IMPRESSIONISMO EM LITERATURA: Bel
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IMPRESSIONISMO EM LITERATURA: Bel
IMPRESSIONISMO EM LITERATURA: Bel-Ami de Guy de Maupassant Kedrini Domingos dos SANTOS RESUMO: Cada poeta percebe e aborda a realidade de maneira distinta. Uns valem-se das tintas, outros da voz, e ainda há aqueles que usam a palavra para criar, a partir de sua sensibilidade, mundos encantados. O artista transcende a realidade e, por meio da linguagem, leva o leitor/espectador a compartilhar de sensações e emoções permitidas apenas nesse universo mágico. Nesse sentido, acreditamos que o romance Bel-Ami, de Guy de Maupassant, compartilha com a estética impressionista um determinado modo de ver e sentir o mundo, ao distanciar-se dos traços miméticos em evidência, e que caracterizam boa parte das obras da época em que o livro foi escrito, para retratar a “realidade” a partir de suas impressões. PALAVRAS-CHAVE: Impressionismo. Bel-Ami. Maupassant. ABSTRACT: Each poet perceives and addresses the reality differently. Some avail themselves of the paints, the other voice, and there are those who use Word to create, from their sensitivity, enchanted worlds. The artist transcends reality and, through language, takes the reader viewer to share feelings and emotions allowed only in an unreal universe, magical. We believe that the novel Bel-Ami, Guy de Maupassant, shares with the Impressionist aesthetic, a certain way of seeing and feeling the world, to distance themselves from mimetic traits and strategies that characterize much of the time that works the book was written, and picturing the world, "reality" from their impressions. KEYWORDS: Impressionism. Bel-Ami. Maupassant. Realidade, linguagem e metáfora Aristóteles (1964) discute, em sua Arte poética, sobre a natureza da poesia. Para ele, as diversas modalidades artísticas correspondem a imitações, as quais se distinguem umas das outras por utilizar meios distintos na realização dessa imitação, bem como por abordar de diferentes maneiras o objeto a ser imitado. Segundo ele, uns imitam por Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista (UNESP). meio de cores, outros pela voz, havendo, ainda, aqueles que o fazem pela palavra. Quem decidirá o que será imitado e o modo de fazê-lo é o artista. Mas não cabe a ele contar as coisas que realmente aconteceram: esta é função do historiador; ao poeta cabe contar aquilo que poderia ter acontecido, tudo conforme as regras de verossimilhança (ARISTÓTELES, 1964). Vale lembrar, ainda, que o “real” nem sempre será verossímil, ou seja, há momentos em que os acontecimentos reais parecem tão inverossímeis e absurdos que é custoso crer que certos fatos realmente ocorreram. Nesse sentido, verifica-se que a arte em geral, e a literatura em particular, liga-se a algo que transcende a perspectiva de “real”; ou seja, mesmo partindo da realidade, a arte não tem obrigação de ser fiel a ela. Como não há apenas uma realidade, mas realidades várias, projetadas de acordo com o ponto de vista de que é observada, o artista se ligará àquela que mais lhe convier, podendo ligar-se mais a uma realidade externa ou tratar do que vai no interior do ser-humano. Assim, o artista, trabalhando com a palavra, com o gesso ou com as tintas, transforma em “realidade” o que acontece em seu interior, e a literatura, por meio de uma linguagem metafórica, cria extraordinários mundos, com personagens e lugares que, mesmo lembrando o mundo em que vivemos, correspondem unicamente a imagens: reflexos reversos deste mundo ou mundos irrefletidos, construídos a partir da imaginação de cada artista. Nesta perspectiva, a literatura dá a impressão de que imita o real, quando a narrativa, por exemplo, “imita” as pessoas em ação: suas vidas, seus infortúnios, etc. Entretanto, sendo o romance um código que manipula e leva o leitor à ilusão, pode imitar apenas a si mesmo (BARTHES, 1987). Assim, palavra e coisa, neste contexto, são instâncias distintas, visto que a mimese nunca é uma reprodução direta da realidade, tendo em vista que é por meio de marcas lingüísticas que se dá o contato com aspectos externos à leitura (ALTER, 1998). Faraco (2003: 48), ao apresentar algumas das principais idéias discutidas por Voloshinov, Medvedev e Bakhtin, integrantes do