UMA LEITURA COMPARATIVA DOS CONTOS LE CHAT

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UMA LEITURA COMPARATIVA DOS CONTOS LE CHAT
IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação
Múltiplos Olhares
05, 06 e 07 de junho de 2013
ISSN: 1981-8211
UMA LEITURA COMPARATIVA DOS CONTOS LE CHAT BOTTE E LE PETIT
POUCET DE CHARLES PERRAULT
Aline aparecida da SILVA (G-UEM)
Margarida da Silveira CORSI (UEM)
Natália GODOY (G-UEM)
Nilda Aparecida da BARBOSA (UEM)
Introdução
Este artigo, vinculado ao Grupo de pesquisa Interação e Escrita (UEM/CNPq –
www.escrita.uem.br) e ao Projeto de pesquisa “A narrativa francesa como suporte para a
aprendizagem de língua e literatura francesas. É possível encontrar novos caminhos?”, à luz
da Linguística Aplicada, propõe um estudo comparativo dos contos Le Chat Botté e Le
Petit Poucet de Charles Perrault, dentro da perspectiva sócio-histórico-ideológica de
Bakhtin, centrado nos três pilares constitutivos de gêneros discursivos – conteúdo temático,
estilo e estrutura composicional –. Para tanto abordamos o conceito de gênero, de gênero do
discurso e do gênero conto, em especial o conto maravilhoso, assim como alguns
apontamentos sobre o autor dos contos analisados, Charles Perrault.
Iniciamos a análise abordando a origem do termo gênero e suas definições a partir
do ponto de vista de alguns estudiosos como Aristóteles e Bakhtin. Verificamos para tanto
os pontos em comum entre os contos, como os personagens e suas características, a
temática, a estrutura composicional e o estilo de escrita do autor, assim como as
semelhanças e as diferenças entre os dois contos.
1.Gênero e gênero do discurso
De acordo com Soares (2007), o termo gênero vem do latim genus-eris que significa
tempo de nascimento, origem, classe, espécie, geração. Ao longo dos anos, o que vem se
fazendo é agrupar cada obra literária de acordo com uma classe ou espécie, mostrando
como certa origem pode se classificar em determinada modalidade literária. Conforme
Soares (2007), acredita-se que para uma obra se adequar a certo gênero é preciso que ela
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obedeça a uma série de regras, que são as características principais desse suposto gênero.
Ela também afirma que alguns estudiosos defendem a mistura dos gêneros, mostrando as
diferentes possibilidades de combinações em uma mesma obra, muito embora, alguns
estudiosos, em seus primórdios não admitissem essas combinações, defendendo a pureza
dos gêneros.
Machado (2005) relembra que o filósofo Platão inicialmente propôs uma classificação
binária para os gêneros, na qual a epopeia e a tragédia se enquadrariam no gênero sério, e o
burlesco e a sátira pertenceriam à comédia. Posteriormente, em sua obra “A República”, ele
elabora a tríade proveniente das relações entre realidade e representação. Nela, Platão funde
no gênero mimético ou dramático a tragédia e a comédia, no gênero expositivo ou narrativo
a poesia lírica e no gênero misto a epopeia. A autora ainda afirma que o filósofo Aristóteles
em sua obra “Poética” classifica os gêneros por meio de uma forma mimética de
representação, na qual considera como poesia de primeira voz a representação do lírico, a
poesia de segunda voz a épica e a poesia de terceira voz é a representação do drama.
Machado mostra que a pesquisa de Bakhtin sobre dialogismo tornou possível a
observação do hibridismo, da heteroglossia e das pluralidades de signos, como observamos
no seguinte excerto: “Mais do que reverter o quadro tipológico das criações estéticas, o
dialogismo, ao valorizar o estudo dos gêneros, descobriu um excelente recurso para
“radiografar” o hibridismo, a heteroglossia e a pluralidade de sistemas de signos na
cultura.” (MACHADO, 2005, p. 153).
