PDF - Jornal Plástico Bolha
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plástico bolha aparentemente insólito... Ano 2 - Número 18 - Novembro e Dezembro/2007 Distribuição Gratuita 2007 está chegando ao fim. Assim como em 2006, neste ano lançamos nove edições do plástico bolha. Foi um longo caminho. O jornal, que começou o ano com 4 páginas, acabou triplicando de tamanho. Com isso, passamos a ter mais espaço para a publicação de textos, aprofundando melhor nossas propostas. Enfim, como bem define Heinz Langer em seus traços, estamos encorpando. Agora, o jornal e sua equipe vão tirar umas breves e merecidas férias. Se tudo der certo, voltaremos em 2008, a todo vapor. O nosso espaço é democrático — figuras renomadas dividem espaço com iniciantes. Colunas fixas desenham verdadeiras linhas de pesquisa, seja quanto à arte do magistério em Aos alunos com carinho, seja ao universo feminino em Mulheres-damas. E que tal descobrir aspectos interessantes da biografia de figuras como Nietzsche, Wittgenstein, Spinoza e Kant, na coluna Puzzles, sempre assinada por alguém interessante? Gregório Duvivier diverte os leitores em Subjetivas, mostrando como o humor vai bem com tudo e não é contrário nem à poesia, muito menos ao conhecimento. Santuza Cambraia Naves continua com suas dicas e observações musicais em Por dentro do tom, e os boxes do Clique Aqui nos ajudam a encontrar utilidades no mundo virtual. Séries como os Cen’átimos e o Manifesto Sampler atualizam a discussão, sempre com muita ousadia. Se o que queremos é conhecer a nós mesmos, a coluna Oráculo, com seus mitos, é o espaço ideal. Se o assunto é poesia, temos desafios poéticos, exercícios de tradução e muitos convidados especiais. Na hora das entrevistas, não faltam bons debates com figuras da academia, do mundo literário ou cultural. Para ilustrar isso tudo, Angelo Abu e seus desenhos geniais. O jornal se interestadualizou, chegando a Belo Horizonte, onde circula há mais de quatro meses. São dez pontos da capital mineira, entre faculdades, cinemas e bares, que recebem nossas letras, numa verdadeira invasão das bolhas cariocas. Por sua vez, os mineiros contra-atacam, na coluna Bolhas Geraes, um pequeno panorama da nova literatura de Minas, para o nosso deleite. Pela Guanabara, firmamos ainda mais a nossa relação com os pontos de distribuição. Os cinemas do grupo Estação; as livrarias Argumento, Letras e Expressões, DaConde, Travessa e Café com Letras; a loja de música Modern Sound; os teatros Tablado e Casa da Gávea, entre muitos outros locais, acolheram nossa idéia e abriram um espaço em seus balcões para o jornal. A todos, o nosso agradecimento. Isso tudo sem falar nas faculdades. Há muito, o jornal deixou de ser uma publicação restrita à comunidade PUC-Rio , onde nasceu e é desenvolvido. Alunos e professores da UERJ, UFRJ, UFF, Cândido Mendes, UniverCidade, Estácio de Sá, Santa Úrsula, FACHA, UFMG, PUC-MG, FUMEC, entre outras universidades, enviaram seus textos, folhearam nossas páginas, estouraram suas bolhas. Já recebemos mais de 700 textos neste período. Agradecemos a todos os que nos enviaram seus trabalhos e pedimos desculpas aos que ainda aguardam publicação, pois a fila é longa. Aproveitamos para reiterar que continuaremos aceitando textos no período de férias, que serão publicados no ano que vem. Envie o seu trabalho para nosso e-mail, que está na página 2. Deixe sempre este jornal na sua bolsa ou na mochila — você nunca sabe quando será a próxima fila, a próxima sala de espera, o inevitável engarrafamento. Nossas letras têm o poder de adiantar o tempo... Bem, tudo isso é plástico bolha. Tudo isso você tem em suas mãos agora, de graça, mesmo que valha muito. Aproveite, e até 2008! NESTA EDIÇÃO mc marechal anna lee lÚcia pacheco heinz langer santuza cambraia naves lÉo torres E N C O R PA N D O miriam sutter angelo abu ger z Lan Hein luisa noronha antonia ratto gisela gold felipe carvalho dos santos chloe paisley gregÓrio duvivier raquel naveira luiz coelho chiara di axox mariano marovatto carlos andreas alluana ribeiro augusto de guimaraens domingos guimaraens diana sandes isabel diegues natalia guerra barbara hansen ricardo sternberg gustavo paes paulo henrique motta felipe aguiar chimicatti lucas viriato gustavo gadelha marcela sperandio rosa erica ramminger paulo gravina lÚcia cordeiro paulo henriques britto Aos alunos com carinho 2 É, realmente, com muito carinho que escrevo a todos os alunos, especialmente aos que iniciaram e têm conduzido o Plástico Bolha! Quando vocês tiveram a idéia de fazer um jornal, me procuraram, como Diretora do Departamento de Letras, para me informar sobre esta iniciativa. Não pediram ajuda e foram extremamente gentis em me relatar a sua proposta. Incentivei-os ao máximo, mas meu incentivo era redundante, já que a motivação de vocês era genuína, e, como tal, sustentáculo sólido de uma empreitada que vem crescendo a cada número publicado! O Plástico Bolha tem levado o nome do Departamento de Letras a contextos diversos e, com o jornal, vão as idéias criativas de alunos da PUCRio, e, mais recentemente, também de muitas outras instituições de diferentes regiões do país. Mas acho que, acima de tudo, vai, com cada edição do Bolha, o carinho que vocês dedicam a esta publicação e o carinho que todos os professores sentem por ela. O carinho, aliás, pode ser o veículo e a sustentação de muitas atividades no contexto acadêmico. Durante muitos anos ele ficou um pouco esquecido, ou relegado a um plano menor, porque considerava-se mais importante o aspecto cognitivo da aprendizagem. Hoje, felizmente, ele voltou à cena pedagógica, de forma que, quando pensamos em alunos e professores, em sua formação e em sua prática, a valorização do afeto é evidenciada. A aula e outros encontros que acontecem no contexto escolar ou universitário são eventos sociais nos quais nos envolvemos como pessoas e, por isso, eles estão permeados por nossas emoções! É dentro dessa atmosfera, marcada por muita emoção, que escrevo este texto, como uma despedida da Direção, depois de quatro anos acompanhando as iniciativas de muitos alunos e professores do nosso Departamento. E a minha trajetória como Diretora de Letras está relacionada à dos idealizadores do Plástico Bolha. Em 2005, vocês me deram a honra de ser entrevistada para a coluna Perfil do primeiro número do jornal, e construíram meu perfil de maneira muito verdadeira e fiel ao que sou e ao que penso, como uma pessoa que vive e convive com outros, que tem interesses dentro e fora da Universidade e que dá especial importância ao que as pessoas são, muito mais do que ao que elas representam. Através daquela entrevista, vocês me deram a oportunidade de conhecer melhor outras pessoas, que se aproximaram de mim por compartilharem os mesmos interesses, como, por exemplo, cultivar frutas e verduras. E esta é também uma das mais fortes motivações da minha vida pessoal e acadêmica — plantar sementes e acompanhar o seu crescimento. Agradeço aos alunos responsáveis pelo Plástico Bolha por mais esta oportunidade de contribuir para o jornal e, agora, em 2007, de dispor de um espaço tão querido para poder me despedir! Agradeço também a todos os alunos de Graduação e Pós-graduação por sua constante participação na vida do Departamento! A vocês, todo o meu carinho, Lúcia Pacheco Professora de Estudos da Linguagem da PUC-Rio Subjetivas por Gregório Duvivier Se, por acaso, naquela tarde de quinta-feira Se, por acaso, naquela tarde de