Caderno 21 - Escola de Teatro da UFBA

Transcrição

Caderno 21 - Escola de Teatro da UFBA
21
Teatralidade, Política e Sexualidade
em Espetáculos Musicais
Christian Marcadet
PPGAC
Programa de Pós-graduação em Ar tes Cênicas
Sérgio Farias
Cadernos do
GIPE-CIT
Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em
Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade
Nº 21
Teatralidade, Política e Sexualidade em
Espetáculos Musicais
Christian Marcadet
Organização:
Sergio Farias
PPGAC
Prog rama de Pós-gra duaç ão em Artes Cênica s
Escola de Teatro/Escola de Dança
Universidade Federal da Bahia
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Escola de Teatro/Escola de Dança
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
Cadernos do GIPE–CIT N. 21
Teatralidade, Política e Sexualidade em Espetáculos Musicais
Agosto - 2008
Coordenação Geral do GIPE-CIT
Armindo Bião
Sergio Farias
Conselho Editorial
André Carreira (UDESC), Antonia Pereira (UFBA), Betti Rabetti (UNI-Rio), Cássia Lopes (UFBA),
Christine Douxami (CNPq-UFBA), Eliana Rodrigues Silva (UFBA), Makarios Maia Barbosa
(UFRN), Sérgio Farias (UFBA)
Diagramação, Formatação e Capa
Nádia Pinho - Fast Design
Foto da capa: Ney Mattogrosso
Http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://stat.correioweb.com.br/arquivos/divirta/materias2007/
ney_matteria.jpg&imgrefurl=http://divirtase.correioweb.com.br
Revisão:
Sergio Farias
Biblioteca Nelson de Araújo – TEATRO/UFBA
Caderno do GIPE-CIT: Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em
Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade/ Universidade Federal
da Bahia. Escola de Teatro / Escola de Dança. Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas. – N. 21, agosto. 2008. Salvador (Ba): UFBA/ PPGAC, 2008.
116 p. ; 21 cm.
Periodicidade semestral
ISSN 1516-0173
1.
Teatro. 2. Música. 3. Sexualidade. I. Universidade Federal da Bahia.
Programa em Artes Cênicas. II. Título
Impresso no Brasil em julho de 2008 pela: Fast Design - Prog. Visual Editora e Gráfica Rápida LTDA.
CNPJ: 00.431.294/0001-06 - I.M.: 165.292/001-60 - e-mail: [email protected] - Tiragem: 300 exemplares
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Sergio Farias............................................................................................................................5
A INTERPRETAÇÃO DE CANÇÕES EM ESPETÁCULOS OU
O ARTISTA DA CANÇÃO EM BUSCA DE UMA SÍNTESE DAS ARTES CÊNICAS
Christian Marcadet..............................................................................................................9
O RECITAL DE YVES MONTAND NO THÉÂTRE DE L ´ÉTOILE OU
COMO O POLÍTICO IRROMPEU NOS PALCOS DE MUSIC-HALL EM PARIS
Christian Marcadet…………………………............................………...………………………p.
DE FÉLIX MAYOL A NEY MATTOGROSSO OU
SEXUALIDADE E PERFORMANCE NA INTERPRETAÇÃO DE CANÇÕES
Christian Marcadet..............................................................................................................p.
5
APRESENTAÇÃO
O que nos leva ao êxtase, ao prazer estético, quando assistimos a um
show musical?
Por que alguns cantores nos arrebatam e outros não tocam nossa
sensibilidade?
Quais os recursos interpretativos utilizados pelas estrelas da canção para
fazerem a platéia delirar?
Questões como essas nos remetem a uma temática – a interpretação de
canções, que se encontra no campo de estudos da Cenologia.
Christian Marcadet, estudioso dessa temática, percorre repertórios,
carreiras profissionais e até situações da vida privada de artistas da canção, que
atuaram ou atuam principalmente na Europa e no Brasil, para revelar
competências teatrais, musicais e comportamentais que são básicas para quem
se dedica ao ofício do canto, no palco.
Seus textos abordam também aspectos da história da música popular e
revelam nuances que caracterizam a função comunicativa da interpretação das
canções.
Sobre o autor
Prof. Dr. Christian Marcadet concluiu Doutorado em Estética, em 2000, na
École d´Hautes Études en Sciences Sociales e realizou estágio de Pós-Doutorado
na Université Paris I, com Habilitation à Diriger des Recherches en Sciences
Humaines. Participa atualmente do Institut d’Esthétique des Arts Contemporains,
do Centre National de la Récherche Scientifique – CNRS e da Université de Paris I.
Desenvolve pesquisas e ministra aulas nos seguintes campos:
-
Performance e Recepção nos espetáculos teatrais e musicais;
-
Articulações entre cultura popular, cultura nacional (plural) e cultura de
massa, focalizando os aspectos da produção e da recepção;
6
-
Expressividade, teatralidade e sensualidade nas manifestações musicais
em diversas culturas/países, como Brasil, Argentina, Portugal e França;
Dr. Marcadet foi Professor Visitante, com Bolsa FAPESB, junto ao GIPECIT e ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, de 2004 a
2006, quando desenvolveu as pesquisas que resultaram nos três textos que ora
publicamos.
[email protected]
Sobre os textos
No primeiro deles o autor apresenta um método para análise de
espetáculos de canções que contempla as condições práticas e simbólicas
dessa atividade cênica.
No segundo texto, coloca a política em pauta através da narrativa do
percurso de um dos mais famosos artistas da canção, Yves Montand, focalizando
toda a sua carreira com destaque para um show realizado em Paris, em 1953.
Finalmente, no último texto, Marcadet discute cuidadosamente expressões
de homossexualidade na interpretação de canções, por parte de artistas que
atuaram no século XX, na Europa e no Brasil, analisando o trabalho de vários
deles, dentre os quais Ney Mattogrosso. Seu estudo desperta atenção para o fato
de que no palco, lugar onde se “representa”, as fronteiras da chamada
normalidade se estendem e ganham contornos específicos, promovendo
interseções e contrapondo-se às formalizações sociais no que se referem ao
gênero e à sexualidade.
Sobre o processo
Os textos foram inicialmente escritos em francês e a revisão de sua
tradução, feita por mim e pelo autor, em parceria, foi uma grande oportunidade
de aprendizado, em longas sessões de trabalho. Encontrei-me ao lado de um
colega autor meticuloso, entrando muitas vezes na discussão do próprio conteúdo
para captar nuances da escrita em francês, e decidirmos finalmente juntos quais
as melhores palavras para expressar aquilo que ele queria dizer.
7
Vivenciamos alguns impasses diante das diferenças entre a palavra que
está no dicionário e aquela que é usada habitualmente no Brasil para designar
tal ou qual objeto.
Vimos como era difícil, por exemplo, achar uma expressão em português
para tour de chant, que ficou na língua original e ganhou uma nota de pé-depágina.
Algumas discussões ocuparam mais tempo, como a da necessidade do
dom para ser artista ou a das expressões utilizadas para os gestuais dos cantores
homossexuais, que poderiam soar como depreciativas. Enfim, nos embates
sempre tivemos em vista a clareza de que o leitor deste Caderno precisava, para
a apreciação desse tema fascinante, o da interpretação de canções.
Salvador, Bahia, Brasil, Agosto de 2008
Sergio Farias
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A INTERPRETAÇÃO DE CANÇÕES EM ESPETÁCULOS,ou
O ARTISTA DA CANÇÃO EM BUSCA DE UMA SÍNTESE
DAS ARTES CÊNICAS
Christian Marcadet
As canções de variedades permanecem, até agora, entre os domínios
menos estudados do campo das artes do espetáculo. Elas pertencem a disciplinas
artísticas tão diversas como o teatro, a música, o romance, a poesia, o cinema, a
dança e a expressão corporal, ou mesmo as artes plásticas; e referem-se a um
conjunto complexo de ciências sociais como a história cultural e social, as letras
e as ciências da linguagem, a musicologia, a antropologia social, a sociologia
do lazer, a cultura de massa e as ciências da comunicação.
Efetivamente, a maior parte dos trabalhos de investigação consagrados
às canções populares toma por objeto o estudo dos textos, dos temas ou das
partituras numa ótica essencialmente formal ou visam apreender estas produções
artísticas nas suas relações com as práticas sociais e suas implicações.
De fato, o estudo da interpretação mesmo das obras, o ato de cantar
em cena ou estúdio – o trabalho artístico mais evidente dos cantores,
continua a ser frequentemente eclipsado por uma abordagem
fenomenológica, em geral apenas circunstancial, das performances. No
entanto, o ponto forte de um espetáculo de canções ou da sua divulgação
sobre suportes midiatizados é por essência a presença física, em cena, ou
virtual, no disco, no rádio ou na televisão, do cantor conquistando a atenção
de uma audiência. A interpretação é, ao mesmo tempo, a catálise e a
apoteose do sentido; é o sentido em atos.
Numa obra que relata a evolução dos espetáculos musicais ao longo de
mais de um século, Jean-Claude Klein ressalta a sua importância:
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A canção ganha seu sentido apenas lá, no palco. Pelas mímicas, pelo
dispositivo cênico, pela rítmica corporal e pelo registro vocal pessoal
de cada cantor, a ceninha mais trivial, tirada da vida cotidiana, enchese de um toque de lirismo, de um brilho que se reflete no ouvinte1.
Com o objetivo de dar conta de uma atividade artística que exige, dos
artistas que a praticam, competências teatrais, musicais e comportamentais
singulares, este texto tem como objetivos: caracterizar a função comunicativa da
interpretação das canções; descrever os componentes artísticos bem como as
regras usuais que podemos aplicar-lhes; identificar os principais marcadores
profissionais da excelência que definem esta arte, e, em seguida, propor uma
série de critérios de apreciação que permitam compreender os seus processos
estéticos e suas repercussões sociais.
Para ilustrar este artigo, destinado a princípio a uma divulgação na França
e no Brasil, os nossos exemplos foram escolhidos cuidadosamente nos repertórios
de canção, franceses e brasileiros, que estiveram, no século XX, entre os mais
ricos em quantidade e qualidade.
1. Natureza e método das performances com canções
A interpretação de canções é uma arte cumprida de modo solitário, que
implica em responsabilidades. Elementos os mais variados contribuem para a
formação de mitos da cena musical e compõem uma metodologia específica. É
disso que vamos tratar aqui.
A arte e a maneira de fazer arte
Segundo o dicionário Lexis de Larousse (1983, p. 973), o termo interpretar
resume-se a duas acepções essenciais: a mais antiga, que remonta ao século
1
“La chanson ne prend son sens que là, sur scène. Par les mimiques, le dispositif scénique, la rythmique
corporelle et le registre vocal propre à chaque chanteur, la saynète la plus triviale, tirée de la vie
quotidienne, se charge d’une touche de lyrisme, d’une brillance qui rejaillit sur l’auditeur.” Jean-Claude
Klein, La Chanson à l’affiche, Histoire de la chanson française du café-concert à nos jours , Éditions Du
May, 1991, p. 28-29.
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XII, significa traduzir, dar sentido, tornar compreensível, indicar, explicar o sentido
de um texto; um significado acrescido posteriormente, datado de 1876, está
mais diretamente ligado a uma atividade profissional, que consiste de vivenciar
um papel, tocar uma obra musical.
No caso referido, a interpretação das canções, estas duas definições –
que são aplicáveis ao sentido das obras e à transmissão destas, juntam-se e
estimulam-se uma à outra. Contudo, devemos previamente distinguir a
performance e a interpretação. A performance abrange um quadro mais amplo
com o seu ambiente social e humano, as condições contextuais (históricas,
sociológicas, técnicas e midiáticas) que a tornam possível, enquanto a
interpretação refere-se mais precisamente ao artista em cena, aos meios artísticos
(vocais, corporais e gestuais) que o mesmo mobiliza e à relação singular que
estabelece com os públicos. Portanto, parece-nos pertinente querer compreender
os mecanismos específicos da interpretação e o papel de revelador de
sensibilidade que lhe é atribuído.
O ator-cantor exposto enquanto mito em cena
Ao contrário dos comediantes que, no teatro, em geral, desempenham seus
papéis em grupos ou dos atores que, no cinema, figuram nos elencos dos filmes, o
intérprete de canções exprime-se geralmente sozinho em frente do público, seja
ele também o autor dos textos que canta, como Georges Brassens ou Chico
Buarque, ou seja ele somente intérprete, como Yves Montand ou Maria Bethânia.
No palco, o cantor nunca é “protegido” por um papel, uma intriga, uma
dramaturgia, um cenário, colegas ou as decisões do encenador, é ele mesmo
que se expõe, física e mentalmente. Portanto, para além das faculdades artísticas
usuais requeridas ao cantor de variedades (maestria conveniente do canto,
conhecimento elementar da profissão de ator), este endossa uma
responsabilidade nova relativamente a seu(s) público(s). É efetivamente a vedete
em cena (qualquer que seja, além disso, a sua notoriedade) que é o foco, o ponto
de mira e de escuta, da sala de espetáculo ou da divulgação midiatizada. Os
músicos que o acompanham são dedicados essencialmente a dar-lhe suporte,
assim como a seu universo artístico, e não lhe servem de modo algum de aparato
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protetor, físico ou simbólico, na medida em que o público vem ao teatro, cabaré
ou festival para assistir ao cantor e só tem olhos e ouvidos para ele.
Na prática, o cantor é comumente confundido com o seu repertório. Os
diversos personagens, que ele vive cada três ou quatro minutos durante o
espetáculo, têm por função revelar facetas diferentes da sua personalidade, mas
é ele mesmo que anima e transmite o espírito destas “pequenas comédias
cantadas de três minutos”, como as define com sagacidade o autor e cantor
valdense (Suíça) Gilles. É mesmo a personalidade do cantor, o seu corpo físico,
o seu poder de sedução e a sua atitude, que estão em cena aqui e agora.
Ainda que os espectadores/ouvintes saibam efetivamente que o mundo
das canções é um mundo de ilusão, sempre têm tendência a juntar, quando não
a confundir, o tema tratado, a pessoa do cantor e a mitologia criada a seu respeito
na imprensa ou pelos fãs. Isso tudo será assimilado às criações do cantor – às
personagens sucessivas que compõe cantando – e suas interpretações serão
tornadas convincentes por um jogo de cena e por um comportamento
particularmente estudados.
O intérprete como revelador da sensibilidade coletiva
Ângela Guller2, que foi produtora, animadora e formadora, apreende a
interpretação numa óptica fundada sobre a sua experiência dos ofícios da canção.
Ela afirma que é a interpretação que dá às canções a sua cor e o seu valor
estético. O intérprete desempenha assim um papel sutil de mensageiro, ou
medium: é o revelador privilegiado da canção e da sensibilidade do público.
Neste sentido, a interpretação é o barômetro da estética de uma época;
consequentemente envelhece e renova-se.
A interpretação não deve deixar transparecer nem contestação nem
imprecisão por parte do intérprete; a sua força e o seu sucesso dependem da
intensidade e da evidência com que é assumida. Esta qualidade requerida do
2
Ângela Guller publicou Le 9ème Art, Ed. Vokaer, Bruxelas, 1978, livro no qual revela um olhar iluminado
sobre a canção de língua francesa dos anos 50 aos anos 80 do século XX. Recomendo a leitura dessa
obra.
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cantor não significa que o mesmo traz com ele a presença ilusória de um
personagem que tem por função encarnar, mas que, pela sua presença física,
dá-nos também a perceber o peso de uma história de vida e o mistério de um
destino, que lhe são pessoais.
A apoteose da performance
A interpretação das canções é por essência o cerne do que é fundamental
na performance. É corrente de sentidos em atos como há corrente de lava. A
performance induz uma relação entre um artista e uma audiência, que convém
analisar, e o conceito que permite essa análise é o de modo de comunicação
cena/platéia – ou intérprete/público, que marca a natureza e a intensidade da
relação estabelecida entre os diferentes atores da performance. Disso decorrem
novos campos de investigação: relações cantor/público e noções secundárias e
flexíveis de participação, adesão, identificação, interação, intrusão, até mesmo
co-criação.
A interpretação é fundamentalmente uma arte de síntese que combina
encenação, enunciado, personalidade, mito, pulsões do público e contexto. O
artista deve pensar globalmente as suas performances cênicas, atendendo a seu
repertório, a sua personalidade, às personagens que representa, os meios
artísticos aos quais recorre, como os públicos aos quais seus espetáculos são
destinados.
Incorporação e distanciamento
A implicação do intérprete nas suas performances não basta para explicar
o sentido que dá às suas canções nem para validar a sua maneira de transmitir
sentimentos e emoções. Se a diversidade dos temas cantados parece ilimitada,
as variações na interpretação não são menores. De fato, as incorporações possíveis
de uma mesma canção – a faculdade que tem o cantor de apropriar-se e “viver”
uma obra, variam segundo os artistas, as performances e o humor do momento.
Assim, uma obra cantada pode ser totalmente interiorizada e animada pelo artista,
apropriada do seu interior, de acordo com o princípio de mimesis, de tal modo
que, se a ilusão é perfeita, a audiência é incitada a confundir os sentimentos
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próprios do papel desempenhado na narração cantada, os do intérprete / indivíduo
cantando, e aqueles que emergem na intimidade de cada ouvinte.
Por outro lado, o cantor pode igualmente levar o público a ver e entender
o tema, através da obra interpretada, pela força de convicção de um afastamento
fundado sobre o princípio brechtiano do distanciamento. Os que assistem à
performance, então, são convidados a sentir e reagir, de acordo com o seu humor,
a sua experiência e a sua sensibilidade, aos sentimentos e às idéias que lhes
foram expostos.
Uma metodologia adaptada
Com o objetivo de estudar a interpretação das canções, propomos aplicar
um método que leva em consideração as condições práticas e simbólicas dessa
atividade artística.
Em primeiro lugar, trata-se de re-situar a interpretação em questão na
totalidade do espetáculo concernido – tour de chant, recital, festival3, na carreira
do artista no palco, numa perspectiva sincrônica e evolutiva, e, se for possível, no
campo social do espetáculo e do disco do período, a fim de estabelecer
comparações com outras interpretações da mesma ordem.
Em seguida, devemos fazer o inventário de quem intervém e a que pretexto,
distinguindo o(s) cantor(es) solista(s) e os coristas eventuais, os músicos, anotando
seu número e sua disposição sobre o palco; devemos definir qual componente
sonoro foi privilegiado, favorecendo a voz (a narração) ou a música (prevalência
do som sobre o sentido); avaliar o papel dos intervenientes eventuais (apresentador,
recitador, dançarinos…) e precisar o que trazem ou tiram estes outros atores à
performance do cantor.
A próxima operação de decodificação de uma interpretação consiste em
analisar cada um dos componentes essenciais que o cantor mobiliza para
3
O tour de chant é a totalidade da performance de um cantor em um programa de variedades, isto é: todas
as canções cantadas numa ordem escolhida, sem interrupção para apresentação de um outro artista.
Consequentemente, o tour de chant implica as noções de projeto, ordem dos títulos cantados e a
globalidade da apresentação. O recital é um espetáculo de um artista só e o festival uma programação
estendida por vários dias compreendendo um número significativo de tours de chant.
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interpretar, basicamente, o corpo, incluindo voz, gesto e energia. A segunda parte
deste artigo é dedicada a esta questão.
Por último, na idéia de abordar todos os elementos que têm a ver com a
interpretação das canções, convém avaliar o papel simbólico do cantor, a sua
imagem pública, em termos de representação e impacto social, a fim de saber em
que medida esta dimensão subjetiva afeta as suas performances, e como as afeta.
2. Os componentes artísticos da interpretação das canções
O campo de ação do intérprete de canções compreende três
componentes primordiais que caracterizam o seu projeto criador e determinam
os meios utilizados: a voz cantada, o corpo no palco e a capacidade de animação
do cantor no âmbito da performance.
A voz cantada: um instrumento privilegiado do processo de
comunicação
O primeiro ponto abordado refere-se ao estudo da voz e do estilo vocal do
intérprete. Diferentes elementos são reunidos que dão uma cor singular ao canto:
timbre, tessitura, âmbito, fraseado, acento, vibrato, dinâmica, enunciação, tom. A
voz cantada tem uma cor, uma granulação ou tessitura, uma respiração; e todos
estes elementos acentuam ou moderam o tom enunciado.
A voz do cantor é inseparável do corpo e da pessoa do artista; faz parte do
seu ser físico, da sua vida; é a expressão mais sensível de uma personalidade e,
em nosso caso, a sua projeção estética.
A voz é, por definição, o instrumento musical dos cantores, aquele que
condiciona todas as fases do processo de comunicação, desde a origem – um
autor escreve pensando em um cantor, frequentemente ele mesmo - até o
impacto, dado que é a voz que solicita a escuta, a atenção dos públicos.
A voz é o prolongamento do corpo, seu vetor externo mais eficiente. É pela
voz que se define o estilo do cantor e é pela voz, mas não unicamente, que ele
revela o seu projeto criador.
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A realidade, a evidência de uma canção, manifesta-se por uma voz singular:
a do intérprete; voz única, distinta, voz registrada pelo ouvinte desde o primeiro
contato com o artista. Esta proposta tende a deslocar sobre o registro da música
pura os conjuntos vocais que privilegiam a virtuosidade e a complexidade do
canto preferivelmente à intenção e ao tom.
Geralmente, a escolha estética à qual o intérprete é confrontado oscila
entre dois pólos aparentemente antagônicos: o bem cantar e o bem dizer, de
modo que as vozes tornem-se classificáveis de acordo com estes dois eixos: o da
beleza formal e o da expressividade máxima.
No domínio das canções, tudo se passa como se o melhor (cantado)
fosse inimigo do bem (dito). Numa obra relativamente centrada na performance e
na voz, Gérard Authelain4 cantor e formador, distingue as vozes ditas naturais das
vozes colocadas ou empostadas, mas esta classificação não nos parece tão
relevante quanto a precedente.
Qualquer voz é única. Caracteriza-se e singulariza-se por critérios
fisiológicos e psicológicos pessoais, mas também por escolhas estéticas,
conscientes ou inconscientes como os traços socioculturais. É pela voz,
pelo gesto e pela energia que um corpo exprime-se e que um texto toma
corpo. No que diz respeito às relações entre a voz e o corpo, devemos
considerar as noções de incorporação – do canto no corpo – e de corporeidade
– expressividade corporal pelo canto; mas esses são temas para estudos
posteriores.
O corpo na performance
O segundo componente determinante é a presença física do artista, a
exposição do seu corpo num aparente desnudamento em público. Podemos
abordar sucessivamente os seguintes elementos:
A boca, ao mesmo tempo concha e trampolim da voz. Será interessante
estudar como o artista forma as palavras com os seus lábios no momento da
4
Gérard Authelain, La chanson dans tous ses états, Van de Velde, 1987.
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enunciação, quer seja sofregamente, ou com aplicação, distinção, desdém,
desenvoltura…
Os olhos, que podem permanecer fechados como é de costume para os
cantores de fado ou de flamenco, podem ficar fixos ou tornarem-se bastante
expressivos. Mais expressivo ainda é o olhar, que o cantor pode projetar adiante
ou deixar flutuar no ar, piscadelas de olhos, furtivos ou inquietos. A notar também,
o eventual uso dos óculos como sinal distintivo – pensamos no exemplo da
famosa cantora internacional Nana Mouskouri; podemos sinalizar igualmente os
óculos de Ivan Lins e de Zeca Baleiro, hoje, ou aqueles, escuros, usados há
algum tempo por Raul Seixas.
O rosto, que mostra uma expressividade máxima pela sua mobilidade, os
traços da face e as mímicas do intérprete; o rosto pode também ser disfarçado
pela maquiagem – como praticado por Ney Matogrosso ou Jean Guidoni. O
corte dos cabelos (as tranças de Gil, a cabeleira de Gal), o uso de barba, as jóias,
as tatuagens e os piercings são outros signos que entram na composição da
personagem em cena.
As mãos, cuja posição (com mobilidade permanente ou coladas ao corpo),
a forma (aberta e acolhedora ou fechada ou com o indicador apontado para
chamar a atenção), as poses apresentadas tal como uma mão no bolso para
sugerir uma atitude relaxada ou o punho posto na cintura ou os dedos acariciando
o microfone em pé. As mãos servem de prolongamento, de extensão da voz do
artista e às vezes servem-lhe de proteção, de defesa.
O corpo inteiro, por último, ou seja: braços, busto, pernas, considerados
juntos ou separadamente, e, acima de tudo, a valorização ou a dissimulação de
usuais atrativos sexuais como os músculos, nos homens, e os seios e as nádegas,
nas mulheres mais particularmente.
Todos esses componentes corporais: boca, olhos, rosto, mãos, corpo,
partes sexuais, são, todos eles, elementos significativos da atuação desta
corporeidade e do seu papel semiótico e sensível. A este respeito, lembramos
simplesmente que todas as práticas da cena e do espetáculo em geral são
experiências de comunicação e conseqüentemente de sedução.
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A gestualidade e o movimento a serviço da construção do sentido
O terceiro eixo da nossa reflexão, a gestualidade, é a combinação e a
animação dos elementos descritos anteriormente. Ela é examinada aqui sob
todos os aspectos, quer seja introspectiva, ilustrativa, redundante ou extrovertida.
Se os gestos podem distribuir-se em diversas categorias, nenhum é exclusivo
jamais; são mais tendências que evocamos, que uma classificação fixada.
Conhecemos duas grandes séries de gestos: os gestos aplicados – os que
trazem sentido em função de um discurso e um projeto – e os gestos
comportamentais – os que são ligados aos artistas e à performance mesma e
os marcadores socioculturais.
Cabe apresentar esta distinção. Os gestos aplicados são gestos
integrados à ficção, que comentam, sublinham a narração e o ponto de vista do
intérprete. Conhecemos dois grupos: os que são usados para provocar um efeito
imediato sobre o público tendo por finalidade ganhar a sua adesão (função fática)
- podemos chamá-los de gestos atraidores - mas quando eles se mostram
demonstrativos em excesso, perdem o sentido e tornam-se gesticulações
grotescas; por outro lado, temos os gestos simplesmente evocatórios que dão ao
público os meios para interpretar a significação sem que a mesma seja imposta.
Mas esta distinção é bastante sutil e o mesmo artista pode utilizar os dois tipos de
gesto, até mesmo numa única canção.
Já os gestos comportamentais, que compõem a segunda série,
repartem-se igualmente em duas tendências: os gestos ligados aos artistas e à
performance aqui e agora, que servem também para estabelecer e manter o
contacto com o público (métodos conotativos), e os gestos conotados
sociologicamente e culturalmente, frequentemente acoplados com a maquiagem
e o traje de cena.