Machado afirma que para Bakhtin, os gêneros do discurso são esferas de comunicação
que por sua vez se unem no enunciado e são compostas pelos três pilares por ele
defendidos: conteúdo temático, estilo e construção composicional. Essas esferas se
desenvolvem ficando mais complexas devido à ampliação e diferenciação do gênero do
discurso de cada esfera da atividade humana, mostrando que os diversos gêneros sofrem
modificações constantes.
Na visão de Bakhtin (1992), os gêneros do discurso possuem uma heterogeneidade que
comporta inúmeras esferas da comunicação que possibilitam a transição dos gêneros do
discurso para outras esferas como aquelas presentes nos gêneros literários. Como
observamos abaixo:
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[...] a heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos) que
incluem indiferentemente: a curta réplica do diálogo cotidiano (com a
diversidade que este pode apresentar conforme os temas, as situações e a
composição de seus protagonistas), o relato familiar, a carta (com suas
variadas formas), a ordem militar padronizada, em sua forma lacônica e
em sua forma de ordem circunstanciada, o repertório bastante
diversificado dos documentos oficiais (em sua maioria padronizados), o
universo das declarações públicas (num sentido amplo, as sociais, as
políticas). E é também com os gêneros do discurso que relacionaremos as
variadas formas de exposição científica e todos os modos literários (desde
o ditado até o romance volumoso). (BAKHTIN, 1992, p. 279-280).
Bakhtin ainda afirma que na antiguidade, os gêneros literários sempre foram observados
apenas como expressão artístico-literária sem que fossem desvencilhados dos limites
literários, porém, esse modo de ver o gênero não incluía os diferentes tipos de enunciados,
visto que se observava apenas o gênero no âmbito do que se considerava literatura da
época.
1.1 Conto e conto maravilhoso
Em relação à origem da palavra conto, Massaud Moisés (1983) afirma que ela pode ter
sua origem em várias acepções. A primeira seria de origem numérica, exemplo: “um conto
de réis, ou um sem conto de soldados” (MOISÉS, 1983, p. 15). A segunda remete a
história, narração, fábula, que são empregadas em Literatura. A terceira se trata de uma
rede de pesca em forma de saco.
Para acepção da Literatura há outra hipótese, nela, Moisés aponta que o termo conto
teria sua origem na palavra latina commentu, que significa “invenção”. Outra possível
hipótese seria de o termo ser um substantivo derivado do verbo contar, que por sua vez
decorreria de computare, inicialmente com o significado de “enumerar os objetos”. Porém,
com o passar do tempo, especificamente durante a Idade Média, o verbo contar teve um
novo sentido atribuído, além de “enumerar”, teria também o sentido de “relatar”, dessa
forma, a palavra conto adquiriu o significado de “enumerar os fatos”, “relato”, “narrativa”.
Ainda de acordo com Moisés, a origem do gênero conto é desconhecida, mas alguns
estudiosos apontam algumas hipóteses, entre elas a de que o conto surgiu antes de Cristo,
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tendo o conflito de Caim e Abel como um primeiro exemplo de conto. Eles ainda
consideram vários episódios da Bíblia como conto, tais como os episódios de Salomé, Rute,
Judite, Susana, a história do filho pródigo e a ressurreição de Lázaro. Além da Bíblia, eles
também sugerem que no Egito antigo, as histórias Os dois Irmãos e Setna e O Livro
Mágico, ambas de autor desconhecido, do século XIV a.C., seriam verdadeiramente contos.
