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Johann Wolfgang von Goethe Carl Gustav Jung Georg Wilhelm Friedrich Hegel na Igreja e no mundo Diretor: Giulio Andreotti www.30giorni.it nella nella Chiesa Chiesa e e nel nel mondo mondo MENSILE SPED. IN ABB. POST. Tar. Economy Taxe Percue Tassa Riscossa Roma. ED. TRENTA GIORNI SOC. COOP. A R. L. ISSN 1827-627X Suplemento OS CANTOS DA TRADIÇÃO “Não é o agnosticismo; o gnosticismo, este sim, é que é o perigo para a fé cristã” Palavras de Dom Luigi Giussani a João Paulo II no início da década de 1990 MENSILE SPED. ABB. POST. 45% D.L. 353/2003 (CONV. IN L. 27/02/04 N.46) ART.1, COMMA 1 DCB - ROMA. ANO XXIX - Romanina N.4/5 - 2011 R$ 15,00 - € 5 In caso di mancato recapito rinviare a Ufficio Poste Roma per la restituzione mittente previorecapito addebito. Inal caso di mancato rinviare a Uff. Poste Roma Romanina per la restituzione al mittente previo addebito. ISSN 0390-4539 If undelivered please return to sender, postage prepaid, via Romanina post office, Roma, Italy. En cas de non distribution, renvoyer pour restitution à lʼexpéditeur, en port dû, à Ufficio Poste Roma Romanina, Italie ano XXIX Sumário N. 4/5 ANO 2011 Na capa: “Não é o agnosticismo; o gnosticismo, este sim, é que é o perigo para a fé cristã”. Palavras de Dom Luigi Giussani a João Paulo II no início da década de 1990 EDITORIAL João Paulo II beato 4 — por Giulio Andreotti NESTE NÚMERO Oriente Médio p. 30 Do Líbano, uma mensagem de convivência. Entrevista com Sua Beatitude Béchara Raï novo patriarca de Antioquia dos Maronitas 3OGIORNI nella Chiesa e nel mondo Diretor Giulio Andreotti REDAÇÃO Via Vincenzo Manzini, 45 00173 Roma Tel.+39 06 72.64.041 Fax +39 06 72.63.33.95 Internet: www.30giorni.it E- mail: [email protected] Vice-Diretores Roberto Rotondo - [email protected] Giovanni Cubeddu - [email protected] Secretaria de redação [email protected] 3OGIORNI nella Chiesa e nel mondo é uma publicação mensal registrada junto ao Tribunal de Roma na data 11/11/1993 n. 501. A publicação beneficia-se de subsídios públicos diretos de acordo com a lei de 7 de agosto de 1990, n. 250 Redação Alessandra Francioni - [email protected] Davide Malacaria - [email protected] Paolo Mattei - [email protected] Massimo Quattrucci [email protected] Gianni Valente - [email protected] SOCIEDADE EDITORA Trenta Giorni soc. coop. a r. l. Sede legale: Via Vincenzo Manzini, 45 00173 Roma Gráfica Marco Pigliapoco - [email protected] Vincenzo Scicolone - [email protected] Marco Viola - [email protected] Conselho de Administração Giampaolo Frezza (presidente), Massimo Quattrucci (vice-presidente), Giovanni Cubeddu, Paolo Mattei, Roberto Rotondo, Michele Sancioni, Gianni Valente Imagens Paolo Galosi - [email protected] Colaboradores Pierluca Azzaro, Françoise-Marie Babinet, Marie-Ange Beaugrand, Maurizio Benzi, Lorenzo Bianchi, Massimo Borghesi, Lucio Brunelli, Rodolfo Caporale, Pina Baglioni, Lorenzo Cappelletti, Gianni Cardinale, Stefania Falasca, Giuseppe Frangi, Silvia Kritzenberger, Walter Montini, Jane Nogara, Stefano M. Paci, Felix Palacios, Tommaso Ricci, Giovanni Ricciardi Escritório Legal Davide Ramazzotti - [email protected] Diretor responsável Roberto Rotondo Tipografia Arti Grafiche La Moderna Via di Tor Cervara, 171 - Roma ESCRITÓRIO PARA ASSINATURA E DIFUSÃO Via Vincenzo Manzini, 45 - 00173 Roma Tel. +39 06 72.64.041 Fax +39 06 72.63.33.95 E-mail: [email protected] De segunda a sexta-feira das 9h às 18h e-mail: [email protected] VIDA CONSAGRADA As pretensões dos homens e a paciência de Deus Entrevista com João Braz de Aviz — por G. Valente 24 Uma prorrogação ad personam 27 — por G. Valente ORIENTE MÉDIO Do Líbano, uma mensagem de convivência Entrevista com Béchara Raï — por D. Malacaria 30 PÁSCOA 2011 A ressurreição de Cristo é um acontecimento Mensagem Urbi et orbi do Papa Bento XVI 38 COLÉGIOS ECLESIÁSTICOS DE ROMA Uma ponte entre Oriente e Ocidente 46 — por P. Baglioni Forja de patriarcas, de orientalistas e de futuros santos 47 — por P. Baglioni O arquipélago maronita 53 — por P. Baglioni NOVA ET VETERA Introdução — por L. Cappelletti O pacto com a Serpente — por M. Borghesi 58 60 Este número foi concluído na redação dia 31 de maio de 2011 Impressão concluída no mês de junho de 2011 CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS: Paolo Galosi: pp.4,6,7,8,9,16,,17,18,19,22,46,47,48,49,50,52,53,54, 55,56; Associated Press/LaPresse: pp.5,24,29,34,35,36,42,43,45; por gentil concessão de monsenhor Samir Nassar: pp.20-21; Romano Siciliani: pp.25,27; por gentil concessão de padre Sergio Durigon: p.26; STR New/Reuters/Contrasto: p.30; Epa/Ansa: pp.30-31; Osservatore Romano: pp.31,39,48,51; Patriarcato maronita: p.32; Epa/Corbis: p.33; Afp/Getty Images: p.34; por gentil concessão do Departamento de Patrimônio IPAB, Vicenza: p.41; por gentil concessão da Sala de Imprensa da Presidência da República italiana: pp.43,44; LaPresse: p.44; por gentil concessão da Sala de Imprensa da Cúria dos Jesuítas: p.49; Arquivo do Pontifício Colégio Maronita: pp.51,52; por gentil concessão da Ordem Antoniana Marianita de SantʼIsaia: p.57. SEÇÕES CARTAS DOS MOSTEIROS 6 LEITURA ESPIRITUAL 10 CARTAS DAS MISSÕES 20 CARTAS DOS SEMINÁRIOS 22 30DIAS NA IGREJA E NO MUNDO 42 30DIAS Nº 4/5 - 2011 3 Editorial João Paulo II beato por Giulio Andreotti Da grande multidão de fiéis – romanos e não romanos – que no dia da beatificação de João Paulo II lotava a Praça de São Pedro e as ruas adjacentes nos resta o sentimento, a veneração, a alegria de toda aquela gente. E é uma recordação que não podemos deixar apagar dentro de nós. Mas também ouvir a ritual proclamação através da voz daquele que João Paulo II declarou “seu amigo de confiança” foi particular- mente tocante, porque me veio à lembrança as palavras de Paulo VI quando disse que o segredo para ser um bom Pastor é a novidade na continuidade. E a primeira característica comum entre João Paulo II e Bento XVI (mas não sempre entre todos os papas) é a facilidade com que chegam ao coração das pessoas com discursos imediatos e simples, a ponto de serem compreensíveis tanto para gente comum quanto para os intelectuais. A multidão na praça de São Pedro durante a cerimônia de beatificação de João Paulo II, 1º de maio de 2011 4 30DIAS Nº 4/5 - 2011 Pertenço a uma antiga escola de católicos que ensina que se deve querer bem ao papa e não a um papa. Mas não creio sair desta linha se me associo aos que esperam uma conclusão rápida do processo rumo aos altares que segue à beatificação, como foi para Madre Teresa e Padre Pio, para mim as duas canonizações mais tocantes do pontificado de João Paulo II João Paulo II durante a cerimônia de canonização de Padre Pio em 16 de junho de 2002 Tenho lembranças memoráveis de João Paulo II e no passado tive a oportunidade de falar várias vezes disso em congressos e entrevistas, mas desta vez quero mantê-las no coração, porque na ocasião da sua beatificação corre-se o risco de fazer apologia de si mesmo e não do beato Wojtyla e isso seria grave. O dia 1º de maio de 2011 levou-nos idealmente ao dia do funeral de papa Wojtyla, dia 8 de abril de 2005: a sua agonia tinha sido acompanhada por todo o mundo com uma participação extraordinária e ergueu-se da multidão, em particular dos jovens, o grito de “santo já”, que nos dias passados da beatificação foi novamente evocado com muita intensidade. A Igreja tem os seus tempos e é absolutamente autônoma, os procedimentos da Congregação são muito rigorosos e se forem cria- das pressões mediáticas acaba-se provocando o efeito contrário, porém há um capítulo específico, que me parece importante: a verificação se a santidade é percebida pelos fiéis. E quanto a isso não há dúvidas, a ponto de muitos fiéis rezarem há tempo por João Paulo II não menos do que fariam se fosse já santo. O importante é a substância, se em uma figura de cristão reconhece-se a santidade e reza-se, o documento selado terá todo o tempo para chegar. Pertenço a uma antiga escola de católicos que ensina que se deve querer bem ao papa e não a um papa. Mas não creio sair desta linha se me associo aos que esperam uma conclusão rápida do processo rumo aos altares que segue à beatificação, como foi para Madre Teresa e Padre Pio, para mim as duas canonizações mais tocantes do pontificado de João Paulo II. q 30DIAS Nº 4/5 - 2011 5 Cartas dos mosteiros Cartas dos mosteiros ADORADORAS PERPÉTUAS DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO DO Os oratórios marianos de Roma MOSTEIRO DE LA ASUNCIÓN DE MARÍA Rosarito, Baja California, México Nas ruas estreitas do centro de Roma, que cortam os antigos bairros populares, em cada rua, em cada praça, quase em cada canto se encontram oratórios muitas vezes cercados por baldaquinos e lâmpadas. São o que os romanos chamam “le Madonnelle” (as pequenas Nossas Senhoras). Gostaríamos de receber Quien reza se salva Rosarito, 24 de fevereiro de 2011 Estimado senhor Andreotti, louvado seja o Santíssimo Sacramento! Receba a nossa gratidão por sua grande caridade ao nos enviar a bela revista 30Días, que alimenta grandemente a nossa vida espiritual, por nos informar e nos fazer sentir a Igreja unida. Nós a lemos com grande interesse e amor. Gostaríamos muito de receber alguns exemplares daquele livrinho tão útil, Quien reza se salva, para dá-lo a algumas pessoas muito necessitadas. Que a nossa Mãe Santíssima de Guadalupe carregue-o sempre em seu seio como filho predileto e encha de graças e bênçãos toda a sua família e os seus colaboradores. Receba os afetuosos cumprimentos de nossa reverenda madre superiora e da comunidade. Irmã Rosa María Amezcua, O.A.P. Rosarito, 27 de abril de 2011 Nossa Senhora com o Menino Jesus, afresco de 1756, praça do Relógio, esquina com a via del Governo Vecchio, bairro Parione 6 30DIAS Nº 4/5 - 2011 Estimado senhor Andreotti, louvado seja o Santíssimo Sacramento! Na plenitude da alegria pascoal, desejamos ao senhor e a sua ilustre família uma feliz Páscoa de Ressurreição. Muitíssimo obrigada, senhor Andreotti, por nos ter enviado os livrinhos Quien reza se salva. Nossa reverenda madre superiora e a comunidade lhe agradecem por sua grande bondade e generosidade. Estamos certas de que esses livrinhos farão um Cartas dos mosteiros Cartas dos mosteiros grande bem aos nossos irmãos mais necessitados de instrução. Os livrinhos chegaram da Itália à porta do nosso mosteiro! Que maravilha! Não é fácil, pois estamos numa pequena colina cercada por precipícios, mas temos uma bela vista do céu e do mar e muitos pássaros canoros que nos convidam a louvar o nosso Deus sacramentado. Que prazer foi para nós, vendo o vídeo da celebração, constatar que o senhor assistiu à beatificação de nossa madre fundadora, María Magdalena de la Encarnación, ocorrida em São João de Latrão no dia 3 de maio de 2008. Obrigada por sua presença. Nós sempre o recordamos, gratas e em união de oração. Que Deus continue a abençoá-lo e a dar-lhe força em todos os seus apostolados. Irmã Rosa María Amezcua, O.A.P. P.S. Perdoe-nos o atraso, que se deveu à Santa Quaresma. CLARISSAS DO MOSTEIRO DE NOSSA SENHORA DAS MERCÊS São Miguel, Açores, Portugal Vinte exemplares de Quem reza se salva São Miguel, 21 de março de 2011 Caríssimo senhor Andreotti, na presença consoladora do Espírito Santo, vimos saudá-lo cordialmente, desejando-lhe todo o bem no Senhor. Vimos, muito reconhecidas, agradecer o envio da vossa singular revista 30Dias. É de fato uma revista notável e extraordinária pelo seu conteúdo que nos põe a par dos acontecimentos mais importantes na vida da Igreja e do mundo. Bem haja! Que o divino Espírito Santo sempre vos assista. Pedimos o favor de nos enviarem 20 exem- Nossa Senhora com o Menino Jesus, alto-relevo em cerâmica do século XIX, via Sistina, esquina com a via Francesco Crispi, bairro Campo Marzio plares de Quem reza se salva. Desde já o nosso sincero agradecimento. Formulamos votos de uma Santa Quaresma e santas e alegres festas pascais com fecundas bênçãos de Cristo Ressuscitado. Oremos uns pelos outros. Sempre unidos pelo mesmo Corpo e Sangue do Senhor Jesus. Irmã Maria Verónica, O.S.C., e as irmãs clarissas 30DIAS Nº 4/5 - 2011 7 Cartas dos mosteiros Cartas dos mosteiros Nossa Senhora com o Menino Jesus, alto-relevo em cerâmica do século XIX, via del Buon Consiglio, bairro Monti S.V.D., que foi solicitado à China por nosso arcebispo, para cuidar da comunidade chinesa no Panamá. Ele vem fazendo esse trabalho há cerca de dois anos em nossa diocese. Conta-nos que tem visitado a escola chino-panamenha, onde há muitas crianças chinesas, e gostaria de lhes dar o livrinho. Vocês podem enviá-los ao nosso endereço, e nós os entregaremos a ele, pois sua casa fica muito perto da nossa. Agradecemos de todo o coração e rezamos por todos vocês. Pedimos à Virgem Santíssima que lhes conceda muitas bênçãos com a sua Secreta Visita. Que Deus os recompense. Irmã Margarita María, V.S.M. Las Cumbres, 12 de abril de 2011 VISITANDINAS DO MOSTEIRO DE LA VISITACIÓN DE PANAMÁ Las Cumbres, Panamá Quem reza se salva para a comunidade chinesa no Panamá Las Cumbres, 3 de abril de 2011 Estimado senhor Giulio Andreotti, receba as nossas saudações e gratidão por todo o trabalho de evangelização que têm feito por meio da revista. Gostaríamos de lhes pedir cem exemplares de Quem reza se salva, em espanhol, para a nossa Segunda Jornada Vocacional, que realizaremos nos dias 13, 14 e 15 de maio, no Panamá. Fazemos também um pedido especial: que nos enviem duzentos exemplares de Quem reza se salva em chinês. Estamos em contato com padre Pablo Liu, 8 30DIAS Nº 4/5 - 2011 Caríssimo senhor Giulio Andreotti, somos muito gratas pelos livros Quem reza se salva, que recebemos ontem de manhã. Vocês precisavam ver a alegria de padre Pablo Liu diante dos livros em sua língua! Pôs-se a lê-los e me disse: “Esta é uma apresentação do bispo Aloysius Jin Luxian”. Creio que sua alegria aumentará quando começar a distribuí-los entre os chineses que vivem no Panamá e sobretudo às crianças da escola chino-panamenha. Que Nosso Senhor continue a animá-los no excelente trabalho que fazem ao distribuir esse livro e a revista 30Dias, que é muito interessante. Pedimos ao nosso santo fundador Francisco de Sales que lhes conceda abundantes bênçãos neste apostolado. Irmã Margarita María, V.S.M. Cartas dos mosteiros Cartas dos mosteiros CLARISSAS CAPUCHINHAS DO CONVENTO DE SANTO APOLINÁRIO DE VECLO Ravena, Itália Obrigada pela meditação sobre a santa Páscoa Ravena, 14 de abril de 2011 “O Senhor ressuscitou, como havia previsto, alegremo-nos todos e exultemos, pois Ele reina eternamente. Aleluia”. Prezado senador Andreotti, enquanto desejamos comunicar-lhe nossos votos fraternais de uma santa Páscoa cheia de paz e de amor, agradecemos imensamente pelo livro que acaba de chegar, “Il Figlio da se stesso non può fare nulla”. Este também será um instrumento útil para viver mais intensamente estes poucos dias que nos separam do grande dia da Ressurreição do Senhor. Nós lhe garantimos nossa oração, rogando que Deus lhe seja guia, conforto e o encha de seus dons. Com muita gratidão pelo bem que realiza, Neste tempo de Quaresma, tomamos a liberdade de expor uma necessidade premente, que surgiu quando menos esperávamos. O pavimento de nossa grande cozinha (cerca de cem metros quadrados) elevou-se repentinamente em vários pontos, em razão das infiltrações de água durante os setenta e cinco anos de existência do mosteiro. Depois de consultas e de muita espera, decidimos refazer o pavimento completamente, pois uma reforma parcial corria o risco de ser inútil, embora menos cara. A despesa soma mais de cinco mil euros, e é por isso que vimos pedir uma contribuição, com muita confiança. Agradecemos pela atenção e asseguramos nossa oração pelas intenções dos oferentes. Irmã Angela da Eucaristia e comunidade continua na p. 16 as irmãs clarissas capuchinhas CARMELITAS DO CONVENTO NOSSA SENHORA DO MONTE CARMELO Haifa, Israel Pedido de ajuda à Piccola Via Haifa, 20 de abril de 2011 Somos muito gratas pelo envio de 30Dias em italiano e em francês. É um sopro da vida da Igreja e do mundo que chega até nós para fazermos dele objeto de oração. Nossa atenção foi atraída para a iniciativa Piccola Via. Nestes meses em que Santa Teresinha peregrina pela Terra Santa, nós lhe pedimos que os inspire a dar-nos um presente. Rogamos que sejam muitos os que oferecem, para que a caridade de vocês possa alcançar tamanha pobreza. Fazemos votos de uma santa Páscoa rica em luz, em conversão, em fé operante. Regina Apostolorum, baixo-relevo do século XIX, via dell’Umiltà, esquina com a via di San Marcello, bairro Trevi 30DIAS Nº 4/5 - 2011 9 Leitura espiritual Leitura espiritual Leitura espiritual/42 Decretum de peccato originali* 3. Si quis hoc Adae peccatum, quod origine unum est et propagatione, non imitatione transfusum omnibus inest unicuique proprium, vel per humanae naturae vires, vel per aliud remedium asserit tolli, quam per meritum unius mediatoris Domini nostri Iesu Christi, qui nos Deo reconciliavit in sanguine suo, «factus nobis iustitia, sanctificatio et redemptio» (1Cor 1, 30); aut negat, ipsum Christi Iesu meritum per baptismi sacramentum, in forma Ecclesiae rite collatum, tam adultis quam parvulis applicari: anathema sit. Quia «non est aliud nomen sub caelo datum hominibus, in quo oporteat nos salvos fieri» (At 4, 12). Unde illa vox: «Ecce agnus Dei, ecce qui tollit peccata mundi» (Gv 1, 29). Et illa: «Quicumque baptizati estis, Christum induistis» (Gal 3, 27). * Denzinger 1513. 10 30DIAS Nº 4/5 - 2011 Decreto sobre o pecado original 3. Se alguém afirma que este pecado de Adão, que é um só quanto à origem e, a todos transmitido por propagação não por imitação, pertence a todos e a cada um como próprio, pode ser tirado com as forças da natureza humana ou com outro remédio que não os méritos do único mediador, nosso Senhor Jesus Cristo, que nos reconciliou com Deus no seu sangue, “tornado por nós justiça, santificação e redenção” (1Cor 1, 30); ou nega que este mérito de Jesus Cristo seja aplicado tanto aos adultos quanto às crianças com o sacramento do batismo, devidamente administrado segundo a maneira da Igreja, seja anátema. Porque “não há outro nome dado aos homens debaixo do céu pelo qual devemos ser salvos” (At 4, 12). Daí esta palavra: “Eis o cordeiro de Deus, eis o que tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29); e a outra: “Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo” (Gl 3, 27). Leitura espiritual Leitura espiritual A expulsão do Paraíso na terra, ao fundo da Anunciação, Beato Angélico, Museu do Prado, Madri 30DIAS Nº 4/5 - 2011 11 Leitura espiritual Leitura espiritual O terceiro cânon do Decreto sobre o pecado original do Concílio de Trento que propomos como leitura espiritual para este número sugeriu-nos publicar, como comentário, dois trechos do papa Paulo VI. O primeiro trecho é extraído do discurso de abertura da segunda sessão do Concílio Ecumênico Vaticano II, a 29 de setembro de 1963, no qual Paulo VI indica o objetivo de tal vigésimo primeiro Concílio ecumênico. “Donde parte o nosso caminho, Irmãos?”; “Qual é o caminho que desejais percorrer?”; “E que fim, Irmãos, propor ao nosso itinerário?”. “Estas três perguntas simplicíssimas e capitais, têm, bem o sabemos, uma só resposta, que neste lugar e nesta hora devemos proclamar a nós mesmos e anunciar ao mundo que nos rodeia: Cristo! Cristo, nosso princípio; Cristo, nosso caminho e nosso guia; Cristo, nossa esperança e nosso fim. Que este Concílio tome plena consciência desta relação entre nós e Jesus abençoado, múltipla e singular, firme e estimulante, misteriosa e claríssima, premente e beatificante; entre esta Igreja santa e viva que somos nós, e Cristo, de quem vimos, por quem vivemos e para o qual caminhamos. Nenhuma outra luz se veja sobre esta reunião que não seja Cristo, luz do mundo; nenhuma outra verdade interesse as nossas almas, que não sejam as palavras do Senhor, nosso único Mestre; nenhuma outra aspiração nos guie, que não seja o desejo de Lhe sermos absolutamente fiéis; nenhuma outra confiança nos mantenha, senão a que, através da sua palavra, sustenta a nossa fraqueza desoladora: ‘Et ecce Ego vobiscum sum omnibus diebus usque ad consummationem saeculi’: [‘Eu estou sempre convosco até a consumação dos séculos’] (Mt 28, 20). Oxalá fôssemos nós nesta hora capazes de elevar a Nosso Senhor Jesus Cristo uma voz digna d’Ele! Diremos com a sagrada Liturgia: “Te, Christe, solum novimus; – te mente pura et simplici – flendo et canendo quaesumus – intende nostris sensibus!”: [‘Só a Ti, Cristo, conhecemos; a Ti pedimos, com o coração puro e simples, no pranto e na alegria; atende os nossos desejos!’]”. 12 30DIAS Nº 4/5 - 2011 Leitura espiritual Leitura espiritual Jesus e Pedro, detalhe da Vocação de Pedro e André, predela da Majestade, Duccio di Buoninsegna, National Gallery of Art, Washington; à direita, Paulo VI durante os trabalhos do Concílio ecumênico Vaticano II 30DIAS Nº 4/5 - 2011 13 Leitura espiritual Leitura espiritual O segundo trecho é extraído do Credo do povo de Deus de 30 de junho de 1968, no qual Paulo VI cita literalmente o terceiro cânon do Decreto sobre o pecado original do Concílio de Trento. “Cremos que todos pecaram em Adão: isto significa que a culpa original, cometida por ele, fez com que a natureza, comum a todos os homens, caísse num estado no qual padece as consequências dessa culpa. Tal estado já não é aquele em que no princípio se encontrava a natureza humana nos nossos primeiros pais, uma vez que se achavam constituídos em santidade e justiça, e o homem estava isento do mal e da morte. Portanto, é esta natureza humana assim decaída, despojada de dom da graça que antes a adornava, ferida em suas próprias forças naturais e submetida ao domínio da morte, é esta que é transmitida a todos os homens. Exatamente neste sentido, todo homem nasce em pecado. Professamos pois, segundo o Concílio de Trento, que o pecado original é transmitido juntamente com a natureza humana, ‘pela propagação e não por imitação’, e que ele é, portanto, ‘próprio a cada um’. Cremos que Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo Sacrifício da Cruz, nos remiu do pecado original e de todos os pecados pessoais cometidos por cada um de nós; de sorte que se impõe como verdadeira a sentença do Apóstolo: ‘onde abundou o delito, superabundou a graça’ [cf. Rm 5, 20]”. De 29 de setembro de 1963 a 30 de junho de 1968 não transcorreram nem mesmo cinco anos. Ainda assim, nos seus dois discursos, parece-nos entrever como a experiência de Paulo VI naqueles anos fosse a mesma vivida pelo primeiro dos apóstolos, Pedro, no modo em que o Evangelho nos documenta. Um caminho que, partindo do entusiasmo muito humano pelo reconhecimento de Jesus – que é dom do Pai (“Feliz és tu, Simão, [...] porque não foi carne e sangue quem te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu”, Mt 16, 17), no qual se coloca em jogo toda a iniciativa de Pedro –, chega à experiência real da nossa “desoladora fraqueza”, assim que toda a iniciativa é deixada ao Senhor e Pedro humildemente ensina “apenas o que foi transmitido” (Dei Verbum, n. 10). Sem equivalentes é, a este propósito, o comentário de Santo Agostinho às palavras dirigidas por Jesus a Pedro, depois que, em Cesareia de Filipe, o apóstolo tinha-O reconhecido (cfr. Mc 8, 27-33): “Dominus Christus ait: ‘Vade post me, satanas’ / E Jesus disse: ‘Vai para trás de mim, satanás!’