Os primeiros revelam a atitude do cantor, porque são ligados à sua
personalidade profunda e seu personagem em cena. Estes gestos traem o
comportamento geral do cantor no que diz respeito à sua arte e no que diz respeito
ao público a quem se dirige (cf. Johnny Hallyday e Bernard Lavilliers da mesma
maneira que Ney Matogrosso e Zeca Pagodinho). É forte a tentação de agrupar
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nesta série certos gestos semioticamente supérfluos como os sorrisos fora do
contexto ou os agradecimentos em série, geralmente supérfluos, mas destinados
a ornamentar o tour de chant, a trazer um toque de graça suplementar e a cuidar
da relação com o público.
A outra tendência refere-se aos indicadores socioculturais e socioestéticos
que caracterizam o projeto do cantor. Aí estamos quase a meio caminho entre
escolhas técnicas e escolhas semióticas porque de fato os métodos e as técnicas
de canto constituem-se em indicadores sociais. Esta categoria dos indicadores
socioculturais e socioestéticos é de longe a mais determinante quanto ao sentido
que é dado a uma enunciação cantada. É o uso que é feito da voz, o tom escolhido,
quer seja delicado, precioso, arrogante, implorante, eufemístico, sofisticado, cheio
de descaramento ou de artifício, que caracteriza (denuncia?) o projeto de cada
intérprete. Portanto, podemos estudar uma série de elementos significativos e
constitutivos da gestualidade, entendida ao sentido geral.
Um desses elementos é a posição física do cantor. O cantor pode
apresentar-se de pé em frente do público, com ou sem instrumento para
acompanhar-se, ou sentado, recolhido sobre o seu instrumento ou até mesmo
protegido por este. Esta postura do cantor sentado, necessária para os artistas
acompanhando-se ao piano, permanece, na França, uma prática pouco comum
e bastante desvalorizada, mesmo quando se trata de intérpretes que utilizam um
violão (a exemplo de Jacques Bertin ou das quebequenses Kate e Anna
McGarrigle) ou qualquer outro instrumento. Cabe lembrar que esta atitude cênica,
que foi muito tempo aquela dos cantores-instrumentistas da tradição popular, era
privilegiada também pelos primeiros cantores de rébétika, fado, flamenco e mesmo
de blues, e que continuou a ser correntemente praticada na América Latina por
artistas tão diversos como Atahualpa Yupanqui ou, nestes últimos anos, no Brasil,
Caetano Veloso, João Bosco e Xangai.
A faculdade de ocupar o espaço cênico em sua totalidade ou de ficar
numa área limitada, num porto seguro, revela, segundo as situações, um
temperamento seguro, dominador, extrovertido ou discreto.
Desde os anos 70, o uso do microfone manual, com ou sem fio, tornouse cada vez mais freqüente. Esta prática permitiu criar um clima mais propício à
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intimidade; por outro lado limitou claramente a expressividade manual e a
gestualidade dos artistas. Espera-se que os novos recursos tecnológicos de
microfone de lapela e de tipo alta freqüência, em parte escondidos, dêem
futuramente um novo impulso à interpretação cênica.
Os movimentos lentos, preciosos, diáfanos, calculados, espontâneos,
bruscos, os deslocamentos e as pausas, as correntes de gestos, as continuidades
e descontinuidades, bem como as rupturas eventuais na marcação (o desenho
do deslocamento no espaço cênico), são elementos do tour de chant.
Os figurinos distinguem o cantor e contribuem fortemente para edificar
a sua imagem de marca, seu estilo. Nenhum traje é neutro, mesmo o terno
clássico azul escuro (de Francisco Alves a Gilbert Bécaud) ou a blusa branca
com decote, de Patachou. Os exemplos não faltam. No caso da França, as
roupas de veludo preto com botas e lenço vermelho de Aristide Bruant, luvas
pretas compridas de Yvette Guilbert, raminho de lírios-do-vale de Félix Mayol,
chapéu de palha de Maurice Chevalier, bigodes e cachimbo de Georges
Brassens, camisa regata (sem mangas) e roupas de couro de Bernard Lavilliers.
No caso do Brasil, os turbantes exóticos extravagantes e sapatosplataforma de Carmem Miranda, roupa de marinheiro de Dorival Caymmi, chapéu
nordestino de cangaceiro de Luiz Gonzaga, pulseiras e colares de Maria Bethânia,
trajes psicodélicos do grupo Os Mutantes, boné estufado de Milton Nascimento,
dreadlocks de Carlinhos Brown; ou ainda cartolas, chapéus e penteados de toda
espécie ou mesmo acessórios como a bengala e o xale, e diversos outros signos
identitários. Em todos os casos, quer seja popularesco (blue-jean), alternativo
(roupas hippie) ou aristocrático (fraque), o traje cênico deve harmonizar-se com
o repertório e o estilo do cantor.
Mas é pela atitude comportamental em cena - que se aplica ao mesmo
tempo à sua postura, ao seu jeito e à sua relação com o público, que o intérprete
combina a ética – a responsabilidade social do artista – e a estética – as escolhas
pessoais em função de uma experiência humana.
Esta dimensão comportamental, que pode variar desde a imobilidade, a
sobriedade, a expressividade invocadora, a ilustração naturalista, até a provocação
21
ou exuberância desenfreada, merece ser objeto de um estudo posterior específico,
já que é sempre pela imagem do seu personagem público que o cantor é
identificado e admirado. Na medida em que a atitude comportamental traduz a
animação do personagem em cena e induz a uma certa representação simbólica
do espetáculo, decidimos incluí-la na série de gestos comportamentais.
Observamos assim atitudes delicadas, neutras ou violentas com vistas a
traduzir estados de alma circunstanciados, mas também poses distanciadas ou
invasivas e até vulgares, compondo uma atitude geral, ou ainda gestos pleonásticos
ou simplesmente evocatórios, em acompanhamento do sentido intencional.
Contudo, os gestos, posturas e movimentos observados continuam complementares
do sentido orientado, determinado pelo discurso da palavra cantada. Assim como a
música, os gestos são desprovidos de autonomia semântica.
Cabe notar que este tipo de análise, aplicado à performance cênica, é menos
necessário quando o artista grava em estúdio, com exceção dos casos em que o
público esteja efetivamente presente; temos de resto vários exemplos disso tais
como Vinícius de Moraes, gravando o seu Samba da Benção em estúdio, em
Buenos Aires, com os seus amigos e algumas garrafas de bebida, na intenção de
recriar o ambiente ao vivo, ou ainda Édith Piaf, que registrou uma série de canções
no Auditório da Rádio-Lausanne na presença de mais de uma centena de pessoas.
3. Interpretação como modo de usar
A partir da reflexão sobre as modalidades teóricas e práticas da
interpretação das canções, torna-se possível definir alguns princípios destinados
a artistas no início da carreira. Cada ponto mereceria maiores comentários, mas
isso já seria entrar em uma perspectiva profissionalizante. Seguem, então,
algumas das regras essenciais do ofício de intérprete:
As canções são destinadas a serem cantadas e concretizam-se apenas
quando recebidas por um público. A cena e, em grau menor, o estúdio constitui o
seu fundamento, sua evidência. Daí a importância da relação e das interações
com os públicos, quer seja numa sala – durante o tour de chant – ou por mídias
interpostas: disco, rádio…
22
Cantar é interpretar, oferecer, traduzir sentimentos. Ou, dito de outra
maneira, o modo de dizer, o tom (sentido intencional do cantor), importa tanto ou
até mais do que aquilo que é dito (sentido literal de um texto). Quando uma
canção atinge um nível qualitativo elevado há frequentemente congruência entre
o conteúdo e a enunciação.
O projeto criador do intérprete o compromete a manter coerência entre
todos os componentes que mobiliza: os meios e métodos artísticos e os objetivos
visados. Neste espírito, incumbe-lhe afinar estes dois níveis: os elementos formais das
canções - poéticos e musicais, vocais, cênicos, até os arranjos - e os componentes
do seu estilo - seu ser com sua voz, seu corpo, sua experiência, psicologia e
sensibilidade, o universo temático evocado e seu comportamento global.
Salvo os efêmeros – e vãos – exercícios de estilo, ninguém pode enganar
muito tempo o público com o personagem construído, que deve sempre responder
a uma exigência interna.
Qualquer cantor deve conhecer as suas potencialidades e os limites
do seu ser físico e mental. Quanto a isso, não se pode deixar-se seduzir demasiado
tempo por um modelo ideal, por mais atraente que seja. Serge Lama torna-se
celebridade apenas quando se liberta do seu modelo, Jacques Brel; e Francis
Hime só consegue comunicar o seu próprio universo a partir do momento em
que livra-se da influência de Chico Buarque.
Do mesmo modo, o intérprete, se é criativo, não pode satisfazer-se em
copiar ele mesmo sob o pretexto de que aquilo funcionou uma vez, armadilha
demasiado freqüente no mundo dos espetáculos.
A questão central fica sendo a passagem da personalidade – o indivíduo,
com a sua história de vida, sua vivência, sua psicologia - para o personagem em
cena – o artista, com o seu estilo identificado, sua visão de mundo, seu universo
poético e gestual, sua imagem pública. Pois, convém conhecer-se, saber quem
se é intimamente, mas, também, convém saber o que os outros pensam de nós,
como eles nos vêem. Uma necessidade impõe-se: ser único sendo você mesmo.
O intérprete deve aprender a compor um repertório pessoal, variado
e homogêneo que permita identificá-lo. Em primeiro lugar, o cantor deve distinguir
as canções de que gosta por afinidade pessoal e aquelas que correspondem à
23
sua personalidade, que estão em harmonia com o seu projeto e que poderá e
saberá interpretar nas melhores condições. Em seguida, deve deixar-se
tranquilamente impregnar pelas obras a interpretar a fim de assimilar o ambiente
e o estado de espírito delas antes de experimentar todas as potencialidades de
um texto e escolher a sua própria via.
Se, por um lado, é fisicamente possível cantar tudo, após um mínimo de
preparação humana, artística e técnica, por outro lado o repertório do cantor
deve estar em harmonia com as suas capacidades vocais, cênicas e psicológicas,
sem que fique trapaceando permanentemente ele mesmo, os textos e sua
audiência.
Certos temas não plenamente dominados ou ambíguos podem provocar
a rejeição de uma parte do público. Com todas as reservas usuais, podemos
afirmar que os excessos de bons sentimentos ou o pathos prejudicam a
intensidade dos tours de chant. Não são jamais os bons sentimentos que fazem
as boas canções. Nem é a pieguice que consegue comover profundamente por
longo tempo. Existem outros meios mais eficazes e mais práticos para fazer
compartilhar sentimentos e convicções, como o distanciamento, o humor ou a
sátira. Ainda que o estilo popularesco seja de uso freqüente nas canções,
precisamos desconfiar do descaramento falso, porque para ser crível um tom
familiar deve preservar o sabor do natural e da sinceridade. Temos exemplos
comprovados com Mouloudji ou João Nogueira, entre outros.
Todos os artistas e todas as obras inscrevem-se em uma longa história do
espetáculo e em uma cultura-canção de uma riqueza infinita que deveriam incitar
à prudência e a uma grande humildade. Jacques Brel e Georges Brassens ou
Chico Buarque e Ney Matogrosso estão entre os exemplos de humildade. Será
preciso repetir que todos os cantores famosos prestaram atenção por muito
tempo aos artistas que admiravam, tendo assistido numerosas vezes aos seus
espetáculos, dos quais souberam tirar lições proveitosas?
O melhor conselho é incitar cantores iniciantes a assistirem aos
espetáculos dos grandes intérpretes de hoje e de seus colegas; haverá sempre
algo interessante que saberão reconstruir, reinterpretar em função do seu próprio
estilo. No mesmo espírito, é desejável possuir uma cultura geral significativa e
24
uma abertura ao mundo a fim de descobrir associações de idéias originais e
assim estimular seu próprio imaginário.
Cantar é por definição comunicar-se com os outros, com públicos múltiplos
e de variadas sensibilidades. Cantar para o público significa dirigir-se a ele com
generosidade. Ninguém canta somente para agradar a si mesmo, mas com o
objetivo de seduzir, comover e convencer outras pessoas!
Para comunicar, compartilhar emoções com os espectadores ou os ouvintes,
é preferível não afogá-los em complicados estados de alma construídos com questões
psicológicas pessoais. O cantor deve ser concreto, prático e humano. Deve conhecer
o seu público e ficar à sua escuta para falar-lhe do que concerne a todos.
O projeto criador de um cantor é concebido com um conjunto de pessoas.
Este projeto envolve toda uma equipe criadora: cantor, autor, compositor,
arranjadores, músicos, diretor artístico, encenador e empresário, dentre outros
agentes eventuais. É necessário abandonar a visão romântica do gênio solitário e
incompreendido; é sempre uma equipe que permite e acompanha um êxito artístico.
O início de todo projeto artístico consiste em ter algo a dizer (quer o cantor
escreva-o ele mesmo, quer ele faça-o seu), algo de original, de diferente, embora
não se possa afirmar isso com toda certeza...
Os temas tratados e os procedimentos estilísticos são limitados e a
inspiração não é inesgotável; o encontro com outros parceiros pode ajudar a pôr
em forma e a concretizar as idéias.
Estes princípios implicam rigor e recusa das complacências. Se tiver sua
missão em alto conceito, o cantor terá aversão à demagogia, evitando os
comentários inúteis ou intermináveis destinados ao público, assim como a
vulgaridade, quanto aos textos cantados e à sua atitude em cena. Isso não significa
que não se deve utilizar palavras licenciosas ou ríspidas, se são verdadeiras, se
integram a obra. Se for necessário dizer “merda”, o artista deve dizê-lo sem
cerimônias!
Do mesmo modo, o artista precavido cuidará de utilizar objetos só quando
for indispensável. Evitará os acessórios inúteis e outros truques que desviam a
atenção do espectador, como cenário fora de propósito, fumaça em abundância...
25
Qualquer intérprete de canções estabelece como objetivos comover e
convencer. Para comover, deve dar provas de uma sensibilidade extrema e para
convencer, deve ser ele mesmo, convencido! Importa ter uma idéia-força, um
ponto de vista sobre o mundo, mas também ser simples, potente, verdadeiro;
evitar diluir-se, espalhando-se em palavras, mímicas e gestos com canções
intermináveis. A canção é uma arte da concisão e, sobretudo, da eficácia. Três
termos resumem idealmente o projeto de um intérprete da canção: intenção,
tom, e convicção.
Os jovens cantores destinam-se a um ofício em grande parte solitária; no
entanto eles devem saber que são centenas a ser “únicos” assim. O espetáculo
vivo é um ofício árduo, altamente competitivo e com pouca generosidade. O
artista é tratado sem piedade. Então, entrar neste mundo do espetáculo exige do
novato que conheça as lógicas singulares do meio, os procedimentos e as
arapucas.
4. Os indicadores profissionais da excelência
Com base na apresentação acima dos elementos constitutivos da
interpretação e das regras implícitas em vigor, podemos avançar com uma série
de observações que põem em evidência as qualidades essenciais requeridas
para afirmar-se intérprete de talento e experiência.
Essas qualidades não são todas, e em todo momento, indispensáveis e
não assumem o mesmo caráter de importância em todas as situações; contudo,
é sempre uma combinação feliz destes critérios que condiciona as ótimas
possibilidades da interpretação. Outros elementos ainda poderiam ser sugeridos,
como o trabalho de investigação para montar um espetáculo ou os exercícios
corporais necessários para mostrar boa performance e para certas seqüências,
nas quais a dança ocupa um lugar proeminente. Fizemos a escolha de centrar
mais diretamente nosso estudo sobre a interpretação em si.
Ainda que os artistas de maior sucesso no mundo do espetáculo não
apliquem ao pé da letra estas propostas, todos as conhecem e sabem adaptálas, senão desviá-las, em função do seu projeto específico, mesmo que seja de
natureza comercial ou demagógica.
26
A fim de mostrar a importância destes procedimentos, qualificamo-los
como indicadores de excelência, pelo fato de que oferecem marcadores válidos
e reconhecidos pelos profissionais e pelo público conhecedor.
Podemos citar:
A abordagem global da interpretação das canções, em oposição a uma
simples adição de elementos ou de procedimentos vocais e cênicos. Esta
concepção pressupõe a inscrição harmoniosa da interpretação nas duas instâncias
mais amplas que são o projeto criador e a performance. Assenta-se também na
dinâmica criada entre a tensão e o relaxamento que resultam do conflito latente
entre a intensidade de uma interpretação e a sedução carinhosa da voz cantada.
O respeito ao espírito de origem das obras cantadas, ao invés de
recriação parasitária; mas pode-se avaliar isso com segurança? O tom
apresentado pelo cantor dá conta do sentido acrescentado - cumplicidade,
confidência, humanidade, indiferença, desenvoltura, proeza técnica, escárnio…Há
algum tempo, existe uma regra implícita nas artes cênicas segundo a qual o
intérprete serve ao texto, está a seu serviço, em vez de servir-se dele para valorizarse enquanto fenômeno espetacular. Daí a denúncia, feita por certos comentaristas,
da virtuosidade formal de alguns intérpretes.
O recurso a um estilo de canto percebido como natural, quando
sabemos que nada é mais difícil a realizar em cena do que parecer simples. O
objetivo visado pelo artista é de ser ou parecer crível, sincero, verdadeiro. Este
traço, este efeito do natural no espetáculo, é frequentemente atribuído a um dom
ou um talento supremo. Podemos citar assim, na França: Félix Leclerc, RenéLouis Lafforgue, Francis Lemarque, Michèle Bernard, Jean-Roger Caussimon…
e, no Brasil: Noel Rosa (especialmente nas suas composições de canto falado),
Jackson do Pandeiro, Paulo César Pinheiro, dentre outros.
A autoridade, a segurança, o controle de si ou a faculdade que tem o
cantor de impor sua voz no palco ou no disco sem esforço aparente, sem efeitos
especiais nem demagogia. Uma autoridade que se revela como evidência. É um
dos atributos do grande intérprete saber dominar as situações e os imprevistos
sem ter necessidade de brigar com a técnica, com os companheiros de cena ou
com o público.
27
A presença do artista, enquanto competência comunicativa; esta
presença é, ao mesmo tempo constitutiva e resultante do modo de comunicação
instaurado com o público; é frequentemente ligada ao carisma do cantor, dado
que esta qualidade assenta-se em grande parte sobre uma relação de sedução.
Não há presença se não há contato – real (em cena) ou virtual (em disco, em
rádio…) –, entre o cantor e sua audiência. É bem pela sua presença obsedante,
vocal e gestual, que o cantor provoca interesse no público, cativa-o. O carisma,
bem como a sensualidade do intérprete é uma das condições básicas de um
modo de comunicação, efetivo, desejado e compartilhado.
A expressividade, como tal, que é a capacidade do intérprete de valorizar
e transmitir um conteúdo poético-musical, de torná-lo compreensível e significativo
através do seu olhar pessoal e sua enunciação. Em graus diversos, todos os
artistas, dos mais intelectuais aos mais comerciais, possuem este dom. O talento
consiste em saber adaptar, modular esta expressividade latente em função dos
conteúdos enunciados e dos públicos visados.
A sutileza, a inteligência e a perspicácia da enunciação, que são
marcas de distinção e implicam, além disso, no sentido dos matizes devido à
alternância dos “blocos” cantados entre tensão e relaxamento. Trata-se de uma
faculdade que recorre mais à impregnação num universo poético-musical
sensível e a sua apropriação inteligente do que à espontaneidade ou à emoção
sentida pelo cantor.
Novamente assinalamos que os artistas podem atingir resultados similares
recorrendo a métodos interpretativos de natureza diferente. Assim, a sutileza
espantosa, de Catherine Sauvage e o gênio intuitivo, de Édith Piaf, permitem,
ambos, restituir, por vias diferentes, a profundidade e os matizes de certas canções.
A sensibilidade distinguida e delicada de Nara Leão, bem como a implicação
passional de Maria Bethânia na sua arte, são duas outras ilustrações.
O distanciamento, que é uma qualidade racional, inspirada no teatro
contemporâneo, que consiste para o artista em nunca deixar-se dominar pela
narração nem pelos sentimentos suscitados, mas em guardar certa objetividade
a fim de levar os espectadores a entenderem e reagirem. Poucos cantores chegam
a dominar isto com maestria e, outra vez, o exemplo mais contundente é o de
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Catherine Sauvage, artista formada no teatro, que cantou por muito tempo os
repertórios de Bertolt Brecht e Léo Ferré.
O sentido dos matizes, que exige do intérprete que saiba perceber e
revelar as diferenças de sentidos, frequentemente mínimas, entre as descrições,
os valores e os sentimentos evocados. Só o trabalho de assimilação das obras e
o talento expressivo dos intérpretes permitem dizer mais com o mínimo de meios.
Demasiado raros são os cantores capazes de alternar registros enunciativos
durante uma canção e exprimir assim as diferentes tendências semióticas de
um título, como o fazia Yves Montand em Le Chat de la voisine, Catherine Sauvage
em Surabaya Johnny ou Maria Bethânia em Luz da noite e Tira as mãos de mim.
Finalmente, a capacidade de adaptação permanente ao contexto:
contexto de execução e de audiência, o que inclui o controle das interações,
como apartes ao público, comentários, reações e interferências diversas. O
intérprete esperto deve saber em qualquer ocasião demonstrar responsabilidade
e capacidade de improvisação.
5. Critérios de apreciação
Com base nestas reflexões, podemos agora pôr em relevo alguns critérios
de apreciação das interpretações nas quais as escolhas do intérprete jogam um
papel determinante. Abordaremos, na ordem: o repertório, a voz, o corpo na
performance, a relação com o público e a personalidade do cantor.
O repertório: originalidade da escolha dos títulos; eficácia e coerência
das canções interpretadas; construção e progressão do tour de chant; adequação
do repertório à personalidade do intérprete; respeito às obras interpretadas e
desvio criativo eventual; ecletismo e capacidade de adaptação do cantor às
variações do repertório.
A voz: qualidades singulares como o timbre, que deve ser único e
imediatamente perceptível; precisão da enunciação, com simbiose bem sucedida
da articulação das sílabas e ligações entre os sons; expressividade específica da
voz, percepção das nuances e dos matizes utilizando desde o cochicho até a
intensidade máxima na dimensão do grito; domínio formal das obras cantadas,
29
e, paradoxo supremo, qualidade do silêncio!
O corpo na performance: deve-se avaliar a qualidade intrínseca de uma
gestualidade sem gesticulações exageradas; a necessidade, a
complementaridade e a coerência dos gestos aplicados e dos gestos
comportamentais; beleza plástica e valorização do corpo exibido; sentido do
espaço e do movimento, recursos à mímica como forma de expressão,
maquiagem e indumentárias adequadas.
A relação com o público: natureza, qualidade e intensidade do contato
com a audiência, convicção exprimida, modo de comunicação e interação
eventual, maestria, desembaraço, autoridade real sobre o conjunto da
performance, atitude convencida e convincente.
A personalidade: formulação de um projeto criador claramente
identificável e correspondência do mesmo com o resultado obtido; originalidade
do personagem no palco, carisma, sedução, capacidade de dar e criar sentido;
coerência entre o projeto e os meios mobilizados; apreciação do comportamento
geral do artista, que depende tanto da ética quanto da estética, e, finalmente, a
dedicação do artista ao gênero canção.
Conclusão
O cantor transmite em canções idéias, emoções e uma experiência
humana. A interpretação das canções faz parte de uma vasta combinatória
semiótica; essa interpretação está dentro de um processo de comunicação com
canções que implica uma intenção, um texto, um bloco musical, enfim uma
interpretação por parte de um cantor, com o seu projeto, seus meios
psicofisiológicos e artísticos singulares, numa situação aqui e agora, num contexto
social e sendo garantida uma recepção.
Trata-se de uma arte de síntese que exige do artista, além das
competências usuais de cantor e de ator, qualidades humanas e
comportamentais específicas que se apóiam mais sobre a história de vida e
a experiência individual que sobre procedimentos resultantes de uma
aprendizagem profissional.
30
Uma interpretação realizada reúne, assim, além da aplicação, do rigor e
do talento na sua arte, qualidades artísticas tão diversas como inspiração,
curiosidade, sensibilidade, humanidade, presença, elegância, sedução e
convicção, faculdades existenciais que emanam do ser e exprimem a vida.
Portanto, não existem, a nosso ver, modelos de interpretação ideais
aplicáveis de maneira geral. Os diferentes tipos cantados (da canção vivida ao
couplet cômico, do tango à modinha) suscitam obras variadas, na forma e no
espírito, de acordo com os repertórios, as culturas, as épocas e os artistas
considerados.
Em tal disciplina artística, digo, nas canções, onde as noções de dizer e
de tom prevalecem sobre as qualidades formais da música, do jogo de cena e da
dicção, os critérios de avaliação das interpretações dependem essencialmente
dos indicadores de excelência, subjetivos por natureza, que resultam do
conhecimento exaustivo da história do espetáculo e da análise dos projetos
criadores referidos.
Em ultima instância, pode-se dizer que a chave do sucesso reside numa
complexa mistura de dom ou aptidão, presença de espírito e knowhow, e consiste
em propor aos diversos públicos espetáculos e canções midiatizadas, que
correspondam à sua sensibilidade, ao momento esperado; e, todos devem
concordar, é preciso ter também muita sorte...
Por último, e por todas as razões evocadas neste artigo, é procedente
dizer que, no domínio das canções, o cantor-intérprete-ator dos tours de chant,
em cena, e das gravações, em estúdio ou sobre um palco, impõe-se como um
verdadeiro criador das canções.
31
O RECITAL DE YVES MONTAND NO THÉÂTRE DE L´ÉTOILE
ou
COMO O POLÍTICO IRROMPEU NOS PALCOS DE MUSICHALL DE PARIS5
Christian Marcadet
O objetivo deste texto é apresentar resumidamente uma parte de uma
pesquisa realizada em quatro anos. Falo sobre Yves Montand (1921-1991), um
dos cantores emblemáticos do século XX.
Montand se impôs na França como cantor número um com a idade de 30
anos e fez uma carreira prestigiosa durante 40 anos, cantando sempre perante
salas superlotadas. Foi convidado para os maiores palcos do mundo: Olympia
de Paris, Teatro Tchaïkovski de Moscou, Metropolitan de New-York e
Maracanãzinho do Rio de Janeiro; cantou no Japão, em Israel e em toda a
Europa com o mesmo êxito sempre.
Montand foi um showman tão talentoso quanto Frank Sinatra, uma voz
expressiva e calorosa como Carlos Gardel, com um sentido de palco e uma
expressividade equivalentes aos de Maria Bethânia, e uma convicção do tamanho
daquela de Geraldo Vandré. Ele simboliza, em um artista único, a reunião do
artístico, do político e do ético.
Se Yves Montand deixou, antes de tudo, uma obra singular com as suas
dimensões próprias (estilo, tom, coerência, compromisso, convicção e modo de
comunicação com os públicos), tornou-se evidentemente necessário estudar as
razões pelas quais várias vezes o cantor provocou a irrupção das implicações
políticas nos palcos de music-hall onde se apresentava. Com este objetivo, as
causalidades sociais acerca da origem do fenômeno Montand são discutidas
amplamente neste trabalho: origem familiar, relação com o campo político, campo
social do espetáculo, estatuto de grande estrela da canção.