Círculo de Bakhtin, aponta uma das principais questões abordadas por eles: “[...] nós, seres humanos, não temos relações diretas, não mediadas, com a realidade.” Como ele demonstra, essas relações são mediadas pelas “linguagens, signos e significação” e o mundo em que vivemos só tem sentido a partir da mediação dessas instâncias. Todavia, a partir da exposição das idéias do Circulo de Bakhtin por Faraco, verifica-se que estes signos não “refletem” a realidade tal como ela é em sua essência, mas realizam o que os textos do Circulo chamam de “refração”, ou seja, o ser humano, através dos signos, constrói diversas interpretações desse mundo, e, por conseguinte, várias “verdades”. Isso acontece devido à diversidade de experiências e “praxis” dos grupos humanos. Entende-se, conforme as idéias do Circulo apresentadas por Faraco, que o signo é social, pois é criado e interpretado dentro de um “intercâmbio social”. Cada um dos grupos humanos atribui valores diferentes “[...] aos entes e eventos, às ações e relações nelas contidas [...]” e produzem diferentes modos de “dar sentido ao mundo” (FARACO, 2003: 52); modos que se “materializam” e se “entrecruzam”, inclusive, “no mesmo material semiótico”. Um signo pode ser utilizado por diferentes grupos sociais e nesse sentido ele é entendido como “plurívoco”; por esse motivo, Voloshinov recusa a dicotomia tradicional denotar/conotar entendendo que ela hierarquiza significados do signo e pressupõe uma semântica universal. Segundo Cassirer (2003), linguagem e mito estão submetidos às mesmas ou análogas leis espirituais de desenvolvimento, e possuem como ponto comum o pensar metafórico. A metáfora antiga, como ele indica, era uma questão de necessidade: tudo era tratado de forma concreta, cada palavra se transformava em uma figuração mítica concreta – deus ou demônio – e um deus deveria ser reconhecido nas mais distintas apresentações como sendo um e sempre o mesmo deus. Já a metáfora moderna torna-se uma atividade deliberada do poeta, ou seja, a transposição de uma palavra que passa de um objeto a outro dá-se de forma consciente: neste sentido, o espírito cria pela palavra. “Mito, linguagem e arte formam inicialmente uma unidade concreta ainda indivisa [...]”, e se tornam, com o tempo, modos independentes do espírito; entretanto, a “mesma animação mítica” experimentada pela palavra também é partilhada pela imagem e toda forma de representação artística. Nesta perspectiva mágica de mundo o “encantamento verbal” é sempre acompanhado pelo “encantamento imagético” (CASSIRER, 2003: 30). A metáfora abrange a substituição consciente da denotação por um conteúdo de representação mediante o nome de outro conteúdo que se assemelha ao primeiro em algum traço, ou tenha qualquer analogia indireta. Ocorre, assim, uma transposição, com “igualização” deliberada de conteúdos diversos. Pintores-poetas A partir destas questões, e entendendo que a arte aborda o objeto de diferentes maneiras, conforme a percepção do artista, seu modo de ver e sentir o mundo, é possível pensar no impressionismo: corrente cujos pintores, no final do século XIX, se esforçam por exprimir, em suas obras, as impressões que suscitam os objetos e a luz, e que designam, segundo Serullaz (1965), um sistema de pintura que busca exprimir a impressão tal como ela foi experimentada. O pintor impressionista quer representar os objetos segundo suas impressões pessoais, sem se preocupar com regras anteriormente colocadas. Para eles, dar a impressão de real corresponde a mostrar a atmosfera existente entre os objetos, resultado obtido, antes de tudo, pela decomposição das suas cores. Pensavam desta maneira porque acreditavam ser impossível ver muitos detalhes em uma paisagem muito iluminada, e, nesse sentido, compreendiam que as pinturas que apresentavam tantas minúcias, correspondiam não ao que eram realmente, mas àquilo que queria ver o pintor. Para eles tudo estava relacionado com a luz, e queriam, principalmente Monet, documentar instantes nos quais a luz refletisse em algum objeto, tentando captá-los com precisão. Pensavam em instantes, porque constataram que um objeto muda de cor ao longo do dia, conforme a incidência dos raios solares; Monet pensava, também, que as estações do ano influenciavam essas cores. Mesmo a escuridão, para