Caderno 21 - Escola de Teatro da UFBA
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Caderno 21 - Escola de Teatro da UFBA
21 Teatralidade, Política e Sexualidade em Espetáculos Musicais Christian Marcadet PPGAC Programa de Pós-graduação em Ar tes Cênicas Sérgio Farias Cadernos do GIPE-CIT Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade Nº 21 Teatralidade, Política e Sexualidade em Espetáculos Musicais Christian Marcadet Organização: Sergio Farias PPGAC Prog rama de Pós-gra duaç ão em Artes Cênica s Escola de Teatro/Escola de Dança Universidade Federal da Bahia UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Escola de Teatro/Escola de Dança Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas Cadernos do GIPE–CIT N. 21 Teatralidade, Política e Sexualidade em Espetáculos Musicais Agosto - 2008 Coordenação Geral do GIPE-CIT Armindo Bião Sergio Farias Conselho Editorial André Carreira (UDESC), Antonia Pereira (UFBA), Betti Rabetti (UNI-Rio), Cássia Lopes (UFBA), Christine Douxami (CNPq-UFBA), Eliana Rodrigues Silva (UFBA), Makarios Maia Barbosa (UFRN), Sérgio Farias (UFBA) Diagramação, Formatação e Capa Nádia Pinho - Fast Design Foto da capa: Ney Mattogrosso Http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://stat.correioweb.com.br/arquivos/divirta/materias2007/ ney_matteria.jpg&imgrefurl=http://divirtase.correioweb.com.br Revisão: Sergio Farias Biblioteca Nelson de Araújo – TEATRO/UFBA Caderno do GIPE-CIT: Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade/ Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro / Escola de Dança. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. – N. 21, agosto. 2008. Salvador (Ba): UFBA/ PPGAC, 2008. 116 p. ; 21 cm. Periodicidade semestral ISSN 1516-0173 1. Teatro. 2. Música. 3. Sexualidade. I. Universidade Federal da Bahia. Programa em Artes Cênicas. II. Título Impresso no Brasil em julho de 2008 pela: Fast Design - Prog. Visual Editora e Gráfica Rápida LTDA. CNPJ: 00.431.294/0001-06 - I.M.: 165.292/001-60 - e-mail: [email protected] - Tiragem: 300 exemplares SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Sergio Farias............................................................................................................................5 A INTERPRETAÇÃO DE CANÇÕES EM ESPETÁCULOS OU O ARTISTA DA CANÇÃO EM BUSCA DE UMA SÍNTESE DAS ARTES CÊNICAS Christian Marcadet..............................................................................................................9 O RECITAL DE YVES MONTAND NO THÉÂTRE DE L ´ÉTOILE OU COMO O POLÍTICO IRROMPEU NOS PALCOS DE MUSIC-HALL EM PARIS Christian Marcadet…………………………............................………...………………………p. DE FÉLIX MAYOL A NEY MATTOGROSSO OU SEXUALIDADE E PERFORMANCE NA INTERPRETAÇÃO DE CANÇÕES Christian Marcadet..............................................................................................................p. 5 APRESENTAÇÃO O que nos leva ao êxtase, ao prazer estético, quando assistimos a um show musical? Por que alguns cantores nos arrebatam e outros não tocam nossa sensibilidade? Quais os recursos interpretativos utilizados pelas estrelas da canção para fazerem a platéia delirar? Questões como essas nos remetem a uma temática – a interpretação de canções, que se encontra no campo de estudos da Cenologia. Christian Marcadet, estudioso dessa temática, percorre repertórios, carreiras profissionais e até situações da vida privada de artistas da canção, que atuaram ou atuam principalmente na Europa e no Brasil, para revelar competências teatrais, musicais e comportamentais que são básicas para quem se dedica ao ofício do canto, no palco. Seus textos abordam também aspectos da história da música popular e revelam nuances que caracterizam a função comunicativa da interpretação das canções. Sobre o autor Prof. Dr. Christian Marcadet concluiu Doutorado em Estética, em 2000, na École d´Hautes Études en Sciences Sociales e realizou estágio de Pós-Doutorado na Université Paris I, com Habilitation à Diriger des Recherches en Sciences Humaines. Participa atualmente do Institut d’Esthétique des Arts Contemporains, do Centre National de la Récherche Scientifique – CNRS e da Université de Paris I. Desenvolve pesquisas e ministra aulas nos seguintes campos: - Performance e Recepção nos espetáculos teatrais e musicais; - Articulações entre cultura popular, cultura nacional (plural) e cultura de massa, focalizando os aspectos da produção e da recepção; 6 - Expressividade, teatralidade e sensualidade nas manifestações musicais em diversas culturas/países, como Brasil, Argentina, Portugal e França; Dr. Marcadet foi Professor Visitante, com Bolsa FAPESB, junto ao GIPECIT e ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, de 2004 a 2006, quando desenvolveu as pesquisas que resultaram nos três textos que ora publicamos. [email protected] Sobre os textos No primeiro deles o autor apresenta um método para análise de espetáculos de canções que contempla as condições práticas e simbólicas dessa atividade cênica. No segundo texto, coloca a política em pauta através da narrativa do percurso de um dos mais famosos artistas da canção, Yves Montand, focalizando toda a sua carreira com destaque para um show realizado em Paris, em 1953. Finalmente, no último texto, Marcadet discute cuidadosamente expressões de homossexualidade na interpretação de canções, por parte de artistas que atuaram no século XX, na Europa e no Brasil, analisando o trabalho de vários deles, dentre os quais Ney Mattogrosso. Seu estudo desperta atenção para o fato de que no palco, lugar onde se “representa”, as fronteiras da chamada normalidade se estendem e ganham contornos específicos, promovendo interseções e contrapondo-se às formalizações sociais no que se referem ao gênero e à sexualidade. Sobre o processo Os textos foram inicialmente escritos em francês e a revisão de sua tradução, feita por mim e pelo autor, em parceria, foi uma grande oportunidade de aprendizado, em longas sessões de trabalho. Encontrei-me ao lado de um colega autor meticuloso, entrando muitas vezes na discussão do próprio conteúdo para captar nuances da escrita em francês, e decidirmos finalmente juntos quais as melhores palavras para expressar aquilo que ele queria dizer. 7 Vivenciamos alguns impasses diante das diferenças entre a palavra que está no dicionário e aquela que é usada habitualmente no Brasil para designar tal ou qual objeto. Vimos como era difícil, por exemplo, achar uma expressão em português para tour de chant, que ficou na língua original e ganhou uma nota de pé-depágina. Algumas discussões ocuparam mais tempo, como a da necessidade do dom para ser artista ou a das expressões utilizadas para os gestuais dos cantores homossexuais, que poderiam soar como depreciativas. Enfim, nos embates sempre tivemos em vista a clareza de que o leitor deste Caderno precisava, para a apreciação desse tema fascinante, o da interpretação de canções. Salvador, Bahia, Brasil, Agosto de 2008 Sergio Farias 8 9 A INTERPRETAÇÃO DE CANÇÕES EM ESPETÁCULOS,ou O ARTISTA DA CANÇÃO EM BUSCA DE UMA SÍNTESE DAS ARTES CÊNICAS Christian Marcadet As canções de variedades permanecem, até agora, entre os domínios menos estudados do campo das artes do espetáculo. Elas pertencem a disciplinas artísticas tão diversas como o teatro, a música, o romance, a poesia, o cinema, a dança e a expressão corporal, ou mesmo as artes plásticas; e referem-se a um conjunto complexo de ciências sociais como a história cultural e social, as letras e as ciências da linguagem, a musicologia, a antropologia social, a sociologia do lazer, a cultura de massa e as ciências da comunicação. Efetivamente, a maior parte dos trabalhos de investigação consagrados às canções populares toma por objeto o estudo dos textos, dos temas ou das partituras numa ótica essencialmente formal ou visam apreender estas produções artísticas nas suas relações com as práticas sociais e suas implicações. De fato, o estudo da interpretação mesmo das obras, o ato de cantar em cena ou estúdio – o trabalho artístico mais evidente dos cantores, continua a ser frequentemente eclipsado por uma abordagem fenomenológica, em geral apenas circunstancial, das performances. No entanto, o ponto forte de um espetáculo de canções ou da sua divulgação sobre suportes midiatizados é por essência a presença física, em cena, ou virtual, no disco, no rádio ou na televisão, do cantor conquistando a atenção de uma audiência. A interpretação é, ao mesmo tempo, a catálise e a apoteose do sentido; é o sentido em atos. Numa obra que relata a evolução dos espetáculos musicais ao longo de mais de um século, Jean-Claude Klein ressalta a sua importância: 10 A canção ganha seu sentido apenas lá, no palco. Pelas mímicas, pelo dispositivo cênico, pela rítmica corporal e pelo registro vocal pessoal de cada cantor, a ceninha mais trivial, tirada da vida cotidiana, enchese de um toque de lirismo, de um brilho que se reflete no ouvinte1. Com o objetivo de dar conta de uma atividade artística que exige, dos artistas que a praticam, competências teatrais, musicais e comportamentais singulares, este texto tem como objetivos: caracterizar a função comunicativa da interpretação das canções; descrever os componentes artísticos bem como as regras usuais que podemos aplicar-lhes; identificar os principais marcadores profissionais da excelência que definem esta arte, e, em seguida, propor uma série de critérios de apreciação que permitam compreender os seus processos estéticos e suas repercussões sociais. Para ilustrar este artigo, destinado a princípio a uma divulgação na França e no Brasil, os nossos exemplos foram escolhidos cuidadosamente nos repertórios de canção, franceses e brasileiros, que estiveram, no século XX, entre os mais ricos em quantidade e qualidade. 1. Natureza e método das performances com canções A interpretação de canções é uma arte cumprida de modo solitário, que implica em responsabilidades. Elementos os mais variados contribuem para a formação de mitos da cena musical e compõem uma metodologia específica. É disso que vamos tratar aqui. A arte e a maneira de fazer arte Segundo o dicionário Lexis de Larousse (1983, p. 973), o termo interpretar resume-se a duas acepções essenciais: a mais antiga, que remonta ao século 1 “La chanson ne prend son sens que là, sur scène. Par les mimiques, le dispositif scénique, la rythmique corporelle et le registre vocal propre à chaque chanteur, la saynète la plus triviale, tirée de la vie quotidienne, se charge d’une touche de lyrisme, d’une brillance qui rejaillit sur l’auditeur.” Jean-Claude Klein, La Chanson à l’affiche, Histoire de la chanson française du café-concert à nos jours , Éditions Du May, 1991, p. 28-29. 11 XII, significa traduzir, dar sentido, tornar compreensível, indicar, explicar o sentido de um texto; um significado acrescido posteriormente, datado de 1876, está mais diretamente ligado a uma atividade profissional, que consiste de vivenciar um papel, tocar uma obra musical. No caso referido, a interpretação das canções, estas duas definições – que são aplicáveis ao sentido das obras e à transmissão destas, juntam-se e estimulam-se uma à outra. Contudo, devemos previamente distinguir a performance e a interpretação. A performance abrange um quadro mais amplo com o seu ambiente social e humano, as condições contextuais (históricas, sociológicas, técnicas e midiáticas) que a tornam possível, enquanto a interpretação refere-se mais precisamente ao artista em cena, aos meios artísticos (vocais, corporais e gestuais) que o mesmo mobiliza e à relação singular que estabelece com os públicos. Portanto, parece-nos pertinente querer compreender os mecanismos específicos da interpretação e o papel de revelador de sensibilidade que lhe é atribuído. O ator-cantor exposto enquanto mito em cena Ao contrário dos comediantes que, no teatro, em geral, desempenham seus papéis em grupos ou dos atores que, no cinema, figuram nos elencos dos filmes, o intérprete de canções exprime-se geralmente sozinho em frente do público, seja ele também o autor dos textos que canta, como Georges Brassens ou Chico Buarque, ou seja ele somente intérprete, como Yves Montand ou Maria Bethânia. No palco, o cantor nunca é “protegido” por um papel, uma intriga, uma dramaturgia, um cenário, colegas ou as decisões do encenador, é ele mesmo que se expõe, física e mentalmente. Portanto, para além das faculdades artísticas usuais requeridas ao cantor de variedades (maestria conveniente do canto, conhecimento elementar da profissão de ator), este endossa uma responsabilidade nova relativamente a seu(s) público(s). É efetivamente a vedete em cena (qualquer que seja, além disso, a sua notoriedade) que é o foco, o ponto de mira e de escuta, da sala de espetáculo ou da divulgação midiatizada. Os músicos que o acompanham são dedicados essencialmente a dar-lhe suporte, assim como a seu universo artístico, e não lhe servem de modo algum de aparato 12 protetor, físico ou simbólico, na medida em que o público vem ao teatro, cabaré ou festival para assistir ao cantor e só tem olhos e ouvidos para ele. Na prática, o cantor é comumente confundido com o seu repertório. Os diversos personagens, que ele vive cada três ou quatro minutos durante o espetáculo, têm por função revelar facetas diferentes da sua personalidade, mas é ele mesmo que anima e transmite o espírito destas “pequenas comédias cantadas de três minutos”, como as define com sagacidade o autor e cantor valdense (Suíça) Gilles. É mesmo a personalidade do cantor, o seu corpo físico, o seu poder de sedução e a sua atitude, que estão em cena aqui e agora. Ainda que os espectadores/ouvintes saibam efetivamente que o mundo das canções é um mundo de ilusão, sempre têm tendência a juntar, quando não a confundir, o tema tratado, a pessoa do cantor e a mitologia criada a seu respeito na imprensa ou pelos fãs. Isso tudo será assimilado às criações do cantor – às personagens sucessivas que compõe cantando – e suas interpretações serão tornadas convincentes por um jogo de cena e por um comportamento particularmente estudados. O intérprete como revelador da sensibilidade coletiva Ângela Guller2, que foi produtora, animadora e formadora, apreende a interpretação numa óptica fundada sobre a sua experiência dos ofícios da canção. Ela afirma que é a interpretação que dá às canções a sua cor e o seu valor estético. O intérprete desempenha assim um papel sutil de mensageiro, ou medium: é o revelador privilegiado da canção e da sensibilidade do público. Neste sentido, a interpretação é o barômetro da estética de uma época; consequentemente envelhece e renova-se. A interpretação não deve deixar transparecer nem contestação nem imprecisão por parte do intérprete; a sua força e o seu sucesso dependem da intensidade e da evidência com que é assumida. Esta qualidade requerida do 2 Ângela Guller publicou Le 9ème Art, Ed. Vokaer, Bruxelas, 1978, livro no qual revela um olhar iluminado sobre a canção de língua francesa dos anos 50 aos anos 80 do século XX. Recomendo a leitura dessa obra. 13 cantor não significa que o mesmo traz com ele a presença ilusória de um personagem que tem por função encarnar, mas que, pela sua presença física, dá-nos também a perceber o peso de uma história de vida e o mistério de um destino, que lhe são pessoais. A apoteose da performance A interpretação das canções é por essência o cerne do que é fundamental na performance. É corrente de sentidos em atos como há corrente de lava. A performance induz uma relação entre um artista e uma audiência, que convém analisar, e o conceito que permite essa análise é o de modo de comunicação cena/platéia – ou intérprete/público, que marca a natureza e a intensidade da relação estabelecida entre os diferentes atores da performance. Disso decorrem novos campos de investigação: relações cantor/público e noções secundárias e flexíveis de participação, adesão, identificação, interação, intrusão, até mesmo co-criação. A interpretação é fundamentalmente uma arte de síntese que combina encenação, enunciado, personalidade, mito, pulsões do público e contexto. O artista deve pensar globalmente as suas performances cênicas, atendendo a seu repertório, a sua personalidade, às personagens que representa, os meios artísticos aos quais recorre, como os públicos aos quais seus espetáculos são destinados. Incorporação e distanciamento A implicação do intérprete nas suas performances não basta para explicar o sentido que dá às suas canções nem para validar a sua maneira de transmitir sentimentos e emoções. Se a diversidade dos temas cantados parece ilimitada, as variações na interpretação não são menores. De fato, as incorporações possíveis de uma mesma canção – a faculdade que tem o cantor de apropriar-se e “viver” uma obra, variam segundo os artistas, as performances e o humor do momento. Assim, uma obra cantada pode ser totalmente interiorizada e animada pelo artista, apropriada do seu interior, de acordo com o princípio de mimesis, de tal modo que, se a ilusão é perfeita, a audiência é incitada a confundir os sentimentos 14 próprios do papel desempenhado na narração cantada, os do intérprete / indivíduo cantando, e aqueles que emergem na intimidade de cada ouvinte. Por outro lado, o cantor pode igualmente levar o público a ver e entender o tema, através da obra interpretada, pela força de convicção de um afastamento fundado sobre o princípio brechtiano do distanciamento. Os que assistem à performance, então, são convidados a sentir e reagir, de acordo com o seu humor, a sua experiência e a sua sensibilidade, aos sentimentos e às idéias que lhes foram expostos. Uma metodologia adaptada Com o objetivo de estudar a interpretação das canções, propomos aplicar um método que leva em consideração as condições práticas e simbólicas dessa atividade artística. Em primeiro lugar, trata-se de re-situar a interpretação em questão na totalidade do espetáculo concernido – tour de chant, recital, festival3, na carreira do artista no palco, numa perspectiva sincrônica e evolutiva, e, se for possível, no campo social do espetáculo e do disco do período, a fim de estabelecer comparações com outras interpretações da mesma ordem. Em seguida, devemos fazer o inventário de quem intervém e a que pretexto, distinguindo o(s) cantor(es) solista(s) e os coristas eventuais, os músicos, anotando seu número e sua disposição sobre o palco; devemos definir qual componente sonoro foi privilegiado, favorecendo a voz (a narração) ou a música (prevalência do som sobre o sentido); avaliar o papel dos intervenientes eventuais (apresentador, recitador, dançarinos…) e precisar o que trazem ou tiram estes outros atores à performance do cantor. A próxima operação de decodificação de uma interpretação consiste em analisar cada um dos componentes essenciais que o cantor mobiliza para 3 O tour de chant é a totalidade da performance de um cantor em um programa de variedades, isto é: todas as canções cantadas numa ordem escolhida, sem interrupção para apresentação de um outro artista. Consequentemente, o tour de chant implica as noções de projeto, ordem dos títulos cantados e a globalidade da apresentação. O recital é um espetáculo de um artista só e o festival uma programação estendida por vários dias compreendendo um número significativo de tours de chant. 15 interpretar, basicamente, o corpo, incluindo voz, gesto e energia. A segunda parte deste artigo é dedicada a esta questão. Por último, na idéia de abordar todos os elementos que têm a ver com a interpretação das canções, convém avaliar o papel simbólico do cantor, a sua imagem pública, em termos de representação e impacto social, a fim de saber em que medida esta dimensão subjetiva afeta as suas performances, e como as afeta. 2. Os componentes artísticos da interpretação das canções O campo de ação do intérprete de canções compreende três componentes primordiais que caracterizam o seu projeto criador e determinam os meios utilizados: a voz cantada, o corpo no palco e a capacidade de animação do cantor no âmbito da performance. A voz cantada: um instrumento privilegiado do processo de comunicação O primeiro ponto abordado refere-se ao estudo da voz e do estilo vocal do intérprete. Diferentes elementos são reunidos que dão uma cor singular ao canto: timbre, tessitura, âmbito, fraseado, acento, vibrato, dinâmica, enunciação, tom. A voz cantada tem uma cor, uma granulação ou tessitura, uma respiração; e todos estes elementos acentuam ou moderam o tom enunciado. A voz do cantor é inseparável do corpo e da pessoa do artista; faz parte do seu ser físico, da sua vida; é a expressão mais sensível de uma personalidade e, em nosso caso, a sua projeção estética. A voz é, por definição, o instrumento musical dos cantores, aquele que condiciona todas as fases do processo de comunicação, desde a origem – um autor escreve pensando em um cantor, frequentemente ele mesmo - até o impacto, dado que é a voz que solicita a escuta, a atenção dos públicos. A voz é o prolongamento do corpo, seu vetor externo mais eficiente. É pela voz que se define o estilo do cantor e é pela voz, mas não unicamente, que ele revela o seu projeto criador. 16 A realidade, a evidência de uma canção, manifesta-se por uma voz singular: a do intérprete; voz única, distinta, voz registrada pelo ouvinte desde o primeiro contato com o artista. Esta proposta tende a deslocar sobre o registro da música pura os conjuntos vocais que privilegiam a virtuosidade e a complexidade do canto preferivelmente à intenção e ao tom. Geralmente, a escolha estética à qual o intérprete é confrontado oscila entre dois pólos aparentemente antagônicos: o bem cantar e o bem dizer, de modo que as vozes tornem-se classificáveis de acordo com estes dois eixos: o da beleza formal e o da expressividade máxima. No domínio das canções, tudo se passa como se o melhor (cantado) fosse inimigo do bem (dito). Numa obra relativamente centrada na performance e na voz, Gérard Authelain4 cantor e formador, distingue as vozes ditas naturais das vozes colocadas ou empostadas, mas esta classificação não nos parece tão relevante quanto a precedente. Qualquer voz é única. Caracteriza-se e singulariza-se por critérios fisiológicos e psicológicos pessoais, mas também por escolhas estéticas, conscientes ou inconscientes como os traços socioculturais. É pela voz, pelo gesto e pela energia que um corpo exprime-se e que um texto toma corpo. No que diz respeito às relações entre a voz e o corpo, devemos considerar as noções de incorporação – do canto no corpo – e de corporeidade – expressividade corporal pelo canto; mas esses são temas para estudos posteriores. O corpo na performance O segundo componente determinante é a presença física do artista, a exposição do seu corpo num aparente desnudamento em público. Podemos abordar sucessivamente os seguintes elementos: A boca, ao mesmo tempo concha e trampolim da voz. Será interessante estudar como o artista forma as palavras com os seus lábios no momento da 4 Gérard Authelain, La chanson dans tous ses états, Van de Velde, 1987. 17 enunciação, quer seja sofregamente, ou com aplicação, distinção, desdém, desenvoltura… Os olhos, que podem permanecer fechados como é de costume para os cantores de fado ou de flamenco, podem ficar fixos ou tornarem-se bastante expressivos. Mais expressivo ainda é o olhar, que o cantor pode projetar adiante ou deixar flutuar no ar, piscadelas de olhos, furtivos ou inquietos. A notar também, o eventual uso dos óculos como sinal distintivo – pensamos no exemplo da famosa cantora internacional Nana Mouskouri; podemos sinalizar igualmente os óculos de Ivan Lins e de Zeca Baleiro, hoje, ou aqueles, escuros, usados há algum tempo por Raul Seixas. O rosto, que mostra uma expressividade máxima pela sua mobilidade, os traços da face e as mímicas do intérprete; o rosto pode também ser disfarçado pela maquiagem – como praticado por Ney Matogrosso ou Jean Guidoni. O corte dos cabelos (as tranças de Gil, a cabeleira de Gal), o uso de barba, as jóias, as tatuagens e os piercings são outros signos que entram na composição da personagem em cena. As mãos, cuja posição (com mobilidade permanente ou coladas ao corpo), a forma (aberta e acolhedora ou fechada ou com o indicador apontado para chamar a atenção), as poses apresentadas tal como uma mão no bolso para sugerir uma atitude relaxada ou o punho posto na cintura ou os dedos acariciando o microfone em pé. As mãos servem de prolongamento, de extensão da voz do artista e às vezes servem-lhe de proteção, de defesa. O corpo inteiro, por último, ou seja: braços, busto, pernas, considerados juntos ou separadamente, e, acima de tudo, a valorização ou a dissimulação de usuais atrativos sexuais como os músculos, nos homens, e os seios e as nádegas, nas mulheres mais particularmente. Todos esses componentes corporais: boca, olhos, rosto, mãos, corpo, partes sexuais, são, todos eles, elementos significativos da atuação desta corporeidade e do seu papel semiótico e sensível. A este respeito, lembramos simplesmente que todas as práticas da cena e do espetáculo em geral são experiências de comunicação e conseqüentemente de sedução. 