5
Texto adaptado e muito ampliado da palestra apresentada no III Simpósio de História Cultural Mundos da
imagem: do texto ao visual, GT Nacional de História Cultural da ANPUH, Florianópolis, 18 a 22 de
Setembro de 2006, Mini Simpósio Sons e imagens: escutas musicais e sensibilidades.
32
No entanto, não seria possível estudar estas influências, se não tivesse
chegado a articular todos estes elementos que dependem do social com os que
concernem ao artístico: repertório, performances cênicas, sensibilidades ética e
estética. Em função disso, este estudo de caso visa analisar e compreender os
determinantes sociais e estéticos da carreira de um artista, que, sob vários
aspectos, se impôs como um expoente da interpretação das canções.
1. O contexto histórico e cultural
Na França, é nos anos 50 que começa de fato a Liberação. Os anos que
se seguem à guerra mundial de 1939 -1945 são anos divididos entre a esperança
e a crise. Esse período é marcado pela reconstrução do país, que se encontrava
em grande parte em ruínas, em catástrofe humanitária e em crise monetária.
Se, como em 1936, no momento da Frente Popular, a vontade de superar
as provações e a esperança de unir o povo, propondo-lhe um ideal comum,
conserva toda sua atualidade, a pressão resultante das urgências econômicas e
políticas reinstala o conflito na sociedade francesa.
A partir de 1947, o clima social é marcado por uma série de
acontecimentos: contexto de guerra fria imposto pelos estadunidenses;
instabilidade política dos ministérios da Quarta República; recomposição do
grande capital industrial e financeiro em detrimento das camadas populares;
combates de retaguarda de um colonialismo esgotado (o drama argelino
sucedendo a retirada da Indochina) e papel de contra poder relativo do Partido
Comunista, que obtém, em todo este período de pós-segunda guerra mundial,
resultados eleitorais que oscilam entre 25 e 29% dos votos. Nestas condições, os
desafios sociopolíticos dividem o país e o entusiasmo decai.
O mundo social das variedades
Do início até o fim deste período de pós-guerra mundial, o mundo social
regula o mundo do divertimento. Em reação às políticas atlantistas (definidas
pelos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte - OTAN) que os
governos franceses adotavam, os meios artísticos queriam posicionar-se sobre a
33
realidade social; o humor torna-se cáustico, ferino, o marxismo e o existencialismo
ocupam a dianteira da cena intelectual parisiense.
No intuito de compreender a história através das produções culturais de
uma época, parece pertinente tomar as canções como objeto de estudo. Na sua
qualidade de expressão artística e de produto comercial ancorado no seu tempo,
elas parecem qualificadas para exprimir o imaginário e o inconsciente coletivos
de uma época.
A configuração do mundo do espetáculo no pós-guerra, na França,
assenta-se ainda sobre a superioridade do palco como verdadeiro trampolim de
carreira. As mídias da cultura de massas (imprensa, rádio, televisão) não controlam
ainda a corrente produção-promoção-divulgação. Os cabarés famosos, como
l’Écluse e Les Trois-Baudets, desempenham um papel decisivo de descobridores
de talentos. As empresas fonográficas dão muito crédito aos diretores artísticos,
frequentemente tão talentosos quanto os artistas.
Os grandes music-halls, como o Théâtre de l’Étoile e o Olympia, procuram
infatigavelmente novos cantores populares para atrair as multidões e as tournées
de verão atingem um grande sucesso. Todas estas condições favorecem então
a promoção dos candidatos mais decididos e talentosos tais como Bourvil, Luis
Mariano, Georges Brassens, Léo Ferré e aquele a quem este trabalho se refere:
Yves Montand.
Em nossa abordagem, ser cantor dos anos 50 é não somente representar
o espírito desses anos, mas é ser também aquele com o qual o público se
identifica maciçamente.
2. O recital mítico de Montand no Théâtre de l’Étoile
Foi um acontecimento sem precedentes. Durante 6 meses, de Outubro
de 1953 até Abril de 1954, numa sala parisiense prestigiosa de 1400 lugares,
Montand deu 200 (duzentos) concertos consecutivos, atuando perante quase
300.000 espectadores. A cada noite a sala ficava completamente lotada. Seu
recital, composto de 25 canções – incluindo 4 sketches cantados e dois poemas
recitados, desenrolava-se em duas partes com intervalo e constituía um modelo
34
perto da perfeição. O conjunto da imprensa e o público concordavam em dar sempre
ao artista um acolhimento entusiasta e declarar que, aos 32 anos, Yves Montand
impunha-se como o cantor de referência da história do music-hall na França.
O espetáculo era marcado por duas marchas nobres e triunfantes, que
imprimiam um tom majestoso à apresentação: Quand un soldat6, canção de n°
3, e, perto do fim, o grande momento do recital, C’est à l’aube. O repertório foi
construído sobre oposições definidas entre os títulos de convicção – os que
exprimem uma tensão marcante e a aspiração de cumplicidade com a audiência
e os títulos lúdicos – os catárticos do repouso, do alívio liberatório.
Dois poemas são recitados: Le Peintre, la pomme et Picasso e o patético
Bárbara, que Montand anteriormente cantava e que agora assumia uma
profundidade e um impacto novos. Uma canção era particularmente esperada,
como expressam, na gravação, as exclamações admirativas depois do seu
anúncio feito pelo artista: C’est à l’aube. Trata-se de uma canção humanista
militante, longamente e maciçamente aplaudida, que Montand insere
oportunamente após o número, bastante visual, Le Chef d’orchestre est amoureux.
No fim de certas canções, quando os espectadores aplaudem, não é
mais C’est à l’aube ou Le chemin des oliviers que eles louvam, nem tampouco o
próprio artista Yves Montand; um potente movimento coletivo envolve o público
“aqui e agora” e cada um é convencido de que todos juntos, nós, podemos
impedir a guerra, criar um mundo melhor.
Uma construção habilmente elaborada
Uma análise aprofundada dos títulos e a sua ordem de apresentação mostram
que o recital foi construído com rigor. Dois títulos destinados a criar um clima amigável
abrem o espetáculo, exatamente antes da primeira ruptura operada com a fraternal e
intensa Quand un soldat, canção pacifista emblemática, que Montand,
excepcionalmente, não anuncia. Ao cantar este número revela um tom natural,
6
Os nomes dos autores e compositores dos títulos que figuraram no programa deste recital de Montand são
mencionados em anexo.
35
convincente, e o cantor, em sintonia com o clima da platéia, define imediatamente o
tom da noite. Um espectador rabugento manifesta-se no fim, berrando “Montand na
Indochine!”, ao que Montand replica com um paternalista “Não, meu rapaz, obrigado…”,
antes de continuar imperturbável com a canção seguinte.
Montand alterna seguidamente títulos otimistas, fantasias, narrações e
poesias, colocando no meio, sabiamente preparado, Il a fallu e sua inacreditável
tirada final genial, que desconcerta a audiência: uma sucessão de perturbações
socioeconômicas que acabam em historieta sentimental!
Uma segunda ruptura ocorre com o nono título, Le Flamenco de Paris,
sóbria e comovente evocação da Guerra da Espanha, dramatizada pelo jogo de
luzes: foco sobre o rosto do cantor, violonista solista iluminado e um achado
surpreendente, a platéia em luz total. Esta primeira parte é encerrada com uma
nota festiva, com a canção Du soleil plein la tête, que o público pode cantarolar
durante o intervalo.
O princípio da segunda parte, que exige do artista a retomada da atenção
do público, efetua-se com um título simpático de uma valsa; Montand dá seqüência
ao show com títulos mais lúdicos. Vem, em seguida, uma longa seqüência
descritiva e mais visual de quatro canções, dentre as quais Les Cireurs de Souliers
de Broadway, que têm por função reforçar a segunda parte do espetáculo. Esta
última poesia humanista e anti-racista de Prévert, escrita em versos livres no
estilo corrosivo do poeta, é realçada pelo arranjo de jazz e o virtuosismo cênico e
vocal de Montand.
De concepção mais clássica, mas com uma intensidade extrema, o fim
do recital acontece num crescendo, com a conjunção de tonalidades sociais,
poéticas e populares, até atingir um clímax emocionante. Sucedem-se e
reforçam-se mutuamente: a exaltante C’est à l’aube, Barbara (poema pacifista
recitado a capella), a animada À Paris, e Les Feuilles Mortes, que se constitui na
apoteose do tour de chant7.
7
O “tour de chant” é o conjunto da performance de um cantor em um programa de variedades; é a
seqüência de todas as canções cantadas na ordem escolhida, sem interrupção de outro numero, qualquer
que seja. Neste sentido, um “recital” é um espetáculo com um tour de chant de um artista só.
36
Neste momento, a performance de Montand atinge uma dimensão de
cumplicidade rara, que a dimensão artística não é suficiente para explicar. Assim,
a tensão cristalizada encontra seu escape num título mais festivo: C’est si bon,
lengalenga popular, retomada posteriormente por Louis Armstrong (!), destinada
a prolongar, de maneira otimista, a noite. A tensão acumulada com Les Feuilles
Mortes, encontra o seu complemento no descontraído C’est si bon. Outra vez, o
público sente-se mais feliz, quase alegre, e pode deixar o teatro e voltar sereno e
recuperado para o mundo real.
Uma formação de jazz como apoio rítmico
No palco, Montand era sempre acompanhado por uma pequena banda
de cinco músicos dirigida por Bob Castella: piano, violão, acordeon, contrabaixo
e bateria. Todos estes músicos freqüentavam os meios do jazz (alguns trabalharam
com Django Reinhardt), tinham o sentido do swing e da improvisação e embora
fossem artistas solistas, estavam lá para acompanhar o cantor.
Instintivamente, Montand chega a imprimir um ritmo animado e contrastado
a seu recital. A busca de uma intensidade máxima é obtida por rupturas entre os
títulos: assim o paroxístico C’est à l’aube obtém um efeito decuplicado sucedendo
à divertida canção-sketch Le Chef d’orchestre est amoureux, e seu impacto encontrase prolongado pela dicção da voz nua com o poema Barbara. É devido a esta
alternância que se justifica também falar de Montand como inventor de um estilo.
Alguns termos impõem-se para qualificar este recital: coerência, presença,
força, virilidade, gravidade, convicção, naturalidade, sinceridade, espontaneidade,
frescor, descontração, ternura, sensibilidade, sensualidade. O que impressiona,
sobretudo quando o fenômeno é observado a distância, é a adesão dos
espectadores ao projeto do cantor e a natureza espontânea e calorosa do encontro
do mesmo com o grande público popular.
O sentido do equilíbrio
Uma das chaves do sucesso de Montand reside na busca de uma hábil
dosagem entre os três componentes da sua arte: textos/músicas/interpretações.
37
No seu tour de chant, os climas são às vezes poéticos, porém jamais de poesia de
alta densidade, mesmo se mais tarde vem a cantar autores como Paul Éluard e
Charles Baudelaire; tampouco se envolve em melodias eruditas demais, com
exceção de Les Berceaux, de Gabriel Fauré. Este equilíbrio é obtido sem excesso
de elementos patéticos ou piegas.
Cinco grandes tendências marcam o seu repertório: narrativo-descritivo,
conscientizado-militante, lírico-romântico, humorístico-lúdico e otimista-jovial.
O recital 1953 é construído sobre um equilíbrio perfeito entre os títulos mais
carregados de sentido e de intensidade – os títulos de convicção e os títulos
narrativos, e os mais representativos do espírito de divertimento e de sedução –
títulos líricos, lúdicos e otimistas.
Um estilo vocal que faz maravilhas
O seu timbre é jovem e flexível; além de articular as sílabas com uma
dicção perfeita, Montand sabe valorizar todos os matizes do canto desde o
cochicho, o canto falado, a escansão e as onomatopéias ritmadas, a flexibilidade,
a virilidade, o fervor, o vigor, até a voz empostada. Todos os profissionais
concordam em dizer que Montand tem uma das vozes mais cheias de calor e
delicadeza, algo nunca antes ouvido sobre um palco. Por momentos, Montand
coloca a sua voz para dramatizar um efeito ou apóia despreocupadamente um
vibrato final para tornar um enunciado mais sensível.
Uma gestualidade natural e convincente
O estilo Montand é inseparável dos efeitos cênicos das suas canções.
Nenhum título deixa de ser incorporado por sua personalidade, seus gestos, sua
voz. Montand, que é alto e magro, realiza no palco proezas físicas, vocais e
cênicas. Neste período, em que os artistas cantam com o microfone em pé –
uma técnica nitidamente mais estimulante para a gestualidade que a atual com
o microfone na mão –, pelo movimento que Montand imprime, pondo o seu
corpo em primeiro plano, cada recital seu aparenta ser um combate. Citemos
Montand mesmo, quando declara a Hamon e Rotman, seus biógrafos:
38
Não é através de artifícios que se mantém por muito tempo a
adesão dos outros, mas através da personalidade, do carisma. A
verdade deve ser total, o instinto total, e o frescor total... sou de
origem italiana... Não me ensinaram nem um único movimento
das mãos... Falamos assim, nós os latinos; sublinhamos o que já
é evidente em si mesmo, antes mesmo que a palavra salte8.
Montand fica atento aos conselhos, estuda as performances dos outros
artistas e ouve os imitadores de… Montand (!). Este artista de exceção investe-se
completamente na sua arte:
(...) quando uma platéia espera você, independentemente das suas
disposições neste momento, é preciso pagar, pagar com as suas
próprias vísceras. Ali não há espaço para recomeçar. Deve-se ter
êxito imediatamente. A cada noite você deve conquistar um público
diferente. ...é necessário sentir as suas reações e redirecionar, em
conseqüência disso, o seu papel. É preciso literalmente arrancar
os aplausos do espectador. Eis aí o verdadeiro trabalho9.
As suas performances são resultantes de um trabalho de equipe e todos
os seus colaboradores têm o sentimento de viver uma aventura coletiva da qual
Montand é o centro vital. À oposição binária entre o visual e a convicção,
correspondem gestualidades diferenciadas: por um lado, atitudes demonstrativas
e extrovertidas que denotam o temperamento mediterrâneo do cantor, por outro
lado, atitudes de recolhimento e de uma impregnação mental que chegam a
uma aparente ausência do corpo físico. A totalidade expressiva final é o próprio
Montand que constrói.
8
9
Hervé Hamon et Patrick Rotman, Tu vois, je n’ai pas oublié, Éd. du Seuil et Éd. Fayard, Paris, 1990. “On
n’emporte jamais longtemps l’adhésion par l’artifice, mais par la personnalité, le charisme. La vérité doit
être totale, l’instinct total, et la fraîcheur totale… je suis d’ascendance italienne… je n’ai pas appris le moindre
mouvement de mains… Nous parlons ainsi, nous, les latins, nous soulignons ce qui est déjà évident en
soi, avant même que la parole ne jaillisse.”
“Dans l’intimité de… Yves Montand”, Paris-Cinéma, supplément au n° 38, Paris, juin 1946. “(…) Quand
une salle vous attend, quelles que soient vos dispositions à ce moment-là, il faut payer, payer avec son
ventre. Là, on ne recommence pas. Il faut réussir tout de suite. Vous devez chaque soir empoigner un
public différent. …il faut sentir ses réactions et rectifier le jeu en conséquence. Il faut littéralement arracher
les applaudissements du spectateur. Voilà le vrai métier.
39
Um objeto total: o álbum duplo, testemunho do espetáculo
Registrado ao vivo, no teatro, em Outubro de 1953, pela Odéon, o álbum
duplo 30 cm é também um acontecimento. Assinalo que é a primeira gravação
integral em público de um espetáculo de variedades realizado sem manipulações
posteriores.
Comercializando este disco bastante luxuoso para a época, a gravadora
Odéon fazia uma aposta arriscada, que se revelou vencedora, dado que, há mais
de cinqüenta anos, este documento é regularmente reeditado, inicialmente em
vinil e depois em CD. Lamentavelmente a fita magnética filmada para a televisão
e difundida numa tarde de domingo foi reutilizada seguidamente e não mais
existe qualquer documento visual do evento.
A capa do disco é igualmente rica de significado. O desenho é de Jean
Effel, colaborador regular do diário comunista L’Humanité. Destacados sobre um
fundo branco iluminado por um sol generoso, dois namorados de braços dados
passeiam, após o trabalho, no cais do Rio Sena. É um casal da Paris popular: ele
está vestido com seu terno/macacão azul, a roupa dos trabalhadores, e está
com a sua bicicleta; ela está de vestido branco simples; extasiam-se perante um
panorama identitário completamente impossível dado que mostra em conjunto a
Catedral de Notre-Dame, a Torre Eiffel e Ménilmontant, atrações que são
patrimônios parisienses situados em bairros diferentes. Sobre o parapeito, um
cartaz indicando o espetáculo de Montand é afixado sobre uma inscrição Proibido
afixar! O anúncio está em letras vermelhas – a cor revolucionária que,
combinando-se à azul e à branca, nacionaliza a cena, unindo as três cores da
bandeira francesa. Simples, parisiense, referenciado… este desenho simboliza
todo o recital.
Do projeto criador ao processo receptor-apreciador
O método sociosemiótico preconizado se entende aqui em sua acepção
lógica e total de busca do sentido social das obras artísticas; ele respeita os
princípios seguintes: é, ao mesmo tempo, global e plural por vocação, é
situacional, porque recoloca os fatos estudados no seu quadro de enunciação, é
40
relacional e dialético, mostrando os laços que unem e contrapõem os
acontecimentos e processos em movimento, e é hierárquico, porque se trata de
focalizar fatos hegemônicos.
Três conceitos chaves constituem o fundamento do enfoque
sociosemiótico: o projeto criador, a performance e o processo receptor-apreciador.
O projeto criador é entendido como a conjunção entre potencialidades
dos artistas, estratégias de carreira e meios artísticos mobilizados com uma
intenção. Disso resulta uma tensão permanente entre uma intenção que emana
do individual e uma orientação estruturante que vem do social.
No nosso caso em análise, as origens sociais de Montand determinam o
seu destino social e orientam o seu itinerário profissional (domínio de expressão
e envergadura). Na sua obra, o sentido, unidade primeira de coerência, faz bloco,
sempre tenso para uma comunicação com o seu público. Mas esta unidade
encontra o seu complemento orgânico em uma segunda unidade, entre
personagem público – a estrela, e o homem Montand – Yvo Livi, filho de imigrantes
e antigo proletário.
A performance é a própria enunciação de textos orais emitidos em
situação de espetáculo num lugar significativo (seja acontecimentos) ou por meio
de uma difusão mecânica (seja monumentos), com intenção de atingir audiências.
Daí, o conceito secundário de modo de comunicação, que marca a natureza e
a intensidade da relação interprete - público.
Estabelecendo uma relação de conivência e cumplicidade com cada
espectador, Montand inaugura um estilo de proximidade total: física, social, e
mental, fundado sobre uma relação igualitária, fraternal. Enquanto Édith Piaf
serve de catálise para as emoções populares, Montand provoca o entusiasmo de
um povo que tem intenção de participar na história; quanto mais o próprio artista
é convencido, mais faz-se convincente.
O processo receptor-apreciador, é aquele segundo o qual uma obra
torna-se significada e recebida, ativando os esquemas estéticos globais – o
horizonte de espera teorizado por H.-R. Jauss, e as inclinações pessoais,
conseqüências da trajetória e experiência individuais dos ouvintes.
41
Assim, cada noite, como as testemunhas relatam, quando Montand
terminava C’est à l’aube, o público delirava, o Théâtre de L’Étoile explodia
verdadeiramente. Aliás conviria interrogar-se se tais manifestações culturais
ajudaram a causa da revolução ou se serviram de escape, neutralizando em
parte a vontade de mudar presente na sociedade.
Um impacto simbólico
Este recital de 1953 era efetivamente um encontro humano e ideológico
com o povo francês. A imprensa, que assinalou a proeza, sublinhou-o claramente:
Suprema consagração...alguns lamentáveis invejosos sectários
haviam colocado bolas fedorentas em cada andar: as pessoas se
exprimem como podem... não se conformam com a presença, a
vida... deste atleta... São surdos a uma voz... que atesta sua labuta
paciente e a sua vontade de não deixar nenhuma nuance na sombra...
cegos... à verdade dos seus gestos ou movimentos, a sua potência
evocatória... O que alguns não perdoam em Yves Montand... é o
amor à paz, o horror à guerra, a piedade para com o homem, com
aqueles que aplaudem o admirável “Quand un soldat” ,”Barbara” ou
“C’est à l’aube”. Quando canta essas músicas, Montand é mesmo a
voz de um ideal, o grito de uma revolta, o apelo de uma esperança...10
Christine de Rivoyre assim se expressou no prestigiado jornal Le Monde :
Apresentando um espetáculo em duas partes de dez músicas cada
uma, Yves Montand foi literalmente devorado por seu público, que
o fez voltar ao palco mais dez ou quinze vezes... A voz de Yves
Montand fortificou-se mais ainda... flexível e ardente e fácil ao mesmo
tempo... seu estilo ultrapassou os limites da perfeição técnica…11
Libération, 7 octobre 1953 (article non signé). “Suprême consécration… de lamentables jaloux sectaires
avaient brisé des boules puantes à chaque étage : on s’exprime comme on peut. …ne constatent-ils pas
la “présence”, la vie… de cet athlète… Sont-ils sourds à une diction… qui atteste son labeur patient et
sa volonté de ne laisser aucune nuance dans l’ombre… aveugles… à la vérité de ses gestes ou
mouvements, à leur puissance évocatrice… Ce que d’aucuns ne pardonnent pas à Yves Montand…
c’est l’amour de la paix, l’horreur de la guerre, la piété envers l’homme que clament l’admirable “Quand
un soldat“, “Barbara“ ou “C’est à l’aube“. Quand il chante ces chants-là, Montand est la voix même d’un
idéal, le cri d’unerévolte, l’appel d’un espoir...“
11
Le Monde, 7 octobre 1953. « Offert en deux services de dix chansons chacun, Yves Montand fut littéralement
dévoré par son public, qui le rappela dix ou quinze fois… La voix d’Yves Montand s’est encore fortifiée…souple
et brûlante et facile à la fois… son style a dépassé les limites de la perfection technique...»
10
42
As implicações políticas
Montand nunca escondeu as suas simpatias pela classe operária. Lembrao numa obra, cuja responsabilidade assume:
As minhas simpatias políticas não são nenhum segredo... Fui criado
por trabalhadores. Eu mesmo fui ligado, e penosamente, à condição
operária. Vivi a experiência desagradável da exploração pura e
simples. Pus a minha esperança na idéia de uma revolução capaz de
trazer a justiça social... Também, tento fazer com que minhas canções
tenham uma relação fraternal e sejam um código entre camaradas.12
Mas o sucesso de Montand excita os seus inimigos políticos, que então o
atacam com virulência, como nestes dois extratos marcados de cinismo e de
uma evidente desonestidade:
(...) confesso...não ser um admirador convencido...do talento do Sr.
Yves Montand...Como não sentir um certo embaraço, ou mesmo uma
indisposição, imaginando que aquele lá critique uma “burguesia
canalha”, sem risco, de resto, porque a liberdade de expressão, nas
nossas “democracias corruptas”, não é uma palavra vã, ganha em
uma noite o equivalente do que “recebem” num ano quatro milhões de
assalariados...! Sem dúvida, isto é uma fraqueza pequeno-burguesa
o fato de querer que o artista rebelde se identifique com sua revolta e
não enriqueça com ela...13
Num momento em que tantos artistas de variedades estão sem emprego,
um recital parece uma crueldade. O music-hall... é sobretudo
diversidade. Ao ouvir este cantor, o resultado mais freqüente é uma
monotonia muito desagradável. Montand, que se assemelha a esses
Yves Montand, “Du soleil plein la tête”, souvenirs recueillis par Jean Denys, Éditeurs Français Réunis,
Paris, 1955. « Mes sympathies politiques ne sont pas un secret… J’ai été élevé par des ouvriers. J’ai été
moi-même attelé, et péniblement, à la condition ouvrière. J’ai fait l’expérience saumâtre de l’exploitation
pure et simple. J’ai mis mon espoir dans l’idée d’une révolution capable d’apporter la justice sociale…
J’essaie aussi que mes chansons soient comme un lien fraternel et un mot de passe entre camarades»
13
Combat, 6 octobre 1953 (Maurice Ciantar). «…je confesse… ne pas être un admirateur convaincu… du
talent de M. Yves Montand. …Comment ne pas ressentir une certaine gêne, voire un malaise, en songeant
que celui-là même qui vitupère une “bourgeoisie scélérate”, sans risque, d’ailleurs, car la liberté d’expression,
dans nos “démocraties pourries”, n’est pas un vain mot, gagne en une soirée l’équivalent de ce que
“perçoivent” dans une année quatre millions de salariés… ! Sans doute est-ce là une faiblesse petitebourgeoise que de vouloir l’artiste de révolte coller à sa révolte et non pas s’en enrichir…»
12
43
doqueirozinhos que se encontram no porto de Genova, tem um
estilo mecânico... Tudo isso me parece extremamente
amaneirado, sofisticado, mobilizado com uma surpreendente falta
de coração… 14
As censuras que lhe eram dirigidas eram de várias ordens: Montand era
um estrangeiro (italiano), enriquecia cantando a revolução, deixava os seus
colegas no desemprego com a fórmula do recital etc. Nenhum comentador
permitia-se contudo atacá-lo diretamente sobre o desempenho artístico, sabendo
que impôs-se com muita facilidade e que possuía um talento fora do comum.
3. Yves Montand: o cantor emblemático dos anos 50
Todas as razões econômicas, sociológicas, estéticas e simbólicas
convergem para fazer de Montand o cantor francês emblemático dos anos 50.
Três termos resumem a sua carreira: dignidade na sua arte, fidelidade às suas
convicções, consciência profissional. Tratava-se de um filho de proletário
promovido a um sucesso mundial.
Yvo Livi nasce em Outubro de 1921 numa aldeia rural da Toscana, na
Itália, num meio muito pobre. Seu pai, militante socialista, é forçado ao exílio
pelas milícias de Mussolini. A família refugia-se em Marselha e compartilha a
vida dos proletários nos subúrbios e nas cidades-dormitório da classe operária.
Após uma escolaridade medíocre, Montand, apaixonado pelo cinema americano
e pela arte de Charles Trenet, sente a vocação do palco.
Montand realiza uma carreira fulgurante: canta na primeira sala
profissional, em Marselha, aos vinte anos e realiza tournée no Sul da França dois
anos depois. É também a época onde efetua pequenos trabalhos e descobre o
mundo operário. Para escapar ao Service du Travail Obligatoire, organizado pelo
regime colaboracionista de Pétain, Montand foge para Paris, para tentar a sorte.