quinta-feira, após ter sentido uma súbita e inexplicável vontade de fumar, Otávio tivesse comprado um maço de Marlboro em vez de Derby, Telma, que sentou ao seu lado no ônibus e só fumava Marlboro, teria lhe pedido um trago, que ele cederia de bom grado, emendando um papo sobre cigarros, que daria lugar a um papo sobre Janis Joplin, que daria lugar a um papo de “Vamos ouvir um CD lá em casa”, que certamente terminaria em sexo. Depois do sexo, Telma revelaria a Otávio que ela morava em Mauá e era divorciada, deixando-o apaixonado e com uma súbita vontade de ir morar com ela. Largaria, então, seu emprego como professor de informática e embarcaria em um ônibus da 1001 para descobrir, somente em Mauá, que Telma tinha três filhos pequenos, que ela esperava que ele adotasse: Lua, Sol e Terra; este último, na época, um bebê. A princípio ressabiado, mas depois encantado com as crianças, que no segundo dia já o chamariam de papai, Otávio se mudaria para lá, onde ficaria cuidando das crianças a semana inteira, enquanto Telma venderia suas miçangas no Rio de Janeiro. Telma passaria, então, a visitá-los apenas esporadicamente e a se dedicar integralmente às miçangas e à bebida, sua outra paixão. Assim, Telma logo começaria a ficar agressiva com as crianças e com Otávio, que tentaria a todo custo defendê-las. Até o dia em que Telma, totalmente embriagada, chegasse em casa armada com uma faca e ameaçasse as crianças na frente de Otávio, que entraria no primeiro ônibus rumo ao Rio com seus filhos adotivos. Chegando aqui, a escola de informática não o aceitaria mais e, precisando de dinheiro para pagar a operação de Terra, o menor deles, que sofria do coração, se envolveria com o tráfico de drogas e logo ganharia um lugar proeminente no esquema internacional por falar inglês e dominar o Excel. Ganhando rios de dinheiro, ele pagaria uma boa educação para as crianças, que revelariam ser muito inteligentes e disciplinadas, a não ser por Terra, o menor deles, que, aos 13 anos, já revelaria ter herdado da mãe o alcoolismo. Mas Otávio, em sua rotina de traficante internacional, mal se importaria com o gênio complicado do caçula, até o dia em que Terra, então com 17 anos, provocaria Otávio até este dizer, no calor da discussão, que Telma, sua mãe, era uma prostituta hippie que os tinha abandonado na infância. Terra puxaria, então, um canivete do bolso e partiria para cima de Otávio, que sacaria sua 38 e o acertaria no peito. A bala se alojaria na espinha dorsal de Terra, que ficaria paraplégico. Lua, a primogênita, traumatizada, resolveria, então, tentar a vida em Miami, com seu namorado. Sol, sempre estudioso, iria estudar filosofia em Paris, com bolsa integral, deixando Terra só com Otávio e sua cadeira de rodas. E, assim, Otávio, arrependido, se desligaria do tráfico, entraria para a Igreja da Nova Vida e alugaria um apartamento em Copacabana, onde passaria o resto dos seus dias cuidando de Terra. Saberia ter sofrido muito, mas em momento algum se arrependeria de coisa alguma e teria a impressão de ter vivido uma vida completa. Mas, naquela tarde, Otávio comprou um maço de Derby, teve uma vida tediosa e foi condenado a viver com saudades de tudo aquilo que não aconteceu. plástico bolha produzido pelos alunos de Letras da PUC-Rio Editor Lucas Viriato Editora Assistente Marilena Moraes Conselho Editorial Luiz Coelho Gregório Duvivier Isabel Diegues Comissão Constanza de Córdova Carlos Andreas Tomé Lavigne Julia Barbosa Isabel Wilker Edson Santana Projeto Gráfico Lucas Viriato Tiragem: 8.000 Impresso na CUT Graf Distribuído no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte Coordenação Paulo Gravina Lucas Viriato Revisão Marilena Moraes Rubiane Valério Rafael Anselmé Gabriel Matos Equipe Márcia Brito Beatriz Pedras Paloma Espínola Fernando Fernandes Joana Petersen Apoiadores Maria Lúcia Gomes Álvaro M. P. de Souza Envie seus textos para: [email protected] Brilho Epifania Brilha a colher que leva a sopa à sua boca Brilha a taça que leva o vinho, brilha a faca Brilha o sorriso que leva aos olhos o brilho: Brilham os olhos. Brilha a risada que quebra A morte do ano velho. Já não sinto mais a mudança Na virada de um ano pra outro, Mas num momento qualquer que se passa por Assassino. A calma estilhaça o silêncio, revela os dentes Brancos, brilhantes, imperfeitos: os segredos Que o vinho mancha, que a saliva lava e que Roubam toda a luz da mesa de jantar. Marcela Sperandio Rosa Chloe Paisley Ricardo Sternberg Ricardo Sternberg é professor de Literatura Portuguesa e Brasileira da Universidade de Toronto. Desde a edição #15, o Plástico Bolha publica e traduz os seus poemas, originalmente escritos em inglês. Nesta edição, Luisa Noronha, aluna de tradução de Letras da PUC-Rio, traduz o último poema do ano: Dip, o mergulho. As traduções são feitas com a supervisão do tradutor, professor e poeta Paulo Henriques Britto. Dip Mergulho Once in a blue moon she did and when she did she startled moon and stars with the brief flash as, streaking meteor, she plunged into the pond. De vez em nunca ela surgia e quando surgia surpreendia a lua e as estrelas com o súbito lampejo quando, como um raio, lançava-se ao lago. Shocked out of deep sleep the pike turned to see a blond ingot part the waters with a hiss. Desperto de seu sono profundo o peixe virou-se para ver um lingote loiro sibilando n’água. At once those frogs were at a loss and silenced. What could they say? What song in their repertoire do justice to such event? De repente aqueles sapos ficaram perplexos e calados. O que poderiam dizer? Qual música em seu repertório estaria à altura de tal ocasião? She swam about the dark, a lazy golden thread sewing up the pond then stepped out, a brash glistening, and dried her hair. Ela nadou na escuridão um longo fio dourado costurando a superficie depois saiu, emergindo resplandecente, e enxugou os cabelos. Lucas Viriato Angela F. Perricone Pastura Memórias Indianas apresenta o livro Baudelaire por Efração: A narrativa híbrida do romance de Lucas Viriato de Medeiros De Bernard-Henri Levy CONSULTORIA DE NEGÓCIOS E MARKETING ESPORTIVO AGENCIAMENTO DE CARREIRAS DE ATLETAS EVENTOS CORPORATIVOS CAPTAÇÃO E GESTÃO DE PATROCÍNIOS T+8 Editora Av. Luis Carlos Prestes, nº 180 / 3º andar – Barra Trade V Barra da Tijuca – Rio de Janeiro / RJ. CEP: 22.775-055. Tel.55 21 2112 – 4909 / Fax. 55 21 2112 – 4601 / www.kpaz.net “Lês derniers jours de Charles Baudelaire” Uma viagem em 108 fragmentos poéticos A venda nas melhores livrarias ou no e-mail: [email protected] 3 Por dentro do tom por Santuza Cambraia Naves Björk. Volta, o show 4 Primeiro vi o show e, em seguida, ouvi o disco. Adorei os dois. E como costuma acontecer com propostas estéticas como a de Björk, que realizam dentro do show business a proposta wagneriana de obra de arte total, o show, evidentemente, é mais completo que o disco. O disco é um dos elementos que dão forma à arte conceitual de Björk, com seus aspectos musicais e visuais. O show aconteceu no Rio de Janeiro em 26 de outubro último, por ocasião do Tim Festival (Marina da Glória). É impossível descrevê-lo sem comentar a performance da platéia, que parecia complementar conscientemente o espetáculo de Björk através da arte corporal. Um número significativo de jovens presentes ao show marcava a sua presença com figurino e inscrições no corpo (de cortes de cabelo a piercings) que destoariam em outras salas de espetáculo do evento, como, por exemplo, a cena free jazz de