18 A gestualidade e o movimento a serviço da construção do sentido O terceiro eixo da nossa reflexão, a gestualidade, é a combinação e a animação dos elementos descritos anteriormente. Ela é examinada aqui sob todos os aspectos, quer seja introspectiva, ilustrativa, redundante ou extrovertida. Se os gestos podem distribuir-se em diversas categorias, nenhum é exclusivo jamais; são mais tendências que evocamos, que uma classificação fixada. Conhecemos duas grandes séries de gestos: os gestos aplicados – os que trazem sentido em função de um discurso e um projeto – e os gestos comportamentais – os que são ligados aos artistas e à performance mesma e os marcadores socioculturais. Cabe apresentar esta distinção. Os gestos aplicados são gestos integrados à ficção, que comentam, sublinham a narração e o ponto de vista do intérprete. Conhecemos dois grupos: os que são usados para provocar um efeito imediato sobre o público tendo por finalidade ganhar a sua adesão (função fática) - podemos chamá-los de gestos atraidores - mas quando eles se mostram demonstrativos em excesso, perdem o sentido e tornam-se gesticulações grotescas; por outro lado, temos os gestos simplesmente evocatórios que dão ao público os meios para interpretar a significação sem que a mesma seja imposta. Mas esta distinção é bastante sutil e o mesmo artista pode utilizar os dois tipos de gesto, até mesmo numa única canção. Já os gestos comportamentais, que compõem a segunda série, repartem-se igualmente em duas tendências: os gestos ligados aos artistas e à performance aqui e agora, que servem também para estabelecer e manter o contacto com o público (métodos conotativos), e os gestos conotados sociologicamente e culturalmente, frequentemente acoplados com a maquiagem e o traje de cena. Os primeiros revelam a atitude do cantor, porque são ligados à sua personalidade profunda e seu personagem em cena. Estes gestos traem o comportamento geral do cantor no que diz respeito à sua arte e no que diz respeito ao público a quem se dirige (cf. Johnny Hallyday e Bernard Lavilliers da mesma maneira que Ney Matogrosso e Zeca Pagodinho). É forte a tentação de agrupar 19 nesta série certos gestos semioticamente supérfluos como os sorrisos fora do contexto ou os agradecimentos em série, geralmente supérfluos, mas destinados a ornamentar o tour de chant, a trazer um toque de graça suplementar e a cuidar da relação com o público. A outra tendência refere-se aos indicadores socioculturais e socioestéticos que caracterizam o projeto do cantor. Aí estamos quase a meio caminho entre escolhas técnicas e escolhas semióticas porque de fato os métodos e as técnicas de canto constituem-se em indicadores sociais. Esta categoria dos indicadores socioculturais e socioestéticos é de longe a mais determinante quanto ao sentido que é dado a uma enunciação cantada. É o uso que é feito da voz, o tom escolhido, quer seja delicado, precioso, arrogante, implorante, eufemístico, sofisticado, cheio de descaramento ou de artifício, que caracteriza (denuncia?) o projeto de cada intérprete. Portanto, podemos estudar uma série de elementos significativos e constitutivos da gestualidade, entendida ao sentido geral. Um desses elementos é a posição física do cantor. O cantor pode apresentar-se de pé em frente do público, com ou sem instrumento para acompanhar-se, ou sentado, recolhido sobre o seu instrumento ou até mesmo protegido por este. Esta postura do cantor sentado, necessária para os artistas acompanhando-se ao piano, permanece, na França, uma prática pouco comum e bastante desvalorizada, mesmo quando se trata de intérpretes que utilizam um violão (a exemplo de Jacques Bertin ou das quebequenses Kate e Anna McGarrigle) ou qualquer outro instrumento. Cabe lembrar que esta atitude cênica, que foi muito tempo aquela dos cantores-instrumentistas da tradição popular, era privilegiada também pelos primeiros cantores de rébétika, fado, flamenco e mesmo de blues, e que continuou a ser correntemente praticada na América Latina por artistas tão diversos como Atahualpa Yupanqui ou, nestes últimos anos, no Brasil, Caetano Veloso, João Bosco e Xangai. A faculdade de ocupar o espaço cênico em sua totalidade ou de ficar numa área limitada, num porto seguro, revela, segundo as situações, um temperamento seguro, dominador, extrovertido ou discreto. Desde os anos 70, o uso do microfone manual, com ou sem fio, tornouse cada vez mais freqüente. Esta prática permitiu criar um clima mais propício à 20 intimidade; por outro lado limitou claramente a expressividade manual e a gestualidade dos artistas. Espera-se que os novos recursos tecnológicos de microfone de lapela e de tipo alta freqüência, em parte escondidos, dêem futuramente um novo impulso à interpretação cênica. Os movimentos lentos, preciosos, diáfanos, calculados, espontâneos, bruscos, os deslocamentos e as pausas, as correntes de gestos, as continuidades e descontinuidades, bem como as rupturas eventuais na marcação (o desenho do deslocamento no espaço cênico), são elementos do tour de chant. Os figurinos distinguem o cantor e contribuem fortemente para edificar a sua imagem de marca, seu estilo. Nenhum traje é neutro, mesmo o terno clássico azul escuro (de Francisco Alves a Gilbert Bécaud) ou a blusa branca com decote, de Patachou. Os exemplos não faltam. No caso da França, as roupas de veludo preto com botas e lenço vermelho de Aristide Bruant, luvas pretas compridas de Yvette Guilbert, raminho de lírios-do-vale de Félix Mayol, chapéu de palha de Maurice Chevalier, bigodes e cachimbo de Georges Brassens, camisa regata (sem mangas) e roupas de couro de Bernard Lavilliers. No caso do Brasil, os turbantes exóticos extravagantes e sapatosplataforma de Carmem Miranda, roupa de marinheiro de Dorival Caymmi, chapéu nordestino de cangaceiro de Luiz Gonzaga, pulseiras e colares de Maria Bethânia, trajes psicodélicos do grupo Os Mutantes, boné estufado de Milton Nascimento, dreadlocks de Carlinhos Brown; ou ainda cartolas, chapéus e penteados de toda espécie ou mesmo acessórios como a bengala e o xale, e diversos outros signos identitários. Em todos os casos, quer seja popularesco (blue-jean), alternativo (roupas hippie) ou aristocrático (fraque), o traje cênico deve harmonizar-se com o repertório e o estilo do cantor. Mas é pela atitude comportamental em cena - que se aplica ao mesmo tempo à sua postura, ao seu jeito e à sua relação com o público, que o intérprete combina a ética – a responsabilidade social do artista – e a estética – as escolhas pessoais em função de uma experiência humana. Esta dimensão comportamental, que pode variar desde a imobilidade, a sobriedade, a expressividade invocadora, a ilustração naturalista, até a provocação 21 ou exuberância desenfreada, merece ser objeto de um estudo posterior específico, já que é sempre pela imagem do seu personagem público que o cantor é identificado e admirado. Na medida em que a atitude comportamental traduz a animação do personagem em cena e induz a uma certa representação simbólica do espetáculo, decidimos incluí-la na série de gestos comportamentais. Observamos assim atitudes delicadas, neutras ou violentas com vistas a traduzir estados de alma circunstanciados, mas também poses distanciadas ou invasivas e até vulgares, compondo uma atitude geral, ou ainda gestos pleonásticos ou simplesmente evocatórios, em acompanhamento do sentido intencional. Contudo, os gestos, posturas e movimentos observados continuam complementares do sentido orientado, determinado pelo discurso da palavra cantada. Assim como a música, os gestos são desprovidos de autonomia semântica. Cabe notar que este tipo de análise, aplicado à performance cênica, é menos necessário quando o artista grava em estúdio, com exceção dos casos em que o público esteja efetivamente presente; temos de resto vários exemplos disso tais como Vinícius de Moraes, gravando o seu Samba da Benção em estúdio, em Buenos Aires, com os seus amigos e algumas garrafas de bebida, na intenção de recriar o ambiente ao vivo, ou ainda Édith Piaf, que registrou uma série de canções no Auditório da Rádio-Lausanne na presença de mais de uma centena de pessoas. 3. Interpretação como modo de usar A partir da reflexão sobre as modalidades teóricas e práticas da interpretação das canções, torna-se possível definir alguns princípios destinados a artistas no início da carreira. Cada ponto mereceria maiores comentários, mas isso já seria entrar em uma perspectiva profissionalizante. Seguem, então, algumas das regras essenciais do ofício de intérprete: As canções são destinadas a serem cantadas e concretizam-se apenas quando recebidas por um público. A cena e, em grau menor, o estúdio constitui o seu fundamento, sua evidência. Daí a importância da relação e das interações com os públicos, quer seja numa sala – durante o tour de chant – ou por mídias interpostas: disco, rádio… 22 Cantar é interpretar, oferecer, traduzir sentimentos. Ou, dito de outra maneira, o modo de dizer, o tom (sentido intencional do cantor), importa tanto ou até mais do que aquilo que é dito (sentido literal de um texto). Quando uma canção atinge um nível qualitativo elevado há frequentemente congruência entre o conteúdo e a enunciação. O projeto criador do intérprete o compromete a manter coerência entre todos os componentes que mobiliza: os meios e métodos artísticos e os objetivos visados. Neste espírito, incumbe-lhe afinar estes dois níveis: os elementos formais das canções - poéticos e musicais, vocais, cênicos, até os arranjos - e os componentes do seu estilo - seu ser com sua voz, seu corpo, sua experiência, psicologia e sensibilidade, o universo temático evocado e seu comportamento global. Salvo os efêmeros – e vãos – exercícios de estilo, ninguém pode enganar muito tempo o público com o personagem construído, que deve sempre responder a uma exigência interna. Qualquer cantor deve conhecer as suas potencialidades e os limites do seu ser físico e mental. Quanto a isso, não se pode deixar-se seduzir demasiado tempo por um modelo ideal, por mais atraente que seja. Serge Lama torna-se celebridade apenas quando se liberta do seu modelo, Jacques Brel; e Francis Hime só consegue comunicar o seu próprio universo a partir do momento em que livra-se da influência de Chico Buarque. Do mesmo modo, o intérprete, se é criativo, não pode satisfazer-se em copiar ele mesmo sob o pretexto de que aquilo funcionou uma vez, armadilha demasiado freqüente no mundo dos espetáculos. A questão central fica sendo a passagem da personalidade – o indivíduo, com a sua história de vida, sua vivência, sua psicologia - para o personagem em cena – o artista, com o seu estilo identificado, sua visão de mundo, seu universo poético e gestual, sua imagem pública. Pois, convém conhecer-se, saber quem se é intimamente, mas, também, convém saber o que os outros pensam de nós, como eles nos vêem. Uma necessidade impõe-se: ser único sendo você mesmo. O intérprete deve aprender a compor um repertório pessoal, variado e homogêneo que permita identificá-lo. Em primeiro lugar, o cantor deve distinguir as canções de que gosta por afinidade pessoal e aquelas que correspondem à 23 sua personalidade, que estão em harmonia com o seu projeto e que poderá e saberá interpretar nas melhores condições. Em seguida, deve deixar-se tranquilamente impregnar pelas obras a interpretar a fim de assimilar o ambiente e o estado de espírito delas antes de experimentar todas as potencialidades de um texto e escolher a sua própria via. Se, por um lado, é fisicamente possível cantar tudo, após um mínimo de preparação humana, artística e técnica, por outro lado o repertório do cantor deve estar em harmonia com as suas capacidades vocais, cênicas e psicológicas, sem que fique trapaceando permanentemente ele mesmo, os textos e sua audiência. Certos temas não plenamente dominados ou ambíguos podem provocar a rejeição de uma parte do público. Com todas as reservas usuais, podemos afirmar que os excessos de bons sentimentos ou o pathos prejudicam a intensidade dos tours de chant. Não são jamais os bons sentimentos que fazem as boas canções. Nem é a pieguice que consegue comover profundamente por longo tempo. Existem outros meios mais eficazes e mais práticos para fazer compartilhar sentimentos e convicções, como o distanciamento, o humor ou a sátira. Ainda que o estilo popularesco seja de uso freqüente nas canções, precisamos desconfiar do descaramento falso, porque para ser crível um tom familiar deve preservar o sabor do natural e da sinceridade. Temos exemplos comprovados com Mouloudji ou João Nogueira, entre outros. Todos os artistas e todas as obras inscrevem-se em uma longa história do espetáculo e em uma cultura-canção de uma riqueza infinita que deveriam incitar à prudência e a uma grande humildade. Jacques Brel e Georges Brassens ou Chico Buarque e Ney Matogrosso estão entre os exemplos de humildade. Será preciso repetir que todos os cantores famosos prestaram atenção por muito tempo aos artistas que admiravam, tendo assistido numerosas vezes aos seus espetáculos, dos quais souberam tirar lições proveitosas? O melhor conselho é incitar cantores iniciantes a assistirem aos espetáculos dos grandes intérpretes de hoje e de seus colegas; haverá sempre algo interessante que saberão reconstruir, reinterpretar em função do seu próprio estilo. No mesmo espírito, é desejável possuir uma cultura geral significativa e 24 uma abertura ao mundo a fim de descobrir associações de idéias originais e assim estimular seu próprio imaginário. Cantar é por definição comunicar-se com os outros, com públicos múltiplos e de variadas sensibilidades. Cantar para o público significa dirigir-se a ele com generosidade. Ninguém canta somente para agradar a si mesmo, mas com o objetivo de seduzir, comover e convencer outras pessoas! Para comunicar, compartilhar emoções com os espectadores ou os ouvintes, é preferível não afogá-los em complicados estados de alma construídos com questões psicológicas pessoais. O cantor deve ser concreto, prático e humano. Deve conhecer o seu público e ficar à sua escuta para falar-lhe do que concerne a todos. O projeto criador de um cantor é concebido com um conjunto de pessoas. Este projeto envolve toda uma equipe criadora: cantor, autor, compositor, arranjadores, músicos, diretor artístico, encenador e empresário, dentre outros agentes eventuais. É necessário abandonar a visão romântica do gênio solitário e incompreendido; é sempre uma equipe que permite e acompanha um êxito artístico. O início de todo projeto artístico consiste em ter algo a dizer (quer o cantor escreva-o ele mesmo, quer ele faça-o seu), algo de original, de diferente, embora não se possa afirmar isso com toda certeza... Os temas tratados e os procedimentos estilísticos são limitados e a inspiração não é inesgotável; o encontro com outros parceiros pode ajudar a pôr em forma e a concretizar as idéias. Estes princípios implicam rigor e recusa das complacências. Se tiver sua missão em alto conceito, o cantor terá aversão à demagogia, evitando os comentários inúteis ou intermináveis destinados ao público, assim como a vulgaridade, quanto aos textos cantados e à sua atitude em cena. Isso não significa que não se deve utilizar palavras licenciosas ou ríspidas, se são verdadeiras, se integram a obra. Se for necessário dizer “merda”, o artista deve dizê-lo sem cerimônias! Do mesmo modo, o artista precavido cuidará de utilizar objetos só quando for indispensável. Evitará os acessórios inúteis e outros truques que desviam a atenção do espectador, como cenário fora de propósito, fumaça em abundância... 25 Qualquer intérprete de canções estabelece como objetivos comover e convencer. Para comover, deve dar provas de uma sensibilidade extrema e para convencer, deve ser ele mesmo, convencido! Importa ter uma idéia-força, um ponto de vista sobre o mundo, mas também ser simples, potente, verdadeiro; evitar diluir-se, espalhando-se em palavras, mímicas e gestos com canções intermináveis. A canção é uma arte da concisão e, sobretudo, da eficácia. Três termos resumem idealmente o projeto de um intérprete da canção: intenção, tom, e convicção. Os jovens cantores destinam-se a um ofício em grande parte solitária; no entanto eles devem saber que são centenas a ser “únicos” assim. O espetáculo vivo é um ofício árduo, altamente competitivo e com pouca generosidade. O artista é tratado sem piedade. Então, entrar neste mundo do espetáculo exige do novato que conheça as lógicas singulares do meio, os procedimentos e as arapucas. 4. Os indicadores profissionais da excelência Com base na apresentação acima dos elementos constitutivos da interpretação e das regras implícitas em vigor, podemos avançar com uma série de observações que põem em evidência as qualidades essenciais requeridas para afirmar-se intérprete de talento e experiência. Essas qualidades não são todas, e em todo momento, indispensáveis e não assumem o mesmo caráter de importância em todas as situações; contudo, é sempre uma combinação feliz destes critérios que condiciona as ótimas possibilidades da interpretação. Outros elementos ainda poderiam ser sugeridos, como o trabalho de investigação para montar um espetáculo ou os exercícios corporais necessários para mostrar boa performance e para certas seqüências, nas quais a dança ocupa um lugar proeminente. Fizemos a escolha de centrar mais diretamente nosso estudo sobre a interpretação em si. Ainda que os artistas de maior sucesso no mundo do espetáculo não apliquem ao pé da letra estas propostas, todos as conhecem e sabem adaptálas, senão desviá-las, em função do seu projeto específico, mesmo que seja de natureza comercial ou demagógica. 26 A fim de mostrar a importância destes procedimentos, qualificamo-los como indicadores de excelência, pelo fato de que oferecem marcadores válidos e reconhecidos pelos profissionais e pelo público conhecedor. Podemos citar: A abordagem global da interpretação das canções, em oposição a uma simples adição de elementos ou de procedimentos vocais e cênicos. Esta concepção pressupõe a inscrição harmoniosa da interpretação nas duas instâncias mais amplas que são o projeto criador e a performance. Assenta-se também na dinâmica criada entre a tensão e o relaxamento que resultam do conflito latente entre a intensidade de uma interpretação e a sedução carinhosa da voz cantada. O respeito ao espírito de origem das obras cantadas, ao invés de recriação parasitária; mas pode-se avaliar isso com segurança? O tom apresentado pelo cantor dá conta do sentido acrescentado - cumplicidade, confidência, humanidade, indiferença, desenvoltura, proeza técnica, escárnio…Há algum tempo, existe uma regra implícita nas artes cênicas segundo a qual o intérprete serve ao texto, está a seu serviço, em vez de servir-se dele para valorizarse enquanto fenômeno espetacular. Daí a denúncia, feita por certos comentaristas, da virtuosidade formal de alguns intérpretes. O recurso a um estilo de canto percebido como natural, quando sabemos que nada é mais difícil a realizar em cena do que parecer simples. O objetivo visado pelo artista é de ser ou parecer crível, sincero, verdadeiro. Este traço, este efeito do natural no espetáculo, é frequentemente atribuído a um dom ou um talento supremo. Podemos citar assim, na França: Félix Leclerc, RenéLouis Lafforgue, Francis Lemarque, Michèle Bernard, Jean-Roger Caussimon… e, no Brasil: Noel Rosa (especialmente nas suas composições de canto falado), Jackson do Pandeiro, Paulo César Pinheiro, dentre outros. A autoridade, a segurança, o controle de si ou a faculdade que tem o cantor de impor sua voz no palco ou no disco sem esforço aparente, sem efeitos especiais nem demagogia. Uma autoridade que se revela como evidência. É um dos atributos do grande intérprete saber dominar as situações e os imprevistos sem ter necessidade de brigar com a técnica, com os companheiros de cena ou com o público. 27 A presença do artista, enquanto competência comunicativa; esta presença é, ao mesmo tempo constitutiva e resultante do modo de comunicação instaurado com o público; é frequentemente ligada ao carisma do cantor, dado que esta qualidade assenta-se em grande parte sobre uma relação de sedução. Não há presença se não há contato – real (em cena) ou virtual (em disco, em rádio…) –, entre o cantor e sua audiência. É bem pela sua presença obsedante, vocal e gestual, que o cantor provoca interesse no público, cativa-o. O carisma, bem como a sensualidade do intérprete é uma das condições básicas de um modo de comunicação, efetivo, desejado e compartilhado. A expressividade, como tal, que é a capacidade do intérprete de valorizar e transmitir um conteúdo poético-musical, de torná-lo compreensível e significativo através do seu olhar pessoal e sua enunciação. Em graus diversos, todos os artistas, dos mais intelectuais aos mais comerciais, possuem este dom. O talento consiste em saber adaptar, modular esta expressividade latente em função dos conteúdos enunciados e dos públicos visados. A sutileza, a inteligência e a perspicácia da enunciação, que são marcas de distinção e implicam, além disso, no sentido dos matizes devido à alternância dos “blocos” cantados entre tensão e relaxamento. Trata-se de uma faculdade que recorre mais à impregnação num universo poético-musical sensível e a sua apropriação inteligente do que à espontaneidade ou à emoção sentida pelo cantor. Novamente assinalamos que os artistas podem atingir resultados similares recorrendo a métodos interpretativos de natureza diferente. Assim, a sutileza espantosa, de Catherine Sauvage e o gênio intuitivo, de Édith Piaf, permitem, ambos, restituir, por vias diferentes, a profundidade e os matizes de certas canções. A sensibilidade distinguida e delicada de Nara Leão, bem como a implicação passional de Maria Bethânia na sua arte, são duas outras ilustrações. O distanciamento, que é uma qualidade racional, inspirada no teatro contemporâneo, que consiste para o artista em nunca deixar-se dominar pela narração nem pelos sentimentos suscitados, mas em guardar certa objetividade a fim de levar os espectadores a entenderem e reagirem. Poucos cantores chegam a dominar isto com maestria e, outra vez, o exemplo mais contundente é o de 28 Catherine Sauvage, artista formada no teatro, que cantou por muito tempo os repertórios de Bertolt Brecht e Léo Ferré. O sentido dos matizes, que exige do intérprete que saiba perceber e revelar as diferenças de sentidos, frequentemente mínimas, entre as descrições, os valores e os sentimentos evocados. Só o trabalho de assimilação das obras e o talento expressivo dos intérpretes permitem dizer mais com o mínimo de meios. Demasiado raros são os cantores capazes de alternar registros enunciativos durante uma canção e exprimir assim as diferentes tendências semióticas de um título, como o fazia Yves Montand em Le Chat de la voisine, Catherine Sauvage em Surabaya Johnny ou Maria Bethânia em Luz da noite e Tira as mãos de mim. Finalmente, a capacidade de adaptação permanente ao contexto: contexto de execução e de audiência, o que inclui o controle das interações, como apartes ao público, comentários, reações e interferências diversas. O intérprete esperto deve saber em qualquer ocasião demonstrar responsabilidade e capacidade de improvisação. 