. Quare satanas? / Por que satanás? / Quia vis ire ante me / Porque queres ir na minha frente” (Sermones 330, 4). Pedro e o seu sucessor assim aprenderam a deixar toda a iniciativa ao agir do Senhor. Aprenderam que a nós cabe somente reconhecer e seguir o que o Senhor opera. 14 30DIAS Nº 4/5 - 2011 Leitura espiritual Leitura espiritual Jesus e Pedro, detalhe do encontro entre Jesus ressuscitado e os apóstolos no lago de Tiberíades, Majestade, Duccio di Buoninsegna, Museu dell’Opera del Duomo, Sena; à direita, Paulo VI ao pronunciar o Credo do povo de Deus, 30 de junho de 1968 30DIAS Nº 4/5 - 2011 15 Cartas dos mosteiros Cartas dos mosteiros segue da p. 9 Haifa, 25 de maio de 2011 Agradecimentos infinitos à associação Piccola Via onlus! Ontem, 24 de maio, chegou o dinheiro para refazer o pavimento da nossa cozinha. Todas as bênçãos celestes por todo o seu apostolado, irmã Angela da Eucaristia P.S. Anexo ao último número de 30Days, recebemos com imensa gratidão também o suplemento pascal da meditação de padre Giacomo Tantardini. A meditação é um verdadeiro alimento para o espírito, parece infundida de graças! Muitíssimo obrigada por esse tesouro. Sabemos que é um grande pedido, mas seria possível nos enviarem cinco exemplares em inglês e dois em italiano desse suplemento? Se isso não for um problema para vocês, nosso endereço segue anexo. Mais uma vez, obrigada! CLARISSAS DO CONVENTO SAINT CLARE Yangyang, Coreia do Sul Yangyang, 11 de maio de 2011 A meditação sobre a santa Páscoa parece infundida de graças Yangyang, 28 de abril de 2011 Prezado diretor Andreotti e amigos todos de 30Giorni, com a minha sincera saudação de paz, declaro-lhes meus votos de que recebam abundantes bênçãos do Senhor Jesus ressuscitado neste tempo de Páscoa! Obrigada mais uma vez por terem continuado a enviar 30Days in the Church and in the World à nossa comunidade, como assinatura de cortesia. Que o Senhor os abençoe a todos por essa obra de verdadeira evangelização e pela difusão de artigos tão sugestivos e de importantes informações do mundo inteiro. O endereço para a nossa assinatura foi corrigido; assim, agora recebemos dois exemplares da revista, podendo dessa forma compartilhá-la com os sacerdotes ou os missionários que celebram a missa para nós, e que podem tirar grande benefício dos artigos. Nós lhe agradecemos, ainda, pelo envio dos dez exemplares do suplemento Quem reza se salva em chinês: pensamos em dá-los a alguns missionários coreanos que atuam no momento na China. Além disso, padre Francis Mun Ju Lee, diretor da clínica Saint Joseph para os pobres e marginalizados de Seul, que fez também apostolado no Vietnã, recebeu a assinatura de cortesia que eu lhes pedi e lhes é extremamente grato. Que o seu trabalho continue a receber toda as bênçãos com abundância de graças e a inspiração do Espírito Santo! Com gratidão, sua em Cristo, Caros amigos de 30Giorni, não sei como expressar minha profunda gratidão pelo envio tão veloz, em resposta ao meu pedido, dos cinco exemplares em inglês e dos dois em italiano da meditação de padre Giacomo Tantardini, Imaculada Conceição, afresco do século XVIII, praça da Rotonda, irmã Mary Diane Ackerman, O.S.C. 16 30DIAS Nº 4/5 - 2011 bairro Colonna Cartas dos mosteiros Cartas dos mosteiros “The Son cannot do anything on his own”. Essa bela meditação é algo que deve ser ponderado lentamente e permite mergulhar profundamente na oração; eu gostaria de enviar o suplemento a alguns padres e a algumas pessoas que podem apreciá-lo e beneficiar-se profundamente dele. Sou muito grata por receber 30Days de presente, espero-a todos os meses. Compartilhei alguns artigos e algumas notícias com minhas irmãs coreanas e com outras pessoas – por exemplo, recentemente, o artigo sobre o humilde frade capuchinho Leopoldo Mandic, que gastou muitos de seus dias no confessionário. Não sabíamos muito sobre ele, e amanhã, 12 de maio, celebraremos seu aniversário; conhecê-lo melhor torna a nossa memória mais significativa! De novo, muito obrigada! Peço-lhes, por favor, que comuniquem minha especial gratidão a padre Giacomo, cujas leituras e meditações tocam o meu coração e a minha alma profundamente e me ajudam a abandonar-me mais à maravilhosa graça e ao amor de nosso Deus misericordioso! Desejando ao senhor, caro diretor, e a todos os seus colaboradores o amor e a paz de nosso Senhor ressuscitado, permaneço sinceramente em Cristo Jesus, Nossa Senhora do Rosário, afresco do século XVII, via dell’Umiltà, esquina com a via dell’Archetto, bairro Trevi O exemplar do suplemento “The Son cannot do anything on his own” ajuda a entrar neste grande mistério da nossa fé. Rogamos ao Senhor ressuscitado que continue a inspirá-lo a compartilhar a Boa Nova. Com devotada gratidão e oração, irmã Mary Diane Ackerman, O.S.C. irmã Marie-Céline Campeau, O.S.C. CLARISSAS DO CONVENTO SAINT CLARE Mission, British Columbia, Canadá MONJAS MÍNIMAS DE SÃO FRANCISCO DE PAULA Saltillo, Coahuila, México A meditação sobre a santa Páscoa ajuda a entrar neste grande mistério da nossa fé 30Dias nos mantém em comunhão com toda a Igreja Mission, 1º de maio de 2011 Saltillo, 4 de maio de 2011 Caro senhor Andreotti, o Senhor ressuscitou verdadeiramente, aleluia! Neste jubiloso tempo de Páscoa desejamos agradecer-lhe pelo dom que é a sua revista 30Days. Nós a apreciamos muito. Estimado senador Giulio Andreotti, quero agradecer-lhe imensamente pela revista mensal 30Dias, que este ano mais uma vez chega até o México, onde, com a providência de Deus, fundamos ¬ 30DIAS Nº 4/5 - 2011 17 Cartas dos mosteiros Cartas dos mosteiros Eles também vieram da Itália para fundar uma comunidade para testemunhar no México o carisma de caridade, de conversão e de reconciliação do nosso fundador, São Francisco de Paula, pondo-se a serviço das pessoas mais pobres e necessitadas do lugar. Por isso têm um grande desejo de ter à sua disposição a revista 30Giorni em italiano, como subsídio de informação segura e constante atualização. Agradecendo-lhe antecipadamente por sua sensibilidade e compreensão, eu lhe asseguro as orações de toda a minha comunidade. Com gratidão e estima, em Cristo, madre Maria Margherita Bichi, responsável pela comunidade de Saltillo CLARISSAS DO CONVENTO SANTA CLARA Bolinao, Filipinas Nós lhes somos gratas pela meditação sobre a santa Páscoa Bolinao, 4 de maio de 2011 Imaculada Conceição, mosaico do século XX, via dei Serpenti, bairro Monti uma nova comunidade de Monjas Mínimas de São Francisco de Paula. Graças a sua generosidade e de toda a redação, estamos recebendo gratuitamente este precioso instrumento de informação que, para nós, claustrais, é de vital importância, pois nos mantém em comunhão com toda a Igreja e com o mundo atual. De fato, frequentemente recebemos motivações e estímulos para oferecer com mais entusiasmo a nossa vida a Deus, como sacrifício de odor suave, pelas necessidades mais urgentes da Igreja e do mundo, segundo o nosso carisma de orantes e penitentes. Conscientes do grande presente que recebemos, gostaríamos que também nossos irmãos, os frades da Ordem dos Mínimos, presentes em nossa cidade de Saltillo, no México, pudessem usufruir dele, já que apreciam muito a sua revista, admirando a profundidade de seus conteúdos e a objetividade das informações. 18 30DIAS Nº 4/5 - 2011 Caro senhor Andreotti e equipe de 30Dias, nós lhes enviamos nossas saudações orantes por este tempo de Páscoa e lhes manifestamos a nossa gratidão pela assinatura de 30Dias... e pelo exemplar especial com a meditação sobre a santa Páscoa de padre Giacomo Tantardini. É certamente um belo texto para a leitura espiritual deste tempo. Que Deus recompense todos vocês por sua generosidade na difusão da obra da Igreja. Estejam certos das nossas orações pelo sucesso de seu ministério. Deus os abençoe. Boa Páscoa! Aleluia! as clarissas P.S.: Estamos também felizes por lhes informar que a nossa Ordem de Santa Clara festeja os oitocentos anos de sua fundação. As celebrações começaram no último Domingo de Ramos (17 de abril de 2011) e se concluirão no ano que vem, por ocasião da festa da santa madre Santa Clara (11 de agosto de 2012). Nós rezaremos por vocês durante este ano jubilar. Rezem também por nós. Obrigada. Cartas dos mosteiros Cartas dos mosteiros CARMELITAS DO CONVENTO DO CORAZÓN IRMÃS DO MOSTEIRO DA VISITAÇÃO DE JESÚS Washington, D.C., Estados Unidos Ibarra, Equador A meditação sobre a santa Páscoa para o nosso retiro mensal Um exemplar em italiano da meditação sobre a santa Páscoa Washington, 4 de maio de 2011 Ibarra, 4 de maio de 2011 Louvado seja Jesus Cristo ressuscitado! Senhor diretor Giulio Andreotti, Jesus ressuscitado, que vive e caminha perto de nós, lhe conceda em abundância os dons e os frutos do Espírito Santo. Obrigada pelo envio da revista 30Días. Nós a lemos com interesse porque ajuda-nos a rezar com maior intensidade pela Igreja e pelo mundo inteiro. Nós lhe somos gratas pelo livrinho “El Hijo no puede hacer nada por su cuenta”, muito útil para o nosso retiro mensal. O Senhor o recompensará. Rezamos por suas intenções e, neste mês de maio, o recomendamos à Santa Virgem; que lhe conceda saúde, amor e alegria no Senhor. Saudações, a comunidade das carmelitas descalças Caríssimos senhores, escrevo para pedir-lhes um exemplar em italiano de sua publicação intitulada em inglês “The Son cannot do anything on his own”, de padre Giacomo Tantardini. Se puderem mandá-la, ficaremos gratas. Muito obrigada! Boa Páscoa! Em Cristo ressuscitado, irmã Maria Roberta Viano CLARISSAS DO CONVENTO SAINT CLARE Duncan, British Columbia, Canadá “The Son cannot do anything on his own” é muito útil Duncan, 12 de maio de 2011 Respeitável redação de 30Dias, somos extremamente gratas pelo fato de 30Days chegar ao nosso convento há muitos anos. Na última edição havia um suplemento, “The Son cannot do anything on his own”, que achamos muito útil. Gostaríamos de encomendar dez exemplares e gostaríamos de saber quanto custa. Obrigada, e que Deus os abençoe pelo seu ministério. Irmã Wylie Aaron Nossa Senhora em cerâmica do século XIX, praça Nossa Senhora dos Montes, esquina com a via dei Serpenti, bairro Monti 30DIAS Nº 4/5 - 2011 19 Cartas das missões Cartas das missões ARCEBISPADO MARONITA Damasco, Síria Um obrigado aos refugiados iraquianos Damasco, 30 de março de 2011 Senhor Giulio Andreotti, submeto a 30Giorni o testemunho de um povo perseguido, exilado, que prega a Esperança e conta com a oração da numerosa família de 30Giorni. A Síria facilitou a acolhida dos refugiados iraquianos. Vieram aos milhares, sobretudo a Damasco, e continuam a chegar, às dezenas e centenas, para escapar da morte e da violência de que são vítimas desde 2003. O pessoal das Nações Unidas organiza seu êxodo para outros lugares mais clementes... À espera de obter um visto, esses refugiados iraquianos ficam em Damasco geralmente dois ou três anos, às vezes até mais. Esses cristãos bem formados, caridosos e praticantes se refugiam na fé e na esperança cristãs. Enchem as nossas igrejas, animam as nossas paróquias, levando a elas um “vento” novo que reforça a fé cristã na Síria. – Praticantes cotidianos, os refugiados do Iraque participam assiduamente da missa todos os dias, vindo até de longe, a pé ou por transporte público. – Pedem a confissão antes da comunhão: contribuíram para o retorno ao confessionário, que volta a ter filas de espera. – Sua devoção pelos santos e a veneração da Virgem deram impulso à fabricação de velas, que hoje iluminam noite e dia as capelas dos santos, dentro e fora das igrejas. 20 30DIAS Nº 4/5 - 2011 – Seus filhos pequenos enchem as aulas de catecismo da primeira comunhão. Já os adolescentes atuam nos corais das diversas igrejas e nas liturgias. – A guerra espalhou rapidamente a informática pelo Iraque. Os refugiados que vêm para Damasco geralmente sabem usar bem a internet. Puseram seus conhecimentos generosamente a serviço das paróquias e das comunidades. Assim, graças a eles nossas paróquias muniram-se de sites, instrumentos de vanguarda a serviço da evangelização em escala universal. Cartas das missões Cartas das missões Refugiados iraquianos em oração numa igreja de Damasco, na Síria – Impelidos por uma grande caridade, dezenas deles se empenham, duas ou três vezes por semana, nas grandes faxinas da catedral e da praça da igreja. Quando obtêm o visto, antes de partir se asseguram de que outros continuem essas obras. – Estão presentes nas noites de oração, na adoração Eucarística, nas peregrinações e nas procissões pelas ruas de Damasco durante a Semana Santa e sobretudo no mês de maio. Seu dinamismo espiritual atrai as outras comunidades; um dos nossos sacerdotes ajuda na paróquia caldeia. – Apesar da sua pobreza e das suas condições de vida precária, são generosos e vivem a partilha. É preciso vê-los, na saída da missa, oferecer e dar com alegria, sorrisos e lágrimas... – Vivem os momentos mais íntimos em silêncio diante do Santíssimo Sacramento, face a face com o Senhor. Por horas... Pranteiam seus entes queridos falecidos e se interrogam sobre o futuro; procuram entender o porquê de tudo o que acontece. – Toda semana o arcebispado recebe muitos deles, que vêm despedir-se antes de partir para o desconhecido, às vezes de modo disperso: os pais para a Austrália, os filhos para o Canadá. Nem mesmo em terra de exílio, podem mais viver como uma família... Uma ruptura ainda mais dolorosa. Esses refugiados iraquianos que passam sempre por Damasco são missionários ambulantes que marcaram a Igreja na Síria, que os vê de passagem e se questiona sobre seu próprio futuro... O Sínodo dos Cristãos do Oriente representou uma oportunidade e uma esperança, sem todavia conter a hemorragia e o êxodo. Esses refugiados missionários dispersos pelos quatro cantos do mundo estão ligados entre si apenas pela oração e pela internet. Privados de suas raízes e diante do crepúsculo de sua Igreja, não poderiam, estes refugiados iraquianos, com a sua vitalidade religiosa, levar um sopro novo às Igrejas do Ocidente que os acolhem? Samir Nassar arcebispo maronita de Damasco 30DIAS Nº 4/5 - 2011 21 Cartas dos seminários SEMINÁRIO SÃO CAMILO PARÓQUIA DʼADIDOGOMÉ Iomerê, Santa Catarina, Brasil Lomé, Togo 30Dias simplesmente “excelente” Qui prie sauve son âme para noventa catecúmenos Iomerê, 28 de março de 2011 Lomé, 2 de maio de 2011 Prezados senhores, recebemos regularmente a excelente revista 30Dias em português. Simplesmente “excelente”! Que Deus os abençoe sempre pelo muito bem que fazem. Pedimos suas orações, precisamos muito. Não nos esqueçam. Respeitosamente, padre Carlos Alberto Pigatto SEMINÁRIO MAIOR CATÓLICO DE SAINT JOSEPH Yangon, Mianmar (de Lampang, Tailândia) Para o nosso seminário maior católico de Saint Joseph, em Yangon, em Mianmar Lampang, 22 de abril de 2011 Caro diretor, receba os cumprimentos de Lampang. Sou o padre Clement Angelo, de Mianmar. Encontro-me agora aqui na Tailândia por um breve período com os sacerdotes do Pime que trabalham com a população que pertence às tribos das colinas. Durante esta minha breve permanência, conheci a sua revista 30Days e pessoalmente considerei interessante e de valor. Se possível, contando com a sua generosidade, gostaria de receber um exemplar para mim e um para o nosso seminário maior católico de Saint Joseph, em Yangon (Mianmar), onde desenvolvo o meu ministério como professor. Creio que possa ser uma boa inspiração para os seminaristas maiores, que poderão tomar conhecimento dos acontecimentos religiosos no mundo. Boa Páscoa, padre Clement Nossa Senhora com o Menino Jesus, afresco do século XVII, via del Gesù, bairro Pigna 22 30DIAS Nº 4/5 - 2011 Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Sou um seminarista do Togo. Gostei muito do livrinho Qui prie sauve son âme. Durante as próximas férias de verão, no mês de julho, a minha paróquia organizará um acampamento para os catecúmenos (cerca de noventa). Meu pároco me encarregou de organizar e dirigir esse acampamento para crianças. Gostaria de lhes pedir, como ajuda para a oração naqueles dias, o livrinho Qui prie sauve son âme, para que fique à disposição dos catecúmenos que participarem. Seria também uma santa e bela lembrança que essas crianças poderão levar consigo quando o acampamento se concluir, e que poderão utilizar para a sua oração pessoal. Na esperança de uma resposta favorável, recebam a garantia de minhas orações, e a expressão de minha gratidão. Em união de oração. Fraternalmente, Romain Semenou Um patrimônio que une arte, cultura e espiritualidade na maravilhosa paisagem natu ral dos Montes “Simbruini” O patrimônio artístico e cultural desta região é fascinante. Os Mosteiros são jóias de inestimável valor pelas suas elaboradas arquiteturas, seus raros afrescos e o exclusivo patrimônio bibliográfico e de museus. A ESTRUTURA OFERECE HOSPITALIDADE INDIVIDUALMENTE E PARA GRUPOS E DISPÕE DE: u Quartos com 1 a 4 camas com banheiro autônomo, telefone, capacidade total para 65 pessoas. u Sala Aabadia de Santa Escolástica, situada a poucos passos de Subiaco, foi fundada por S. Bento no século VI. São de particular interesse histórico o campanário românico, construído no século XI, os três claustros (renascentista, gótico e cosmatesco) e a bela igreja neoclássica de Quarenghi. Bar e TV Sat 2000. u Restaurante com capacidade para 500 pessoas. Principais distâncias: 60 km de Roma, u 2 Salas para Congressos, coligadas com áudio-vídeo. u Estacionamento interno. 18 km de Fiuggi parque. u Capela. TODOS OS AMBIENTES SÃO ACESSÍVEIS A DEFICIENTES FÍSICOS RIETI Firenze ‡ u Grande 30 km de Tívoli, L’Aquila - Pescara Borgorose Vicovaro Mandela Subiaco ROMA La Foresteria Frascati Fiuggi Anagni Pomezia Velletri Anagni Fiuggi Guarcino Alatri Sora FROSINONE Cassino LATINA MOSTEIRO DE Sta. ESCOLÁSTICA Hospedagem do Mosteiro - Para reservas: Como chegar no Mosteiro Pontecorvo ‡ Fondi Napoli Formia Terracina Gaeta Tel. 0774.85569 Fax 0774.822862 E-Mail: [email protected] • www.benedettini-subiaco.it Vida consagrada Irmãs Missionárias da Caridade de Madre Teresa de Calcutá, na Basílica da Imaculada Conceição, em Washington As pretensões dos homens e a paciência de Deus por Gianni Valente D os edifícios futuristas de Brasília aos repletos de história do Além-Tibre, a viagem é longa. Dom João Braz de Aviz, 64 anos, arcebispo emérito da capital brasileira, deu esse salto há poucas semanas. Em 4 de janeiro passado, o Papa o chamou a Roma para presidir a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica e para abrir uma nova etapa nas relações – sempre vivas e às vezes agitadas – entre a Santa Sé apostólica e a galáxia das congregações e ordens religiosas. Dom João, como mudou a sua vida desde que chegou a Roma? JOÃO BRAZ DE AVIZ: É claro que a mudança foi grande. Em Brasília, havia pouco mais de dois milhões e meio de fiéis, com 380 sacerdotes e 128 paróquias, que 24 30DIAS Nº 4/5 - 2011 eu visitava com frequência. Aqui, não existe o povo, eu só o vejo quando acontecem as grandes reuniões na praça de São Pedro... E algumas vezes, nos primeiros dias, deve ter feito as refeições sozinho... Em Brasília, em casa, sempre havia companhia. Eu tinha como secretárias duas mães de família, havia a cozinheira, éramos uma pequena comunidade. Mas aqui o raio de amigos também vai-se ampliando com o tempo. O senhor, mesmo quando pequeno, em sua família, estava acostumado às mesas numerosas. Meus pais eram do sul, eu nasci no estado de Santa Catarina. Mas quando tinha dois anos minha família se transferiu para o Paraná, para uma região que, como diziam naquele tempo, começava a ser “colonizada”. Meu pai começou a trabalhar lá como açougueiro. Tenho um ir mão mais velho, também sacerdote, e depois nasceram outros seis. Ao todo somos cinco homens e três mulheres. A mais nova, que tem síndrome de Down, hoje tem 47 anos. Eu me lembro de que quando nasceu – na época, morávamos em Borrazópolis –, meus pais, para levá-la para batizar, percorreram de carroça mais de quarenta quilômetros, pois não queriam esperar. Uma bela viagem, naquela época. Onde vivíamos, no início, não havia sacerdotes. O padre passava de vez em quando, uma vez por mês. Eram os líderes leigos populares que guiavam a comunidade, davam o catecismo e promoviam as práticas da vida de fé, como o Santo Rosário e a devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Naquele tempo, a Igreja local se baseava muito em grupos como o aposto- Entrevista com o arcebispo João Braz de Aviz À esquerda, frades dominicanos no claustro da Basílica de Santa Sabina, em Roma. Abaixo, frades franciscanos em Assis força o amor de Deus, e como esse amor é descoberto amando o irmão... Para mim eram coisas novas. Eu até aquele momento só pensava na educação, que era preciso ser gentil com os outros por uma questão de boas maneiras. Nunca imaginei que o outro pudesse ser servido como o próprio Jesus. Depois, o seu bispo o mandou estudar teologia em Roma. Era o ano de 1967, o Concílio tinha terminado havia pouco tempo... Como o senhor lembra aqueles anos? Estudei na Gregoriana e depois um ano no Ateneu Salesiano, pa- “Eu dizia em Brasília: se vocês, dos carismas maiores, mortificam e anulam os carismas menores porque têm como único critério o de crescerem e tomar mais espaço, isso não é de Deus”. Encontro como novo prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica lado da oração, ou os filhos de Maria... Papai e mamãe mesmo ajudavam a manter as capelas abertas. E como o senhor se tornou padre? Embora ainda fosse criança na época da primeira comunhão, aos sete anos, já percebi a vocação, que depois foi cultivada pelas freiras de Santa Catarina, para onde fui mandado, a fim de continuar os estudos. Quando eu tinha onze anos, entrei para o seminário menor de Assis, no estado de São Paulo, a quatrocentos quilômetros da capital. T inha sido aberto pelos missionários do Pime. Alguns deles tinham sido missionários na China, de onde foram expulsos depois do advento do poder de Mao. Contavam-nos suas histórias. Lembro-me de que eram pessoas profundíssimas; era bonito crescer vendo-os. E depois, quando adolescente, encon- trei também a espiritualidade dos Focolares. Como isso aconteceu? Conheci um pintor ateu que depois de ter-se convertido falava de Deus de maneira viva e concreta. Eu era um menino, e aquilo me impressionou. Eu pensava: veja só esse ateu que agora conta com tanta ra fazer os cursos de psicopedagogia. Recebi o diaconato em Roma, e voltei ao Brasil apenas em 1972. Era uma época marcada por muitos estímulos e por muitas dificuldades. Tudo parecia em movimento. Começavam o trabalho trazido pelo Concílio. Eram atualizados os velhos regulamentos, ¬ 30DIAS Nº 4/5 - 2011 25 Vida consagrada os cursos eram reestruturados, mas havia também a incerteza que marca todas as fases de passagem e de revisão. E na América Latina vocês se encontravam também diante do surgimento da Teologia da Libertação. Éramos idealistas, queríamos dar a vida por algo grande. A opção de olhar para os pobres nos dava uma enorme esperança, sobretudo para nós, que vínhamos de famílias pobres. Estávamos prontos a desistir de tudo, até do seminário, se aquele ímpeto não fosse acolhido e abraçado na realidade eclesial em que vivíamos. Acima, dom João Braz de Aviz com um grupo de religiosos brasileiros no Pontifício Colégio Pio Brasileiro, Roma; abaixo, na Catedral de Brasília multânea desses dois fatores. Pensava: esta é a condição em que me coube viver. Com o tempo, isso me ajudou a ver que ser sacerdote não significa exercer um “domínio” religioso sobre a própria vida e sobre a vida dos outros. Passado todo este tempo, que balanço o senhor faz da época da Igreja que esteve ligada à Teologia da Libertação? Podemos dizer diversas coisas. No Brasil, alguns dos grupos pastorais daquela época mais impelidos naquela linha hoje se transformaram em ONGs com muito dinheiro, saindo da Igreja. Diziam querer mudar a Igreja, depois perderam a fé e ficou só a sociologia. Isso não pode deixar de suscitar tristeza. No entanto, continuo con- No Brasil, desde a independência, sempre foi forte um poder que eu chamaria “o poder do dinheiro”. É aquele poder que, por exemplo, continua a resistir a uma verdadeira reforma agrária. E que nunca teve uma grande relação de proximidade com a Igreja, e nem com a hierarquia eclesiástica O senhor já explicou que nessa passagem a experiência dos Focolares o ajudou a superar o perigo de que tudo se dissipasse. Deus me preservou assim. A experiência espiritual dos Focolares é forte e simples. Já no final da década de 1960, Chiara Lubich nos convidava a rever o nosso modo de viver, à luz do amor de Deus. Às vezes eu até pensava que ela su26 30DIAS Nº 4/5 - 2011 bestimasse a exigência da transformação social. Foi uma passagem difícil para muita gente. Mas assim permanecia a confiança de que havia um caminho, era preciso ter paciência, mas caminhávamos juntos e não nos perdíamos. Tornamo-nos sacerdotes com essa grande luz interior, acompanhada desse sentimento de inquietude, de suspensão. Eu nunca quis esconder de mim mesmo a presença si- victo de que de qualquer forma naquele episódio se deu algo grande para toda a Igreja. Como a constatação de que o pecado dos homens cria estruturas de pecado. E de que a predileção pelos pobres é uma escolha de Deus, como vemos no Evangelho. Nas primeiras comunidades as quatro colunas eram a fidelidade à doutrina dos apóstolos, a eucaristia, a oração e depois a comunhão fraterna, que não era Escapou da morte por milagre Uma prorrogação ad personam o menos um primado ninguém tira de dom João Braz de Aviz. O atual prefeito do dicastério vaticano para os religiosos é o único bispo que vive há quase trinta anos carregando 130 fragmentos de chumbo espalhadas pelo corpo. João, na época, era um jovem padre de 36 anos, e naquele dia estava viajando de sua paróquia para a de uma cidadezinha próxima para ajudar o pároco que celebrava seus vinte e cinco anos de sacerdócio. No meio do caminho, numa pequena ponte, viu um carro parado. Aproximou-se para ver se podia dar uma ajuda. E percebeu que não eram pessoas do campo cujo carro quebrara. No velho fusca estavam dois rapazes que lhe apontaram suas armas pesadas, tomaram a chave de seu carro e o obrigaram a segui-los para o outro lado do riacho, sem dizer uma palavra. Depois de meia hora, aparecia na curva o carro blindado do banco. Era tarde de sexta-feira, eles estavam esperando o carro que tinha recolhido os depósitos, e João entendeu então que estava no lugar errado na hora errada. Depois a situação piorou. Os assaltantes logo atiraram nos pneus do carro. Mas os guardas do carro blindado também estavam armados, e responderam ao fogo. Dom João lembra: “A certa altura, visto que a situação chegou a um impasse, os dois rapazes apontaram de novo as armas para a minha cara: vá você falar com os policiais, ou nós o matamos. O que eu podia fazer? Dei apenas alguns passos e logo os guardas atiraram em mim”. João sentiu o corpo todo queimar com as balas do fuzil de cano curto. Um dos olhos estava perfurado, sentia o sangue lhe jorrando no rosto. Estava estendido no chão. Não conseguia se levantar. Uma imobilidade impotente que salvaria a sua vida: “Depois me confirmaram que, se tivesse me mexido, acabariam comigo”. Nesse meio-tempo os dois bandidos fugiram. João percebeu que a respiração ia ficando difícil, sentia o sangue subindo dos pulmões para a boca. “Eu dizia no íntimo: Jesus, por que tenho A um sentimentalismo, mas uma coisa prática, que significava ajudar as viúvas e os órfãos, pôr os bens em comum. A partir disso as pessoas viam que a comunidade vivia diante de seu Senhor. Hoje, nós escondemos os bens, fechando-os a sete chaves, mesmo nas comunidades religiosas. Dentro da geração dos padres “liberacionistas”, um dos pontos de diferenciação era a postura diante da devoção ao povo. Naquele tempo alguns pensavam que a devoção popular fosse alienação. Diziam que a pureza da fé tinha-se corrompido com as de- de morrer aos trinta e seis anos? Eu tinha tanto que fazer... A resposta desembocou dentro de mim assim: ʻEu morri aos 33. Você já teve três anos a mais que eu...ʼ”. João intuiu então que mesmo a sua generosidade, o seu impulso a fazer coisas boas podia cair no vazio, se não houvesse um abandono nos braços de Jesus. “Então me senti em paz. Disse minhas últimas orações, fiz minhas ofertas, pedi perdão, mas depois acrescentei também: Senhor, dá-me dez anos mais. Não sei por que pedi dez anos”. De fato, dom João escapou naquela vez. As balas ficaram nos pulmões e no intestino, sem provocar infecções. Até o olho se salvou e os médicos se perguntavam como aquilo era possível. Depois daquela experiência, hoje dom João se lembra de que chegou a entrar num período de depressão: “Eu nem conseguia sair de casa. Só consegui depois de um ano, aos poucos, começando por fazer pequenas coisas, por exemplo pequenos passeios, até onde conseguia. Essa espécie de paralisia da vontade também foi para mim uma experiência importante, para abraçar o meu limite e a minha fragilidade”. Quando estavam para acabar os dez anos de “prorrogação” solicitados, veio a nomeação para bispo. “É como se o Senhor me tivesse querido dizer: até aqui você me pediu a vida, de agora em diante eu peço que o que vier você doe a mim...”. Dom João diz isso rindo. Mas, ao mesmo tempo, o sobressalto das lembranças umedece seus olhos. G.V. voções. Uma ideia que pode ser confutada mesmo do ponto de vista simplesmente histórico. No Brasil, a crise veio com a abolição das congregações religiosas por vontade do Marquês de Pombal, que foi um desastre e comprometeu também toda a experiência pastoral iniciada com os índios. Até hoje não dá para entender como 75% dos brasileiros são católicos, embora só 10% frequentem os sacramentos diariamente. A razão histórica é esta: a devoção popular, justamente, foi um instrumento para transmitir e manter a fé, em muitas comunidades guiadas por tanto tempo por leigos. Às vezes, há quem ainda aponte a Teologia da Libertação como um “perigo” iminente. Sim, algumas vezes a Teologia da Libertação parece um fantasma que pode ser evocado. Muitas coisas mudaram. Em muitos países aqueles que eram contra o poder, como Lula, ou que até eram guerrilheiros, hoje governam. Houve todo um caminho, e é tempo de que também na Igreja todos se deem conta disso. No Brasil, desde a independência, sempre foi forte um poder que eu chamaria “o poder do dinheiro”. É aquele poder que, por exemplo, continua a resistir a uma ¬ 30DIAS Nº 4/5 - 2011 27 Vida consagrada verdadeira reforma agrária. E que nunca teve uma grande relação de proximidade com a Igreja, e nem com a hierarquia eclesiástica. A Igreja não tem apoio financeiro do Estado, e as próprias igrejas são construídas com o dinheiro do povo, geralmente, inclusive, com a ajuda maior dos mais pobres. O que o senhor pensa da causa de beatificação de Óscar Romero? Nos processos de beatificação há detalhes que são avaliados com cuidado, como os científicos, implicados no reconhecimento do milagre exigido. Mas creio que como vida de santidade Romero tenha sido um grande exemplo. Um bispo que com o episcopado recebe de maneira manifesta também a graça de se tornar pastor de seu povo, naquela situação tão perturbada pela violência. O mesmo aconteceu no Brasil com dom Hélder Câmara. Quando o ouvíamos, durante o regime militar, ele nos fazia tremer de emoção. Era uma pessoa que nos encantava. Um homem de oração. Creio que existam muitas figuras que aos poucos, com o tempo, entenderemos melhor. E veremos que toda a sua vida era impregnada por isso. Do contrário, não teriam oferecido sua vida assim. Câmara sempre viveu tendo diante de si a possibilidade de ser assassinado. Só não o mataram porque o povo reagiria muito mal. E então mandavam advertências bastante claras: em vez dos bispos, assassinavam os secretários dos bispos, como aconteceu ao secretário de dom Hélder. O senhor citou Lula. Como arcebispo de Brasília, deve ter tido de lidar com ele. Que balanço faz de sua passagem à frente do País? Em sete anos em Brasília, nunca o vi na Catedral... [ri] E às vezes fazia afirmações um pouco surpreendentes, como quando dizia que tinha uma moral como pessoa privada e outra como presidente... Mas certamente a percepção de sua contribuição é muito positiva, e compartilhada pela maioria dos brasileiros. Amou o seu povo e, tendo sido um operário, entendeu a condição dos brasileiros como esta 28 30DIAS Nº 4/5 - 2011 é na realidade concreta. Com ele o Brasil teve um crescimento impressionante, e houve também uma certa redistribuição da renda. Combateu a corrupção, sem se aproveitar da posição de presidente para defender os corruptos que estavam também dentro de seu partido. E Dilma, a nova presidenta? Dilma é muito diferente. Lula é um operário, a sua força é o sindicalismo. Ele é um sindicalista humanista, um fortíssimo lutador. meçamos a escutar novamente. Não é uma questão de dizer que os problemas não existem. Mas podemos enfrentá-los de um outro modo. Sem condenações prévias. Ouvindo as motivações. Hoje temos muitos relatórios de investigações sobre os quais temos de trabalhar. Depois há o relatório de irmã Clare Millea [a religiosa designada pelo Vaticano como visitadora apostólica, ndr], que será importante. Dilma é uma intelectual, e de outros pontos de vista é mais pragmática. Mas dizem que tenha ainda mais apoio popular que Lula. Esse dado é interessante. Como começou o seu trabalho na Congregação para os Religiosos? Tivemos de enfrentar muitas dificuldades. Havia muita desconfiança por parte dos religiosos em razão de algumas posições tomadas anteriormente. Hoje, o ponto focal do trabalho é justamente reconstruir uma relação de confiança. Com o secretário da Congregação, Joseph William Tobin, trabalhamos juntos, conversamos muito, de modo que as decisões sejam tomadas em comum. Como vai indo a questão das inspeções às congregações religiosas femininas dos Estados Unidos? Essa questão também não é fácil. Havia desconfiança, conflitos. Falamos com eles, seus representantes chegaram a vir a Roma. Co- São legítimas e úteis as comparações entre as ordens religiosas mais antigas e os novos movimentos? Às vezes eles são vistos por alguns como concorrentes, ou até em conflito. Os carismas que florescem no tempo presente são doados à Igreja de hoje. Talvez daqui a vinte anos não tenham a mesma relevância. E isso não deveria chocarse com os carismas mais antigos. Se vivem em fidelidade ao carisma inicial doado a eles pelo fundador, encontrarão também a maneira de oferecer algo neste tempo. O perigo é quando perdem o espírito dos fundadores. Nesse sentido, o que representou para o senhor o caso do fundador dos Legionários de Cristo? É claro que é uma dor quando vemos a expansão de uma realidade que se apresenta como carismática e depois descobrimos a indignidade de seu fundador. Co- Entrevista com o arcebispo João Braz de Aviz Dom Hélder Câmara durante uma visita pastoral a Morro da Conceição, Recife, em 1968; à esquerda, Óscar Romero com os seminaristas em Playa el Majahual, em 1978 que assim as coisas não podiam ir para a frente. O senhor não acha que no passado tenha havido muita ênfase nos novos movimentos, que às vezes escondeu aspectos problemáticos? Nas novas comunidades e nos novos movimentos nem tudo é belo e justo a priori. Em algumas realidades vemos que existem aspectos realmente desequilibrados. É claro que não podemos negar que em muitas dessas realidades foram vistas coisas enormes. Em muitos lugares, trouxeram frescor, alegria, novidade, juventude. Creio que de qualquer forma o tempo atual não é mais o tempo em que cada um faz por si, em que todos estão separa- mo único critério o de crescerem e tomar mais espaço, isso não é de Deus. Se existe um “carisminha” pequenino, por exemplo numa paróquia, ajudem-no a crescer, em vez de entrar em conflito com ele. Além da sua ligação com os Focolares, é conhecida também a sua amizade com a Comunidade de Santo Egídio. Sim. Tenho grande estima por Andrea Ricciardi. Espero poder encontrá-lo logo. Nos últimos tempos, um fenômeno disseminado é o de novos institutos de vida consagrada que por vezes vivem situações de conflito com os bispos e com as próprias Igrejas nacionais. Quando o ouvíamos dom Hélder Câmara, durante o regime militar, ele nos fazia tremer de emoção. Só não o mataram porque o povo reagiria muito mal. E então mandavam advertências bastante claras: em vez dos bispos, assassinavam os secretários dos bispos, como aconteceu ao secretário de dom Hélder mo isso é possível continua a ser um mistério. O caso dos Legionários não é o único. No Brasil, tivemos o caso da Toca de Assis. Uma comunidade que vestia um hábito típico franciscano que chamava a atenção, e que se inseriu no filão da Canção Nova [comunidadenetwork que nasceu no Brasil e está ligada ao movimento carismático, ndr]. Davam uma imagem forte de si, com frades que diziam dar glória a Deus cantando e dançando. Envolveram cerca de seiscentos jovens. Até que foi descoberto que o fundador tinha também comportamentos moralmente indignos com seus seguidores. Quanto aos Legionários, já não me convencia desde antes, em sua estrutura, a falta de confiança na liberdade das pessoas. Um autoritarismo que procurava dominar tudo com a disciplina. Eu já tinha tirado os seminaristas de Brasília de seus seminários, pois via dos até entrar em conflito uns com os outros e são unidos apenas na referência comum ao Papa. Eu dizia em Brasília: se vocês, dos carismas maiores, mortificam e anulam os carismas menores porque têm co- O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ergue o braço da recémempossada presidente Dilma Rousseff, no Palácio do Planalto, Brasília, em 1º de janeiro de 2011 Eu tenho sempre um pouco de medo quando um grupo começa a pensar e a dizer: nós somos os únicos que defendem a verdadeira Igreja e a Tradição. Nós possuímos a luz de Deus, e os outros não. Na Igreja não é assim que funciona. E Deus não trabalha desse jeito. Ele distribui seus dons, nunca deu toda a sua graça a uma só pessoa. Se pensar mos na experiência de Deus com seu povo, mesmo na Bíblia o que ressalta não é o exclusivismo elitista, mas a paciência e a misericórdia perante aquele povo cheio de limites, que se perdia ao longo do caminho. Como esperou, quantas vezes foi decepcionado... E se olharmos ainda para os santos, veremos que os verdadeiros santos são sempre amigos uns dos outros. São diferentes, talvez às vezes até briguem, mas depois pedem perdão e trabalham juntos. Mesmo os de hoje, como Dom Giussani e Chiara Lubich. q 30DIAS Nº 4/5 - 2011 29 Oriente Médio Do Líbano, uma mensagem de convivência O diálogo com o islã, um novo confronto com os políticos cristãos, a necessidade de uma relação com o Hezbollah, a tragédia do conflito palestino-israelense: entrevista com Sua Beatitude Béchara Raï, novo patriarca de Antioquia dos Maronitas por Davide Malacaria o dia 15 de março os bispos maronitas, reunidos em Bkerké (perto de Beirute), na sede do Patriarcado, elegeram Béchara Raï, bispo de Jbeil, Byblos dos Maronitas, novo patriarca de Antioquia dos Maronitas. Sua Beatitude Béchara Broutos Raï, 71 anos, ordenado N 30 30DIAS Nº 4/5 - 2011 sacerdote em 1967 e nomeado bispo em 1986, conhece muito bem Roma e o Vaticano; porque aqui estudou, no Pontifício Colégio Maronita, e aqui, por muitos anos, também como membro do Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais foi o responsável pelo programa árabe da Rá- Acima, Béchara Raï logo depois da sua eleição a patriarca de Antioquia dos Maronitas, dia 15 de março de 2011; à direita, a multidão de fiéis que foram ao Patriarcado de Bkerké para saudar o novo patriarca Entrevista com o patriarca de Antioquia dos Maronitas dio Vaticano. Sua Beatitude Béchara Raï é o sucessor de Nasrallah Pierre Sfeir, que pediu sua demissão em fevereiro passado, aos noventa anos. Dia 14 de abril, ao receber em audiência o novo patriarca, Bento XVI concedeu a ecclesiastica communio. Há alguns anos no Líbano, país crucial para a estabilidade do Oriente Médio, a solenidade da Anunciação foi declarada festa nacional, para a alegria dos cristãos, obviamente, e dos islâmicos, que veneram Maria a mãe do profeta Jesus. Uma festa nascida com a marca daquela convivência entre cristãos e islâmicos que, mesmo com alternados e às vezes dolorosos acontecimentos da história, foi a característica deste país. Béchara em árabe quer dizer “Anunciação”. Um bom auspício. enquanto era repetido o meu nome, num certo momento foi lido também este lema. Era um modo de dizer que aceitava o que fosse decidido no Sínodo, mas com a marca, justamente, da comunhão e do amor. A Igreja maronita, de rito oriental e desde sempre em comunhão com Roma, tem um papel de ponte entre a cristandade ocidental e a ortodoxa? Historicamente, os maronitas têm relações fecundas tanto com as Igrejas de tradição grega e síria quanto com a Santa Sé. Justamente por isso tiveram um papel muito importante quando se deram uniões entre Igrejas de rito oriental e Roma – refiro-me às Igrejas chamadas uniatas. Por his- tória e tradição o nosso papel é o de ser ponte entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa. Uma missão ecumênica muito preciosa para a cristandade. Também a propósito das relações com a Ortodoxia, o cardeal Levada, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, no seu discurso no Sínodo para as Igrejas Orientais disse que gostaria de interpelar os patriarcas do Oriente para reunir pareceres para uma possível reforma do ministério petrino... Um análogo trabalho já tinha sido realizado no tempo de João Paulo II. Eu era membro da Comissão que devia recolher as respostas dos patriarcas e referir ao Santo Padre. Na época reunimos O que o senhor pensou no momento da eleição? BÉCHARA RAÏ: Durante o Sínodo, os outros possíveis candidatos ao patriarcado, a um certo momento deram um passo atrás para que se chegasse a uma eleição unânime. Foi naquele momento que me veio a ideia do lema para o meu mandato: “Comunhão e amor”, que depois escrevi na ficha eleitoral. Assim, durante a apuração dos votos, À direita, Bento XVI recebe em audiência Sua Beatitude Béchara Raï, dia 14 de abril de 2011 contribuições de vários patriarcas e bispos orientais, mas depois este trabalho não foi completado. Entre as várias propostas que chegaram à Comissão houve alguma que chamou mais a sua atenção? Entre outras, havia a proposta de que os patriarcados orientais pudessem estender as suas juridições aos fiéis da diáspora, portanto fora do território tradicionalmente chamado território patriarcal. Essa proposta, infelizmente, não foi acolhida. Recordo que se falou disso em 2000, por ocasião do congresso no 10º aniversário da promulgação do Código de Direito Canônico das Igrejas ¬ 30DIAS Nº 4/5 - 2011 31 Oriente Médio Orientais, e na época, o Secretário de Estado Vaticano, falando em nome do Santo Padre, explicou como não seria possível estender a jurisdição dos patriarcados por dois tipos de motivos. O primeiro refere-se ao princípio da territorialidade: por tradição o território patriarcal tem um limite geográfico limitado ao âmbito oriental, nem o princípio de territorialidade pode-se tornar princípio de subjetividade. O segundo motivo, foi-nos referido, é que o patriarcado é uma instituição eclesiástica e, como tal, pode também desaparecer, enquanto o episcopado e o papado são, ao contrário, instituições divinas e não passageiras. Como o Papa é bispo de todos os católicos e como há bispos locais com poder pastoral jurisdicional também sobre os fiéis da diáspora oriental, não há necessidade de estender a jurisdição do patriarca. Esta foi, com extrema síntese, a resposta que foi dada. Quanto é importante a relação entre o Patriarcado de Antioquia dos Maronitas e os fiéis da diáspora espalhados pelo mundo? Os vários líderes cristãos falaram de suas diversas opções políticas e, mesmo confirmando suas próprias posições, chegaram à conclusão que suas visões políticas são complementares e não em conflito. A multiplicidade de opções políticas, mais do que causar contrastes, pode ao invés, ser uma riqueza e garantia de democracia O patriarca Béchara Raï, no centro da foto, e a partir da esquerda: Amin Gemayel, líder das Falanges Libanesas; Samir Geagea, líder do partido Forças Libanesas; o ex-general e ex-primeiro-ministro libanês Michel Aoun, líder do Livre Movimento Patriótico Libanês, a formação política maronita aliada ao Hezbollah; Suleiman Franjieh, filho do primeiro-ministro assassinado em 1978, hoje parlamentar e líder do movimento Marada, por ocasião de um encontro junto ao Patriarcado entre os chefes históricos dos principais partidos políticos cristãos, a 19 de abril de 2011 32 30DIAS Nº 4/5 - 2011 Para o patriarca de Antioquia dos Maronitas é importante dar atenção também a estes fiéis. É um trabalho que tem sido feito pelas várias dioceses maronitas espalhadas no mundo; em outras localidades, ao invés, tal atenção é dada pelas comunidades organizadas, ou seja, paróquias maronitas que dependem do ordinário local, que é o latino, enfim há comunidades sem sacerdotes. Portanto é nosso dever prover a contribuição pastoral: o envio de sacerdotes, religiosos e religiosas e, onde há comunidades organizadas, prover às dioceses. Mas a ligação entre os imigrantes e a terra natal é mantida também no plano eclesial e de sociedade civil, através das várias organizações que conservam vitais tais relações. Um aspecto relevante dessa ligação é a manutenção da cidadania libanesa por parte dos descendentes de famílias maronitas. É importante porque, em um sistema político como o libanês, baseado na demografia, consente aos cristãos de manterem inalterado o seu número e, consequentemente, o seu peso político. É preciso lembrar que o nosso sistema político tem uma participação paritária na administração dos bens públicos dos cristãos e muçulmanos, pois a população é formada por metade cristãos e metade muçulmanos: se o número de cristãos ou muçulmanos se alterar muito, mudaria tal equilíbrio. Mas a ligação com os nossos imigrantes é importante também porque o Líbano representa para os maronitas a sua pátria espiritual, as suas tradições, a sua história. Além disso essa ligação permite aos imigrantes sustentar economicamente as famílias que ficaram na pátria e também a “causa” libanesa. Enfim a diáspora pode fazer muito no plano de projetos de desenvolvimento e de projetos sociais. Depois da sua eleição, o senhor quis encontrar os quatro líderes mais importantes dos partidos cristãos presentes no Líbano... Atualmente no Líbano há uma grande divisão entre o chamado “Bloco de 14 de março”, que conta com partidos cristãos aliados com Entrevista com o patriarca de Antioquia dos Maronitas A partir da esquerda, o mufti sunita Mohammed Rashid Qabbani, o patriarca Béchara Raï, o mufti xiita Abdel Amir Kabalan e o mufti druso Naim Hassan por ocasião da cúpula entre os chefes religiosos cristãos e muçulmanos organizada