar de fazer isso, o sistema vigente limita-se a conferir mandatos a representantes de interesses locais (municipais ou microrregionais) ... somos forçados a reconhecer que de fato há algo de errado com o método proporcional que estamos praticando. (grifo nosso) (p. 149, 1983) cias operacionais de nossa legislação eleitoral, como também no debate doutrinário sobre as virtudes e vícios dessa legislação. A análise e a prescrição também nesse caso caminham lado a lado. Em breve histórico do tratamento do tema e dos termos do debate, cabe inicialmente citar os estudos pioneiros de Fleischer (1976, 1983), onde o autor verificou para o caso de Minas Gerais fração considerável de deputados com base de votos fortemente concentrada em algumas regiões: fato que, posteriormente, se viu interpretado, pela literatura sobre o tema, como indício da possível existência de um "sistema distrital de fato" operando no interior de nosso sistema proporcional. Os estudos subsequentes (Indjaian, 1981; Dias,1991), com enfoques metodológicos distintos, e analisando respectivamente os estados de São Paulo, Pa- Na mesma linha, Lamounier chama- raná e Rio de Janeiro, acabaram em verdade va a atenção para a gravidade de um siste- por apontar para o mesmo fenômeno: a pre- ma proporcional que se mostrasse de fato sença, nos estados investigados, de número concentracionista: Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 371 371 17/3/2010 12:49:40 Nelson Rojas de Carvalho A confirmar-se em outros estados este quadro de elevada concentração eleitoral, estaríamos, sem dúvida alguma, testemunhando a frustração de um dos valores mais caros à representação proporcional, que é a possibilidade de arrecadar votos numa circunscrição territorial ampla, atendendo, supostamente, a correntes de opinião, e não a meros contornos geográficos criados por lei. Com a circunstância agravante de que nesse suposto sistema distrital de fato, o candidato não está exposto às pressões que o vinculam de maneira mais próxima à base eleitoral, no sistema distrital propriamente dito. (p. 30, 1982) Uma segunda indagação derivada dos estudos sobre geografia do voto dialoga com as premissas de Soares (1973a) sobre um dos efeitos políticos esperados pelo autor – certamente o mais importante – da operacionalização da candidatos "ideológicos" no tocante à proveniência espacial de seus votos (p. 11, 1982). Assim, para Soares haveria duas naturezas de representantes, conjugados a duas respectivas modalidades de distribuição espacial do voto: de um lado, os "coronéis", de votação concentrada, de outro, os "ideológicos", de votação dispersa. Cabe aqui por fim chamar a atenção para o lugar central atribuído pela literatura especializada a esse eixo da distribuição espacial dos votos dos eleitos – se mais ou menos concentrado no espaço geográfico –, no que diz respeito às prioridades de política dos eleitos. Como lembra Limongi (1994), de acordo com a formulação de Weingast, Shepsle e Johnsen, (1981, p. 644), a precisão e limitação geográfica da população-alvo definem a política de natureza distributivista/particularista: legislação proporcional: a paulatina erosão da representação das áreas rurais e atrasadas, ou ainda o enfraquecimento progressivo do poder dos coronéis. Vale lembrar que foi exatamente a expectativa de superação do localismo – antes da ideia clássica da representação como espelho das diferentes correntes de opinião – que constituiu o ponto forte de defesa do sistema proporcional no Brasil, explicando a sua introdução e sobrevivência desde 1932, por meio de argumentos da linha seguida por Soares. O sistema proporcional facultaria a possibilidade – ainda nos termos de Lamounier – de que partidos urbanos e candidatos... mais "ideológicos" recolham votos no conjunto do estado, ainda que diferencialmente distribuídos entre as grandes cidades e municípios do interior. O suposto básico é, portanto, a existência de diferentes padrões entre os "coronéis" e os 372 Book CM v11_n22.indb 372 Uma política distributiva trata-se de uma decisão de política que concentra benefícios em um distrito geográfico específico e financia gastos por meio de uma taxação generalizada... se é claro que toda política traz uma incidência geográfica de custos e benefícios, o que distingue uma política distributiva é que os benefícios têm um alvo geograficamente definido. A centralidade da dimensão geográfica e seu impacto sobre a natureza das políticas implementadas também se acha indicada no trabalho clássico de Cain, Ferejohn e Fiorina, The Personal Vote (1987): Uma base territorial de representação inevitavelmente introduz preocupações particularistas e paroquiais no processo de formulação de políticas. Um representante Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:40 Geografia política das eleições congressuais eleito com os votos, esforços e recursos de pessoas de uma área geográfica específica naturalmente atribui importância especial a suas visões e demandas, tanto por um senso de obrigação como de autointeresse. (p. 19) áreas onde estaria situado o voto "avançado", de extração ideológica, e às áreas do interior, de outro, áreas comumente associadas ao voto "atrasado", cativo, de clientela. Na literatura sobre o tema, quando não se encontram prescrições e fórmulas claramente voltadas a Na mesma linha, Khrebiel assinala a maximizarem o peso eleitoral das zonas urba- dimensão geográfica associada às teorias nas, observa-se pelo menos a defesa de uma distributivas: justa correspondência entre o número de repre- Porque os legisladores estão sujeitos a eleições periódicas e as constitucencies eleitorais são geográficas nos Estados Unidos, a “conexão eleitoral” implica que todo membro do congresso tem fortes incentivos de obter benefícios de interesses especiais para seus eleitores. (1991, p. 3) sentantes oriundos dessas zonas e o número de eleitores ali situados. Nessa linha, destacase o estudo de Aydos (1979) sobre o Rio Grande do Sul como investigação pioneira, onde o autor verificou a sub-representação da capital gaúcha e da região metropolitana do estado – essas áreas funcionariam como colcha de reta- Em síntese, ao lado da análise da disjun- lhos de representantes com reduto no interior. tiva rural/urbano e interior/capital, o eixo que Deduziu dessa verificação uma consequência tem nas extremidades um padrão concentrado política perversa do funcionamento da legisla- e outro disperso de distribuição dos votos no ção proporcional nos estados federados: espaço geográfico, está na raiz, respectiva- Enquanto a sub-representação dos estados mais industrializados não se pode atribuir à representação proporcional, a sub-representação política das grandes cidades e metrópoles lhe é inerente. A imagem da colcha de retalhos é o lugar comum que a prática político-eleitoral tem reservado para as capitais estaduais – áreas onde todos os candidatos são votados e que, por isso mesmo, dificilmente elegem candidatos próprios para as assembleias estaduais e para a Câmara Federal... a cidade de Porto Alegre, que teria condições de eleger cerca de 4 a 5 deputados, é responsável por mais de 50% da votação de apenas 2 candidatos eleitos para a Câmara Federal. (p .7) mente, do paroquialismo e do universalismo legislativos. A sub-representação das áreas urbanas – capitais, grandes municípios e regiões metropolitanas – e o localismo metropolitano Um dos tópicos mais controversos no debate sobre as mazelas e virtudes de nossa lei eleitoral tem-se referido precisamente ao peso efetivo de representação consignado – de acordo com a operacionalização da lei – às áreas Expectativa diametralmente contrária urbanas, de um lado, em especial às capitais, àquela assumida por Aydos (ibid.), sobre os Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 373 373 17/3/2010 12:49:41 Nelson Rojas de Carvalho efeitos políticos da legislação proporcional, exame do peso da representação do interior e era sustentada por outro conjunto de autores, das capitais dos estados, na Câmara Federal, entre os quais Soares (1973a), para quem o confirma em âmbito nacional a tese de Aydos. sistema proporcional, aliado à crescente urba- Assumindo-se que o deputado de ca- nização, diluiria a expressão política das áreas pital é aquele que tem ali sua principal base do interior, valorizando e representando de eleitoral ou, em termos numéricos, que ob- forma progressiva o voto ideológico de extra- tém pelo menos 50% de seus votos na capi- ção urbana. Como já havíamos detectado em tal, encontramos – como mostram as Tabelas pesquisa anterior (Carvalho, 1996, 2003), o 1, 2 e 3 – nas legislaturas de 1995-99, 1999- Tabela 1 – Representação política das capitais na legislatura 95-99 Capitais Interior A % eleitores B deputados eleitos C % deputados Brasil 23 77 16 Mato G. do Sul 27 3 Mato Grosso 19 2 Rio de Janeiro 44 23 Estados Santa Catarina Pará (C-A) % eleitores deputados eleitos Total -7 77 411 488 38 11 73 5 8 25 6 81 6 8 50 6 56 23 46 6 1 6 0 94 15 16 24 4 24 0 76 13 17 Amazonas 52 4 50 -2 48 4 8 Goiás 21 3 18 -3 79 14 17 Bahia 16 5 13 -3 84 34 39 5 0 0 -5 95 8 8 Tocantins Minas Gerais 13 4 8 -5 87 49 53 São Paulo 31 16 23 -8 69 54 70 Piauí 19 1 10 -9 81 9 10 Acre 47 3 38 -9 53 5 8 Espírito Santo 11 0 0 -11 89 10 10 Pernambuco 19 2 8 -11 81 23 25 Rio Grande do Sul 14 1 3 -11 86 30 31 Rondônia 24 1 13 -11 76 7 8 Sergipe 25 1 13 -13 75 7 8 Paraná 16 1 3 -13 84 29 30 Alagoas 24 1 11 -13 76 8 9 Paraíba 13 0 0 -13 87 12 12 Maranhão 15 0 0 -15 85 18 18 Ceará 25 2 9 -16 75 20 22 Rio G. do Norte 22 0 0 -22 78 8 8 374 Book CM v11_n22.indb 374 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:41 Geografia política das eleições congressuais Tabela 2 – Representação política das capitais na legislatura 99-2002 Capitais Interior A % eleitores B deputados eleitos C % cadeiras Brasil 23 78 16 Mato G. do Sul 27 2 Mato Grosso 19 1 Rio de Janeiro 44 19 6 24 Estados Santa Catarina Pará (C-A) Total eleitos % de deputados deputados eleitos -7 77 410 488 25 -2 73 6 8 12 -7 81 7 8 41 -3 56 27 46 0 6 -6 94 16 16 4 24 0 76 13 17 Amazonas 52 5 62 13 48 3 8 Goiás 21 1 5 -16 79 16 17 Bahia 16 6 15 -1 84 33 39 5 0 0 -5 95 8 8 Tocantins Minas Gerais 13 2 3 -10 87 51 53 São Paulo 31 20 29 -2 69 50 70 Piauí 19 1 10 -9 81 9 10 Acre 47 2 25 -22 53 5 8 Espírito Santo 11 0 0 -11 89 10 10 Pernambuco 19 1 4 -15 81 24 25 Rio Grande do Sul 14 1 3 -11 86 30 31 Rondônia 24 1 13 -11 76 7 8 Sergipe 25 0 13 -13 75 8 8 Paraná 16 3 10 -6 84 26 30 Alagoas 24 2 22 -2 76 7 9 Paraíba 13 1 8 -5 87 11 12 Maranhão 15 1 5 -10 85 17 18 Ceará 25 5 23 -2 75 17 22 Rio G. do Norte 22 0 0 -22 78 8 8 2002 e 2006-2010, 16%, 16% e 13% de de- dos. Como afirmamos, esses exemplos sem ne- putados que cumpriam esse requisito e se nhuma dúvida confirmaram, em âmbito nacio- enquadravam, portanto, na definição. Ora, se nal, a linha de argumentação de Aydos sobre a as capitais abrigam 23% do eleitorado do país, sub-representação das capitais. houve um déficit que variou entre 7% a 10% Tratar, no entanto, a dicotomia capital x de representantes dessas áreas no Congresso interior como proxy do contraste urbano-rural, Nacional – déficit que perfaz uma bancada de hoje, dificilmente representaria o caminho ana- algo em torno de 35 deputados a 43 deputa- lítico mais apropriado. Em relação a um número Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 375 375 17/3/2010 12:49:41 Nelson Rojas de Carvalho Tabela 3 – Representação política das capitais na legislatura 95-99 Capitais Interior A % eleitores B deputados eleitos C % deputados Brasil 23 66 Mato G. do Sul 27 Mato Grosso 19 Rio de Janeiro 44 Estados Santa Catarina Pará (C-A) % eleitores deputados eleitos Total 13 -10 87 422 488 2 25 -2 73 6 8 1 13 -6 81 7 8 20 43 -1 56 26 46 6 0 6 -6 94 16 16 24 0 0 -24 76 17 17 Amazonas 52 5 62 10 38 3 8 Goiás 21 1 5 -16 79 16 17 Bahia 16 2 5 -11 84 37 39 5 0 0 -5 95 8 8 Tocantins Minas Gerais 13 3 5 -10 87 50 53 São Paulo 31 17 24 -7 69 53 70 Piauí 19 1 10 -9 81 9 10 Acre 47 4 50 3 53 4 8 Espírito Santo 11 0 0 -11 89 10 10 Pernambuco 19 1 4 -15 81 24 25 Rio Grande do Sul 14 0 3 -14 86 31 31 Rondônia 24 2 25 1 76 6 8 Sergipe 25 0 0 -25 75 8 8 Paraná 16 2 6 -10 84 28 30 Alagoas 24 1 11 -13 76 8 9 Paraíba 13 0 0 -13 87 12 12 Maranhão 15 1 5 -10 85 17 18 Ceará 25 3 13 -12 75 19 22 Rio G. do Norte 22 0 0 -22 78 8 8 significativo de cidades do interior, verifica-se a conceitual consignado às capitais. Nessa di- presença de indicadores socioeconômicos – co- reção, cabe aqui avaliarmos a representação mo os índices de desenvolvimento humano, ur- desse novo interior na Câmara dos Deputados, banização e escolaridade – cujos valores, quan- testando a hipótese segundo a qual a sub- do não são superiores, se assemelham àqueles representação política das capitais estaria se verificados nas capitais dos estados; áreas, processando em benefício de um interior urba- portanto, que do ponto de vista da sociologia nizado. Ora, os dados da Tabela a seguir não eleitoral, devem receber o mesmo tratamento confirmam essa hipótese. 376 Book CM v11_n22.indb 376 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:41 Geografia política das eleições congressuais Tabela 4 – Representação política das 100 maiores cidades 1994 – 1998 – 2007 Nº de cidades 07 Nº de cidades 98 Nº de cidades 94 repres. eleitos eleitores repres. eleitos eleitores repres. eleitos eleitores nenhum 72 12.298.910 61 10.180.160 64 11.040.234 1 representante 25 6.159.242 29 6.376.373 28 6.145.725 2 representantes 2 1.083.763 9 3.514.287 7 2.497.556 3 representantes 1 295.142 – – 1 152.542 total de representantes 32 19.837.057 47 19.837.057 45 18.172.246 % de representantes 7% 19% 10% 19% 8% 19% Selecionando-se o universo das 100 de 10% de deputados na eleição de 2006, ou maiores cidades do país (excluídas as capi- seja, uma bancada com algo em torno de 50 tais), cidades que no conjunto abrigam 19% deputados. A assertiva de Aydos deve, portan- do eleitorado brasileiro, verifica-se que tam- to, ser requalificada: a imagem da “colcha de bém essas áreas se veem sub-representadas retalhos” não espelha somente a realidade das na Câmara baixa. Como mostra a Tabela 4, em capitais dos estados, mas igualmente das capi- três legislaturas – 1994, 1998 e 2006 –, o in- tais e do interior industrializado, que, juntos, te- terior urbanizado em média enviou à Câmara riam enviado à Câmara, nas eleições de 2006, dos Deputados não mais do que 8% do total uma bancada adicional de algo em torno de 90 dos deputados eleitos. Tal como observado no congressistas, caso o princípio “um homem, um que se refere às capitais dos estados, a sub- voto” fosse seguido na delimitação de nossos representação das áreas mais urbanizadas do distritos eleitorais. interior não parece, assim, constituir evento aleatório de uma única eleição; à semelhança dos dados referentes às três eleições para a Câmara Federal por nós analisadas – quando em média 60% das cem maiores cidades do país A sub-representação das regiões metropolitanas e a distribuição espacial do voto não tiveram sequer um único representante eleito2 –, sugere que estamos diante de um pa- Um último e fundamental corte para a análi- drão perene e não de um evento aleatório. se da hipótese da sub-representação das áreas Em uma palavra, os grandes aglomerados urbanas no Congresso Nacional se refere ao urbanos localizados fora das capitais e o inte- percentual de representação que alcançam rior industrializado apresentam igualmente um as 14 Regiões Metropolitanas identificadas déficit de representação, neste caso, um déficit no território nacional, a saber, as Regiões Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 377 377 17/3/2010 12:49:41 Nelson Rojas de Carvalho Metropolitanas do Rio de Janeiro, São Paulo, No que se refere ao peso eleitoral das Vitória, Recife, Fortaleza, Porto Alegre, Goiânia, Regiões Metropolitanas, sua densidade é ine- Curitiba, Belém, Belo Horizonte, Salvador, Flo- gável: 33% do eleitorado do país têm por lo- rianópolis, Campinas e Distrito Federal.3 A des- calização alguma das treze regiões metropo- peito da ideologia de cunho municipalista que litanas abaixo listadas.4 Considerando-se um teve seu ápice na constituição de 1988, para deputado oriundo de região metropolitana, autores como Ribeiro (2000), as regiões metro- aquele que recolheu ali pelo menos metade politanas no caso brasileiro se sobrepõem aos de seus votos, verificamos também neste caso municípios não só como unidades de análise incidência de sub-representação. Ao longo das dotadas de maior sentido, mas constituem o quatro últimas eleições, como mostra a Tabela locus onde se verificam os maiores desafios do país em termos de ação de governo. 5, houve em média déficit de 9% de representantes – uma bancada com algo em torno de Tabela 5 – Bancada metropolitana de acordo com % de eleitores e em anos diversos Banca metropolitana 1994 1998 2002 2006 Deputados metropolitanos 167 111 120 124 118 % de deputados metropolitanos 33 22 24 25 23 Tabela 6 – Percentual de eleitores por estado versus percentual de deputados eleitos Eleitorado da RM % no estado Salvador (BA) 2.044.012 22 18 15 13 10 Fortaleza (CE) 2.108.642 37 14 36 23 23 Vitória (ES) 1.115.352 46 40 50 60 60 Goiânia (GO) 1.260.034 33 18 12 24 24 Belo Horizonte (MG) 3.724.851 27 15 15 11 17 Belém (PA) 1.291.669 29 24 24 24 6 Recife (PE) 2.553.925 42 16 20 32 40 Curitiba (PR) 2.138.347 29 10 20 27 27 Rio de Janeiro (RJ) 8.194.141 73 68 65 65 74 Porto Alegre (RS) 2.821.087 36 23 23 32 23 Florianópolis (SC) 689.265 16 6 13 6 0 RM % deputados % deputados % deputados % deputados 1994 1998 2002 2006 Campinas (SP) 1.845.992 6 1 1 4 1 São Paulo (SP) 13.735.473 47 50 46 45 44 378 Book CM v11_n22.indb 378 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:41 Geografia política das eleições congressuais 45 deputados – que deixaram de ser recrutados aspecto revelado pelos dados diz respeito ao nas treze regiões metropolitanas analisadas. padrão predominantemente concentrado da Ora, se há uma sub-representação siste- geografia dos votos da bancada metropolitana. mática das regiões metropolitanas quando se Não é preciso lembrar que, de acordo com a li- tem em vista o peso eleitoral dessas regiões no teratura voltada aos estudos da conexão eleito- conjunto do país, o mesmo ocorre no interior ral (conexão que estabelece o nexo entre a na- dos estados. No âmbito dos estados, nas qua- tureza da geografia do voto do representante, tro últimas eleições para a Câmara dos Depu- de um lado, e seu comportamento legislativo, tados, verifica-se peso político das regiões me- de outro), deputados com votação concentrada tropolitanas inferior a seu peso eleitoral. Como e dispersa no espaço se veem diante de pauta a Tabela 6 sugere, na vasta maioria dos estados de incentivos diametralmente opostos: no pri- federados analisados – onze dos treze estados meiro caso, os incentivos recaem sobre a ênfa- nas quatro últimas eleições – as regiões me- se conferida a bens de natureza desagregada, à tropolitanas têm representação no Congresso conduta paroquial, no segundo caso, os incen- aquém de seus respectivos pesos eleitorais. tivos conduzem os parlamentares na direção Se a sub-representação é característica ênfase em bens públicos e no universalismo. que se depreende da dinâmica metropolitana Como mostra a Tabela 7, a quase to- e da geografia eleitoral dessas áreas, outro talidade do que chamamos de bancada Tabela 7 – Percentual de deputados metropolitanos com perfil de votação concentrado RM Deputados concentrados Deputados concentrados Deputados concentrados 2006 2002 1998 % % % Deputados concentrados 1994 % Salvador 7 100 6 100 5 100 4 100 Fortaleza 3 100 8 100 5 100 4 80 Vitória 3 75 2 40 3 50 3 50 Goiânia 3 100 2 100 4 100 4 100 Belo Horizonte 8 100 7 88 5 83 7 78 Belém 4 100 4 100 4 100 1 100 Recife 4 100 5 100 6 75 6 60 Curitiba 3 100 5 83 7 88 6 100 30 100 30 100 30 100 33 97 Porto Alegre 5 71 5 71 5 50 5 71 Florianópolis 1 100 2 100 1 100 0 0 Campinas 1 100 1 100 3 100 1 100 São Paulo 34 95 32 89 32 94 29 93 106 96 109 91 110 89 103 87 Rio de Janeiro Total Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 379 379 17/3/2010 12:49:41 Nelson Rojas de Carvalho metropolitana – deputados com mais de 50% metropolitano – do município que recebe a extraídos na RM – têm os votos na região me- maioria dos votos dos deputados dali egres- tropolitana concentrados em um único municí- sos. Selecionando dois pontos no tempo, as pio.5 Nas quatro eleições aqui analisadas, em eleições de 1994 e a de 2006, verificamos média 90% dos deputados eleitos nas 13 Re- que nossa bancada metropolitana, além de giões Metropolitanas analisadas apresentam concentrar a votação, tem seus votos – de perfil de votação fortemente concentrado em forma mais do que majoritária – extraídos um único município. dos municípios-polo (em geral, as capitais Se sabemos que os deputados metro- dos estados) e daqueles municípios mais politanos (ou o que poderíamos designar integrados das Regiões Metropolitanas. As de nossa bancada metropolitana) têm sua áreas menos integradas, mais periféricas votação concentrada em um único muni- das nossas Regiões Metropolitanas pouco se cípio, cabe por fim identificar a natureza – acham representadas, como mostram as Ta- mais ou menos integrada dentro do espaço belas 7 e 8. Tabela 8 – Eleições de 1994 Característica de integração do município do deputado metropolitano Polo Muita alta Alta Média Baixa Bahia 6 0 1 0 0 7 Ceará 2 0 0 0 1 3 Espírito Santo 2 2 0 0 0 4 Goiás 3 0 0 0 0 3 Minas Gerais 6 0 1 1 0 8 Pará 4 0 0 0 0 4 Pernambuco 5 0 0 0 0 5 Paraná 3 0 0 0 0 3 Rio de Janeiro Total 25 5 0 0 0 30 Rio Grande do Sul 5 1 1 0 0 7 Santa Catarina 1 0 0 0 0 1 Campinas 1 0 0 0 0 1 São Paulo 26 8 0 1 0 35 Total 89 16 3 2 1 111 380 Book CM v11_n22.indb 380 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:41 Geografia política das eleições congressuais Tabela 9 – Eleições de 2006 Característica de integração do município do deputado metropolitano Polo Muita alta Alta Média Baixa Total Bahia 4 0 0 0 0 4 6Ceará 5 0 0 0 0 5 Espírito Santo 3 3 0 0 0 6 Goiás 4 0 0 0 0 4 Minas Gerais 6 2 0 1 0 9 Pará 1 0 0 0 0 1 Pernambuco 9 1 0 0 0 10 Paraná 5 1 0 0 0 6 Rio de Janeiro 25 9 1 0 0 35 Rio Grande do Sul 5 1 1 1 0 8 Santa Catarina 0 0 0 0 0 0 Campinas 1 0 0 0 0 1 São Paulo 26 7 1 0 0 34 Total 94 24 3 2 0 123 Conclusões Nesse artigo, de caráter exploratório, confirmamos algumas teses parcialmente testadas e apontamos, com revelações novas, para caminhos outros de pesquisa. No primeiro caso, confirmamos como tendência sistemática de nosso sistema eleitoral, em sua operacionalização concreta, sub-representar as áreas mais urbanizadas do país. Vimos, ao longo das quatro eleições, que tantos as capitais dos estados, como as cem maiores cidades do país, como as 13 Regiões Metropolitanas enviam ao Congresso percentual significativamente menor de deputados do que aquele que se exigiria se o princípio one man, one vote fosse observado por outro tipo de distritamento. Ao lado dessa confirmação, a pesquisa revelou um padrão de distribuição de voto dos deputados metropolitanos – padrão predominantemente concentrado – que pode desafiar supostos tradicionais de nossa sociologia eleitoral. Ora, se sabemos pela literatura voltada à análise da conexão eleitoral que a extração concentrada, numa ponta, gera comportamento paroquial, na outra ponta, poderíamos estar diante de fenômeno novo, não previsto pelo otimismo da velha sociologia eleitoral: um paroquialismo com base urbana. É de esperar que a ausência de temas metropolitanos da agenda pública tenha por raiz o que podemos chamar de paroquialismo metropolitano. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 381 381 17/3/2010 12:49:41 Nelson Rojas de Carvalho Nelson Rojas de Carvalho Mestre e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Professor Adjunto de Ciência Política do Instituto Multidisciplinar do Departamento de História e Economia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, Brasil). [email protected] Notas (1) Pesquisas posteriores devem trabalhar a partir de microdados. Temos por hipótese que, ao desagregarmos os municípios, nos confrontaremos com representantes com votação ainda mais concentrada: redutos dentro dos municípios. (2) Na última eleição, em 2006, 72 das 100 maiores cidades brasileiras não elegeram sequer um único representante. (3) A despeito do número crescente de regiões metropolitanas criadas por lei, utilizamo-nos do critério adotado pelo IPPUR/Observatório das Metrópoles na definição das regiões metropolitanas aqui analisadas. (4) Brasília está fora de nossa análise, pelo fato de sua região metropolitana abrigar cidades de diferentes estados, notadamente, cidades de Minas e Goiás (5) Consideramos um deputado metropolitano quando, dos votos obtidos na RM do seu estado, ele concentra mais de 50% desses votos em um único município. Referências ABRANCHES, S. H. H. (1982). Comentários sobre “A Representação Proporcional no Brasil”, de Bolívar Lamounier. Revista de Cultura e Política, n. 7, São Paulo, Cortez. AMES, B. (1992). 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Além da comparação referida, o exame focaliza outras duas questões principais entre os delegados do OP: (a) a existência de valores e de padrões de atuação expressivos da chamada Nova Cultura Política discutida internacionalmente; e (b) a verificação de possíveis transformações na consciên cia social, decorrente do tempo de participação no OP, representativas de uma cultura política democrática, de cidadania ativa e de fortalecimento do capital social. Abstract The study compares data provided by investigations carried out with the Participatory Budget (henceforth PB) Delegates of Porto Alegre (South region of Brazil) and with the population of several metropolitan areas in the country, in the scope of the research Political Culture and Citizenship, coordinated by the Observatory of Metropolises (IPPUR-UFRJ). Besides the referred comparison, the study focuses on two other main matters among the PB delegates: (a) the existence of values and performance standards which express the so-called New Political Culture, which has been discussed internationally; and (b) the verification of possible transformations in the social conscience, deriving from time of participation in the PB, which are representative of a democratic political culture, of active citizenship and of strengthening of the social capital. Palavras-chave: orçamento participativo; cultura política; cidadania; capital social; nova cultura política. Keywords: participatory budget; political culture; citizenship; social capital; new political culture Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 385 17/3/2010 12:49:41 Luciano Fedozzi Metropolitanas do país, incluindo-se a Região Introdução Metropolitana de Porto Alegre3 (RMPA), assim O presente estudo apresenta os resultados da como indicadores de outros países. pesquisa que efetuou análise comparativa de dados produzidos sobre cultura política e cidadania entre os delegados do Orçamento Participativo de Porto Alegre (doravante OP) e os O Orçamento Participativo de Porto Alegre dados extraídos da investigação realizada em diversas Regiões Metropolitanas do país. O OP é uma prática de democracia participa- A intenção foi perceber se o OP, como tiva local que goza de legitimidade e de reco- forma de gestão urbana, agregadora de ação nhecimento públicos, local, nacional e interna- social e de formas associativas que constituem cional, cujo funcionamento está completando o capital social da cidade, apresenta indicado- duas décadas em 2009. Julga-se, portanto, que res de cultura política e de cidadania distintos as questões acima elencadas possam ajudar a da população das Regiões Metropolitanas e elucidar a hipótese geral que associa a prática das capitais pesquisadas no país, no âmbito da participação à aprendizagem democrática, da investigação Cultura Política e Cidadania seja relacionada ao fortalecimento da dimen- realizada pelo Observatório das Metrópoles são institucional ou relacionada à construção (IPPUR/UFRJ) em parceria com o Instituto de de novos valores e de padrões de ação de ci- Ciências Sociais da Universidade de Lisboa dadania ativa dos atores da sociedade civil, (CS-UL) e o IUPERJ (Instituto Universitário de especialmente em contextos de profunda de- Pesquisas do Rio de Janeiro).1 sigualdade social e de vigência de uma cultura Intenciona-se fornecer parâmetros empíricos e interpretativos ante duas questões societária autoritária e passiva, como é o caso do Brasil. principais: a) a possível expressão de valores Frise-se que os achados da pesquisa e de práticas de atuação dos delegados do não podem ser generalizados como represen- OP consoantes a denominada Nova Cultu- tativos de todos os participantes do OP. Isso ra Política2 (Clark e Inglehart, 1998; Cabral e porque na estrutura de funcionamento dessa Silva, s/d; Azevedo, Santos Jr. e Ribeiro, 2007; modalidade de gestão local, os delegados e b) a verificação – ante a tradição autoritá- formam instâncias representativas da ampla ria brasileira – de possíveis relações positivas base social que participa das assembleias Re- entre a participação na decisões da gestão gionais (17) e Temáticas (6) abertas a todos os pública local e a construção de uma cultura indivíduos a cada ano. Os delegados consti- política democrática, promotora de cidadania tuem, portanto, um grupo relativamente sele- ativa e de fortalecimento do capital social. São to, eleitos na proporção de um para cada dez abordados indicadores que permitem compa- participantes nas assembléias. Eles formam os ração com dados sobre a cultura política ex- Fóruns de Delegados (FROP´s) em cada região traídos da investigação em diversas Regiões ou tema do OP, instâncias intermediárias de 386 Book CM v11_n22.indb 386 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:41 Cultura política e Orçamento Participativo mediação e de relativo poder de decisão dian- de 40 anos ou mais (37,9% têm 50 anos ou te das comunidades que representam e diante mais), de cor branca, ensino fundamental (in- do governo durante todo o ciclo anual no fun- completo ou completo), possuem renda fami- cionamento do processo participativo. Acima liar de até cinco salários mínimos, são chefes dos delegados, está o Conselho do Orçamento de família, possuem situações de emprego que Participativo (COP), também eleito pelas as- lhes permite flexibilidade no exercício da carga sembleias anuais conforme o critério de dois horária e residem em Porto Alegre há quase conselheiros titulares e dois suplentes em ca- três décadas. da região e temática. O COP é a instância máxima de decisão do OP que também tem funcionamento permanente durante todo o ciclo anual do orçamento.4 Metodologia e perfil sociodemográfico da amostra OP, cultura política e cidadania A investigação debruçou-se sobre um conjunto de itens investigados em todas as cidades: importância das esferas governamentais, deveres e direitos de cidadania, grau de interesse pela A investigação utilizou-se de amostra proba- política, avaliação da democracia e percepção bilística inferida a partir do perfil social, em da administração pública, mobilização socio- termos de sexo, escolaridade e faixa etária dos política e disposição para a ação, confiança e delegados do OP, conforme os percentuais eficácia da ação, nível de associativismo e de 5 desses indicadores existentes (2005). O nú- ação política e social. Em cada um dos itens mero de entrevistados (383 casos) corresponde realizaram-se cruzamentos estatísticos com as ao mesmo número que compôs a amostra da variáveis: nível de ensino, renda familiar, gêne- população de Porto Alegre incluída na amostra ro, faixas etárias e raça/etnia. Pode-se adiantar geral da RMPA (768 entrevistados). Todas as a constatação de que no conjunto dos itens as 17 Regiões e as 6 Assembleias Temáticas que médias apresentadas pelos delegados do OP constituem as formas de base da participação são superiores às verificadas com os grupos no OP estiveram representadas. A pesquisa foi das regiões metropolitanas e das capitais pes- realizada em novembro de 2008 e os respon- quisadas (com exceção do dever de escolher dentes foram selecionados a partir das listas produtos por razões políticas, éticas ou am- dos delegados para o orçamento de 2009. bientais). Esta constatação, ao se apresentar de O perfil dos entrevistados é constituído, em síntese, pela paridade entre os sexos, idade forma generalizada, é central para os objetivos do estudo, como se verá a seguir. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 387 387 17/3/2010 12:49:42 Luciano Fedozzi de forma importante nas condições de vida da Valores da cidadania na cultura política dos delegados do OP população. Direitos e deveres do bom exercício da cidadania Importância das esferas governamentais do Estado Os resultados obtidos com as perguntas sobre Os dados comparativos sobre a importância os deveres o os direitos da cidadania junto aos atribuída às eleições nos níveis de represen- delegados do OP demonstram que tanto nos tação da União mostram que a instância local quesitos dos deveres quanto nos dos direitos goza de grande prestígio entre os delegados quase todas as médias são superiores às verifi- do OP. Comparativamente aos dados da RMPA, cadas nas demais cidades pesquisadas no país. as eleições municipais foram avaliadas pelos Por se dar no conjunto das médias, os dados delegados do OP como “muito importantes” adquirem importância significativa e podem por 77% (contra 46,6% da RMPA), as eleições revelar relações positivas entre a participação legislativas por 73,9% (contra 39,5%) e as elei- social oportunizada por esse novo modelo de ções presidenciais por 81,5% dos entrevistados gestão pública e a construção de uma cultura (contra 59,8%). Portanto, o sentimento de pro- política cidadã. ximidade com o município é elevado. Junta- Como se pode ver, a maior média na per- mente com a região, o município é a instância gunta sobre dever da cidadania é a da alterna- que obteve o maior percentual de percepção tiva “ajudar as pessoas necessitadas do Brasil”, “muito perto” (25,6%), comparativamente apontada como “muito importante” por 87,5% ao Brasil (14,6%) e à América Latina (8,9%). dos delegados do OP. A seguir, ressaltam-se as Note-se que os percentuais não indicam perda respostas “manter-se informado sobre as ativi- da centralidade desempenhada pelo governo dades do governo” e “participar em organiza- federal (ou pela presidência da república, no ções sociais ou partidos”, também classificadas imaginário popular), mas, contrariamente, há como “muito importante” por, respectivamen- um papel significativo que também é atribuí- te, 83,8% e 80,2%. do à instância local, na medida em que esta se mostra eficaz ante as demandas dos cidadãos. Quando se trata da percepção sobre os direitos da cidadania, a resposta “nível de vida Esses dados, provavelmente, advêm da digno” é a mais apontada (“muito importan- experiência adquirida na prática da participa- te” para 97,4%), seguida pelas respostas que ção nas decisões locais, cuja sistemática con- dizem que os “políticos devem escutar os ci- tínua e longeva provavelmente contribua para dadãos antes de tomarem as decisões” e que reconhecer o papel dessa instância institucio- “as autoridades devem tratar todas as pessoas nal da Federação. O município passou a ser vis- como iguais”, independentemente de sua po- to também como ente responsável pela admi- sição social (95% avaliam as duas respostas nistração da coisa pública, que pode interferir como “muito importantes”). 388 Book CM v11_n22.indb 388 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:42 Cultura política e Orçamento Participativo Tabela 1 – Opiniões sobre os deveres relativos ao bom exercício da cidadania. Brasil, cidades selecionadas e delegados do OP Deveres relativos à cidadania Brasil São Paulo Porto Alegre Porto Alegre/ Delegados do OP Rio de Janeiro Belo Horizonte Recife Natal Goiânia a) Votar sempre nas eleições 5,68 5,56 5,63 6,56 5,44 5,98 5,87 5,90 5,88 b) Nunca sonegar impostos 5,71 5,76 5,81 6,55 5,70 6,12 5,91 6,20 5,99 c) Obedecer sempre às leis 6,12 5,93 6,01 6,29 6,07 6,04 6,27 6,28 6,25 d) Manter-se informado sobre o governo 5,68 5,64 5,77 6,73 5,71 5,04 5,84 6,17 6,01 e) Participar em organizações sociais ou partidos 4,61 3,98 4,62 6,63 4,62 4,06 5,05 5,34 4,99 f) Tentar compreender diferentes opiniões 5,74 5,74 5,72 6,59 5,84 6,02 6,16 6,22 5,88 g) Escolher produtos por razões políticas, éticas ou ambientais 4,36 4,04 4,80 4,58 4,50 4,80 4,90 5,38 4,77 h) Ajudar as pessoas necessitadas do Brasil 6,46 6,30 6,23 6,79 6,42 6,35 6,66 6,72 6,34 i) Ajudar as pessoas de outras partes do mundo 6,23 6,06 5,63 6,50 6,17 5,88 6,43 6,60 6,26 j) Prestar serviço militar 5,05 4,23 4,51 5,59 5,20 4,96 5,34 5,75 5,25 Média 5,57 5,32 5,48 6,28 5,61 5,53 5,86 6,06 5,77 N 2000 384 384 370 500 384 384 384 384 2 Nota: χ (18) = 249,034 ; p < 0,001. Obs.: Indicador de 1 a 7 , sendo 7 – Muito importante e 1 – Nada importante. Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, Iuperj, ICS-UL, ISRP, 2006. Para delegados do OP de Porto Alegre (2008). Tabela 2 – Opiniões sobre os direitos de cidadania. Brasil, cidades selecionadas e delegados do OP Direitos do cidadão Brasil São Paulo Porto Alegre Porto Alegre/ Delegados do OP Rio de Janeiro Belo Horizonte Recife Natal Goiânia a) Nível de vida digno 6,64 6,55 6,59 6,97 6,71 6,68 6,68 6,79 6,68 b) Autoridades respeitarem os direitos das minorias 6,46 6,45 6,56 6,90 6,61 5,63 6,68 6,69 6,73 c) Autoridades tratarem todas as pessoas como iguais 6,66 6,57 6,57 6,91 6,76 6,63 6,70 6,77 6,81 d) Políticos escutarem os cidadãos 6,55 6,38 6,54 6,92 6,73 6,45 6,53 6,54 6,67 e) Ter mais oportunidades de participar das decisões de interesse público 6,46 6,23 6,35 6,88 6,69 6,41 6,40 6,64 6,46 Média 6,55 6,44 6,52 6,92 6,71 6,36 6,60 6,69 6,67 N 2000 384 384 380 500 384 384 384 384 Nota: χ2 (18) = 249,034 ; p < 0,001. Obs.: Indicador de 1 a 7 , sendo 7 – Muito importante e 1– Nada importante. Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, Iuperj, ICS-UL, ISRP, 2006. Para delegados do OP de Porto Alegre (2008). Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 389 389 17/3/2010 12:49:42 Luciano Fedozzi Considerando-se que os tipos de respos- 6,47 dos homens) e quanto à ajuda aos neces- tas mais valorizadas estão relacionadas aos sitados no Brasil (média 6,92 contra 6,65 dos temas da desigualdade social e das práticas homens). Essas características são consoantes participativas e fiscalizatórias no âmbito da com as encontradas na base social dos partici- sociedade civil, as médias das respostas indi- pantes do OP, pois a maioria dos participantes cam que a cultura política de cidadania, para das Associações de Moradores (AM´s) são mu- a grande maioria dos delegados do OP, está lheres. Além disso, as mulheres conquistaram, associada principalmente a um padrão de re- gradativamente, paridade ou até maioria nos presentações com características que podem postos de direção das instâncias participativas, indicar o fortalecimento, nesse grupo social, de seja do OP (delegadas e conselheiras), seja da princípios democráticos e republicanos histori- direção das AM´s. Por outro lado, conforme de- camente frágeis na matriz de ordenamento da monstram estudos anteriores, o estado civil é sociedade brasileira, quais sejam: a) um forte uma variável que diferencia os gêneros quan- conteúdo igualitário que contraria a histórica desigualdade social e civil da sociedade brasileira; b) a importância da participação nas organizações sociais e nos partidos no âmbito da sociedae civil ; e c) o exercício do controle social e da transparência das ações governamentais. to às oportunidades de eleição para os cargos diretivos das instâncias do OP e das AM´s. A presença das mulheres é proporcional somente nas condições em que elas se encontram “independentes” dos laços de matrimônio (solteiras, separadas, viúvas). É provável que isso expresse tanto a vigência da cultura patriarcal, impedindo-as de exercer papéis na esfera dos Deveres e direitos da cidadania conforme sexo, escolaridade, renda e faixa etária “negócios públicos”, assim como seja consequência da dupla jornada de trabalho (Fedozzi, 2007, p. 15). O conjunto das médias obtidas sobre os direi- Também a renda familiar se mostra inter- tos e deveres de cidadania não apresentam veniente no padrão das respostas, mas apenas diferenças significativas quando analisadas por para destacar as opiniões significativamente sexo, escolaridade, renda e faixa etária. Vale, diferentes do grupo com maior renda (superior entretanto, ressaltar alguns aspectos separan- a 10 salários mínimos). Estes, na maior parte do-se deveres e direitos. dos deveres, apresentam médias superiores (Tabela 3). Veja-se que o grupo com maior renda apresenta diferenças significativas nos tipos Deveres de cidadania de deveres de cidadania associados, por um lado, à solidariedade com os mais necessita- As mulheres se destacam, como exceção, nos dos no Brasil e no mundo, mas, por outro lado, deveres de ativismo social e de preocupação com um conjunto coerente de respostas que com a solidariedade. As médias das mulheres podem representar uma tendência à manuten- são significativas quanto à participação em ção da ordem social e do controle do Estado associações e movimentos (média 6,78 contra (votar sempre, não sonegar impostos, obedecer 390 Book CM v11_n22.indb 390 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:42 Cultura política e Orçamento Participativo Tabela 3 – Médias dos deveres relativos à cidadania e renda familiar dos delegados do OP Renda familiar Votar nas eleições Média Não sonegar impostos Obedecer a lei Informar-se das atividades do governo Escolher Ajudar Participar de Compreender produtos por Ajudar necessitados associações opiniões razões éticas necessitados de outras e diferentes políticas no Brasil partes do movimentos ambientais mundo Prestar serviço militar Até 2 SM 6,41 6,62 6,72 6,33 6,78 6,74 6,60 4,62 6,84 6,58 5,74 2 a 5 SM 6,31 6,59 6,41 6,31 6,71 6,66 6,57 4,47 6,77 6,49 5,64 5 a 10 SM 6,23 6,23 6,46 6,12 6,62 6,38 6,50 4,83 6,66 6,28 5,03 Mais de 10 SM 6,70 6,88 (+) 6,94 (+) 6,69 (+) 7,00 (+) 6,75 6,75 5,56 7,00 (+) 6,88 (+) 5,69 Conjunto 6,34 6,56 6,55 6,29 6,73 6,63 6,59 4,58 6,79 6,50 5,59 Os valores da tabela são as médias calculadas sem considerar as não-respostas. Os números acompanhados de (+) correspondem às médias por categoria significativamente diferentes para mais do conjunto da amostra (ao risco de 5%). Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2006. Delegados do OP de Porto Alegre, 2008. à lei, informar-se sobre o governo). Não apre- de instrução (até a 4ª série fundamental) tenha sentam, assim, médias distintas em deveres obtido uma média geral levemente maior em que poderiam caracterizar uma consciência de relação ao grupo com nível de escolaridade caráter democrático societário, aberta a trans- superior (6,75 contra 6,63), a variável nível formações sociais, como escolha de produtos de ensino – derivada dos capitais econômico por razões éticas, políticas e ambientais, com- e cultural –, não demonstra ser um fator que preender as opiniões diferentes e participar de distingue, de forma significativa, a opinião dos associações e movimentos. delegados do OP quanto aos direitos de cidadania. Esse fenômeno é reforçado pelo fato de que os dois polos da estratificação escolar Direitos de cidadania (instrução até a 4ª série fundamental e ensino superior) destacam-se nos mesmos tipos de di- No que tange aos direitos de cidadania, perce- reitos que apresentam médias estatisticamen- be-se semelhança no padrão das opiniões en- te significativas (média 7): o direito de nível de tre os públicos com distintos níveis de escolari- vida digno e o direito de respeito das autorida- dade. Isto é, embora o grupo com menor nível des pelas minorias. Tabela 4 – Médias dos direitos dos cidadãos e escolaridade Escolaridade Média Nível de vida digno Autoridades respeitarem minorias Autoridades tratarem todos como iguais Políticos escutarem cidadãos Participação nas decisões de interesse público Participar em desobediência civil 5,69 Até 4ª série fundamental 6,75 7,00 (+) 7,00 (+) 6,95 6,92 6,92 5ª 8ª série fundamental 6,54 6,96 6,89 6,91 6,82 6,87 4,79 Ensino médio 6,60 6,97 6,86 6,93 6,97 6,93 4,94 Ensino superior 6,63 7,00 (+) 6,98 (+) 6,84 7,00 (+) 6,78 5,17 Conjunto 6,60 6,97 6,90 6,91 6,92 6,88 5,00 Os valores da tabela são as médias calculadas sem considerar as não-respostas. Os números acompanhados de (+) correspondem às médias por categoria significativamente diferentes para mais do conjunto da amostra (ao risco de 5%). Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2006. Delegados do OP de Porto Alegre, 2008. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 391 391 17/3/2010 12:49:42 Luciano Fedozzi No quesito dos direitos (assim como vis- jovens (18-29 anos) comparativamente às de- to no dos deveres), é a renda familiar a variável mais faixas de idade, embora sem adquirir sig- que mais interfere na diferença de percepção nificância estatística (6,59 contra 6,58). sobre os direitos de cidadania (Tabela 5). Os Esse fato pode expressar uma importan- segmentos com renda familiar a partir de mais te transformação na cultura política autoritária de 5 salários mínimos se destacam por valori- e excludente do país. Provavelmente, repre- zar de forma significativa direitos ligados aos senta o avanço da consciência negra que vem temas da igualdade social e civil e à relação ocorrendo nas últimas décadas no país. No democrática dos políticos com a população. O OP, os negros são super-representados, pois tema das minorias talvez seja o que mais apro- somam 23% dos participantes contra 8,7% na xima esses segmentos da representação de população (Cidade, 2003, IBGE, 2000). uma nova cultura política. Se os dados analisados até agora de- Fica fora do rol dos direitos, quando monstram de certa forma as percepções re- analisados pelas variáveis renda e escolarida- distributivistas, participativas e de exercício de, o direito de participação em ações de da accountability na cultura dos participan- desobediên cia civil. Aliás, esse direito é tes mais engajados no funcionamento do OP relevante estatisticamente apenas quando são (como o são os delegados), vale destacar que analisadas as médias das respostas de acordo revelam limites da cultura política predominan- com o critério racial/étnico. O grupo de cor te desse público, ante uma perspectiva mais preta é o único grupo, isoladamente, que apre- crítica e transformadora da ordem social. Isso senta essa disposição (média de 5,75, contra pode ser percebido, por exemplo, pelas res- 4,79 dos brancos e 4,39 dos pardos, amarelos postas obtidas no tema da obediência ou do e indígenas). Além disso, quanto aos direitos conflito com a lei. A média da resposta à pergunta “obedecer sempre à lei e regulamentos” (6,29) é maior comparativamente às demais regiões do país pesquisadas (e à população de Porto Alegre). Ela foi classificada como “muito de cidadania, os pretos obtêm uma média geral superior na comparação com os brancos (embora sem significância estatística) (6,74 contra 6,56), o que também ocorre com os Tabela 5 – Médias dos direitos dos cidadãos e renda familiar dos delegados do OP Média Nível de vida digno Autoridades respeitarem minorias Autoridades tratarem todos como iguais Políticos escutarem cidadãos Participação nas decisões de interesse público Participar em desobediência civil Até 2 SM 6,59 6,97 6,92 6,88 6,89 6,91 4,97 2 a 5 SM 6,61 6,96 6,89 6,93 6,90 6,89 5,06 5 a 10 SM 6,61 7,00 (+) 7,00 (+) 6,87 6,97 6,80 5,00 Mais de 10 SM 6,67 7,00 (+) 7,00 (+) 7,00 (+) 7,00 (+) 6,88 5,13 Conjunto 6,60 6,97 6,90 6,91 6,92 6,88 5,00 Renda familiar Os valores da tabela são as médias calculadas sem considerar as não-respostas. Os números acompanhados de (+) correspondem às médias por categoria significativamente diferentes para mais do conjunto da amostra (ao risco de 5%). Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2006. Delegados do OP de Porto Alegre, 2008. 392 Book CM v11_n22.indb 392 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:42 Cultura política e Orçamento Participativo importante” por 64%. Há ainda uma clara di- um dever “muito importante”. A baixa valora- visão de opiniões quando se trata do conflito ção desse dever constituiu exceção ao padrão entre “seguir a lei ou a própria consciência em de médias mais altas obtidas com os delega- certas ocasiões”. Da mesma forma, o direito à dos do OP em comparação com outras regiões “participação em ações de desobediência civil” e cidades (ver Tabela 1). Uma das causas pa- obteve o menor percentual entre as respostas ra isso pode estar na baixa renda familiar da sobre os direitos. É o único classificado como maioria dos participantes que dificulta a prá- “muito importante” por menos da metade dos tica da aquisição de produtos mais onerosos. respondentes (41,3%). Não obstante, 37,3% declarou que nunca faria Ora, se, por um lado, a adesão norma- esse tipo de ação. O dado questiona, dentre os tiva à ordem racional-legal pode representar delegados do OP, a hipótese do alargamento um avanço civilizatório, pois a perspectiva do ou mesmo do deslocamento, no âmbito de sistema social enseja possibilidades da cons- uma Nova Cultura Política, da problematização ciência de cidadania baseada nas normas im- dos temas clássicos ligados à desigualdade so- pessoais como critério de justiça (ante a tradi- cial para temas de caráter sociocultural. Essa ção particularista, patrimonialista e pessoali- hipótese é reforçada pelo fato de que é baixa zada da híbrida formação brasileira, conforme a importância atribuída no OP à discussão de apontam estudos clássicos (Holanda, 1993; questões específicas e menos pragmáticas ou Faoro, 1958; DaMatta, 1991a e 1991b), por concretas, a exemplo do meio ambiente e do outro lado, esse estágio de consciência repre- desenvolvimento sustentável, das políticas pa- sentativo da “Lei e da Ordem” é compatível ra gênero, juventude e questões racial-étnicas, com a perspectiva de uma cidadania confor- questão esta que têm sido apontada como as- mada. Ele não expressa ainda uma consciên- pecto falho do mesmo.7 cia crítica que sobrepõe a justiça necessária Sintetizando a análise dos dados até o ao ordenamento jurídico-político ou aos va- presente momento, pode-se dizer que eles não lores dominantes na sociedade, como é caso apóiam a hipótese de que a participação esta- da consciência pós-convencional (Kohlberg, ria ocorrendo a partir da construção de valores 1969 e 1981; Habermas, 1983 e 1989), quan- e de padrões de atuação consoantes com a No- do valores como justiça, liberdade e igualdade va Cultura Política. Isso porque as percepções adquirem prioridade sobre os demais direitos dos direitos e dos deveres de cidadania, para a 6 (propriedade) da ordem social. Chama a atenção ainda a menor importância atribuída àquele rol de deveres contemporâneos atribuídos ao consumo responsável que é parte de uma Nova Cultura Política mundial. A resposta “escolher produtos por razões políticas, éticas ou ambientais, mesmo que eles custem mais caro” obteve a menor média entre todas (4,58) e apenas 30,8% o consideram grande maioria dos delegados do OP (de todos os segmentos de renda e de níveis de ensino) estão associadas a um forte conteúdo igualitário como tarefa clássica não resolvida pela sociedade brasileira. Nessa tarefa, segundo os investigados, o Estado continua exercendo papel central no provimento do bem-estar social, devendo fazê-lo com participação e controle da sociedade civil. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 393 393 17/3/2010 12:49:42 Luciano Fedozzi Deveres e direitos de cidadania e tempo de participação no OP Talvez o dado que mais contribua para relativizar a profundidade dos possíveis efeitos da participação social promovida pelo OP na ge- Grau de interesse pela política, avaliação da democracia e percepção da administração pública no Brasil ração de uma cultura política cidadã e crítica seja o fato de que não se constatam alterações Os delegados do OP demonstram altos índices importantes na percepção dos direitos e dos de interesse pela política. Comparativamente às deveres de cidadania associados ao maior tem- regiões pesquisadas no país eles obtêm isola- po de participação no OP. A inexistência de correlação positiva entre o tempo de participação e o aumento das médias representativas dos direitos e dos deveres problematiza o possível alcance e o nível de profundidade dos efeitos do OP na consciência social dos participantes, algo que é comumente atribuído a esse processo participativo. Entretanto, como se verá mais adiante, o possível papel de “escola de cidadania” do OP tornase mais plausível no nível de crescimento do ativismo em todas as modalidades de ação sociopolítica, assim como no nível associado à atividade política propriamente dita, na atitude crítica quanto às formas de gestão pública e na valorização do regime democrático participativo. Ou seja, há clara tendência de crescimento destes itens associados ao maior tempo de exposição ao OP. Esses aspectos, embora menos profundos na topologia da consciência social e com assimetrias decorrentes da renda familiar, da escolaridade e das faixas etárias, sugerem que o OP é uma estrutura de oportunidades que está promovendo mudanças da cultura política, em favor da cidadania ativa e do fortalecimento do capital social, fenômeno que contrasta com o contexto de descrédito na política e na própria eficácia da ação coletiva. damente a maior média (Tabela 6) e altos per- 394 Book CM v11_n22.indb 394 centuais que medem o grau de interesse: 76,2% corresponde à soma das categorias “muito interesse” (45,2%) e “algum interesse” (29,2%). Dois fatores demonstram interveniência significativa no nível de interesse pela política dentre os delegados do OP: o tempo de participação e o nível de ensino (Tabela 7). A associação significativa entre maior tempo de participação no OP e o maior interesse pela política sugere aprendizagens importantes para a formação de uma cultura democrática, aumentando a valoração da política como instância de mediação social. Essa percepção relativamente positiva quanto à política é acompanhada de relativa adesão normativa ao regime democrático, pois quase 85% considera que “a democracia é um regime bom”. Além disso, o alto percentual dos que avaliam que é “muito importante” votar sempre nas eleições fortalece a hipótese de que a experiência mais intensa com o OP – como é o caso da função desempenhada pelos delegados – pode estar vinculada à criação de uma cultura que contraria o disseminado descrédito na política, conforme a tradição autoritária do país e a realidade das sociedades contemporâneas. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:42 Cultura política e Orçamento Participativo Tabela 6 – Grau de Interesse na Política. Brasil e cidades selecionadas, 2006. Delegados do OP, 2008. São Paulo Média N 2,29 d 381 Porto Alegre 2,24 d 378 Porto Alegre/Delegados do OP 3,15 380 Rio de Janeiro 1,90 b 487 Belo Horizonte 1,64 a 374 Recife 1,95 b, c 369 Natal 1,68 a 374 Goiânia 2,07 c 380 Brasil 1,88 1954 Notas: Escala: 1 – não tem interesse nenhum a 4 – muito interessado. ANOVA: F (6, 2736) = 27,829 ; p <0,001. Letras diferentes representam grupos estatisticamente diferentes entre si e letras iguais representam grupos não estatisticamente diferentes entre si. Duncan a p <0,05. Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, Iuperj, ICS-UL, ISRP, 2006. Para delegados do OP de Porto Alegre, 2008. Tabela 7 – Médias do grau de interesse na política e tempo de participação dos Delegados do OP Tempo participação OP Interesse na política Menos de 4 anos 3,01 De 4 a 12 anos 3,08 12 anos ou mais 3,60 (+) Conjunto 3,15 Os valores da tabela são as médias calculadas sem considerar as não-respostas. Os números acompanhados de (+) correspondem às médias por categoria significativamente diferentes para mais do conjunto da amostra (ao risco de 5%). Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2006. Delegados do OP de Porto Alegre, 2008. Não obstante, a adesão normativa aos democrático, há resquícios consideráveis da valores democráticos deve ser relativizada. Is- matriz histórica da cultura política no país que so porque parcela considerável (41%) admite dão margem a opções autoritárias. Essa tensão que o governo, quando considerar necessário, é captada pela percepção sobre o papel dos deve limitar os direitos democráticos, contra partidos políticos. Por um lado, a maioria dos 50,1% que entende que isso não deve ocorrer delegados do OP entende que estas instituições em nenhuma circunstância (8,9% não sabe ou clássicas “incentivam as pessoas a serem poli- não respondeu). Esses dados podem indicar ticamente ativas” (45,2% “concordam” e 6,8% que, apesar da evolução na adesão ao regime “concordam totalmente” com a afirmação). Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 395 395 17/3/2010 12:49:42 Luciano Fedozzi Mas, ao mesmo tempo, a maioria expressa po- continua obtendo o maior percentual de pre- sição crítica quanto ao papel de representação ferência (38,9%), seguido pelo PMDB (11%), que os partidos políticos exercem, pois enten- partido atual do Prefeito.8 A alta taxa de ade- dem que eles “não dão aos eleitores escolhas são partidária entre os delegados do OP pode políticas reais” (52,2% “concordam” e 11,5% significar, por outro lado, um processo de parti- “concordam totalmente” com essa interpre- darização e de captura do mesmo, embora esta tação). Esses dados são coerentes com uma hipótese deva ser relativizada. Isso porque nas dupla situação vivenciada pelos delegados do assembleias regionais e temáticas anuais, que OP: a alta adesão aos partidos políticos e, ao são a base do processo, praticamente metade mesmo, a forte identificação com outras orga- não tem preferência partidária.9 Essa identifi- nizações da sociedade civil como as que melhor cação com os partidos ocorre em grau maior representam seus interesses, principalmente as nas instâncias de representação, sejam elas AM´s e os sindicatos (Tabela 8). intermediárias, como os Fóruns de Delegados (regionais e temáticos) ou no Conselho do OP De fato, quase metade dos delegados do (COP), instância máxima de sua estrutura. OP pertence ou já pertenceu aos partidos políticos, sendo que 30,5% participa ativamente A importância do pertencimento aos deles. Outros 61,9% participou de reunião polí- partidos e de suas consequências na dinâmica tica ou comício no último ano. Esses índices são da cultura política dos delegados do OP não elevados em relação aos eleitores. deve ser superestimada. Primeiro, porque o Em termos de identificação partidária vínculo com os partidos não é suficiente pa- apenas 23,8% declarou não possuí-la. O PT ra definir a opção eleitoral dos delegados. A Tabela 8 – Instituições e entidades que melhor defendem os interesses segundo delegados do OP Num. Cit. (ordem 1) Freq. % Num. Cit. (ordem 2) Freq. % Num Cit. (ordem 3) Freq. % Políticos 30 7,8 48 12,5 78 20,4 Partidos 29 7,6 41 10,7 70 18,3 Juízes 39 10,2 29 7,6 68 17,8 Sindicatos e associações profissionais 53 13,8 55 14,4 108 28,2 Igrejas ou cultos religiosos 21 5,5 19 5,0 40 10,4 Organizações não-governamentais 39 10,2 42 11,0 81 21,1 155 40,5 89 23,2 244 63,7 7 1,8 16 4,2 23 6,0 10 2,6 14 3,7 24 6,3 Representação Associações de moradores N.S. N.R. Total Obs. 383 383 383 Obs.: questão de escolha múltipla com duas opções por ordem de importância. Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, Iuperj, ICS-UL, ISRP, 2006. Para delegados do OP de Porto Alegre, 2008. 396 Book CM v11_n22.indb 396 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:42 Cultura política e Orçamento Participativo grande maioria entende que nas eleições para Pode-se aventar a hipótese de que o gru- prefeito é mais importante votar no candida- po participante constituído pelos delegados do to e não no partido (78,3% contra 19,8%). OP adquiriu certa aprendizagem e conhecimen- Em segundo lugar, como visto, o pertenci- to prático que lhe permite fazer parte do jogo mento aos partidos não obscurece a forte político-institucional com seus custos e benefí- representatividade de outras organizações cios. A experiência advinda da proximidade do sociais no OP. jogo de conflitos, alianças e contradições que O tempo de participação, todavia, não constituem a formação e o exercício do poder é a única variável interveniente para medir o local pode ter propiciado sentido à dimensão grau de interesse pela política entre os dele- política que normalmente não é oportunizada gados do OP. Como já mencionado, a escolari- de forma tão intensa e palpável para o conjun- dade tem associação direta nesse item. O gru- to da população. Todavia, a ação coletiva dessa po com ensino de 5ª a 8ª série fundamental camada de militantes sociais se ancora priorita- apresenta proporcionalmente menos interesse riamente nos laços que constituem as redes de e o grupo com ensino superior, mais interesse interesses articulados em determinado território pela política (Tabela 9). Embora sem signifi- da cidade ou por temas específicos. Nesse nível cância estatística, os jovens também expres- de ação é que se dá sua identidade maior e seu sam menor interesse pela política em relação sentido de pertencimento social pela mediação às demais faixas de idades. operada pelo OP com a dimensão institucional. Tabela 9 - Médias do grau de interesse na política e escolaridade dos delegados do OP Escola 21 Interesse na política Até a 4ª série fundamental 2,84 5 a 8 ª série fundamental 2,92 (-) Ensino médio 3,31 Ensino superior 3,44 (+) Conjunto 3,15 Os valores da tabela são as médias calculadas sem considerar as não-respostas. Os números acompanhados de (-) e de (+) correspondem às médias por categoria significativamente diferentes para menos e para mais do conjunto da amostra (ao risco de 5%). Fonte: Delegados do OP de Porto Alegre, 2008. Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2006. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 397 397 17/3/2010 12:49:42 Luciano Fedozzi Esse “otimismo”, todavia, contrasta com Esse juízo negativo também é válido a avaliação que os delegados fazem sobre a para a percepção expressa sobre a prática da prática real dos governantes e sobre a percep- administração pública em geral no país. Os ção que eles têm da administração pública no dados, em geral, indicam uma percepção do Brasil. Em geral, opinam que a relação é de obe- funcionamento da administração pública ainda diência dos cidadãos às decisões que são toma- caracterizada pelos moldes tradicionais do par- das exclusivamente pelos governantes (Tabela ticularismo, do patrimonialismo e do clientelis- 10). Contrariamente a esse tipo de democracia mo. Apesar de a maioria entender que há um delegativa (O´Donnell, 1991), os membros do relativo compromisso da administração pública OP posicionam-se pela ideia de que “os gover- com as pessoas na prestação dos serviços,10 a nantes devem ouvir as opiniões dos cidadãos e percepção é de baixa existência do conteúdo decidir de acordo com a maioria (86,2%)”. Eles da res publica na gestão do Estado, pois para apresentam uma autoavaliação positiva sobre 60,1% a corrupção envolveria muitos ou todos competências políticas, entendem que têm algo os membros da administração pública (contra a dizer sobre o que o governo faz e julgam-se 6,8% que opina que quase ninguém ou poucas com boa compreensão e mais informados do pessoas estariam envolvidas e outros 32,9% que a maioria das pessoas para opinar sobre que entendem ser apenas alguns). A prática da assuntos políticos. Para eles, a população está corrupção se constituiria em problema endêmi- excluída das decisões, a gestão governamental co no país. Embora não tenha havido perguntas es- no Brasil não é transparente e não tem interes- pecíficas quanto à experiência de Porto Alegre, se em valorizar a opinião popular. Tabela 10 – Forma de atuação dos governantes no Brasil segundo delegados do OP Forma de ação dos governantes Os governantes tomam decisões importantes e os cidadãos obedecem Casos % 255 66,6 Os governantes decidem, mas antes de aplicarem as decisões explicam-se aos cidadãos 70 18,3 Os governantes ouvem as opiniões dos cidadãos antes e decidem em conformidade com a maioria 45 11,7 N.S. 11 2,9 N.R. 2 0,5 383 100 Total Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, Iuperj, ICS-UL, ISRP, 2006. Para delegados do OP de Porto Alegre 2008. 398 Book CM v11_n22.indb 398 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:42 Cultura política e Orçamento Participativo alguns dados de outras pesquisas parecem Outros dados corroboram a opinião sobre constrastar as opiniões acima esboçadas quan- a atualidade das práticas tradicionais que mar- to à eficácia e à transparência da prática go- cam a formação do Estado e da sociedade bra- vernamental local. Como demonstra a Tabela sileira: mais de 70% considera que os vínculos abaixo, é alto o percentual que avalia a exis- pessoais são determinantes para o acesso tência de poder real das comunidades no com- aos bens e serviços públicos, mais da metade partilhamento das decisões orçamentárias com (56,9%) demonstra desconfiança na ação dos o governo (Tabela 11).11 governantes e 71% expressa a opinião de que O sentimento de impunidade ou de impossibilidade de reversão de possíveis erros co- a maior parte dos políticos está na política para obter vantagens pessoais. metidos por gestores é outro indicativo da des- A desconfiança que se expressa em rela- confiança nos governantes em geral. Mais da ção ao campo institucional de gestão é acom- metade (56,7%) acha “improvável” ou “muito panhada pela desconfiança interpessoal, na improvável” que erros possam ser corrigidos medida em que mais de 70% opinou que na (contra 33,9% que considera “provável” e sociedade prevalece a “tentativa de vantagem” 8,4% “muito provável”). Essa incapacidade de e não de “relações justas” entre as pessoas em autorreforma do sistema ou mesmo de contro- geral. Da mesma forma, a maioria vê o outro in- le social sobre a prática dos administradores divíduo como um potencial ameaçador (64%), é corroborada pelo fato de que para 69,2% a não pressupondo relações de confiança mútua. administração pública não presta contas e não Em princípio esse dado sobre a descon- divulga de forma transparente e democrática fiança interpessoal surpreendente tratando-se seus resultados (24% opinaram que ela é trans- do público do OP que vivencia em seu cotidia- parente e outros 6,8% não souberam opinar). no situações de ação coletiva e de mobilização Tabela 11 – Poder de decisão da população no OP (1995-2005) 1995 1998 2000 2002 % % % % Nº Sempre 33,0 30,2 29,4 29,1 400 27,14 Quase sempre 27,3 27,0 34,0 39,9 442 29,99 Às vezes 23,8 23,9 13,3 15,3 487 33,04 Nunca 0,6 2,8 1,9 1,6 44 2,99 Não sei 8,2 10,7 14,8 13,9 101 6,85 100,0 100,0 100,0 100,0 100 100,0 Na sua opinião, a população decide realmente sobre obras e serviços no OP? Total 2005 % Fonte: Fedozzi (2007). Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 399 399 17/3/2010 12:49:42 Luciano Fedozzi social para a tomada de decisões junto ao go- Além disso, vale ressaltar que a prática verno. Entretanto, a forma das perguntas sobre de democracia participativa do OP, ao longo esse item não permitiu aprofundar o conheci- dos anos (apesar de sua crise que se tornou mento da questão. Não é possível saber, por manifesta a partir de 2001 devido, entre outros exemplo, se essa interpretação dos delegados fatores, ao déficit financeiro da Prefeitura), ad- do OP é válida para o público que participa quiriu prestígio significativo entre os eleitores desse dispositivo (em suas redes de relações e da cidade. Pesquisas recentes demonstram instâncias, de base ou de representação) ou se que essa identidade simbólica entre a maioria a opinião se refere aos indivíduos em geral. To- da opinião pública e o OP tem constituído um davia, baseando-se em dados de outra pesqui- ambiente político-cultural favorável à institu- sa com o público do OP, pode-se inferir a exis- cionalização (em sentido sociológico) dessa tência de confiança na instituição participativa, forma de democracia participativa, mesmo com por meio das respostas obtidas com a pergunta a alternância de poder no Executivo local: 85% “Quais são os agentes que possuem mais força dos eleitores dizem saber o que é o OP e 74% o para manter o OP?”. A pergunta justificou-se consideram positivo para Porto Alegre (contra porque iniciara uma nova gestão com alter- 5% que o consideram negativo, 11% são indi- nância no poder nas eleições de 2004, após a ferentes e 9% não opinou) (IBOPE, Jornal Zero derrota do PT. Como se pode ver, o maior per- Hora, 13/06/08, p. 5). Da mesma forma, como se pode ver na Figura 1, a percepção sobre o OP da população é majoritariamente positiva, sendo que, nessa mesma pesquisa realizada pelo Banco Mundial (2008), 20% declararam centual é o que aponta os próprios participantes como sendo os principais agentes para a continuidade do OP, algo que requer confiança (Tabela 12). Tabela 12 – Agentes como mais poder para manter o OP (2005) Entre esses agentes, qual deles tem mais poder para manter o OP? 2005 Conselheiros Nº Delegados % Meios de comunicação 56 3,7 1,7 2,2 Câmara de vereadores 174 11,6 8,7 10,0 Governo municipal 345 22,9 24,3 21,6 As comunidades que participam do OP 643 42,7 54,8 54,9 73 4,9 4,3 4,6 167 11,1 47 3,1 1.505 100,0 Partidos favoráveis à participação Eleitores de Porto Alegre N.R. Total 6,1 6,8 – – 100,0 100,0 Fonte: Fedozzi (2007) 400 Book CM v11_n22.indb 400 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:42 Cultura política e Orçamento Participativo Figura 1 – Perceções públicas do OP por percentual de população (%) Concorda totalmente Concorda mais ou menos É muito importante Amplia a democracia Aumenta a eficiência do governo A favor dos pobres Melhora a qualidade de vida Fonte: BIRD, 2007 já ter participado em algum momento do OP. O conjunto desses dados, na medida em balizam a postura dos partidos políticos postulantes ao poder local, podem significar uma mudança da cultura política favorável à cidadania ativa e à responsabilidade cívica. Pode-se afirmar, em geral, que as percepções que os delegados do OP têm sobre a cultura política brasileira e as práticas governamentais são representadas pela inexistência de condutas baseadas em critérios universalistas, igualitários e impessoais, como condição estrutural que requer a cidadania. Mas, diferentemente do público pesquisado no conjunto da RMPA, o juízo negativo dos delegados do OP de Porto Alegre sobre os procedimentos da gestão socioestatal no país não tem co- mo consequência o desinteresse ou mesmo a rejeição da política como instância de mediação social. Como visto anteriormente, é alto o grau de interesse na política e de ativismo nos partidos e outras organizações sociais por parte desse grupo. Isso pode sugerir, na cultura política dos delegados, a produção de uma consciência social e um tipo de capital social que leva em conta a relativa separação entre o regime político democrático e as possibilidades distintas que podem assumir os modelos da gestão pública, em questões como o compromisso público, a transparência, a participação nas decisões, a impessoalidade, a existência de critérios igualitários e universalistas. O alto grau de interesse na política e o otimismo em relação à democracia – apesar do juízo crítico dos governantes – como vistos anteriormente, reforçariam essa hipótese. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 401 401 17/3/2010 12:49:42 Luciano Fedozzi Atitudes e ação política dos delegados do OP: mobilização sociopolítica e disposição para ação pelos índices que demonstram haver disposição dos delegados do OP para envolver-se em discussões com outros indivíduos em seu cotidiano: 66,9% discute assuntos políticos de modo “frequente” ou “algumas vezes” quando está entre amigos (contra 21,2% que o faz “raramente” ou “nunca”); a maioria (52%) Considerando-se a média geral do índice sobre afirma que, quando possui opinião firme sobre mobilização sociopolítica, os delegados do OP qualquer assunto, costuma tentar convencer os de Porto Alegre apresentam elevado grau de demais que constituem suas relações, sejam disposição para a ação, comparativamente as amigos, colegas de trabalho, familiares. Da médias do conjunto das regiões metropolitanas mesma forma, a grande maioria opinou como pesquisadas no Brasil e inclusive dos demais sendo “muito provável” ou “provável” (soma países presentes na investigação. A média de de 81,2%) a disposição de se mobilizar, seja 2,01 supera em larga escala a média brasileira sozinho ou coletivamente, contra uma situação (0,52) e a da RMPA (0,8). (No Brasil, a maior hipotética de aprovação de uma lei conside- média é a da região metropolitana de São Pau- rada injusta. Ou seja, os dados, em conjunto, lo, com 0,91) (escala de 0 a 3) (Tabela 13). indicam um perfil pró-ativo no padrão da dis- Esse grau relativamente elevado de mobilização sociopolítica é verificado, inicialmente, posição para a ação social e política cotidiana desse segmento de indivíduos do OP. Tabela 13 – Mobilização sociopolítica. Brasil, cidades selecionadas e delegados do OP Mobilização sociopolítica Média N São Paulo 0,91 c 384 Rio de Janeiro 0,69 b 498 Porto Alegre 0,84 c 383 Porto Alegre/Delegados do OP 2,01 383 Belo Horizonte 0,57 a 377 Recife 0,70 b 374 Natal 0,63 a, b 375 Goiânia 0,69 b 380 Brasil 0,70 2000 Notas: Escala: 0 – nunca pertenceu a 3 – participa ativamente. ANOVA: F (6, 2783) = 18,341; p <0,001. Letras diferentes representam grupos estatisticamente diferentes entre si e letras iguais representam grupos não estatisticamente diferentes entre si. Duncan a p <0,05. Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, Iuperj, ICS-UL, ISRP, 2006. Para delegados do OP de Porto Alegre 2008 402 Book CM v11_n22.indb 402 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:43 Cultura política e Orçamento Participativo Esse ativismo é acompanhado por uma essa parcela de participantes do OP – elei- perspectiva de eficácia de sua ação: a maioria tos anualmente pelas assembleias dos mora- (50,1%) entende que seria “muito provável” dores – possui um perfil de ativismo social ou “provável” que as instituições legislati- e político que contrasta com a apatia ou a vas nacionais levassem em conta suas reivin- indiferença de grande parte da população no dicações contrárias à lei. Esse percentual é país, conforme apontam em geral as pesqui- superior ao verificado na amostra da RMPA sas nacionais. (40,4%) e pode significar que a experiência Mas a experiência de ação sociopolítica do OP – baseada na dinâmica de atendimento não é uniforme dentre o grupo. Ela sofre a in- pelo Estado das reivindicações comunitárias – terveniência de fatores socioeconômicos (esco- esteja produzindo uma crença na eficácia da laridade e renda familiar) e do tempo de parti- ação dos cidadãos. cipação no OP. Como se pode observar, quanto Dentre as modalidades de ação, se des- maior o nível de ensino, maior são as médias taca em primeiro lugar a participação em co- em cada uma das ações investigadas (com ex- mícios ou reuniões políticas, seguida da par- ceção de leve quebra entre os que possuem en- ticipação em manifestações ou assembleias. sino médio e a ação “participação em comícios A ação em partidos políticos é coerente com ou reuniões políticas”). Os grupos com ensino o alto grau de pertencimento aos partidos superior e renda maior que 10 salários mínimos políticos verificada entre os delegados do apresentam um padrão de ação mais intenso OP. A ação com a menor média é a partici- em quase todos os tipos de ações pesquisadas. pação em discussões pela internet (Tabela Certos tipos de ação, que requerem competên- 14). De forma geral, os dados indicam que cias cognitivas, acesso a recursos e poder de Tabela 14 – Médias das modalidades de ação social e política dos delegados do OP Modalidades de ação social e política Médias Boicotar ou comprar determinados produtos, por razões políticas, éticas ou ambientais 1,76 Participar numa manifestação ou assembleia 2,38 Participar numa reunião política ou comício 2,53 Contatar, ou tentar contatar, um político ou um funcionário do governo para expressar seu ponto de vista 2,14 Tentar recolher fundos ou contribuir financeiramente para uma causa pública 1,91 Contatar ou aparecer na mídia para exprimir as suas opiniões 1,60 Participar num fórum ou grupo sde discussão através da internet 1,52 Assinar uma petição ou fazer um abaixo assinado 2,26 Média do grupo mobilização sociopolítica 2,01 Obs.: Avalia o comportamento com índice de 0 a 3 (3 – fez no último ano; 2 – fez em anos anteriores; 1 – não fez, mas poderia fazer; 0 – nunca o faria). Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, Iuperj, ICS-UL, ISRP, 2006. Para delegados do OP de Porto Alegre 2008. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 403 403 17/3/2010 12:49:43 Luciano Fedozzi influência (contato político, coleta de fundos, apresenta um padrão de mobilização signi- contato com a mídia e discussão na internet), ficativamente maior em praticamente todas são as que apresentam maior significância es- as modalidades de atuação (com exceção da tatística associada ao grupo com nível de ensi- participação em reuniões e comícios políticos). no superior e, contrariamente, uma significân- Já entre os mais pobres (faixa de renda até 2 cia estatística para menos associada ao grupo salários mínimos), a média é significativamen- de baixa escolaridade (até a 8ª série do funda- te menor em dois tipos de ações específicas, mental) (Tabela 15). quais sejam, coleta de fundos e discussão na A assimetria é ainda maior quando a internet, ações estas que dependem de deter- renda familiar é tomada isoladamente. O gru- minadas condições objetivas para sua realiza- po com renda acima de 10 salários mínimos ção (Tabela 16). Tabela 15 - Médias das modalidades de ação sociopolítica e escolaridade dos delegados do Orçamento Participativo de Porto Alegre Escolaridade Média Abaixo assinado Boicote Manifestação Reunião Contato político Coleta de fundos Contato Discussão com mídia internet Até a 4ª série fundamental 1,71 2,03 1,59 2,08 2,34 1,76 (-) 1,46 (-) 1,19 (-) 1,25 5ª a 8ª série fundamental 1,81 2,08 (-) 1,52 (-) 2,29 2,45 1,95 (-) 1,68 (-) 1,35 (-) 1,18 (-) Ensino médio 2,13 2,34 1,87 2,48 2,64 2,29 2,09 1,73 1,60 Ensino superior 2,28 2,59 (+) 2,00 2,52 2,56 2,43 (+) 2,18 (+) 1,98 (+) 1,95 (+) Conjunto 2,01 2,26 1,76 2,38 2,53 2,14 1,91 1,60 1,52 Escala de 0 a 3 (3 – fez no último ano; 2 – fez em anos anteriores; 1 – não fez, mas poderia fazer; 0 – nunca o faria) Os valores da tabela são as médias calculadas sem considerar as não-respostas. Os números acompanhados de (-) e de (+) correspondem às médias por categoria significativamente diferentes para menos e para mais do conjunto da amostra (ao risco de 5%). Fonte: Delegados do OP de Porto Alegre, 2008. Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2006. Tabela 16 - Médias das modalidades de ação sociopolítica e renda familiar Renda familiar Média Abaixo assinado Boicote Manifestação Reunião Contato político Coleta de fundos Contato Discussão com mídia internet Até 2 SM 1,85 2,10 1,62 2,22 2,48 1,99 1,61(-) 1,45 1,32(-) 2 a 5 SM 2,00 2,25 1,72 2,44 2,52 2,09 1,91 1,55 1,51 5 a 10 SM 2,21 2,50(+) 1,78 2,48 2,65 2,45(+) 2,39(+) 1,81 1,59 Mais de 10 SM 2,49 2,75(+) 2,31(+) 2,75(+) 2,67 2,69(+) 2,53(+) 2,00 2,19(+) Conjunto 2,01 2,26 1,76 2,38 2,53 2,14 1,91 1,60 1,52 Os valores da tabela são as médias calculadas sem considerar as não-respostas. Os números acompanhados de (-) e de (+) correspondem às médias por categoria significativamente diferentes para menos e para mais do conjunto da amostra (ao risco de 5%). Fonte: Delegados do OP de Porto Alegre, 2008. Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2006. 404 Book CM v11_n22.indb 404 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:43 Cultura política e Orçamento Participativo Os mais jovens apresentam menor pre- entre o grupo com instrução escolar até a 4ª disposição para a mobilização sociopolítica série e os de ensino superior. Essas assimetrias (menor média dentre as faixas etárias - 1,87). indicam que o OP não tem sido bem-sucedido A exceção, como esperado, é a discussão pela quanto à equidade nas aprendizagens de prá- internet, que apresenta a maior média compa- ticas de mobilização sociopolítica no contexto rativamente às demais faixas etárias. de profunda desigualdade de acesso aos bens Duas questões podem ser ressaltadas na e serviços urbanos. análise dos dados acima apresentados. Essas assimetrias, todavia, não devem A primeira, é que as modalidades de obscurecer um fato importante para a análise ações mais utilizadas pelos delegados com dos possíveis efeitos do OP no fortalecimento maior nível de ensino e de renda dão margem à do capital social e na mudança da cultura polí- hipótese de este grupo estar mais próximo aos tica: trata-se da clara tendência de crescimento padrões de ação com formatos horizontais, me- significativo das médias, em todas as modalidades de ação, conforme o maior tempo de participação no OP. Participantes com tempo de até 4 anos estão associados negativamente a pelo menos metade das formas de ação, enquanto os que participam a 12 anos ou mais estão associados a um ativismo mais intenso na maioria das modalidades de ação sociopolítica (conforme a Tabela 17). Esse padrão sugere uma possível relação positiva entre participação no OP, incentivo à formação de capital social e de construção de uma consciência cívica e de cidadania. nos orgânicos e relativamente efêmeros, identificados com os padrões de ação da chamada Nova Cultura Política. A segunda questão, que tensiona com a hipótese acima esboçada, diz respeito às barreiras advindas dos maiores custos para a ação sociopolítica das camadas mais pobres. Não sem razão, os que percebem renda familiar até 2 salários mínimos têm média geral inferior nas formas de mobilização, comparativamente aos que têm renda de mais de 10 salários mínimos. O mesmo também ocorre na comparação Tabela 17 – Médias das modalidades de ação sociopolítica e tempo de participação no OP Tempo de participação no OP Média Menos de 4 anos 1,83 2,12 de 4 a 12 anos 2,04 12 anos ou mais 2,34 Conjunto 2,01 Abaixo assinado Manifestação Reunião Contato político Coleta de fundos 1,60 2,17(-) 2,34(-) 1,90(-) 1,73(-) 1,35(-) 1,43 2,30 1,72 2,47 2,67(+) 2,19 1,94 1,60 1,44 2,51(+) 2,18(+) 2,67(+) 2,67 2,56(+) 2,22(+) 2,07(+) 1,85(+) 2,26 1,76 2,38 2,53 2,14 1,91 1,60 1,52 Boicote Contato Discussão com mídia internet Os valores da tabela são as médias calculadas sem considerar as não-respostas. Os números acompanhados de (-) e de (+) correspondem às médias por categoria significativamente diferentes para menos e para mais do conjunto da amostra (ao risco de 5%). Fonte: Delegados do OP de Porto Alegre, 2008. Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2006. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 405 405 17/3/2010 12:49:43 Luciano Fedozzi Como esperado, devido ao caráter princi- Nível de associativismo entre os delegados do OP palmente territorial do modelo do OP, o maior percentual de pertencimento ocorre nas Associações de Moradores (AM´s) ou outros tipos Apesar de o OP ser um sistema aberto à partici- de associações voluntárias (média de 2,78 e pação individual, não conferindo previamente 89,3%) (sendo 79,6% participantes ativos e monopólio de representação a organizações 9,7% apenas pertencentes, contra apenas 5% sociais, é alta a média do associativismo entre que nunca pertenceu) (Tabela 19). seus delegados, comparativamente aos não Analisando-se por condições de vida, não participantes do OP na cidade de Porto Alegre e há diferenças significativas ou mesmo qualquer nas regiões pesquisadas (Tabela 18). tendência nas médias que indique interveniência Tabela 18 – Associativismo Associativismo Média N São Paulo 0,66 d 384 Porto Alegre 0,51 b 499 Porto Alegre/Delegados do OP 0,60 c, d 383 Rio de Janeiro 2,32 383 Belo Horizonte 0,37 a 383 Recife 0,42 a 381 Natal 0,41 a 379 Goiânia 0,55 b, c Brasil 0,52 381 2000 Notas: Escala: 0 – nunca pertenceu a 3 – participa ativamente. ANOVA: F (6, 2783) = 18,341; p <0,001. Letras diferentes representam grupos estatisticamente diferentes entre si e letras iguais representam grupos não estatisticamente diferentes entre si. Duncan a p <0,05. Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, Iuperj, ICS-UL, ISRP, 2006. Para delegados do OP de Porto Alegre,2008. Tabela 19 – Médias das formas de associativismo dos delegados do OP Associativismo Partido político Médias – Tipos de organização 2,4 Sindicato, grêmio ou associação profissional 2,1 Igreja ou outra organização religiosa 2,3 Grupo desportivo, cultural ou recreativo 2,02 Associação de moradores ou outra associação voluntária 2,78 Média do grupo associativismo 2,32 Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2006. Para delegados do OP de Porto Alegre,2008. 406 Book CM v11_n22.indb 406 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:43 Cultura política e Orçamento Participativo das variáveis nível de ensino, gênero, raça/etnia nível de participação nos partidos políticos: en- ou faixas etárias dos delegados em seus vínculos quanto o grupo de menor renda (até 2 salários associativos. Percebe-se, entretanto, que os jo- mínimos) está estatisticamente associado com vens (18 a 29 anos) apresentam tendência a a menor participação nessas organizações, o um menor engajamento social, pois sua média grupo com renda entre 5 a 10 salários o está é a menor dentre as faixas de idade (2,16). Isso a uma média de maior participação. Além dis- ocorre mesmo em “grupo desportivo, cultural so, os que percebem renda familiar superior a ou recreativo”. Nesse sentido, os dados enfra- 10 salários participam proporcionalmente mais quecem a hipótese da formação de uma Nova das associações voluntárias ou de moradores Cultura Política dentre os participantes do OP. (Tabela 20). Já as variáveis renda familiar e tempo Embora ocorra crescimento das médias de participação no OP mostram-se estatisti- dos vínculos associativos conforme o maior camente relevantes na análise dos tipos de tempo de participação no OP (crescimento das associativismo. A renda familiar diferencia o médias no tempo) (Tabela 21), não é possível Tabela 20 – Médias das formas de associativismo e renda familiar dos delegados do OP Renda familiar Média Partido político Sindicato/ associação Igreja Grupo desportivo, cultural ou recreativo Outras associações voluntárias Até 2 SM 2,17 2,16(-) 1,83 2,35 1,79 2,71 2 a 5 SM 2,34 2,42 2,13 2,23 2,11 2,81 5 a 10 SM 2,42 2,70(+) 2,35 2,33 2,00 2,72 2,20 3,00(+) 2,02 2,78 Mais de 10 SM 2,39 2,44 2,08 2,25 Conjunto 2,32 2,40 2,10 2,30 Os valores da tabela são as médias calculadas sem considerar as não-respostas. Os números acompanhados de (-) e de (+) correspondem às médias por categoria significativamente diferentes para menos e para mais do conjunto da amostra (ao risco de 5%). Fonte: Delegados do OP de Porto Alegre, 2008. Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2006. Tabela 21 – Médias das formas de associativismo e tempo de participação no OP Média Partido político Sindicato/ associação Igreja Grupo desportivo, cultural ou recreativo Outras associações voluntárias Menos de 4 anos 2,28 2,31 1,98 2,39 1,97 2,74 De 4 a 12 anos 2,30 2,27 2,07 2,32 2,07 2,77 12 anos ou mais 2,40 2,72 2,27 2,14 2,02 2,86 Conjunto 2,32 2,40 2,10 2,30 2,02 2,78 Tempo de participação no OP Os valores da tabela são as médias calculadas sem considerar as não-respostas. Os números em azul correspondem às médias por categoria significativamente diferentes do conjunto da amostra (ao risco de 5%). Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2006. Para delegados do OP de Porto Alegre,2008. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 407 407 17/3/2010 12:49:43 Luciano Fedozzi concluir de forma taxativa que a variável tem- com o padrão de ação apontado na chamada po desempenhe papel direto de incentivo à Nova Cultura Política. criação de capital social na cidade. Dados an- Por outro lado, a experiência do OP de teriores mostram inclusive que é decrescente Porto Alegre demonstra que o contexto de ter- o percentual de participação em entidades por ceirização dos serviços públicos, que se proli- parte do público que integra as edições anuais fera no cenário internacional, tem incentivado do OP: de 76%, em 1995, para 57%, em 2005 a criação de organizações para esse fim e/ou (Fedozzi, 2007, p. 30). transformado o caráter da ação das AM´s exis- Além disso, dois fenômenos são insti- tentes, ao repassar para elas funções de pres- gantes para analisar essa complexa relação tação de serviços comunitários, especialmente entre a participação na gestão sociourbana, nas áreas da assistência social e da cultura. Ho- que ocorre há duas décadas por meio do OP, e je, são centenas de convênios entre a Prefeitu- o nível de associativismo dos seus integrantes: ra e entidades da sociedade civil. Não se trata a) o decréscimo de organizações autônomas da aqui da simples transferência de responsabi- sociedade civil, como os Conselhos Populares lidades das políticas de bem-estar social para ou Uniões de Vilas, existentes na fase anterior organizações civis ou privadas, algo constatado ao OP (1978-1988), os quais desempenharam pela Nova Cultura Política. Mas, sim, do esta- papel importante na construção do sistema de belecimento de novas relações entre o Estado participação institucional iniciado em 1989 (em e redes associativas que constituem parcela do 2005, apenas 0,4% disseram pertencer a essas capital social na sociedade civil, com tendência entidades); e b) o crescimento percentual (de a criar dependência dos fundos públicos. Essa mais de 150% entre 2002 e 2005) de vínculos “terceirização comunitária” tem levado a con- com os tipos de associativismo representados sequências políticas e culturais que parecem pelos ONG´s, movimentos sociais e Clubes de atualizar velhas formas de clientela e de tute- Mães (somaram 19,5% dos vínculos em 2005) la do Estado, prosseguindo, sob o discurso do (ibid., p. 33). No OP, esses movimentos expres- “empoderamento”, a tradição cooptadora do sam, principalmente, os temas da cultura, do sistema social, cultural e político do país. cooperativismo habitacional, de gênero, de etnias/raças e das pessoas com deficiência. O significado desse crescimento precisa, entretanto, ser apurado mais aprofundadamen- Considerações finais te. Por um lado, o surgimento das ONG´s e de novos movimentos sociais é consoante com a Cabe retomar as questões que objetivaram o nova realidade internacional da ação coletiva presente estudo. Primeiramente, buscou-se efe- que pode representar formas de ação menos tuar análise comparativa de dados produzidos hierárquicas e rígidas – comparativamente às sobre cultura política e cidadania entre os dele- organizações tradicionais (sindicatos, associa- gados do OP de Porto Alegre e a população de ções de moradores, entidades profissionais, diversas regiões metropolitanas do país. Em se- partidos, etc.) – sendo, assim, mais coerentes gundo lugar, buscou-se verificar até que ponto 408 Book CM v11_n22.indb 408 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:43 Cultura política e Orçamento Participativo a participação oportunizada por essa inovação forte conteúdo igualitário, como tarefa clássica sociourbana vem contribuíndo para transformar não resolvida pela sociedade brasileira. Nessa a cultura política e aumentar a consciência so- tarefa, segundo os investigados, o Estado con- cial em sentido democrático dos participantes. tinua exercendo papel central no provimento Partindo-se dos pressupostos da referida do bem-estar social, devendo fazê-lo com parti- investigação nacional sobre a formação de uma cipação e controle da sociedade civil. Somente Nova Cultura Política em âmbito internacional, quando se analisam os tipos de ações mais uti- se intentou verificar, primeiramente, até que lizados pelos diferentes grupos são percebidos ponto o modelo de participaão representado indícios sugestivos de que o grupo que possui pelo OP estaria expressando valores, padrões maior nível de renda (mais de 10 salários mínimos) apresenta certas disposições mais próximas às modalidades de ação identificadas com a Nova Cultura Política. Eles se destacam em ações que se presume sejam mais horizontais, menos orgânicas e relativamente efêmeras no tempo, tais como contatos políticos, contatos com a mídia, coleta de fundos e discussão na internet. Mas esta possibilidade não pode ser generalizada. de atuação e formas associativas atinentes a essa Nova Cultura Política. Conjuntamente a esse objetivo, buscou-se constatar – ante a tradição autoritária da societária brasileira – a existência de relações positivas entre o tempo de exposição ao OP, como modelo inovador de gestão, e a construção de uma cultura política democrática, favorável à promoção da cidadania ativa e do fortalecimento do capital social na cidade. b) Apesar de os delegados do OP possuírem Verificou-se que, no conjunto dos itens investigados, as médias apresentadas pelos delegados do OP são superiores às verificadas na população das regiões metropolitanas e das capitais pesquisadas (com exceção do dever de escolher produtos por razões políticas, éticas ou ambientais). Essa constatação é central para os objetivos do estudo. Não obstante, o conjunto dos dados não apóia a hipótese de que a participação aventada dar-se-ia a partir da construção de valores e de padrões de atuação consoantes à Nova Cultura Política. Isso devido às seguintes constatações: elevados níveis de vínculos associativos no âm- a) as percepções dos direitos e dos deveres jovens (18 a 29 anos) apresentam tendência de de cidadania, para a grande maioria dos dele- menor nível associativo (embora não significa- gados do OP (de todos os segmentos de ren- tivamente) mesmo naquelas ações mais fluídas da e níveis de ensino), estão associadas a um e efêmeras. Essa menor intensidade na ação bito da sociedade civil (expressando coerência com a trajetória histórica de construção dessa modalidade de gestão local), os tipos de associativismo representam padrões clássicos da ação coletiva ocorrida no período de redemocratização e da ativação da sociedade civil no país: associações de moradores (principalmente), partidos políticos, igrejas, sindicados ou associações profissionais. Ora, estas organizações apresentam, em geral, padrões de atuação mais hierarquizados e tradicionais que não se coadunam com as formas de ação identificadas pela Nova Cultura Política. Além disso, os Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 409 409 17/3/2010 12:49:43 Luciano Fedozzi dos jovens também não endossa um suposto da Nova Cultura Política. Não se confirma, portanto, a hipótese, dentre os delegados do OP, do alargamento ou deslocamento, no âmbito de uma Nova Cultura Política, da preocupação com os temas clássicos ligados à desigualdade social e civil para temas de caráter sociocultural – como seria a ação de boicotar produtos por razões éticas, políticas ou ambientais, por exemplo. É baixa a importância atribuída a temas que não são percebidos como “concretos” ou objetivos, a exemplo do meio ambiente, do consumo responsável, do desenvolvimento local, das políticas para gênero, para a juventude e para as questões de caráter racial e/ou étnico. Por outro lado, quanto ao objetivo de testar possíveis transformações na consciência social proporcionadas pelo tempo de exposição ao OP, verificou-se, como já citado, que os delegados apresentam maior nível de ativismo sociopolítico, de associativismo e de interesse pela política. Todavia, não se constataram di- ferenças estatisticamente significativas quanto aos direitos e deveres de cidadania associados ao maior ou menor tempo de participação no OP. Isso possivelmente significa inexistência de transformações mais profundas na topologia do nível de consciência social dos delegados participantes. Diferentemente, o nível de profundidade das transformações subjetivas é verificado mais pelo crescimento do ativismo em todas as modalidades de ação sociopolítica, assim como no nível relacionado à atividade política propriamente dita, ao olhar crítico quanto às formas de gestão pública e à valorização do regime democrático participativo. Ou seja, há clara tendência de crescimento destes itens 410 Book CM v11_n22.indb 410 associados ao maior tempo de exposição ao OP. Nesse nível pode-se falar em mudança da cultura política e incentivo à cidadania ativa, no contexto geral de descrédito na política e na eficácia da ação coletiva. Cabe destacar, entretanto, os limites evidenciados na construção de uma consciência social crítica necessária à transformação da ordem social (apesar de os delegados do OP apresentarem médias maiores nos indicadores de cultura política na comparação com as demais regiões metropolitanas pesquisadas). O direito de participação em ações de desobediência civil, por exemplo, é relevante (significância estatística) apenas quando analisado pelo critério racial/étnico, quando os negros apresentam essa disposição, seguidos pelos jovens (18 a 29 anos), embora estes com média sem significância estatística. Outro limite advém das assimetrias verificadas em termos de condições socioeconômicas (escolaridade e renda) na análise das modalidades de atuação dos participantes. Maior renda e maior nível de ensino estão associados ao aumento da participação nas ações em geral, significando existência de custos e barreiras aos mais pobres que lhes dificulta a igualdade e a intensidade de atuação no OP. O OP, historicamente, não tem obtido sucesso quanto à busca da equidade da participação. Embora ocorra tendência de crescimento dos vínculos associativos conforme o aumento do tempo de participação dos delegados no OP (crescimento das médias no tempo), não é possível concluir que o maior tempo de exposição ao OP esteja associado ao maior nível de organização do capital social na cidade. O significado desse crescimento precisa ser apurado mais aprofundadamente. Além disso, pesquisas Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:43 Cultura política e Orçamento Participativo anteriores com amostra do público participante esta que ganha relevo após a intensificação nas edições anuais do OP (e não somente com da polarização política decorrente da derro- os delegados) mostram que é decrescente o ta eleitoral do PT nas eleições de 2004 (após percentual de participação em entidades. quatro mandatos consecutivos) e 2008. Novas Além disso, a “terceirização comunitária” investigações devem aprofundar essa hipótese tende a criar dependência com perigosas con- relevante para a sustentabilidade atual e futura sequências políticas e culturais que parecem do OP. atualizar velhas formas de clientela e de tutela Essas questões que tornam complexa a do Estado, em conexão com o sistema partidá- análise do tema do associativismo em Porto rio de sustentação governamental. Essa é uma Alegre não obscurecem o fato de que o OP pos- questão cuja complexidade desafia o conheci- sivelmente esteja desempenhando um papel mento e a reflexão crítica sobre a relação entre catalisador de parcela da ação coletiva, assim o funcionamento há duas décadas do OP e as como das formas associativas e movimentos formas de ação coletiva que vêm se (re)estrutu- sociais que constituem o capital social da ci- rando na cidade. O alto grau de pertencimento dade, favorecendo, assim, o ambiente para o aos partidos políticos por parte dos delegados aprendizado democrático. Por meio do OP, é do OP, se, por um lado, expressa politização e oportunizado o contato permanente entre o valorização da política como instância de me- tecido social mobilizado por milhares de indiví- diação social, pode também ensejar a hipótese duos e de organizações sociais que passaram a dos efeitos “perversos” desses vínculos, nas compartilhar as decisões sobre gestão sociour- práticas de cooptação e de exclusão. Hipótese bana com os administradores da cidade. Luciano Fedozzi Sociólogo, mestre e doutor em sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, do Departamento de Sociologia, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, Brasil). [email protected] Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 411 411 17/3/2010 12:49:43 Luciano Fedozzi Notas (1) O Observatório das Metrópoles – IPPUR/UFRJ e o ICS-UL (Lisboa) vêm desenvolvendo trabalho comparativo sobre a análise das atitudes sociais dos brasileiros e dos portugueses no âmbito das redes do Internacional Survey Research Programme (ISRP) e da European Social Survey (ESS). (2) A Nova Cultura Política (NCP) é um conceito surgido nos países centrais nos anos 1970 para designar um conjunto de macroprocessos que teriam alterado profundamente a estrutura das relações sociais. São sete as principais características da NCP: 1) modificação do significado clássico entre esquerda e direita desvinculando-os das divisões de classe; 2) separação explícita entre as questões sociais e econômicas-fiscais; 3) crescimento da importância das questões sociais decorrentes da exacerbação das desigualdades socioculturais em detrimento das demandas econômicas; 4) o individualismo de mercado e a preocupação social crescem juntos; 5) questionamento do Estado de Bem-Estar Social e defesa de novas formas de provisão de bens públicos que articulam Estado, empresas privadas e formas comunitárias. A crítica ao Welfare State é acompanhada do declínio da importância dos governos nacionais e concomitante aumento da relevância dos governos locais; 6) surgimento de um novo padrão de atuação política baseadas em questões específicas e ampliação da participação cidadã, assimo como o declínio das organizações hierárquicas (sindicatos, partidos, etc.); 7) a NCP se expressa mais intensamente em sociedades menos hierárquicas e por segmentos mais jovens, mais instruídos e que vivem mais confortavelmente (Clark e Inglehart, 1998. In: Azevedo, S. ; Santos Junior, O. A. e Queiroz Ribeiro, L. C., 2007). (3) Ver a análise de Silva e Côrtes sobre a RMPA (Observatório das Metrópoles, 2008). (4) É vasta a bibliografia sobre o funcionamento do OP (http://www2.portoalegre.rs.gov.br/op/). Para análise de seus efeitos democratizadores do modelo de gestão sociourbana ver Fedozzi (1997). (5) Cf. Fedozzi (2007). (6) Para uma discussão aprofundada sobre os temas da justiça, da ordem e da transformação social, na perspectiva dos níveis de consciência moral, como núcleo da consciência social, aplicada ao caso do OP de Porto Alegre, ver Fedozzi (2008). (7) Ver análise oficial da Prefeitura de Porto Alegre (Verle e Brunet, 2002) e Fedozzi (2007). (8) O prefeito José Fogaça venceu as eleições em 2004 pelo PPS. Posteriormente, no final da gestão, voltou ao PMDB e foi reeleito por este partido em 2008. (9) 49,3% dos participantes em geral do OP não tinham preferência partidária em 2005 (Fedozzi, 2007) (10) 16,2% consideram que a administração pública está “muito comprometida”; 44,1% “de alguma forma comprometida”; 33,7% “pouco comprometida” e 5,5% “nada comprometida”; 0,5% nãoresposta. (11) A diminuição da aprovação sobre o poder decisório em 2005 provavelmente se deve à crise financeira que se abateu na Prefeitura a partir de 2002, impedindo-a de cumprir, por dois anos consecutivos, os Planos de Investimentos aprovados pelo OP. 412 Book CM v11_n22.indb 412 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:43 Cultura política e Orçamento Participativo Referências AZEVEDO, S. de; SANTOS Jr., O. A. e RIBEIRO, L. C. de Q. (2007). Cidade, cidadania e segmentações sócio-territoriais no Brasil. Trabalho apresentado no XII Encontro da Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, Belém-PA, maio. ______ (2008). A nova cultura política e o efeito metrópole: um estudo exploratório. Observatório das Metrópoles. Mimeo. BANCO MUNDIAL – BANCO INTERNACIONAL PARA RECONSTRUÇÃO E DESENVOLVIMENTO (2008). Rumo a um Orçamento Participativo mais inclusivo e efetivo ewm Porto Alegre. CABRAL, M. V. e SILVA, F. 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The international scene and prospects for the Brazilian case Jeroen Johannes Klink Resumo Neste artigo discutimos os arranjos institucionais que norteiam a organização, a gestão e o financiamento das regiões metropolitanas no Brasil. Argumentamos que não existe um modelo único, e que a própria trajetória institucional das áreas metropolitanas se insere numa dinâmica socioeconômica e política mais ampla. Desenvolvemos este argumento em três seções. Na primeira seção apresentamos um balanço do debate internacional, que privilegia a pactuação entre atores e escalas territoriais, o que transcende qualquer engenharia institucional. Na segunda, discutimos o caleidoscópio de arranjos institucionais existentes nas regiões metropolitanas brasileiras. Enfatizamos que esta pluralidade de arranjos não pode ser dissociada do processo de reestruturação de escalas, e de negociação de conflitos entre os atores que influem na produção coletiva do espaço metropolitano brasileiro. Na ultima seção, levantamos algumas hipóteses para serem exploradas nas pesquisas que tratam do tema da governança metropolitana no Brasil. Abstract IIn this paper we debate the institutional arrangements that guide the organization, management and financing of Brazilian metropolitan regions. We argue that there is no single best model, and that the institutional trajectory of metropolitan areas is embedded within a broader socioeconomic and political setting. This argument is developed in three sections. In the first one, a synthesis of the international discussion is presented, emphasizing the restructuring process of territorial scales and actors, which goes beyond any analysis of institutional engineering. In the second section, the kaleidoscope of institutional arrangements existing in the Brazilian scenario is discussed. It is stressed that this diversity of the institutional architecture should be analyzed within a context characterized both by restructuring of scales, and by negotiation of conflicts among stakeholders that influence the collective production of the metropolitan space in Brazil. In the final section, some hypotheses are presented that should be explored in further research on metropolitan governance in Brazil. Palavras-chave: governança metropolitana; arranjos institucionais; reestruturação de escalas territoriais de poder. Keywords: metropolitan governance; institutional arrangements; restructuring of territorial scales of power. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 415-433, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 415 17/3/2010 12:49:43 Jeroen Johannes Klink de arranjos institucionais não pode ser disso- Introdução ciada de um processo contínuo de reestruturação de escalas e atores, que consubstancia O debate sobre as regiões metropolitanas as governanças metropolitanas e regionais no aponta para um paradoxo: enquanto concen- país. Na conclusão, exploraremos algumas im- tram importantes problemas e oportunidades, plicações desta hipótese para a pesquisa teóri- verificamos, ao mesmo tempo, que o arcabou- ca e o debate contemporâneo sobre os novos ço institucional que deveria nortear a organiza- arranjos colaborativos nas áreas metropolita- ção, gestão e financiamento desses territórios nas brasileiras. não está à altura de lidar com os desafios e aproveitar as potencialidades. Não se trata de um fenômeno exclusivamente brasileiro; vários autores analisam a dinâmica socioprodutiva das cidades-região na economia internacional Uma primeira amostra das experiências internacionais e apontam para o dilema da ação coletiva no espaço regional (Klink, 2008a; OCDE, 2001; A literatura depara-se com um desafio concei- Rojas et al. 2008). Ao mesmo tempo, no cená- tual no sentido de como classificar e avaliar os rio internacional, os próprios gestores retomam diversos arranjos institucionais para a gover- o tema e desencadeiam um processo coletivo nança metropolitana (Klink, 2008a). No que se de busca pelo aperfeiçoamento dos modelos refere à classificação dos modelos, Rodríguez de gestão e financiamento das regiões metro- e Oviedo (2001) argumentam que os arranjos politanas. Consequentemente, testemunha- colaborativos podem ser agrupados em mo- mos um processo efervescente e diversificado delos supra ou intermunicipais. Como alega de experimentação na gestão metropolitana Lefèvre (2005), porém, este critério representa no contexto internacional. Também no Brasil, somente um entre vários recortes possíveis (se- presenciamos uma retomada da discussão e torial versus territorial; formal versus informal; embriões de novas formas de gestão. Este arti- arranjos que operam com autonomia financei- go busca contribuir para o aprofundamento do ra versus modelos caracterizados pela depen- debate sobre o aperfeiçoamento dos modelos dência financeira de transferências intergover- de gestão e de organização das regiões metro- namentais, etc.). Outro recorte (imperfeito), politanas brasileiras. A partir de um balanço utilizado por vários estudos da Organização preliminar da experiência internacional, argu- para Cooperação e Desenvolvimento Econô- mentaremos que não existe um arranjo insti- mico (OCDE, 2001; 2007; 2008), baseia-se na tucional único para a organização das regiões diferenciação entre os arranjos chamados mais metropolitanas, e que os próprios modelos mu- fortes e frágeis. Os primeiros caracterizam-se dam no decorrer do tempo em função da dinâ- pela coincidência entre a área administrati- mica socioeconômica e política mais ampla da va e a área funcional da região metropolita- sociedade. Em seguida, analisaremos o cenário na, enquanto nos arranjos mais frágeis não brasileiro e raciocinaremos que a pluralidade encontramos esta convergência.1 No tocante 416 Book CM v11_n22.indb 416 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 415-433, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:43 Novas governanças para as áreas metropolitanas ... aos critérios de avaliação dos arranjos institu- econômico), quanto na fragilização da coorde- cionais, autores como Bourne (1999) sugerem nação de funções de interesse comum, como utilizar os critérios tradicionais de avaliação o planejamento do uso e ocupação do solo. de projetos, programas e políticas (eficiência, Atualmente, o modelo madrilense encontra-se efetividade, equidade, etc.) para a análise de num ponto de inflexão, a partir do qual a cida- estruturas de governança metropolitana. de de Madri visa negociar a consolidação e o A experiência das comunidades autôno- aprimoramento de um processo de descentra- mas espanholas em geral, e o caso específico lização mais firme no bojo do pacto espanhol da Comunidade Autônoma Madrilense, talvez (visto que a descentralização sobrecarregou representem o exemplo paradigmático do mo- as comunidades autônomas, mas não reforçou delo que anteriormente rotulamos como forte. as cidades grandes). Sem mudanças, a cidade A comunidade é a esfera provincial no siste- central e a sociedade civil continuarão reivindi- ma espanhol (quase) federativo e fruto de um cando voz maior no processo de pactuação em processo de descentralização incompleto, de- escala metropolitana.2 sencadeado após o regime do general Franco. O modelo norte-americano de gestão e As comunidades autônomas transformaram-se organização das regiões metropolitanas pode em atores-chave no sistema metropolitano es- ser caracterizado como um arranjo que ante- panhol. No caso específico da região metropo- riormente definimos como relativamente frágil. litana de Madrid, encontramos uma situação A evolução socioespacial e institucional das excepcional, de acordo com a qual a chamada metrópoles norte-americanas culminou num região funcional coincidiu quase perfeitamente sistema relativamente fragmentado e polari- com a área administrativa/institucional (a esfe- zado, tanto em termos raciais como espaciais. ra da comunidade autônoma). Isso acarretou Não cabe aqui, no entanto, abordar a literatu- bons resultados em termos de coordenação dos ra específica, que aponta os motivos para esse investimentos e de gestão das grandes redes de padrão de evolução metropolitana (Stephens e infraestrutura, aproveitando-se as economias Wikström, 2000). Uma legislação estadual de de escala. Num período de tempo relativamen- uso e ocupação do solo flexível, financiamen- te curto, a comunidade autônoma conseguiu tos subsidiados para a moradia suburbana da ampliar de forma significativa o sistema de me- classe média, investimentos maciços no trans- trô e de transporte público, por exemplo. porte rodoviário, governos locais relativamen- Mais recentemente, contudo, a própria te fortes e com autonomia para legislar sobre cidade de Madri reivindicou um espaço de o uso e ocupação do solo no município (pro- interlocução maior na região metropolitana duzindo, assim, um sistema de zoneamento (OCDE, 2007). De certa forma, presenciamos que podia, de direito e de fato, excluir a po- um movimento de contestação num modelo pulação de baixa renda), foram elementos que de gestão forte por parte da cidade central, contribuíram para uma rápida proliferação do o que se reflete tanto na duplicação de inicia- número de governos, além de todos os tipos tivas (particularmente em áreas como ciên- de autoridades locais. A região metropolitana cia, tecnologia, inovação e desenvolvimento de Nova Iorque, por exemplo, espalha-se por Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 415-433, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 417 417 17/3/2010 12:49:43 Jeroen Johannes Klink 3 estados, 31 condados, 800 municípios e mais nortear a gestão e organização das regiões de 1.000 distritos específicos voltados para a metropolitanas. As regiões metropolitanas provisão de serviços setoriais de interesse co- são espaços de contestação e de negociação mum (Yaro, 2000, p. 45). de conflitos, envolvendo um conjunto amplo Todavia, principalmente a partir de mea- de atores e de escalas territoriais de poder. De dos dos anos 1990, testemunhamos também certa forma, conforme alegam também auto- nos EUA um ponto de inflexão no debate sobre res como Vainer (2002), as próprias escalas as regiões metropolitanas (Rojas et al., 2008). são construções políticas, frutos de processos As amplas evidências da intensa segregação de negociação entre agentes sociais com inte- racial e espacial e a polarização entre as áreas resses frequentemente conflitantes. centrais e as cidades do subúrbio colocam em Nesse contexto, o debate internacional cheque a própria viabilidade econômica, social sobre os arranjos institucionais para a gestão e ambiental das áreas metropolitanas como metropolitana assume novo sentido; não se um todo (Wheeler, 2002). Principalmente em trata de aplicar uma fórmula única (fetiche ins- função das interdependências funcionais entre titucional), mas de buscar a melhor forma de a cidade central (com os setores relativamente se negociar os conflitos e conduzir um proces- mais vulneráveis) e o subúrbio (que concentra so de repactuação mais abrangente, democrá- os segmentos mais abastados), algumas lide- tico e aberto entre os vários agentes e escalas ranças começam a se conscientizar do fato de de poder (Salet et al., 2003). Ao mesmo tem- que esta polarização intrametropolitana amea- po, a discussão sobre os arranjos não pode ser ça a própria viabilidade da metrópole. Assim, dissociada do contexto socioeconômico, políti- um número crescente de autores e formadores co, histórico e jurídico mais amplo de países e de opinião voltou a inserir o tema da gestão regiões. e da organização das áreas metropolitanas As experiências internacionais mais re- na pauta do debate político nos EUA, seja centes apontam para este papel estratégico sob o rótulo de crescimento compacto ( smart da articulação e da pactuação entre os vários growth), seja na linha dos autores que perten- atores e escalas territoriais de poder em prol de cem à vertente do chamado novo regionalismo, um programa metropolitano, o que transcende que prega, também, mecanismos de coopera- qualquer engenharia institucional3 (Lefèvre, ção mais fortes entre o mosaico de atores e 2008). O resultado deste pacto metropolitano instituições na região metropolitana (Wheeler, e o perfil dos arranjos institucionais não estão 2002; Katz, 2000). pré-definidos, mas evoluem em função de um Entre estes dois extremos de arranjos processo mais amplo de negociação de confli- fortes e frágeis encontramos uma gama de tos entre atores e de reestruturação de escalas experiências de gestão metropolitana. Ainda territoriais de poder (Vainer, 2002). Em segui- conforme o levantamento da OCDE (2001) so- da, exploraremos como este pano de fundo bre o cenário internacional, é difícil vislumbrar conceitual pode ser aplicado para compreender um modelo institucional único e ótimo para o cenário brasileiro. 418 Book CM v11_n22.indb 418 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 415-433, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:43 Novas governanças para as áreas metropolitanas ... O cenário brasileiro escala metropolitana, principalmente ligadas a setores como habitação, saneamento básico e transporte. Vários dos organismos metropo- A arquitetura institucional que norteia a gestão litanos conseguiram captar financiamentos in- e a organização das regiões metropolitanas ternacionais. brasileiras caracteriza-se pela diversidade dos A crise fiscal, a redemocratização e o sur- arranjos. Primeiramente, encontramos um ar- gimento de novos atores sociais fizeram com ranjo que tem origem na legislação federal dos que esse modelo de organização metropolita- anos 1970, que criou nove regiões metropolita- na enfrentasse um processo de esgotamento nas a partir de um conjunto de critérios unifor- crescente nos anos 1980. Curiosamente, veri- mes. A maior parte dessas regiões era compos- ficamos, mesmo assim, uma segunda onda de ta de capitais de estados, nas quais ocorrera o proliferação de arranjos institucionais estadua- primeiro surto de industrialização. Na visão do lizados ao longo dos anos 1990.5 regime militar, essas regiões desempenharam Paralelamente à crise e à reestruturação papel-chave na consolidação do processo de do nacional desenvolvimentismo, ao longo dos desenvolvimento do país. A legislação federal anos 1980 houve um desgaste do modelo de definiu de forma uniformizada os potenciais gestão metropolitana do regime militar. Ele- serviços de interesse, como o planejamento mento essencial nesse processo foi a própria para o desenvolvimento econômico e social, o crise fiscal do Estado nacional, que debilitou os saneamento (água, esgoto, gestão de resíduos fundos metropolitanos, um dos eixos centrais sólidos), o uso e ocupação do solo, o transpor- da política para as regiões metropolitanas. A te e as estradas, a produção e distribuição de redemocratização gerou também um clima no gás canalizado, a gestão de recursos hídricos e qual os prefeitos e os movimentos sociais co- o controle de poluição ambiental. Também pre- meçaram a questionar a estrutura fechada e viu a criação de novos fóruns, particularmente pouco transparente da gestão metropolitana. os conselhos deliberativos e consultivos, para Os novos atores sociais associaram o tema me- coordenar a articulação com os municípios. tropolitano ao regime militar e não o pautaram Este arranjo estadualizado, que se con- com a devida atenção e consistência no pro- figurou em pleno regime autoritário, teve um cesso constituinte de 1988. Ao mesmo tempo, viés tecnocrata e um alto grau de centraliza- o governo federal se distanciou dessa área te- ção financeira e de tomada de decisões, com o mática e delegou a responsabilidade de cria- principal órgão (o conselho deliberativo) domi- ção e organização das regiões metropolitana nado pelos representantes indicados pelo go- para a esfera estadual. verno federal-estadual.4 Ao mesmo tempo, foi Na literatura, encontramos uma visão nessa fase que presenciamos a consolidação de mais crítica acerca da performance do “modelo vários órgãos estaduais de planejamento me- estadualizado” (Brasil, 2004; Spink, 2005; Gar- tropolitano, alguns dos quais ainda atuantes. son, 2007; 2009). Com poucas exceções, as es- Houve também fontes de financiamento seto- truturas institucionais montadas pelos estados riais relativamente estáveis e alocadas numa nas regiões metropolitanas limitam-se à função Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 415-433, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 419 419 17/3/2010 12:49:43 Jeroen Johannes Klink de planejamento, com pouca capacidade de escala cresceu no decorrer dos anos 1980, alavancar a efetiva execução de serviços de particularmente no bojo do processo mais am- interesse comum. De acordo com Brasil (2005, plo de descentralização e democratização. No p. 88): estado de São Paulo, por exemplo, o primeiro governador eleito, Franco Montoro, enxergou Tanto em relação à sistemática de gestão das RMs instituídas nos anos 70, quanto das constituídas pelos estados, após 1988, permanecem entraves para a consolidação de modelos operacionais capazes de responder às necessidades da gestão compartilhada. A organização da gestão apoiada nos conselhos consultivos e deliberativos das leis anteriores não logrou operacionalidade, mesmo assim, muitas das novas legislações incorporaram disposições quanto a modelos similares. A estruturação de órgãos técnicos para planejamento e gestão metropolitana também deparou com limitações, de sorte que entre as primeiras RMs instituídas, poucas mantiveram seus entes em funcionamento, mesmo assim, precariamente. na instituição do consórcio uma forma simples e eficaz de promover a colaboração entre as cidades, particularmente num ambiente institucional que ainda não disponibilizava recursos, nem reconhecia, juridicamente, os arranjos horizontais. Enquanto os primeiros consórcios eram principalmente formas setoriais de articulação, nos anos 1990 também ocorreram, em algumas regiões, inovações no sentido de lançar mão de arranjos territoriais e multissetoriais. Ademais, em algumas poucas regiões a gravidade da crise econômica e do processo de reestruturação produtiva dos anos 1990 conscientizou os atores públicos e privados acerca da necessidade de criação de instituições alternativas de go- A maior parte dos órgãos metropolitanos vernança regional/intrametropolitana. Nessas criados ao longo tempo tem penetração so- experiências, uma série de arranjos informais mente na esfera técnica dos municípios, o que (câmaras, agências de desenvolvimento, etc.) limita sua efetividade. De acordo com Garson complementaram as estruturas existentes para (2007, 2009, p. 114), na maioria das vezes a le- a governança metropolitana e regional.7 gislação estadual gerou regiões com um núme- Apesar da fragilidade macroinstitucional ro grande de municípios heterogêneos, criando do cenário brasileiro, verificamos, ao mesmo um desafio adicional para proporcionar uma tempo, uma série de iniciativas mais recen- 6 cooperação voluntária. A abordagem embuti- tes que ocorrem no âmbito do processo de da no modelo estadualizado, isto é, a de coo- repactuação da Federação brasileira. A partir peração compulsória liderada pelo estado, esti- do ano de 2003, o governo nacional, por meio mulou contestação jurídica e um municipalismo de uma articulação entre o Ministério das Ci- autárquico. Por fim, a participação das esferas dades, o Ministério de Integração Nacional e não governamentais nos órgãos colegiados de a Subchefia de Assuntos Federativos da Casa decisão ainda está limitada. Civil da Presidência da República reinseriu o Além do modelo estadualizado, eviden- tema da gestão metropolitana na pauta da cia-se também um conjunto de arranjos hori- agenda política do país,o que acarretou um zontais de associativismo intermunicipal, cuja avanço concreto na dimensão institucional 420 Book CM v11_n22.indb 420 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 415-433, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:44 Novas governanças para as áreas metropolitanas ... que norteia (indiretamente) as regiões metro- envolvimento dos atores locais, quanto um politanas. Após várias discussões polêmicas, reconhecimento da heterogeneidade entre os o governo conseguiu criar e regulamentar a municípios que compõem as regiões metro- chamada Lei dos Consórcios Públicos (Lei nº politanas (Garson, 2007, 2009). Nas reuniões 11.107, de 6 de abril de 2005). A referida lei mais recentes do chamado Fórum das Entida- representou um avanço, principalmente em des Metropolitanas, plataforma de articulação função da precariedade jurídica dos consór- composta pelos organismos de planejamento cios existentes (de direito privado). Antes da metropolitano dos governos estaduais, foram lei, os consórcios estavam impossibilitados de discutidas as mais recentes iniciativas (a maio- prestarem garantias, de assumirem obrigações ria ainda com resultados incertos e embrioná- em nome próprio ou de exercerem atividades rios), particularmente as desencadeadas em de fiscalização, regulação e planejamento. A Minas Gerais, Pernambuco e Paraná, entre ou- lei ainda permite processos de repactuação e tros exemplos.9 consorciamento entre vários entes federados. No estado de Minas Gerais verificamos, Isso quer dizer que o governo estadual pode nos últimos anos, uma retomada do tema me- fazer parte de um consórcio de municípios, de- tropolitano, também impulsionada pela apro- sencadeando trajetórias potencialmente ricas ximação entre o governador e o prefeito da de aprendizagem e contando com elementos capital.10 Há um conjunto de reformas institu- de coordenação vertical e horizontal entre en- cionais em andamento, que conta com apoio tes federados. O governo federal aperfeiçoou, do governador e dos governos locais. A estru- também, o diálogo com os entes dos demais tura prevê uma assembleia metropolitana, um níveis de governo na busca de um processo de conselho deliberativo, uma agência de desen- repactuação federativa. Nesse sentido criou, volvimento e um fundo de desenvolvimento no ano de 2003, o Comitê de Articulação e metropolitano. O arranjo institucional de Belo Pactuação Federativa (CAF), composto por Horizonte é relativamente novo e seria ainda representantes do governo federal e das três prematuro para avaliações mais afirmativas.11 entidades municipalistas do país.8 O objetivo Conforme observamos, o protagonismo metro- do CAF é mobilizar os entes federativos, em politano ganha um impulso adicional em fun- geral, e os vários núcleos de poder dentro do ção da aproximação dos atuais governador e governo nacional em torno de um processo de prefeito da capital. Essa convergência política, repactuação da agenda metropolitana. Com no entanto, gera a dúvida de vir a se transfor- esse intuito, já foram organizadas várias reu- mar numa dependência ou, na pior das hipó- niões técnicas pautadas no tema da gestão teses, numa debilidade do próprio sistema. Há metropolitana. antecedentes de que esse papel positivo das Além da retomada pelo governo fede- lideranças pode se transformar num passivo e ral, presenciamos também um novo ativismo numa fragilidade do arranjo como um todo.12 da esfera estadual em relação ao tema me- Um aspecto positivo do arranjo embrionário tropolitano, sob uma base metodológica dife- da Grande Belo Horizonte é a preocupação rente da dos anos 1970, buscando tanto mais com o eixo territorial, principalmente por meio Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 415-433, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 421 421 17/3/2010 12:49:44 Jeroen Johannes Klink da integração entre os vários planos diretores Empresa Metropolitana de Transporte Urbano municipais e o plano integrado de desenvol- (EMTU) e os municípios, com pouca participa- vimento metropolitano. Reside aí uma possi- ção desses últimos. A relação contratual entre bilidade concreta de aglutinação de um con- as cidades e a EMTU ocorre por meio de convê- junto de atores públicos e privados em torno nios, com pouca transparência para o usuário, da execução de programas e de projetos de e baixa capacidade de gerar um sistema mais integração metropolitana. Entretanto, ainda integrado. se trata de um exercício ex-post ( mesmo as- O novo modelo utilizará efetivamente a sim desafiador), no qual os agentes buscam articular os diversos planos diretores locais à luz de um desenho metropolitano mais amplo. Resta saber se, num futuro próximo, o sistema será capaz de incorporar, ex-ante e no próprio processo de elaboração dos planos municipais, diretrizes em prol da eficiência coletiva no uso e ocupação do espaço metropolitano. Outra questão ainda aberta refere-se à capacidade efetiva do sistema de transformar o esforço de planejamento coletivo num conjunto de programas e projetos de transformação da realidade metropolitana de Belo Horizonte. Nesse sentido, o recém-criado fundo de desenvolvimento metropolitano terá de mostrar uma capacidade de alavancagem maior que o conjunto de fundos metropolitanos atualmente em vigor no cenário brasileiro. O governo do estado de Pernambuco, em parceria com os municípios da Região Metropolitana de Recife, busca avançar na construção de um consórcio público interfederativo de transporte público. A região metropolitana de Recife, com uma população de 3,7 milhões de habitantes, está em pleno processo de modernização e ampliação do seu sistema de transporte público, prevendo a construção de onze novos terminais e a reforma de mais dois até o ano de 2010. O atual modelo de gestão caracteriza-se pela convivência entre a lei dos consórcios públicos para criar uma au- 422 Book CM v11_n22.indb 422 tarquia regional interfederativa, com participação do governo de estado e dos municípios como sócios. As quotas de participação acionárias (que se relacionam com o direito a voto) no órgão superior de deliberação (o chamado Conselho Superior de Transporte) são baseadas nas viagens geradas em determinado município, enquanto a participação financeira é definida no contrato social da nova empresa e baseada em índices que levam em consideração o tamanho do orçamento de cada cidade. A expectativa do governo do estado é de que o novo sistema esteja operando a partir do segundo semestre de 2010. O governo do estado do Paraná está consciente do esgotamento do atual modelo de planejamento da Grande Curitiba e propõe, junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento e a outros parceiros, como o governo federal e os municípios da região metropolitana, a formatação de um programa de desenvolvimento metropolitano cujo eixo estruturante seria a retomada, sob bases mais amplas, de um sistema integrado de monitoramento e fiscalização do uso e ocupação do solo nas áreas mananciais, que fora elaborado anteriormente pela Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba (COMEC), organismo de planejamento metropolitano (COMEC, 2002). Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 415-433, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:44 Novas governanças para as áreas metropolitanas ... A parceria com o BID teria dois eixos. Primeiramente, o arranjo institucional para a região metropolitana deveria passar por um processo de reformulação. Nesse processo, o instrumento do consórcio público poderia, em Perspectivas recentes: as múltiplas governanças para as áreas metropolitanas brasileiras princípio, desempenhar um papel útil, desde que fosse complementado por instrumentos de participação não governamental, por um fundo metropolitano de caráter interfederativo, com participação das três esferas do governo e alimentado de acordo com um plano de rateio específico. Em segundo lugar, o planejamento integrado do uso e ocupação do solo e a efetiva implantação do sistema de fiscalização e monitoramento das áreas mananciais, com base em uma rede de atores públicos e privados envolvidos e afetados pela deterioração da qualidade da água na Grande Curitiba, deveriam inverter um cenário caracterizado pela Os debates mais recentes entre os formadores de opinião e gestores envolvidos na questão metropolitana tendem a apresentar certa dicotomia entre duas visões.13 Por um lado, uma vertente protagonizada principalmente pelos representantes dos órgãos de planejamento na esfera estadual, que defende um modelo com um viés estadualizado, de acordo com o qual a atribuição principal do planejamento, da gestão e da organização das regiões metropolitanas pertence à esfera estadual. De acordo com essa visão, a lei dos consórcios públicos pro- ameaça crescente ao abastecimento público porciona, inegavelmente, um fortalecimento de água na região metropolitana. Esse pla- institucional e jurídico dos arranjos colaborati- nejamento busca retomar um sistema mínimo vos horizontais existentes entre os municípios, de controle ex-ante da qualidade das águas mas não pode ser considerado um instrumento da região metropolitana, proporcionando, ao que substitui a prerrogativa da esfera estadual mesmo tempo, habitação de interesse social na matéria das regiões metropolitanas. A lei acessível, bem localizada e de boa qualidade também não permitiria a delegação de funções para os segmentos mais vulneráveis da região de planejamento para o consórcio, limitando metropolitana. a aplicação desse instrumento ao domínio da Apesar da consciência do governo do execução de serviços de interesse comum. Por estado da necessidade de uma estratégia me- fim, os representantes dos órgãos de planeja- tropolitana mais agressiva, a negociação com mento estadual receiam que a lei dos consór- o Banco sobre o programa não prosperou, cios públicos também sirva para o governo principalmente em função da dificuldade de federal intensificar cada vez mais o trânsito equacionar os conflitos intensos entre o go- direto entre os ministérios e as cidades, esva- verno do Estado e a cidade-polo de Curitiba ziando ainda mais as funções de planejamento (Klink, 2008b). da esfera estadual.14 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 415-433, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 423 423 17/3/2010 12:49:44 Jeroen Johannes Klink Por outro lado, há uma vertente, que setorial/territorial. Cabe ressaltar, por exem- poderíamos rotular de municipalismo regio- plo, a existência de arranjos colaborativos em nalizado, de acordo com a qual o consórcio setores como o transporte coletivo (por meio público representa um embrião de um novo de convênios entre os municípios e o Estado), modelo institucional para a governança metro- os recursos hídricos (via comitês de bacia ou politana. Nessa perspectiva, a flexibilidade e o comitês específicos para gerenciar programas grau de abertura da nova lei proporcionariam e projetos que contam com financiamento) 15 e um ambiente favorável à experimentação e à o desenvolvimento econômico local e regional aprendizagem, com novos arranjos mais am- (por meio de agências regionais, às vezes arti- plos de colaboração interfederativa, mas sem- culadas com participação ativa dos atores em- pre impulsionada pela vontade autônoma dos presariais e de segmentos da sociedade civil). municípios. Em várias regiões surgiram, também, arranjos O debate dicotômico mencionado amea- com certo grau de formalização – câmaras, ça produzir uma discussão, sem vencedores, fóruns e conselhos de desenvolvimento – para sobre qual é o melhor arranjo institucional pa- avançar no planejamento estratégico territo- ra as regiões metropolitanas. Ignora também a rial, articulando setores como meio o ambien- pluralidade de arranjos colaborativos existen- te, a infraestrutura urbana e o desenvolvimen- tes, que são moldados em função de um pro- to econômico, contando com participação ati- cesso contínuo de negociação e reestruturação va de atores não governamentais.16 entre escalas e atores. Ademais, considerando No Quadro 1, adaptamos a classifica- o tamanho e a heterogeneidade do espaço ção geral de arranjos colaborativos nas áreas brasileiro, o debate sobre os arranjos colabora- metropolitanas de Rodríguez e Oviedo (2001), tivos para a governança metropolitana assume mencionada anteriormente e baseada na di- complexidade ainda maior. ferenciação entre modelos supra versus inter- Mesmo reconhecendo o vácuo institucio- municipais, para descrever a complexidade do nal e a fragilidade dos arranjos que caracteri- cenário institucional brasileiro. Ao analisar o zam as regiões metropolitanas brasileiras até quadro, percebemos que os consórcios públi- hoje, presenciamos uma série de mecanismos cos e as regiões metropolitanas representam diferenciados de governança colaborativa. Um somente dois instrumentos dentro de um calei- dos exemplos mais emblemáticos, e ampla- doscópio complexo de arranjos colaborativos mente estudado na literatura sobre arranjos existentes nas áreas metropolitanas brasileiras. colaborativos foi o caso do ABC paulista, on- Classificamos esses arranjos de acordo com o de os atores sociais construíram um conjunto perfil de articulação governamental (isto é, in- de arranjos informais, mas com um forte em- termunicipal ou envolvendo várias escalas de basamento social, para lidar com os efeitos poder), e segundo o critério da presença de da crise socioeconômica que se abateu sobre atores não governamentais (um arranjo predo- a região (Reis, 2008). Além disso, verifica- minantemente governamental ou um mecanis- mos em diversas regiões metropolitanas uma mo de articulação com presença importante de proliferação de mecanismos de articulação atores não governamentais). 424 Book CM v11_n22.indb 424 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 415-433, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:44 Novas governanças para as áreas metropolitanas ... Quadro 1 – Uma classificação de arranjos colaborativos nas áreas metropolitanas brasileiras Arranjo governamental de múltiplas escalas Arranjo governamental intermunicipal Arranjo predominantemente governamental Setorial Territorial Consórcios públicos, convênios, grupo gestor interfederativo, contratos de gestão, financiamentos e repasse de recursos voluntários (transporte, habitação, saneamento, etc.) Consórcios de direito privado de saúde, educação, resíduos sólidos, etc.; consórcios públicos; acordos e convênios intermunicipais Consórcio público, região metropolitana (regulamentada de acordo com as constituições estaduais) Consórcios de direito privado para planejamento regional; consórcios públicos Arranjo com presença importante de atores não govenamentais Setorial Comitê de bacias, câmaras setoriais, conselhos, fundos e fóruns setoriais (habitação, etc.), grupo gestor setorial, unidades de esgotamento, etc. Agências de desenvolvimento econômico Territorial Câmaras, conselhos e fóruns regionais de desenvolvimento, grupo gestor de monitoramento e fiscalização de mananciais e bacias hidrográficas, etc. Agências de reconversão territorial(*) (*) Pouca presença no cenário institucional brasileiro. Evidentemente, conforme também obser- institucional dicotômico sobre o melhor arranjo vam autores como Lefèvre (2008), esses recor- (seja o consórcio, seja o arranjo estadualizado). tes são relativamente aleatórios e incompletos. Conforme constatamos também para o cenário No caso brasileiro, por exemplo, outro critério internacional, a arquitetura institucional que importante refere-se ao grau de formalização norteia a gestão e a organização das áreas do mecanismo de colaboração, pois vários ar- metropolitanas é composta por um conjunto ranjos informais podem desempenhar papel de arranjos colaborativos imperfeitos (second importante no processo de aprendizagem cole- best), cuja construção coletiva é objeto de um processo político contínuo de negociação de conflitos entre escalas e atores. Na conclusão, exploraremos algumas implicações deste cenário para o debate contemporâneo sobre as regiões metropolitanas no Brasil. tiva rumo às formas mais institucionalizadas de governança metropolitana. O quadro serve, entretanto, para mostrar que a agenda metropolitana brasileira é mais complexa que aquela proposta pelo debate Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 415-433, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 425 425 17/3/2010 12:49:44 Jeroen Johannes Klink elementos valiosos para gerar hipóteses mais Conclusão detalhadas sobre os motivos das fragilidades que caracterizam as estruturas de governança O arranjo que norteia a gestão, a organização e nas regiões metropolitanas brasileiras.17 Na o financiamento das áreas metropolitanas bra- análise anterior, trouxemos essencialmente a sileiras é frágil. Neste artigo, argumentamos perspectiva de um verdadeiro caleidoscópio de que não há um modelo ótimo e único de gover- arranjos colaborativos imperfeitos, com pontos nança metropolitana e que os próprios arranjos de entrada diferentes (bacias hidrográficas, institucionais mudam em função da dinâmica rios, favelas, sistemas de transporte, projetos mais ampla da sociedade como um todo. Os de infraestrutura com grande impacto de vi- convênios, contratos de gestão, comitês de zinhança, etc.). De acordo com esse prisma, o bacias, agências e câmaras de desenvolvimen- debate sobre o aperfeiçoamento dos modelos to interfederativas, entre outros exemplos, de gestão e de organização nas regiões me- são arranjos alternativos (e imperfeitos), cujo tropolitanas passa pela questão de como au- funcionamento, limites e potencialidades são mentar a eficiência coletiva, o funcionamento, raramente explorados nas pesquisas sobre go- o controle social e a equidade desses arranjos vernança regional e metropolitana. Nesse sen- incompletos/second best, e de como induzir as tido, é possível vislumbrar processos dinâmicos várias escalas e agentes nesse processo de re- de aprendizagem social, por meio dos quais os pactuação federativa em prol da melhoria das agentes desenham e executam uma série de governanças metropolitanas. programas colaborativos voltados à execução Em segundo lugar, não existem respostas de serviços de interesse comum, enquanto, ao fechadas e fáceis para essas perguntas sobre mesmo tempo, evoluem na direção de institui- a melhor tática para aperfeiçoar a gestão e ções e arranjos colaborativos enraizados numa a organização das áreas metropolitanas. 18 cultura metropolitana mais forte? Cabem aqui Entretanto, a análise anterior permite gerar dois blocos de observações. algumas hipóteses que podem ser exploradas Em primeiro lugar, as pesquisas sobre os em pesquisas posteriores. arranjos colaborativos não podem cair na ar- No que se refere ao papel da esfera fe- madilha de uma engenharia social-institucional deral, ela deveria voltar a desempenhar um superficial, e precisam ser complementadas por papel-chave nas áreas metropolitanas e induzir um arcabouço teórico mais robusto para enten- e mobilizar os agentes em torno de uma agen- der a dinâmica sociopolítica mais ampla que da de ações articuladas. Nesse sentido, vale consubstancia as novas governanças metropo- um destaque para o tema do financiamento litanas. Nesse sentido, tanto no âmbito da teo- para as regiões metropolitanas. Conforme já ria institucional (path dependency/trajetórias e observado por vários autores (Garson, 2009; rotas dependentes, custos transacionais, etc.) Rezende, Oliveira e Araújo, 2007), o cenário (Souza, 2003; Machado, 2007), como no da é pouco animador, pois as discussões mais teoria política e estruturalista do federalismo recentes sobre a reforma tributária basica- (Fiori 1995; Oliveira, 1995), podemos encontrar mente ignoraram as necessidades das regiões 426 Book CM v11_n22.indb 426 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 415-433, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:44 Novas governanças para as áreas metropolitanas ... metropolitanas. E, para agravar a situação, A atuação da esfera federal na arena desde a última reforma financeira de 1966, o metropolitana não pode, entretanto, acentuar federalismo fiscal evoluiu para um sistema re- um processo de crescente esvaziamento do go- lativamente rígido, com pouca margem de ma- verno estadual no pacto federativo em geral e nobra dos governos subnacionais nas decisões nas suas atribuições de organizar as áreas me- de alocação de recursos, e com uma estrutura tropolitanas em particular.20 Se, por um lado, de transferências intergovernamentais de bai- o arranjo cooperativo estadualizado, na sua xa capacidade de reação às mudanças no ciclo forma tradicional das regiões metropolitanas, macroeconômico e em seus efeitos espaciais representa fragilidade, é preciso reconhecer o (Rezende, 2009, pp. 2-3). papel-chave reservado à esfera estadual na or- Ao mesmo tempo, todavia, é inegável que o governo federal deixou de aproveitar um ganização de arranjos colaborativos no espaço metropolitano.21 conjunto de instrumentos financeiros de fo- Existem instrumentos alternativos para mento à pactuação metropolitana. O governo avançar nesse processo de pactuação para rein- poderia, por exemplo, lançar mão de uma es- serir a esfera estadual na agenda de organiza- tratégia mais agressiva de indução de arranjos ção e gestão territorial da área metropolitana. colaborativos, tanto integrando atores, escalas Nas várias áreas temáticas de responsabilidade e ações, ou por meio de recursos voluntários e compartilhada entre os entes federativos, por repasses negociados, quanto a partir da utiliza- exemplo, a própria União poderia estimular a ção das carteiras dos bancos de fomento, como cooperação interfederativa em torno de pro- a Caixa Econômica Federal, o Banco Nacional gramas e projetos de reconversão territorial de de Desenvolvimento e o Banco do Brasil. Outro grande impacto territorial (portos, ferrovias, tema delicado é a relativa rigidez de acesso dos estradas, recuperação de bacias, programas de governos subnacionais aos recursos nacionais implantação de redes de infraestrutura energé- e internacionais. Não somente inexistem meca- tica, etc.). Nesse cenário, a reinserção da esfe- nismos financeiros específicos para incentivar ra estadual na agenda metropolitana surge no o acesso ao crédito de arranjos colaborativos âmbito de um processo mais complexo e aber- interfederativos em geral, como também a re- to de aprendizagem institucional e social entre gulamentação dessa questão para as novas os agentes, cujo contorno não é pré-definido, instituições de governança em particular, co- mas que evoluirá a partir de uma agenda de mo a dos consórcios públicos, deixou lacunas negociação de conflitos e de execução de pro- significativas.19 gramas concretos. Jeroen Johannes Klink Economista pela Universidade de Tilburg, The Netherlands. Doutor em arquitetura e planejamento urbano pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Professor, pesquisador universitário e coordenador do Núcleo de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade Federal do ABC (São Paulo, Brasil). [email protected] Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 415-433, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 427 427 17/3/2010 12:49:44 Jeroen Johannes Klink Notas (1) Existem várias metodologias para determinar a área funcional de uma região metropolitana. Nos seus estudos territoriais, por exemplo, a OCDE costuma adotar uma definição com base na intensidade dos deslocamentos pendulares entre a área central e as cidades do entorno. (2) O fato curioso é que, conforme apareceu no diagnóstico territorial elaborado pela OCDE, a rivalidade entre a Prefeitura e a Comunidade Autônoma (CA) ocorre mesmo que o presidente da CA e o prefeito da cidade de Madri pertençam ao mesmo partido. O atual prefeito de Madri também já ocupou o cargo de presidente da comunidade autônoma. (3) Negri (2002) enfatiza o papel estratégico das forças sociais e políticas (o chamado “poder constituinte”) na construção coletiva de arranjos institucionais para a governança colaborativa. (4) Por exemplo, os municípios não dispunham de autonomia para deliberar sobre a decisão de entrar ou não no arranjo metropolitano. (5) O que chama a atenção é que a maioria dos arranjos segue o padrão institucional do modelo anterior, com a presença de conselhos deliberativos e consultivos, além de um fundo metropolitano. Na literatura institucional, este fenômeno de certa inércia institucional é analisado em termos do conceito de path dependency (trajetórias dependentes), isto é, as instituições de amanhã dependem parcialmente dos arranjos atuais e do passado. Ver North (1990). (6) No que se refere ao caso da RM de São Paulo, Figueredo e Marques (2001, p. 5) observam que: “o governo de estado de São Paulo, por sua vez, pouco ou nada fez para reavivar a gestão metropolitana, tanto pelo lado da política, quanto no que diz respeito à dimensão técnica. Em termos específicos, a Emplasa tem pouco poder, assim como baixíssima capacidade operacional. As duas últimas gestões pouco ou nada fizeram para mudar este quadro, ou dotar outra agência de capacidade de resolver a questão metropolitana”. (7) Neste sentido, o sistema de governança regional do Grande ABC, com um consórcio intermunicipal, uma câmara regional e uma agência de desenvolvimento (essas últimas duas instâncias contando com participação de empresas, sindicatos de trabalhadores e entidades não governamentais) representa um exemplo paradigmático. A respeito do caso do Grande ABC no contexto federativo, ver, por exemplo, Abrucio e Soares (2001) e Reis (2008). (8) A Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), a Confederação Nacional de Municípios (CNM) e a Associação Brasileira de Municípios (ABM). Nesse primeiro momento, o comitê contou com nove representantes do governo central (escolhidos dentre os órgãos com maior incidência sobre as políticas de desenvolvimento local), além de três representantes de cada entidade municipalista. (9) Várias destas iniciativas foram discutidas numa reunião de 11 de novembro de 2008, organizada pelo Fórum em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Ademais, alguns membros do Fórum apresentaram novas iniciativas no seminário nacional de planejamento regional e governança metropolitana, organizado no dia 27 de novembro pelo estado de Pernambuco. 428 Book CM v11_n22.indb 428 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 415-433, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:44 Novas governanças para as áreas metropolitanas ... (10) A reestruturação mais recente no sistema de governança metropolitana em Belo Horizonte foi amplamente discutida no seminário “Experiências internacionais e brasileiras sobre a governança metropolitana”, organizado no dia 10 de junho de 2009 pelas Universidades PUCMinas e de British Columbia (UBC-Vancouver). O referido seminário ocorreu no âmbito de um projeto de cooperação técnica entre Brasil e Canadá em torno do tema de novas governanças metropolitanas. Para mais informações, ver o site: http://www.chs.ubc.ca/consortia/events/ eventsP-20090610.html (11) Para uma comparação entre os arranjos da região metropolitana de Belo Horizonte e do ABC Paulista, ver Machado (2007). (12) Uma analogia pode ser feita com o caso do Grande ABC Paulista, onde o auge do planejamento estratégico regional ocorreu no âmbito da Câmara Regional do Grande ABC, em função da aproximação política entre o então governador Mario Covas e o engenheiro Celso Daniel, então prefeito da cidade de Santo André e presidente do Consórcio Intermunicipal. Sucessivas mudanças no quadro político, além da morte dessas lideranças, fizeram com que o planejamento e a execução de projetos regionais sofressem uma queda na qualidade e no ritmo de implantação. (13) Esse debate com certo viés dicotômico surgiu na reunião do Fórum das Entidades Metropolitanas de 11 de novembro de 2008, durante a qual um representante da Subchefia dos Assuntos Federativos (da Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais da Presidência da República) apresentou o funcionamento da nova lei dos consórcios públicos. (14) Esse medo não é sem fundamento. Um conjunto crescente de estudiosos aponta para certo esvaziamento financeiro e institucional da esfera estadual no federalismo brasileiro no cenário pós 1988. Nesse sentido, ver, por exemplo: Abrucio e Miranda (2001) e Rezende, Oliveira e Araújo (2007). Vale lembrar, também, que na fase de negociação da lei dos consórcios públicos surgiu um conjunto de conflitos e polêmicas, principalmente em torno da questão da titularidade dos serviços de saneamento básico. (15) Ver, neste sentido, a experiência do Grupo Gestor da Bacia de Beberibe (na Grande Recife), composto por organismos do Governo do Estado de Pernambuco, os municípios de Camaragibe, Olinda e Recife e diversas entidades da sociedade civil, que foi criado para melhorar a gestão dos programas que contavam como financiamento externo (tanto os programas financiados pelo Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), quanto os financiamentos internacionais). Para uma análise mais detalhada da experiência do comitê gestor de Beberibe, ver Denaldi, Klink e Souza (2009). (16) A Câmara Regional do Grande ABC, mencionada anteriormente, representa um exemplo de planejamento informal. Os chamados COREDEs (Conselhos Regionais de Desenvolvimento), criados pelo governo de estado de Rio Grande do Sul ao longo dos anos 1990, representam um instrumento de planejamento territorial formalizado. A principal atribuição dos COREDES é elaborar os planos estratégicos de desenvolvimento regional e contribuir como instância de regionalização do orçamento do estado. Para uma avaliação mais detalhadas do papel dos COREDES no estado de Rio Grande do Sul, ver, por exemplo, Rorato (2009). Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 415-433, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 429 429 17/3/2010 12:49:44 Jeroen Johannes Klink (17) Souza (2003) aplica o conceito de path dependency para analisar a persistência de um quadro de fragilidade na governança das áreas metropolitanas brasileiras. Machado (2007) compara os custos transacionais associados à formação de arranjos colaborativos no caso do ABC Paulista e da Grande Belo Horizonte. Na visão de autores como Oliveira (1995) e Fiori (1995), a principal fragilidade do pacto federativo brasileiro refere-se à ausência de mecanismos de solidariedade e de cooperação entre os entes federados. Os ajustes liberais, provocados pela abertura macroeconômica dos anos 1990, reforçaram as forças centrífugas da globalização sobre o território brasileiro em geral e sobre as regiões metropolitanas em particular. Consequentemente, nos anos 1990 presenciamos um quadro generalizado de guerra tributária e de processos de desregulamentação competitiva e predatória entre estados e municípios. Na visão de Fiori (1995), nos anos 1990 a Federação brasileira transformou-se, gradativamente, num pacto de mercadores, enquanto, no que se refere à guerra tributária, a relação entre governos e empresas configurouse numa espécie de leilão invertido. (18) Conforme também alertam vários autores, considerando a inserção subordinada do Estado-nação brasileiro no processo de globalização, é preciso reconhecer que o debate sobre a governança metropolitana não pode se limitar à engenharia institucional-social. O caráter incompleto da formação do Estado brasileiro implica uma série de obstáculos estruturais que dificultam avanços mais significativos na questão metropolitana no Brasil. Neste sentido, ver Ribeiro e dos Santos Jr. (2009). (19) Reside aqui uma hipótese importante para verificar a baixa disseminação da figura do consórcio público. (20) Na época, as polêmicas em torno da aprovação e negociação da lei do consórcio público ilustraram a preocupação dos governos estaduais com a articulação direta entre União e governos locais. Ver Dias (2006). (21) Neste sentido e, mesmo que timidamente, o PAC corretamente reforçou o papel dos governos estaduais quando estimulou a criação dos Gabinetes de Gestão Integrada (GGIs). Referências ABRUCIO, F. L. e SOARES, M. M. (2001). Redes Federativas no Brasil: Cooperação intermunicipal no Grande ABC. São Paulo, Fundação Konrad Adenauer. BOURNE, L. S. (1999). Alternative Models for managing metropolitan regions: The challenge for North American cities. In: INTERNATIONAL FORUM ON METROPOLIZATION. Santa Cruz, Bolivia. BRASIL (2004). Congresso. Câmara dos Deputados. Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior. A questão metropolitana no Brasil. 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Entre os obstáculos à cooperação destacam-se as dificuldades do sistema federativo brasileiro e a falta de instâncias de discussão e resolução de conflitos, a rigidez da estrutura fiscal da União, estados e municípios e a própria experiência anterior de gestão metropolitana. Abstract This article discusses the cooperation difficulties concerning the solution of common problems in Brazilian metropolitan regions. Although important according to demographic and economic indicators, among others, those territories do not receive the necessary attention from policymakers. Among the obstacles to cooperation, the article stresses the difficulties of the Brazilian federal system, the lack of institutions for discussing and solving problems, the rigidity of the fiscal structure of the Federal Government, as well as of States and Municipalities, and the previous experience of managing metropolitan regions in Brazil Palavras-chave: regiões metropolitanas brasileiras; cooperação; sistema federativo; estrutura fiscal; políticas urbanas. Keywords: brazilian metropolitan regions; cooperation; federal system; fiscal structure; urban policies. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 435 17/3/2010 12:49:44 Sol Garson a implantação do Plano Real, em 1994, quan- Apresentação do finalmente se estabiliza a moeda, porém num ambiente de altíssimas taxas de juros. A Apesar da indiscutível importância econômica deterioração das finanças públicas foi dramá- e do adensamento de problemas sociais, as tica. Os gestores perdiam qualquer condição regiões metropolitanas brasileiras ainda pade- de planejar o dia seguinte, mesmo nos estritos cem da falta de atenção dos que têm influência domínios de suas jurisdições. Nesse ambiente, na vida política nacional – aí incluídos não ape- pensar em estados coordenando municípios e nas os agentes públicos, mas também o setor em cooperação federativa – entre União, esta- privado e a sociedade que vive nos grandes dos e municípios seria um sonho, quando nada centros. Apenas recentemente se têm obser- porque jamais (ou talvez raramente) o haviam vado alguns movimentos no sentido de uma feito. visão do conjunto do território que orientem A partir de 1995, os estados passaram a uma ação coordenada, em substituição ao tra- instituir novas RMs ou a inserir novos municí- tamento fragmentado dos problemas comuns. pios nas regiões existentes. Sem nenhum crité- As primeiras 9 Regiões Metropolitanas rio muito claro, e muitas vezes movidos apenas – RMs foram criadas pela União, em 1973 e pela esperança de políticos locais de algum be- 1974, a partir da competência que lhe foi con- nefício, cada estado criou/expandiu RMs de for- ferida pela Constituição de 1967. Em 1988, no- ma tão particular que hoje temos um conjunto vos ventos sopravam e a coordenação federal extremamente diversificado de aglomerados, era identificada como autoritarismo. As RMs, composto por grupos de municípios com fortes sem mãe, ganharam vários pais, os estados, diferenças entre si, seja em aspectos econômi- que passavam a poder instituí-las, tendo como cos, seja em aspectos sociais. O Brasil tinha, condição, apenas, que fossem constituídas por em 31/3/2009, 358 municípios pertencentes agrupamentos de municípios limítrofes (Cons- a 24 RMs criadas por lei federal ou estadual, tituição Federal, § 3º do Art. 25). distribuídas em 18 estados.1 Apesar de legal- A mesma Constituição consagrou a au- mente instituídas, algumas dessas RMs não tonomia municipal, conferindo aos municípios podem ser consideradas, de fato, aglomerados o direito a sua auto-organização e anulan- urbanos metropolitanos, assim compreendidos do, na prática, a pouca capacidade de intervir os espaços urbanos que se caracterizam pela dos estados, que podiam pois instituir as RMs, forte densidade de pessoas e concentração de mas não tinham legitimidade política para atividades econômicas, cujos limites não coinci- administrá-las. Essas mudanças institucionais dem com os das jurisdições que os constituem. se passam num ambiente econômico cada vez Entre estes, circula diariamente um volumoso mais precário. A década de 80, que viu a nova fluxo de pessoas, de mercadorias e de servi- Constituição, assistiu também à edição de três ços. Caracterizam-se também esses espaços planos de estabilização econômica. Na sequên- pela existência de uma unidade principal, que cia, os anos 90 iniciavam-se com uma inflação se destaca pelo tamanho populacional e den- alucinante. Outros três planos se seguiriam, até sidade econômica, desempenhando funções 436 Book CM v11_n22.indb 436 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:44 Regiões metropolitanas – diversidade e dificuldade fiscal da cooperação complexas e diversificadas e relacionando-se brasileiro, considerando o federalismo como com outros espaços urbanos no país e no exte- uma forma de organização político-territo- rior. Estudo desenvolvido pela Rede Observató- rial do poder que combina autonomia com rio das Metrópoles, em que foram demarcados parceria.2 e classificados os espaços da rede urbana bra- A ciência econômica nos fornece subsí- sileira, identificou que os municípios que com- dios para a análise a partir, principalmente, da põem essas regiões diferem substancialmente Teoria do Federalismo Fiscal e da Nova Econo- entre si quanto à integração à dinâmica da mia Institucional – NEI. A Teoria do Federalismo aglomeração, entendida como o adensamento Fiscal oferece os conceitos necessários à aná- de fluxos econômicos e populacionais (Branco lise da situação fiscal dos entes federativos – et al., 2004, p. 7). Disso resultam unidades re- municípios, estados e União, no caso brasileiro, gionais bastante diferentes quanto ao efetivo considerando não apenas as competências tri- processo de metropolização, dificultando a butárias atribuídas conferidas a cada ente, mas identificação dos problemas comuns. também as regras que conformam a estrutura Diversidade e dificuldade de cooperação de transferências intergovernamentais, base metropolitana, este é o tema deste artigo. A do financiamento das ações – prestação de próxima seção oferece um pano de fundo das serviços e investimentos – necessárias à solu- abordagens teóricas que nos podem ajudar a ção dos problemas comuns. As dificuldades de pensar o tema da governança metropolitana coordenação intergovernamental estão na ba- no Brasil. A terceira seção traz indicadores que se de alguns dos obstáculos à cooperação. Os permitem avaliar a importância econômica e aspectos fiscais, por sua vez, devem ser quali- demográfica dos territórios metropolitanos e ficados à luz do ambiente institucional em que caracterizam sua estrutura fiscal, vis-à-vis aos se desenvolvem as relações federativas (Oates, municípios não metropolitanos. Na quarta 1994). A estrutura fiscal de uma federação é, seção, conclui-se, identificando os principais ela mesma, parte importante do ambiente obstáculos à coor denação e à cooperação institucional: por um lado, resulta da história metropolitana. econômica e política da federação e, por outro, traz restrições a serem consideradas em suas alternativas de desenvolvimento. A Nova Ação institucional coletiva e cooperação metropolitana Economia Institucional permite aprofundar a compreensão da natureza dos obstáculos que emergem do relacionamento fiscal federativo. Para North (1990), autor consagrado da A delimitação dos obstáculos à cooperação NEI, instituições são as regras do jogo, cons- em regiões metropolitanas requer uma abor- tituindo restrições que configuram a interação dagem interdisciplinar que busque, ao menos, humana. Por essa via, definem estruturas de contribuições na ciência política e na teoria incentivos políticos, sociais, econômicos para econômica. A primeira nos ajudará a identi- a ação de organizações, entendidas como gru- ficar as características do arranjo federativo pos de indivíduos unidos por algum propósito: Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 437 437 17/3/2010 12:49:44 Sol Garson partidos políticos, municípios, estados, firmas, custos e benefícios de agirem conjuntamente. sindicatos. Assim, a qualidade dos arranjos Nessa linha, as políticas públicas expressariam federativos é um produto das instituições, das o resultado de negociações para alcançar resul- regras que regulam as relações intergoverna- tados de interesse comum. mentais. Essas regras orientam a ação das or- Desafiando essa crença, Olson defende ganizações, a partir da existência – ou não – de que o indivíduo racional e centrado em seus instâncias de coordenação governamental pa- próprios interesses prefere a força da união a ra a discussão e negociação de soluções para seu esforço isolado, mas buscará, sempre que problemas comuns e resolução de conflitos. A possível, beneficiar-se do resultado da ação co- flexibilidade do arranjo facilita a adaptação a letiva sem incorrer em custo (Orenstein, 1993, mudanças nas condições econômicas (Moraes, p. 63). Dessa forma, não se poderia assegurar 2001). que os interesses comuns ao grupo seriam ob- O conceito de organizações de North po- jeto da ação coletiva, mesmo que houvesse de ser aplicado a governos locais – os municí- consenso sobre os benefícios potenciais. Olson pios brasileiros e as regiões metropolitanas – mostra que alguns indivíduos, percebendo que considerando-os como organizações ou conjun- usufruiriam de direitos sem precisar despender tos de organizações – grupos de indivíduos que esforços, não se engajariam na ação: são os poderão se unir por algum propósito – para as denominados free-riders. Restaria, então, dis- quais se definem estruturas de governança. A cutir de que forma a ação coletiva poderia ser coordenação e cooperação entre as organiza- incentivada e de que dependeria o seu sucesso. ções podem reduzir custos de transação – de Entre os requisitos importantes, estaria o tama- monitorar e fazer cumprir os acordos. Em re- nho do grupo, a diversidade de preferências, giões metropolitanas, a ação conjunta poderá a existência de mecanismos de coordenação resultar em ganhos de escala ou gerar meca- e os incentivos seletivos, que alcançariam os nismos de compensação de externalidades. membros de forma diferenciada. Estes pode- Considerada uma vertente da NEI, a Teo- riam ser positivos – retribuições materiais, por ria da Ação Coletiva explica os resultados espe- exemplo – ou negativos, sob a forma de coer- rados da ação coletiva, em função das motiva- ção sobre os membros que não cooperem. ções de grupos com interesses diversos (Olson, A partir da Teoria da Ação Coletiva no 1965). Para Nabli e Nugent, a questão central plano individual, pode-se derivar uma Teoria da da Teoria é a discussão de como motivações in- Ação Institucional Coletiva – TAIC, buscando dividuais conduzirão a ação de grupos – a ação incentivos à cooperação, agora não apenas de coletiva (Hardin, 1982, apud Nabli e Nugent, indivíduos, mas de organizações (no sentido de 1989, p. 1338). A Teoria da Ação Coletiva se North), em busca de benefícios comuns. Essas contrapôs à crença generalizada de que gru- organizações trabalhariam de forma coordena- pos com interesses comuns agiriam de forma da em busca de objetivos comuns. coordenada, na busca de soluções para essa A cooperação entre governos locais e en- comunidade. Acreditava-se que, agindo de for- tre estes e os demais níveis de governo numa ma racional, os membros do grupo avaliariam federação pode ser analisada com a aplicação 438 Book CM v11_n22.indb 438 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:44 Regiões metropolitanas – diversidade e dificuldade fiscal da cooperação da TAIC. Os governos seriam organizações, que brasileiro. Diferenças de porte e de densidade se engajariam – ou não – em ações coletivas, populacionais implicam prioridades diferentes, com o objetivo de obter um benefício que não para atender preferências diversas, podendo- alcançariam através da ação individual. Para se considerar os governos locais como uma isso, eles avaliariam os benefícios que auferi- agregação de preferências individuais. Se há riam da ação coordenada e os custos a incorrer grande diversidade de condições sociais indi- e cooperariam quando os benefícios espera- cando diferenças em preferências, será mais dos fossem maiores que os custos de negociar, difícil para os agentes políticos atenderem a monitorar e fazer cumprir os contratos políticos todas, dificultando a cooperação (Post, 2004, que se firmariam entre os governos. p. 71). Assim como no caso da cooperação indi- Os municípios são prestadores de ser- vidual, as condições de sucesso da AIC incluem viços diretos à população, por excelência. Na considerações sobre o tamanho do grupo, a di- busca de objetivos comuns, a cooperação pode versidade de suas preferências, vis-à-vis à iden- ser incentivada se acreditarem que extrairão tidade de objetivos e a possibilidade de esta- benefícios líquidos. A ação coordenada pode belecer incentivos seletivos para recompensar resultar em redução de custos na provisão do ou punir os que não se engajassem na ação. serviço, resultante de economias de escala que Outro elemento frequentemente considerado é derivam do uso mais intensivo de capacidade a presença de um líder forte na condução da produtiva. A coordenação não se limita aos ação coletiva. governos locais, mas aos governos estaduais Tratando-se de entes federativos, quanto e à União, evitando duplicação de esforços. O menores os custos de transação da ação cole- ganho a extrair da ação coletiva variará com tiva, maior a probabilidade de cooperação. O as características dos bens ou serviços e a di- número de jurisdições, as condições econômi- visão institucional de competências. Tome-se o cas dos territórios, o tamanho de sua popula- exemplo dos transportes, que implicam altos ção e a heterogeneidade das condições em que custos fixos e, no Brasil, têm uma clara atribui- vive são alguns dos elementos importantes na ção de competências, relacionada ao território determinação desses custos. sob sua jurisdição (aos municípios compete Um número maior de governos locais im- gerir o transporte no âmbito de sua jurisdição, plicaria custos mais altos de monitoramento. etc). A atividade isolada dos entes traz, sem Um maior grau de homogeneidade econômica dúvida, elevado desperdício. Um mesmo ser- poderia contribuir para a cooperação, uma vez viço pode comportar a cooperação apenas em que os governos locais constituintes das regiões algumas de suas atividades. Na área da saúde, metropolitanas “partilhariam um mesmo desti- a divisão de atribuições é incentivada quando no” (Lefèvre, 2004). Embora se pudesse espe- se trata de serviços de alta complexidade, que rar que o grau de homogeneidade econômica requerem maior quantidade de capital físico e entre o centro e a periferia metropolitana fosse humano (habilidades específicas). Este não é o favorecido pela metropolização, nada se pode caso da atenção básica, como as vacinas. Há afirmar sobre isso, particularmente no caso ainda os casos em que a falta de cooperação Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 439 439 17/3/2010 12:49:44 Sol Garson pode até implicar resultado nulo da ação de escala deveriam ser construídas sobre a individual, como na vigilância sanitária. É im- totalidade do território, em lugar de parcelas portante observar que, num ambiente de divi- desconectadas. Esse é o caso dos projetos de são parcial do trabalho, a falha de um governo infraestrutura urbana, que deveriam contar em cumprir suas responsabilidades pode one- com transferências intergovernamentais ou li- rar o conjunto: se a prevenção à saúde é defi- nhas especiais de crédito para o conjunto dos ciente, os males se agravam e sobrecarregam governos locais participantes. as unidades de alta complexidade. A regulação estadual e federal pode A cooperação metropolitana pode contar ser utilizada como instrumento para induzir a com elementos conjunturais favoráveis. Esse é ação coordenada, reduzindo custos de transa- o caso de líderes inovadores, ainda que ajam ção. Esse é o caso da nova Lei de Consórcios, em busca de ganhos pessoais. Schneider, Teske no Brasil, que pode estimular a cooperação e Mintrom (1995, apud Post) denominam estes setorial (embora não se deva esperar que dê líderes “empresários políticos”. Atuando em conta da coordenação metropolitana em sua arenas políticas, ou “mercados”, podem ser totalidade). O novo marco legal poderá con- fundamentais na resistência posta por servi- tribuir para reduzir os custos de transação da dores ou sindicatos à possibilidade de coope- AIC, conferindo segurança jurídica às ações ração (Post, 2004, p. 79). No caso da Grande conjuntas implementadas pela União, estados Londres, o Prefeito K. Livingstone contribuiu e municípios. No Brasil, os estados dispõem de forma essencial para o sucesso do projeto de parte do ICMS, distribuído segundo lei do metropolitano, sendo reconhecido como re- próprio estado. Os critérios de distribuição de presentante legítimo dos interesses da região recursos pela lei estadual podem incentivar (Lefèvre, 2004). a cooperação municipal, particularmente em Para Olson, os custos da ação coletiva áreas metropolitanas. voluntária em pequenos grupos são menores. Outros elementos podem ser citados co- A expansão do grupo demanda uma terceira mo redutores de custos de transação e incen- parte para absorver os custos de organização, tivadores da cooperação. Associações de mu- aplicar a coerção ou oferecer incentivos seleti- nicípios que produzem informações atualizadas vos que reduzam os custos de transação (Olson, para seus participantes e promovem a discussão 1965 apud Feiock, 2004). Num país federativo de problemas comuns, programas de treina- como o Brasil, o governo federal e os governo mento que estimulam a troca de experiência, estaduais deveriam ter um papel importante na criando redes de cooperação, ainda que infor- indução da cooperação através de incentivos mais, são exemplos. seletivos positivos ou mesmo pela coerção. Po- A cooperação nas ações sobre o território líticas setoriais federais ou estaduais em áreas metropolitano não se deve se restringir à ação metropolitanas, em que ações desenvolvidas pública. Governos são um elemento necessário por governos locais mais frequentemente ge- à governança, mas não suficiente. Para Jouve ram externalidades ou apresentam economias e Lefèvre, passou-se da era do governo à da 440 Book CM v11_n22.indb 440 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:45 Regiões metropolitanas – diversidade e dificuldade fiscal da cooperação governança, onde o desenho e implementa- de cada RM, a população dos municípios-nú- ção de políticas públicas passa a contar com cleo e dos demais e evidencia a importância a participação da sociedade e do setor privado da RM em seu estado e do município-núcleo (Jouve e Lefèvre, 1999, p. 20). na respectiva região. Dentre o conjunto, as 5 Os atores privados que tenham interes- RMs mais populosas abrigam 60% do total, ses em negócios que ultrapassem as fronteiras em 147 municípios. Comparando com a po- de uma jurisdição poderão atrair o interesse pulação de estado, em 9 delas, a população do setor privado, facilitando a cooperação metropolitana alcança mais que 39% do total entre os entes federativos envolvidos. Nesse estadual. A concentração no município-núcleo caso, o setor privado será a terceira parte que é também uma característica: em 13 RMs, estimulará a cooperação: uma câmara de co- mais de 60,0% da população nele se encon- mércio, de indústria, uma grande firma esta- tra. São territórios, em geral, de elevadíssima belecida no local, por exemplo (Feiock, 2004, densidade demográfica, o que tende a elevar p. 9). A participação do setor privado, por sua o custo de prestação de serviços. Outro aspec- vez, é delimitada pela atividade regulatória do to importante é a convivência, em uma mesma governo. RM, de municípios bastante distanciados em porte populacional. Na RM de Belo Horizonte (incluindo o Colar Metropolitano), 17 dos 48 Os municípios metropolitanos na federação brasileira municípios têm menos de 10.000 habitantes e outros 17 não superam 50.000 habitantes. Na RM de Curitiba, 5 municípios têm menos de 10 mil habitantes e outros 12 não superam 50 mil Aspectos demográficos habitantes. A diferença em porte populacional tem, entre outros impactos, rebatimento direto na A importância dos municípios que compõem estrutura fiscal, uma vez que a transferência as regiões metropolitanas pode ser avaliada, federal mais importante – do FPM – beneficia entre outros indicadores, pela magnitude de os pequenos municípios, em particular, das re- sua população e da atividade econômica, bem giões mais pobres. As diferenças em porte po- como pela estrutura fiscal que reflete, de um pulacional e a disparidade do município-núcleo lado, as demandas a que está submetido e, de em relação aos demais colocam em situação outro, a magnitude e variedade de recursos à de conflito municípios de uma mesma região, sua disposição.3 particularmente na esfera fiscal: enquanto os De acordo com a Contagem do IBGE de maiores municípios lutam por expandir sua 2007, neles vivia cerca de 40,0% da população receita própria, os pequenos tendem a acei- brasileira. A Tabela 1 apresenta a população tar barganhas que lhes ofereçam ganhos em das 24 RMs. Destaca o número de municípios transferências intergovernamentais.4 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 441 441 17/3/2010 12:49:45 Sol Garson Tabela 1 – População 2007 Estados, regiões metropolitanas, municípios-núcleo e periferia em 1.000 hab. UF AL Região Metropolitana Nº de municípios Total Estado (A) Total RM (B) Municípionúcleo (C) Periferia (D) RM/ Estado (B)/(A) Núcleo/ Total RM (C)/(B) Periferia/ Total RM (D)/(B) Maceió 11 3.037 1.089 874 215 35,9 80,2 19,8 AM Manaus 8 3.222 1.897 1.612 284 58,9 85,0 15,0 AP Macapá 2 587 436 344 92 74,2 79,0 21,0 BA Salvador 12 14.081 3.676 2.893 783 26,1 78,7 21,3 CE Fortaleza 13 8.185 3.437 2.431 1.005 42,0 70,8 29,2 7 3.352 1.625 314 1.311 48,5 19,3 80,7 ES Grande Vitória 13 5.647 2.008 1.245 763 35,6 62,0 38,0 MA Grande São Luís GO Goiânia 7 6.119 1.284 958 326 21,0 74,6 25,4 MA Sudoeste do Maranhão 8 6.119 325 230 95 5,3 70,7 29,3 MG Belo Horizonte 48 19.274 5.450 2.413 3.037 28,3 44,3 55,7 MG Vale do Aço 26 19.274 601 238 362 3,1 39,7 60,3 PA Belém 5 7.066 2.044 1.409 635 28,9 68,9 31,1 PB João Pessoa 9 3.641 1.050 675 375 28,8 64,3 35,7 14 8.485 3.655 1.534 2.121 43,1 42,0 58,0 26 10.285 3.166 1.797 1.369 30,8 56,8 43,2 PR Londrina 8 10.285 742 498 244 7,2 67,1 32,9 PR Maringá 13 10.285 571 326 245 5,5 57,1 42,9 RJ 17 15.420 11.335 6.093 5.241 73,5 53,8 46,2 9 3.014 1.255 774 481 41,7 61,7 38,3 31 10.583 3.959 1.421 2.538 37,4 35,9 64,1 4 1.939 760 520 239 39,2 68,5 31,5 PE Recife PR Curitiba Rio de Janeiro RN Natal RS Porto Alegre SE Aracaju SP Baixada Santista 9 39.828 1.606 418 1.188 4,0 26,0 74,0 SP Campinas 19 39.828 2.635 1.039 1.596 6,6 39,4 60,6 SP São Paulo 39 39.828 19.226 10.887 8.340 48,3 56,6 43,4 73.829 40.944 32.886 Total 358 Total Brasil 183.987 Total RM/Brasil (%) 40,1 Fonte: IBGE – Contagem 2007. Importância econômica com 85,3% do PIB estadual, dos quais apenas a capital participa com 95,5%. Em São Paulo, Responsáveis, em 2006, por 52,0% do PIB , os as três RMs concentram mais de dois terços municípios pertencentes a RMs geravam 49,0% da economia estadual. A liderança do muni- do valor agregado bruto da indústria e 54,2% cípio-núcleo da RM é marcante: em 15 casos, do setor serviços. A concentração econômica o núcleo é responsável por mais de 60,0% do é ainda maior que a populacional, como se ob- PIB da RM e, em 20, por mais de 50,0%. As serva na Tabela 2. Entre as 24 RMs, 10 concen- diferenças econômicas, em geral, se traduzem tram mais da metade da economia estadual. na estrutura fiscal, uma vez que os municípios- 5 Os 8 municípios da RM de Manaus liderando, 442 Book CM v11_n22.indb 442 núcleo costumam concentrar a atividade de Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:45 Regiões metropolitanas – diversidade e dificuldade fiscal da cooperação Tabela 2 – Produto Interno Bruto 2006 Estados, regiões metropolitanas, municípios-núcleo e periferia em R$ milhões correntes Valor UF AL Região Metropolitana Total Estado (A) Total RM (B) Participação percentual Municípionúcleo (C) Periferia (D) RM/Estado (B)/(A) Mun.núcleo/ Total RM (C)/(B) Periferia/ Total RM (D)/(B) 15,9 Maceió 15.753 8.304 6.981 1.323 52,7 84,1 AM Manaus 39.166 33.427 31.916 1.510 85,3 95,5 4,5 AP Macapá 5.260 4.130 3.365 765 78,5 81,5 18,5 BA Salvador 96.559 48.677 24.072 24.604 50,4 49,5 50,5 CE Fortaleza 46.310 29.457 22.538 6.920 63,6 76,5 23,5 ES 52.782 33.399 16.291 17.109 63,3 48,8 51,2 57.091 21.941 15.872 6.069 38,4 72,3 27,7 12.010 11.217 793 42,0 93,4 6,6 1.670 1.353 317 5,8 81,0 19,0 80.601 32.725 47.876 37,5 40,6 59,4 8.635 4.949 3.686 4,0 57,3 42,7 Grande Vitória GO Goiânia MA Grande São Luís MA Sudoeste do Maranhão MG Belo Horizonte MG Vale do Aço 28621 214.814 PA Belém 44.376 15.680 12.520 3.160 35,3 79,8 20,2 PB João Pessoa 19.953 9.283 5.967 3.316 46,5 64,3 35,7 PE 55.505 36.124 18.318 17.806 65,1 50,7 49,3 55.829 32.153 23.676 40,8 57,6 42,4 9.229 6.612 2.617 6,8 71,6 28,4 7.091 5.276 1.815 5,2 74,4 25,6 275.363 184.373 127.956 56.417 67,0 69,4 30,6 20.557 10.659 7.508 3.151 51,9 70,4 29,6 156.883 71.913 30.116 41.797 45,8 41,9 58,1 15.126 7.365 5.030 2.335 48,7 68,3 31,7 30.230 16.129 14.101 3,8 53,4 46,6 Recife PR Curitiba PR Londrina 136.681 PR Maringá RJ Rio de Janeiro RN Natal RS Porto Alegre SE Aracaju SP Baixada Santista SP Campinas SP São Paulo Total RMs Total Brasil 802.552 2.083.351 62.657 23.625 39.032 7,8 37,7 62,3 450.605 282.852 167.752 56,1 62,8 37,2 1.233.290 745.342 487.948 2.369.797 Total RM/Brasil (%) 52,0 Fonte: IBGE. serviços, constituindo uma base tributária mais pobres entre sua população e mortalidade in- ampla para a arrecadação do ISS e, por vezes, fantil relativamente elevada. suscitando comportamentos hostis dos vizinhos, que se engajam em guerra fiscal. De acordo com Lefèvre (2004, p. 25), a dominação espacial, demográfica e econômica Vale observar, por outro lado, que não de uma cidade central (Berlim, Montreal, Roma necessariamente um PIB per capita mais alto e Toronto, em países da OCDE) tem certamente se traduz em melhores condições de vida pa- impacto sobre a possibilidade de desenvolver ra a população. São Francisco do Conde, na um projeto metropolitano, entendido como RM de Salvador, é o município com maior PIB a base estratégica pela qual a superação da per capita do Brasil, tinha, em 2000, 55% de fragmentação dos atores possibilita responder Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 443 443 17/3/2010 12:49:45 Sol Garson a problemas e orientar a ação coletiva. É difícil, posicionamento político quanto à disputa por segundo o autor, estabelecer se esse impacto recursos. será positivo ou não, tudo dependendo do contexto metropolitano. Reflexo de sua economia, os municípiosnúcleo têm a melhor posição, em particular no ISS, seguido pelo ICMS.8 Embora a maior participação de tributos próprios e de transferência Finanças metropolitanas do ICMS lhe confira certa flexibilidade – destes, 40% são destinados à saúde e à educação – as Esta seção apresenta a estrutura fiscal dos mu- transferências intergovernamentais prevalecen- nicípios metropolitanos, comparando-a com a tes – SUS e Fundeb – são totalmente vincula- dos demais municípios brasileiros. Além disso, dos, tornando seu orçamento mais rígido. No evidencia as diferenças entre municípios-núcleo que diz respeito à receita de capital, os valores e os demais, a que denominaremos periferia são pouco significativos, indicando que os inves- metropolitana. A construção do banco tomou timentos devam ser financiados pela poupança por base os dados disponibilizados pela Secre- corrente que consigam realizar a cada ano, após taria do Tesouro Nacional – STN, do Ministério cobertas as despesas com o serviço da dívida. da Fazenda, no FINBRA e foram complementa6 das por informações de outras fontes. Nas cidades periféricas, as receitas próprias são relativamente mais baixas, denotan- Como regra geral, o orçamento de um do uma menor base tributária e, pode-se supor, município é afetado pelo tamanho e compo- uma menor exploração das bases existentes. O sição da base econômica, pelo tamanho da componente de destaque é a transferência do população, pelo fato de ser ou não a capital ICMS, relacionado em muitos casos à existên- do estado e pela capacidade de se habilitar e cia de algumas unidades produtivas, cujo valor cumprir exigências necessárias ao recebimen- agregado beneficia o município no rateio da to de transferências do estado e do governo cota-parte desse imposto. Os municípios perifé- federal (Rezende e Garson, 2006). A impor- ricos guardam substanciais diferenças entre si, tância dos municípios metropolitanos em ter- havendo aqueles muito pequenos, que têm nas mos de população e atividade econômica se transferências redistributivas, como a do FPM, reflete em sua estrutura fiscal: em 2007, os sua base de financiamento. Mais que nos mu- municípios metropolitanos foram responsá- nicípios-núcleo, as transferências totalmente veis por mais de 50% da receita corrente, e vinculadas do SUS e Fundeb alcançam 17,5% por três quartos dos tributos de todos os mu- do total, a que se soma parte das Outras Trans- 7 nicípios brasileiros. Entre os 358 municípios ferências Correntes, em geral fortemente vin- metropolitanos, os 24 municípios-núcleo arre- culadas – CIDE, convênios. Embora em melhor cadaram 62% da Receita Corrente e 75% da situação que os municípios-núcleo, também a Receita Tributária. A composição das receitas periferia tem pouco acesso a receitas de capi- dos três grupos – núcleos, periferia e demais tal, em particular a operações de crédito, ainda municípios não metropolitanos – evidencia di- que, em geral, seu endividamento seja mais ferenças que condicionam suas prioridades e baixo que o dos municípios-núcleo. Da mesma 444 Book CM v11_n22.indb 444 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:45 Regiões metropolitanas – diversidade e dificuldade fiscal da cooperação forma que nos núcleos, o financiamento de boa parcela do rateio da cota – parte do ICMS, seus investimentos depende da capacidade de esses municípios, em geral, têm fraca base tri- gerar poupança corrente a cada exercício. butária, o que não lhes garante receita própria A escassez de recursos de operações de e, por serem de grande porte e situados no Su- crédito dificulta o planejamento de projetos deste e no Sul, têm menos acesso ao FPM. de longo prazo, particularmente no caso de No caso dos municípios não metropolitanos, as receitas próprias são bem mais reduzidas, dependendo fortemente de taxas e da receita do Imposto de Renda Retido na Fonte, que compõem as Outras Receitas Tributárias. A significativa presença do Fundeb denota a maior municipalização do ensino (no Norte e Nordeste, é maior a municipalização do ensino fundamental). Destacam-se, em termos relativos, as transferências de capital, seja por convênios para a execução de políticas públicas, seja por emendas parlamentares, para a execução de projetos pontuais. infraestrutura, que exigem volumes por vezes vultosos e desigualmente distribuídos no tempo. Mesmo no caso de maior fluxo de transferências de capital, como ocorre em municípios menores, em geral, a situação não seria muito melhor, uma vez que estas, em geral, estão vinculadas ao orçamento do ano. Outro ponto a destacar é a situação desfavorável de municípios de porte médio, com presença relativamente forte nas periferias metropolitanas. Salvo o caso de disporem de uma unidade industrial, que lhes garanta uma Tabela 3 – Composição da Receita Municípios metropolitanos e não metropolitanos – 2007 em R$ milhões correntes Rubrica Receita Total Total Brasil Metropolitano Núcleo Periferia Demais municípios 216.345 57.912 35.779 122.654 100,0 100,0 100,0 100,0 96,8 97,9 97,0 96,2 21,3 36,5 19,8 14,5 IPTU 5,5 10,6 6,3 2,8 ISS 9,0 18,4 8,2 4,9 Outras Receitas Tributárias 6,8 7,5 5,3 6,9 61,8 43,6 63,0 70,0 FPM 15,3 4,6 11,1 21,6 SUS 8,2 9,3 6,3 8,3 ICMS 17,3 14,7 24,7 16,3 FUNDEB Receita Corrente Receita Tributária Transferências intergovernamentais 11,4 6,9 11,2 13,7 Outras Transf. Intergov. 