5. Critérios de apreciação Com base nestas reflexões, podemos agora pôr em relevo alguns critérios de apreciação das interpretações nas quais as escolhas do intérprete jogam um papel determinante. Abordaremos, na ordem: o repertório, a voz, o corpo na performance, a relação com o público e a personalidade do cantor. O repertório: originalidade da escolha dos títulos; eficácia e coerência das canções interpretadas; construção e progressão do tour de chant; adequação do repertório à personalidade do intérprete; respeito às obras interpretadas e desvio criativo eventual; ecletismo e capacidade de adaptação do cantor às variações do repertório. A voz: qualidades singulares como o timbre, que deve ser único e imediatamente perceptível; precisão da enunciação, com simbiose bem sucedida da articulação das sílabas e ligações entre os sons; expressividade específica da voz, percepção das nuances e dos matizes utilizando desde o cochicho até a intensidade máxima na dimensão do grito; domínio formal das obras cantadas, 29 e, paradoxo supremo, qualidade do silêncio! O corpo na performance: deve-se avaliar a qualidade intrínseca de uma gestualidade sem gesticulações exageradas; a necessidade, a complementaridade e a coerência dos gestos aplicados e dos gestos comportamentais; beleza plástica e valorização do corpo exibido; sentido do espaço e do movimento, recursos à mímica como forma de expressão, maquiagem e indumentárias adequadas. A relação com o público: natureza, qualidade e intensidade do contato com a audiência, convicção exprimida, modo de comunicação e interação eventual, maestria, desembaraço, autoridade real sobre o conjunto da performance, atitude convencida e convincente. A personalidade: formulação de um projeto criador claramente identificável e correspondência do mesmo com o resultado obtido; originalidade do personagem no palco, carisma, sedução, capacidade de dar e criar sentido; coerência entre o projeto e os meios mobilizados; apreciação do comportamento geral do artista, que depende tanto da ética quanto da estética, e, finalmente, a dedicação do artista ao gênero canção. Conclusão O cantor transmite em canções idéias, emoções e uma experiência humana. A interpretação das canções faz parte de uma vasta combinatória semiótica; essa interpretação está dentro de um processo de comunicação com canções que implica uma intenção, um texto, um bloco musical, enfim uma interpretação por parte de um cantor, com o seu projeto, seus meios psicofisiológicos e artísticos singulares, numa situação aqui e agora, num contexto social e sendo garantida uma recepção. Trata-se de uma arte de síntese que exige do artista, além das competências usuais de cantor e de ator, qualidades humanas e comportamentais específicas que se apóiam mais sobre a história de vida e a experiência individual que sobre procedimentos resultantes de uma aprendizagem profissional. 30 Uma interpretação realizada reúne, assim, além da aplicação, do rigor e do talento na sua arte, qualidades artísticas tão diversas como inspiração, curiosidade, sensibilidade, humanidade, presença, elegância, sedução e convicção, faculdades existenciais que emanam do ser e exprimem a vida. Portanto, não existem, a nosso ver, modelos de interpretação ideais aplicáveis de maneira geral. Os diferentes tipos cantados (da canção vivida ao couplet cômico, do tango à modinha) suscitam obras variadas, na forma e no espírito, de acordo com os repertórios, as culturas, as épocas e os artistas considerados. Em tal disciplina artística, digo, nas canções, onde as noções de dizer e de tom prevalecem sobre as qualidades formais da música, do jogo de cena e da dicção, os critérios de avaliação das interpretações dependem essencialmente dos indicadores de excelência, subjetivos por natureza, que resultam do conhecimento exaustivo da história do espetáculo e da análise dos projetos criadores referidos. Em ultima instância, pode-se dizer que a chave do sucesso reside numa complexa mistura de dom ou aptidão, presença de espírito e knowhow, e consiste em propor aos diversos públicos espetáculos e canções midiatizadas, que correspondam à sua sensibilidade, ao momento esperado; e, todos devem concordar, é preciso ter também muita sorte... Por último, e por todas as razões evocadas neste artigo, é procedente dizer que, no domínio das canções, o cantor-intérprete-ator dos tours de chant, em cena, e das gravações, em estúdio ou sobre um palco, impõe-se como um verdadeiro criador das canções. 31 O RECITAL DE YVES MONTAND NO THÉÂTRE DE L´ÉTOILE ou COMO O POLÍTICO IRROMPEU NOS PALCOS DE MUSICHALL DE PARIS5 Christian Marcadet O objetivo deste texto é apresentar resumidamente uma parte de uma pesquisa realizada em quatro anos. Falo sobre Yves Montand (1921-1991), um dos cantores emblemáticos do século XX. Montand se impôs na França como cantor número um com a idade de 30 anos e fez uma carreira prestigiosa durante 40 anos, cantando sempre perante salas superlotadas. Foi convidado para os maiores palcos do mundo: Olympia de Paris, Teatro Tchaïkovski de Moscou, Metropolitan de New-York e Maracanãzinho do Rio de Janeiro; cantou no Japão, em Israel e em toda a Europa com o mesmo êxito sempre. Montand foi um showman tão talentoso quanto Frank Sinatra, uma voz expressiva e calorosa como Carlos Gardel, com um sentido de palco e uma expressividade equivalentes aos de Maria Bethânia, e uma convicção do tamanho daquela de Geraldo Vandré. Ele simboliza, em um artista único, a reunião do artístico, do político e do ético. Se Yves Montand deixou, antes de tudo, uma obra singular com as suas dimensões próprias (estilo, tom, coerência, compromisso, convicção e modo de comunicação com os públicos), tornou-se evidentemente necessário estudar as razões pelas quais várias vezes o cantor provocou a irrupção das implicações políticas nos palcos de music-hall onde se apresentava. Com este objetivo, as causalidades sociais acerca da origem do fenômeno Montand são discutidas amplamente neste trabalho: origem familiar, relação com o campo político, campo social do espetáculo, estatuto de grande estrela da canção. 5 Texto adaptado e muito ampliado da palestra apresentada no III Simpósio de História Cultural Mundos da imagem: do texto ao visual, GT Nacional de História Cultural da ANPUH, Florianópolis, 18 a 22 de Setembro de 2006, Mini Simpósio Sons e imagens: escutas musicais e sensibilidades. 32 No entanto, não seria possível estudar estas influências, se não tivesse chegado a articular todos estes elementos que dependem do social com os que concernem ao artístico: repertório, performances cênicas, sensibilidades ética e estética. Em função disso, este estudo de caso visa analisar e compreender os determinantes sociais e estéticos da carreira de um artista, que, sob vários aspectos, se impôs como um expoente da interpretação das canções. 1. O contexto histórico e cultural Na França, é nos anos 50 que começa de fato a Liberação. Os anos que se seguem à guerra mundial de 1939 -1945 são anos divididos entre a esperança e a crise. Esse período é marcado pela reconstrução do país, que se encontrava em grande parte em ruínas, em catástrofe humanitária e em crise monetária. Se, como em 1936, no momento da Frente Popular, a vontade de superar as provações e a esperança de unir o povo, propondo-lhe um ideal comum, conserva toda sua atualidade, a pressão resultante das urgências econômicas e políticas reinstala o conflito na sociedade francesa. A partir de 1947, o clima social é marcado por uma série de acontecimentos: contexto de guerra fria imposto pelos estadunidenses; instabilidade política dos ministérios da Quarta República; recomposição do grande capital industrial e financeiro em detrimento das camadas populares; combates de retaguarda de um colonialismo esgotado (o drama argelino sucedendo a retirada da Indochina) e papel de contra poder relativo do Partido Comunista, que obtém, em todo este período de pós-segunda guerra mundial, resultados eleitorais que oscilam entre 25 e 29% dos votos. Nestas condições, os desafios sociopolíticos dividem o país e o entusiasmo decai. O mundo social das variedades Do início até o fim deste período de pós-guerra mundial, o mundo social regula o mundo do divertimento. Em reação às políticas atlantistas (definidas pelos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte - OTAN) que os governos franceses adotavam, os meios artísticos queriam posicionar-se sobre a 33 realidade social; o humor torna-se cáustico, ferino, o marxismo e o existencialismo ocupam a dianteira da cena intelectual parisiense. No intuito de compreender a história através das produções culturais de uma época, parece pertinente tomar as canções como objeto de estudo. Na sua qualidade de expressão artística e de produto comercial ancorado no seu tempo, elas parecem qualificadas para exprimir o imaginário e o inconsciente coletivos de uma época. A configuração do mundo do espetáculo no pós-guerra, na França, assenta-se ainda sobre a superioridade do palco como verdadeiro trampolim de carreira. As mídias da cultura de massas (imprensa, rádio, televisão) não controlam ainda a corrente produção-promoção-divulgação. Os cabarés famosos, como l’Écluse e Les Trois-Baudets, desempenham um papel decisivo de descobridores de talentos. As empresas fonográficas dão muito crédito aos diretores artísticos, frequentemente tão talentosos quanto os artistas. Os grandes music-halls, como o Théâtre de l’Étoile e o Olympia, procuram infatigavelmente novos cantores populares para atrair as multidões e as tournées de verão atingem um grande sucesso. Todas estas condições favorecem então a promoção dos candidatos mais decididos e talentosos tais como Bourvil, Luis Mariano, Georges Brassens, Léo Ferré e aquele a quem este trabalho se refere: Yves Montand. Em nossa abordagem, ser cantor dos anos 50 é não somente representar o espírito desses anos, mas é ser também aquele com o qual o público se identifica maciçamente. 2. O recital mítico de Montand no Théâtre de l’Étoile Foi um acontecimento sem precedentes. Durante 6 meses, de Outubro de 1953 até Abril de 1954, numa sala parisiense prestigiosa de 1400 lugares, Montand deu 200 (duzentos) concertos consecutivos, atuando perante quase 300.000 espectadores. A cada noite a sala ficava completamente lotada. Seu recital, composto de 25 canções – incluindo 4 sketches cantados e dois poemas recitados, desenrolava-se em duas partes com intervalo e constituía um modelo 34 perto da perfeição. O conjunto da imprensa e o público concordavam em dar sempre ao artista um acolhimento entusiasta e declarar que, aos 32 anos, Yves Montand impunha-se como o cantor de referência da história do music-hall na França. O espetáculo era marcado por duas marchas nobres e triunfantes, que imprimiam um tom majestoso à apresentação: Quand un soldat6, canção de n° 3, e, perto do fim, o grande momento do recital, C’est à l’aube. O repertório foi construído sobre oposições definidas entre os títulos de convicção – os que exprimem uma tensão marcante e a aspiração de cumplicidade com a audiência e os títulos lúdicos – os catárticos do repouso, do alívio liberatório. Dois poemas são recitados: Le Peintre, la pomme et Picasso e o patético Bárbara, que Montand anteriormente cantava e que agora assumia uma profundidade e um impacto novos. Uma canção era particularmente esperada, como expressam, na gravação, as exclamações admirativas depois do seu anúncio feito pelo artista: C’est à l’aube. Trata-se de uma canção humanista militante, longamente e maciçamente aplaudida, que Montand insere oportunamente após o número, bastante visual, Le Chef d’orchestre est amoureux. No fim de certas canções, quando os espectadores aplaudem, não é mais C’est à l’aube ou Le chemin des oliviers que eles louvam, nem tampouco o próprio artista Yves Montand; um potente movimento coletivo envolve o público “aqui e agora” e cada um é convencido de que todos juntos, nós, podemos impedir a guerra, criar um mundo melhor. Uma construção habilmente elaborada Uma análise aprofundada dos títulos e a sua ordem de apresentação mostram que o recital foi construído com rigor. Dois títulos destinados a criar um clima amigável abrem o espetáculo, exatamente antes da primeira ruptura operada com a fraternal e intensa Quand un soldat, canção pacifista emblemática, que Montand, excepcionalmente, não anuncia. Ao cantar este número revela um tom natural, 6 Os nomes dos autores e compositores dos títulos que figuraram no programa deste recital de Montand são mencionados em anexo. 35 convincente, e o cantor, em sintonia com o clima da platéia, define imediatamente o tom da noite. Um espectador rabugento manifesta-se no fim, berrando “Montand na Indochine!”, ao que Montand replica com um paternalista “Não, meu rapaz, obrigado…”, antes de continuar imperturbável com a canção seguinte. Montand alterna seguidamente títulos otimistas, fantasias, narrações e poesias, colocando no meio, sabiamente preparado, Il a fallu e sua inacreditável tirada final genial, que desconcerta a audiência: uma sucessão de perturbações socioeconômicas que acabam em historieta sentimental! Uma segunda ruptura ocorre com o nono título, Le Flamenco de Paris, sóbria e comovente evocação da Guerra da Espanha, dramatizada pelo jogo de luzes: foco sobre o rosto do cantor, violonista solista iluminado e um achado surpreendente, a platéia em luz total. Esta primeira parte é encerrada com uma nota festiva, com a canção Du soleil plein la tête, que o público pode cantarolar durante o intervalo. O princípio da segunda parte, que exige do artista a retomada da atenção do público, efetua-se com um título simpático de uma valsa; Montand dá seqüência ao show com títulos mais lúdicos. Vem, em seguida, uma longa seqüência descritiva e mais visual de quatro canções, dentre as quais Les Cireurs de Souliers de Broadway, que têm por função reforçar a segunda parte do espetáculo. Esta última poesia humanista e anti-racista de Prévert, escrita em versos livres no estilo corrosivo do poeta, é realçada pelo arranjo de jazz e o virtuosismo cênico e vocal de Montand. De concepção mais clássica, mas com uma intensidade extrema, o fim do recital acontece num crescendo, com a conjunção de tonalidades sociais, poéticas e populares, até atingir um clímax emocionante. Sucedem-se e reforçam-se mutuamente: a exaltante C’est à l’aube, Barbara (poema pacifista recitado a capella), a animada À Paris, e Les Feuilles Mortes, que se constitui na apoteose do tour de chant7. 7 O “tour de chant” é o conjunto da performance de um cantor em um programa de variedades; é a seqüência de todas as canções cantadas na ordem escolhida, sem interrupção de outro numero, qualquer que seja. Neste sentido, um “recital” é um espetáculo com um tour de chant de um artista só. 36 Neste momento, a performance de Montand atinge uma dimensão de cumplicidade rara, que a dimensão artística não é suficiente para explicar. Assim, a tensão cristalizada encontra seu escape num título mais festivo: C’est si bon, lengalenga popular, retomada posteriormente por Louis Armstrong (!), destinada a prolongar, de maneira otimista, a noite. A tensão acumulada com Les Feuilles Mortes, encontra o seu complemento no descontraído C’est si bon. Outra vez, o público sente-se mais feliz, quase alegre, e pode deixar o teatro e voltar sereno e recuperado para o mundo real. Uma formação de jazz como apoio rítmico No palco, Montand era sempre acompanhado por uma pequena banda de cinco músicos dirigida por Bob Castella: piano, violão, acordeon, contrabaixo e bateria. Todos estes músicos freqüentavam os meios do jazz (alguns trabalharam com Django Reinhardt), tinham o sentido do swing e da improvisação e embora fossem artistas solistas, estavam lá para acompanhar o cantor. Instintivamente, Montand chega a imprimir um ritmo animado e contrastado a seu recital. A busca de uma intensidade máxima é obtida por rupturas entre os títulos: assim o paroxístico C’est à l’aube obtém um efeito decuplicado sucedendo à divertida canção-sketch Le Chef d’orchestre est amoureux, e seu impacto encontrase prolongado pela dicção da voz nua com o poema Barbara. É devido a esta alternância que se justifica também falar de Montand como inventor de um estilo. Alguns termos impõem-se para qualificar este recital: coerência, presença, força, virilidade, gravidade, convicção, naturalidade, sinceridade, espontaneidade, frescor, descontração, ternura, sensibilidade, sensualidade. O que impressiona, sobretudo quando o fenômeno é observado a distância, é a adesão dos espectadores ao projeto do cantor e a natureza espontânea e calorosa do encontro do mesmo com o grande público popular. O sentido do equilíbrio Uma das chaves do sucesso de Montand reside na busca de uma hábil dosagem entre os três componentes da sua arte: textos/músicas/interpretações. 37 No seu tour de chant, os climas são às vezes poéticos, porém jamais de poesia de alta densidade, mesmo se mais tarde vem a cantar autores como Paul Éluard e Charles Baudelaire; tampouco se envolve em melodias eruditas demais, com exceção de Les Berceaux, de Gabriel Fauré. Este equilíbrio é obtido sem excesso de elementos patéticos ou piegas. Cinco grandes tendências marcam o seu repertório: narrativo-descritivo, conscientizado-militante, lírico-romântico, humorístico-lúdico e otimista-jovial. O recital 1953 é construído sobre um equilíbrio perfeito entre os títulos mais carregados de sentido e de intensidade – os títulos de convicção e os títulos narrativos, e os mais representativos do espírito de divertimento e de sedução – títulos líricos, lúdicos e otimistas. Um estilo vocal que faz maravilhas O seu timbre é jovem e flexível; além de articular as sílabas com uma dicção perfeita, Montand sabe valorizar todos os matizes do canto desde o cochicho, o canto falado, a escansão e as onomatopéias ritmadas, a flexibilidade, a virilidade, o fervor, o vigor, até a voz empostada. Todos os profissionais concordam em dizer que Montand tem uma das vozes mais cheias de calor e delicadeza, algo nunca antes ouvido sobre um palco. Por momentos, Montand coloca a sua voz para dramatizar um efeito ou apóia despreocupadamente um vibrato final para tornar um enunciado mais sensível. Uma gestualidade natural e convincente O estilo Montand é inseparável dos efeitos cênicos das suas canções. Nenhum título deixa de ser incorporado por sua personalidade, seus gestos, sua voz. Montand, que é alto e magro, realiza no palco proezas físicas, vocais e cênicas. Neste período, em que os artistas cantam com o microfone em pé – uma técnica nitidamente mais estimulante para a gestualidade que a atual com o microfone na mão –, pelo movimento que Montand imprime, pondo o seu corpo em primeiro plano, cada recital seu aparenta ser um combate. Citemos Montand mesmo, quando declara a Hamon e Rotman, seus biógrafos: 38 Não é através de artifícios que se mantém por muito tempo a adesão dos outros, mas através da personalidade, do carisma. A verdade deve ser total, o instinto total, e o frescor total... sou de origem italiana... Não me ensinaram nem um único movimento das mãos... Falamos assim, nós os latinos; sublinhamos o que já é evidente em si mesmo, antes mesmo que a palavra salte8. Montand fica atento aos conselhos, estuda as performances dos outros artistas e ouve os imitadores de… Montand (!). Este artista de exceção investe-se completamente na sua arte: (...) quando uma platéia espera você, independentemente das suas disposições neste momento, é preciso pagar, pagar com as suas próprias vísceras. Ali não há espaço para recomeçar. Deve-se ter êxito imediatamente. A cada noite você deve conquistar um público diferente. ...é necessário sentir as suas reações e redirecionar, em conseqüência disso, o seu papel. É preciso literalmente arrancar os aplausos do espectador. Eis aí o verdadeiro trabalho9. As suas performances são resultantes de um trabalho de equipe e todos os seus colaboradores têm o sentimento de viver uma aventura coletiva da qual Montand é o centro vital. À oposição binária entre o visual e a convicção, correspondem gestualidades diferenciadas: por um lado, atitudes demonstrativas e extrovertidas que denotam o temperamento mediterrâneo do cantor, por outro lado, atitudes de recolhimento e de uma impregnação mental que chegam a uma aparente ausência do corpo físico. A totalidade expressiva final é o próprio Montand que constrói. 8 9 Hervé Hamon et Patrick Rotman, Tu vois, je n’ai pas oublié, Éd. du Seuil et Éd. Fayard, Paris, 1990. “On n’emporte jamais longtemps l’adhésion par l’artifice, mais par la personnalité, le charisme. La vérité doit être totale, l’instinct total, et la fraîcheur totale… je suis d’ascendance italienne… je n’ai pas appris le moindre mouvement de mains… Nous parlons ainsi, nous, les latins, nous soulignons ce qui est déjà évident en soi, avant même que la parole ne jaillisse.” “Dans l’intimité de… Yves Montand”, Paris-Cinéma, supplément au n° 38, Paris, juin 1946. “(…) Quand une salle vous attend, quelles que soient vos dispositions à ce moment-là, il faut payer, payer avec son ventre. Là, on ne recommence pas. Il faut réussir tout de suite. Vous devez chaque soir empoigner un public différent. …il faut sentir ses réactions et rectifier le jeu en conséquence. Il faut littéralement arracher les applaudissements du spectateur. Voilà le vrai métier. 39 Um objeto total: o álbum duplo, testemunho do espetáculo Registrado ao vivo, no teatro, em Outubro de 1953, pela Odéon, o álbum duplo 30 cm é também um acontecimento. Assinalo que é a primeira gravação integral em público de um espetáculo de variedades realizado sem manipulações posteriores. Comercializando este disco bastante luxuoso para a época, a gravadora Odéon fazia uma aposta arriscada, que se revelou vencedora, dado que, há mais de cinqüenta anos, este documento é regularmente reeditado, inicialmente em vinil e depois em CD. Lamentavelmente a fita magnética filmada para a televisão e difundida numa tarde de domingo foi reutilizada seguidamente e não mais existe qualquer documento visual do evento. A capa do disco é igualmente rica de significado. O desenho é de Jean Effel, colaborador regular do diário comunista L’Humanité. Destacados sobre um fundo branco iluminado por um sol generoso, dois namorados de braços dados passeiam, após o trabalho, no cais do Rio Sena. É um casal da Paris popular: ele está vestido com seu terno/macacão azul, a roupa dos trabalhadores, e está com a sua bicicleta; ela está de vestido branco simples; extasiam-se perante um panorama identitário completamente impossível dado que mostra em conjunto a Catedral de Notre-Dame, a Torre Eiffel e Ménilmontant, atrações que são patrimônios parisienses situados em bairros diferentes. Sobre o parapeito, um cartaz indicando o espetáculo de Montand é afixado sobre uma inscrição Proibido afixar! O anúncio está em letras vermelhas – a cor revolucionária que, combinando-se à azul e à branca, nacionaliza a cena, unindo as três cores da bandeira francesa. Simples, parisiense, referenciado… este desenho simboliza todo o recital. Do projeto criador ao processo receptor-apreciador O método sociosemiótico preconizado se entende aqui em sua acepção lógica e total de busca do sentido social das obras artísticas; ele respeita os princípios seguintes: é, ao mesmo tempo, global e plural por vocação, é situacional, porque recoloca os fatos estudados no seu quadro de enunciação, é 40 relacional e dialético, mostrando os laços que unem e contrapõem os acontecimentos e processos em movimento, e é hierárquico, porque se trata de focalizar fatos hegemônicos. Três conceitos chaves constituem o fundamento do enfoque sociosemiótico: o projeto criador, a performance e o processo receptor-apreciador. O projeto criador é entendido como a conjunção entre potencialidades dos artistas, estratégias de carreira e meios artísticos mobilizados com uma intenção. Disso resulta uma tensão permanente entre uma intenção que emana do individual e uma orientação estruturante que vem do social. No nosso caso em análise, as origens sociais de Montand determinam o seu destino social e orientam o seu itinerário profissional (domínio de expressão e envergadura). Na sua obra, o sentido, unidade primeira de coerência, faz bloco, sempre tenso para uma comunicação com o seu público. Mas esta unidade encontra o seu complemento orgânico em uma segunda unidade, entre personagem público – a estrela, e o homem Montand – Yvo Livi, filho de imigrantes e antigo proletário. A performance é a própria enunciação de textos orais emitidos em situação de espetáculo num lugar significativo (seja acontecimentos) ou por meio de uma difusão mecânica (seja monumentos), com intenção de atingir audiências. Daí, o conceito secundário de modo de comunicação, que marca a natureza e a intensidade da relação interprete - público. Estabelecendo uma relação de conivência e cumplicidade com cada espectador, Montand inaugura um estilo de proximidade total: física, social, e mental, fundado sobre uma relação igualitária, fraternal. Enquanto Édith Piaf serve de catálise para as emoções populares, Montand provoca o entusiasmo de um povo que tem intenção de participar na história; quanto mais o próprio artista é convencido, mais faz-se convincente. O processo receptor-apreciador, é aquele segundo o qual uma obra torna-se significada e recebida, ativando os esquemas estéticos globais – o horizonte de espera teorizado por H.-R. Jauss, e as inclinações pessoais, conseqüências da trajetória e experiência individuais dos ouvintes. 