Como vimos, o conto sempre esteve presente na história da humanidade e ainda hoje,
continua sendo, pois sua estrutura é de fácil assimilação e permite a abordagem de assuntos
diferentes de maneira rápida e agradável, dessa maneira, é visto como promissor por
facilitar a leitura cotidiana. Nesse sentido, segundo Soares (SOARES, 2007, p.54), o conto
se diferencia das outras formas de narrativa por ter estruturas próprias tendo como uma de
suas principais características o tamanho. De menor extensão, o gênero conto, “dispensa”
as análises minuciosas e complicações no enredo. Assim, o tempo e o espaço são
delimitados e com mais intensidade. Soares explica que: “o conto aparece como uma
amostragem, como um flagrante pelo que vemos registrado literalmente, um episódio
singular e representativo”. Deixa claro também que o caráter poético se sobressai no gênero
conto, sobretudo pelo fato de sua pequena extensão.
O primeiro autor a publicar contos destinados às crianças foi Charles Perrault, sua obra
se originou a partir de uma coletânea de contos populares que se propagaram por meio da
oralidade. Ele reuniu essas histórias e as adaptou, trazendo sempre uma moralidade que
transmite ensinamentos para as crianças.
1.2 Charles Perrault e seu estilo
Charles Perrault, autor dos contos analisados, é considerado um grande nome da
literatura infantil e, além de escritor, era formado em direito e exerceu alguns cargos na
corte do Rei Luís XIV. No ano de 1671, ele entra para Academia Francesa de Letras e no
ano seguinte se casa com Marie Guichon, com quem tem uma filha e três filhos. Foi
tentando educar um dos filhos mais rebelde que procurou recontar as velhas histórias
populares de forma lúdica e agradável às crianças.
Perrault publica ainda Le Siècle de Louis le Grand (1687) e Parallèle des Anciens et des
Modernes (1688–1692). Essas publicações são um marco na literatura, pois as discussões
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dessas obras que defendem a valorização da nação francesa em detrimento da imitação dos
modelos antigos propiciam o surgimento de um novo gênero, o conto de fadas. Sua obra
mais conhecida, Contes de Ma Mère l’Oye, consiste na coletânea de histórias que tiveram
um grande reconhecimento, o que lhe rendeu o título de Pai da Literatura Infantil, pois ao
final de cada conto havia sempre uma moral.
Essas moralidades estão relacionadas com a temática do conto. Em Le Petit Poucet, a
moralidade retoma os valores familiares, enfatizando que os pais não devem sofrer por ter
muitos filhos ou por ter filhos com algum problema aparente, pois a salvação da família
poderá vir de onde eles menos esperam. No caso do conto, quem salva a família é o
Pequeno Polegar, ou seja, quem eles menos esperavam devido a seu tamanho, como se
observa na moralidade do conto Le Petit Poucet:
On ne s’afflige point d’avoir beaucoup d’enfants,
Quand ils sont tous beaux, bien faits et bien grands,
Et d’un extérieur qui brille;
Mais si l’un d’eux est faible, ou ne dit mot,
On le méprise, on le raille, on le pille:
Quelquefois, cependant, c’est ce petit marmot
Qui fera le bonheur de toute la famille. (PERRAULT, 1995, p. 79).
O mesmo ocorre com o conto Le Chat Botté. Sua moralidade, como vemos abaixo,
também retoma o tema da narrativa no qual o autor enfatiza questões de valorização
pessoal, em que o leitor deve refletir também sobre os valores morais e materiais:
« Quelque grand que soit l’avantage
De jouir d’un riche héritage
Venant jeunes gens pour l’ordinaire,
L’industrie et le savoir-faire
Valent mieux que des biens acquis. »
« Si le fils d’un Meunier, avec tant de vitesse,
Gagne le coeur d’une Princesse,
Et s’en fait regarder avec des yeux mourants,
C’est que l’habit, la mine et la jeunesse,
N’en sont pas des moyens toujours indifférents. » (PERRAULT, 1997, p.
62 - 63).