Cecil Taylor. Outra coisa: tive a impressão de que aquela cena específica, com artistas e público, poderia estar acontecendo em qualquer lugar do mundo. Enquanto pensava, fascinada com o entorno, que a apresentação dos artistas seria incapaz de suplantar a da platéia, eis que Björk irrompe no palco com uma grande comitiva de músicos e com todas as bizarrices possíveis relativas a sons, cores, coreografias, figurinos e outros elementos das artes cênicas, como flâmulas estampadas com animais reais e do bestiário medieval. A música triunfal da entrada foi também surpreendente, contrariando a minha expectativa de que os sons manipulados eletronicamente seriam de agora em diante absolutamente previsíveis. Além dos instrumentos virtuais, utilizavam-se também trombones, tubas e trompas (com um efeito visual que remetia à antigüidade) de maneira inusitada, como se rememorassem tradições inventadas. E Björk é talentosa o suficiente para fazer com que o passado fake nos pareça familiar. Em um determinado momento do show, por exemplo, em que a letra falava de nomadismos — a canção Wanderlust —, os instrumentos metálicos de sopro me lembraram as chamadas sonoras de navios (que, aliás, não me são nada familiares). Björk dançou durante todo o show. E nada é mais significativo da indefinição temporal que ela promove que a sua dança, a qual às vezes nos remetia a uma certa noção de passado, outras à de um futuro com excesso de informações (ao contrário do futurismo clean que grassou no cinema dos anos anos 50, 60 e 70) e ao mesmo tempo maquinal (que lembra o Casanova de Fellini, que faz sexo como quem fabrica objetos em série) e outras vezes à idéia de um tribalismo atemporal. Esse aspecto fora do tempo converge com a concepção de José Miguel Wisnik, em O som e o sentido (São Paulo, Companhia das Letras, 1999), de “mundo modal”, referente a tradições indígenas, orientais e ocidentais pré-capitalistas, em que a música é vivida nas experiências rituais do sagrado. mulheres-damas por Luiz Coelho Lauryn Hill vem e canta, voz embargada versão unplugged, contra-senso, acorda meus ouvidos avel udados, destoando enton ação de último volume, drum’n bass. abre essa boca caixa acústica e rabisca a pauta dos meus olhos arrepiados, espelhados de motel, com batom Avon sangrando injúrias apaixonadas — agulhadas estridentes de agudo unha arranha esta cara vinil para que eu jamais deixe de repetir teu som na vitrola em good times unforgettable. Puzzles TRANSE EM VENEZA, ONTEM E HOJE Estamos em 1980. Festival de Veneza. Glauber Rocha se prepara para o que será seu último combate: a exibição de A idade da terra –– o filme que acreditava ser uma revolução no Cinema Novo e sobre o qual falou: “Não vou explicar nada, eu quero que se veja e que se ouça. O filme tem um som revolucionário (...). Um filme audiovisual, infelizmente, não é um filme de enredo, um filme clássico, um filme convencional”. (1) A tensão é muito grande. À medida que o A idade da terra é projetado, as pessoas levantam-se e saem. No meio delas estão, inclusive, alguns fãs de Glauber. Quando o filme termina, a sala está vazia. Fora alguns franceses, os críticos tiveram uma reação pouco favorável. “Ninguém entendia direito a proposta de A idade da terra e o problema era que a maioria das pessoas não estava prestando atenção no filme, mas na figura de Glauber, cada vez mais exaltado”, afirmou o jornalista Pedro Del Picchia. (2) No fim do festival, quando premiaram o francês Louis Malle, Glauber promoveu um evento inusitado: fez uma passeata pelo Lido de Veneza, enquanto discursava contra o “imperialismo cultural que abafava nossas raízes, a nossa potencialidade”. Ele não cansava de repetir: “Meu estilo de filmar está profundamente ligado à cultura popular brasileira (...). É um cinema feito sobre o povo e com a colaboração cultural do povo (...)”. (3) Apesar disso, no filme Terra em transe (1967), ao compor o poeta Paulo Martins com as ambigüidades, as dúvidas e os impasses, que eram dele próprio, Glauber reconhece sua dificuldade de se aproximar do povo. Como observa Ivana Bentes (4) , em algumas das cartas que envia aos amigos, no período em que esteve fora do Brasil, o cineasta se assina “Paulo Martins”, “o poeta que em Terra em transe ruma para a morte e ‘tem fome do absoluto’”. Glauber ainda disse sobre Terra em transe: “A única coisa boa deste filme é sair na hora e vingar as pessoas e responder à brutalidade – mas o povo não entende. O povo vaia e apedreja e eu fiz para o povo – imagina que mito besta é o povo” Glauber repetia fora das telas as angústias de Paulo Martins: “Mas o que é o povo?” (5) No entanto, ele nunca desistiu do povo. Antes de Terra em transe, tinha feito Pátio, Barravento, Deus e o diabo na terra do sol; depois, até chegar ao Festival de Veneza, em 1980, fez O dragão da maldade contra o santo guerreiro, O leão de sete cabeças, Cabeças cortadas, Câncer, Claro, entre outros. A idade da terra é a radicalização de sua proposta estética. O ápice de seu processo cinematográfico, que não experimentou a decadência. Glauber usou e abusou da apropriação subjetiva do imaginário popular. Em nome de decisões filosóficas pessoais, ele recortou e escolheu à vontade fatos sociais e políticos brasileiros, multiplicando as potencialidades de sua arte. A prova disso é o fato irrefutável de que os gritos de Glauber contra o “imperialismo cultural que abafava nossas raízes” na passeata pelo Lido de Veneza ainda ecoam na cultura brasileira contemporânea. Ele tratou de temas controversos da política brasileira, da miséria, da fome, da relação colonizado/colonizar, que até hoje nos dizem respeito. Glauber morre, em 22 de agosto de 1981, menos de um ano após o lançamento de A idade da terra. Estamos no século 21. Eryk Rocha, filho do cineasta, lança o filme Rocha que voa, sobre a passagem do pai por Cuba, e o livro homônimo, com a proposta de “penetrar nos meandros da história e reunir as importantes e variadas fontes dessa memória para revitalizá-la e criar uma ponte que gere uma reflexão atual sobre o tempo presente”: “Hoje a revolução se faz no dia-a-dia. E aí está o grande desafio da minha geração, aproveitar-se da ressonância de gritos do passado sobre o espaço convulsionado do agora para projetar uma imagem do futuro”. (6) Preste atenção. Escute. Glauber Rocha ainda discursa no Lido de Veneza. Anna Lee Jornalista, escritora e doutoranda em Literatura Brasileira pela PUC/Rio. Entre outros livros publicou O beijo da morte, em parceria com Carlos Heitor Cony, vencedor do prêmio Jabuti/2004 - categoria Reportagem e Biografia, e O Sorriso da Sociedade. Trabalhou no Jornal Folha de S. Paulo, na Editora Globo e Revista Manchete. (1)Glauber, o Filme – Labirinto do Brasil (2004) /Silvio Tendler. (2) Idem. (3) Documentário Depois do Transe, em Terra em Transe (1967), versão restaurada/ 2006/ Glauber Rocha. (4) Rocha, Glauber. Cartas ao mundo. Org.: Ivana Bentes. São Paulo: Cia. das Letras, 1997, p.23. (5) Idem. p.38 (6) Rocha, Eryk. A rocha que voa. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. (sobre)vivências – dos cen’átimos (brevidades) por Carvalho dos Santos alquimias Uma filosofia jamais é uma casa, mas um canteiro de obras. Mas seu inacabamento não é o da ciência. A ciência elabora uma porção de partes complexas e os vazios aparecem apenas no conjunto. Ao passo que, no esforço de coesão, o inacabamento não está limitado às lacunas do pensamento — sobre todos os pontos,sobre cada ponto, está a impossibilidade do estado último. (George Bataille) (Quando eu era menor, e isso não faz tanto tempo assim, eu tinha medo da sala com visita, da praia cheia, da multidão que julga, da rua com seus passantes de olhos esbugalhados e em vigília, dos braços retilíneos e de um pretenso caminhar firme. Eu era duro, imobilizado por mim e pelos outros. Meu sonho de menino era parar o mundo: a sala, a praia, a rua. Congelar o tempo onde só eu pudesse continuar perambulando no meio dos homens petrificados. Queria solidificar o ar, a água ou o fogo, endurecer o que me endurecia. Ambicionava manipular o mundo material, assim como ele fazia comigo. Queria petrificar os gestos para estudar seus movimentos. Esse desejo impede o vagar do ar e seus afagos em nossa face, o mergulho refrescante nas águas douradas dos rios. Sempre preferi o caminhar em lugares vazios, onde só eu me presentifico, onde posso, enfim, encontrar a clareza dos meus pensamentos em meio ao seu turbilhão desenfreado. No entanto, na solidão, tudo é imóvel e um tanto sem vida. Passamos a experimentar o fluxo da vida no contagio das potencias do mundo. A escrita funciona da mesma forma: paralisa ou movimenta em seus embates com a doxa, através de suas comunicações intertextuais. Aliais, a vida engessa ou flui. É uma questão de espaço e tempo, as forças da natureza “já são” e prosseguem em rodopios com os seus ciclos. Ocupamos por empréstimo e efemeramente, um lugar que habitamos num tempo qualquer. Hoje é um dia chuvoso e estou de volta às ruas povoadas pela rigidez das faces contorcidas e tensas — padrões de vida e variações sobre o mesmo tema. A razão lógica da doxa petrifica e entroniza os gestos porque tem medo do que lhe escapa. Diante do meu temor interrompe a seqüência do movimento. Escolho, todavia, persistir — re-insistir —, intervir como antena das forças mágicas. Deixar-me embaraçar pelo movimento do ar, até que me molde para um cenátimo. Quero sentir esse infinito fantástico abrindo-se ao meu redor — pois, tão logo vem, tão logo se esvai. A chuva cai descansada do céu e tento recolher, com um balde, as primeiras águas da chuva, para seguir em minha intervenção alquímica do mundo). CLIQUE AQUI www.dominiopublico.gov.br O Portal Domínio Público coloca à disposição de todos uma biblioteca virtual, livre e gratuita, que incentiva o compartilhamento de conhecimentos, com o acesso a teses e dissertações, obras literárias, artísticas e científicas já em domínio público ou que tenham a divulgação autorizada. O portal aceita a colaboração dos usuários como voluntários (para digitalizar), autores (cedendo obras de sua autoria) e tradutores. Textos, sons, imagens e vídeos estão ao alcance do mouse. vale o clique! Pôr do sol na Caxemira Aquele pôr do sol maravilhoso revelou-se, colorindo nuvens, caindo sobre casas e morros e, não satisfeito, ainda repetia o efeito, multiplicando-se ondulado nas águas do Lago Naguí. Lucas Viriato Anjo e lagarto Meu amante é mistura de anjo e lagarto, De lagarto tem um ar rastejante, Serpente que ganhou pés, mãos E língua bífida; De anjo tem um par de asas Que se abrem sobre mim Como cisne no lago. De lagarto tem o olhar contemplativo De quem fica horas imóvel Sob o sol; De anjo tem o poder De conduzir astros, De executar leis, De tornar-me rainha. Quando lagarto Posso feri-lo, Cortar-lhe a cauda Que se regenera; Quando anjo Posso derramar azeite quente Em suas costas E traí-lo. O lagarto Foi um pássaro gigante, O anjo, Uma aspiração impossível. Meu amante é mistura de lagarto e anjo, De anjo e lagarto, Sou mulher E temo a raça dos demônios. Raquel Naveira Mestra em Comunicação e Letras pela Universidade Mackenzie (SP) e doutoranda em Literatura Portuguesa na USP. Por seis anos, apresentou o programa literário Prosa e Verso, no canal universitário. Atualmente leciona na Universidade Santa Úrsula. Mudo surdina engasgada a brisa me toca mas nem ligo. o grande astro-rei arde, prepotente. me sufoca e abafa. abafa tanto essa calamidade. complacentes, alegres, debruçados, seguimos. Natalia Guerra 5 Tela em branco Parece que ainda não enxergou que mito é coisa de grego. Não cansou. Os poemas ainda eram para ela. Ela que não era ela. Porque ele não deixava. Era apaixonado por alguém que não era ela. Mas um mito. Um castelo de areia: frágil como uma foto de um objeto não identificado. Não levava a mulher pra noite, mas pro museu, como um bibelô que não pode ser tocado, um mimo, uma obra de arte apenas para ser degustada à distância pelos olhos e olhe lá. O encontro ganhava traje de visita turística. Como estrangeiro admirando a mulata com a língua de fora. E quem se lixa praquela barba mal feita, seu hálito de birita, seu cheiro de cigarro, sua blusa toda aberta com aquela barriga branquela aparecendo. Realmente a grande atração era ela. Colocava-se como eterno coadjuvante quando o script dizia que era ele o ator principal. Aparar a barba, chupar um drops, malhar pra quê se o objeto de desejo não era ele? Então era ela quem tinha que ter prazer, assim dizia a cartilha da baixa-estima, que decorou desde todo o sempre. Um belo dia, ouviu da então musa que a mesma queria também ter o direito de investigá-lo, de saber como agradálo, de dar-lhe prazer, de dar-lhe um mimo, de fazer seu prato predileto, de ter seu homem bem cuidado. Silêncio. Ele não sabia muito bem o que gostava de comer — afinal, beliscava o que trazia pra ela. Não sabia também por onde deveria começar a tirar aquela barba intocada que já beirava o mau gosto e já lhe fazia a cara de um pagador de promessa. E o prazer? Acostumara-se a ter prazer bloqueando seus buracos com cerveja estupidamente gelada. E bota estúpida nisso. Ela falou que precisava admirar o quadro também. Ele não sabia que cores usar. Ela sugeriu uma tela em branco. Como a vida quando a gente quer mudar. Ele aceitou. Parece que vendem tintas frescas por aí. O fornecedor é quentíssimo 6 e só tem o contato quem resolve cuidar de si. Nunca é tarde pra sair do museu e freqüentar um salão de beleza. Em vez de olhar pra musa, agora se permitia ver o pôr do sol com ela ao lado. Ao lado. Gisela Gold A quem interessar possa A quem possa interessar Esta minha busca eterna por ser feliz, A esse alguém dedico os versos Deste poema, Que ainda não fiz. A quem possa interessar O corrigir dos meus erros, O meu castigo, Não é que eu não queira, Não é que eu não tente, É que simplesmente não consigo... A quem possa interessar, Os meus planos de menina... — sonha, menininha, Alta demais pra ser princesa, Baixa demais pra ser rainha. Erica Ramminger Bolhas Geraes Ferreira Gullar: um humanista Ele vem e se senta timidamente em uma cadeira no centro da banca. Ao seu lado estão José Eduardo Gonçalves, jornalista da Rede Minas e organizador do evento, e do outro, o doutor em literatura Antônio Sergio Bueno. A princípio, sério e contido, o poeta desvia olhares de estranhamento aos únicos dois flashes que tentam vencer a escassez da luz do museu de Artes e Ofícios, localizados na Praça da Estação, no centro de Belo Horizonte; mas, depois de alguns minutos de conversa, a timidez dá lugar a uma desenvoltura discursivamente agradável. Ferreira Gullar, em tom de conversa informal, conduz a palestra pouco a pouco, ponderando filosofia e cotidiano, arte e coloquialismo. Um poeta humano, isto sim, Ferreira Gullar é um poeta que, antes de falar da morte do seu filho e da poesia que circundou sua amargura, destoa um semblante de tristeza; um poeta