pelo patriarcado em Bkerké, a 12 de maio de 2011 os muçulmanos sunitas (que têm relações com a Arábia Saudita, Egito e Estados Unidos), e o “Bloco de 8 de março”, com os outros cristãos aliados com os xiitas e os Hezbollah, os quais por sua vez, mantêm relações com o Irã e a Síria. Isso cria muitas tensões, mesmo porque entre xiitas e sunitas há grande conflitualidade. Essa situação criou distâncias entre os cristãos, a ponto de os líderes políticos cristãos não conseguirem se encontrar. Por isso organizei este encontro no Patriarcado na esperança de favorecer uma distensão nas relações entre cristãos e, consequentemente, também na nação. E foi o que aconteceu. Os vários líderes cristãos falaram de suas diversas opções políticas e, mesmo confirmando suas próprias posições, chegaram à conclusão que suas visões políticas são complementares e não em conflito. A multiplicidade de opções políticas, mais do que causar contrastes, pode ao invés, ser uma riqueza e garantia de democracia. O encontro foi marcado por uma fraterno acordo, que criou distensão também no plano público. Agora, depois que o gelo foi quebrado, o encontro entre os políticos cristãos prosseguirão, porém mais alargados, para ampliar as bases do diálo- go. Além deste encontro, foi realizado no Patriarcado uma cúpula entre vários chefes religiosos, muçulmanos e cristãos, que deu origem a uma declaração comum sobre os princípios e os fundamentos da nação nos quais todos os libaneses, além da sua religião, se reconhecem, e sobre o fato de que a política, como tal, deve ser deixada aos políticos. Creio que tudo isso possa dar um novo impulso à unidade do país. Espero, enfim, que logo se possam realizar encontros entre os políticos muçulmanos e cristãos, no âmbito dos quais se possam confrontar sobre temas mais delicados da vida social e política do país. Então o problema não é tanto criar um único partido político dos cristãos, mas procurar um acordo entre os vários partidos. O Líbano é um país democrático e pluralista, portanto são bemvindas as diversidades de opiniões e de pontos de vista. Porém há duas coisas que nos unem: os fundamentos da nação e os objetivos comuns. O Líbano se fundamenta em alguns princípios políticos que, desde o nascimento do Estado, constituem uma constante inalterada, ou seja, que o Líbano é um país democrático, parlamentar, baseado na convivência entre muçulmanos e cristãos, nos direitos do homem, na liberdade, no pacto nacional segundo o qual cristãos e muçulmanos participam de maneira igualitária à administração dos bens públicos. Estes são os fundamentos do nosso país, indispensáveis justamente pela natureza da nossa nação: porque no Líbano, considerando a presença histórica de cristãos e islâmicos, existem duas tradições diversas, duas culturas diversas e assim por diante. No que se refere aos objetivos comuns, pretendese: como conservar o Líbano como entidade estatal, como conservar a sua identidade e como agir pelo bem comum e, particularmente em relação aos cristãos, como conservar a sua presença no nosso país. Para preservar os princípios fundamentais do nosso Estado e para alcançar todos os objetivos não se trata de unificar as várias opções políticas, ao contrário. Dizem que “todos os caminhos levam a Roma”: são bem aceitas todas as diversidades de opiniões, de escolhas políticas, de alianças porque não há uma facção política que possa pretender ser aquela “verdadei- ¬ 30DIAS Nº 4/5 - 2011 33 Oriente Médio ra”, todas trazem consigo um aspecto de verdade. A nossa tarefa é a de favorecer essa abordagem construtiva e não conflitual. Como serão as relações do patriarca com Hezbollah? No passado existia uma Comissão na qual o Patriarcado e Hezbollah dialogavam sobre os problemas do país, mas este confronto profícuo não existe mais. Depois da minha eleição, quando uma delegação do Hezbollah veio prestar homenagem ao novo patriarca, disse-lhes que se devia voltar ao diálogo, em particular através da retomada desta Comissão, porque não podemos perder essa oportunidade. Os conflitos entre homens, entre grupos nascem de incompreensões ou de preconceitos. Não é que devemos dialogar sobre todas as escolhas políticas, porém pode-se tentar esclarecer muitos pontos. No passado, com relação ao Hezbollah, houve o problema da natureza deste partido porque, em particular, alguns não aceitavam que eles possuíssem armas. Mas, hoje, essa discussão não existe mais, pois é estéril. Agora se fala de estratégia comum de defesa, ou seja, como o Líbano deve organizar a posse e o uso de armas. Não é aceitável o fato de que o Hezbollah possa usar armas quando quiser, possa declarar guerra ou negociar a paz com Israel sem relação com o governo do país. Fala-se então de uma estratégia de defesa que se refere conjuntamente ao Estado, a Hezbollah, ao exército regular, às milícias de Hezbollah e assim por diante. Ainda não chegamos a um esclarecimento sobre o ponto, porém o conceito foi aceito mais ou menos por todos. Entretanto, foi recusada integralmente a tese segundo a qual Hezbollah deveria entregar as armas. É um pedido que não pode ser aceito e, entre outras coisas, torna crítica a relação com o Hezbollah. Também devemos nos confrontar para obter garantias sobre o fato que o Hezbollah não use armas no plano inter no, por rivalidades com seus próprios adversários políticos nem declare guerra a Israel prescindido de qualquer referência ao legítimo poder libanês. Não é aceitável um Estado dentro do Estado. São temas que se sintetizam com a expressão “estratégia comum de defesa”. Falou-se muitas vezes da importância da convivência entre cristãos e muçulmanos no Líbano... No nosso país a convivência foi sancionada com o Pacto nacional de 1943, quando muçulmanos e cristãos expressaram duas negações: não ao Oriente e não ao Ocidente. Quer dizer que os mu- çulmanos libaneses não podem trabalhar em um processo de integração com a Síria ou com qualquer outro país árabe de regime islâmico, nem os cristãos com o Ocidente e especificamente com a França. Ao mesmo tempo os muçulmanos renunciaram a qualquer pretensão com relação à possibilidade de instaurar uma teocracia islâmica enquanto os cristãos, por sua vez, renunciaram ao laicismo de modelo ocidental. Deste modo construiu-se no Líbano um Estado que é a metade do caminho entre a teocracia oriental e os regimes secularizados ocidentais. É um país civil, que respeita a dimensão religiosa de todos os cidadãos; não pode ser imposto um sistema teocrático, nem uma religião de Estado. A convivência entre cristãos e muçulmanos é estabelecida pela Constituição, a qual afirma, no artigo 9, que o Líbano é uma grande homenagem a Deus, respeita todas as religiões, reconhece seus estatutos, garante a liberdade religiosa e a prática religiosa de todos. O Estado libanês não legisla em matérias que se referem à religião, em matéria de matrimônio ou outras coisas, como acontece em vez no Ocidente onde se fazem leis em contraste com a lei natural como, por exemplo, a lei sobre matrimônios entre À esquerda, um jovem diante da estátua da Virgem Maria no Santuário de Harissa; à direita, fiéis durante a Santa Missa dominical na igreja de São Jorge no vilarejo de Qoleia 34 30DIAS Nº 4/5 - 2011 Os partidários do Hezbollah manifestam em Beirute em 19 de março de 2011a favor das revoltas populares contra os regimes no Egito, Tunísia, Yêmen, Líbia e Bahrein No passado, com relação ao Hezbollah, houve o problema da natureza deste partido porque, em particular, alguns não aceitavam que eles possuíssem armas. Mas, hoje, essa discussão não existe mais, pois é estéril. Agora se fala de estratégia comum de defesa, ou seja, como o Líbano deve organizar a posse e o uso de armas pessoas do mesmo sexo. Nestas matérias as diversas comunidades religiosas têm uma sua autonomia legislativa. O senhor considera que o Líbano seja um exemplo virtuoso de convivência também no plano internacional? Certamente. Vemos que no Ocidente a religião é colocada de lado e isso o islã não pode aceitar. Por outro lado vemos como no mundo oriental tenham-se instaurado sistemas políticos nos quais a religião tem uma importância fundamental, mas são fechados. E isso acontece tanto em países islâmicos como em Israel. No Líbano, ao invés, há um Estado democrático, pluralista, que respeita a dimensão religiosa de todos os cidadãos e os direitos do homem. É a beleza do nosso país que fez com que João Paulo II afirmasse que o Líbano mais do que uma na- ção é uma mensagem e um exemplo, um exemplo virtuoso para o Oriente em relação aos regimes fundamentados na religião, e para o Ocidente em relação aos sistemas políticos baseados na secularização. Qual é a sua opinião sobre os movimentos de revolta que estão se propagando nos países árabes que, entre outros, afetam um país como a Síria, muito importante para o Líbano? O problema é complexo. Na Síria governa uma minoria alawita enquanto a grande maioria dos muçulmanos sírios são sunitas. Os sunitas, que não são absolutamente fundamentalistas, governavam o país antes que chegassem os Assad e agora pedem reformas... No Egito, ao invés, há a Irmandade Muçulmana que pode levar o novo curso político a um fundamentalismo. É preciso considerar que o islã está sofrendo vários conflitos: entre xiitas e sunitas no Iraque e em outros lugares, entre alawitas e sunitas na Síria e em outros países. Não sei onde tudo isso vai acabar, mas é preocupante: há o perigo de que em algum destes Estados se instaure um regime islâmico fundamentalista ou um regime ditatorial pior que os anteriores; ou mesmo que se chegue a uma divisão desta região em pequenos Estados confessionais, segundo o que alguns observadores internacionais chamam “projeto para um novo Oriente Médio”. O futuro é incerto. Nós esperamos que estes países encontrem a paz no respeito dos direitos humanos dos povos, porque sabemos que os regimes contestados são os ditatoriais, nos quais regem um sistema político-religioso fechado e com partido único. São países com grandes recursos, mas cujas ri- ¬ 30DIAS Nº 4/5 - 2011 35 Oriente Médio quezas não são distribuídas e o povo é muito pobre. Todas essas revoltas e manifestações de massa foram conduzidas, geralmente, sem armas usando apenas o Facebook: é gente que reclama seus próprios direitos e liberdade. Alguns países fizeram reformas, outros não fizeram isso. Onde não se encontrou uma resposta positiva às esperanças do povo, a situação está pioran- de internacional para que ajude estes povos. A última pergunta refere-se à paz entre Israel e Palestina... Na origem de todas as crises e de todos os problemas do Oriente Médio há o conflito entre Israel e Palestina. É o “pecado original”, a matriz que nutre todas as crises da nossa região. Infelizmente a comunidade internacional não está giados em um total de quatro milhões de habitantes, um número exorbitante... Uma presença que constitui um problema para a segurança, considerando que eles possuem armas e as usam sem qualquer controle, mas também um drama político e social. Os conflitos que aconteceram no Líbano, desde 1975 até hoje, foram causados pela presença destes re- Palestinos no campo de refugiados de Ein el-Hilweh, na periferia da cidade de Sidone, no Líbano Na origem de todas as crises e de todos os problemas do Oriente Médio há o conflito entre Israel e Palestina. É o “pecado original”, a matriz que nutre todas as crises da nossa região. Infelizmente a comunidade internacional não está agindo como deveria: é preciso aplicar a resolução do Conselho de Segurança, começando com a que prevê a volta dos refugiados à própria terra do e isso nos preocupa cada vez mais, mesmo porque esta crise tem repercussões muito negativas sobre as comunidades cristãs, como aconteceu no Iraque, porque infelizmente quem sofre as consequências de certas situações são os cristãos. Estamos muito preocupados também pelo Líbano, que se encontra no âmbito dessas manifestações e é afetado por todas essas crises. Nós nos dirigimos à comunida36 30DIAS Nº 4/5 - 2011 agindo como deveria: é preciso aplicar a resolução do Conselho de Segurança, começando com a que prevê a volta dos refugiados à própria terra. A ONU foi criada para favorecer a paz no mundo e, ao invés, não faz nada, porque, infelizmente, é refém das grandes potências. Os palestinos devem ter seu Estado e os refugiados devem voltar às suas próprias terras. O Líbano hospeda 500 mil refu- fugiados, que pressionam para voltar às próprias terras. Se este conflito fosse resolvido até o Hezbollah perderia a sua razão de existir... É que as grande potências jogam com o destino dos povos. É suficiente ver o que aconteceu no Iraque, onde intervieram, foi dito, para instaurar a democracia e, depois de uma década, foram mortas mais pessoas que tenha matado Saddam Hussein. q MUITOS CAMINHOS DA CARIDADE PASSAM POR UMA PICCOLA VIA A ASSOCIAÇÃO PICCOLA VIA ONLUS foi instituída para enviar gratuitamente principalmente nos países de missão a revista mensal internacional 30Dias e o pequeno livro Quem reza se salva, assim como para atender aos pedidos de caridade. PARA AJUDAR A ASSOCIAÇÃO PICCOLA VIA ONLUS PODE-SE FAZER UMA DOAÇÃO através de uma remessa bancária na conta corrente IBAN IT 84 S 02008 05232 000401310401 BIC-SWIFT: BROMITR172A nominal a: ASSOCIAZIONE PICCOLA VIA ONLUS ou também: Cheque bancário circular, com a indicação não transferível, emitido em favor da ASSOCIAZIONE PICCOLA VIA ONLUS na Igreja e no Mundo Via dei Santi Quattro, 47 - Roma [email protected] Via Vincenzo Manzini, 45 - 00173 Roma Tel. 06 72 64 041 Fax 06 72 63 33 95 [email protected] • www.30giorni.it para saber mais escreva para o nosso endereço: [email protected] PÁSCOA 2011 Mensagem Urbi et orbi do Papa Bento XVI A ressurreição de Cristo é um acontecimento A incredulidade de São Tomé, Giovan Francesco Barbieri, dito o Guercino, Pinacoteca dos Museus do Vaticano “In resurrectione tua, Christe, coeli et terra laetentur / Na vossa ressurreição, ó Cristo, alegrem-se os céus e a terra” (Liturgia das Horas). Amados irmãos e irmãs de Roma e do mundo inteiro! 38 30DIAS Nº 4/5 - 2011 A manhã de Páscoa trouxe-nos este anúncio antigo e sempre novo: Cristo ressuscitou! O eco deste acontecimento, que partiu de Jerusalém há vinte séculos, continua a ressoar na Igreja, que traz viva no coração a fé vibrante de Maria, a Mãe de Jesus, a fé de Madalena e das primeiras mulheres que vi- A ressurreição de Cristo não é fruto de uma especulação, de uma experiência mística: é um acontecimento, que ultrapassa certamente a história, mas se verifica num momento concreto da história e deixa nela uma marca indelével ram o sepulcro vazio, a fé de Pedro e dos outros Apóstolos. Até hoje – mesmo na nossa era de comunicações supertecnológicas – a fé dos cristãos assenta naquele anúncio, no testemunho daquelas irmãs e daqueles irmãos que viram, primeiro, a pedra removida e o túmulo vazio e, depois, os misteriosos mensageiros que atestavam que Jesus, o Crucificado, ressuscitara; em seguida, o Mestre e Senhor em pessoa, vivo e palpável, apareceu a Maria de Magdala, aos dois discípulos de Emaús e, finalmente, aos onze, reunidos no Cenáculo (cf. Mc 16, 9-14). A ressurreição de Cristo não é fruto de uma especulação, de uma experiência mística: é um acontecimento, que ultrapassa certamente a história, mas se verifica num momento concreto da história e deixa nela uma marca indelével. A luz, que encandeou os guardas de sentinela ao sepulcro de Jesus, atravessou o tempo e o espaço. É uma luz diferente, divina, que fendeu as trevas da morte e trouxe ao mundo o esplendor de Deus, o esplendor da Verdade e do Bem. Tal como os raios do sol, na primavera, fazem brotar e desabrochar os rebentos nos ramos das árvores, assim também a irradiação que dimana da Ressurreição de Cristo dá força e significado a cada esperança humana, a cada expectativa, desejo, projeto. Por isso, hoje, o universo inteiro se alegra, implicado na primavera da humanidade, que se faz intérprete do tácito hino de louvor da criação. O aleluia pascal, que ressoa na Igreja peregrina no mundo, exprime a exultação silenciosa do universo e sobretudo o anseio de cada alma humana aberta sinceramente a Deus, mais ainda, agradecida pela sua infinita bondade, beleza e verdade. “Na vossa ressurreição, ó Cristo, alegrem-se os céus e a terra”. A este convite ao louvor, que hoje se eleva do coração da Igreja, os “céus” respondem plenamente: as multidões dos anjos, dos santos e dos beatos unem-se unânimes à nossa exultação. ¬ Bento XVI 30DIAS Nº 4/5 - 2011 39 PÁSCOA 2011 No Céu, tudo é paz e alegria. Mas, infelizmente, não é assim sobre a terra! Aqui, neste nosso mundo, o aleluia pascal contrasta ainda com os lamentos e gritos que provêm de tantas situações dolorosas: miséria, fo- Noli me tangere, Federico Barocci, Galleria degli Uffizi, Florença me, doenças, guerras, violências. E todavia foi por isto mesmo que Cristo morreu e ressuscitou! Ele morreu também por causa dos nossos pecados de hoje, e também para a redenção da nossa história de hoje Ele ressuscitou. Por isso, esta minha mensagem quer chegar a todos e, como anúncio profético, sobretudo aos povos e às comunidades que estão a sofrer uma hora de paixão, para que Cristo ressuscitado lhes abra o caminho da liberdade, da justiça e da paz. Possa alegrar-se aquela Terra que, primeiro, foi inundada pela luz do Ressuscitado. O fulgor de Cristo chegue também aos povos do Médio Oriente para que a luz da paz e da dignidade humana vença as trevas da divisão, do ódio e das violências. Na Líbia, que as armas cedam o lugar à diplomacia e ao diálogo e se favoreça, na situação atual de conflito, o acesso das ajudas humanitárias a quantos sofrem as consequências da luta. Nos países da África do Norte e do Médio Oriente, que todos os cidadãos – e de modo particular os jovens – se esforcem por promover o bem comum e construir uma sociedade, onde a pobreza seja vencida e cada decisão política seja inspirada pelo respeito da pessoa humana. A tantos prófugos e aos refugiados, que provêm de diversos países africanos e se veem forçados a deixar os seus entes mais queridos, chegue Até hoje – mesmo na nossa era de comunicações supertecnológicas – a fé dos cristãos assenta naquele anúncio, no testemunho daquelas irmãs e daqueles irmãos que viram, primeiro,a pedra removida e o túmulo vazio e, depois, os misteriosos mensageiros que atestavam que Jesus, o Crucificado, ressuscitara; em seguida, o Mestre e Senhor em pessoa, vivo e palpável, apareceu a Maria de Magdala, aos dois discípulos de Emaús e, finalmente, aos onze, reunidos no Cenáculo (cf. Mc 16, 9-14) 40 30DIAS Nº 4/5 - 2011 A ressurreição de Cristo é um acontecimento Sigamos as suas pegadas, neste mundo ferido, cantando o aleluia. No nosso coração, há alegria e sofrimento; na nossa face, sorrisos e lágrimas. A nossa realidade terrena é assim. Mas Cristo ressuscitou, está vivo e caminha conosco. Por isso, cantamos e caminhamos, fiéis ao nosso compromisso neste mundo, com o olhar voltado para o Céu Encontro no caminho de Emaús, Domenico Tintoretto, Hospício Proti-Vajenti-Malacarne, Vicenza a solidariedade de todos; os homens de boa vontade sintam-se inspirados a abrir o coração ao acolhimento, para se torne possível, de maneira solidária e concorde, acudir às necessidades prementes de tantos irmãos; a quantos se prodigalizam com generosos esforços e dão exemplares testemunhos nesta linha chegue o nosso conforto e apreço. Possa recompor-se a convivência civil entre as populações da Costa do Marfim, onde é urgente empreender um caminho de reconciliação e perdão, para curar as feridas profundas causadas pelas recentes violências. Possam encontrar consolação e esperança a terra do Japão, enquanto enfrenta as dramáticas consequências do recente terremoto, e demais países que, nos meses passados, foram provados por calamidades naturais que semearam sofrimento e angústia. Alegrem-se os céus e a terra pelo testemunho de quantos sofrem contrariedades ou mesmo perseguições pela sua fé no Senhor Jesus. O anúncio da sua ressurreição vitoriosa neles infunda coragem e confiança. Queridos irmãos e irmãs! Cristo ressuscitado caminha à nossa frente para os novos céus e a nova terra (cf. Ap 21, 1), onde finalmente viveremos todos como uma única família, filhos do mesmo Pai. Ele está conosco até ao fim dos tempos. Sigamos as suas pegadas, neste mundo ferido, cantando o aleluia. No nosso coração, há alegria e sofrimento; na nossa face, sorrisos e lágrimas. A nossa realidade terrena é assim. Mas Cristo ressuscitou, está vivo e caminha conosco. Por isso, cantamos e caminhamos, fiéis ao nosso compromisso neste mundo, com o olhar voltado para o Céu. Boa Páscoa a todos! 30DIAS Nº 4/5 - 2011 41 Curtas Curtas Curtas Cu 3ODIAS NO MUNDO 3ODIAS NO MUNDO 3ODIAS NO MUNDO 3ODIAS NO MUN IGREJA/1 Etchegaray, Papa Bento XVI e os novos inícios do cristianismo “Algumas vezes tem-se a sensação de que se sabe tudo de Bento XVI, considerando a sua enorme e densa produção teológica. Mas na realidade começa-se apenas a descobri-lo, ou antes, a descobrir o que é um Papa no exercício da sua função pastoral, no sentido que é um pastor que guia seu rebanho principalmente nas tempestades. Ao ser eleito Papa Bento tornou-se pároco; a Igreja descobriu um pastor e não apenas um teólogo, e o mundo um seu irrenunciável ponto de referência [...]. Sim, é isso mesmo. Não começou por acaso definindo-se um ‘operário na vinha do Senhor’? A sua homilia do Domingo de Ramos foi, neste sentido, exemplar: falou da humildade de Deus, que escolheu o caminho da Cruz para manifestar de forma extrema o seu amor. O pontificado do Papa Bento se- gue por esses caminhos”. Palavras do cardeal Roger Etchegaray no jornal Avvenire de 19 de abril. Prossegue o purpurado: “Na conversa com Peter Seewald, há uma passagem fundamental: ‘Hoje o Papa quer que a sua Igreja se submeta a uma espécie de purificação... Trata-se de revelar Deus aos homens, de dizerlhes a verdade. A verdade dos mistérios da Criação. A verdade da existência humana. E a verdade da nossa esperança, que está para além do puramente mortal’ [...]. Tudo poderia se sintetizar neste pensamento: ‘o cristianismo é um perene estado de novo início’”. IGREJA/2 Bartolomeu I, as calamidades naturais e as perversidades espirituais “A destruição natural causada por tremores sísmicos e ondas marítimas, junto com a ameaça de devastação provocada por possí- veis explosões nucleares, bem como os sacrifícios humanos resultantes de conflitos militares e ações terroristas, revelam que o nosso mundo está em grande tormento e angústia por pressão das forças naturais e espirituais do mal [...]