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Com a criação de personagens lúdicos, algumas vezes animais personificados, Perrault
nos deixou uma grande herança que passamos de geração em geração. No conto La barbe
bleue, por exemplo, encontramos vários elementos que caracterizam o gênero conto e,
sobretudo, as narrativas de Perrault. Temos a barba azul do antagonista que originou o
nome do conto, a chave manchada de sangue que não pode ser lavada, representações de
condutas morais das personagens. Em Le Chat Botté também encontramos transformações
e a personificação do gato, além da presença das botas de sete léguas, representando o
maravilhoso da história. Podemos falar ainda do conto Le Petit Poucet, que tem como
protagonista o corajoso Pequeno Polegar enfrentando o temível e gigante Ogro malvado.
Assim se constroem as histórias de Perrault, cada uma enfoca uma lição de moral
metaforizada em elementos maravilhosos.
2
Le chat Botté e Le petit Poucet: um percurso analítico-comparativo do conto
maravilhoso de Charles Perrault
Sobre os contos selecionados para nossa análise, podemos dizer que tanto Le Chat Botté
quanto Le Petit Poucet são narrativas maravilhosas, pois, embora as obras se aproximem da
realidade social da época, representando as dificuldades das famílias de moleiros e os
desafios de um herdeiro, no conto Le Chat Botté, e as dificuldades de uma família de
lenhadores, em Le Petit Poucet, as obras apresentam elementos que as definem como
maravilhosas.
Há diversos elementos que caracterizam composicionalmente o conto maravilhoso. Em
O Pequeno Polegar, por exemplo, um elemento que caracteriza sua estrutura
composicional é o fantástico, pois o protagonista é do tamanho de um polegar, de onde
advém seu nome, além disso, existem as botas de sete léguas que permitem ao Pequeno
Polegar o poder de se tornar veloz. O ogro malvado que era o dono das botas mágicas, em
um momento de descanso, durante sua perseguição ao Pequeno Polegar e seus irmãos, teve
suas botas roubadas pelo pequenino, que as utiliza para fugir. Em geral, o fantástico agrega
simbologias, que associadas a outros elementos da narrativa, podem levar a entender a
dimensão e o porquê de cada elemento presente na trama. No conto em questão, por
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exemplo, encontramos a sequência numérica como a inserção dos sete irmãos e das sete
filhas do Ogro (que era casado e tinha sete filhas); há as grandes forças da natureza, com a
apresentação das crianças na floresta; os comportamentos das personagens como a
esperteza e a tolice; os suportes de ação que colocam o mais jovem como o herói da
narrativa; e por fim os espaços de ser e de agir tais quais a floresta e o castelo (LURKER,
2003, p.150).
O número sete é representado nesta narrativa com o intuito de designar a totalidade da
ordem moral, a totalidade das energias e, sobretudo a espiritualidade representando um
ciclo completo. Segundo o dicionário de símbolos, o número sete simboliza a totalidade do
espaço e a totalidade do tempo. Dessa maneira, esse fato corrobora para que se atribua à
narrativa características de cunho mítico e maravilhoso, como, por exemplo, o termo « Il
était une fois un bûcheron et une bûcheronne qui avaient sept enfants... » (PERRAULT,
1995, p. 57), que mergulha o leitor em um mundo imaginário.
Neste sentido, a descrição do herói dentro do conto também pode ser vista como de
característica fantástica, « Il était fort petit, et quand il vint au monde, il n’était guère plus
gros que le pouce» (PERRAULT, 1995, p. 56). Assim, além de o personagem Pequeno
Polegar trazer características irreais, há também a simbologia numérica que apresenta os
sete irmãos como a representação do amor profano e divino, sendo melhor apresentado nas
considerações de Loeffler que demonstra essa simbologia por meio de sete etapas. Assim,
Le premier frère du Petit Poucet n’a conscience que de son corps
physique le plus grossier. Il mange, il boit, il cultive ses muscles. [...] Le
second frère ajoute à la vie des sens l’émotion. Il est enthousiaste,
souvent zélé.[...] Le troisième frère acquiert en plus de ce que possèdent
les deux autres.[...] Le quatrième frère s’élève au-dessus de l’intelligence
vérificatrice par l’intuition. [...] Le cinquième frère, éduqué par
l’intuition, se détache de la vie matérielle et acquiert la soiritualité.