41 Assim, cada noite, como as testemunhas relatam, quando Montand terminava C’est à l’aube, o público delirava, o Théâtre de L’Étoile explodia verdadeiramente. Aliás conviria interrogar-se se tais manifestações culturais ajudaram a causa da revolução ou se serviram de escape, neutralizando em parte a vontade de mudar presente na sociedade. Um impacto simbólico Este recital de 1953 era efetivamente um encontro humano e ideológico com o povo francês. A imprensa, que assinalou a proeza, sublinhou-o claramente: Suprema consagração...alguns lamentáveis invejosos sectários haviam colocado bolas fedorentas em cada andar: as pessoas se exprimem como podem... não se conformam com a presença, a vida... deste atleta... São surdos a uma voz... que atesta sua labuta paciente e a sua vontade de não deixar nenhuma nuance na sombra... cegos... à verdade dos seus gestos ou movimentos, a sua potência evocatória... O que alguns não perdoam em Yves Montand... é o amor à paz, o horror à guerra, a piedade para com o homem, com aqueles que aplaudem o admirável “Quand un soldat” ,”Barbara” ou “C’est à l’aube”. Quando canta essas músicas, Montand é mesmo a voz de um ideal, o grito de uma revolta, o apelo de uma esperança...10 Christine de Rivoyre assim se expressou no prestigiado jornal Le Monde : Apresentando um espetáculo em duas partes de dez músicas cada uma, Yves Montand foi literalmente devorado por seu público, que o fez voltar ao palco mais dez ou quinze vezes... A voz de Yves Montand fortificou-se mais ainda... flexível e ardente e fácil ao mesmo tempo... seu estilo ultrapassou os limites da perfeição técnica…11 Libération, 7 octobre 1953 (article non signé). “Suprême consécration… de lamentables jaloux sectaires avaient brisé des boules puantes à chaque étage : on s’exprime comme on peut. …ne constatent-ils pas la “présence”, la vie… de cet athlète… Sont-ils sourds à une diction… qui atteste son labeur patient et sa volonté de ne laisser aucune nuance dans l’ombre… aveugles… à la vérité de ses gestes ou mouvements, à leur puissance évocatrice… Ce que d’aucuns ne pardonnent pas à Yves Montand… c’est l’amour de la paix, l’horreur de la guerre, la piété envers l’homme que clament l’admirable “Quand un soldat“, “Barbara“ ou “C’est à l’aube“. Quand il chante ces chants-là, Montand est la voix même d’un idéal, le cri d’unerévolte, l’appel d’un espoir...“ 11 Le Monde, 7 octobre 1953. « Offert en deux services de dix chansons chacun, Yves Montand fut littéralement dévoré par son public, qui le rappela dix ou quinze fois… La voix d’Yves Montand s’est encore fortifiée…souple et brûlante et facile à la fois… son style a dépassé les limites de la perfection technique...» 10 42 As implicações políticas Montand nunca escondeu as suas simpatias pela classe operária. Lembrao numa obra, cuja responsabilidade assume: As minhas simpatias políticas não são nenhum segredo... Fui criado por trabalhadores. Eu mesmo fui ligado, e penosamente, à condição operária. Vivi a experiência desagradável da exploração pura e simples. Pus a minha esperança na idéia de uma revolução capaz de trazer a justiça social... Também, tento fazer com que minhas canções tenham uma relação fraternal e sejam um código entre camaradas.12 Mas o sucesso de Montand excita os seus inimigos políticos, que então o atacam com virulência, como nestes dois extratos marcados de cinismo e de uma evidente desonestidade: (...) confesso...não ser um admirador convencido...do talento do Sr. Yves Montand...Como não sentir um certo embaraço, ou mesmo uma indisposição, imaginando que aquele lá critique uma “burguesia canalha”, sem risco, de resto, porque a liberdade de expressão, nas nossas “democracias corruptas”, não é uma palavra vã, ganha em uma noite o equivalente do que “recebem” num ano quatro milhões de assalariados...! Sem dúvida, isto é uma fraqueza pequeno-burguesa o fato de querer que o artista rebelde se identifique com sua revolta e não enriqueça com ela...13 Num momento em que tantos artistas de variedades estão sem emprego, um recital parece uma crueldade. O music-hall... é sobretudo diversidade. Ao ouvir este cantor, o resultado mais freqüente é uma monotonia muito desagradável. Montand, que se assemelha a esses Yves Montand, “Du soleil plein la tête”, souvenirs recueillis par Jean Denys, Éditeurs Français Réunis, Paris, 1955. « Mes sympathies politiques ne sont pas un secret… J’ai été élevé par des ouvriers. J’ai été moi-même attelé, et péniblement, à la condition ouvrière. J’ai fait l’expérience saumâtre de l’exploitation pure et simple. J’ai mis mon espoir dans l’idée d’une révolution capable d’apporter la justice sociale… J’essaie aussi que mes chansons soient comme un lien fraternel et un mot de passe entre camarades» 13 Combat, 6 octobre 1953 (Maurice Ciantar). «…je confesse… ne pas être un admirateur convaincu… du talent de M. Yves Montand. …Comment ne pas ressentir une certaine gêne, voire un malaise, en songeant que celui-là même qui vitupère une “bourgeoisie scélérate”, sans risque, d’ailleurs, car la liberté d’expression, dans nos “démocraties pourries”, n’est pas un vain mot, gagne en une soirée l’équivalent de ce que “perçoivent” dans une année quatre millions de salariés… ! Sans doute est-ce là une faiblesse petitebourgeoise que de vouloir l’artiste de révolte coller à sa révolte et non pas s’en enrichir…» 12 43 doqueirozinhos que se encontram no porto de Genova, tem um estilo mecânico... Tudo isso me parece extremamente amaneirado, sofisticado, mobilizado com uma surpreendente falta de coração… 14 As censuras que lhe eram dirigidas eram de várias ordens: Montand era um estrangeiro (italiano), enriquecia cantando a revolução, deixava os seus colegas no desemprego com a fórmula do recital etc. Nenhum comentador permitia-se contudo atacá-lo diretamente sobre o desempenho artístico, sabendo que impôs-se com muita facilidade e que possuía um talento fora do comum. 3. Yves Montand: o cantor emblemático dos anos 50 Todas as razões econômicas, sociológicas, estéticas e simbólicas convergem para fazer de Montand o cantor francês emblemático dos anos 50. Três termos resumem a sua carreira: dignidade na sua arte, fidelidade às suas convicções, consciência profissional. Tratava-se de um filho de proletário promovido a um sucesso mundial. Yvo Livi nasce em Outubro de 1921 numa aldeia rural da Toscana, na Itália, num meio muito pobre. Seu pai, militante socialista, é forçado ao exílio pelas milícias de Mussolini. A família refugia-se em Marselha e compartilha a vida dos proletários nos subúrbios e nas cidades-dormitório da classe operária. Após uma escolaridade medíocre, Montand, apaixonado pelo cinema americano e pela arte de Charles Trenet, sente a vocação do palco. Montand realiza uma carreira fulgurante: canta na primeira sala profissional, em Marselha, aos vinte anos e realiza tournée no Sul da França dois anos depois. É também a época onde efetua pequenos trabalhos e descobre o mundo operário. Para escapar ao Service du Travail Obligatoire, organizado pelo regime colaboracionista de Pétain, Montand foge para Paris, para tentar a sorte. 14 Les Nouvelles Littéraires, 15 octobre 1953 (Serge ?). « À l’heure où tellement d’artistes de variétés sont en chômage, un récital parait une cruauté. Le music-hall… c’est avant tout la diversité. En écoutant ce chanteur, il en résulte, bien souvent, une monotonie fort désagréable. Montand, qui ressemble à ces petits dockers que l’on observe sur le port de Gênes, a un style de robot. …Tout cela me semble fort maniéré, sophistiqué, mobilisé avec un étonnant manque de cœur» 44 Imediatamente em Paris passa numa audição para participar num programa do qual Édith Piaf é a vedete. É ela mesma que põe o jovem cantor à prova, apaixona-se por ele e decide fazê-lo seu protegido. Ajuda-o a aperfeiçoarse nas profissões do palco e o introduz no meio profissional. Montand permanece um tempo fazendo as primeiras partes dos espetáculos, antes de aparecer como grande atração juntamente com Piaf e fazer o seu primeiro espetáculo como estrela no L’Étoile no final de 1945. Em 1949, Montand encontra a famosa atriz Simone Signoret, com quem se casa e com quem compartilhará trinta e cinco anos de cumplicidade. Entretanto, Montand, que nasceu numa família comunista e que ficou fiel às suas opiniões apesar do sucesso, afirma-se como fiel “compagnon de route”15 do movimento comunista e distingue-se mesmo como um recordista das assinaturas militantes, em proveito de diversas causas apoiadas pelo Partido. Em Março de 1951, aos trinta anos, monta seu primeiro recital: sozinho no palco, mantém o público na expectativa e o seduz durante uma hora e meia. Não voltará mais ao tour de chant. Doravante sua celebridade eclipsa todas as outras grandes atrações do music-hall: Chevalier, Trenet e a própria Piaf. No período 1945-1955, realiza mais de mil e seiscentos espetáculos, atinge números de venda de discos sem precedentes e identifica-se assim com um tempo e um lugar específicos. No fim de 1956, começa uma carreira internacional, quando efetua uma tournée memorável nos países do bloco socialista, e, em 1959, voa para New-York, onde triunfará na Broadway, antes de começar uma outra tournée prestigiosa nos EUA. Consequentemente Montand divide a sua carreira entre o cinema e a canção, confirmando o seu destino de fama mundial. Em 1991, morre de repente durante a realização de um filme, enquanto preparava um regresso à cena parisiense no Parc de Paris-Bercy. 15 Na época, são designados compagnons de route do Partido Comunista Francês, numerosos intelectuais, cientistas e artistas que, sem serem membros oficiais do Partido, apóiam publicamente as suas posições e material e simbolicamente contribuem para a sua influência. Entre estes, figuram nomeadamente, além de Montand, o físico Joliot-Curie, o artista plástico Picasso, o poeta Paul Éluard e o ator Gérard Philipe. 45 Um tom e um estilo novos A força de convicção do cantor e o tom progressista e pacifista, claramente mostrados, fazem deste recital de 1953 o melhor testemunho de uma fusão entre o mundo social e o mundo do espetáculo, em um período marcado pelas tensões sociais já assinaladas. Com a consciência, o conhecimento seguro alcançado através de sua experiência anterior e considerando os conselhos e advertências de Piaf – outra artista autodidata –, Montand passa sem transição do tipo cow-boy de fantasia ao proletário exemplar, no momento em que o trabalhador passa a ser a figura simbólica da reconstrução do país. Após o encontro com o poeta Jacques Prévert, ele impõe a poesia no music-hall. Embora não escreva nem componha nenhuma das suas canções, Yves Montand mostra, na construção do roteiro de seu tour de chant, o seu papel de criador. O intérprete Montand vai ao essencial: com ele, não se ouve nenhum discurso antes ou depois das canções. Estas são simplesmente anunciadas com o nome dos autores, exceto, na intenção de criar um efeito de surpresa, Quand un soldat, que é esperada, tanto pelos que compartilham o seu engajamento antimilitarista quanto pelos que lá estiveram para opor-se a ele. O que surpreende mais, em todo o período 1944-1959, é o equilíbrio estabelecido entre os diferentes tons enunciados. Nunca uma dimensão esmaga as outras como se passa com seus colegas: o amor onipresente em Aznavour, o exotismo em Mariano, o humor em Bourvil… As diferentes maneiras de dizer, nele, são representadas bastante equitativamente dado que os títulos de convicção representam 39,8%; os títulos narrativos 41,9 %; os títulos líricos 39,9%; os títulos lúdicos 55,4%; e os títulos otimistas 47,3 %. A capacidade de preservar este equilíbrio ao longo de toda a carreira (1944-1983) está provavelmente ligada ao seu sucesso. Essas quantidades percentuais se referem à totalidade das obras gravadas, de 1944 a 1959. Cabe assinalar que uma mesma canção pode pertencer a várias categorias. 46 Um repertório em correspondência com o personagem Francis Lemarque, com seis canções, e Jacques Prévert, com cinco títulos, ambos imprimem a sua marca sobre este recital. Alguns letristas talentosos fornecem-lhe ainda canções que perpetuam a tradição do musichall enquanto jovens autores, como Flavien Monod e Léo Ferré, lhe oferecem títulos de uma tonalidade original que contrasta resolutamente com os repertórios correntes. Se Montand é o inspirador de um repertório diferente, o que o distingue, sobretudo, é o uso diferente que faz do repertório. Sem demagogia, com uma linguagem popular cujo baixo calão praticamente é excluído, Montand canta o cotidiano operário e a Paris popular com um tom familiar. Por último, embora o percentual de canções antimilitaristas ou pacifistas perfaçam apenas 7% do conjunto de músicas gravadas, este número é de um peso sem equivalente em nenhum outro repertório contemporâneo e, graças a ele, esta dimensão atinge um nível mundial, bem além do círculo dos militantes. A invenção do recital com finalidade artística Montand não foi o primeiro, mas foi ele que instituiu este tipo de espetáculo do qual se tornou logo referência indiscutível. Esta fórmula, feita sob medida para um cantor de destaque, vai gradualmente impor-se no music-hall como novo pico de carreira. Para atingir este objetivo, Montand teve de reunir várias condições: constituir uma equipe sólida em redor dele, construir o seu tour de chant sem repetir-se nem decepcionar, coordenar arranjos musicais, encenação e iluminação e, sobretudo, imaginar o recital como globalidade. Montand esgota os seus músicos em ensaios para superar a sua angústia. Vem de muito baixo na escala social e subiu tão alto, que não pode cair. Ele mesmo se explica sobre isso: 47 Para o music-hall, o recital é a fórmula que mais me convém... é uma grande batalha solitária... A preparação individual de cada canção é importante, mas o lugar que ela ocupa no programa também é. Há uma progressão, um aumento de intensidade a ser dosada. Há escalas a arrumar, os indispensáveis minutos de abrandamento e de descanso... é preciso banhar todas as canções na luz de dois ou três temas próximos sem contudo cair na monotonia. A encenação, a iluminação, enfim o acompanhamento musical, somente se encaminham para a perfeição após numerosos e contraditórios ensaios...16 Um sucesso absoluto A sua carreira na canção praticamente não conhece eclipse. O seu estilo seduz, a sua voz deslumbra. Inaugura o classicismo nas canções e eleva o gênero ao nível das outras expressões artísticas. Diversas razões podem explicar o seu sucesso: Montand é jovem, mas, sobretudo, exprime a juventude com uma convicção e um dinamismo espantosos. É natural, não posa, está no palco como se estivesse na cidade; é o amigo, o camarada, o grande irmão, um homem simples oriundo do povo. Não pára de fazer progressos constantes e as críticas reconhecem as suas melhorias. Se não inventa nenhuma mudança artística, primeiro por intuição e depois por experiência, compreende o que toca o público. Escolhe misturar os gêneros e consegue facilmente aceitação do público. Montand é, sobretudo, um modelo de coragem, de vontade e de dignidade, que continua a atuar apesar da hostilidade visceral dos seus 16 Cf. Du soleil plein la tête, Op. cit. “Pour le music-hall, le récital est la formule qui me convient le mieux… c’est une grande bagarre solitaire… La préparation particulière de chaque chanson est importante, mais la place qu’elle occupe dans le programme ne l’est pas moins. Il y a une progression, une augmentation d’intensité à doser. Il y a les escales à ménager, les indispensables minutes de relâchement et de détente… il faut baigner toutes les chansons dans la lumière de deux ou trois thèmes voisins sans toutefois verser dans la monotonie. La mise en scène, les lumières, l’accompagnement enfin, ne s’acheminent vers la perfection qu’après des répétitions nombreuses et contradictoires“. 48 detratores. Quando um grupo de fascistas instala-se ruidosamente na primeira fila para sabotar o seu tour de chant, continua a cantar, impassível e seguro. Apresenta reações sensíveis, maduras, perante qualquer censura, quer seja ela moral (em relação às canções julgadas desmobilizantes ou eróticas demais, pelo aparelho comunista), ou política, já que por ocasião da proposta que lhe é feita de cantar na Ópera de Paris se compromete a retirar Quand un soldat do seu tour de chant. Enquanto isso, vários títulos dos seus discos são proibidos de serem veiculados pela rádio nacional. Vemos melhor então porque Montand é colocado de fato no meio dos desafios da sociedade e das contradições da profissão. O traje cotidiano e a ruptura com a tradição No início de 1944, Montand imagina um traje de cena inédito duma ousadia inconcebível: camisa e calça de cor castanha, com a gola aberta. O traje é absolutamente banal e, portanto, revolucionário. Não conhecemos nenhum exemplo de artista famoso que até essa data tenha tido a idéia de apresentar-se no palco numa postura tão simples e desenvolta, com tal aprumo. Note-se que para certas canções – concessão ou piscar de olho dirigido aos gloriosos velhos? –, Montand terá recursos na bengala e na cartola... Pelo seu estilo viril – contudo nunca machista –, Montand opõe-se radicalmente aos cantores e cantoras românticos, velha tradição cançonetista, que predominou no período da Ocupação Alemã. O amor que canta é real, carnal, marcado de uma grande sensualidade e não deve nada às fotonovelas nem à paraliteratura cor-de-rosa. Outro registro distintivo: o frescor, a naturalidade, a autenticidade de Montand são o oposto das artimanhas dos profissionais do palco. Os encontros férteis A sua arte maior talvez tenha sido deixar-se impregnar pelos outros, buscando neles os elementos de reflexão e as práticas profissionais mais adaptadas ao seu projeto criador. Com Édith Piaf, adquire a alma da canção 49 popular mais crua. Comentaristas às vezes emitiram a idéia – errada – segundo a qual Montand lhe devia tudo; basta constatar que é o único dos protegidos de Piaf que realizou uma verdadeira carreira. O poeta Jacques Prévert transmite-lhe o gosto da poesia e apresenta-lhe a sua rede de relações amigáveis: Signoret, Crolla, e o autor que vai mais influenciar a sua carreira: Francis Lemarque. Filho da Paris popular, este se torna o seu letrista predileto porque é ele que sabe melhor traduzir em canções o que ele, o homem Montand, sente por instinto. Simone Signoret, a sua mulher, culta, moderna e talentosa, o introduz nos meios intelectuais. Para além de uma cumplicidade sem falha, traz-lhe o sentido da reflexão. Os dois formam o casal perfeito, são o símbolo da juventude, do sucesso e do engajamento social. Mas é sempre Montand que é posto adiante; o casal funciona devido à sua projeção. 4. Do político e do artístico: a irrupção da política no music-hall Quando, entre Janeiro de 1951 e Maio de 1953, Yves Montand inclui no seu repertório umas canções que testemunham suas convicções: C’est à l’aube, Actualités, Flamenco de Paris, Quand un soldat, Rendez-vous avec la liberté e Le Chemin des oliviers, ele simboliza uma recusa: a rejeição da guerra fria, das guerras coloniais e do ostracismo, do qual os comunistas consideram-se as vítimas. No entanto, a escuta atenta destes títulos não nos autoriza de modo algum a associá-las à categoria de canções políticas no sentido estrito. Efetivamente, nenhuma situação, denúncia, nem crítica precisa, é formulada nas canções; por outro lado, emana delas uma exaltação lírica voltada para um futuro melhor: os famosos amanhãs que cantam...17 Cantadas por outro cantor, teriam continuado a ser provavelmente confidenciais; no entanto, estas seis canções e dois poemas de Jacques Prévert 17 Parafraseando a fórmula famosa utilizada por um líder comunista, Paul Vaillant-Couturier, na sua canção Jeunesse, música de Arthur Honegger (1937) : “Nous sommes la jeunesse ardente… / Nous bâtirons un lendemain qui chante”. 50 vão cristalizar o impulso ou a repulsão, até que seja proibida sua veiculação nas estações de rádio do Estado; a mesma coisa que ocorreu com o álbum 30 cm Chansons populaires de France, um disco que reúne uma coletânea de canções dos séculos passados e alguns títulos contemporâneos de tonalidade progressista. Um conjunto de sentidos externos (guerras colonialistas, política interna, censura estatal) converge sobre um repertório bastante moderado, no qual procurava-se em vão os escritos-bombas denunciados. Dois trechos proibidos, significativos, ilustram estes fatos. Um deles está na canção C´est à l´aube, de F. Monod e Philippe-Gérard, de 1951: Mais à l’aube, mais à l’aube / Renaissent tous les espoirs / Et l’amour des grands départs / Vers les mondes de l’espoir… (Mas na alvorada, mas na alvorada / Renascem todas as esperanças / E o amor das grandes partidas / Para os mundos da esperança...) O outro trecho encontra-se na canção Rendez-vous avec la liberté, composta por G. Renaud e Philippe-Gérard em 1952: Ici j’ai rendez-vous / Avec la liberté et pour elle / On est prêt à mourir debout… / L’espoir des foules / Et leur grand cœur… / Les âmes fortes / Qui croient toujours / Et encore / Aux lendemains qui chantent / Dans l’aurore… (Aqui tenho um encontro/Com a liberdade e para ela / Estamos preparados para morrer em pé... / A esperança das multidões/ E o seu grande coração... / As almas fortes/Que crêem sempre/E ainda / Aos dias vindouros que cantam/Na aurora...) O discurso de Montand Numa entrevista concedida ao jornal Paris-Matin, em 8 de Outubro de 1946, na ocasião da sua primeira atuação como estrela, Montand declara ingenuamente: Acredito muito que a canção seja o espelho da época. E, como li em algum lugar: ‘frequentemente foi o grito agudo da atualidade’. É por isso que tento traduzir as alegrias e as dores do nosso tempo e tocar a sensibilidade do espectador com os meios que a natureza me confiou (...) o público não reage mais da mesma maneira que em 1939 (...) é preciso, em alguns momentos, recorrer à brutalidade para conseguir 51 diverti-lo ou comovê-lo (...) Quase todos os intérpretes populares da canção vêm do povo e conheceram a miséria (...) é preciso ter sofrido para comover e partilhar a sua alegria de viver (...). Gosto da canção e adoro que Léon-Paul Fargue diga sobre ela: ‘Eu a vejo como uma manifestação do sentimento, mais real talvez e mais pungente que o romance, o poema, a ópera, a pintura ou o monumento’. “Je crois fortement que la chanson est le reflet de l’époque. Et comme je l’ai lu quelque part : ‘Elle a souvent été le cri perçant de l’actualité’. C’est pourquoi j’essaie de traduire les joies et les douleurs de notre temps et d’agir sur la sensibilité du spectateur avec les moyens que la nature m’a confiés (…) le public ne réagit plus de la même façon qu’en 1939 (…) Il faut, pour l’amuser ou l’émouvoir, employer par instants la manière forte. (…) Presque tous les interprètes populaires de la chanson viennent du peuple et ont connu la misère (…) Il faut avoir souffert pour émouvoir et faire partager sa joie de vivre (…) J’aime la chanson et j’adore que Léon-Paul Fargue dise d’elle : ‘Je la tiens pour une manifestation du sentiment, plus réelle peut-être et plus déchirante que le roman, le poème, l’opéra, la fresque ou le monument’.” Neste extrato, são apresentadas as grandes idéias do raciocínio de Montand: teoria intuitiva e enobrecimento do gênero das canções, concepção inédita do palco, destino social extraordinário compartilhado com os outros monstros sagrados – subentendido: ele também se considerava um –, e reivindicação de um vínculo orgânico com o social. Um artista na tormenta Uma constatação impõe-se: Montand é paradoxalmente um cantor a histórico. De fato, nenhum personagem ou acontecimento é mencionado com precisão nas suas canções; só o conhecimento do contexto permite-nos eventualmente datá-las. Note-se, no entanto, que a revolta afetiva e o apelo à consciência humanista, que definem o Montand da primeira fase, terão tendência para acentuarem-se e, progressivamente, deslocarem-se sobre um outro eixo de pertinência, aquele da expressão poética. Posteriormente, quanto mais o personagem público Montand afirma-se no campo político, menos as suas canções terão missão de testemunhar isso. 52 Para ele, tudo se orienta de acordo com uma simples equação que justifica o seu próprio sucesso social: TRABALHO + FIDELIDADE ÀS ORIGENS = SUCESSO PROFISSIONAL. Sabese, além disso, que Montand sempre foi sensível à opinião dos outros e que, em toda a sua vida sentiu necessidade de justificar-se – uma preocupação estranhamente compartilhada por Simone Signoret. Um destino dividido entre o papel de porta-voz e o de saltimbanco Não há nenhuma dúvida de que Montand, pelo menos até 1958, foi de certa forma instrumentalizado pelo Partido Comunista, como atestam as suas declarações públicas e assinaturas abaixo das petições. Este processo de recuperação das aspirações mais dedicadas confirma a posição subordinada do campo artístico vinculado à lógica da sociedade que, em última instancia, lhe dá sentido. Após 1957 e a desilusão vivida durante a tournée nos Países do Leste, uma contradição é instaurada entre as duas tendências dominantes do seu repertório, o repertório otimista e o corpus engajado. Vários elementos conjugamse e conduzem à composição, para o recital de 1958-1959, de um repertório “revisado e corrigido” com títulos inéditos, alguns sucessos antigos reciclados ou rearrumados, e, sobretudo, um sentido diferente atribuído ao espetáculo. Montand, que não compartilha mais o ideal comunista, não “pode” mais cantar C’est à l’aube. No momento em que a história social crispa-se e quando o projeto criador do intérprete fica paralisado pela dúvida, a tendência natural do espetáculo, o divertimento, torna-se (novamente) proeminente. Em Junho de 1958, com um depoimento provocante, confiado à La Tribune de Genève, Montand exprime-se: Há coisas que não aceito... Não quero mais ser o porta-voz do quer que seja. Tenho as minhas idéias. Creio em um mundo melhor, creio numa maior fraternidade humana (...); são as minhas opiniões pessoais. Não é o cantor quem está falando aqui, é o homem. Na realidade, somos saltimbancos (...), pertencemos ao público. Não temos opinião... Il y a des choses que je n’accepte pas… Je ne veux plus être le portedrapeau de quoi que ce soit. J’ai mes idées. Je crois à un monde meilleur, je crois à une plus grande fraternité humaine (…) ce sont mes 53 opinions personnelles. Ce n’est pas le chanteur qui parle ici, c’est l’homme. Au reste nous sommes des saltimbanques (…) nous appartenons au public. Nous n’avons pas d’opinion… Após 1959, o estilo Montand perdeu força nos seus registros mais distintivos, que o tornavam único, para centrar-se sobre a profissão do palco, onde gozará sempre de uma imagem de excelência. Será necessário esperar os anos 1962 e 1968 para reencontrar um equilíbrio entre os dois registros, mas agora em benefício de uma concepção mais espetacular. Liberada do conceito da luta de classes, a sua revolta torna-se gradualmente estilizada, intelectualizada. Por outro lado, esta estratégia de manterse ao centro, que guia doravante a sua carreira, não está mais em condições de suscitar o mesmo fervor coletivo de antes. A canção de opinião entre o lirismo utópico e os slogans Os historiadores contabilizaram mais de 6.000 mazarinades, verdadeiros panfletos políticos destinados a vilipendiar o cardeal de Mazarin, que governou a França entre 1642 e 1661. Um instituto alemão avaliou em mais de dez mil o número de canções dedicadas a Che Guevara no ano que seguiu a sua morte. Certos investigadores afirmam que a Guerra Civil estadunidense (1861-1865) deu nascimento a mais de cem mil canções. Quais são conseqüentemente os critérios que distinguem o domínio das canções – encaradas como meios – e a esfera do político – encarado como fim? Sobre este ponto, sugiro dois campos temáticos de noções, ao mesmo tempo distintos e articulados: as canções implicam: cultura popular, oralidade, comunicação, expressão de uma tendência artística, estilo, divertimento, evocação, espontaneidade, leveza, imediatismo, duração efêmera, popularidade, emoções e sentimentos supostamente individuais… E o político implica em: racionalização, reflexão, argumentação, retórica, eficácia, ação, mobilização, projeto de médio e longo prazo, implicação social, organizações, inscrição na história, dimensão coletiva, complexidade e contradições intrínsecas… 54 É preciso reconsiderar as relações entre as canções e sociedades. A dificuldade para analisar a dimensão política do repertório de Montand provém do fato que os vetores políticos não se limitam unicamente às canções de opinião e que numerosos valores com forte teor ideológico (espírito de solidariedade, humanismo, utopia, sectarismo, xenofobia, fatalismo, resignação…) insinuamse, em graus muito variáveis, em todas as produções cantadas. Por outro lado, uma canção de revolta ou de indignação, cantada num quadro confidencial, não é da mesma natureza, nem produz os mesmos efeitos quando é cantada com fervor por uma estrela ao se apresentar num comício. Neste sentido, nenhuma dúvida de que a intolerância, da qual Montand foi vítima, não seja proporcional a sua fama. Entre consolação e recuperação Se a política chega sempre a assimilar, para obter vantagem imediata, as produções culturais, a relação das canções com o campo político permanece, contudo, inscrita numa história social singular e mais precisamente num quadro nacional específico. É por esta razão que a trajetória artística de certos artistas, escorados sobre o social, é interrompida brutalmente, tais como as de Gilles e Julien com o fracasso da Frente Popular na França, em 1937, e a de Geraldo Vandré após o seu regresso ao Brasil, em 1973. Em contrapartida, artistas menos implicados pela conjuntura, como os cantores românticos, puderam sem prejuízo atravessar a seqüência movimentada Années 30/Drôle de guerre/Occupation/Libération na França, ou os diversos períodos de ditadura, na América Latina. Ocorreu muito diferentemente para Georgius e Jean Tranchant, artistas franceses conhecidos, que, após terem cometido fantasias cáusticas antinazistas, tiveram, de repente, de reorientar o seu repertório para torná-lo aceitável no fim de 1940. No entanto, este comportamento oportunista não lhes trouxe nenhuma tranqüilidade, dado que estes dois artistas, muito ativos durante a Ocupação, são levados perante os Comités d’épuration no fim das hostilidades18. 18 Depois da Segunda Guerra mundial, Georgius torna-se autor de romances policiais – sendo editado na “Série Noire” da Gallimard –, enquanto Jean Tranchant, após uma breve estadia em Bruxelas, exila-se na Argentina e no Brasil, paises onde permanece por quinze anos. 55 A este respeito, faço questão de denunciar alguns lugares comuns correntemente utilizados, a fim de qualificar a relação das canções com a história, que me parecem impróprios. As canções não são espelhos passivos da história nem da sociedade, como certos comentaristas defendem; elas não fazem a história, mesmo que um Colóquio tenha sido realizado há alguns anos, na França, sobre este tema19; diversamente, elas só acompanham os movimentos sociais, dos quais são parte componente; as canções não são uma simples emanação do ar do tempo, produto derivado dos costumes e mentalidades de uma época; não são mais que um sinal premonitório das mutações sociais, como Jacques Attali sugeriu no seu “Ensaio sobre a economia política da música”, quando apresentava aquelas “…como anúncio da sociedade” ou “…metáfora crível do real”20. As canções não são tampouco testemunhas da história como o título de um fascinante programa de Marc Dumont na Rádio-Bleue21 tentava fazer-nos acreditar. Caso seja preciso propor uma formulação adaptada, direi, parafraseando uma fórmula de Confúcio22, que as canções afirmam-se como uma expressão artística que, mais que outras, explica as nossas sociedades. Considerações finais: uma relação social e um revelador eminente De fato, muitos exemplos desenvolvidos nas minhas investigações precedentes (Música dos Anos 30, Chico Buarque…) vêm confirmar a minha hipótese inicial segundo a qual as canções são efetivamente construções sociais antes de serem uma manifestação literária, musical, performativa ou estética. Assim, sou levado a considerar que as canções são fundamentalmente expressões de uma relação social que se realiza na articulação do idealizado com o real. Faço referência ao Colóquio internacional “Le chant, acteur de l’histoire” realizado em Setembro de 1998, em Rennes 2, França. 20 Jacques Attali, Bruits, P.U.F., Paris, 1978. 21 Trata-se do Programa “Chanson-témoin”, apresentado de 1985 até 2000 na Radio-Bleue pelo historiador e musicólogo Marc Dumont. 22 Faço alusão a esta máxima enunciada por Confúcio, filósofo do mundo antigo, no século V antes de J. C.: “Digam-me o que o povo canta e direi a vocês qual é a sua moral e como é governado.” 19 56 Uma outra decorrência destas investigações é a idéia de que o sentido das canções não se encontra nem dentro das canções nem nas suas formas, mas constrói-se e atualiza-se como a resultante de uma corrente semiótica implicando as instâncias seguintes: projeto criador, intenção, incorporação, performance, tom, convicção, projeto receptivo-apreciador, acomodação e apropriação. Pelo fato de que as canções exprimem pontos de vista subjetivos que são objeto de recepções contrastadas, elas se impõem como um revelador social privilegiado que se apresenta sob diversos aspectos: - Revelador das sensibilidades individuais e coletivas, quando nos revelam os pensamentos e os pontos de vista dos atores e das instâncias contempladas. - Revelador dos processos identitários, como as canções que exaltam a aspiração nacionalista de um povo, ou os particularismos comportamentais de um grupo social. - Revelador dos desafios da sociedade, quando as lutas pelo poder, entre as classes sociais, exacerbam-se através dos argumentos e valores veiculados nelas. Para concluir sobre esta noção de uma expressão artística ao serviço do povo ou da arte engajada no seu tempo, deixarei a palavra final a Yves Montand mesmo quando, mais de trinta anos após os fatos, recorda-se deste espetáculo com emoção: Este recital de 1953-1954 foi um dos mais completos, porque é baseado nos valores de pessoas da minha geração e, logo, daqueles que a seguem. Valores que então pareciam certos: a linha demarcatória entre o bem e o mal nos parece traçada. O meu repertório não é político, mas aproveita deste calor comum, absorve-o e o devolve. Acontece que a maior parte dos textos foge ao estilo molengão de esquerda, e um fôlego real o atravessa...23 23 Hervé Hamon et Patrick Rotman, Op. cit.«Ce récital de 1953-1954 a été l’un des plus accomplis parce qu’il est porté par les valeurs des gens de ma génération et, déjà, de ceux qui la suivent. Des valeurs qui alors paraissent sûres : la ligne de démarcation entre le bien et le mal nous semble tracée. Mon répertoire n’est pas “politique”, mais il profite de cette chaleur commune, il l’absorbe et la renvoie. Il se trouve que la plupart des textes échappent au style “gnan-gnan” de gauche, qu’un souffle réel les traverse...» 57 Anexos 1. Discografia e DVDs dos recitais de Yves Montand gravados ao vivo: “Théâtre de l’Étoile – récital Yves Montand” (Récital 1953-1954), Columbia/Sony Music, double CD 471021-2, (reedição do álbum duplo original de 1953), 1992. “Récital Yves Montand – enregistré en public au Théâtre de l’Étoile en 1958", Phonogram, double CD 510 963/64-2 (reedição dos dois álbuns originais de 1959), 1994. “Récital 63”, enregistrement au Théâtre de l’Étoile le 15 novembre 1962, Philips, double album 30cm B 77.901/902 L, 1963. (nunca reeditado em CD) “Yves Montand, dans son dernier one man show intégral” (Versão integral do recital 1968 ; reedição do álbum duplo original de 1972), Columbia/Sony Music, double CD 471022-2, 1992. “Yves Montand – Olympia 81, Intégrale”, Mercury-Universal, duplo CD B584290, 2004. “Montand de tous les temps – 40 ans de carrière” (caixa de 3 DVDs), TF1 VIDEO 13321, 2001. “Montand International – La Solitude du chanteur de fond”, Mercury/ Universal, DVD 984 337 4, 2006. 2. Bibliografia Cannavo, Richard et Quiqueré, Henri. Yves Montand, Le chant d’un homme. Ed. Robert Laffont, Paris, 1981. Hamon, Hervé e Rotman, Patrick. Tu vois, je n’ai pas oublié. Éd. du Seuil et Éd. Fayard, Paris, 1990. 58 Lemarque, Francis. J’ai la mémoire qui chante. Presses de la Cité, Paris, 1992. Marcadet, Christian. “La matrice explicative des faits chanson – le cas Yves Montand”, in Actes du colloque Le chant acteur de l’histoire, Presses Universitaires de Rennes, Rennes (France), 1999. Marcadet, Christian. “Un chanteur populaire : Yves Montand”, in Sociétés et représentations, n° 8, CREDHESS-Université Paris 1, 2000. Mégret, Christian. Yves Montand. Éd. Calmann-Lévy, collection Masques et Visages, Paris, 1953. Montand, Yves. Du soleil plein la tête, souvenirs recueillis par Jean Denys. Éditeurs Français Réunis, Paris, 1955. Montserrat, Joëlle. Yves Montand. Ed. P.A.C, Paris, 1983. Semprun, Jorge. Montand, la vie continue. Ed. Denoël, Paris, 1983. Signoret, Simone. La nostalgie n’est plus ce qu’elle était. Le Seuil, Paris, 1975. Documentos Dossier “ Yves Montand : biographie, carrière ”, disponível em microfichas no Département des Arts du spectacle de la Bibliothèque Nationale de France (Paris), cotes ASP 8° SW– P 89 695, 696 et 899. “Le choc Montand”, Le Crapouillot, nouvelle série n° 74, mars 1984. “Montand chanteur”, “Dossier à la Une”, Paroles et Musique n° 48, éditions de l’Araucaria, mars 1985. 3. Programa do Recital no Théâtre de l’Étoile 1953-1954 introdução orquestral: After you’ve gone (Creamer / Layton) /Du soleil plein la tête 59 1. La Ballade de Paris (Francis Lemarque / Bob Castella) 2. Premiers pas [Les p’tits gars, les p’tites filles du dimanche] (Jacques Verrières / Marc Heyral) 3. Quand un soldat (Francis Lemarque) 4. Une demoiselle sur une balançoire (Jean Nohain / Mireille) 5. Il a fallu (Michel Vaucaire / Pierre Arvay) 6. Les Saltimbanques (G. Apollinaire / Louis Bessières) 7. Gilet rayé (Henri Contet / Louiguy) 8. Car je t’aime (Henri Crolla) 9. Flamenco de Paris (Léo Ferré) 10. Il fait des… (Édith Piaf / Édouard Chekler) 11. Le Peintre, la pomme et Picasso (poème de Jacques Prévert) 12. Sanguine [Joli fruit] (J. Prévert / Henri Crolla) 13. Du soleil plein la tête (A. Hornez / Henri Crolla) intervalo introdução orquestral: Tea for two / Sometimes I’m happy / Hallelujah / Du soleil plein la tête 1. Toi tu n’ ressembles à personne (Francis Lemarque) 2. Le Chemin des oliviers (Francis Lemarque) 3. Les Routiers (Francis Lemarque) 60 4. Donne-moi des sous (A.-M. Cazalis / Henri Crolla) 5. Les Cireurs de souliers de Broadway (Jacques Prévert / Henri Crolla) 6. Dis-moi Jo (Jean Cosmos / Henri Crolla) 7. Le Chef d’orchestre est amoureux (Jacques Mareuil / Georges Lieferman) Capa do álbum vinil duplo original Odéon-France de 1953 8. C’est à l’aube (Flavien Monod / Philippe-Gérard) 9. Barbara (poème de Jacques Prévert) 10. À Paris (Francis Lemarque) 11. Les Feuilles mortes (J. Prévert / J. Kosma) 12. C’est si bon (André Hornez / Henri Betti) Em 1951, uma atitude característica do cantor mostrando a sua força de convicção 61 DE FÉLIX MAYOL A NEY MATTOGROSSO ou SEXUALIDADE E PERFORMANCE NA INTERPRETAÇÃO DE CANÇÕES Christian Marcadet Malheureux celui qui vit esclave infâme Sous une femme hommasse et sous un homme femme! Desgraçado seja aquele que vive como escravo infame Debaixo de uma mulher macho e debaixo de um homem afeminado!)24 [Agrippa d’Aubigné, Les Tragiques, Princes] […] cela n’aurait aucun sens, phénoménologiquement, de se demander s’il y aurait, par exemple, une écriture masculine ou une écriture féminine, et pas davantage un sens de se demander s’il y aurait une réception masculine ou une réception féminine, phénoménologiquement. ... não teria nenhum sentido, fenomenologicamente, interrogar-se se haveria, por exemplo, uma escrita masculina ou uma escrita feminina, e não mais sentido interrogar-se se haveria uma recepção masculina ou uma recepção feminina, fenomenologicamente. [Georges Molinié, Sémiostylistique] Apresento essas duas citações em preâmbulo para indicar o tom deste artigo, e ainda duas questões: como a escolha de vida homossexual é percebida no mundo social e estético das canções, e, existe a possibilidade de identificá-la com base em processos artísticos? 24 Salvo quando indicado, as traduções das várias citações foram feitas pelo autor deste artigo. 62 Ambigüidades e implicações dos fatos-canção relativos às homossexualidades Preparando esta reflexão a propósito dos fatos-canção 25 relativos à homossexualidade, parti do princípio de que tal investigação podia ser realizada apenas estudando materiais concretos, em termos de repertórios, inventores e situações de enunciação. A homossexualidade incomoda porque instaura a confusão social e mental. Social, no sentido de que perturba um equilíbrio “natural” que, a partir da origem dos tempos, impôs-se como ordem social. Mental, porque abre um espaço para a dúvida, o que impede que confiemos apenas nas aparências. Além disso, este tema da confusão dos sexos ocupou muito tempo o espírito de certos letristas atraídos por este assunto, desde as obras de fantasia do café-concerto francês do tipo C’était une fille et Femme et z’homme, no início dos anos 20 do século passado, ao mais inquietante Maskulinum - Femininum alemão26, cujo fruto desta união fora das normas, entre uma mulher macho e um homem efeminado, seria uma criança hermafrodita chamada “Neutra” (“einen kleinen Hermaphrodit! / Já, já, ein neutrales Neutrum...”): Maskulinum – Femininum (Masculino – Feminino) [Marcellus Schiffer - Mischa Spoliansky / 1923 ; gravação Ute Lemper / 1996] Ich vertrau dir etwas ganz intern! Du bist Femininum, doch sehr maskulinum, Ich bin Maskulinum doch sehr femininum. So ein Maskulinum und ein Femininum Por fato-canção, entendo qualquer conjunto semiótico que abrange os processos criativos, performativos e receptivos, de qualquer ordem que seja (artística, social, histórica, ética, comportamental), em relação direta com o domínio das canções. 26 Maiores informações sobre os títulos citados: C’était une fille (C. Abadie et F. Pearly - G. Gabaroche et F. Pearly), gravado por Maurice Chevalier, em 1920 ; Femme et z’ homme (R. Myra et M. Bertal - G. Gabaroche et F. Pearly), registrado por Nibor, em 1920 ; Maskulinum – Femininum (M. Fischer - M. Spoliansky), criada em 1923, sem gravação até aquela de Ute Lemper em 1996 – tradução Decca et Christian Marcadet. 25 63 die sind heutzutage streng modern! Darum liebes Femininum, sei mein Maskulinum ich dein Femininum… Confio-lhe algo que deve permanecer entre nós!: És uma mulher, mas um tanto masculina, Sou um homem, mas um tanto feminino. Tal homem e tal mulher são muito modernos hoje em dia! Pois, querida mulher, seja o meu homem e serei a tua mulher… Outra canção a colocar em pauta a questão foi um calypso sugestivo que, nos anos 50, já evocava, através de uma noticia polêmica do momento27, a questão da transexualidade de maneira humorística: Is she is, or is she ain’t? (Ela é, ou ela não é?) [Louis Eugene Walcott aliás The Charmer / 1953-54] I am trying to find a solution For that certain person (bis) With this modern surgery, they changed him from he to she. But behind that lipstick, rogue and paint, I got to know is she is, or is she ain’t? Estou tentando encontrar uma solução No que se refere a uma certa pessoa Com esta cirurgia moderna Transformaram-no de ele para ela. Mas atrás deste batom vermelho, este rosto safado e esta maquilagem, Gostaria de saber se ela é ou não é? 27 Esta canção, Is she is, or is she ain’ t?, relatava o acontecimento, em 1952, da operação cirúrgica – muito midiatizada – de mudança de sexo, sofrida na Dinamarca por um fotógrafo nova-iorquino, George Jorgensen, que se tornou imediatamente assunto de curiosidade e de escândalo para a imprensa sensacionalista. Jorgensen foi convidado(a) algum tempo a atuar em muitos programas e eventos envolvendo conversas sobre temas do momento; participou também em várias reportagens fotográficas e mesmo tentou atuar como cantor no circuito das boates, com títulos do tipo I Enjoy Being a Girl and Bewitched, Bothered and Bewildered. 64 Cabe lembrar também o venenoso e decadente Senhor Vénus de Pierre Philippe, musicado e interpretado por Juliette, nos anos 90: Monsieur Vénus (Senhor Venus) [Pierre Philippe - Juliette Noureddine ; gravação Juliette / 1993] […] Je ne suis pas un monstre mais une fille douce Que le désir des hommes jamais n’intéressa Je voulais être un autre et toi, vice-versa, Tu avais tout l’attrait des belles garces rousses […] Échangeant nos deux rôles dans notre mise-en-scène À toi la bouche peinte et les seins maquillés Les longues pâmoisons dans les blancs oreillers J’avais, moi, la cravache et les ordres obscènes… [...] Não sou um monstro mas uma moça delicada Que o desejo dos homens jamais atraiu Queria ser um outro e você, vice-versa, Tinhas todo o atrativo das belas ruivas descaradas [...] Trocando nossos dois papéis em nossa encenação Para ti a boca pintada e os seios postiços Os longos gozos sobre os brancos travesseiros Enquanto tinha, eu, o chicote e as ordens obscenas... Sabemos que a posição do homossexual, em nossas sociedades, é definida em relação a uma norma que é a heterossexualidade – ou sexualidade mista entre os gêneros, para adotar a feliz formulação da mixité segundo Sylviane Agacinski28. Portanto, como abordar esta diferença? Basta distinguir sexualidade de reprodução? A sexualidade estaria relacionada ao ato, às pulsões, às proibições (em termos de cultura) e a reprodução voltada para a lei biológica da continuidade da espécie, enquanto natureza? Um extrato de uma canção alemã do pós-guerra 1914-1918 ilustra esta problemática, apesar de invertê-la: 28 Agacinski, Sylviane, Politique des sexes,“Mise au point sur la mixité, préface à la deuxième édition”, Seuil, Paris, 2001. 65 Das Lila Lied (A Canção lilás) 29 [K. Schwabach - M. Spoliansky alias A. Billing / 1921] […] Ist das Kultur daß jeder Mensch verpönt ist, der klug und gut, jedoch mit Blut von eig’ner Art durchströmt ist, daß g’rade die Kategorie vor dem Gesetz verbannt ist, die im Gefühl bei Lust und Spiel und in der Art verwandt ist? Und dennoch sind die Meisten stolz, daß sie von ander’m Holz! Wir sind nun einmal anders als die Andern, die nur im Gleichschritt der Moral geliebt… Wir lieben nur die lila Nacht, die schwül ist, weil wir ja anders als die Andern sind. Wir, hört geschwind, sind wie wir sind… [...] É cultural Rejeitar todo aquele que é inteligente e bom mas de um sangue diferente e fazer proscrever pela lei seres de uma espécie particular, vinculados entre si pelos sentimentos, pelo gozo, o jogo e a natureza? E no entanto, a maior parte se orgulha De ser de uma outra madeira! Somos diferentes dos outros Que somente gostam do passo cadenciado da moral, [... ] Nós gostamos apenas da noite lilás, que é asfixiante (schwül)30 Porque nós somos diferentes dos outros. [... ] saibam disso, somos assim como somos... Muito tempo semiclandestina, esta canção emblemática foi registrada inteiramente – na sua versão alemã –, apenas em 1996, por Ute Lemper sobre o CD Berlim cabaret songs, álbum que pode-se considerar como uma obra-prima. 30 Jogo de palavras intraduzível entre schwül (asfixiante) e schwul (homossexual). Recordemos que a cor lilás, evocada nesta canção, era um sinal identitário codificado indicando a tendência homossexual na Alemanha. 29 66 Nas profissões artísticas, o travesti, masculino ou feminino, e as atitudes comportamentais ambíguas já são de larga ocorrência. Nestes meios sociais, de jeito nenhum a homossexualidade é relegada a uma posição marginal, o que se confirma, pela existência, dentre outros, de sumidades da literatura (Marcel Proust, Marguerite Yourcenar, Jean Genet), da dança (Barbette, Rudolph Nureyev), da música (Maurice Ravel, Leonard Bernstein e Benjamin Britten, que, apesar de discriminado, tornou-se Lord) e dos espetáculos de variedades (Henri Varna, o onipotente diretor do Casino de Paris, Suzy Solidor, Charles Trenet). Podemos, com segurança, afirmar que esta população é sobrerepresentada no campo do espetáculo. No entanto, a definição da homossexualidade é imprecisa. Onde começa? No desejo, no ato, como prática ocasional ou regular? E o que dizer das sexualidades qualificadas de bissexuais, como aquela celebrada por Margo Lion e Marlene Dietrich em Wenn die beste Freundin, numa canção que exalta a cumplicidade de duas amigas mais que íntimas e do seu “amigo” homem? Wenn die beste Freundin (Quando a melhor amiga) [Marcellus Schiffer - Mischa Spolianski / 1928 ; gravaçao por Marlene Dietrich, Margo Lion e Oskar Karlweis] - […] Wie wir uns beide gut zusammen vertragen! - Es ist kaum noch auszuhalten, wie gut wir beide uns vertragen, nur mit einem vertrage ich mich noch so gut mit meinem süßen kleinen Mann. […] - Dein kleiner Mann ist aber aufdringlich! - Warum? - Na, ich finde […] Er macht solche Sachen... - Nanu ... Na gut, vertragen wir uns! (Küsse) - Na gut, vertragen wir uns! (Küsse) – [... ] como nos entendemos bem uma com a outra! – É dificilmente imaginável como podemos nos entender tão bem, 67 só com uma pessoa poderia entender-me igualmente, com o meu delicado pequeno homem. – [... ] Teu pequeno homem é no entanto inoportuno! – Por que? – Bem... acho... [... ] ele faz destas coisas... – Pois é... tudo bem, entendemo-nos! (beijos) – Bom, entendemo-nos (beijos)” É muito mais pertinente falar das homossexualidades em termos de engajamento pessoal e de práticas e apreendê-las por meio do pensamento gradual (Georges Molinié), sem cair no maniqueísmo do certo ou errado, sem usar classificações com base apenas em extremos opostos. O tema das homossexualidades excita a curiosidade e muitas vezes exala um perfume inebriante de escândalo e de morbidade. A publicidade feita, nos anos 30, sobre os assassinatos devassos de Oscar Dufrenne, famoso diretor do music-hall Palace, e do cantor colegial, Lyjo31, como os mexericos a propósito dos jeitos particulares de Mayol e as disputas judiciais de Ray Bourbon e de Charles Trenet, são todos preciosos sinais da notoriedade e atração constante do tema. Já nos anos 50, um álbum de 25 cm, com a gravação de textos recitados sob o título Lesbos, antologia poética do amor feminino, com a vedete Suzy Solidor, era publicado na França pela marca Pacific. Desde então, diversos espetáculos e álbuns inteiros foram produzidos sobre este tema na França, na Alemanha, Grã-Bretanha e EUA, como podemos verificar nos sítios da Internet dedicados às atividades musicais da comunidade homossexual32. Nos anos 30, Lyjo, cantor conhecido pelas suas canções indecentes, torna-se também organizador de várias obras beneficentes a serviço dos artistas carentes e da infância desfavorecida. 