9,6 8,2 9,7 10,2 Demais Receitas Correntes 13,7 17,8 14,3 11,6 3,2 2,1 3,0 3,8 Operações de Crédito 0,5 0,5 0,5 0,6 Transferências de Capital 2,2 0,9 2,1 2,9 Outras Receitas de Capital 0,4 0,6 0,4 0,3 Receita de Capital Fonte: Finbra/STN, TCE’s, Secretarias Estaduais de Fazenda, Datasus. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 445 445 17/3/2010 12:49:45 Sol Garson Tabela 4 – Composição da Despesa Municípios metropolitanos e não metropolitanos – 2007 em R$ milhões correntes Rubrica Total Brasil Município-núcleo Periferia Demais municípios 210.545 57.189 35.329 118.027 100,0 100,0 100,0 100,0 86,9 87,5 85,0 87,3 41,8 35,5 42,5 44,7 Juros e Enc. da Dívida 1,7 4,8 0,7 0,5 Outras Desp. Correntes 43,4 47,2 41,9 42,1 13,1 12,5 15,0 12,7 11,2 10,5 13,1 11,0 1,8 2,1 1,8 1,7 Despesa total Despesa Corrente Pessoal Despesas de Capital Investimento + Inversão Amortização da dívida Fonte: Finbra/STN, TCE’s, Secretarias Estaduais de Fazenda, Datasus. Do lado das despesas, a divisão entre depende, entre outros fatores, do tamanho do despesas correntes e de capital é similar, mas grupo, da diversidade de preferências, da exis- a menor participação dos investimentos é dos tência de mecanismos de coordenação e da municípios-núcleo, que destinam cerca de presença de incentivos seletivos. 7% das despesas ao serviço da dívida (cerca Conforme anteriormente comentado, a de 2,4% nos demais grupos). Além disso, são proliferação de RMs implicou conferir condição estes municípios que menos recebem, relativa- legal a grupos bastante diferenciados. De fa- mente, transferências de capital. A participa- to, diversas Regiões Metropolitanas hoje exis- ção relativamente maior de Outras Despesas tentes, dificilmente podem ser caracterizadas Correntes em municípios-núcleo pode estar como aglomerados urbanos metropolitanos. ligada, em parte, à maior terceirização de ser- Além disso, a constante inclusão de municí- viços. Mais provavelmente, no entanto, decorre pios, ampliando o tamanho do grupo, muitas de pagamentos de prestadores de serviços por vezes sem critério claro, afeta a legitimidade conta da gestão plena do SUS, o que explica funcional desses territórios. também a forte presença de recursos do SUS As diferenças de condições demográficas e econômicas e seu rebatimento fiscal fazem entre as receitas.9 supor prioridades diversificadas, que dificultam a constituição de uma identidade metropolitana. A concentração de população e atividade Considerações finais econômica, em particular no município-núcleo, pode dificultar o diálogo e a ação conjunta en- Na primeira seção deste artigo, trabalhamos tre os municípios de uma região. Entre outros com os conceitos de ação institucional coletiva aspectos, está a distribuição de poder decisório – AIC para discutir os obstáculos à cooperação sobre que ações realizar e os critérios de ra- em regiões metropolitanas. O sucesso da AIC teio dos ônus das ações conjuntas. Em recente 446 Book CM v11_n22.indb 446 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:45 Regiões metropolitanas – diversidade e dificuldade fiscal da cooperação mudança da legislação da Região Metropoli- traduzem em prioridades diferenciadas. Por ou- tana de Belo Horizonte, os municípios de Belo tro lado, a continuidade do espaço econômico e Horizonte, Betim e Contagem passaram a dis- social, característica dos aglomerados urbanos por de maior peso na composição do Conselho metropolitanos, implica externalidades econô- Deliberativo de Desenvolvimento Metropolita- micas e acena com a possibilidade de ganhos no, importante órgão de gestão da região. de escala, ressaltando a importância da coope- Em municípios pequenos, em geral forte- ração na solução de problemas comuns. mente dependentes da União, a realização de Problemas comuns em RMs dizem investimentos depende fortemente de transfe- respeito sobretudo à infraestrutura urbana – rências de capital (federal, no mais das vezes) saneamento, habitação, transporte, por exemplo, e está atrelada ao orçamento do exercício. Seu áreas que exigem capacidade técnica específica engajamento em ações coletivas de prazo mais e de planejamento, além de comprometimento amplo será objeto da desconfiança dos municí- de recursos no longo prazo. Esse caráter de pios maiores. Estes, por sua vez, padecem da longo prazo gera incerteza, elevando os custos pouca flexibilidade para decidir onde alocar re- de transação e desincentivando a cooperação. cursos: a forte vinculação de receitas lhes deixa Em um aglomerado urbano metropolitano onde pouca capacidade para escolher. prevalece a heterogeneidade, os municípios A falta de legitimidade política dos es- constituintes podem ser diferentemente tados, enfraquecidos em sua capacidade de afetados por um mesmo problema, atribuindo coordenação, os coloca, até mesmo, como importância diferenciada a sua resolução. Eles competidores de seus próprios municípios na ponderarão o ônus esperado da ação cooperada busca de recursos para infraestrutura urbana, perante sua situação fiscal. O caminho para a por exemplo. cooperação passa a depender de instituições Da falta de políticas urbanas coordena- que ofereçam os incentivos seletivos – das pelo governo federal resulta a ausência de positivos ou negativos – que estimulem a ação incentivos seletivos que estimulassem a coo- coordenada. A construção dessas instituições, peração entre os três níveis de governo nos ter- por sua vez, é afetada pelas próprias regras que ritórios metropolitanos. restringem as relações intergovernamentais. A breve caracterização dos municípios No que diz respeito ao caso brasileiro, o metropolitanos, objeto da seção anterior, deixa arcabouço institucional do federalismo tem-se clara a diversidade de condições que prevalece mostrado inadequado para lidar com as desi- nos territórios das RMs oficiais, onde convivem gualdades regionais. O processo de descentra- grandes metrópoles, junto a uma multiplicida- lização federativa não foi acompanhado pelo de de pequenos municípios, muitos originários desenvolvimento de instituições que estimulem do intenso processo de desmembramento, que a cooperação entre os entes da federação e de apenas recentemente parece ter sido estan- fóruns de negociação e resolução de conflitos. cado. Diferenças em porte populacional e em Identificando a descentralização com municipa- nível de atividade econômica se traduzem por lização, os municípios assumiram uma postura estruturas fiscais diversas que, por sua vez, se autárquica. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 447 447 17/3/2010 12:49:45 Sol Garson O conceito de path dependence aplicado sua vez, não tem privilegiado a ação coordena- à mudança institucional (North,1990) ajuda a da. Até o presente, vale lembrar, poucos foram compreender o tratamento conferido à questão os casos em que as políticas públicas se estru- metropolitana no Brasil, destacando os condi- turaram com visão territorial, exceção feita à cionantes históricos e os aspectos institucio- política de saúde. Ao lado disso, a política de nais que permitem compreender os obstáculos metas fiscais, implementada a partir do final da à cooperação em regiões metropolitanas. Esses década passada, resultou em forte contenção obstáculos devem ser buscados na história das do crédito público, que poderia se constituir em nossas relações federativas, porque é a partir instrumento para coordenar esforços em torno dela que poderíamos, por um lado, compreen- de projetos que ultrapassassem os limites de der como foram se constituindo e, por outro, cada jurisdição. quais as alternativas para removê-los, ou ao O estudo de experiências de gestão em menos para atenuá-los. A postura autárquica outros países deixa claro que não existe um dos municípios e a falta de políticas urbanas e único modelo de gestão metropolitana. As regionais limitaram o desenvolvimento de insti- dificuldades são inúmeras e a construção de tuições para atuar sobre os problemas comuns formas de cooperação parece ser uma obra em que afetam os territórios metropolitanos . andamento. As soluções variam a cada país Do lado dos estados, o agravamento de e, mesmo dentro de um país, elas variam no sua situação fiscal e de endividamento ao lon- tempo: é o caso de Toronto, no Canadá, que go da década de 90 resultou em uma estru- passa de um modelo de dois níveis, com go- tura de intensa rigidez fiscal. Analisando as verno metropolitanos convivendo com gover- relações entre estados e municípios por meio nos municipais para unificação na Cidade de das transferências intergovernamentais, fica Toronto. Enfim,as respostas são específicas a evidente que, com raras exceções, os esta- cada país e evoluem no tempo. Um ponto, no dos não desenvolvem, de forma permanente, entanto, fica claro: a estrutura fiscal, de que políticas públicas junto a seus municípios. decorrem as alternativas de financiamento das Pode-se até mesmo identificar casos de com- ações em território metropolitano, é parte es- petição por recursos federais. As dificuldades sencial do desenho de soluções para os pro- na área fiscal se somam à falta de legitimi- blemas metropolitanos. dade atribuída aos estados e consagrada pela Embora tenhamos focalizado, neste arti- condição de ente federativo conferida pela go, a necessidade da cooperação intergoverna- Constituição de 1988, que retirou dos estados mental, a solução para o déficit de infraestrutu- qualquer possibilidade de influenciar a orga- ra urbana não se restringe à ação de governos. nização municipal. Ela exige uma estrutura de governança em que Essa situação continua sendo reforça- estejam presentes não apenas atores de todos da pelo relacionamento direto crescente entre os níveis de governo, mas também o setor pri- a União e os municípios, para a execução de vado, as organizações não governamentais e a políticas públicas. Esse relacionamento, por sociedade civil. 448 Book CM v11_n22.indb 448 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:45 Regiões metropolitanas – diversidade e dificuldade fiscal da cooperação Sol Garson Economista pela Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense. Professora Doutora Colaboradora e Consultora do Instituto de Economia da Universidade Federal Fluminense (Rio de Janeiro, Brasil). [email protected]. Glossário CIDE – Contribuição sobre intervenção no domínio econômico incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados, e álcool etílico combustível. DATASUS – Departamento de Informática do SUS – Secretaria Executiva do Ministério da Saúde. FPM – Fundo de Participação dos Municípios. Fundeb – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. ICMS – Imposto sobre a Circulação de Mercadoria e sobre a Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação. IPTU – Imposto Sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana. IRRF – Imposto de Renda Retido na Fonte. ISS – Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza. PIB – Produto Interno Bruto. STN – Secretaria do Tesouro Nacional, do Ministério da Fazenda. SUS – Sistema Único Saúde. Notas (1) No caso da Região Metropolitana de Belo Horizonte, inclui o Colar Metropolitano. O estado de Santa Catarina criou, por Leis Complementares de 1998/2000, seis RMs, abrangendo 95 municípios. Em maio de 2007, nova lei criou 6 novas Secretarias de Desenvolvimento Regional, e, em seu artigo 209, revogou as Leis Complementares nº 162 e 221, que tratavam das RMs. (2) Este capítulo toma por base Garson (2009). Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 449 449 17/3/2010 12:49:45 Sol Garson (3) Para uma caracterização detalhada de aspectos econômicos, sociais e fiscais dos municípios metropolitanos, veja-se Garson (2009). (4) Em sua eterna luta pela manutenção do ISS nas discussões sobre reforma tributária, os maiores municípios sempre demonstram preocupação com uma possível posição dos menores, em troca de ganhos em transferências federais, por exemplo. (5) O Estado do Amazonas tem 62 municípios. (6) Base Finbra. Disponível em www.stn.fazenda.gov.br, último acesso em 30/9/2008. As contas de 21 municípios metropolitanos não disponíveis no Finbra em 2007 foram estimadas a partir de informações da própria STN, de site de Tribunais de Contas de Estados e Municípios, de Secretarias Estaduais de Fazenda e do Datasus/Ministério da Saúde. A base de dados contém informações de todos os municípios metropolitanos. No Total Brasil, estão presentes 94,5% dos 5.564 municípios e 97,1% da população. (7) Os municípios não presentes no banco de dados são, em geral, pequenos e de pouco significado fiscal. (8) Dos 25% da receita estadual do ICMS partilhado com os municípios, 75% é distribuído de acordo com a atividade econômica e 25% de acordo com lei estadual, que, em geral, prioriza a redistribuição. (9) Os municípios-núcleo (mas não apenas estes), em geral, têm a gestão plena do SUS em seu território. Por essa razão, além de receber recursos do SUS que empregam em sua rede de saúde, recebem também recursos que destinam ao pagamento de conveniados do SUS: entidades filantrópicas, empresas privadas, etc. Essas despesas são classificadas em Outras Despesas Correntes. Referências BRANCO, M. L. G. C. et al. (2004). Identificação dos espaços metropolitanos e construção de tipologias: Relatório da atividade 2: Projeto Análise das Regiões Metropolitanas do Brasil. Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles. Disponível em: < http: www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br>. FEIOCK, R. (2004). “Introduction: Regionalism and institutional collective action”. In: FEIOCK, R. (ed.) Metropolitan governance conflict, competition, and cooperation. Washington D.C. , Georgetown University Press, pp. 67-94. GARSON, S. (2009). Regiões Metropolitanas Por que não cooperam? Rio de Janeiro, Letra Capital. JOUVE, B. e LEFÈVRE, C. (1999). Villes, métropoles: les nouveaux territoires du politique. Paris, Anthropos. 310p. LEFÈVRE, C. (2004). Paris et les grandes agglomérations occidentales: comparaison des modèles de gouvernance. Paris, Mairie de Paris. Disponível em: http://www.paris.fr/portail/accueil/. Acesso em 20/11/2008. 450 Book CM v11_n22.indb 450 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:45 Regiões metropolitanas – diversidade e dificuldade fiscal da cooperação MORAES, M. R. de. (2001). As relações intergovernamentais na República Federal da Alemanha: uma análise econômico-institucional. São Paulo, Fundação Konrad Adenauer, Série Pesquisas n. 22. NABLI, M. K. e NUGENT, J. B. (1989). The new institutional economics and its applicability to development. World Development, v. 17, n. 9, pp. 1333-1347. NORTH, D. C. (1990). Institutions, institutional change and economic performance. Cambridge, Cambridge University Press, 152p OATES, W. E. (1994). “Federalism as government finance”. In: QUIGLEY, J. M. e SMOLENSKY, E. (ed.). 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Texto recebido em 10/maio/2009 Texto aprovado em 21/ago/2009 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 435-451, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 451 451 17/3/2010 12:49:45 Book CM v11_n22.indb 452 17/3/2010 12:49:45 Governança, governo ou gestão: o caminho das ações metropolitanas Governance, government or management: the path for metropolitan action Peter Kevin Spink Marco Antonio Carvalho Teixeira Roberta Clemente Resumo Este trabalho busca contribuir para o debate sobre uma gestão pública política e socialmente competente e efetiva das metrópoles brasileiras a partir da discussão crítica de possíveis caminhos de ação. Inicia-se com uma discussão sobre os diferentes sentidos da expressão metropolitana existentes no imaginário social. Em seguida, apresenta um breve resumo do processo brasileiro de metropolização e, após, descreve a situação atual a partir de um estudo empírico que envolveu contatos individuais com as principais áreas metropolitanas, análise de documentos e orçamentos estaduais e identificação dos tipos de atividades de gestão encontrados. Finalmente, a partir de observações sobre as possibilidades e limites dos consórcios intermunicipais, busca identificar possíveis opções para o encaminhamento pluralista de ações futuras. Abstract This paper seeks to contribute to the debate on a politically and socially competent and effective management of the Brazilian metropolitan areas based on the critical discussion of possible paths for action. It begins with a discussion of the different meanings of the word ‘metropolitan’ that exist in social imagery. Then, it provides an overview of the Brazilian metropolitanization process, and finally, it describes the current situation, using data from a recent empirical study which comprised interviews in the main metropolitan areas, document analysis, as well as budget analysis in order to identify the different kinds of management activities. Finally, after commenting on the possibilities and limits of inter-municipal consortia, the paper identifies possible paths for action within a pluralist perspective. Palavra-chave: regiões metropolitanas (Brasil); gestão metropolitana; consórcios intermunicipais; experiências atuais; alternativas de ação. Keywords: metropolitan management; metropolitan regions (Brazil); inter-municipal consortia; current situation; action alternatives. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 453 17/3/2010 12:49:45 Peter Kevin Spink, Marco Antonio Carvalho Teixeira e Roberta Clemente Lembrando Celso Furtado, diríamos como ele que, nas metrópoles, estão concentrados os processos que interrompem a nossa construção como nação. Mas cabe, então, perguntar: se enfrentar a questão social é uma necessidade simultaneamente social e econômica, além de um imperativo moral, por que tão pouco tem sido feito? Por que a questão metropolitana tem sofrido de uma ameaçadora orfandade política? Até quando será possível conciliar o processo de democratização com a manutenção de tamanhas e gritantes disparidades sociais? Queiroz Ribeiro (2008, p.13) Introdução De acordo com dados da contagem popula- Nosso foco é um grupo composto por cional realizada pelo IBGE em 2008, em ter- 42% (81 milhões) 1 da população brasileira, mos demográficos, há no Brasil, 62 milhões incluindo os 39 milhões residentes em 13 mu- de pessoas que se encontram em 4.980 muni- nicípios com mais de 1.000.000 de habitantes, cípios de perfil rural-urbano com populações que formam as áreas metropolitanas. Este até 50.000 habitantes. Existe outro grupo outro país, foco dos Cadernos Metrópole, se de 37 milhões de pessoas que reside em 456 encontra espremido em apenas 1,9% do ter- municípios de 50.001 até 200.000 habitantes. ritório nacional e em condições cada vez mais Há, ainda, um agrupamento de 64 milhões de desiguais e em franca degradação, numa com- brasileiros que reside em 115 municípios mais plexidade conurbada e interjurisdicional confu- nitidamente urbanos, com população entre sa, mas com a mesma cobertura institucional e 200.001 e 1.000.000 habitantes (e, mesmo organizacional dos demais municípios do país. assim, com áreas de atividade rural). Para A lógica institucional, a infraestrutura jurídi- quase todos estes, seria provavelmente váli- ca, a forma organizativa básica do município da uma autoimagem municipal de um centro de menor porte populacional do país, como urbano com diversos vilarejos espalhados en- Borá, no Estado de São Paulo, no qual residem tre áreas significativas de atividade rural. Em 818 habitantes em uma área territorial de 119 quase todos, as linhas de demarcação inter- km2, é igual a de Altamira, no Pará, onde resi- municipal acontecem normalmente no cam- dem 96.842 pessoas numa área territorial de po, entre árvores e rios e não entre pessoas 161.445,9 km2, e que também é idêntica a São e ruas. É para estes mais de 5.000 municípios Paulo, município mais populoso do país, onde que a Constituição de 1988 foi em grande habitam cerca de 10 milhões pessoas num es- parte projetada. paço territorial de 1.525 km2. 454 Book CM v11_n22.indb 454 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:45 Governança, governo ou gestão: o caminho das ações metropolitanas Existem amplas responsabilidades e Histórico áreas de atuação atribuídas às regiões metro- A expressão conurbação foi criada em 19152 para chamar atenção para a continuidade do urbano e para os desafios da gestão de serviços públicos e de planejamento urbano que isso representa. Em geral, entende-se por conurbação uma agregação policêntrica na qual os diferentes espaços urbanos se juntam, em razão do crescimento de centros independentes e, como consequência, torna-se uma fonte geradora de novas questões trazidas por sua territorialidade complexa. Inúmeros são os exemplos, em países desenvolvidos e em desenvolvimento, de situações nas quais um lado da rua pertence a uma jurisdição e o outro a outra; ou de uma casa ser enquadrada numa categoria de zoneamento residencial e a casa vizinha, numa politanas formalmente constituídas pela legislação brasileira, incluindo transporte público, controle de poluição, água e esgoto, desenvolvimento regional, resíduos sólidos, urbanismo e planejamento, habitação, educação, saúde, entre muitas outras; entretanto, na prática, como diversos autores (Souza, 2003; Queiroz Ribeiro, 2004; Rodriguez-Acosta e Rosenbaum, 2005; Devas, 2005; Rojas, Cuadrado-Roura e Fernandéz Güell, 2005) já comentaram, os resultados são ainda muito tímidos, para não dizer inexistentes. Não são as áreas metropolitanas4 brasileiras os exemplos escolhidos de nossa capacidade inovadora pública para serem apresentados nos congressos e relatórios internacionais. outra jurisdição, fazer parte de um zoneamento comercial; ou, como um prefeito da Grande São Paulo comentou em entrevista, onde o fundo Versões metropolitanas de quintal de um município é a porta da frente do próximo. Hoje o fenômeno da conurbação Uma das dificuldades, especialmente quando se estende pelos novos corredores rodoviários se propõem questões comparativas de mode- trazendo, por exemplo, sinais de uma futura in- los de gestão, governança e governo, adotados 3 terconexão macrometropolitana urbana entre em outros países – importante como estímulo as áreas ao redor de Campinas, São José dos para discutir pressupostos naturalizados – é Campos, São Paulo e Santos, dentre outras. que as noções de metropolitana presentes no Nesse processo de agregação complexa, imaginário social são variadas. Para muitos, a expressão Gestão Metropolitana emerge co- incluindo os acadêmicos, a expressão metro- mo termo agregador da necessidade de plane- politana tem uma certa obviedade natural. jar e buscar soluções para as questões sociais Parece que desde as visualizações épicas do e econômicas decorrentes dessa justaposição tipo Metropolis, de Fritz Lang (1927), todos sa- de lógicas territoriais individuais. De país para bem o que é metropolitana, virou parte da vida país, diferentes soluções foram experimenta- cotidiana. Muitos artigos e livros acadêmicos, das, de gestão, de governança e de governo, às políticos e ativistas simplesmente presumem vezes de maneira uniforme e às vezes de ma- que todos estão discutindo os mesmos atribu- neira plural (Klink, 2008; Lefèvre, 2008). tos de um mesmo fenômeno. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 455 455 17/3/2010 12:49:45 Peter Kevin Spink, Marco Antonio Carvalho Teixeira e Roberta Clemente Planejadores, urbanistas e cientistas uma área reformatada como metropolitana sociais utilizam a expressão para se referirem pode, como no caso dos Estados Unidos, trazer descritiva e contextualmente a grandes áreas novos incentivos para desenvolvimento (Frey, urbanas e interurbanas espalhadas territorial- Wilson, Berube e Singer, 2004). Em outros, o mente. Agências oficiais de estatística forne- efeito poderia ser o contrário. Torna-se interes- cem visões mais nítidas em termos demográ- sante aqui observar a persistência do municí- ficos. Por exemplo, os seis países federativos pio de Jundiaí em resistir à sua vinculação com das Américas têm, cada um, descrições de as áreas metropolitanas de Campinas ou São áreas metropolitanas: no Canadá são Áreas Paulo. Censitárias Metropolitanas; nos Estados Uni- Noções implícitas de metropolitana são dos são Áreas Estatística Metropolitanas e, encontradas nos jornais diários com suas se- no México, na Argentina, no Brasil e na Vene- ções ou cadernos metropolitanos. Aqui a ex- zuela (Caracas) são produzidas estatísticas de pressão pode ser referir aos assuntos locais base metropolitana. Conforme apontam Frey, de uma pequena cidade ou a acontecimentos, Wilson, Berube e Singer (2004), a ênfase não crimes e escândalos de grandes conurbações. recai sobre as suas características políticas ou Metropolitano pode carregar tons de centrali- jurisdicionais, mas por ser uma “coleção de co- dade cultural, a urbanidade de museus de arte, munidades grandes e pequenas vinculadas so- de teatros e casas de ópera ou até de ser uma cial e economicamente”. Recentemente, uma qualidade pessoal de ser atualizada cultural- nova terminologia foi introduzida nos Estados mente. Londres pode ter seu Tube, mas é Pa- Unidos – Áreas de Estatística Micropolitana ris que dará ao mundo sua expressão favorita ( Micropolitan Statistical Areas ). Essas áreas para sistemas de transporte subterrâneo: Le são constituídas de um ou mais condados, con- Métropolitain ou Le Métro como é universalmente conhecido e encontrado em, por exemplo, Rio de Janeiro e São Paulo, onde, apesar do nome, tem escopo somente municipal. Londres, entretanto, teria sua contribuição – pelo menos no mundo de influência anglo-saxônica com a criação em 1829 da polícia metropolitana, abrangendo toda área da grande Londres e que existe até hoje. Em contraste, as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro têm suas Guardas Civis Metropolitanas – entretanto, tal como o metrô, para fins municipais, e não metropolitanos. Na origem grega, metropolitana é a cidade-mãe (metra–útero–polis), adotada pelos romanos como capital da província. Essa centralidade política e hegemônica permeia centrados em volta de uma área urbana contígua com uma população central de 10.000 a 50.000 habitantes. Mesmo com a presença ampla e constante do termo metropolitana nas agências estatísticas, o uso do termo de maneira constitucional é muito menos comum. Entre os seis países federativos das Américas, somente o Brasil especifica a presença de regiões metropolitanas na sua legislação institucional. Fora do âmbito oficial, a expressão metropolitana tem ampla presença. Executivos de empresas pensam metropolitana nos mesmos moldes dos planejadores e técnicos de serviços regionalizados: a distribuição de suas demandas e a gestão da logística dos sistemas de entrega de serviços e bens.5 Às vezes, tendo 456 Book CM v11_n22.indb 456 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:46 Governança, governo ou gestão: o caminho das ações metropolitanas as línguas latinas modernas. A França hoje agenda governamental. Mesmo nos espaços permanece França Metropolitana em relação profissionais como, por exemplo, o Conselho a suas colônias ultramarinas e no Brasil a auto- Nacional de Secretários Estaduais de Adminis- ridade metropolitana não somente foi utilizada tração (Consad), o assunto tem pouca pene- em relação a Lisboa, mas também em relação tração. No II Congresso do Consad de Gestão à organização territorial e hierárquica da Igreja Pública, realizado em 2009, de todos os traba- Católica. Mesmo hoje, a Cúria Metropolitana lhos apresentados, apenas dois tratavam do de São Paulo continua a vigiar os assuntos cle- tema gestão metropolitana. Suas associações ricais do estado com o mesmo nome. agregadoras e articuladoras como, por exem- Metropolitana, portanto, poderia parecer plo, o Fórum Nacional de Entidades Metropoli- uma palavra inocente e óbvia, mas seus usos tanas (FNEM) ainda lutam para se articular de são às vezes sutilmente e outras vezes não tão maneira efetiva. sutilmente diferentes. Se na língua anglo-saxônica a tendência é de ver o termo como técnico e descritivo, não há como escapar de suas tonalidades de poder nas línguas latinas. Por que a questão da gestão metropolitana parece significativamente diferente de outras questões de gestão pública a ponto de Regiões metropolitanas – uma primeira resposta ao desafio da gestão ser quase um tópico tabu? Não chegou a formar – pelo menos visivelmente – uma agenda A Lei Complementar n. 14, de 1973, que criou acadêmica de debate ou de estudos empíricos as primeiras Regiões Metropolitanas no Brasil, sobre alternativas organizativas. Avançou-se não foi um simples produto de consenso téc- bastante na análise de suas questões urbanas, nico/militar. A questão metropolitana já estava mas, em grande parte, suas propriedades orga- presente na agenda de várias associações pro- nizativas e institucionais foram ignoradas. Sua fissionais com interesse em questões urbanas orfandade política é também uma orfandade e havia também iniciativas embrionárias como, administrativa e organizacional; a temática por exemplo, o Grupo Executivo para Grande da gestão – entendida aqui como o conjunto São Paulo, criado pelo governo do estado em de ferramentas, habilidades e conceitos que 1967 e organizações similares em Porto Alegre, permitem a concretização efetiva de desejos Belém, Salvador e Belo Horizonte (Rolnik e So- políticos e sociais – se encontra fragmentada mekh, 2004). Na área metropolitana do Rio de e longe de ter configurado os contornos míni- Janeiro havia algo diferente. Após a mudança mos de um debate acadêmico sério. Há posi- do capital para Brasília, o Rio de Janeiro assu- ções iniciais e observações, mas não há ainda miu o papel de uma cidade-estado da Guana- uma polêmica que estimule a construção de bara, que manteve até 1975. conhecimento. Não conseguem, como aponta- A proposta de conceber as regiões me- ram Azevedo, Mares Guia e Machado (2008), tropolitanas enquanto comunidade socioeco- se transformar em presença obrigatória na nômica foi fruto de uma comissão presidencial. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 457 457 17/3/2010 12:49:46 Peter Kevin Spink, Marco Antonio Carvalho Teixeira e Roberta Clemente Entretanto e, paradoxalmente, dada a força Metro politanas deixou de ser uma imposi- integradora da expressão, seu papel foi res- ção do Governo Federal e passou a ocorrer trito à manutenção de serviços comuns, uma mediante Lei Estadual, como parte do processo clara reflexão sob a ótica municipalista. Na de planejamento das políticas públicas e ações sua análise deste período, Guimarães (2004) urbanas dos estados. Porém, continuou de comenta que existiam outras propostas em certa maneira impositiva: em alguns casos, a circulação, incluindo uma para permitir que legislação estadual permitiu aos municípios estados e municípios se juntassem em con- solicitarem ingresso, mas em nenhum caso um sórcios voluntários. No entanto, a perspectiva município pode optar por não fazer parte. Em dominante foi de desenvolvimento econômi- termos de definição o art. 25, § 3º, da Consti- co centralizado – sem opções e sem levar em tuição Federal especificou somente que: consideração as experiências em cooperação intermunicipal da época (Araújo Filho, 1996). Mesmo as tentativas do IBGE de propor critérios demográficos e territoriais (por exemplo, população, território, grau de conurbação, complexidade e integração social e econômica) foram de pouco efeito. Se tivessem sido adotados, Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir Regiões Metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum. teriam levado à inclusão de Santos, Campinas e Goiânia, na época, áreas metropolitanas em O que eram Regiões Metropolitanas, termos estatísticos (Guimarães, 2004). Obriga- aglomerações urbanas e microrregiões foi dei- tório, com uma lista de serviços potencialmen- xado para a imaginação. Posteriormente, diver- te comuns tais como planejamento integrado, sos estados incorporaram definições na legis- água, esgoto, uso do solo, transporte, etc. (ver lação local, mas sem um acordo geral. Existe, Tabela 3), as regiões metropolitanas nasceram em tramitação, uma proposta de definição no com Fundos, Conselhos Deliberativos e Consul- projeto de lei n. 3640, de 2004, de autoria do tivos6 – os primeiros presididos por autoridades deputado federal Walter Feldman, o Estatuto estaduais e os segundos por autoridades muni- das Metrópoles, que está em discussão no Po- cipais sem poder de decisão –, todos nomeados der Legislativo, mas mesmo com status provi- dentro da cadeia de orientação política federal sório, suas especificações incluíram um núcleo (Rolnik e Somekh, 2004). Essa primeira fase te- central com, no mínimo, 5% da população do ve como resultado a criação de nove Regiões país (de acordo com o Censo do IBGE de 2000, Metropolitanas, todas elas em torno das princi- nove milhões de pessoas), que, se aprovadas, pais capitais brasileiras em que vivia na época, excluiriam todas as áreas metropolitanas me- aproximadamente, 29% da população brasilei- nos uma, São Paulo. Houve, sem dúvida, um avanço em re- ra (Gouvêa, 2005, p. 93). A segunda fase foi resultado da redemo- lação à legislação anterior, já que os estados, cratização e da elaboração da nova Constitui- até então, apenas se responsabilizavam pela ção Federal (1988). A criação de Regiões estruturação das áreas metropolitanas que 458 Book CM v11_n22.indb 458 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:46 Governança, governo ou gestão: o caminho das ações metropolitanas lhes eram impostas pelo poder central. Entre- centralizadora (Moura, 2003) tornando os tanto, o formato geral e a ideia de uma Região argumentos intermediários a favor de alter- Metropolitana criada independentemente da nativas de cooperação de pouco efeito. Edésio vontade política dos municípios permaneceu Fernandes, ao introduzir o estudo recente de dando, implicitamente, continuidade ao mo- Gouvêa (2005) sobre a questão metropolita- delo desenvolvimentista anterior e seu path na com ênfase na área metropolitana de Belo dependency (Souza, 2001; 2005) foi fortalecido ainda mais pelo fato de que o art. 25, § 3º, mencionou região metropolitana sem nenhuma definição adicional. O Congresso não criou nenhum incentivo a mais para a cooperação e o discurso municipalista tornou qualquer argumento a favor de outros arranjos organizativos de pouco efeito. Igualmente, não há como ignorar que, ao nomear as Regiões Metropolitanas, os governos federais e depois os estaduais o fizeram em relação a um município central, grande e politicamente dominante, na maioria dos casos. Não pretendemos sugerir que o fracasso da gestão metropolitana se deva unicamente a um problema de nome, mas reduzir 39 histórias sociais, econômicas e políticas diferentes a um denominador comum – como é o caso de São Paulo – e, num país com tradições municipalistas, sugerir que um único município poderia dar a identidade de uma região, certamente não foi e talvez continua não sendo necessariamente um incentivo à cooperação. Neste sentido, vale apontar o caminho da Região Municipal da Baixada Santista e notar também que os consórcios intermunicipais – exemplos mais focados de gestão intermunicipal – frequentemente optam por nomes de origem regional, ou de rios, pássaros e outros elementos da natureza local. No processo de redemocratização, após a constituição 1988, prevaleceu o discurso municipalista em contraposição à cultura Horizonte, comenta que uma proposta alternativa construída por representantes das então regiões metropolitanas foi submetido à Assembleia Constitutinte, reconhecendo seu caráter político e propondo incluí-las como parte do pacto federativo junto com os estados e municípios. Entretanto, dada a orientação intensamente municipalista do congresso, a “criança foi jogada fora com a água do banho” (ibid., p. 15). Havia também poucas propostas para alterar o projeto constitucional – em si uma indicação de falta de interesse – e todas, incluindo uma que transformaria todas as regiões metropolitanas de mais de cinco milhões de habitantes em estados (tal como Guanabara) foram deixadas de lado. O resultado foi uma sentença curta que forneceu pouca ou nenhuma orientação e nenhum apoio financeiro obrigatório (ibid.). No caso das regiões metropolitanas do estado de Santa Catarina, a incorporação se deu em grande parte como resultado da estratégia de planejamento regional do estado e não a partir das noções convencionais sobre a complexidade territorial, jurisdicional e densidade conurbada. Tanto assim que, em 2004, o estado voltou atrás, ignorando as regiões metropolitanas e instituindo regiões de planejamento, até que, finalmente, a Lei Complementar n. 381, de 2007, as extinguiu. Como esta história bastante resumida das fases de legislação metropolitana já demonstra, houve, ao longo do processo, Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 459 459 17/3/2010 12:49:46 Peter Kevin Spink, Marco Antonio Carvalho Teixeira e Roberta Clemente Tabela 1 – As diferentes fases das Regiões Metropolitanas Região Estado Região geográfica Ano Municípios que compõem a Região Metropolitana Belém Pará Norte 1973 5 Belo Horizonte Minas Gerais Sudeste 1973 34 Curitiba Paraná Sul 1973 25 Fortaleza Ceará Nordeste 1973 13 Porto Alegre Rio Grande do Sul Sul 1973 31 Recife Pernambuco Nordeste 1973 14 Salvador Bahia Nordeste 1973 10 São Paulo São Paulo Sudeste 1973 39 Rio de Janeiro Rio de Janeiro Sudeste 1974 20 Vale do Aço Minas Gerais Sudeste 1995 26 Vitória Espírito Santo Sudeste 1995 6 Aracaju Sergipe Nordeste 1995 4 Baixada Santista São Paulo Sudeste 1996 9 Campinas São Paulo Sudeste 1996 19 Natal Rio Grande do Norte Nordeste 1997 6 Foz do Rio Itajaí Santa Catarina (*) Sul 1998 9 Florianópolis Santa Catarina (*) Sul 1998 22 Londrina Paraná Sul 1998 6 Maringá Paraná Sul 1998 8 Maceió Alagoas Nordeste 1998 11 Norte Nordeste Catarinense Santa Catarina (*) Sul 1998 20 São Luís Maranhão Nordeste 1998 4 Vale do Itajaí Santa Catarina (*) Sul 1998 16 Carbonífera Santa Catarina (*) Sul 2002 10 Goiânia Goiás Centro Oeste 1999 11 Tubarão Santa Catarina (*) Sul 2002 18 Macapá Amapá Norte 2003 2 João Pessoa Paraíba Nordeste 2003 9 Fonte: Emplasa, 2008. (*) Regiões Metropolitanas extintas em 2007. 460 Book CM v11_n22.indb 460 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:46 Governança, governo ou gestão: o caminho das ações metropolitanas argumentos e contra-argumentos sobre o que têm-se 20 áreas metropolitanas conforme Ta- deveria constituir uma região metropolitana e bela 2. A lista é maior do que aquela utilizada como se deve pensar sua gestão, governança pelo IBGE no seu estudo recente sobre a Rede e até governo. Nessas duas fases legislativas, Urbana Brasileira 8 (São Paulo, Rio de Janeiro, foram criadas 28 Regiões Metropolitanas distri- Brasília, Manaus, Belém, Fortaleza, Recife, Sal- buídas pelas cinco grandes regiões geográficas vador, Belo Horizonte, Curitiba, Goiânia e Porto do país (Tabela 1). Alegre) e também da utilizada por Queiroz Ribeiro que em sua escolha de 15 “espaços metropolitanos” enfatiza as “aglomerações que Áreas metropolitanas e metrópoles apresentam características próprias das novas funções de coordenação, comando e direção das grandes cidades na economia em rede” (Queiroz Ribeiro, 2008, p. 12). Queiroz Ribeiro Na discussão a seguir focalizamos um sub- não incluiu Manaus, mantém Brasília, e adicio- conjunto das Regiões Metropolitanas formais, na Natal, Vitória, Florianópolis e Maringá. assim reconhecendo a necessidade de assu- Como o nosso foco se concentra nas mir que o que é institucionalmente declarado opções organizacionais, de governança e de como metropolitano é necessariamente metro- gestão, com ênfase na complexidade urbana, politano no seu uso mais geral. Primeiro, consi- preferimos uma opção mais conservadora de deramos somente as áreas que foram incluídas um conjunto cujos membros seriam reconheci- dentro da lista formal, permitindo, assim, uma dos por outros pesquisadores em outros países análise comparativa de similaridades e diferen- com preocupações específicas em relação à ças dentro de um arcabouço constitucional e le- gestão e governança. Não incluímos Brasília, gal comum. Na sequência, focalizamos as áreas Manaus ou Florianópolis, mas adicionamos metropolitanas que se amoldam à definição Baixada Santista, Campinas, João Pessoa, explícita ou implícita de áreas metropolitanas Aracaju, Londrina, São Luis e Maceió. Há ob- encontrada entre pesquisadores, urbanistas, viamente muito espaço para o debate, entre- agências internacionais e agências de estatís- tanto, o mais importante para o momento seja tica nacionais: ou seja, áreas urbanas grandes salientar que nenhuma das três listas segue a e contíguas com mais de 500.000 e frequen- lista oficial. temente mais de um milhão de habitantes, Todas as áreas metropolitanas na Ta- envolvendo normalmente mais de uma jurisdi- bela 2 são multijurisdicionais em forma, mas, ção que são resultados de processos de urba- como pode ser percebido, o peso do municí- nização e conurbação crescentes. Ao juntar os pio central varia bastante. Simplificando, há dois critérios podemos focalizar situações so- três grupos: o primeiro grupo é composto por cioespaciais similares em contextos institucio- áreas nas quais o município central é bastan- nais comuns; uma base mais sólida a partir da te dominante em termos populacionais com qual poderemos examinar questões de gestão, mais de 70% (Maceió, Salvador, São Luís, 7 governança e desempenho. Como resultado, Fortaleza, Belém); segundo, um grupo onde o Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 461 461 17/3/2010 12:49:46 Peter Kevin Spink, Marco Antonio Carvalho Teixeira e Roberta Clemente município central tem entre 50-60% da popu- e Vitória, Santos é somente 25% da região lação total (Londrina, Aracaju, Goiânia, Natal, “Baixada Santista” e Vitória concentra 19% João Pessoa, Curitiba, São Paulo, Maringá e da população da “Grande Vitória”. Esta se- Rio de Janeiro) e o terceiro grupo é formado paração em grupos, demonstrando a grande por regiões nas quais o município central tem variedade de centralidades e de balanços po- menos de 50% da população metropolitana pulacionais, permite levantar questões e até (Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre, Cam- dúvidas sobre a validade da busca para uma pinas, Santos e Vitória). No caso de Santos única solução metropolitana. Tabela 2 – Concentração relativa da população nas principais regiões metropolitanas Região Metropolitana Pop. Total RM 2007 Município-polo ou central Pop. do Município-polo Pop. do Municípiopolo sobre a pop. metropolitana (%) Vitória (ES) 1.661.626 Vitória 317.085 19,08 Baixada Santista (SP) 1.666.453 Santos 418.375 25,11 Porto Alegre (RS) 4.101.032 Porto Alegre 1.440.939 35,14 Campinas (SP) 2.687.099 Campinas 1.059.420 39,43 Recife (PE) 3.646.204 Recife 1.515.052 41,55 Belo Horizonte (MG) 4.975.126 Belo Horizonte 2.399.920 48,24 11.467.222 Rio de Janeiro 6.136.652 53,51 Rio de Janeiro (RJ) Curitiba (PR) 3.261.168 Curitiba 1.788.559 54,84 Maringá (PR) 586.441 Maringá 324.397 55,32 11.016.703 55,99 789.896 62,37 1.220.412 62,77 São Paulo (SP) 19.677.506 São Paulo Natal (RN) 1.266.507 Natal Goiânia (GO) 1.944.404 Goiânia João Pessoa (PB) 1.062.799 João Pessoa 672.081 63,24 Aracaju (SE) 783.186 Aracaju 505.286 64,52 Londrina (PR) 750.188 Londrina 495.696 66,08 Belém (PA) 2.086.906 Belém 1.428.368 68,44 Fortaleza (CE) 3.415.455 Fortaleza 2.416.920 70,76 São Luís (MA) 1.225.879 São Luís 998.385 79,50 Salvador (BA) 3.408.273 Salvador 2.714.018 79,63 Maceió (AL) 1.138.879 Maceió 922.458 81,00 Fonte: Emplasa, 2008. 462 Book CM v11_n22.indb 462 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:46 Governança, governo ou gestão: o caminho das ações metropolitanas As áreas metropolitanas na teoria e na prática das decisões. Na Baixada Santista (RMBS), a estrutura de gestão começou a ser formatada em 1998, mas teve sua origem a partir do documento elaborado em 1983, intitulado “Carta A Tabela 3 descreve, em resumo, o con- da Baixada Santista”, em que os prefeitos da teúdo das diferentes leis estaduais e suas região procuravam demonstrar que a Baixada atualizações recentes sobre o escopo de atua- “reunia todas as condições físicas, econômicas ção das 20 áreas metropolitanas escolhidas e sociais que a caracterizava como uma autên- para este estudo. Conforme pode ser visto, tica Região Metropolitana” (Diba, 2004). Tal o escopo é bastante amplo e, mesmo com a carta deu impulso à criação da Coordenadoria liberdade de legislação estadual, a tendência Regional de Metropolização, composta pelos é seguir os temas urbanos identificados na le- nove prefeitos da Baixada. gislação original de 1973. Aqui talvez a ques- Atualmente, a estrutura de gestão é tão seja menos de path dependency e mais de composta pelos seguintes órgãos: Agência de pragmatismo urbano. Estas atividades são difí- Desenvolvimento (AGEM), Fundo Metropoli- ceis de separar quando se enfrenta a realidade tano de Desenvolvimento da Baixada Santista dentro de uma conurbação. (FMDBS) e Conselho de Desenvolvimento da Se o escopo para a atuação metropo- Baixada Santista (Condesb). Cabe à Agência litana é grande, os resultados obtidos são o promover a organização, o planejamento e a inverso. Passados mais de 30 anos da criação execução das funções públicas de interesse das Regiões Metropolitanas brasileiras, em comum e desenvolver o papel de fiscalizado- apenas 7 foi identificada a existência de estru- ra e executora das normas concernentes às turas específicas, institucionalizadas e atuantes regiões metropolitanas. Também cabe à Agên- de gestão metropolitana que estão desenvol- cia estabelecer metas, planos, programas e vendo algum tipo de política pública. A Tabela projetos de interesse comum, além de avaliar a 4 apresenta as 7 áreas metropolitanas identi- execução dos mesmos. A maior parte das polí- ficadas. Nenhuma delas está no grupo em que ticas públicas executadas pela Agência refere- o município-polo é altamente concentrado em se a transporte e sistema viário, saneamento termos populacionais; uma distinção que po- básico, meio ambiente e atendimento social. O deria ser considerada significativa. Cada um Fundo tem o objetivo de financiar e investir em dos órgãos gestores encontra-se em diferentes estudos, programas, projetos, obras e serviços estágios e apresenta formas diversas no que se de interesse metropolitano e em equipamentos refere ao tipo de política desenvolvida e tam- quando a eles destinados. Seus recursos resul- bém à incorporação de setores não vinculados tam de aportes dos municípios e estado (50% ao Poder Executivo no processo decisório. A Ta- e 50%, respectivamente), além de receitas bela 4, resume as principais dimensões. oriundas de convênios. Cabe ao Conselho deli- 9 A tabela acima apresenta sete Regiões berar acerca dos serviços públicos de interesse Metropolitanas com distintas estruturas de comum do estado e dos municípios na Região gestão e diferentes formas de partilhamento Metropolitana, além de aprovar objetivos, Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 463 463 17/3/2010 12:49:46 Peter Kevin Spink, Marco Antonio Carvalho Teixeira e Roberta Clemente Tabela 3 – Políticas públicas de interesse comum listadas na legislação específica das regiões metropolitanas estudadas Política pública Frequência dentre Constante da as 20 RMs Legislação de 1973 Transporte público 17 sim Controle de poluição 15 sim Saneamento (água e esgoto) 15 sim Desenvolvimento local e regional 15 sim Urbanismo, uso e ocupação do solo 15 sim Trânsito e vias públicas 14 sim Preservação de ecossistemas 14 sim Planejamento e gestão 14 sim Habitação 12 não Limpeza pública e sistemas de coleta, tratamento e destinação final do lixo 12 sim Recursos hídricos, irrigação e drenagem 12 sim Relações intergovernamentais 7 não Assistência social 6 não Indústria e comércio 5 não Sistemas de informações 5 não Relações intragovernamentais 5 não Formação de mão-de-obra e geração de emprego e renda 5 não Energia e recursos minerais (gás) 4 sim Educação 4 não Saúde 3 não Prevenção de acidentes em áreas de risco 2 não Orçamento e finanças 2 não Policiamento 2 não Outros, incluindo consórcios intermunicipais, participação popular e abastecimento 1 não Fonte: elaboração dos próprios autores. Tabela 4 – Principais características das experiências metropolitanas atuais Baixada Santista Campinas Recife Belo Horizonte Vitória Porto Alegre João Pessoa Agência de desenvolvimento sim* sim* não sim sim* sim não Fundo metropolitano sim sim sim sim não não não Conselho paritário sim sim sim sim sim não sim Conselho com representação proporcional não não não sim não não não Sociedade civil sim não não sim sim*** não não Legislativo não não sim** sim Consórcio não não sim não não não sim Fonte: elaboração dos próprios autores. * subordinada ao Estado / ** sem direito a voto / *** detém poder de equilíbrio 464 Book CM v11_n22.indb 464 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:46 Governança, governo ou gestão: o caminho das ações metropolitanas metas e prioridades de interesse regional. O um dos 19 municípios e 19 representantes do Conselho se apresenta como um órgão de ca- Estado, constituindo-se em um espaço de de- ráter prioritariamente técnico. É formado por liberação no qual os prefeitos pactuam a ação 18 membros, sendo 1 representante por muni- cooperada em parceria com as diferentes áreas cípio (total de 9) e os 9 restantes indicados pe- do governo estadual. O Legislativo e a Socie- lo governo estadual. Não há representação da dade Civil não possuem assento no Conselho. Sociedade Civil e também não se faz presente No Regimento Interno está prevista a partici- nenhum representante dos poderes legislati- pação de até seis representantes da Sociedade vos municipais. A participação popular se res- Civil organizada, em caráter consultivo. Não tringe ao acesso de documentos, manifestação há qualquer previsibilidade de incorporação por escrito de discordância acerca de decisões de representantes dos legislativos municipais, e a possibilidade de realização de audiências mesmo que em caráter consultivo, assim como públicas. Um membro da Sociedade Civil po- não foi identificada qualquer demanda de um derá participar de reuniões desde que tenha dos 19 legislativos locais com relação a essa solicitado previamente, para defender algum questão. posicionamento sem direito de voto. Na Região Metropolitana do Recife Na Região Metropolitana de Campinas (RMR) foi constituído o Conselho de Desen- (RMC), a estrutura de gestão se desenvolveu volvimento da Região Metropolitana do Recife a partir de 2003 e se assemelha à da Baixada (Conderm). Seus 28 membros, 14 representan- Santista. Possui uma Agência Metropolitana tes dos municípios membros e 14 integrantes de Desenvolvimento (Agencamp) com o obje- nomeados pelo governo do estado, possuem tivo geral de integrar a organização, o plane- função deliberativa. Têm, ainda, assento no jamento e a execução de funções públicas de Conselho, só que em caráter consultivo e sem interesse comum aos 19 municípios. Cabe, ain- direito a voto, mas com direito à palavra, 1 da, à Agência fiscalizar leis e aplicar sanções parlamentar de cada Legislativo municipal e no que se refere a assuntos metropolitanos. As 3 deputados estaduais. Não há participação políticas públicas são viabilizadas por meio de da sociedade civil. Dentre as políticas públicas recursos provenientes do Fundo de Desenvolvi- que estão sendo desenvolvidas na área me- mento da Região Metropolitana de Campinas tropolitana do Recife destacam-se: transporte (Fundocamp) ou, então, por intermédio de público, contenção de morros e encostas, com- convênios celebrados com órgãos da adminis- bate à pobreza e saneamento básico. O finan- tração direta e indireta ou com outras entida- ciamento é proveniente do Fundo de Desenvol- des nacionais e internacionais. Cabe ao Conse- vimento da Região Metropolitana (Funderm) lho de Desenvolvimento da Região Metropoli- e os recursos se originam de diversas fontes: tana de Campinas (CDRMC) definir quais são operações de crédito, repasses de municípios, os serviços públicos de interesse comum, além estado e união, assim como a celebração de de aprovar objetivos, metas e prioridades de convênios com diferentes órgãos nacionais e interesse regional. Formado por 38 membros, internacionais. Em relação a transporte público, o Conselho possui um representante de cada foi criado em 2003 e consolidado formalmente Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 465 465 17/3/2010 12:49:46 Peter Kevin Spink, Marco Antonio Carvalho Teixeira e Roberta Clemente em 2008, o Grande Recife Consórcio de Trans- Belo Horizonte, 1 representante da prefeitura portes. Sua cultura de planejamento teve como de Contagem e outro da prefeitura de Betim base a experiência desenvolvida pela Empresa e 3 representando os demais municípios) e 2 Municipal de Transportes Urbanos do Recife representantes de organizações da sociedade que tinha abrangência metropolitana. O novo civil. O Conselho Deliberativo representa os consórcio trabalha com foco metro politano, diversos segmentos da Região Metropolitana calculando seus índices com base nos limites e, além disso, adota o princípio da proporcio- orçamentários de cada município e ele que ad- nalidade, o que acaba se transformando num ministra as licitações para o sistema com um fator de equilíbrio político na relação entre os todo. É considerado o primeiro Consórcio efe- municípios, independentemente do porte de tivamente intermunicipal na área de transporte cada um. A Assembleia Metropolitana con- público. tinua com os prefeitos e presidentes das câ- Na Região Metropolitana de Belo Hori- maras municipais, além de representantes do zonte, em Minas Gerais, o órgão responsável governo do estado e Assembleia Legislativa. pelas questões metropolitanas é a Agência de Entretanto, seu papel é bastante reduzido e é Desenvolvimento da Região Metropolitana de o Conselho Deliberativo que tem a função prin- Belo Horizonte (Agência RMBH). Criada em cipal (Azevedo, Mares Guia e Machado, 2008). 2006, enquanto uma autarquia com autono- O instrumento de financiamento das ações de- mia administrativa e financeira, a Agência senvolvidas pela Agência é o Fundo de Desen- desenvolve as funções de planejamento, asses- volvimento Metropolitano (FDM). Sua função é soramento e regulação urbana, viabilização de fomentar a implantação de programas e proje- instrumentos de desenvolvimento integrado, tos estruturantes e investimentos relacionados além de apoiar a execução de funções públi- às funções públicas de interesse comum. Os cas de interesse comum. Importante na recon- recursos do Fundo se originam do orçamento figuração da governança metropolitana foi a do Estado, da contribuição de municípios e de intensa discussão entre os níveis estaduais e convênios. As ações estão direcionadas majo- municipais buscando um novo pacto metropo- ritariamente ao sistema viário, ao tráfego e ao litano, agregando a comunidade técnica e aca- transporte coletivo. dêmica que anteriormente tinham vivenciado Em Vitória, no Espírito Santo, a Fundação a experiência da Assembleia Metropolitana de Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN) é uma Belo Horizonte, composta pelos vinte e sete autarquia estadual de apoio técnico à Gestão prefeitos de cada município (independente- Metropolitana. Por meio da Secretaria Geral mente de tamanho), alem de vereadores e re- de Assuntos Metropolitanos se encarrega de presentantes do governo do estado, num total tratar das questões da Região Metropolitana 10 de 84 participantes. Atualmente, a gestão da Grande Vitória (RMGV). O Instituto auxilia está submetida a um Conselho Deliberativo o Conselho Metropolitano de Desenvolvimento formado por 16 membros: 5 indicados pelo da Grande Vitória (Comdevit) na realização de governo estadual, 2 deputados estaduais, 7 re- seus objetivos. O Conselho possui funções de- presentantes de municípios (2 da prefeitura de liberativas e é composto por 17 conselheiros: 466 Book CM v11_n22.indb 466 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:46 Governança, governo ou gestão: o caminho das ações metropolitanas 7 indicados pelo governo estadual, 1 repre- orientados e fiscalizados pelo Conselho Esta- sentante para cada um dos sete municípios da dual de Transporte Metropolitano Coletivo de Região Metropolitana e 3 representantes da Passageiros (CETM). O Conselho é formado sociedade civil organizada, dando preferên- por nove membros: cinco do Poder Executivo, cia para a Federação de Associação de Mora- ligados a políticas de transporte, um repre- dores e os Movimentos Populares do Estado. sentante do setor patronal de transportes, Ou seja, a representação da sociedade civil um representante do movimento sindical dos acaba tendo peso decisivo em um eventual trabalhadores em transporte coletivo e um re- impasse entre municípios e estado. Para a via- presentante indicado pelas entidades comuni- bilização das iniciativas públicas de caráter tárias. Não foi identificada a existência de um metropolitano, foi criado o Fundo Metropolita- Fundo que tenha sido criado especificamente no de Desenvolvimento da Grande Vitória. Os para o financiamento das políticas públicas, recursos são provenientes do estado (60%) e assim como não se verificou o envolvimento da contribuição dos municípios (40%). Atual- direto dos municípios nas discussões sobre mente, a carteira de projetos é composta por: questões de seus interesses. Tal situação co- Programa Metropolitano de Educação Ambien- loca a Região Metropolitana de Porto Alegre tal Continuada com foco na conservação dos numa situação aquém das regiões metropolita- Recursos Hídricos e na Promoção do Turismo nas anteriormente descritas quanto a estrutura Sustentável, Elaboração de Planejamento Es- de Gestão para a execução de políticas públi- tratégico das Ações Integradas de Educação, cas, como também na capacidade de mobilizar Plano de Marketing para o Desenvolvimento diferentes setores. do Turismo, Estudo de Soluções para Resíduos Faz-se importante destacar a experiên- Sólidos de Saneamento, Plano de Marketing cia da Região Metropolitana de João Pessoa para o Desenvolvimento do Turismo e Plano de (RMJP). Criada em 2003, para desenvolver Sinalização Interpretativa de Pontos Turísticos ações de interesse comum aos nove muni- de Valor Histórico, Cultural ou Natural. cípios, a Região Metropolitana acabou não Em Porto Alegre, a Fundação Estadual saindo do papel (ficou apenas na Lei), mas o de Planejamento Metropolitano e Regional problema em torno da necessidade de cons- (Metroplan), em atividade desde 1975, é res- truir um aterro sanitário metropolitano acabou ponsável pela programação e execução de levando à criação do Consórcio de Desenvol- projetos e serviços de interesse comum na Re- vimento Intermunicipal da Área Metropolitana gião Metropolitana de Porto Alegre e outras de João Pessoa (Condiam). Englobando os mu- aglomerações urbanas do Rio Grande do Sul. nicípios da RM, o Consórcio teve um papel fun- Atualmente, está vinculada à Secretaria de Ha- damental para a viabilização de recursos que bitação, Saneamento e Desenvolvimento Ur- resultou na construção de um aterro sanitário bano e, também, é o órgão gestor do Sistema adequado aos padrões ambientais e que vem Estadual de Transporte Metropolitano Cole- sendo utilizado por cinco municípios da Região tivo de Passageiros (SETM). Quanto ao setor Metropolitana desde 2007. Porém, essa é úni- de transporte, os trabalhos da Metroplan são ca iniciativa registrada no âmbito da Região Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 467 467 17/3/2010 12:49:46 Peter Kevin Spink, Marco Antonio Carvalho Teixeira e Roberta Clemente Metropolitana de João Pessoa, e por meio da diversos interesses entre os municípios, além criação de um Consórcio. Não há qualquer es- do clássico problema orçamentário originado trutura de Gestão Metropolitana em funciona- pela ausência de um fundo mais substantivo mento. No caso do Consórcio, ele é presidido de financiamento das políticas metropolitanas pelo governador do estado e conta com um re- e também pela incapacidade financeira dos presentante de cada uma das nove prefeituras, municípios ante os diversos problemas que os além do representante da Secretaria Estadual mesmos já enfrentam isoladamente. Também, de Planejamento. No entanto, nessa articula- pode-se considerar a ausência (salvo raras ex- ção, não há participação da sociedade civil ou ceções) de organização popular e comunitária do Legislativo. no âmbito metropolitano que poderia contri- Alem dessas experiências destacadas e buir para exercer pressão social sobre as ad- em progresso, há pelo menos uma experiência ministrações municipal e estadual (Gouvêa, que, mesmo tendo sido interrompida, mere- 2005). Na maioria das vezes, a sociedade civil ce menção: o caso do Parlamento Comum de se organiza em torno das fronteiras municipais Natal. O Parlamento se iniciou na Câmara de ou em outras lógicas territoriais como bacias Vereadores de Natal e agregou apoios das de- hidrográficas. mais câmaras municipais da Região Metropoli- Outro fator significativo refere-se ao fi- tana e da Ordem dos Advogados do Brasil es- nanciamento metropolitano. Da análise das tadual (OAB-RN). Foi criado como um espaço leis orçamentárias estaduais para o exercício que não se sobreporia aos legislativos munici- de 2008, somente seis receberam recursos pais da área metropolitana, tendo como papel superiores a R$40 milhões para órgãos de a organização da agenda metropolitana. Sem gestão metropolitana que são, em ordem de- local fixo, foi visto como uma entidade política crescente, Vitória, Curitiba, Recife, São Paulo, que identificaria problemas comuns e buscaria Porto Alegre e Goiânia. Ainda, quatro Regiões garantir a sua solução. O sistema comum de receberam recursos entre R$4 e 6,1 milhões: resíduos sólidos e a criação do conselho metro- Salvador, Baixada Santista, Campinas e Belo politano foram resultados diretos do trabalho Horizonte. Belém recebeu R$315.750,00, Vale do Parlamento (Clementino, 2003). do Aço, R$115.000,00 e Natal, R$100,00. As Existem várias razões para explicar a di- demais não foram contempladas com qualquer ficuldade de se criarem políticas públicas me- recurso. No entanto, mesmo as seis maiores tropolitanas. Por exemplo, a dificuldade em es- dotações, que se concentram na área de trans- tabelecer uma ação cooperada em situação de porte, representam menos do que um ponto rivalidade política entre municípios ou mesmo percentual do total do orçamento do estado entre municípios e o governo estadual; as dife- (Curitiba 0,28%, Porto Alegre 0,24%, Reci- renças econômicas e demográficas entre os mu- fe 0,43%, São Paulo 0,06%, Goiânia 0,39% nicípios que integram a Região Metropolitana, e Vitória 1,04%). Excluindo os investimentos a constante mudança de legislação especí- em transportes, as dotações específicas para fica no âmbito estadual, a falta de um órgão as Regiões Metropolitanas são irrelevantes. gestor que consiga reunir horizontalmente os Os resultados sugerem que há pouco incentivo 468 Book CM v11_n22.indb 468 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:46 Governança, governo ou gestão: o caminho das ações metropolitanas para programas metropolitanos e o que real- não institucional, parece ter tido mais efeito. mente existe é, em grande parte, o resultado Os consórcios intermunicipais cresceram a par- de uma estrutura organizacional local e de es- tir de acordos organizacionais horizontais de forços e ações individuais, acompanhados por cooperação entre governos municipais com ba- repasses convencionais entre secretarias esta- se na associação voluntária. duais e municipais. As primeiras experiências foram registra- Nossos dados confirmam os resulta- das dentro do estado de São Paulo nos anos dos do estudo de Rezende e Garson (2006) 1960 com o Consórcio para o Desenvolvimento que aponta uma grande disparidade entre os Social da região de Bauru, e nos anos 1970 com orçamentos per capita entre os municípios o Consórcio para o Desenvolvimento do Vale do integrantes das diferentes regiões metropo- Paraíba. São Paulo também seria o campo de litanas, resultante de uma fórmula complexa provas do primeiro consórcio intermunicipal de usada para a distribuição das transferências saúde na década de 1980 (Cruz, 2002). O uso constitucionais aos municípios e também das do modelo de consórcio entraria num boom no diferentes capacidades de arrecadação tributá- estado de São Paulo com o primeiro governo ria própria de cada um dos municípios. Na au- democrático de André Franco Montoro e, des- sência de um fundo estadual específico para o de esse período, existem consórcios em todas nível metropolitano, existem poucos incentivos as regiões do país e em muitas áreas de políti- para que os municípios com maior orçamento cas públicas. No caminho, experiências foram per capita transfiram recursos para os de me- transferidas dos pequenos municípios rurais ou nor capacidade de investimento. Ao contrário, da gestão de bacias hidrográficas e microde- a tendência é cada um negociar diretamente senvolvimento para os conglomerados urbanos com o nível estadual a fim de resolver ques- de grande porte. Na Grande São Paulo, os se- tões municipais específicas em determinadas te prefeitos da região do ABC negociaram um áreas de políticas públicas. consórcio intermunicipal que, iniciando com a gestão de água, incluiria política social, infraestrutura e desenvolvimento regional e criação O consórcio como uma estratégia intermunicipal ascendente? do Conselho de Grande ABC que reuniria líderes do setor empresarial, além de sindicalistas, grupos comunitários, movimentos sociais e representantes do governo estadual (Abrucio e Soares, 2001; Clemente, 1999; Cunha 2004; Se as regiões metropolitanas tiveram, em ter- Jacobi, 2001; Rolnik e Somekh, 2004). mos federativos, uma implantação de cima O fato de alguns municípios que formam para baixo, apoiadas por uma moldura insti- parte de uma região metropolitana serem tucional formal caracterizada pela associação capazes de criar formas altamente inovadoras obrigatória no interesse público e com muito de coordenação intermunicipal na formulação pouco resultado prático, um segundo tipo de e implementação de políticas públicas su- arranjo para a gestão intermunicipal, desta vez gere que os problemas com as agências das Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 469 469 17/3/2010 12:49:46 Peter Kevin Spink, Marco Antonio Carvalho Teixeira e Roberta Clemente regiões metropolitanas não se reduzem simplesmente a uma questão de incompetência pública genérica na gestão de situações A contribuição dos consórcios e as regiões metropolitanas organizacionais complexas. Por exemplo, além do consórcio do Grande ABC, há mais quinze Sem dúvida, entre as razões que poderiam ser consórcios na região metropolitana de São dadas para esse paradoxo entre os sucessos e Paulo envolvendo pelo menos um ou mais fracassos das duas abordagens articuladoras municípios da área metropolitana com ou- territoriais, há a questão da construção históri- tros municípios de áreas limítrofes. Tampouco ca dos sentidos da ideia metropolitana confor- é uma questão do norte e do sul, como o me já destacada. Deve-se considerar também consórcio bastante efetivo de produção a abas- que, em geral, os consórcios acontecem entre tecimento alimentar de São Luis de Maranhão municípios de tamanhos populacionais menos (Cinpra) demonstrou (Barboza e Arouca, 2003). dissimilares de que em certas áreas metropo- Igualmente é difícil associar a culpa da ineficá- litanas. Os consórcios são, comumente, mono- cia das regiões metropolitanas à herança au- temáticos, ou pelo menos se iniciam assim; um toritária militar, porque, como diversos autores outro fator pragmático-técnico que favorece têm comentado (Rolnik e Somekh, 2004, Aze- uma maior efetividade. vedo e Mares-Guia, 2004), o debate profissio- Em termos de democracia representati- nal nacional e internacional sobre planejamen- va ou até deliberativa, com poucas exceções11 to entre os urbanistas no período anterior ao não há grandes avanços, tanto no consórcios golpe de estado favorecia em muito esta ideia. quanto nas Regiões Metropolitanas. São arran- Poucos técnicos poderiam resistir ao canto da jos em geral de gestão e de governança limi- sereia representado pela ideia de uma agência tada. Os méritos de um em relação ao outro de desenvolvimento metropolitano. continuam no campo técnico. Curioso também Os consórcios nasceram sem nenhuma é o fato do recém-promulgado Estatuto da Ci- legislação e foram incluídos na constituição de dade, que teve o envolvimento dos esforços de 1988 como uma opção para organização inter- ONGs ativas no campo urbano e que exigem municipal de maneira muito genérica, sem uma que municípios acima de 20.000 habitantes te- legislação específica. Tal situação perdurou até nham um plano diretor democraticamente de- março de 2005, quando o Congresso Brasileiro senvolvido, tenha como foco o município, sem finalmente aprovou a lei dos consórcios. Na- contemplar as regiões metropolitanas. quele mesmo momento, apesar da inexistência Em contraste, os incentivos para muni- de legislação, o IBGE estimava a existência de cípios serem municípios são historicamente algo em torno de 5.000 consórcios envolvendo e culturalmente fortes. Para dar somente um mais da metade dos municípios do país, in- exemplo, na década de 1930, o Movimento cluindo municípios em áreas metropolitanas. Municipalista argumentou a favor da recriação 470 Book CM v11_n22.indb 470 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:46 Governança, governo ou gestão: o caminho das ações metropolitanas do pacto federativo em termos de uma fede- resistências demonstradas no passado, que a ração de municípios sem estados (Melo, 1993) solução seja pelo caminho de “governo”, pelo e, mesmo sem sucesso, não há dúvida que menos neste momento. Na questão de gover- essa tradição (seja por razões negativas ou no, a presença de uma “memória institucional” positivas) se manteve presente no processo ou de um “conceito pré-existente e potencial- constitucional de 1988, tornando o Brasil uma mente transferível” parece, entretanto, impor- exceção entre os países federativos por incluir tante. Por exemplo, o único governo metro- os municípios como parte do pacto. Mesmo politano na América Latina (Quito, Equador) hoje, a criação de novos municípios permane- é fruto desse processo de aproveitamento de ce um processo com forte vinculação popular. arcabouços institucionais já existentes; sendo As pessoas votam para se “emanciparem” de construído em cima do modelo de Cantones, uma municipalidade existente; o caminho é do equivalente a um condado. Sem dúvida, as experiências diferen- maior para o menor e não ao contrário. tes ao redor do mundo são uma fonte importante de inspiração, mas, pela tendência das Conclusão – as opções possíveis discussões no Brasil, dificilmente serão modelos a serem copiados sem adaptação. Se há uma lição importante das experiências em outras partes do mundo é que se deve evitar Qualquer busca por uma explicação simplifica- a construção de um modelo único a ser utili- dora para o sucesso relativo dos consórcios e o zado por todos, indiscriminadamente. Além de insucesso até agora das regiões metropolitanas suas características inevitavelmente “de cima seria inútil. Parece claro que não há uma única para baixo”, a própria diversidade das poucas explicação; ao contrário, há uma série de fios experiências brasileiras (Tabela 4), incluindo a explanativos que vão se juntando, criando um variedade de formas de articular consórcios, campo de forças que dificulta o avanço de um sugere uma abordagem mais aberta: do esti- e, aparentemente, facilita o avanço do outro. lo Buffet onde se monta o cardápio de acordo Além das explicações mencionadas, podemos com as circunstâncias. também considerar questões como a comple- Quais são os possíveis ingredientes, ou xidade interorganizacional – os consórcios se caminhos, levando em consideração que – pe- iniciam normalmente em número pequeno e lo menos até o momento – o público parece o monotematicamente, enquanto as regiões me- grande ausente em quase todas as experiên- tropolitanas normalmente começam com uma cias, sejam institucionais, organizacionais, grande agenda de questões e um grande elen- multitemáticas ou monotemáticas. Se boa par- co de atores municipais. te dos governos estaduais, e dos prefeitos de Mesmo tendo a experiência da cidade- capitais, não prioriza questões metropolitanas, estado de Guanabara e, hoje, do Distrito uma pergunta imediatamente se coloca: fazer Federal como um estado sem municípios, o que? Várias respostas podem surgir. Uma parece muito difícil, por causa também das seria o clássico “fazer nada”; resposta esta Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 471 471 17/3/2010 12:49:46 Peter Kevin Spink, Marco Antonio Carvalho Teixeira e Roberta Clemente moralmente muito difícil diante dos desafios agências metropolitanas. Experiências como a sociais e econômicos presentes. As áreas co- de Portland (Oregon) ou a de Vancouver ilus- nurbadas existem como tal e as ações neces- tram este processo.12 Entretanto, vale lembrar sárias dificilmente não poderão permanecer que o ponto forte dos consórcios não está na restritas ao nível municipal. Mesmo que não criação de novas instâncias democráticas. calculados conjuntamente, os custos sociais Uma quinta linha de ação seria a de e as deseconomias da situação atual são explicitamente organizar certos serviços imensas. (por exemplo, água, transporte coletivo, lixo, Uma segunda resposta seria a de se con- saneamento e saúde) em moldes puramente siderar seriamente o papel técnico do órgão metropolitanos, retirando-os institucionalmen- gestor, dotando-o da estrutura e de orçamento te do âmbito municipal e assumindo com serie- necessários para o adequado desenvolvimen- dade que o argumento da subsidiariedade não to de seu trabalho. Faz parte deste caminho é necessariamente monodirecional. Ou seja, de ação, também, adensar o espaço político reconhecer que há limites das capacidades de articulação das Regiões Metropolitanas. resolutivas municipais em situações conurba- Experiências de parlamentos metropolitanos das. Essa linha de argumentação é, sem dúvi- e de organizações sociais construídas em ter- da, mais fácil em situações de estado unitário mos de demandas metropolitanas poderiam onde há normalmente mais heterogeneidade e estimular os processos democráticos e o de- flexibilidade sobre o “quem faz o que”; situa- senvolvimento de uma cultura política voltada ção que dificilmente se aplicaria ao modelo para as demandas de natureza metropolitana. constitucional brasileiro. Uma variação desta Uma terceira, decorrente desta, é de aceitar abordagem é da jurisdição monotemática de a dificuldade do trabalho integrado e concen- políticas públicas específicas, como, por exem- trar a atenção em estratégias monotemáticas, plo, os distritos escolares independentes nos criando agências para questões específicas e Estados Unidos. Nestes casos, a organização desenvolvendo mecanismos de governança de é simultaneamente técnica e política; os resi- maneira similar. dentes da área territorial votam para os conse- Uma quarta alternativa seria a de aceitar como inevitável a dificuldade de construção de lheiros, que serão os responsáveis pelas ações temáticas específicas. um nível de governança metropolitana como Finalmente, resta ainda uma aborda- tal e de estimular no espaço conurbado o de- gem: o processo de emancipação ao inverso, senvolvimento de consórcios inicialmente mo- a criação de novos macromunicípios a partir de notemáticos, com o objetivo de estimular os um processo de absorção. Por mais estranho municípios envolvidos a desenvolverem ações que pareça, foi essa a estratégia usada pelo conjuntas, a partir das demandas consideradas Canadá para lidar – depois de diferentes ten- por eles como empiricamente fundamentais. tativas – com a conurbação que tem Toronto Em tempo, tais consórcios poderiam vir a as- como seu foco. Entretanto, dada a nossa for- sumir outros temas e até ocupar o lugar das te identificação municipalista, torna-se difícil 472 Book CM v11_n22.indb 472 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:46 Governança, governo ou gestão: o caminho das ações metropolitanas imaginar que tal opção seria considerada vá- se essencial e não opcional o monitoramento lida no Brasil. das experiências brasileiras em curso. Podem Diante dessa variedade de opções que ser nossos melhores guias para a discussão so- refletem também em parte as opções identifi- bre o que incluir no Buffet de opções práticas cadas por Klink (2008) e Lefevre (2008), torna- e sustentáveis. Peter Kevin Spink Doutor em Psicologia Organizacional pela Universidade de Londres. Professor Titular e Coordenador do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da Fundação Getulio Vargas-São Paulo (São Paulo, Brasil). [email protected] Marco Antonio Carvalho Teixeira Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor e Pesquisador do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da Fundação Getulio Vargas-São Paulo (São Paulo, Brasil). [email protected] Roberta Clemente Doutora em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas-São Paulo. Pesquisadora do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da Fundação Getulio Vargas-São Paulo. Assessora Técnica da Assembleia Legislativa de São Paulo (São Paulo, Brasil). [email protected] Notas (1) Dados Emplasa, 2008. Disponível em http://www.emplasa.sp.gov.br/portalemplasa/infometropolitana/brasil/regioes.asp. Acesso em 14/6/2008. (2) Patrick Geddes, Cities in Evolution, 1915. (3) Conforme estudos desenvolvidos pela Emplasa. (4) Neste texto, usamos áreas metropolitanas quando discutimos grandes aglomerados conurbados em geral, e regiões metropolitanas quando tratamos dos conjuntos municipais especificados pela legislação brasileira. (5) Um colega de Argentina comentou uma vez que talvez a única pessoa que realmente se preocupava com a área metropolitana de Buenos Aires era o distribuidor de Coca-Cola. (6) Um modelo de coordenação muito ortodoxo entre planejadores da época. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 473 473 17/3/2010 12:49:47 Peter Kevin Spink, Marco Antonio Carvalho Teixeira e Roberta Clemente (7) Gouvêa (2005) segue uma linha similar de argumento anotando a falta de precisão na Constituição de 1988 e a necessidade de distinguir entre regiões metropolitanas, aglomerações urbanas de escala intermediária e microrregiões. (8) IBGE. A rede urbana brasileira 2008. Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/ geografia/regic.shtm. Acesso em 13/6/2009. (9) Não queremos sugerir que gestão ou governança metropolitana seja impossível nas demais, mas que talvez uma distribuição mais equânime dos portes populacionais facilita a discussão interjurisdicional. Sobre essa questão ver também Fernandes (2004). (10) Ver Azevedo, Mares Guia e Machado (2008) para uma descrição mais detalhada. (11) A experiência pontual do Parlamento Comum de Natal e o Consórcio do Grande ABC. (12) No caso de Portland, a primeira ação foi na área de lazer: um jardim zoológico intermunicipal. Referências ABRUCIO, F. e SOARES, M. M. (2001). Redes federativas no Brasil: a experiência do Grande ABC em perspectiva comparada. São Paulo, Fundação Konrad Adenauer. ARAÚJO FILHO, V. F. (1996). “Antecedentes político-institucionais da questão metropolitana no Brasil”. In: CARDOSO, E. D. e ZVEIBEIL, V. Z. (orgs.). Gestão metropolitana: experiências e novas perspectivas. Rio de Janeiro, IBAM, pp. 49-70. AZEVEDO, S. e MARES-GUIA, V. R. dos. (2004). “Os dilemas institucionais da gestão metropolitana no Brasil”. In: QUEIROZ RIBEIRO, L. C. de (org.). A Metrópole: entre a coesão e a fragmentação, a cooperação e o conflito. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, pp. 17-40. AZEVEDO, S.; MARES-GUIA, V. R. dos e MACHADO, G. (2008). “A Prefeitura de Belo Horizonte e a questão metropolitana”. In: AZEVEDO, S. e NABUCO, A. L. Democracia Participativa: a experiência de Belo Horizonte. 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Texto recebido em 17/jun/2009 Texto aprovado em 30/jul/2009 476 Book CM v11_n22.indb 476 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 453-476, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:47 Agenda de gestão urbana participativa versus elite política conservadora: o caso de Salvador Participatory urban management agenda versus conservative political elite: the case of Salvador Antônio Sérgio Araújo Fernandes Resumo Este texto procura fazer uma breve discussão acerca da evolução da agenda de desenvolvimento urbano dos organismos multilaterais, sobretudo o Banco Mundial (World Bank), o Centro das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (UNCHS) Habitat e o Cities Alliance, procurando observar o avanço desta agenda, que traz no contexto atual uma ênfase na sustentabilidade das políticas, ou seja, além da participação comunitária, o desenvolvimento de programas de educação, geração de emprego e renda, junto com o fortalecimento do capital social das comunidades envolvidas. Para ilustrar, trazemos um exemplo paradoxal que é o caso de Salvador, onde esta nova agenda progressista foi exercida a partir de um governo composto por uma elite política conservadora. Abstract This text aims to discuss the evolution of the urban development agenda of multilateral organizations, especially the World Bank, the United Nations Center for Human Settlements (UNCHS) - Habitat and Cities Alliance, trying to observe the progress of this agenda, which currently emphasizes sustainable policies, that is, in addition to community participation, the development of education, employment and income generation programs, along with the strengthening of the social capital of the involved communities. To illustrate this, we provide a paradoxical example that is the case of the city of Salvador, where this new progressive agenda was exercised by a government composed of a conservative political elite. Palavras-chave: agenda de desenvolvimento urbano; organismos multilaterais; participação comunitária; elite política conservadora; sustentabilidade das políticas. Keywords: urban development agenda; multilateral agencies; community participation; conservative political elite; sustainable policies. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 477-493, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 477 17/3/2010 12:49:47 Antônio Sérgio Araújo Fernandes década, com o avanço da globalização econô- Introdução mica e financeira, as grandes cidades, mesmo as metrópoles do terceiro mundo, começam a Desde a década de 80 uma constatação tem exercer papéis estratégicos dentro do cenário sido reforçada, constituindo um paradigma do- econômico mundial como locais de atração dos minante no que se refere à intervenção urba- novos investimentos diretos que surgem com na em países em desenvolvimento tais como o as empresas transnacionais industriais e de ser- Brasil. Esta constatação diz respeito ao fato de viços (Harvey, 1989; Borja e Cartels, 1996). que a busca de soluções para o problema urba- Do lado dos governos locais das grandes no em países em desenvolvimento requer não cidades brasileiras, essa compreensão se dá ao apenas a intervenção física no espaço da cida- longo do tempo pela falência do modelo cen- de, mas também a participação da população tralizado de financiamento habitacional e de envolvida. À medida que vão se reduzindo as infraestrutura, verificado desde a década de carências urbanas, por meio de investimentos 80. Assim, experimenta-se um momento nas e reformas no espaço urbano (saneamento, ha- áreas metropolitanas brasileiras em que a re- bitação e infraestrutura), esta visão vai sendo solução de problemas urbanos relacionados à aperfeiçoada ao longo da década de 90, quan- habitação e à recuperação de áreas pobres e do se observa o início de um novo consenso por faveladas vai necessitar de uma complexa es- parte de governos, terceiro setor e organismos trutura de governança urbana que exige maior multilaterais de apoio acerca da resolução do agilidade e articulação por parte dos governos problema das populações pobres e faveladas locais. De processos que envolvem a popula- em grandes cidades do terceiro mundo. Este ção a participar da gestão da política, como se consenso por parte dos envolvidos com a so- verificou em muitas experiências durante a dé- lução dos problemas urbanos em metrópoles cada de 80 e 90 em grandes cidades do país, de países em desenvolvimento, e que é preva- tem-se mais recentemente a adição do critério lecente no contexto atual, aponta para a neces- de sustentabilidade da intervenção, que requer sidade de aliar ao planejamento e às obras de educar e capacitar as comunidades pobres, urbanização, programas sociais como educação além de promover oportunidades de emprego básica, capacitação profissional e conscienti- e fortalecer o capital social. zação ambiental, além do fortalecimento da Este texto procura fazer uma breve dis- organização comunitária buscando utilizar e cussão acerca da evolução da agenda de de- potencializar o seu capital social. senvolvimento urbano dos organismos mul- Do lado das agências multilaterais de tilaterais, sobretudo o Banco Mundial (World apoio, esta constatação é um efeito lógico do Bank), o Centro das Nações Unidas para As- aprendizado de mais de trinta anos de prática sentamentos Humanos (UNCHS) – Habitat e de intervenção, resultando numa ênfase maior o Cities Alliance, procurando observar o avan- no relacionamento direto com as cidades e ço desta agenda, que traz no contexto atual seus atores envolvidos no problema urbano. uma ênfase na sustentabilidade das políticas, Junta-se a isso o fato de que ao longo da última ou seja, além da participação comunitária, o 478 Book CM v11_n22.indb 478 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 477-493, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:47 Agenda de gestão urbana participativa versus elite política conservadora desenvolvimento de programas de educação, internacionais que passava a incorporar as no- geração de emprego e renda, junto com o for- vas realidades em suas prescrições visando me- talecimento do capital social das comunidades lhores práticas. Assim, ao mesmo tempo que se envolvidas. Para ilustrar, trazemos um exemplo fala da evolução da agenda de política urbana paradoxal que é o caso de Salvador, onde esta das agências multilaterais se está falando tam- nova agenda progressista foi exercida a partir bém da evolução da agenda de política urbana de um governo composto por uma elite política do país por entender esses processos como re- conservadora. troalimentadores recíprocos na busca do esta- O texto é composto de duas seções, além belecimento de padrões que refletissem a reali- desta introdução e de considerações finais. A dade de uma política urbana exequível e viável. seção a seguir trata da evolução da agenda Ou seja, à medida que a agenda internacional do Banco Mundial sobre política urbana em avançava, a política brasileira também o fazia paralelo à evolução da agenda de política ur- no que se refere à gestão urbana de grandes bana no Brasil. E a seção subsequente trata cidades no país. do caso de Salvador, com o desenvolvimento Vamos tomar como base aqui os traba- de um programa de recuperação urbana pelo lhos no Brasil de Werna (1996), Klink (2003) governo do estado da Bahia e sua companhia além de Melo e Moura (1990) que já desen- metropolitana de planejamento em parceria volveram análises sobre a evolução da agen- com o Banco Mundial realizado ao longo dos da internacional de desenvolvimento urbano, anos 90 e início do século XXI, que seguiu cri- assim como alguns relatórios trazendo avalia- térios de gestão prescristos pelo Banco em sua ções abrangentes das próprias agências multi- agenda mais recente, tais como governance e laterais sobre política urbana, tais como World capital social, ainda que a elite política do go- Bank (1983; 1991) e UNCHS (1988), UNCHS- verno baiano durante a gestão fosse bastante World Bank-UNDP (1994) e demais referências conservadora. sobre o assunto que serão usadas durante o texto. Evolução da agenda internacional e da gestão urbana no Brasil Anos 70 e primeira metade dos 80: produtos de grande escala metropolitana A evolução da agenda das agências multilate- Pode-se considerar como uma primeira fase da rais sobre política urbana será analisada em pa- agenda dos organismos multilaterais, com des- ralelo à evolução da agenda de política urbana taque aí para o Banco Mundial no que se refere no Brasil. Acredita-se aqui que esses processos à política urbana o período compreendido do são concomitantes e à medida que a realidade pós-guerra imediato até a primeira metade dos política brasileira apontava para novos cami- anos 70. Esse período foi fortemente domina- nhos estes eram absorvidos pelos organismos do por uma abordagem de cunho tecnocrático. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 477-493, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 479 479 17/3/2010 12:49:47 Antônio Sérgio Araújo Fernandes Enfatizava-se a elaboração de grandes progra- conjunto de projetos urbanos nas três regiões mas padronizados, com pouco envolvimento metropolitanas do Nordeste: Recife, Salvador dos cidadãos, tendo como característica bási- e Fortaleza. O Programa RM/NE foi iniciado na ca projetos de grande escala, frequentemente Região Metropolitana de Recife em 1982, indo importados dos modelos de desenvolvimento até 1988 com o nome de Projeto Grande Re- urbano europeus ou norte-americanos. Nes- cife.1 Na região Metropolitana de Salvador, o se período, a prioridade estava nos produtos Programa RM/NE tem início em 1986 e finaliza concretos, em geral homogêneos, como foram em 1997, sob a gestão do governo do estado as experiências dos grandes conjuntos habi- da Bahia, por meio de sua companhia metro- tacionais suburbanos que deveriam assegurar politana, a Conder, com o nome de Projeto eficácia e eficiência nas escalas de intervenção Metropolitano.2 das agências de desenvolvimento e dos gover- A política urbana no Brasil nesse perío- nos federal e estaduais (Werna, 1996). O perfil do estava alicerçada no Banco Nacional de dos empréstimos na área urbana assume este Habitação (BNH), criado em 1964 e extinto em contorno nessa época desde 1971, quando se 1986, instituição financiadora, formuladora e iniciam as operações urbanas do Banco Mun- cogestora da política urbana no país. Mantido dial no Brasil (Melo e Moura, 1990). por recursos do FGTS, o BNH inicia suas ações O resultado principal deste período é que na área habitacional, porém, ao longo do tem- o impacto para seu público-alvo foi pequeno, po, foi se tornando uma agência multissetorial ou seja, os grupos sociais de baixa renda foram de desenvolvimento urbano financiando, além pouco beneficiados. O padrão de financiamen- da habitação, os setores de saneamento e to dos projetos era normalmente alto e com is- transportes (Arretche, 1996; Melo, 1993). Nesse so terminaram nas mãos de famílias de renda período, por meio de financiamento do BNH, é média/alta, mesmo assim estas tendo uma sé- criado o Planasa – Plano Nacional de Sanea- rie subsídios e concessões do BNH. Ao longo do mento (1971) que tinha como agências pro- tempo, este tipo de intervenção entrou em crise motoras nos estados as companhias estaduais devido aos problemas financeiros do Estado, de saneamento básico. Na área de habitação, que não conseguiu viabilizar o financiamento as cogestoras e executoras nos estados eram da habitação popular com base em padrões as COHABs e as prefeituras. As razões para a tão elevados. Esse sistema obviamente acabou extinção do BNH segundo os autores que in- resultando em um número cada vez maior de vestigaram este assunto, tais como Arretche dificuldades ao se tentar obter os recursos fi- (2000) e Melo (1993), se constitui numa teia nanceiros necessários dos beneficiários na es- complexa de causas, que estão ligadas, em fera da cidade. linhas gerais, à crise do FGTS no contexto da No que se refere aos programas integra- recessão econômica do início da década de dos de desenvolvimento em escala metropoli- 80, quando, ao carregar a maior parte do seu tana, destacam-se o Programa RM/NE iniciado montante no desembolso indenizatório, levou à em 1980 pelo Banco Mundial, juntamente com redução de arrecadação líquida, fazendo com o governo federal, e que visava financiar um que o BNH ao longo do tempo se tornasse 480 Book CM v11_n22.indb 480 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 477-493, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:47 Agenda de gestão urbana participativa versus elite política conservadora insolvente. E também à desarticulação da tipo lote urbanizado, característicos desta fase, estrutura burocrática do BNH combinada com não apenas provaram ser muito mais factíveis, uma fraca coalização política durante a rede- mas também aumentaram de forma substan- mocratização para assegurar a reorganização cial a flexibilidade do sistema de acordo com da política habitacional do país em novas ba- a demanda por habitação ao longo do tempo. ses transformando o BNH numa nova agência Normalmente, os programas eram combina- de financiamento. dos e complementados com mutirões ou até Em paralelo a isso, na esfera do planeja- mesmo com programas de autogestão. Entre- mento dentro da estratégia centralista do go- tanto, esses casos de sucesso dos programas verno federal visando, mais uma vez, integrar não conseguiram ser replicados massivamente, o planejamento e desenvolvimento econômico dado que não estavam suficientemente ligados e social do país cria as regiões metropolitanas a estruturas institucionais mais amplas e políti- 3 em torno de nove capitais brasileiras, junto cas públicas gerais no nível das cidades. Além com a criação das companhias metropolitanas disso, no caso brasileiro, existia o contexto de de planejamento. Planejamento este de cunho forte centralização de recursos onde as cidades urbanístico, isto é, zoneamentos urbanos e pla- estavam submetidas a condicionantes do fede- nos urbanísticos guiados por diretrizes de ex- ralismo fiscal do país, que influenciou dramati- pansão e controle do crescimento urbano em camente o sucesso de projetos urbanos. área metropolitana. Um exemplo desta época é a criação, No início da década de 80 a abordagem em 1979, pelo governo federal, do Promorar tecnocrática e centralizada passa por uma (Programa de Erradicação de Sub-habitação), rápida mudança, que indicava o embrião da que recebeu empréstimos do Banco Mundial. avaliação crítica que seria observada ao lon- O Promorar visava a erradicação das favelas go dos anos 80 pelo Banco Mundial acerca com regularização da posse de terra e a subs- dos resultados desse paradigma (World Bank, tituição de barracos por casas de alvenaria na 1983). Essa mudança ainda que incremental mesma área de moradia.4 Foi o único programa no padrão de desenvolvimento urbano gira desenvolvido pelo governo federal, até aquele em torno de um modelo mais flexível em re- momento, que possibilitava a permanência da lação ao anterior. Os programas passam a ser população ocupada em área anteriormente ha- focados para as populações pobres, sendo ela- bitada (Maia, 1996, p. 96). As unidades eram borados dentro de uma escala menor e com o entregues em terrenos de 75m², ocupando su- envolvimento e participação direta das comu- perfície de 25m² com cômodo polivalente e ba- nidades locais. Como resultado, obtiveram-se nheiro, oferecendo possibilidade de ampliação melhores informações sobre as necessidades e (Taschner, 1997, pp. 50-51). Além do Promorar, carências, que levaram a projetos com padrões cabe lembrar aqui também o Ficam (Financia- urbanísticos mais realísticos, isto é, mais viá- mento para a Fabricação de Materiais de Cons- veis do ponto de vista financeiro e também trução) e o João de Barro. Antes do Promorar, mais alinhados com as condições econômicas o governo federal criou o Profilurb (Programa das famílias de baixa renda. Os programas do de Financiamentos de Lotes Urbanizados) – Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 477-493, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 481 481 17/3/2010 12:49:47 Antônio Sérgio Araújo Fernandes site and service, programa habitacional para famílias de baixa renda que tinha como objetivo permitir a população pobre adquirir uma parcela de terra já servida de infraestrutura básica – luz, água e esgoto (Taschner, 1997, p. 50). Assim, pode-se definir esse primeiro momento da agenda do Banco Mundial com relação à política urbana como caracterizado por projetos de grandes escalas – projetos integrados de desenvolvimento em escala metropolitana, assim como projetos setoriais e focalizados de habitação popular. Nesta fase são valorizados os produtos e ainda é dada pouca importância ao modus operandi, ou o processo de gestão das políticas, algo que só se observará a partir de meados dos anos 80. No que se refere ao padrão dominante de gestão urbana no país que acompanhava em paralelo as prescrições políticas do Banco Mundial pode-se definir como um modelo tecnocrático, centralizado e fechado de intervenção, baseado no financiamento de grandes agências nacionais e sem muita participação das comunidades locais. que começou a ser tendência em projetos urbanos no final dos anos 80, ganha intensidade e a capacitação de lideranças e das comunidades tornou-se um elemento relevante. A capacitação não só beneficiaria os atores envolvidos nos projetos, mas os tornaria facilitadores de um processo mais amplo de aprendizado político pela prática. A primeira iniciativa dos organismos multilaterais neste sentido foi a criação, ao final dos anos 80, do Programa de Gestão Urbana (PGU), ação conjunta coordenada pelo Habitat (UNCHS) com o apoio do Banco Mundial e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Fundamentalmente, a ideia essencial do PGU é promover estratégias e mecanismos de capacitação para mobilizar recursos humanos materiais e financeiros para organizar a inserção de governos e agências municipais, comunidades de base e ONGs no desenvolvimento de projetos urbanos e habitacionais. É nítido que, a partir deste marco, torna-se importante na agenda internacional de política urbana todo o ciclo do projeto com ênfase nas etapas de monitoramento e a avaliação. Ou seja, há uma preocupação agora Segunda metade dos anos 80 e início dos 90: processo de gestão e a governance urbana com o estabelecimento de boas práticas que poderiam ser replicadas para uma escala maior se fosse dada a devida atenção para o processo de aprendizagem durante a fase de formulação À luz das falhas observadas ao longo da década e implementação. Isso implica o aumento do de 70, as políticas de desenvolvimento urbano trabalho direto entre as agências internacionais dos organismos internacionais começaram no por um lado, e as cidades como novos atores final dos anos 80 e início dos 90 a caminhar pa- territoriais, por outro lado, visando criar indica- ra a chamada “abordagem do processo”. Sua dores de avaliação dos processos e não mais principal característica foi a conscientização simplesmente dos produtos. Ou seja, os investi- de que bons projetos e programas em si são mentos daí para frente deveriam ser avaliados insuficientes para assegurar desenvolvimento pela capacidade de pessoal para gerenciamen- urbano em países em desenvolvimento (World to também e pela capacidade institucional de Bank, 1983). O envolvimento das comunidades, sustentabilidade. 482 Book CM v11_n22.indb 482 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 477-493, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:47 Agenda de gestão urbana participativa versus elite política conservadora Em 1991, o Banco Mundial publica sua tipo: arcabouço institucional das cidades; redes agenda de política urbana (World Bank, 1991) de atores locais; estabelecimento de parcerias para os anos 90 seguindo as diretrizes do PGU público-privado (com ONGs e empresas); grau e estabelecendo quatro pontos a serem se- de descentralização política e administrativa. O guidos que mostram claramente a adoção de conceito de boa governança reforça o fato de uma abordagem de processo para o desenvol- que o governo local é um ator importante, mas vimento urbano: a) melhoria da produtividade não o único, na elaboração e implementação urbana (pelo fortalecimento do setor privado); de políticas urbanas. O papel do governo local b) combate a pobreza; c) proteção ao meio é articular e facilitar, ao invés de implementar, ambiente; d) investimento em pesquisa. Essa as políticas urbanas dentro de um sistema de agenda do Banco Mundial para política urba- redes de atores locais, composta por empresas na encontra-se em um momento em que esta e suas associações, sindicatos de trabalhado- agência está passando por um processo de res, ONGs, organizações comunitárias, universi- redefinição do papel do estado nos países em dades, centros de pesquisa e a imprensa local, desenvolvimento. Seu relatório de 1992, inti- entre outros (Diniz e Coelho, 1995). Além dis- tulado: Governance and Development (World so, as cidades são consideradas mais do que a Bank, 1992), propõe o fortalecimento das ins- soma total dos beneficiários dos projetos. Elas tituições democráticas nos países em desen- representam os novos atores territoriais, cada volvimento com o envolvimento da iniciativa vez mais ligados a uma economia internacio- privada na provisão de serviços públicos, a nal aberta, e com vantagens específicas para a descentralização política e administrativa e a criação de competitividade urbana e de novos participação e controle social ( accountability ) espaços para a democratização da gestão ur- por meio do empowerment da sociedade ci- bana (Borja e Castells, 1996). vil. O Banco Mundial, a partir de Governance No Brasil, ao final da década de 80 e iní- and Development, está reafirmando a importância da sociedade civil para a qualidade da democracia e o bom desempenho dos governos. Para isso, o fortalecimento da sociedade civil seria do ponto de vista do Banco Mundial a única forma de contrabalançar o poder de burocracias ineficientes e corruptas dos países em desenvolvimento (Frischtak, 1994). A governança urbana passa a prevalecer na década 90 como padrão de desenvolvimento urbano. Neste momento, as agências multilaterais passam a trabalhar com indicadores de desempenho nos programas ligados a habitação e infraestrutura compostos por variáveis do cio dos anos 90, a agenda da política urbana de capitais e grandes cidades vai encontrando um consenso congruente com a reflexão das agências multilaterais como o Banco Mundial e o Habitat. Este consenso gira em torno da constatação, por parte de gestores, políticos e sociedade civil, de que a falência, desde a década de 80, de um modelo centralizado de financiamento habitacional e de infraestrutura urbana requer uma complexa estrutura de governança que exige maior agilidade e articulação por parte dos governos locais. Assim, processos de participação e controle social tornaram-se palavra de ordem para governantes Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 477-493, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 483 483 17/3/2010 12:49:47 Antônio Sérgio Araújo Fernandes de capitais e grandes cidades no país, como se desempenho da atividade governamental a verificou em muitas experiências durante a dé- utilização de práticas de gerenciamento em- cada de 90. A participação social no processo presarial e marketing na gestão pública, este de administração municipal é contemplada na último visando à promoção interna e externa Constituição de 1988 e regulamentada por leis da cidade (Harvey, 1989; 1989a; 1989b). complementares que preveem o estabelecimento de conselhos deliberativos no que tange a descentralização das políticas sociais, com a municipalização dos serviços de saúde e assis- Século XXI: da governança ao capital social tência social, bem como na área de educação e defesa da criança e do adolescente. Além disso, Ao final da década de 90, a agenda de políti- inúmeros governos locais de capitais e grandes ca urbana internacional calcada pelos critérios cidades ocupados por partidos ou coalizões de de governança aprofunda a discussão acerca partidos progressistas, ao longo da década de do combate à pobreza em áreas urbanas fa- 90, vão desenvolver práticas objetivando de- veladas no mundo. O consenso principal no mocratizar a gestão e com isso ampliar o exer- contexto atual por parte de governos, ONGS cício da cidadania e realizar uma inversão de e organismos multilaterais de apoio é que a prioridades na agenda de governo, visando dar complexidade do problema urbano para popu- ênfase ao atendimento às carências urbanas lações pobres de países em desenvolvimento mais imediatas. Experiências já bastante co- aumenta na medida em que se constata que nhecidas e muito difundidas, como orçamento apenas a intervenção física no espaço físico participativo, mutirões habitacionais, fóruns das cidades com participação e controle da po- de cidade e conselhos municipais são exem- pulação não é o suficiente para tornar susten- plos de ativismo democrático na gestão local. táveis os programas de reestruturação urbana Uma outra dimensão da renovação da agenda e combate à pobreza das populações residen- de gestão municipal no Brasil na década de tes em favelas. Junto com o planejamento e 90 refere-se a iniciativas de governos locais as obras de urbanização e habitação, torna-se em desenvolver parcerias com o setor privado necessário aliar programas sociais como edu- em políticas de desenvolvimento visando su- cação básica, capacitação profissional e cons- perar crises de governabilidade causadas por cientização ambiental, além do fortalecimento escassez de recursos públicos (Ribeiro, 1995). da organização comunitária buscando utilizar É a chamada perspectiva do empreendedoris- e potencializar o capital social das comunida- mo local em que o governo atua como articula- des. Diante disso, foi criado em 1999, a Cities dor de forças sociais a partir da criação de Alliance, um fórum composto por organismos mecanismos de cooperação público-privado, multilaterais tendo à frente o Banco Mundial e assim como a partir da formação de consen- o Habitat que visa apoiar iniciativas dos gover- sos em torno de projetos estratégicos (Moura, nos de países em desenvolvimento em parceria 1996, pp. 34-35). Passa a ter relevância no com a sociedade na erradicação de favelas e 484 Book CM v11_n22.indb 484 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 477-493, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:47 Agenda de gestão urbana participativa versus elite política conservadora melhoria das condições de vida urbana para as comunidades carentes nas cidades do terceiro mundo. Além disso, procura difundir entre a comunidade internacional experiências bemsucedidas nessa área. Em seu último relatório anual de 2002 (Cities Alliance, 2002), dois O caso de Salvador: o paradoxo da agenda progressista atual do banco mundial com uma elite conservadora projetos no Brasil aparecem como exemplos a serem replicados, o Programa Ribeira Azul em Programa Ribeira Azul em Salvador Salvador que será comentado a seguir e o programa Bairro Legal desenvolvido pela Secreta- Em Salvador, a grande área urbana localizada ria de Habitação e Desenvolvimento Urbano da na chamada cidade baixa, que vai desde a en- Prefeitura de São Paulo. seada dos Tainheiros até a enseada do Cabrito, Além disso, entra uma nova variável para possui uma característica comum em toda sua o combate à pobreza urbana que é o capital so- ocupação, a existência de favelas dentro do cial ou o estabelecimento de laços de confiança mar, compostas de barracos sustentados por e solidariedade capazes de aumentar a produ- palafitas. Com a consolidação da ocupação, ao ção de capital humano e capital fixo (Putnam, longo do tempo, a principal e maior zona nessa 1996; 1993). Para o Banco Mundial, nos anos área, foi denominada Alagados.5 As primeiras recentes, o capital social tem sido identificado ocupações naquela região datam de 50 anos como um componente importante de desenvol- atrás e durante o final da década de 70 e início vimento econômico e social, tanto no nível ma- da década de 80, a região de Alagados passou cro quanto no nível microeconômico. Capital por intervenções da Hamesa (Habitação e Me- social refere-se a instituições, relações, redes e lhoramentos Urbanos S/A), extinta empresa de normas que moldam a quantidade e qualidade habitação do governo do estado. Entretanto, o das interações sociais (www.worldbank.org/ que se observou, desde aquele período até o poverty/scapital). Essas relações conduzem os início da década de 90, é que a invasão de pa- atores a mobilizar os melhores recursos e a en- lafitas em Alagados se multiplicou ao invés de contrar os melhores objetivos. Apesar de ainda diminuir ou desaparecer. Uma vez concluída a não possuir nenhum relatório específico anali- intervenção em Alagados, novas invasões den- sando como as várias formas de capital social tro do mar naquela região ocorreram formando habilitam os pobres a participar ativamente os Novos Alagados. dos benefícios do processo de desenvolvimen- A partir de 1993, o governo do estado to, o Banco Mundial dedica um espaço subs- da Bahia, por meio da Conder,6 em parceria da tancial à contribuição de diversos técnicos e ONG italiana Associação de Voluntários para o diversos estudos de caso sobre experiências de Serviço Internacional (AVSI)7 e o Banco Mun- produção de capital social em todos os países dial, passa a desenvolver intervenções contí- em desenvolvimento. nuas na região visando a retirada das palafitas Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 477-493, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 485 485 17/3/2010 12:49:47 Antônio Sérgio Araújo Fernandes e o reassentamento dos moradores para casas desenvolveram o Programa Viver Melhor, que com infraestrutura urbana em áreas contíguas tinha como alvo de intervenção a área de Ala- aos antigos barracos. gados I e Alagados II. Em 1999 é que surge O PRA surge em 1994 como um progra- o PRA, que possuía como missão aumentar ma de recuperação urbana da favela de Novos a escala de intervenção na reestruturação Alagados compondo parte do Projeto Metro- urbana das favelas a partir da experiência de politano. O Projeto Metropolitano, que contava Novos Alagados, desta vez com um alcance com empréstimo do Banco Mundial, foi inicia- maior, buscando atingir uma parte da região 8 do em 1986. Entre 1988 e 1991, não obteve do subúrbio de Salvador localizada entre a alocação de recursos da União nem do governo Enseada dos Tainheiros e a Enseada do Cabri- estadual. Em 1992, o Projeto foi reformula- to. A área total de intervenção prevista para do, estabelecendo-se um montante de US$77 o PRA é de 4 km 2, que corresponde a 1,3% milhões para sua aplicação, sendo US$36,6 da área do município de Salvador e busca be- milhões a participação do Banco Mundial e a neficiar 150.000 pessoas correspondendo a contrapartida de US$40,4 milhões restantes 42.500 domicílios – sendo 2.500 destes em bancada exclusivamente pelo governo do es- palafitas e 40.000 em áreas adjacentes, o que tado da Bahia. A maior parte dos recursos foi representa 25% do total da população favela- aplicada em limpeza pública – US$24 milhões da da cidade. O perímetro de atuação do PRA (31,3%) – e recuperação urbana – US$22,5 mi- é composto por um conjunto de doze comuni- lhões (29,4%), onde está inserida urbanização dades: Alagados I; Alagados II; Alagados III, da favela de Novos Alagados. Como projetos de Alagados IV e V; Alagados VI; Baixa do Ca- recuperação urbana na cidade de Salvador que ranguejo; Joanes Centro-Oeste; Mangueira; foram realizados pela Conder com recursos do Mudança; Novos Alagados I; Novos Alagados Projeto Metropolitano destacam-se: a recupe- II e São João. ração da favela Novos Alagados, a recuperação Foram beneficiadas mais de 10.000 dos Parques de Abaeté, de Pituaçu e a cons- pessoas, que passaram de ex-moradores trução do Parque Costa Azul, a participação das palafitas, que foram erradicadas. Até o na recuperação do Centro Histórico Pelouri- momen to as obras concluídas são: Novos nho com a instalação da iluminação subterrâ- Alagados (1ª etapa); Joanes Centro-Oeste; nea, a construção de um edifício garagem e a Mangueira; Mudança; Alagados I e II e Baixa elaboração de estudos técnicos para o lugar do Caranguejo. No momento encontram-se (Conder, 1997). No projeto de recuperação da em andamento as obras em Novos Alagados favela de Novos Alagados, entre 1993 e 1997, (2ª etapa); Alagados IV e V e Joanes Azul foram construídas 1.692 habitações com custo (1ª parte). E as próximas obras previstas são total de U$5.000.000,00, dos quais cerca de Alagados III e Joanes Azul (2ª parte). Além dis- U$3.500.000,00 foram recursos oriundos do so, uma parte da construção de uma pista de Projeto Metropolitano. borda que ocupará toda a margem da orla on- A par tir de 19 9 8 , a Ur bis , junto com a Conder em parceria com a AVSI, 486 Book CM v11_n22.indb 486 de antes existiam palafitas já foi feita e a obra no momento encontra-se em continuidade. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 477-493, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:47 Agenda de gestão urbana participativa versus elite política conservadora O gasto orçamentário anual do projeto Municipal de Salvador, 1 membro do Ministé- somou cerca de U$ 52 milhões de dólares. Des- rio das Relações Exteriores da Itália (MAE), 1 tes valores participaram junto com o governo membro do Banco Mundial, 1 membro da AVSI do estado da Bahia, o Banco Interamericano de e 5 representantes comunitários que são esco- Desenvolvimento (BID), a AVSI, o Ministério das lhidos pelo Grupo de Representantes da Comu- Relações Exteriores da Itália (MAE) e o Ban- nidade. Essa instância abriga 52 lideranças das co Mundial. O PRA é desenvolvido desde seu 11 comunidades na área de atuação do PRA e início em parceria com a AVSI e tem adotado foi formado em outubro de 2002. uma metodologia de trabalho que busca incluir à recuperação física do espaço urbano (água, esgoto, pavimentação, drenagem e energia elétrica) a dimensão socioambiental (preservação Elite política conservadora e a adoção de uma agenda de gestão progressista do manguezal), a promoção social (educação básica, capacitação profissional e programas Os aspectos de governance observados no de geração de emprego e renda) assim como o programa Ribeira Azul foram uma exigência envolvimento da comunidade (associativismo e do Banco Mundial e da ONG AVSI que partici- cooperativismo). param como cogestoras da política. A Conder O Projeto de Apoio Técnico e Social é um órgão que se caracteriza historicamente (PATS) que representa a parte do PRA onde por ter uma linha de ação tecnocrática, que se se desenvolve a área social e de cidadania foi coaduna com o perfil político da elite que di- impulsionado com a vinda da missão de 2000, rige o estado da Bahia liderada pelo senador composta por representantes do MAE, do Ban- Antônio Carlos Magalhães (ACM). Inclusive, co Mundial da ONU-Habitat e do Cities Allian- esse é um dos motivos que ajudam a explicar ce. Foi com a discussão realizada por estes or- a sobrevivência de uma companhia de plane- ganismos com o governo do estado que o PRA jamento metropolitano, dado que se observa teve a orientação de inserir um Plano Social que na maioria das capitais os órgãos metro- dentro do PRA como pré-requisito necessário politanos de planejamento ou foram extintos, para o aporte de recursos. Com base, portanto, ou existem com uma função assessória às Pre- nas discussões e orientações, dos representan- feituras (Fernandes, 1998, 2002; Souza 1997, tes do MAE, a Conder elaborou o PATS que foi 2001). Apesar de se constituir numa grande aprovado pelo Comitê de Orientação para o força política hegemônica para o estado da Desenvolvimento Cooperativo da Itália. Note- Bahia, dentro da cidade de Salvador, o grupo se que todos recursos doados pelo MAE estão político liderado pelo Senador ACM do PFL vinculados ao PATS. não possuía a aprovação suficiente do eleito- No que tange ao processo decisório, o rado soteropolitano para torná-lo legitimado PRA possuía uma instância que traça as dire- hegemonicamente tal qual era no resto do Es- trizes e avalia o PRA formada por um Comitê tado. Isso fica demonstrado nos consecutivos Consultivo que é composto por: 1 membro re- insucessos eleitorais dos candidatos que con- presentando a Conder, 1 membro da Prefeitura correram para prefeito de Salvador, apoiados Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 477-493, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 487 487 17/3/2010 12:49:47 Antônio Sérgio Araújo Fernandes por ACM nos pleitos municipais da capital Bom ressaltar que o grupo político que pós-redemocratização. Apenas em 1996, ACM compunha a Prefeitura entre os anos 1993- consegue levar à vitória um candidato sob seu 1996 e que era de oposição ao grupo do PFL apoio, após três derrotas consecutivas nos ligado à ACM, é que se mostra mais sintoni- anos de 1985, quando foi vencido por Mário zado com a questão do avanço da agenda in- Kértzs do PMDB, 1988, derrotado por Fernan- ternacional de política urbana, uma vez que a do José, também do PMDB e em 1992 com a própria prefeita Lídice da Mata do PSDB tinha vitória de Lídice da Matta, do PSDB. Ao perder uma história ligada à luta pela reforma urbana, a eleição municipal de 1992, a tática de ACM sobretudo no que se refere às questões de par- como governador o estado foi estabelecer uma ticipação social e autonomia municipal, tendo competição entre esferas de governo na ges- sido vereadora entre 1982 e 1986 pelo PMDB tão urbana de Salvador, procurando desenvol- e participado ativamente na elaboração e apro- ver uma série de obras importantes na cidade vação de algumas leis importantes que criavam por meio da Conder. Com isso visava desqua- diversos mecanismos de participação social na lificar o Executivo municipal, tentando mostrar gestão municipal (Ivo, 2000, p. 93).9 que a prefeitura não possuía autonomia para O grupo político ligado ao PFL e lide- governar a cidade, dado que não realizava sa- rado pelo Senador ACM10 seguiu sempre um tisfatoriamente o que era de sua competência padrão de administração pública calcada num exclusiva e ao mesmo tempo procurava de- processo decisório fechado, que o caracteriza monstrar a eficiência e a competência da es- como uma liderança capaz de formar quadros fera estadual, dado que as obras importantes tecnocráticos de perfil dinâmico e pragmático, do município eram desenvolvidas pelo governo porém pouco afeitos a mecanismos de partici- do estado. Em quase todas as intervenções do pação, controle social ou parceria público-pri- governo estadual na cidade de Salvador, estas vado. Este grupo político nunca esteve ligado aconteceram com a prefeitura à margem de sua às discussões de renovação da agenda interna- análise e/ou deliberação. Desse modo, foram cional de política urbana, nem no que se refere realizados todos os grandes projetos urbanos ao movimento de reforma urbana da constitui- implantados em Salvador, como a recuperação ção de 1988. do Centro Histórico Pelourinho, a recuperação Um fator importante para explicar a dos Parques de Abaeté e de Pituaçu, o progra- razão pela ligação de um governo de perfil ma de saneamento ambiental Bahia Azul, a tão conservador com políticas de corte mais construção do novo aterro sanitário da cidade, progressistas agenciadas pelo Banco Mundial a construção do Parque Costa Azul, de uma encontra-se no fato de que durante a década marina na Baía de Todos os Santos, a recupe- de 90 o governo da Bahia sob a gestão do PFL ração da favela Novos Alagados e a ampliação vai ser bem-sucedido na realização do Pro- do Aeroporto Luís Eduardo Magalhães. Esses jeto Metropolitano, fazendo com que a elite projetos e obras foram realizados sob a gestão política do estado ganhasse prestígio junto da Conder, tornando-a uma espécie de super- ao Banco Mundial. Além disso, o governo da prefeitura paralela de Salvador. Bahia vai realizar uma política de ajuste fiscal 488 Book CM v11_n22.indb 488 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 477-493, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:47 Agenda de gestão urbana participativa versus elite política conservadora também bem-sucedida (Borges, 2000) que re- agências como o Banco Mundial, a ONU-Habi- força ainda mais a posição de destaque que o tat e o Cities Alliance, nesta questão fazendo estado da Bahia ganhou junto ao Banco Mun- avançar a agenda. Ao mesmo tempo, buscou-se dial. E isso pode ser evidenciado no relatório observar como a questão da gestão urbana no do Banco publicado em 2001 – Broadening país avançou ao lado das agências internacio- the Base of Growth – onde o estado da Bahia é considerado como um caso exemplar de “boa governança” e política fiscal exitosa, sendo colocado em par com o exemplo recente mais conhecido de “bom governo” no Nordeste brasileiro que é o estado do Ceará. A visão que as agências internacionais possuem da elite política da Bahia mostra o paradoxo existente no estado onde um governo composto por uma elite conservadora, apesar disso mostra-se muito dinâmico e eficiente na conduta da administração pública. Ou seja, boa administração convive com desenvolvimento político baixo, uma vez que as práticas de conduta do debate político democrático ainda são questionadas no Estado dado à predominância por três décadas de uma mesma liderança política. nais. Foi analisado o contexto atual da agenda internacional, em que predomina conceitualmente a utilização de mecanismos de governance, participação e estímulo à formação de capital social. Neste último aspecto o artigo trouxe um exemplo de uma grande capital brasileira – Salvador, que mostra um interessante paradoxo, onde o governo do estado, apesar de governado há mais de uma década por uma elite política conservadora – caracterizada pelo tecnocratismo e pouco diálogo democrático, desenvolve uma importante política de reurbanização de favelas com apoio do Banco Mundial caracterizada pelo envolvimento da sociedade no processo de gestão. Isso evidencia o lado dinâmico do grupo político em questão, que mostra ser capaz de se alinhar à tendência mais recente em voga nas agências multilaterais, sobretudo o Banco Mundial, na Considerações finais orientação aos governos de países em desenvolvimento acerca da conduta das políticas de desenvolvimento urbano, de que políticas ur- O artigo procurou discutir a evolução da agen- banas devem contemplar não só a recuperação da de política urbana das agências internacio- física do espaço, mas a participação e o contro- nais, sobretudo no que se refere a programas le social, bem como o combate à pobreza com de habitação e recuperação de favelas e áreas políticas assessórias de geração de emprego e urbanas degradadas. O foco do texto recaiu renda que estimulem a produção do capital so- sobre as referências conceituais que guiaram cial das populações envolvidas. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 477-493, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 489 489 17/3/2010 12:49:47 Antônio Sérgio Araújo Fernandes Antônio Sérgio Araújo Fernandes Bacharel em Administração pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Administração, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Rio Grande do Norte, Brasil). [email protected] Notas (1) O Projeto Grande Recife foi coordenado pela empresa metropolitana de Planejamento do governo do estado, a Fidem (Fundação de Desenvolvimento da Região Metropolitana do Recife) e visava uma ação de requalificação, valorização e comercialização imobiliária para setores de classe média e alta, integrada com a urbanização de áreas faveladas na região ribeirinha do Capibaribe. Como esta região despontava com considerável potencial urbano pela localização e pela disponibilidade de áreas ociosas, foram propostos parques e conjuntos residenciais para diferentes faixas de renda. Além disso, ocorreram intervenções nunca concluídas e algumas realizadas, como a criação de conjuntos populares e os parques de Caiara e Santana. (2) O Projeto Metropolitano desenvolvido pela Conder será comentado em maiores detalhes a seguir quando trataremos do caso em tela no texto. (3) Pela Lei Complementar n. 14, de 8/6/1973, art. 2º, são criadas as regiões metropolitanas de Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre. (4) Uma avaliação do Promorar no Nordeste durante os anos em que durou, entre 1980 e 1989, é feita por Moura et al. (1990). (5) Os Alagados compõem a maior parte das favelas com palafitas existentes naquela região e se estendem por inúmeros bairros da cidade baixa e subúrbio ferroviário, inclusive o bairro da Ribeira, um dos maiores que acabou dando o nome ao Programa Ribeira Azul. (6) A Companhia de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Salvador (Conder), foi criada em 1974, como empresa pública ligada à Secretaria de Planejamento, Ciência e Tecnologia. Desde sua origem, a Conder atua não só como empresa de planejamento metropolitano que fornece assistência técnica aos municípios da RMS, mas também como órgão executor de obras. Em 1998, a Conder passou a se chamar Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia e ampliou sua área de atuação para todo o Estado. Em janeiro de 1999, a Conder incorporou a URBIS – Habitação e Urbanismo da Bahia S/A. (7) A AVSI é uma ONG reconhecida pelo Ministério das Relações Exteriores da Itália (MAE) e credenciada pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas na condição de consultora. Foi criada em 1972 e atua em 4 continentes com 60 projetos de ajuda ao desenvolvimento nos setores da saúde, infância, educação, formação profissional, recuperação das áreas marginais urbanas e desenvolvimento rural. Dezenas de voluntários profissionais – médicos, engenheiros, agrônomos, psicólogos, educadores, prestam serviço nos países por períodos não inferiores de dois anos. A AVSI é sustentada por um fundo em que 50% de sua captação é feita de doações 490 Book CM v11_n22.indb 490 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 477-493, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:47 Agenda de gestão urbana participativa versus elite política conservadora privadas. Ela tem uma atuação nos países com organizações associadas e no Brasil sua associada é a CDM (Cooperação para o Desenvolvimento da Moradia Humana). Além de Salvador tem projetos nas cidades de Belo Horizonte e Vitória. (8) O Projeto Metropolitano como comentado anteriormente é um produto do Programa RM/NE iniciado em 1980 pelo Banco Mundial, juntamente com o Governo Federal, e que visava financiar um conjunto de projetos urbanos nas três regiões metropolitanas do Nordeste: Recife, Salvador e Fortaleza. O Programa RM/NE foi iniciado na Região Metropolitana de Recife em 1982, indo até 1988 com o nome de Projeto Grande Recife. Na região Metropolitana de Salvador, o Programa RM/NE tem início em 1986, sob a gestão do governo do estado da Bahia, por meio de sua companhia metropolitana, a Conder, com o nome de Projeto Metropolitano. (9) São dessa época, a Lei de Regionalização do Orçamento Municipal e a criação do Conselho Municipal do Desenvolvimento Urbano (Condurb). Em 1983 sancionou-se a Lei n. 3.345/83 – Lei do Processo de Planejamento e Participação Comunitária, que tornava a participação social uma atividade permanente na cidade. Em julho de 1984, foi editada a Lei de Ordenamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei n. 3.377/84) e em 1985 foi aprovada a Lei Orgânica do Município de Salvador (Lei n. 3.572/85), antes, portanto, da exigência contida na Constituição de 1988. Em novembro de 1985, foi sancionada a Lei n. 3.592/85, que dispõe sobre o enquadramento e a delimitação de Áreas de Proteção Socioecológica (APSE). Em dezembro de 1985, o conjunto de medidas acerca da participação e do controle social consolidou-se no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador (PDDU), regulamentado pela Lei 3.525/85. (10) Consideramos como principais quadros políticos pefelistas diretamente ligados e formados na burocracia do governo do estado durante as gestões de ACM: o ex-senador Waldeck Ornélas; o governador Paulo Souto; o senador Rodolfo Tourinho Dantas; o deputado federal José Carlos Aleluia, o prefeito de Salvador Antônio Imbassahy; o ex-deputado e atual conselheiro do Tribunal de Contas do Estado da Bahia Manoel Castro. Ao longo do tempo este grupo formado também por outros políticos, apesar de ainda coeso, vai mostrar divergências residuais em relação à liderança do Senador ACM. Referências ARRETCHE, M. (1996). “Desarticulação do BNH e Autonomização da Política Habitacional”. In: AFFONSO, R. de B. A. e SILVA, P. L. B. (orgs.). Federalismo no Brasil: descentralização e políticas sociais. São Paulo, Fundap, pp. 107-137. ______ (2000). Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. Rio de Janeiro,São Paulo, Revan/Fapesp, pp. 135-195. BORGES, A. (2000). 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World Bank, Washington. ______ (1992). Governance and development. World Bank, Washington. Texto recebido em 20/jun/2009 Texto aprovado em 22/ago/2009 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 477-493, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 493 493 17/3/2010 12:49:48 Book CM v11_n22.indb 494 17/3/2010 12:49:48 Planejamento urbano em Belo Horizonte: análise da atuação dos conselhos municipais na gestão da cidade Urban planning in Belo Horizonte: analysis of the municipal councils’ performance in the management of the city Mônica Abranches Resumo Este trabalho tem como escopo principal a análise da atuação dos Conselhos Municipais de Belo Horizonte e sua contribuição para o planejamento urbano, considerando que esses instrumentos democráticos reúnem diferentes atores sociais (e interesses) com a responsabilidade de discutir e decidir sobre o destino das políticas públicas locais. A partir da avaliação de sua atuação e da percepção dos conselheiros municipais sobre os problemas e potencialidades da cidade, foi possível mapear a distribuição das forças políticas e das decisões dos conselhos no espaço urbano. A análise espacial foi fundamental para conduzir a pesquisa, pois enriqueceu o tratamento dos dados coletados e permitiu a visualização de diversas nuances sobre as decisões técnicas e políticas e o destino das políticas públicas locais. Abstract This work aims to analyze the performance of the Municipal Councils of Belo Horizonte (southern Brazil) and their contribution to urban planning, considering that those democratic tools reunite different social actors (and interests) with the responsibility of discussing and making decisions regarding the destiny of local public policies. Based on the appraisal of their performance and the municipal councilors’ perception of the city’s problems and potentialities, it was possible to map the distribution of political forces and the decisions made by the Councils in the urban space. The spatial analysis was fundamental to conduct the research, as it enriched the treatment of the collected data. It also allowed the visualization of many nuances about technical and political decisions, and the destiny of local public policies. Palavras-chave: análise espacial; participação social; conselhos municipais. Keywords: spatial analysis; social participation; municipal councils. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 495 17/3/2010 12:49:48 Mônica Abranches dois grandes eixos: a) novos modelos de plane- Introdução jamento, com uma metodologia interdisciplinar e participativa, e com a utilização de diversos Nas últimas décadas, as políticas públicas têm recursos tecnológicos (SIG, entre outros) para se aproximado dos estudos espaciais com o ob- auxiliar os gestores e técnicos nos desenhos ur- jetivo de incorporar às suas análises novos mé- banos, nas discussões e decisões sobre as cida- todos e técnicas para otimizar a solução de pro- des; e b) novas formas de gestão que passam blemas socioeconômicos, culturais e ambientais pela articulação dos setores governamentais e das cidades. As análises dos problemas urbanos da sociedade civil, através de um processo de- ficaram mais ricas e próximas das demandas mocrático das decisões de caráter público. da população com a integração de áreas como Essa nova tendência democratizante tem a geografia, a cartografia, a sociologia, o urba- sido implementada nas diversas áreas sociais e nismo, a antropologia, entre outros. econômicas da União, dos estados e dos mu- Pensar a dimensão das políticas públicas nicípios, e tem exercido grande influência nos através de métodos de estudos espaciais tem espaços urbanos que demandam soluções gerado grandes potencialidades para os estu- maiores para problemas sociais e articulações dos acadêmicos e para sua utilização nos cam- políticas para a sua resolução. Essa nova ex- pos do planejamento urbano e na administra- periência tem transformado a paisagem das ção dos serviços públicos, principalmente nas cidades através da descentralização de obras, questões metropolitanas que se constituem co- serviços, equipamentos e distribuição da popu- mo espaços mais diversificados para a implan- lação nas cidades. tação de políticas públicas no país, tanto pela Considerando esse contexto atual, são sua grande concentração e múltipla funciona- relevantes os estudos sobre as entidades e os lidade quanto pela sua grande concentração setores que vêm atuando, direta e enfaticamen- populacional e organização sociopolítica, que te, na construção desse modelo que representa geram um novo padrão de exclusão social. uma tentativa de integração da sociedade civil A utilização da análise espacial permite na transformação do espaço urbano. caracterizar configurações de uma dada organi- Portanto, propõe-se uma discussão so- zação e forma territorial, ou seja, empregar um bre a condição política de gestão e de plane- novo olhar sobre o território estudado discutin- jamento, através da atuação dos Conselhos do os problemas urbanos de uma forma mais Municipais que representam, hoje, no processo real, aproximando as hipóteses e as resoluções de democratização brasileiro, o maior exemplo a serem tomadas do espaço que vai receber a da gestão paritária e da intervenção popular na intervenção. formulação e avaliação de políticas sociais efe- As novas perspectivas teóricas, a partir tivas para o desenvolvimento da cidade. da década de 90, e as novas tecnologias vêm As informações e a espacialização da garantir a consolidação de um novo modelo de atuação sociopolítica dos conselheiros muni- elaboração e gestão das políticas sociais para a cipais e sua intervenção no espaço urbano fo- solução dos problemas urbanos, que passa por ram importantes para uma análise crítica dessa 496 Book CM v11_n22.indb 496 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:48 Planejamento urbano em Belo Horizonte experiência, apontando suas inovações e falhas embasamento do planejamento da organização para a melhoria da qualidade de vida urbana e desses espaços e paisagens que serão construí- avaliando sua viabilidade, sua força política, as dos ou modificados. estratégias de funcionamento e resultados al- Nesse sentido, a geografia humanística cançados em relação ao desenvolvimento e às apresenta-se como estudos que refletem sobre mudanças no espaço da cidade. os fenômenos geográficos através da análise Tendo a cidade e suas transformações das relações das pessoas com a natureza, do como foco, a proposta é uma abordagem da seu comportamento geográfico, bem como dos percepção ambiental, pois se está consideran- seus valores, sentimentos e ideias a respeito do do nesta pesquisa a mudança da paisagem espaço. Ela oferece um modo diferente de en- (pelo planejamento urbano) a partir da “visão” xergar esses fenômenos geográficos. de atores com diferentes status e com interes- A investigação prioritária do humanista ses diversificados, já que os conselhos gestores deve ser o olhar sobre como a qualidade da possuem representação do governo, da socie- emoção e do pensamento humano dão lugar a dade civil e, dentro desta, de entidades públicas um conjunto de símbolos que têm efeitos dire- e privadas. Essa abordagem trata da investiga- tos e indiretos sobre suas escolhas e ações em ção sobre formas como os indivíduos percebem relação ao espaço. e tomam decisões a respeito da cidade. De acordo com Tuan (1976), [...] os lugares humanos variam grandemente em tamanho – uma poltrona perto da lareira é um lugar, mas também o é um Estado-Nação. Uma grande região está além da experiência direta das pessoas, mas pode se transformar em lugar (lealdade, paixão) (...) Como um mero espaço se torna um lugar intensamente humano é uma tarefa para o geógrafo humanista. O papel da percepção ambiental nos processos de planejamento A abordagem humanística em Geografia tem uma ampla base epistemológica, destacandose aí trabalhos realizados por Yi-Fu Tuan, Anne A geografia humanística valoriza as no- Buttimer, Edward Relph e Mercer e Powel, entre ções de espaço e lugar onde o homem está in- outros. No Brasil, surgiram diversos trabalhos tegrado e trabalha a partir da experiência do nessa linha de pesquisa como os de Xavier e indivíduo ou do grupo, visando compreender Oliveira (1996), Bauzer (1983), Bley (1999), o comportamento e as maneiras de sentir das Amorim Filho (1987), Machado (1988) e Del pessoas em relação aos seus lugares. Rio (1990). Nesse sentido, os estudos da percepção Estudos como esses pretendem cobrir ambiental são essenciais para compreender as realidades dos indivíduos e de pequenos melhor as interrelações do ser humano com o grupos, analisar a percepção dos lugares e seu meio ambiente, seja na relação individual buscar explicação para a organização dos es- ou na comunitária, analisando as expectativas, paços e das paisagens atuais, bem como o os julgamentos e as condutas dos mesmos. O Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 497 497 17/3/2010 12:49:48 Mônica Abranches indivíduo ou grupo enxerga, interpreta e age que significam outras coisas. Ícones, estátuas, tudo é símbolo. Aqui tudo é linguagem, tudo se presta de imediato à descrição, ao mapeamento... (p. 23) em relação ao meio ambiente de acordo com interesses, necessidades e desejos, recebendo influências, sobretudo, dos conhecimentos anteriormente adquiridos, dos valores, das nor- A percepção ambiental é uma atividade mas grupais, enfim, de um conjunto de elemen- mental de interação do indivíduo com o meio tos que compõem sua herança cultural. Nos ambiente, que ocorre através de processos de processos de planejamento, por exemplo, esses percepção e cognição. É através dos sentidos estudos são fundamentais porque propiciam que o homem percebe o mundo e cultiva a to- o conhecimento das particularidades de cada pofilia, ou seja, estabelece um elo afetivo entre relação sociedade/indivíduo/meio-ambiente, a pessoa e o lugar ou ambiente físico (Tuan, possibilitando o desenvolvimento de progra- 1974) ou, ao contrário, a topofobia, que conduz mas que realmente promovam a participação a um sentimento de rejeição pela paisagem, pe- e de soluções condizentes com as demandas lo espaço vivido (Amorim Filho, 1996). Portanto, sociais. percepção é tanto a resposta dos sentidos aos As mudanças de um espaço não podem estímulos externos, como a atividade proposi- ficar alheias às demandas das comunidades en- tal na qual certos fenômenos são claramente volvidas, mas devem procurar soluções em seu registrados, enquanto outros retrocedem para interior. É através da percepção e da compreen- a sombra ou são bloqueados (Tuan, 1974). são dos indivíduos sobre os diferentes espaços A cidade é, portanto, subjetiva e sua in- e lugares urbanos ou rurais que é possível or- terpretação está grandemente orientada por ganizar dados sobre o modo de desenvolver as filtros culturais. As expectativas das pessoas atividades e se relacionar com a natureza (seja em relação ao espaço urbano estão permeadas esta uma construção humana ou não). O papel por valores e costumes que se diferenciam em das populações envolvidas é ativo, possuindo, relação aos estilos de vida, ao nível de renda, simultaneamente, o poder de construir e trans- grau de escolaridade e tipo de trabalho, entre formar novas paisagens, novos espaços, assim outros. Esses fatores são variáveis dentro da como as respectivas imagens mentais, revelan- cidade e, além disso, dentro de seus diferentes do então, planos perceptivos mais ou menos bairros. claros, segundo suas necessidades vitais ou limitações (principalmente aquelas de cunho social e/ou cultural). A percepção ambiental no planejamento urbano De acordo com Peixoto (1996), [...] não se pode, na maioria das vezes, dizer nada a respeito de uma cidade além do que os seus próprios habitantes repetem. O que já se disse recobre seus contornos e nuances. Nas cidades, os olhos não veem coisas, mas figuras de coisas 498 Book CM v11_n22.indb 498 Muitas vezes, as tentativas de controle da natureza e a elaboração de legislações pela administração pública desconsideram ou não têm conhecimento adequado da influência mútua Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:48 Planejamento urbano em Belo Horizonte dos fatores psicológicos, econômicos e ambien- no desenvolvimento e na planificação, com vis- tais que devem direcionar a tomada de deci- tas a uma realização mais eficaz de uma trans- sões, e, portanto, a eficiência dos planos pode formação mais apropriada. ficar comprometida. O melhor modo de tratar De acordo com Ferrara (1999): das questões urbanas é com a participação de A participação urbana é o resultado da atividade de um conjunto de fatores que revelam a cidade enquanto estrutura de informação e comunicação. A cidade se molda no constante fluxo de suas representações enquanto desafios perceptivos que, se respondidos, levam o morador a interferir sobre os destinos urbanos transformando-o em cidadão na defesa de interesses coletivos. (p. 80) todos os cidadãos interessados. Segundo Clark (1985), [...] a imagem que o indivíduo tem da cidade determina se ela é amada ou odiada, e onde dentro dela, ou se em alguma outra parte, ele escolherá para morar, comprar, trabalhar e passear. (p. 37) O estudo prévio das percepções ambientais da comunidade com a qual se pretende Em relação ao planejamento, é relevante trabalhar pode indicar características do grupo, considerar que as profundas transformações da levando os planejadores ao seu conhecimento vida urbana obrigam a mudanças na estrutura e ao desenvolvimento de programas definidos de governo e gestão local, à reorganização da de acordo com a identidade local, seus valores, vida comunitária, ao incremento da participa- sua forma de enxergar, interpretar e se relacio- ção coletiva na construção da cidade, a novas nar com o meio ambiente. Desta forma, será formas de cidadania e convivência e a uma ad- possível promover a participação de todos num ministração pública eficaz e eficiente, que esta- processo de decisão sobre a realidade. beleça novas formas de relação e comunicação As análises sobre a percepção do am- com o cidadão. biente resultam em informações mais confiá- Esses novos formatos para o planejamen- veis e legítimas para proposições futuras em to e a gestão urbana têm seu marco no Brasil, relação à melhoria da qualidade ambiental. como a Constituição de 1988, que promoveu O conhecimento de como as pessoas agem e a abertura para o planejamento e orçamentos por que agem desta forma, associado ao le- participativos, entre outras experiências. Atra- vantamento da organização comunitária, das vés desses processos, avanços importantes têm redes de influências e da intensidade e forma sido conseguidos com formas mais democráti- de participação da comunidade, das suas orga- cas de gestão. nizações, permitem orientar e direcionar o agir A reestruturação econômica e as novas no espaço para promover a participação e a relações socioespaciais, locais e interescalares corresponsabilidade de todos os envolvidos nas em um contexto de fluxos cada vez mais globa- questões urbanas. lizados, sugerem que as articulações entre mu- As pesquisas concernentes à percepção danças sociopolíticas e o planejamento urbano ambiental nas relações entre o homem e a têm se tornado mais difíceis, mas imprescindí- biosfera podem encorajar a participação local veis e necessárias. Portanto, o planejamento, Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 499 499 17/3/2010 12:49:48 Mônica Abranches enquanto teoria e prática socioespacial e in- daquilo que é idealizado pelos próprios bene- corporada à gestão da coisa pública e coletiva, ficiários e interessados. tem encontrado espaços para (re)afirmar seu Segundo Souza (2003), papel norteador de avanços na participação e organização da sociedade civil junto às práxis de planejamento e gestão pública no nível urbano. Nesse sentido, entende-se que a experiência dos conselhos municipais funciona como um instrumento importante para garantir o envolvimento da sociedade nas ações que vão alterar a paisagem da cidade. Ao mesmo tempo, garantem uma gestão urbana democrática e trazem para o nível de decisão do planejamento os diversos interesses da comunidade pelo espaço da cidade. O planejamento urbano tem como objeto de intervenção a cidade, que deve ser entendida como um produto de processos espaciais e que refletem a interação entre várias escalas geográficas. A cidade, portanto, não deve ser vista como uma massa passivamente modelável ou como um objeto controlável pelo Estado, mas como um fenômeno complexo, imprevisível, fruto de interesses diversos e construída por planejadores que representam o poder público e a sociedade civil. O planejamento deve tratar de formular políticas e elaborar estratégias de mudanças ambientais e sociais, a partir de congregação de vários conhecimentos e profissionais de diferentes campos. Deve, ainda, considerar a participação de atores sociais que estão fora da instituição Estado para que as decisões sobre o futuro das cidades possam se aproximar 500 Book CM v11_n22.indb 500 [...] o planejamento e a gestão urbanos não precisam (nem devem) ser praticados apenas pelo aparelho do Estado. ONGs e outras organizações da sociedade civil precisam se instrumentalizar e intervir mais propositivamente (...) em planos diretores alternativos até experiências de gestão de cooperativas habitacionais. (p. 86) A ação de planejar deve sempre contemplar, igualmente, a espacialidade e as relações sociais nas cidades, considerando que estes são permeados por um conjunto de relações em que a existência de conflitos de interesses e de dominantes e dominados é um fator sempre presente. Além disso, ao empregar determinado modelo de planejamento urbano, é necessário realizar uma reflexão teórica sobre a sociedade, a cidade e, especificamente, sobre o que se considera como mudança social. Segundo Santos Júnior, Ribeiro e Azevedo (1995), [...] a construção do urbano como tema e objeto de conhecimento e de ação confunde-se com o período no qual a questão social é reelaborada em problemas urbanos. Esse processo histórico está no veio da ideia do planejamento urbano como conjunto de técnicas capaz de intervir na cidade, para transformar a sociedade e, consequentemente, a população e o seu modo de vida. (p. 22) Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:48 Planejamento urbano em Belo Horizonte O planejamento da cidade e os conselhos municipais de Belo Horizonte Quanto ao perfil sociodemográfico dos conselheiros de Belo Horizonte, os questionários revelam que a maioria dos conselheiros pertencem ao sexo feminino (53%), tem idade entre 41 e 60 anos (59%), trabalha (73%), é casada (54,9%) e pertence à religião católica Perfil sociodemográfico dos conselheiros municipais e sua distribuição espacial (64,8%); 55,7% dos conselheiros se autodefinem como brancos. A escolaridade e a renda dos conselheiros revelam um padrão social alto daqueles O município de Belo Horizonte conta com 18 que participam das decisões públicas da cida- conselhos em funcionamento na capital e em- de, ou seja, 54,9% dos conselheiros possuem bora todos eles fizessem parte do universo 3º grau, sendo que 28,7% desses já possuem inicial de análise, apenas os conselhos munici- pós-graduação e 45,9% recebem mais de oi- pais abaixo participaram da pesquisa, através to salários mínimos de renda total (maior que dos questionários e a disponibilização das atas 2.000,00).1 de reuniões: Comissão Municipal de Emprego, Analisando a situação de escolaridade Conselho Municipal de Assistência Social, Con- dos conselheiros no espaço da cidade, é pos- selho Municipal da Cidade, Conselho Municipal sível perceber: dos Direitos da Criança e do Adolescente, Con- a) os conselheiros que possuem ensino supe- selho Municipal de Educação, Conselho Munici- rior e pós-graduação ocupam áreas centrais da pal de Habitação, Conselho Municipal do Idoso, cidade (centro sul) e bairros mais homogêneos Conselho Municipal do Meio Ambiente, Conse- (residenciais e subcentros2 especializados); b) pode-se encontrar conselheiros com nível lho Municipal do Patrimônio Cultural, Conselho Municipal da Pessoa Portadora de Deficiência, superior em áreas periféricas da cidade; c) os conselheiros com primeiro grau são, Conselho Municipal de Política Urbana e Conselho Municipal de Saúde. Percebe-se que, no espaço da cidade, majoritariamente, originários de áreas periféricas de Belo Horizonte; a sede dos conselhos municipais das diversas d) conselheiros com segundo grau têm uma políticas públicas estão concentrados no hiper- distribuição mais homogênea no espaço da centro de Belo Horizonte ou bairros próximos. cidade. Essa localização pode ser explicada pela opção Destacamos outros dados interessantes do poder público em instalar as sedes em locais como os 17% dos conselheiros participando de fácil acesso para os conselheiros que se des- desses instrumentos democráticos e que pos- locam dos diversos bairros, e devido à prefei- suem apenas o 1º grau e a presença de 1 con- tura disponibilizar a infraestrutura de suporte selheiro sem instrução; 15,6% de conselheiros aos conselhos dentro de suas secretarias muni- são aposentados e 10% não trabalham. Alguns cipais, que já possuem capacidade instalada. conselheiros não possuem nenhuma renda Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 501 501 17/3/2010 12:49:48 Mônica Abranches (6%) ou recebem apenas 1 salário mínimo ou sociedade para a representação nos conselhos. menos (9%) e 39,3% afirmam serem negros Essa configuração pode representar um perfil ou pardos, com destaque para a presença de de conselheiros mais preparado para as ativi- 2 conselheiros que afirmam ser indígenas. São dades dos conselhos, considerando seu maior números importantes que revelam a presença acesso à informação (anos de estudo) ou pode ativa de grupos sociais que vêm lutando pela apresentar um problema na representativida- inclusão social de seus representantes e pe- de social, pois os conselheiros com esse perfil la conquista de suas reivindicações históricas, de instrução e renda podem não expressar as sociais e políticas e o direito ao espaço da demandas dos segmentos mais populares da cidade. cidade. Em relação à renda e ocupação e sua dis- Observando a distribuição espacial dessa situação de renda e escolaridade, conclui-se tribuição nos espaços da cidade, temos: a) os conselheiros que possuem renda mensal superior a 9 salários mínimos (maior que R$2.300,00) estão concentrados nas áreas próximas ao centro e bairros mais homogêneos (residenciais e subcentros especializados); b) conselheiros sem renda ou que recebem até 1 salário mínimo estão presentes nos espaços mais periféricos da cidade e bairros mais vulneráveis das regionais leste e norte da cidade; c) conselheiros que se encontram em uma posição mais intermediária (com salários entre 260,00 e 1.300,00) se dispersam pelo espaço, apreendendo todas as regiões; d) os conselheiros que não trabalham ou estão aposentados têm sua origem predominante em bairros mais periféricos, com exceção de 3 conselheiros que moram em bairros bem centrais; que os conselheiros que representam a maioria nos conselhos são aqueles que têm uma boa posição em todas as categorias e estão distribuídos nos melhores bairros da cidade (centro e adjacências). Isso pode significar que demandas diretas dos lugares mais vulneráveis têm uma menor representatividade nos conselhos municipais. Quanto à trajetória política dos conselheiros municipais dos diversos conselhos setoriais, temos que 59,8% são sindicalizados e o mesmo percentual está filiado a outros órgãos comunitários como associações de bairro, clubes, grêmios, entre outros. Ainda, 40,2% desses estão filiados a partidos políticos, sendo que a maioria pertence a partidos de esquerda. Esses dados não deixam dúvidas sobre o alto grau de participação cívica dos conselheiros. Quanto ao desempenho dos conselhos, 53,3% dos conselheiros consideram que o nú- e) os conselheiros que trabalham são maio- mero de deliberações dos mesmos é médio e ria numérica e estão dispersos no espaço da ci- 36,1% afirmam que as decisões do conselho dade por todas as regionais, com uma concen- também têm média influência nas decisões da tração nos bairros centrais e adjacências. secretaria municipal, contra 25,4% que acham Os dados de escolaridade, renda e que as suas decisões têm pouca influência no ocupação dos conselheiros confirmam uma poder público. O compromisso do governo presença majoritária de estratos médios da municipal com os conselhos foi avaliado como 502 Book CM v11_n22.indb 502 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:48 Planejamento urbano em Belo Horizonte médio por 39,3% dos conselheiros e como mesma pode contar com a “irradiação” de suas pouco ou nenhum compromisso por 24,6%. ideias com maior facilidade para o coletivo da Isso pode significar que essa arena de cidade. O mesmo acontece quando mapeamos decisão colegiada está se fortalecendo e tendo os conselheiros que avaliam positivamente a o devido reconhecimento do poder público no gestão da prefeitura. que se refere a sua importância como espaço Em relação à caracterização e funcio- de discussão de interesses políticos diferencia- namento dos Conselhos Municipais de Belo dos e como um instrumento de contribuição ao Horizonte, 33,6% dos conselheiros apontam planejamento da cidade e de democratização como 1ª alternativa de dificuldade do funcio- das políticas públicas, considerando que, ainda, namento dos conselhos a falta de capacita- no somatório das impressões positivas, mais de ção de seus membros e como 2ª alternativa, 60% dos conselheiros apontam como efetiva a 13,1% afirmam que a ausência de diálogo e influência das decisões dos conselhos nas se- negociação com representantes da prefeitura cretarias municipais. dificulta a atuação mais efetiva dos conse- A relação entre conselhos e poder pú- lhos. Os dados revelam claramente a necessi- blico, no que se refere à posição política dos dade de uma política de capacitação de con- conselheiros em relação ao governo municipal selheiros para que estes possam exercer sua atual aponta que 52,5% dos conselheiros afir- função de forma clara e segura. Percebe-se mam que apóiam o mesmo, 29,5% têm uma que, mesmo que o perfil de escolaridade dos posição de independência e 9% fazem oposi- conselheiros seja alto, a demanda por uma ção à prefeitura. capacitação específica é muito presente. Cha- A espacialização dos dados sobre as re- ma a atenção também o resultado que aponta lações dos conselhos com o governo municipal como uma dificuldade o não cumprimento das permite compreender que há uma distribui- resoluções dos conselhos pela Prefeitura, que ção bastante homogênea de conselheiros que aparece com 18% na primeira alternativa e apóiam a prefeitura, o que pode indicar que a com 9% na segunda. Tabela 1 – Principais dificuldades no funcionamento dos conselhos Dificuldades 1ª alternativa – % 2ª alternativa – % Ausência de diálogo e negociação com representantes da Prefeitura 7,4 8,2 Ausência de diálogo e negociação entre os membros do Conselho 3,3 13,1 33,6 11,5 1,6 8,2 Falta de representatividade dos Conselhos 13,1 4,9 Não cumprimento das decisaões do conselho pela Prefeitura 18,9 9,0 Nenhum (resposta única) 12,3 37,7 9,8 7,4 100,0 100,0 Falta de capacitação dos membros do Conselho Falta de informação dos Conselhos Outros Total Fonte: Observatório das Metrópoles – PUC Minas, 2004. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 503 503 17/3/2010 12:49:48 Mônica Abranches Como resultado positivo do funcionamen- Em relação às condições de funciona- to dos conselhos municipais em Belo Horizonte, mento dos conselhos municipais, 30,3% dos seus membros destacam como 1ª alternativa, conselheiros consideram boa a infraestrutura que os conselhos otimizam a democratização disponível para o seu funcionamento, 34,4% das informações e decisões relativas à políti- as consideram médias e 18,9% fracas. Esses ca municipal (34,4%), e como 2ª alternativa o dados representam uma opinião dividida dos mesmo percentual (34,4%) afirma que a pre- conselheiros sobre o apoio das prefeituras para sença dos conselhos aumenta o diálogo entre a disponibilização de recursos básicos para a os governos e a sociedade. Esse dado repre- organização e o funcionamento desses instru- senta uma percepção madura dos conselheiros mentos. Isso indica que pode haver uma grande sobre a função básica dos conselhos munici- desigualdade de apoio do poder público entre pais, de democratizar as políticas públicas do os conselhos das diversas políticas. Os conse- município garantindo a participação popular lhos municipais de Saúde, da Cidade e de Polí- nas decisões de caráter público. Essa percepção tica Urbana foram os mais citados com boas e fortalece esses instrumentos colegiados na me- ótimas condições de funcionamento. dida em que os conselheiros avaliam como po- Vale ressaltar que o suporte dispensado sitivo e produtivo o exercício do poder político pelo poder público aos conselhos (sede, material pelo bem comum e podem elaborar um novo de consumo, equipamentos, transporte, etc.) é regime de ação pública baseada na governança de fundamental importância para garantir o fun- democrática. cionamento dos conselhos, considerando que: Tabela 2 – Principais resultados no funcionamento dos Conselhos 1ª alternativa % 2ª alternativa % Aumento da representatividade das instituições nas decisões do governo 4,1 1,6 Capacitação das entidades da sociedade para participarem das decisões locais 7,4 14,8 Capacitação dos membros do Conselho 4,9 34,4 Controle social (fiscalização) sobre as decisões da Prefeitura 19,7 8,2 Democratização das informações e decisões relativas à política municipal 34,4 8,2 Melhoria da qualidade de vida do município 23,8 13,9 Nenhum (resposta única) 4,1 6,6 Outros 1,6 9,8 Dificuldades Total 100,0 Fonte: Observatório das Metrópoles – PUC Minas, 2004. 504 Book CM v11_n22.indb 504 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:48 Planejamento urbano em Belo Horizonte a) vários conselheiros precisam de vales- Quanto à decisão de instalar os conse- transporte para se locomoverem até os locais lhos, 32,8% afirmam que a pressão da socieda- de reunião, principalmente aqueles que moram de foi responsável por sua implementação, 23% em bairros de periferia; dizem que a exigência legal do governo federal b) o uso do correio, do telefone e do e- para liberação de recursos para o município foi mail é uma estratégia que pode garantir que fator de decisão para implantar os conselhos, e o quórum para as reuniões seja alcançado a 22,1% apontam o próprio interesse do prefei- cada mês; to ou dos secretários municipais como agente c) é necessário garantir um sistema oficial de instalação dos conselhos. Em Belo Horizon- de registro das reuniões (atas, relatórios, pare- te, não podemos desprezar uma porcentagem ceres, lista de frequência), principalmente nos considerável de conselheiros que confirmam a conselhos deliberativos; existência da força de pressão da sociedade. d) os conselheiros precisam se preparar para Isso pode significar para a cidade a concretiza- as discussões e para isso é fundamental garan- ção de um novo caminho construído em quatro tir o acesso e a socialização das discussões e décadas de governo democrático, incentivando do material a ser discutido nas reuniões dos os instrumentos participativos e de uma organi- conselhos ou em suas câmaras setoriais ou zação política da sociedade mais amadurecida técnicas, através de xerox de leis, resoluções, e consciente de que precisa ocupar os espaços textos teóricos, etc.; de decisão pública junto ao Estado. e) para garantir toda essa infraestrutura é Para 36,1% dos conselheiros represen- necessária uma equipe mínima de trabalho tantes da sociedade civil, suas entidades foram para dar suporte aos conselhos (secretaria escolhidas para participar dos conselhos atra- executiva). vés de formas democráticas de eleição, como Sobre o equilíbrio de forças no interior as conferências municipais. Outros 30,3% afir- dos conselhos, 49,2% dizem que há equilíbrio mam que a nomeação de suas entidades já es- entre prefeitura, interesses privados e socie- tava determinada pela lei de criação do conse- dade, contra 30,3% que não concordam com lho municipal e 16,4% alegam que a escolha essa afirmação. A representatividade das en- passou pela intervenção direta do poder públi- tidades nos conselhos também foi avaliada co. Esse último dado refere-se exclusivamente positivamente, pois 57,4% dos conselheiros à escolha das entidades governamentais. Nessa consideram que as entidades que, atualmen- mesma linha, 43,5% dos conselheiros afirmam te, participam desses instrumentos de decisão que estão participando dos conselhos e foram coletiva, têm representado razoavelmente os indicados por suas entidades através de pro- setores existentes na cidade. Esse dado pode cessos democráticos de escolha (assembleias e indicar uma atuação efetiva dos representantes conferências). dos diversos segmentos, pois se existe a per- Aos conselhos municipais cabe a função cepção de que a representatividade é positiva de controle social das políticas públicas, o que isso é resultado de uma participação ativa dos exige dos conselheiros uma atenção na fiscali- indivíduos. zação da prefeitura, das entidades envolvidas Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 505 505 17/3/2010 12:49:48 Mônica Abranches com cada política e o monitoramento da exe- menor rotatividade de pessoas nos conselhos e cução de suas próprias deliberações para o à interlocução entre as discussões dos conse- município. Nesse sentido, 59% dos conselhei- lhos de diversas políticas setoriais. ros dizem que estão fiscalizando a execução de suas decisões e 63,9% afirmam que os resultados de suas discussões estão sendo socializados com o coletivo da sociedade. Essa con- Percepção dos conselheiros sobre a cidade de Belo Horizonte dição pode apontar a capacidade dos conselhos em influenciar nas decisões públicas e de A percepção dos habitantes sobre o espaço da produzir impactos nas diversas políticas sociais cidade pode otimizar diversos projetos de pla- da cidade. Por outro lado, a pesquisa também nejamento urbano, na medida em que o nível apontou que os conselhos estão pouco estru- de satisfação do usuário com o espaço da cida- turados para a tarefa de monitoramento das de e com seus serviços é um ponto fundamen- políticas públicas considerando a utilização de tal para o sucesso do empreendimento. A forma mecanismos restritos para a fiscalização das como a cidade é “desenhada” por indivíduos e políticas públicas (publicação no Diário Oficial coletividades oportuniza a reação e a resposta do Município-DOM, solicitação de prestação de contas aos secretários municipais). A divulgação de resultados e discussões para a sociedade também está restrita as publicações no Diário Oficial do Município, mas é possível verificar a preocupação dos conselheiros com as duas ações fundamentais dos conselhos. Nos conselhos abordados na pesquisa temos que 68% representam a sociedade civil, 27% representam o governo municipal e 4,1% não quiseram declarar a sua representação, e ainda, 49,2% dos conselheiros que participam de mais de um conselho municipal. Essa participação em 2 conselhos ou mais representa uma realidade constante na demanda dos conselhos em toda Região Metropolitana de BH e é visto por vários pesquisadores como um comportamento negativo que pode inibir a participação de outras entidades que garantiriam a presença de novos interesses e ideias sobre as políticas públicas. De outra forma, pode ser interpretada como uma prática positiva que garante a continuidade dos trabalhos devido à de cada indivíduo e é fruto de sua satisfação 506 Book CM v11_n22.indb 506 psicológica com o ambiente. No caso específico deste trabalho, a percepção dos conselheiros sobre a cidade onde residem, trabalham e descansam tem uma importância ainda maior, considerando que os mesmos também assumem a responsabilidade de decidir sobre os projetos futuros da cidade e os serviços e equipamentos que irão atender à população nos seus mais diversos anseios. Considerando que cada habitante tem uma visão parcial do meio ambiente em que vive e que a rigor, a cidade objetiva não existe para os indivíduos, nos conselhos essa perspectiva também está presente, pois cada conselheiro traz para a arena de decisão os seus conhecimentos prévios sobre o espaço urbano, ou seja, a sua percepção da cidade, que também está condicionada ao lugar onde ele vive, aos espaços por onde transita, a sua educação e seu nível cultural , entre outros. Nesse sentido, para compreender as forças políticas e sociais que movem a dinâmica Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:48 Planejamento urbano em Belo Horizonte dos conselhos é necessário compreender como moradia dos 55,7% de conselheiros que pos- os conselheiros se envolvem com os espaços suem um sentimento parcial de segurança no da cidade. Vale perguntar: as decisões dos con- bairro e dos 20% que se sentem seguros, pode- selhos e a priorização de atendimento de certa mos encontrar áreas que possuem altos índices região e não outra reflete qual visão sobre a de violência urbana, como é o caso do Taquaril cidade? A distribuição das resoluções pelo es- na zona leste, bairros da zona oeste de BH e paço da cidade reflete as forças de reivindica- norte. Percebe-se que alguns deles também ção dos conselheiros pelo favorecimento dos foram citados pelos 22,1% que não se sentem lugares onde moram ou que gostam? seguros, ou seja, o mesmo local foi citado em Foi importante o levantamento da per- duas ou três categorias. Isso significa que o cepção individual dos conselheiros sobre o sentimento de segurança não se relaciona so- lugar onde vivem e o sistema de transporte mente com questões que envolvem violência que os servem, a avaliação do espaço central ou tráfico de drogas; significa também, que a de Belo Horizonte, a indicação dos lugares de sensação de segurança ou de insegurança é va- que gostam e de que não gostam na cidade, o riável de pessoa para pessoa. Verifica-se, ainda, apontamento dos principais problemas enfren- que a preocupação com a segurança é um fe- tados pela população em Belo Horizonte, e a nômeno que se dispersa por toda a cidade. avaliação dos mesmos quanto aos melhores e Sobre os espaços da cidade mais con- os piores bairros, sendo estes últimos aponta- templados com as decisões dos conselhos mu- dos como aqueles que precisam de maior in- nicipais, verificou-se que esses lugares estão tervenção do poder público. Também permitiu dispersos pela cidade, com menor ocorrência que os conselheiros analisassem os bairros que na regional norte. Essa dispersão pode ser foram mais contemplados em suas discussões resultado dos diversos tipos de políticas abor- nos conselhos e os locais que ainda precisam dadas nos conselhos considerando que foram de uma maior atenção dos mesmos, por nunca entrevistadas pessoas que decidem sobre dife- terem sido contemplados ou porque necessi- rentes assuntos e necessidades sociais. tam de novas intervenções dos conselhos. 