14
Les Nouvelles Littéraires, 15 octobre 1953 (Serge ?). « À l’heure où tellement d’artistes de variétés sont
en chômage, un récital parait une cruauté. Le music-hall… c’est avant tout la diversité. En écoutant ce
chanteur, il en résulte, bien souvent, une monotonie fort désagréable. Montand, qui ressemble à ces petits
dockers que l’on observe sur le port de Gênes, a un style de robot. …Tout cela me semble fort maniéré,
sophistiqué, mobilisé avec un étonnant manque de cœur»
44
Imediatamente em Paris passa numa audição para participar num
programa do qual Édith Piaf é a vedete. É ela mesma que põe o jovem cantor à
prova, apaixona-se por ele e decide fazê-lo seu protegido. Ajuda-o a aperfeiçoarse nas profissões do palco e o introduz no meio profissional. Montand permanece
um tempo fazendo as primeiras partes dos espetáculos, antes de aparecer como
grande atração juntamente com Piaf e fazer o seu primeiro espetáculo como
estrela no L’Étoile no final de 1945.
Em 1949, Montand encontra a famosa atriz Simone Signoret, com quem
se casa e com quem compartilhará trinta e cinco anos de cumplicidade.
Entretanto, Montand, que nasceu numa família comunista e que ficou fiel às suas
opiniões apesar do sucesso, afirma-se como fiel “compagnon de route”15 do
movimento comunista e distingue-se mesmo como um recordista das assinaturas
militantes, em proveito de diversas causas apoiadas pelo Partido.
Em Março de 1951, aos trinta anos, monta seu primeiro recital: sozinho no
palco, mantém o público na expectativa e o seduz durante uma hora e meia. Não
voltará mais ao tour de chant. Doravante sua celebridade eclipsa todas as outras
grandes atrações do music-hall: Chevalier, Trenet e a própria Piaf.
No período 1945-1955, realiza mais de mil e seiscentos espetáculos, atinge
números de venda de discos sem precedentes e identifica-se assim com um
tempo e um lugar específicos. No fim de 1956, começa uma carreira
internacional, quando efetua uma tournée memorável nos países do bloco
socialista, e, em 1959, voa para New-York, onde triunfará na Broadway, antes de
começar uma outra tournée prestigiosa nos EUA.
Consequentemente Montand divide a sua carreira entre o cinema e a
canção, confirmando o seu destino de fama mundial. Em 1991, morre de repente
durante a realização de um filme, enquanto preparava um regresso à cena
parisiense no Parc de Paris-Bercy.
15
Na época, são designados compagnons de route do Partido Comunista Francês, numerosos intelectuais,
cientistas e artistas que, sem serem membros oficiais do Partido, apóiam publicamente as suas posições
e material e simbolicamente contribuem para a sua influência. Entre estes, figuram nomeadamente, além
de Montand, o físico Joliot-Curie, o artista plástico Picasso, o poeta Paul Éluard e o ator Gérard Philipe.
45
Um tom e um estilo novos
A força de convicção do cantor e o tom progressista e pacifista,
claramente mostrados, fazem deste recital de 1953 o melhor testemunho de
uma fusão entre o mundo social e o mundo do espetáculo, em um período
marcado pelas tensões sociais já assinaladas. Com a consciência, o
conhecimento seguro alcançado através de sua experiência anterior e
considerando os conselhos e advertências de Piaf – outra artista autodidata
–, Montand passa sem transição do tipo cow-boy de fantasia ao proletário
exemplar, no momento em que o trabalhador passa a ser a figura simbólica
da reconstrução do país. Após o encontro com o poeta Jacques Prévert, ele
impõe a poesia no music-hall. Embora não escreva nem componha nenhuma
das suas canções, Yves Montand mostra, na construção do roteiro de seu
tour de chant, o seu papel de criador.
O intérprete Montand vai ao essencial: com ele, não se ouve
nenhum discurso antes ou depois das canções. Estas são simplesmente
anunciadas com o nome dos autores, exceto, na intenção de criar um
efeito de surpresa, Quand un soldat, que é esperada, tanto pelos que
compartilham o seu engajamento antimilitarista quanto pelos que lá
estiveram para opor-se a ele.
O que surpreende mais, em todo o período 1944-1959, é o equilíbrio
estabelecido entre os diferentes tons enunciados. Nunca uma dimensão esmaga
as outras como se passa com seus colegas: o amor onipresente em Aznavour, o
exotismo em Mariano, o humor em Bourvil…
As diferentes maneiras de dizer, nele, são representadas bastante
equitativamente dado que os títulos de convicção representam 39,8%; os
títulos narrativos 41,9 %; os títulos líricos 39,9%; os títulos lúdicos 55,4%; e
os títulos otimistas 47,3 %. A capacidade de preservar este equilíbrio ao
longo de toda a carreira (1944-1983) está provavelmente ligada ao seu
sucesso. Essas quantidades percentuais se referem à totalidade das obras
gravadas, de 1944 a 1959. Cabe assinalar que uma mesma canção pode
pertencer a várias categorias.
46
Um repertório em correspondência com o personagem
Francis Lemarque, com seis canções, e Jacques Prévert, com cinco
títulos, ambos imprimem a sua marca sobre este recital. Alguns letristas
talentosos fornecem-lhe ainda canções que perpetuam a tradição do musichall enquanto jovens autores, como Flavien Monod e Léo Ferré, lhe oferecem
títulos de uma tonalidade original que contrasta resolutamente com os
repertórios correntes.
Se Montand é o inspirador de um repertório diferente, o que o distingue,
sobretudo, é o uso diferente que faz do repertório. Sem demagogia, com uma
linguagem popular cujo baixo calão praticamente é excluído, Montand canta o
cotidiano operário e a Paris popular com um tom familiar.
Por último, embora o percentual de canções antimilitaristas ou
pacifistas perfaçam apenas 7% do conjunto de músicas gravadas, este
número é de um peso sem equivalente em nenhum outro repertório
contemporâneo e, graças a ele, esta dimensão atinge um nível mundial,
bem além do círculo dos militantes.
A invenção do recital com finalidade artística
Montand não foi o primeiro, mas foi ele que instituiu este tipo de espetáculo
do qual se tornou logo referência indiscutível. Esta fórmula, feita sob medida para
um cantor de destaque, vai gradualmente impor-se no music-hall como novo
pico de carreira.
Para atingir este objetivo, Montand teve de reunir várias condições:
constituir uma equipe sólida em redor dele, construir o seu tour de chant sem
repetir-se nem decepcionar, coordenar arranjos musicais, encenação e
iluminação e, sobretudo, imaginar o recital como globalidade. Montand esgota
os seus músicos em ensaios para superar a sua angústia. Vem de muito baixo
na escala social e subiu tão alto, que não pode cair. Ele mesmo se explica
sobre isso:
47
Para o music-hall, o recital é a fórmula que mais me convém... é
uma grande batalha solitária... A preparação individual de cada
canção é importante, mas o lugar que ela ocupa no programa
também é. Há uma progressão, um aumento de intensidade a ser
dosada. Há escalas a arrumar, os indispensáveis minutos de
abrandamento e de descanso... é preciso banhar todas as canções
na luz de dois ou três temas próximos sem contudo cair na monotonia.
A encenação, a iluminação, enfim o acompanhamento musical,
somente se encaminham para a perfeição após numerosos e
contraditórios ensaios...16
Um sucesso absoluto
A sua carreira na canção praticamente não conhece eclipse. O seu estilo
seduz, a sua voz deslumbra. Inaugura o classicismo nas canções e eleva o gênero
ao nível das outras expressões artísticas.
Diversas razões podem explicar o seu sucesso:
Montand é jovem, mas, sobretudo, exprime a juventude com uma
convicção e um dinamismo espantosos. É natural, não posa, está no palco
como se estivesse na cidade; é o amigo, o camarada, o grande irmão, um homem
simples oriundo do povo.
Não pára de fazer progressos constantes e as críticas reconhecem as
suas melhorias. Se não inventa nenhuma mudança artística, primeiro por intuição
e depois por experiência, compreende o que toca o público. Escolhe misturar os
gêneros e consegue facilmente aceitação do público.
Montand é, sobretudo, um modelo de coragem, de vontade e de
dignidade, que continua a atuar apesar da hostilidade visceral dos seus
16
Cf. Du soleil plein la tête, Op. cit. “Pour le music-hall, le récital est la formule qui me convient le mieux…
c’est une grande bagarre solitaire… La préparation particulière de chaque chanson est importante, mais la
place qu’elle occupe dans le programme ne l’est pas moins. Il y a une progression, une augmentation
d’intensité à doser. Il y a les escales à ménager, les indispensables minutes de relâchement et de
détente… il faut baigner toutes les chansons dans la lumière de deux ou trois thèmes voisins sans toutefois
verser dans la monotonie. La mise en scène, les lumières, l’accompagnement enfin, ne s’acheminent vers
la perfection qu’après des répétitions nombreuses et contradictoires“.
48
detratores. Quando um grupo de fascistas instala-se ruidosamente na primeira
fila para sabotar o seu tour de chant, continua a cantar, impassível e seguro.
Apresenta reações sensíveis, maduras, perante qualquer censura, quer
seja ela moral (em relação às canções julgadas desmobilizantes ou eróticas
demais, pelo aparelho comunista), ou política, já que por ocasião da proposta
que lhe é feita de cantar na Ópera de Paris se compromete a retirar Quand un
soldat do seu tour de chant. Enquanto isso, vários títulos dos seus discos são
proibidos de serem veiculados pela rádio nacional.
Vemos melhor então porque Montand é colocado de fato no meio dos
desafios da sociedade e das contradições da profissão.
O traje cotidiano e a ruptura com a tradição
No início de 1944, Montand imagina um traje de cena inédito duma ousadia
inconcebível: camisa e calça de cor castanha, com a gola aberta. O traje é
absolutamente banal e, portanto, revolucionário. Não conhecemos nenhum
exemplo de artista famoso que até essa data tenha tido a idéia de apresentar-se
no palco numa postura tão simples e desenvolta, com tal aprumo. Note-se que
para certas canções – concessão ou piscar de olho dirigido aos gloriosos velhos?
–, Montand terá recursos na bengala e na cartola...
Pelo seu estilo viril – contudo nunca machista –, Montand opõe-se
radicalmente aos cantores e cantoras românticos, velha tradição cançonetista,
que predominou no período da Ocupação Alemã. O amor que canta é real,
carnal, marcado de uma grande sensualidade e não deve nada às fotonovelas
nem à paraliteratura cor-de-rosa. Outro registro distintivo: o frescor, a
naturalidade, a autenticidade de Montand são o oposto das artimanhas dos
profissionais do palco.
Os encontros férteis
A sua arte maior talvez tenha sido deixar-se impregnar pelos outros,
buscando neles os elementos de reflexão e as práticas profissionais mais
adaptadas ao seu projeto criador. Com Édith Piaf, adquire a alma da canção
49
popular mais crua. Comentaristas às vezes emitiram a idéia – errada – segundo
a qual Montand lhe devia tudo; basta constatar que é o único dos protegidos de
Piaf que realizou uma verdadeira carreira.
O poeta Jacques Prévert transmite-lhe o gosto da poesia e apresenta-lhe
a sua rede de relações amigáveis: Signoret, Crolla, e o autor que vai mais
influenciar a sua carreira: Francis Lemarque. Filho da Paris popular, este se
torna o seu letrista predileto porque é ele que sabe melhor traduzir em canções o
que ele, o homem Montand, sente por instinto.
Simone Signoret, a sua mulher, culta, moderna e talentosa, o introduz nos
meios intelectuais. Para além de uma cumplicidade sem falha, traz-lhe o sentido
da reflexão. Os dois formam o casal perfeito, são o símbolo da juventude, do
sucesso e do engajamento social. Mas é sempre Montand que é posto adiante;
o casal funciona devido à sua projeção.
4. Do político e do artístico: a irrupção da política no music-hall
Quando, entre Janeiro de 1951 e Maio de 1953, Yves Montand inclui no seu
repertório umas canções que testemunham suas convicções: C’est à l’aube,
Actualités, Flamenco de Paris, Quand un soldat, Rendez-vous avec la liberté e Le
Chemin des oliviers, ele simboliza uma recusa: a rejeição da guerra fria, das guerras
coloniais e do ostracismo, do qual os comunistas consideram-se as vítimas.
No entanto, a escuta atenta destes títulos não nos autoriza de modo algum
a associá-las à categoria de canções políticas no sentido estrito. Efetivamente,
nenhuma situação, denúncia, nem crítica precisa, é formulada nas canções; por
outro lado, emana delas uma exaltação lírica voltada para um futuro melhor: os
famosos amanhãs que cantam...17
Cantadas por outro cantor, teriam continuado a ser provavelmente
confidenciais; no entanto, estas seis canções e dois poemas de Jacques Prévert
17
Parafraseando a fórmula famosa utilizada por um líder comunista, Paul Vaillant-Couturier, na sua canção
Jeunesse, música de Arthur Honegger (1937) : “Nous sommes la jeunesse ardente… / Nous bâtirons un
lendemain qui chante”.
50
vão cristalizar o impulso ou a repulsão, até que seja proibida sua veiculação nas
estações de rádio do Estado; a mesma coisa que ocorreu com o álbum 30 cm
Chansons populaires de France, um disco que reúne uma coletânea de canções
dos séculos passados e alguns títulos contemporâneos de tonalidade progressista.
Um conjunto de sentidos externos (guerras colonialistas, política interna,
censura estatal) converge sobre um repertório bastante moderado, no qual
procurava-se em vão os escritos-bombas denunciados.
Dois trechos proibidos, significativos, ilustram estes fatos. Um deles está
na canção C´est à l´aube, de F. Monod e Philippe-Gérard, de 1951:
Mais à l’aube, mais à l’aube / Renaissent tous les espoirs / Et l’amour
des grands départs / Vers les mondes de l’espoir… (Mas na alvorada,
mas na alvorada / Renascem todas as esperanças / E o amor das
grandes partidas / Para os mundos da esperança...)
O outro trecho encontra-se na canção Rendez-vous avec la liberté,
composta por G. Renaud e Philippe-Gérard em 1952:
Ici j’ai rendez-vous / Avec la liberté et pour elle / On est prêt à mourir
debout… / L’espoir des foules / Et leur grand cœur… / Les âmes fortes
/ Qui croient toujours / Et encore / Aux lendemains qui chantent / Dans
l’aurore… (Aqui tenho um encontro/Com a liberdade e para ela /
Estamos preparados para morrer em pé... / A esperança das multidões/
E o seu grande coração... / As almas fortes/Que crêem sempre/E
ainda / Aos dias vindouros que cantam/Na aurora...)
O discurso de Montand
Numa entrevista concedida ao jornal Paris-Matin, em 8 de Outubro de
1946, na ocasião da sua primeira atuação como estrela, Montand declara
ingenuamente:
Acredito muito que a canção seja o espelho da época. E, como li em
algum lugar: ‘frequentemente foi o grito agudo da atualidade’. É por
isso que tento traduzir as alegrias e as dores do nosso tempo e tocar a
sensibilidade do espectador com os meios que a natureza me confiou
(...) o público não reage mais da mesma maneira que em 1939 (...) é
preciso, em alguns momentos, recorrer à brutalidade para conseguir
51
diverti-lo ou comovê-lo (...) Quase todos os intérpretes populares da
canção vêm do povo e conheceram a miséria (...) é preciso ter sofrido
para comover e partilhar a sua alegria de viver (...). Gosto da canção
e adoro que Léon-Paul Fargue diga sobre ela: ‘Eu a vejo como uma
manifestação do sentimento, mais real talvez e mais pungente que o
romance, o poema, a ópera, a pintura ou o monumento’.
“Je crois fortement que la chanson est le reflet de l’époque. Et comme je
l’ai lu quelque part : ‘Elle a souvent été le cri perçant de l’actualité’. C’est
pourquoi j’essaie de traduire les joies et les douleurs de notre temps et
d’agir sur la sensibilité du spectateur avec les moyens que la nature
m’a confiés (…) le public ne réagit plus de la même façon qu’en 1939
(…) Il faut, pour l’amuser ou l’émouvoir, employer par instants la manière
forte. (…) Presque tous les interprètes populaires de la chanson viennent
du peuple et ont connu la misère (…) Il faut avoir souffert pour émouvoir
et faire partager sa joie de vivre (…) J’aime la chanson et j’adore que
Léon-Paul Fargue dise d’elle : ‘Je la tiens pour une manifestation du
sentiment, plus réelle peut-être et plus déchirante que le roman, le
poème, l’opéra, la fresque ou le monument’.”
Neste extrato, são apresentadas as grandes idéias do raciocínio de
Montand: teoria intuitiva e enobrecimento do gênero das canções, concepção
inédita do palco, destino social extraordinário compartilhado com os outros
monstros sagrados – subentendido: ele também se considerava um –, e
reivindicação de um vínculo orgânico com o social.
Um artista na tormenta
Uma constatação impõe-se: Montand é paradoxalmente um cantor a histórico. De fato, nenhum personagem ou acontecimento é mencionado com
precisão nas suas canções; só o conhecimento do contexto permite-nos
eventualmente datá-las. Note-se, no entanto, que a revolta afetiva e o apelo à
consciência humanista, que definem o Montand da primeira fase, terão tendência
para acentuarem-se e, progressivamente, deslocarem-se sobre um outro eixo
de pertinência, aquele da expressão poética.
Posteriormente, quanto mais o personagem público Montand afirma-se
no campo político, menos as suas canções terão missão de testemunhar isso.
52
Para ele, tudo se orienta de acordo com uma simples equação que justifica o seu
próprio sucesso social: TRABALHO + FIDELIDADE ÀS ORIGENS = SUCESSO PROFISSIONAL. Sabese, além disso, que Montand sempre foi sensível à opinião dos outros e que, em
toda a sua vida sentiu necessidade de justificar-se – uma preocupação
estranhamente compartilhada por Simone Signoret.
Um destino dividido entre o papel de porta-voz e o de saltimbanco
Não há nenhuma dúvida de que Montand, pelo menos até 1958, foi de
certa forma instrumentalizado pelo Partido Comunista, como atestam as suas
declarações públicas e assinaturas abaixo das petições. Este processo de
recuperação das aspirações mais dedicadas confirma a posição subordinada
do campo artístico vinculado à lógica da sociedade que, em última instancia, lhe
dá sentido.
Após 1957 e a desilusão vivida durante a tournée nos Países do Leste,
uma contradição é instaurada entre as duas tendências dominantes do seu
repertório, o repertório otimista e o corpus engajado. Vários elementos conjugamse e conduzem à composição, para o recital de 1958-1959, de um repertório
“revisado e corrigido” com títulos inéditos, alguns sucessos antigos reciclados ou
rearrumados, e, sobretudo, um sentido diferente atribuído ao espetáculo. Montand,
que não compartilha mais o ideal comunista, não “pode” mais cantar C’est à l’aube.
No momento em que a história social crispa-se e quando o projeto criador
do intérprete fica paralisado pela dúvida, a tendência natural do espetáculo, o
divertimento, torna-se (novamente) proeminente. Em Junho de 1958, com um
depoimento provocante, confiado à La Tribune de Genève, Montand exprime-se:
Há coisas que não aceito... Não quero mais ser o porta-voz do quer
que seja. Tenho as minhas idéias. Creio em um mundo melhor, creio
numa maior fraternidade humana (...); são as minhas opiniões pessoais.
Não é o cantor quem está falando aqui, é o homem. Na realidade,
somos saltimbancos (...), pertencemos ao público. Não temos opinião...
Il y a des choses que je n’accepte pas… Je ne veux plus être le portedrapeau de quoi que ce soit. J’ai mes idées. Je crois à un monde
meilleur, je crois à une plus grande fraternité humaine (…) ce sont mes
53
opinions personnelles. Ce n’est pas le chanteur qui parle ici, c’est
l’homme. Au reste nous sommes des saltimbanques (…) nous
appartenons au public. Nous n’avons pas d’opinion…
Após 1959, o estilo Montand perdeu força nos seus registros mais distintivos,
que o tornavam único, para centrar-se sobre a profissão do palco, onde gozará
sempre de uma imagem de excelência. Será necessário esperar os anos 1962
e 1968 para reencontrar um equilíbrio entre os dois registros, mas agora em
benefício de uma concepção mais espetacular.
Liberada do conceito da luta de classes, a sua revolta torna-se
gradualmente estilizada, intelectualizada. Por outro lado, esta estratégia de manterse ao centro, que guia doravante a sua carreira, não está mais em condições de
suscitar o mesmo fervor coletivo de antes.
A canção de opinião entre o lirismo utópico e os slogans
Os historiadores contabilizaram mais de 6.000 mazarinades, verdadeiros
panfletos políticos destinados a vilipendiar o cardeal de Mazarin, que governou
a França entre 1642 e 1661. Um instituto alemão avaliou em mais de dez mil o
número de canções dedicadas a Che Guevara no ano que seguiu a sua morte.
Certos investigadores afirmam que a Guerra Civil estadunidense (1861-1865)
deu nascimento a mais de cem mil canções. Quais são conseqüentemente os
critérios que distinguem o domínio das canções – encaradas como meios –
e a esfera do político – encarado como fim?
Sobre este ponto, sugiro dois campos temáticos de noções, ao mesmo
tempo distintos e articulados: as canções implicam: cultura popular, oralidade,
comunicação, expressão de uma tendência artística, estilo, divertimento,
evocação, espontaneidade, leveza, imediatismo, duração efêmera, popularidade,
emoções e sentimentos supostamente individuais…
E o político implica em: racionalização, reflexão, argumentação, retórica,
eficácia, ação, mobilização, projeto de médio e longo prazo, implicação social,
organizações, inscrição na história, dimensão coletiva, complexidade e
contradições intrínsecas…
54
É preciso reconsiderar as relações entre as canções e sociedades. A
dificuldade para analisar a dimensão política do repertório de Montand provém
do fato que os vetores políticos não se limitam unicamente às canções de opinião
e que numerosos valores com forte teor ideológico (espírito de solidariedade,
humanismo, utopia, sectarismo, xenofobia, fatalismo, resignação…) insinuamse, em graus muito variáveis, em todas as produções cantadas.
Por outro lado, uma canção de revolta ou de indignação, cantada num
quadro confidencial, não é da mesma natureza, nem produz os mesmos efeitos
quando é cantada com fervor por uma estrela ao se apresentar num comício.
Neste sentido, nenhuma dúvida de que a intolerância, da qual Montand foi vítima,
não seja proporcional a sua fama.
Entre consolação e recuperação
Se a política chega sempre a assimilar, para obter vantagem imediata, as
produções culturais, a relação das canções com o campo político permanece,
contudo, inscrita numa história social singular e mais precisamente num quadro
nacional específico. É por esta razão que a trajetória artística de certos artistas,
escorados sobre o social, é interrompida brutalmente, tais como as de Gilles e
Julien com o fracasso da Frente Popular na França, em 1937, e a de Geraldo
Vandré após o seu regresso ao Brasil, em 1973.
Em contrapartida, artistas menos implicados pela conjuntura, como os
cantores românticos, puderam sem prejuízo atravessar a seqüência movimentada
Années 30/Drôle de guerre/Occupation/Libération na França, ou os diversos
períodos de ditadura, na América Latina. Ocorreu muito diferentemente para
Georgius e Jean Tranchant, artistas franceses conhecidos, que, após terem
cometido fantasias cáusticas antinazistas, tiveram, de repente, de reorientar o
seu repertório para torná-lo aceitável no fim de 1940. No entanto, este
comportamento oportunista não lhes trouxe nenhuma tranqüilidade, dado que
estes dois artistas, muito ativos durante a Ocupação, são levados perante os
Comités d’épuration no fim das hostilidades18.
18
Depois da Segunda Guerra mundial, Georgius torna-se autor de romances policiais – sendo editado na
“Série Noire” da Gallimard –, enquanto Jean Tranchant, após uma breve estadia em Bruxelas, exila-se
na Argentina e no Brasil, paises onde permanece por quinze anos.
55
A este respeito, faço questão de denunciar alguns lugares comuns
correntemente utilizados, a fim de qualificar a relação das canções com a história,
que me parecem impróprios. As canções não são espelhos passivos da história
nem da sociedade, como certos comentaristas defendem; elas não fazem a história,
mesmo que um Colóquio tenha sido realizado há alguns anos, na França, sobre
este tema19; diversamente, elas só acompanham os movimentos sociais, dos quais
são parte componente; as canções não são uma simples emanação do ar do
tempo, produto derivado dos costumes e mentalidades de uma época; não são
mais que um sinal premonitório das mutações sociais, como Jacques Attali sugeriu
no seu “Ensaio sobre a economia política da música”, quando apresentava aquelas
“…como anúncio da sociedade” ou “…metáfora crível do real”20.
As canções não são tampouco testemunhas da história como o título de um
fascinante programa de Marc Dumont na Rádio-Bleue21 tentava fazer-nos acreditar.
Caso seja preciso propor uma formulação adaptada, direi, parafraseando
uma fórmula de Confúcio22, que as canções afirmam-se como uma expressão
artística que, mais que outras, explica as nossas sociedades.
Considerações finais: uma relação social e um revelador eminente
De fato, muitos exemplos desenvolvidos nas minhas investigações
precedentes (Música dos Anos 30, Chico Buarque…) vêm confirmar a minha
hipótese inicial segundo a qual as canções são efetivamente construções
sociais antes de serem uma manifestação literária, musical, performativa ou
estética. Assim, sou levado a considerar que as canções são
fundamentalmente expressões de uma relação social que se realiza na
articulação do idealizado com o real.
Faço referência ao Colóquio internacional “Le chant, acteur de l’histoire” realizado em Setembro de 1998,
em Rennes 2, França.
20
Jacques Attali, Bruits, P.U.F., Paris, 1978.
21
Trata-se do Programa “Chanson-témoin”, apresentado de 1985 até 2000 na Radio-Bleue pelo historiador
e musicólogo Marc Dumont.
22
Faço alusão a esta máxima enunciada por Confúcio, filósofo do mundo antigo, no século V antes de J.
C.: “Digam-me o que o povo canta e direi a vocês qual é a sua moral e como é governado.”
19
56
Uma outra decorrência destas investigações é a idéia de que o sentido das
canções não se encontra nem dentro das canções nem nas suas formas, mas
constrói-se e atualiza-se como a resultante de uma corrente semiótica implicando
as instâncias seguintes: projeto criador, intenção, incorporação, performance, tom,
convicção, projeto receptivo-apreciador, acomodação e apropriação.
Pelo fato de que as canções exprimem pontos de vista subjetivos que são
objeto de recepções contrastadas, elas se impõem como um revelador social
privilegiado que se apresenta sob diversos aspectos:
- Revelador das sensibilidades individuais e coletivas, quando nos
revelam os pensamentos e os pontos de vista dos atores e das instâncias
contempladas.