[...] Le sixième frère qui possède le savoir de tous les précédents de fait
passer de l’état passif à l’átat actif au moyen de son acquisition propre:
La volonté. [...] Le dernier venu, Le Petit Poucet sauveur ( qui représente
le principe immortel, l’étincelle divine jetée dans la matière) DIRIGE
l’action des six autres et les mène vers la Vie éternelle alors que tout
semblait les condamner à mourir. (LOEFFLER, 1949, p.197-198)
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No conto, o surgimento da floresta como cenário do desenrolar da ação provoca novas
expectativas para o destino dos personagens: “je suis résolu de les mener perdre demain au
bois, ce qui sera bien aisé, car, tandis qu’ils s’amuseront à fagoter, nous n’avons qu’à nous
enfuir sans qu’ils nous voient” (PERRAULT, 1995, p.58). A floresta é o lugar onde os sete
filhos serão abandonados pelo lenhador, representando neste conto as grandes forças da
natureza e além de ser o espaço no qual o Pequeno Polegar se destacará por salvar seus seis
irmãos, a floresta é a representação entre o espaço conhecido e o desconhecido. Assim, “a
floresta sombria e misteriosa é uma espécie de terra de ninguém, o reino dos espíritos e das
bruxas, um espaço mágico”. (LURKER, 2003, p. 273).
Um personagem que faz parte da história do conto e não pode ser desconsiderado ao
falarmos da estrutura composicional da obra é o Gigante Ogro Malvado que aparece com
características fantásticas dentro do enredo e nos faz recordar do mito de Saturno que
devora suas próprias crianças enquanto Cibele (a Terra) as coloca no mundo. Nesta
situação, Saturno é considerado a personificação do tempo que gera os corpos psíquicos dos
seres. Assim, podemos perceber que características das personagens relacionadas a mitos
enquadram-se como elementos composicionais característicos do conto de fadas.
No momento em que o temível Ogro Malvado se encontra em desespero por ter matado
suas sete filhas por engano, fala para sua esposa: « Donne-moi vite mes bottes de sept
lieues, lui dit-il, afin que j’aille les attraper ». (PERRAULT, 1995, p. 78). O Malvado Ogro
queria encontrar os sete meninos para vingar-se, por isso as Botas de Sete Léguas
apareceram no conto, sendo encantadas, tinham o dom de aumentar e diminuir de tamanho
conforme as pernas e pés de quem as calçasse. Esse objeto, a bota, por ser encantado traz
uma característica fantástica para o conto, pois se trata de um objeto utilizado de maneira
corriqueira, mas que ao ser inserido no conto recebe características irreais. São as botas
encantadas que acolhem e salvam o Polegar que não abandona os seis irmãos e os protege
contra o gigante e dos perigos da floresta. A bota os traz de volta à casa com a fortuna,
garantindo a sobrevivência da família. Dessa maneira, as botas além de serem um elemento
que caracteriza o maravilhoso no conto são também um elemento fundamental para o
desfecho feliz da história.
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O tempo na narrativa ocorre cronologicamente, havendo uma sequência de fatos que
fazem com que a narrativa ocorra linearmente, isto é, se organiza segundo a concepção
dominante de tempo (passado, presente e futuro). Ao retomar a narrativa fica claro que o
conflito dramático acontece quando os sete irmãos são deixados pelos pais (casal de
lenhadores) em uma floresta. A ação de abandonar os filhos por não terem condições de
cuidar deles adequadamente, faz com que surjam diversos conflitos com o personagem
principal (Le Petit Poucet) e os obstáculos que ele encontra para salvar os irmãos e retornar
a sua casa, assim como a fuga do temível Ogro que comia crianças, são considerados
aspectos que englobam a totalidade da intriga de maneira que a inteligência, a ousadia, a
astúcia, a coragem, a miséria, a covardia e a esperteza se destaquem no decorrer da
narrativa.