. Contudo, a Ressurreição de Cristo é de fato real e confere aos cristãos fiéis a certeza – e a toda a humanidade a possibilidade – de transcender as consequências adversas da calamidade natural e da perversidade espiritual”. É uma passagem da homilia da noite de Páscoa de Sua Santidade Bartolomeu I, Patriarca Ecumênico de Constantinopla, publicada no Avvenire de 26 de abril passado. SAGRADO COLÉGIO A morte dos cardeais Saldarini e García-Gasco No dia 18 de abril, aos 86 anos, faleceu o cardeal Giovanni Saldarini, arcebispo de Turim de 1989 a 1999. E no dia 1° de maio faleceu o cardeal espanhol Vicente Agustín GarcíaGasco, 80 anos, de 1992 a 2009 arcebispo de Valência. No dia 31 de maio – depois de completarem 80 anos os cardeais Bernard Panafieu (26 de janeiro), Ricardo J. Vidal (6 de fevereiro), Camillo Ruini (19 de fevereiro), William H. Keeler (4 de março) e Sergio Sebastiani (11 de abril) – o Sagrado Colégio resulta composto por 198 cardeais dos quais 115 eleitores. Bartolomeu I 42 30DIAS Nº 4/5 - 2011 Fernando Filoni SANTA SÉ Filoni Prefeito de Propaganda Fide e Becciu substituto na Secretaria de Estado No dia 10 de maio o arcebispo Fernando Filoni, de 65 anos, originário da Apúlia, foi nomeado prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos substituindo o cardeal indiano Ivan Dias que completou 75 anos. Sacerdote desde 1970 na diocese de Nardò, entrou para o serviço diplomático vaticano em 1981 e em 2001 foi eleito arcebispo e núncio apostólico na Jordânia e Iraque. Foi nomeado urtas Curtas Curtas Curtas NDO 3ODIAS NO MUNDO 3ODIAS NO MUNDO 3ODIAS NO MUNDO 3ODIAS NO MUNDO núncio nas Filipinas em 2006, e desde 2007 era substituto para os Assuntos Gerais da Secretaria de Estado. Para este último cargo, ainda no dia 10 de maio, foi nomeado o arcebispo Giovanni Angelo Becciu, da Sardenha, 63 anos, desde 1972 sacerdote na diocese de Ozieri. Tendo entrado para o serviço diplomático vaticano em 1984, em 2001 Becciu foi eleito arcebispo e núncio apostólico em Angola. Desde 2009 era representante pontifício em Cuba. MUNDO A morte de Bin Laden e a de Hitler “A morte de Osama Bin Laden, em alguns aspectos, leva a memória a 60 anos atrás, a um homem entrincheirado em um bunker entre as ruínas de uma Berlim destruída. Adolf Hitler acabou com sua própria vida dia 30 de abril de 1945 e o anúncio da sua morte foi dado no dia 1º de maio. Também a morte de Bin Laden foi anunciada em um primeiro de maio”. Publicada no La Stampa de 3 de maio. ORIENTE MÉDIO/1 Peres, o acordo entre Hamas e Fatah e a paz entre israelenses e palestinos Para Shimon Peres negociar com o Hamas é possível. Em uma série de entrevistas concedidas à imprensa israelense, o chefe de Estado comentou o acordo assinado em 4 de maio passado no Cairo entre os dois principais partidos palestinos: Hamas, que governa Gaza e é indicado pelos israelenses como uma organização terrorista, e Fatah, no poder na Cisjordânia. “Se eles quiserem se unir, que se unam. Quando comecei a negociar com Arafat”, recordou Peres, “todos me diziam: ‘Não há esperança’. Hoje vale o mesmo para o Hamas. O nome não me interessa, o que contam são os conteúdos. Tudo pode acontecer”. Porém é melhor que as negociações aconteçam longe dos refletores: “Em público cada parte deve demonstrar à sua gente que é forte e agressiva, mas no seu coração os líderes sabem que Shimon Peres e Giorgio Napolitano em Jerusalém a 15 de maio de 2011. O presidente da República Italiana recebeu o prêmio Dan David Palestina, para que vivam em paz e segurança”. não há alternativa à paz. Por isso devemos manter distintas as aparências do potencial oculto”. MEDITERRÂNEO/1 ORIENTE MÉDIO/2 Enzo Bettiza e a guerra neocolonial na Líbia O fim do embargo a Gaza e a política dos Estados Unidos “Gaza, a faixa palestina dos sem-terra, desde ontem não é mais uma prisão. Depois de quatro anos a passagem de Rafah, na fronteira com o Egito, foi reaberta. O Cairo de Hosni Mubarak tinha fechado como represália à revolta dos fundamentalistas de Hamas contra a ANP do presidente leigo Abu Mazen. Ontem a junta militar egípcia, nascida da chamada “primavera árabe” decidiu cancelar a proibição”. Este o início de um artigo publicado no Corriere della Sera de 29 de maio, que assim se concluía: “É também claro que o sinal de Gaza conjuga-se com aquele incentivo internacional, guiado por Obama, para chegar aos dois Estados, Israel e “Qualquer que seja a conclusão, a história não poderá deixar de recordar do péssimo resultado da intervenção neocolonial na Líbia, revestida pela fraseologia do Tigellino ‘buonista’ do Eliseu, Bernard-Henri Lévy, grande incentivador em todos os sentidos de ‘bombas humanitárias’. Já na intervenção franco-britânica anterior em Suez em 1956 tinha sido contraproducente, reforçando o panarabista Nasser e dando a Krutchev um ótimo álibi para destruir paralelamente com ar mas a revolução húngara e favorecendo substancialmente o estabelecimento soviético no Oriente Médio”. Trecho do editorial do La Stampa de 11 de abril escrito por Enzo Bettiza. ¬ 30DIAS Nº 4/5 - 2011 continua na p. 45 43 Curtas Curtas Curtas Cu 3ODIAS NO MUNDO 3ODIAS NO MUNDO 3ODIAS NO MUNDO 3ODIAS NO MUN ITÁLIA/1 Pisapia e Dom Giussani Giuliano Pisapia enquanto vota no Liceu Berchet, para as recentes eleições municipais, Milão, 29 de maio de 2011 Pisapia quando estudante, fascinado por Dom Giussani. É o título de um pequeno artigo publicado no dia 14 de maio no Corriere della Sera de Milão. No artigo, o novo prefeito de Milão conta da sua relação com Dom Giussani, seu professor de religião no Liceu Berchet, e particularmente dos almoços em casa com o sacerdote ambrosiano, nos tempos de estudante, todos à mesa com sua mãe, seu pai e os outros (seis) irmãos “falando de Deus, do mundo, do papel que cada um de nós teria tido”. Sobre a relação com Dom Giussani, Pisapia já tinha comentado também em uma outra entrevista, concedida a Giuseppe Frangi para a revista Vita, de 28 de fevereiro de 2005, começando pelo primeiro, surpreendente, encontro: “Entrou na sala de aula e perguntou-nos se considerávamos correto que um pai católico educasse seus próprios filhos segundo aqueles princípios. Um de nós repropôs-lhe a pergunta: o senhor considera correto que um pai comunista eduque o próprio filho segundo os princípios aos quais crê? Dom Giussani não teve um segundo de hesitação. E respondeu sim”. Desde então, ITÁLIA/2 Giorgio Napolitano, Barack Obama e “o momento de oportunidade” “A Europa deve olhar de frente às novas realidades e aos novos desafios e deve demonstrar que é capaz de enfrentar as próprias responsabilidades em um mundo globalizado. prossegue Pisapia na entrevista a Vita, começou a frequentar o sacerdote e o grupo de jovens que lhe estavam ao redor. “Todos os domingos íamos à “Bassa milanese”, uma região periférica mais pobre. Nas casas rurais compartilhávamos as atividades, fazíamos as refeições e se brincava. Também falávamos de fé, mas sem qualquer pretensão de doutrinação [...]. Dom Giussani tinha uma carga humana enorme. E abolia todas as formalidades. A sua força era o diálogo. Queria que fôssemos nós mesmos, que tivéssemos a coragem de defender o nosso pensamento, mesmo se fosse contrário ao seu. Nunca começava com os dogmas, como faziam os outros padres. Queria-nos livres. Por isso com ele falávamos de tudo, mesmo de questões nossas que não eram ligadas à fé”. Mais tarde a estrada do jovem tomou outras direções: veio 1968, a luta política, em particular na esquerda italiana. Mesmo assim Pisapia dá àquele encontro juvenil uma importância fundamental, como reconhece na entrevista a Giuseppe Frangi: “Sem Giussani não sei se teria entendido o sentido de estar ao lado dos mais fracos. Também ensinou-me que a experiência conta mais do que qualquer leitura. É um valor que reencontrei na esquerda. Mas a primeira vez que me foi clara foi nos pátios na “Bassa milanese”. Dom Luigi Giussani Entre tais responsabilidades, há as que surgem dos acontecimentos de grandeza revolucionária que ocorreram no Norte da África e no Oriente Médio. E a este propósito estímulos importantes e sérias interrogações foram colocadas pelo recente discurso do presidente Obama ‘A Moment of Opportunity’, e pelo seu discurso realizado aqui esta noite. É essencial que como europeus nós também vejamos nas mudanças na África e no Oriente Médio ‘um momento de oportunidade’ não simplesmente uma fonte de incertezas e de preocupações”. São palavras do presidente da República italiana Giorgio Napolitano referindo-se ao encontro com o presidente dos Estados Unidos Barack Obama, ocorrido durante a cúpula dos chefes de Estado da Europa Central que se realizou em Varsóvia. As palavras do presidente Napolitano foram publicadas no Corriere della Sera de 28 de maio. Giorgio Napolitano e Barack Obama em Varsóvia, a 27 de maio de 2011 urtas Curtas Curtas Curtas NDO 3ODIAS NO MUNDO 3ODIAS NO MUNDO 3ODIAS NO MUNDO 3ODIAS NO MUNDO segue da p. 43 MEDITERRÂNEO/2 Todorov: a guerra na Líbia, o messianismo político e o pecado original “Infelizmente, creio que a guerra tenha uma sua lógica interna, que a torna impossível ser tão circunscrita e cirúrgica como sustentam seus promotores. Antes de 19 de março as tropas de Kadafi estavam para realizar um massacre em Bengasi, repetiu-nos o presidente Sarkozy para convencer o Ocidente a intervir. Então foram legítimos os primeiros bombardeios, os que bloquearam o avanço das tropas do regime. Mas depois, a intervenção pseudo-humanitária transformou-se em outra coisa”. São palavras do filósofo Tzvetan Todorov no Corriere della Sera de 12 de abril, que acrescenta: “Estamos diante de uma nova fase de messianismo político. A primeira é, justamente, a napoleônica pintada por Goya. A segunda onda messiânica foi a do comunismo [...]. E agora assistimos a um terceiro despertar do messianismo político: a primeira guerra do Golfo foi um treinamento, a intervenção no Kosovo, sem mandato da ONU, o ensaio geral, e eis depois o Afeganistão, Iraque”. E, à pergunta se é possível um não absoluto à guerra, responde: “Não, e não creio que seria um bem. A ambição de extirpar totalmente o Mal seria ainda mais danosa: é a função do pecado original a nos recordar, como dizia Romain Gary, que existe uma ‘parte inumana da humanidade’. Porém, devemos tentar limitar ao máximo as guerras não inevitáveis. Como a da Líbia, por exemplo”. As bandeiras da Turquia e da União Europeia diante da Mesquita Nur-u Osmaniye em Istambul EUROPA Patten, a crise da União Europeia e a Turquia No dia 5 de abril o jornal La Stampa publicou uma lúcida análise sobre a situação da União Europeia, escrita por Chris Patten, ex-governador britânico de Hong Kong, excomissário europeu para as Relações Exteriores e reitor da Universidade de Oxford. O tema central era a fragilidade da União Europeia no contexto político internacional. Como responder a tal crise? Pergunta-se Patten. “Para mim, a resposta”, lêse no artigo, “ encontra-se na Turquia. Uma Europa com a Turquia como membro teria naturalmente uma economia mais dinâmica. A Turquia é uma referência energética regional. Tem peso e respeito na própria região graças a formidáveis forças de combate. E, principalmente, hoje a Turquia é um modelo para outras sociedades islâmicas, que tentam fazer as contas com a democracia, as liberdades civis, o Estado de direito, uma economia aberta, o pluralismo e a religião. Na qualidade de membro da União Europeia, a Turquia deveria acrescentar uma nova dimensão de enorme importância histórica. Os europeus demonstrariam que é possível abraçar uma democracia islâmica e construir uma sólida ponte entre a Europa e a Ásia Ocidental. Isso, por sua vez, poderia criar uma nova identidade e imagem europeia, dar à União Europeia um novo motivo para existir neste século, um modo de recusar a política de divisão do antigo modelo”. RÚSSIA Putin cita São Francisco Em um discurso público, o primeiro-ministro Vladimir Putin declarou que ainda não chegou o momento de candidatar-se às próximas eleições presidenciais, nem para ele nem para o atual presidente da Federação Russa Dmitrij Medvedev, porque, explicou, “se agora lançarmos sinais errados, metade da administração e mais da metade do governo deixarão de trabalhar na espera de mudanças”. “Ao invés disso”, acrescentou, “todos nos seus próprios lugares devem fazer como São Francisco, capinar todos os dias na sua própria horta”. As declarações de Putin foram publicadas no Avvenire de 14 de abril. q Vladimir Putin 30DIAS Nº 4/5 - 2011 45 Colégios eclesiásticos de Roma Uma ponte entre Oriente e Ocidente Fundado em 1584 por Gregório XIII para promover as relações entre a Santa Sé e a Igreja Maronita, hoje o Pontifício Colégio Maronita propõe-se como lugar de diálogo entre diversas culturas e religiões por Pina Baglioni No alto, o afresco no átrio do Colégio Maronita que representa a Coroação á um belo vaivém no número 18 da via de Porta Pinciana, sede do Pontifício Colégio Maronita, em Roma: são peregrinos carregados de bandei- H 46 30DIAS Nº 4/5 - 2011 ras, provenientes do Líbano e das eparquias maronitas do Oriente Médio. Mas oriundos também da diáspora presente nos quatro cantos do mundo – sobretudo nos Esta- de Nossa Senhora, inspirado na figura do santuário de Qannoubine; aqui, acima, a entrada do colégio, na via de Porta Pinciana dos Unidos e no Canadá –, que representa dois terços dos três milhões e meio dos herdeiros de São Maron. No domingo de manhã, por volta das 10h30, é fácil encontrar os maronitas residentes na Cidade Eterna encaminhando-se, seguidos por pencas de crianças, para a igreja de São Maron, contígua ao Colégio, na via Aurora – rua que passa pelo lado leste do edifício –, onde é celebrada a missa em rito sírio-antioqueno, frequentada também por muitas famílias muçulmanas. Depois da missa, ficam conversando em volta do único banco de praça do lado de fora da igreja, ou no jardim interno, enquanto outros preferem frequentar os cursos de língua árabe organizados para as crianças nascidas na Itália. Tudo isso acontece ao redor do elegante edifício do bairro Ludovisi, encaixado entre grandes hotéis superluxuosos, bancos e lojas para turistas ricos. O Colégio Maronita, do qual os sacerdotes estudantes ali residentes, todas as manhãs, voam como um enxame para as Pontifícias Universidades, representa o elo entre a Santa Sé e a Igreja Maronita, antiquíssima Igreja sui iuris de rito sírio-antioqueno, a única entre todas as Igrejas cristãs do Oriente Médio a ostentar desde sempre A missa dominical em rito sírio-antioqueno na igreja de São Maron, contígua ao colégio plena comunhão com o sucessor de Pedro. Suas origens são estabelecidas pela tradição histórica entre os séculos IV e V, quando, após a morte do anacoreta sírio Maron, seus seguidores começaram a edificar mosteiros ao lado de seu túmulo, em Apameia, na Síria, às margens do rio Oronte. Mas na via de Porta Pinciana não se encontra apenas o Pontifício Colégio Maronita para sacerdotes estudantes; essa é também a sede da pastoral que se dedica aos frequentadores da igreja contígua de São Maron e da Procura- doria do Patriarcado Maronita de Antioquia junto à Santa Sé. Instituições que, nos últimos meses, viram-se no centro de um turbilhão de acontecimentos: em 2010, as celebrações dos mil e seiscentos anos da morte de São Maron; depois, a chegada a Roma das relíquias dos grandes santos maronitas do século XIX: São Charbel Makhlouf, Santa Rafka Rayes e São Nimatullah Al-Hardini, cuja devoção vem-se difundindo amplamente; enfim, em 23 de fevereiro passado, a instalação da imagem de São Maron num ni- ¬ História do Pontifício Colégio Maronita Forja de patriarcas, de orientalistas e de futuros santos a sala de ingresso da Cúria Generalícia dos Jesuítas, em Roma, é possível admirar um mapa antigo em que aparecem os primeiros cinco colégios nacionais, edificados, ao longo do século XVI, todos nas proximidades do Colégio Romano (a Universidade Gregoriana, na época). Assim, os seminaristas poderiam chegar rapidamente às aulas: eram o inglês, o alemão-húngaro, o armênio, o grego e o maronita. Este último, diferentemente de todos os outros, era o colégio de uma Igreja sui iuris difundida sobretudo no Líbano e na Síria, com ritos e liturgia derivados da tradição sírio-antioquena. E que ostentava plena comunhão com Roma, apesar da extrema dificuldade de comunicação entre a Santa Sé e o Oriente Médio. O contato entre a Santa Sé e a Igreja Maronita fora consolidado durante as Cruzadas, durante as quais os N exércitos cristãos receberam grande ajuda dos maronitas. E uma das consequências do reatamento de relações foi a viagem a Roma do patriarca Jeremias de Amshit, para o Concílio Lateranense IV, em 1215. Nos séculos seguintes, os pontífices enviaram missionários e visitadores apostólicos ao Líbano para verificar as eventuais problemáticas doutrinais entre os fiéis de São Maron. A Igreja Maronita era na época uma Igreja de fronteira, fechada entre as montanhas do Líbano e isolada não apenas de Roma, mas também do resto do mundo, pela necessidade de proteger-se da pressão dos Otomanos. Um dos resultados mais brilhantes das embaixadas pontifícias no Líbano entre 1578 e 1580 foi justamente a fundação do Colégio Maronita em Roma, em 1584, por iniciativa do papa Gregório XIII, que o instituiu com a ¬ 30DIAS Nº 4/5 - 2011 47 Colégios eclesiásticos de Roma Acima, Bento XVI com o presidente libanês Michel Suleiman e o cardeal Nasrallah Pierre Sfeir, por ocasião da inauguração da imagem de São Maron instalada num nicho externo da Basílica de São Pedro, em 23 de fevereiro de 2011; à direita, a imagem de São Maron no dia da inauguração cho externo da Basílica de São Pedro, na presença de Bento XVI. Isso sem contar que entre 28 de fevereiro e 15 de março deu-se também o pedido de demissão de sua beatitude, o cardeal Nasrallah Pierre Sfeir, depois de vinte e cinco anos à frente do Patriarcado, e a eleição de seu sucessor, Béchara Boutros Raï, bispo de Jbeil, Byblos dos Maronitas, septuagésimo sétimo patriarca maronita de Antioquia. Logo após sua eleição, o novo patriarca esteve em Roma duas vezes em poucos dias: em 14 de abril, para a audiência particular com o Papa, e em 1º de maio, para a beatificação de João Paulo II. O Colégio Maronita: um gomo de cristianismo médiooriental na Cidade Eterna “Vivemos um período com uma riqueza de acontecimentos como não nos lembrávamos de ter tido há tempos. Estamos todos um pouco confusos, mas muito, muito contentes.” Monsenhor Antoine Gebran é procurador do Patriarcado há dois anos, e há alguns meses reitor do Colégio e capelão dos migrantes adeptos da Igreja sírio-antioquena maronita residentes na diocese de Roma. Com pouco mais de quarenta anos, provém, como a maior parte dos sacerdotes libaneses, do vale de Qadisha, no norte do país, também chamado Vale Santo, pela miríade de mosteiros encastrados sob os cimos dos montes. Foi lá, entre os séculos VIII e IX, que encontraram refúgio os seguidores de São Maron que fugiram da Síria em consequência das constantes perseguições por parte de bizantinos, monofisistas e muçulmanos. cas, esses jovens assimilaram com extrema facilidade o bula Humana sic ferunt. O objetivo era formar em Roma latim, o italiano, o francês e o espanhol. Tanto que se diaspirantes sacerdotes que, de volta a seu país, podefundiu, logo, o ditado “culto como um maronita”. Conriam imprimir uma virada decisiva no âmbito das relacluídos os estudos, muitos eram chamados às cortes ções entre o papa e o patriarca maronita de Antioquia. dos soberanos europeus como tradutores e embaixadoEste, por sua vez, deveria promover as relações com tores. Aqueles que voltavam ao Líbano, das as outras Igrejas orientais. por sua vez, abriam escolas em todo o A primeira sede romana, cuja direção país. Assim, os maronitas que tinham esfoi entregue aos jesuítas, foi uma casa tudado em Roma difundiram por toda a junto à igreja de São João de Ficozza, a Europa as línguas, a história, as instituipoucos metros da atual Universidade ções e as religiões do Oriente Médio. Gregoriana e de Fontana de Trevi. Numa Ainda graças a eles foram impressos os rua que, depois, assumiria o nome de “via primeiros livros litúrgicos em siríaco. O dos Maronitas”. Aos quatro primeiros esprimeiro, em Roma, em 1585. tudantes, já em Roma, se juntaram, em Em 1662, o patriarca Youhanna Mah31 de janeiro de 1584, outros seis provelouf pediu ao Papa que afastasse os jenientes de Alepo, na Síria. suítas da direção do Colégio Maronita, Começaram a chegar a Roma jovens em razão da má gestão financeira e da de oito ou nove anos para frequentar os dispersão das vocações. Daquele moestudos primários, depois os cursos de mento em diante, o Colégio só teria reitoFilosofia e Teologia. Tendo já aprendido res maronitas. na pátria a gramática das línguas semíti- O patriarca Estêvão El Douaihy 48 30DIAS Nº 4/5 - 2011 O jovem monsenhor, antes de assumir o triplo encargo, foi ecônomo do Colégio e trabalhou durante sete anos no Pontifício Instituto para a Família: “Aqui”, explica, “recebemos sacerdotes enviados pelos bispos de todas as eparquias maronitas. Mas também aqueles que pertencem a todas as outras Igrejas cristãs do Oriente Médio, tanto as que estão em comunhão com Roma quanto as que não estão. O mesmo acontece no Líbano, onde os maronitas sempre conviveram com os armênios apostólicos e os armênios católicos, os greco-ortodoxos e os melquitas, os sírio-ortodoxos e os sírio-católicos, os assírios, os coptas, os caldeus e os católicos de rito latino. Além dos xiitas, dos sunitas, dos drusos, dos judeus e dos protestantes”. Os sacerdotes chegam a Roma já tendo terminado o primeiro ciclo de estudos de Filosofia e Teologia nos mais de noventa seminários diocesanos e interdiocesanos espalhados pelo Líbano. “Graças a Deus temos ainda muitas vocações, até mesmo adultas. Tanto assim, que foi necessário instituir no Líbano casas de formação especializadas nas vocações maduras”, acrescenta monsenhor Gebran. “Aqui no Colégio hospedamos sacerdotes de 26 a 40 anos. São doze libaneses, dos quais dez maronitas e dois greco-católicos. Os outros nos foram indicados pela Congregação para as Igrejas Orientais, que lhes concede bolsas de estudo para se sustentarem em Roma. Atualmente hospedamos um ortodoxo do Patriarcado de Jerusalém, um assírio e três sírio-católicos do Iraque e quatro coreanos de rito latino. Temos também dois leigos, um francês e um italiano. Nos anos anteriores recebíamos também muitos caldeus. Dizemos que os consideramos ausentes justificados...” Os momentos em comum são a missa da terça-feira celebrada na igreja de São Maron – oficiada em língua italiana, mas de acordo com o rito do celebrante da vez – e, diariamente, o café da manhã às 7h30, o almoço à 13 e o jantar às 19. Enquanto o grupo de maronitas, nos outros dias, se reúne para as vésperas e a missa das 18h45 numa capela interna do segundo andar do Colégio, todos os outros se organizam por conta própria. “Na realidade, alguns vêm assistir também à nossa missa, com a liturgia escrita em siríaco, variante do aramaico, e pronunciada em árabe.” Como muitos de seus colegas dos outros colégios de Roma, os sacerdotes do Maronita também são solicitados pelas paróquias para ajudar nos fins de semana, no Natal e na Páscoa. “Já temos relacionamentos estabelecidos com algumas paróquias de Roma, de Milão, de Entre os personagens que deram prestígio ao Pontifício Colégio Maronita de Roma destaca-se o patriarca Stefano El Douaihy, hoje encaminhado para a beatificação. No final do século XVII, ele redigiu os Anais, a primeira história das origens da Igreja Maronita. Apoiou, ainda, o renascimento das grandes ordens religiosas maronitas, reinserindo nelas as regras monásticas, niveladas aos ordenamentos vigentes no mundo latino, segundo o ensinamento de Santo Antão, o protótipo da vida monástica. A ação de El Douaihy foi determinante também para a reaproximação entre comunidades cristãs orientais ortodoxas e a Santa Sé. Entre outras coisas, o primeiro patriarca da Igreja sírio-católica, Inácio Miguel III Jarweh, foi aluno do Colégio Maronita. Um outro gigante do colégio foi José Simão Assemani, que, com outros membros de sua família, toda uma dinastia de orientalistas, fez a fortuna da Biblioteca Apostólica Vaticana. José Simão ali entrou em 1710 como