- Revelador dos processos identitários, como as canções que exaltam
a aspiração nacionalista de um povo, ou os particularismos
comportamentais de um grupo social.
- Revelador dos desafios da sociedade, quando as lutas pelo poder,
entre as classes sociais, exacerbam-se através dos argumentos e
valores veiculados nelas.
Para concluir sobre esta noção de uma expressão artística ao serviço do
povo ou da arte engajada no seu tempo, deixarei a palavra final a Yves Montand
mesmo quando, mais de trinta anos após os fatos, recorda-se deste espetáculo
com emoção:
Este recital de 1953-1954 foi um dos mais completos, porque é baseado
nos valores de pessoas da minha geração e, logo, daqueles que a
seguem. Valores que então pareciam certos: a linha demarcatória
entre o bem e o mal nos parece traçada. O meu repertório não é
político, mas aproveita deste calor comum, absorve-o e o devolve.
Acontece que a maior parte dos textos foge ao estilo molengão de
esquerda, e um fôlego real o atravessa...23
23
Hervé Hamon et Patrick Rotman, Op. cit.«Ce récital de 1953-1954 a été l’un des plus accomplis parce qu’il
est porté par les valeurs des gens de ma génération et, déjà, de ceux qui la suivent. Des valeurs qui alors
paraissent sûres : la ligne de démarcation entre le bien et le mal nous semble tracée. Mon répertoire n’est
pas “politique”, mais il profite de cette chaleur commune, il l’absorbe et la renvoie. Il se trouve que la plupart
des textes échappent au style “gnan-gnan” de gauche, qu’un souffle réel les traverse...»
57
Anexos
1. Discografia e DVDs dos recitais de Yves Montand gravados ao vivo:
“Théâtre de l’Étoile – récital Yves Montand” (Récital 1953-1954),
Columbia/Sony Music, double CD 471021-2, (reedição do álbum duplo
original de 1953), 1992.
“Récital Yves Montand – enregistré en public au Théâtre de l’Étoile
en 1958", Phonogram, double CD 510 963/64-2 (reedição dos dois álbuns
originais de 1959), 1994.
“Récital 63”, enregistrement au Théâtre de l’Étoile le 15 novembre 1962,
Philips, double album 30cm B 77.901/902 L, 1963. (nunca reeditado em
CD)
“Yves Montand, dans son dernier one man show intégral” (Versão
integral do recital 1968 ; reedição do álbum duplo original de 1972),
Columbia/Sony Music, double CD 471022-2, 1992.
“Yves Montand – Olympia 81, Intégrale”, Mercury-Universal, duplo CD
B584290, 2004.
“Montand de tous les temps – 40 ans de carrière” (caixa de 3 DVDs),
TF1 VIDEO 13321, 2001.
“Montand International – La Solitude du chanteur de fond”, Mercury/
Universal, DVD 984 337 4, 2006.
2. Bibliografia
Cannavo, Richard et Quiqueré, Henri. Yves Montand, Le chant d’un
homme. Ed. Robert Laffont, Paris, 1981.
Hamon, Hervé e Rotman, Patrick. Tu vois, je n’ai pas oublié. Éd. du Seuil
et Éd. Fayard, Paris, 1990.
58
Lemarque, Francis. J’ai la mémoire qui chante. Presses de la Cité, Paris,
1992.
Marcadet, Christian. “La matrice explicative des faits chanson – le cas Yves
Montand”, in Actes du colloque Le chant acteur de l’histoire, Presses
Universitaires de Rennes, Rennes (France), 1999.
Marcadet, Christian. “Un chanteur populaire : Yves Montand”, in Sociétés et
représentations, n° 8, CREDHESS-Université Paris 1, 2000.
Mégret, Christian. Yves Montand. Éd. Calmann-Lévy, collection Masques et
Visages, Paris, 1953.
Montand, Yves. Du soleil plein la tête, souvenirs recueillis par Jean Denys.
Éditeurs Français Réunis, Paris, 1955.
Montserrat, Joëlle. Yves Montand. Ed. P.A.C, Paris, 1983.
Semprun, Jorge. Montand, la vie continue. Ed. Denoël, Paris, 1983.
Signoret, Simone. La nostalgie n’est plus ce qu’elle était. Le Seuil, Paris,
1975.
Documentos
Dossier “ Yves Montand : biographie, carrière ”, disponível em
microfichas no Département des Arts du spectacle de la Bibliothèque
Nationale de France (Paris), cotes ASP 8° SW– P 89 695, 696 et 899.
“Le choc Montand”, Le Crapouillot, nouvelle série n° 74, mars 1984.
“Montand chanteur”, “Dossier à la Une”, Paroles et Musique n° 48,
éditions de l’Araucaria, mars 1985.
3. Programa do Recital no Théâtre de l’Étoile 1953-1954
introdução orquestral: After you’ve gone
(Creamer / Layton) /Du soleil plein la tête
59
1. La Ballade de Paris
(Francis Lemarque / Bob Castella)
2. Premiers pas [Les p’tits gars, les p’tites filles
du dimanche] (Jacques Verrières / Marc Heyral)
3. Quand un soldat (Francis Lemarque)
4. Une demoiselle sur une balançoire
(Jean Nohain / Mireille)
5. Il a fallu (Michel Vaucaire / Pierre Arvay)
6. Les Saltimbanques
(G. Apollinaire / Louis Bessières)
7. Gilet rayé (Henri Contet / Louiguy)
8. Car je t’aime (Henri Crolla)
9. Flamenco de Paris (Léo Ferré)
10. Il fait des… (Édith Piaf / Édouard Chekler)
11. Le Peintre, la pomme et Picasso
(poème de Jacques Prévert)
12. Sanguine [Joli fruit] (J. Prévert / Henri Crolla)
13. Du soleil plein la tête (A. Hornez / Henri Crolla)
intervalo
introdução orquestral: Tea for two / Sometimes
I’m happy / Hallelujah / Du soleil plein la tête
1. Toi tu n’ ressembles à personne
(Francis Lemarque)
2. Le Chemin des oliviers (Francis Lemarque)
3. Les Routiers (Francis Lemarque)
60
4. Donne-moi des sous (A.-M.
Cazalis / Henri Crolla)
5. Les Cireurs de souliers de
Broadway
(Jacques Prévert / Henri Crolla)
6. Dis-moi Jo (Jean Cosmos /
Henri Crolla)
7. Le Chef d’orchestre est
amoureux
(Jacques Mareuil / Georges
Lieferman)
Capa do álbum vinil duplo original Odéon-France de
1953
8. C’est à l’aube (Flavien Monod /
Philippe-Gérard)
9. Barbara (poème de Jacques Prévert)
10. À Paris (Francis Lemarque)
11. Les Feuilles mortes (J. Prévert / J.
Kosma)
12. C’est si bon (André Hornez / Henri
Betti)
Em 1951, uma atitude característica do cantor
mostrando a sua força de convicção
61
DE FÉLIX MAYOL A NEY MATTOGROSSO
ou
SEXUALIDADE E PERFORMANCE NA INTERPRETAÇÃO DE
CANÇÕES
Christian Marcadet
Malheureux celui qui vit esclave infâme
Sous une femme hommasse et sous un homme femme!
Desgraçado seja aquele que vive como escravo infame
Debaixo de uma mulher macho e debaixo de um homem
afeminado!)24
[Agrippa d’Aubigné, Les Tragiques, Princes]
[…] cela n’aurait aucun sens, phénoménologiquement, de se
demander s’il y aurait, par exemple, une écriture masculine ou une
écriture féminine, et pas davantage un sens de se demander s’il y
aurait une réception masculine ou une réception féminine,
phénoménologiquement.
... não teria nenhum sentido, fenomenologicamente, interrogar-se
se haveria, por exemplo, uma escrita masculina ou uma escrita
feminina, e não mais sentido interrogar-se se haveria uma recepção
masculina ou uma recepção feminina, fenomenologicamente.
[Georges Molinié, Sémiostylistique]
Apresento essas duas citações em preâmbulo para indicar o tom deste
artigo, e ainda duas questões: como a escolha de vida homossexual é percebida
no mundo social e estético das canções, e, existe a possibilidade de identificá-la
com base em processos artísticos?
24
Salvo quando indicado, as traduções das várias citações foram feitas pelo autor deste artigo.
62
Ambigüidades e implicações dos fatos-canção relativos às
homossexualidades
Preparando esta reflexão a propósito dos fatos-canção 25 relativos à
homossexualidade, parti do princípio de que tal investigação podia ser realizada
apenas estudando materiais concretos, em termos de repertórios, inventores e
situações de enunciação.
A homossexualidade incomoda porque instaura a confusão social e
mental. Social, no sentido de que perturba um equilíbrio “natural” que, a partir da
origem dos tempos, impôs-se como ordem social. Mental, porque abre um espaço
para a dúvida, o que impede que confiemos apenas nas aparências.
Além disso, este tema da confusão dos sexos ocupou muito tempo o
espírito de certos letristas atraídos por este assunto, desde as obras de fantasia
do café-concerto francês do tipo C’était une fille et Femme et z’homme, no início
dos anos 20 do século passado, ao mais inquietante Maskulinum - Femininum
alemão26, cujo fruto desta união fora das normas, entre uma mulher macho e um
homem efeminado, seria uma criança hermafrodita chamada “Neutra” (“einen
kleinen Hermaphrodit! / Já, já, ein neutrales Neutrum...”):
Maskulinum – Femininum (Masculino – Feminino)
[Marcellus Schiffer - Mischa Spoliansky / 1923 ; gravação Ute
Lemper / 1996]
Ich vertrau dir etwas ganz intern!
Du bist Femininum, doch sehr maskulinum,
Ich bin Maskulinum doch sehr femininum.
So ein Maskulinum und ein Femininum
Por fato-canção, entendo qualquer conjunto semiótico que abrange os processos criativos, performativos
e receptivos, de qualquer ordem que seja (artística, social, histórica, ética, comportamental), em relação
direta com o domínio das canções.
26
Maiores informações sobre os títulos citados: C’était une fille (C. Abadie et F. Pearly - G. Gabaroche et
F. Pearly), gravado por Maurice Chevalier, em 1920 ; Femme et z’ homme (R. Myra et M. Bertal - G.
Gabaroche et F. Pearly), registrado por Nibor, em 1920 ; Maskulinum – Femininum (M. Fischer - M.
Spoliansky), criada em 1923, sem gravação até aquela de Ute Lemper em 1996 – tradução Decca et
Christian Marcadet.
25
63
die sind heutzutage streng modern!
Darum liebes Femininum, sei mein Maskulinum
ich dein Femininum…
Confio-lhe algo que deve permanecer entre nós!:
És uma mulher, mas um tanto masculina,
Sou um homem, mas um tanto feminino.
Tal homem e tal mulher
são muito modernos hoje em dia!
Pois, querida mulher, seja o meu homem
e serei a tua mulher…
Outra canção a colocar em pauta a questão foi um calypso sugestivo que,
nos anos 50, já evocava, através de uma noticia polêmica do momento27, a questão
da transexualidade de maneira humorística:
Is she is, or is she ain’t? (Ela é, ou ela não é?)
[Louis Eugene Walcott aliás The Charmer / 1953-54]
I am trying to find a solution
For that certain person (bis)
With this modern surgery,
they changed him from he to she.
But behind that lipstick, rogue and paint,
I got to know is she is, or is she ain’t?
Estou tentando encontrar uma solução
No que se refere a uma certa pessoa
Com esta cirurgia moderna
Transformaram-no de ele para ela.
Mas atrás deste batom vermelho,
este rosto safado e esta maquilagem,
Gostaria de saber se ela é ou não é?
27
Esta canção, Is she is, or is she ain’ t?, relatava o acontecimento, em 1952, da operação cirúrgica – muito
midiatizada – de mudança de sexo, sofrida na Dinamarca por um fotógrafo nova-iorquino, George
Jorgensen, que se tornou imediatamente assunto de curiosidade e de escândalo para a imprensa
sensacionalista. Jorgensen foi convidado(a) algum tempo a atuar em muitos programas e eventos
envolvendo conversas sobre temas do momento; participou também em várias reportagens fotográficas
e mesmo tentou atuar como cantor no circuito das boates, com títulos do tipo I Enjoy Being a Girl and
Bewitched, Bothered and Bewildered.
64
Cabe lembrar também o venenoso e decadente Senhor Vénus de Pierre
Philippe, musicado e interpretado por Juliette, nos anos 90:
Monsieur Vénus (Senhor Venus)
[Pierre Philippe - Juliette Noureddine ; gravação Juliette / 1993]
[…] Je ne suis pas un monstre mais une fille douce
Que le désir des hommes jamais n’intéressa
Je voulais être un autre et toi, vice-versa,
Tu avais tout l’attrait des belles garces rousses
[…] Échangeant nos deux rôles dans notre mise-en-scène
À toi la bouche peinte et les seins maquillés
Les longues pâmoisons dans les blancs oreillers
J’avais, moi, la cravache et les ordres obscènes…
[...] Não sou um monstro mas uma moça delicada
Que o desejo dos homens jamais atraiu
Queria ser um outro e você, vice-versa,
Tinhas todo o atrativo das belas ruivas descaradas
[...] Trocando nossos dois papéis em nossa encenação
Para ti a boca pintada e os seios postiços
Os longos gozos sobre os brancos travesseiros
Enquanto tinha, eu, o chicote e as ordens obscenas...
Sabemos que a posição do homossexual, em nossas sociedades, é
definida em relação a uma norma que é a heterossexualidade – ou sexualidade
mista entre os gêneros, para adotar a feliz formulação da mixité segundo Sylviane
Agacinski28. Portanto, como abordar esta diferença? Basta distinguir sexualidade
de reprodução?
A sexualidade estaria relacionada ao ato, às pulsões, às proibições (em
termos de cultura) e a reprodução voltada para a lei biológica da continuidade da
espécie, enquanto natureza?
Um extrato de uma canção alemã do pós-guerra 1914-1918 ilustra esta
problemática, apesar de invertê-la:
28
Agacinski, Sylviane, Politique des sexes,“Mise au point sur la mixité, préface à la deuxième édition”,
Seuil, Paris, 2001.
65
Das Lila Lied (A Canção lilás) 29
[K. Schwabach - M. Spoliansky alias A. Billing / 1921]
[…] Ist das Kultur
daß jeder Mensch verpönt ist,
der klug und gut, jedoch mit Blut
von eig’ner Art durchströmt ist,
daß g’rade die Kategorie
vor dem Gesetz verbannt ist,
die im Gefühl bei Lust und Spiel
und in der Art verwandt ist?
Und dennoch sind die Meisten stolz,
daß sie von ander’m Holz!
Wir sind nun einmal anders als die Andern,
die nur im Gleichschritt der Moral geliebt…
Wir lieben nur die lila Nacht, die schwül ist,
weil wir ja anders als die Andern sind.
Wir, hört geschwind, sind wie wir sind…
[...] É cultural
Rejeitar todo aquele que
é inteligente e bom mas de um sangue diferente
e fazer proscrever pela lei
seres de uma espécie particular, vinculados entre si
pelos sentimentos, pelo gozo, o jogo e a natureza?
E no entanto, a maior parte se orgulha
De ser de uma outra madeira!
Somos diferentes dos outros
Que somente gostam do passo cadenciado da moral,
[... ] Nós gostamos apenas da noite lilás, que é asfixiante (schwül)30
Porque nós somos diferentes dos outros.
[... ] saibam disso, somos assim como somos...
Muito tempo semiclandestina, esta canção emblemática foi registrada inteiramente – na sua versão alemã
–, apenas em 1996, por Ute Lemper sobre o CD Berlim cabaret songs, álbum que pode-se considerar
como uma obra-prima.
30
Jogo de palavras intraduzível entre schwül (asfixiante) e schwul (homossexual). Recordemos que a cor
lilás, evocada nesta canção, era um sinal identitário codificado indicando a tendência homossexual na
Alemanha.
29
66
Nas profissões artísticas, o travesti, masculino ou feminino, e as atitudes
comportamentais ambíguas já são de larga ocorrência. Nestes meios sociais,
de jeito nenhum a homossexualidade é relegada a uma posição marginal, o que
se confirma, pela existência, dentre outros, de sumidades da literatura (Marcel
Proust, Marguerite Yourcenar, Jean Genet), da dança (Barbette, Rudolph Nureyev),
da música (Maurice Ravel, Leonard Bernstein e Benjamin Britten, que, apesar de
discriminado, tornou-se Lord) e dos espetáculos de variedades (Henri Varna, o
onipotente diretor do Casino de Paris, Suzy Solidor, Charles Trenet).
Podemos, com segurança, afirmar que esta população é sobrerepresentada no campo do espetáculo. No entanto, a definição da
homossexualidade é imprecisa. Onde começa? No desejo, no ato, como prática
ocasional ou regular? E o que dizer das sexualidades qualificadas de bissexuais,
como aquela celebrada por Margo Lion e Marlene Dietrich em Wenn die beste
Freundin, numa canção que exalta a cumplicidade de duas amigas mais que
íntimas e do seu “amigo” homem?
Wenn die beste Freundin (Quando a melhor amiga)
[Marcellus Schiffer - Mischa Spolianski / 1928 ; gravaçao por Marlene
Dietrich,
Margo Lion e Oskar Karlweis]
- […] Wie wir uns beide gut zusammen
vertragen!
- Es ist kaum noch auszuhalten, wie gut
wir beide uns vertragen, nur mit einem
vertrage ich mich noch so gut mit meinem
süßen kleinen Mann.
[…] - Dein kleiner Mann ist aber aufdringlich!
- Warum?
- Na, ich finde […] Er macht solche Sachen...
- Nanu ... Na gut, vertragen wir uns! (Küsse)
- Na gut, vertragen wir uns! (Küsse)
– [... ] como nos entendemos bem uma com a outra!
– É dificilmente imaginável como podemos nos entender tão bem,
67
só com uma pessoa poderia entender-me igualmente,
com o meu delicado pequeno homem.
– [... ] Teu pequeno homem é no entanto inoportuno!
– Por que?
– Bem... acho... [... ] ele faz destas coisas...
– Pois é... tudo bem, entendemo-nos! (beijos)
– Bom, entendemo-nos (beijos)”
É muito mais pertinente falar das homossexualidades em termos de
engajamento pessoal e de práticas e apreendê-las por meio do pensamento
gradual (Georges Molinié), sem cair no maniqueísmo do certo ou errado, sem
usar classificações com base apenas em extremos opostos.
O tema das homossexualidades excita a curiosidade e muitas vezes exala
um perfume inebriante de escândalo e de morbidade. A publicidade feita, nos
anos 30, sobre os assassinatos devassos de Oscar Dufrenne, famoso diretor do
music-hall Palace, e do cantor colegial, Lyjo31, como os mexericos a propósito
dos jeitos particulares de Mayol e as disputas judiciais de Ray Bourbon e de
Charles Trenet, são todos preciosos sinais da notoriedade e atração constante
do tema.
Já nos anos 50, um álbum de 25 cm, com a gravação de textos recitados
sob o título Lesbos, antologia poética do amor feminino, com a vedete Suzy Solidor,
era publicado na França pela marca Pacific. Desde então, diversos espetáculos
e álbuns inteiros foram produzidos sobre este tema na França, na Alemanha,
Grã-Bretanha e EUA, como podemos verificar nos sítios da Internet dedicados às
atividades musicais da comunidade homossexual32.
Nos anos 30, Lyjo, cantor conhecido pelas suas canções indecentes, torna-se também organizador de
várias obras beneficentes a serviço dos artistas carentes e da infância desfavorecida.
32
Listamos aqui alguns destes sítios especializados, na maioria anglo-saxões: Queer Music Heritage <http:/
/www.queermusicheritage.us>; The Lesbian and Gay Country Music Association <http://www.lgcma.com> ;
GALA. Gay and Lesbian Association of Choruses <http://www.galachoruses.org> ; GLAMA. Gay/
Lesbian American Music Awards <http://www.glama.com> ; Queer Music Heritage <http://
www.queermusicheritage.com> ; Music Resources for the LGBT Community -Database of Lesbian &
Gay artists <http://www.queertheory.com> .
31
68
Um espetáculo piano-voz, “Comme ils chantent…, Florilège de chansons
gay”33 – cópia maliciosa do Comme ils disent de Charles Aznavour, título que
marcou uma virada decisiva no reconhecimento do fato social homossexual –,
esforçou-se para ilustrar a homossexualidade na canção francesa. Observação
incidente: o corpus relativo a este tema parece nitidamente mais rico do lado
masculino. Seria mais fácil para um homem declarar-se homossexual? Isso
seria mais subversivo ou mais difamatório para uma mulher, cuja “função natural”
seria assegurar a reprodução?
A reivindicação de uma sexualidade liberada e plural emerge novamente
no final dos anos 60 especialmente com a divulgação das obras de Wilhelm
Reich (A Revolução sexual) e Herbert Marcuse (Eros e civilização), os primeiros
escritos de Michel Foucault (Les Mots et les choses) e o grande movimento de
idéias, que prefigura e seguidamente acompanha o Movimento de Maio de 68.
Escrito e cantado em 1963, o provocador e premonitório Dieu que les
hommes sont méchantes34, texto pouco conhecido de Serge Gainsbourg, defendia
esta posição libertária:
Dieu que les hommes sont méchantes (Nossa, como os homens são
mal-educadas)
[Serge Gainsbourg / 1963]
De longs regards / Sur qui me tente
Tous les beaux-arts / En dilettante
Un beau cycliste passera / Et me prendra
[…] Dieu que les hom- / Mes sont méchantes
J’aime aimer com- / Me ça me chante
Et quand cela me passera / Ça vous prendra…
Preparado em Junho de 2001, sob a direcção de Jean-Philippe Maran, “Comme ils chantent” era
interpretado pelo jovem artista Benoît Romain no dancing parisiense Le Tango. Ultimamente, uma remontagem
deste espetáculo, rebatizado “Chantons dans le placard” e apresentado sob forma de comédia musical e
teatral escrita por Michel Heim, foi realizada em março de 2006, outra vez no Tango, desta vez com três
atores-cantores.
34
Cf. Serge Gainsbourg, 1963 - Théâtre des Capucines, CD Philips 077 272-2, Mercury France, 2003.
33
69
Longos olhares / Sobre quem me tenta
Todas as Belas Artes / como diletante
Um bonito ciclista passará / e me conquistará
[...] Nossa, como os Ho- / Mens são mal-educadas
Gosto de amar co- / Mo me agrada
E quando isto passar / Isso fará você se tocar...
Esta reflexão sobre a diferença e a alteridade articula-se com a concepção
de um subconjunto social homossexual produzindo uma ideologia e valores
próprios que teriam preeminência sobre a pertença social (cultura de classe), a
ancoragem nacional ou regional (enquanto vetor identitário) e a abordagem
segundo a geração (grupos etários).
Podemos acrescentar, além disso, que, com o desenvolvimento do
movimento homossexual e sua tendência a constituir-se como um campo social
específico, este se tornou também uma atividade econômica, com sua imprensa
especializada, seus lugares, suas organizações, oficiais e oficiosas, seus
empregos, lazeres singulares e, por que não, espetáculos identitários.
Das representações à performance
Exceto o livreto do CD Chansons interlopes35, redigido por Martin Pénet,
que propõe um histórico das canções francesas ligadas à homossexualidade e
uma primeira tentativa de caracterização, poucas obras aprofundam este tema,
que continua a ser freqüentemente reduzido a um parágrafo, imerso no capítulo
sobre as canções de amor ou naquele relativo aos fatos de sociedade.
Aprofundando o assunto, Pénet fez uma comunicação publicada nos Anais
de uma Jornada de Estudos consagrada às implicações sociais e estéticas dos
gêneros feminino e masculino nas músicas populares36. O autor mostra-nos
como as representações do tema e o olhar social sobre a comunidade
35
36
Pénet, Martin, Chansons Interlopes, 1908-1936, CD Les Gais-musettes LGM 1, 1997, p.225.
Pénet, Martin, “L’homosexualité dans les chansons du 20ème siècle : Historique des représentations”, in
Anais da Jornada “Le féminin, le masculin et la musique populaire d’aujourd’hui“ do Observatoire Musical
Français / Université de Paris-Sorbonne (Paris IV), 4 de Marco de 2003, série Jazz, chanson, musiques
populaires actuelles, n°1, Paris, 2005, p. 53-65.
70
homossexual evoluíram, na França. Essa evolução vai desde a exclusão social
(arsenal jurídico e denúncia de um desvio comportamental) e os tradicionais
sarcasmos (os estribilhos da tradição obscena e as sátiras dos chansonniers de
Montmartre), até uma visão exótica da homossexualidade com os seus
estereótipos (cf. “La Cage aux folles”) ou seus lugares comuns (cf. Comme ils
disent), que visam banalizar uma alteridade que incomoda.
Mais recentemente, verificou-se a afirmação de uma diferença irredutível
(com o FHAR37) e o desejo de legitimação via Pacs38. Ou seja, em resumo,
passa-se do gueto clandestino a uma aparente banalização social.
Boze Hadleigh, militante homossexual estadunidense, especialista nas
artes do espetáculo, aborda a questão em Sing out, Gays and lesbians in the
music world39, mas ele o faz sob um ângulo midiático e comportamental. Dedicase a criticar a ideologia dominante – aos seus olhos, hipócrita –, propagada na
sociedade e no mundo do espetáculo, que, segundo ele, oprimiria as minorias
sexuais e negaria até a sua existência. Para este autor, “… no showbiz, o Grande
Rumor é a questão da homossexualidade”.
Hadleigh, em reação, sugere aos cantores implicados que se aproveitem
da tribuna do palco para quebrar o muro do silêncio e da exclusão; fazendo
assim progredir a causa homossexual, rejeitando ao mesmo tempo as canções
transexualisadas, aquelas cujo gênero dos personagens foi invertido para parecer
normativamente correto, assim como os casamentos arranjados e as biografias
sem informações verídicas, porque foram julgadas escabrosas e foram
expurgadas pelos editores. Em sua opinião o cantor, que dispõe de maior
liberdade que os atores de Hollywood, onde as implicações econômicas são
fora do comum, é, por essência, mais sincero porque desempenha o seu próprio
papel, e, com respeito a isso, lhe é atribuída uma responsabilidade social.
FHAR : “Front homosexuel d’action révolutionnaire”, movimento ativista radical fundado em 1971.
Pacs : “Pacte civil de solidarité”, estatuto elaborado na França para os casais não juridicamente casados
– incluindo de fato os homossexuais –, votado em quarta leitura na Assembléia Nacional francesa, em
Outubro de 1999.
39
Hadleigh, Boze, Sing out!, Gays and lesbians in the music world, Barricade Books Inc., New-York, 1997.
[N. do A.: O título deve ser entendido como “Cantem (sua condição) em voz alta...”].