No conto Le Chat Botté, há também elementos que marcam o maravilhoso na narrativa,
como a presença do Ogro capaz de se transmorfizar em animal, as botas que levam o gato
de um lugar a outro com rapidez e a personificação do Gato, que para não ser comido pelo
pobre Moleiro, utiliza sua inteligência para manipular o jovem, que obedece todas as suas
ordens sem questionar. Sua coragem e astúcia se intensificam a partir do momento em que
seu amo (o Moleiro) lhe dá o que havia solicitado, que são as botas e o saco. Dessa forma, o
Gato de Botas sai à procura de um coelho para presentear o Rei em nome de seu amo, que
agora passa a se chamar Marquês de Carabás, para que Rei acredite que se tratava de um
nobre rico.
No decorrer da narrativa percebemos que o Gato em diversas situações precisou utilizar
de sua grande astúcia, que marca o maravilhoso no conto, para enganar o Rei na tentativa
de inserir seu amo, e a si mesmo, em meio à realeza casando-o com a Princesa. Assim
ambos seriam ricos e fugiriam da miséria. Para tanto, foi preciso ultrapassar vários
obstáculos, como destruir o Ogro que possuía poderes de se transmorfizar em qualquer
animal – também um elemento maravilhoso dentro do conto – para roubar seu castelo e
convencer o Rei de que esse castelo pertencia ao Marques de Carabás.
Neste conto, não há a presença da floresta, mas os campos são a representação dos
obstáculos que o Gato deveria percorrer até o castelo do Ogro. Trata-se de um
entrelaçamento de obstáculos que direcionarão o Gato ao desfecho feliz da narrativa.
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O enredo dos contos de fadas é constituído pelas provas, ou obstáculos que precisam ser
vencidos, tudo isso para que o herói alcance sua realização existencial. Com isso, quando o
Pequeno Polegar salva os seis irmãos das garras do temível Ogro, e o Gato de Botas
alcança o objetivo de casar seu amo com a Princesa para assim salvar sua pele, podemos
perceber que há a conquista de um objetivo por parte do herói ou do anti-herói.
Outro ponto em comum entre os contos é a ausência de nomes dos personagens. Em Le
Petit Poucet, há os personagens Pequeno Polegar, seus irmãos, o Ogro, a esposa do Ogro e
as filhas do Ogro; em Le Chat Botté, há os personagens Gato de Botas, o Moleiro, os
irmãos, filhos do Moleiro, o Rei, a Princesa e o Ogro. Esse fenômeno ocorre para
diferenciar os personagens mais importantes e intensificar o maravilhoso dentro da
narrativa, como o personagem Pequeno Polegar, que apesar de não ter nome possui um
apelido que traduz sua principal característica maravilhosa e o Gato de Botas que mesmo
não tendo um nome humano, se refere a sua personificação que também é uma
característica do maravilhoso dentro do conto.
Conforme todos esses fragmentos, percebemos que tais elementos da estrutura
composicional atribuem ao conto subsídios que o caracterizam de maneira que tudo o que é
transmitido ao leitor tenha seu valor elevado. Assim, espaço, tempo, personagens devem ser
vistos como estruturantes dentro do conto e, detalhes como o número sete que representa os
irmãos; a floresta, o espaço em que se passa a maior parte da história; e até mesmo as botas
de sete léguas, estas sendo um elemento mais visível dentro dos dois contos, são elementos
que intensificam a composição da narrativa de maneira que, ao serem analisados, são
considerados imprescindíveis na estrutura do conto.
Além das botas mágicas, há outros elementos em comum entre os contos, como a figura
do Rei, o Ogro, a miséria, a luta do bem contra o mal, a astúcia e a inteligência dos
protagonistas, estes, os únicos a serem nomeados com apelidos que representam suas
características físicas.