radiante, que, ao ouvir o emocionado prólogo de Antônio Sergio Bueno, segura-lhe o braço, reiterando sua gratidão àquelas palavras. O museu está cheio, as pessoas assistem atentas às palavras de Gullar — umas de pé, outras sentadas — uma atmosfera de vislumbre se dirige à figura do poeta. Nem mesmo o barulhento metrô que corta o museu, localizado na Estação Central, quebra a concentração do diálogo. Após falar de vida (e também da história da própria vida), de arte, de poesia, de temas humanísticos, abre-se um momento destinado às perguntas. Parecendo não acreditar na poesia, ali, tão próxima, transbordando pelos poros daquele que mudou a forma de percepção da história e do mundo, sobretudo o mundo brasileiro, as pessoas dirigiam perguntas sucintas, tímidas, resguardadas no vislumbre. Mas, ainda sim, uma voz ecoou no museu como uma magnitude que não parecia vir de uma pessoa — não pelo simples caráter da bela voz daquela mulher —; bem mais do que isso — pela atmosfera lúdica que se estabelecia ali, desde o início daquela conversa. “Lá vai o trem com o menino/ Lá vai a vida rodar/ Lá vai ciranda e destino/ Cidade e noite a girar (...)”. E, aos poucos, com alegria na voz, meio como quem vence o vislumbre, aquela mulher arranca de Gullar o que faltava: alguns versos, em uníssono com a música, e um semblante carregado de emotividade, mais forte e voraz do que a tímida demonstração de gratidão ao prólogo de Bueno. E, ao finalizar aquele momento mágico, de uma terça-feira que poderia ser qualquer dia rotineiro, mediante muitos pedidos, o nosso poeta — mais nosso do que de qualquer país — lê duas poesias, em tom de despedida — ovacionado de pé por dois curtos minutos; os amantes de poesia e de Gullar se despedem daquele homem de óculos finos, cabelos longos e esbranquiçados e olhos que comportaram e comportam toda a humanidade da poesia. Felipe Aguiar Chimicatti A coluna Bolhas Geraes é dedicada aos nossos leitores e colaboradores mineiros, que, desde a edição #13, recebem o Plástico Bolha em diversos pontos de Belo Horizonte. Envie também os seus trabalhos para [email protected] Os Sete Novos Publicar pela primeira vez nunca é fácil. Três amigos, Augusto de Guimaraens Cavalcanti, Domingos G u i m a r a e n s e M a r i a n o M a r o v a t t o , f o r m a m o g r u p o O s S e t e No v o s , q u e e s t r e o u p e l a 7 L e t r a s . Mariano lançou o livro O primeiro vôo. Domingos lançou A gema do sol e Augusto Poemas para se ler ao meio-dia Aqui, vai uma amostra do novo trabalho do grupo: uma série de textos sobre os Estados Unidos. São três, mas valem por sete... Nutricionistas americanos “Nutricionistas americanos defendem McDonald’s para crianças inapetentes” era a manchete de um jornal que jorrava delirantes números transgênicos de gordura saturada vindos de uma universidade na Califórnia. Enquanto isso, no centro-oeste da potência, caminhava por Milwaukee, Wisconsin, um pequeno inapetente com seu jornalmanchete-guia debaixo do braço. No seu décimo terceiro McDonald’s da semana, ali na interseção da E. Potter Avenue com Kinnickinnic, o pequeno inapetente triturou seu vigésimo segundo BicMac do mês. Em seu sangue começava a pulsar uma antiga canção menominee ativada pelo excesso de gordura trans naqueles genes indígenas adormecidos! Entre palavras tribais e um inglês de convulsiva língua enrolada, espinhentos funcionários do estabelecimento observavam, com temor, aquele ritual xamânico da criança inapetente que verborrajava a profecia do maior shopping indígena dos Estados Unidos da América! THE KENOSHA PROJECT! — urrava o pequeno lobo das neves do Wisconsin! Urrava dominado pelo espírito dos ancestrais trazido à tona pelos números transgênicos saturados da manchete do jornal! Milwaukee parou, ouvindo os gritos inumanos da profecia menominee... Os espíritos antigos estavam libertos pelas mãos de Ronald McDonald! Uma legião de índios com nariz de palhaço, vestidos de vermelho e amarelo, construiriam o Shopping Nação Menominee! Eram os urros de uma nova era... Mas toda nova era pode ser abafada com um golpe de mestre da CIA. “Criança vestindo penacho indígena é encontrada com 13 BigMacs não-digeridos no estômago, às margens do lago Michigan” era a manchete de um jornal sensacionalista, numa manhã de Milwaukee... Domingos Guimaraens Kentucky A verdadeira balada de Jackson Hole Valley A garotinha da famosa balada em homenagem ao famoso cowboy do Wyoming poderia ser Jenny, filha do proprietário do rancho Flat Creek, Damon Fuller. No rancho do sr. Fuller, não só as mulas, principal atração para as crianças, são famosas, mas também os búfalos reprodutores da raça Carabao. “A comunidade homossexual de todo o país vem até o meu rancho exclusivamente para apreciar o coito de meus búfalos!”— afirma Damon, enquanto o casal nova-iorquino Jerry Liotta e Javier Cruz olham atentamente para a ereção que surge entre as quatro patas de Tony, o mais bem dotado búfalo do Flat Creek. “Em Nova York, nunca veríamos um desses”, explica, espantado, Javier, nascido em Porto Rico. Porta de entrada para o parque de Yellowstone, Jackson parece um turbilhão de alegria e entusiasmo, até mesmo no inverno, quando cerca de 14 mil turistas, em sua maioria gays do sexo masculino, vêm assistir aos rodeios, visitar o parque nacional Refúgio dos Alces e, principalmente, fazer amor sob os picos nevados destas maravilhosas montanhas que se erguem no Wyoming. Isto sim é que é vida selvagem! O quarto-azul-horizonte, a aritmética do prazer e suas rotas de vento. Giletes subterrâneas de petróleo. O veneno do carnaval: as garras são guindastes e as cicatrizes são poemas visuais. Na opinião bem fundamentada de William Blake, é sobre as crateras do Kentucky que sairá a “quinta raça”, a raça cósmica que realizará a concórdia universal, será neta das dores e das esperanças da humanidade inteira. Os mártires do asfalto sabem melhor do que ninguém sobre os sacrifícios da bandeira: No Kentucky é carnaval todo final de mês pela comemoração da vitória apolínea do mundo, são doze os apolos de Kentucky saudados em uma macumba com muita cachaça e KFC em cima das estrelas dos grandes Estados Unidos da Vertigem. O nome do preto velho do Kentucky, portador da quinta raça, é Dom Cruzeiro das Almas ou, mais especificamente para os íntimos, Mr. Sailor of Souls. Para os navegadores do quarto azul-horizonte, a aritmética do prazer e suas rotas de vento levam sempre ao transe do babalorixá Coronel Sanders. Eles sabem que todo corrimão é movediço; os degraus, por exemplo, estão a todo momento se esfacelando sobre os pés......a estrada estava lá há dois minutos, mas já não está. Ali na encruzilhada entre Fort Knox e Frankfort, cada mãe de santo recebe a graça do frango transgênico e ainda leva para casa um balde involuntário de tristeza. Sem dúvida nenhuma se comemora o carnaval!!!!!! Nos cafundós de Wasteland, Kierkegaard, o mulato dinamarquês ensaia sua dança ao luar apolíneo desta miríade chamada Kentucky. O quarto azul do horizonte já se abriu. José Agrippino de Paula devora um frango frito enquanto espera pela quinta margem na Panamérica do nada. Mariano Marovatto Augusto de Guimaraens Cavalcanti “Ó garotinha linda, beije sua mula Ó garotinha linha, beije sua mula Que o jackson hole cowboy Levantará seu chapéu para a gloriosa América” PÃES ANTIPASTOS PIZZAS SALGADOS MASSAS DOCES MOLHOS TORTAS Entregas na Gávea e Leblon sábados, domingos e feriados www.ettore.com.br Av. Armando Lombardi, 800 - lojas