37
38
71
Muito a propósito, este autor assinala o dilema que consiste em decidir se
tal ou qual canção é ou não conotada no plano homossexual:
Even with well known expression, it’s difficult to establish that a particular
song is gay-coded. […] If de-coding is difficult, even fairly obvious lyrics
sometimes aren’t conscientiously heard or believed, as with Elvis
Presley’s ‘Jailhouse Rock’.40
Mesmo no caso de expressões bem conhecidas, é difícil estabelecer
se um título específico é homossexualmente codificado [...]. Se a
decodificação em si mesmo é difícil, estrofes tão evidentes como aquelas
do Jailhouse rock de Elvis Presley, podem muito bem não ser
conscientemente compreendidas nem aceitas como tais.
Mais recentemente, em fevereiro 2005, Alan Lareau, Professor do
Department of Foreign Languages and Literatures da University of Wisconsin
Oshkosh e especialista em literatura de língua alemã do século XX, escreveu um
artigo que trata desta questão e as suas implicações socioestéticas: “Lavender
songs: undermining gender in Weimar cabaret and beyond”41.
Neste texto essencialmente consagrado ao período 1918-1933 na
Alemanha, Lareau demonstra que, apesar do seu papel provocador e de revelador
social de uma sociedade alemã em crise profunda, o cabaré berlinense
permanece como um lugar “bourgeois” de distração, que responde de maneira
pragmática às regras econômicas tanto quanto às políticas, que determinam os
limites e as modalidades de qualquer subversão possível.
Neste sentido, ainda que os métodos subversivos usuais tais como a
paródia, o duplo sentido, a ironia ou a sutileza e a ambigüidade das enunciações
estejam bem presentes, não se deve esperar, entretanto, perturbações ideológicas
profundas, na medida em que, para assegurar a sua sobrevivência, o espetáculo
deve permanecer espetáculo, the show must go on.
40
41
Hadleigh, ibidem, p. 152-153 [tradução C. Marcadet].
Este artigo de Alan Lareau, cujo título pode traduzir-se como “As canções lilás ou o trabalho de minar os
papéis sexuais (gêneros) no cabaré da República de Weimar e mais além”, foi publicado, acompanhado
de algumas ilustrações sugestivas, na revista Popular Music & Society, Routledge - Taylor & Francis
Group, Volume 28, Number 1/February 2005, pp. 15-33, 2005.
72
Quando, excepcionalmente, uma canção (Das Lila Lied), um
acontecimento específico (a revista “Es liegt in der Luft”, em 1928) ou a carreira
de um artista singular (Paul O’Montis) perturbam durante algum tempo os códigos
morais e comportamentais da sociedade dominante, estes fatos continuam a ser
suficientemente isolados, de modo que estas exceções confirmem a regra. Assim,
de acordo com Lareau, o cabaré berlinense desta época:
[…] walked a precarious tightrope, for despite its occasional literary
and countercultural ambitions, it was first and foremost a commercial
venue dependent on the applause of the paying guests.
[…] andava sobre uma perigosa corda bamba, porque, apesar
das suas eventuais ambições literárias e contraculturais, tratavase primeiro de uma empresa comercial que dependia sobretudo
da satisfação e das contas pagas pelos seus clientes.
Esta observação confirma a idéia de que a transformação política e
ideológica da sociedade – quanto à sua moral estabelecida –, só saberia
efetuar-se nos campos sociais e estruturais previstos com este objetivo (partidos
políticos, grupos de pressão, massas...) e não nos cabarés nem nos teatros.
Portanto, as oportunidades de agitar no palco as idéias e as práticas relativas à
sexualidade podiam ocorrer apenas de maneira sutil, nas entrelinhas, e a revolta
aparecia mais como experiência teatral e escárnio espirituoso do que como
manifesto político destinado a alterar as mentalidades. Daí os repertórios usuais
sobre os amores mistos homens-mulheres cantados por artistas famosos por
suas inclinações homossexuais. Claire Waldoff, Curt Bois e Paul O’Montis
ilustram idealmente estas performances tradicionais de transvocalisação nas
quais artistas diferentes podiam cantar amores convencionais, mas fazendo-o
de uma maneira singular que não escapava aos públicos avisados.
Certos artistas envolvidos, como Ney Matogrosso, que nunca negaram a
sua preferência sexual – ou bissexual eventual –, escolheram deliberadamente
colocar-se sobre o único terreno estético, recusando a priori a fronteira
estabelecida entre o masculino e o feminino. A biografia de Ney, que foi escrita
pela jornalista carioca Denise Pires Vaz, após múltiplas sessões de discussões e
confissões íntimas, apresenta um resumo do projeto criador42 do cantor:
73
Quando subia num palco ignorando a separação feita entre os dois
sexos, nunca pensou em ser mulher e nem mesmo em se vestir como
ela. Apesar de, algumas vezes, utilizar símbolos confinados pela
sociedade ao universo feminino, queria, na verdade, atuar no lado
invisível dos seres, quebrando rótulos impostos à sensibilidade. Mas,
de maneira nenhuma, pretendia pregar mudanças no cotidiano das
pessoas, fazendo, por exemplo, homem tirar sobrancelha, deixar unha
crescer ou ir de saia para a rua. Detesta isso […]. Era um homem
fazendo aquilo, numa manifestação artística movida a desacato, e não
a veadice, e que procurava uma composição estética independente do
masculino e do feminino. O que não impediu que muita gente
considerasse que ele se travestia.43
Preparando este artigo, interessei-me pelas carreiras de certos artistas
franceses tais como Félix Mayol, Suzy Solidor, Nicole Louvier, Jean Guidoni,
Juliette ou como a quebequense Marie Savard, e pelas obras de autores
sensibilizados por este tema como Anne Sylvestre, Helène Martin e Pierre Philippe.
Interessei-me também por vários artistas de outros países. Exceto aqueles
conhecidos por suas provocações cênicas, como David Bowie, Freddie Mercury
ou Boy George, e exceto o delicado e talentoso melodista Cole Porter, o relativo
anonimato desses artistas estrangeiros nos permitiu um aumento de objetividade
na análise. Podemos citar: Vesta Tilley (ilustre travesti inglesa do início do século
XX, que apesar disso não era safista), os alemães Claire Waldoff (proibida no
rádio durante os anos de chumbo 1933-1945) e Paul O’Montis (que pagará com
a vida a sua condição de artista homossexual e judeu), Dora Stroeva (famosa
andrógina dos anos 30), Miguel de Molina (cantor de coplas exilado quarenta
anos na Argentina para expiar a sua culpa por ter-se colocado do lado republicano
e ter-se exibido como homossexual), Sotiria Bellou (figura emblemática do
rébétiko), o homem de teatro italiano Paolo Poli e suas montagens “paródicoProjeto criador: conceito desenvolvido inicialmente por Pierre Bourdieu nos anos 60, reformulado e
adaptado à conceitualização sociossemiótica, entendido aqui como conjunção entre potencialidades,
estratégia de carreira e meios mobilizados, combinados numa intenção. É encarado numa concepção
dinâmica mais do que sistemática e na sua articulação às outras instâncias que compõem o mundo social
da arte e da cultura.
43
Vaz, Denise Pires, Um cara meio estranho – Ney Matogrosso, Rio Fundo Editora, Rio de Janeiro, 1992,
p. 58-59.
42
74
músico-literários”, a brasileira Cássia Eller (roqueira talentosa e “marginal” –
lésbica assumida, que não hesitava em levantar sua blusa para mostrar o peito
durante os seus espetáculos, e a quem eram consagrados cerca de quinze sítios
na Internet nos anos 90) ou, ainda, os casos limites do exuberante intérprete
brasileiro Ney Matogrosso e o(a) alemão(ã) Georgette Dee, notório travesti no
palco e que se comportava como homem no cotidiano.
Com base na teoria elaborada com meus trabalhos precedentes, segundo
a qual a performance 44 é o lugar de catálise do sentido, o meu objetivo foi
determinar se as performances dos cantores homossexuais diferem – e como –
das de outros artistas. Sucessivamente abordei o uso ambíguo que era feito da
voz, o recurso específico à maquiagem, ao mimo e à gestualidade, a maneira de
vestir, eventualmente codificada, a escolha de certos repertórios e o modo de
comunicação envolvido com a assistência.
A minha contribuição revela como a postura homossexual no mundo
das variedades está imbricada numa contradição praticamente insolúvel
entre o fato de afirmar esta diferença e a vontade de produzir obras artísticas
assimiláveis aos repertórios correntes e, por isso, justificáveis pelos critérios
usuais de avaliação.
Abordagem conceitual e metodológica para a análise das
performances
O estudo de tal domínio impôs várias questões de método: devia estudar
todas as canções que tratam deste tema ou restringir a seleção às que são
escritas ou interpretadas por artistas que se declaram homossexuais? Tratavase de apreender repertórios escolhidos, performances, grupos sociais, ou, por
outro lado, de revelar e realçar uma ideologia subjacente?
Era necessário limitar o estudo aos únicos artistas que se reconhecem,
mais ou menos, nesta categoria ou estendê-lo aos homossexuais notórios –
envergonhados desta condição, e que a ocultam sob uma reserva excessivamente
44
Uma apresentação completa dos conceitos e do andamento sociossemiótico, aplicado ao domínio das
canções, está nos capítulos 1 a 9 da minha tese em Estética: Les enjeux sociaux et esthétiques des
chansons dans les sociétés contemporaines,EHESS, Paris, 2000, p. 15-278.
75
cuidadosa (Félix Mayol, Cole Porter, Charles Trenet)? Perguntas embaraçosas.
Na medida em que as práticas e preferências sexuais destes artistas são da
esfera do privado, preferi não falar destes exceto de Mayol, cujas negativas sobre
sua homossexualidade sempre foram de fachada. O extrato das Memórias de
Félix Mayol, trazido abaixo, quando ele evoca “os costumes estranhos”, que lhe
são emprestados, e declara que só tem que “responder […]pelos seus atos
públicos estritamente limitados ao seu papel de artista!”, demonstra a imbricação
desleal e inevitável que se estabelece espontaneamente entre o personagem
público e a vida privada das estrelas da canção:
[…] On se mit à me prêter des mœurs étranges, en chuchotant d’abord
sous le manteau, puis plus librement. Bien que ce fussent encore des
allusions discrètes, des insinuations à peine audacieuses, et bien
éloignées en tout cas de ce que l’on a osé depuis, je ne pus m’empêcher
d’en être très ému…
[…] ma bonne directrice me conseilla-t-elle […] : on parle de vous ? on
vous cherche des défauts, voire des vices ? C’est la preuve
incontestable que vous existez !… D’autre part, à Paris, vous savez,
on ne déteste pas les moutons à cinq pattes… Il faut parfois paraître un
peu phénomène pour arriver…
[…] le dédain que j’affichais fut pris sans doute pour de la faiblesse, dont
on ne tarda pas à faire un aveu tacite de toutes les horreurs qui se
colportaient sur mon compte…
[…] enfin, un artiste ne saurait avoir à répondre devant la clientèle que
de ses actes publics strictement limités à son rôle d’artiste ! […] je n’ai
pas de comptes à rendre, à qui que ce soit, en ce qui concerne ma vie
privée.45
Cuidou-se de me atribuírem costumes estranhos, cochichando-se
primeiro por debaixo do pano, mais livremente em seguida.. Embora
sejam ainda alusões discretas, insinuações audaciosas, e bem distantes,
em todo caso, do que ousou-se fazer depois, não pude evitar de ficar
muito comovido...
45
Cf. Mémoires de Mayol, recueillies par Charles Cluny, Louis Quérelle, Paris, 1929, p. 142-148.
76
[... ] a minha boa diretora aconselhou-me [... ]: fala-se de você?
procura-se os seus defeitos, até mesmo os vícios? É a prova
incontestável de que existe!... Por outro lado, em Paris, saiba você,
não se detesta as aves raras... às vezes, precisa-se parecer um
pouco um fenômeno, para vencer ...
[... ] sem dúvida, o desdém que apresentava foi visto como uma fraqueza,
a qual não demorou a tornar-se uma confissão tácita de todos os
horrores que se apregoava sobre mim...
[... ] por último, um artista só deveria ter de responder frente à sua
clientela apenas pelos seus atos públicos estritamente limitados ao seu
papel de artista![... ] não tenho que prestar contas dos meus atos, seja
lá a quem for, no que diz respeito à minha vida privada.
O fato de que Mayol consagra oito páginas das suas Memórias a este
único assunto, ilustra, de resto, o conflito latente entre o que tem que ver com o
artístico e o que é da competência do comportamental. Além disso, o meu trabalho
exigia re-situar os fatos abordados no campo social delegado do espetáculo e do
disco e no conjunto da sociedade que os engloba, a fim de dar sentido à posição
pública dos cantores homossexuais.
Embora estas questões misturem-se em certos repertórios do cabaret
berlinense dos anos 30, ou no atual repertório de Pierre Philippe, abstive-me
igualmente de abordar as outras experiências sexuais indevidamente associadas
à homossexualidade como pederastia, sado-masoquismo ou necrofilia.
De memória – e o exemplo impõe perguntas que saem do quadro desta
comunicação –, a pederastia também foi abordada em canções com talento e
sensibilidade, nomeadamente na obra do cantor francês Pierre Selos46.
A respeito dos travestis no music-hall, há, na minha concepção, uma
maneira só de abordar o assunto: trata-se de criadores autênticos que recorrem
a meios específicos – figurinos ou traços comportamentais –, numa finalidade
artística evidente (penso em Charpini, Ray Bourbon, Jean Guidoni e Georgette
46
Cf. álbuns Raisons de vivre e Des enfants et des hommes, editados por L’Oiseau Bleu, no inicio dos
anos 70.
77
Dee) ou trata-se de exibicionistas, em alguns casos, transexuais, que realizam
atuações orientadas – frequentemente acopladas ao canto e ao strip-tease –,
com o objetivo de excitar as sensações equívocas dos públicos do gueto
homossexual.
Os exemplos não faltam, tais como o do famoso transexual Coccinelle47
ou do animador (ocasionalmente cantor) de boate Michou, para quem um autor
de Montmartre, ele mesmo homossexual, Bernard Dimey, prefaciou um vinil de
45 rotações nos anos 70.
A mesma constatação vale para as boates de lésbicas, como o famoso
Monocle, antes da guerra, e Madame Arthur, posteriormente. Por evidentes razões
de coerência e atendendo ao conceito de projeto criador utilizado como
discriminador, estes espetáculos de travestis-cantores foram igualmente
descartados no presente estudo, assim como os discos de canções obscenas,
que consagram uma ou duas canções por álbum a esta questão bem picante.
Exemplo raro: um lado inteiro de À voile et à vapeur, álbum registrado no início
dos anos 70 por Mathis e Gérard Doulsanne (Les Tasses, Le Sonné du sauna, Le
Travelot), trata da questão homossexual.
Praticamente, a minha investigação seguiu este roteiro:
1. Levantamento e análise semiótica das canções – algumas centenas
– que, positivamente ou, com mais freqüência, negativamente, tratam
da homossexualidade; estudo dos vetores e valores veiculados e das
evoluções perceptíveis correlativamente àquelas da sociedade.
2. Análise das atitudes que exprimem a inversão e a confusão dos
sexos durante as performances (registros enunciativos, vocais, visuais,
comportamentais e simbólicos).
3. Estudo do caso específico dos militantes da homossexualidade que
levantam questões da ordem “sociossexual” nas suas canções: destaco
47
Nascido Jacques Dufresnoy, em 1933, Coccinelle destacou-se no início dos anos 60 por ter sido, na
França, uma das primeiras pessoas autorizadas a mudar de sexo no item estado civil do registro de
identidade. Do fim dos anos 50 ao início dos anos 90, Coccinelle efetuou uma carreira de cantor de
variedades singular em diversos cabarés da Rive Droite, como o luxuoso Carroussel, bem como em
diversos países. Um CD, que reconstitui a sua carreira, foi reeditado em 2004 por Marianne Mélodie.
78
Gil Cerisay e, em grau menor, Gilles Méchin, autor de três álbuns
patéticos sobre este tema; cito o ator e encenador Olivier Py que, após
ter apresentado em Avignon, em 1996, o espetáculo de cabaré “Miss
Knife et sa baraque chantante”, gravou em 2002 o CD do espetáculo
e aparece na capa vestido de mulher.
Encerrado numa perspectiva militante, qualquer cantor porta-voz da causa
homossexual corre rapidamente o risco de fechar-se numa temática exclusiva, a
exemplo daquelas das identidades regionais ou das lutas feministas. Assim, 22
dos 24 títulos dos dois álbuns de Gil Cerisay refletem esta preocupação
(Homoportrait, Je suis une folle, Toi l’hétéro…).
Homoportrait (Homoretrato)
[Gil Cerisay / 1979]
[…] Je fus esclave et enchaîné
Je fus empereur couronné…
Je portais un triangle rose
Sur mes habits de déporté…
Je fais peur à l’ordre moral
Et mes surnoms sont des insultes…
Un chanteur nommé Aznavour
M’a fait chansonnette à la mode…
Je ne veux plus vivre caché
Je vais apprendre à me défendre…
[...] Fui escravo e acorrentado
Fui imperador coroado...
Levava um triângulo cor-de-rosa
Sobre minha roupa de deportado...
Causo medo à ordem moral
E os meus apelidos são insultos...
Um cantor chamado Aznavour
Fez sobre mim canção da moda...
Não quero mais viver escondido
Vou aprender a me defender...
79
No álbum vinil Essayez-donc nos pédalos48, de proporção idêntica (12 de
cada 12 títulos referem-se à homosexualidade), o método utilizado, abertamente
paródico (Outrage aux mœurs, Nous les tantes, Les Petites annonces), não
exprime mais um sentimento obsessivo. É oferecida uma imagem invertida
daquela, caricatural e convencional, da peça famosa de Jean Poiret, “La Cage
aux Folles”, lançada em 1973 com Michel Serrault no papel principal.
Mais recentemente, e no mesmo espírito satírico e exibicionista, o conjunto
vocal gay Les Caramels Fous, sob a direcção de Michel Heim, ex-militante do
movimento homossexual e autor dramático, estabeleceu como objetivo para
seus diversos espetáculos (Les Aventures de l’Archevêque perdu (1991), Il était
une fois Tatahouine (1993) e, em 2006, Les Dindes Galantes) desmistificar os
estereótipos divulgados contra a cultura homossexual através da parodia e do
burlesco cênico. Estes espetáculos, contudo, postos a serviço de uma causa,
tratam apenas de uma problemática única, específica, ligada à atitude
comportamental dos protagonistas.
Por último, cabe destacar um jovem autor-compositor-intérprete francês,
Nicolas Bacchus, que se esforçou em renovar o gênero gravando em seus três
CDs uma série de canções que constituem quase a metade do seu repertório e
que se apresentam como uma mistura de provocação não-conformista, de
reivindicação identitária e de ironia sacrílega:
Ton fils (…dort avec moi) (Tu filho ; …dorme comigo)
[Nicolas Bages / 1999]
Non, Madame, cette nuit-là
Non, ton fils n’a pas
Dormi avec les filles
Non, Madame, cette nuit-là
(…) Ton fils a dormi avec moi…
48
Neste caso, o disco é a versão fonográfica de um espetáculo de café-teatro realizado por três atorescantores (Alain Marcel, também autor, Michel Dussarat e Jean-Paul Muel), envolvidos num exercício
delicado de des-dramatização do assunto no Festival Off de Avignon, em 1979.
80
Não, minha Senhora, esta noite
Não, teu filho não deitou-se
Com as garotas
Não, Senhora, esta noite
(...)Teu filho passou a noite comigo...
Gostaria agora de precisar alguns dos conceitos e algumas das noções
chaves do andamento sociosemiótico, que me permitem decodificar o sentido
social das canções. Esta abordagem sociossemiótica aparece em ruptura
epistemológica radical com as abordagens essencialistas ou quantitativas, ainda
que envolva a análise de textos e de discursos cruzados com os dados obtidos
em estudos anteriores, com o objetivo de avaliar a representatividade dos fatoscanção abordados.
Dois conjuntos condicionam a análise. A princípio a corrente semiótica:
intenção (inspiração, escrita e literatura explicativa); tom (sentido proposto para
a audiência) e convicção (modo de comunicação, natureza e intensidade), que
constituem o núcleo duro do projeto criador. Em seguida temos os três momentos
fortes da construção do sentido: projeto criador, individual (história de vida) e
coletivo (determinantes sociais); performance, sentido coligado no momento
do acontecimento (interação cantor-audiência) e projeto receptor, processo
ativo com tendência conformista, embora dialético, porque se a escuta é plural
(concerto, rádio, disco), a recepção final fica sendo individual.
Traços identitários e marcadores sociossexuais
As marcas da pertença sexual, quer seja ela genética ou falsificada, como
no caso dos travestis, homens ou mulheres, são identificadas de diversas
maneiras, nomeadamente com uma série de indicadores corporais e cênicos.
Em primeiro lugar, a voz, que é um órgão sexuado, em princípio
imediatamente perceptível e socialmente conotado. A transvocalização,
procedimento enunciativo que consiste em cantar no registro natural do outro
sexo, é o sinal diferencial mais frequentemente constatado49. Daí os timbres
49
A respeito da enunciação, Hadleigh (op cit., p. 153) sugere o conceito de “travesti vocal (cross vocal)”,
que possibilita aos artistas cantar canções escritas para o outro sexo, dando-lhes um sentido particular.
Sou tentado a ver nesta expressividade diferente, cruzada, uma fonte de enriquecimento estético.
81
perturbadores de alto que acentuam a androginia escultural de Suzy Solidor e
aquela, de uma distinta elegância, de Marlene Dietrich assim como o tom macho,
debochado, malandro, de Claire Waldoff, não isento de brusquidão estudada. O
auge nesta transvocalização parece atingido quando, em 1933, Suzy Solidor,
cuja reputação de lésbica era notória, arriscou-se a interpretar no palco, no
cabaré La Vie Parisienne, a versão não censurada de Ouvre :
Ouvre…(Abre...)
[Edmond Haraucourt - Laurent-Rualten ; gravação Suzy Solidor /
maio 1933]
[…] Ouvre tes bras pour m’enlacer
Ouvre tes seins que je m’y pose
Ouvre aux fureurs de mon baiser
Ta lèvre rose
Ouvre tes jambes, prends mes flancs
Dans ces rondeurs blanches et lisses
Ouvre tes deux genoux tremblants
Ouvre tes cuisses…
[...] Abre os teus braços para me enlaçar
Abre os teus seios para que pouse sobre eles
Abre aos furores do meu beijo
O teu lábio cor-de-rosa
Abre as tuas pernas, toma os meus flancos
Nestas curvas brancas e lisas
Abre os teus dois joelhos que tremem
Abre as tuas coxas.
Pelo contrário, uma voz masculina deliberadamente colocada no agudo,
recorrendo ao falsete como aquela de Ney Matogrosso, revela uma inclinação à
feminilidade, da mesma maneira que as vozes de certos tenores ligeiros operando
com preciosidade nos registros altos. Conviria de resto avaliar a parte devida a
esta relativa ambigüidade nos sucessos dos cantores populares Tino Rossi,
Réda Caire, Michel Polnareff e Daniel Balavoine. No entanto, a enunciação
extravagante de Charpini, homem dotado de uma voz quase naturalmente
soprano, o leva a paradoxalmente escapar de qualquer equívoco.
82
Na realidade, a maior parte dos artistas “diferentes” rejeita as chamadas
vozes bonitas, e, querendo ser expressivos ao extremo, aplicam-se em colocar
sua voz nesta região sensível, onde se instaura a confusão dos sexos, no intuito,
inclusive, de reduzir as suas diferenças fisiológicas com o outro gênero.
A maquiagem e a máscara são igualmente portadoras de códigos
simbolicamente representados. É assim no caso de homens exageradamente
pintados, aos quais se permitem experiências estéticas originais (cabaré
berlinense, David Bowie, Ney Matogrosso, Jean Guidoni). Em contrapartida, certas
cantoras lésbicas, que se recusam a exibir uma sexualidade natural, recusam
este atributo feminino.
O vestuário é um indicador que ressalta ou dissimula as formas do corpo;
daí as rudes roupas masculinas de Claire Waldoff, aquelas típicas da cantora de
rébétiko Sotiria Bellou, os trajes tradicionais dos gaúchos usados pelas tanguistas
Pepita Avellaneda e Azucena Maizani, ou as gravatas vermelhas dos cantores de
Broadway, os ornamentos sofisticados e o tapa-sexo de Matogrosso, o vestido
longo de cor preta ou púrpura de Dee. Assim é também com os trajes de couro
bem justos de Michel Hermon e Jean Guidoni, que fazem referência aos universos
sombrios e marginais de certos guetos homos onde práticas sado-masoquistas
têm lugar.
Sinal identitário eleito, o vestuário sempre designa. Viril, uma outra canção
de Pierre Philippe, interpretada com distanciamento por Jean Guidoni, ilustra
esta questão do figurino:
Viril
[Pierre Philippe / Michel Cywie ; gravação Jean Guidoni, 1980]
[…] L’anneau c’était le premier pas
Et bientôt ce fut l’engrenage…
En haut de mes reins on a tatoué
«Occasion à saisir de suite»
L’un de mes seins est bagué
Et pour seul slip, je porte une chaîne…
[... ] o anel era o primeiro passo
83
E cedo foi a engrenagem...
Na parte superior dos meus rins fiz tatuar
«Oferta a aproveitar imediatamente»
Um dos meus seios tem um piercing
E como única cueca, levo uma corrente...
A gestualidade sugestiva, caricatural no caso de Charpini e Cauby Peixoto
ou levada ao seu cúmulo com Mayol, é outro indicador. Para ilustrar, apresento
algumas linhas de um cronista do início de século XX, aplicadas a Mayol:
[…] ses mains agiles soulignent de gestes minutieux la diction impeccable
des couplets ; il nous montre la petite ouvrière occupée à sa toilette,
s’habillant en un tour de main, consolidant la frêle architecture de son
chignon au moyen d’épingles prises au coin de la bouche, puis se
hâtant vers l’atelier, d’une main le carton à chapeaux, retroussant ses
jupes de l’autre, sautillant drôlement au rythme du refrain.50
[...] as suas mãos ágeis sublinham com gestos meticulosos a dicção
impecável das estrofes; [Mayol] mostra-nos a pequena operária
ocupada em arranjar-se, vestindo-se com presteza, consolidando a
frágil arquitetura do seu coque mediante alfinetes tomados ao canto da
boca, dirigindo-se apressadamente depois para o ateliê, a caixa de
chapéus numa mão, arregaçando as suas saias com a outra, saltitando
com graça ao ritmo do refrão.
Compreende-se melhor hoje a necessidade de estudar as performances
em situação ou de partir dos documentos audiovisuais e iconográficos disponíveis.