escritor. Enviado em 1715 por Clemente XI para o Oriente em busca de manuscritos, viajou à Síria e ao Egito, onde conseguiu adquirir quase inteiramente a bi- Parma e de Como, para onde nossos sacerdotes vão também durante as férias de verão”, explica padre Joseph Sfeir, o ecônomo do Colégio Maronita. Charbel Ghoussoub é sacerdote há nove anos e vem da arquieparquia de Antélias, pouco distante de Beirute. Está para obter o mestrado em Ciências da Formação na Universidade Salesiana. “Vou voltar para o Líbano, pois o meu bispo me chamou de volta; lá, já fui pároco por cinco anos. Provavelmente voltarei a Roma para o doutorado”, conta-nos. “Em Roma respiramos o ar da universa- ¬ São Maron no mosaico da igreja contígua ao colégio e a ele dedicada blioteca do mosteiro copta de São Macário e parte da do mosteiro dos sírios, na Nitria; levou ainda à Europa os primeiros fragmentos coptas do mosteiro Branco. Em 1717, todos esses manuscritos – conservados hoje na Biblioteca Vaticana – foram por ele levados a Roma, onde se dedicou ao estudo dos siríacos, publicando depois seus resultados na Bibliotheca Orientalis Clementino-Vaticana. Primeiro guardião da Biblioteca Vaticana, em 1739, deu início, em colaboração com o sobrinho, Estêvão Evódio Assemani, à preparação de um catálogo geral dos manuscritos vaticanos, do qual saíram apenas os três primeiros volumes, dedicados aos códigos hebraicos e siríacos. José Simão Assemani foi protagonista, como legado pontifício, do Sínodo do Monte Líbano, de 1736, cuja presidência assumiu. Foi ainda ele o redator de uma “Carta Constitucional” da ¬ 30DIAS Nº 4/5 - 2011 49 Acima, um altar da igreja do colégio com alguns relicários; à esquerda, uma pintura representando Charbel Makhlouf, Rafka Rayes e Nimatullah Al-Hardini, os três grandes santos maronitas do século XIX, conservada na igreja do colégio lidade da Igreja, muitos ritos, muita riqueza. Só aqui entendemos o quanto a Igreja é grande. E levamos essa consciência para o Líbano, onde o espaço físico e mental em que atuamos normalmente é seminário e paróquia, paróquia e seminário, dentro de uma problemática toda libanesa. É importante estudar em Roma também para dar a entender aos outros o que é a Igreja Maronita. Vários colegas, na Universidade, me perguntaram se meus pais ainda eram muçulmanos e quando foi que eu me converti ao cristianismo...” Temos ainda Autoun Charbel, doutorando em Direito Canônico, já mestre em Teologia e com experiência missionária na Nigéria, onde trabalhou por anos numa paróquia pessoal. Perguntamos a ele se en- tre os sacerdotes maronitas mais jovens há esperança de que o Líbano ultrapasse o sistema do “comunitarismo” religioso, julgado por muitos historiadores libaneses como o maior obstáculo ao pleno desenvolvimento e à plena democracia do País dos Cedros. “Por ora é só um ideal um tanto distante, complicado de alcançar: vivemos ainda o tempo das comunidades religiosas, porque, por ora, não temos outro sistema além desse. Basta pensar que não existe uma só história do Líbano, mas tantas histórias quanto são as comunidades religiosas, ou seja, dezessete. Mas neste momento estamos muito otimistas com a nomeação do novo patriarca: ele certamente será capaz ao menos de pacificar os ânimos em nosso país”. “Seria bom que o Colégio Maronita pudesse, de maneira cada vez mais evidente, fazer sua parte num momento tão delicado para o Oriente Médio: ou seja, recuperar o papel de intercâmbio cultural, religioso e político que teve a partir do século XVI”, diz ainda o reitor, monsenhor Gebran. “Este ano festejamos também os onze anos da reabertura do Colégio, ocorrida em 2001, depois da longa interrupção iniciada com a Segunda Guerra Mundial. Nos longos, terríveis anos da guerra civil no Líbano, os nossos sacerdotes continuaram a vir a Roma, alojando-se aqui e ali, sobretudo em Propaganda Fide e no Colégio Capranica. Graças ao trabalho intenso e inteligente de meu antecessor, monsenhor Hanna Alwan, o Co- Elias Boutros Hoyek, que se tornou patriarca em 1899. Igreja Maronita. O documento, fortemente impregnado Para reativar a casa de formação sacerdotal de Roma, de normas latinizantes e no início um tanto contestado, ele pediu ajuda aos franceses, ao sultão turco e ao impepor ter sido julgado danoso para a antiga disciplina antirador da Áustria, Francisco José. Este último negou-lhe oquena, foi ao final aprovado: a Igreja Maronita viveria somas em dinheiro, mas em troca concedeu aos semidessa legislação até a promulgação do Código de Dinaristas maronitas a hospitalidade na Villa dʼEste, em Tíreito Canônico Oriental, em 1991. voli, perto de Roma, para as férias de verão. Depois de A vida do Colégio Maronita se interrompeu em 1º de marter obtido a permissão de Roma, o bispo ço de 1798, quando as tropas francesas que maronita abriu outro colégio em Paris. Foi, haviam ocupado Roma requisitaram o edifíentre outras coisas, também o fundador cio, obrigando os estudantes a refugiaremda congregação das Irmãs da Sagrada se na Congregação de Propaganda Fide. Família, e conseguiu criar uma eparquia Em 1891, papa Leão XIII, com a bula no Egito. Morreu em 1931 em odor de Olim sapienter, decidiu reabrir o colégio, santidade e atualmente está em andadoando aos maronitas metade da soma mento a causa de sua beatificação. necessária para a aquisição de um edifíInfelizmente, por falta de estudantes, cio na via de Porta Pinciana. Alguns anos em 1906 o colégio voltou a fechar as pordepois, em 3 de julho de 1895, foi adquiritas. E só foi reabri-las em 1920. A tranquido um terreno entre a via de Porta Pincialidade durou até 1939, quando, em vista na e a via Aurora, para ali construir o colédo início iminente do segundo conflito gio definitivo e a igreja de São Maron. O mundial, ocorreu mais um fechamento. protagonista da reabertura foi o bispo José Simão Assemani 50 30DIAS Nº 4/5 - 2011 légio, logo depois do Jubileu de 2000, pôde finalmente retomar seu caminho”. Transparece, nas palavras de monsenhor Gebran, também um pouco de lamento pelos muitos tesouros perdidos ao longo dos anos: “Centenas de livros preciosíssimos já não estão aqui. Muitos tomaram o caminho da biblioteca do Pontifício Instituto Oriental. Para mim foi um golpe no coração, quando eu estudava para o doutorado em Ciências Eclesiásticas Orientais no Instituto, ver em minhas mãos um livro com o carimbo do Pontifício Colégio Maronita. Mas por muito tempo tivemos reitores jesuítas...”. Na arcada da entrada do edifício, um afresco de cores muito vivas representa a Coroação de Nossa Senhora, aos pés da qual está disposta uma inscrição em siríaco em louvor à Virgem. “A Coroação não corresponde à nossa iconografia tradicional”, explica-nos padre Joseph Sfeir. “Essa imagem se inspira na do santuário de Qannoubine, no vale de Qadisha, sede dos patriarcas do século XV ao XIX, um dos santuários mais venerados do Líbano e o mais antigo do Vale Santo”. Bem debaixo do afresco foi posta, sobre um balcão, uma pequena reprodução da imagem de São Maron instalada em 23 de fevereiro passado num nicho externo da Basílica de São Pedro. “O Bento XVI e o novo patriarca de Antioquia dos Maronitas, sua beatitude Béchara Boutros Raï, com a delegação de bispos e fiéis que o acompanharam a Roma depois da concessão da ecclesiastica communio (dada em 24 de março de 2011), Sala Clementina do Palácio Apostólico Vaticano, em 14 de abril de 2011 justo florescerá, crescerá como o cedro do Líbano”, reza, em aramaico, o salmo inscrito na estola do pai da Igreja Maronita. Seguindo na direção de um amplo salão, vemos, ao fundo, o trono do patriarca, onde evidentemente Sua Beatitude sentou-se por ocasião de suas visitas à Cidade Eterna. Nas paredes desfilam os retratos dos patriarcas e dos personagens mais significativos da história maronita, todos ex-alunos do Colégio: o servo de Deus sua beatitu- de Estêvão El Douaihy, pai da historiografia maronita e promotor e patrocinador das grandes ordens religiosas, já encaminhado para a beatificação; José Simão Assemani, que viveu entre os séculos XVII e XVIII, o mais prestigioso representante da dinastia de orientalistas Assemani que formaram o tesouro da Biblioteca Apostólica Vaticana, com os milhares de volumes da patrística oriental levados a Roma; e ainda Nasrallah Pierre Sfeir, líder da Igreja Maronita ¬ O procurador, monsenhor Elias Boutros Hoyek, futuro patriarca de Antioquia dos Maronitas, no centro na foto na primeira fila, e o reitor do Colégio, padre Gabriel Moubarak, o terceiro a partir da direita na primeira fila, com alguns estudantes do colégio, numa foto de 1893 Apesar dos problemas do colégio, a Procuradoria do Patriarcado de Antioquia continuou ativa; o procurador continuou a morar na primeira casa adquirida na via de Porta Pinciana, em 1891. De 1939 a 1980, o edifício foi alugado e foi transformado em hotel. Voltou definitivamente à atividade em 15 de setembro de 2001, logo depois do Jubileu, graças principalmente ao bispo Emilio Eid, procurador geral do Patriarcado dos Maronitas de 1958 a 2003. Que devido a sua perseveraça e grande força de caráter, fez com que o glorioso Colégio Maronita retomasse a sua atividade. Nos dez anos que seguiram, foi ele quem cuidou da restauração do Colégio, conseguindo superar não poucas dificuldades burocráticas e legais. É considerado um dos personagens mais significativos da Igreja Maronita do século XX graças tanto à sua capacidade de manter sempre viva e fecunda as relações entre a Igreja Maronita a Santa Sé; quanto pela sua ¬ 30DIAS Nº 4/5 - 2011 51 Colégios eclesiásticos de Roma Acima, monsenhor Antoine Gebran, atual reitor do colégio; à esquerda, o salão do colégio, com o trono do patriarca durante vinte e cinco anos – alguns dos anos politicamente mais dramáticos para o País dos Cedros –, e Béchara Boutros Raï, o novo patriarca. “Um grande pastor, que já demonstrou com ações concretas que quer pacificar os ânimos no país”, diz o reitor. “Ele, por exemplo, logo depois da eleição, fez questão de reunir todos os representantes das forças políticas libanesas. Inclusive o Hezbollah, um partido composto de libaneses como nós, que, certamente, não vieram de fora para nos ocupar, mas foram capazes de defender o território na última guerra com Israel, em 2006.” A propósito do papel de ligação entre Igreja de Roma e Igreja Maronita, perguntamos se o Colégio favoreceu, paradoxalmente, a latinização do antigo rito sírio-antioqueno, considerando que nos século XVII e XVIII foram enviadas ordens religiosas ocidentais para controlar a doutrina e a liturgia dos discípulos de São Maron. “É claro que, sendo a única Igreja do Oriente Médio sempre em comunhão com Roma, tivemos logo uma certa assimilação”, explica o reitor; “isso ocorreu, porém, mais no plano externo, como, por exemplo, nos paramentos litúrgicos, que no plano da substância. Adotamos a casula e a planeta. Mas preservamos a nossa liturgia sírio-antioquena”. Padre Joseph Sfeir tem uma opinião ligeiramente diferente: “Não devemos crucificar ninguém, pelo amor de Deus, mas os legados papais revisaram um por um os nossos textos litúrgicos. E tudo o que, na opinião deles, não estava bastante em linha com a liturgia latina foi queimado, destruído”. Voltando ao presente, pedimos ao reitor, enfim, um juízo sobre uma questão que muitos maronitas consideram o problema dos problemas: a emigração dos maronitas do Líbano em consequência da instabilidade política e da explosão demográfica dos muçulmanos. “Negar que isso esteja acontecendo seria tolo”, responde. “Mas devemos dizer também que muitos maronitas estão voltando. E que também muitos muçulmanos estão indo embora. Mas o destino da Igreja Maronita está nas mãos de Nosso Senhor: ele nos conservou por mil e seiscentos anos. Se ainda nos quiser lá, ficaremos. O que mais posso dizer? Seja feita a Sua vontade.” q to patriarcal. Enfim, é postulador para a beatificação do patriarca Elias Boutros Hoyek. Com o apoio da Congregação para as Igrejas Orientais, monsenhor Alwan fez voltarem ao colégio de via de Porta Pinciana todos os estudantes maronitas espalhados por outros estabelecimentos eclesiásticos, hospedando também os sacerdotes pertencentes às outras Igrejas orientais. P. B. Papa Pio X com o patriarca Elias Boutros Hoyek, o quinto a partir da esquerda, em 23 de julho de 1905 Papa Pio XI recebe em audiência enorme cultura teológica. Além de monsenhor Eid, a restauração do colégio, foi também obra de monsenhor Hanna Alwan, reitor por dez anos. Alwan é juiz do Tribunal da Rota Romana, docente in utroque iure nas Universidades Pontifícias e responsável europeu da Congregação dos Missionários Libaneses, uma ordem de direi- 52 30DIAS Nº 4/5 - 2011 o patriarca sírio de Antioquia Inácio Gabriel I Tappouni, sentado à direita do Pontífice, em 15 de agosto de 1929 Panorâmica dos tetos e das cúpulas de Roma vistos do terraço do convento de Santo Antão, na Colina Ópio; à direita, a fachada do convento na praça de San Pietro in Vincoli O arquipélago maronita Resenha das casas religiosas maronitas em Roma. Algumas hospedam seminaristas, outras, sacerdotes estudantes, e há, ainda, quem tenha transformado seu convento em santuário dedicado aos grandes santos maronitas por Pina Baglioni lém do Colégio Pontifício, Roma hospeda um conjunto de procuradorias e colégios sacerdotais das ordens maronitas mais significativas. A Ordem Libanesa Maronita ocupa um pequeno convento pouco distante da Pirâmide de Céstio, ao lado da paróquia dedicada a Santa Marcela, uma nobre romana que, por uma curiosa analogia com os monges maronitas, seguiu, no século IV, a regra de Santo Antão com seus amigos. Na Colina Ópio, diante da Basílica de São Pedro in Vincoli, a dois passos do Coliseu, fica o convento de Santo Antão, a sede A dos Maronitas Mariamitas da Bem-Aventurada Virgem Maria. Estão lá deste 1753, depois de ter deixado a casa e a igreja dos Santos Marcelino e Pedro, na via Labicana. E, ainda, entre a via Portuense e o bairro do Trullo, está o colégio sacerdotal da Ordem Antoniana Maronita, de Santo Isaías. Por último, os padres da Ordem Missionária Libanesa Maronita que estudam e trabalham em Roma se hospedam em vários institutos eclesiásticos. Por ser de direito patriarcal e não pontifício, como as outras, a Ordem Missionária não tem uma casa generalícia em Roma. No final do século XVII, a Ordem Libanesa Maronita e a Maronita da Bem-Aventurada Virgem Maria constituíam uma única realidade, a Ordem Alepina Libanesa, fundada em 10 de novembro de 1695 por três jovens sírios de Alepo, Gabriel Hawwa, Abdallah Qara’li e Joseph El-Betn, que estabeleceram sua morada no mosteiro de Nossa Senhora de Qannoubine, no vale de Qadisha, norte do Líbano. Em Roma, a Ordem Alepina, já em 1707, obteve de Clemente XI a igreja dos Santos Marcelino e Pedro, na via Labicana, também graças ao bom êxito de uma missão confiada pelo Papa a Gabriel ¬ 30DIAS Nº 4/5 - 2011 53 Acima, a capela do convento de Santo Antão, sede da Ordem Maronita Mariamita da Bem-Aventurada Maria Virgem; à direita, um retrato de Santa Teresinha do Menino Jesus no salão de entrada Hawwa, que reconduziu à obediência a Roma um bispo copta. Enquanto isso, no Líbano, houve tamanha afluência de jovens provenientes de Damasco, Jerusalém, Sídon e de muitas cidades do Egito, que se fez necessária a mudança para o mosteiro mais amplo de Saint Elysées, em Becharre, e a fundação de outros mosteiros mesmo fora do País dos Cedros. Quem se dedicou de modo decisivo à redação das regras, que tomavam vagamente por base as de Santo Antão mas eram demasiadamente niveladas às das ordens latinas, foi o patriarca Estêvão El Douaihy, grande promotor da ordem. Essas regras seriam definitivamente aprovadas em 31 de março de 1732, por Clemente XII. Profundamente ligados à vida camponesa, esses monges compartilhavam a dureza dessa existência. Fora do Líbano, esses mon- ges sempre receberam do patriarca a responsabilidade pela diáspora libanesa no Egito, na Europa e no Novo Mundo. A Igreja maronita, toda concentrada entre as montanhas do Líbano, deve a eles o inabalável apego do povo ao cristianismo, à terra e ao papado. E sobretudo a instrução dos camponeses e dos mais pobres: as escolas dos vilarejos geralmente surgiam em torno dos conventos e das igrejas paroquiais. Com o passar do tempo, porém, apareceram dentro da ordem sérios conflitos que determinaram o nascimento de duas correntes: uma afirmava que o cargo de superior geral deveria ser vitalício e que a ordem tinha de assumir caráter missionário; a outra defendia que o cargo tivesse duração limitada e que a ordem mantivesse integralmente a vida contemplativa. As divergências não foram sanadas. Tanto que, em 19 de julho de 1770, levaram ao nascimento de dois ramos distintos: a Ordem Antoniana Alepina dos Maronitas, de caráter missionário, e a Ordem Libanesa Maronita, de vocação contemplativa. Cada uma com seus membros, seus conventos e suas posses. Em 1969, a Alepina tomou o nome de Ordem Maronita Mariamita da Bem-Aventurada Maria Virgem. Em Roma, a divisão da ordem levou os alepinos a ficarem nos Santos Marcelino e Pedro, para depois mudar-se para a sede da praça San Pietro in Vincoli; já a ordem Libanesa Maronita mudou-se para Chipre, para assistir espiritualmente os maronitas que viviam na ilha. A presença dos maronitas em Chipre vinha do século XI, quando, depois da fuga da Síria em razão das perseguições, uma pequena parte dos maronitas se refugiara ali, enquanto a maior parte dos fugitivos encontrou abrigo nas montanhas do Líbano. À esquerda, os antigos textos conservados na rica biblioteca do convento; acima, o servo de Deus padre Antonios Tarabay: está em andamento sua causa de beatificação A ordem do Patriarca: os Maronitas da Bem-Aventurada Maria Virgem A dois passos do Coliseu fica o convento de Santo Antão, sede da A entrada do convento da Ordem Libanesa Maronita, com a imagem de São Charbel Makhlouf, canonizado em 1977 por Paulo VI Procuradoria da Ordem Maronita Mariamita da Bem-Aventurada Maria Virgem e do colégio de formação sacerdotal. Quando fomos encontrá-los, encontramos os padres mariamitas num estado de grande euforia: sua beatitude Béchara Boutros Raï, o patriarca recém-eleito, pertence a sua ordem. “A escolha, na minha opinião, vem do Espírito Santo. É ele a pessoa certa para cada libanês, cristão ou não, e para a Igreja Maronita, graças à sua inteligência, ao seu carisma e à capacidade de dialogar com todos”, diz padre François Nasr, ecônomo e postulador da Ordem, que neste período vem-se ocupando do processo do servo de Deus padre Antonios Tarabay. “Em sua vida sacerdotal, esse religioso esteve encarregado da orientação espiritual das Irmãs de São João Batista no Líbano. Grande devoto do Santíssimo Sacramento, praticou a ascese e a contemplação. Enviado, depois, ao mosteiro de Qannoubine, no Vale Santo, viveu em perfeita e completa união com Jesus Cristo. Contraiu em seguida uma grave doença, que durou vinte e sete anos; suportou heroicamente a sua condição: ele encarna o carisma da nossa ordem, ou seja, uma síntese perfeita entre vida missionária mergulhada na realidade de todos os dias e vida mística feita de renúncia, oração e contemplação”. Um caso quase mais único que raro, o colégio ainda hospeda seminaristas que vão para Roma depois de já ter frequentado o biênio de Filosofia no Líbano: “Até algum tempo atrás, os nossos estudantes também podiam frequentar o biênio em Roma. Acolhemos, além disso, bispos e peregrinos de todas as partes do mundo”. Em Roma, eles fazem o triênio de Teologia e depois os estudos especializados, como Teologia Espiritual, Direito Canônico, Ciências Humanas. E Mariologia, “também pela nossa denomina- ção, adotada durante o Concílio Vaticano II, graças à insistência de padre Genadios Mourani (nosso confrade conhecido por sua grande espiritualidade, morto num atentado terrorista no Líbano em 1959), que desejava mais do que qualquer coisa pôr a nossa ordem sob a proteção de Nossa Senhora”. No Líbano, esses estudantes serão reitores dos vários campus universitários da ordem, que hoje contam seis mil inscritos. Ou diretores das escolas, frequentadas por sete mil estudantes. Ou, ainda, reitores dos seminários, ou párocos. “Nosso colégio de Roma sempre foi lugar de acolhida dos libaneses maronitas, de estudantes de outras Igrejas cristãs. No domingo de manhã, muitos vêm assistir à missa em nossa capela, atraídos pela antiga liturgia sírio-antioquena”. O convento-colégio ostenta uma biblioteca rica em textos sacros do século XIII. Entre estes, muitos livros de literatura árabe. No salão de entrada, padre François aponta para um retrato de Santa Teresinha do Menino Jesus. “No Líbano, é imensa a devoção a ela: o primeiro mosteiro que lhe foi dedicado, depois da canonização, foi um mosteiro masculino mariamita, pois o superior geral da ordem, que tinha assistido à cerimônia no Vaticano, ficara impressionado com sua vida exemplar. Neste momento suas relíquias estão visitando a Palestina. E Santa Teresinha, pelo que me dizem, está fazendo grandes coisas por aqueles lados”. A Ordem Libanesa Maronita, forja de santos A Ordem Libanesa Maronita, mesmo dependendo da Santa Sé, teve muito tarde uma Procuradoria em Roma. “Nós sempre tivemos um grande desejo de vir a Roma. Mas adiávamos sempre, porque estávamos convencidos de que a presença dos mariamitas na Cidade Eterna era suficiente”, explica padre Elias Al Jamhoury, postulador das causas dos santos da ordem e procurador-geral em Roma. Quem “levou” a Roma esses monges foi a causa de beatificação de São Charbel Makhlouf, canonizado por Paulo VI em 9 de outubro de 1977. Aconteceu há sessenta anos, quando se fez necessária a presença de um postulador que pudesse acompanhar a causa de Charbel, nascido em Bkaakafra, no norte do Líbano, em 1828 e falecido em 1898. Todo o Líbano e os maronitas do mundo inteiro são imensamente devotos desse monge, graças à abundância de milagres concedidos por sua intercessão. “São Charbel é como o cedro no Líbano: já faz parte do nosso país. Todo maronita, por uma coisa ou outra, tem ligação com ele. Mas seus devotos já se espalham pelo mundo todo. É um pouco como o seu Padre Pio”, confirmam dois jovens monges do convento. Ambos, por coincidência, se chamam Charbel. Um é doutorando em Arqueologia Cristã, o outro em Ciências Bíblicas. Moram estavelmente no Colégio da Universida- ¬ 30DIAS Nº 4/5 - 2011 55 Colégios eclesiásticos de Roma de Santo Anselmo com os outros quatro membros da ordem presentes em Roma para os estudos de especialização. Quando os estudos permitem, os dois Charbel dão uma ajuda a padre Elias. Até porque o convento recebe, há algum tempo, telefonemas, cartas e visitas de toda a Itália para pedir graças a São Charbel e aos outros dois santos da ordem: Santa Rafka Rayes, uma monja canonizada em 2001, e Nimatullah Al-Hardini, grande teólogo, feito santo em 2004. A eles, logo, poderá ser acrescentado um quarto: o frade Estephan Nehmé, beatificado em 27 de junho de 2010. A capelinha adjacente ao convento situado perto da Pirâmide de Céstio hospeda as relíquias dos Os Antonianos de Santo Isaías e a amizade com o povo druso A Ordem Antoniana Maronita de Santo Isaías possui, entre suas antigas vocações, uma que se está revelando extremamente atual, dada a época que vivemos: o diálogo e a acolhida das outras religiões. “Tudo começou com o bispo Gebraël Blouzani, futuro patriarca da Igreja maronita, que, em 1673, decidiu fundar o mosteiro de Nossa Senhora em Tamiche, no norte do Líbano, tornando-o sede de seu episcopado”, conta padre Maged Maroun. “Depois de ter educado muitos jovens às regras da vida monástica oriental, ele os enviou para edificar o mosteiro de Santo Isaías em Broumana, no topo de Misericordiarum Pater, em 17 de janeiro de 1740”. Voltando aos dias de hoje, os jovens aspirantes ao sacerdócio fazem o noviciado no famoso mosteiro de Santo Isaías, no Líbano, considerado casa-mãe da Ordem Antoniana Maronita. A chegada a Roma deu-se em 1906, com um primeiro seminário no Gianicolo. Depois, em 1958, na via Boccea. E, enfim, em 1998, na via Affogalasino, entre os bairros Portuense e Trullo. “Hoje são sete os sacerdotes que estudam em Roma, especializandose em Música Sacra e Direito Canônico”, explica padre Maged. “Mas sobretudo em Ciências Eclesiásticas Orientais e no Diálogo IslâmicoCristão no Pontifício Instituto Oriental e no Pontifício Instituto de Estu- À esquerda, a entrada do convento dos padres da Ordem Libanesa Maronita, com uma urna que contém alguns relicários; à direita, a pequena capela adjacente ao convento em que são veneradas as relíquias dos santos libaneses três santos, e tornou-se a meta de um grande número de pessoas de Roma e de fora que vêm para visitar esse lugar e pedir graças. “Uma coisa impensável! Nossa intenção – obviamente se a Congregação para as Igrejas Orientais permitir – é transformar este lugar num verdadeiro santuário dedicado a São Charbel: o fluxo de peregrinos não para nunca”, acrescenta padre Elias. “São Charbel começou a fazer milagres no dia seguinte a sua morte. A causa, assim, se iniciou já em 1926. No Ano Santo de 1950, foram trinta mil milagres. Ele fazia um par espiritual com os milagres de Nossa Senhora de Lourdes. Naquela altura, em 1951, decidimos que já não era o caso de esperar, e finalmente viemos para Roma”. 