34,4% dos conselheiros admitem a exis- Nessa perspectiva temos que 59,8% dos tência de bairros que precisariam ser contem- conselheiros apontam o bairro onde moram plados nas discussões de seus conselhos. Es- como um lugar bom para se viver. Pode-se ve- ses dados espacializados permitem dizer que rificar que muitos bairros localizados em áreas a área central da cidade, a região do Barreiro, de periferia desorganizada foram indicados co- Venda Nova e Pampulha são apontados como mo bom lugar para moradia. Isso significa que, os lugares que ainda precisam receber maior apesar das dificuldades de infraestrutura e ou- atenção dos conselhos, bem como algumas tros problemas sociais, seus moradores cons- áreas de periferia desorganizada dispersas pe- truíram relações afetivas com os lugares. lo município (vilas, favelas). Também é visível a influência das rela- Dos bairros citados como os melhores ções afetivas com os lugares quando a ques- para se viver na cidade, temos diversas ca- tão se refere a segurança pública. Nos locais de racterizações que justificam a escolha dos Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 507 507 17/3/2010 12:49:48 Mônica Abranches conselheiros e que podem ser classificadas co- geológico, acesso difícil, áreas degradadas, mo: a) Estrutura Física: com boa infraestrutura sujeira, topografia acidentada, desequilíbrio urbana, arborizado e com áreas verdes, fácil ambiental; b) falta de infraestrutura como sa- acesso, boa topografia, limpeza, lugar/visual neamento básico, eletrificação e a presença bonito, pouca poluição; b) Laços afetivos: de habitações subnormais; c) ausência de ser- amizades no bairro, boa vizinhança, tempo de viços básicos como postos de saúde, escolas, moradia, lugar de referência cultural, e convi- posto policial, estabelecimentos comerciais e vência comunitária, c) Serviços Sociais Básicos: problemas com transporte; d) questões sociais lugar seguro, boa limpeza urbana, sistema de graves como a violência, tráfico de drogas, transporte bom, área comercial satisfatória e desemprego e ocupação inadequada de algu- d) outras características como aconchegante, mas áreas. A espacialização desses problemas tranquilo, parece cidade do interior, pouco vio- aponta quase exclusivamente para áreas de lento, satisfação com o lugar. periferia desorganizada que convivem com a No levantamento dessas informações falta de urbanização e o crescimento de ocupa- podemos verificar que os conselheiros se re- ções desordenadas. Exceções são os bairros da ferem mais aos bairros da regional centro sul área central citados devido a problemas com que possuem boa infraestrutura de serviços violência (assaltos nas ruas, roubo de carros e e comércio e são mais arborizados e as áreas casas). da Pampulha consideradas como local turís- Perguntados sobre um lugar de Belo tico com infraestrutura para lazer e áreas de Horizonte de que gosta, a maioria dos Conse- conivência coletiva. Bairros na regional Bar- lheiros elegeu um local específico e em escala reiro têm a vantagem da função comercial e micro como uma rua, uma praça, parque, uma da tranquilidade de “cidade do interior” em edificação. Alguns indicaram um bairro como alguns de seus pontos. Os lugares citados na seu lugar de preferência e então foi possível região norte e oeste são áreas de periferia, mapear essas escolhas, que apontam a regio- mas que primam pela convivência comunitária nal centro sul como detentora dos lugares mais e os bairros citados na região leste têm carac- apreciados pelos conselheiros, principalmente terística mistas de residenciais e comerciais, as áreas consideradas como nobres e a conti- com exceção do Taquaril, que é uma área de nuação destas até a região da Serra do Curral periferia com inúmeros problemas sociais, mas (parque e áreas de preservação). Para os luga- tem uma história de organização comunitária res de que gostam os conselheiros valorizaram bem consolidada. a perspectiva física desses locais elogiando a Dentre os bairros apontados como os mais problemáticos de Belo Horizonte, per- beleza da paisagem, a limpeza, a arborização e a boa infraestrutura de comércio e serviços. cebe-se uma infinidade de justificativas que, Sobre o lugar da cidade de que não gos- na sua maioria, remetem a situações geradas tam, foi possível notar uma sobreposição de por questões sociais como a pobreza dos lu- escolhas com o item anterior (lugar de que gares. São apontados os seguintes proble- gosta), pois praticamente os mesmos bairros mas: a) questões de ordem física como risco da regional centro sul e Barreiro foram citados, 508 Book CM v11_n22.indb 508 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:48 Planejamento urbano em Belo Horizonte criando uma ambiguidade nessas áreas em segurança pública. Os demais bairros dispersos relação à opinião dos conselheiros. Algumas pelo município referem-se a áreas de periferia foram apontadas mais de duas vezes em pers- organizada e desorganizada: conjuntos habi- pectivas diferenciadas – negativa e positiva. tacionais, vilas e favelas. Para estes últimos, Como exemplo dessa ambiguidade, po- os conselheiros apontam a necessidade de demos citar o bairro da Serra, que possui uma reverter as condições precárias de habitação área de residências de alto luxo e pontos que e de vida, a intervenção nos altos índices de abrigam vilas e grandes favelas, o mesmo vulnerabilidade social, a falta de saneamento acontecendo com a região do Buritis e Belve- e serviços sociais básicos, além do combate à dere. A Pampulha vive a contradição de ser criminalidade. Quanto aos principais proble- atrativo turístico e um polo arquitetônico e, ao mas enfrentados pelo município de Belo Hori- mesmo tempo, ser caracterizada como um lu- zonte, os conselheiros apontaram questões em gar poluído e fétido e ainda, outros bairros da todas as políticas públicas, sendo os três mais região central elogiados pela sua boa infraes- citados: a violência e a insegurança na cidade, trutura e condenados pelos índices crescentes o desemprego e problemas com a estrutura da de violência. Na classificação dos lugares de- educação. preciados da cidade ainda podemos encontrar O que mais chama a atenção nesse tra- uma concentração maior de bairros na região balho é a associação dos problemas apontados norte e Venda Nova, que são descritos como pelos conselheiros e dos bairros onde ocorrem áreas de periferia desorganizada. Aqui, a jus- e a indicação dos locais para onde as decisões tificativa dos conselheiros gira em torno dos dos conselhos são direcionadas. Há uma clara problemas sociais desses lugares (violência, incoerência entre a indicação dos conselhei- drogas, pobreza, transporte ruim), a estética ros dos bairros que devem ser atendidos com dos lugares (sujeira, feio, triste) e a falta de in- determinado investimento público e aqueles fraestrutura urbana. que têm problemas emergentes e deveriam ser Solicitados a apontar os bairros de Belo atendidos com prioridade. Horizonte que mais precisam de intervenção A análise das atas dos conselhos, que do poder municipal, os conselheiros cobriram mostram os resultados e as decisões tomadas todas as nove regionais da cidade com um pelo coletivo de conselheiros nos mostra que o número significativo de lugares citados, com mapeamento das resoluções dos conselhos no destaque para uma grande concentração de espaço da cidade é diferente do mapeamento bairros ao norte e em Venda Nova, que não dos maiores problemas apontados pelos mes- apareceram em outros itens espacializados, mos. Percebe-se que as indicações dos lugares confirmando essas regiões como as mais vul- se associam mais aos lugares de moradias dos neráveis da cidade. Os bairros da regional cen- conselheiros e dos lugares que mais gostam. tro-sul também aparecem com grande necessi- Isso nos faz refletir sobre a existência direta da dade de intervenção, somados aos bairros da topofilia que faz com que os conselheiros, mes- região do Barreiro, que necessitam de investi- mo no âmbito público e decidindo pelo coleti- mentos da prefeitura nas áreas de transporte e vo da sociedade, valorizem e deem preferência Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 509 509 17/3/2010 12:49:48 Mônica Abranches para os lugares que lhe são afetos ou de convi- coletivas. Estas se apresentam em um todo hete- vência rotineira. rogêneo, no qual os interesses e as expectativas O mapeamento dos problemas da cidade em relação à cidade são diferenciados, o que e dos bairros que precisam de maior interven- indica o desafio de lidar com projetos políticos ção, na percepção dos conselheiros, não con- diversos. Com o advento da municipalização diz com a espacialização dos bairros atendidos das políticas públicas em Belo Horizonte, foi pelas decisões dos conselhos nem com a espa- possível viabilizar espaços democráticos e ins- cialização dos bairros que deveriam ser foco de talar o poder de decisão próximo à comunidade, discussão dos conselhos no futuro. permitindo a abertura para a inserção de vários setores sociais organizados e envolvidos com as questões públicas, que favorecem ou prejudicam a qualidade de vida urbana. Considerações finais Nessa perspectiva, a experiência dos conselhos municipais no planejamento urbano A experiência da decisão colegiada traz para assume a responsabilidade de garantir que es- o futuro da cidade novos desenhos, conside- ses instrumentos não sejam uma unidade vol- rando que não é só o poder público que tem tada para assuntos políticos de uma minoria, sob sua responsabilidade as “escolhas” sobre mas uma instituição de caráter público voltada as resoluções dos problemas urbanos e o di- para toda a comunidade. Devem existir para recionamento dos benefícios para os diversos criar estratégias de atuação sobre o orçamen- “lugares” da cidade. to, os serviços, os programas, a implementa- Com a inserção da participação popular na gestão pública, da representatividade de ção e o controle das diversas políticas que movem a cidade e seus habitantes. diferentes segmentos e interesses nos assun- É nesse sentido que a teoria da percep- tos urbanos e da responsabilidade pelo bem ção ambiental foi importante para sustentar a comum (dimensão coletiva), tem-se uma am- organização da coleta de dados da pesquisa pliação do espaço público, entendendo-se este e para a leitura dos dados sobre a implicação de duas formas: a) como apropriação física dos dos conselheiros com as políticas sociais e ur- lugares da cidade pela população, utilizando banas e o seu compromisso com o futuro da os mesmos como equipamentos e locais de cidade. É importante reconhecer que esses lazer e serviços, e b) como exercício de cidada- representantes possuem formas de expressão nia, na medida em que uma ação política dos diferentes de acordo com as suas necessidades indivíduos requer o seu aparecimento nos es- sociais e políticas, sua formação cultural e do paços públicos de decisão, onde revelam ativa- lugar de origem (a comunidade). mente suas identidades pessoais e singulares, Através da opinião dos conselheiros so- que vão, aos poucos, se transformando em um bre a atuação e o resultado do funcionamento espírito coletivo. dos conselhos e sua percepção sobre o espaço Também se deve atentar para o contexto da cidade sobre o qual estão decidindo, aliadas de inter-relação no qual acontecem as decisões ao perfil sociodemográfico dos representantes 510 Book CM v11_n22.indb 510 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:48 Planejamento urbano em Belo Horizonte de órgãos governamentais e da sociedade ci- Foi possível perceber que os canais de vil organizada, foi possível avaliar esse novo abertura para a organização de um planeja- processo de planejamento realizado de forma mento participativo em Belo Horizonte estão colegiada em Belo Horizonte. consolidados e têm seu marco legal na Lei Or- A pesquisa permitiu dividir essa análise em três pontos importantes: gânica Municipal e no Plano Diretor de Belo Horizonte, entre outras leis municipais que a) a concepção de planejamento em Belo regulamentam e incentivam a participação Horizonte, sua funcionalidade e espacialização; social nas políticas públicas. Também requer b) a percepção da cidade e sua influência no destaque o fato de que, além funcionamento planejamento urbano; dos dezoito conselhos municipais de diver- c) as forças políticas distribuídas no espa- sas políticas setoriais, estão em operação os ço urbano de Belo Horizonte e sua influência conselhos regionais e a prática do orçamen- nas decisões públicas que alteram o espaço da to participativo já instalado há mais de uma cidade. década. No momento atual, o planejamento ur- Esses instrumentos apontam para uma bano brasileiro reflete claramente uma ruptura renovação na contratualidade entre o público com o planejamento tecnocrático que tinha a e o privado, que considera o conflito e a ne- decisão e ação do Estado como a única forma gociação como ações legítimas da vida políti- de regular as contradições sociais e políticas do ca de uma cidade. Resta verificar se o espaço país. Esse processo é fruto do avanço da capa- público criado para as decisões coletivas está cidade de mobilização e ação dos movimentos sendo ocupado e utilizado de forma ativa pelo sociais, incluindo as suas demandas sociais nas governo e, principalmente, pela sociedade civil decisões de caráter público, e da modernização organizada. do próprio Estado que, nas últimas décadas, A pesquisa permitiu, então, analisar co- incorporou novas formas de interação com a mo se dá esse modelo de planejamento partici- sociedade. pativo no município, além de apontar algumas Nessa perspectiva, pode-se analisar o fragilidades dessa experiência democrática. planejamento urbano na cidade de Belo Hori- Entendendo o planejamento urbano co- zonte, que já avançou no processo de transfor- mo um processo contínuo e permanente de mação da legitimação do exercício do poder, avaliação do espaço da cidade, em sua tota- permitindo outras formas de representação lidade, e destinado a resolver, racionalmente, política e o controle do Estado pela sociedade. os problemas que influenciam na qualidade A administração do município caracteri- de vida de uma sociedade, através de uma za-se por um projeto democrático popular que ordenação e previsão de consequências e uti- estabeleceu, para si, o desafio de minimizar as lização ótima dos recursos, podemos estabe- desigualdades sociais da cidade e introduzir a lecer um olhar de referência para enxergar os participação popular na gestão pública através aspectos positivos e negativos que envolvem a da sociedade civil organizada. experiência de Belo Horizonte. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 511 511 17/3/2010 12:49:48 Mônica Abranches Através da atuação dos conselhos muni- diretos às necessidades básicas da população. cipais, em Belo Horizonte, é possível promover As questões que envolvem a regulação urba- formas de mesclar as visões diferenciadas trazi- na e processos de grandes empresas são itens das por diversas representações sociais, sejam prioritários nas atas de reuniões. Isso quer dizer elas locais, regionais, técnicas, empresariais ou que os conselhos estão priorizando discussões populares, configurando um espaço político le- relativas ao setor privado e garantindo resolu- gítimo de discussão da cidade. Pode-se perceber ções mais voltadas para a análise de processos que essa nova contratualidade entre sociedade pontuais. As atas indicam poucos momentos de e Estado, representada pelos conselhos, permi- discussão mais ampla sobre a implementação, tiu uma maior visibilidade dos problemas da avaliação e controle social das políticas urba- cidade nas diversas áreas sociais e estruturais, nas, ou seja, apesar de extremamente válidas a partir de ângulos e interesses diferenciados, as discussões sobre o avanço da utilização do além de trazer um novo olhar para o espaço da espaço pelo setor privado, se gasta muito tem- cidade, considerando que os participantes dos po com análises de processos particulares em conselhos representam e “defendem” os dife- detrimento de questões mais coletivas, que be- rentes territórios da mesma. Também é relevan- neficiariam a população como um todo e con- te apontar que esse modelo de planejamento solidariam a função social da cidade. permite uma maior difusão das decisões pelo Outro ponto importante que compromete espaço e torna mais democrática a divisão de o processo de planejamento é a verificação de recursos e benefícios para as comunidades em que há uma dificuldade de unificação das dis- todas as partes do município. cussões e ações que passam pelos conselhos. A espacialização das decisões dos con- Percebe-se que as análises de pontos importan- selhos e o estudo das atas permitiram verificar tes sobre a ocupação, utilização dos espaços da que diferentes aspectos estão sendo abordados cidade, distribuição da população, entre outros, na cidade como: meio ambiente, urbanização, são descoladas de análises que envolvam o de- habitação, segurança, ocupação, territorializa- senvolvimento econômico e social da cidade. ção, utilização dos espaços da cidade, questões Nesse sentido, o planejamento pode ser parti- sociais que afetam a distribuição e a circulação cipativo, mas não é integrado. da população bem como sua qualidade de vi- A organização da estrutura urbana pres- da; e que as deliberações nesse sentido podem supõe um conjunto de ações reguladoras e in- alcançar a cidade em seus vários bairros e re- dutoras da dinâmica de crescimento da cidade, gionais. Isso quer dizer que a diversidade das que passa por uma intervenção que atinja um situações urbanas está sendo considerada e processo de desenvolvimento urbano susten- que existe um esforço de inclusão de todas as tável e que promova, radicalmente, a inclusão partes da cidade, sejam elas oficiais ou não. de comunidades historicamente excluídas do Na prática de participação dos conse- contexto urbano. Assim, é fundamental o maior lhos, a análise dos documentos demonstra, número possível de aspectos que envolvem a ainda, que as decisões dos conselhos deixam dinâmica da cidade sejam considerados pelos a desejar no que se refere aos atendimentos conselhos em suas discussões. 512 Book CM v11_n22.indb 512 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:48 Planejamento urbano em Belo Horizonte O segundo ponto importante, considera- percepção ambiental gera possibilidades infor- do na pesquisa, refere-se à influência da per- macionais que podem criar uma escala de va- cepção ambiental sobre as decisões dos con- lores sobre o cotidiano urbano, ou seja, medir selhos municipais. De acordo com a hipótese a visibilidade e os significados da cidade para inicial, é possível verificar que a construção co- cada conselheiro, produz elementos que estru- letiva é extremamente afetada pelas análises turam a percepção urbana que influenciará na individuais. Isso seria lógico, partindo da plu- tomada de decisões das diversas políticas pú- ralidade que existe em um movimento demo- blicas e que alteram o espaço da cidade. crático, que envolve diversas ideias em torno Aqui, dois aspectos importantes são de uma proposta; mas está se considerando al- identificados e se confrontam: a imagem indi- go mais profundo, que passa pela identificação vidual da cidade desenvolvida pelo indivíduo/ das pessoas com os lugares em que vivem ou cidadão (que está no conselho) e a imagem co- trabalham, além de suas diversidades na for- letiva da mesma (intersubjetiva), adotada pelo mação política, educacional, cultural e social indivíduo que exerce o cargo de conselheiro e que se refletem em suas escolhas. está sob a influência de outras opiniões e sob A percepção da imagem da cidade é um a pressão do senso coletivo nas decisões. Isso elemento importante para entender as identi- significa, de um lado, dizer que cada indivíduo dades pessoais e os significados urbanos, pois relaciona-se com os lugares de acordo com as estes delinearão as formas de “compromisso” identificações sociais e culturais, que ao longo ou “não compromisso” das pessoas com os lu- do tempo vão construindo uma imagem urba- gares. Por isso, elegeu-se como um referencial na que é valorizada ou desvalorizada pelos in- para essa pesquisa a introdução da percepção divíduos e que, futuramente, será decisiva para ambiental para compreender a dinâmica con- a sua opinião política. Por outro lado, a cidade, creta que influencia as decisões dos conselhei- em tempos atuais, vive o impacto crescente ros no espaço da cidade. dos veículos de informação e comunicação, Portanto, para se estudar a distribuição que têm criado um imaginário correspondente das ações dos conselhos municipais no espa- a um sentido de participação dos indivíduos na ço da cidade é preciso entender os diferentes minimização dos problemas urbanos, ou seja, a ângulos pelos quais os lugares urbanos são questão da participação tem sido apontada co- enfocados; é necessário defrontar-se com a mo forma de viabilizar a qualidade de vida nas imagem criada e recriada pelo olhar de cada grandes cidades. Isso entusiasma diretamente conselheiro e que se altera conforme mudam as pessoas que estão inseridas em instrumen- as características individuais e sociais dos su- tos democráticos de planejamento urbano, jeitos que a produzem. pois são elaborados motes que estimulam o É uma estratégia complexa para captar compromisso com uma cidade (imagem), cons- a realidade, pois coloca a questão da análise truída por um terceiro elemento a serviço de qualitativa que deve interferir na realidade am- diversos setores: os veículos de comunicação. biental cotidiana e que deve modelar um perfil Nesse contexto, a decisão política dos urbano para cada indivíduo. Esse olhar sobre a conselheiros municipais sobre os diversos Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 513 513 17/3/2010 12:49:48 Mônica Abranches problemas urbanos representa a percepção co- que o centro deve ser revitalizado devido aos letiva (intersubjetiva) da imagem urbana e esta inúmeros problemas relacionados a segurança, demonstra o poder que organiza a cidade e que poluição, limpeza, trânsito, etc. e outros afir- dele se utiliza para reproduzir-se. Essa imagem mam que ele deve receber mais investimentos final (mas dinâmica) constrói a hierarquia do na sua aparência e funcionalidade, pois é en- sistema urbano em termos políticos e de forças tendido como um espaço de lazer, de comércio sociais, e comunica a forma de entender, avaliar e de referência histórica da cidade. e valorizar a cidade em determinado momento. O mesmo ocorre com algumas áreas já Vale ressaltar que, de acordo com a reali- classificadas pelos conselheiros como os me- dade política e representativa de cada conselho lhores lugares para se viver. Mesmo recebendo municipal, essa imagem será mais institucio- boas justificativas para a função de morada, nalizada quando corresponder à assinatura do essas áreas também aparecem na indicação poder público sobre o planejamento urbano, ou dos conselheiros como espaços que devem mais democrática quando garantir e considerar receber outras intervenções do poder público, as observações e demandas da sociedade civil apesar de já possuírem boa estrutura física e através da representação de vários segmentos. bons serviços sociais básicos. Alguns conselhos vivem uma situação política Analisando essa situação, a distribuição de “imposição” dos interesses do poder público dos lugares apontados pelos conselheiros co- sobre os diversos setores sociais participantes. mo aqueles que mais necessitam de interven- Temos, então, para a realidade do pla- ção pública, visualiza-se uma opção inversa, nejamento urbano de Belo Horizonte, análises ou seja, os bairros mais vulneráveis da cidade interessantes quando avaliamos a percepção (no olhar dos conselheiros) pouco são alvo da cidade pelos conselheiros municipais e a es- das resoluções de seus conselhos, que são os pacialização das decisões finais tomadas pelos órgãos responsáveis pela discussão e decisão conselhos municipais. das diversas políticas públicas que planejam A distribuição espacial dos conselheiros o futuro da cidade. Essa análise se fortalece pela cidade indica uma concentração dos mes- quando verificamos a caracterização das áreas mos em bairros centrais e seu entorno. Essa mais problemáticas da cidade e que, na opinião distribuição é muito semelhante àquela que dos conselheiros, estão localizadas na periferia. apresenta o destino das decisões dos conselhos A distribuição desses lugares nem sempre cor- no espaço da cidade e o apontamento daque- responde às áreas escolhidas pelos conselhos les lugares que ainda necessitam de mais aten- para serem alvos de ação pública nas diversas ção por parte dos conselhos, apesar de já terem políticas sociais. Os mapas construídos a partir sido contemplados por decisões de mais de um das atas dos conselhos municipais de habita- conselho municipal. A área central é um exem- ção, política urbana e meio ambiente reforçam plo e aparece sempre como um lugar de prio- essa constatação. ridade para outras intervenções. Isso é reflexo Essas análises nos indicam duas possibi- tanto das análises negativas dos conselheiros, lidades em relação ao destino das discussões quanto das positivas, ou seja, alguns acham e resoluções nos conselhos: as decisões estão 514 Book CM v11_n22.indb 514 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:48 Planejamento urbano em Belo Horizonte diretamente influenciadas pelas identidades consequentemente, maior renda, têm exercido das pessoas com os lugares e por isso a direção uma grande influência nos conselhos, atrain- delas corresponde aos locais de morada, traba- do as decisões para as suas áreas de origem. lho ou lazer dos conselheiros, ou pode haver A mesma situação aparece para a distribui- uma forte influência da política da prefeitura ção de conselheiros que são sindicalizados, sobre o “olhar” dos conselheiros, instituciona- ou seja, grande parte dos conselheiros com lizando as decisões para áreas prioritariamente formação superior são profissionais liberais já definidas pelo poder público. sindicalizados. Somam-se a essas observações as aná- Vale ressaltar que os conselheiros que lises sobre a percepção dos conselheiros dos representam os setores governamentais en- lugares de que mais gostam e de que menos contram-se distribuídos nessas áreas centrais gostam na cidade. O apontamento dos locais e isso pode justificar o número de conselheiros “ruins” da cidade muitas vezes correspondem que apóiam a gestão da prefeitura e que a ava- aos lugares mais vulneráveis da cidade e vários liam positivamente. locais escolhidos como “bons” se confundem Os conselheiros com a trajetória políti- com os lugares de morada dos conselheiros. ca de inserção em partidos políticos ou outras Mais uma vez, é possível avaliar que os senti- associações estão distribuídos por todo o ter- mentos em relação aos lugares podem induzir ritório da cidade, mas com maior número em as escolhas políticas no espaço da cidade. bairros periféricos. Nesse sentido, pode-se dizer O terceiro ponto a ser analisado corres- que essa característica não tem qualificado as ponde à distribuição das forças políticas pelo decisões dos conselhos, pois as áreas de origem espaço. Isso quer dizer que o perfil sociodemo- dos conselheiros com maior trajetória política gráfico dos conselheiros tem grande influência de participação não têm sido contempladas nas decisões públicas. Mas, se esse perfil é um significativamente pela maioria dos conselhos ponto de interferência importante nas decisões municipais. políticas dos conselhos, este, associado ao local A partir dessas considerações, pode-se de origem dos conselheiros, também influencia afirmar a importância da análise da distribui- na organização dos espaços da cidade e na dis- ção dos conselheiros municipais, enfocando tribuição de políticas públicas internamente. suas tendências políticas e seu capital social, As áreas mais contempladas pelas de- pois são fatores que contribuem fortemente cisões dos conselhos municipais correspon- nas decisões individuais de cada cidadão. O dem àquelas onde moram os conselheiros pertencimento a um grupo político, a partici- que têm maior escolaridade (nível superior e pação em movimentos de interesses públicos pós-graduação) e com maior índice de renda. ou privados, a inserção em associações comu- Os espaços periféricos e mais vulneráveis da nitárias, entre outros, influenciam as reflexões cidade abrigam os conselheiros que têm menor dos conselheiros no momento das discussões renda ou sem renda e que possuem estudos públicas que vão afetar direta ou indireta- apenas até o primeiro grau. Pode-se dizer que mente os vários grupos sociais do municí- os conselheiros com mais anos de estudo e, pio. A qualificação política dos conselheiros, Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 515 515 17/3/2010 12:49:49 Mônica Abranches associada ao alto grau de escolaridade e maior O trabalho não se encerra aqui, e espera- renda, empodera suas reivindicações e pode se que os seus resultados possam contribuir aproximar as decisões coletivas a favor de seus e incentivar outros indivíduos para a inserção interesses. nas potencialidades da análise espacial. Mônica Abranches Assistente Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Educação pela Universidade Paulista de Campinas-São Paulo e Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Tratamento da Informação Espacial da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora Assistente III da Escola de Serviço Social e Assessora da Pró-Reitoria de Extensão da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Minas Gerais, Brasil). [email protected] Notas (1) Salários com referência do ano de 2004. (2) Definimos subcentro como áreas comerciais e de serviços ao longo das vias arteriais nos bairros e em certas áreas como praças e entroncamentos, o que pode aumentar sua importância como referência terciária no nível regional. Essa zona pode ser subdividida em: subcentros de grande porte, áreas de shopping centers e subcentros especializados de saúde, de educação, de transporte, setor moveleiro, de confecção ou industrial. Referências AMORIM FILHO, O. B. (1987). O contexto teórico do desenvolvimento dos estudos humanísticos e perceptivos na geografia. Belo Horizonte, Departamento de Geografia do IGC/UFMG. Publicação Especial n. 5 ______ (1993). Las mas recientes reflexiones sobre la evolucion del pensamiento geográfico. Paisajes Geográficos. CEPEIGE/IPGH, Quito, ano XIII, n. 27, pp. 16-28. BAUZER, R. (1983). Crescer numa cidade grande. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. BLEY, L. (1999). “Morretes: um estudo de paisagem valorizada”. In: DEL RIO, V. e OLIVEIRA, L. de. Percepção ambiental: experiência brasileira. São Paulo, Studio Nobel. 516 Book CM v11_n22.indb 516 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:49 Planejamento urbano em Belo Horizonte CLARK, D. (1985). Introdução a geografia urbana. Trad. Lúcia Helena Oliveira Gerardi e Silvana Maria Pintaud. São Paulo, Difel. DEL RIO, V. (1990). Introdução ao desenho urbano no processo de planejamento. São Paulo, Pini. FERRARA, L. D’A. (1999). Olhar periférico: informação, linguagem e percepção ambiental. São Paulo, Edusp. MACHADO, L. (1999). “Paisagem valorizada: a Serra do Mar como espaço e como lugar”. In: DEL RIO, V. e OLIVEIRA, L. de. Percepção ambiental: experiência brasileira. São Paulo, Studio Nobel. PEIXOTO, N. B. (1996). Paisagens urbanas. São Paulo, Senac. ROLNIK, R. (1994). “Planejamento Urbano nos anos 90: novas perspectivas para velhos temas”. 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XAVIER, H. e OLIVEIRA, L. de (1996). Áreas de risco de deslizamento de encostas em Belo Horizonte. Cadernos de Geografia. Belo Horizonte, PUC MInas, v. 6, n. 8. Texto recebido em 10/maio/2009 Texto aprovado em 19/jul/2009 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 495-517, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 517 517 17/3/2010 12:49:49 Book CM v11_n22.indb 518 17/3/2010 12:49:49 Entre a institucionalização e a vida quotidiana: elementos para repensar o espaço metropolitano de Brasília* Between institutionalisation and daily life: some elements to rethink Brasília’s metropolitan space Igor Catalão Resumo Buscando demonstrar que as discussões concernentes às problemáticas metropolitanas devem obrigatoriamente considerar a diferenciação existente entre a metrópole como realidade experienciada, como conceito e como definição político-administrativa, apresento aqui algumas ideias para reflexão. A partir da análise de Brasília – abordando as formas de articulação regional e a constituição de seu espaço metropolitano – e tendo em vista corroborar o entendimento de que é impossível pensar o espaço sem aceitar seu duplo papel de produto-produtor de relações sociais, busco explicar que existe uma diferença entre as regionalizações legal ou academicamente pensadas e o espaço compartilhado pela população que nele vive a fim de que se possam encontrar medidas eficientes de resolução dos problemas. Abstract Aiming to demonstrate that the discussions c o n c e r nin g m e t r o p o li t a n p r o b l e m s m u s t necessarily consider the difference that exists among the metropolis as experienced reality, as a concept and as political-administrative definition, I present here some ideas for reflection. Based on the analysis of Brasília – approaching the forms of regional articulation and the constitution of its metropolitan space – and aiming to corroborate the understanding that it is impossible to think of space without accepting its double role of productproducer of social relations, I seek to explain that there is a difference between regionalisation from both the legal or scholarly viewpoints and the space shared by the population that live in it. In doing so, we can find efficient ways of solving problems. Palavras-chave: metropolização; espaço metropolitano; gestão metropolitana; mobilidade quotidiana; Brasília. Keywords: metropolitanisation; metropolitan space; metropolitan management; daily mobility; Brasília. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 519 17/3/2010 12:49:49 Igor Catalão Introdução todas as especificidades de cada formação Para começar, partamos de um processo, a quanto definição político-administrativa. No ca- metropolização, e de uma forma dele carac- so brasileiro, tanto aquelas que foram definidas terística, o espaço metropolitano. Neste arti- pelo governo federal na década de 1970 – as go, meu esforço será o de demonstrar que as primeiras Regiões Metropolitanas – quanto as discussões que respeitam às problemáticas que foram criadas pelos governos estaduais a metropolitanas devem obrigatoriamente con- partir da Constituição de 1988 – as novas Re- siderar a seguinte diferenciação, apresentada giões Metropolitanas –, além das Regiões Inte- em ordem de importância. gradas de Desenvolvimento. Essas metrópoles socioespacial. (3) Em terceiro lugar, há a metrópole en- (1) Antes de tudo, a metrópole precisa surgem, ou deveriam surgir, a partir da com- ser entendida enquanto realidade prático-sen- preensão de que primeiramente a metrópole sível, qual espaço vivido e experienciado quo- existe enquanto realidade, plena de problemas tidianamente, composto de formas-conteú- sociais, a partir da qual se criam mecanismos do que são resíduos de outros tempos e que institucionais para a resolução desses proble- indicam claramente todas as ações práticas mas, cuja explicação e compreensão, por sua impetradas na produção do espaço, incluí- vez, advêm das conceituações e teorizações. da aí a apropriação, e que revelam todas as Por essa razão, a metrópole como definição en- contradições inerentes a essa produção. Esse tra em terceiro lugar na diferenciação propos- é o ponto de partida para quaisquer medidas ta, pois é resultado das duas primeiras e, nesse políticas e práticas que se pretendam efetivas. sentido, tampouco coincide com a metrópole Retornarei a este ponto mais adiante. como realidade e com a metrópole como con- (2) Partindo do entendimento supra- ceito, justamente porque as definições são mais exposto, em segundo lugar, é necessário en- rígidas e envolvem critérios mais objetivos. Ain- tender a metrópole como conceito utilizado da assim, no caso brasileiro, temos um enorme para qualificar a realidade e, portanto, para afastamento do que se define como metrópole analisá-la, explicá-la e consequentemente e o que quotidianamente pode ser visto e vivi- (inten tar) compreendê-la. Em outras pala- do como tal. Essa é a razão pela qual notamos vras, é importante reconhecer que para se uma enorme dificuldade de criar mecanismos elaborar toda e qualquer conceituação, co- de gestão e ordenamento territorial metropo- mo abstração mental que é, deve-se partir litanos que sejam eficazes, isto é, em geral o da realidade e a ela retornar num movimento espaço sobre o qual se age não coincide com o que busca sempre acompanhar o real, sempre espaço sobre o qual se deveria agir. dinâmico e mutante como é. Nesse sentido, Na geografia e nas outras ciências dedi- as conceituações e teorizações nunca coinci- cadas à compreensão espacial da sociedade, dem plenamente com a realidade no sentido o esforço, nas últimas décadas, tem sido o de de que são sempre aproximações do real e corroborar o entendimento de que é impossível nunca dão conta de todos os elementos e de pensar o espaço sem aceitar seu duplo papel 520 Book CM v11_n22.indb 520 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:49 Entre a institucionalização e a vida quotidiana de produto-produtor de relações sociais. Assim, que se possa reconhecer que Brasília conforma há a premência de inserir esse entendimento a uma aglomeração com um conjunto de cidades respeito da dialética socioespacial nas agen- em seu derredor com características metropoli- das políticas, tratando de encontrar uma práxis tanas, não há consenso sobre que cidades são que dê conta de, senão fazer coincidirem, ao essas. Essa falta de consenso dificulta a cria- menos tentar aproximar ao máximo a realida- ção de um ente de gestão metropolitana efi- de, o conceito e a definição da metrópole con- caz e, consequentemente, interfere na maneira temporânea. como se administra o espaço metropolitano e Nessa direção, discutirei um pouco a respeito das formas de articulação regional no como isso repercute na vida da população, sobretudo aquela da periferia mais distante. Brasil, apontando as experiências presentes e Na década de 1970, foram institucio- pretéritas no caso da metrópole brasiliense, nalizadas, pelo governo federal, as primeiras com o objetivo de demonstrar que existe uma Regiões Metropolitanas, localizadas em sua diferença entre as regionalizações legal ou aca- maioria no Sul e no Sudeste do país, cujos nú- demicamente pensadas e o espaço comparti- cleos eram constituídos pelas cidades de São lhado pela população que nele vive. Em outras Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salva- palavras, busco esclarecer que as formas de dor, Curitiba, Porto Alegre, Recife, Fortaleza articulação regional precisam levar em conta e Belém. Elas foram instituídas pela Lei Com- critérios muito mais próximos do quotidiano vi- plementar Federal n. 14, de 1973, à exceção do vido se seu interesse é justamente o de resolver Rio de Janeiro, cuja região metropolitana ficou problemas vivenciados por aqueles que vivem excluída da primeira oficialização, tendo sido no espaço metropolitano. incorporada posteriormente pela Lei Complementar Federal n. 20, de 1974 (Reolon, 2007; Catalão, 2007) (Quadro 1). Formas de articulação regional A criação dessas regiões tinha por objetivo a resolução dos problemas urbanos partilhados pelas cidades aglomeradas e que transpassavam a esfera dos municípios, neces- O reconhecimento de Brasília como metrópo- sitando uma ação conjunta no planejamento e le é praticamente um consenso entre os estu- na gestão dos bens e serviços metropolitanos, diosos da urbanização brasileira e brasiliense,1 bem como na promoção do desenvolvimento bem como o fato de que a produção de seu socioeconômico numa escala regional (Bordo, espaço não pode ser compreendida sem levar 2005). Entretanto, a gestão dessas regiões em consideração as cidades goianas contíguas. nunca foi uma tarefa fácil devido aos embates Com efeito, Brasília possui uma vasta região entre as esferas de poder municipal, estadual de influência direta que se estende desde a e federal, entre outros fatores, em que um en- região do nordeste mineiro, passando pela mi- te de caráter regional se torna um complica- crorregião goiana do Entorno de Brasília, em dor. Esse quadro se agravou, sobretudo, com direção ao norte do país. Entretanto e se bem a Constituição Federal de 1988, que reforçou Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 521 521 17/3/2010 12:49:49 Igor Catalão o papel dos municípios e deixou o ente metro- ao estudo para compreensão e explicação da politano com menos poder e possibilidades de realidade, e as vontades políticas, que versam atuação. pelam institucionalização de unidades regio- À época da institucionalização das primeiras regiões metropolitanas, o Brasil iniciava seu período urbano, já que sua população acabara de inverter-se de predominantemente rural a majoritariamente urbana, com as primeiras metrópoles oficiais contando pelo menos um milhão de habitantes, sem considerar seus respectivos espaços metropolizados (Davidovich, 2003). As metrópoles sudestinas, nais administrativas, seja para quais fins forem: [d]e um lado, têm-se conceitos (metropolização, área metropolitana, região metropolitana, aglomeração urbana, questões metropolitanas) e, de outro, apenas termos constitucionais (unidade regional, região metropolitana, aglomeração urbana, microrregião, região integrada de desenvolvimento, funções públicas de interesse comum). (2007, pp. 32-33) sobretudo, apresentavam uma população cada vez maior, uma industrialização crescente e Assim, enquanto as primeiras regiões inúmeras possibilidades de expansão econômi- metropolitanas foram oficializadas tendo por ca (Catalão, 2007). base critérios rígidos e mais coerentes com a Sobretudo a partir de 1995, foram oficia- realidade socioespacial de cada metrópole, as lizadas as novas regiões metropolitanas, além novas regiões metropolitanas foram definidas de seus colares e áreas de expansão (Quadro com base em critérios vagos, muitas vezes 1), já então pelos poderes estaduais, haja vis- apenas políticos, agrupando cidades cujo con- ta que, com a Constituição de 1988, tornou-se teúdo e cuja morfologia e estrutura espaciais atribuição dos estados federados a sua oficiali- não dizem respeito obrigatoriamente a uma zação. Não obstante, é de se notar que houve realidade metropolitana. É fato que, em muitas uma modificação no significado que a expres- das situações, vislumbra-se uma integração ou são ganhou a partir da institucionalização des- interdependência entre duas ou mais cidades sas novas unidades de administração regional. de forma a se constituírem, porém, muito mais Região Metropolitana parece se referir agora em aglomerações urbanas que em regiões me- muito mais a qualquer simples aglomeração de tropolitanas. Segundo C. A. Silva (2006), a de- cidades do que propriamente a um conjunto de cisão das prefeituras pela inserção ou não de cidades inserido num processo de metropoliza- uma cidade em uma determinada região me- ção. Se bem que possamos admitir que sempre tropolitana liga-se aos interesses por recursos tenha havido uma diferenciação entre a metró- que se podem auferir e não às relações com- pole como conceito, como realidade espacial partilhadas num mesmo espaço de vida, como e como definição político-administrativa, tal se supõe. como já apontei, agora tanto mais parece não No caso da metrópole de Brasília, sua coincidirem necessariamente os respectivos especificidade político-administrativa, espacial- significados aos quais os termos se remetem. mente inscrita, deixou-a durante muito tempo Como assevera Reolon (2007), inseridos no à margem das definições oficiais, embora, des- choque entre as questões científicas, dedicadas de a década de 1970, algumas medidas para a 522 Book CM v11_n22.indb 522 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:49 Entre a institucionalização e a vida quotidiana Quadro 1 – Regiões metropolitanas, regiões integradas de desenvolvimento, leis e anos de criação Regiões Novas Regiões Metropolitanas Primeiras regiões metropolitanas Tipo Região Metropolitana/Integrada de Desenvolvimento Cidade-sede Unidade Nº Lei de Federativa criação Ano de criação RM de Belém RM de Belo Horizonte (+ colar metropolitano criado em 2002) RM de Curitiba RM de Fortaleza RM de Porto Alegre RM de Recife RM de Salvador RM de São Paulo RM de Rio de Janeiro Belém Belo Horizonte Curitiba Fortaleza Porto Alegre Recife Salvador São Paulo Rio de Janeiro PA MG PR CE RS PE BA SP RJ LCF 14 LCF 14 LCF 14 LCF 14 LCF 14 LCF 14 LCF 14 LCF 14 LCF 20 1973 1973 1973 1973 1973 1973 1973 1973 1974 RM de Aracaju RM da Grande Vitória RM da Baixada Santista RM de Natal RM da Grande São Luís RM de Florianópolis (Núcleo + área de expansão metropolitana) RM de Londrina RM de Maceió RM de Maringá RM do Norte/Nordeste Catarinense (Núcleo + área de expansão metropolitana RM do Vale do Aço (Núcleo + colar metropolitano) RM do Vale do Itajaí (Núcleo + área de expansão metropolitana) RM de Goiânia (+ RID de Goiânia criada em 2000) RM de Campinas RM Carbonífera (Núcleo + área de expansão metropolitana) RM da Foz do Rio Itajaí (Núcleo + área de expansão metropolitana) RM de Tubarão (Núcleo + área de expansão metropolitana) RM de João Pessoa RM de Macapá RM de Manaus Aracaju Vitória Santos Natal São Luís Florianópolis Londrina Maceió Maringá Joinvile SE ES SP RN MA SC PR AL PR SC LCE 25 LCE 58 LCE 815 LCE 152 LCE 38 LCE 162 LCE 81 LCE 18 LCE 83 LCE 162 1995 1995 1996 1997 1998 1998 1998 1998 1998 1998 Ipatinga Blumenau Goiânia Campinas Criciúma Itajaí Tubarão João Pessoa Macapá Manaus MG SC GO SP SC SC SC PB AP AM LCE 51 LCE 162 LCE 27 LCE 870 LCE 221 LCE 221 LCE 221 LCE 59 LCE 21 LCE 52 1998 1998 1999 2000 2002 2002 2002 2003 2003 2007 RID do Distrito Federal e Entorno RID da Grande Teresina RID do Pólo Petrolina-Juazeiro Brasília Teresina Petrolina DF/GO/MG PI/MA PB/BA LCF 94 LCF 112 LCF 113 1998 2001 2001 Fonte: Organizado pelo autor a partir das informações do IBGE, de pesquisa nas leis federais e estaduais, e de Catia Silva (2006). Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 523 523 17/3/2010 12:49:49 Igor Catalão resolução dos problemas urbanos crescentes e Região geoeconômica de Brasília para a promoção do desenvolvimento regional, mormente focados em sua periferia goiana, tenham sido tomadas. Contudo, nenhuma delas O Programa Especial da Região Geoeconômica se mostrou satisfatoriamente efetiva, tanto no de Brasília – PERGEB – foi criado na metade da que diz respeito a uma integração da capital década de 1970, no âmbito do II Plano Nacio- com seu entorno goiano quanto no que tange nal de Desenvolvimento – II PND –, tendo em ao desenvolvimento regional como um todo. vista a preocupação das autoridades ligadas Voltei a esse assunto adiante na discussão de ao governo federal e ao estado de Goiás com algumas das formas de regionalização. o acelerado crescimento migratório para a re- Brasília, embora cientificamente reco- gião que circunscreve a capital (Peluso, 1983). nhecida como metrópole desde fins da déca- O objetivo principal do programa era criar es- da de 1970, como indicam Barbosa Ferreira tratégias para promover o desenvolvimento da (1985) e Paviani (1985a), esteve fora dessa região sob influência direta de Brasília, visan- categorização no que tange às decisões po- do, sobretudo, evitar a ampliação da depen- líticas até 1998, quando foi criada a Região dência das cidades contíguas. Além do Distrito Integrada de Desenvolvimento do Distrito Fe- Federal, sua escala de abrangência territorial deral e Entorno – RIDE. Entretanto, no debate atingia 88 municípios, tais como Abadiânia, científico, outras discussões sobre a natureza Alexânia, Cabeceiras, Corumbá de Goiás, Cris- de seu espaço metropolitano têm sido impe- talina, Formosa, Luziânia, Padre Bernardo, tradas exaustivamente, tanto na Academia Planaltina, Pirenópolis, em Goiás, e Unaí, em quanto nos órgãos de pesquisa públicos; tanto Minas Gerais, entre outros. é que Steinberger (2003) chama a atenção pa- No âmbito do PERGEB, a manutenção ra o fato de que existem pelo menos seis2 de- do papel de Brasília como centro político-ad- limitações para a região que circunda Brasília, ministrativo e cidade planejada era um fato tendo cada uma delas sido feita de acordo com marcante nas estratégias de desenvolvimento objetivos específicos e integrando cidades di- regional. Em linhas gerais, tratava-se de pro- ferentes, muito embora o objetivo maior seja a ver moradias, intraestruturas e empregos na delimitação de uma região com semelhanças e Região Geoeconômica ao mesmo tempo em complementaridades entre as cidades abarca- que se buscava desafogar os núcleos urbanos das e, conseguintemente, a criação de um en- periféricos internos ao quadrilátero do Distrito te de gestão que dê conta das especificidades Federal numa tentativa de evitar que Brasília socioespaciais e que ofereça subsídios à reso- se metropolizasse, sendo esse processo consi- lução dos problemas metropolitanos. A seguir, derado o gerador de conurbações3 e espaços tomarei parte em algumas dessas discussões, repletos de inconveniências (Construtora Oci- buscando apontar as limitações das formas de dental, [197-]), num momento em que apenas articulação regional para, finalmente, indicar o se iniciava o processo de metropolização de que pode ser uma outra maneira de reconhecer Brasília pela ocupação periférica do território e delinear o espaço metropolitano de Brasília. goiano limítrofe. 524 Book CM v11_n22.indb 524 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:49 Entre a institucionalização e a vida quotidiana Não é de se questionar a importância que região em que a capital se insere. Além disso, tinha a urbanização da capital e a influência o programa ficou centrado muito mais no dis- desse processo em uma escala regional desde curso e na disputa político-partidária do que a década de 1970, quando o PERGEB se apre- nas estratégias para atingir os objetivos pro- sentou, então, como um avanço na resolução postos, de forma que a contradição entre estes dos problemas urbanos ampliados para uma e o orçamento financeiro de que dispunham as escala regional, não obstante o fato de não se autoridades para levá-los a cabo acabou por tratar de uma tentativa de criação de um ente enfraquecer o programa, que não chegou à dé- de gestão metropolitana, como as regiões me- cada de 1980 (Seduma, 2008). tropolitanas criadas pelo governo federal entre 1973 e 1974. Além disso, o conjunto de municípios abrangidos pelo programa não apresenta- Aglomerado Urbano de Brasília va grande interação espacial com a capital, exceto Luziânia e Planaltina que, à época, come- O Aglomerado Urbano de Brasília – AUB – foi çavam a ser inseridos no processo de produção pensado no âmbito de um estudo desenvolvido do espaço urbano-metropolitano brasiliense. em seis volumes para avaliar os instrumentos Para aliviar a dependência já existente entre a de planejamento e gestão do uso do solo e sua nascente periferia goiana e Brasília, o núcleo delimitação teve como base a inexistência de metropolitano, vislumbrava-se a criação de uma região metropolitana, tal como constitu- um polo de implantação industrial na Região cionalmente se indicou a definição, para Brasí- Geoeconômica, mormente para atender ao lia (Gestão do Uso do Solo, 2001), levando-se município de Luziânia e sua gama de lotea- em conta o fato de ter ele precedido a criação mentos e conjuntos habitacionais dispersos na da RIDE.4 Assim, sua composição foi indicada a direção da capital. Se, por um lado, o PERGEB partir do que comumente se denomina Entorno propunha medidas de desenvolvimento regio- Imediato, contando com os municípios goianos nal e valorização socioeconômica da região de de Água Fria de Goiás, Águas Lindas de Goiás, influência direta de Brasília – reconhecendo a Cidade Ocidental, Formosa, Luziânia, Novo Ga- ampliação da urbanização da capital para uma ma, Padre Bernardo, Planaltina, Santo Antônio escala regional –, porém visando a impedir o do Descoberto e Valparaíso de Goiás. advento de um processo de produção metro- Em relação à especificidade do termo En- politana, por outro, ele traz em seu bojo a evi- torno nos estudos sobre Brasília cabe ressaltar dência do começo deste processo. um ponto. Dentro do que usualmente se enten- Segundo Paviani (1996a), a inexistência de por Entorno, existe uma série de subdivi-sões de resultados eficazes do PERGEB diz respei- que varia de acordo com a metodologia de clas- to à falta de estratégias numa escala regional sificação das cidades. Em geral, todas as sub- mais ampla que envolvesse, além do estado de classificações agrupam as cidades em Entorno Goiás, os estados de Minas Gerais e de Mato Imediato – ou próximo, ou metropolitano, ou Grosso, haja vista os resultados, para o Cen- de alta polarização – e Entorno Distante – ou tro-Oeste do país, do incremento migratório na de média e baixa polarização. Contudo, não há Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 525 525 17/3/2010 12:49:49 Igor Catalão coincidência entre elas, de sorte que o que se a explicação do processo de periferização das denomina Entorno Imediato num estudo, não cidades goianas e a sua aglutinação pela urba- corresponde necessariamente à mesma delimi- nização de Brasília, ainda que coerente e bem tação territorial em outro.5 Diante disso, embo- elaborada, deixa uma indeterminação territorial ra o AUB seja reconhecido como aquele forma- em relação aos acontecimentos expostos. Se a do pelas dez cidades do denominado Entorno opção era tomar por base um estudo oficial pa- Imediato citadas, não há referência aos critérios ra evitar uma desnecessária inclusão de tópico utilizados nessa classificação nem tampouco a destinado a explicar o porquê da escolha das 6 nove cidades, a não explicitação dos critérios Não obstante a relevância do estudo, essa im- e a não especificação territorial dos processos precisão pode demonstrar uma fragilidade na deixou a delimitação imprecisa e questionável. metodologia. Ademais, se não havia unidade Ademais, a avaliação dos instrumentos de pla- regional de caráter metropolitano reconhecida nejamento e gestão do uso do solo – feita ape- para Brasília à época, um estudo deste porte nas para o Distrito Federal, é de se notar – so- poderia corroborar para sua implantação, o que mente aclarou o fato de que eles não existem não aconteceu, haja vista que a criação da RI- em uma escala regional, deixando em aberto estudos precedentes que a tenham originado. 7 DE, em 1998, ocorreu a despeito dos delinea- o porquê de se fazer um estudo para avaliar mentos territoriais do estudo. tais instrumentos no AUB, em que as demais Assim, inúmeros questionamentos podem cidades integrantes ficaram negligenciadas. Em ser feitos no tocante à escolha das dez cidades, outras palavras, como se poderiam avaliar os posto que, no estudo, a delimitação territorial instrumentos de gestão do uso do solo numa do AUB visa a resolver a questão da inexistên- escala regional, sendo que estes instrumentos cia de uma unidade de gestão metropolitana, não possuem tal abrangência? Se não existe tal como a existente para as demais cidades unidade de gestão metropolitana para Brasília, estudadas nos outros volumes da publicação, os instrumentos existentes não poderiam ater- como São Paulo, Rio de Janeiro ou Porto Alegre. se senão ao território do Distrito Federal.9 Um exemplo é o porquê de Água Fria de Goiás ter sido incluída no grupo, haja vista tratar-se de um município de caráter rural, pouco povoado, distante do núcleo da aglomeração e Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e entorno com pouca representatividade no que tange à integração espacial com a capital.8 Ademais, Segundo Caiado (2006), a criação da Região In- a formação do AUB é analisada tomando por tegrada de Desenvolvimento do Distrito Fede- base o crescimento da região circundante a ral e Entorno – RIDE – foi uma saída encontra- Brasília como parte do processo de produção da pelo governo federal para instituir regiões do espaço metropolitano, muito embora não metropolitanas que abrangessem mais de uma haja qualquer posicionamento sobre o papel unidade federativa, haja vista que a Constitui- que cumpriu cada cidade do aludido Entorno ção de 1988 relegou aos estados da Federa- Imediato nesse processo. Em outras palavras, ção a função da criação dessas regiões, sendo 526 Book CM v11_n22.indb 526 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:49 Entre a institucionalização e a vida quotidiana impossível a um único deles fazê-lo agregando parte da estrutura territorial que o programa municípios de um estado vizinho. Além da RI- deixou, englobando hoje alguns dos seus muni- DE, outras duas Regiões Integradas de Desen- cípios e os desdobramentos deles, além de ter volvimento foram criadas: a que une Teresina, incorporado outros novos, inclusive no estado no Piauí, e Timon, no Maranhão, e a que agre- de Minas Gerais. Ela foi criada como área de ga Petrolina, em Pernambuco, e Juazeiro, na polarização do Distrito Federal para o desen- Bahia (Quadro 1). Contudo, essas regiões, em- volvimento socioeconômico conjunto com os bora reconhecidas como de caráter metropoli- municípios envolvidos. Embora reconhecida tano como as demais regiões metropolitanas, nacionalmente como de caráter metropolitano, não contam com municípios integrados todos a RIDE não apresenta integração desse caráter com esse caráter, tendo obrigatoriamente uma entre a capital federal e todos os demais mu- metrópole como núcleo – o que seria de se nicípios componentes, não obstante significar esperar para toda região de caráter metropo- um avanço em termos de política regional para litano –, tal como acontece também com as a região circundante a Brasília. Entre os seus 10 Regiões Metropolitanas. objetivos, constam a redução das desigualda- Assim, com vistas a coordenar atividades des regionais, a implantação de linhas de cré- de cunho administrativo entre a União, os es- dito para atividades prioritárias, as isenções e tados de Goiás e de Minas Gerais e o Distrito os incentivos fiscais, a integração de serviços Federal, a RIDE foi criada pela Lei Complemen- públicos, a geração de emprego e a fixação de tar Federal n. 94, de 19 de fevereiro de 1998, mão-de-obra, entre outros (conforme Brasil, e regulamentada pelo Decreto n. 2.710, de 4 1998a, 1998b, 2000). de agosto de 1998, agrupando o Distrito Fede- Segundo Caiado (2006), os perfis dos ral, os municípios goianos de Abadiânia, Água municípios componentes da RIDE são muito di- Fria de Goiás, Águas Lindas de Goiás, Alexânia, ferentes entre si, com a maioria apresentando Cabeceiras, Cidade Ocidental, Cocalzinho de uma forte participação no setor primário da Goiás, Corumbá de Goiás, Cristalina, Formosa, economia, enquanto que aqueles mais direta- Luziânia, Mimoso de Goiás, Novo Gama, Padre mente ligados ao processo de expansão urba- Bernardo, Pirenópolis, Planaltina, Santo Antônio na da capital, denominados pela autora de En- do Descoberto, Valparaíso de Goiás e Vila Boa e torno Imediato, possuem estrutura econômica os municípios mineiros de Unaí e Buritis (Mapa baseada em atividades de caráter urbano. 1), além daqueles que porventura vierem a se No que respeita às suas limitações, con- originar por desmembramento de algum dos siderando uma escala regional mais abrangen- municípios citados.11 Para coordenar as ativida- te, se a RIDE inova por agregar municípios des da RIDE, foi criado, pelo mesmo decreto, o muito diversos e territorialmente bastante Conselho Administrativo da RIDE – COARIDE – distanciados da capital – podendo trazer al- como órgão colegiado integrante do Ministério ternativas para a promoção do desenvolvi- da Integração Nacional. mento regional –, numa escala mais restringi- É importante reconhecer que a RIDE her- da, aquelas cidades com maior dependência e dou tanto os princípios do PERGEB quanto boa socioespacialmente mais integradas a Brasília Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 527 527 17/3/2010 12:49:49 Igor Catalão Mapa 1 – Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e entorno – 2008 Água Fria de Goiás Mimoso de Goiás Vila Boa Padre Bernardo Planaltina Buritis Formosa LEGENDA Cocalzinho de Goiás Pirenópolis Corumbá Limites municipais de Goiás Alexânia Distrito Federal Municípios do estado de Goiás Abadiânia Municípios do estado de Minas Gerais Municípios do entorno metropolitano de Brasília Mancha urbana Lago Paranoá 1. 2. 3. 4. 5. Brasília 1 Cabeceiras 4 3 2 Cabeceira Grande 5 Unaí Luziânia Águas Lindas de Goiás Santo Antônio do Descoberto Novo Gama Valparaíso de Goiás Cidade Ocidental Cristalina Fonte: Ministério das Cidades, SIEG/GO – 2000. Organização: Igor Catalão e Paula Lindo (Unesp Presidente Prudente). 2008. Nota: Não havia informações disponíveis sobre as manchas urbanas de Vila Boa, Cabeceira Grande, Buritis e Unaí. não podem auferir muitos benefícios devido Área metropolitana de Brasília às incertezas dos âmbitos de ação do poder público e da dificuldade de união de forças en- Na Geografia Urbana, Paviani é um dos princi- tre os níveis de poder envolvidos – municipal, pais expoentes no estudo da metropolização de estadual, federal e do Distrito Federal – que, Brasília, desenvolvendo trabalhos nessa temá- ao lado de outros agentes cujas decisões in- tica desde meados da década de 1970, quando fluenciam diretamente na produção do espaço o processo de produção do espaço urbano bra- metropolitano, se tornam excessivos. Em ou- siliense começou a agregar as cidades goianas tras palavras, falta à RIDE o reconhecimento contíguas. Para o autor (1985a), o fenômeno das especificidades municipais e do maior ní- da metropolização da capital desenvolveu- vel de interrelação existente entre as sete ci- se de acordo com as mesmas características dades consideradas e a capital. Isso se deve, observadas em outras metrópoles, como São quiçá, à falta de um fio condutor na delimita- Paulo, Porto Alegre ou Recife, muito embora ção dos critérios de junção das cidades pela essas características não tenham tido a mesma negligência de fatores importantes, tais como importância nem se tenham apresentado todas a mobilidade quotidiana. da mesma maneira. 528 Book CM v11_n22.indb 528 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:49 Entre a institucionalização e a vida quotidiana Em princípio, o critério populacional por imprescindível a criação da Área Metropolitana si só não é suficiente para o reconhecimento de de Brasília – AMB – como uma necessidade de uma cidade como metrópole, haja vista trata-se gestão em escala regional, cujo objetivo seria a metropolização de um processo mais com- direcionar esforços conjuntos à implantação de 12 plexo e heterogêneo. Não obstante, é difícil intraestruturas e à geração de empregos nas aceitar que o crescimento populacional de uma cidades goianas que lhe seriam anexadas. Na cidade se dê tout court, ou seja, em desvincula- proposição de Paviani (1994, 1996a, 2007), a ção com outros processos que o geram ou que questão do emprego tem destaque no fortale- dele decorrem. Isso significa que, por trás do cimento do papel econômico da AMB, conside- crescimento da população de uma cidade, em rando a implantação de um setor industrial e níveis metropolitanos, há uma série de outros tecnológico e a dinamização dos setores de fatores correlacionados, tais como dispersão serviços, tais como abastecimento, hotelaria e territorial urbana, especializações funcionais, entretenimento. aumento das desigualdades socioespaciais, Não obstante, o esforço de Paviani diferença na utilização do espaço e do tempo (1996a, 2007) para o entendimento de uma pelos habitantes, alargamento do espaço da área metropolitana com vistas à resolução dos vida quotidiana e intensificação da mobilidade problemas regionais, sobretudo os entrevistos (Dubresson, 2000). nas cidades goianas limítrofes, diz respeito ao No caso de Brasília, Paviani (1985a) seu comprometimento com proposições volta- destaca que o crescimento populacional, com das mais para o questionamento das políticas a consequente ampliação do tecido urbano – do que para as definições administrativas, tanto embora, devo ressaltar, sob formas mais disper- é que a AMB, por ele proposta, ora é apontada sas do que aquelas vislumbradas em outras como coincidente com o AUB (Paviani, 2003), metrópoles –, foi um fator preponderante em ora é distinguida como o conjunto metropo- seu processo de urbanização, não apenas no litano formado pela capital mais as cidades tocante ao volume populacional alcançado, goianas fortemente integradas a ela (Paviani, mas também no que tange à rapidez desse 2007), ficando na incerteza quais cidades se- crescimento. Disso e de seu papel de capital riam essas. deriva também a complexificação e ampliação Uma proposição de criação de uma área das atividades, mormente nos setores terciário metropolitana para Brasília é apresentada tam- e terciário superior, ou quaternário, da econo- bém por Mathieu e Barbosa Ferreira (2006), mia, sobretudo os campos empresariais, da alta muito embora a justificativa relativa às cidades administração federal, dos serviços, do comer- componentes dessa área siga a mesma impreci- cio e da construção civil (Paviani, 1996a). são de Paviani (1994, 1996a, 2007). No estudo, Na análise da metropolização de Brasí- são consideradas as cidades goianas perten- lia, é de se destacar a importância que Paviani centes ao AUB e novamente Água Fria de Goiás (1985a, 1996a, 2003, 2007) confere à integra- parece constar por um motivo aleatório não es- ção espacial da capital com as cidades goianas pecificado. Além disso, fala-se, no trabalho, da que a circundam. Nesse sentido, ele vê como necessidade de uma governança metropolitana Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 529 529 17/3/2010 12:49:49 Igor Catalão aliando os governos do Distrito Federal, do es- análise focada nos deslocamentos e na mobili- tado de Goiás e dos municípios goianos contí- dade. Em outras palavras, significa o desenvol- guos, sem que se apresente a real necessidade vimento da compressão sobre a aglomeração disso, pois à riqueza de informações sobre o brasiliense a partir dos estudos e definições já Plano Piloto opõe-se a falta de detalhamento existentes, quer de ordem político-administra- sobre a periferia goiana. Por exemplo, as auto- tiva – como o PERGEB ou a RIDE –, quer de ras referem-se sempre à grande dependência ordem científica – como o AUB ou a AMB –, de empregos e serviços no centro metropoli- enfocando dimensões espaciotemporais menos tano, o Plano Piloto, por parte do entorno me- valorizadas ou apresentadas de maneira insufi- tropolitano, sem apresentar dados dessa região ciente nos referidos estudos. que comprovem essa dependência. Os dados Retomando Steinberger (2003), ao referir- apresentados dizem respeito apenas à concen- se à região que circunscreve Brasília, a autora tração de empregos no Plano Piloto em relação alerta para o fato de que é necessário especi- ao Distrito Federal e não às cidades goianas. ficar sobre que região se está falando. Assim sendo, este artigo não apenas se volta para a compreensão da metropolização de Brasília como processo que afeta, sobretudo, a vida quo- (Re)conhecendo o espaço metropolitano de Brasília tidiana da população, mas objetiva reconhecer o espaço metropolitano a partir dos deslocamentos quotidianos dos habitantes da periferia A partir do que foi discutido até agora com re- goiana, por trás dos quais se revelam práticas lação aos limites das delimitações territoriais espaciais, ou seja, de sua mobilidade, enten- regionais envolvendo Brasília e as cidades de dendo-a como fator de grande importância na seu entorno, metropolitano ou não, proponho- dinamização do referido processo, haja vista me a fazer alguns apontamentos no que con- que a compreensão das dinâmicas inerentes ao cerne a uma outra perspectiva de reconheci- processo de urbanização – e, consequentemen- mento do espaço metropolitano de Brasília que te, de metropolização – deve necessariamente fuja de abstrações ou imprecisões analíticas, considerar as diferentes formas de mobilida- mas que se configure numa maneira coerente de espacial que as afetam (Dupont e Dureau, de pensar o espaço metropolitano a partir de 1994), elemento desconsiderado nos estudos uma perspectiva quotidiana. Assim, o reconhe- e nas definições regionais supraexpostos. Ou cimento de um espaço metropolitano que difi- seja, trata-se da demarcação da área da qual ra, em alguma medida, das delimitações supra- estou falando e do porquê dessa demarcação, apresentadas, ou de alguma outra, para o caso considerando a espacialidade como um aspecto de Brasília não se pretende inédito a não ser no inerente à existência humana e como algo que que diz respeito aos critérios usados para esse é produzido quotidianamente. Trata-se de um reconhecimento, que aqui ganham importância espaço metropolitano que vai se (re)desenhan- por deslocar o foco da análise para as escalas do por meio das práticas espaciais da popula- temporal e espacial do quotidiano, ou seja, uma ção em seu processo de reprodução da vida.13 530 Book CM v11_n22.indb 530 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:49 Entre a institucionalização e a vida quotidiana Segundo Dureau et al. (2000), a mobili- [...] reconhecer a metrópole significa reconhecê-la repetidamente [...] no ir-e-vir de casa para o trabalho, para a escola, para o lazer, para a vida social e cultural. dade espacial é o fator central das dinâmicas urbanas atualmente, podendo ser compreendida sob diversos aspectos, como a mobilidade residencial ou quotidiana, e como ponto-chave nos debates sobre o direito à cidade, à residência ou à mobilidade. Ademais, essa perspectiva de análise preza pelo reconhecimento dos habitantes como agentes plenos das dinâmicas de produção do espaço urbano-metropolitano. Chauvin (2006), ao analisar o processo de metropolização de uma das cidades da Índia, atenta para o fato de serem as metrópoles espaços de mobilidade, cujo funcionamento só pode ser entendido pela compreensão dos deslocamentos de população, tais como os deslocamentos residência-trabalho, que engendram práticas urbanas diversificadas e cada vez mais complexas. Tendo isso em vista, considerando a impossibilidade de abarcar todos os tipos de mobilidade espacial e admitindo também que os deslocamentos quotidianos são um dos principais critérios de delimitação dos espaços metropolitanos em nível internacional (IBGE, 2000; Chauvin, 2006), esse tipo de deslocamento foi utilizado no reconhecimento do espaço metropolitano de Brasília, que a seguir Desse modo, o reconhecimento do espaço metropolitano de Brasília aparece num duplo processo. Primeiramente, trata-se de reconhecê-lo tendo em vista a multiplicidade de delimitações territoriais referentes à região circundante a Brasília, a partir da ideia de que existe um espaço metropolitano de Brasília que, porém, se articula muito mais em função da mobilidade da população, como vou analisar mais detalhadamente a seguir, do que de relações tomadas outrora no reconhecimento dos espaços metropolitanos. O segundo aspecto do processo, sobre o qual não vou discorrer neste artigo, diz respeito ao reconhecimento quotidiano do espaço metropolitano, ou seja, à vivência espacial da população em seus deslocamentos e em suas práticas, já que, se a mobilidade é um fator importante a ser considerado na dinamização dos espaços metropolitanos (Dureau et al., 2000; Chauvin, 2006), é a reprodução da vida das pessoas por meio de suas práticas que anima esse processo. se apresenta. Trata-se de um reconhecimento que encontra no espaço vivido a junção das dimensões do percebido – do espaço em sua configuração territorial – e do concebido – do Um espaço reconhecido nos trajetos quotidianos espaço imaginado, vislumbrado, apreendido subjetiva e simbolicamente –, que se realizam 14 plenamente no quotidiano. O processo de metropolização de uma cidade pode ser entendido sob dois aspectos. O pri- Segundo Oliveira (2006, p. 64), é no quo- meiro diz respeito à produção das condições tidiano, nas experiências de vivência do espaço para que uma cidade seja reconhecida como e do tempo no plano do imediato, que se pode metrópole, ou seja, o porte territorial e demo- reconhecer um espaço como metropolitano: gráfico, e a inserção no sistema mundializado Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 531 531 17/3/2010 12:49:50 Igor Catalão de cidades (Dureau et al., 2000), no qual estas Brasília e as cidades circundantes da região, e apresentam os serviços necessários à reprodu- demonstrou a predominância de algumas de- ção do capital (Lencioni, 2006). O segundo as- las em relação às demais do então denomina- pecto se refere aos limites até onde se estende do Entorno.15 Das 56.000 viagens computadas o espaço metropolitano propriamente dito ou pela pesquisa em 1990, Luziânia respondia so- a área de atração do núcleo metropolitano de zinha por 55% do total, sendo que, na ocasião, que vou tratar agora. Cidade Ocidental, Novo Gama e Valparaíso de Segundo Dureau e Lévy (2007), os es- Goiás ainda não se haviam emancipado. Pla- paços metropolitanos podem ser entendidos naltina e Santo Antônio do Descoberto – neste como o conjunto de trajetos quotidianos de contido também Águas Lindas de Goiás que, à seus habitantes. Reconhecer tais espaços dessa época, possuía população pequena e tampouco maneira desloca o plano da análise da abstra- possuía independência política – compartilha- ção para o plano da vida, em que a realização vam 13% e 11% respectivamente. Assim, essas do ser social se faz espacialmente (Lefebvre, três cidades contavam juntas 79% do número 2000). total de viagens, estando entre as causas que Assim, pois, dadas as variadas maneiras existentes de reconhecer a aglomeração brasi- orientavam os deslocamentos o trabalho, com 52% (Seduma, 2008). liense, incluindo, cada uma delas, um conjunto Já a partir dos dados dessa pesquisa, diferente de cidades nos estados de Goiás e pode-se notar a grande disparidade de mobili- Minas Gerais, o reconhecimento do espaço me- dade entre as três cidades supracitadas e as de- tropolitano de Brasília para fins do estudo do mais doze da chamada região do Entorno, que qual se originou este artigo foi feito tendo por juntas respondiam por 21% dos deslocamen- base a mobilidade quotidiana da população de tos. Assim, muito embora Brasília polarize uma cada uma das cidades do entorno metropolita- ampla região no Centro-Norte do Brasil, dentre no em suas práticas espaciais e suas relações as cidades que atualmente compõem a RIDE – funcionais com o núcleo. admitindo-se esta como uma região oficial de Tomando como base a RIDE, é possível caráter metropolitano para Brasília –, inegavel- notar a concentração de fluxos de desloca- mente não são todas que possuem interação mento quotidiano em três eixos: sul, onde se socioespacial com a capital em âmbito metro- encontram as cidades de Novo Gama, Valpa- politano, entendendo essa interação como o raíso de Goiás, Cidade Ocidental e Luziânia; resultado da mobilidade espacial da população, oeste/sudoeste, onde se localizam as cidades especialmente a mobilidade quotidiana. Nesse de Águas Lindas de Goiás e Santo Antônio do sentido, seria possível falar de duas zonas dis- Descoberto; e norte, onde está situada a cidade tintas na RIDE para agrupar as cidades que a de Planaltina. compõem, ambas relacionadas à centralidade No começo da década de 1990, uma de Brasília. A primeira seria a zona de atração, pesquisa realizada pela Companhia de Planeja- abrigando as sete cidades do entorno metropo- mento do Distrito Federal – Codeplan – apon- litano, e a segunda, a zona de influência, con- tou a intensidade de fluxos quotidianos entre formada pelas demais cidades (Mapa 1). 532 Book CM v11_n22.indb 532 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:50 Entre a institucionalização e a vida quotidiana Os dados do Censo Demográfico per- residiam nas sete cidades que estou deno- mitem uma melhor apreensão dos deslo- minando entorno metropolitano, enquanto camentos quotidianos entre Brasília e as que as 8.797 pessoas restantes, ou 7,1% , demais cidades da RIDE 16 dez anos depois eram residentes das demais quatorze ci- da pesquisa realizada pela Codeplan. Em dades. Esses dados demonstram, assim, a 2000, do total de pessoas dessa região que grande força de atração de Brasília sobre as trabalhavam ou estudavam em outra cida- cidades da RIDE que compõem seu entorno de, 123.425, ou 91,3%, faziam-no em Bra- metropolitano, o que resulta numa mobili- sília (Tabela 1). Destas, 115.878, ou 92,9%, dade intensa entre periferia e núcleo. Tabela 1 – Pessoas residentes na RIDE, exceto Brasília, e no entorno metropolitano que trabalham ou estudam em outra cidade – 2000 Local de residência Pessoas que trabalham ou estudam Em outra cidade Em Brasília % Abadiânia Água Fria de Goiás Águas Lindas de Goiás Alexânia Buritis Cabeceiras Cidade Ocidental Cocalzinho de Goiás Corumbá de Goiás Cristalina Formosa Luziânia Mimoso de Goiás Novo Gama Padre Bernardo Pirenópolis Planaltina Santo Antônio do Descoberto Unaí Valparaíso de Goiás Vila Boa Total RIDE* 366 143 28.315 982 321 387 10.364 956 256 940 4.874 19.520 56 19.498 1.863 398 13.469 9.640 1.439 22.619 91 136.497 116 7 27.397 605 196 160 9.617 597 85 664 3.786 16.975 23 18.724 1.705 74 13.092 9.409 744 20.664 35 124.675 31,7 4,9 96,8 61,6 61,1 41,3 92,8 62,4 33,2 70,6 77,7 87,0 41,1 96,0 91,5 18,6 97,2 97,6 51,7 91,4 38,5 91,3 Entorno metropolitano** Demais cidades da RIDE* 123.425 13.072 115.878 8.797 93,9 67,3 Fonte: IBGE – Censo Demográfico 2000, microdados da amostra. Nota: *Exceto Cabeceira Grande – **Entorno metropolitano formado pelas cidades de Águas Lindas de Goiás, Cidade Ocidental, Luziânia, Novo Gama, Planaltina, Santo Antônio do Descoberto e Valparaíso de Goiás. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 533 533 17/3/2010 12:49:50 Igor Catalão Não obstante, os dados do Censo Demo- Analisando a quantidade de passageiros trans- gráfico indicam apenas os deslocamentos para portados, 99% deles foram encontrados nos trabalho ou estudo. Se considerado o número trajetos ligando Brasília às sete cidades do en- de viagens realizadas por transporte coleti- torno metropolitano (Tabela 2). vo entre as cidades goianas metropolizadas e Para uma melhor apreensão do peso que Brasília, sem discriminação do tipo de ativida- tem cada cidade nos deslocamentos quotidia- de que orientou os deslocamentos, os valores nos entre o entorno e o núcleo metropolitano, são ainda mais expressivos e mais distanciados foi elaborado um índice a partir dos dados for- para o entorno metropolitano em relação a ou- necidos pela ANTT que relativiza a quantidade tras cidades da RIDE, segundo demonstram os de passageiros transportados pela população dados do Anuário 2001 da Agência Nacional de municipal de cada município. Assim, de acordo Transportes Terrestres – ANTT (Tabela 2). com o índice, Águas Lindas de Goiás é a cidade Ao se tomar o grupo de cidades do en- que apresentava mais passageiros transporta- torno metropolitano mais Formosa e Padre Ber- dos em relação à sua população em 2000, com nardo – que, segundo os dados do Censo, foram um índice de 111,58, seguida de perto pela Ci- as duas cidades que mais se aproximaram do dade Ocidental, com 100,22. Santo Antônio do referido grupo em quantidade de pessoas que Descoberto e Planaltina são as seguintes, com se deslocam para Brasília para fins de trabalho os índices muito próximos de 96,64 e 95,67 res- ou estudo –, tem-se que, do total de 1.314.568 pectivamente. Luziânia e Valparaíso de Goiás viagens realizadas para finalidades diversas no apresentaram índices muito baixos em compa- ano 2000, apenas 6,1% representavam os tra- ração às cinco primeiras cidades e abaixo da jetos entre Brasília e as duas últimas cidades. média, porém ainda bastante distanciados de Tabela 2 – Número de viagens e quantidade de passageiros transportados entre Brasília e as cidades do entorno metropolitano mais Formosa e Padre Bernardo – 2000 Trajetos Nº de viagens % Transporte de passageiros Volta Total % Águas Lindas de Goiás - Brasília 231.852 17,64 5.889.037 5.910.085 11.799.122 25,42 Cidade Ocidental - Brasília 133.442 10,15 1.998.092 2.048.452 4.046.544 8,72 Luziânia - Brasília 267.816 20,37 3.848.474 3.782.207 7.630.681 16,44 Novo Gama - Brasília 139.430 10,61 3.457.180 3.291.139 6.748.319 14,54 Planaltina - Brasília 252.877 19,24 3.503.712 3.549.440 7.053.152 15,19 Santo Antônio do Descoberto - Brasília 110.240 8,39 2.471.195 2.544.263 5.015.458 10,80 Valparaíso de Goiás - Brasília 137.297 10,44 1.835.546 1.833.993 3.669.539 7,90 40.150 3,05 228.614 202.511 431.125 0,93 Formosa - Brasília Padre Bernardo - Brasília Total Ida 1.464 3,05 13.824 14.349 28.173 0,06 1.314.568 100,00 23.245.674 23.176.439 46.422.113 100,00 Fonte: Empresas permissionárias e autorizatárias. Anuário ANTT 2001. 534 Book CM v11_n22.indb 534 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:50 Entre a institucionalização e a vida quotidiana Tabela 3 – População total municipal e quantidade total de passageiros transportados entre Brasília e as cidades do entorno metropolitano mais Formosa e Padre Bernardo – 2000 Trajetos Águas Lindas de Goiás - Brasília Transporte total de População* passageiros* TPT/Pop*** 105.743 11.799.122 111,58 40.378 4.046.544 100,22 141.081 7.630.681 54,09 Novo Gama - Brasília 74.380 6.748.319 90,73 Planaltina - Brasília 73.720 7.053.152 95,67 Santo Antônio do Descoberto - Brasília 51.896 5.015.458 96,64 Valparaíso de Goiás - Brasília 94.857 3.669.539 38,68 Formosa - Brasília 78.650 431.125 5,48 Padre Bernardo - Brasília 21.513 28.173 1,31 682.218 46.422.113 68,05 Cidade Ocidental - Brasília Luziânia - Brasília Total Fonte: *IBGE – censo Demográfico 2000; **Empresas concessionárias, Anuário ANTT 2001. Nota: *População recenseada em 2000; ***TPT/Pop – Total de população transportada anualmente dividido pela população total municipal. Formosa e Padre Bernardo, que aprestaram ín- maiores índices de deslocamento para Brasília dices pouco representativos em comparação às – 56,67% e 50,49% respectivamente –, por sete demais (Tabela 3). exemplo, não são as que estão mais próximas Avaliando esses índices, é possível no- do centro metropolitano. tar a preponderância das cidades do entorno Para as demais cidades da RIDE, alguns metropolitano em relação às demais da RIDE casos também contradizem a ideia da dis- quanto à mobilidade espacial quotidiana da tância como fator explicativo principal dos população entre periferia e núcleo. Essa pre- deslocamentos para Brasília. Padre Bernardo, ponderância também está ligada à proximi- por exemplo, apresenta um índice cerca de 4% dade territorial das sete cidades em relação superior ao de Formosa, não obstante estar 26 a Brasília, ainda que esse não seja o fator ex- quilômetros mais distante de Brasília, mesma plicativo principal, haja vista que há cidades situação que se observa para Cabeceiras e Pi- que, estando mais próximas, não possuem renópolis, Cocalzinho de Goiás e Unaí, etc. Es- uma população que se desloca com tanta fre- sa falta de coincidência entre os índices e as quência para o núcleo metropolitano. Entre as distâncias têm a ver com as carências intraes- cidades do entorno metropolitano, Águas Lin- truturais e de serviços, e com o papel que as das de Goiás e Novo Gama, que possuem os cidades desempenham na rede urbana. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 535 535 17/3/2010 12:49:50 Igor Catalão limites político-administrativos, englobando As especificidades do entorno metropolitano algumas cidades limítrofes pertencentes ao estado de Goiás. De fato, não se trata de um fenômeno recente mas, se consideramos o con- Brasília faz parte do processo de mudanças es- texto do processo de produção do espaço ur- paciais das metrópoles modernas, iniciado há bano de Brasília iniciado com a construção do cerca de trinta anos, que trouxe consigo modi- Plano Piloto em fins da década de 1950, é bem ficações significativas na condição urbana da antigo, datando de meados da década de 1970. sociedade e na maneira como interpretamos Em 1985, Barbosa Ferreira já apontava esse fe- essas mudanças, segundo relata Soja (2000). nômeno em seu pleno desenvolvimento: Talvez as mudanças mais marcantes digam respeito à exurbanização como processo de crescimento das metrópoles e dispersão do tecido urbano para uma extensão territorial regional cada vez mais acentuada. Para Soja (ibid.), essa região circundante às metrópoles tem deixado de ser apenas uma zona de transferência de população via deslocamentos quotidianos para Brasília hoje não pode ser considerada apenas como o Plano Piloto de Lúcio Costa, como era nos anos cinquenta. Tampouco pode ser apenas a cidade com seus núcleos periféricos dispersos, dos anos sessenta. Ela é agora uma metrópole, que envolve além desses espaços os municípios vizinhos do entorno do DF. (1985, p. 56) trabalho – commuting – para ganhar um modo de vida particular, com suas especificidades Não obstante, se o desenvolvimento de espaciais, sobretudo, atreladas à generalização uma região fortemente urbanizada na periferia do uso do automóvel e às escolhas residenciais, metropolitana brasiliense é uma marca carac- como também indicam Dureau e Lévy (2007). terística da metrópole contemporânea, ou a Trata-se de formas espaciais resultantes de uma pós-metrópole a que se refere Soja (2000), o urbanização difusamente generalizada nas pe- centro metropolitano ainda se apresenta com riferias metropolitanas, denominadas por Soja forte poder de atração e centralização à escala 17 (2000) outer cities. As novas formas espaciais regional, marcando uma continuidade entre a das metrópoles contemporâneas marcam o metrópole e a pós-metrópole, tal como existe fim das metrópoles modernas como unidades entre o fordismo e o pós-fordismo, a moderni- espaciais monocêntricas, fortemente centrali- dade e a pós-modernidade (ibid.). zadas no núcleo e densamente ocupadas, e o Considerando a metrópole de Brasília início da transição para um espaço pós-metro- como o conjunto de núcleos urbanos dispersos politano que, entretanto, contém a metrópole situados dentro dos limites do quadrilátero do engendrada em período pretérito. Distrito Federal e fortemente centralizados no Em Brasília, o fenômeno do crescimento Plano Piloto, muito grosseiramente pode-se das cidades externas é uma característica mar- aceitar que as cidades do entorno metropoli- cante do processo de produção de seu espaço tano brasiliense se constituem basicamente na metropolitano, apresentando, no Brasil, a espe- grande periferia goiana da capital. Assim, trata- cificidade de que este espaço ultrapassa seus se, nesse caso, de uma delimitação territorial 536 Book CM v11_n22.indb 536 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:50 Entre a institucionalização e a vida quotidiana baseada apenas no critério político-administra- a interligação entre os núcleos urbanos e mais tivo. Inúmeras outras classificações poderiam intensos são os fluxos de pessoas, sobretudo os ser adotadas com base em critérios socioeco- que se fazem quotidianamente. De fato, essa nômicos ou na morfologia urbana, porém essa obviedade existe, embora ela não seja aleató- simplificação advém do fato de a análise se di- ria. No contexto do processo de produção do recionar para os espaços periféricos goianos. espaço metropolitano de Brasília, a proximi- Ao qualificar o entorno metropolitano de dade das sete cidades consideradas foi um Brasília como sua grande periferia, estou reto- ponto de extrema relevância para a ocupação mando o conceito de periferia empregado por da região. Para o governo do Distrito Federal, George (1983) em sua análise da aglomeração estariam resolvidos os problemas de falta de parisiense, que se forma com Paris como núcleo moradia da população de baixa renda a partir metropolitano e sua banlieue, formada pelas de sua instalação no entorno goiano, sem que demais cidades que integram a aglomeração. houvesse falta de mão-de-obra para as diversas Em outras palavras, a periferia diz respeito a atividades desenvolvidas em Brasília e sem que unidades urbanas com elevado grau de incom- o poder público da capital tivesse de se ocupar pletude dos serviços urbanos e, portanto, com das demandas. Não se trata, pois, de uma situa- grande dependência em relação ao centro (cf. ção em que uma metrópole cresce até que seu Miyazaki, 2008). tecido urbano se torne contínuo ao de outras Assim, na periferia goiana de Brasília, cidades próximas – tal como aconteceu com embora cada cidade tenha suas especificida- São Paulo e algumas das cidades constitutivas des e características socioespaciais próprias, de de seu espaço metropolitano, por exemplo –, forma geral, trata-se de um conjunto bastante mas de uma intencionalidade de que o proces- homogêneo, marcado por elevada dependên- so de metropolização ocorresse dessa forma, cia em relação a Brasília, pela precariedade de isto é, criando cidades a fim de atenderem a intraestruturas e serviços urbanos, pelo alto um ou mais propósitos específicos. índice de desemprego resultante da falta de Assim, o espaço urbano situado ao redor postos de trabalho locais e pelo elevado nível da capital foi produzido por meio de parcela- do que se tem denominado “violência urbana”. mentos múltiplos de terras rurais desvaloriza- Outrossim, ainda que as periferias atualmente das, então tornadas urbanas, para supostamen- apresentem novos conteúdos (Monclús, 1999; te atender às finalidades de moradia das clas- Sposito, 2004), na situação aqui estudada, per- ses mais baixas, estando por trás a verdadeira manece, em larga medida, o antigo significado finalidade que era utilizar a terra com pouca do termo, tal como George (1983) o empregou. serventia para alavancar o mercado imobiliá- É de se questionar se a proximidade ter- rio, já que, no Distrito Federal, havia inúmeras ritorial das sete cidades consideradas em rela- restrições à ação dos agentes (cf. Peluso, 1983; ção a Brasília é um ponto relevante para sua Paviani, 1987). denominação entorno metropolitano, excluin- Ora, tendo surgido dessa forma, não do-se as demais cidades da RIDE, haja vista é de se estranhar que hoje o entorno metro- parecer óbvio que, quanto mais perto, maior é politano de Brasília se caracterize por dois Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 537 537 17/3/2010 12:49:50 Igor Catalão principais aspectos. O primeiro deles é a forte moradores de Brasília, muitos negavam, mes- dependência em relação à capital e o segun- mo tendo descrito um quotidiano de práticas do, a oposição baseada sempre na carência, na espaciais plenamente inseridas na dinâmica da insuficiência, na precariedade dos serviços, dos capital. Outros respondiam que sim e que não equipamentos e das intraestruturas urbanas, simultaneamente, demonstrando que, embora em relação à reconhecida qualidade destes no se reconhecendo como brasilienses pelas suas Distrito Federal. práticas espaciais, não se sentiam portadores Não obstante, outros aspectos merecem do direito sobre esse reconhecimento. ser considerados na caracterização do entorno Finalmente, a distância e os longos metropolitano de Brasília, sobretudo porque períodos gastos nos deslocamentos são aspec- a diferenciação socioespacial é um fenômeno tos também importantes para caracterizar não presente em todos os espaços metropolitanos apenas o entorno metropolitano, mas a própria que, segundo Soja (2000), são como mosaicos metrópole de Brasília, haja vista ser essa uma de identidades, práticas e sistemas de reprodu- realidade vivenciada por todos os brasilienses: ção de desigualdades. os que residem em áreas mais centrais têm de O primeiro aspecto a ser citado diz res- enfrentar os congestionamentos decorrentes peito à conquista que representou para os mo- da excessiva dependência de todo o espaço radores do entorno metropolitano a obtenção metropolitano em relação ao seu centro, en- da casa própria, situação possível apenas em quanto os que moram nas periferias, conquan- decorrência dos mais baixos preços praticados to possam contar com corredores mais desafo- em toda a região. Muitos deles livraram-se de gados de tráfego, padecem pelo enfrentamen- aluguéis caros e de situações de desconforto to das distâncias, tanto os da periferia situada na capital, ainda que a realidade espacial atual dentro dos limites do quadrilátero da capital conte com a precariedade das infraestruturas e quanto os da periferia goiana. Como as distân- dos equipamentos e serviços. cias e os deslocamentos longos já se banaliza- Outro aspecto que caracteriza o entorno ram no quotidiano da capital, o transporte e metropolitano é a marcante presença do limi- os altos custos com combustível preponderam te político-administrativo da capital federal. nas queixas de alguns moradores. Em outras Ainda que este limite não seja um entrave ao palavras, não apenas os incomoda o fato de desenvolvimento de quaisquer atividades que morarem longe mas, sobretudo, a necessidade requeiram deslocamentos para o núcleo ou de transportes eficientes a preços acessíveis. para o centro metropolitano, ele é suficiente- Ainda assim, não é a distância nem são mente forte para levar ao não reconhecimen- os transportes o que mais desagrada aos en- to de muitos como pertencentes à metrópole, trevistados. Insegurança e falta de equipamen- muito embora suas vidas gravitem em torno tos de uso coletivo, sobretudo de lazer, por da dinâmica socioespacial de Brasília. Quando exemplo, foram aspectos que estavam entre os 18 inquiridos em entrevistas sobre sentirem-se 538 Book CM v11_n22.indb 538 mais ressaltados em suas respostas. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:50 Entre a institucionalização e a vida quotidiana Considerações finais administrativo entre o estado de Goiás e o Distrito Federal e essa constatação, embora pareça óbvia, tem sido negligenciada e isso A partir da ótica sob a qual enxergo o proces- pode ser comprovado pela inexistência de po- so de metropolização da capital federal, tentei líticas extraterritoriais, no Distrito Federal, que mostrar, neste artigo, a falta de coincidência aliem poderes de outras instâncias de governo entre o espaço sobre o qual se criam políticas – para implementar medidas de resolução dos a RIDE –, os outros espaços pensados com es- problemas vivenciados na periferia goiana, tais se objetivo – o AUB, a AMB, o PERGEB, etc. – e como: (a) a falta de posto de trabalho, escolas o espaço vivido pela população em seus deslo- de qualidade e incentivos à implantação de ati- camentos, para o qual se deveriam direcionar vidades comerciais e de serviços diversos mais esforços no sentido de propor medidas eficien- especializados, o que gera grande dependên- tes para a resolução dos problemas. Este é, tal- cia do entorno em relação ao núcleo metropo- vez, o maior limite e, ao mesmo tempo, a mais litano; (b) a precariedade nas infraestruturas importante possibilidade prática e política que básicas, que causa falta de qualidade de vida posso apontar aqui. pela ausência ou precariedade, por exemplo, Na direção da conscientização política de rede de abastecimento e saneamento bási- a respeito da espacialidade intrínseca à exis- co, pavimentação asfáltica e calçamento, etc.; tência humana e da necessidade de que as (c) a falta de segurança pública e o crescente alterações no ambiente construído aconteçam aumento do tráfico de drogas e da violência, levando em conta as práticas espaciais dos entre outros. habitantes e as relações quotidianas que têm Ainda assim, embora exista um limite lugar no espaço vivido, é necessário buscar-se oficial entre Brasília e as cidades de seu en- um caminho para alterar a prática espacial, no torno metropolitano que as separa em duas sentido da produção, como uma possibilidade unidades federativas, o uso e a apropriação de avanço nas ações de gestão metropolitana do espaço por parte dos habitantes indicam a que só serão eficazes se empreendidas na es- fruição da vida de um lado a outro num movi- cala do quotidiano. mento contínuo e esse é o principal ponto a ser Em termos empíricos, temos que o es- tomado em consideração no estabelecimento paço metropolitano de Brasília engloba ter- de delimitações territoriais para fins políticos e ritórios separados do ponto de vista político- de gestão. Igor Catalão Geógrafo pela Universidade de Brasília. Mestre em Geografia pela Universidade Estadual Paulista. Doutorando em Geografia pela Universidade Estadual Paulista e pela Université d’Avignon et des Pays de Vaucluse, França. Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Produção do Espaço e Redefinições Regionais” (GAsPERR) e da Unité Mixte de Recherche “Etude des Structures, des Processus d’Adaptation et des Changements de l’Espace” (UMR ESPACE). [email protected] – [email protected] Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 539 539 17/3/2010 12:49:50 Igor Catalão Notas (*) Este artigo foi elaborado a partir de minha dissertação de mestrado orientada pela Profa. Dra. Maria Encarnação Beltrão Sposito, no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Unesp, São Paulo, Brasil, e apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. (1) Como está bem demonstrado nas coletâneas organizadas por Paviani (1985b, 1987, 1996b, 1998) e no estudo Regiões de Influências das Cidades 2007 (IBGE, 2008), entre outros. (2) Região Geoeconômica de Brasília e Associação dos Municípios Adjacentes a Brasília – AMAB –, da década de 1970; Zoneamento Ecológico-Econômico – ZEE – elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE –, de 1994; Aglomerado Urbano de Brasília – AUB –, de 1997; Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno – RIDE –, de 1998; e a Mesorregião de Águas Emendadas, ainda em gestação. (3) Acredito que o termo conurbação não tenha sido utilizado, no Memorial Descritivo da Cidade Ocidental, no sentido original elaborado por Patrick Geddes (1994), que dizia respeito a um processo de agrupamento de cidades em torno de uma cidade principal considerando uma continuidade espacial e não territorial, ou seja, mais em sua acepção popular de unificação da malha urbana (cf. Sposito, 2004; Miyazaki, 2008). (4) As demais cidades abarcadas no estudo, como o Rio de Janeiro e São Paulo, tiveram suas análises voltadas para as respectivas regiões metropolitanas já oficialmente instituídas. (5) Cf. Gestão do Uso do Solo (2001), SEPLAN (2003), A. Silva (2006), Miragaya (2006) e Caiado (2006). (6) Na verdade, há uma referência no texto sobre um estudo realizado em conjunto pela extinta Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste – Sudeco – e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano – CNDU – a partir do qual se teria institucionalizado a região e se teriam criado as Secretarias do Entorno, tanto no Distrito Federal quanto no estado de Goiás, porém não há detalhamento algum sobre ele para justificar a adoção do referido conjunto de cidades e a referência não aparece mais do que numa simples passagem do texto e ainda imprecisa (cf. Gestão do Uso do Solo, 2001, pp. 40, 50 e 144). (7) Antes de os resultados do estudo serem publicados, o que só ocorreu em 2001. (8) Ver, por exemplo, na Tabela 1, a irrisória participação da população de Água Fria de Goiás nos deslocamentos quotidianos para Brasília. (9) Ao que parece, nem para as demais metrópoles estudadas os instrumentos foram analisados em uma escala regional, atendo-se muito mais aos núcleos metropolitanos. (10) Notem-se, por exemplo, as Regiões Metropolitanas de Londrina e Maringá, no Paraná, e as antigas Regiões Metropolitanas catarinenses. (11) Não obstante, o município de Cabeceira Grande, desmembrado do município de Unaí no final da década de 1990 não tem figurado em documentos oficiais como pertencente à RIDE, como também destaca Caiado (2006). (12) Uma discussão mais aprofundada a esse respeito pode ser encontrada em Catalão (2008). (13) Uma análise mais detalhada sobre a relação entre a produção/apropriação do espaço metropolitano e a reprodução da vida quotidiana pode ser encontrada em Catalão (2008). 540 Book CM v11_n22.indb 540 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:50 Entre a institucionalização e a vida quotidiana (14) A esse respeito, conferir Catalão (2008). Sobre as articulações percebido-concebido-vivido, ver também Lefebvre (2000) e Soja (1996, 2000). (15) Pesquisa Domiciliar de Transporte. Brasília: Codeplan, outubro de 1990. O Entorno, à época da pesquisa, abrigava quinze cidades: Abadiânia, Alexânia, Cabeceiras, Cocalzinho, Corumbá de Goiás, Cristalina, Formosa, Luziânia, Mimoso de Goiás, Padre Bernardo, Pirenópolis, Planaltina, Santo Antônio do Descoberto e Vila Boa, em Goiás, e Unaí, em Minas Gerais. (16) Cabeceira Grande, MG, embora pertencente à RIDE, não foi aqui considerada, o que não acarreta prejuízo para a análise por se tratar de um município de caráter rural e com pequena população à semelhança de Água Fria de Goiás. (17) “Cidades externas”. Outros temos são utilizados por Soja (2000) para aludir ao fenômeno, tais como pós-subúrbio, exurbanização e urbanização periférica, entre outros. (18) Refiro-me, neste trecho, ao conjunto de entrevistas realizadas em uma das cidades do entorno metropolitano de Brasília em janeiro de 2008 em minha pesquisa de mestrado. Referências ANTT – Agência Nacional de Transportes Terrestres (2007). Anuário Estatístico 2001. Disponível em: <http://www.antt.gov.br/aett/aett_2006/index.htm>. Acesso em: 20 dez 2007. BARBOSA FERREIRA, I. C. (1985). “O processo de urbanização e a produção do espaço metropolitano de Brasília”. In: PAVIANI, A. (org.). Brasília, ideologia e realidade: espaço urbano em questão. São Paulo, Projeto/CNPq, pp. 43-56. 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Autoriza o Poder Executivo a criar a Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno – RIDE – e instituir o Programa Especial de Desenvolvimento do Entorno do Distrito Federal, e dá outras providências. Brasília, s/n. ______ (1998b). Decreto nº 2.710, de 4 de agosto de 1998. Regulamenta a Lei Complementar nº 94, de 19 de fevereiro de 1998, que autoriza o Poder Executivo a criar a Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno – RIDE – e instituir o Programa Especial de Desenvolvimento do Entorno do Distrito Federal, e dá outras providências. Brasília, s/n. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 519-544, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 541 541 17/3/2010 12:49:50 Igor Catalão BRASIL (2000). Regimento Interno do Conselho Administrativo da Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno – COARIDE. Brasília, Ministério da Integração Nacional. CAIADO, M. C. S. (2006). 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As avaliações de projetos urbanos – neste artigo, duas operações urbanas na Região Metropolitana de São Paulo, nos municípios de São Paulo e Santo André – possibilitam a compreensão dos limites municipais, em termos dos recursos de gestão disponíveis, bem como a reflexão crítica que pode orientar ações políticas no sentido da transformação do quadro jurídico-institucional relativo ao pacto federativo. Abstract Due to the absence of the figure of the metropolitan region as a Brazilian federative entity, the legal landmark related to urban and regional public policies offers important limitations to municipal initiatives of design of great urban projects whose logic of accomplishment lies in the supramunicipal articulation. Evaluations of urban projects - in this article, two urban operations in the Metropolitan Region of São Paulo, in the cities of São Paulo and Santo André – enable the understanding of municipal limits, in terms of the available management resources, as well as a critical reflection that can guide political actions towards the transformation of the legal-institutional frame related to the federative pact. Palavras-chave: gestão metropolitana; grandes projetos metropolitanos; planejamento urbano e regional; remodelação econômico-territorial; políticas públicas urbanas. Keywords : metropolitan management; great metropolitan projects; urban and regional planning; economic-territorial reshaping; urban public policies. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 545 17/3/2010 12:49:50 Eulalia Portela Negrelos Tamanduatehy, 1998 e São Paulo – Rio Verde- Apresentação Jacú, 2004 (Ver Mapa 1). Esses grandes projetos fazem parte de um processo de remodela- O conjunto de instrumentos de indução de po- ção econômico-territorial, entendido como um líticas de desenvolvimento urbano presente no conjunto de estratégias de reestruturação que quadro jurídico nacional – Constituição Federal ultrapassam o âmbito físico do território e se (1988) e Estatuto da Cidade (2001) – oferece justificam por seu caráter econômico, tanto no ampla gama de alternativas para que os mu- sentido da produção quanto no sentido da va- nicípios construam políticas públicas urbanas lorização imobiliária, imprimindo um novo mo- que reúnam estratégias para a melhoria das delo ao território e, ao mesmo tempo, manten- condições da vida nas cidades. No entanto, no do as bases da produção capitalista do espaço âmbito metropolitano, em função, entre outros urbano (Negrelos, 2005). fatores, das características do pacto federati- A avaliação focaliza as fragilidades im- vo vigente em nosso país, que não incorpora postas pelo quadro de fragmentação das polí- as regiões metropolitanas como âmbitos de ticas públicas ante novas estratégias de produ- articulação efetiva de políticas públicas, a apli- ção capitalista do espaço urbano que induzem cação daqueles instrumentos (que comumente à formulação pública de operações urbanísti- exigem, no nível metropolitano, a formulação cas de grande porte para a realização da velha de ações solidárias entre municípios) encontra equação dos investimentos estatais em infra- impeditivos políticos, administrativos e insti- estrutura como âncora para o estabelecimento tucionais que obstaculizam a gestão metropo- privado no território. litana efetiva desses territórios. Essa situação Outras iniciativas são consistentes com as político-institucional se vê agravada pelo qua- duas operações em relevo, todas elas indicando dro de fragmentação e dispersão econômico- a centralidade das estruturas viárias na confor- territorial impostos pelo modo de produção mação das intervenções sobre o território, tais capitalista em sua forma flexível na nova glo- como: a previsão de Zonas de Desenvolvimento balização da economia. Econômico em Sertãozinho e Capuava no Plano Com o objetivo de avaliar a aplicação do Diretor de Mauá (1998); a ampliação do aero- instrumento da operação urbana consorciada porto internacional em Guarulhos, já prevista em municípios metropolitanos, analiso alguns pelo governo federal desde o plano diretor ori- efeitos da ausência de um espaço institucional ginal de 1980/1981; o Rodoanel Metropolitano metropolitano, e as tentativas de superação em execução pelo governo estadual. No campo dessa lacuna através de iniciativas municipais da viabilização da acessibilidade as ações se de construção de dois grandes projetos urba- concentram de forma privilegiada na região nos (GPU), baseados naquele instrumento, metropolitana, uma vez que, apesar da compe- em dois municípios da Região Metropolita- tência constitucional do âmbito estadual para a na de São Paulo (RMSP): Santo André – Eixo gestão das regiões metropolitanas, sua atuação 546 Book CM v11_n22.indb 546 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:50 Avaliação de novos projetos urbanos metropolitanos Mapa 1 - Grandes Projetos Urbanos associados na RMSP ---- Limite de município Represas e rios Rodoanel metropolitano. Alternativa traçado Dersa Rodovias Marginais Lei de proteção e recuperação de mananciais Av. Jacú-Pêssego/Guarulhos Av. Jacú-Pêssego/São Paulo Av. Papa João XXIII/Mauá Av. dos Estados/Sto. André-Eixo Tamanduatehy Guarulhos - Aeroporto, ampliação (oficial) e área de influência da extensão da Av. Jacú-Pêssego (proposta nossa) O.U.C. Rio Verde-Jacú – Lei nº 13.872/04 O.U.C. Rio Verde-Jacú – Perímetro estendido em São Paulo (proposta nossa) Projeto Eixo Tamanduatehy Lei nº 8.696/04 - Plano Diretor ZDE - Zona de Desenvolvimento Econômico Mauá - Lei nº 3.052/98 - Plano Diretor Fonte: Cebrap/Pólis, 2004 – Base Cartográfica; PMG e Pólis, 2002 – Sistema Viário de Guarulhos; Figueiredo Ferraz, 2004, p. 72, v. 2 – Decreto de Desapropriação para Ampliação do Aeroporto; Programa Cumbica Pimentas – Carta Consulta à Cofiex, Sedu, Ministério do Planejamento. se concentra na construção de estruturas de transporte e acesso, articulando investimentos em regiões estratégicas e atraentes para o capital e para as classes sociais privilegiadas: aeroporto, porto, área central remodelada – Nova Luz, através de metrô, vias expressas. A hege- Cenário dos novos requisitos da produção capitalista da cidade: grandes projetos urbanos e a lacuna da gestão metropolitana monia do viário se confirma articulado a outros projetos na região metropolitana, combinando A complexa questão da elaboração de Grandes planejamento, gestão, estratégia e projetos va- Projetos Urbanos em regiões metropolitanas riados, reafirmando o rodoviarismo para os flu- deve ser enquadrada em um cenário construído xos de produção e consumo. internacionalmente a partir de novos requisitos Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 547 547 17/3/2010 12:49:50 Eulalia Portela Negrelos da economia capitalista, sobretudo quanto aos em constante ambiente de conflito de inte- segmentos industrial e de comércio e serviços. resses, principalmente os que ocorrem entre o Esse processo de recomposição “estratégica” capital e o trabalho. A centralidade do Estado do sistema capitalista no âmbito internacio- em termos de regulação gera uma série de con- nal, que não é uma novidade dado o caráter flitos e tensões, uma vez que o Estado tem um internacional do capital desde as formulações papel fundamental de construção das políticas teóricas de Marx, se estende de forma prática, públicas, ao mesmo tempo em que a sociedade e principalmente ideológica, na transformação deve ter cada vez mais capacidade de partici- 1 dos costumes, e está apoiado fortemente pela par efetivamente e com instrumentos concretos esfera estatal de regulação da vida social. de controle sobre a formulação e implementa- No âmbito territorial, em particular no urbano,2 podemos verificar duas fortes tendên- ção dessas políticas públicas no sentido de que realmente atendam os interesses sociais. cias analíticas históricas: a primeira, baseada O Estado recebe uma série de pressões na teoria política sobre “a cidade do capital” políticas, sobretudo em forma micropolítica (Lefebvre, 1999) referindo-se à análise crítica (Foucault, 1979), sobre a decisão de aplicação da cidade como meio de reprodução do capi- de recursos na remodelação do âmbito urbano, tal e, ao mesmo tempo, produto da produção no sentido de “facilitar” investimentos priva- capitalista do espaço, destinada a fomentar dos e, dessa forma, contribuir para realizar ca- crescentemente os efeitos perversos do sis- da vez mais o capital que, na globalização, se tema capitalista, sobretudo no que se refere move de forma desterritorializada e capaz de à segregação socioespacial e à valorização assentar-se em qualquer lugar (Santos, 1999) desproporcional de alguns lugares – de exce- do espaço mundial. lência para os investimentos – em detrimento Nesse processo de crescente sobrecarga de outros – de concentração popular de baixa de atribuições do Estado em relação à poten- renda e que serve como bacia de força de tra- ciação dos investimentos, sobretudo na esfera balho. A segunda diz respeito à visão segundo municipal (que no Brasil se intensifica a partir a qual a cidade, em meio a novos tempos de da descentralização de atribuições ao municí- globalização, está pressionada a converter-se pio, propiciada pela Constituição Federal de em palco, não de lutas sociais, como na teoria 1988), os instrumentos tradicionais de planeja- anterior, mas em campo de ação “estratégica” mento estatal, sobretudo na área do urbanis- dos agentes congregados em um ambiente de mo, já não são adequados aos novos requisitos “consenso”, proporcionado pelos expedientes de produção “estratégica”. Assim, a regulação práticos do “planejamento estratégico”. exercida pelo planejamento tradicional sofre Em ambos os campos de abordagem so- também uma remodelação metodológica e se bre a cidade, adquirem centralidade o Estado transforma em “estratégia” e “consorciação”, e seu papel de regulação e regulamentação da em operações urbanas que incorporam forte- vida social, compreendida como uma complexa mente seu caráter financeiro e remodelador rede de movimentos de produção e consumo de padrões através do desenvolvimento de que, no modo de produção capitalista, se dão projetos urbanos. A ação reformadora do final 548 Book CM v11_n22.indb 548 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:51 Avaliação de novos projetos urbanos metropolitanos do século XIX, baseada em sanitarismo (como na cidade e na metrópole, e que a literatura do discurso estatal) e na crença de reforma social urbanismo vem tratando como Grandes Pro- modernizadora (como discurso técnico), exacer- jetos Urbanos, inclusive de âmbito metropoli- ba, no final do século XX, sua face financeira e tano (Ezquiaga, 2001; Lungo, 2005; Negrelos, de exploração da renda fundiária, promovendo 2005). A remodelação econômico-territorial é os similares históricos resultados de elitização entendida aqui não apenas como um projeto e expulsão das camadas populares daqueles a mais para o município, mas como resultado territórios que se convertem em interessantes de estratégias empresariais que se infiltram para o capital imobiliário ou produtivo. na formulação estatal, premida por agir sobre Para comportar tal movimento de trans- seu âmbito territorial de poder – fundamen- formação de paradigma de planejamento, pas- talmente no município que é ente federativo sando da norma à estratégia, o Estado formula com competências constitucionais para a ela- novos procedimentos, com a incorporação cres- boração de projetos urbanos e de políticas de cente dos agentes sociais e econômicos não desenvolvimento urbano – no sentido de atrair apenas como partícipes das decisões, mas como para os seus limites os investimentos privados partícipes formalizados na produtividade terri- que podem ser potencializados por um Grande torial, ou seja, criando expedientes legais para Projeto Urbano, formulado com a capacidade a efetiva participação financeira do capital no de gerar novas condições para a produtividade território como é o caso das “operações urba- desse capital investido. nas consorciadas” e as “parcerias público-pri- É o município, e não a região metropo- vado”. Essa adequação, que também demanda litana, que comporta a base territorial para a uma nova forma de relacionamento com a so- formulação de grandes projetos, bem como o ciedade e com a comunidade interna ao Estado conjunto de instrumentos constitucionais para (com ênfase no seu corpo técnico), se manifesta a atuação e é nessa contradição que se cons- como uma pretensa reforma do Estado em que troem as duas operações urbanas aqui anali- se dão diversas transformações de práticas, es- sadas. São operações formuladas na lógica de tratégias, procedimentos e ações, voltados pa- seu desempenho na estrutura econômica me- ra, por um lado, promover uma maior “eficiên- tropolitana, e se relacionam necessariamente cia e eficácia” e potencializar recursos públicos de forma associada na Região Metropolitana e, por outro lado, viabilizar a abertura de canais de São Paulo, e mais, na Zona Leste da metró- para as formas novas de participação do ca- pole, em uma clara tentativa de oferecer uma pital privado nos investimentos públicos. Esse nova alternativa de investimentos ante as ope- processo tem incorporado, inclusive, ainda que rações desenvolvidas no vetor sudoeste a partir de forma limitada, as camadas populares nas dos anos 1990. Claramente é no âmbito terri- arenas de discussão, resultado de fundamental torial metropolitano que essas operações têm pressão dos movimentos populares no sentido defendida sua pertinência enquanto concepção da democratização do acesso ao Estado. e enquanto manejo de um conjunto de com- Essa formulação conforma os novos ex- ponentes da base técnica relativa ao planeja- pedientes de remodelação econômico-territorial mento físico-territorial (economia, sociedade, Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 549 549 17/3/2010 12:49:51 Eulalia Portela Negrelos características físico-ambientais, tipologias de americanas. No entanto, os projetos em desen- projetos). volvimento para a Zona Leste de São Paulo se Como se verá, é patente a visualização de devem muito menos a uma visão de reversão que o município de São Paulo, de forma isolada, do processo de exclusão socioterritorial e mui- não compõe um polo de atração de população to mais à confirmação e aprofundamento de moradora ou trabalhadora. São Paulo é centro um processo de extensão das possibilidades de um tempo-espaço metropolitano; é centro de maior acumulação de capital, ao “liberar” de uma imagem de polo de atração, enquanto fluxos e acessos entre os dois maiores equipa- o fenômeno territorial neste lugar é metropo- mentos logísticos de transporte de carga e mer- litano. Nesse sentido, os Grandes Projetos Ur- cadorias do Brasil – o aeroporto internacional banos aqui se estruturam em torno da consoli- de Guarulhos e o porto e Santos (Ver Figura 1). dação do território construído como metrópole, buscando a viabilização de fluxos e transporte em sua associação nesse âmbito regional. Ao mesmo tempo, buscam vincular-se à implementação das variadas políticas públicas de âmbito social e econômico-territorial que ainda são formuladas fundamentalmente na esfera municipal, sem respaldo em instrumentos metropolitanos de gestão, inexistentes no quadro Estratégias de cooperação supramunicipal do município de Santo André no enfrentamento da reconversão econômica do ABC político-institucional do pacto federativo. A formulação de uma grande operação Em função do debate interno à região do ABC, urbana para a Zona Leste do Município de São no final dos anos 1980, acerca da crise que Paulo por parte da administração municipal, a desconcentração industrial, ou a chamada com extensões de influência para municípios “reestruturação produtiva”, vinha provocando vizinhos, se deve à mescla de diferentes vi- na economia regional do ABC paulista, alguns sões sobre o território: por um lado, é inegá- expedientes institucionais foram utilizados pa- vel a confirmação de uma visão de futuro, de ra tentar atuar na minimização de efeitos ne- possibilidade de reverter uma situação de iso- gativos que a denominada “evasão industrial lamento e de adensamento periférico que foi do ABC” tem causado tanto à produção de re- baseado na construção de grandes conjuntos cursos financeiros para investimentos públicos habitacionais de promoção estatal, ocupações quanto à elevação do índice de desemprego, de moradia precária em áreas ambientalmente principalmente industrial, comum às sete cida- protegidas, componentes de um modelo de ex- des da região (Santo André, São Bernardo do tensão periférica fundamentado no lote com a Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, casa própria autoconstruída. Esse foi o modelo Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra) que tem utilizado e empregado largamente em todas as passado por um processo de envelhecimento cidades metropolitanas brasileiras e que ser- de suas estruturas urbanas e, com relevância, ve como aplicação às grandes cidades latino- de suas estruturas produtivas. Esse processo 550 Book CM v11_n22.indb 550 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:51 Avaliação de novos projetos urbanos metropolitanos Figura 1 – Ligação do Aeroporto Internacional em Guarulhos ao Porto de Santos, na lógica combinada dos grandes projetos analisados Fonte: PMSP, 2004a. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 551 551 17/3/2010 12:49:51 Eulalia Portela Negrelos ocorreu em toda a região do ABC e particular- e alguns secretários), dos sete prefeitos, de mente em Santo André, pois representantes da classe trabalhadora, da classe empresarial e de entidades que reúnem [...] com o apoio e incentivo do poder local, buscou-se na década de 90 reordenar o uso do espaço urbano e incentivar a instalação e ampliação de atividades industriais, comerciais e de novos serviços, visando com isso atender a novas demandas do setor produtivo e também da população da região. (Montagner, 2004, p. 8) associações e entidades de caráter urbano e regional (destaque importante deve ser dado ao Fórum da Cidadania do Grande ABC, que reúne diversas instituições sociais como associações de empresas e sindicatos de trabalhadores, agregando grupos de defesa do meio ambiente e movimentos ecologistas) com o objetivo de elaborar e implementar o que se O primeiro dos expedientes foi a criação denominava “projeto estratégico de desen- do Consórcio Intermunicipal do ABC, em 1992, volvimento da região”. Nessa nova arena de instituição de direito privado, composta pe- discussões, portanto, foram firmados acordos, los 7 prefeitos, reunidos estrategicamente em a partir da ideia de “consenso”, e foi criada, torno da questão ambiental da disposição dos em 1998, a Agência de Desenvolvimento Eco- resíduos sólidos e no sentido da discussão conjunta de todos os temas de interesse regional. Dentre eles, a inserção de 56% da região na Área de Proteção dos Mananciais como impeditivo para a extensão das estruturas produtivas, sobretudo industriais em todo o território (Rolnik e Somekh, 2004, p. 118). Outro expediente foi a instalação de um amplo debate na região do ABC, com extensão estadual devido à competência constitucional em assuntos metropolitanos, a respeito da ampliação da participação da sociedade na discussão realizada nas instituições locais e regionais. Como o Consórcio agrega apenas os prefeitos, outros setores vinham reivindicando sua participação na instituição, constantemente negada por motivos aparentemente estatutários. Em março de 1997, foi instalada a Câmara Regional do Grande ABC, com a participação do governo do estado (governador 552 Book CM v11_n22.indb 552 nômico do ABC, com a competência, inclusive, de produção e divulgação de base atualizada de dados e de análises científicas do panorama socioeconômico da região do ABC. Esse conjunto de iniciativas pode ser analisado como a efetiva construção do que conhece como uma nova estrutura de governance aplicada no ABC (Klink, 2001). Essa aplicação conceitual é consistente com uma nova governance que, numa nova fase de atuação metropolitana, posterior ao “neolocalismo pós-constituição de 1988” (Azevedo e Guia, 2000, p. 545), a governança poderia estar sendo alcançada ao superar [...] a dimensão do desempenho administrativo, abarcando também o sistema de intermediação de interesses, especialmente quanto às formas de participação dos grupos organizados da sociedade no processo de definição, acompanhamento e implementação de políticas públicas. (Ibid., 2000, p. 547) Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:51 Avaliação de novos projetos urbanos metropolitanos O conjunto das instituições regionais construídas no ABC [...] é uma nova institucionalidade, única no Brasil, que foi sendo criada ao longo da década de 1990, acompanhada de um conjunto de ações discutidas coletivamente, implementadas seja bilateralmente, seja multilateralmente, ações de cooperação que envolvem, inclusive, cooperação de municípios. (Daniel, 2003, p. 65) • Os grandes estabelecimentos industriais eram responsáveis por cerca de 60% da remuneração total dos ocupados na indústria no Grande ABC, ficando os micro e pequenos com apenas 14% e os médios com 26%. Nas demais regiões do estado, os grandes estabelecimentos desse setor ficavam com 38% da remuneração total dos ocupados na indústria e os micro e pequenos com cerca de 26%; • Em relação à RMSP, o Grande ABC encon- Como a questão da “evasão industrial” trava-se super-representado nas atividades in- afeta de forma mais aguda alguns municípios dustriais (25% do valor adicionado e 20% dos da região, foram traçadas estratégias diferen- ocupados) e sub-representado nas atividades ciadas para enfrentar os efeitos do processo de comerciais (10% do valor adicionado e 11% saída de unidades de produção da região. Os dos ocupados); municípios que mais sentem essa problemática • Concentração espacial das atividades in- são: a) do ponto de vista de diminuição da con- dustriais, e também de outros setores da eco- tribuição das indústrias, Santo André efetiva- nomia, principalmente em São Bernardo do mente; b) do ponto de vista da impossibilidade Campo e Diadema (juntos representando 2/3 de atração de indústrias por conta da sua total do valor adicionado e do pessoal ocupado na inserção na Área de Proteção aos Mananciais, indústria do ABC e, São Bernardo isoladamente Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. apresentando 50% do valor adicionado e 40% Quando observamos alguns dados sobre do pessoal ocupado no setor); o quadro da região em termos de atividade • Santo André contribuía com São Bernardo econômica, temos os seguintes resultados, até na soma do pessoal ocupado e do valor adicio- 1999 (Agência de Desenvolvimento Econômico nado no setor comercial: juntos chegavam a do ABC, 1999): 2/3 de ambos os indicadores, ficando cada um • Acentuada concentração setorial da indústria no Grande ABC, principalmente em montagem de veículos automotores, reboques e carrocerias, produtos químicos, máquinas e equipamentos e artigos de borracha e plástico, que, juntos somavam cerca de 70% do total industrial; • Dessas áreas de produção, 40% se referem a montagem de veículos automotores, reboques e carrocerias, sendo que para as demais regiões do Estado essa área representava apenas 7% do valor adicionado industrial; com 1/3, tanto em ocupação quanto em valor adicionado. • Concentração muito grande da indústria de transformação do ABC, pois apenas 9 grupos de 3 divisões da indústria da região participavam com 50% do valor adicionado e 40% do pessoal ocupado, sendo responsáveis por apenas 16% do total de estabelecimentos industriais da região. O estudo não aborda as dimensões territoriais ocupadas por essas indústrias, no entanto, sabemos que são unidades produtivas de grandes dimensões que marcam Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 553 553 17/3/2010 12:49:51 Eulalia Portela Negrelos fortemente o cenário das cidades, excetuando- que configuram uma grande operação (ver Fi- se Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. gura 2). Esses dados são fundamentais para O conjunto de projetos, de base terri- compreender os objetivos de remodelação torial por um lado e de base social por outro, econômico-territorial das instituições e da so- dizem respeito a estratégias tanto de ação re- ciedade do ABC concentrando-se, no geral, na gional quanto de ação municipal na construção manutenção do quadro de estabelecimentos da relação entre o regional e o local no cenário industriais e comerciais em seu território, bem da reestruturação produtiva. No que se refere à como na elevação do emprego. No caso de ação regional, o município traçou uma estraté- Santo André, o foco se localizou na ampliação gia de cooperação e conflito entre os agentes de unidades com tecnologia atualizada, uma sociais, políticos e econômicos locais e regio- vez que o principal efeito negativo da “evasão nais para gerar acordos regionais através do industrial” no município se deve ao fato de consenso; a outra estratégia regional foi a de seu parque industrial ser antigo, relacionado recriar o ABC na Região Metropolitana de São ao primeiro estabelecimento da indústria de Paulo não como periferia, mas como uma nova transformação ao longo da Estrada de Ferro centralidade quando Santos-Jundiaí, na passagem do século XIX ao XX. Diferentemente de São Bernardo do Campo, onde o desenvolvimento urbano-industrial foi incrementado a partir do estabelecimento das grandes indústrias automobilísticas da década de 1950, com o desenvolvimentismo e a disseminação do rodoviarismo no Brasil. [...] a região deixaria de ser um subúrbio, qualificado por ser uma passagem entre a capital e o porto, para se tornar um lugar, uma cidade com dinâmica própria. (Daniel, 1998, p. 3) Nessa estratégia, os projetos urbanos assumiram centralidade para o desenvolvi- Santo André passa, paralelamente ao mento local, destacando o Eixo Tamanduatehy, processo de construção de políticas supra- abrangendo a Avenida dos Estados, o Rio Ta- municipais e de órgãos regionais de desen- manduateí, a Avenida Industrial, chegando até volvimento, à elaboração de Grandes Proje- a Av. Dom Pedro II, considerado como o ponto tos Urbanos com base no objetivo e discurso crítico principal da realidade de “abandono” da reconversão econômica e territorial, com das plantas industriais antigas e a consequen- elementos de gestão e políticas públicas e te configuração de um quadro de deteriora- bastante impregnado da metodologia do pla- ção tanto urbanística quanto paisagística. Um nejamento estratégico: “Santo André Cidade conjunto de profissionais foi chamado a dar Futuro” (processo considerado participativo, legitimidade a todo o processo, já desde 1997, envolvendo a sociedade local para formular as desde suas primeiras discussões internas e de- grandes diretrizes de desenvolvimento da ci- bates públicos: Jordi Borja, Alain Lipietz, Andrés dade para um período de vinte anos) e o “Pro- Rodríguez-Pose. Foi a seguinte formulação que jeto Eixo Tamanduatehy”, um grande conjunto deu sustentação à construção do Projeto Eixo de pequenas operações urbanas consorciadas, Tamanduatehy: 554 Book CM v11_n22.indb 554 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:51 Book CM v11_n22.indb 555 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 Uni ABC 1 Centro Regional de Logística Duplicação da Av. Industrial trecho 2 Av. Industrial Ferrovia Revitalização entorno Estrada Utinga Av. dos Estados Conj. residencial Local para futuros projetos Nova concessionária Vigoritto Novo trecho a ser duplicado Conj. residencial Conj. hoteleiro Ibis e Mercury Pq. Celso Daniel Nova Rodoviária Piscinão Sta. Terezinha C&C Construção e Extra Centro Empresarial Praça Sta. Terezinha Projetos implantados Projetos em fase de construção Projetos em implantação futura Duplicação Av. Industrial trecho 1 ABC Plaza Shopping Land Pooling-Reajustamento de terras 1º empreendimento do Land Pooling Sherwin Willians Uni ABC Campus 3 1º empreendimento da Cidade Pirelli - 2003 Cidade Pirelli Parque da Cidade Pirelli já em final de construção Reurbanização Córrego Guarará Pão de Açúcar e Parque 18 do Forte 18.000 m2 de área verde em reurbanização Cobertura da Oliveira Lima Global Auto Shopping Complexo Global Shopping Duplicação da Av. Giovanni B. Pirelli Parte da contrapartida realizada da implantação da Cidade Pirelli Hipermercado e lanchonete Parte do Complexo Global Shopping Projetos de Inclusão Social e Habitação (SISH) Nome: Reurbanização Favela Capuava Projetos de Inclusão Social e Habitação (SISH) Nome: BID 1 e BID 2 - Reurbanização Favela Capuava Unida e Capuava Área do corpo principal do Complexo Global Shopping Novo Carrefour Conceito Supermercado Parque 10.000 m2 de área verde Projetos de Inclusão Social e Habitação (SISH) Nome: 136 - Reurbanização Favela Capuava Figura 2 – Projeto Eixo Tamanduatehy – Intervenções, operações urbanas e parcerias Avaliação de novos projetos urbanos metropolitanos 555 17/3/2010 12:49:51 Eulalia Portela Negrelos O eixo da Av. dos Estados (complementado pela Av. Industrial) permite a construção de diferentes cenários futuros. Na ausência de planejamento estratégico , essa zona pode permanecer com uma ocupação rarefeita, com um ou outro empreendimento privado de porte, com dificuldades de acesso (apenas a alternativa rodoviária da Av. Estados, com serviços ferroviários de baixa qualidade e persistência de enchentes). Por oposição, uma estratégia municipal consistente pode criar condições para, nas próximas décadas, transformar esse macroeixo num centro urbano de terciário avançado de dimensões regionais e até metropolitanas (considerando que a expansão do terciário de ponta que vem ocorrendo no município de São Paulo pode perfeitamente se espraiar pelo eixo da estrada de ferro em direção ao Grande ABC – como ocorreu no passado com a indústria – desde que as condições urbanas propiciem essa possibilidade). Para isso, vários ingredientes serão necessários: um projeto urbanístico de porte (combinado espaços públicos amplos, monumentalidade, legislação urbanística adequada e equacionamento dos problemas de infraestrutura), capaz de criar oportunidades de negócios (no comércio, no terciário de excelência, em lazer e entretenimento, etc.) compatíveis com a apropriação pública de parte da valorização imobiliária resultante dos investimentos públicos; e a transformação da ferrovia num metrô de superfície (elemento-chave para garantir acessibilidade diferenciada, livre dos congestionamentos de trânsito). (Daniel, 1998, p. 5. O grifo é meu) Tamanduateí e que contém uma importante extensão da ferrovia Santos-Jundiaí – e tampouco com São Caetano do Sul, que apresenta tanto o rio quanto a ferrovia em seu território. Nesse sentido, os limites municipais para um projeto de grande porte são imediatamente sentidos, tanto do ponto de vista dos efeitos de atração de investimentos quanto em relação às práticas fiscais que seguem municipalizadas. Apesar dos esforços intelectuais dos consultores em Santo André de realizar articulações regionais com o Projeto, que indicaram o Eixo Tamanduatehy como constitutivo de uma avenida “Diagonal Sul” que articularia as zonas leste e oeste da região metropolitana (formulação que foi absorvida pelo Plano Diretor Estratégico de São Paulo em 2002), sem Mauá e São Caetano do Sul, ao trecho intermediário representado por Santo André caberá uma limitada capacidade de transformação econômico-territorial e as diferenças intraregionais seguirão marcando a gestão municipal e regional (ver Mapa 1 e Figura 3). Formulações com base metropolitana a partir do município de São Paulo. Incorporação da Zona Leste na lógica da remodelação econômico-territorial A operação urbana Rio Verde-Jacú, cujo centro é a obra da Av. Nova Trabalhadores, mais co- Os esforços de formulação do Projeto Eixo nhecida como “Jacú-Pêssego”, liga a Rodovia Tamanduatehy concentraram-se, por outro lado, Ayrton Senna até o Município de Mauá (na no município de Santo André, sem articula- totalidade da formulação da proposta). Dessa ção operativa com Mauá – onde nasce o rio extensão total, a operação urbana já aprovada 556 Book CM v11_n22.indb 556 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:52 Avaliação de novos projetos urbanos metropolitanos Figura 3 – São Paulo – Operações Urbanas no PDE/2002 Legenda Centro Integrado de Abastecimento de São Paulo Operação urbana existente Operação urbana prevista Projeto estratégico (centro olímpico) Projeto estratégico Projeto estratégico em corredor Parque linear (Rodoanel) Sistema viário estrutural (nível 1) Parques e reservas existentes Limite de área de proteção ambiental Referência urbana Hidrografia Limite de área de proteção e recuperação dos mananciais Estação de metrô proposta Estação de metrô existente Rodoanel em operação Rodoanel em obras Rodoanel (alternativa de traçado proposto Dersa 2002) Linha de trem Limite do município de São Paulo Limite dos municípios vizinhos de São Paulo Fonte: Prefeitura do Municícpio de São Paulo, Secretaria Municipal de Planejamento Urbano Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 557 557 17/3/2010 12:49:52 Eulalia Portela Negrelos se refere ao trecho de São Miguel Paulista até Paulo no seu Plano Diretor Estratégico, como São Mateus com a transposição da linha férrea indicado anteriormente (ver Figura 3). até a Rodovia Ayrton Senna (que ficaria a cargo No interior da OUC Rio Verde-Jacú en- da PMSP), e a transposição da Rodovia Ayrton contra-se o “Polo Industrial de Itaquera”, apro- Senna até Guarulhos (a cargo do governo do vado desde a década de 1980 na Assembleia estado de São Paulo). Legislativa do Estado de São Paulo e conside- Na porção sul do projeto, a avenida tem rado, na lei da operação, como “ZEDE – Zona previsão de extensão ainda pelo município de de Desenvolvimento Econômico” e no Plano São Paulo, no território da Subprefeitura de Diretor como “ZIR – Zona Industrial em Rees- São Mateus até o município de Mauá onde es- truturação” (ver Figura 4). sa prefeitura tem o projeto de ligá-la à Avenida O pressuposto da formulação do pro- Papa João XXIII que se articularia ao Rodoanel grama, “mudar a região pelo desenvolvimento Metropolitano no seu trecho sul (em constru- econômico” esperava seu alcance através de ção), no sentido de conduzir todo o fluxo de três linhas de atuação: “Atração de investi- veículos para as rodovias Anchieta e Imigran- mentos, Empregos e ocupações de qualidade”, tes (ver Mapa 1 e Figura 1). “Formação de recursos humanos e de pesqui- Esse Grande Projeto Urbano tornou-se o sa”, “Integração com a metrópole” (PMSP, eixo de um programa público da prefeitura de 2004c). O pressuposto aparece articulado à São Paulo, na gestão 2001-2004, sob o título ideia de que a Zona Leste é o centro da RMSP, “Programa de Desenvolvimento Econômico da com 32,68 km 2, 22% da área do MSP, com Zona Leste” (Prodel). A iniciativa de formular 3,3 milhões de habitantes correspondendo a o Prodel partiu da prefeitura paulistana e rece- 1/3 da população do município de São Paulo. beu adesão das prefeituras envolvidas, princi- A escala da operação urbana aumenta muito palmente de Mauá e Santo André, interessadas em relação ao previsto no PDE (Figura 3), che- na efetivação dessas obras, considerando-as gando a 77,6 km2, sendo que apenas a ZEDE “alavancas” para uma transformação das pos- incorpora 7 km2 (PMSP, 2004a), em um muni- sibilidades de conexão produtiva e de fluxos cípio com 1.509 km2 e a região metropolitana de mercadorias. Mauá não tem ligação com com 8.051km2, 2.139km2 urbanizados e cerca nenhuma rodovia diretamente, apesar de pos- de 17.800.000 habitantes (IBGE/2000).3 suir um importante parque industrial de base As três linhas estruturadoras do progra- petroquímica, e Santo André precisa articular- ma, consideradas “linhas de ação para gerar se com São Bernardo do Campo e Diadema crescimento econômico, transformação urbana para atingir as rodovias Anchieta e Imigrantes, e inclusão social” têm a seguinte formulação respectivamente. Para Santo André, há um (PMSP, 2004a): interesse adicional na conexão, desde Mauá, • “Integração físico-territorial” – resultou com a Avenida dos Estados, que comporta o na Operação Urbana Consorciada Rio Verde- Projeto Eixo Tamanduatehy, em cuja extensão Jacú (lei municipal 13872, 13/07/04), baseado segue o vetor sul-norte, chamado “Diagonal no complexo viário da Avenida Jacú-Pêssego, Sul” e “Diagonal Norte” pela Prefeitura de São na extensão da Avenida Radial Leste até 558 Book CM v11_n22.indb 558 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:52 Avaliação de novos projetos urbanos metropolitanos Figura 4 – Operação Urbana Rio Verde-Jacú – Localização Geral Fonte: PMSP, 2004b. Guaianazes e na implantação de rede viária são os de “garantir agilidade na aprovação de interna à Zona Leste, para permitir fluxos e co- projetos e aprovar automaticamente propostas municações na região, facilitando a mobilidade que seguirem parâmetros pré-estabelecidos.” para o trabalho e o consumo. • Investimento em capacitação e em “edu- • “Desenvolvimento Institucional” – resul- cação e conhecimento”, localizado na região – tou no Programa de Incentivos Seletivos para orientou a instituição da Fundação Municipal de a Área Leste do Município de São Paulo (lei Ensino Superior e Técnico (lei municipal 13.806, municipal 13.833, 27/5/2004), bem como a 10/5/2004), com implantação de escola supe- instituição de um “comitê gestor”, misto entre rior de saúde pública, na Cidade Tiradentes, e representantes de órgãos da Prefeitura e de en- previsão de implantação de escola superior de tidades da sociedade civil e a estruturação de engenharia e administração em Itaquera. um “Escritório Técnico”, “para ser um órgão Os dados sobre a Zona Leste, demanda- empreendedor, na busca do investidor, no diálo- dos em 2004 pela Prefeitura ao Cebrap, para go com os agentes locais, na coordenação das comparar as regiões Leste e Sul (na formula- ações de várias esferas do governo e na busca ção de um Plano de Desenvolvimento Metro- de financiamento público e privado”. Impor- politano que seria fator de negociações numa tantes objetivos da implantação desse órgão possível novo gestão através da reeleição para Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 559 559 17/3/2010 12:49:52 Eulalia Portela Negrelos o período seguinte) demonstram a fragilidade em investimentos privados industriais (princi- econômica da sub-região leste do município, palmente bens de capital e têxtil/moda), para bastante populosa e com maiores índices de a instalação de unidades na ZEDE, e não os crescimento de sua população (Diniz, 2004): do terciário avançado como se convencionou • Aumenta sua população no período 1991 a 2004 (493 mil contra 789 mil); acreditar fossem os únicos interessantes para a implementação de operações urbanas con- • Em 1996, apresentava 1,5% dos estabe- sorciadas (como nas OUC Águas Espraiadas, lecimentos de todo o município, empregando Faria Lima e Água Branca que ainda não se 44.000 pessoas; representava 1,5% da ocupa- consolidou como foco de atração de massivos ção total do município em 15 grupos de ativi- investimentos do setor terciário) (Sandroni, dades e 58% do pessoal ocupado; 2002). • Em 2001, continha 1,7% dos estabele- É justamente na ZEDE, cujo perímetro cimentos de todo o município, empregando de função industrial já havia sido delimitado 40.000 pessoas (queda de 8,1%), com 18 gru- havia duas décadas (e ainda não implemen- pos de atividades e 67% do pessoal ocupado; tado na sua totalidade até o momento), que • Aumenta a diversificação nos setores a OUC prevê a aplicação do instrumento de econômicos, mas continua a fragilidade da parcelamento, edificação e utilização compul- indústria; sória com a indicação da outorga gratuita do • O setor de serviços apresenta o pior qua- direito de construir por alguns anos para atrair dro de fragilidade (sem atividades financeiras, os investimentos industriais. Percebe-se aqui por exemplo). uma tentativa, isolada, de inversão do proces- Ao mesmo tempo em que chegava à so de avanço do terciário buscando retroceder aprovação da operação urbana Rio Verde-Jacú ao estabelecimento de cadeias industriais que na Câmara Municipal, a Prefeitura de São Pau- teriam correspondido à fase fordista de desen- lo dava continuidade aos estudos sobre a Zona volvimento industrial, ainda que no segmento Sul, no intuito de desenvolver outra operação têxtil se priorize, no corpo da operação, as ati- urbana em torno do canal Jurubatuba, junto à vidades relacionadas à moda e confecção. represa do Guarapiranga. O que se chamou “Foco no desenvol- Em relação com a Zona Leste, a Zona Sul vimento industrial da Zona Leste” apresenta apresenta dados que demonstram uma maior uma fragilidade, pois, embora a Zona Industrial intensidade de atividade industrial (ibid.): na Zona Leste já esteja prevista na legislação • Diminui a população de 1991 a 2004 (225 mil contra 168 mil); estadual como ZUPI – Zona de Uso Predominantemente Industrial, ampliada em 2003 de- • Na Zona Sul aumenta produção entre vido à lei aprovada na Assembleia Legislativa 1996 e 2001 (8,7% contra 10%), enquanto na do Estado de São Paulo, se verifica que, durante Zona Leste há baixa capacidade produtiva e de a formulação da proposta do Prodel, o investi- articulação interindustrial. mento industrial ali se encontrava bastante ra- Os empreendimentos buscados pelo refeito; uma das hipóteses explicativas se refere Prodel seriam prioritariamente os baseados a uma possível retenção especulativa de valor, 560 Book CM v11_n22.indb 560 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:52 Avaliação de novos projetos urbanos metropolitanos aguardando os investimentos públicos para es- de empreendimentos industriais ligados aos corar e viabilizar os investimentos privados. bens de capital, para a produção de máquinas Por outro lado, há um âmbito de articula- e equipamentos: ção do marco regulatório municipal para o fo- No que concerne à estruturação do espaço econômico do município as repercussões de tal adensamento podem ser bastante positivas, uma vez que o setor encontra-se relativamente disperso na capital. Uma alternativa possível é a promoção de atividades na fronteira entre as zonas sul e leste do município, região já ocupada por empresas do setor de bens de capital. Além disso, estes segmentos têm média e alta propensão a vendas externas. O reforço de condições adequadas de exportação, o que inclui desde a melhoria do sistema modal até o porto de Santos e aos terminais de carga do aeroporto de Viracopos, pode ter repercussões positivas tanto do ponto de vista macroeconômico como local, uma vez que maiores exportações, certamente, se traduzirão em maiores níveis de emprego, renda e arrecadação para o município de São Paulo. (Amitrano, 2004, pp. 28-29) mento do desenvolvimento econômico com a política industrial em âmbito federal. Os dois setores da indústria visados para implantação no âmbito do Programa de Desenvolvimento Econômico da Zona Leste do Município de São Paulo são têxteis e bens de capital (9,5% do VA industrial do MSP). Análises demandadas pela Prefeitura de São Paulo para dar suporte técnico ao Prodel (Cebrap, 2004), bem como a um programa de caráter metropolitano com a eventual reeleição municipal, oferecem uma série de indicações vinculadas ao desempenho municipal e regional de um programa como esse. Ao analisar os bens de capital com o setor de fármacos (14,7% do VA industrial do MSP), esse estudo indica que: [...] do ponto de vista nacional esta aliança se justifica por serem estes setores amplamente deficitários no comércio internacional, de sorte que a criação de instrumentos que aumentem os elos internos da cadeia produtiva destes segmentos contribuiria para a redução da vulnerabilidade externa. ... estes ramos de atividade têm gastos em P&D muito superiores aos demais setores do município, sobretudo no caso de produtos químicos, com especial ênfase para a indústria farmacêutica. (Amitrano, 2004, p. 24) A força política à frente da Prefeitura e responsável pela formulação da OUC Rio VerdeJacú e do Prodel pretendia sua reeleição para a gestão 2005-2008, liderada pelo Partido dos Trabalhadores. Para além do discurso técnico das viabilidades apontadas pelos indicadores econômicos, está o campo do discurso político tanto de manutenção do poder no âmbito federal (aliado ao governo municipal no poder até 2004) e a articulação com a política industrial Esses setores têm capacidade de gerar federal elaborada no âmbito do IPEA – Institu- emprego e renda diretos e indiretos e os far- to de Pesquisas Econômicas Avançadas, seriam macêuticos predominam na zona sul do muni- um importante passo para o reforço de uma cípio de São Paulo e em Guarulhos. Daí que se aliança política entre São Paulo e o Planalto mostrava viável o investimento para atração Central. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 561 561 17/3/2010 12:49:52 Eulalia Portela Negrelos Uma avaliação da ação político-institu- inclusive, sendo governadas por essa força des- cional da PMSP orienta a compreensão sobre de 1997, além de que Santo André e São Paulo a OUC Rio Verde-Jacú como um campo expe- tiveram seus primeiros governos petistas no rimental de projeto de uma gestão metropo- período 1989-1992. litana, articulada ao corpo social através de Esse fato indica o forte componente po- entidades representativas como o Fórum de lítico requerido para a formulação de ações Desenvolvimento da Zona Leste e do Conselho regionais e, neste caso, metropolitanas, na au- Municipal de Desenvolvimento Urbano. Essa sência de um espaço institucional, fosse ele go- intenção de gestão metropolitana se identifica verno metropolitano ou parlamento metropoli- em todas as peças legais aprovadas pela Câ- tano nos moldes propostos por Raquel Rolnik mara Municipal com certa articulação estadual e Nadia Somekh (2004, pp. 122-123), e corro- através de poucos deputados estaduais – prin- borados na cristalina formulação de Emilio Pra- cipalmente os vinculados à ZUPI em Itaquera dilla, em relação à experiência metropolitana e os relacionados aos municípios articulados no México, aplicável à região metropolitana de diretamente à OUC, como Guarulhos e Mauá. São Paulo: Nesse sentido, o Prodel baseado na OUC lançou mão de recursos de gestão da sociedade paulistana e metropolitana ainda que não tivesse alcançado repercussão na Assembleia Legislativa não superando iniciativas isoladas de deputados estaduais. Novos recursos de gestão territorial e a demanda por um espaço políticoinstitucional metropolitano O crescimento metropolitano ultrapassou os velhos limites políticos e administrativos das cidades; para garantir a democracia efetiva e a gestão integral, socialmente responsável e eficiente das metrópoles, e enfrentar suas contradições se impõe o desenho de formas de governo metropolitano – executivo, legislativo, empresas públicas – e instrumentos de desenvolvimento adequados para as novas formas socioterritoriais – metrópoles, cidades-região, etc. (Pradilla, 2003, p. 13. A tradução é minha). No caso do município de São Paulo, o Não é de menor importância o fato de que corpo justificativo da operação indicava a ne- parte das prefeituras envolvidas na discussão cessidade do “Estabelecimento de um modelo de programas e projetos com forte ênfase na de relacionamento entre governo municipal e cooperação metropolitana durante o período a sociedade local com base na participação dos de mandatos municipais de 2001 a 2004 (São três níveis executivos da Federação (municipal, Paulo, Santo André, Mauá e Guarulhos), estava estadual e federal)” (PMSP, 2004a). No entanto, comandada por lideranças de um mesmo parti- no estudo não foram indicadas as repercussões do político – o dos Trabalhadores – , todos alia- metropolitanas do Programa após sua implan- dos do governo federal, a partir da eleição de tação. Uma das fragilidades nesse campo se Lula em 2002. Santo André e Mauá já vinham, refere ao exposto anteriormente, relacionado 562 Book CM v11_n22.indb 562 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:52 Avaliação de novos projetos urbanos metropolitanos às três linhas metodológicas de onde partiu a rotas da produção, logística e comunicações aprovação de uma das três leis municipais re- nacionais e internacionais – Guarulhos e parte lacionadas ao Prodel, os chamados “incentivos do ABC. O desenvolvimento concomitante das seletivos” ou uma renúncia fiscal para a atra- análises de investimentos na zona sul do muni- ção de investimentos industriais, sobretudo na cípio de São Paulo e a articulação com Osasco, ZEDE em Itaquera. Esse tipo de proposta, no via operações urbanas ao longo das marginais âmbito de uma política pública de base econô- do rio Tietê e do rio Pinheiros, demonstra a op- mico-territorial na região metropolitana, acirra ção do método de investimento baseado na a competição entre cidades. competição interlugares (Cebrap, 2004). O componente do desequilíbrio fiscal, É particularmente interessante a con- aliado ao desequilíbrio político (não superado, firmação, a partir da avaliação das operações mesmo com o quadro partidário que se confi- urbanas consorciadas em Santo André e em gurou de 2001 a 2004), tem aderência também São Paulo, da ativação econômico-territorial à “visão localista, focalista e setorialista da da zona leste da RMSP, do processo indicado política urbana”, fortalecida, inclusive pelo Es- acima, de que após a crença, nos anos 1980, tatuto da Cidade, que teve, nos anos 1990, no de que o desenvolvimento poderia ocorrer em planejamento com base na competição entre qualquer parte do território, dada a capacidade os lugares uma crença que do capital, aliado às tecnologias de comunica- [...] homogeneizou na sociedade brasileira o modelo de formulação de planejamento urbano baseado apenas na ideia de que é possível aumentar a competição entre os lugares oferecendo aos fluxos econômicos que circulam na economia nacional e mundial vantagens comparativas baseadas no critério de competição dos lugares e no oferecimento de vantagens fiscais. (Ribeiro, 2004, p. 132) ção, estar conectado em qualquer lugar, o crescimento continua nas regiões metropolitanas (Ribeiro, 2004). As iniciativas de implementação de OUC na RMSP informam claramente a visão de que poderiam se desenvolver ali dadas as condições de atrair os fluxos econômicos por sua localização privilegiada no interior da aglomeração metropolitana e, mais, muito bem equipada do ponto de vista logístico e de especialização de mão de obra. Por outro lado, A OUC Rio Verde-Jacú, apesar de voltar o os dados sobre a região informam processos olhar para a periferia leste, estava imbuída da de empobrecimento, degradação ambiental e ideia de competição entre lugares, com o dis- violência intraurbana, consistentes com a ideia curso de alçar a Zona Leste à categoria de um de que a metropolização ou a intensificação da lugar de investimentos, produtivo e potencial- metropolização é o “olho do furacão das ques- mente modernizante. Nesse sentido, a articula- tões sociais” (ibid.). ção entre o município de São Paulo com os mu- As operações urbanas avaliadas, implan- nicípios da zona leste da RMSP se mostrou im- tadas em setores de população majoritariamen- prescindível. No entanto, a visão da competição te de renda baixa e sujeitas a vulnerabilidades entre lugares predominou ao priorizar aqueles e riscos permanentes, incorporam elementos municípios que têm localização privilegiada nas que se referem a novas formas de relação entre Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 563 563 17/3/2010 12:49:52 Eulalia Portela Negrelos os capitais industriais e o trabalho, com um geração de subemprego, empregos informais campo de parcerias entre empresas, sindicatos, e desemprego, realidade premente na Região universidades e prefeituras, do período pós- Metropolitana de São Paulo. Isto porque é ine- fordista (Lipietz e Leborgne, 1988). Expedientes vitável a deflagração de um processo migrató- desse tipo são encontrados na concepção da rio para a região, induzido pela implantação OUC Rio Verde-Jacú e nos seus subprodutos le- de um “polo de desenvolvimento” ou parque gislativos (além dos incentivos fiscais, a criação industrial. de uma instituição de ensino superior e técni- Essa pressão demográfica ou popu- co) no sentido de aliar novas tecnologias a uma lacional, bem como a pressão em relação à nova produção industrial. empregabilidade, gera uma demanda especí- A criação da instituição de ensino supe- fica para cada setor de serviços públicos, tais rior é comparável à iniciativa da USP – Univer- como saneamento básico, habitação, saúde, sidade de São Paulo e do governo do estado educação, recreação, entre outros. Assim, po- de SP em expandir o campus universitário para de-se afirmar que os estudos que orientaram a zona leste reformulando os fluxos metropoli- a formulação da operação carecem justamente tanos relacionados tanto ao ensino e pesquisa da visão metropolitana sobre alternativas de quanto às classes sociais. A USP Leste se arti- investimento de recursos públicos em outros cula diretamente com o discurso municipal de tipos de projetos que pudessem ter um maior São Paulo de expansão de infraestrutura para o impacto na geração de emprego ou de outro desenvolvimento do conhecimento, ainda que tipo de emprego, ligado à economia popular. seja conhecimento com base profissionalizante Ao contrário da ênfase que os relatórios técni- e técnico que atende diretamente à formação cos dão à questão das exportações dos produ- da bacia de empregos de uma grande camada tos gerados na região a partir da implantação da população pobre que ali reside. do Programa, nem tudo é a exportação, e as A avaliação dos estudos técnicos da economias locais ou domésticas são possíveis principal consultoria envolvida (Atkearney, fontes de geração de riqueza que devem ser 2003a/b e 2004) nos possibilita algumas refle- consideradas. xões. Do ponto de vista da viabilidade econô- O Programa, estruturado segundo as mica dentro dos setores produtivos analisados, orientações econômicas da consultoria, garan- apesar do manejo de uma base de dados bas- te aos investidores as condições de uma alta tante sofisticada, não foi observado o efeito ti- rentabilidade sem, no entanto, considerar os po “dominó” de um programa como esse, bem custos sociais implicados e que finalmente re- como os efeitos benéficos e maléficos sobre as cairiam sobre as finanças da autoridade local, e regiões envolvidas. Não basta medir o impacto inclusive nacional, uma vez que a implementa- em relação à geração de empregos formais e ção não é metropolitana dada a ausência desse impacto na PEA – População Economicamente espaço institucional. Ativa ou em relação ao PIB – Produto Interno No que se refere ao território, não fo- Bruto. É fundamental aplicar técnicas de simu- ram analisados os impactos ambientais sobre lação de impactos em relação à capacidade de os ecossistemas ecológico-ambientais, em 564 Book CM v11_n22.indb 564 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:52 Avaliação de novos projetos urbanos metropolitanos nenhuma escala de abordagem (área da ZEDE, fato de que ambos os projetos dessa lógica se área da operação urbana, Zona Leste do mu- articulam a um terceiro, a projetada ampliação nicípio de São Paulo, Zona Leste da região do aeroporto internacional em Guarulhos, e metropolitana, Região Metropolitana de São que o objetivo central e de futuro seja sua li- Paulo como um todo), nem tampouco em rela- gação com um dos maiores e mais importantes ção a uma região economicamente articulada equipamentos portuários do Brasil, representa- como o chamado “Complexo Metropolitano do pelo Porto de Santos. Ao mesmo tempo, é Expandido”. relevante que, já no final da gestão municipal Ainda que o estudo reflita alguns âmbi- do período 2001-2004, a partir do êxito do pro- tos de comparação sub-regional ao interior do cesso de construção e aprovação do Prodel, a município de São Paulo, as comparações são prefeitura de São Paulo tivesse estruturado de curto alcance, porque a simples indicação uma consultoria para a construção de subsídios da localização da atividade econômica é insu- para formular um Programa de Desenvolvimen- ficiente para refletir a mobilidade ou dinâmica to Metropolitano baseado fundamentalmente dos impactos sobre os equipamentos e infraes- em políticas de desenvolvimento para as Zonas trutura pública no âmbito regional de pequena Leste e Sul do município e da Região Metro- escala, o que não dá elementos para planejar politana de São Paulo (Cebrap, 2004) e que se os futuros crescimentos e demandas populacio- desenvolveria em um desejado novo mandato nais sobre o território urbano e metropolitano. que não ocorreu. As operações urbanas em Santo André Neste aspecto, é fundamental considerar seguiram sua implementação a partir, inclusive, a posição do governo do estado de São Paulo, de sua articulação ao Plano Diretor aprovado da mesma força política que a vencedora no em dezembro de 2004 e a operação em São município de São Paulo para o período 2005- Paulo foi interrompida com a assunção de uma 2008: alegando falta de recursos para construir nova força política eleita para o período 2005- o trecho leste do Rodoanel Metropolitano, a Av. 2008. Jacu-Pêssego, eixo da operação urbana, vem A implementação das ações é, portanto, sendo considerada desde então como substi- municipal, e está sujeita a decisões nesse âmbi- tuta do Rodoanel naquela região. Essa decisão, to que lhe conferem êxito ou fracasso de acor- em implementação atualmente, distorce de for- do com o empenho na gestão realizada. No ma radical a formulação da operação urbana entanto, ainda que houvesse a possibilidade de e induz a padrões de tráfego, mobilidade e de efetivação do plano ou projeto de forma iso- uso e ocupação do solo incompatíveis com o lada, em termos da atração de investimentos, desenvolvimento econômico-social para a zona seja para São Paulo ou Santo André, a perspec- leste no sentido de sua inclusão socioterritorial. tiva de realização concreta desses investimen- Ademais, o próprio governo do estado indica tos é muito maior na lógica combinada, pois o a fragilidade de seu âmbito de planejamento, potencial de realização de economias regionais uma vez que o Rodoanel Metropolitano não e de ganhos de proximidade a mercado consu- deveria, nos diversos traçados e formulações midor aqui ainda é enorme. Não é desprezível o desde sua concepção, interligar-se diretamente Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 565 565 17/3/2010 12:49:52 Eulalia Portela Negrelos à malha urbana e a avenidas que, como a Jacu- que a reivindicam seu espaço na luta social (Fó- Pêssego, são estruturais na hierarquia viária rum de Desenvolvimento da Zona Leste em São urbana, em sua concepção e operação desde os Paulo, Fórum da Cidadania do Grande ABC). Os anos 1990. agentes interiores ao poder político (dirigentes Na construção dos discursos da transfor- do executivo e do legislativo municipal, estadu- mação, e considerados novos recursos de ges- al ou federal) podem, inclusive, querer apoiar- tão, os Grandes Projetos Urbanos são metáforas se na participação social como expediente de do manejo do capital no tempo e metáforas do perpetuação no poder (manejo do discurso da manejo do capital no espaço. Como metáforas, promessa eleitoral), tentando capturar a esfera são figuras de linguagem, dos discursos de ci- da organização social, que é historicamente lo- dade que os sustentam. Como vir a ser, essas cal no Brasil. operações fazem parte da categoria de projetos Na escala dos Grandes Projetos Urbanos, comuns, inclusive no manejo dos componen- devido a seus extensos impactos na economia tes físico-territoriais (obras que constituem seu e no território, e devido à recente incorporação corpo material – avenidas, marginais, transpo- da questão da sustentabilidade ambiental pa- sições, terminais de passageiros, pista de pou- ra a defesa de um projeto, encontramos cada sos e decolagens, entre outros) de um projeto vez mais a relativa valorização dos estudos urbano aplicado a um novo espaço que será técnicos. No entanto, na questão do “desen- construído e também das imagens arquitetô- volvimento institucional”, enquanto conjunto nicas que orientarão as novas edificações. Por de métodos para transformar as estruturas de outro lado, como vir a ser metrópole o Grande discussão pública e de aprovação das peças le- Projeto Urbano incorpora e maneja os compo- gais que operacionalizarão o projeto, os expe- nentes temporais do discurso das possibilidades dientes são os mesmos de sempre: a influência de um novo lugar: ser algo que ainda não é e do poder econômico é muito mais efetiva nos que depende do conjunto do ser social e polí- espaços políticos de decisão sobre os projetos tico para sua implantação. E virá a ser inclusive de lei, ainda que sejam constituídos espaços de para a realização do capital fundiário, principal discussão pública dos projetos. aspecto da transformação de um lugar ao ser No sentido da abordagem desses Gran- valorizado pela incorporação de transformações des Projetos Urbanos associados na Zona Les- territoriais promovidas tanto por obras públicas te da metrópole, articulando-a de norte a sul, quanto por investimentos privados. tanto internamente quanto com outras regiões Enquanto objeto de discussão pública, no metropolitanas contíguas, é oportuno indicar planejamento que incorpora a participação so- algumas questões em torno da concepção de cial, são variados os agentes que se agregam ao projetos de âmbito metropolitano. processo, inclusive os movimentos sociais co- No tocante à eficiência isolada de cada um mumente manejando os discursos divergentes. dos projetos e sua relação com a eficiência vin- A participação social quer ser, ela própria, um culada à lógica combinada, as partes constituti- elemento temporal de manejo de Grandes Pro- vas da ligação entre o Aeroporto Internacional jetos Urbanos, na medida em que há agentes em Guarulhos e o Porto de Santos, através de 566 Book CM v11_n22.indb 566 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:52 Avaliação de novos projetos urbanos metropolitanos zonas estratégicas de produção industrial co- Do Projeto Eixo Tamanduatehy, a luta por mo são Itaquera, Mauá e Santo André, ligadas atrair os investimentos localizados, prioritaria- pelo Rodoanel Metropolitano, deveriam ser to- mente, ainda, no setor terciário, deverá seguir das implantadas para que se alcance o objetivo bastante intensificada. Este projeto, na escala de final da acessibilidade regional em termos da eficácia isolada, talvez seja o que menos possa produção econômica e manutenção desse polo avançar de forma autônoma com a magnitude nacional de produção e controle do capital. esperada, sem as obras estruturais de ligação Considerando as ações articuladas em entre o Aeroporto e o Porto. O cenário para San- um Grande Projeto Urbano metropolitano que to André não mudará tão intensamente quanto se constitui de partes formuladas por dife- já mudou nos últimos 15 anos, se não forem im- rentes autoridades municipais, sua eficiência plementados, para além dos investimentos nos apenas poderá ser claramente dimensionada a componentes do Santo André Cidade Futuro, partir da conclusão de todo o eixo viário e das projetos de articulação metropolitana. operações urbanas e obras envolvidas. De for- Ainda que os projetos se utilizem e se ma individualizada, o que se pode esperar dos beneficiem de alguma forma dos discursos de projetos? Mais competição entre cidades é um desenvolvimento local para sua justificativa, é dos resultados mais prováveis. relevante indicar a importância da vinculação Da operação urbana consorciada Rio Verde–Jacu, mesmo sem sua desativação a partir a outros projetos metropolitanos, com relevância para o Rodoanel. de 2005, é visível um período longo de “espe- Os discursos que sustentam em gran- ra” pelo interesse imobiliário que tem um pe- de parte a formulação dos projetos na ló- rímetro muito extenso para investir e o poder gica de sua articulação em um território público tem obras estruturais para concluir, e metropolitano e intermetropolitano, não ainda implantar, relacionadas à acessibilidade lograrão construir, isoladamente, realidades interna da Zona Leste, à consolidação da Zona solidárias na região, uma vez que estas se Industrial em Itaquera. Além disso, uma com- localizam no âmbito da realização macroe- plementação da operação urbana consorciada conômica e macrorregional. A reconversão deve ainda ser formulada em projeto de lei, se- econômica de um município, a localização guindo o perímetro atual, que finaliza na Aveni- geopoliticamente construída e a centralida- da Ragueb Chohfi, até o limite com o município de metropolitana não podem ser alcançadas de Mauá. Este município, por sua vez, deverá de maneira sustentável apenas como discur- efetivar sua ZDE – Zona de Desenvolvimento so; devem ser buscadas regionalmente com Econômico, prevista no Plano Diretor de 1998, a articulação e visualização de ganhos possí- que reúne os enclaves industriais e de serviços veis na lógica combinada, com políticas pú- produtivos de Capuava e Sertãozinho, por onde blicas de desenvolvimento social e econômi- passa a Avenida Papa João XXIII que ligará ao co a partir de recursos de gestão amparados Rodoanel Metropolitano, peça-chave na consti- em um novo ambiente jurídico-institucional tuição da prevista ligação Aeroporto-Porto. metropolitano. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 567 567 17/3/2010 12:49:52 Eulalia Portela Negrelos Eulalia Portela Negrelos Arquiteta e urbanista pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, mestre e doutora em arquitetura e urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de São Paulo. Professora doutora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (São Paulo, Brasil). [email protected] Notas (1) No contexto da ideia de “globalização” como um neologismo para um novo período de internacionalização da economia. (2) Urbano entendido como suporte das estruturas essenciais para a reprodução do capital nas unidades de produção na história da urbanização (que é história da produção de novas cidades adequadas para a reprodução do sistema capitalista baseado na industrialização). (3) Dados disponíveis em http://www.emplasa.gov.br, acesso em 27/1/2004. A ampliação do perímetro da operação Rio Verde-Jacú deveu-se, em grande parte, à visão de que a captura dos recursos de outorga onerosa do direito de construir deveria ser aplicada em um perímetro contínuo, apesar de que o Estatuto da Cidade não indica objeção a perímetros descontínuos para transferência de valores. Referências AGÊNCIA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DO ABC (1999). A atividade econômica nos anos 90 no Grande ABC. Cadernos de Pesquisa. Santo André, n.° 1, outubro. AMITRANO, C. R. (2004). “Estrutura Industrial, inserção externa e dinâmica local no município de São Paulo”. In: CEBRAP. Projeto PMSP/CEBRAP. Desenvolvimento Econômico da Região Metropolitana de São Paulo – Estratégias para o Planejamento Regional. São Paulo, novembro, cdrom. ATKEARNEY (2003a). “Atração de Investimentos em atividade industrial para a Zona Leste do Município de São Paulo”. Relatório Fase II – Mapeamento. 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Operações Urbanas em São Paulo. dezembro, CDROM. SANTOS, M. (1999). A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo, Hucitec. Texto recebido em 22/jun/2009 Texto aprovado em 6/ago/2009 570 Book CM v11_n22.indb 570 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 545-570, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:53 Planejamento numa sociedade em rede. Práticas de planejamento colaborativo no Brasil Planning in the network society. Collaborative practices of planning in Brazil Nilton Ricoy Torres Resumo Este trabalho aborda o planejamento como um pleito participativo onde todos os argumentos são discutidos através do debate democrático. Nessa formulação, o planejamento não é um cálculo estratégico, mas um diálogo interativo no qual os participantes constroem o consenso a partir do entendimento e da colaboração. O estudo analisa as experiências de movimentos sociais, planejadores e cidadãos diante de impasses e conflitos e, como estes, agindo de forma dialógica e cooperativa lidam com situações complexas para resolver problemas onde os poderes instituídos fracassaram. O trabalho discute a emergência das redes informais de planejamento e identifica seu papel no contexto da prática de planejamento brasileiro. Avalia-se em que medida estas redes indicam a emergência de um novo modo de governança urbana em gestação no século XXI? Abstract This work deals with planning a democratic enterprise in which all arguments are freely discussed through a genuine debate. In this formulation, planning is not a strategic calculation, but rather a collaborative dialogue where people seek to build consensus within a collaborative and learning scenario. The research focuses on the experience of social movements, citizens and planners, facing conflicts. Acting collaboratively, these agents seek to solve distressful problems in contexts where public intervention is absent or failed. The research highlights how the working of a network of agents operating informally and collaboratively can counteract power, by providing information, counter information and technical capacity. It identifies the emergence of “planning networks” and their roles in the context of Brazilian planning practice. Would these “webs” be an emerging mode of urban governance in the twentyfirst century? Palavras-chave: participação; redes; planejamento; colaboração; governança. Keywords: participation; networks; planning; collaboration; governance. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 571 17/3/2010 12:49:53 Nilton Ricoy Torres das políticas sociais ou de habitação recentes, A emergência de um novo planejamento levadas a cabo sob a iniciativa e tutela institucional do poder público – é frequente observar resultados tímidos, aquém do esperado, muitas Este trabalho aborda o que aqui se define co- vezes com pouca eficácia para alterar o qua- mo o despertar de um novo modo de fazer o dro de desenvolvimento caótico e desigual das planejamento caracterizado pela expansão e cidades. a multiplicação de práticas de organização, As redes informais de planejamento – mobilização e interação social, empreendidas formadas por setores sociais organizados da através da iniciativa informal de uma diversi- sociedade civil – constituem uma resposta a dade de agentes. Estas práticas emergem da essa realidade. Resultam, em geral, de situa- ação pontual de uma extensa rede de novos ções marcadas pela ausência sistemática do atores sociais: indivíduos, grupos ou organiza- Estado, pela descrença na capacidade de ação ções sem vinculações políticas, institucionais das estruturas institucionais do poder público ou corporativas que se articulam de forma não e pela persistência de realidades caracteriza- sistêmica a movimentos da população para a das pela existência de privacidades e carências resolução de problemas reais e imediatos. Estas crônicas. formas de ação em rede emergem muitas vezes Em geral, esta articulação em rede ocorre do vácuo deixado pela ausência do Estado e junto e a partir da mobilização da população tornam um contraponto às práticas formais de local e tende a se desfazer rapidamente ao planejamento. completar o ciclo da ação e ao atingir os ob- Nas práticas do planejamento formal não jetivos propostos. Esta forma de mobilização, são infrequentes situações em que as políticas ou rede, pode se entendida como estruturas de planejamento desenvolvidas através dos ca- temporárias, não formais, sem vínculos insti- nais institucionais tradicionais do Estado apre- tucionais, onde os membros se mobilizam em sentam problemas com relação à transparência torno de ações concretas tendo em vista lograr dos procedimentos técnicos e burocráticos uti- a resolução de um problema específico. Não há lizados na sua elaboração e/ou com relação à uma diretriz ou uma política prévia formulada eficiência dos processos utilizados na sua im- externamente ao contexto da ação, mas ao plantação. No primeiro caso, interesses domi- contrário, o plano de intervenção é construído nantes e com acessos privilegiados às esferas ao longo do processo de planejamento pelos de decisão buscam manipular informações e atuais participantes no próprio lócus da ação. recursos tendo em vista beneficiar interesses O motor de toda empreitada é a necessidade específicos. No segundo caso, não são inco- de agregar capacidade (valor, poder, conheci- muns os custos elevados e a morosidade asso- mento e informação) ao processo de ação com ciada aos processos de implantação das políti- o objetivo de alcançar a meta desejada. cas públicas. Até mesmo nas experiências mais O presente trabalho avalia essas formas democráticas vinculadas a procedimentos par- de interação social, focalizando em particular a ticipativos de planejamento – como nos casos informalidade e a diversidade de suas conexões, 572 Book CM v11_n22.indb 572 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:53 Planejamento numa sociedade em rede os processos colaborativos de sua operação e lidar com o tempo e com o espaço, o que, por os resultados obtidos tanto ao nível da subs- sua vez, implicaria o aparecimento de novas tância do planejamento quanto do processo circunstâncias, perspectivas e necessidades de planejar. O argumento central do texto é sociais. que essas formas de interação subvertem os Em resumo, a realidade contemporâ- modos tradicionais de fazer planejamento ao nea se caracterizaria pela mudança contínua, inserir práticas de participação colaborativa instigada por fluxos intensos e cada vez mais capazes de substituir a ação do Estado e obter rápidos de transformação das estruturas tec- resultados em situações adversas e de confli- nológicas e produtivas da sociedade impondo to onde a ação pública é omissa ou fracassou. por esse processo mudanças profundas e a O aparecimento desses novos movimentos recomposição contínua de todo tecido social. sociais sugere a emergência de um modo de As instituições da sociedade civil, forjadas nos governança pelo qual as atuais instituições de parâmetros da racionalidade técnica e do posi- planejamento que integram a estrutura formal tivismo universalista, não estariam mais aptas do Estado se tornam apenas mais um partici- para organizar e muito menos para governar pante na articulação cooperativa de agentes os conflitos gerados pelas as novas relações sociais para a formulação e implementação sociais e, por isso, sofrendo endêmicas crises de ações concretas sobre o território urbano de eficiência e legitimidade (Habermas, 1973). (Innes e Booherr, 2003). Essa nova realidade estaria, por um lado, pro- O texto busca avaliar e responder em que piciando o despertar de novas práticas de ação medida e sob que circunstâncias estas formas e fazer social, incitando desse modo o surgi- de ação/articulação da sociedade civil estaria mento de um novo tecido institucional a elas a indicar o surgimento de novas formas de vinculado e, por outro, inibindo a capacidade organização institucional adaptadas às novas de ação e provocando a obsolescência das ins- circunstancias da sociedade pós-industrial do tituições constituídas do mundo moderno. século XXI. A hipótese de trabalho deste ensaio é que as instituições modernas da sociedade industrial já não seriam mais capazes de organizar a produção social e governar as relações O texto sociais no contexto do mundo contemporâneo. Tal contexto, como afirmam vários autores Este texto analisa dois tipos de experimentos (Castells, 1996; Giddens,1990; Tourraine,1999), relacionados com a ação participativa no pla- apresenta uma realidade caracterizada pela nejamento. O primeiro aborda a experiência de complexidade das relações humanas, pela rapi- planejamento levada a cabo na cidade de São dez das transformações culturais e tecnológicas Paulo quando da elaboração do Plano Diretor e pela globalização dos mercados de produção Estratégico. A experiência foi uma tentativa e consumo. Esses fatores estariam, pois, a favo- de implementar um novo processo de consul- recer o surgimento de novas formas de relações ta democrática através de ampla participa- sociais caracterizadas por modos diferentes de ção do cidadão nos processos deliberativos Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 573 573 17/3/2010 12:49:53 Nilton Ricoy Torres de planejamento. O experimento apresenta pelos incluídos que participam dos processos diversas dificuldades de ordem prática, provoca de co-labor-ação participativa (Freire, 1978). desapontamento e significativa decepção en- O presente texto é dividido em três par- tre os participantes e acaba por não represen- tes. Na primeira abordam-se os pressupostos tar uma alternativa de inclusão social para os epistemológicos que sustentam as diversas que vivem à margem da sociedade. O segundo formas ou concepções de planejamento. Esses tipo de experiência participativa aborda um pressupostos são discutidos pela contraposição conjunto de atividades independentes e des- de duas concepções de razão. A primeira refe- conexas de grupos e movimentos sociais que re-se à razão técnico-científica aqui abordada se organizam em torno de ações concretas di- sob o termo instrumental e a segunda à razão rigidas à resolução de situações emergenciais simbólico-comunicativa entendida como razão ou de carência iminente. Esses experimentos prática. Sugere-se que a partir de cada concep- envolvem a participação informal e a integra- ção de razão se desenvolvem diferentes visões ção entre os grupos alvo e meio da ação. São acerca da origem e finalidade do planejamen- processos similares às experiências de pesqui- to, que tendem a se apresentar, pelo menos no sa-ação-participativa onde a prática social se nível teórico, como mutuamente excludentes. resume na construção do diálogo-ação. Esta Argumenta-se pela superação dessa dicotomia prática – permeada sempre pela comunica- por meio da adoção de uma epistemologia que ção franca e aberta – envolve mútua apren- incorpore no mesmo arcabouço metodológico dizagem e trocas de recursos, experiências e toda forma de conhecimento produzida pela informação entre os participantes com o obje- razão, onde estarão incluídos todos aqueles ge- tivo precípuo de superação do problema con- rados pela análise empírica da realidade como creto ou alteração/transformação da realidade aqueles derivados da avaliação hermenêutica objeto da ação. dos processos intersubjetivos comandados pelo Para evidenciar esses fenômenos, o texto diálogo (Yanov, 1995). aborda um conjunto de experimentos que se Na segunda parte avalia-se o caso de produziram em diversos municípios do Brasil, São Paulo. Essa experiência se caracteriza pela pela ação de movimentos sociais em parceria utilização deliberada do planejamento estraté- ou não com o poder público. Tais experiên- gico-instrumental fundamentado em concep- cias apontam para a capacidade e o poder de ções técnico-científicas de racionalidade e pela ação de tais empreendimentos participativos tentativa de incorporar a esta formulação ins- não apenas pela habilidade de produzir solu- tâncias da racionalidade comunicativa através ções para os problemas situados (resultan- da participação popular e de práticas de delibe- tes substantivas), mas também para incitar o ração coletiva. aprendizado, a conscientização, a emancipação, e o “empoderamento” dos grupos envolvidos (resultantes processuais), grupos estes formados não apenas pelos marginalizados, excluídos ou descartados da vida, mas também 574 Book CM v11_n22.indb 574 Na terceira parte, abordam-se casos da mobilização de grupos e/ou movimentos sociais em torno de situações concretas. O texto analisa as formas de ação e de mobilização utilizadas nessas práticas e os impactos criados Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:53 Planejamento numa sociedade em rede pelas mesmas para efetiva transformação da se obtém através do uso “eficiente” da ferra- realidade. Avalia-se a natureza dessas novas menta “adequada”. formas de práxis social e especula-se em que A razão instrumental utiliza o enfoque medida essas experiências podem significar a “meios-fins” como uma forma de ação racional. emergência de novas instituições de governan- Se os fins são a priori dados, o problema se re- 1 ça urbana. sume em encontrar os meios mais “apropriados” para atingi-los. Se “apropriado” implicar, por exemplo, eficiência de custos – custos Razão por instrumento ou por comunicação? menores para obtenção do mesmo benefício – qualquer ação se justifica, desde que aquilo que for considerado custo seja minimizado e o que for definido como benefício, maximizado. Este trabalho se desenvolve avaliando os ar- Nessa formulação de racionalidade, valores gumentos que sustentam duas concepções de morais, normas justas ou premissas éticas para racionalidade: a racionalidade técnica-instru- a seleção dos fins e dos meios estão fora de mental e a simbólico-comunicativa. A primeira questão. Meios e fins (mesmos que não isen- tem por base cálculos técnico-racionais e a se- tos de valor) se justificariam por si próprios. gunda o diálogo. A racionalidade instrumental Na verdade, por detrás de proposições “isen- aposta no controle social e utiliza instrumentos tas”, “neutras” e “racionais”, produzidas por técnicos e científicos para exercê-lo. Já a racio- sofisticados modelos técnico-instrumentais, se nalidade simbólica busca o entendimento pela escondem interesses e formulações morais de via da comunicação e do diálogo. Cada con- grupos específicos (Schön, 1983). cepção envolve uma visão de mundo, um mo- A racionalidade simbólica entende que do de questionamento e uma maneira de agir uma ação racional sensível não se desenvolve sobre a realidade (Bernstein, 1978; Habermas, a partir de uma ferramenta ou técnica de expli- 1970). exprimir cação, mas da nossa capacidade de interação, Na primeira concepção, questões de va- de fala e de entendimento mútuo. Enquanto lor ou significado estão ausentes do processo atores sociais, nós interagimos, aprendemos de racionalização. As verdades são introduzi- e ensinamos mutuamente, e isso pressupõe a das antes da formulação do problema com o mobilização de atenção, modelagem da per- objetivo precípuo de deixá-lo isento e livre de cepção, alteração de convicções, promoção de ambiguidades ou dupla significação. Questões entendimentos, produção de crenças e criação tais como quem racionaliza, quem se beneficia de expectativas. Essas interações sociais são deles e de quem são os problemas versados constituídas de atos comunicativos que, numa não são objeto do processo racionalização. Ra- relação comunicativa qualquer, nos permite cionalidade é vista como politicamente neutra fazer afirmações contextuais e substantivas e isenta de valor. O único compromisso é com (Habermas, 1984). Ao agir de forma comuni- a “melhor solução” – a proposta racional que cativa, as pessoas utilizam atos da fala que Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 575 575 17/3/2010 12:49:53 Nilton Ricoy Torres tornam a comunicação possível e que emergem é uma pessoa situada e vinculada ao seu mun- nas relações sociais cotidianas de argumentar, do social, histórico e cultural. Por isso a racio- sugerir, prometer, explicar, questionar, endossar, nalidade será sempre situada e, só poderá ser alertar, aconselhar e notificar que são proferi- derivada de um contexto particular, isto é, de das sempre em contextos sociais, históricos e um tempo e espaço específicos. De acordo com institucionais particulares (Forester,1993). Para Habermas (1984) soluções racionais para pro- que haja um entendimento mútuo no processo blemas que as pessoas confrontam não podem da comunicação, as pessoas devem se certificar ser genéricas, absolutas ou universais, como de que podem compreender, acreditar, confiar e se as pessoas fossem seres mecânicos e homo- concordar com o que é dito pelo interlocutor. gêneos. Pelo contrário, proposições racionais Habermas (1984) afirma que tais ações são aquelas que fazem sentido para as pessoas comunicativas nunca são uma garantia de su- e por isso mesmo carregam o potencial para cesso, pois resultam sempre do desempenho resolver e mudar situações não desejadas. prático e contingente. No entanto, ele sustenta Uma proposta de mudança só faz sentido se que é somente através da interação comuni- as pessoas assim o desejam e estão cônscias cativa que um mundo racional pode emergir. da mesma (Freire, 1987). Racionalidade é, fun- Isso pressupõe um diálogo livre onde o único damentalmente, um processo de mútuo enten- objetivo é obter o entendimento e garantir que dimento entre seres ativos e conscientes. Por a comunicação não coercitiva progrida. Diá- isso ela é sempre dependente de um contexto logo, aqui, pressupõe uma arena situada de social e cultural específico e vinculada a um ações comunicativas, onde qualquer afirma- momento histórico particular. ção prática proferida por qualquer ator possa Em resumo, a segunda concepção de se testada, criticada e rejeitada pelos outros. racionalidade tem por base a interação social É exatamente isto que faz da ação comunicati- e política que se desenvolve no cotidiano e a va uma ação social contingentemente racional comunicação prática voltada para dar sentido (Bernstein, 1978). à realidade, que dela resulta. Essa racionali- Nesse modelo, questões normativas ou dade prática lida com os valores simbólicos e valores não são assumidos ou formulados a com as questões morais de uma determinada priori, mas são partes essenciais e constitutivas do próprio processo de racionalização. Racionalidade, como um processo comunicativo e prático de agir, tem como foco questões tais como quem age, no interesse de quem, em que contexto, fazendo que tipo de escolhas, e em que condições e limitações, sujeitos a quais regras e normas (Forester, 1989). De acordo com o conceito da razão comunicativa, fatos e contextos não falam por si mesmos, mas são interpretados. O ator racional situação e lugar. Em lugar de variáveis ou cál- 576 Book CM v11_n22.indb 576 culos instrumentais, a razão simbólica se desenvolve através da interpretação do discurso e dos significados imanentes do contexto. Racionalidade prático-simbólica não existe em abstrato, fora do lugar ou do tempo, mas vincula-se a pessoas em lugares específicos, com antecedentes históricos e culturais definidos. Não há verdades universais, princípios gerais ou leis transcendentais, mas apenas verdades contingentes, situadas, históricas e que Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:53 Planejamento numa sociedade em rede afloram do entendimento fundamentado no diálogo, na razão prática e no compartilhar de significações – uma realização daqueles que Planejamento, poder e participação concedida participaram coletivamente dessa construção. O conhecimento científico – fruto de análises O planejamento estratégico de São Paulo tem técnicas e pesquisas empíricas – é sempre origem no discurso, no discurso da participa- bem-vindo ao mundo dos discursos, mas não ção democrática, da transparência e da in- de forma acrítica, como se fosse a única e de- clusão social. Esses são os elementos básicos finitiva palavra, mas como mais um discurso da retórica do governo popular que assume a que incorpora uma importante dimensão da tarefa de elaborar um plano diretor de acor- realidade à nossa reflexão (Habermas, 1984; do com os moldes estabelecidos pelo recém- Forester, 1989; Freire 1978). Nessa visão, ra- aprovado Estatuto da Cidade. No entanto, a zão é sempre produto do debate, do diálogo aberto e da reflexão crítica de pessoas livres e conscientes; enquanto que racionalização define-se como o processo muitas vezes agonístico, mas também colaborativo de deliberação coletiva, pelo qual se constrói um sentido comum às coisas que são relevantes para o grupo (Healey, 1993; Hillier, 2003). A seguir, aborda-se a experiência de planejamento participativo na cidade de São Paulo, onde a elaboração do Plano Diretor Estratégico da cidade apresentou diversos desafios operacionais e de comunicação durante o processo de implementação e que resultaram em inúmeras dificuldades para a legitimação do mesmo. A experiência não correspondeu às expectativas e acabou por não representar uma alternativa real para aqueles tradicionalmente excluídos na sociedade. A experiência demonstrou que, na prática, o processo de planejamento não foi realmente de participação aberta e democrática, uma vez que muitas das decisões consideradas estratégicas foram tomadas em gabinete, a priori ao debate com a população, em circunstâncias estranhas e alheias ao processo participativo. ideia de estratégia que vigora por detrás da concepção dominante de planejamento pressupõe a busca racional dos fins desejados pela via do cálculo estratégico e pela formulação dos meios e encaminhamentos adequados para alcançá-los. Nessa ideia de estratégia não estão evidente mente incluídos os significados do que seja adequado ou desejado, nem a definição sobre quem calcula ou escolhe os meios e nem sobre quem decide acerca do que é desejado. Na verdade, os pressupostos de tal planejamento não comportam tal discussão, visto que já estariam (ideologicamente) incorporados aos mesmos, as premissas estratégicas (racionais) do que é adequado e/ou desejado. Tampouco é necessário cogitar-se da possibilidade de ampliar envolvimentos no processo de decisão, visto ser este entendido como matéria própria das elites detentoras das diversas formas de poder, aí incluídas o poder do conhecimento e da racionalização técnica, capazes de justificar, pela via do instrumental científico, as decisões racionais. Na verdade, a elaboração do Plano Estratégico de São Paulo tem início em círculos fechados de consultas técnicas internas Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 577 577 17/3/2010 12:49:53 Nilton Ricoy Torres às instituições públicas. Diversas agências sua chance de participar no nível local quando municipais e estaduais de planejamento par- da elaboração dos chamados Planos Regionais. ticipam das conversações. Uma interminá- De acordo com as prescrições da Sempla, o pla- vel série de encontros, reuniões, discussões, nejamento deveria ocorrer em várias etapas, consultas, avaliações, reavaliações têm lugar das quais o Plano Estratégico era apenas parte durante os anos de 2001 e 2002, resultando de um processo mais amplo (Villaça, 2005). num impressionante volume de trabalhos e Como o planejamento abordado no Plano Dire- documentos confidenciais para discussão inter- tor tratava apenas de questões estratégicas e na. A tarefa em pauta é a formulação da agen- estruturais, que com implicações para a cidade da de planejamento, isto é, o recorte daquelas por inteiro, “não era conveniente ampliar a dis- questões que os tecnocratas acreditam serem cussão”, até porque “tal empreitada requer co- os problemas dos cidadãos e os temas funda- nhecimento especializado”. Tal argumentação mentais da cidade. A etapa seguinte é dirigida procurava assim justificar a elaboração do Pla- ao debate das questões selecionadas pela bu- no Diretor como processo confinado a técnicos rocracia, questões que direcionam a atenção e especialistas. Pessoas comuns argumentava- das pessoas para temas específicos, enquanto se, “não estariam preparadas para discutir o que outros são cuidadosamente negligenciados que é ou não adequado para cidade como um ou considerados apenas como não estratégi- todo”. “Elas nunca pensam a cidade na sua in- cos. Apesar dessas inconveniências, o executivo tegridade, pois se preocupam apenas com seu promulga, em 13 de setembro de 2002, o plano mundo imediato”. diretor de São Paulo sob a Lei 13.430. O Plano A lógica ou o modelo de “razão” por Diretor Estratégico, como vem a ser conhecido traz de toda empreitada era o de propiciar mais tarde, torna-se, no discurso das autorida- (ou permitir) a participação do cidadão após des municipais, uma das grandes realizações o planejamento da cidade pelos planejado- do povo de São Paulo. Após anos de frustradas res. Assim, pela retórica oficial, o cidadão tentativas, os cidadãos desfrutam de um novo comum teria que esperar sua “hora e vez” de plano –“o plano capaz de colocar São Paulo de participar. Mesmo assim, os técnicos da Pre- novo nos trilhos”. Os técnicos da Sempla – Se- feitura sustentam que, concluído o plano em cretaria Municipal de Planejamento do Municí- suas instâncias técnicas, as “pessoas” seriam pio de São Paulo, assim como os tecnocratas de chamadas a participar nas audiências públi- outras agências participantes, congratulam-se cas a serem instaladas antes da submissão do mutuamente, orgulhosos de seu trabalho – o texto final à Câmara Municipal. Dessa forma, processo de elaboração do plano mostra-se os planejadores reconciliam os sonhos de um “um real exercício de cidadania, onde todos processo “racional” de planejamento, ao faze- puderam contribuir e debater livremente”. rem o jogo da precedência – após decisões O fato de os cidadãos de São Paulo não técnicas vinculadas às estratégias da racio- terem tido voz no processo de elaboração do nalidade instrumental (poder?), permite-se a Plano não é uma questão importante para os participação. Com o confinamento da parti- planejadores da Sempla, pois a população teria cipação da população às instâncias inferiores 578 Book CM v11_n22.indb 578 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:53 Planejamento numa sociedade em rede do processo – após a definição das diretrizes torna uma questão de decisão discricionária. estratégicas de planejamento –, busca-se legi- Ao convidar seletivamente pessoas para par- timar o Plano e exibir suas propostas como um ticipar, os planejadores arbitraram o processo empreendimento democrático de participação em conformidade com suas Três aspectos são vitais nesses eventos. conveniências (Forester, 1989). Na verdade, Primeiro, a estratégia de planejamento que a participação nunca constituiu um elemen- emerge desse experimento é concebida como to central das práticas daquele experimento, um processo de cima para baixo, pelo qual a mas um instrumento subsidiário do processo atenção do grande público é dirigida para um de planejamento, quiçá um ritual necessário, conjunto de temas formulados em círculos fe- compulsório, essencial para emprestar alguma chados de deliberação técnica. Inexiste a par- legitimidade ao processo que se pretendia de- ticipação cidadã e não se contempla a possi- mocrático. bilidade de formular consultas ao público em Terceiro, a racionalidade técnica-instru- geral. Os temas do planejamento são coloca- mental se revela essencial para os tecnocratas dos (ou impostos?) como se fossem as únicas do planejamento. Ela “deve” ter precedência “verdades”, críveis e plausíveis a serem aceitas sobre qualquer outro processo de deliberação pela população. Oposição ou descrença, em e por isso deve sempre “dirigir a atenção” do relação às diretrizes propostas pelo Plano Dire- público para “o que importa” – as questões tor é tratada, pelos técnicos da administração, fundamentais. As audiências para as quais a como desconhecimento ou ignorância do gran- população é convidada seguem sempre uma de público: certamente é porque “leigos” não agenda previamente definida, sendo que nos podem entender os “verdadeiros” problemas casos das reuniões locais as discussões são por detrás da vida da cidade. Após o estabe- sempre restritas a tópicos pré-selecionados. lecimento das diretrizes estratégicas, os passos Qualquer pessoa pode discutir e debater de- seguintes se tornam apenas corolário – uma mocraticamente, concordar ou discordar, mas mera especificação de encaminhamentos no sempre circunscrito aos temas da “agenda”. nível local. A estratégia de primeiro definir a agenda/ Segundo, a ideia da participação popular diretrizes em círculos fechados para abri-los na concepção dos planejadores aparece muitas depois à participação caracteriza o experi- vezes de forma ambígua: a participação, às mento de São Paulo – um processo que re- vezes, surge como participação do cidadão co- duz a participação para atender às demandas mum, outras vezes como participação de gru- dominantes, suprime o diálogo para instituir pos organizados/instituições da sociedade civil. opções relacionadas ao “tecnicamente ade- Como nessa visão o planejamento se subdivide quado” e manipula e dirige a atenção do pú- em temas estratégico-estruturais de um lado e blico em assembleias burocráticas ou reuniões em questões locais de outro, a participação se ritualistas. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 579 579 17/3/2010 12:49:53 Nilton Ricoy Torres (Habermas 1984). O diálogo em um processo Experimentos informais de planejamento participativo: redes de colaboração de mútua colaboração é na verdade o primeiro passo da ação (Freire, 1978). Colaboração envolve também diversidade e interdependência entre os participantes. Planejamento colaborativo Na verdade todos os atores sociais interessados devem ter acesso ao processo de nego- O planejamento colaborativo não é apenas ciação e ter a liberdade para expressar seus mais um método para resolver problemas em interesses de forma livre e democrática. Essa situações de conflito ou de inépcia dos sistemas perspectiva faz das redes de planejamento are- tradicionais de planejamento, mas um modo de nas de diversidade onde diferentes visões e in- criar relações e de compartilhar conhecimentos teresses conflitantes são discutidos e avaliados. entre os participantes com o objetivo de criar A diversidade é uma condição necessária para capacidade para confrontar a situações proble- os processos de interação em rede na medida máticas. Tais conhecimentos incluem conheci- em que ela propicia a criatividade na busca de mentos especializados, conhecimentos das ne- soluções que atendam aos interesses em jogo. cessidades do outro, conhecimento das capa- Colaboração implica também a interdependên- cidades e das dinâmicas dos problemas na so- cia entre os participantes, uma vez que a par- ciedade. O planejamento colaborativo é apenas ticipação coletiva tendo em vista a criação de um modo de confrontar os problemas através cenários que atendam aos interesses diversos, de formas criativas e adaptativas de conduzir muitas vezes, só se viabiliza pela ação integra- a ação em direção a objetivos comuns em uma da e colaborativa de todos envolvidos. Enfim, era de informação e rápida transformação. a construção das soluções para os problemas Colaboração envolve, sobretudo, o diálo- comuns muitas vezes é inatingível de forma go entre participantes. Em situações de dispu- particular, isto é, pela ação individual, pois tas onde interesses conflitantes estão em jogo, muitas vezes a saída para o problema de um o diálogo é essencial para a busca da solução interessado envolve muitas vezes a resolução comum e compartilhada. O diálogo que se es- conjunta dos problemas interdependentes dos tabelece em cenários que envolvem a colabo- outros participantes. ração não pode ser apenas um processo formal Nos processos informais de colaboração, e ritualista de interação. É através do diálogo os participantes, além de desenvolverem um franco que as pessoas expressam suas necessi- entendimento acerca de suas interdependên- dades e seus sentimentos, ao invés de encobri- cias, tendem também a construir um relaciona- los em posições fechadas e excludentes. No mento de reciprocidade. Através dessa forma diálogo, o representante de um grupo deve ter de relacionamento, os participantes aprendem legitimidade para falar em nome de seus mem- que em seu próprio benefício devem não ape- bros e deve expor seu ponto de vista com sin- nas trabalhar em conjunto com os outros, mas ceridade, de forma compreensível e verdadeira também oferecer algo aos outros já que os 580 Book CM v11_n22.indb 580 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:53 Planejamento numa sociedade em rede outros possuem algo a lhe oferecer. A descober- lógicas de dominação. O processo participati- ta da reciprocidade mútua é uma das principais vo colaborativo de ação em rede tende a pro- características das experiências de participação blematizar contextos e as condições que são em redes de colaboração. É pela cooperação construídas ideologicamente como naturais recíproca que se incrementa o capital social e da realidade. Por esse processo, o participan- a capacidade do grupo em desenvolver ações/ te questiona as condições e busca as soluções soluções capazes de superar desafios muitas para problemas intratáveis fora do campo da vezes inatingíveis através das políticas formais dominação ideológica, iniciando dessa forma o de planejamento. processo de conscientização-ação voltado para Uma característica fundamental dos processos interativos desenvolvidos através a libertação e emancipação dos participantes (Freire, 1978) das redes de colaboração é o aprendizado que Colaboração, por isso mesmo, impli- permite o crescimento mútuo dos participantes. ca construção de dimensões que permitam Na verdade, a percepção de diferentes mun- a capacidade de criar soluções. Muitas das dos e realidades e o aprendizado acerca das experiências do trabalho cooperativo demons- circunstâncias que envolvem o problema real tram, como veremos nos exemplos da próxima confrontado tornam-se o fator preponderante seção, a capacidade de criar e inventar solu- que une e fortalece as relações entre os parti- ções inovadoras por parte do grupo. Liberar a cipantes. O processo de aprender em redes de capacidade criativa é uma tarefa que o grupo interação colaborativa não é uma experiência se impõe muitas vezes pela necessidade de dar individual, mas é, acima de tudo, um exercício respostas consistentes para situações aflitivas de aprendizado coletivo, pelo qual os partici- iminentes. A inovação não significa apenas pantes aprendem não apenas ao ouvirem ou ideias criativas para um problema específico, indagaram acerca das questões em pauta, mas mas, muitas vezes, representam novas ideias também ao interagirem entre si para construí- que se transformam em novas práticas e por rem uma percepção plausível sobre a situação vezes em novas formas de instituição. Estas que os envolve. Nesse processo, informações inovações, dificilmente, emergem do trabalho são incluídas, alternativas são avaliadas, ce- técnico-burocrático produzido através das ins- nários futuros imaginados, sempre através da tituições formais do planejamento, mas se tor- contribuição de cada um adicionando-se paula- nam possíveis unicamente através do capital tinamente peças ao quebra-cabeça. Nesse pro- social que se produz através da participação e cesso, os participantes aprendem não apenas colaboração dos vários atores. O aprendizado pelo que os outros dizem, mas também acerca através da “problematização” do objeto da de seu próprio papel no processo. ação, em geral, propicia formas criativas de O processo colaborativo aprender envolve também tomar consciência das relações pensar e modos inovadores de levar a cabo ações transformadoras. que obstruem a efetiva resolução de entraves A característica peculiar das experiências ou dificuldades impostos pelas relações ideo- de colaboração em rede é a capacidade de se Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 581 581 17/3/2010 12:49:53 Nilton Ricoy Torres adaptar e incorporar situações complexas aos uma interação, uma experiência de troca entre processos de busca de solução para problemas os participantes tendo em vista dar continui- adversos. Na verdade, a própria existência do dade à resolução da questão em pauta. Ela é, conflito e de atitudes agonísticas por parte em geral, levada a cabo através de uma rede dos participantes é que propicia o processo de diversificada de agentes, rede essa formada, entendimento e de construção de caminhos em geral, pela população interessada, por comuns. A cooperação não é necessariamente grupos de ação local e por movimentos sociais uma atitude natural dos processos de intera- empenhados em trabalhar em colaboração ção em rede, no entanto, o pressuposto de que tendo por objetivo a transformação do obje- a posição de uma parte possa ser exposta en- to da ação: a realidade em foco. Os objetos volve necessariamente a contrapartida de ex- da ação são quase sempre os problemas reais posição da posição contrária, o que acaba por confrontados pelas pessoas em situações es- implicar um modus vivendi pelo qual os par- pecíficas. ticipantes aprendem que viver juntos apesar Os casos a seguir enfocam os modos de de diferentes e a construir uma realidade on- articulação desses grupos. Essas articulações de os valores de cada grupo são preservados nunca são pré-definidas, mas, ao contrário, e respeitados dentro de um espaço comumal vão se constituindo ao longo do processo. Es- compartilhado. sas articulações envolvem conexões entre os agentes externos ao contexto e entre estes e a comunidade por meio de debates e ações que Redes de planejamento colaborativo visam a construção dos meios para confrontar os problemas vividos pela população. Tais gru- Esta seção discorre sobre experimentos de pos, em geral, não possuem vínculos políticos, planejamento nos quais a participação tem institucionais ou corporativos, não contam origem em relações diferentes daquelas que com qualquer suporte material ou financeiro, foram abordadas na exposição da experiência mas os constroem como parte do processo de Planejamento de São Paulo e cujos resul- de busca da solução para os problemas reais tados produzem efeitos práticos mais constru- e tangíveis confrontados pela comunidade. A tivos e consequentes. Nesses experimentos, a peculiaridade dessas experiências é o traba- participação não é um processo que se inicia lho coletivo, informal e colaborativo realizado fora do contexto da ação, de cima para bai- pelos participantes, que se articulam em redes xo, empreendido por instituições formais vin- de cooperação para agregar valor aos esforços culadas a alguma instância de poder (público mútuos. A característica recorrente do proces- ou privado), mas pelo contrário, tem origem so de colaboração em rede é a presença even- no mundo da vida, nos problemas reais, em tual do poder público como um coadjuvante do situações concretas e nos contextos da vida processo colaborativo. cotidiana. A participação nesses experimentos A história da administração local no não é uma formalidade a ser cumprida, mas Brasil é, em grande medida, uma história 582 Book CM v11_n22.indb 582 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:53 Planejamento numa sociedade em rede conservadora. Na maioria dos casos, as institui- Nessa linha de reflexão, várias questões ções locais apenas serviram aos interesses das de ordem ontológica e deontológica se colo- elites locais. Na verdade, essas elites criaram cam. Em que direções estes experimentos e as instituições e modelaram os procedimentos transformações sociais apontam? Que tipo de administrativos de forma a produzirem efeitos inovação eles produzem? Qual o projeto polí- que promovessem apenas os interesses daque- tico ou utopia por detrás da ação desses gru- les grupos, em geral em detrimento da maioria pos sociais? Milton Santos argumenta que as da população. Só recentemente, sob o impacto inovações por si mesmas não explicam nada, de governos populares e democráticos e de prá- da mesma forma que não indicam a direção do ticas de inclusão social e participação, esta rea- processo. É importante ter a consciência de que lidade começa a mudar. As primeiras experiên- processos democráticos de deliberação podem cias inovadoras de Lages e de Boa Esperança encobrir seus significados. Em muitos casos, eles nos anos setenta indicam a emergência de no- podem ajudar a construir novos espaços públi- vos atores sociais articulados em torno de or- cos e novos modos de lidar com os problemas ganizações populares locais tais como associa- à mão, mas podem também, no entanto, servir ções de bairro, organizações de trabalhadores outros interesses. Na verdade, interesses domi- rurais, movimentos sociais de defesa do direito nantes podem capturá-los e usá-los para iludir, à terra, à habitação e dos direitos humanos. cooptar e controlar o processo democrático. Na Essas primeiras experiências associativas e verdade, tais processos podem até se tornar um suas práticas participativas abrem o caminho instrumento de manipulação de sonhos e de para novos experimentos e, um importante esperanças e agir para desarticular qualquer processo de aprendizado social segue ao lon- possibilidade de uma ação social genuína. go dos anos recentes. Esses eventos provocam Os casos a seguir analisados têm como mudanças radicais na relação entre o poder pú- referência experimentos já ocorridos ou ainda blico e a sociedade, mudanças que indicam, por em andamento relacionados a aspectos da vida um lado, um poder crescente de mobilização e municipal ou urbana em diversas regiões bra- pressão da sociedade civil sobre os poderes ci- sileiras. Os experimentos que aqui abordamos vis instituídos e, por outro, uma capacidade de têm lugar nas diversas esferas do sistema de organização e de articulação da sociedade civil governança tradicional-conservador (federal, para assumir e empreender ações em contextos estadual, municipal) e envolvem a participa- ou situações onde o poder público é omisso ou ção de várias formas de associação popular fracassa. Essa nova realidade permite sugerir, articuladas de diferentes maneiras e em dife- como argúem alguns analistas (Innes e Booher, rentes circunstâncias. Em geral, tais experimen- 2003), que a gestão futura dos problemas ur- tos aparecem com mais frequência fora das banos passa pela construção de uma nova cul- instituições formais, mas podem também partir tura política, que envolveria necessariamente de iniciativas onde as instituições formais de o estabelecimento e a montagem de novas governança não participam de forma pró-ati- relações entre as instituições de representação va, mas como outro membro da rede de ação pública e o cidadão. colaborativa. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 583 583 17/3/2010 12:49:53 Nilton Ricoy Torres A próxima seção descreve algumas experiências de planejamento participativo. Estas experiências diferem em escopo, objetivo e resultado daquelas abordadas no início deste trabalho. Elas não têm origem em algum programa ou política governamental elaborada a partir de instituições formais de governança, mas em um sem-número de pequenas iniciativas informais e despretensiosas que são levadas a cabo por comunidades locais que buscam a solução de problemas concretos e reais. Uma das características dessas experiências é o trabalho participativo envolvendo a colaboração entre os participantes ao longo de todo processo de interação. Nessas redes, os agentes se interagem colaborativamente, trocam informações, tomam decisões e empreendem ações sem requerer qualquer regulação formal ou intermediação burocrática por parte da autoridade instituída. Experimentos informais de ação participativa local2 Experimento de Hulha Negra Hulha Negra é uma pequena comunidade situada no estado de Rio Grande do Sul, onde uma importante experiência de trabalho colaborativo tem lugar. Dois Conselhos Municipais operam separadamente sobre duas questões que afligiam a comunidade local: a baixa qualidade da merenda escolar e a depressão da economia do município. O Conselho de Desenvolvimento Econômico busca alternativas para a economia local. A cidade, que tem sua economia com base na agropecuária, era antes fornecedora de produtos agrícolas para uma indústria de laticínios local. Ao mudar-se do município, a indústria deixa os produtores rurais sem alternativa para comercializar a produção local e a O segundo traço dessa forma de participação é o diálogo democrático encravado no economia do município entra em depressão. O Conselho de Educação busca melhorar a me- processo de construção (de baixo para cima) renda escolar, considerada inadequada e por de agendas e de mecanismos de ação. Nada é isso uma das razões do baixo desempenho dos pré-concebido, assumido ou imposto; ao con- alunos nas escolas do município. Alguns pro- trário, é discutido, avaliado, entendido e acor- dutores rurais participavam de ambos os Con- dado coletivamente. A terceira característica selhos: de um lado buscando solução para a desse tipo de ação é a capacidade de inova- merenda de seus filhos e, de outro, alternativas ção e superação dos agentes na formulação e para a economia local. O Conselho de Econo- produção de meios para obtenção dos fins pro- mia inicialmente pensa que a única solução pa- postos. De fato, as decisões dentro do proces- ra reativar a economia e melhorar a renda local so participativo não são fruto do pensamento é aumentar venda dos produtos locais fora do homogêneo e de conceitos universais, mas da município. Descobrem mais tarde que a Prefei- colaboração que exige um diálogo autêntico tura usa os recursos municipais para comprar entre os diferentes participantes, para constru- a merenda escolar de fornecedores localizados ção de soluções extraídas do consenso que se fora do município. Através do diálogo e da co- produz na diversidade de opiniões, de visões e laboração entre a população, os dois conselhos de interesses dos participantes. e a Prefeitura, mudanças foram introduzidas 584 Book CM v11_n22.indb 584 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:53 Planejamento numa sociedade em rede nas políticas da administração municipal: os seriam os novos participantes do programa no produtores rurais organizaram uma cooperati- plantio da safra seguinte. Após a colheita e dis- va e começaram a fornecer as merendas para tribuição da produção, o excedente é vendido e as escolas municipais. Esta prática permite, por distribuído entre os participantes. Durante to- um lado, que os recursos públicos permaneçam do o processo, a Associação dos ex-alunos, em no próprio município e estimule a economia conexão com a Universidade, promove progra- local e, por outro, melhorias consideráveis são mas de educação para a os membros da rede introduzidas na qualidade da merenda escolar. de colaboração. Ao longo de sua implementação, o programa Hortas Comunitárias atinge vários obje- Programa Horta Comunitária tivos e seu sucesso corre por todo país. Um dos principais objetivos alcançados pelo programa Em 1995, a cidade de São Bernardo do Cam- é sua habilidade de envolver diretamente a po, no estado de São Paulo, inicia um programa população objeto da ação. Além de contribuir chamado Horta Comunitária, com o objetivo de para reduzir os problemas relacionados com a elevar a qualidade da alimentação consumida alimentação da população de baixa renda e pela população de baixa renda. O programa é criar alternativas para elevar a renda dessas apoiado por diversos agentes colaboradores: famílias pelo trabalho direto dos participantes, a administração local, a associação dos ex- o programa contribui para elevar a autoestima alunos da Universidade Metodista de São Ber- daquela população e para o aprendizado de nardo, empresas locais, cidadãos interessados e sua capacidade de ação social. a população alvo. Além de mitigar o problema Este é um programa de colaboração so- de alimentação da população pobre, o pro- cial relativamente barato. A administração mu- grama busca aumentar a renda familiar dessa nicipal ganha por aliviar a pobreza no municí- população, pois cada família participante deve pio, as empresas privadas ganham ao melhorar trabalhar em colaboração com as outras no sua imagem na cidade, a Universidade e a As- programa. A administração local e as empresas sociação de Ex-alunos ganham ao fornecerem privadas fornecem a terra para o cultivo das uma oportunidade aos estudantes e ex-alunos hortas; a população-alvo (de baixa-renda) tra- da Universidade de aplicarem seus conheci- balha a terra sob a supervisão de um professor mentos e ganha enfim, a população carente da Universidade, enquanto a Associação dos ao melhorar sua alimentação e elevar sua ren- Ex-Alunos fornece o suporte técnico e legal as- da. Este é um notável exemplo de uma rede sim como o gerenciamento de todo o projeto. de participação. Não há líderes nem liderança, Inicialmente, todos os membros discutem apenas a vontade de agir em colaboração por como distribuir a terra entre os participantes, parte dos vários agentes. Cada um faz uso das como preparar a terra para o cultivo e como informações e recursos de que dispõe e juntos, realizar o trabalho de colheita. Uma vez culti- em cooperação, realizam uma ação simples e vada a terra, novas reuniões são feitas para de- localizada, provavelmente impossível de ser cidir sobre como compartilhar a safra e quais realizada pelos participantes separadamente. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 585 585 17/3/2010 12:49:53 Nilton Ricoy Torres de soluções para uma situação considerada O experimento de Monsenhor Tabosa aflitiva. Terceiro, a comunidade foi capaz de Monsenhor Tabosa é um pequeno município do estado do Ceará, uma região reconhecidamente pobre do país. Por iniciativa da população local, tem início o Programa Arco-Íris, para melhoria da qualidade de ensino local. Trata-se de uma interessante rede de colaboração entre a prefeitura local, o Conselho de Segurança do Bairro Nossa Senhora de Fátima (uma associação de moradores local) e a Fundação Abrinq. O principal objetivo do programa é melhorar a qualidade da educação dos estudantes do ciclo primário. Após várias discussões entre os participantes, fica decidido que o programa deveria construir importantes conexões não apenas com as instituições locais, mas também com organizações em nível nacional. A articulação desses grupos em torno da questão posta pela comunidade (e não vice-versa) promoveu a necessidade de entendimento entre os participantes, tornado possível pelo diálogo franco e pela vontade de cooperar. É evidente que o produto dessa ação social não se resume apenas à resolução do problema imediato, mas na criação de contextos e repertórios, no âmbito das comunidades envolvidas, para ações mais sólidas e decisivas no futuro. melhorar a capacitação do professor a fim de elevar a qualidade do ensino e incrementar o desempenho escolar dos alunos. Cursos de reciclagem pedagógica em diversos tópicos (arte, Novas instituições de planejamento história, ética, cidadania, etc.) são implementados com o objetivo de persuadir o professor Estas formas de planejamento e de ação pú- a revisar suas velhas práticas educacionais. Os blica vêm se tornando cada vez mais comuns principais custos do programa são assumidos e têm se estendido por vários setores da admi- pela Abrinq e a prefeitura arca com os custos nistração pública no Brasil, o que nos faz acre- de viagem e alimentação. Alguns anos mais ditar que elas possam ser o embrião das novas tarde, a municipalidade de Monsenhor Tabosa instituições de governança urbana. Essas no- apresenta uma dramática mudança no padrão vas formas de ação possuem em comum certas da educação municipal e uma notável transfor- características determinantes: (1) elas apresen- mação no desempenho escolar das crianças, tam uma forma de ação que envolve o trabalho como demonstrado pela redução dos índices de coletivo e a cooperação (co-labor-ação) entre reprovação e evasão escolar. os participantes, (2) elas envolvem atores com Essa experiência de participação cola- diferentes habilidades e com diferentes interes- borativa apresenta importantes aspectos. Pri- ses, (3) elas são em grande medida autossufi- meiro, o processo começa em uma pequena cientes e autogeridas, e finalmente (4) elas são cidade, longe dos grandes centos urbanos e sempre moldadas e construídas em função de de informação. Segundo, a iniciativa tem iní- cada contexto particular, ou seja, o lócus da cio fora das estruturas do governo formal, mas ação. Essas formas de planejamento utilizam na ação de uma comunidade local na busca apenas a capacidade de seus participantes e 586 Book CM v11_n22.indb 586 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:53 Planejamento numa sociedade em rede buscam sempre tirar proveito da força existen- Em lugar de procedimentos burocratizados, te no próprio contexto da ação. Esses proces- rea tivos e inflexíveis, as novas instituições sos são autônomos, informais e não dependem serão de ação pró-ativas e deverão ter a ca- do poder público, mas possuem extrema habi- pacidade para se adaptar a novas situações lidade para articular e envolver as instituições através da criatividade e da inovação. Esse formais de tomada de decisão. novo contexto será constituído por interações A independência dessas novas institui- permanentes entre os participantes e estas in- ções vis-à-vis as instituições convencionais do teirações se desenvolverão através de relações Estado significa que a implementação de polí- horizontais e de poucas relações hierárquicas, ticas públicas é sempre problemática. No caso enquanto que as medidas de desempenho não de Hulha Negra, os participantes organizados deverão ser mais estabelecidas com base em em Conselhos Municipais foram capazes de padrões, mas em termos de resultados efetiva- construir uma nova política de desenvolvimen- mente obtidos. to e para a melhoria da merenda escolar e, na As novas estruturas institucionais deve- sequência, influenciar as decisões dos órgãos rão aceitar a mudança e a evolução como pro- municipais. Embora alguns integrantes dos con- cessos normais. Deverão premiar a experimen- selhos também fossem membros da prefeitura tação e as novas ideias e considerar a possibili- local, os participantes mantiveram sempre uma dade de soluções que explorem caminhos alter- autonomia em relação ao poder local e foram nativos e produzam resultados de longo prazo. capazes de desenvolver uma proposta que o Estas novas instituições deverão entender que poder público foi incapaz de conceber por si só. os processos coletivos de decisão existem em Toda ação foi possível porque os participantes contextos complexos, incertos e controversos puderam aprender entre si e perceber as opor- e por isso devem promover o desenvolvimento tunidades existentes no contexto da ação. de uma inteligência coletiva, compartilhada e Esses experimentos demonstram que a adaptativa que tenha a capacidade de confron- relação entre os processos informais de cola- tar e conviver com as imprevisibilidades e as boração em rede e as estruturas tradicionais contínuas mutações da realidade. de planejamento deverá continuar existindo no O mais importante de todas essas cons- futuro próximo, mas para que as novas formas tatações é que, apesar de todos os obstáculos, participativas se consolidem será necessária as práticas de ação colaborativa têm se tornado uma mudança mais profunda nas práticas do cada vez mais recorrentes e se expandido por planejamento tradicional. A institucionaliza- vários instâncias e contextos do planejamento. ção das práticas de colaboração deverá, por Apesar de coexistirem de forma problemática um lado, envolver a racionalização dos atuais com outras formas de fazer o planejamento, procedi mentos burocráticos para eliminar um novo tipo de instituição parece emergir ineficiências e possibilitar mais desenvoltura dessas práticas. da ação do estado e, por outro, promover a Elas se apresentam de várias formas e ca- descentralização do poder com a consequente racterísticas, mas têm em comum a quebra do redução das estruturas e níveis hierárquicos. modelo hierárquico e a eliminação das rotinas Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 587 587 17/3/2010 12:49:53 Nilton Ricoy Torres e dos padrões burocráticos. Diferentemente das so às arenas e aos processos de deliberação instituições convencionais, elas se manifestam coletiva. Por esta razão, os movimentos e as através de práticas que buscam sempre a tro- associações da sociedade civil organizada já ca e a interação, o aprendizado e a adaptação, levam incorporadas a sua práxis, uma forte ca- a criatividade e a cooperação (Healey, 2003). pacidade de união, de compartilhamento e de Para se poder perceber a emergência desse colaboração; uma história de organização em fenômeno como uma instituição emergente redes de solidariedade para a comunhão de no mundo contemporâneo, é necessário, antes ações e o fortalecimento mútuo (Freire, 1978). de tudo, desenvolver uma nova mentalidade/ Esses movimentos são portadores de uma no- entendimento acerca do significado de insti- va ética social: a ética do respeito, da frater- tuição, diferente daquele que tradicionalmente nidade, da justiça e da liberdade – uma ética identifica instituição com estruturas hierarqui- que busca a igualdade de oportunidades num zadas e organizações sólidas e inflexíveis. Ao mundo de diversidades e diferenças. contrário, as novas instituições de planejamen- Essas experiências de ação social par- to não se parecem a “aparelhos” mecânicos ticipativa não aparecem em qualquer lugar. ou a “organismos” do corpo humano, mas se Elas são produto de conjunturas específicas, assemelham mais com a constituição de uma de atores políticos reais e da ação tangível de “nuvem” composta por uma grande quantida- grupos sociais internos e externos ao contexto de de moléculas de água condensadas no ar, da ação. Muitas vezes, as experiências resul- coexistindo para um fim precípuo, sempre em tam de ações informais, isoladas; outras vezes, processo de formação, mas em continua trans- podem ser vistas como parte de um movimen- formação de sua forma e posição. to maior de transformação das instituições da sociedade civil. Em grande parte dos casos, a própria decadência das forças políticas e das instituições de governança conservadoras, in- Observações finais capazes de construir um pacto político, abre o caminho para novos discursos e para a emer- A história das lutas sociais no Brasil é uma gência de novos atores políticos. Nesses con- história de lutas pela cidadania e pela justiça textos, novos agentes sociais emergem como social que se resumem na busca da democra- atores políticos constituindo movimentos e tização da esfera pública. No caso do planeja- práticas que irão semear novas formas de re- mento, essa democratização passa pelo aces- gulação social e política. Nilton Ricoy Torres Arquiteto e urbanista pela Universidade Federal de Minas Gerais; mestre e doutor em planejamento urbano pela University of Pennsylvania; doutor em arquitetura pela Universidad Pollitecnica Madrid. Professor-doutor do Departamento de Tecnologia da Arquitetura e Urbanismo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (São Paulo, Brasil). [email protected] 588 Book CM v11_n22.indb 588 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:54 Planejamento numa sociedade em rede Notas (1) A palavra “governança” neste texto exprime: os processos pelos quais as sociedades e os grupos sociais dentro delas se articulam para administrar seus interesses coletivos (Healey, 2003). (2) Cf. Dowbor, 2002. Referências BERNSTEIN, R. J. (1978). The restructuring of social and political theory. Philadelphia, University of Pennsylvania Press. BRAND, R. e GAFFIKIN, F. (2007). Collaborative planning in an uncollaborative world. Planning Theory. Londres, v. 6 n. 2, pp. 282 - 313. CASTELLS, M. (1996). Rise of network society. Berkeley, University of California Press. ______ (1999). O poder da identidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra. CARDOSO, F. H. 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Inclusão ou exclusão: A participação da comunidade local nos processos de planejamento e descentralização administrativa em São Paulo. XI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL , ANPUR. Anais. Salvador Brasil. 590 Book CM v11_n22.indb 590 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:54 Planejamento numa sociedade em rede SCHÖN, D. (1983). The reflective practitioner: how professionals think in action. Nova York, Basic Books. VILLAÇA, F. (2005). As Ilusões do Plano Diretor. Mimeo YANOV, D. (1995). Practices of policy interpretation. Policy Sciences. Springer, v. 28, n. 2. pp. 111-126 Texto recebido em 10/maio/2009 Texto aprovado em 19/jul/2009 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 571-591, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 591 591 17/3/2010 12:49:54 Book CM v11_n22.indb 592 17/3/2010 12:49:54 Gestão metropolitana e gerenciamento integrado dos recursos hídricos Metropolitan management and integrated management of water resources Paulo Roberto Ferreira Carneiro Ana Lúcia de Paiva Britto Resumo O artigo trata da necessidade de integração do planejamento do uso do solo à gestão dos recursos hídricos, buscando estabelecer relações entre as formas de uso e ocupação do solo urbano e os problemas envolvendo as inundações urbanas. Que novos paradigmas de planejamento e gestão poderão emergir da articulação da política nacional de recursos hídricos com os novos instrumentos de ordenamento do uso do solo, de gestão consorciada de entes públicos e de saneamento básico, recentemente aprovadas? O artigo traz essas questões para o debate, propondo alternativas que conduzam à gestão integrada em bacias urbanas. Abstract The article deals with the need to integrate land use planning into water resource management, seeking to establish relations between the forms of use and occupation of urban land and problems involving urban fl oods. What new planning and management paradigms may emerge from the articulation of the national water resources policy with the new tools of land use planning, consortium management of public entities and basic sanitation, which have been recently approved? The article brings these issues to the debate by proposing alternatives that lead to integrated management in urban basins. Palavras-chave: gestão metropolitana; gestão de recursos hídricos; planejamento do uso do solo; bacias urbanas; controle de inundações. Keywords: metropolitan management; water resources management; land use planning; urban water basins; flood control. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 593 17/3/2010 12:49:54 Paulo Roberto Ferreira Carneiro e Ana Lúcia de Paiva Britto pelos executivos estaduais, por sua vez indica- Introdução dos pelo governo federal. Os executivos estaduais presidiam os Conselhos Deliberativos das Uma das questões centrais no campo do pla- RMs e indicavam a maioria dos seus membros. nejamento urbano hoje é a necessidade de A participação dos municípios se dava no âm- um ordenamento jurídico-institucional que dê bito do Conselho Consultivo, que não possuía expressão adequada ao ordenamento urbano poder decisório. territorial e socioeconômico que caracteriza as Ao analisar a questão da gestão metro- regiões metropolitanas. Nessa realidade urba- politana, Azevedo e Guia (2004) situam três na, um conjunto de questões se colocam em fases distintas: uma primeira fase compreen- escala supramunicipal, exigindo uma aborda- dida entre o momento de criação das Regiões gem integrada: habitação e segregação socio- Metropolitanas e a Constituição de 1988, ca- espacial, transportes urbanos, saneamento e racterizada, segundo os autores, pela centrali- outros aspectos ambientais e gestão integrada zação da regulação e financiamento da política de recursos hídricos. da União, onde, apesar do componente auto- As primeiras nove Regiões Metropolita- ritário do modelo, havia uma estrutura insti- nas (RMs) do país foram criadas em 1973, atra- tucional e uma disponibilidade de recursos fi- vés da Lei Complementar Federal n. 14 (Belém, nanceiros que permitiram a implementação de Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, vários projetos metropolitanos. Já Rolnik e So- Recife, Rio de Janeiro,1 Salvador e São Paulo). A mekh (2004) discutem a efetiva capacidade de definição dessas áreas foi baseada no tamanho planejamento das instâncias metropolitanas, da população da aglomeração, na extensão da afirmando que os projetos desenvolvidos eram área urbanizada, na integração econômica e definidos pelas companhias estaduais respon- social do território e na complexidade das fun- sáveis pelos setores/serviços (notadamente no ções desempenhadas. Essas RMs são resultado setor de saneamento), sendo fraco o papel dos do projeto político do regime militar, que, a órgãos de planejamento metropolitano, como partir de suas estratégias de desenvolvimento a Fundrem, no Rio de Janeiro e a Emplasa, em econômico, investiu em um modelo padroniza- São Paulo. Além disso, afirmam as autoras, a do de políticas regulatórias e de financiamento crise fiscal que marcou a década de 80, com a centralizado em nível federal. A participação consequente carência de recursos e diminuição dos municípios nas instâncias de gestão me- de investimentos públicos federais enfraque- tropolitana era compulsória. O poder no âm- ceu o papel das entidades metropolitanas. bito das regiões metropolitanas era exercido A segunda fase é identificada por Aze- essencialmente pela União, através de órgãos vedo e Guia (2004) como marcada pelo “neo- federais que atuavam no âmbito urbano, como localismo” e se inicia com a Constituição de o BNH, que estabeleciam diretrizes de planeja- 1988. Nesta fase, as reivindicações pela auto- mento e definiam linhas de investimento de re- nomia municipal, cerceadas durantes o período cursos públicos nas regiões metropolitanas. As autoritário, vão ganhar espaço no contexto da estruturas de gestão criadas eram controladas redemocratização e encontrar sua expressão 594 Book CM v11_n22.indb 594 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:54 Gestão metropolitana e gerenciamento integrado dos recursos hídricos na Constituição de 1988. Se a visão neoloca- administrativa não permite uma visão sistêmica lista traz uma perspectiva de democratização do território no qual está inserida. Por sua vez, de políticas públicas, ela apresenta uma outra a ausência de uma definição clara da natureza face, que é caracterizada por uma resistência e das funções dos governos locais, em geral, li- explícita à questão metropolitana, que passa gadas às tarefas tradicionais de administração a ser identificada com as políticas de cunho e fiscalização territorial e prestação de alguns autoritário e com o esvaziamento do poder serviços locais e o fato de a maioria dos mu- municipal produzido pelo regime militar. Na nicípios terem reduzida autonomia orçamentá- Constituição de 1988, essa visão municipalista ria, tendo em vista que dependem fortemente ganhou espaço, o que implicou um significa- de transferências financeiras dos outros níveis tivo aumento da receita fiscal dos municípios de governo, dificulta ou até mesmo inviabiliza e também uma ampliação das competências uma participação mais efetiva na gestão das municipais. águas. Por outro lado, na Constituição, a ques- No caso específico da gestão de recursos tão metropolitana perdeu espaço, tendo um hídricos, a participação municipal em organis- tratamento genérico. A criação de regiões me- mos de bacia tem sido a principal, se não a úni- tropolitanas passa a ser responsabilidade dos ca, forma de interação com outros atores públi- estados (artigo 25, que atribui aos estados a cos e privados relacionados com a água. competência para instituir regiões metropoli- Muitos fatores dificultam a atuação do tanas, aglomerações urbanas e microrregiões município na gestão da água, sendo o princi- pelo agrupamento de municípios limítrofes). pal a impossibilidade legal, por determinação Porém, segundo análise de Azevedo e Guia, as constitucional, de os municípios gerenciarem constituições estaduais também trataram o te- diretamente os recursos hídricos contidos em ma de forma genérica (2000). seus territórios, a não ser por repasses de algu- O processo de descentralização que marca as políticas públicas a partir da década de mas atribuições através de convênios de cooperação com estados ou a união. 1990 traz uma tendência à ampliação do papel Outro aspecto é que a natureza essen- das esferas públicas locais em relação à gestão cialmente setorial dos interesses dos governos do meio ambiente, não obstante esse papel se locais faz com que atuem mais como usuários restrinja às funções que não implicam atos de dos recursos hídricos do que como gestores autoridade (monitoramento, recolhimento de imparciais desses recursos (ibid.). A debilidade dados) ou às funções que, embora impliquem e falta de hierarquia institucional dos governos atos de autoridade (funções substantivas), locais ante os atores com interesse no recur- estão circunscritas aos níveis inferiores de rele- so traria maior vulnerabilidade e possibilidade vância e autonomia administrativa (Jouravlev, de captura e politização na gestão das águas 2003). (ibid.). A despeito de a esfera administrativa Esses aspectos se agravam em áreas me- do município ser a mais próxima das realida- tropolitanas onde as administrações municipais des sociais, sua escala de atuação político- possuem, muitas vezes, interesses e prioridades Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 595 595 17/3/2010 12:49:54 Paulo Roberto Ferreira Carneiro e Ana Lúcia de Paiva Britto antagônicas, criando ambientes de dissenso com pouco espaço para a cooperação. Segundo Peixoto (2006), a história do processo de produção do espaço urbano e do Não obstante existam restrições à par- seu impacto sobre os recursos naturais e a ticipação dos municípios como gestores dire- qualidade dos assentamentos humanos evi- tos dos recursos hídricos, não há dúvida em dencia as dificuldades de articulação entre a relação à importância dos governos locais no temática ambiental e urbana. Ao mesmo tem- planejamento e ordenamento do território e as po, porém, observa-se a convergência dessas consequências dessa gestão na conservação temáticas no sentido da sustentabilidade, ex- dos recursos hídricos. É atribuição do municí- pressa na necessidade do planejamento e da pio a elaboração, aprovação e fiscalização de gestão urbana que podem evitar ou minimizar instrumentos relacionados com o ordenamen- os impactos negativos da urbanização. to territorial, tais como os planos diretores, o No entanto, o que se observa no país é zoneamento, o parcelamento do solo e o de- a desarticulação entre os instrumentos de ge- senvolvimento de programas habitacionais, a renciamento dos recursos hídricos e os de pla- delimitação de zonas industriais, urbanas e de nejamento do uso do solo, e entre esses e o preservação ambiental, os planos e sistemas planejamento do saneamento, na maior parte de transporte urbanos. Também é atribuição das vezes delegado à Companhias Estaduais municipal, segundo a Lei 11.445, de 2007, a de Saneamento. Segundo Tucci (2004), a maior formulação dos planos municipais de sanea- dificuldade para a implementação do planeja- mento básico, que incluem abastecimento de mento integrado decorre da limitada capacida- água, esgotamento sanitário, coleta e dis- de institucional dos municípios para enfrentar posição final de resíduos sólidos e drenagem problemas complexos e interdisciplinares e a pluvial. Todas essas funções municipais têm forma setorial como a gestão municipal é orga- impacto considerável nos recursos hídricos, nizada. Por outro lado, é importante reconhe- principalmente em bacias hidrográficas predo- cer a falta de legitimidade do planejamento e minantemente urbanas. da legislação urbanística nas cidades brasilei- Um elemento importante na defesa da competência específica do município diz res- ras, marcadas por forte grau de informalidade e mesmo de ilegalidade na ocupação do solo. peito ao fato de ser de sua alçada o planeja- Aqui, no entanto, cabe ressaltar as di- mento e controle do uso e ocupação do solo, ferenças entre os municípios: enquanto nas atribuição essa recentemente reforçada com a grandes cidades, principalmente nos núcleos aprovação do Estatuto da Cidade. Nesse sen- metropolitanos, encontramos administrações tido, a possibilidade de construção de uma eficientes, com boa capacidade de acesso à in- gestão integrada e sustentável dos recursos formação e com uma legislação relativamente hídricos deve necessariamente passar por uma moderna, em outras cidades, destacando-se articulação clara entre as diretrizes, objetivos e os municípios periféricos em áreas metropo- metas dos planos de recursos hídricos, dos pla- litanas, verifica-se uma total desatualização nos reguladores do uso do solo e dos planos da legislação agravada pela ausência de in- municipais de saneamento básico. formações confiáveis sobre os processos de 596 Book CM v11_n22.indb 596 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:54 Gestão metropolitana e gerenciamento integrado dos recursos hídricos estruturação urbana e mesmo o pequeno nú- das principais conferências internacionais que mero e a baixa qualificação do corpo técnico trataram da água. Essas conferências contri- do setor (IBGE, 2002). buíram substantivamente para a inclusão do Essa desigualdade intermunicipal apresenta-se como um dos grandes obstáculos para conceito de desenvolvimento e uso da água em bases sustentáveis na agenda das nações. a maior efetividade das estruturas de gestão No entanto, como enfatizam vários au- dos recursos hídricos e para a cooperação entre tores (Dourojeanni e Jouravelev, 2001; Cepal, as instâncias governamentais em escala metro- 1999; Silva, 2002), a gestão integrada dos re- politana, temas que abordamos neste trabalho. cursos hídricos requer a mudança de paradigmas no planejamento, tanto na esfera pública como na privada. A gestão integrada dos recursos hídricos: interfaces com as políticas setoriais e a gestão do território Segundo Silva e Porto (2003), o sistema institucional de planejamento e gestão dos recursos hídricos enfrenta quatro ordens de desafios de integração, a saber: • integração entre sistemas/atividades dire- tamente relacionados ao uso da água na área Com a aprovação, no ano de 1997, da Lei da bacia hidrográfica, em particular o abaste- 9.433, o país passou a contar com um dos mais cimento público, a depuração de águas servi- completos marcos regulatórios voltados para o das, o controle de inundações, a irrigação, o gerenciamento de recursos hídricos no cenário uso industrial, o uso energético ou ainda siste- internacional. O Sistema Nacional de Gerencia- mas com impacto direto sobre os mananciais, mento de Recursos Hídricos tem por finalidade como o de resíduos sólidos, tendo em vista a coordenar a gestão dos recursos hídricos do otimização de aproveitamentos múltiplos sob país buscando integrá-la aos outros setores a perspectiva de uma gestão conjunta de qua- da economia; arbitrar administrativamente os lidade e quantidade; conflitos relacionados à água; implementar a • integração territorial/jurisdicional com ins- Política Nacional de Recursos Hídricos; plane- tâncias de planejamento e gestão urbana – os jar, regular e controlar o uso, a preservação e a municípios e o sistema de planejamento me- recuperação dos recursos hídricos; cobrar pelo tropolitano – tendo em vista a aplicação de uso da água, dentre outros. A Lei estabelece medidas preventivas em relação ao processo que a bacia hidrográfica é a unidade territorial de urbanização, evitando os agravamentos de para a implementação da Política Nacional de solicitação sobre quantidades e qualidade dos Recursos Hídricos e para as ações do Siste- recursos existentes, inclusive ocorrências de ma Nacional de Gerenciamento dos Recursos inundações; Hídricos. • articulação reguladora com sistemas se- Os princípios adotados pela lei das águas toriais não diretamente usuários dos recursos (Lei 9.433) estão adequados às declarações hídricos – como habitação e transporte urbano – Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 597 597 17/3/2010 12:49:54 Paulo Roberto Ferreira Carneiro e Ana Lúcia de Paiva Britto tendo em vista a criação de alternativas reais O setor de energia elétrica, um impor- ao processo de ocupação das áreas de proteção tante usuário da água, é um exemplo emble- a mananciais e das várzeas, assim como a mático no país de estrutura organizacional, viabilização de padrões de desenvolvimento regulatória e de planejamento de longo pra- urbano que em seu conjunto não impliquem zo que, historicamente, pautou suas decisões agravamento nas condições de impermeabili- de investimentos sob a ótica setorial. À parte zação do solo urbano e de poluição sobre todo os indiscutíveis benefícios trazidos pelo siste- o sistema hídrico da bacia, à parte as áreas de ma de geração de hidroeletricidade instalado proteção aos mananciais de superfície; no país, a forma autoritária como se deu sua • articulação com as bacias vizinhas, tendo em vista a celebração de acordos estáveis sobre implantação até a década de 1980 ocasionou conflitos que persistem até os dias de hoje.2 as condições atuais e futuras de importação de Entretanto, já é possível perceber um vazões e de exportação de águas utilizadas na maior equilíbrio na correlação de forças entre bacia. os setores usuários de água. No ano de 2003, A integração e a articulação acima pro- após um longo período de seca que culminou postas passam pela construção de uma abor- em uma séria crise de escassez hídrica na bacia dagem de gestão integrada da água que en- do rio Paraíba do Sul, articulou-se um processo volve, portanto, articular e integrar diferentes de tomada de decisão envolvendo grande nú- políticas setoriais: abastecimento de água e mero de instituições públicas e privadas. coleta e tratamento de esgotos; proteção de A transposição das águas da bacia do rio mananciais; drenagem urbana e controle de Paraíba do Sul para a bacia do Guandu é de inundações; e ainda coleta e disposição final grande magnitude (até 180 m3 /s) e tem eleva- de resíduos sólidos. Em áreas metropolita- da importância estratégica: ela permite gerar nas, esses componentes devem ser tratados energia elétrica, atender à demanda atual e fu- de forma integrada e articulada a um plano tura em abastecimento de água da maior parte de desenvolvimento urbano metropolitano. dos municípios da RMRJ e implantar diversas Uma abordagem integradora para os proces- atividades econômicas na bacia do Guandu. O sos de gestão da água e de desenvolvimento rio Guandu constitui o principal manancial de urbano tem sido chamada “gestão total das abastecimento para grande parte dos municí- águas urbanas” (TUWM – Total Urban Water pios da RMRJ, fornecendo água para cerca de Management). Para o caso da Região Metro- 85% da população ali residente. Isso é possí- politana de São Paulo, essa abordagem tem vel graças a um complexo sistema hidráulico sido explorada na Universidade de São Paulo de reservatórios na bacia do Paraíba do Sul (Braga et al. 2006). Esta abordagem é também que foi sendo construído ao longo de décadas destacada nos trabalho de Tucci (2004), onde (Sondotécnica, 2006). se enfatiza a necessidade de um planejamento O esvaziamento contínuo dos reservató- indissociável e integrado entre o gerenciamen- rios da bacia por diversos anos seguidos pro- to de recursos hídricos e os planos de desen- vocou grande redução dos espelhos d’água, volvimento urbano. afetando municípios paulistas do entorno dos 598 Book CM v11_n22.indb 598 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:54 Gestão metropolitana e gerenciamento integrado dos recursos hídricos reservatórios, ameaçando o abastecimento de ser considerada bem-sucedida, e terminou mo- água de milhares de pessoas. tivando a criação do Grupo de Trabalho per- Por iniciativa da Secretaria Executiva do manente para acompanhamento da operação Ceivap e de suas Câmaras Técnicas, foi desen- hidráulica da bacia do rio Paraíba do Sul, para cadeada, em meados de 2001, uma série de atuação conjunta com o Comitê do Guandu reuniões de trabalho com a ANA e o ONS, além (Sondotécnica, 2006). dos órgãos estaduais de recursos hídricos, em- Entretanto, são poucas as experiências de presas do setor elétrico, usuários e demais inte- gestão realmente integradas no país, mormen- ressados, para discutir o problema e definir as te se considerarmos o tripé gerenciamento de ações a serem tomadas (Formiga-Johnsson et recursos hídricos – gestão ambiental – planeja- al., 2005). A situação dos níveis dos reservató- mento do uso do solo. A mais significativa ex- rios continuou a agravar-se, comprometendo a periência de planejamento envolvendo as prá- qualidade da água em diversos trechos do rio, ticas de gestão urbana e de gestão das águas dando início à primeira experiência de gestão vem sendo desenvolvida na bacia do Alto Tietê, participativa na bacia, levando-se em conta os na Região Metropolitana de São Paulo. usos múltiplos e as necessidades da bacia do Guandu (ibid.). Segundo Formiga-Johnsson (2004), a contribuição do Comitê do Alto Tietê e seus No segundo semestre de 2003, foi neces- subcomitês consiste na integração do geren- sário restringir ainda mais as vazões efluentes ciamento dos recursos hídricos com a política dos reservatórios e na transposição para a bacia ambiental para a definição e implementação do Guandu. No processo de negociação foram de uma ampla política de proteção e recupe- tomadas diversas medidas para evitar o desa- ração de mananciais. Para a autora, essa nova bastecimento público e de usuários de recursos abordagem representa um grande distancia- hídricos (ibid.). A decisão sobre a melhor forma mento da tradicional abordagem de qualidade de superar a situação crítica, gerando energia e quantidade, que separa o gerenciamento da sem comprometer outros usos, principalmente água dos aspectos ambientais, especialmente a o abastecimento público, foi tomada no âmbito poluição da água e o uso do solo. Outra ino- de um colegiado envolvendo ANA, ONS, Aneel, vação consiste na redefinição da regulação do Ceivap, CBH-PS/SP, Comitê Guandu/RJ, DAEE/ território e a implementação de uma nova polí- SP, Serla/RJ, Cedae, Cetesb, Cesp, Furnas, Light, tica de proteção dos mananciais com a criação Lab. Hidrologia da COPPE/UFRJ, SAPE Igaratá – de sub-regiões de gerenciamento. SP e Usuários. Para Formiga-Johnsson (ibid.), apesar Atuando-se de modo preventivo e inte- do desigual estágio de desenvolvimento dos grado, reduzindo-se ao máximo as vazões de projetos entre diferentes subcomitês que com- saída dos reservatórios, e acompanhando as põem o Comitê do Alto Tietê, observa-se nas condições de captação dos usuários, foi possí- experiências em andamento que existem duas vel garantir os estoques mínimos, evitando-se o principais trajetórias de interação institucional: desabastecimento e prejuízos socioeconômicos. uma intersetorial no nível estadual, que envolve Essa experiência de gestão participativa pode principalmente os setores de recursos hídricos Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 599 599 17/3/2010 12:49:54 Paulo Roberto Ferreira Carneiro e Ana Lúcia de Paiva Britto e ambiental e outra, entre o estado e os muni- uso e ocupação do solo e saneamento) se colo- cípios. Para a autora, um programa destaca-se ca de forma mais evidente a partir do processo dentre os demais: o Plano de Desenvolvimento de intenso crescimento urbano e do agrava- e Proteção Ambiental (PDPA) da sub-bacia do mento de problemas relacionados à ameaça de Guarapiranga. Este plano se tornou um mode- escassez ou diminuição da disponibilidade de lo para outros subcomitês, que incorporaram água. o planejamento participativo em consonância com a realidade local das sub-bacias. Adicionalmente, o PDPA criou índices urbanos com vista à preservação da qualidade da água e o manejo do uso da terra. Não obstante os avanços recentes em gestão integrada e participativa, projetos seto- Os novos arranjos institucionais e a gestão do território em bacias hidrográficas metropolitanas riais de impacto nos recursos hídricos continuam sendo implantados sem negociação prévia com os órgãos responsáveis pelo gerenciamento dos recursos hídricos, muito menos junto aos comitês de bacias hidrográficas. Se, por um lado, as instituições em seus usos setoriais apossam-se da água, em quantidade e qualidade, para alcançarem seus propósitos específicos, por outro lado, não há nenhuma consideração pela manutenção das capacidades de fornecimento de água, de depuração dos corpos hídricos, nem pela sua administração (...). Não são consideradas no bojo dos empreendimentos as medidas de reflorestamento, de prevenção à degradação, de manutenção e revitalização dos mananciais e aquelas que permitiriam a permanência das características quantitativas e qualitativas dos corpos d’água. As atividades de aproveitamento superam as preocupações sobre a escassez e sobre a degradação, ou seja, a visão vertical, setorial, é predominante e afeta o uso integrado (Christofidis, 2001). Tucci (2004) relaciona alguns fatores que dificultam a aplicação dos conceitos de gestão integrada das águas nas áreas urbanas. São eles: • Desconhecimento generalizado sobre o assunto: da população e dos profissionais de diferentes áreas que não possuem informações adequadas sobre os problemas e suas causas. As decisões resultam em custos altos, em que algumas empresas se apóiam para aumentar seus lucros. Por exemplo, o uso de canalização para drenagem é uma prática generalizada no Brasil, mesmo representando custos muito altos e geralmente tendem a aumentar o problema que pretendiam resolver. Com o canal, a inundação é transferida para jusante afetando outra parte da população. As empresas de engenharia lucram de forma significativa, pois estas obras podem chegar a uma ordem de magnitude 10 vezes superior ao do controle local; • Concepção inadequada dos profissionais Nas áreas metropolitanas, a superação de engenharia para o planejamento e controle dessa visão fragmentada e a necessidade de dos sistemas: uma parcela importante dos téc- pensar de maneira articulada os diferentes nicos que atuam no meio urbano está desatua- sistemas setoriais de gestão (recursos hídricos, lizada quanto à visão ambiental e geralmente 600 Book CM v11_n22.indb 600 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:54 Gestão metropolitana e gerenciamento integrado dos recursos hídricos buscam soluções estruturais, que alteram o logicamente, as questões que podem e devem ambiente, com excesso de áreas impermeáveis ser tratadas no âmbito local. e, consequentemente, aumento de temperatura, inundações, poluição, entre outros; • Visão setorizada do planejamento urba- no: o planejamento e o desenvolvimento das áreas urbanas são realizados sem incorporar os aspectos relacionados aos diferentes componentes da infraestrutura de água. Uma parte importante dos profissionais que atuam nesta área possui uma visão setorial limitada, identificando o saneamento como o abastecimento de água e esgotamento sanitário, quando o problema é mais complexo e amplo, onde não se pode desprezar os componentes de inundações e drenagem urbana, resíduos sólidos e Nas regiões metropolitanas, os desafios relativos ao abastecimento público de água, ao uso industrial, ao esgotamento sanitário e ao controle de inundações, quando combinados ao intenso processo de ocupação do território, desdobram-se em problemas específicos que requerem uma abordagem própria dentro do sistema de gestão de recursos hídricos. Os subitens a seguir discutem os novos arranjos institucionais e as perspectivas que trazem para o preenchimento do vazio institucional deixado pela ausência de instâncias metropolitanas para o planejamento das cidades intensamente urbanizadas. saúde; • Falta de capacidade gerencial: os muni- Comitês de Bacias Hidrográficas cípios não possuem estrutura para o planejamento e gerenciamento adequado dos diferen- A figura central no sistema de gerenciamento tes aspectos da água no meio urbano. de recursos hídricos é o comitê de bacia hidro- A situação é ainda mais crítica nas gráfica. Os comitês são organismos políticos de regiões metropolitanas que apresentam alto tomada de decisão, com atribuições normativa, grau de conurbação, e onde os arranjos de ges- deliberativa e consultiva, quanto à utilização, tão metropolitana existentes têm-se mostrado proteção e recuperação das águas, envolvendo pouco efetivos na promoção de uma integra- poder público, usuários e sociedade civil. ção entre diferentes políticas setoriais. Essa Os comitês funcionam como “parlamen- questão da integração entre diferentes políticas tos das águas”, atuando como instância de- setoriais aparece de forma recorrente entre os cisória de grupos organizados no âmbito da diferentes autores que tratam da governança bacia. A composição dos comitês, conforme metropolitana, aqui definida como uma forma previsto na Lei 9.433, é formada pela união, de gestão do território e de ação pública fun- estados e pelo distrito federal, cujos territórios dada sobre uma concertação entre atores. Não se situem, ainda que parcialmente, em suas é sem motivo que novos arranjos institucionais respectivas áreas de atuação; pelos municípios para a gestão das metrópoles têm despertado o situados, no todo ou em parte, em sua área de interesse de técnicos e pesquisadores que iden- atuação; pelos usuários das águas de sua área tificam a necessidade da retomada do planeja- de atuação e; pelas entidades civis de recursos mento em bases regionais, sem desconsiderar, hídricos com atuação comprovada na bacia. O Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 601 601 17/3/2010 12:49:54 Paulo Roberto Ferreira Carneiro e Ana Lúcia de Paiva Britto número de representantes de cada setor, bem hidrográfica, nem, tampouco, para influenciar o como os critérios para sua indicação, serão es- direcionamento dos investimentos em ações de tabelecidos nos regimentos dos comitês, limita- seu interesse. Esse último aspecto decorre do da a representação dos poderes executivos da fato da bacia hidrográfica não constituir um es- união, estados, distrito federal e municípios à paço de referência política para as instituições metade do total de membros. brasileiras. Dessa forma, os Comitês de bacias hi- Sem desconsiderar a importância dos drográficas assumem um papel primordial na comitês na descentralização das políticas pú- implementação da política de recursos hídricos blicas e participação da sociedade, os aspectos no Brasil, pois se constituem no lócus descen- apontados acima restringem as possibilidades tralizado para a discussão e tomada de deci- de os comitês funcionarem como instâncias são sobre questões de utilização das águas nas integradoras de políticas públicas de impacto respectivas bacias, funcionando como instância regional. mediadora dos interesses em jogo. Atualmente, existem aproximadamente Portanto, os comitês são entidades pú- 139 comitês de bacias hidrográficas implanta- blicas, constituídas com ampla representação dos no Brasil (informação disponível em www. de setores organizados da sociedade civil, ana.gov.br), situados, principalmente, nas governos e usuários da água, possuindo com- regiões Sul e Sudeste. Destes, seis são comitês petência legal para a coordenação das políti- de rios de domínio Federal. cas de recursos hídricos no âmbito das bacias hidrográficas. Por razões que decorrem tanto de uma cultura arraigada de planejamento setorial – Não obstante, é fato que os comitês im- em grande medida consolidada entre as dé- plantados no país têm encontrado enormes difi- cadas de 1960/70 – como pela existência de culdades para cumprir suas decisões e executar estruturas reguladoras e administrativas que seus planos de investimentos. Dois principais atuam setorialmente, é pouco provável que o aspectos podem ser apontados como limita- sistema de recursos hídricos venha a assumir dores da ação dos comitês: em primeiro lugar, a coordenação e integração das políticas seto- os recursos provenientes da cobrança pelo uso riais nas três esferas de governo. da água, única fonte própria de financiamento, Essa dificuldade se agrava pelo fato de o não são suficientes para a realização dos inves- setor de recursos hídricos não possuir um ní- timentos necessários à recuperação das bacias vel hierárquico na organização institucional do hidrográficas. Destarte, os comitês continuam país que lhe confira a legitimidade necessária dependentes das fontes tradicionais de inves- para o cumprimento desse papel. Essa missão timentos, que possuem mecanismos próprios torna-se ainda mais difícil em regiões metropo- de elegibilidade e priorização; além disso, os litanas devido à complexidade dos problemas e comitês não conquistaram a legitimidade polí- a multiplicidade de agentes com atuações com- tica e institucional necessária para a coordena- plementares e, por vezes, sobrepostas em um ção das políticas públicas relacionadas à bacia mesmo território. 