os impressionistas, permitia que se visse algo, tendo em vista que ela nunca é absoluta. A idéia era “fixar um momento do momento” (BALZI, 1992). O Impressionismo, nova maneira de pintar e ver (olhar) as coisas, influenciou direta, ou indiretamente, todas as outras artes, especialmente a música, a escultura e a literatura. Na literatura, a figura de linguagem “sinestesia”, ou “metáfora impressionista” ocorre a partir da união de palavras para causar a sensação desejada, o que permite reconstruir uma determinada sensação ou imagem (BALZI, 1992). Há uma gama de quadros que podem ser descritos pelo termo “impressionista”, não sendo, pois, possível, encontrar uma definição que abarque todos. Entretanto, algumas características podem ser identificáveis na paisagem impressionista como: possuir tamanho relativamente pequeno, ser composto, geralmente, ao ar livre, diante dos motivos representados; uso de cores quase sempre brilhantes e contrastantes com pincelada livre e intuitiva. Diferentemente da maioria dos paisagistas que produziam, até então, obras de grandes dimensões em seus estúdios, dando-lhes acabamento perfeito para exposição, os impressionistas passaram a tratar suas pinturas, realizadas ao ar livre, como obras completas, dando maior importância à espontaneidade e ao frescor do registro da natureza. Ao pintar ao ar livre, esses artistas aprenderam a distinguir as menores mudanças nos efeitos do sol e das nuvens, mas tal método tinha por agravante o fato de ser difícil encontrar novamente a mesma combinação de condições climáticas, sendo, assim, impossível captar o “instante” dos efeitos naturais. Cada pincelada tinha, para os impressionistas, seu valor. Cada uma delas podia ser entendida como elemento distintivo da criação do ritmo e da configuração da obra. Sua principal característica consiste na flexibilidade: o manejo do pincel era adaptado à representação e todo tipo de textura (reflexos na água, possuíam em Monet, por exemplo, pinceladas independentes, vigorosas) (SANCHEZ; ALMARZA, 2008). Essa técnica foi refinada pelos impressionistas a fim de plasmar melhor a variedade da natureza e organizar a forma da pincelada sobre a superfície pictórica, ou seja, esses pintores tentavam destacar com o pincel certas características da superfície e por isso sempre deixavam as pinceladas individuais bem visíveis sobre a superfície pictórica. Com isso, eles contrariavam as exigências de um acabamento perfeito dominado pela pintura de então, e imprimiam um caráter de espontaneidade e imediatismo como valor positivo no aspecto final de um quadro. O método impressionista, como captação do momento, do fragmentário, decorre da teoria de que os fenômenos nunca são os mesmos, conforme ensina Heráclito de Éfeso (540-470 a.C). A natureza é vista em sua dinamicidade e impermanência. O que o pintor impressionista procura captar é a essência do momento, interpretado pelo estado de alma do artista. Como diz Hauser (1995: 897), [o] domínio do momento sobre a permanência e a continuidade, a sensação de que cada fenômeno é uma constelação fugaz e jamais repetida, uma onda que desliza no rio do tempo, o rio em que “não se pode entrar duas vezes”, é a mais simples fórmula a que o impressionismo pode ser reduzida. Todo o método do impressionismo, com seus expedientes e ardis, inclina-se, sobretudo, a dar expressão a essa perspectiva heraclitiana e a sublinhar que a realidade não é um ser mas um devir, não uma condição mas um processo. Para os impressionistas não é possível representar sobre uma superfície plana bidimensional uma realidade que é tridimensional, pois todo quadro será sempre uma encenação da realidade, tendo em vista a impossibilidade de se pintar o real. Por entenderem que as cores dependem da luz do momento incidida sobre tais objetos, acreditavam que as coisas e objetos não tinham uma única cor. Daí a importância dada à atmosfera, visto que, para eles, a única maneira de dar a impressão da realidade seria conseguir representar a atmosfera existente entre a paisagem e o espectador. Para pintar essa atmosfera, os impressionistas buscavam fragmentar no quadro, com pequenas pinceladas de outras cores, a cor do objeto que se está a representar para que o espectador volte a compô-la. Isso porque as cores dos objetos mudam