56 30DIAS Nº 4/5 - 2011 uma colina conhecida como ‘Aramta’. Lá, no dia da festa da Assunção de 1700, foi celebrada a primeira missa. A região era habitada principalmente por drusos, um povo que fugiu do Egito e seguia uma religião de derivação muçulmana, nem xiita nem sunita. Haviam-se estabelecido nas montanhas libanesas em 1300 – cerca de quinhentos anos depois dos maronitas – para escapar das perseguições dos sunitas. O emir Abdullah Abillamah, chefe dos drusos da região, acolheu de tão bom grado a chegada dos monges, que decidiu, com outros emires da região, manter seus filhos estudando com os monges antonianos. Muitos deles pediram o batismo. Também por tudo isso, papa Clemente XII aprovou a nossa ordem com a bula dos Árabes e de Islamística. Além do estudo, vão trabalhar nas paróquias da região, visitar os doentes. Durante a Páscoa, por exemplo, foram abençoar as casas dos moradores do bairro”. De volta ao Líbano, serão futuros educadores nas escolas e nos três campus universitários da ordem. Ou párocos no Líbano e entre os maronitas da diáspora. “Fiéis à vocação das origens, deverão ser cada vez mais um canal de comunicação com todos, cristãos e não cristãos. Como indicam também os nossos novos estatutos e a nossa história”, conclui o religioso. Os Missionários do Patriarca Espalhados por vários institutos eclesiásticos de Roma, os sacerdo- tes da Congregação dos Missionários Libaneses constituem um instituto religioso masculino de direito patriarcal. São também chamados Kreimistas, pois sua fundação aconteceu em 22 de maio de 1884 no mosteiro de Kreim, em Ghosta, no Monte Líbano, por obra de Youhanna Habib, um sacerdote da eparquia de Baalbek, com a finalidade de educar a juventude maronita e anunciar o Evangelho também aos não crentes. Uma das características de seus membros é jurar não ambicionar os graus eclesiásticos. Além do Líbano, os Missionários Libaneses são ativos nas comunidades maronitas do Brasil, da Argentina, da África do Sul, dos Estados Unidos e da Austrália. da Síria, para fugir dos bizantinos, primeiro, e dos muçulmanos, depois. E a escolha foi no mínimo sábia: quando chegaram ao Líbano, os turcos pararam na costa e nas cidades do sul, pois temiam tremendamente as montanhas. Portanto, os maronitas ficaram a salvo.” O fundador da Congregação dos Missionários Libaneses Maronitas, Youhanna Habib, foi, no final do século XIX, um juiz do império turco. Seus funcionários, quando perceberam que fazer os maronitas seguirem as leis islâmicas era um tanto difícil, dispuseram um tribunal para eles e outro para os muçulmanos, de modo que as causas não fossem acabar todas no tribunal de Istambul. Habib foi escolhido como juiz dos maronitas. Mas, Sagrada Família, religiosas que têm como missão principal a família, por meio da educação das crianças e da assistência aos párocos na pastoral familiar. A Congregação da Sagrada Família é espiritualmente guiada pela Congregação dos Missionários Libaneses Maronitas. “Uma característica dos missionários libaneses é a grande aplicação ao estudo. Um pouco como os jesuítas”, acrescenta, com certo orgulho, monsenhor Alwan. No final, lhe perguntamos se seus missionários terão, no futuro, um trabalho cada vez mais pesado, considerando a emigração constante dos maronitas. E o que deveria fazer a Santa Sé: “O interesse de Roma aumentou quando per- À esquerda, uma missa na capela da comunidade da Ordem Antoniana Maronita de Santo Isaías; acima, a comunidade, com o patriarca Sfeir; à direita, Monsenhor Hanna Alwan, responsável europeu pela Congregação dos Missionários Libaneses “Nós mandamos os nossos sacerdotes para estudar diretamente nas terras de missão. Assim, ao mesmo tempo, começam a assistir os maronitas na diáspora. Vêm a Roma apenas aqueles que têm de se especializar em disciplinas que só são estudadas aqui, como Teologia Dogmática, Direito Canônico e os estudos bíblicos”. Monsenhor Hanna Alwan, que já encontramos no papel de reitor emérito do Pontifício Colégio Maronita, é também, entre muitas outras coisas, o responsável europeu da Congregação dos Missionários Libaneses Maronitas. Ele também vem do norte do Líbano, o berço da Igreja de São Maron. E entrou para a Congregação aos dezesseis anos, com o irmão gêmeo. “Os maronitas se estabeleceram ao norte, depois de ter saído tendo caído em desgraça perante o emir, deixou o tribunal para fazerse jesuíta. O patriarca não permitiu. Ordenou-o sacerdote, convocou outros padres e mandou-os em missão. Eram tempos de emigração para os maronitas. Eles iam para as Américas. E o patriarca temia fortemente que, chegando na nova terra, perdessem a fé. Depois Youhanna Habib foi nomeado bispo. E, morto o patriarca, o Sínodo o escolheu como sucessor. Mas ele recusou, e em seu lugar, em 1899, foi escolhido, por sua proposta, um amigo: Elias Boutros Hoyek, um bispo que, em 1890, tinha ido para Roma adquirir o terreno para construir o Pontifício Colégio Maronita. Além de tudo isso, Hoyek fundou também a Congregação da ceberam que a onda de assalto dos muçulmanos estava-se tornando forte demais, tanto no Líbano como nas outras Igrejas do Oriente Médio. Enfim, quando estudaram os números, se deram conta. O Sínodo das Igrejas Orientais celebrado em outubro passado foi importante. Se não por outros motivos, pelo menos porque a imprensa do mundo inteiro falou do estado das coisas. Estamos todos à espera da exortação de Bento XVI. Não é impossível que o que está acontecendo no Oriente Médio e no Norte da África traga boas consequências. Estou convicto de que esses jovens que vimos nas praças querem liberdade e trabalho. E é justo. E estou certo de que esse anseio pela democracia possa favorecer também os cristãos”. q 30DIAS Nº 4/5 - 2011 57 Introdução por Lorenzo Cappelletti R epublicamos um belo artigo de Massimo Borghesi de fevereiro de 2003, “O pacto com a Serpente”, na trilha de acontecimentos de repercussão nacional e internacional em que o que impressiona não é só a perversidade das ações, mas também o fato de quase parecerem exceder a liberdade humana e de haver aí uma odiosa ligação com a religião cristã. Como ensina a história da Igreja antiga e recente, o ódio à fé cristã, dentro e fora da Igreja, sempre foi produzido por um anseio e um frenesi alimentados de símbolos e crenças religiosas. Pensando nisso, relembramos uma das últimas audiências particulares que Dom Giussani teve com o papa João Paulo II, no início da década de 1990, e que ele mesmo contou assim: quando o Papa lhe dizia que o agnosticismo, sintetizado na fórmula “Deus, se existe, não tem que ver com a vida”, era o maior de todos os perigos que a fé pode correr – coisa que o próprio Dom Giussani tinha ensinado diversas vezes –, Giussani respondia com a liberdade dos filhos de Deus (que é uma das expressões humanamente mais fascinantes da fé): “Não, Santidade, não é o agnosticismo; o gnosticismo, este sim, é que é o perigo para a fé cristã!”. Passados vinte anos, podemos nos dar conta do quanto foi antecipadora essa guinada de Dom Giussani. Guinada que pode ser exemplificada também por uma entrevista, concedida em abril de 1992, em que o mesmo Giussani fala da perseguição àqueles “que se movem na simplicidade da Tradição”. Quando o entrevistador lhe pergunta se ele se referia a uma perseguição de fato, Dom Giussani responde: “Isso mesmo. A ira do mundo, hoje, não se ergue diante da palavra Igreja, fica quieta até diante da ideia de alguém se dizer católico, ou diante da figura do Papa como autoridade moral. Aliás, existe uma reverência formal e até sincera. O ódio explode – mal se contém, e logo transbordará – diante de católicos que se apresentam como tais, católicos 58 30DIAS Nº 4/5 - 2011 Nova vetera et que se movem na simplicidade da Tradição” (Giussani, Luigi. Un avvenimento di vita, cioè una storia – introdução do cardeal Joseph Ratzinger. Ed. Il Sabato, Roma, «Non l’agnosticismo, 1993, p. 104). ma lo gnosticismo è il pericolo Numa de suas últimas publicações antes de ser eleiper la fede cristiana» to sucessor de Pedro (Fé, verdade, tolerância. Così don Luigi Giussani a Giovanni Paolo II agli inizi degli anni Novanta O cristianismo e as grandes religiões do mundo , coletânea elaborada em junho de 2003, reunindo artigos do cardeal Rato, nosticism «Non l’ag sticismo zinger sobre o tema), Joseph Ratzinger o ma lo gn colo è il peri observava nas páginas de interlúdio acresa» e cristian per la fed sani centadas especialmente para a edição: “O Luigi Gius Così don II ni Paolo a Giovan vanta No degli anni agli inizi mal não é um lado do todo, do qual carecemos – como queria Hegel, e como Goethe «Non l’agnostic ism ma lo gnosticis o, quis mostrar no Fausto – mas a destruição do mo è il pericolo per la fede cris ser. O mal não se pode apresentar, assim cotiana» Così don Luigi Giussani mo o Mefistófeles do Fausto, com as palavras: a Giovanni Pao lo II agli inizi degli anni Novanta sou ‘uma parte daquela força que sempre quer o mal e sempre cria o bem’” (Trad. Sivar «Non Hoeppner Ferreira. São Paulo: Instituto Brasil’a ma lo gnosticism o, gno leiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” è il pe sticismo r per la ic fede c olo [Ramon Llull], 2007, p. 48). ristian Così d a» on L a Giova uigi Giuss ani nn agli in Mesmo sendo muito erudito e rico em izi deg i Paolo II li ann i Nova nta citações, o artigo de Borghesi pode ser lido de um só fôlego. Possui uma estrutura ismo, muito simples, evidenciada pelos títulos das segnostic mo a l’ n o «N nosticis ma lo g ericolo ções, que mostram, primeiro, o crescimento do fascíè il p iana» de crist fe la nio do mal na era contemporânea, cada vez mais visto r e p i Giussan n Luigi Così do nni Paolo II a Giova anni Novanta como a energia libertadora do homem; depois, a sua i degli agli iniz oposição prometeica ao Deus bom e misericordioso; e, enfim, o fato de ser concebido não em oposição, mas como princípio interno ao próprio Deus, exatamente como querem as mais sutis e perversas fábulas gnósticas. In allegato I CANTI DELLA TRADIZIONE Carl Gustav Jung Georg Wilhelm Friedrich Hegel nella Chiesa e nel mondo Diretto da Giulio Andreotti I CANTI In allegato ONE TRADIZI DELLA ich Hegel lm Friedr Georg Wilhe Johann Wolfgang von Goethe mondo e nel i Chiesa dreott nella ulio An o da Gi Dirett MENSILE SPED. ABB. POST. 45% D.L. 353/2003 www.30Giorni.it (CONV. IN SPED. L. 27/02/04 ART.1, 1 DCB - ROMA. MENSILE ABB.N.46) POST. 45% COMMA D.L. 353/2003 In caso di recapito a Ufficio Poste Romanina (CONV. INmancato L. 27/02/04 N.46)rinviare ART.1, COMMA 1 DCBRoma - ROMA. per la restituzione mittenterinviare previo addebito. In caso di mancatoalrecapito a Ufficio Poste Roma Romanina ISSN 0390-4539 al mittente previo addebito. per la restituzione ISSN 0390-4539 ANNO XXIX N.4/5 - 2011 - € 5 Carl Gusta v Jung In allegato I CANTI DELLA TRADIZION E 353/2003 - ROMA. 45% D.L. 03 A 1 DCB Romanina Roma . ABB. POST. D.L. 353/20 ROMA. rni.it ART.1, COMM SPED 1 DCB 30Gio APoste POST. 45%e, COMM 04 N.46) Romanina a Ufficio MENS www.ILE . ABB. 27/02/ to rinviar ito.Poste Roma ART.1 SPED . IN L. (CONV to recapi 04 N.46)te previoeaddeb a Ufficio MENSILE manca 27/02/ ito. mittento rinviar caso .diIN L.zione In (CONV toalrecapi te previo addeb la restitu di manca per 539 al mitten In caso0390-4zione ISSN per la restitu 539 ISSN 0390-4 1 - €5 /5 - 201 XXIX N.4 ANNO Carl Gustav Jung Johann Wolfg ang von Goeth e Georg Wilhelm Friedrich Hegel nella Chie sa e nel mon Diretto da do Giulio And reotti Johann Wolfgang Georg Wilhelm Friedric h Heg el von Goethe In alle gato I CAN TI DE LLA TR ADIZ IONE nella Chie Diret to da sa e ne Giulio l mon do A MENSILE www.30Giorni.it SPED. ABB. ndre POST. 45% (CONV. MENSILE IN SPED. D.L. ot L. 27/02/04 353/2003 ti1 DCB In ART.1, caso di mancatoABB.N.46) POST. (CONV. D.L. 353/2003 IN L. 27/02/04 recapito 45% COMMA - ROMA. per N.46)rinviare a Ufficio la restituzio In caso di mancato ne al mittenteART.1, COMMA 1 DCBRoma ISSN previo addebito.Poste Romanina - ROMA. 0390-4539 recapito rinviare per la restituzio a Ufficio ne ISSN 0390-453 al mittente previo addebito.Poste Roma Romanina 9 Carl Gus tav Jun g ANNO XXIX N.4/5 - 2011 - €5 NE ADIZIO LLA TR NTI DE ato I CA g von Goethe In alleg Wolfgan mondo e nel eotti iesa Andr lla Ch ulio da Gi elm Georg Wilh XXIX N.4/ 52011 - €5 von Wolfgang Johann Goethe av Jung Carl Gust ANNO Hegel Friedrich Johann ne Diretto MEN www.3 SILE (CO SPE MENNV. 0Gi D.i.it SILE L. orn ABB In . POS caso IN SPE (CO 27/0 NV.di D. 2/04 ABBN.46 T. 45% per In caso L. 27/0 la restINman cato D.L. POS ) ART reca.pito 353/200 ISS T. .1, di ituz manione 2/04 per N N.46 rinv45% COM 0390-45 la rest catoal mitt D.L. ) MA 1 3 353 ituz 39 reca ISSN ente ARTiare a Uffic /200 DCB prev.1, COM 0390-45ione al mittpito rinv io Pos 3 - ROM io add MA iare ente 39 te Rom A. ebit 1 DCB prev a Uffic a Rom io add ioo.Poste - ROM ebito. Rom A. anina a Rom anina 30DIAS Nº 4/5 - 2011 353/2003 - ROMA. anina DCB 45% D.L. MA 1 003 a Rom A. Rom POST. - ROM 1, COM D.L. 353/2 ABB. io Poste 1 DCB Romanina ) ART. T. 45% MA iorn.i.it/04 N.46 SPED a Uffic Roma re COM . POS SILE .30G bito. . ABB ito)rinvia 27/02 MEN io Poste ART.1,o adde www SPED V. IN L. previre a Ufficbito. /04 N.46 ato recap (CON nterinvia MENSILE 27/02 manc mitteito adde e alrecap casoV.diIN L. In previo uzionato (CON di manc e al mittente la restit per In caso0390-4539 restituzion ISSN per la 0390-4539 ISSN - €5 - 2011 N.4/5 XXIX ANNO 59 William Blake (1757-1827), Eloim cria Adão, detalhe, aquarela e encáustica, Londres, Tate Gallery O pacto com a Serpente A Serpente, o tentador, aparece nas vestes do libertador, daquele que eleva o homem para além do bem e do mal, para além da “lei”, para além do Deus antigo, inimigo da liberdade. Os últimos duzentos anos vêm redescobrindo o princípio libertador do mundo afirmado pela seita dos Ofitas, princípio vislumbrado pela concepção sabatiana, com seu Messias entregue às serpentes por Massimo Borghesi 60 30DIAS Nº 4/5 - 2011 A r q u i v o d e 3 0 D i a s - F e v e re i ro d e 2 0 0 3 Nova vetera et Hegel, com sua dialética do negativo, dará uma suntuosa veste teórica a essa idéia. O homem deve pecar, deve sair da inocência natural para se tornar Deus. Ele deve realizar a promessa da Serpente: deve conhecer, como Deus, o bem e o mal. Esse conhecimento “é a origem da doença, mas também a fonte da saúde, é o cálice envenenado no qual o homem bebe a morte e a putrefação, e, ao mesmo tempo, o ponto em que nasce a reconciliação, uma vez que pôr-se como mau é em si a superação do mal” Os Ofitas: a Serpente como libertador Há mais de dois séculos a cultura ocidental se compraz do mal, abranda-o, justifica-o. O negativo é fonte de vertigens, do delírio da onipotência, de emoções inconfessáveis; ilumina com clarões avermelhados as veredas proibidas, os abismos da noite, os picos congelados. Suas cores tingem o peculiar titanismo moderno, o desafio provocador que este lança ao Eterno. Se o Fausto antigo, o de Marlowe, se arrepende na hora da morte, o posterior vive do ultraje, anseia pela dissolução. O pacto com a Serpente, título dado por Mario Praz a um de seus últimos livros1, hoje se torna estável. A Serpente, o tentador, aparece nas vestes do libertador, daquele que eleva o homem para além do bem e do mal, para além da “lei”, para além do Deus antigo, inimigo da liberdade. Os últimos duzentos anos vem redescobrindo “o princípio libertador do mundo [afirmado] pela seita dos Ofitas”2, princípio vislumbrado, segundo Gershom Scholem, pela concepção sabatiana, com seu Messias entregue às “serpentes”3. Princípio reafirmado por Ernst Bloch em seu Ateísmo no cristianismo, onde o Cristo-Serpente liberta o mundo da tirania de Yahweh4. Goethe, segundo Vittorio Mathieu, também “ouvira falar da seita dos Ofitas”5. Em seu Goethe e seu diabo da guarda, Mathieu observa como em Fausto Mefistófeles é a “força que, das trevas, faz vir à tona o positivo do homem”6. Como afirma Deus, dirigindo-se a Mefistófeles no Prólogo no Céu, “Não deves senão mostrar-te, livremente, como o que és; nunca odiei os teus pares; de todos os espíritos que negam, o zombeteiro é o que menos me aborrece. A atividade do homem se enfraquece muito facilmente, e ele se deitaria com prazer num repouso absoluto. Por isso ponho de bom grado a seu lado um companheiro que o estimule, e aja, e que tem, como Diabo, de criar”7. O Diabo é posto de bom grado (“gern”) por Deus como colaborador do homem. Como notava Mircea Eliade, “se poderia falar de uma simpatia orgânica entre o Criador e Mefistófeles”8. Goethe faz de Mefistófeles, do mal, a mola que leva à ação (“Tat”), àquilo que é positivo. Trata-se da idéia, destinada a ter ampla difusão, segundo a qual o caminho para o Céu passa pelo inferno. O homem só se torna homem, vivo, inteligente, livre, só saboreando até o fundo o sabor amargo da vida. Ao contrário, a inocência da “alma boa” é inércia, estase, morte. Hegel, com sua dialética do negativo, dará uma suntuosa veste teórica a essa idéia. O homem deve pecar, deve sair da inocência natural para se tornar Deus. Ele deve realizar a promessa da Serpente: deve conhecer, como Deus, o bem e o mal. Esse conhecimento “é a origem da doença, mas também a fonte da saúde, é o cálice envenenado no qual o homem bebe a morte e a putrefação, e ao mesmo tempo o ponto em que nasce a reconciliação, uma vez que pôr-se como mau é em si a superação do mal”9. Nessa perspectiva, a figura do Anjo rebelde, daquele que, provocando o homem, o alçaria à sua liberdade, ganha um novo esplendor. Passo a passo, Mefistófeles se torna o herói, o Prometeu moderno, o libertador. “Sem buscar aqui as suas causas profundas”, escrevia Roger Caillois em 1937, “é preciso constatar o quanto um dos fenômenos psicológicos mais cheios de conseqüências do início do século XIX tenha sido o nascimento e a difusão do satanismo poético, o fato de o escritor assumir de bom grado o papel do Anjo do Mal e com este sentir afinidades precisas. Sob essa luz, o romantismo parece em parte uma transmutação de valor”10. De Byron a Vigny, a “mitologia satânica” elabora a figura de um “Anjo do Mal”, rebelde e vingador, cujas premissas remetem ao passado. Satanás contra Deus Com razão, Mario Praz, em seu A carne, a morte, e o diabo na literatura romântica, até hoje a obra mais interessante sobre o fascínio exercido sobre a literatura do século XIX por tudo o que é demoníaco, indica o início desse processo na caracterização peculiar de Satanás oferecida por Milton em seu Paraíso perdido. “Foi Milton quem conferiu à figura de Satanás todo o fascínio do rebelde indômito que já pertencia às figuras do Prometeu de Ésquilo e do Capaneu de Dante”11. O Adversário “se torna estranhamente belo”12. Como escrevia Baudelaire: “Le plus parfait type de Beauté virile est Satan – à la manière de Milton”13. Em contraposição, observa Harold Bloom, “o Deus de Milton é uma catástrofe”, tal como o Cristo, que “é um desastre poético no Paraíso perdido”14. Para Blake, “Milton não se sentia livre ao escrever de Deus e dos Anjos, e à vontade ¬ 30DIAS Nº 4/5 - 2011 61 quando escrevia dos Demônios e do inferno, pois era um verdadeiro Poeta, e da parte do Demônio sem o saber”15. Um juízo que é perfeitamente compartilhado por Shelley, para o qual “nada pode superar a energia e o esplendor do caráter de Satanás se encontram expressos no Paraíso perdido [...]. O demônio de Milton, enquanto ser moral, é muito superior ao seu Deus”16. Impávido, indômito, o príncipe das trevas aparece como incansável lutador contra a tirania divina. Satanás é Prometeu, toma o lugar do mítico titã acorrentado por Zeus à rocha que a imaginação de Ésquilo imortalizou. O Prometeu moderno se opõe ao deus hostil, malvado. O luciferino Satanás parece melhor que o Criador: “Milton confere claramente uma postura gnóstica a Satanás, segundo a qual Deus e Cristo são somente versões do Demiurgo”17. O verdadeiro afirmativo é o demônio. É ele, e não o anjo obediente, que parece, ética e esteticamente, dotado de um fascínio maior. Como afirma Hegel: “Quando se apresenta, o Diabo precisa demonstrar que nele há um afirmativo; sua força de caráter, sua energia, seu espírito conseqüencial, parecem muito melhores, mais afirmativos que os de alguns anjos [...]