602 Book CM v11_n22.indb 602 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:54 Gestão metropolitana e gerenciamento integrado dos recursos hídricos Os consórcios públicos municípios com mais de 500 mil habitantes (Spink, 2000, p. 68 apud Gouvêa, 2005). Para A possibilidade de constituir consórcios no Bra- Gouvêa (ibid., p. 139), sil data do final do século XIX, no entanto, hou- [...] o principal impedimento para a ocorrência de cooperação intermunicipal continua sendo o aspecto autárquico do municipalismo brasileiro, no contexto de um federalismo “compartimentado”, que separa rigidamente os entes federados. Assim, o arcabouço federativo brasileiro não facilita a cooperação entre municípios, tendo em vista que inexistem, 3 no direito público, mecanismos que proporcionem segurança política para que as administrações municipais estabeleçam processos de gestão integrada de política de interesse plurimuinipal. ve, ao longo do tempo, inúmeras configurações na forma e na autonomia dessas instâncias de cooperação intermunicipal. O Quadro 1 resume as formas de consórcios previstas no Brasil ao longo de mais de um século. Como visto, entre 1964 e 1988 surgem os consórcios administrativos, meros pactos de colaboração sem personalidade jurídica, reflexo do período de centralismo autoritário dos governos militares. A partir da década de 1990, com base na Constituição de 1988, constituem-se no Brasil inúmeros consórcios públicos, principalmente na área de saúde. Também Dentre as experiências de cooperação são constituídos consórcios em torno de temas intermunicipal no país, o Consórcio Intermuni- específicos, sendo os mais comuns os de de- cipal do Grande ABC paulista é, seguramente, a senvolvimento regional e os de meio ambiente, mais profícua e duradora. Fatores como a exis- recursos hídricos e saneamento. tência de um tipo específico de capital social, Em sua maioria, os consórcios estabeleci- que envolve um alto grau de associativismo e dos no país envolvem comunidades pequenas uma maior propensão à discussão de temas po- e médias. Apenas 5% dos consórcios incluem líticos (Daniel, 2001 apud Gouvêa, 2005, p. 140) Quadro 1 – Formas de consórcios previstas no Brasil, no período de 1891 a 2007 Período Forma de organização De 1891 a 1937 Os consórcios eram contratos celebrados entre municípios cuja eficácia dependia de aprovação do estado 1937 A Constituição reconhece que os consórcios (“associação de municípios”) são pessoas jurídicas de direito público 1961 É criado o BRDE, a primeira autarquia interfederativa brasileira 1964 a 1988 Surgem os consórcios administrativos, meros pactos de colaboração sem personalidade jurídica A partir de 1998 Criação de inúmeros consórcios públicos. Em 2001, só na área de saúde, haviam 1.969 municípios consorciados. A Emenda Constitucional nº 19 alterou a redação do art. 241 da Constituição, introduzindo os conceitos de consórcio público e de gestão associada de serviços públicos 2005 Lei de Consórcios Públicos 2007 O Decreto 6.017, de 17-1-2007, regulamenta a lei de Consórcios Públicos Fonte: Adaptado de Ribeiro, 2007. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 603 603 17/3/2010 12:49:54 Paulo Roberto Ferreira Carneiro e Ana Lúcia de Paiva Britto como razões de natureza histórica na formação O consórcio também permite que pe- do Grande ABC, que teve seu desdobramento a quenos municípios ajam em parceria e, com partir de um grande “município-mãe” (Abrucio o ganho de escala, melhorem suas capacida- e Soares, 2001 apud Gouvêa, 2005) explicam des técnica, gerencial e financeira. Também é o sucesso deste consórcio, constituindo-se mais possível fazer alianças em regiões de interesse em exceção do que em regra geral. comum, como bacias hidrográficas ou polos Outros consórcios têm obtido bons resul- regionais de desenvolvimento, melhorando a tados nas suas áreas de interesse, como é o ca- prestação de serviços públicos. Os consórcios so do Consórcio Intermunicipal das Bacias dos podem ser firmados entre todas as esferas de rios Piracicaba, Jundiaí e Capivari e Consórcio governo, a única exceção é a união, que so- Intermunicipal Lagos São João; no entanto, ca- mente participará de consórcios públicos em recem de autonomia administrativa e financei- que também façam parte todos os estados em ra e de segurança jurídica para o desempenho cujos territórios estejam situados os municípios mais eficaz de suas funções. consorciados. De acordo com informações veiculadas Cabe avaliar se a constituição de consór- em página eletrônica do governo federal (www. cios públicos trará avanços no tratamento das planalto.gov.br/sri/consorcios/consorcios.htm, questões de interesse comum, sobretudo para consultada em 14/1/2008), a discussão sobre a as regiões metropolitanas. Por essa ótica, não lei dos consórcios públicos teve início em agos- restam dúvidas sobre os avanços concretos que to de 2003 com o objetivo de regulamentar o a lei traz em relação ao formato atual dos con- artigo 241 da Constituição e dar mais seguran- sórcios, que são, em grande medida, constituí- ça jurídica e administrativa às parcerias entre dos como associações civis de direito privado, os entes consorciados. Em março de 2005, o sem mandato legal para assumir competências Congresso aprovou a nova lei, que passou a vi- de ordem pública. gorar em 6 de abril de 2005. Segundo Dallari (2005), os consórcios Os consórcios públicos, segundo a Lei no públicos têm sido celebrados no Brasil, ou só 11.107/05, são parcerias formadas por dois ou entre municípios ou só entre estados, e não mais entes da federação para a realização de têm sido dotados de personalidade jurídica. objetivos de interesse comum, em qualquer Para esse autor, entretanto, é perfeitamente área. Os consócios podem discutir formas de possível, não havendo quanto a isso qualquer promover o desenvolvimento regional, gerir o obstáculo de natureza constitucional, a amplia- tratamento de lixo, água e esgoto da região ou ção das possibilidades de novos arranjos entre construir novos hospitais ou escolas. Eles têm entes públicos, para a instituição de consórcios origem nas associações dos municípios, que já públicos, podendo-se, inclusive, atribuir-lhes eram previstas na Constituição de 1937. Um personalidade jurídica. A proibição contida na dos objetivos dos consórcios públicos é viabi- Lei das Sociedades Anônimas não atinge os lizar a gestão pública nos espaços metropoli- consórcios públicos, uma vez que aquela lei, tanos, no qual a solução de problemas comuns por sua própria natureza, trata apenas dos con- requer políticas e ações conjuntas. sórcios privados. 604 Book CM v11_n22.indb 604 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:54 Gestão metropolitana e gerenciamento integrado dos recursos hídricos Dallari (ibid.), citando o estudo Parcerias constituídos antes da Lei de Consórcios Públi- na Administração Pública, de autoria de Maria Sylvia Di Pietro, chama a atenção para o fato de já existirem consórcios públicos que são, amiúde, usados como instrumentos do poder público para facilitar a gestão de serviços públicos e, paralelamente, os consórcios de direito privado, como modalidade de concentração de empresas, o que no Brasil está previsto na Lei das Sociedades Anônimas, que é a Lei nº 6404, de 15 de dezembro de 1976, segundo a qual os consórcios privados não podem ter personalidade jurídica. Dessa forma, o autor afirma ser da praxe brasileira o uso do consórcio público, o que vem ocorrendo com muita timidez e muitas incertezas, pela inexistência, até então, de uma lei que regulamentasse sua utilização. Com a nova Lei dos Consórcios Públicos, essa insegurança jurídica deixou de existir. Esse conjunto de atribuições, fora outras facilidades operacionais concedidas por Lei, asseguram autonomia de ação – resguardados os limites previstos em lei e pelos contratos de gestão com os entes públicos consorciados –, agilidade operacional e recursos, provenientes de diferentes fontes. Em relação ao último ponto, a Lei prevê, no inciso 5º do Art 8º que cos, poderão manter seu regime jurídico atual, entretanto, como prevê o decreto que regulamentou a Lei de Consórcios Públicos (Decreto 6.017/07, art. 41), esses consórcios administrativos poderão ser convertidos em consórcios públicos, caso contrário, a partir do exercício de 2008 não poderão mais celebrar convênios com a União (art. 39 do mesmo Decreto). Com efeito, a nova Lei traz para a cena pública um auspicioso instrumento para a gestão de problemas comuns em áreas urbanas. Se os consórcios públicos não se constituem como instância genuinamente metropolitana, como prevê a Constituição Federal, sem demérito, oferecem aos entes públicos uma alternativa viável de cooperação para a gestão dos sérios problemas que afligem as cidades, saindo do imobilismo que perdura por duas décadas. Mostram-se promissores os benefícios que os consórcios públicos trarão para o planejamento, coordenação e implantação de serviços de interesse supramunicipal, mormente pela amplitude das competências que lhes são atribuídas. Dentre outras, destacam-se a possibilidade de efetuarem desapropriações de interesse público e social, e a possibilidade [...] poderá ser excluído do consórcio público, após prévia suspensão, o ente consorciado que não consignar, em sua lei orçamentária, ou em créditos adicionais, as dotações suficientes para suportar as despesas assumidas por meio de contrato de rateio. Essa salvaguarda deverá resolver os problemas de cobrar e arrecadar tarifas e outros preços públicos pela prestação de serviços ou pela outorga de uso de bens públicos por eles administrados. Não menos importante para a legitimidade e operacionalidade dos consórcios são os poderes para conceder, permitir ou autorizar obras ou serviços de interesse público. Sendo, porém, formas de articulação vo- de inadimplência frequentes nas modalidades de consórcios não cobertas por esta Lei. luntárias, a formação de consórcios depende Cabe lembrar que os consórcios ad- da ruptura de uma visão fragmentada que hoje ministrativos (sem personalidade jurídica), caracteriza a gestão das cidades, marcada por Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 605 605 17/3/2010 12:49:54 Paulo Roberto Ferreira Carneiro e Ana Lúcia de Paiva Britto disputas político-partidárias e por uma situação entes públicos de Estado, conforme prevê a Lei de competição entre municípios, e a adoção de 9.433/97, com a legitimidade necessária para uma nova visão, baseada na cooperação. articular e integrar as políticas que incidam sobre o território metropolitano. O abandono da questão metropolitana Perspectivas para a gestão integrada das aguas em áreas metropolitanas: uma proposta para a região da Baixada Fluminense na RMRJ pós-Constituição de 1988 ampliou a ausência de coordenação e integração das políticas com características plurimunicipais. As análises realizadas conduzem para a necessidade de criação de instâncias regionais de planejamento e gestão com legitimidade institucional e autonomia política e administrativa para planejar o or- As dificuldades para a integração de políticas denamento do uso do solo de forma sistêmica, setoriais são conhecidas e decorrem da própria considerando a bacia hidrográfica como unida- lógica de atuação das instituições. A fragmen- de territorial para a conservação ambiental e tação institucional implica igual fragmentação prevenção de eventos hidrológicos críticos. na gestão da água, de tal forma que para cada Com a Lei nº 11.107, que autoriza a cons- tipo de uso ou propósito temos uma instituição tituição de Consórcios Públicos, o país passou diferente para sua administração: a dicotomia a contar com um auspicioso instrumento para entre os aspectos quantidade/qualidade, tradi- a gestão de problemas comuns em áreas ur- cionalmente dissociados na cultura institucional banas. O conjunto de atribuições facultadas brasileira, deriva dessa fragmentação. Soma-se aos consórcios públicos, fora outras facilidades a esse aspecto o fato de cada setor possuir seu operacionais concedidas pela Lei, asseguram próprio ritmo de concepção e implantação de autonomia de ação, agilidade operacional e re- projetos, como também possuir características cursos provenientes de diferentes fontes. operacionais específicas e em grande medida independentes uma das outras. Até o momento, a retomada do debate sobre a gestão das metrópoles está circunscrito às instituições e atores diretamente vinculados ao planejamento urbano e regional. Em relação à gestão dos recursos hídricos, prevalecem as expectativas de que os comitês de bacia pos- Como observado por Gomes (2006), [...] um dos pontos que davam ao consórcio ares de precariedade decorria da aplicação a eles da perspectiva vigente para os convênios, no sentido de que as partes não ficavam obrigadas a cumprir seus encargos até o fim, ao menos com o rigor que ocorre em uma relação contratual. sam exercer o papel de integradores das políticas setoriais e de ordenamento do território, Sob a ótica da cooperação vigente até então não obstante, passados 10 anos da institu- seria difícil o estabelecimento de responsabili- cionalização da Política Nacional de Recursos dades recíprocas, ou, pior ainda, de penalidades Hídricos, não tenham adquirido o status de em caso de descumprimento. Dessa forma, tudo 606 Book CM v11_n22.indb 606 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:54 Gestão metropolitana e gerenciamento integrado dos recursos hídricos dependia da boa vontade dos entes associados A regulação do setor de saneamento em cumprir suas atribuições e de manterem-se unidos na empreitada. Depois de um longo período sem um marco re- O Decreto nº 6.017, de 17 de janeiro de gulatório para os serviços de saneamento bá- 2007, que regulamentou a lei de Consórcios sico, foi aprovada, em 5 de janeiro de 2007, a Públicos, ampliou enormemente as perspectivas Lei de Saneamento Básico (Lei nº 11.445). Com para a retomada do planejamento das regiões esta lei o país passa a contar com um marco metropolitanas do país. regulatório para o setor de saneamento básico, Segundo Ribeiro (2007), com a gestão atual, quanto aos seus fundamentos e princí- associada autorizada por consórcio público, pios de organização na estrutura federativa do fica aberta a possibilidade da instituição de Estado brasileiro, e integrada à Política Nacio- agências reguladoras consorciais ou, ainda, a nal de Gerenciamento dos Recursos Hídricos. definição uniforme ou integrada de tarifas pa- A Lei estabelece diretrizes nacionais para ra determinados serviços públicos. A gestão o setor de saneamento básico, alterando a Lei associada, além do planejamento, regulação e nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, a Lei nº fiscalização, também pode ser ajustada para a 8.036, de 11 de maio de 1990, a Lei nº 8.666, prestação de serviços públicos. Nesse caso, se de 21 de junho de 1993, a Lei nº 8.987, de 13 o próprio consórcio prestar os serviços, é ne- de fevereiro de 1995, e revoga a Lei nº 6.528, cessário que o protocolo de intenções preveja de 11 de maio de 1978. a outorga dessa competência à entidade con- A lei considera como saneamento básico sorcial. O contrato a ser assinado é o Contrato os serviços de abastecimento público de água de Programa, previsto pela Lei de Consórcios potável; os serviços de coleta, transporte, trata- Públicos (art. 13), que deve possuir cláusulas mento e disposição final adequados dos esgo- específicas, sob pena de não possuir validade tos sanitários; a coleta, transporte, transbordo, jurídica (art. 33 do Decreto 6.017/07). tratamento e destino final do lixo doméstico e Dessa forma, os entes federativos es- do lixo originário da varrição e limpeza de lo- tabelecem uma gestão associada de serviços gradouros e vias públicas; a drenagem e mane- públicos com um programa de trabalho que, jo das águas pluviais urbanas, considerando o mediante contrato, poderá ser executado por transporte, detenção ou retenção para o amor- empresa, fundação ou autarquia da adminis- tecimento de vazões de cheias e o tratamento tração indireta de qualquer um dos entes coo- e disposição final das águas pluviais drenadas perados. Com isso, a situação anterior, comum nas áreas urbanas. especialmente no saneamento básico, em que A lei prevê em seus princípios fundamen- uma companhia estadual celebrava sem licita- tais, dentre outros aspectos, a disponibilidade, ção um contrato de concessão com o municí- em todas as áreas urbanas, de serviços de sa- pio hoje foi substituído por um novo modelo neamento e drenagem das águas pluviais ade- (ibid., 2007). quados à saúde pública e à segurança da vida Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 607 607 17/3/2010 12:49:54 Paulo Roberto Ferreira Carneiro e Ana Lúcia de Paiva Britto e do patrimônio público e privado, a articula- ou reunidos em consórcios públicos, aos quais ção com as políticas de desenvolvimento urba- poderão ser destinadas, entre outros recursos, no e regional e a integração das infraestruturas parcelas das receitas dos serviços, com a fina- e serviços com a gestão eficiente dos recursos lidade de custear, na conformidade do disposto hídricos. nos respectivos planos de saneamento básico, a Quanto ao exercício da titularidade dos universalização dos serviços públicos de sanea- serviços, a lei regulamenta as formas de de- mento básico. Esses fundos, somados aos re- legação da prestação dos serviços pelos titu- cursos de fontes tradicionais, poderão resolver lares, sua regulação, fiscalização, nos termos a crônica falta de financiamento para o setor, do art. 241 da Constituição Federal e da Lei nº principalmente em relação à drenagem urbana, 11.107, de 6 de abril de 2005 (Lei de Consórcio cuja dotação de recursos é mais incerta. Público), conforme analisado em “Os consórcios públicos”. A lei consolida a possibilidade de constituição de Consórcio Público para a prestação Neste aspecto, a lei veda a possibilidade regionalizada de serviços públicos de sanea- de prestação de serviços públicos de sanea- mento básico, conforme previsto na Lei de mento básico por entidade que não integre a Consórcio Público e indica a bacia hidrográfica administração do titular mediante convênios, como unidade para o planejamento da gestão termos de parceria ou outros instrumentos dos serviços. de natureza precária. A prestação de serviços por entidades desse tipo só são admitidos por contrato. Dessa forma, aumenta-se o controle sobre o prestador na forma de um contrato, Criação de uma agência regional para a Baixada Fluminense permitindo, em situações de descumprimento, cobranças por vias judiciais. A Região Metropolitana do Rio de Janeiro se Outros aspectos representam avanços caracteriza por uma forte fragmentação insti- sem precedentes da lei. O primeiro é a obriga- tucional e a inexistência de um projeto da ges- toriedade de elaboração pelos municípios dos tão metropolitana. As instâncias e mecanismos planos municipais de saneamento que orien- mais efetivos de interação e de concertação tem a prestação dos serviços, sendo os planos entre municípios metropolitanos são poucos e pré-condição para que o município possa dele- apresentam baixa eficácia. É preciso destacar, gar essa prestação. O segundo é a possibilida- porém, que existe uma Secretaria Especial de de de inclusão nos contratos de delegação de Desenvolvimento da Baixada Fluminense, que metas progressivas e graduais de expansão dos tem por objetivo implementar políticas integra- serviços, de qualidade, de eficiência e de uso das essa sub-região da metrópole, que enfrenta racional da água, da energia e de outros recur- graves problemas sociais e ambientais. A Bai- sos naturais, em conformidade com os serviços xada apresenta uma população que, em média, a serem prestados. tem renda familiar de até dois salários mínimos, Os entes da Federação também estão é, na sua maioria, negra, jovem e feminina; nos autorizados a instituírem fundos, isoladamente oito municípios que conformam a região, a 608 Book CM v11_n22.indb 608 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:54 Gestão metropolitana e gerenciamento integrado dos recursos hídricos realidade dos serviços de saneamento ambien- Firjan articulou nova reunião com os prefeitos e tal é precária em todos os seus componentes; o vices eleitos das cidades de Nova Iguaçu, Niló- assoreamento dos rios e canais e a ausência ou polis, Mesquita, Queimados, Seropédica, Japeri a precariedade da rede de drenagem, associa- e Paracambi para rediscutir temas referentes à dos à ocupação ribeirinha para fins industriais necessidade de articulação intermunicipal. De e de moradia, ao desmatamento, à crescente fato, a criação do Conselho foi uma iniciativa impermeabilização do solo com o asfaltamen- da Firjan, que não teve maior impacto na arti- to das vias, juntamente com a coleta e destino culação dos municípios da região. Mesmo com inadequado do lixo, colocam parte importante o estimulo da Firjan, a associação não consegue da Baixada Fluminense em situação de risco a articular interesses e não tem nenhuma clareza enchentes que provocam mortes, perdas mate- de qual é, efetivamente, seu papel. riais, aumento de doenças. O principal Comitê de Bacia Hidrográfica Além da Secretaria da Baixada, existe Metropolitano é o Comitê da Região Hidro- também uma associação de prefeitos, a As- gráfica da Baía de Guanabara e dos Sistemas sociação de Prefeitos da Baixada Fluminense, Lagunares de Maricá e Jacarepaguá, criado em reunindo 13 municípios da metrópole: Nova 16 de setembro de 2005. Essa região hidrográ- Iguaçu, Duque de Caxias, São João de Meriti, fica abrange quase todos os municípios metro- Nilópolis, Belford Roxo, Mesquita, Queimados, politanos, incluindo total ou parcialmente as Japerí, Paracambí, Magé, Guapimirim, Itaguaí áreas de 17 municípios: Rio de Janeiro, Duque e Seropédica (Observatório das Metrópoles, de Caxias, Nilópolis, São João de Meriti, Mes- 2005). A Associação foi responsável por um quita, Belford Roxo, Nova Iguaçu, Petrópolis, convênio envolvendo os municípios da Baixa- Magé, Guapimirim, Cachoeiras de Macacu, Ita- da Fluminense, a Companhia Estadual de Água boraí, Tanguá, Rio Bonito, São Gonçalo, Niterói e Esgoto – Cedae e o Ministério das Cidades, e Maricá com o objetivo de traçar um diagnóstico da A aposta no Comitê da Bacia da Baía de situação do saneamento ambiental na região. Guanabara como agente promotor do uso in- Assinado em 2003, o convênio não se desdo- tegrado da água na região esbarra nas enor- brou em nenhuma ação concreta até hoje. mes dificuldades para a sua estruturação, por Em 2005, no início dos novos mandatos, reunir municípios com diferentes interesses e os prefeitos da Baixada Fluminense, empresá- estruturas político-administrativas fortemente rios e ministros se reuniram no Porto de Sepe- diferenciadas. Além disso, a participação desses tiba para anunciar a criação do Conselho de municípios no âmbito do Comitê é praticamen- Desenvolvimento Econômico da Baixada Flumi- te inexistente. nense. O Conselho deveria atuar como articula- Diante da ausência de uma proposta mais dor de investimentos e empregos para a região, sólida para a articulação dos municípios da Bai- tendo a participação dos prefeitos da Baixada xada Fluminense, e da urgência dos problemas Fluminense, dos maiores empresários da região, existentes, propomos aqui a discussão da cria- do presidente da Federação das Indústrias do ção de uma Agência Regional sob a forma de Rio de Janeiro (Firjan). Em novembro de 2008, a Consórcio Público, formado pelos municípios Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 609 609 17/3/2010 12:49:55 Paulo Roberto Ferreira Carneiro e Ana Lúcia de Paiva Britto pertencentes à região (Belford Roxo, Duque de a) Gestão associada de serviços públicos; Caxias, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu e São b) Prestação de serviços, inclusive de as- João de Meriti) e pelo Estado, com a missão de sistência técnica, a execução de obras e o for- formular e integrar políticas públicas regionais. necimento de bens à administração direta ou A agência teria como responsabilidade o indireta dos entes consorciados; planejamento integrado dessa parte importan- c) Compartilhamento ou o uso em comum te da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, de instrumentos e equipamentos, inclusive de que concentra 3 milhões de habitantes, con- gestão, de manutenção, de informática, de pes- siderando questões envolvendo saneamento soal técnico e de procedimentos de licitação e básico, conservação dos recursos hídricos, im- de admissão de pessoal; plantação de sistemas viários, políticas habitacionais, planejamento do uso do solo voltado para o controle de inundações urbanas, etc., devido ao alto grau de interdependência que esses sistemas mantêm entre si. d) Produção de informações ou de estudos técnicos; e) Promoção do uso racional dos recursos naturais e a proteção do meio ambiente; f) Exercício de funções no sistema de geren- Uma agência regional, constituída como consórcio público, teria mais legitimidade le- ciamento de recursos hídricos que lhe tenham sido delegadas ou autorizadas; gal e política para planejar de forma integrada g) Fornecimento de assistência técnica, as intervenções de forte impacto no territó- extensão, treinamento, pesquisa e desenvolvi- rio, interagindo com as demais instâncias de mento urbano, rural e agrário; gestão setorial, inclusive os comitês de bacia hidrográfica e suas representações sociais e econômicas. h) Ações e políticas de desenvolvimento urbano, socioeconômico local e regional. Entre os objetivos listados acima se des- O Decreto nº 6.017, de 17 de janeiro de tacam as linhas b, e, f e h por serem de inte- 2007, que regulamentou a lei de Consórcios resse direto para a proposta aqui formulada. A Públicos, detalha a forma com os entes públi- previsão para o exercício de funções multisseto- cos poderão constituir consórcios. O primei- riais abre caminho para a constituição de uma ro aspecto a ser destacado é que o consórcio agência técnica com competências legais para público será constituído como pessoa jurídica a integração de políticas públicas envolvendo formada exclusivamente por ente da Federa- meio ambiente, recursos hídricos, saneamento ção, constituída como associação pública, com e ordenamento do uso do solo com abrangên- personalidade jurídica de direito público e na- cia regional. tureza autárquica ou como pessoa jurídica de direito privado sem fins econômicos. A possibilidade de accountability foi assegurada na regulamentação da lei ao prevê a O objetivo do consórcio público será participação de representantes da sociedade ci- determinado pelos entes que se consorcia- vil nos órgãos colegiados do consórcio público. rem, admitindo-se, entre outros, as seguintes No cumprimento de suas finalidades, o consór- possibilidades: cio público poderá: 610 Book CM v11_n22.indb 610 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:55 Gestão metropolitana e gerenciamento integrado dos recursos hídricos ● firmar convênios, contratos, acordos de qualquer natureza, receber auxílios, contribui- Conclusão ções e subvenções sociais ou econômicas; ser contratado pela administração direta Promover a integração das políticas públicas ou indireta dos entes da Federação consorcia- que interagem com os recursos hídricos, sanea- dos, dispensada a licitação; e mento e o ordenamento do uso do solo urbano ● caso constituído sob a forma de associa- é, provavelmente, a tarefa mais urgente e com- ção pública, ou mediante previsão em contra- plexa da agenda dos gestores públicos real- to de programa, promover desapropriações ou mente comprometidos com o futuro sustentado instituir servidões nos termos de declaração de das metrópoles. ● No momento, não está claro se há deter- utilidade ou necessidade pública, ou de interesse social. minação política para a construção de arranjos Os consórcios públicos poderão ainda institucionais que retomem a gestão em bases emitir documentos de cobrança e exercer ativi- metropolitanas, em substituição ao modelo que dades de arrecadação de tarifas e outros preços predominou nos últimos vinte anos, fundado públicos pela prestação de serviços ou pelo uso mais na atomização das políticas, levando à ou outorga de uso de bens públicos ou, no caso ruptura do planejamento em bases regionais, de específica autorização, serviços ou bens de do que na desejável desconcentração de poder. Como o artigo buscou demonstrar, exis- ente da Federação consorciado. A constituição da Agência Regional po- tem razões para acreditar que os novos arran- deria ser articulada em torno dos dois grandes jos institucionais em vigor no país oferecem projetos de infraestrutura em implantação na alternativas para a gestão compartilhada entre Região Metropolitana, o Arco Metropolitano e estados e municípios, principalmente nas gran- as obras de drenagem e urbanização, ambos des aglomerações urbanas. Uma agência regio- inseridos no Programa de Aceleração do Cres- nal, constituída como Consórcio Público, teria cimento (PAC). mais legitimidade legal e política para planejar O Arco Metropolitano, pela importância de forma integrada as intervenções de forte im- estratégica para a Região Metropolitana do Rio pacto no território, interagindo com as instân- de Janeiro, é um forte atrativo para a coopera- cias de governo e da sociedade. ção entre estado e municípios da sua área de Especificamente em relação à atuação do influência. A constituição da Agência Regional município, existe um vasto campo de possibili- teria o propósito de planejar a inserção do ar- dades a ser perseguido, sobretudo após a apro- co viário no espaço metropolitano, buscando vação do Estatuto da Cidade. Os novos Planos equacionar os gargalos de infraestrutura, den- Diretores podem e devem incorporar mecanis- tre outros o saneamento básico e a drenagem mos mais eficazes de gerenciamento do uso do urbana, coordenando o ordenamento do terri- solo, utilizando-se de uma gama maior de ins- tório e o controle da expansão urbana consi- trumentos jurídicos, econômicos e fiscais volta- derando a bacia hidrográfica como unidade dos para o desenvolvimento urbano em bases espacial de planejamento. sustentáveis. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 611 611 17/3/2010 12:49:55 Paulo Roberto Ferreira Carneiro e Ana Lúcia de Paiva Britto Recomenda-se fortemente a retomada metropolitanas. Reforça-se, mais uma vez, a do planejamento de longo prazo, calcados em necessidade de criação de estruturas coopera- mecanismos de cooperação eficazes, evitando- tivas, não apenas entre os vários municípios de se arranjos com viés voluntaristas, que têm uma mesma área metropolitana, mas também prevalecido nas últimas décadas. entre estes municípios e a instância estadual, Por fim, permanece o desafio do melhoramento técnico da gestão das regiões para a definição e implementação de políticas de forma integrada. Paulo Roberto Ferreira Carneiro Biólogo pela Universidade Federal da Bahia; Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro; D.Sc. em Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pesquisa e Pós-Graduação de Engenharia; Bolsista Recém-Doutor pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro junto ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pesquisador do Laboratório de Hidrologia e Estudos do Meio Ambiente do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pesquisa e PósGraduação de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, Brasil). [email protected]; Ana Lúcia de Paiva Britto Geógrafa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; doutora em urbanismo pelo Institut D’Urbanisme de Paris, da Université de Paris XII (Paris-Val-de-Marne); professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, PROURBFAU-UFRJ, e pesquisadora do Observatório das Metrópoles (Rio de Janeiro, Brasil). [email protected] Notas (1) A Região Metropolitana do Rio de Janeiro foi criada com a lei de 1974, após a fusão dos antigos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara. (2) Cita-se como exemplo os contenciosos decorrentes da transposição do rio Paraíba do Sul no estado do Rio de Janeiro, em consequência da redução da vazão a jusante de Santa Cecília em períodos críticos, que compromete a diluição de efluentes domésticos no rio Paraíba do Sul, dificultando o tratamento da água utilizada no abastecimento público; e as péssimas condições sanitárias do curso final do rio Piraí, na cidade de Piraí, que teve seu fluxo invertido para atender a geração de energia elétrica do Sistema Light. 612 Book CM v11_n22.indb 612 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:55 Gestão metropolitana e gerenciamento integrado dos recursos hídricos (3) A expectativa é que a nova Lei dos Consórcios Públicos (Lei nº 11.107/05) proporcione a segurança política necessária às administrações municipais, facilitando o estabelecimento de parcerias para a gestão integrada dos temas de interesse comum. Referências AZEVEDO, S. e GUIA, V. R. M. 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Texto recebido em 19/jun/2009 Texto aprovado em 1/ago/2009 614 Book CM v11_n22.indb 614 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 593-614, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:55 Padrões espaciais de ociosidade imobiliária e o Programa Morar no Centro da Prefeitura de São Paulo (2001-2004) Spatial patterns of idle buildings and Programa Morar no Centro, of São Paulo’s municipal government (2001-2004) Fernando Cardoso Cotelo Resumo A Prefeitura de São Paulo (2001-2004) criou um programa habitacional que procurava coordenar a utilização de crédito subsidiado da Caixa Econômica Federal com a oportunidade de recondicionamento de alguns prédios ociosos na região do Centro Histórico. Este artigo mostra um levantamento dos imóveis ociosos no Centro Histórico, comenta sobre a razão de sua ociosidade, descreve o Programa Morar no Centro, apresenta um método auxiliar na avaliação de seu impacto no aproveitamento de imóveis ociosos e indica possíveis falhas na sua concepção que podem ter contribuído para sua descontinuação. A grande quantidade de área disponível, em contraposição ao pequeno número de projetos PAR demonstra a timidez da intervenção governamental e sua relativa dispersão demonstra desconsideração às externalidades e sinergias locais. Abstract The municipalit y of São Paulo, during the 2001-2004 administration, started a housing programme which made efforts to coordinate the use of public credit lines and the retrofit of vacant buildings in the Historic Centre area. This paper describes “Programa Morar no Centro” (Living in the City’s Centre Programme) and presents a method for its evaluation, indicating some flaws in its basic ideas which might have contributed to its discontinuation. The large amount of idle buildings at disposal in contrast to the relatively small number of retrofits proposed indicates the poor impetus of the intervention and lack of perception of the present externalities and local synergies. Palavras-chave: revitalização urbana; política de habitação; uso do solo urbano; economia urbana; geografia urbana. Key words : urban revitalization ; housing policy; urban land use; urban economics; urban geography. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 615 17/3/2010 12:49:55 Fernando Cardoso Cotelo urbanos, metrô, corredores de ônibus) e toda Introdução a infraestrutura urbana necessária, como sa- Existe uma agenda política que propõe medidas legais e administrativas para que se possibilite a revitalização da área central, de algum valor histórico na cidade de São Paulo, mas, principalmente, repleta de imóveis ociosos. Durante o mandato do governo municipal eleito para o quadriênio 2001–2004, houve certo consenso entre os urbanistas e os administradores públicos que se alinhavam com a agenda política para assuntos de planejamento urbano e habitação, entre eles instituições independentes como o Cebrap, através de seu Centro de Estudos da Metrópole (Emurb e PMSP, 2004), de que a degradação das áreas centrais está, de alguma forma, relacionada com a falta de ocupação do espaço urbano durante o período noturno, o que sugeriria a necessidade de incentivar que pessoas residam nas áreas em questão. Este parece ser o entendimento de especialistas em, pelo menos, uma instituição internacional independente (Lincoln Institute of Land Policy) que trata do tema (Clichevsky, 1999). Atualmente, há muitos imóveis desocupados ou ocupados apenas parcialmente na região central de São Paulo. Isso ocorre por vários motivos, como estado avançado de depreciação ou degradação física, problemas legais relacionados a débitos tributários ou disputas judiciais entre herdeiros e outros. Há também neamento básico, linhas de eletricidade e telecomunicações. Parte desse investimento em infraestrutura se encontra ocioso, uma vez que o espaço fica desabitado durante a noite. Daí, mais uma vez, a necessidade de considerar a ocupação residencial do espaço. Até o ano de 2004, ainda se sentiam os efeitos de um período em que havia um problema generalizado de falta de linhas de financiamento para a habitação, em especial a habitação popular. A Prefeitura do Município de São Paulo criou um programa habitacional específico que procurava coordenar a utilização de linhas de crédito subsidiado da Caixa Econômica Federal com a oportunidade de reforma e recondicionamento de alguns prédios situados na região do Centro Histórico. Esses prédios, na maioria edifícios comerciais, seriam transformados em prédios residenciais e arrendados para famílias de baixa renda nos moldes do Programa de Arrendamento Residencial. Este artigo mostra um levantamento dos imóveis ociosos no Centro Histórico de São Paulo, comenta sobre a razão de sua ociosidade, descreve o Programa Morar no Centro da Prefeitura de São Paulo, apresenta um método auxiliar na avaliação de seu impacto no aproveitamento de imóveis ociosos e indica possíveis falhas na sua concepção que podem ter contribuído, inclusive, para sua descontinuação. muitos terrenos cuja única atividade econômica é seu uso como parque de estacionamento O Programa Morar no Centro subutilizando-se o seu potencial construtivo. O Centro Histórico de São Paulo é uma região urbana totalmente consolidada, com A Prefeitura Municipal de São Paulo, duran- vias de transporte rápido de massa (trens te a administração de 2001 a 2004, criou um 616 Book CM v11_n22.indb 616 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:55 Padrões espaciais de ociosidade imobiliária e o Programa Morar no Centro... programa que visava a aproveitar edifícios O Mapa 1 mostra toda a Região Metro- abandonados, em estado avançado de degra- politana de São Paulo e os distritos centrais dação ou ocupados por movimentos populares do município de São Paulo, para dar ao leitor ligados às lideranças de sem-teto para reforma uma idéia da diferença de escalas necessárias ou construção de habitações populares. ao detalhamento da região considerada pelas Sua versão oficial foi publicada no livre- autoridades como “área central”. A área con- to Programa Morar no Centro, editado pela siderada central aparece dentro do quadro su- Secretaria de Habitação e Desenvolvimento perior e detalhada no quadro inferior. A região Urbano da Prefeitura Municipal de São Paulo onde foi realizado o estudo empírico de levan- em 2004. tamento dos imóveis considerados candidatos Segundo esse documento, o Programa a serem incorporados a um programa nos mol- Morar no Centro é um conjunto integrado de des do Programa Morar no Centro aparece cir- intervenções municipais, coordenadas pela Se- cundada pelos distritos centrais. A Prefeitura, então, selecionou onze cretaria Municipal de Habitação (SEHAB) com os seguintes objetivos: • melhorar as condições de vida dos morado- res do Centro; • viabilizar moradia adequada para pessoas que moram ou trabalham na região; • evitar o processo de expulsão da população imóveis considerados aptos a receberem a implantação do programa na modalidade PLS (Programa de Locação Social) e mais treze na modalidade PAR (Programa de Arrendamento Residencial) dentro desses distritos, com a intenção de instalar moradores de baixa renda mais pobre, que muitas vezes ocorre em políti- e, assim, iniciar uma agenda política que ten- cas de reabilitação de centros urbanos. desse a incentivar a ocupação desses espaços Suas principais diretrizes eram: • priorizar a reforma de prédios vazios; • ociosos com residências. Aqui neste trabalho o PLS será apenas citado, sendo o estudo do PAR analisado de maneira mais aprofundada. combinar soluções habitacionais com ini- ciativas de geração de rendas; • buscar a diversidade social nos bairros centrais. Para efeito dessa política, foram considerados como “Centro” os distritos da Sé e da Levantamento dos imóveis subocupados no Centro Histórico República e mais onze distritos que os circundam. São eles: Brás, Cambuci, Liberdade, Barra Elaborou-se um levantamento quadra a quadra Funda, Bela Vista, Consolação, Santa Cecília, anotando a posição e os atributos relevantes Bom Retiro, Pari, Belém e Mooca, com área de de todos os imóveis que se situam dentro dos aproximadamente 52km². O Censo Demográfi- distritos da Sé e República e que se apresenta- co do IBGE de 2000 estima que a população vam de alguma forma subutilizados na ocasião residente nesses distritos seja de aproximada- da coleta dos dados. Para tanto, o autor cami- mente 530 mil pessoas. nhou a pé por quase todas as quadras tirando Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 617 617 17/3/2010 12:49:55 Fernando Cardoso Cotelo Mapa 1 – Região Metropolitana de São Paulo e distritos centrais Fonte: Elaboração própria a partir de mapas do IBGE e CEM-Cebrap. 618 Book CM v11_n22.indb 618 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:55 Padrões espaciais de ociosidade imobiliária e o Programa Morar no Centro... fotos de todos os imóveis a partir de ângulos vista da densidade habitacional que poderiam que permitissem sua identificação em fotos comportar e poderiam em tese ser utilizados de satélite. Os imóveis pesquisados foram lo- para a construção de moradias populares da calizados através de um sistema de gerencia- mesma forma que outras construções. Se um mento de imagens de satélite (Google Earth), prédio pode ser reformado ou requalificado pa- o que permitiu marcar sua posição e contorno ra efeito das intervenções desejadas, também aproximados em coordenadas geográficas. se podem construir unidades habitacionais em Posteriormente, foram transcritos em um sis- terrenos onde há apenas construções leves, co- tema informatizado de georreferenciamento mo galpões ou outras estruturas destinadas à (ArcGIS), para elaborar cálculos e mapas. So- operação do negócio do estacionamento, sem mente algumas quadras na região da Baixada que isso importe em custos altos de demolição do Glicério não puderam ser pesquisadas por das coberturas e proteções para veículos. Em motivos de segurança. geral esses custos são menores do que a pró- Esse estudo de campo permitiu que se pria reforma de prédios já instalados. fizessem estimativas diretas da área dos ter- O Mapa 2 mostra a região dos distritos renos dos imóveis considerados e que se iden- Sé e República com a representação aproxima- tificassem focos de acumulação de imóveis da dos terrenos onde se localizam os imóveis problemáticos e suas relações com as variáveis pesquisados. Os polígonos representam as di- socioeconômicas e geográficas das regiões de visas dos terrenos em escala e as gradações de seu entorno, bem como uma análise das exter- cinza representam o tipo de subocupação en- nalidades de vizinhança presentes. O estudo contrada nos imóveis. mostrou ainda que o potencial de aproveitamento de terras ociosas é muito maior do que as ocupadas pelos imóveis assinalados no programa original. A área recenseada corresponde ao terri- Análise descritiva do banco de dados tório dos distritos Sé e República, com exceção daquelas quadras onde não foi possível fazer a As Tabelas 1, 2 e 3 mostram algumas relações inspeção e tem aproximadamente 4,45km². de coincidência entre as diferentes combina- A partir desse levantamento, podem-se ções de casos de “tipo de ocupação”, “tipo de distinguir prédios comerciais e residenciais que uso” e “tombamento”. As proporções de cada se encontravam desocupados, semiocupados, combinação devem fornecer uma primeira in- ocupados ilegalmente, bem como imóveis utili- tuição sobre a forma como os incentivos para zados exclusivamente como estacionamentos. a manutenção da função econômica de cada Foram incluídos os terrenos utilizados imóvel são tipificados. exclusivamente como estacionamentos na ba- Quase a metade das observações corres- se de dados pela seguinte razão: os terrenos ponde a terrenos utilizados como estaciona- utilizados exclusivamente como parques de es- mentos. Há, entretanto, um número significativo tacionamento estão subutilizados do ponto de de imóveis totalmente desocupados e imóveis Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 619 619 17/3/2010 12:49:55 Fernando Cardoso Cotelo Mapa 2 – Área do estudo de campo e imóveis observados desocupados térreo e sobreloja ocupados poucos andares ocupados terreno utilizado como estacionamento Fonte: Elaboração própria a partir de mapas do IBGE e CEM-Cebrap e de informações levantadas em pesquisa de campo. 620 Book CM v11_n22.indb 620 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:55 Padrões espaciais de ociosidade imobiliária e o Programa Morar no Centro... Tabela 1 – Tipo de ocupação dos imóveis observados Tipo de ociosidade Área (m2) Número Terrenos baldios Imóveis totalmente desocupados Imóveis utilizados exclusivamente como estacionamentos Imóveis ocupados por invasão organizada Obras em andamento Obras interrompidas Imóveis onde a maioria dos andares está desocupada Imóveis onde apenas o térreo está ocupado 13 105 235 6 12 7 44 101 2.50% 20.10% 44.90% 1.10% 2.30% 1.30% 8.40% 19.30% 7.224 46.993 207.443 5.224 6.091 3.822 22.156 44.149 2.10% 13.70% 60.50% 1.50% 1.80% 1.10% 6.50% 12.90% Totais 523 100.00% 343.102 100.00% Fonte: Elaboração própria. Tabela 2 – Tipo de uso do imóvel Tipo de uso Área (m2) Número Não identificado Uso comercial Hotel desativado Uso misto Uso residencial 258 178 14 58 15 49.30% 34.00% 2.70% 11.10% 2.90% 215.401 85.564 8.135 26.329 7.673 62.80% 24.90% 2.40% 7.70% 2.20% Totais 523 100.00% 343.102 100.00% Fonte: Elaboração própria. Tabela 3 – Tipo de ocupação e tombamento Tipo de ociosidade Terrenos baldios Imóveis totalmente desocupados Imóveis utilizados exclusivamente como estacionamentos Imóveis ocupados por invasão organizada Obras em andamento Obras interrompidas Imóveis onde a maioria dos andares está desocupada Imóveis onde apenas o térreo está ocupado Imóveis tombados Não Sim Total 13 86 230 6 9 7 26 58 – 19 5 – 3 – 18 43 13 105 235 6 12 7 44 101 0.00% 18.10% 2.10% 0.00% 25.00% 0.00% 40.90% 42.60% Fonte: Elaboração própria. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 621 621 17/3/2010 12:49:55 Fernando Cardoso Cotelo onde apenas o térreo está ocupado, geralmente com lojas funcionando no nível da rua ou • custos administrativos, como cobrança de aluguéis recebíveis; outros casos em que apenas a parte de baixo • custos tributários; do imóvel é utilizada como estacionamento. • Em termos de área, 60,5% estão em terrenos utilizados exclusivamente como estacio- custos de transações motivados por dis- putas judiciais contra mutuários ou inquilinos, fisco, administração local e espólio. namentos. Aproximadamente 32% são forma- As receitas necessárias para manter a dos pelos terrenos onde há imóveis totalmente viabilidade econômica do imóvel são cobertas ou parcialmente desocupados. pelas receitas de aluguel, de fato ou autoimpu- Os imóveis com tipo de uso não identifi- tado. A renda residual, depois que se deduzem cado correspondem àqueles formados por ter- esses custos, tem que ser maior ou igual ao renos com construções provisórias ou galpões custo de oportunidade do uso do imóvel como utilizados como estacionamentos, bem como capital (e não como moradia) para que a ma- os considerados baldios. nutenção física do imóvel seja sustentada pelas Nota-se que o problema da ociosidade receitas no longo prazo. ocorre principalmente entre os imóveis de uso Todos os imóveis antigos são sensíveis comercial, que aparecem em número aproxi- aos custos de transação, porque, devido à sua madamente dez vezes maior do que os imóveis vida útil como bem de capital e à dispersão de de uso residencial e três vezes maior do que relações jurídicas que vão se formando em tor- aqueles de uso misto. no dos direitos de propriedade a eles relacio- Outro cruzamento de tipos mostra que nados ao longo do tempo, a história jurídica do 18% dos imóveis totalmente desocupados vão imóvel tende a se tornar mais complexa com ser tombados. Quando somente o térreo está o passar dos anos. Em geral, quanto maior o ocupado, esse número sobe para 42,6%. Gran- número de disputantes, mais cara a defesa jurí- de número de imóveis tombados apresenta si- dica dos direitos de propriedade. nais de ruínas nos andares superiores. Para uso Imóveis tombados são particularmente do imóvel como estacionamento ou loja, isso sensíveis aos custos de manutenção física, mas, não representa um problema grave, pois os an- dependendo de sua proximidade de demanda dares superiores são utilizados apenas como de espaço para estacionamento, podem rapida- cobertura. Isso indica que a renda obtida pelo mente se converter em estacionamentos sem imóvel não é suficiente para cobrir sua depre- aumento de custos físicos de manutenção. É ciação física, mas é suficiente para garantir sua por isso que há tantos deles. A utilização de imóveis sem construções viabilidade econômica. A manutenção de um imóvel em boas ou com construções leves, como galpões de condições de habitabilidade e dentro da lei en- cobertura para uso exclusivo como estaciona- volve custos que podem ser decompostos da mento, por outro lado, apresenta custos mui- seguinte maneira: to baixos. Com exceção de tributação sobre o • custos relativos à manutenção física do imóvel; 622 Book CM v11_n22.indb 622 imóvel (IPTU) e sobre o serviço prestado pelos manobristas (folha de pagamentos e ISS), os Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:56 Padrões espaciais de ociosidade imobiliária e o Programa Morar no Centro... outros custos são praticamente inexistentes. terrenos utilizados exclusivamente como Desde que a demanda por vagas seja suficiente estacionamentos. para gerar uma renda maior do que a taxa de No Mapa 3, a representação sugere uma juros de mercado, esse tipo de uso se justifica presença generalizada de observações com al- do ponto de vista econômico. Outro fato que guns pontos focais nos setores 3, 6, 7, 8, 13, chama atenção é que, de todos os imóveis ob- 17 e 23. servados, apenas seis estavam ocupados irre- Quando separamos as construções subo- gularmente por pessoas ligadas a movimentos cupadas (desocupadas, somente com o térreo organizados de moradia. ocupado e com mais da metade dos andares Os imóveis catalogados estão distribuí- desocupados) dos terrenos sem construções dos por todo o território considerado, mas não utilizados como estacionamentos, sua distribui- aleatoriamente. Existem aglomerados de imó- ção no espaço é muito distinta. Isso sugere que veis que surgem em determinadas regiões. Há o motivo econômico pelo qual estão subutiliza- várias hipóteses para a ocorrência desse fe- dos é diferente, e pode-se mostrar que, de fato, nômeno, entre elas a ocorrência de acidentes os dois tipos de ineficiência estão relacionados geográficos, proximidade de vias de grande cir- a categorias distintas de externalidades. culação de automóveis e existência de outros A diferença mais óbvia é que no Mapa imóveis em situação semelhante, uma espécie 5 a disposição dos estacionamentos forma um de “externalidade negativa” causada pela pró- anel relativamente uniforme em torno dos cal- pria existência de outros prédios abandonados çadões. Já no Mapa 4, onde só foram contadas no entorno. as construções subocupadas, não se pode di- Para ilustrar esse fenômeno, os mapas a zer que há uniformidade. A grande maioria das seguir mostram a região dos distritos Repúbli- observações se encontra nos setores onde es- ca e Sé recortadas por células quadradas de tão os calçadões (6, 8, 18), nos setores ao lon- 100m de lado. Os pontos indicam imóveis em go da parte norte do Vale do Anhangabaú (3 condições de subocupação. A escala de cinza e 25), e nos setores 15 e 13. Este último, com indica a quantidade de imóveis em condição sérios problemas de degradação, conhecido de subocupação encontrada em cada célula. como a “antiga cracolândia”, tem passado por Desta forma, os mapas criam melhores condi- intervenções públicas por ocasião das obras da ções de visualização da distribuição espacial Linha 4 do Metrô. Há “vazios” em vários se- desses imóveis. Os distritos também foram tores, chamando a atenção para aqueles que divididos em “setores” formando uma espécie estão em áreas de intensa atividade comercial de mosaico (indicados pelos números dentro especializada, como o setor 12 de comércio de dos ovais com fundo branco) para facilitar sua eletrônicos e os setores 4 e 5 onde há comér- descrição. cio de produtos têxteis. Outros setores, como o No Mapa 3 contam-se todos os imó- 10, 11, 14, 16 e 19 são setores onde há muitos veis cadastrados. No Mapa 4 são contados prédios residenciais, corroborando, em par- apenas os prédios (construções) desocupados te, a ideia de que o uso residencial previne a e subocupados e no Mapa 5 apenas os degradação. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 623 623 17/3/2010 12:49:56 Fernando Cardoso Cotelo Mapa 3 – Contagem de imóveis subutilizados nos distritos Sé e República imóveis desocupados, térreo-ocupados, parcialmente ocupados estacionamentos mosaico calçadões contagem de todos os imóveis observados em cada célula 0 1 2 3 4-5 6-7 Fonte: Elaboração própria. 624 Book CM v11_n22.indb 624 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:56 Padrões espaciais de ociosidade imobiliária e o Programa Morar no Centro... Mapa 4 – Contagem de imóveis em condição de subocupação nos distritos Sé e República imóveis desocupados, térreo-ocupados, parcialmente ocupados estacionamentos mosaico calçadões contagem de todos os imóveis subocupados em cada célula 0 1 2 3 4-5 6-7 Fonte: Elaboração própria. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 625 625 17/3/2010 12:49:56 Fernando Cardoso Cotelo Mapa 5 – Contagem de imóveis sem construção utilizados exclusivamente como estacionamento nos distritos Sé e República estacionamentos imóveis desocupados, térreo-ocupados, parcialmente ocupados mosaico calçadões contagem de todos os estacionamentos em cada célula 0 1 2 3 4-5 6-7 Fonte: Elaboração própria. 626 Book CM v11_n22.indb 626 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:56 Padrões espaciais de ociosidade imobiliária e o Programa Morar no Centro... Mais adiante veremos como o Programa Nacional de Habitação, vinculada ao Ministério Morar no Centro falha ao não ter levado em das Cidades. O texto se refere especificamente consideração o fato de existirem essas diferen- ao “equacionamento do problema da moradia ças na distribuição espacial dos imóveis subuti- para a população de baixa renda” como priori- lizados ao escolher os imóveis que seriam alvos dade principal do programa. O governo federal disponibiliza uma série de requalificação. O fato de que a área dos terrenos utili- de programas para a habitação popular. zados exclusivamente como estacionamentos é É importante mostrar quais são os prin- duas vezes maior do que a área correspondente cípios pelos quais a política oficial se rege no a edifícios subocupados é suficiente para esva- tocante à questão dos subsídios. O texto men- ziar a importância especificamente de políticas cionado acima, em seu capítulo sobre os obje- de reforma e requalificação de edifícios para tivos gerais da Política Nacional de Habitação, fins residenciais. As dificuldades em orçar obras no que se refere à questão da mobilização de nessas condições são frequentemente maiores recursos, identificação da demanda e gestão de do que realizar orçamentos para prédios no- subsídios, estabelece os seguintes princípios: vos, uma vez que edifícios antigos apresentam 1) promoção e apoio a mecanismos de toda sorte de problemas estruturais difíceis de transferências de recursos não onerosos (na detectar. forma de transferência de renda) para atender Entretanto, as informações coletadas em a parcela de população sem capacidade de campo podem servir de subsídios para descobrir pagamento de moradia, identificada como per- como criar incentivos para que a ocupação de tencente à faixa de população abaixo da linha um número inicial de imóveis gere uma massa de pobreza; crítica suficiente para gerar externalidades po- 2) concessão de subsídio à família e não ao sitivas em seu entorno e um aumento da renda imóvel, de forma “pessoal, temporária e intransferível”. O subsídio será dado uma única vez em todo o território nacional, para famílias que não possuam outro imóvel, o que implica necessidade de um sistema de informações; 3) estruturação de uma política de subsídios que deverá estar vinculada à condição socioeconômica do beneficiário, e não ao valor do imóvel ou do financiamento, possibilitando sua revisão periódica; 4) recuperação, ao longo do prazo, de financiamento para aquisição, ao menos de parte dos subsídios concedidos, considerada a evolução socioeconômica das famílias; 5) recuperação total do subsídio concedido , nos casos de revenda ou alteração dos do proprietário compatível com a manutenção física do imóvel. A utilização do PAR na revitalização do Centro Histórico de São Paulo O documento oficial que expõe as intenções do atual governo federal em relação à forma institucional que deve operacionalizar e viabilizar o financiamento para o mercado imobiliário residencial é o texto chamado Política nacional de habitação (Brasil, 2004) editado pela Secretaria Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 627 627 17/3/2010 12:49:56 Fernando Cardoso Cotelo beneficiários durante a vigência do contrato de aluguel propriamente dito nem uma promessa financiamento. de compra e venda, como veremos a seguir. Essa série de princípios foi aplicada na O programa estabelece que a tipologia idealização do programa de financiamento pe- mínima de cada unidade deva ser de dois quar- lo qual estamos interessados, o Programa de tos, sala, cozinha e banheiro, com área mínima Arrendamento Residencial (PAR). Esse progra- de 37m², mas é flexível no caso de projetos de ma tem sido a via financeira disponível para a requalificação, pois muitas vezes as plantas dos operacionalização de programas de requalifica- prédios a serem requalificados ou reformados ção de prédios para efeito de revitalização em não são facilmente conversíveis em unidades regiões centrais degradadas quando a intenção com as características mínimas recomendadas é promover sua ocupação com famílias de bai- pelas regras gerais do programa. Em sua maioria, os projetos do Programa Morar no Centro xa renda. Esses princípios, que tendem a vincular o financiamento às pessoas, e não aos imóveis em si, podem gerar incentivos perversos que tendem a promover alocações ineficientes, baixos incentivos à boa manutenção dos imóveis, geração de mercados ilegais e perder uma boa oportunidade de realizar verdadeiras transferências de renda para as famílias pobres envolvidas. O PAR é uma linha de financiamento que visa a arrendar unidades habitacionais para famílias com renda familiar mensal próxima de seis salários mínimos, contemplando algumas exceções. Estabelecendo regras para que selecionem famílias para participar do programa a partir de uma medida de renda, sem prejuízo de outras discriminações que se queiram fazer, o Programa de Arrendamento Residencial cumpre os princípios 1, 2 e 3 acima. O contrato de arrendamento significa que, tecnicamente, o ar- contemplavam apartamentos com área menor do que 37m². O valor máximo por unidade a ser financiada era, em 2004, de R$40.000 na Região Metropolitana de São Paulo. A oferta funciona da seguinte forma: a construtora interessada apresenta o projeto à Caixa, que, no decorrer do cronograma da obra, libera os pagamentos para o construtor. Uma vez que este termina a construção, sai do negócio e em seu lugar entra uma administradora encarregada de manter as condições do prédio, cobrando uma comissão que é paga na proporção de 9,5% da arrecadação do arrendamento e encargos por atraso. Segundo as regras do programa, os projetos são escolhidos de acordo com as seguintes diretrizes: • menor valor das unidades habitacionais conforme o projeto padrão para cada faixa de renda a ser atendida; • maior contrapartida do poder público lo- rendatário “aluga” a casa ou apartamento com cal, por meio de aporte de recursos financeiros, uma opção de compra que não pode ser exerci- doação de áreas, execução de infraestrutura ou da a qualquer momento durante a vigência do isenção de taxas ou tributos; contrato. A palavra aluga está entre aspas por- • menor taxa de condomínio; que o arrendamento residencial é uma cons- • integração a programas de qualificação de trução jurídica que não é nem um contrato de 628 Book CM v11_n22.indb 628 centros urbanos. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:57 Padrões espaciais de ociosidade imobiliária e o Programa Morar no Centro... Pelos princípios 4 e 5 da gestão de sub- preço de mercado de seu imóvel subir muito, sídios da Política Nacional de Habitação, o ele sempre pode encontrar um comprador e subsídio deve ser concedido de forma a que pré-pagar o financiamento, o que equivale a uma parte seja recuperada no caso de cum- repassá-lo adiante com ágio. primento das obrigações e totalmente recupe- No caso do PAR, se houver uma discre- rada no caso de transferência do bem. Isto se manifesta no contrato da seguinte forma: pelo lado do arrendatário, a renda familiar mensal mínima requerida é de R$1.800. O arrendatário faz um contrato com a Caixa Econômica Federal chamado de Instrumento Particular de Arrendamento Residencial com Opção de Compra. O prazo de arrendamento é de 180 meses (15 anos) e a taxa de arrendamento é de 0,7% do valor do imóvel. Ao final do prazo de arrendamento o arrendatário pode optar pela devolução, pela compra ou pela renovação do arrendamento. No caso de desistência ou inadimplência, o arrendatário não tem direito a recuperar os valores pagos a título de arrendamento. Dentro da tipologia proposta por Angel (2000) o PAR apresenta, pelo lado da oferta, uma combinação de transferências diretas dos governos locais para os construtores, assim como a aquisição e venda de terrenos por valores abaixo do valor de mercado e controle de preços, uma vez que a parcela a ser paga pelo arrendatário é fixada de acordo com o valor estipulado pelo órgão gestor do programa. O problema de o arrendamento funcionar como uma espécie de controle de preços é que esse tipo de contrato não tem a flexibilidade necessária para tolerar variações nos preços. Num contrato de financiamento bancário, se a família, em algum momento de sua vigência, achar que pode repassar o financiamento por um preço maior a outro interessado, pode fazê-lo de pleno direito. Na hipótese de o pância entre o preço de mercado (ou aluguel) de um imóvel com características semelhantes no entorno, surgirão incentivos para que o arrendatário subloque sua unidade e embolse o excedente. O mesmo pode ocorrer se o imóvel for construído em uma área onde o entorno é habitado por famílias com renda equivalente morando em imóveis de pior qualidade. É recorrente o surgimento de denúncias de esquemas de fraude em programas do CDHU, a companhia mantida pelo governo do estado de São Paulo e nos Projetos Cingapura da Prefeitura de São Paulo. O motivo é sempre o mesmo: algumas famílias contempladas pelo programa, em algum momento, percebem que estão consumindo um produto cujo valor mensal supera o valor que desejam, preferindo consumir um produto de pior qualidade (alugar um apartamento menor, ou em outro local, ou mesmo em uma favela, por exemplo) e embolsar parte do excedente para satisfazer outras necessidades. Uma vez que a maioria dos contratos firmados nesse tipo de programa não pode ser transferida a outras famílias que ofereceriam um valor maior pelos imóveis, o que geralmente ocorre é a intervenção de “máfias” atuando como intermediários entre os compradores originais e aqueles que estão dispostos a pagar um prêmio pela moradia. São firmados “contratos de gaveta” cujo cumprimento é garantido por intimidação e constrangimento ilegal. Além de fomentar um mercado ilegal, esse tipo de intermediação é ineficiente do ponto de Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 629 629 17/3/2010 12:49:57 Fernando Cardoso Cotelo vista econômico, pois dissipa renda entre agentes que não produzem. O Censo Demográfico do IBGE para o ano 2000 produziu microdados do universo da O que quero enfatizar aqui é que, mesmo pesquisa associados a um mapa dos setores que, por razões ideológicas e políticas justificá- censitários. Não há, entretanto, uma variável veis, entendêssemos que o formato de contrato que indica a renda familiar média no setor, imposto pelo PAR fosse ideal, isso não muda o apenas o valor acumulado da renda de todos fato de que, uma vez celebrados os contratos, os responsáveis pelo domicílio. A renda média os imóveis de uma maneira ou de outra estão do chefe de domicílio é calculada tomando-se sujeitos às forças de mercado. Assim sendo, os a renda acumulada do distrito e dividindo-a arrendatários ou locatários mudarão seu com- pela quantidade de responsáveis dentro do portamento para acomodar uma situação em setor. que a sua renda ou afetividade pelo imóvel não Uma possível estimativa da renda média é compatível com seu valor de mercado. Eles domiciliar consiste em tomar a renda familiar tenderão a quebrar subrepticiamente os con- média da área de ponderação onde o setor se tratos se a situação assim se impuser. localiza e encontrar a proporção da renda mé- O problema se torna mais complexo pe- dia do responsável em relação à renda média lo fato de que a própria escolha da localização domiciliar. A partir daí, retorna-se aos valores dos imóveis que integram o programa pode al- encontrados para os responsáveis dentro dos terar o valor dos imóveis em seu entorno. Isso setores censitários e calcula-se o inverso des- sugere a necessidade de escolher a localização sa proporção, obtendo-se a estimativa para a dos imóveis candidatos a esse tipo de progra- renda média domiciliar dentro do setor censi- ma de uma maneira que seja compatível com a tário. Como as regras do PAR se referem a va- distribuição espacial da renda no local onde o lores considerados no final do ano de 2004, foi projeto deve ser implantado. necessário atualizar os valores encontrados no A escolha de localização das famílias depende da escolha de localização de outras Censo e o índice utilizado foi o IPC-A, calculado pelo próprio IBGE. famílias, uma vez que existem efeitos de ex- O próximo exercício é criar um mapa in- ternalidades. Assim sendo, uma política pública dicando a renda média domiciliar por setor e que visa acomodar residências em imóveis que verificar se a localização dos projetos PAR é não foram originalmente projetados para isso consistente com a ideia de que não pode haver tem que levar em consideração a vizinhança do muita diferença de renda familiar entre a renda imóvel. Um dos determinantes das externalida- média do setor e a renda máxima das famílias des de vizinhança que podemos observar é a a serem alocadas no projeto residencial. renda média familiar nos arredores do local es- O Mapa 6 mostra a região dos distritos Sé colhido. Uma vez que a renda familiar mensal e República com a representação aproximada é justamente o critério principal para a escolha dos terrenos onde se localizam os imóveis le- das famílias que podem participar do programa vantados. Os pequenos círculos representam a PAR, faz-se necessária uma análise geográfica localização e as gradações de cinza representam da renda nas localidades. o tipo de ocupação encontrada nos imóveis. 630 Book CM v11_n22.indb 630 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:57 Padrões espaciais de ociosidade imobiliária e o Programa Morar no Centro... Mapa 6 – Unidades PAR propostas e renda média familiar dos setores censitários Legenda observações desocupados térreo e sobreloja ocupados menos da metade dos andares ocupados unidades PAR propostas setores censitários – renda domiciliar estimada até R$1.800 acima de R$1.800 Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Secretaria de Habitação de São Paulo. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 631 631 17/3/2010 12:49:57 Fernando Cardoso Cotelo Se é verdade que as famílias escolhem onde a população original tem renda menor do o lugar onde vão morar levando em conside- que a renda típica da família contemplada no ração características socioeconômicas de seus programa pode ocorrer um efeito em cadeia vizinhos (veja Abramo, 2007; Becker, 1981 e que traga valorização para os imóveis no en- Schelling, 1978), dando preferência para locali- torno. Nesse caso, a população original sofrerá zações onde morem outras famílias com renda com o aumento de seu aluguel e uma parte dela igual ou maior à renda da própria família que acabará tendo que deixar o local, dando causa faz a escolha locacional, então é de fundamen- para o fenômeno que os planejadores urbanos tal importância que se leve em consideração a chamam de “processo de gentrificação”. condição financeira das famílias que moram no Um modelo simples de segregação es- entorno antes de escolher o imóvel que será pacial formulado por Schelling (1978) também objeto da política pública. sugere que esses efeitos dependem de uma O que não é desejável é que se criem “massa crítica” necessária para que a dinâmica condições para o estabelecimento de famílias dos deslocamentos se torne autossustentada. com rendas muito díspares em regiões muito Essa afirmação pode ser entendida intuitiva- próximas, pois isto tenderia a criar movimentos mente da seguinte maneira: imagine uma qua- imprevisíveis de população. dra com 100 famílias e uma renda média de No caso de se instalarem programas de R$1.000 por mês. Se uma determinada classe habitação popular em quadras onde a popu- de famílias está disposta a morar na quadra lação residente tenha renda muito maior do contanto que a metade das famílias da quadra que a renda típica das famílias contempladas tenha renda maior ou igual à sua, no momento pela política pública de habitação, o que pode em que uma família com renda alta resolve dei- ocorrer é uma fuga das famílias originalmente xar a quadra, a renda média da quadra passa a instaladas devido ao seu desejo de não morar ser menor do que R$1.000. Isso levará outras próximo a outras famílias mais pobres. famílias a deixarem a quadra provocando uma Por outro lado, pode também ocorrer reação em cadeia. que famílias com rendimento maior desejem se O ponto importante que esse modelo aproveitar da margem existente entre o preço sugere é que existe uma massa crítica que de- de mercado do aluguel na quadra e o preço termina a sensibilidade dessa dinâmica. Uma subsidiado do imóvel do programa público. consequência estatística desse modelo é que Esse é o caso em que estão dispostas a pagar quanto maior o número de pessoas a serem um prêmio para a família contemplada pelo consideradas, menor a probabilidade de que o programa público que seja o suficientemente deslocamento de qualquer uma família provo- maior do que a prestação do arrendamento e que uma reação em cadeia. suficientemente menor do que o preço de mer- Por esse motivo, um programa de re- cado, e é o caso que torna possível a atuação vitalização baseado na ocupação de prédios de máfias. desocupados transformados em moradia tem No caso oposto, aquele em que o pro- maior chance de atingir seus objetivos quando grama público escolhe um imóvel numa quadra se concentram os imóveis escolhidos, de modo 632 Book CM v11_n22.indb 632 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:57 Padrões espaciais de ociosidade imobiliária e o Programa Morar no Centro... a alocar famílias com rendas semelhantes pró- (2006) reproduz um extenso estudo apresen- ximas umas às outras. tando um “levantamento e avaliação dos ins- O Mapa 6 mostra como a escolha de lo- trumentos urbanísticos e tributários instituídos calização dos imóveis que fariam parte do pro- ou implementados nos últimos quinze anos na grama negligenciou a dimensão espacial, tanto área central de São Paulo”. Seus autores cha- no que se refere à escolha de acordo com a mam a atenção para o emaranhado de proble- distribuição geográfica da renda como à neces- mas jurídicos relacionados aos imóveis ociosos sidade de criar uma “massa crítica” de imóveis e sua implicação na dificuldade de estabelecer de modo a acumular famílias com condições programas e obter resultados impactantes. O econômicas semelhantes próximas umas às estímulo ao repovoamento da região central outras. através da reforma e requalificação de imóveis Os pontos marcados com um círculo no abandonados financiado pelo PAR foi apenas mapa mostram imóveis que, à época em que uma de uma série de medidas adotadas para foi feito o levantamento, estavam totalmente reverter a situação de degradação e abandono desocupados, encontravam-se somente com em que a região se encontra. seu térreo e sobrelojas comerciais ocupadas ou com mais da metade de seus conjuntos comerciais vagos. Os triângulos representam as localiza- Conclusão ções propostas para o programa de revitalização. Percebe-se que não se encontram próximas Em primeiro lugar, evidencia-se a necessidade umas das outras e grande parte está dispersa da realização de estudos de campo que pro- entre quadras com rendas médias maiores do curam identificar a extensão e os padrões es- que a da população-alvo. paciais de incidência de imóveis subutilizados A escolha de imóveis para esse tipo de do ponto de vista da compatibilidade entre a programa habitacional está longe de ser um densidade demográfica, o uso e a disponibili- problema trivial. Em geral ela depende de fato- dade de infraestrutura da região do Centro His- res que vão desde a condição física do imóvel tórico. O estudo mostrou que a subutilização e consequente viabilidade técnica do projeto ocorre em padrões espaciais distintos quando de reforma, passando por problemas de ordem se consideram separadamente construções tributária e até mesmo a existência de direitos subocupadas e imóveis utilizados exclusiva- patrimoniais contestados por herdeiros, como mente como estacionamentos. O principal de- é o caso de muitos dos imóveis abandonados terminante parece ser de ordem urbanística e no Centro de São Paulo. O documento elabo- institucional. A introdução dos calçadões criou rado pelo Laboratório de Habitação e Assenta- dificuldades à circulação de automóveis que, mentos Humanos da Faculdade de Arquitetura aparentemente, afetou bastante, por um lado, e Urbanismo da Universidade de São Paulo a incidência de construções de uso comercial intitulado Observatório do uso do solo e da que se encontram atualmente desocupadas e, gestão fundiária de do Centro de São Paulo por outro lado, gerou uma demanda por vagas Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 633 633 17/3/2010 12:49:57 Fernando Cardoso Cotelo de estacionamento em todo o seu entorno. O É compreensível que a Prefeitura quises- desenvolvimento do parcelamento do solo e se fazer uma experiência inicial para testar os das normas de construção criou limitações a resultados da proposta dessas políticas. Nesse inovações arquitetônicas e, por consequência, sentido, parecia razoável fazer uma intervenção limitou a possibilidade de que os empresários inicial em um pequeno número de imóveis. Por da construção pudessem obter maiores ganhos isso foram escolhidos 24 imóveis, menos de 5% econômicos com produtos diferenciados, tanto do total daqueles parcial ou totalmente ociosos para uso comercial como para uso residencial, ou estacionamentos encontrados somente nos o que levou ao desinteresse e a quase ausên- distritos Sé e República, que poderiam tornar-se cia de novos empreendimentos imobiliários na alvo de uma política urbana mais agressiva, ca- região nos últimos 15 anos (Sandroni, 2004). A so o plano piloto fosse bem-sucedido. Todavia, grande quantidade de terrenos utilizados como ao não ser considerado o problema das siner- estacionamentos atesta o uso econômico alter- gias, a experiência não teve um impacto signifi- nativo do solo. cativo na mudança do perfil de ocupação do so- A grande quantidade de área disponível, lo urbano. Este estudo sugere que o maior pro- em contraposição ao relativamente pequeno blema da abordagem implementada não esteve número de projetos PAR demonstra a timidez no pequeno número de imóveis focalizados, da intervenção governamental e sua relativa pois provavelmente limitações orçamentárias e/ dispersão demonstra uma falta de atenção à ou problemas jurídicos dificultariam a aplicação questão das externalidades e sinergias locais, dessa política a uma quantidade maior. Por esse uma vez que ficou demonstrado que a incidên- motivo, especial atenção deveria ter sido dada à cia de imóveis subocupados tende a ocorrer em localização dos imóveis escolhidos; um impac- pontos focais. Isto sugere que o problema deve to positivo numa área pequena teria permitido ser atacado não com intervenções dispersas, um teste mais consistente da política proposta. mas de forma a escolher uma localidade onde Consideramos que a excessiva dispersão espa- se concentrem projetos. cial dos prédios nos quais foram aplicados os A localização de projetos habitacionais planos fez com que o impacto das intervenções para famílias de baixa renda em quadras onde se diluísse e, portanto, essa abordagem teria a renda média é mais elevada invoca a hipótese condenado o plano ao fracasso antes mesmo de de Schelling sobre a dinâmica dos deslocamen- que ele saísse do papel. tos de massa devidos a mudanças pontuais nos Finalmente, é essencial ter em mente padrões de externalidades de vizinhança. En- que o estudo de campo mostra apenas uma tretanto, há uma grande diferença de faixas de “imagem” congelada no tempo e, portanto, renda entre os setores do mosaico. Com uma po- não se pode fazer inferências sobre a dinâmica lítica mais flexível, talvez mais tolerante a algum da população induzida por essas intervenções, grau de segregação espacial por renda pode se permanecendo a hipótese de Schelling apenas mostrar mais estável e previsível, possibilitando uma conjectura e, a fortiori, apontando para a uma maior gama de programas de incentivos e necessidade de um acompanhamento perma- a indução da participação do setor privado. nente do mercado imobiliário da região. 634 Book CM v11_n22.indb 634 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 17/3/2010 12:49:57 Padrões espaciais de ociosidade imobiliária e o Programa Morar no Centro... Fernando Cardoso Cotelo Bacharel em administração pública pela Fundação Getulio Vargas. Bacharel em direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em economia política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutor em economia de empresas pela Fundação Getulio Vargas (São Paulo, Brasil). [email protected] Referências ABRAMO, P. (2007). A cidade caleidoscópica: coordenação espacial e convenção urbana: uma perspectiva heterodoxa para a economia urbana. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. ANGEL, S. (2000). Housing Policy Matters: a global analysis. Nova York, Oxford University Press. BECKER, G. (1981). A Treatise on the Family. Cambridge, MA, Harvard University Press. BRASIL (2004). Política nacional de habitação. Disponível em: http://www.cidades.gov.br/secretariasnacionais/secretaria-de-habitacao/politica-nacional-de-habitacao/4PoliticaNacionalHabitacao. pdf. Acesso em 8 de junho de 2009. CLICHEVSKY, N. (1999). “La tierra vacante en América Latina”. In: SMOLKA, O. e MULLAHY, L. (eds.). Perspectivas urbanas: temas críticos en políticas de suelo en América Latina. Cambridge, MA, Lincoln Institute of Land Policy. EMPRESA MUNICIPAL DE URBANIZAÇÃO e PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO (2004). Caminhos para o Centro: estratégias de desenvolvimento para a região central de São Paulo. São Paulo, PMSP – Cebrap – CEM. PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO (2004). Programa morar no Centro. São Paulo, PMSP. SANDRONI, P. (2004). “A dinâmica imobiliária da cidade de São Paulo: esvaziamento, desvalorização e recuperação da região central”. In: EMPRESA MUNICIPAL DE URBANIZAÇÃO e PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Caminhos para o Centro: estratégias de desenvolvimento para a região central de São Paulo. São Paulo, PMSP – Cebrap – CEM. SCHELLING, T. (1978). Micromotives and macrobehavior. Nova York, W.W. Norton & Company. SILVA, H. M. M. B. (coord.) (2006). Observatório do uso do solo e da gestão fundiária do Centro de São Paulo. Disponível em: www.usp.br/fau/depprojeto/labhab. Acesso em 8 de junho de 2009. Texto recebido em 10/maio/2009 Texto aprovado em 5/jul/2009 Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 615-635, jul/dez 2009 Book CM v11_n22.indb 635 635 17/3/2010 12:49:57 Book CM v11_n22.indb 636 17/3/2010 12:49:57 Cadernos Metrópole A Revista Cadernos Metrópole, de periodicidade semestral, tem como enfoque o debate de questões ligadas aos processos de urbanização e à questão urbana, nas diferentes formas que assume na realidade contemporânea. Trata-se de periódico dirigido à comunidade acadêmica em geral, especialmente, às áreas de Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional, Demografia e Ciências Sociais. A revista publica textos de pesquisadores e estudiosos da temática urbana, que dialogam com o debate sobre os efeitos das transformações socioespaciais no condicionamento do sistema político-institucional das cidades e os desafios colocados à adoção de modelos de gestão baseados na governança urbana. Os artigos recebidos para publicação devem ser inéditos e serão submetidos à apreciação dos membros do Conselho Editorial ou de consultores ad hoc para emissão de parecer. Será respeitado o anonimato tanto do autor quanto do parecerista. Caberá aos Editores Científicos a seleção final dos textos aprovados para publicação pelos pareceristas, levando-se em conta a quantidade de artigos a ser publicada em cada número e a oportunidade do tema. A revista não se compromete a devolver os originais não publicados, embora os autores sejam comunicados da decisão final. Os artigos podem ser redigidos em língua portuguesa ou espanhola. Os artigos apresentados em outros idiomas serão traduzidos para o português. A revista não tem condições de pagar direitos autorais nem de distribuir separatas. Cada autor receberá três exemplares do número em que for publicado seu trabalho. Os trabalhos devem ser encaminhados em CD (artigo sem identificação do autor e folha de rosto), em 2 (duas) vias impressas, digitadas em espaço 1,5, fonte arial tamanho 11, margem 2,5, tendo no máximo 25 (vinte e cinco) páginas, incluindo tabelas, gráfi cos, fi guras, referências bibliográficas. Devem ter um resumo de, no máximo, 120 (cento e vinte) palavras em português ou na língua em que o artigo foi escrito e outro em inglês, com indicação de 5 (cinco) palavras-chave. Os textos devem ser em Word; tabelas e gráfi cos em Excel; imagens em formato TIF, com resolução mínima de 300 dpi e largura máxima de 13 cm; os gráficos e imagens devem ser em tons de cinza. Os créditos do(s) autor(es) serão colocados na folha de rosto com as seguintes informações, por extenso: nome do autor, formação básica, instituição de formação, titulação acadêmica, atividade que exerce, instituição em que trabalha, unidade e departamento, cidade, estado, país, e-mail, telefone e endereço para correspondência. É imprescindível o envio, juntamente com as cópias impressas, do Instrumento Particular de Autorização e Cessão de Direitos Autorais, constante da chamada de trabalhos, datado e assinado pelo(s) autor(es). Os trabalhos devem ser enviados para Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 – São Paulo, SP, Brasil. Book CM v11_n22.indb 637 17/3/2010 12:49:57 As referências bibliográficas deverão ser colocadas no final do artigo, seguindo rigorosamente as seguintes instruções: Livros AUTOR ou ORGANIZADOR (org.) (ano de publicação). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra. Capítulos de livros AUTOR DO CAPÍTULO (ano de publicação). “Título do capítulo”. In: AUTOR DO LIVRO ou ORGANIZADOR (org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em Salvador”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar. Artigos de periódicos AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do periódico, número do periódico, páginas inicial e final do artigo. Exemplo: TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos Sociais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28. Trabalhos apresentados em eventos científicos AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, número, ano, local de realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e final. Exemplo: SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle social, monitoramento e execução, parceiras e financiamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília, MPAS/SAS, pp. 193-207. Teses, dissertações e monografias AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição. Exemplo: FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH. Textos retirados de Internet AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso. Exemplo: FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Disponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em 8 set. 2005. Book CM v11_n22.indb 638 17/3/2010 12:49:57 Próximas Chamadas de Trabalho Cadernos Metrópole n. 23 Organização interna das metrópoles: trabalho e moradia. Conexões e desconexões Neste número propomos reunir trabalhos que analisem a mudanças das relações entre as dinâmicas do mercado de trabalho e da moradia na organização interna das metrópoles e suas consequências em termos de acessibilidade dos pobres ao emprego, à renda e aos bens coletivos, desigualdades, segregação, etc. Será que estamos em vias de transformação do clássico modelo centro-periferia das nossas metrópoles ou há uma continuidade deste modelo em outra escala com a constituição de várias centralidades e periferias? Data-limite para postagem dos trabalhos: 30 de outubro de 2009 Cadernos Metrópole n. 24 Metrópoles: desconcentração ou novo modelo de configuração urbana? Neste número pretendemos reunir textos que coloquem em discussão o tema do suposto crescimento do interior do Brasil em detrimento das áreas metropolitanas. Por outro lado, vários trabalhos têm chamado a atenção da continuidade da força concentradora das grandes cidades no Brasil, embora sob outras configurações territoriais que inclui em sua área de influências outras cidades consideradas como interior. Data-limite para postagem dos trabalhos: 15 de fevereiro de 2010 Book CM v11_n22.indb 639 17/3/2010 12:49:57 Onde adquirir Cadernos Metrópole Raquel Cerqueira (11) 3368.3755 - 9931.9100 [email protected] Porto Alegre - RS ● FEE - Rosetta Mammarella (51) 3216.9028 [email protected] Belém - PA ● UFPA - Livraria do Campus Univ. do Guamá (91) 3201.7351 - 3201.7357 [email protected] Recife - PE ● UFPE - Maria Angela de Almeida Souza (81) 3421.3628 [email protected] Belo Horizonte - MG ● Programa de Pós-Grad. em C. Sociais - PUC/MG ● Rio de Janeiro - RJ Luciana Teixeira de Andrade (31) 3462.2900 ● Observatório das Metrópoles - UFRJ - Beth Observatório de Políticas Urbanas da Proex - PUC/MG Luciana Teixeira de Andrade (31) 3319.4588 [email protected] ● Susanne Bach Comércio de Livros Ltda. Curitiba - PR - Rosa Moura (41) 3351.6324 [email protected] ● UFBA - Gilberto Corso Pereira ● Ipardes Fortaleza - CE ● UFCE - Luis Renato Pequeno (85) 3366.9864 [email protected] Goiânia - GO ● UCG - Aristides Moysés (62) 3946.1191 [email protected] (21) 2598.1932 - (21) 2598.1950 fax [email protected] (21) 2573.2512 [email protected] Salvador - BA (71) 3332.1980 / 9955.1015 [email protected] São Paulo - SP ● B.K.S. Livraria Especializada Antonio Ricarte (11) 3129.5176 Dafam ● Fupam - Fundação para a Pesquisa Ambiental (11) 3554.6060 - Ingrid [email protected] ● Instituto Pólis (11) 2174.6800 Maringá - PR ● UEM - Ana Lucia Rodrigues (44) 3261.4287 [email protected] Natal - RN ● UFRN - Janaína Maria da C. Silveira (84) 3215.3836 [email protected] Book CM v11_n22.indb 640 ● Livraria Cortez (11) 3873.7111 [email protected] ● Livraria Moisés Limonad (11) 3871.2023 [email protected] ● Programa de Pós-Grad. em C. Sociais - PUC/SP (11) 3670.8609 [email protected] 17/3/2010 12:49:57 Cadernos Metrópole vendas e assinaturas Exemplar avulso: R$20,00 Assinatura anual (dois números): R$36,00 Enviar a ficha abaixo, juntamente com o comprovante de depósito bancário realizado no Banco do Brasil, agência 3326-x, conta corrente 10547-3, ou enviar cheque para a Caixa Postal nº 60022 - CEP 05033-970 - São Paulo – SP – Brasil. Telefax: (11) 3368.3755 Cel: (11) 9931.9100 [email protected] Exemplares nºs _________ Assinatura referente aos números _____ e _____ Nome ___________________________________________ Endereço ________________________________________ Cidade ____________________ UF _____ CEP _________ Telefone ( Fax ( ) _______________ ) _____________ E-mail __________________________________________ Data ________ Book CM v11_n22.indb 641 Assinatura __________________________ 17/3/2010 12:49:57 Book CM v11_n22.indb 642 17/3/2010 12:49:57