com o passar do tempo (árvores, veleiros e outros). Para eles a vantagem de decompor a cor consistia justamente no fato de que é através deste processo que a impressão da atmosfera se produzirá. Esses pintores buscavam aguçar a vista para captar todos os matizes daquele novo instante e, assim, o tema da paisagem se faz presente, como palco principal e não apenas como fundo para que as figuras não ficassem flutuando na tela branca. Temos, desse modo, a presença de rios, regatas, montanhas... A reprodução de camponeses, trabalhadores também se faz evidente, colocando fim à pintura de corte. Os quadros impressionistas remetem a uma hora precisa do dia, inserida em determinada estação do ano, em um lugar especifico. Outro aspecto relevante a ser observado consiste na retomada, pelos impressionistas, das teorias de Isaac Newton sobre a reflexão das cores. Newton partiu da observação do arco-íris. Ele "reproduziu" um arco-íris dentro de casa, usando prismas e lentes, nos quais fez incidir a luz do Sol. A faixa colorida que obteve ao separar as cores é chamada de "espectro solar", mas nem todas as cores são visíveis aos nossos olhos, como por exemplo, o infra-vermelho e o ultra-violeta. Assim, o que vemos é o espectro das sete cores visíveis: violeta, índigo, vermelho, laranja, amarelo, verde e azul. (SILVA; MARTINS, 1996) A cor-luz diz respeito à reflexão dos raios luminosos. Ou seja, a cor é uma sensação provocada pela luz sobre o órgão da visão. A cor percebida pelos olhos é aquela refletida pelo objeto no qual o raio solar incide. O branco, assim, consiste na reunião de todas as cores, ao passo que o preto seria a ausência de cor. Desse modo, a cor-luz é a própria luz, que pode se decompor em muitas cores. Já a cor-pigmento, substância material, refere-se às tintas, pigmentos. Como não é possível pintar com luz, isto é, com cores óticas, utilizam-se, então, os pigmentos. As cores primárias na cor pigmento são: vermelho, amarelo e azul, e as cores secundárias na cor pigmento são laranja, violeta e verde. Os impressionistas não se interessavam pela “cor real” das coisas. Ao misturar as cores básicas eles conseguiam representar a “realidade” de um instante de luz; identificaram e traduziram para pigmentos as cores do espectro solar. Essa impressão da realidade se fez pelo modo de misturar as cores. Monet buscou se aperfeiçoar na arte de “ver”, e era conhecido como um grande olho, devido a sua capacidade de perceber as menores sutilezas nas mudanças de cores. Outro aspecto observado acerca do impressionismo corresponde ao divisionismo, o qual fica a cargo do pintor, e consiste em justapor sobre a tela pinceladas de cor “pura”. Se o artista quer a cor violeta, usará a paleta apenas para apoiar o vermelho e o azul; se quiser o marrom usará a paleta para misturar o azul com o amarelo e o vermelho com o amarelo, para depois justapor sobre a tela as pinceladas do verde e do laranja resultantes (BALZI, 1992). O modo de olhar o quadro também é importante e fica a cargo do espectador. Consiste em olhar o quadro de longe, no mínimo três vezes a medida maior do quadro, entrefechando os olhos, e se possível eliminando do cone visual tudo o que estiver fora da tela. Neste momento produz-se a mistura ótica da cor, a qual depende da participação do espectador para completar o resultado. É ela uma das grandes contribuições do impressionismo (BALZI, 1992). Quando se olha um desses quadros de perto, observa-se que as figuras perdem definições, sendo possível ver apenas manchas de cores. Se observarmos, por exemplo, quadros como Remadores no rio Chateau ou La Grenouillère de Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), verificaremos que quando se chega perto da tela as figuras e os objetos perdem definição e só vemos manchas de cores, como se estivéssemos diante de um quadro abstrato, com muitas manchas e borrões sobre a tela. Balzi (1992) dirá que, na literatura, a figura de linguagem sinestesia: [...] ou “metáfora impressionista” se aproxima do divisionismo na pintura. Quando as palavras e suas combinações não são suficientes para descrever com exatidão certos momentos de uma imagem ou algumas nuanças de um sentimento, ele [o poeta] escolhe palavras que, mesmo não tendo relação lógica entre si, quando unidas podem gerar no