C/D. Condado de Cascais, Barra da Tijuca - RJ Tel.: 2493-5611 / 2493-8939 7 5 km 8 Andei cinco quilômetros e não encontrei nada. Sentei na beira da rua e fiquei esperando. Não que eu achasse que uma mensagem divina fosse cair como maná do céu ou que alguém viria andando por aquele beco deserto e cheio de ratos para me dar uma orientação. Eu estava cansado mesmo. Estava esperando a disposição voltar para levantar e continuar andando. Chutei duas baratas para longe, esmaguei mais três só de raiva, levantei, tirei a poeira e continuei andando. Dois passos — foi tudo o que consegui andar. Um grande estrondo me fez pular e virar na direção de onde eu havia acabado de levantar. Olhei e vi uma pessoa igualzinha a mim sentada. Ele chutou duas baratas na minha direção, esmagou mais três só de raiva, levantou, tirou a poeira e começou a andar. Matei as baratas e saí da frente, já que ele parecia muito mais apressado do que eu. Ouvi o estrondo novamente e, como a essa altura eu já esperava, outro de mim apareceu. Já tinha esmagado umas vinte baratas, que eles insistiam em chutar na minha direção. Cansado disso, conseguia ver, ao longe, para aonde ia a fila de eus. Resolvi segui-los. Ultrapassei uns cinco de mim até chegar a uma praça ampla, com estátuas de cavalos sem generais, pilares de mármore desgastado por séculos de exposição ao tempo, chafarizes secos e pombos empalhados pelo chão. Ao chegar lá, os eus davam uma volta completa, admiravam as estátuas, se debruçavam sobre as flores mortas dos jardins e mergulhavam no chafariz como se pulassem em uma piscina olímpica de uma competição de salto ornamental. Intrigado, me aproximei do chafariz e olhei para dentro dele. Não via nada, somente o fundo de mosaicos incompletos e amarelados. Resolvi dar uma chance à loucura, voltei à entrada da praça e me encaixei na fila. Os cavalos, em posições de ataque, ostentavam pomposos generais sobre suas selas. Os pilares brilhavam com o mármore mais branco. Os grandes chafarizes umedeciam o próprio ar com suas águas dançarinas. Tudo parecia ter se encaixado perfeitamente, menos para os pombos que, como que percebendo que eu não era como os outros, voavam em minha direção, quase batendo em mim mais de uma vez e atrapalhando um pouco o caminho dos outros eus. Cheguei ao final do percurso a tempo de me ver entrando no chafariz principal. Um belo mergulho, por sinal. Não sabia que eu podia mergulhar tão plasticamente bem. Preparei o salto, recolhendo todos os anos de treinamento em piscinas de clubes e casas de amigos. Distraído em minha concentração, atrapalhei o eu seguinte, que, apressado, forçou passagem, me jogando de qualquer maneira dentro da água azulada. Com os olhos fechados pelo susto, não vi de onde veio a sucção que me puxava cada vez mais para o fundo. Fundo que nunca chegava, por sinal. Abri os olhos para um túnel que se aproximava rapidamente de mim, com eus, pombos, pilastras e generais descendo pela água cristalina. Um rio entubado, foi o que me veio à mente na hora. Estranhamente, não sentia falta de respirar. Seguia nadando rio abaixo como se estivesse em terra. Já devia estar há uns quinze minutos descendo e, como a correnteza estava forte o suficiente, resolvi tirar um cochilo. Não sei por quanto tempo dormi, me pareceu muito. Um sono tranqüilo, sem sonhos. Acordei, sozinho, a tempo de ver uma placa passando por mim. “5 km”, dizia o sinal de metal. “Cinco quilômetros de onde para onde?”, não pude deixar de me perguntar em voz alta. A situação já era tão estranha que uma resposta, vinda do nada, não me surpreenderia. Mas nem essa resposta eu tive. Segui a corrente até chegar ao que parecia ser o ponto final da jornada. Emergi em um pequeno lago. Andei cinco quilômetros e não encontrei nada. Sentei na beira da rua e fiquei esperando. Não que eu achasse que uma mensagem divina fosse cair como maná do céu, ou que alguém viria andando por aquele beco deserto e cheio de ratos para me dar uma orientação. Eu estava cansado mesmo. Estava esperando a disposição voltar para levantar e continuar andando. Chutei duas baratas para longe, esmaguei mais três só de raiva, levantei, tirei a poeira e continuei andando. Léo Torres Poemasó. No poema ficou o fogo mais secreto O intenso fogo devorador das coisas Que esteve sempre muito longe e muito perto. Sophia de Mello Breyner. Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições... Leio Benjamin. Ciclo: angústia, destino, culpa: ciclo. Preciso de coragem para incendiar o mito em que vivo. A palavra queima, é perigosa, mas insisto. Minha pele tostada faz com que as sensações no corpo se tornem mais sutis e a sensibilidade aumente. Descamo. A pesadez desaparece. Esse incêndio do mito acontece nas palavras, no texto e também no corpo do escritor e do leitor. No meu corpo. A fumaça produzida faz com que os limites entre mim e o fogo se tornem cada vez menos claros: o fogo me queima e está em mim. (Seus olhos ardem e podem enganar você, pois, além da semelhança sensível há uma semelhança imaterial que você não vê. Há um mistério...) Só assim, no limite entre o interior e o exterior, entre o sujeito e o objeto, é possível descobrir alguma verdade. Benjamin me pergunta: como relatar uma experiência forte demais? Só podemos escrever uma história a partir de seu presente — em contato com o fogo. Decerto a fogueira que incendeia o mito não é a mesma em que se reúnem antigos contadores de histórias para a troca de experiências. As narrações coletivas não são mais uma prática comum na contemporaneidade; mas, através da literatura, da arte, tudo é comunicável, tudo é transmissível. Minha pele está queimada, ardendo, porque a leitura não se restringe mais ao livro. Palavras incandescentes me atingem. A literatura torna-se uma arte menos propensa a realizar obras que a disseminar experiências, diz Ladagga. Todos os sentidos estão envolvidos na experiência da linguagem. Também para Benjamin, a arte é a única capaz de revelar a própria realidade do mito em que vivemos para então nos liberarmos dele. Mas não precisamos de narrações coletivas: na contemporaneidade a experiência não se encontra no compartilhar, mas na própria palavra — Poemasó. A experiência é vivência, é a materialidade da linguagem. A escrita não é mais a expressão de alguém, não se aprisiona (o escritor está constantemente trocando de pele e não encontra mais limites para seu corpo). Tem a ver com o jogar-se todo na linguagem, na visceralidade de seu instinto; tem a ver com um traço luminoso de outra vida, outra história, que é revelado na escritura. Onde estou? Quem está falando? Uma força imaginária na escrita que me leva. Um gesto. Uma contingência. Existo no limite — dentro e fora da pele queimada. Frente ao fogo, estou viva; mas, em contato com ele, estou morta. Esta é a magia possível na linguagem. Morte e vida, Severina, ao mesmo tempo. É preciso coragem para me deixar atravessar. E eu deixo; sei que só aqui consigo ser livre: dançando, com a pele queimada, ao redor da fogueira, cantarolando, engasgada com a fumaça, uma nova música que vai fundar uma nova tradição. Observações O título deste ensaio é uma homenagem à Ana Chiara, que traz tatuado em seu braço: poemasó. No entanto, a tatuagem é também um acaso, pois só pode ser vista no verão... Como o próprio Benjamin diz, este trabalho deve desenvolver ao máximo a arte de criar sem usar aspas. Por isso, muitas vezes, sou Guimarães Rosa, e o próprio Benjamin. Por respeito, os termos que não são meus