32 Listamos aqui alguns destes sítios especializados, na maioria anglo-saxões: Queer Music Heritage <http:/ /www.queermusicheritage.us>; The Lesbian and Gay Country Music Association <http://www.lgcma.com> ; GALA. Gay and Lesbian Association of Choruses <http://www.galachoruses.org> ; GLAMA. Gay/ Lesbian American Music Awards <http://www.glama.com> ; Queer Music Heritage <http:// www.queermusicheritage.com> ; Music Resources for the LGBT Community -Database of Lesbian & Gay artists <http://www.queertheory.com> . 31 68 Um espetáculo piano-voz, “Comme ils chantent…, Florilège de chansons gay”33 – cópia maliciosa do Comme ils disent de Charles Aznavour, título que marcou uma virada decisiva no reconhecimento do fato social homossexual –, esforçou-se para ilustrar a homossexualidade na canção francesa. Observação incidente: o corpus relativo a este tema parece nitidamente mais rico do lado masculino. Seria mais fácil para um homem declarar-se homossexual? Isso seria mais subversivo ou mais difamatório para uma mulher, cuja “função natural” seria assegurar a reprodução? A reivindicação de uma sexualidade liberada e plural emerge novamente no final dos anos 60 especialmente com a divulgação das obras de Wilhelm Reich (A Revolução sexual) e Herbert Marcuse (Eros e civilização), os primeiros escritos de Michel Foucault (Les Mots et les choses) e o grande movimento de idéias, que prefigura e seguidamente acompanha o Movimento de Maio de 68. Escrito e cantado em 1963, o provocador e premonitório Dieu que les hommes sont méchantes34, texto pouco conhecido de Serge Gainsbourg, defendia esta posição libertária: Dieu que les hommes sont méchantes (Nossa, como os homens são mal-educadas) [Serge Gainsbourg / 1963] De longs regards / Sur qui me tente Tous les beaux-arts / En dilettante Un beau cycliste passera / Et me prendra […] Dieu que les hom- / Mes sont méchantes J’aime aimer com- / Me ça me chante Et quand cela me passera / Ça vous prendra… Preparado em Junho de 2001, sob a direcção de Jean-Philippe Maran, “Comme ils chantent” era interpretado pelo jovem artista Benoît Romain no dancing parisiense Le Tango. Ultimamente, uma remontagem deste espetáculo, rebatizado “Chantons dans le placard” e apresentado sob forma de comédia musical e teatral escrita por Michel Heim, foi realizada em março de 2006, outra vez no Tango, desta vez com três atores-cantores. 34 Cf. Serge Gainsbourg, 1963 - Théâtre des Capucines, CD Philips 077 272-2, Mercury France, 2003. 33 69 Longos olhares / Sobre quem me tenta Todas as Belas Artes / como diletante Um bonito ciclista passará / e me conquistará [...] Nossa, como os Ho- / Mens são mal-educadas Gosto de amar co- / Mo me agrada E quando isto passar / Isso fará você se tocar... Esta reflexão sobre a diferença e a alteridade articula-se com a concepção de um subconjunto social homossexual produzindo uma ideologia e valores próprios que teriam preeminência sobre a pertença social (cultura de classe), a ancoragem nacional ou regional (enquanto vetor identitário) e a abordagem segundo a geração (grupos etários). Podemos acrescentar, além disso, que, com o desenvolvimento do movimento homossexual e sua tendência a constituir-se como um campo social específico, este se tornou também uma atividade econômica, com sua imprensa especializada, seus lugares, suas organizações, oficiais e oficiosas, seus empregos, lazeres singulares e, por que não, espetáculos identitários. Das representações à performance Exceto o livreto do CD Chansons interlopes35, redigido por Martin Pénet, que propõe um histórico das canções francesas ligadas à homossexualidade e uma primeira tentativa de caracterização, poucas obras aprofundam este tema, que continua a ser freqüentemente reduzido a um parágrafo, imerso no capítulo sobre as canções de amor ou naquele relativo aos fatos de sociedade. Aprofundando o assunto, Pénet fez uma comunicação publicada nos Anais de uma Jornada de Estudos consagrada às implicações sociais e estéticas dos gêneros feminino e masculino nas músicas populares36. O autor mostra-nos como as representações do tema e o olhar social sobre a comunidade 35 36 Pénet, Martin, Chansons Interlopes, 1908-1936, CD Les Gais-musettes LGM 1, 1997, p.225. Pénet, Martin, “L’homosexualité dans les chansons du 20ème siècle : Historique des représentations”, in Anais da Jornada “Le féminin, le masculin et la musique populaire d’aujourd’hui“ do Observatoire Musical Français / Université de Paris-Sorbonne (Paris IV), 4 de Marco de 2003, série Jazz, chanson, musiques populaires actuelles, n°1, Paris, 2005, p. 53-65. 70 homossexual evoluíram, na França. Essa evolução vai desde a exclusão social (arsenal jurídico e denúncia de um desvio comportamental) e os tradicionais sarcasmos (os estribilhos da tradição obscena e as sátiras dos chansonniers de Montmartre), até uma visão exótica da homossexualidade com os seus estereótipos (cf. “La Cage aux folles”) ou seus lugares comuns (cf. Comme ils disent), que visam banalizar uma alteridade que incomoda. Mais recentemente, verificou-se a afirmação de uma diferença irredutível (com o FHAR37) e o desejo de legitimação via Pacs38. Ou seja, em resumo, passa-se do gueto clandestino a uma aparente banalização social. Boze Hadleigh, militante homossexual estadunidense, especialista nas artes do espetáculo, aborda a questão em Sing out, Gays and lesbians in the music world39, mas ele o faz sob um ângulo midiático e comportamental. Dedicase a criticar a ideologia dominante – aos seus olhos, hipócrita –, propagada na sociedade e no mundo do espetáculo, que, segundo ele, oprimiria as minorias sexuais e negaria até a sua existência. Para este autor, “… no showbiz, o Grande Rumor é a questão da homossexualidade”. Hadleigh, em reação, sugere aos cantores implicados que se aproveitem da tribuna do palco para quebrar o muro do silêncio e da exclusão; fazendo assim progredir a causa homossexual, rejeitando ao mesmo tempo as canções transexualisadas, aquelas cujo gênero dos personagens foi invertido para parecer normativamente correto, assim como os casamentos arranjados e as biografias sem informações verídicas, porque foram julgadas escabrosas e foram expurgadas pelos editores. Em sua opinião o cantor, que dispõe de maior liberdade que os atores de Hollywood, onde as implicações econômicas são fora do comum, é, por essência, mais sincero porque desempenha o seu próprio papel, e, com respeito a isso, lhe é atribuída uma responsabilidade social. FHAR : “Front homosexuel d’action révolutionnaire”, movimento ativista radical fundado em 1971. Pacs : “Pacte civil de solidarité”, estatuto elaborado na França para os casais não juridicamente casados – incluindo de fato os homossexuais –, votado em quarta leitura na Assembléia Nacional francesa, em Outubro de 1999. 39 Hadleigh, Boze, Sing out!, Gays and lesbians in the music world, Barricade Books Inc., New-York, 1997. [N. do A.: O título deve ser entendido como “Cantem (sua condição) em voz alta...”]. 37 38 71 Muito a propósito, este autor assinala o dilema que consiste em decidir se tal ou qual canção é ou não conotada no plano homossexual: Even with well known expression, it’s difficult to establish that a particular song is gay-coded. […] If de-coding is difficult, even fairly obvious lyrics sometimes aren’t conscientiously heard or believed, as with Elvis Presley’s ‘Jailhouse Rock’.40 Mesmo no caso de expressões bem conhecidas, é difícil estabelecer se um título específico é homossexualmente codificado [...]. Se a decodificação em si mesmo é difícil, estrofes tão evidentes como aquelas do Jailhouse rock de Elvis Presley, podem muito bem não ser conscientemente compreendidas nem aceitas como tais. Mais recentemente, em fevereiro 2005, Alan Lareau, Professor do Department of Foreign Languages and Literatures da University of Wisconsin Oshkosh e especialista em literatura de língua alemã do século XX, escreveu um artigo que trata desta questão e as suas implicações socioestéticas: “Lavender songs: undermining gender in Weimar cabaret and beyond”41. Neste texto essencialmente consagrado ao período 1918-1933 na Alemanha, Lareau demonstra que, apesar do seu papel provocador e de revelador social de uma sociedade alemã em crise profunda, o cabaré berlinense permanece como um lugar “bourgeois” de distração, que responde de maneira pragmática às regras econômicas tanto quanto às políticas, que determinam os limites e as modalidades de qualquer subversão possível. Neste sentido, ainda que os métodos subversivos usuais tais como a paródia, o duplo sentido, a ironia ou a sutileza e a ambigüidade das enunciações estejam bem presentes, não se deve esperar, entretanto, perturbações ideológicas profundas, na medida em que, para assegurar a sua sobrevivência, o espetáculo deve permanecer espetáculo, the show must go on. 40 41 Hadleigh, ibidem, p. 152-153 [tradução C. Marcadet]. Este artigo de Alan Lareau, cujo título pode traduzir-se como “As canções lilás ou o trabalho de minar os papéis sexuais (gêneros) no cabaré da República de Weimar e mais além”, foi publicado, acompanhado de algumas ilustrações sugestivas, na revista Popular Music & Society, Routledge - Taylor & Francis Group, Volume 28, Number 1/February 2005, pp. 15-33, 2005. 72 Quando, excepcionalmente, uma canção (Das Lila Lied), um acontecimento específico (a revista “Es liegt in der Luft”, em 1928) ou a carreira de um artista singular (Paul O’Montis) perturbam durante algum tempo os códigos morais e comportamentais da sociedade dominante, estes fatos continuam a ser suficientemente isolados, de modo que estas exceções confirmem a regra. Assim, de acordo com Lareau, o cabaré berlinense desta época: […] walked a precarious tightrope, for despite its occasional literary and countercultural ambitions, it was first and foremost a commercial venue dependent on the applause of the paying guests. […] andava sobre uma perigosa corda bamba, porque, apesar das suas eventuais ambições literárias e contraculturais, tratavase primeiro de uma empresa comercial que dependia sobretudo da satisfação e das contas pagas pelos seus clientes. Esta observação confirma a idéia de que a transformação política e ideológica da sociedade – quanto à sua moral estabelecida –, só saberia efetuar-se nos campos sociais e estruturais previstos com este objetivo (partidos políticos, grupos de pressão, massas...) e não nos cabarés nem nos teatros. Portanto, as oportunidades de agitar no palco as idéias e as práticas relativas à sexualidade podiam ocorrer apenas de maneira sutil, nas entrelinhas, e a revolta aparecia mais como experiência teatral e escárnio espirituoso do que como manifesto político destinado a alterar as mentalidades. Daí os repertórios usuais sobre os amores mistos homens-mulheres cantados por artistas famosos por suas inclinações homossexuais. Claire Waldoff, Curt Bois e Paul O’Montis ilustram idealmente estas performances tradicionais de transvocalisação nas quais artistas diferentes podiam cantar amores convencionais, mas fazendo-o de uma maneira singular que não escapava aos públicos avisados. Certos artistas envolvidos, como Ney Matogrosso, que nunca negaram a sua preferência sexual – ou bissexual eventual –, escolheram deliberadamente colocar-se sobre o único terreno estético, recusando a priori a fronteira estabelecida entre o masculino e o feminino. A biografia de Ney, que foi escrita pela jornalista carioca Denise Pires Vaz, após múltiplas sessões de discussões e confissões íntimas, apresenta um resumo do projeto criador42 do cantor: 73 Quando subia num palco ignorando a separação feita entre os dois sexos, nunca pensou em ser mulher e nem mesmo em se vestir como ela. Apesar de, algumas vezes, utilizar símbolos confinados pela sociedade ao universo feminino, queria, na verdade, atuar no lado invisível dos seres, quebrando rótulos impostos à sensibilidade. Mas, de maneira nenhuma, pretendia pregar mudanças no cotidiano das pessoas, fazendo, por exemplo, homem tirar sobrancelha, deixar unha crescer ou ir de saia para a rua. Detesta isso […]. Era um homem fazendo aquilo, numa manifestação artística movida a desacato, e não a veadice, e que procurava uma composição estética independente do masculino e do feminino. O que não impediu que muita gente considerasse que ele se travestia.43 Preparando este artigo, interessei-me pelas carreiras de certos artistas franceses tais como Félix Mayol, Suzy Solidor, Nicole Louvier, Jean Guidoni, Juliette ou como a quebequense Marie Savard, e pelas obras de autores sensibilizados por este tema como Anne Sylvestre, Helène Martin e Pierre Philippe. Interessei-me também por vários artistas de outros países. Exceto aqueles conhecidos por suas provocações cênicas, como David Bowie, Freddie Mercury ou Boy George, e exceto o delicado e talentoso melodista Cole Porter, o relativo anonimato desses artistas estrangeiros nos permitiu um aumento de objetividade na análise. Podemos citar: Vesta Tilley (ilustre travesti inglesa do início do século XX, que apesar disso não era safista), os alemães Claire Waldoff (proibida no rádio durante os anos de chumbo 1933-1945) e Paul O’Montis (que pagará com a vida a sua condição de artista homossexual e judeu), Dora Stroeva (famosa andrógina dos anos 30), Miguel de Molina (cantor de coplas exilado quarenta anos na Argentina para expiar a sua culpa por ter-se colocado do lado republicano e ter-se exibido como homossexual), Sotiria Bellou (figura emblemática do rébétiko), o homem de teatro italiano Paolo Poli e suas montagens “paródicoProjeto criador: conceito desenvolvido inicialmente por Pierre Bourdieu nos anos 60, reformulado e adaptado à conceitualização sociossemiótica, entendido aqui como conjunção entre potencialidades, estratégia de carreira e meios mobilizados, combinados numa intenção. É encarado numa concepção dinâmica mais do que sistemática e na sua articulação às outras instâncias que compõem o mundo social da arte e da cultura. 43 Vaz, Denise Pires, Um cara meio estranho – Ney Matogrosso, Rio Fundo Editora, Rio de Janeiro, 1992, p. 58-59. 42 74 músico-literários”, a brasileira Cássia Eller (roqueira talentosa e “marginal” – lésbica assumida, que não hesitava em levantar sua blusa para mostrar o peito durante os seus espetáculos, e a quem eram consagrados cerca de quinze sítios na Internet nos anos 90) ou, ainda, os casos limites do exuberante intérprete brasileiro Ney Matogrosso e o(a) alemão(ã) Georgette Dee, notório travesti no palco e que se comportava como homem no cotidiano. Com base na teoria elaborada com meus trabalhos precedentes, segundo a qual a performance 44 é o lugar de catálise do sentido, o meu objetivo foi determinar se as performances dos cantores homossexuais diferem – e como – das de outros artistas. Sucessivamente abordei o uso ambíguo que era feito da voz, o recurso específico à maquiagem, ao mimo e à gestualidade, a maneira de vestir, eventualmente codificada, a escolha de certos repertórios e o modo de comunicação envolvido com a assistência. A minha contribuição revela como a postura homossexual no mundo das variedades está imbricada numa contradição praticamente insolúvel entre o fato de afirmar esta diferença e a vontade de produzir obras artísticas assimiláveis aos repertórios correntes e, por isso, justificáveis pelos critérios usuais de avaliação. Abordagem conceitual e metodológica para a análise das performances O estudo de tal domínio impôs várias questões de método: devia estudar todas as canções que tratam deste tema ou restringir a seleção às que são escritas ou interpretadas por artistas que se declaram homossexuais? Tratavase de apreender repertórios escolhidos, performances, grupos sociais, ou, por outro lado, de revelar e realçar uma ideologia subjacente? Era necessário limitar o estudo aos únicos artistas que se reconhecem, mais ou menos, nesta categoria ou estendê-lo aos homossexuais notórios – envergonhados desta condição, e que a ocultam sob uma reserva excessivamente 44 Uma apresentação completa dos conceitos e do andamento sociossemiótico, aplicado ao domínio das canções, está nos capítulos 1 a 9 da minha tese em Estética: Les enjeux sociaux et esthétiques des chansons dans les sociétés contemporaines,EHESS, Paris, 2000, p. 15-278. 75 cuidadosa (Félix Mayol, Cole Porter, Charles Trenet)? Perguntas embaraçosas. Na medida em que as práticas e preferências sexuais destes artistas são da esfera do privado, preferi não falar destes exceto de Mayol, cujas negativas sobre sua homossexualidade sempre foram de fachada. O extrato das Memórias de Félix Mayol, trazido abaixo, quando ele evoca “os costumes estranhos”, que lhe são emprestados, e declara que só tem que “responder […]pelos seus atos públicos estritamente limitados ao seu papel de artista!”, demonstra a imbricação desleal e inevitável que se estabelece espontaneamente entre o personagem público e a vida privada das estrelas da canção: […] On se mit à me prêter des mœurs étranges, en chuchotant d’abord sous le manteau, puis plus librement. Bien que ce fussent encore des allusions discrètes, des insinuations à peine audacieuses, et bien éloignées en tout cas de ce que l’on a osé depuis, je ne pus m’empêcher d’en être très ému… […] ma bonne directrice me conseilla-t-elle […] : on parle de vous ? on vous cherche des défauts, voire des vices ? C’est la preuve incontestable que vous existez !… D’autre part, à Paris, vous savez, on ne déteste pas les moutons à cinq pattes… Il faut parfois paraître un peu phénomène pour arriver… […] le dédain que j’affichais fut pris sans doute pour de la faiblesse, dont on ne tarda pas à faire un aveu tacite de toutes les horreurs qui se colportaient sur mon compte… […] enfin, un artiste ne saurait avoir à répondre devant la clientèle que de ses actes publics strictement limités à son rôle d’artiste ! […] je n’ai pas de comptes à rendre, à qui que ce soit, en ce qui concerne ma vie privée.45 Cuidou-se de me atribuírem costumes estranhos, cochichando-se primeiro por debaixo do pano, mais livremente em seguida.. Embora sejam ainda alusões discretas, insinuações audaciosas, e bem distantes, em todo caso, do que ousou-se fazer depois, não pude evitar de ficar muito comovido... 45 Cf. Mémoires de Mayol, recueillies par Charles Cluny, Louis Quérelle, Paris, 1929, p. 142-148. 76 [... ] a minha boa diretora aconselhou-me [... ]: fala-se de você? procura-se os seus defeitos, até mesmo os vícios? É a prova incontestável de que existe!... Por outro lado, em Paris, saiba você, não se detesta as aves raras... às vezes, precisa-se parecer um pouco um fenômeno, para vencer ... [... ] sem dúvida, o desdém que apresentava foi visto como uma fraqueza, a qual não demorou a tornar-se uma confissão tácita de todos os horrores que se apregoava sobre mim... [... ] por último, um artista só deveria ter de responder frente à sua clientela apenas pelos seus atos públicos estritamente limitados ao seu papel de artista![... ] não tenho que prestar contas dos meus atos, seja lá a quem for, no que diz respeito à minha vida privada. O fato de que Mayol consagra oito páginas das suas Memórias a este único assunto, ilustra, de resto, o conflito latente entre o que tem que ver com o artístico e o que é da competência do comportamental. Além disso, o meu trabalho exigia re-situar os fatos abordados no campo social delegado do espetáculo e do disco e no conjunto da sociedade que os engloba, a fim de dar sentido à posição pública dos cantores homossexuais. Embora estas questões misturem-se em certos repertórios do cabaret berlinense dos anos 30, ou no atual repertório de Pierre Philippe, abstive-me igualmente de abordar as outras experiências sexuais indevidamente associadas à homossexualidade como pederastia, sado-masoquismo ou necrofilia. De memória – e o exemplo impõe perguntas que saem do quadro desta comunicação –, a pederastia também foi abordada em canções com talento e sensibilidade, nomeadamente na obra do cantor francês Pierre Selos46. A respeito dos travestis no music-hall, há, na minha concepção, uma maneira só de abordar o assunto: trata-se de criadores autênticos que recorrem a meios específicos – figurinos ou traços comportamentais –, numa finalidade artística evidente (penso em Charpini, Ray Bourbon, Jean Guidoni e Georgette 46 Cf. álbuns Raisons de vivre e Des enfants et des hommes, editados por L’Oiseau Bleu, no inicio dos anos 70. 77 Dee) ou trata-se de exibicionistas, em alguns casos, transexuais, que realizam atuações orientadas – frequentemente acopladas ao canto e ao strip-tease –, com o objetivo de excitar as sensações equívocas dos públicos do gueto homossexual. Os exemplos não faltam, tais como o do famoso transexual Coccinelle47 ou do animador (ocasionalmente cantor) de boate Michou, para quem um autor de Montmartre, ele mesmo homossexual, Bernard Dimey, prefaciou um vinil de 45 rotações nos anos 70. A mesma constatação vale para as boates de lésbicas, como o famoso Monocle, antes da guerra, e Madame Arthur, posteriormente. Por evidentes razões de coerência e atendendo ao conceito de projeto criador utilizado como discriminador, estes espetáculos de travestis-cantores foram igualmente descartados no presente estudo, assim como os discos de canções obscenas, que consagram uma ou duas canções por álbum a esta questão bem picante. Exemplo raro: um lado inteiro de À voile et à vapeur, álbum registrado no início dos anos 70 por Mathis e Gérard Doulsanne (Les Tasses, Le Sonné du sauna, Le Travelot), trata da questão homossexual. Praticamente, a minha investigação seguiu este roteiro: 1. Levantamento e análise semiótica das canções – algumas centenas – que, positivamente ou, com mais freqüência, negativamente, tratam da homossexualidade; estudo dos vetores e valores veiculados e das evoluções perceptíveis correlativamente àquelas da sociedade. 2. Análise das atitudes que exprimem a inversão e a confusão dos sexos durante as performances (registros enunciativos, vocais, visuais, comportamentais e simbólicos). 3. Estudo do caso específico dos militantes da homossexualidade que levantam questões da ordem “sociossexual” nas suas canções: destaco 47 Nascido Jacques Dufresnoy, em 1933, Coccinelle destacou-se no início dos anos 60 por ter sido, na França, uma das primeiras pessoas autorizadas a mudar de sexo no item estado civil do registro de identidade. Do fim dos anos 50 ao início dos anos 90, Coccinelle efetuou uma carreira de cantor de variedades singular em diversos cabarés da Rive Droite, como o luxuoso Carroussel, bem como em diversos países. Um CD, que reconstitui a sua carreira, foi reeditado em 2004 por Marianne Mélodie. 78 Gil Cerisay e, em grau menor, Gilles Méchin, autor de três álbuns patéticos sobre este tema; cito o ator e encenador Olivier Py que, após ter apresentado em Avignon, em 1996, o espetáculo de cabaré “Miss Knife et sa baraque chantante”, gravou em 2002 o CD do espetáculo e aparece na capa vestido de mulher. Encerrado numa perspectiva militante, qualquer cantor porta-voz da causa homossexual corre rapidamente o risco de fechar-se numa temática exclusiva, a exemplo daquelas das identidades regionais ou das lutas feministas. Assim, 22 dos 24 títulos dos dois álbuns de Gil Cerisay refletem esta preocupação (Homoportrait, Je suis une folle, Toi l’hétéro…). Homoportrait (Homoretrato) [Gil Cerisay / 1979] […] Je fus esclave et enchaîné Je fus empereur couronné… Je portais un triangle rose Sur mes habits de déporté… Je fais peur à l’ordre moral Et mes surnoms sont des insultes… Un chanteur nommé Aznavour M’a fait chansonnette à la mode… Je ne veux plus vivre caché Je vais apprendre à me défendre… [...] Fui escravo e acorrentado Fui imperador coroado... Levava um triângulo cor-de-rosa Sobre minha roupa de deportado... Causo medo à ordem moral E os meus apelidos são insultos... Um cantor chamado Aznavour Fez sobre mim canção da moda... Não quero mais viver escondido Vou aprender a me defender... 