inconsciente do leitor a sensação desejada. Assim como duas cores se unem na retina do espectador para formar uma terceira. (BALZI, 1992; 50). Schapiro (2002) diz que no período naturalista as obras consideradas impressionistas preocupavam-se especialmente com percepções individuais, como a personagem vê e sente o ambiente e as outras pessoas; como ela aparece para os outros; que estímulos influenciam suas ações e por quais gestos e aparências ela manifesta sentimentos e pensamentos. Outro aspecto importante na arte impressionista, presente na literatura, corresponde ao descritivismo, o qual corresponde à suspensão do ritmo narrativo para representar a impressão da realidade. Isso pode resultar, por vezes, em uma narrativa lírica. Os impressionistas, por sua vez, ainda considerando a observação e a análise, atém-se às variações a que se sujeitam as coisas e os homens no tempo (sobretudo) e no espaço. Apresentam-se, assim, as variações ou as verdades [...] O Impressionismo não absolutiza; ao contrário, procura interpretar a realidade, relativizando-a, descrevendo-a a partir de todos os seus ângulos possíveis, caleidoscopicamente, razão pela qual a arte impressionista (pictórica, literária, musical, etc.) tem como uma de suas características mais evidentes a fragmentação, o divisionismo, ou dito com mais precisão no que toca ao Impressionismo pictórico, o pontilhismo. [...] No que se refere à descrição impressionista, caracteriza-a o aspecto eminentemente visual, plástico, sensorial, que escapa à romântica, à realista e mesmo à naturalista. (MARTINS, 2003: 37). O escritor impressionista refere-se à intuição e ao império dos sentidos (audição, visão, tato, olfato, paladar). É por meio dos sentidos que ocorre o registro das impressões, emoções e sentimentos. Em vez das coisas, tem-se a sensação das mesmas. Escritores em cujas obras apresentam aspectos impressionistas usam metáfora, símile, linguagem colorida, sonora; figuras de linguagem como metonímia, sinédoque, anacoluto, hipálage. Como indica Gonçalves (1994), a sensação visual é a meta dos impressionistas e para Monet a percepção do reflexo é tão concreta como a percepção da coisa em si. Poeta-pintor A partir destas observações podemos pensar na presença de alguns aspectos impressionistas no romance Bel-Ami, de Guy de Maupassant, principalmente no tocante às impressões dos personagens, descritas pelo narrador. Além disso, algumas cenas da obra podem ser vistas como uma série de telas pintadas por um impressionista, devido à riqueza das percepções de cor, luz, atmosfera, contrastes sutis do movimento na paisagem sempre em mutação. O contista e romancista Guy de Maupassant (1850-1893), autor de Bel-ami, e contemporâneo do movimento impressionista, não fez teoria nem crítica literária. Seus conceitos literários encontram-se expostos, principalmente, em crônicas jornalísticas, da qual pode-se destacar “Le roman”, introdução a seu romance Pierre et Jean (1888). Este escritor manterá certa distância tanto do naturalismo quanto de um estudo psicológico abusivo; tanto do romance objetivo, quanto do romance de análise pura (MAUPASSANT, 2000). Para ele o romancista não saberia dar ao leitor uma reprodução exaustiva do real, pois seria impossível contar tudo. Ao tirar os elementos significativos da realidade, o bom romancista não precisa transcrever a totalidade, mas precisa dar a completa ilusão do real de modo a atingir uma “[...] vérité choisie et expressive”. Ainda segundo o escritor, o realista, se ele realmente for um artista, buscará mostrar, não a fotografia banal da vida, “[...] mais à nous en donner la vision plus complète, plus saisissante, plus probante que la réalité même.” (MAUPASSANT, 2000, p.821). Realistas de talento, segundo Maupassant, deveriam se chamar, sobretudo, “Illusionistes”, visto que, mais do que analisar os sentimentos das personagens, seria preciso percebê-las como um “peintre qui fait notre portrait [et] ne montre pas notre squelette”. O escritor, enquanto ilusionista, deve sugerir apenas, deixando ao leitor a função de reconstruir seu objeto e entender seu sentido profundo e oculto. Em “Le roman”, Maupassant apresenta ainda alguns princípios artísticos, os quais permitem perceber sua obra, não pelo viés naturalista como querem muitos críticos, mas