estão em itálico mas sem nenhuma referência imediata. Alluana Ribeiro Bibliografia BENJAMIN, Walter. “O narrador” In: Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987. (Obras escolhidas; vol. I). ROSA, João Guimarães. “O Espelho” In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1974. Desafio poético Desde a edição passada, o plástico bolha está propondo sempre desafios para os amantes da poesia. Nesta edição, o desafio é escrever um poema sobre um objeto: o sabonete. Vejamos a seguir os poemas que recebemos. Para a próxima edição, o objeto será “a amêndoa”. Todos estão convidados a trovar o fruto da amendoeira e a sua semente, basta mandar seu poema sobre o tema para o e-mail do jornal. O sabonete É sedoso e perfumado Colorido e espumante Que no banho é tão usado Na banheira dos amantes Delicadas aparências Formas côncavas, oblíquas Eu só penso em indecências Saboteio minhas rimas No banheiro dos solteiros Ele vive tão sozinho E só tem de companheiro Um temível pentelhinho. Paulo Henrique Motta Ex-puma Mon ephebo opaco transpiro grudado às fendas do cárcere suor glicerina Quando seu Phebo escorregou e você se abaixou suado e docemente constrangido foi o início do nosso amor. Agora, só Lux (úria). Luiz Coelho Barbara Hansen Plantei um alfinete Com a cabecinha verde No ponta de um sabonete. Fiz um barco branco, lindo! Mas ele afundou na banheira. sob a teia leitosa, cremosa de filetes, ressecado do banho de ontem, o sabonete. Lúcia Cordeiro Isabel Diegues 9 Sabonete À primeira vista são aromas de brisa. Prometem-se cicatrizantes, adstrigetes, refrescantes, hidratantes. Vêm com rótulo: “íntimo”, e levo um pra casa. Logo percebo que arde aos olhos. E desaparece aos poucos. Tento apanhá-lo, mas, escorregadio, foge pelo ralo, levando embora meus resíduos. Me deixa nua, espumando, e ele desmanchado, imóvel. Enfim: “Desinfeta!” Antonia Ratto Deixa-me cair de alturas imensas no chão num emaranhado de pelos molhados e nojentos arrastam-me por suas peles a minha pele que se renova todo dia até me parecer morrendo como tudo que morre a todo tempo nessa ingrata forma de viver quadrado e aos poucos me distanciando em espumas de sofrimentos cansado dos sovacos das unhas das melecas dos pés fedorentos suo o insulto do sulco de sepulcro das soltas sujeiras a descer escorregando com o meu contato com as partes a esconder quando se não pode mostrar a quaisquer ventos empoeirados a jogar em mim toda a solução oh por que não sou a molécula do músculo que fosse pelo menos um líquido sabão deus por que nasci um corpúsculo que jamais morre na mão vive minúsculo Gustavo Paes Anuncie Aqui! MASSAS - MOLHOS - PÃES - DOCES Entregas em Domicílio Leblon: 2259-1498 Barra: 2431-9192 Laranjeiras: 2285-8377 www.massascantinella.com.br ... 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Em um só livro, encontramos muitas narrativas organizadas sob os mais diversos critérios de seleção: narrativas fantásticas, narrativas bíblicas, narrativas de um autor específico, narrativas de mitos, narrativas de autores selecionados por gerações, narrativas de contos de fada, narrativas de terror, etc., e todas direcionadas a um público adulto. O conto, por sua brevidade, parece ser a forma literária apropriada ao ritmo de vida nosso de cada dia. E que os anjos digam “Amém!”, pois, sem nossas histórias, como sobreviveríamos a uma odisséia que afirmam ser pós-moderna? Trago-lhes, então, uma pequena profecia fictícia, mas nem por isso menos verdadeira, apesar de sediciosa. Foi escrita a modo de enigma, forma muito usada e apreciada pelos antigos para treinar o espírito e curar as doenças da alma. As coisas desunidas se unirão e adquirirão força tal, que hão de restituir aos homens a memória perdida. O autor desse pequeno enigma “profético” é Leonardo da Vinci. Leia o original e sua resposta logo abaixo: Le cose disunite s’uniranno e ricieveranno in se tal virtù, che renderanno la persa memoria alli omini. (Cioè i papiri, che son fatti di peli disuniti e tengono memoria delle cose e fatti delli omini.) (Isto é, os papiros, que são feitos de folhas desunidas e contêm a memória das coisas e dos feitos dos homens — e que sabemos ser os livros, repositórios de nossas narrativas). Mas também podemos decifrar o enigma de modo diferente, e dizer que os contos, tais como folhas avulsas, são as “coisas desunidas” que, unidas em múltiplas coletâneas, nos resgatam a memória literária e colorem a vida. Meno male!, ainda que sob as leis do mercado de consumo ou sob as do gozo apressado ou imediatista. Miriam Sutter Professora de Letras Clássicas da PUC-Rio Gibraltar Um dirigível sobre Stalingrado Aponta o carrossel de moças rocas Balões sobre Varsóvia arrombam bocas Balões e aeronaves sobre o sítio O Encouraçado Branco em Estocolmo Cala mercadores de palavras nobres sobre a Prússia Cala as almofadas e leituras nos lunáticos ermos da Alsácia E em outubro essas coisas não são mais sonhos de maio Em dezembro elas agostam, os sapatos e agasalhos Em Abril jaz o Rolls-Royce, conversível em frangalhos Convertido entulho férreo e olvidado Uma sucata a mais no escuro pátio da estação bombardeada. Carlos Andreas Eu não posso escrever sobre mim, caso eu queira costurar alguma coisa com a linha frágil que enlaça a verdade às minhas memórias. É necessário que eu escreva, então, sob mim. À minha maneira, eu busco minhas cicatrizes que, diferentemente de tatuagens, marcam tanto o meu “eu” exterior quanto o meu “eu” interior. Partindo do pressuposto que a tatuagem é um signo da resposta “quem sou” ao exterior, a cicatriz é uma resposta do diálogo entre o meu “eu” exterior e o meu “eu” interior. E eu sou esses dois “eus”. Ao mesmo tempo em que eu me chamo Kiara para o mundo, eu me chamo “Eu” para mim. Menos quando eu estou muito brava comigo mesma. Nessas ocasiões, eu me chamo como se uma terceira pessoa me habitasse. Aqui, esse não é o caso. Para contar a história que cobre e costura esses dois “eus” — e muitos outros “eus” que conversam comigo num pequeno pedaço de tempo —, eu quebrei a linha dos meus pensamentos e a desentortei enquanto eu marchava em linha pelos caminhos da linha da vida. Eu andei pelas calhas da minha mão direita, eu tropecei nas cicatrizes e eu cantei em silêncio sobre os meus “eus”. A canção me parou em mergulhos de segundos e, por causa disso, eu vi meu dedão napoleônico. Nesse dia, eu descobri que as linhas que formulavam minha vida não eram lineares, mas curvas. Depois que eu descobri isso, minha cabeça começou a mudar completamente e eu pude ver minha mão esquerda e todos os meus dedos... * Eu nasci num dia preciso, de um mês quase preciso, de um ano impreciso, numa família muito imprecisa com sua memória. Nós habitávamos a Terra, eu acredito. Para melhor explicar, é um planeta que dizem azul, mas onde eu posso ver muito mais cores. A minha mãe era vermelha e o meu pai, uma variação entre cinza e preto. A minha mãe era uma mulher apaixonadamente religiosa. Tanto que praticamente toda noite ela batia na parede que separava seu quarto do meu, gritando: “Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!”