79 No álbum vinil Essayez-donc nos pédalos48, de proporção idêntica (12 de cada 12 títulos referem-se à homosexualidade), o método utilizado, abertamente paródico (Outrage aux mœurs, Nous les tantes, Les Petites annonces), não exprime mais um sentimento obsessivo. É oferecida uma imagem invertida daquela, caricatural e convencional, da peça famosa de Jean Poiret, “La Cage aux Folles”, lançada em 1973 com Michel Serrault no papel principal. Mais recentemente, e no mesmo espírito satírico e exibicionista, o conjunto vocal gay Les Caramels Fous, sob a direcção de Michel Heim, ex-militante do movimento homossexual e autor dramático, estabeleceu como objetivo para seus diversos espetáculos (Les Aventures de l’Archevêque perdu (1991), Il était une fois Tatahouine (1993) e, em 2006, Les Dindes Galantes) desmistificar os estereótipos divulgados contra a cultura homossexual através da parodia e do burlesco cênico. Estes espetáculos, contudo, postos a serviço de uma causa, tratam apenas de uma problemática única, específica, ligada à atitude comportamental dos protagonistas. Por último, cabe destacar um jovem autor-compositor-intérprete francês, Nicolas Bacchus, que se esforçou em renovar o gênero gravando em seus três CDs uma série de canções que constituem quase a metade do seu repertório e que se apresentam como uma mistura de provocação não-conformista, de reivindicação identitária e de ironia sacrílega: Ton fils (…dort avec moi) (Tu filho ; …dorme comigo) [Nicolas Bages / 1999] Non, Madame, cette nuit-là Non, ton fils n’a pas Dormi avec les filles Non, Madame, cette nuit-là (…) Ton fils a dormi avec moi… 48 Neste caso, o disco é a versão fonográfica de um espetáculo de café-teatro realizado por três atorescantores (Alain Marcel, também autor, Michel Dussarat e Jean-Paul Muel), envolvidos num exercício delicado de des-dramatização do assunto no Festival Off de Avignon, em 1979. 80 Não, minha Senhora, esta noite Não, teu filho não deitou-se Com as garotas Não, Senhora, esta noite (...)Teu filho passou a noite comigo... Gostaria agora de precisar alguns dos conceitos e algumas das noções chaves do andamento sociosemiótico, que me permitem decodificar o sentido social das canções. Esta abordagem sociossemiótica aparece em ruptura epistemológica radical com as abordagens essencialistas ou quantitativas, ainda que envolva a análise de textos e de discursos cruzados com os dados obtidos em estudos anteriores, com o objetivo de avaliar a representatividade dos fatoscanção abordados. Dois conjuntos condicionam a análise. A princípio a corrente semiótica: intenção (inspiração, escrita e literatura explicativa); tom (sentido proposto para a audiência) e convicção (modo de comunicação, natureza e intensidade), que constituem o núcleo duro do projeto criador. Em seguida temos os três momentos fortes da construção do sentido: projeto criador, individual (história de vida) e coletivo (determinantes sociais); performance, sentido coligado no momento do acontecimento (interação cantor-audiência) e projeto receptor, processo ativo com tendência conformista, embora dialético, porque se a escuta é plural (concerto, rádio, disco), a recepção final fica sendo individual. Traços identitários e marcadores sociossexuais As marcas da pertença sexual, quer seja ela genética ou falsificada, como no caso dos travestis, homens ou mulheres, são identificadas de diversas maneiras, nomeadamente com uma série de indicadores corporais e cênicos. Em primeiro lugar, a voz, que é um órgão sexuado, em princípio imediatamente perceptível e socialmente conotado. A transvocalização, procedimento enunciativo que consiste em cantar no registro natural do outro sexo, é o sinal diferencial mais frequentemente constatado49. Daí os timbres 49 A respeito da enunciação, Hadleigh (op cit., p. 153) sugere o conceito de “travesti vocal (cross vocal)”, que possibilita aos artistas cantar canções escritas para o outro sexo, dando-lhes um sentido particular. Sou tentado a ver nesta expressividade diferente, cruzada, uma fonte de enriquecimento estético. 81 perturbadores de alto que acentuam a androginia escultural de Suzy Solidor e aquela, de uma distinta elegância, de Marlene Dietrich assim como o tom macho, debochado, malandro, de Claire Waldoff, não isento de brusquidão estudada. O auge nesta transvocalização parece atingido quando, em 1933, Suzy Solidor, cuja reputação de lésbica era notória, arriscou-se a interpretar no palco, no cabaré La Vie Parisienne, a versão não censurada de Ouvre : Ouvre…(Abre...) [Edmond Haraucourt - Laurent-Rualten ; gravação Suzy Solidor / maio 1933] […] Ouvre tes bras pour m’enlacer Ouvre tes seins que je m’y pose Ouvre aux fureurs de mon baiser Ta lèvre rose Ouvre tes jambes, prends mes flancs Dans ces rondeurs blanches et lisses Ouvre tes deux genoux tremblants Ouvre tes cuisses… [...] Abre os teus braços para me enlaçar Abre os teus seios para que pouse sobre eles Abre aos furores do meu beijo O teu lábio cor-de-rosa Abre as tuas pernas, toma os meus flancos Nestas curvas brancas e lisas Abre os teus dois joelhos que tremem Abre as tuas coxas. Pelo contrário, uma voz masculina deliberadamente colocada no agudo, recorrendo ao falsete como aquela de Ney Matogrosso, revela uma inclinação à feminilidade, da mesma maneira que as vozes de certos tenores ligeiros operando com preciosidade nos registros altos. Conviria de resto avaliar a parte devida a esta relativa ambigüidade nos sucessos dos cantores populares Tino Rossi, Réda Caire, Michel Polnareff e Daniel Balavoine. No entanto, a enunciação extravagante de Charpini, homem dotado de uma voz quase naturalmente soprano, o leva a paradoxalmente escapar de qualquer equívoco. 82 Na realidade, a maior parte dos artistas “diferentes” rejeita as chamadas vozes bonitas, e, querendo ser expressivos ao extremo, aplicam-se em colocar sua voz nesta região sensível, onde se instaura a confusão dos sexos, no intuito, inclusive, de reduzir as suas diferenças fisiológicas com o outro gênero. A maquiagem e a máscara são igualmente portadoras de códigos simbolicamente representados. É assim no caso de homens exageradamente pintados, aos quais se permitem experiências estéticas originais (cabaré berlinense, David Bowie, Ney Matogrosso, Jean Guidoni). Em contrapartida, certas cantoras lésbicas, que se recusam a exibir uma sexualidade natural, recusam este atributo feminino. O vestuário é um indicador que ressalta ou dissimula as formas do corpo; daí as rudes roupas masculinas de Claire Waldoff, aquelas típicas da cantora de rébétiko Sotiria Bellou, os trajes tradicionais dos gaúchos usados pelas tanguistas Pepita Avellaneda e Azucena Maizani, ou as gravatas vermelhas dos cantores de Broadway, os ornamentos sofisticados e o tapa-sexo de Matogrosso, o vestido longo de cor preta ou púrpura de Dee. Assim é também com os trajes de couro bem justos de Michel Hermon e Jean Guidoni, que fazem referência aos universos sombrios e marginais de certos guetos homos onde práticas sado-masoquistas têm lugar. Sinal identitário eleito, o vestuário sempre designa. Viril, uma outra canção de Pierre Philippe, interpretada com distanciamento por Jean Guidoni, ilustra esta questão do figurino: Viril [Pierre Philippe / Michel Cywie ; gravação Jean Guidoni, 1980] […] L’anneau c’était le premier pas Et bientôt ce fut l’engrenage… En haut de mes reins on a tatoué «Occasion à saisir de suite» L’un de mes seins est bagué Et pour seul slip, je porte une chaîne… [... ] o anel era o primeiro passo 83 E cedo foi a engrenagem... Na parte superior dos meus rins fiz tatuar «Oferta a aproveitar imediatamente» Um dos meus seios tem um piercing E como única cueca, levo uma corrente... A gestualidade sugestiva, caricatural no caso de Charpini e Cauby Peixoto ou levada ao seu cúmulo com Mayol, é outro indicador. Para ilustrar, apresento algumas linhas de um cronista do início de século XX, aplicadas a Mayol: […] ses mains agiles soulignent de gestes minutieux la diction impeccable des couplets ; il nous montre la petite ouvrière occupée à sa toilette, s’habillant en un tour de main, consolidant la frêle architecture de son chignon au moyen d’épingles prises au coin de la bouche, puis se hâtant vers l’atelier, d’une main le carton à chapeaux, retroussant ses jupes de l’autre, sautillant drôlement au rythme du refrain.50 [...] as suas mãos ágeis sublinham com gestos meticulosos a dicção impecável das estrofes; [Mayol] mostra-nos a pequena operária ocupada em arranjar-se, vestindo-se com presteza, consolidando a frágil arquitetura do seu coque mediante alfinetes tomados ao canto da boca, dirigindo-se apressadamente depois para o ateliê, a caixa de chapéus numa mão, arregaçando as suas saias com a outra, saltitando com graça ao ritmo do refrão. Compreende-se melhor hoje a necessidade de estudar as performances em situação ou de partir dos documentos audiovisuais e iconográficos disponíveis. Sobre este ponto, os DVD reproduzindo os espetáculos de Ney Matogrosso – mencionados em anexo, que pormenorizam com generosidade as poses insinuantes e os simulacros estudados de strip-tease do artista, se constituem numa fonte insubstituível para a análise. A atitude geral do artista pode, pela corporalização de um repertório singular, por uma androginia dúbia ou por um comportamento conscientemente dissidente, embaralhar as fronteiras entre os sexos. Assim, para ilustrar, indico as poses efeminadas e afetadas em excesso do cantor de coplas Miguel de Molina 50 Pascal, Jean, in Revue mensuelle, janvier 1908, n° 27, notícia de cobertura. 84 ou mesmo aquelas, desconcertantes, do não-conformista Michel Polnareff ou andamentos bruscos de viragos artistas como a cantora de rancheras Lucha Reyes, a roqueira brasileira Cássia Eller e as francesas Mick Micheyl e Colette Magny. A temática desenvolvida, ou seja, a ancoragem referencial das canções interpretadas desempenha um papel determinante, articulado aos outros elementos. Evocarei o universo marginal composto pelo autor e cineasta Pierre Philippe – transcendido por seu intérprete Jean Guidoni – que faz abertamente referência ao mundo fechado da homossexualidade masculina com seus lugares quentes, seus back-rooms e a prostituição. No entanto, Guidoni também é dividido entre a provocação cênica que manifesta e a real discrição, se não o pudor, com o qual ele protege sua vida privada, como testemunha em Quelques jours de trop51, livro autobiográfico que mistura habilmente lembranças pessoais e ficção. Os procedimentos retóricos e outras sutilezas lingüísticas utilizados, como paródia e intertextualidade, permitem gerar dúvidas sobre a pessoa do artista, sua condição, ou afastar, artisticamente, um assunto angustiante. Por último, temos os marcadores sociossexuais em correspondência com o tema abordado. Além dos elementos assinalados, citarei certos estereótipos recorrentes durante as performances como os gritinhos de “bichas” ou os arrulhos sugestivos, as inflexões vocais afetadas em excesso e os saltos súbitos ao falsete, que, sob o ângulo do masculino soam deliberadamente como falsos – em todos sentidos; da mesma maneira que o deboche, o tom viril exibido e a recusa aparente da sedução usual nas cantoras lésbicas; ou, ainda, os bruscos e obscenos palavrões que vêm contrabalançar os ataques de frescura, os apartes duvidosos (freqüentes em Ray Bourbon e Douglas Byng), até a inclusão, em certos discos, da sonoplastia de beijos entre parceiros do mesmo sexo. Outros elementos identitários merecem ser citados como a simbologia das cores lilás, lavanda e rosa ou os artifícios cintilantes das jóias que, à sua maneira, serviram por muito tempo de sinal de reconhecimento para os membros desta comunidade. 51 Guidoni, Jean, Quelques jours de trop, Éditions de Septembre, Paris, 1991. 85 Alguns personagens emblemáticos a guisa de reveladores sociais O estudo das carreiras e das performances de alguns cantores homossexuais, evocados em seguida, permite compreender melhor a inabalável articulação entre a tendência comportamental individual, o campo delegado do espetáculo e do disco e o campo societal, porque é bem em torno do personagem público do cantor que esta relação encontra sentido. O refinado encantador fim-de-século Félix Mayol [1872-1941] Ao longo de uma carreira de primeiro plano de cerca de trinta anos, de 1895 aos anos 30 do século XX, Mayol criou mais de quinhentas canções, praticamente seduziu todos os públicos aos quais se dirigiu e deixou uma imagem inalterável de sedutor. O que caracteriza a obra de Mayol é a evolução “espetacular” que deu gradualmente a seu tour de chant. Após ter começado com um repertório espirituoso e sensível de “cantor-dizedor” de Montmartre, quando inspirava-se em Mévisto Aîné, o “Pierrot cantante”, Mayol atribuiu uma importância crescente ao visual e ao subtexto das canções, introduzindo, com discernimento, uma gestualidade refinada e passos de dança graciosos durante as passagens mudas, quando, usualmente, a orquestra monopolizava a atenção. Esta “incorporação” das canções e as palavras improvisadas dirigidas à platéia, ou uma mímica personalizada – métodos fáticos e conotativos eminentes –, permitiam-lhe manter o contato com a audiência. Recusando-se a fixar-se num tipo definido, ele é de fato o primeiro cantor “não especializado”, que soube com felicidade abordar todos os estilos: do romance suave à canção patriótica, dos estribilhos licenciosos aos climas poéticos, da canção “colonial” à canção dramática (chanson vécue). Embora o tema seja de uso corrente por outros artistas menos implicados, as canções que tratam do tema da homossexualidade ou as que contêm alusões relativas a esta questão são praticamente ausentes do seu repertório – novo sinal indicativo da posição ambígua do cantor e da sua prudência extrema. Contudo, algumas evocavam o tema, como Il était intimidé, Les Vieilles jeunes filles e Les Begônias, uma canção de 1914 que prefigurava, de modo amável, aquela 86 de Marcellus Schiffer, Maskulinum – Femininum, apresentada no inicio deste artigo: Les Bégonias (As Begônias) [William Burtey et Roger Mira - Tollet ; gravação Mayol / juillet 1914] […] On les voit toujours ensemble Tous les deux ils se ressemblent De même habillés et très maquillés On n’ peut pas les distinguer. refrain […] C’est-y lui ou c’est-y elle Ma foi on n’ sait ps On les voit dans les ruelles S’ tenant par le bras Causant chiffons falbalas Et patati et patata (avec un ton de “folle”) – Oh tais-toi ! Ce sont les p’tits bégonias. […] Le garçon porte l’ombrelle Il est délicat Et pour compenser, n’est-ce pas ? La canne c’est elle qui l’a (parlé) Elle a la canne, oui Madame… [...] Vê-se elas sempre juntas Ambas assemelhando-se Do mesmo modo vestidas e muito maquiadas Não se pode distingui-las. refrão [...: ] ta’ ele ou ta’ ela Palavra de honra não se sabe Pode-se vê-las nos becos Andando de braços dados Falando bobagens e filigranas E mais isto e mais aquilo (com um tom de bicha) – Oh cala-te! São as pequenas begônias. [... ] o rapaz leva a sombrinha 87 É delicado E para compensar, não é? A bengala é ela que a tem (falado) Ela tem a bengala, sim Senhora... Em Mayol, a ressurgência dos traços comportamentais ligados à homossexualidade far-se-á em surdina, sob forma de não-dito, de não-lingüístico, e são as suas performances cênicas ambíguas, as suas atitudes exageradamente efeminadas, os seus gritinhos de “bicha” (folle) – reproduzidos nas gravações –, como os “you!” em À la cabane bambou ou os “zou!” em Elle vendait des petits gâteaux – e os seus requebros, que terão a missão de revelá-los. Então, que devemos pensar da sua própria encenação paródica da homossexualidade, quando ele retoma e exacerba os sinais característicos das “bichas”: posturas que instauram a dúvida, requebros, pequenos gritos e outros procedimentos singulares dirigidos à sua audiência? Tem ainda o artista direito a manter seu comportamento sexual no âmbito da vida privada? O delicado soprano masculino Charpini [1901-1988] Quando moço, Charpini participa no coro juvenil da igreja Saint-Germaindes-Prés. É durante o serviço militar que descobre a sua vocação interpretando um papel de travesti. É lançado por um ária da opereta “Divin Mensonge”, com um título dúbio, escolhido em sua intenção: Elle ou lui. Charpini, que se qualificava soprano masculino, dispunha de uma voz de cabeça de uma tessitura impressionante para um artista barítono ligeiro. A sua facilidade e a sua flexibilidade natural nos registros elevados faziam maravilhas numa época em que os contratenores eram bastante raros. Em 1929, com o barítono Antoine Brancato, monta um duo de fantasistas: Charpini et Brancato. Ambos animam com sucesso os cabarés noturnos de Paris e apresentam-se em diversas grandes revistas antes de abandonar o palco no início dos anos 50. O repertório deles era essencialmente paródico, sobre ares notadamente clássicos. Pontuando as suas canções de comentários incongruentes, frequentemente ligados à ambigüidade vocal e comportamental de Charpini, praticavam um 88 Uma pose artística particularmente sugestiva de Mayol e sua caricatura. 89 humor espirituoso e excêntrico desprovido de qualquer forma de agressividade. Este distanciamento irreverente da homossexualidade reduzia a carga dramática do tema, tornando-o “divertido” e consequentemente aceitável. Nos cabarés, Charpini não se disfarçava nunca, porque considerava que a proximidade do público lhe fazia correr o risco de destruir o encanto. Preferia criar a confusão usando terno com corte masculino e só vestia-se com vestidos femininos – suntuosos – nos espetáculos de revista, dos quais era uma atração destacada. Neste extrato de Elle ou lui, gravado por Charpini em 1930, podemos notar a combinação feliz entre o tema da confusão dos sexos e a especificidade vocal do artista. Elle ou lui (Ela ou ele) [A. Madis - P. Veber et H. Delorme - Joseph Szulc; gravação de Charpini / 1930] Quand j’ naquis, ma famille / Eut une grande déception : On voulait une fille, / On vit poindre un garçon… […] Si j’ manque d’appâts / J’ai la voix tendre Et l’on n’ sait pas / Par quel bout m’ prendre. […] Je possède un nom de fille, / J’en ai la voix aussi Si bien qu’ quand j’ fais des trilles, / Je monte jusqu’au si… Quando nasci, a minha família / Teve uma grande decepção: Queriam uma menina / E chegou um rapaz... [... ] Se me faltam atributos femininos / Tenho a voz delicada E não se sabe / De que lado me pegar. [... ] Tenho um nome de menina / Tenho a voz assim também A tal ponto que quando faço meus trinados / Consigo chegar ao Si... Em seguida, escolhi dois exemplos no repertório do cabaré berlinense do período fértil que se estende dos anos 10 até os anos 30 do século XX, destacando as duas figuras eminentes de Claire Waldoff e Paul O’ Montis. A trangressora berlinense Claire Waldoff [1884-1957] Filha de mineiro, nascida na região de Ruhr, Alemanha, Waldoff construiu uma carreira notável de autora, comediante e cantora. Brilhante nos seus estudos, 90 ela começou em pequenos papéis, na província. Ao chegar a Berlim, em 1903, ficou fascinada pelo ambiente e pelo ritmo da capital e quis se familiarizar com o falar popular. Em 1907, um diretor de cabaré dá-lhe uma oportunidade: é um triunfo imediato. Era a antivedete sem-vergonha, com físico robusto, com os cabelos ruivos e volumosos e figurinos comuns, banais. Abandona os gestos teatrais convencionais; fica plantada, em frente ao público, revira os olhos e utiliza um fraseado gutural e gritado, com objetivo de exibir expressividade singular. Muito culta e inteligente, assimila rapidamente os procedimentos que caracterizam a cultura popular. É a ela que cabe personificar a berlinense do povo, com grande generosidade e berros espetaculares. Waldoff canta Berlim, os seus personagens e os seus bairros, exaltando uma metrópole que oferece lazer e diversão a todos, e comenta a liberdade dos costumes. Fala cruamente das relações amorosas, tomando alternativamente o ponto de vista masculino ou feminino. O seu espírito independente e o seu lesbianismo exibido a fazem cair em desgraça na chegada do regime nazista. Em seguida, acomoda-se em pequenas casas de espetáculo antes de refugiarse no interior. Numerosas reedições de CDs e várias biografias já lhe foram consagradas. Eis um extrato significativo de um de seus sucessos: Hannelore [Willy Hagen - Horst Platen ; gravação de Claire Waldoff / 1928] […] Hannelore trägt ein Smokingkleid Und einen Bindenschlips. Trägt ein Monokel jederzeit Am Band von Seidenrips. Sie boxt, sie foxt, sie golft, sie steppt, Und unter uns gesagt, sie neppt!... – Es hat mir einer anvertraut: Sie hat ‘n Bräutjam und ‘ne Braut Doch dies bloß nebenbei – Hannelore! Hannelore! Schönstes Kind vom Hall’schen Tore! 91 92 Süßes, reizendes Geschöpfchen Mit dem schönsten Bubiköpfchen! Keiner unterscheiden kann, Ob du ‘n Weib bist oder ‘n Mann!” [... ] Hannelore usa um smoking E um nó de gravata. Usa também todo o tempo um monóculo... Pratica boxe e dança fox-trote, joga golfe e cose à máquina, E, digo-o entre nós, ela se raspa!... – Fez-me uma confidência: Tem noivo e também noiva Pois sim, de passagem Hannelore! Hannelore! Você, a mais bonita criança do bairro de Hall’schen! Encantadora e excitante criatura Com a mais bonita carinha de garoto! Ninguém pode distinguir Se és uma mulher ou um homem! O kabarettist sacrificado Paul O’Montis [1894-1940] Após uma formação clássica inicial, O’Montis torna-se um kabarettist conhecido e canta um repertório espirituoso, frequentemente paródico e cáustico. Estrela do Rádio, gravou cerca de 120 lados de discos de 78 rotações, discos que continham sempre apenas uma música em cada lado. De origem judia, toma em 1933 o caminho do exílio e continua a sua carreira na Europa Central. No momento da invasão da Tchecoslováquia pelos alemães, O’Montis é reconhecido e deportado por sua homossexualidade. Enviado para um campo de concentração, ele morre em 1940, em Sachshausen. Dotado de uma voz de tenor ligeiro, o seu estilo era delicado e particularmente expressivo até mesmo sugestivo. Recorria facilmente ao falar-cantado e dava a impressão de ser um artista ligeiramente rebuscado, mas sem exibicionismo. 93 Selecionei este título de 1927, Was hast do für Gefühle, Moritz?, muito representativo da vida noturna berlinense e dos meios artísticos, nos quais os temas da marginalidade cativavam criadores como Bertolt Brecht, Georges Grosz, Friedrich Hollaender ou Rudolf Nelson. Was hast du für Gefühle, Moritz? (Quais são os seus sentimentos, Mauricio?) [Fritz Löhner-Beda - Richard Fall ; gravação de Paul O’Montis / 1927] […] Was hast du für Gefühle, Moritz, Moritz, Moritz Sind’s kühle oder schwüle, Moritz, Moritz, Moritz Dus sagst nichts ja, du sagst nicht nein Du bist so fein und doch gemein Du hast ein Herz für viele, Moritz, Moritz, Moritz Du bist so schön, um treu zu sein… [... ] Quais são os teus sentimentos, Moritz, Moritz, Moritz? És de gelo ou está no cio? Não dizes sim nem não És tão delicado e tão grosseiro ao mesmo tempo Ofereces teu coração a toda a gente És bem bonito, demais para ser honesto. A drag-queen mitômana: Ray Bourbon [@ 1890-1971] A vida deste artista é uma mistura complexa de realidade e de ficção. Nascido no Texas por volta de 1890, Bourbon teve prazer em tornar a sua biografia misteriosa. Teria sido casado e tido um filho. Nos anos 1910, começa sua carreira artística com um número de mímica inspirado em Charlie Chaplin e já recorre a maquiagens elaboradas. Obtém o seu primeiro contrato no cinema mandando para um concurso uma fotografia dele disfarçado de mulher. Houve agitação em Hollywood quando perceberam que se tratava de um homem! Trabalhou como dublé e como ator em vários papéis secundários. Atuou, com um outro artista de vaudeville, em um número de travesti apresentado em cabarés. Colaborou para duas revistas com a escandalosa Mae West, outra vítima da censura puritana; depois, caracterizou-se como travesti provocante – 94 prefigurando o tipo drag. Prosseguiu sua carreira sozinho, tornando-se durante um bom tempo uma vedete dos meios gays estadunidenses. Mas a polícia atormentava a comunidade homossexual e Bourbon teve que moderar as suas atividades. Dos anos 1930 até os anos 1960, Bourbon grava e produz ele mesmo numerosos discos de canções e monólogos sugestivos, vendidos por debaixo do pano ou por correspondência. Por escárnio, denomina a sua firma UTC (Under The Counter, debaixo do balcão). Nos anos 1950, anuncia com grande publicidade que vai se operar no México, a fim de mudar de sexo, e grava um álbum sobre este tema. Bourbon foi, várias vezes, detido e processado por trajar roupas femininas na rua; justificava-se perante o tribunal dizendo que voltava para casa em figurinos de espetáculo. Com a idade avançada e a liberação dos costumes, Bourbon faz figura de “tia velha”, insistindo em temas antigos, até o ponto em que o movimento gay lhe ignora – Hadleigh nem mesmo lhe menciona! Bourbon passa tristemente os dois últimos anos da sua vida na prisão em conseqüência de um assassinato sórdido, com o qual teria estado envolvido. Bourbon sabia criar um ambiente, estabelecer uma relação de cumplicidade com o público, falsear com talento a sua voz, dando, em uma mesma canção, a impressão de atuar nos dois lados – o feminino e o masculino – de um mesmo personagem, ele mesmo, com uma facilidade e um sentido de palco dignos dos grandes nomes do showbiz. O exemplar e temperamental Miguel de Molina [1908-1993] Andaluz, de origem proletária, de Molina inicia-se, na juventude, nas danças tradicionais e flamencas. Tendo-se destacado, integra as companhias de artistas que animam as festas e percorrem a sua região de origem. Em 1930, participa na criação de El Amor brujo, de Manuel de Falla. Nessa época, as suas récitas cantadas e dançadas denotam um comportamento dúbio, que lhe vale o apelido de “La Miguela”. Guardará deste tempo, na sua carreira, o sentido da gestualidade estudada, dos trajes barrocos e dos efeitos cênicos. 