Sobre este ponto, os DVD reproduzindo os espetáculos de Ney Matogrosso –
mencionados em anexo, que pormenorizam com generosidade as poses
insinuantes e os simulacros estudados de strip-tease do artista, se constituem
numa fonte insubstituível para a análise.
A atitude geral do artista pode, pela corporalização de um repertório
singular, por uma androginia dúbia ou por um comportamento conscientemente
dissidente, embaralhar as fronteiras entre os sexos. Assim, para ilustrar, indico as
poses efeminadas e afetadas em excesso do cantor de coplas Miguel de Molina
50
Pascal, Jean, in Revue mensuelle, janvier 1908, n° 27, notícia de cobertura.
84
ou mesmo aquelas, desconcertantes, do não-conformista Michel Polnareff ou
andamentos bruscos de viragos artistas como a cantora de rancheras Lucha Reyes,
a roqueira brasileira Cássia Eller e as francesas Mick Micheyl e Colette Magny.
A temática desenvolvida, ou seja, a ancoragem referencial das canções
interpretadas desempenha um papel determinante, articulado aos outros
elementos. Evocarei o universo marginal composto pelo autor e cineasta Pierre
Philippe – transcendido por seu intérprete Jean Guidoni – que faz abertamente
referência ao mundo fechado da homossexualidade masculina com seus lugares
quentes, seus back-rooms e a prostituição. No entanto, Guidoni também é dividido
entre a provocação cênica que manifesta e a real discrição, se não o pudor, com
o qual ele protege sua vida privada, como testemunha em Quelques jours de
trop51, livro autobiográfico que mistura habilmente lembranças pessoais e ficção.
Os procedimentos retóricos e outras sutilezas lingüísticas utilizados,
como paródia e intertextualidade, permitem gerar dúvidas sobre a pessoa do
artista, sua condição, ou afastar, artisticamente, um assunto angustiante.
Por último, temos os marcadores sociossexuais em correspondência
com o tema abordado. Além dos elementos assinalados, citarei certos estereótipos
recorrentes durante as performances como os gritinhos de “bichas” ou os arrulhos
sugestivos, as inflexões vocais afetadas em excesso e os saltos súbitos ao falsete,
que, sob o ângulo do masculino soam deliberadamente como falsos – em todos
sentidos; da mesma maneira que o deboche, o tom viril exibido e a recusa
aparente da sedução usual nas cantoras lésbicas; ou, ainda, os bruscos e
obscenos palavrões que vêm contrabalançar os ataques de frescura, os apartes
duvidosos (freqüentes em Ray Bourbon e Douglas Byng), até a inclusão, em
certos discos, da sonoplastia de beijos entre parceiros do mesmo sexo.
Outros elementos identitários merecem ser citados como a simbologia
das cores lilás, lavanda e rosa ou os artifícios cintilantes das jóias que, à sua
maneira, serviram por muito tempo de sinal de reconhecimento para os membros
desta comunidade.
51
Guidoni, Jean, Quelques jours de trop, Éditions de Septembre, Paris, 1991.
85
Alguns personagens emblemáticos a guisa de reveladores sociais
O estudo das carreiras e das performances de alguns cantores
homossexuais, evocados em seguida, permite compreender melhor a inabalável
articulação entre a tendência comportamental individual, o campo delegado do
espetáculo e do disco e o campo societal, porque é bem em torno do personagem
público do cantor que esta relação encontra sentido.
O refinado encantador fim-de-século Félix Mayol [1872-1941]
Ao longo de uma carreira de primeiro plano de cerca de trinta anos, de
1895 aos anos 30 do século XX, Mayol criou mais de quinhentas canções,
praticamente seduziu todos os públicos aos quais se dirigiu e deixou uma imagem
inalterável de sedutor. O que caracteriza a obra de Mayol é a evolução
“espetacular” que deu gradualmente a seu tour de chant. Após ter começado
com um repertório espirituoso e sensível de “cantor-dizedor” de Montmartre,
quando inspirava-se em Mévisto Aîné, o “Pierrot cantante”, Mayol atribuiu uma
importância crescente ao visual e ao subtexto das canções, introduzindo, com
discernimento, uma gestualidade refinada e passos de dança graciosos durante
as passagens mudas, quando, usualmente, a orquestra monopolizava a atenção.
Esta “incorporação” das canções e as palavras improvisadas dirigidas à
platéia, ou uma mímica personalizada – métodos fáticos e conotativos eminentes
–, permitiam-lhe manter o contato com a audiência. Recusando-se a fixar-se
num tipo definido, ele é de fato o primeiro cantor “não especializado”, que soube
com felicidade abordar todos os estilos: do romance suave à canção patriótica,
dos estribilhos licenciosos aos climas poéticos, da canção “colonial” à canção
dramática (chanson vécue).
Embora o tema seja de uso corrente por outros artistas menos implicados,
as canções que tratam do tema da homossexualidade ou as que contêm alusões
relativas a esta questão são praticamente ausentes do seu repertório – novo sinal
indicativo da posição ambígua do cantor e da sua prudência extrema. Contudo,
algumas evocavam o tema, como Il était intimidé, Les Vieilles jeunes filles e
Les Begônias, uma canção de 1914 que prefigurava, de modo amável, aquela
86
de Marcellus Schiffer, Maskulinum – Femininum, apresentada no inicio deste
artigo:
Les Bégonias (As Begônias)
[William Burtey et Roger Mira - Tollet ; gravação Mayol / juillet 1914]
[…] On les voit toujours ensemble
Tous les deux ils se ressemblent
De même habillés et très maquillés
On n’ peut pas les distinguer.
refrain
[…] C’est-y lui ou c’est-y elle
Ma foi on n’ sait ps
On les voit dans les ruelles
S’ tenant par le bras
Causant chiffons falbalas
Et patati et patata
(avec un ton de “folle”) – Oh tais-toi !
Ce sont les p’tits bégonias.
[…] Le garçon porte l’ombrelle
Il est délicat
Et pour compenser, n’est-ce pas ?
La canne c’est elle qui l’a
(parlé) Elle a la canne, oui Madame…
[...] Vê-se elas sempre juntas
Ambas assemelhando-se
Do mesmo modo vestidas e muito maquiadas
Não se pode distingui-las.
refrão
[...: ] ta’ ele ou ta’ ela
Palavra de honra não se sabe
Pode-se vê-las nos becos
Andando de braços dados
Falando bobagens e filigranas
E mais isto e mais aquilo
(com um tom de bicha) – Oh cala-te!
São as pequenas begônias.
[... ] o rapaz leva a sombrinha
87
É delicado
E para compensar, não é?
A bengala é ela que a tem
(falado) Ela tem a bengala, sim Senhora...
Em Mayol, a ressurgência dos traços comportamentais ligados à
homossexualidade far-se-á em surdina, sob forma de não-dito, de não-lingüístico,
e são as suas performances cênicas ambíguas, as suas atitudes exageradamente
efeminadas, os seus gritinhos de “bicha” (folle) – reproduzidos nas gravações –,
como os “you!” em À la cabane bambou ou os “zou!” em Elle vendait des petits
gâteaux – e os seus requebros, que terão a missão de revelá-los. Então, que
devemos pensar da sua própria encenação paródica da homossexualidade,
quando ele retoma e exacerba os sinais característicos das “bichas”: posturas
que instauram a dúvida, requebros, pequenos gritos e outros procedimentos
singulares dirigidos à sua audiência? Tem ainda o artista direito a manter seu
comportamento sexual no âmbito da vida privada?
O delicado soprano masculino Charpini [1901-1988]
Quando moço, Charpini participa no coro juvenil da igreja Saint-Germaindes-Prés. É durante o serviço militar que descobre a sua vocação interpretando
um papel de travesti. É lançado por um ária da opereta “Divin Mensonge”, com
um título dúbio, escolhido em sua intenção: Elle ou lui.
Charpini, que se qualificava soprano masculino, dispunha de uma voz de
cabeça de uma tessitura impressionante para um artista barítono ligeiro. A sua
facilidade e a sua flexibilidade natural nos registros elevados faziam maravilhas
numa época em que os contratenores eram bastante raros. Em 1929, com o
barítono Antoine Brancato, monta um duo de fantasistas: Charpini et Brancato.
Ambos animam com sucesso os cabarés noturnos de Paris e apresentam-se em
diversas grandes revistas antes de abandonar o palco no início dos anos 50. O
repertório deles era essencialmente paródico, sobre ares notadamente clássicos.
Pontuando as suas canções de comentários incongruentes, frequentemente
ligados à ambigüidade vocal e comportamental de Charpini, praticavam um
88
Uma pose artística particularmente sugestiva de Mayol e sua caricatura.
89
humor espirituoso e excêntrico desprovido de qualquer forma de agressividade.
Este distanciamento irreverente da homossexualidade reduzia a carga dramática
do tema, tornando-o “divertido” e consequentemente aceitável.
Nos cabarés, Charpini não se disfarçava nunca, porque considerava que a
proximidade do público lhe fazia correr o risco de destruir o encanto. Preferia criar
a confusão usando terno com corte masculino e só vestia-se com vestidos femininos
– suntuosos – nos espetáculos de revista, dos quais era uma atração destacada.
Neste extrato de Elle ou lui, gravado por Charpini em 1930, podemos
notar a combinação feliz entre o tema da confusão dos sexos e a especificidade
vocal do artista.
Elle ou lui (Ela ou ele)
[A. Madis - P. Veber et H. Delorme - Joseph Szulc; gravação de
Charpini / 1930]
Quand j’ naquis, ma famille / Eut une grande déception :
On voulait une fille, / On vit poindre un garçon…
[…] Si j’ manque d’appâts / J’ai la voix tendre
Et l’on n’ sait pas / Par quel bout m’ prendre.
[…] Je possède un nom de fille, / J’en ai la voix aussi
Si bien qu’ quand j’ fais des trilles, / Je monte jusqu’au si…
Quando nasci, a minha família / Teve uma grande decepção:
Queriam uma menina / E chegou um rapaz...
[... ] Se me faltam atributos femininos / Tenho a voz delicada
E não se sabe / De que lado me pegar.
[... ] Tenho um nome de menina / Tenho a voz assim também
A tal ponto que quando faço meus trinados / Consigo chegar ao Si...
Em seguida, escolhi dois exemplos no repertório do cabaré berlinense do
período fértil que se estende dos anos 10 até os anos 30 do século XX, destacando
as duas figuras eminentes de Claire Waldoff e Paul O’ Montis.
A trangressora berlinense Claire Waldoff [1884-1957]
Filha de mineiro, nascida na região de Ruhr, Alemanha, Waldoff construiu
uma carreira notável de autora, comediante e cantora. Brilhante nos seus estudos,
90
ela começou em pequenos papéis, na província. Ao chegar a Berlim, em 1903,
ficou fascinada pelo ambiente e pelo ritmo da capital e quis se familiarizar com o
falar popular.
Em 1907, um diretor de cabaré dá-lhe uma oportunidade: é um triunfo
imediato. Era a antivedete sem-vergonha, com físico robusto, com os cabelos
ruivos e volumosos e figurinos comuns, banais. Abandona os gestos teatrais
convencionais; fica plantada, em frente ao público, revira os olhos e utiliza um
fraseado gutural e gritado, com objetivo de exibir expressividade singular. Muito
culta e inteligente, assimila rapidamente os procedimentos que caracterizam a
cultura popular. É a ela que cabe personificar a berlinense do povo, com grande
generosidade e berros espetaculares.
Waldoff canta Berlim, os seus personagens e os seus bairros, exaltando
uma metrópole que oferece lazer e diversão a todos, e comenta a liberdade dos
costumes. Fala cruamente das relações amorosas, tomando alternativamente o
ponto de vista masculino ou feminino. O seu espírito independente e o seu
lesbianismo exibido a fazem cair em desgraça na chegada do regime nazista.
Em seguida, acomoda-se em pequenas casas de espetáculo antes de refugiarse no interior. Numerosas reedições de CDs e várias biografias já lhe foram
consagradas. Eis um extrato significativo de um de seus sucessos:
Hannelore
[Willy Hagen - Horst Platen ; gravação de Claire Waldoff / 1928]
[…] Hannelore trägt ein Smokingkleid
Und einen Bindenschlips.
Trägt ein Monokel jederzeit
Am Band von Seidenrips.
Sie boxt, sie foxt, sie golft, sie steppt,
Und unter uns gesagt, sie neppt!...
– Es hat mir einer anvertraut:
Sie hat ‘n Bräutjam und ‘ne Braut
Doch dies bloß nebenbei –
Hannelore! Hannelore!
Schönstes Kind vom Hall’schen Tore!
91
92
Süßes, reizendes Geschöpfchen
Mit dem schönsten Bubiköpfchen!
Keiner unterscheiden kann,
Ob du ‘n Weib bist oder ‘n Mann!”
[... ] Hannelore usa um smoking
E um nó de gravata.
Usa também todo o tempo um monóculo...
Pratica boxe e dança fox-trote,
joga golfe e cose à máquina,
E, digo-o entre nós, ela se raspa!...
– Fez-me uma confidência:
Tem noivo e também noiva
Pois sim, de passagem Hannelore! Hannelore!
Você, a mais bonita criança do bairro de Hall’schen!
Encantadora e excitante criatura
Com a mais bonita carinha de garoto!
Ninguém pode distinguir
Se és uma mulher ou um homem!
O kabarettist sacrificado Paul O’Montis [1894-1940]
Após uma formação clássica inicial, O’Montis torna-se um kabarettist
conhecido e canta um repertório espirituoso, frequentemente paródico e
cáustico. Estrela do Rádio, gravou cerca de 120 lados de discos de 78
rotações, discos que continham sempre apenas uma música em cada lado.
De origem judia, toma em 1933 o caminho do exílio e continua a sua carreira
na Europa Central.
No momento da invasão da Tchecoslováquia pelos alemães, O’Montis é
reconhecido e deportado por sua homossexualidade. Enviado para um campo
de concentração, ele morre em 1940, em Sachshausen. Dotado de uma voz de
tenor ligeiro, o seu estilo era delicado e particularmente expressivo até mesmo
sugestivo. Recorria facilmente ao falar-cantado e dava a impressão de ser um
artista ligeiramente rebuscado, mas sem exibicionismo.
93
Selecionei este título de 1927, Was hast do für Gefühle, Moritz?, muito
representativo da vida noturna berlinense e dos meios artísticos, nos quais os
temas da marginalidade cativavam criadores como Bertolt Brecht, Georges Grosz,
Friedrich Hollaender ou Rudolf Nelson.
Was hast du für Gefühle, Moritz? (Quais são os seus sentimentos,
Mauricio?)
[Fritz Löhner-Beda - Richard Fall ; gravação de Paul O’Montis / 1927]
[…] Was hast du für Gefühle, Moritz, Moritz, Moritz
Sind’s kühle oder schwüle, Moritz, Moritz, Moritz
Dus sagst nichts ja, du sagst nicht nein
Du bist so fein und doch gemein
Du hast ein Herz für viele, Moritz, Moritz, Moritz
Du bist so schön, um treu zu sein…
[... ] Quais são os teus sentimentos, Moritz, Moritz, Moritz?
És de gelo ou está no cio?
Não dizes sim nem não
És tão delicado e tão grosseiro ao mesmo tempo
Ofereces teu coração a toda a gente
És bem bonito, demais para ser honesto.
A drag-queen mitômana: Ray Bourbon [@ 1890-1971]
A vida deste artista é uma mistura complexa de realidade e de ficção.
Nascido no Texas por volta de 1890, Bourbon teve prazer em tornar a sua biografia
misteriosa. Teria sido casado e tido um filho. Nos anos 1910, começa sua carreira
artística com um número de mímica inspirado em Charlie Chaplin e já recorre a
maquiagens elaboradas. Obtém o seu primeiro contrato no cinema mandando
para um concurso uma fotografia dele disfarçado de mulher. Houve agitação em
Hollywood quando perceberam que se tratava de um homem!
Trabalhou como dublé e como ator em vários papéis secundários. Atuou,
com um outro artista de vaudeville, em um número de travesti apresentado em
cabarés. Colaborou para duas revistas com a escandalosa Mae West, outra vítima
da censura puritana; depois, caracterizou-se como travesti provocante –
94
prefigurando o tipo drag. Prosseguiu sua carreira sozinho, tornando-se durante um
bom tempo uma vedete dos meios gays estadunidenses. Mas a polícia atormentava
a comunidade homossexual e Bourbon teve que moderar as suas atividades.
Dos anos 1930 até os anos 1960, Bourbon grava e produz ele mesmo
numerosos discos de canções e monólogos sugestivos, vendidos por debaixo do
pano ou por correspondência. Por escárnio, denomina a sua firma UTC (Under
The Counter, debaixo do balcão). Nos anos 1950, anuncia com grande
publicidade que vai se operar no México, a fim de mudar de sexo, e grava um
álbum sobre este tema.
Bourbon foi, várias vezes, detido e processado por trajar roupas femininas
na rua; justificava-se perante o tribunal dizendo que voltava para casa em figurinos
de espetáculo.
Com a idade avançada e a liberação dos costumes, Bourbon faz figura de
“tia velha”, insistindo em temas antigos, até o ponto em que o movimento gay lhe
ignora – Hadleigh nem mesmo lhe menciona!
Bourbon passa tristemente os dois últimos anos da sua vida na prisão em
conseqüência de um assassinato sórdido, com o qual teria estado envolvido.
Bourbon sabia criar um ambiente, estabelecer uma relação de cumplicidade
com o público, falsear com talento a sua voz, dando, em uma mesma canção, a
impressão de atuar nos dois lados – o feminino e o masculino – de um mesmo
personagem, ele mesmo, com uma facilidade e um sentido de palco dignos dos
grandes nomes do showbiz.
O exemplar e temperamental Miguel de Molina [1908-1993]
Andaluz, de origem proletária, de Molina inicia-se, na juventude, nas danças
tradicionais e flamencas. Tendo-se destacado, integra as companhias de artistas
que animam as festas e percorrem a sua região de origem. Em 1930, participa
na criação de El Amor brujo, de Manuel de Falla. Nessa época, as suas récitas
cantadas e dançadas denotam um comportamento dúbio, que lhe vale o apelido
de “La Miguela”. Guardará deste tempo, na sua carreira, o sentido da gestualidade
estudada, dos trajes barrocos e dos efeitos cênicos.
95
96
No início dos anos 30, Molina descobre o seu estilo pessoal e impõe-se
como o mais eminente intérprete do tipo copla, tendo como único rival a sublime
Conchita Piquer. Após os breves anos de glória 1934-1936, as dificuldades
começam para ele. Reside então em Valência, do lado republicano, e durante a
Guerra Civil canta em hospitais. Esta situação faz-lhe recear o pior depois da
tomada da cidade pelos franquistas, em março de 1939; no entanto, de Molina é
sobretudo acusado pelo seu comportamento de homossexual notório – e ele
guardava em memória o destino trágico do poeta homossexual Federico Garcia
Lorca (fuzilado com um tiro na nuca), que tinha conhecido fugazmente.
Tomado como refém pelos fascistas, torna-se espólio de guerra e deve
dar concertos, cujo lucro é desviado por um dignitário franquista. Rebela-se, é
raptado por capangas do regime, violentamente golpeado e deixado num terreno
baldio, com o corpo mortificado, o cabelo cortado e o rosto desfigurado. Confinado
em prisão domiciliar por dois anos, de Molina pede desculpas, antes de chegar
a exilar-se na Argentina, onde efetua uma longa e tumultuosa vida artística com
apoio de Eva Perón.
A sua vida continuou dividida entre as suas exigências profissionais
excessivas e as vivências nos meios marginais. A sua obra fonográfica é
regularmente reeditada e as suas Memórias, reunidas sob o título “Botín de guerra,
Autobiografía”, foram publicadas em 1998. Eis um extrato revelador:
Algunos imitadores de cancionistas, que salían al escenario vestidos
de mujer, como Mirko, cuando el gobierno de Franco prohibió el
transformismo, comenzaron a actuar de hombre, cantando las mismas
canciones, pero la diferencia estaba solo en llevar el pantalón en lugar
de faldas. Y la pregunta de siempre: ¿Por que ellos si e yo no? E
insisto en que estilo nunca fue equivoco ni amanerado.52
Imitadores de cantoras, que tinham o hábito de subir no palco vestidos
de mulher, como Mirko, no momento em que o governo de Franco
52
Molina, Miguel de, Botín de guerra, Autobiografía, Ed. Planeta, coll. “La España Plural”, Barcelona,
1998,p.176.
97
proibiu os travestis, começaram a cantar como homem as mesmas
canções, e a única diferença estava nas calças que tinham substituído
o vestido. E então, interrogava-me: por que aquilo lhes é permitido? E
por que me proíbem de cantar? E insisto em dizer que nunca fui invertido
nem afeminado.
Além de estabelecer uma distinção oportuna entre a criatividade e o
exibicionismo, esta denúncia dos travestis cantantes por de Molina reforça a
idéia segundo a qual jamais o artista homossexual tem a liberdade de expressão
que seu temperamento aspira, já que deve sempre dar contas do seu
comportamento, como artista e como personagem público.
O seu estilo era extrovertido em excesso, vestia-se com camisas de seda
matizadas e com estampa de bolinhas (outro marcador sociossexual codificado),
efetuava, cantando, alguns passos de dança bem agitados, rebolando os quadris
de uma maneira abertamente sensual.
No espaço de alguns minutos, de Molina dava às coplas mais poéticas
uma dimensão dramática de uma rara intensidade. Sempre na corda bamba, o
seu canto era exacerbado, exaltado, transcendental. Os raros trechos filmados
dele nos palcos mostram-no em atitudes coreográficas hieráticas e sugestivas.
Se, em conjunto, o repertório de Molina conformava-se à ideologia dominante,
no entanto, alguns títulos, nas suas interpretações, não escapavam de certa
ambigüidade, como este simbólico La Bién pagá :
La Bién pagá (A Bem paga)
[Ramón Perelló – Mostazo ; criação de Miguel de Molina / 1934]
Na te debo, na te pío
me voy de tu vera, orvíame ya
que he pagao con oro
tus carnes morenas…
[...] Bién pagá, si tú eres la bién pagá
porque tus besos compré
y a mí te supiste dar
por un puñao de parné...
98
Miguel de Molina, o cantor de coplas
99
Não te devo nada, não te peço nada
não vou ficar ao teu lado, esquece-me agora
que paguei a preço de ouro
a tua carne morena...
[... ] Bem paga, sim, tu és a bem paga
porque comprei os teus beijos
e te oferecestes a mim
por um pouco de grana...
A paixão, a intensidade, a expressividade do personagem fazem de Molina
um modelo de referência nas artes cênicas.
A diseuse contemporânea Georgette Dee53
Este alemão, nascido em 1958, que canta vestido de mulher, é elogiado
pela crítica como a maior diseuse alemã atual. É um tipo de artista andrógino
que atua nos teatros clássicos sem recorrer aos disfarces usuais das boates dos
bairros arriscados. Dee, que possui uma voz vigorosa, embora cansada pelos
excessos, interpreta as suas canções com inflexões sugestivas, acompanhadas
de um gestual sóbrio e estudado.
Recolocou na moda, atualizando-os, os repertórios ambíguos de autores
dos anos 1930 – nomeadamente Friedrich Hollaender e Bertolt Brecht. A esse
último consagrou um CD inteiro. Foi no início dos anos 1980, após várias atividades
teatrais, que ele decidiu vestir-se com roupas de mulher para cantar um repertório
poético, provocador e mórbido ao mesmo tempo. Compõe, há vinte anos, um duo
homogêneo com Terry Truck, seu pianista. Seus tours de chant são uma sucessão
de canções literárias entrecortadas por intermináveis digressões pornográficas –
de resto extremamente espirituosas –, durante as quais faz-nos participar de suas
confidências, utilizando um timbre feminino rouco em excesso. Gravou mais de
uma dúzia de CDs. Os espetáculos de Dee são também encontros festivos com o
seu público, freqüentemente mais excitado que ele mesmo.
53
Em Abril de 2000, Georgette Dee apresentou uma série de concertos piano-voz no Théâtre de l’Odéon,
de Paris.
100
Fora do palco, a elegante diseuse volta a ser um homem com seu terno
de corte masculino. Em redor dele, constituiu-se uma pequena galáxia de cantores
alemães alternativos como Cora Frost ou a francesa Mouron e, mais recentemente,
Ingrid Caven. Com Dee, deixamos o universo pesado dos bairros baixos (onde
prevalece o lumpen proletário) para viver uma aventura poética absoluta no estilo
dramatúrgico de Jean Genet.
Os valores negativos reencontram-se transcendidos pela sinceridade das
suas interpretações. Seu sítio na Internet é um fórum lúdico permanente e sabemos
ainda que Dee é freqüentemente associado às manifestações da comunidade
homossexual, em nível europeu.
Como último exemplo, igualmente contemporâneo, apresento o talentoso
andrógino brasileiro Ney Matogrosso, sobre o qual gostaria demorar-me um
pouco mais.
Um esteta provocador: Ney Matogrosso
Nascido em 1941, Ney Matogrosso viveu uma infância turbulenta e solitária,
ignorado por um pai militar que não compreendia a sua sensibilidade à flor da
pele e com quem não se reconciliará antes de uma longa psicanálise. Desde
jovem, Ney manifesta um temperamento frágil, ligeiramente efeminado e sente
já o conflito profundo entre as suas aspirações artísticas e os modos de vida
dominantes. Segue algum tempo o modo de vida hippie e confecciona jóias de
fantasia, desenvolvendo inclinações humanistas e ecológicas. Freqüenta os
meios artísticos e revela-se logo um especialista em iluminação de espetáculos
musicais.
Após alguns ensaios de teatro amador e uma breve experiência com um
grupo de música vocal do Renascimento, Ney começa a sua carreira artística
em 1972, com o grupo Secos & Molhados, formado com João Ricardo e Gerson
Conrad. A partir deste momento, vislumbra as grandes linhas do seu projeto criador:
Eu sabia que não queria ser um crooner, e que não queria perder
minha privacidade. Eu estava muito treinado na coisa do teatro, pois
estava numa peça, cantando e dançando. Resolvi liberar aquilo que
101
102
eu sabia fazer, que era cantar e dançar. Daí, comecei a criar uns
personagens teatrais. Tanto que, […] não era um personagem, mas
vários. Cada dia era um. O que mais se destacou foi aquele da pena
de faisão na cabeça…54
O uso da sua voz límpida de falsete, as maquiagens e os comportamentos
provocadores que ostenta, as suas atitudes eróticas sugestivas no palco, num
período de rigor moral imposto pelos militares no poder, impulsionam o grupo à
celebridade. As vendas do primeiro álbum de Secos & Molhados fazem de Ney
um fenômeno de sociedade. Fãs-clubes são criados e o cantor suscita imitadores.