. Sobre o meu pai, a única coisa que eu tenho dele — além dos olhos, mas eu nunca compreendi isso — é uma foto. A minha mãe me dizia que o meu pai morreu quando eu nasci. Imagino eu que seja por isso que a minha mãe fazia vigílias noturnas no seu quarto com pessoas diferentes. Ela era tão religiosa que os vizinhos a chamavam de Madalena. (Há uma coisa que eu nunca entendi sobre sua religiosidade. Por que algumas pessoas diziam que ela não podia cruzar as pernas? Isso seria porque cruzar as pernas era um pecado? A religião permite apenas fazer o sinal da cruz com a mão? E como seria fazer o sinal da cruz com as pernas?) Um dia, passada a meia-noite, eu a vi em penitência, ajoelhada com as mãos cruzadas e próximas ao seu rosto. Diante dela, um homem preto — um padre, creio eu — que acariciava sua cabeça e dizia: “Bem-aventurada... bem-aventurada... Oh, que paraíso! Meu anjo!”. * Desde os quatro anos de idade, eu ia para a escola, mas quando a diretora descobriu que a minha mãe tinha convertido seu marido com as preces noturnas, a minha mãe decidiu que mudássemos para outro lugar mais colorido. A mamãe me prometeu! Nessa época, a fera com olhos de fogo e dentes de ferro — a guerra! — começou a nos perseguir. E, pela primeira vez, eu vi a minha mãe em penitência diante de mim. As cores de seu rosto tinham mudado. Enquanto o mundo se tornava amarelo e branco, a minha mãe foi ficando de mais em mais cinza... ...até que um dia, quando eu estava no planeta, no meu quarto branco, eu a recebi em cinza e preto — como meu pai. Ela sorria numa revista. Chiara di Axox Entrevista por Lucas Viriato Batalhando com as palavras MC Marechal é, ao pé da letra, um Mestre de Cerimônias. Todas as quintas-feiras ele apresenta a Batalha do Conhecimento na Fundição Progresso, na Lapa. O evento procura promover todos os elementos da cultura Hip Hop. Conversamos um pouco com ele, que foi integrante do grupo Quinto Andar, sobre o trabalho dos MC´s e sobre a sua relação com as palavras. Há quanto tempo acontece a Batalha do Conhecimento? Como surgiu esse projeto e desde quando você o apresenta? Acontece há pouco mais de 6 meses... o projeto surgiu a partir de uma parceria minha com o CIC (Centro Interativo de Circo), que já vem sendo firmada há algum tempo... tive a idéia do projeto pelo motivo de não concordar muito com a forma tradicional de batalhas de rap em que 2 MC´s, que muitas vezes nem se conhecem, ficam trocando ofensas para a “alegria” do público que decide quem foi “melhor”... eu faço parte do Hip Hop e acredito que o fundamento da cultura vai além disso... acredito que os MC´s devam passar mensagens e conhecimento... O projeto surgiu a partir disso, em conjunto com alguns amigos e a organização do CIC, fomos formulando o projeto com a inclusão dos filmes, debates, incentivo à forma de trabalho independente, etc... Apresento desde a primeira edição junto com todos os amigos que colaboram... Qual a diferença desta para outras batalhas? apenas isso... existe um ditado de que gosto muito... os verdadeiros reconhecem os verdadeiros... Quando se compõe no improviso, no calor da batida, o que estaria guiando sua criação? “A humildade relativa do ar...” (MC Anastácio) Dá onda? Quando o bagulho é bom, com certeza... Quanto do sucesso de um MC depende de Poderia dizer quem são para você, entre sua performance e atitude no palco? veteranos e novas revelações, os melhores Acredito que o sucesso do MC´s de hoje? MC depende da sua sinceridade, sua Mano Brown, Sabotagem, responsabilidade e sua naturalidade... Gutierrez, MR. Catra, Kamau, Emicida, GOG, Black Alien, Gil, Marcelo D2... Qual a importância dos últimos versos, na hora em que a batida pára? Um MC que não tenha boas chaves de ouro pode pôr Algum conselho final para quem deseja tornar-se um bom MC? sua apresentação a perder? Se você sente mermo que isso é Um bom MC não fica pensando É só tirar suas próprias conclusões... seja bem- vindo toda quinta feira no nos últimos versos... manda seu conteúdo pra você... nunca esqueça o amor que CIC, na Fundição Progresso, a partir de em tempo integral... o público sabe te fez querer ser parte disso... seja real independentemente do que os outros reconhecer isso... 17h30... pensem... se você não for você estará traindo os fundamentos da cultura... Paz pra todos ... procure entender O MC é um artista da palavra? Qual a sua Um MC precisa ler, ou a oralidade já é seus inimigos... suficiente para compor seus versos? relação com as palavras? Um só caminho... Cada um adquire experiência à sua Acredito que também... minha relação com as palavras é de respeito... maneira... eu costumo ler.. mas no meu quero cada vez mais ter o conhecimento caso acho que o que mais me acrescenta Se você quer saber mais sobre o trabalho de para empregá-las da melhor forma, nos é ouvir... a oralidade é natural... bem Marechal ou sobre a filosofia Hip Hop visite: simples mermo, irmão... seja você... www.myspace.com/mcmarechal momentos certos... 11 ADMIRÁVEL COXEAR NOVO (A PERNA DE CASSANDRA) Quando caminho, apenas meio Passo dou. O outro é obra do estorvo. Assim, cada estrada que não veio Saúda-nos com o medo do novo, O medo, de novo. Qual pressa que nada! Eu e meu camarada nos entendemos Às maravilhas. Diante de terrenos Movediços, seguimos nossas pisadas. A perna fantasmagórica toma A dianteira e, como bengala, Tateia o lodo onde segura, se entrona Para enfim avisar-me onde resvala. Paro, medito, mudo o rumo e sigo. Para trás, mais uma vez — onde o medo é antigo. Gustavo Gadelha 12 O primeiro poeta Qual foi a primeira palavra proferida? Imagino o primeiro homem, ainda meio macaco, tentando exprimir algo completamente novo, que os grunhidos habituais simplesmente não conseguiam alcançar. Dirão todos que hoje vivemos uma peste da linguagem, uma fragmentação completa em que as palavras não têm mais significado e em que cada discurso, cada conceito, cada Deus e cada sujeito devem ser desconstruídos e esmagados com um martelo. Mas esquecem-se eles desse primeiro marco, desse anseio inaugural pela unidade. Em que modulação sonora diferenciou-se ele dos outros? Era “ele” um homem ou uma mulher? O que pretendia ele dizer? Pretendia ele descrever uma visão? Ou um pensamento? Ou um sabor que seus companheiros desconheciam completamente? Será que queria conquistar uma parceira disputada? Ou dar um conselho a seu filhote, ainda no colo? Queria ele falar do passado, do presente ou do futuro? Ou quem sabe dos três, de algo eterno e além do tempo e do espaço? Será que, como Narciso, foi a perplexidade ante a sua própria imagem? Ou, como Arquimedes, queria ele anunciar uma nova descoberta? Ou ainda, como Hamlet, questionava ele a validade das suas próprias ações? Terá sido a percepção da nossa pequenez diante de um universo indiferente? Ou algo tão mais simples quanto a percepção da beleza das coisas em seus mínimos detalhes? Será que ele se deu conta de sua invenção? Ou era somente algo que necessitava para falar de uma dor completamente inédita e insuportável, cujos desdobramentos e complexidade seus companheiros jamais poderiam reconhecer: a dor solitária de ser, pela primeira vez, humano. Mais do que o primeiro ser humano, este foi o primeiro poeta. Paulo Gravina Palavras profanas lhe interpelam os lábios quentes — tentam calar-se, mas as letras regurgitam sobre meu corpo estendido. Minhas mãos retraem-se, num instinto defensivo. Meu corpo estremece e grita tantas outras palavras cuspidas, como sopa de letrinha que se espalha de forma desordenada na vasilha quente. As almas esfaqueiam-se como se fosse falta do que fazer. Agora, invento outras formas de fazer, como buscar uma outra parte de mundo, escondida em algum lugar longe da minha vista. Às vezes é melhor ficar calado do que arrebentar as cordas vocais e perder a música a cantar nos seus ouvidos. Diana Sandes