. É o que ocorre em Milton”, acrescenta Hegel, “onde o Diabo, com sua energia cheia de caráter, é melhor que alguns anjos”18. Assim, graças a Milton, à sua reelaboração mítica, Satanás ingressa no imaginário moderno. Tem-se com isso o que Praz chama, num capítulo de sua obra, a “metamorfose de Satanás”, sua passagem de figura negativa a herói positivo: o rebelde triste, privado da sua felicidade paradisíaca, como o homem, por um deus tirano. Em seu estudo, Praz documenta, com grande perícia, autores e correntes que assumem a mitologia satânica. Se no século XVIII “o Satanás de Milton passou seu fascínio sinistro para o tipo tradicional do bandido generoso, do sublime delinqüente”19, é no século XIX, na tempérie romântica, que ele se torna rebelde, a expressão da revolta metafísica, do “não” à criação. Foi Byron “quem levou à perfeição o tipo do rebelde, descendente distante do Satanás de Milton”20. Com Byron o rebelde se torna o “estrangeiro”, o homem impenetrável que transcende a maneira ordinária de sentir, que transcende seus próprios crimes. É o além-do-homem que está mais acima e ao mesmo tempo mais abaixo dos outros homens. É o infeliz que se alimenta de ressentimento para com um deus cruel do qual imita a crueldade. A teologia de Byron é, segundo Praz, a mesma de Sade, cuja obra, segundo o autor, tem uma influência fundamental na literatura romântica. No centro está o ódio para com a criação e seu autor, a exaltação do prazer e do crime como escárnio, profanação, ultraje. Para Praz, estamos aqui diante de um “satanismo cósmico”21. Sua influência é enorme. Se a natureza cria apenas para destruir, seguir a natureza é repetir seu ritmo, o prazer pela destruição, o gosto (sádico) que faz surgir o prazer pela dor, o delírio do aniquilamento, o divino a partir do diabólico. É a pintura de Delacroix: “Esse pintor ‘canibal’, ‘moloquista’, ‘dolorista’ que foi Delacroix, com uma curiosidade incansável por massacres, incêndios, saques, pelos putrideros, ilustrador das cenas mais sombrias do Fausto e dos poemas mais satânicos de seu idolatrado Byron; esse apaixonado pela felinidade [...] e pelos países violentos e calorosos”22. É a poesia de Baudelaire, alimentada por Poe e Sade, cujo pessimismo cósmico é mais semelhante à heresia maniqueísta que à religião cristã: “Absolu! Résultante des contraires! Ormuz et Arimane, vous ètes le même!”23. É a narrativa de Flaubert, para o qual “Néron vivra aussi longtemps que Vespasien, Satan que Jésus-Christ”24. É a dos Cantos de Maldoror de Lautréamont, o qual confessa ter “cantado o mal como fizeram Mickiewicz, Byron, Milton, Southey, A. de Musset, Baudelaire”25. É a de Swinburne, que, fascinado pela teologia gnóstica de Sade, declama seu homem em revolta: “... se pudéssemos deter a natureza, então sim o crime se tor- Böhme, segundo Hegel, “lutou para entender em Deus e de Deus o negativo, o mal, o Diabo”. Deus é a unidade dos contrários, da ira e do amor, do mal e do bem, do Diabo e do seu oposto, o Filho. Nessa posição, Cristo e Satanás se tornam de algum modo irmãos, filhos de um único Pai, partes dEle, momentos da sua natureza polar. É o que afirmará Carl Gustav Jung em seu esotérico Septem Sermones ad Mortuos, escrito em 1916, que seus amigos fizeram circular como opúsculo mas nunca chegou às livrarias. O texto, que idealmente segue o gnóstico Basilide, afirma a natureza de “pleroma” de Deus, composto por duplas de opostos das quais “Deus e o demônio são as primeiras manifestações” 62 30DIAS Nº 4/5 - 2011 A r q u i v o d e 3 0 D i a s - F e v e re i ro d e 2 0 0 3 Nova vetera et A vida, afirmava Jung no Ensaio de interpretação psicológica do dogma da Trindade, “enquanto processo energético, precisa dos contrastes, sem os quais a energia é notoriamente impossível. Bem e mal nada mais são que os aspectos éticos dessas antíteses naturais”. É por isso que, para Deus, Lúcifer é necessário. “Sem este último não haveria criação, e muito menos teria havido alguma história de redenção. A sombra e o contraste são as condições necessárias de qualquer realização” naria perfeito e o pecado uma realidade. Se o homem pudesse fazer isso, se pudesse parar o curso das estrelas e alterar o tempo das marés; se pudesse mudar os movimentos do mundo e encontrar a fonte da vida e destruí-la; se pudesse entrar no céu e contaminá-lo, no inferno e libertá-lo da sujeição; se pudesse erguer o sol e consumir a terra, e ordenar à lua que derramasse veneno ou fogo no ar; se pudesse matar o fruto na semente e corroer a boca do bebê com o leite de sua mãe; então o homem poderia dizer ter pecado e ter feito mal contra a natureza”26. Destruição e profanação: esse é o prazer maior! Um filão consistente da literatura, a partir do romance libertino do século XVIII, goza da profanação. A violação apaixona enquanto transgressão, ultraje. O corpo, o da mulher, será tanto mais objeto do desejo quanto mais for indefeso (a criança, a virgem, a freira). Profaná-lo é tirar a transcendência, reconduzir à terra, revelar o rosto obscuro de Eva, o eterno feminino para sempre ligado ao poder de Satanás. O demoníaco mescla o puro e o impuro, precisa da inocência para excitar as paixões, para despertar a força explosiva do negativo. Com Sade o eros se torna parte de uma teologia gnóstica. Depois dele o conúbio entre Eros e Tanatos, amor e morte, passa a ser o elemento dominante de um niilismo luciferino que encontra no Decadentismo, primeiramente, e no Surrealismo, depois, sua plena realização. Satanás em Deus Satanás não está só em Prometeu, dublê do Anjo caído de Milton. Satanás está também em Deus. A teologia gnóstica que está no centro do ateísmo rebelde dos últimos dois séculos distingue entre Lúcifer (o libertador) e Satanás (o opressor). Ela encontra sua forma exemplar no pensamento de Ernst Bloch. Para Bloch, há, “de um lado, o Deus do mundo que se identifica cada vez mais claramente com Satanás, o Inimigo, o estagnado; de outro, o Deus da futura ascensão ao céu, o Deus que nos impulsiona para frente com Jesus e com Lúcifer”27. O deus do mundo, criador, é o mau demiurgo contra o qual, no Éden, se ergueu a Serpente, verdadeira amiga do homem. É Lúcifer, com seu desejo de ser como Deus, que revela ao homem a sua destinação. “Só em Lúcifer, mantido secreto em Jesus para ser manifestado mais tarde, no final, nos tempos em que esse rosto poderá se revelar; só em Lúcifer, inquieto desde quando foi abandonado pela segunda vez, desde quando, da cruz, ergueu-se o grito que ficou sem resposta, desde quando, pela segunda vez, foi esmagada a cabeça da Serpente do paraíso presa na cruz: só nEle, portanto, no Escondido em Cristo, enquanto anti-demiúrgico absoluto, está compreendido também o autêntico elemento teúrgico de quem se revolta porque é filho do homem”28. Como para a seita dos Ofitas lembrada por Bloch em Ateísmo no cristianismo, a Serpente é, portanto, o libertador. Duas vezes subjugada, no Éden e no Cristo levantado na cruz como a Serpente de bronze de Moisés, ela espera por sua vingança, por sua vitória ¬ William Blake, A casa da Morte, inciso em cores, coleção particular 30DIAS Nº 4/5 - 2011 63 Imortais que caem no abismo , do Il libro di Urizen, William Blake, 1794 sobre o Demiurgo que abre a “era do Espírito”. Unindo Marcião e Joaquim de Fiore, Bloch é a encruzilhada de toda a gnose moderna. Jesus, antecipação do deus que virá, do deus “humano”, é o redentor desde o deus “satânico”, desde o deus do cosmo, da ordem e da lei. A revolução, como dissolução da velha ordem, torna-se aqui a obra luciferina por excelência. Como ilustre precedente de suas reflexões, Bloch chama a atenção, em Ateísmo no cristianismo, para a figura de William Blake. O poeta inglês, fascinado pela revolução americana e pela francesa, teve, além da Bíblia, quatro mestres: Milton, Shakespeare, Paracelso, Böhme. Ao primeiro dedicou um breve poema épico, Milton, composto provavelmente entre 1800 e 1803. Nele Urizen, o Príncipe da Luz, parece idêntico a Satanás. O que é peculiar em Blake é o seu The Marriage of Heaven and Hell (O matrimônio do Céu e do Inferno), escrito em 1790. Aqui a santificação dos impulsos e dos desejos, in primis o sexual, for everything that lives is Holy (sendo que todas as coisas vivas são Sacras!), obtém a sua consagração teórica. Para ela não há mais o mal que nega o bem: mal e bem são ambos necessários. “Sem Contrários não há progresso. Atração e Repulsa, Razão e Energia, Amor e Ódio são necessários para a existência Humana. Desses contrários brota o que o homem religioso chama Bem e Mal. Bem é a passividade que obedece à Razão. Mal é a atividade que brota da Energia. Bem é o Céu, Mal é o Inferno”29. O mal, como no Fausto de Goethe, é o que dá energia, o que desperta o bem adormecido. O Diabo é a força de Deus. Nessa sua concepção, Blake era devedor 64 30DIAS Nº 4/5 - 2011 daquele que, em primeiro lugar, no arco do pensamento moderno, ousara afirmar o mal em Deus: Jacob Böhme. O philosophus teutonicus, que, segundo Hegel, “foi o primeiro a fazer surgir na Alemanha uma filosofia com características próprias”30, estimado por Leibniz, Hegel, Schelling, Von Baader e todo o filão teosófico do pensamento moderno, é aquele para o qual, “segundo o primeiro princípio, Deus não se chama Deus, mas Cólera, Furor, fonte amarga, e vêm daqui o mal, a dor, o tremor e o fogo devorador”31. A ira de Deus é superada no amor; apesar disso, ela permanece o Urgrund, o princípio originário de tudo. Böhme, segundo Hegel, “lutou para entender em Deus e de Deus o negativo, o mal, o Diabo”32. Deus é a unidade dos contrários, da ira e do amor, do mal e do bem, do Diabo e do seu oposto, o Filho. Nessa posição, Cristo e Satanás se tornam de algum modo irmãos, filhos de um único Pai, partes dEle, momentos da sua natureza polar. É o que afirmará Carl Gustav Jung em seu esotérico Septem Sermones ad Mortuos, escrito em 1916, que seus amigos fizeram circular como opúsculo mas nunca chegou às livrarias. O texto, que idealmente segue o gnóstico Basilide, afirma a natureza de “pleroma” de Deus, composto por duplas de opostos das quais “Deus e o demônio são as primeiras manifestações”33. Eles se distinguem como geração e corrupção, vida e morte. Todavia, “a efetividade é comum a ambos. A efetividade os une. Portanto, a efetividade está acima deles e é um Deus acima de Deus, já que seu efeito une plenitude e vazio”34. Esse Deus que une Deus e o Diabo é chamado, por Jung, Abraxas. Ele é a força originária, que vem antes de qualquer distinção. “Abraxas gera verdade e mentira, bem e mal, luz e trevas, na mesma palavra e no mesmo ato. Por isso Abraxas é terrível”35. Ele é “o amor e o seu assassino”, “o santo e o seu traidor”, é “o mundo, o seu devir e o seu passar. Sobre todo dom do Deus sol o demônio lança a sua maldição”36. A mensagem esotérica dos Septem Sermones levava, como em Blake, à santificação da natureza, à inocência do devir. Isso implicava, por si mesmo, a justificação do mal, do Diabo, a sua inserção, como em Böhme, num sistema polar. Não por acaso Martin Buber, tomando conhecimento do opúsculo, falará nesse caso de gnose. “Ela – e não o ateísmo, que anula Deus porque tem de refutar as imagens que dele foram feitas até agora – é a verdadeira antagonista da realidade da fé”37. Para Buber, a psicologia de Jung nada mais constituía senão “a retomada do mote carpocratiano, ensinado agora como psicoterapia, que diviniza misticamente os instintos em vez de santificá-los na fé”38. O aspecto destacado por Buber não era puramente conjectural. Fora o próprio Jung que, em Psicologia e religião, chamara a atenção para a atualidade do gnóstico Carpócrates, o qual afirmava que “bem e mal são apenas opiniões humanas, e que as almas, antes de sua partida, teriam de viver até a última todas as experiências humanas, se quisessem evitar voltar à prisão do corpo. Somente o completo cumprimento de todas as exigências da vida pode resgatar a alma prisioneira no mundo somático do Demiurgo”39. A vida, afirmava no Ensaio de interpretação psicológica do dogma da A r q u i v o d e 3 0 D i a s - F e v e re i ro d e 2 0 0 3 Trindade, “enquanto processo energético, precisa dos contrastes, sem os quais a energia é notoriamente impossível. Bem e mal nada mais são que os aspectos éticos dessas antíteses naturais”40. É por isso que, para Deus, Lúcifer é necessário. “Sem este último não haveria criação, e muito menos teria havido alguma história de redenção. A sombra e o contraste são as condições necessárias de qualquer realização”41. Essa sombra está antes de mais nada em Deus, no Deus primigênio, no Inconsciente que, para Jung, é a verdadeira potência que dirige a vida, a qual deve ser “humanizada” pelo eu consciente. Só no Deus humano, Cristo, o juízo separa o que no pleroma (o inconsciente) está unido: a luz e a sua sombra. Ora, os “dois filhos de Deus, Satanás, o mais velho, e Cristo, o mais novo”42, a mão esquerda e a mão direita de Deus, se separam. “Essa antítese representa um conflito levado ao extremo, e com isso também uma tarefa secular para a humanidade, até o ponto ou a circunstância do tempo em que bem e mal começarem a relativizar-se, a pôr-se em dúvida, e se elevar o grito por algo além do bem e do mal. Mas, na era cristã, ou seja, no reino do pensamento trinitário, semelhante reflexão é simplesmente excluída, pois o conflito é violento demais para que se possa conceder ao mal alguma outra relação lógica com a Trindade que não seja o contraste absoluto”43. É preciso que a Trindade divina, espiritual, se concilie com um “quarto” princípio: a matéria, o corpo, o feminino, o eros, o mal, para que o idealismo cristão, conciliado com o mundo, chegue a uma unidade superior. “Pois, mesmo no tempo da fé absoluta na Trindade, houve sempre uma busca do quarto perdido, desde os neopitagóricos gregos até o Fausto de Goethe. Ainda que esses buscadores se considerassem cristãos, eles eram todavia uma espécie de cristãos a latere, uma vez que consagravam sua vida ao opus, que tinha como meta a redenção do serpens quadricornutus, da anima mundi enredada na matéria, do Lúcifer decaído... Nossa fórmula da quaternidade dá razão à sua pretensão, pois o Espírito Santo, como síntese daquele que foi origina- Nova vetera et riamente Uno e depois cindido, flui de uma fonte luminosa e de uma obscura”44. A “era do Espírito”, na peculiar interpretação que Jung dá de Joaquim de Fiore, é a era que se segue ao eone cristão, o tempo de Abraxas em que paixões e razão, inconsciente e consciente, mal e bem, Lúcifer e Cristo, se tornarão um. Em 1919, Hermann Hesse, que em 1920 se submeteria a análise com Jung, publicou um romance, Demian, sob o pseudônimo de Emil Sinclair. Nele, o protagonista, um jovem inexperiente, é instruído sobre o sentido da vida por um espírito “livre” que carrega em si o sinal de Caim: Demian. Para Demian, “o Deus do Antigo e do Novo Testamento é uma figura excelente, mas não é a que deveria ser. É o bem, a nobreza, o pai, o alto, o belo, o sentimental: todas coisas boas, mas o mundo é feito também de outras coisas. E isso é atribuído simplesmente ao Diabo, e toda essa parte do mundo, essa metade é suprimida e morta com o silêncio”45. A ela pertence, segundo Demian, a esfera sexual. Por isso não se pode apenas venerar a Deus, “devemos venerar tudo e considerar sagrado o mundo inteiro, não apenas essa metade oficial, separada artificialmente. Ao lado do serviço para Deus deveríamos ter também um serviço para o Diabo. A mim pareceria justo. Ou então deveríamos procurar um Deus que reúna também o demônio”46. Como em Jung, esse “Deus se chama Abraxas e é Deus e Satanás e abraça em si o mundo luminoso e o mundo escuro”47. É o amor sagrado e o amor profano, “a imagem angélica e Satanás, homem e mulher ao mesmo tempo, homem e fera, supremo bem e mal extremo”48. A visão do divino como coincidentia oppositorum, versão que sela de forma indissolúvel o “pacto com a Serpente”, atravessa, dessa forma, uma parte conspícua do mundo cultural do século XX. Lembramos, entre outras, a reflexão de Mircea Eliade, que em dois escritos, O mito da reintegração (1942) e Mefistófeles e o Andrógino (1962), expõe, a partir das sugestões de Jung, sua visão da “polaridade divina”. Nessa visão, toda divindade parece polar, benéfica e maléfica ao ¬ “Encontra-se por toda parte”, escrevia Romano Guardini em 1964, “a idéia gnóstica fundamental de que as contradições são polaridades: Goethe, Gide, C. G. Jung, T. Mann, H. Hesse... Todos vêem o mal, o negativo [...] como elementos dialéticos na totalidade da vida, da natureza”. Essa atitude, para Guardini, “já se manifesta em tudo o que se chama gnose, na alquimia, na teosofia. Apresenta-se de forma programática com Goethe, para o qual o satânico entra até mesmo em Deus, o mal é força originária do universo tão necessária quanto o bem, a morte apenas outro elemento nesse todo, cujo pólo oposto se chama vida. Essa opinião foi proclamada de todas as formas e concretizada no campo terapêutico por C. G. Jung” 30DIAS Nº 4/5 - 2011 65 mesmo tempo. A Serpente é irmã do Sol, tal como, segundo um mito gnóstico, seriam irmãos Cristo e Satanás. Essa bi-unidade divina prepara, no homem, a reintegração de sagrado e profano, de bem e mal numa unidade superior que encontra, para Eliade, sua meta simbólica na figura do andrógino. Conclusão A moderna teosofia dos opostos, baseada na doutrina hermética da coincidentia oppositorum, leva a um conúbio, inquietante, entre divino e diabólico, leva à idéia do Diabo em Deus. “Encontra-se por toda parte”, escrevia Romano Guardini em 1964, “a idéia gnóstica fundamental de que as contradições são polaridades: Goethe, Gide, C. G. Jung, T. Mann, H. Hesse... Todos vêem o mal, o negativo [...] como elementos dialéticos na totalidade da vida, da natureza”49. Essa atitude, para Guardini, “já se manifesta em tudo o que se chama gnose, na alquimia, na teosofia. Apresenta-se de forma programática com Goethe, para o qual o satânico entra até mesmo em Deus, o mal é força originária do universo tão necessária quanto o bem, a morte apenas outro elemento nesse Notas 1 M. Praz. Il patto col serpente. Milão, 1972 (reeditado em 1995). 2 Op. cit., p. 12. 3 G. Scholem. Le grandi correnti della mistica ebraica. Turim, 1993, p. 307. Edição brasileira: As grandes correntes da mística judaica. São Paulo, Perspectiva, 1995. 4 E. Bloch. Ateismo nel cristianesimo. Milão, 1971, pp. 220-226. 5 V. Mathieu. Goethe e il suo diavolo custode. Milão, 2002, p. 192. 6 Op. cit., p. 65. 7 W. Goethe. Faust e Urfaust, 2 vol. Milão, 1976, vol. I, vv. 340-343, p. 19. Edição brasileira: Fausto. Belo Horizonte, Itatiaia, 2002. 8 M. Eliade. Il mito della reintegrazione. Milão, Jaca Book, 2002, p. 4. 9 G. W. F. Hegel. Lezioni sulla filosofia della religione, 2 vol. Milão, 1974, vol. II, p. 317. 10 R. Caillois. Nascita di Lucifero. Milão, 2002, p. 31. 11 M. Praz. La carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica. Florença, 1999, p. 58. Edição brasileira: A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Campinas, Editora da Unicamp, 1996. 12 Id., ibid. 13 C. Baudelaire. Journaux intimes. Cit. in: M. Praz. La carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica. Op. cit., p. 55. 14 H. Bloom. Rovinare le sacre verità. Poesia e fede dalla Bibbia a oggi. Milão, 1992, p. 106. 15 W. Blake. “Il matrimonio del Cielo e dellʼInferno”. In: Selected Poems di William Blake. Turim, 1999, pp. 24-25. Edi- 66 30DIAS Nº 4/5 - 2011 todo, cujo pólo oposto se chama vida. Essa opinião foi proclamada de todas as formas e concretizada no campo terapêutico por C. G. Jung”50. A idéia de fundo é que a redenção passa pela degradação, a graça pelo pecado, a vida pela morte, o prazer pela dor, o êxtase pela obra da perversão, o divino pelo diabólico. O fascínio que o negativo – metáfora do demoníaco – exerce sobre a cultura contemporânea deriva dessa idéia singular: que os caminhos do paraíso passam pelo inferno, que “Descida ao Ades e ressurreição” são uma coisa só51. Entregar-se ao demônio é abrir-se a Deus, numa singular transposição gnóstica da idéia segundo a qual perder-se é encontrar-se. Nesse “sagrado” conúbio, Satanás e Deus se unem no homem. É a “identidade de Sade e dos místicos”52 desejada por Georges Bataille. Segundo ela, o caminho para baixo coincide com o caminho para cima. Fausto, agora, não pode mais se arrepender, nem na hora da morte. O Adversário tornou-se cúmplice, “parte” de Deus. É o caminho para se tornar deus. A emoção do nada, da descida aos Infernos, acompanha a descoberta do Ser, de Abraxas, o pleroma sem rosto que permanece, imóvel, no devir do mundo. q ção brasileira: O matrimonio do céu e do inferno. O livro de Thel. São Paulo, Iluminuras, 2000. 16 P. B. Shelley. Difesa della Poesia. Cit. in: M. Praz. La carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica. Op. cit., p. 59. 17 H. Bloom. Rovinare... Op. cit., p. 105. 18 G. W. F. Hegel. Lezioni sulla filosofia della religione. Op. cit., vol. II, p. 315-316 e 324, nota. 19 M. Praz. La carne... Op. cit., pp. 59-60. 20 Id., ibid., p. 64. 21 Id., ibid., p. 96. 22 Id., ibid., p. 135. 23 Cit. in: Id., ibid., p. 147. 24 Cit. in: Id., ibid., p. 161. 25 Lautréamont. “Lettere”. In: Lautréamont. I canti de Maldoror. Turim, 1989, p. 531. 26 Cit. in: M. Praz. La carne... Op. cit., p. 199. 27 E. Bloch. Spirito dellʼutopia. Florença, 1980, p. 314. 28 Id., ibid., p. 252. 29 W. Blake. Il matrimonio... Op. cit., pp. 19-20. 30 G. W. F. Hegel. Lezioni sulla storia della filosofia, 4 vol. Florença, 1973, vol. III (2), p. 35. 31 Cit. in: F. Cuniberto. Jacob Böhme. Brescia, 2000, p. 119. 32 G. W. F. Hegel. Lezioni sulla storia della filosofia. Op. cit., vol. III (2), p. 42. 33 C. G. Jung. “Septem Sermones ad Mortuos”. In: Ricordi, sogni, riflessioni di C. G. Jung. Milão, 1990, p. 454. Edição brasileira: Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000. 34 Id., ibid., pp. 454-455. 35 Id., ibid., p. 456. Id., ibid. M. Buber. Lʼeclissi di Dio. Milão, 1983, p. 139. 38 Id., ibid. 39 C. G. Jung. Psicologia e religione. In: C. G. Jung. Opere, vol. 11. Milão, 1984, p. 83. Edição brasileira: Psicologia e religião. Petrópolis, Vozes, 1995. 40 C. G. Jung. Saggio dʼinterpretazione psicologica del dogma della Trinità. In: C. G. Jung. Opere, vol. 11. Op. cit., p. 191. Edição brasileira: Interpretação psicologica do dogma da Trindade. Petrópolis, Vozes, 1994. 41 Id., ibid., p. 190. 42 C. G. Jung. Prefazione a Z. Weblowsky, “Lucifero e Prometeo”. In: C. G. Jung. Opere, vol. 11. Op. cit., p. 299. 43 C. G. Jung. Saggio dʼinterpretazione psicologica del dogma della Trinità. Op. cit., p. 171. 44 Id., ibid., p. 174. 45 H. Hesse. Demian. Storia della giovinezza di Emil Sinclair. In: H. Hesse. Peter Camenzind - Demian. Due romanzi della giovinezza. Roma, 1993, p. 185. Edição brasileira: Demian. Rio de Janeiro, Record, 1997. 46 Id., ibid., p. 185. Itálicos nossos. 47 Id., ibid., p. 216. 48 Id., ibid., p. 207. 49 R. Guardini. Diario. Appunti e testi dal 1942 al 1964. Brescia, 1983, p. 245. 50 R. Guardini. Lettere teologiche ad un amico. Milão, 1979, p. 63. 51 E. Zolla. Discesa allʼAde e resurrezione. Milão, 2002. 52 G. Bataille. “Frammenti su William Blake”. In: Selected Poems di William Blake. Op. cit., p. 163. 36 37 ASSINATURAS COMO ASSINAR Enviar o formulário ao endereço do escritório de assinaturas escrito abaixo Destinação Período de assinatura 1 ano 2 anos Preço (€) Brasil, África 25,00 Itália 45,00 Europa 60,00 Resto do mundo 70,00 Brasil, África 40,00 Itália 80,00 Europa 110,00 Resto do mundo 125,00 é a revista mensal internacional mais informada sobre a vida da Igreja. Nas suas páginas estão presentes os acontecimentos políticos e eclesiásticos mais importantes comentados pelos protagonistas. Em cada número, reconstruções históricas, reportagens e serviços especiais de todo o mundo, eventos literários e artísticos, inéditos. 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Elas nos acompanham durante todas as vicissitudes da nossa vida e nos ajudam a celebrar a liturgia da Igreja rezando. Faço votos de que este pequeno livro possa se tornar um companheiro de viagem para muitos cristãos. da apresentação do cardeal Joseph Ratzinger (eleito Papa em 19 de abril de 2005 com o nome de Bento XVI) QUEM REZA SE SALVA O livrinho Quem reza se salva que 30Dias já distribuiu centenas de milhares de exemplares, contém as orações mais simples da vida cristã como as da manhã e da noite, e tudo o que ajuda para uma boa confissão. CUSTA APENAS 1€ o exemplar mais despesas de expedição. AS OUTRAS EDIÇÕES EM LÍNGUA ITALIANA, FRANCESA, ESPANHOLA, INGLESA, ALEMà E CINESA É possível solicitar exemplares de todas as edições (a edição italiana apresenta-se em dois formatos, grande e pequeno), escrevendo a 30GIORNI via Vincenzo Manzini,45 - 00173 Roma Ou ao endereço e-mail: [email protected]
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