observando como o real se afigura a esse escritor, tendo grande relevância a sugestão sobre a descrição: podemos perceber, e pensar, em aspectos da arte impressionista ao olhar sua obra. Maupassant busca a simplicidade ao escrever suas narrativas, sem a presença de um vocabulário “bizarre, compliqué”. Nesse contexto, a imagem ocupa um papel muito importante, pois acentua os efeitos do real antes dos efeitos estéticos, “[...] engageant le sens du texte, éclairant l’intellectuel ou l’abstrait par le concret.” (MAUPASSANT, 2000, p.821). Nesse sentido, seu projeto artístico não visava reproduzir integralmente o real, mas dar, ao leitor a “illusion complète du vrai”. O escritor utiliza o eufemismo, a alusão, a reticência, a elipse, a repetição. Recorre, também, à metáfora e à comparação, as quais ligam estreitamente a natureza e os sentidos de modo que “[...] l’impressionnisme se consomme ici dans une exacte et immédiate substitution de l’impression à apparence concrète et banale.” (MAUPASSANT, 2000, p.822). Sua obra, que olha de um modo diferente a sociedade contemporânea e seus costumes, é marcada pela desilusão, influência exercida pela filosofia pessimista de Schopenhauer. Como indica Kon (2009, p.18), Maupassant “[...] é um homem sem ilusões, condenado pela percepção arguta da transitoriedade do mundo e do homem, perpassado pela vivência da morte.” Embora a obra de Maupassant tenha sido considerada “datada e fora de moda” (ARTINIAN, 1955), devido à sua linguagem e a seus temas, ela é, atualmente, muito apreciada e estudada. Dentre seus principais leitores estão cineastas como Renoir, Daquin, Astruc, ou Santelli. Eisenstein escreve, inclusive, algumas observações sobre o livro Bel-ami, de Guy de Maupassant, a fim de ilustrar uma imagem do tempo presente naquele romance, o que lhe permite pensar acerca da demarcação de sentido entre representação e imagem, visto como o princípio da montagem (ANTUNES, 2008). Encontramos em Bel-Ami, romance publicado em 1885, a trajetória de George Duroy. Este personagem encontra por acaso, nas ruas de Paris, Forestier, antigo soldado e companheiro na guerra da Algéria. Por intermédio deste, Duroy começa a trabalhar no jornal La vie française. Como estava muito doente, Forestier sai de Paris e se estabelece-se em Cannes, a fim de restabelecer a saúde, o que não acontece. Madelaine, esposa de Forestier, chama, por sua vez, Duroy, conhecido também como Bel-Ami, para acompanha-la nos últimos dias de vida do amigo. Algum tempo depois da morte de Forestier, Duroy casa-se com Madelaine, passo inicial para sua projeção financeira e profissional. A história é contada por um narrador em terceira pessoa, a partir do ponto de vista do personagem Duroy. A focalização muda algumas vezes, mas na maior parte do tempo acompanhamos as observações e apreensões sensoriais deste personagem. Ele observa tudo, mas também é muito observado. Nesta narrativa tudo está relacionado à sua visão e à sua percepção dos acontecimentos e detalhes. Os trechos apresentados a seguir correspondem ao episódio que descreve os dias que antecederam a morte de Forestier: Em frente deles, a costa semeada de cilas descia até a cidade que estava deitada ao longo do rio em semicírculo, com sua cabeça à direita ao lado da represa que a dominava, acentuada ainda por uma antiga torre com sino para tocar a rebate, e seus pés à esquerda, na ponta da Croisette, em frente às ilhas de Lérins. As ilhas pareciam duas manchas verdes, na água toda azul. Dir-se-ia que flutuavam como duas folhas imensas, tão chatas pareciam do alto. E muito ao longe, fechando o horizonte do outro lado do golfo, acima da represa e da torre, uma longa série de montanhas azuladas desenhava sobre um céu brilhante uma linha bizarra e encantadora de cimos, ora arredondados, ora retorcidos, ora pontudos, e que acabava por um grande monte em pirâmide que mergulhava em pleno mar. A Senhora Forestier indicou: - Olha o Estéril. O espaço, atrás dos cimos sombrios, estava vermelho, dum vermelho sangrento e dourado que o olhar não podia sustentar. Duroy sofria, a pesar seu, a majestade desse fim de dia. (MAUPASSANT, 1981: 146, grifo nosso). Neste trecho vemos alguns motivos e cenários que manifestam a sensibilidade impressionista, especialmente em Monet: ilhas, rio, horizonte, montanhas, céu, mar, pôr do sol. Alguns diálogos são entremeados com paisagens e efeitos transitórios de cor que evocam uma atmosfera pictórica. Por vezes, as pinturas impressionistas são descritas como poética (tendo em vista o modo como os temas poéticos são tratados na obra): vemos a contemplação da cor, luz, movimento, textura. Sobre isso Schapiro dirá: A pintura impressionista é poética, então, em dois aspectos, ambos em harmonia com o conteúdo e o estilo da poesia contemporânea. Ela representa uma aparência momentânea do ambiente como um correlato ou fonte do sentimento do espectador; tece uma substância artística de tons raros, mas observados com exatidão, como a escolha de palavras pelo poeta. As unidades menores das palavras – as vogais e consoantes – e seu agrupamento rítmico são como as pinceladas e as silhuetas decorativas com pulsações e projeções vagas que suavizam o todo e reduzem os contrastes mais fortes. (SCHAPIRO, 2002: 294). Uma característica comum ao Impressionismo e à literatura é o interesse pelo ambiente como um fator que influencia o estado dos personagens: o ambiente não é apenas o cenário onde ocorrem as ações: isso pode acontecer, por exemplo, quando o narrador descreve uma paisagem com clima em transformação: luz do sol, sombra, cores salpicadas, agitação da natureza, ou calma. No trecho que segue, os três personagens – Duroy, Madelaine e Forestier – encontram-se no quarto do moribundo, em um silêncio aterrador: Houve um longo silêncio; um silêncio doloroso e profundo. O ardor do sol poente diminuía lentamente; e as montanhas tornavam-se negras no céu vermelho, que escurecia. Uma sombra colorida, um começo de noite que guardava clarões de braseiro moribundo entrava no quarto, parecia tingir os móveis, as paredes, as tapeçarias, os cantos, com um tom misturado de escuro e púrpura. O espelho da lareira, refletindo o horizonte, parecia uma placa de sangue.” A senhora Forestier não se mexia, sempre de pé, de costas para o quarto, o rosto contra a vidraça. E Forestier pôs-se a falar com uma voz sacudida, sufocada, pungente de escutar-se: Quantos pores-do-sol verei ainda?... Oito... Dez... Quinze ou vinte... Talvez trinta, não mais... Vocês têm bastante tempo, vocês... Eu, é o fim... E tudo continuará... Depois de mim [...] Tudo o que vejo lembra-me que não mais o verei dentro de alguns dias... É horrível... Não verei mais nada... Nada do que existe [...] (MAUPASSANT, 1981: 147-148, grifo nosso). A descrição do pôr-do-sol e da paisagem vem refletir o estado de espírito dos personagens naquele momento, bem como representar metaforicamente a morte, que entrava pelo quarto com sua sombra, tingindo os móveis parecendo ir ao encontro de Forestier. O moribundo, a fim de afastar a morte de si, reclama a presença do lampião, da luz, para livrá-lo da escuridão e, por conseguinte, da morte: E Duroy de repente lembrou-se o que lhe havia dito [o poeta] Norbert de Varenne, algumas semanas antes: ‘Eu agora vejo a morte tão perto que tenho muitas vezes vontade de estender o braço para repeli-la... Descubro-a em toda parte. Os animaizinhos esmagados nos caminhos, as folhas que caem, o fio branco percebido na barba dum amigo, me devastam o coração e me gritam: ‘Ei-la’’ [...] E uma angustia atroz entrava nele como se sentisse muito perto, sobre a poltrona onde arquejava o homem, a hedionda morte ao alcance da mão [...] A noite, agora, espalhava-se pelo quarto como um luto prematuro que tombasse sobre o moribundo. Somente a janela era inda visível, desenhando em seu quadrilátero mais claro a silhueta imóvel da moça. E Forestier perguntou com irritação: - Como é, hoje não trazem o lampião? Eis o que se chama cuidar dum doente. (MAUPASSANT, 1981: 148-149, grifo nosso). Logo que acabaram de jantar, Duroy, com o pretexto de fadiga, retirou-se para o quarto, e, apoiado à janela, ficou olhando a lua cheia no meio do céu, como um globo de luz enorme, lançar sobre as paredes brancas das vilas a claridade seca e velada e espalhar sobre o mar uma espécie de escama de luz móvel e doce. (MAUPASSANT, 1981: 149, grifo nosso). Todos esses efeitos oferecem um contraponto ao fluxo do sentimento, ao desejo, às respostas dos indivíduos aos estímulos mutáveis, aos efeitos difundidos de uma mudança súbita na