O Rei representa a diferença social, sua posição social e sua riqueza se contrapõem com
a realidade dos protagonistas, que vivem em meio à miséria, precisando utilizar de artifícios
como a astúcia e a esperteza para ultrapassar os obstáculos. Em ambos os contos, há
recorrência da miséria dos personagens principais, fatores muito presentes na época em que
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Perrault escreveu seus contos. Apesar de o autor ter vivido em um ambiente palaciano,
desfrutando dos benefícios da realeza, a população passava por grandes dificuldades, pois
vivia em absoluta miséria, fatos que foram refletidos em suas obras.
O personagem Ogro é outro elemento maravilhoso que se repete nos contos. A
malvadeza do Ogro de Le Petit Poucet é explícita, pois ele quer comer o Pequeno Polegar e
seus irmãos. O que torna o caráter desse Ogro mais malévolo é o fato de ele viver no meio
da floresta, pois a floresta representa um lugar em que tudo é permitido. Por isso é
concebível que o garoto usurpe as botas mágicas e todo o ouro que o Ogro guardava em
casa.
Dessa maneira, é possível entender que o personagem Ogro representa na ficção um ser
do mal, até mesmo quando sua maldade não está explícita, como é o caso do conto Le Chat
Botté. Neste conto, o Ogro é apresentado apenas como um ser que possui o poder de se
transformar em qualquer animal, fato que intensifica o efeito do maravilhoso. Por meio
dessa maldade implícita há uma isenção de qualquer julgamento quanto ao caráter do Gato
de Botas no momento em que ele engana o Ogro e rouba seu castelo e suas propriedades.
Ambos os protagonistas dos contos utilizam sua astúcia e inteligência para vencer os
obstáculos e se salvarem da miséria e morte. Em Le Petit Poucet, o pequenino utiliza sua
inteligência e perspicácia para se salvar e salvar seus irmãos do grande Ogro malvado. O
protagonista de Le Chat Botté também utiliza sua inteligência e astúcia para se salvar e
ultrapassar os obstáculos para sair da miséria.
O fato que diferencia os protagonistas é o objetivo nobre do Pequeno Polegar que era
salvar a si e a seus irmãos e também reunir sua família. Assim, apesar de ter usurpado as
riquezas do Ogro, conseguiu manter sua família por meio de seu trabalho com a ajuda das
botas de sete léguas. Já o Gato de Botas, desde o início da narrativa tenta se aproximar do
Rei para casar seu amo com a Princesa e ter uma vida de luxo no palácio. Para atingir esse
objetivo, ele engana o Ogro e rouba seu castelo, trapaceia o Rei para que este pense que seu
amo é um homem rico, ou seja, todos os seus esforços são para o único propósito, o de
fugir da miséria e ter uma vida de fartura no ambiente palaciano.
As botas de sete léguas são um elemento muito importante presente nos dois contos. O
Pequeno Polegar rouba as botas do Ogro malvado em um momento em que ele dormia.
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Assim, o pequenino as utilizou para fugir do Ogro e quando o Rei ficou sabendo dos
poderes mágicos das botas, contratou o menino para trabalhar em seu reino e através do
trabalho o menino conseguiu reunir a família e manter sua riqueza.
Já o Gato de Botas, conseguiu suas botas por meio de seu amo, o jovem moleiro. O
Gato disse ao amo para lhe dar um par de botas e um saco, dessa forma ele lhe traria grande
fortuna. A partir do momento em que recebeu as botas e o saco, o Gato saiu em busca de
algo que pudesse tirar proveito, no caso, ele se aproximou do Rei, derrotou o Ogro mágico
e conseguiu casar seu amo com a bela Princesa.