Mas a experiência coletiva cessa após apenas dois anos. A partir daí, Ney dedicase a uma carreira solo que o confirma como uma das estrelas da canção no
Brasil. Até agora, Ney já gravou cerca de 30 álbuns, em vinis e CDs, mais 7 DVDs,
e tem cantado nos palcos do mundo inteiro.
Uma personalidade inquietante, mas fascinante
A voz de Ney é a característica notória do seu personagem. Pode cantar
facilmente em um registro inusitado de contratenor, guardando ao mesmo tempo
um timbre flexível e potente. A aliança entre uma maturidade vocal impressionante
e as suas extravagâncias comportamentais produz um efeito de estranheza. Seu
olhar penetrante fascina, interpela, inquieta o ouvinte-espectador e as maquiagens
exageradas que utilizava, no início da sua carreira, acentuavam ainda mais esta
impressão de estranheza.
Três pontos caracterizam a dimensão cênica do projeto criador de Ney:
os fatos e os ornamentos que utiliza no palco; a apresentação pictórica e o uso
que faz do seu corpo e a sua atitude comportamental durante as performances.
Desde Secos & Molhados, recorre a maquiagens e adereços exagerados
e inquietantes. Atua de pés no chão ou com sapatilhas, o torso nu ou
progressivamente revelado durante o espetáculo, eventualmente vestido com
um simples tapa-sexo. Ele cobre-se de colares, pulseiras, pedrarias e ornamentos
54
Fonteles, Bené, Ney Matogrosso – Ousar ser, São Paulo: SESC São Paulo, 2002, p. 102. Nesta luxuosa
obra, Fonteles inclui cerca de cento e trinta fotografias artísticas de Luiz Fernando Borges da Fonseca
dedicadas a Ney Matogrosso, e reproduz in extenso três longas entrevistas realizadas com o cantor.
103
de origem animal (plumas, ossos, peles, crina de cavalo...), a ponto de simbolizar
com sua figura uma fusão do humano, do animal e do mineral, como no espetáculo
Homem de Neandertal, o seu primeiro espetáculo solo, em 1975. Realiza
espetáculos que têm tanto a ver quanto a ouvir e que superam em expressividade
e emoção as suas gravações em estúdio.
Quando efetua os seus rebolados sugestivos e os seus gestos evocativos
– até mostrar suas nádegas ou simular a masturbação e o ato sexual –, provoca
reações catárticas dos públicos. Seus passos de dança e seus bamboleios
intervêm nos momentos não-cantados, como se Ney tentasse passar outro
discurso, não-verbal, através do corpo.
Em espetáculos mais recentes, durante as passagens cantadas, Ney quase
não dançava mais; concentrava-se em transmitir o sentido das obras, porque,
para ele, “mais que a música, é a palavra que é primordial”.
Seu repertório inclui boleros langorosos, tipo kitsch, rocks mais agressivos,
canções românticas e sentimentais, melodias eruditas, sambas autênticos,
clássicos da MPB55 e canções de jovens autores. Esta faculdade de apropriar-se
de repertórios tão diversos corresponde a seu desejo de recusar os rótulos, como
se quisesse embaralhar a sua imagem permanentemente.
A nível temático, além da dimensão sexual inerente à maior parte das
suas canções, uma parte importante do seu repertório exalta a América do Sul e
a latinidade (América do Sul, Cubanacan, Dos cruces...). Mas, paradoxalmente,
nenhum texto evoca a homossexualidade e não há nenhuma reivindicação
militante no seu repertório.
O seu público é diversificado, pertencendo a todas as camadas da
sociedade e a todos os grupos etários, mesmo tratando-se majoritariamente de
um público feminino adulto. O seu modo de comunicação com o público
constitui o outro traço saliente da sua personalidade. Ney mantém uma relação
55
MPB ou Música Popular Brasileira: é, desde os anos 1960, um termo consagrado, que designava
inicialmente a canção de autor, brasileira, e que tende, há alguns anos, a integrar os outros tipos de canção
tais como a bossa nova, o samba, uma parte das canções nordestinas, as correntes rocks nacionais e
até a Jovem Guarda dos cantores e autores de iê-iê-iê.
104
de cumplicidade com este, feita de atração e desafio, de distanciamento e desejo
recíproco. Sabe fazer do público o seu parceiro porque joga com as reações
deste.
Ney subjuga os seus espectadores, convida-os a compartilhar uma
experiência existencial pessoal, mas não procura nunca excitar os instintos
primários. Os seus espetáculos incluem sempre uma dimensão lúdica, a exemplo
das suas deliciosas paródias de Carmem Miranda. Note-se ainda que o artista
Matogrosso, que privilegia as noções de criatividade e pesquisa, leva em
consideração as observações da crítica e as reações do público.
Provocar para seduzir, exibir-se para convencer
No início, a sua ambição era incomodar ou mesmo provocar o público
exibindo a sexualidade masculina no palco. Este comportamento cênico
exacerbado é resultado de investigações estéticas originais, porque jamais Ney
se entregou à simples improvisação. A sua atitude andrógina inédita – e
escandalosa – no Brasil chocou, na sua origem, e foi percebida de maneira
variada. Ambicionava embaralhar as fronteiras entre o masculino e o feminino,
brincando sobre as sensibilidades latentes dos seus ouvintes. Hoje, com mais de
66 anos, Ney continua a bambolear e saracotear com volúpia. Frequentemente,
no meio do espetáculo, é colocada uma cena no curso da qual despe-se ou
muda de roupa no palco, nomeadamente em Bandido, (1976), Um Brasileiro
(1996), Batuque (2001) e Inclassificáveis (2008).
Basta olhar o rosto de Ney em cena para saber que tem prazer de fazer
gestos ousados. Brinca com a ambigüidade e os duplos-sentidos nos seus
espetáculos, mas sabe fazê-lo com sutileza. Contudo, cabe registrar que, ao
longo de toda a sua carreira, seu jogo de cena constantemente evoluiu para um
estilo cada vez mais depurado. O seu propósito é seduzir, mas em qualidade de
artista e, curiosamente, Ney chega lá, ganhando a adesão dos espectadores de
ambos os sexos. No palco, nunca tentou simular ser uma mulher; não esconde
os pelos abundantes sobre o seu peito nem, no período mais recente, o seu
crânio calvo.
105
Sua recusa em adotar uma atitude clara – mista ou homossexual – e em
escolher um mundo de referência estável – masculino ou feminino – incomoda
e algumas canções testemunham isso, como este sucesso que está impregnado
em sua pele desde a sua criação, em 1981:
Homem com H
[Antonio Barros ; gravação de Ney Matogrosso em 1981]
[...] Quando estava p’ra nascer
De vez em quando eu ouvia
Eu ouvia mãe dizer
Ai ! Meu Deus como eu queria
Que esse cabra fosse home
Cabra macho p’ra danar
Ah ! Mamãe aqui estou eu
Mamãe aqui estou eu
Sou homem com H
E como sou!...
Ney pratica certa dissidência que frequentemente é associada à subversão,
mas ele sempre recusou-se a ser o porta-voz de qualquer causa que seja,
sobretudo se tratando da homossexualidade. Rapidamente, compreendeu que
o seu projeto artístico desafiava a ditadura e a censura. Foi várias vezes
questionado, pelo DOPS, 56 sobre as suas provocações cênicas, e os seus
espetáculos foram vigiados durante um bom tempo. Vários dos seus textos foram
censurados, tais como Johnny Pirou (adaptação do Johnny B. Good de Chuck
Berry), em nome da moral, e Tem gente com fome (João Ricardo e Solano
Trindade), por sua suposta tonalidade social. Como Ney declara frequentemente:
“o sexo pode também ser subversivo, revolucionário mesmo”. Se ele gosta de
chocar, quer fazê-lo pela teatralização do seu tour de chant. Faz-se agressivo
para provocar reações, faz-se ambíguo para denunciar:
56
Trata-se de “Departamento de Ordem Política e Social”, que tinha o encargo de vigiar e eventualmente
restringir as iniciativas de dissidência dos artistas e dos intelectuais no tempo da ditadura militar.
106
Só o fato de me considerarem subversivo era uma confirmação de
que tinha alcançado meu objetivo: mexer com o inconsciente das
pessoas. Quanto mais eu chocava, mais eu queria chocar57.
Uma Declaração confirmada por Chico Buarque em uma entrevista
incluída em um DVD do Ney:
“Sempre [Ney] foi um grande transgressor. Agora, as canções que
eram censuradas eram tanto as canções em que eles supunham
que havia uma mensagem política quanto, e talvez em maior
quantidade, as canções que eles consideravam atentatórias à moral
e aos bons costumes. [...] O Ney era a personificação do atentado
à moral e bons costumes na cabeça ultra-conservadora dos
Militares da época [...]. Eu lembro de ouvir referências a Ney,
porque ficava muito tempo lá, sendo interrogado e ouvindo [...]. As
pessoas abominavam Ney Matogrosso.” 58
No entanto, sempre subsistirá uma contradição entre a reserva e o pudor
extremo do personagem e, por outro lado, a energia e a exuberância desenfreada
que desenvolve no palco. Se, nestas condições, é-lhe mais difícil que para outros
cantores guardar uma atitude serena em qualquer ocasião, o fato é que Ney é,
sobretudo, um artista de referência que recorre a meios vocais, corporais e cênicos
específicos adaptados ao seu projeto e que, apesar dos “excessos espetaculares”,
consegue preservar a sua vida privada.
O dilema crucial: afirmar-se cantor ou investir-se em qualidade de
porta-voz?
As considerações finais – e provisórias – que se pode tirar deste trabalho
são diversas no sentido de que põem a nu os marcadores sexuados das
performances – de maneira distinta para cada artista –, mas aponto de repente
que esses critérios não permitem caracterizar formalmente um tipo de artista
Depoimento de Ney Matogrosso dado a uma TV (Bandeirantes ?), incluído no DVD “Secos & Molhados
+ Ney Matogrosso 1975”.
58
Extrato da “Entrevista exclusiva com Ney e Chico Buarque”, nas faixas extras do DVD do espetáculo no
qual Ney Matogrosso interpreta Chico Buarque: Um Brasileiro, Ney Matogrosso interpreta Chico Buarque,
DVD Universal 325912006606, Rio de Janeiro, 2005.
57
107
homossexual que o distinga dos demais, cujo personagem no palco esteja em
concordância homológica com o seu gênero, masculino ou feminino. Trata-se
aqui mais da identidade sociossexual reivindicada – a adesão a uma comunidade
de fato – do que de uma diferença formalmente estabelecida – em função das
características das obras e das performances.
Se conviesse definir uma fronteira, estar-se-ia antes diante da questão:
trata-se de cantar para todos ou de dirigir-se a um grupo singular?
A partição é geralmente realizada dentro do próprio grupo de artistas
homossexuais: mais freqüentemente, o cantor homossexual dirige-se ao conjunto
dos públicos recorrendo a um papel cênico que lhe é específico, com alusões
fugazes, jogos de mãos, efeitos vocais sugestivos e um modo de comunicação
cúmplice com os espectadores. O seu objetivo é então seduzir mostrando-se
relativamente consensual e, se chega a tratar da homossexualidade, as palavras
que incomodam ou o propósito trivial reduzem-se simplesmente a uma
provocação estética. Neste sentido, Mayol, Molina, Matogrosso ou Dee seriam
exemplos apropriados.
Em outros casos, sendo uma escolha mais dolorosa, trata-se de focalizar
primeiramente a comunidade homossexual, constituída ou postulada, trata-se
de reuni-la com um discurso identitário exclusivo e uma temática narcisista,
comprometendo-se de fato no combate sóciopolítico com o fim de promover um
projeto de sociedade alternativa. A escolha intencional dos temas autoreferenciados e os eventos espetaculares distinguem então o cantor militante do
conjunto dos profissionais. Neste caso, a função militante prima e testemunha
uma opinião: as canções são apenas um dos meios, dentre outros, para
fazer entender a sua diferença.
Aprofundemos esta contradição inerente: o cantor homossexual
unanimemente elogiado pelo seu talento fora do comum, à semelhança dos
exemplos apresentados, não está jamais livre de críticas artísticas (nomeadamente
censuras de afetação e denúncia do papel extrovertido) – mas qual artista pode
orgulhar-se de escapar? Impressiona então constatar que sempre a posição
deste artista se depara com o grau de aceitação social da diferença.
108
Assim: os ataques exacerbados que lhe são dirigidos (Mayol), a exclusão
das grandes cenas (Waldoff), as perseguições policiais reiteradas (Bourbon), as
preocupações com as autoridades e a censura do tempo da ditadura
(Matogrosso), a prisão domiciliar e, em seguida, o desterro (Molina), até a morte
que lhe é infligida pelo regime nazista (O’Montis), colocam este personagem
ambivalente (homem e mulher ao mesmo tempo – mas também artista e simples
cidadão) em vítima expiatória.
Não são as outras formas da exclusão social como a posição de palhaço
que lhe é atribuída (Charpini) ou o empurrão para a marginalidade e para a
decadência dos costumes (Dee) que o resgatam. Todos estes ataques confirmam
a minha proposição segundo a qual é o ser humano diferente, através da sua
escolha de vida, do seu comportamento não-conformista, que é visado; e todos
os casos mencionados sublinham a desconfiança em relação à alteridade em
nossas sociedades – com matizes de acordo com as épocas.
Em Calúnias, Ney Matogrosso ilustra efetivamente este julgamento social
e as suas implicações na esfera do privado. De acordo com a lógica social
dominante – que estabelece a norma –, o olhar do outro e a sua palavra nãoautorizada tornam-se acusações, que, conseqüentemente, obrigam o indivíduo
“desviante” a desculpar-se, senão a enganar sobre a sua inclinação sexual:
Calúnias (Telma, eu não sou gay) (Tell me once again)
[Bee Anderson – paródia de Leo Jaime - Leandro Verdeal e Sérgio
Abreu; gravação de Ney Matogrosso / 1983]
Diz que vai dar, meu bem
seu coração pra mim
eu deixei aquela vida de lado
e não sou mais um transviado
Telma, eu não sou gay
o que falam de mim são calúnias
meu bem, eu parei
[…] não me puna
por essas manchas do passado
já passou…
esses rapazes são apenas meus amigos…
109
Estas observações nos levam invariavelmente ao projeto criador dos
cantores – cf. dialética finalidade/meios/impacto – em função das linhas de força
determinadas pelo social. As tentativas marginais de Gil Cerisay e Gilles Méchin,
na França, ou aquelas dos cantores estadunidenses Grant King, Janis Ian e Holly
Near59, são ilustrações convincentes.
Diferentemente das outras profissões artísticas menos “expostas”
(romancista, artista plástico), o cantor é um personagem imediatamente público
– aqui e agora no palco –, que deve permanentemente construir e gerir a sua
imagem. Mayol já se queixava disso nas suas Memórias; Guidoni julgou útil falar
de novo deste tema, declarando: “As pessoas me obrigam a justificar-me…” (op.
cit., p. 108). Só a cantora Juliette, em um livro recente, maliciosamente intitulado
Mensonges et autres confidences (Mentiras e outras confidências), arrisca-se a
afirmar, com certo sentido de provocação, uma preferência sexual específica,
mas admitindo logo que deve manter habilmente – e continuamente – uma
ambigüidade literária fiadora de uma pertença sexual neutra ou mesmo opcional:
On me demande souvent pourquoi je ne donne pas clairement la
préférence à mes préférences, dans ces chansons qui parlent de
désir: sont-ce des histoires de femmes à femmes puisqu’il est de notoriété
publique que je suis de celles-là? En fait si je ne prends pas parti, c’est
que je pense à l’universel (sic) et que je veux que mes textes puissent
toucher même ceux qui ont une sensualité banale, attirés bêtement par
l’autre sexe !! (Quant aux hommes qui aiment les hommes, c’est pareil,
je veux pouvoir les atteindre !). Aussi me voilà condamnée à
prétentieusement chercher le plus de neutralité possible, à éviter les
adjectifs et les conjugaisons trop précis, à donner du “vous” et du “tu”
indistincts et ambigus ! Mais franchement, c’est beaucoup plus amusant
d’essayer d’éviter les pièges que de tomber dans les lieux communs !60
A notar que estes três artistas – e uns quinze mais – editaram, em 1995, um CD coletivo com vocação
militante: A Love worth fighting for, com o objetivo de promover a luta homossexual e incitar outros
músicos interessados a sair da sua posição enrustida.
60
Juliette, Mensonges et autres confidences, Paris: Les Éditions Textuel, Coll. Musik, 2005, p. 95. [N. do
A. : este extrato reproduz o texto e a pontuação original]
59
110
Perguntam-me freqüentemente por que não dou claramente a
preferência às minhas preferências, nestas canções que falam de
desejo: trata-se de histórias de mulheres com mulheres, dado que
é de notoriedade pública que sou daquelas? De fato, se não tomo
partido, é que penso no universal (sic) e que quero que meus
textos possam tocar mesmo os que têm uma sensualidade banal,
atraídos estupidamente pelo outro sexo!! (quanto aos homens que
gostam dos homens, é igual, quero poder atingi-los!). Então, me
vejo condenada a pretensiosamente procurar a maior neutralidade
possível, evitando os adjetivos e as conjugações demasiado
precisas, dando uns “vocês” e outros “você” indistintos e ambíguos!
Mas francamente, é muito mais divertido tentar evitar as armadilhas
do que cair nos lugares comuns!
Doravante, vemos que os eixos de pertinência que estruturam o espaço
sociossemiótico do artista homossexual são a arte e a identidade, com a recepção
pelos públicos em perspectiva,. Três campos nocionais abrem a visão dos possíveis
da homossexualidade nas canções – e, por extensão, nas artes cênicas:
IDENTIDADE: posição, atitude, revelação eventual, pertencimento,
orgulho…
ARTE: repertório, temática, performances, implicação, excelência,
singularidade…
RECEPÇÃO: audiência, acomodação, identificação, apropriação, reinterpretação…
Esta investigação verifica assim o postulado inicial, segundo o qual são os
processos sociais – incluídos os ditos artísticos – que orientam e determinam em
primeiro lugar as obras da cultura de massa e a sua recepção.
Finalmente, a posição social do artista homossexual não é separável
daquela que ocupa o indivíduo homossexual em nossas sociedades e continua
a ser dependente do grau da aceitação social – ou da recusa – da diferença e da
alteridade.
Portanto, salvo reivindicar o direito de jogar com a ambigüidade das
situações, a exemplo de Juliette, não existe nenhuma posição serena nem
banalização para o artista homossexual declarado – aquele que afirma uma
111
escolha de vida específica, porque a sua posição no espaço público continua a
ser sobredeterminada pelo social: quadro jurídico, costumes e representações.
Certos pesquisadores julgarão decepcionante a constatação de que os
artistas homossexuais para todos os públicos – os que se acomodam ao
compromisso sócio-sexual indicado neste texto conforme o modelo hegemônico,
e que por isso se concentram sobre o único terreno do espetáculo – sejam
permanentemente obrigados a comprometer-se, senão a enganar o público
repelindo em parte a sua inclinação comportamental. Recordarei simplesmente
que esta atitude é comum em todos os artistas da cena, cuja vocação primeira é
deixar, em segundo plano, durante o tempo de uma representação, sua própria
persona e o seu estatuto social a fim de criar e fazer compartilhar ilusão.
A palavra final é tomada da obra já citada de Jean Guidoni; mas quem
fala? É o homem comum, o cantor famoso em cena ou o mito nascente de um
artista de personalidade complexa?
Quelle importance, le corps ? Après tout, y a-t-il viol sur un homme? Je
ne suis pas une femme. Je suis les deux; je ne suis ni l’un ni l’autre.61
Que importância tem o corpo? Afinal, existe estupro de um homem?
Não sou uma mulher. Sou os dois; não sou nem um nem o outro.
61
Guidoni, Op. cit., p. 85.
112
Anexos
Discografia
Álbuns em vinil e CDs coletivos dedicados a este tema
a. Domínio francófono
Chansons érotiques, CD Musisoft SPMS 2003, 2000.
Chansons interlopes 1908-1936, CD Les Gais-musettes LGM 1, 1997.
Chansons interlopes (1906-1966), duplo CD Labelchanson LBC 001, 2006.
Essayez donc nos Pédalos, vinyle autoproduit AT 26005, 1980.
Les Pornographes vol. 3 “Mathis à voile et à vapeur”, vinyle Les Tréteaux
LP 6367, 1980.
Lesbos, anthologie poétique de l’amour féminin, vinyle Pacific 25 cm B
2264, s.d.
113
b. Outras culturas ocidentais
A Gay century songbook (New York City Gay men’s chorus), CD DRG
Records Inc. 19015, 2000.
A love worth fighting for, vol. 1, CD Streeter Music ST 1001, 1995.
Can’t help lovin’ that man, CD Columbia Legacy “Art Deco” CK/CT 53855,
1993.
Die Schwule Plattenkiste, Schwules und Lesbiches in historischen
Auhnahmen 1908-1933, CD Duophon / Berliner Musenkinder BEST Nr : 05
18 3, 2001.
Ich will, daß es das alles gibt, Homosexualität aus Schallplatte, Teil 2 1952-1976, CD BEAR FAMILY BCD 16059 AS, 2004.
Es ist ja ganz gleich wen wir lieben – Lieder vom anderen Ufer 19261942, CD Mister Phono, s. ref., 2005.
Masculine women and feminine men, CD Flapper PAST CD 7072, 1995.
Mischa Spolianski, Ein Komponistenportait – Es liegt in der Luft, CD
Duophon / Berliner Musenkinder BEST Nr : 01 45 3, 1998.
Sissy man blues, Authentic straight & gay blues & jazz vocals, CD Jass
records / Milan CD CH 504, 1989.
Was hast du für Gefühle, Moritz ?, “Schwule” Schlager des 20er und
30er Jahre, CD Truesound Transfers / Shimmy SH-7003, 2000.
Wir sind wie wir sind !, Homosexualität aus Schallplatte, Teil 1 - 19001936, CD Bear Family BCD 16055 AS, 2002.
Women like us : Lesbian favorites, CD Rhino Records 72915, 1997.
Artistas estudados para escrever este artigo que publicaram álbuns
em vinil, CDs ou DVDs
Bacchus, Nicolas, Coupe d’immondes…, CD autoproduit BAC 9901, 1999.
Bacchus, Nicolas, Balades pour enfants louches, CD autoproduit NBAC
0202, 2002.
114
Bacchus, Nicolas, À table, CD Kiui prod NBAC 0503, 2005.
Bourbon, Ray, Integral em 9 CDs (canções, monólogos, gravações ao vivo),
Cool Cat Daddy CCD CD 01 à 09, 2002.
Byng, Douglas, One of the Queens of England, CD Windyridge-Variety VAR6,
2004.
Caramels fous (Les), Il était une fois Tatahouine, CD Bastille Productions
CFOU 0497, 1997.
Cerisay, Gil, Homoportrait, vinyle Productions Gayrilla GAY 791, 1979.
Cerisay, Gil, Âme frère, vinyle Productions Gayrilla GAY 811, 1981.
Charmer (The) (aka Louis Farrakhan), Calypsos favorites 1953-54, CD
Bostrox Records 9908, 1999.
Charpini et Brancato, Succès et raretés – 1930-1938, CD Chansophone
117, 1992.
Coccinelle, Chercher la femme, CD Marianne Mélodie 041625, 2004.
Dee, Georgette (Georgette Dee and Terry Truck), Na Also ! - Goodbye -, CD
Viellieb 016, 1998.
Eller, Cássia, A Arte de Cássia Eller, CD Mercury/Universal 60249819907,
2004.
Eller, Cássia, Acústico – MTV, DVD Mercury / Universal 04400609049, 2001.
Guidoni, Jean, Je marche dans les villes, vinyle RCA 1980 – réédition CD
Vogue VG 651 600238, 1989.
Guidoni, Jean, Putains, vinyle Philips 1985 – réédition CD Universal 8344522, 1985.
Hermon, Michel, Rue de la Gaité, vinyle Chant du Monde LDX 74733, 1980.
Juliette, Irrésistible, CD Le Rideau bouge (dist. Scalen’ Disc) MT 102, 1993.
Juliette, Rimes féminines, CD Le Rideau bouge (dist. Scalen’ Disc) MT 104,
1996
Juliette, Le Festin de Juliette, CD Polydor 589 593-2, 2002.
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983 367 1, 2005.
Lemper, Ute, Berlin cabaret songs, CD Decca 452 601-2, coll. “Entartete
Musik”, 1997.
Matogrosso, Ney, Vinte e cinco (Anthologie 1975-1996), CD duplo Mercury /
Polygram 534348-2, 1997.
Matogrosso, Ney, Ao vivo, DVD Universal 04400532099, 2000.
Matogrosso, Ney, Batuque, DVD Mercury Universal 04400640739, 2001.
Matogrosso, Ney, Um Brasileiro – Ney Matogrosso interpreta Chico
Buarque, DVD Universal 325912006606, 2005.
Mayol, Félix, Succès et raretés – 1904-1932, CD Chansophone 151, 1995.
Méchin, Gilles, Il y a…, vinyle I rouge / Chant du Monde 74688, s. d.
Méchin, Gilles, Tant je suis fou de vous, vinyle I rouge IR 82001, 1982.
Méchin, Gilles, Chansons !… SOS !…, vinyle RGM 85001, 1985.
Molina, Miguel de, Las Grabaciones de 1934 a 1949 [vol. 1], CD El Delirio
SGAE 092, 1998.
Molina, Miguel de, Las Grabaciones de 1934 a 1950 [voL. 3], CD El Delirio
8435022802820, 2000.
O’Montis, Paul, Ich bin verrückt nach Hilde, CD Musik Antik MUSANT 002,
1997.
Py, Olivier, Les Ballades de Miss Knife, CD Actes Sud AT 34113, 2002.
Secos & molhados (com Ney Matogrosso), série Dois momentos (Integral
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Secos & molhados (documentos TV 1973 e 1974) e Ney Matogrosso
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Solidor, Suzy, Succès et raretés – 1934-1935, CD Chansophone 109, 1991.
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Vaz, Denise Pires : Um cara meio estranho – Ney Matogrosso, Rio Fundo
Editora, Rio de Janeiro, 1992,
Apoio
VIRT U T E S P I RIT U S
Universidade Federal da Bahia
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
Os Cadernos do GIPE-CIT são uma publicação do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e
Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade que existe desde 1994 e que
deu origem, em 1997, ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Sua proposta é
divulgar os resultados parciais das pesquisas realizadas por professores, alunos e outros
pesquisadores participantes. Os Cadernos do GIPE-CIT podem ser encontrados na
secretaria do PPGAC, na Escola de Teatro da UFBA e nas bibliotecas especializadas em artes
cênicas.
GIPE-CIT
Endereço: Av. Araújo Pinho, 292, Canela
CEP 40.110-150 Salvador - Bahia
Telefax: (71) 3245 0714
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Página do PPGAC/UFBA na Internet
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Página dos Cadernos Gipe-Cit na Internet
http://www.teatro.ufba.br/gipe/