consciência. Assim, a natureza (com seus ruídos, cores, movimentos, texturas) aparece como uma metáfora daquilo que é instável no sentimento e pensamento do personagem. Uma simples análise estilística acerca do emprego do verbo “ver” ou afins indica sua recorrência em praticamente todas as páginas. Esse aspecto remete-nos às pinturas impressionistas, em que o olhar do artista – o seu ponto de vista – e a maneira diferente de perceber a luz e a atmosfera do ambiente eram essenciais para se captar a impressão do momento. As cores como azul, vermelho, branco, aparecem constantemente na narrativa e a partir de alguns teóricos sobre cores como Goethe e Kandinsky podemos pensar um pouco o significado das cores presentes em Bel-ami. Goethe (1993: 132), ao teorizar sobre as cores, dirá a respeito do azul que “[...] do mesmo modo que o céu, as montanhas distantes parecem azuis, uma superfície azul também parece recuar diante de nós. O azul nos dá uma sensação de frio, assim como nos faz lembrar a sombra.” Ainda sobre o azul, Kandinsky (2000: 92) dirá que nele se encontra o movimento de distanciamento do homem, além do movimento dirigido para o seu próprio centro. “A tendência do azul para o aprofundamento torna-o precisamente mais intenso nos tons mais profundos e acentua sua ação interior.” Goethe (1993: 132), acerca do vermelho, diz: “[...] o efeito dessa cor é tão singular quanto sua natureza. Proporciona tanto uma impressão de seriedade e dignidade quanto de benevolência e graça. A primeira ocorre no seu estado escuro e condensado; a última, no claro e diluído. Um ambiente desta cor é sempre grave e solene.” E Kandinsky (2000: 97), também discutindo sobre as cores, diz que “[...] o vermelho tal como o imaginamos, cor sem limites, essencialmente quente, age interiormente como uma cor transbordante de vida ardente e agitada. [...] Apesar de toda sua energia e intensidade, o vermelho atesta uma imensa e irresistível potência, quase consciente de seu objetivo.” Considerações finais Maupassant, conhecido como um “[...] contista exímio e perito em descrição, quer seja da natureza, quer seja dos gestos humanos.” (KON, 2009: 17), oferece ao leitor uma narrativa que não pode ser vista apenas como naturalista, visto que “[...] sua lente focaliza o peculiar, o singular, para revelar o universal, aquilo que move os homens: suas paixões e seus sofrimentos.” (KON, 2009: 17). Como tentamos observar, seu romance apresenta características que concorrem para uma aproximação da estética impressionista, ao retratar o mundo, a “realidade”, a partir de suas impressões. O “realismo”, nesta obra, é marcado por alguns traços particulares como o processo de diluição de personagens e espaços, o cromatismo e a subjetivação, os quais contribuem para a produção de um “efeito impressionista”. O jogo de luz e sombra, bem como as pinceladas de tintas coloridas, encanta o leitor, não porque reproduz ou imita a realidade tal qual ela se nos apresenta, mas por restabelecer, a partir de suas imagens - estas construídas por meio de metáforas criadoras, expressas através das palavras -, o equilíbrio entre o mundo dito “real”, externo a nós, e um outro, tão real quanto o primeiro, caracterizado pelos sentidos e pelas emoções. Neste novo mundo criado através das palavras, somos levados a refletir sobre a vida, sobre a brevidade de tudo o que existe, momentos únicos que não se repetirão, singulares em sua existência, assim como as águas de Heráclito de Éfeso. Diante da impossibilidade de mostrar e descrever o real em todos os seus aspectos, o artista impressionista ensina-nos a olhar os detalhes, a fim de distinguir os diferentes matizes da vida. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Introdução e notas de Jean Voilquin e Jean Capelle. Tradução Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: DIFEL, 1964. ALTER, R. A mimese e o motivo para a ficção. In: ______. Espelho crítico. São Paulo: Perspectiva, 1998. p.127-146. ANTUNES, Y. As dobras da imagem. Ouvirouver, Uberlândia, n.4, p.188-219, 2008. ARTINIAN, A. Pour et contre Maupassant: enquête internationale. Paris: Librairie Nizet, 1955. 147 témoignages inédits. BALZI, J. J. O impressionismo. São Paulo: Ática, 1992. BARTHES, R. O efeito de real. 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