Perrault utilizou diversos recursos linguísticos para enriquecer sua narrativa. Tendo em
vista esse aspecto, lembramos que o estilo de um texto consiste na “seleção de meios
lingüísticos” (FIORIN, 2006, p.62), isto é, escolha de estruturas sintáticas, sinais gráficos e
das palavras utilizadas para escrever e expressar o que se pretende, com uma intenção
maior: a de que o expresso seja entendido pelo leitor. Dessa maneira, o Estilo dentro de um
gênero é interpretado como uma seleção de meios linguísticos que podem ser derivados de
normas gramaticais, de características linguísticas do autor ou de uma adaptação ao
conteúdo temático e à estrutura composicional.
No conto Le Chat Botté, o autor utilizou diversos tempos verbais, mas a maioria dos
tempos está conjugada no passado, pois está narrando algo que aconteceu. Percebemos a
recorrência de vários tempos verbais como Imparfait du subjonctif: « Le Roi voulut qu’il
montât dans son Carrosse »(PERRAULT, 1997, p. 59); Passé du conditionnel: « Ils
auraient eu bientôt mangé tout le pauvre patrimoine; Lorsque j’aurai mangé mon
chat; »(PERRAULT, 1997. p. 56 e 57); Passé antérieur: « le Marquis de Carabas ne lui
eut pas jeté deux ou trois regards fort respectueux » (PERRAULT, 1997, p. 59 ); Plus-queparfait du subjonctif: « quoiqu’il eût crié au voleur de toute sa force » (PERRAULT, 1997.
p. 59); Gérondif présent: « pourront gagner leur vie honnêtement en se mettant ensemble »
(PERRAULT, 1997, p. 57). No entanto, o autor também utilizou os tempos do Futur
Simple e Présent, com aparições em diálogos: « Il faudra que je meure de faim »; « et vous
verrez que vous n’êtes pas si mal partagé que vous croyez » (PERRAULT, 1997, p. 57).
Outro elemento que o autor utiliza para enriquecer seu conto são as expressões
marcantes do seu estilo como ne...que, pois ele poderia ter optado pelo termo seulement,
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por exemplo. Essa expressão surge em diversos momentos no decorrer da narrativa. Assim,
logo no início do conto temos : « Un Meunier ne laissa pour tous biens à trois enfants qu’il
avait, que son Moulin, son Âne, et son Chat. » (PERRAULT, 1997, p. 56); « L’aîné eut le
Moulin, le second eut l’Âne, et le plus jeune n’eut que le Chat. » (PERRAULT, 1997, p.
56); nestes trechos a utilização do ne...que como elemento de restrição causa um maior
sentimento de piedade, pois o jovem herdou somente um gato, nada mais que isso. Já na
fala do gato ao ameaçar os moradores do campo, ele exige que os camponeses digam que as
terras pertencem somente ao Marquês de Carabas e não digam nada mais que isso:
« Bonnes gens qui moissonnez, si vous ne dites que tous ces blés appartiennent à Monsieur
le Marquis de Carabas... » (PERRAULT, 1997, p.60).
Considerações finais
Após a análise dos contos, percebemos que não é possível dissociar os três pilares
constitutivos propostos por Bakhtin, pois não há como analisar separadamente a temática, o
estilo do autor e a estrutura composicional do gênero conto. Todos esses elementos estão
imbricados de tal forma que se condensam formando o conto como um todo. A partir do
momento em que o leitor toma consciência desses elementos na narrativa, ele se torna um
leitor mais crítico, pois consegue identificar a estrutura composicional presente no conto, o
perfil do estilo do autor e a temática, colaborando para a formação de um leitor capaz de
compreender o contexto sócio-histórico-ideológico da época e observar a estrutura do conto
maravilhoso, diagnosticando aspectos sobre o gênero conto, além de que ao assimilar certos
elementos, acaba desenvolvendo uma percepção mais consciente da riqueza linguísticocultural da narrativa literária francesa.
Referências
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IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação
Múltiplos Olhares
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