95 96 No início dos anos 30, Molina descobre o seu estilo pessoal e impõe-se como o mais eminente intérprete do tipo copla, tendo como único rival a sublime Conchita Piquer. Após os breves anos de glória 1934-1936, as dificuldades começam para ele. Reside então em Valência, do lado republicano, e durante a Guerra Civil canta em hospitais. Esta situação faz-lhe recear o pior depois da tomada da cidade pelos franquistas, em março de 1939; no entanto, de Molina é sobretudo acusado pelo seu comportamento de homossexual notório – e ele guardava em memória o destino trágico do poeta homossexual Federico Garcia Lorca (fuzilado com um tiro na nuca), que tinha conhecido fugazmente. Tomado como refém pelos fascistas, torna-se espólio de guerra e deve dar concertos, cujo lucro é desviado por um dignitário franquista. Rebela-se, é raptado por capangas do regime, violentamente golpeado e deixado num terreno baldio, com o corpo mortificado, o cabelo cortado e o rosto desfigurado. Confinado em prisão domiciliar por dois anos, de Molina pede desculpas, antes de chegar a exilar-se na Argentina, onde efetua uma longa e tumultuosa vida artística com apoio de Eva Perón. A sua vida continuou dividida entre as suas exigências profissionais excessivas e as vivências nos meios marginais. A sua obra fonográfica é regularmente reeditada e as suas Memórias, reunidas sob o título “Botín de guerra, Autobiografía”, foram publicadas em 1998. Eis um extrato revelador: Algunos imitadores de cancionistas, que salían al escenario vestidos de mujer, como Mirko, cuando el gobierno de Franco prohibió el transformismo, comenzaron a actuar de hombre, cantando las mismas canciones, pero la diferencia estaba solo en llevar el pantalón en lugar de faldas. Y la pregunta de siempre: ¿Por que ellos si e yo no? E insisto en que estilo nunca fue equivoco ni amanerado.52 Imitadores de cantoras, que tinham o hábito de subir no palco vestidos de mulher, como Mirko, no momento em que o governo de Franco 52 Molina, Miguel de, Botín de guerra, Autobiografía, Ed. Planeta, coll. “La España Plural”, Barcelona, 1998,p.176. 97 proibiu os travestis, começaram a cantar como homem as mesmas canções, e a única diferença estava nas calças que tinham substituído o vestido. E então, interrogava-me: por que aquilo lhes é permitido? E por que me proíbem de cantar? E insisto em dizer que nunca fui invertido nem afeminado. Além de estabelecer uma distinção oportuna entre a criatividade e o exibicionismo, esta denúncia dos travestis cantantes por de Molina reforça a idéia segundo a qual jamais o artista homossexual tem a liberdade de expressão que seu temperamento aspira, já que deve sempre dar contas do seu comportamento, como artista e como personagem público. O seu estilo era extrovertido em excesso, vestia-se com camisas de seda matizadas e com estampa de bolinhas (outro marcador sociossexual codificado), efetuava, cantando, alguns passos de dança bem agitados, rebolando os quadris de uma maneira abertamente sensual. No espaço de alguns minutos, de Molina dava às coplas mais poéticas uma dimensão dramática de uma rara intensidade. Sempre na corda bamba, o seu canto era exacerbado, exaltado, transcendental. Os raros trechos filmados dele nos palcos mostram-no em atitudes coreográficas hieráticas e sugestivas. Se, em conjunto, o repertório de Molina conformava-se à ideologia dominante, no entanto, alguns títulos, nas suas interpretações, não escapavam de certa ambigüidade, como este simbólico La Bién pagá : La Bién pagá (A Bem paga) [Ramón Perelló – Mostazo ; criação de Miguel de Molina / 1934] Na te debo, na te pío me voy de tu vera, orvíame ya que he pagao con oro tus carnes morenas… [...] Bién pagá, si tú eres la bién pagá porque tus besos compré y a mí te supiste dar por un puñao de parné... 98 Miguel de Molina, o cantor de coplas 99 Não te devo nada, não te peço nada não vou ficar ao teu lado, esquece-me agora que paguei a preço de ouro a tua carne morena... [... ] Bem paga, sim, tu és a bem paga porque comprei os teus beijos e te oferecestes a mim por um pouco de grana... A paixão, a intensidade, a expressividade do personagem fazem de Molina um modelo de referência nas artes cênicas. A diseuse contemporânea Georgette Dee53 Este alemão, nascido em 1958, que canta vestido de mulher, é elogiado pela crítica como a maior diseuse alemã atual. É um tipo de artista andrógino que atua nos teatros clássicos sem recorrer aos disfarces usuais das boates dos bairros arriscados. Dee, que possui uma voz vigorosa, embora cansada pelos excessos, interpreta as suas canções com inflexões sugestivas, acompanhadas de um gestual sóbrio e estudado. Recolocou na moda, atualizando-os, os repertórios ambíguos de autores dos anos 1930 – nomeadamente Friedrich Hollaender e Bertolt Brecht. A esse último consagrou um CD inteiro. Foi no início dos anos 1980, após várias atividades teatrais, que ele decidiu vestir-se com roupas de mulher para cantar um repertório poético, provocador e mórbido ao mesmo tempo. Compõe, há vinte anos, um duo homogêneo com Terry Truck, seu pianista. Seus tours de chant são uma sucessão de canções literárias entrecortadas por intermináveis digressões pornográficas – de resto extremamente espirituosas –, durante as quais faz-nos participar de suas confidências, utilizando um timbre feminino rouco em excesso. Gravou mais de uma dúzia de CDs. Os espetáculos de Dee são também encontros festivos com o seu público, freqüentemente mais excitado que ele mesmo. 53 Em Abril de 2000, Georgette Dee apresentou uma série de concertos piano-voz no Théâtre de l’Odéon, de Paris. 100 Fora do palco, a elegante diseuse volta a ser um homem com seu terno de corte masculino. Em redor dele, constituiu-se uma pequena galáxia de cantores alemães alternativos como Cora Frost ou a francesa Mouron e, mais recentemente, Ingrid Caven. Com Dee, deixamos o universo pesado dos bairros baixos (onde prevalece o lumpen proletário) para viver uma aventura poética absoluta no estilo dramatúrgico de Jean Genet. Os valores negativos reencontram-se transcendidos pela sinceridade das suas interpretações. Seu sítio na Internet é um fórum lúdico permanente e sabemos ainda que Dee é freqüentemente associado às manifestações da comunidade homossexual, em nível europeu. Como último exemplo, igualmente contemporâneo, apresento o talentoso andrógino brasileiro Ney Matogrosso, sobre o qual gostaria demorar-me um pouco mais. Um esteta provocador: Ney Matogrosso Nascido em 1941, Ney Matogrosso viveu uma infância turbulenta e solitária, ignorado por um pai militar que não compreendia a sua sensibilidade à flor da pele e com quem não se reconciliará antes de uma longa psicanálise. Desde jovem, Ney manifesta um temperamento frágil, ligeiramente efeminado e sente já o conflito profundo entre as suas aspirações artísticas e os modos de vida dominantes. Segue algum tempo o modo de vida hippie e confecciona jóias de fantasia, desenvolvendo inclinações humanistas e ecológicas. Freqüenta os meios artísticos e revela-se logo um especialista em iluminação de espetáculos musicais. Após alguns ensaios de teatro amador e uma breve experiência com um grupo de música vocal do Renascimento, Ney começa a sua carreira artística em 1972, com o grupo Secos & Molhados, formado com João Ricardo e Gerson Conrad. A partir deste momento, vislumbra as grandes linhas do seu projeto criador: Eu sabia que não queria ser um crooner, e que não queria perder minha privacidade. Eu estava muito treinado na coisa do teatro, pois estava numa peça, cantando e dançando. Resolvi liberar aquilo que 101 102 eu sabia fazer, que era cantar e dançar. Daí, comecei a criar uns personagens teatrais. Tanto que, […] não era um personagem, mas vários. Cada dia era um. O que mais se destacou foi aquele da pena de faisão na cabeça…54 O uso da sua voz límpida de falsete, as maquiagens e os comportamentos provocadores que ostenta, as suas atitudes eróticas sugestivas no palco, num período de rigor moral imposto pelos militares no poder, impulsionam o grupo à celebridade. As vendas do primeiro álbum de Secos & Molhados fazem de Ney um fenômeno de sociedade. Fãs-clubes são criados e o cantor suscita imitadores. Mas a experiência coletiva cessa após apenas dois anos. A partir daí, Ney dedicase a uma carreira solo que o confirma como uma das estrelas da canção no Brasil. Até agora, Ney já gravou cerca de 30 álbuns, em vinis e CDs, mais 7 DVDs, e tem cantado nos palcos do mundo inteiro. Uma personalidade inquietante, mas fascinante A voz de Ney é a característica notória do seu personagem. Pode cantar facilmente em um registro inusitado de contratenor, guardando ao mesmo tempo um timbre flexível e potente. A aliança entre uma maturidade vocal impressionante e as suas extravagâncias comportamentais produz um efeito de estranheza. Seu olhar penetrante fascina, interpela, inquieta o ouvinte-espectador e as maquiagens exageradas que utilizava, no início da sua carreira, acentuavam ainda mais esta impressão de estranheza. Três pontos caracterizam a dimensão cênica do projeto criador de Ney: os fatos e os ornamentos que utiliza no palco; a apresentação pictórica e o uso que faz do seu corpo e a sua atitude comportamental durante as performances. Desde Secos & Molhados, recorre a maquiagens e adereços exagerados e inquietantes. Atua de pés no chão ou com sapatilhas, o torso nu ou progressivamente revelado durante o espetáculo, eventualmente vestido com um simples tapa-sexo. Ele cobre-se de colares, pulseiras, pedrarias e ornamentos 54 Fonteles, Bené, Ney Matogrosso – Ousar ser, São Paulo: SESC São Paulo, 2002, p. 102. Nesta luxuosa obra, Fonteles inclui cerca de cento e trinta fotografias artísticas de Luiz Fernando Borges da Fonseca dedicadas a Ney Matogrosso, e reproduz in extenso três longas entrevistas realizadas com o cantor. 103 de origem animal (plumas, ossos, peles, crina de cavalo...), a ponto de simbolizar com sua figura uma fusão do humano, do animal e do mineral, como no espetáculo Homem de Neandertal, o seu primeiro espetáculo solo, em 1975. Realiza espetáculos que têm tanto a ver quanto a ouvir e que superam em expressividade e emoção as suas gravações em estúdio. Quando efetua os seus rebolados sugestivos e os seus gestos evocativos – até mostrar suas nádegas ou simular a masturbação e o ato sexual –, provoca reações catárticas dos públicos. Seus passos de dança e seus bamboleios intervêm nos momentos não-cantados, como se Ney tentasse passar outro discurso, não-verbal, através do corpo. Em espetáculos mais recentes, durante as passagens cantadas, Ney quase não dançava mais; concentrava-se em transmitir o sentido das obras, porque, para ele, “mais que a música, é a palavra que é primordial”. Seu repertório inclui boleros langorosos, tipo kitsch, rocks mais agressivos, canções românticas e sentimentais, melodias eruditas, sambas autênticos, clássicos da MPB55 e canções de jovens autores. Esta faculdade de apropriar-se de repertórios tão diversos corresponde a seu desejo de recusar os rótulos, como se quisesse embaralhar a sua imagem permanentemente. A nível temático, além da dimensão sexual inerente à maior parte das suas canções, uma parte importante do seu repertório exalta a América do Sul e a latinidade (América do Sul, Cubanacan, Dos cruces...). Mas, paradoxalmente, nenhum texto evoca a homossexualidade e não há nenhuma reivindicação militante no seu repertório. O seu público é diversificado, pertencendo a todas as camadas da sociedade e a todos os grupos etários, mesmo tratando-se majoritariamente de um público feminino adulto. O seu modo de comunicação com o público constitui o outro traço saliente da sua personalidade. Ney mantém uma relação 55 MPB ou Música Popular Brasileira: é, desde os anos 1960, um termo consagrado, que designava inicialmente a canção de autor, brasileira, e que tende, há alguns anos, a integrar os outros tipos de canção tais como a bossa nova, o samba, uma parte das canções nordestinas, as correntes rocks nacionais e até a Jovem Guarda dos cantores e autores de iê-iê-iê. 104 de cumplicidade com este, feita de atração e desafio, de distanciamento e desejo recíproco. Sabe fazer do público o seu parceiro porque joga com as reações deste. Ney subjuga os seus espectadores, convida-os a compartilhar uma experiência existencial pessoal, mas não procura nunca excitar os instintos primários. Os seus espetáculos incluem sempre uma dimensão lúdica, a exemplo das suas deliciosas paródias de Carmem Miranda. Note-se ainda que o artista Matogrosso, que privilegia as noções de criatividade e pesquisa, leva em consideração as observações da crítica e as reações do público. Provocar para seduzir, exibir-se para convencer No início, a sua ambição era incomodar ou mesmo provocar o público exibindo a sexualidade masculina no palco. Este comportamento cênico exacerbado é resultado de investigações estéticas originais, porque jamais Ney se entregou à simples improvisação. A sua atitude andrógina inédita – e escandalosa – no Brasil chocou, na sua origem, e foi percebida de maneira variada. Ambicionava embaralhar as fronteiras entre o masculino e o feminino, brincando sobre as sensibilidades latentes dos seus ouvintes. Hoje, com mais de 66 anos, Ney continua a bambolear e saracotear com volúpia. Frequentemente, no meio do espetáculo, é colocada uma cena no curso da qual despe-se ou muda de roupa no palco, nomeadamente em Bandido, (1976), Um Brasileiro (1996), Batuque (2001) e Inclassificáveis (2008). Basta olhar o rosto de Ney em cena para saber que tem prazer de fazer gestos ousados. Brinca com a ambigüidade e os duplos-sentidos nos seus espetáculos, mas sabe fazê-lo com sutileza. Contudo, cabe registrar que, ao longo de toda a sua carreira, seu jogo de cena constantemente evoluiu para um estilo cada vez mais depurado. O seu propósito é seduzir, mas em qualidade de artista e, curiosamente, Ney chega lá, ganhando a adesão dos espectadores de ambos os sexos. No palco, nunca tentou simular ser uma mulher; não esconde os pelos abundantes sobre o seu peito nem, no período mais recente, o seu crânio calvo. 105 Sua recusa em adotar uma atitude clara – mista ou homossexual – e em escolher um mundo de referência estável – masculino ou feminino – incomoda e algumas canções testemunham isso, como este sucesso que está impregnado em sua pele desde a sua criação, em 1981: Homem com H [Antonio Barros ; gravação de Ney Matogrosso em 1981] [...] Quando estava p’ra nascer De vez em quando eu ouvia Eu ouvia mãe dizer Ai ! Meu Deus como eu queria Que esse cabra fosse home Cabra macho p’ra danar Ah ! Mamãe aqui estou eu Mamãe aqui estou eu Sou homem com H E como sou!... Ney pratica certa dissidência que frequentemente é associada à subversão, mas ele sempre recusou-se a ser o porta-voz de qualquer causa que seja, sobretudo se tratando da homossexualidade. Rapidamente, compreendeu que o seu projeto artístico desafiava a ditadura e a censura. Foi várias vezes questionado, pelo DOPS, 56 sobre as suas provocações cênicas, e os seus espetáculos foram vigiados durante um bom tempo. Vários dos seus textos foram censurados, tais como Johnny Pirou (adaptação do Johnny B. Good de Chuck Berry), em nome da moral, e Tem gente com fome (João Ricardo e Solano Trindade), por sua suposta tonalidade social. Como Ney declara frequentemente: “o sexo pode também ser subversivo, revolucionário mesmo”. Se ele gosta de chocar, quer fazê-lo pela teatralização do seu tour de chant. Faz-se agressivo para provocar reações, faz-se ambíguo para denunciar: 56 Trata-se de “Departamento de Ordem Política e Social”, que tinha o encargo de vigiar e eventualmente restringir as iniciativas de dissidência dos artistas e dos intelectuais no tempo da ditadura militar. 106 Só o fato de me considerarem subversivo era uma confirmação de que tinha alcançado meu objetivo: mexer com o inconsciente das pessoas. Quanto mais eu chocava, mais eu queria chocar57. Uma Declaração confirmada por Chico Buarque em uma entrevista incluída em um DVD do Ney: “Sempre [Ney] foi um grande transgressor. Agora, as canções que eram censuradas eram tanto as canções em que eles supunham que havia uma mensagem política quanto, e talvez em maior quantidade, as canções que eles consideravam atentatórias à moral e aos bons costumes. [...] O Ney era a personificação do atentado à moral e bons costumes na cabeça ultra-conservadora dos Militares da época [...]. Eu lembro de ouvir referências a Ney, porque ficava muito tempo lá, sendo interrogado e ouvindo [...]. As pessoas abominavam Ney Matogrosso.” 58 No entanto, sempre subsistirá uma contradição entre a reserva e o pudor extremo do personagem e, por outro lado, a energia e a exuberância desenfreada que desenvolve no palco. Se, nestas condições, é-lhe mais difícil que para outros cantores guardar uma atitude serena em qualquer ocasião, o fato é que Ney é, sobretudo, um artista de referência que recorre a meios vocais, corporais e cênicos específicos adaptados ao seu projeto e que, apesar dos “excessos espetaculares”, consegue preservar a sua vida privada. O dilema crucial: afirmar-se cantor ou investir-se em qualidade de porta-voz? As considerações finais – e provisórias – que se pode tirar deste trabalho são diversas no sentido de que põem a nu os marcadores sexuados das performances – de maneira distinta para cada artista –, mas aponto de repente que esses critérios não permitem caracterizar formalmente um tipo de artista Depoimento de Ney Matogrosso dado a uma TV (Bandeirantes ?), incluído no DVD “Secos & Molhados + Ney Matogrosso 1975”. 58 Extrato da “Entrevista exclusiva com Ney e Chico Buarque”, nas faixas extras do DVD do espetáculo no qual Ney Matogrosso interpreta Chico Buarque: Um Brasileiro, Ney Matogrosso interpreta Chico Buarque, DVD Universal 325912006606, Rio de Janeiro, 2005. 57 107 homossexual que o distinga dos demais, cujo personagem no palco esteja em concordância homológica com o seu gênero, masculino ou feminino. Trata-se aqui mais da identidade sociossexual reivindicada – a adesão a uma comunidade de fato – do que de uma diferença formalmente estabelecida – em função das características das obras e das performances. Se conviesse definir uma fronteira, estar-se-ia antes diante da questão: trata-se de cantar para todos ou de dirigir-se a um grupo singular? A partição é geralmente realizada dentro do próprio grupo de artistas homossexuais: mais freqüentemente, o cantor homossexual dirige-se ao conjunto dos públicos recorrendo a um papel cênico que lhe é específico, com alusões fugazes, jogos de mãos, efeitos vocais sugestivos e um modo de comunicação cúmplice com os espectadores. O seu objetivo é então seduzir mostrando-se relativamente consensual e, se chega a tratar da homossexualidade, as palavras que incomodam ou o propósito trivial reduzem-se simplesmente a uma provocação estética. Neste sentido, Mayol, Molina, Matogrosso ou Dee seriam exemplos apropriados. Em outros casos, sendo uma escolha mais dolorosa, trata-se de focalizar primeiramente a comunidade homossexual, constituída ou postulada, trata-se de reuni-la com um discurso identitário exclusivo e uma temática narcisista, comprometendo-se de fato no combate sóciopolítico com o fim de promover um projeto de sociedade alternativa. A escolha intencional dos temas autoreferenciados e os eventos espetaculares distinguem então o cantor militante do conjunto dos profissionais. Neste caso, a função militante prima e testemunha uma opinião: as canções são apenas um dos meios, dentre outros, para fazer entender a sua diferença. Aprofundemos esta contradição inerente: o cantor homossexual unanimemente elogiado pelo seu talento fora do comum, à semelhança dos exemplos apresentados, não está jamais livre de críticas artísticas (nomeadamente censuras de afetação e denúncia do papel extrovertido) – mas qual artista pode orgulhar-se de escapar? Impressiona então constatar que sempre a posição deste artista se depara com o grau de aceitação social da diferença. 108 Assim: os ataques exacerbados que lhe são dirigidos (Mayol), a exclusão das grandes cenas (Waldoff), as perseguições policiais reiteradas (Bourbon), as preocupações com as autoridades e a censura do tempo da ditadura (Matogrosso), a prisão domiciliar e, em seguida, o desterro (Molina), até a morte que lhe é infligida pelo regime nazista (O’Montis), colocam este personagem ambivalente (homem e mulher ao mesmo tempo – mas também artista e simples cidadão) em vítima expiatória. Não são as outras formas da exclusão social como a posição de palhaço que lhe é atribuída (Charpini) ou o empurrão para a marginalidade e para a decadência dos costumes (Dee) que o resgatam. Todos estes ataques confirmam a minha proposição segundo a qual é o ser humano diferente, através da sua escolha de vida, do seu comportamento não-conformista, que é visado; e todos os casos mencionados sublinham a desconfiança em relação à alteridade em nossas sociedades – com matizes de acordo com as épocas. Em Calúnias, Ney Matogrosso ilustra efetivamente este julgamento social e as suas implicações na esfera do privado. De acordo com a lógica social dominante – que estabelece a norma –, o olhar do outro e a sua palavra nãoautorizada tornam-se acusações, que, conseqüentemente, obrigam o indivíduo “desviante” a desculpar-se, senão a enganar sobre a sua inclinação sexual: Calúnias (Telma, eu não sou gay) (Tell me once again) [Bee Anderson – paródia de Leo Jaime - Leandro Verdeal e Sérgio Abreu; gravação de Ney Matogrosso / 1983] Diz que vai dar, meu bem seu coração pra mim eu deixei aquela vida de lado e não sou mais um transviado Telma, eu não sou gay o que falam de mim são calúnias meu bem, eu parei […] não me puna por essas manchas do passado já passou… esses rapazes são apenas meus amigos… 109 Estas observações nos levam invariavelmente ao projeto criador dos cantores – cf. dialética finalidade/meios/impacto – em função das linhas de força determinadas pelo social. As tentativas marginais de Gil Cerisay e Gilles Méchin, na França, ou aquelas dos cantores estadunidenses Grant King, Janis Ian e Holly Near59, são ilustrações convincentes. Diferentemente das outras profissões artísticas menos “expostas” (romancista, artista plástico), o cantor é um personagem imediatamente público – aqui e agora no palco –, que deve permanentemente construir e gerir a sua imagem. Mayol já se queixava disso nas suas Memórias; Guidoni julgou útil falar de novo deste tema, declarando: “As pessoas me obrigam a justificar-me…” (op. cit., p. 108). Só a cantora Juliette, em um livro recente, maliciosamente intitulado Mensonges et autres confidences (Mentiras e outras confidências), arrisca-se a afirmar, com certo sentido de provocação, uma preferência sexual específica, mas admitindo logo que deve manter habilmente – e continuamente – uma ambigüidade literária fiadora de uma pertença sexual neutra ou mesmo opcional: On me demande souvent pourquoi je ne donne pas clairement la préférence à mes préférences, dans ces chansons qui parlent de désir: sont-ce des histoires de femmes à femmes puisqu’il est de notoriété publique que je suis de celles-là? En fait si je ne prends pas parti, c’est que je pense à l’universel (sic) et que je veux que mes textes puissent toucher même ceux qui ont une sensualité banale, attirés bêtement par l’autre sexe !! (Quant aux hommes qui aiment les hommes, c’est pareil, je veux pouvoir les atteindre !). Aussi me voilà condamnée à prétentieusement chercher le plus de neutralité possible, à éviter les adjectifs et les conjugaisons trop précis, à donner du “vous” et du “tu” indistincts et ambigus ! Mais franchement, c’est beaucoup plus amusant d’essayer d’éviter les pièges que de tomber dans les lieux communs !60 A notar que estes três artistas – e uns quinze mais – editaram, em 1995, um CD coletivo com vocação militante: A Love worth fighting for, com o objetivo de promover a luta homossexual e incitar outros músicos interessados a sair da sua posição enrustida. 60 Juliette, Mensonges et autres confidences, Paris: Les Éditions Textuel, Coll. Musik, 2005, p. 95. [N. do A. : este extrato reproduz o texto e a pontuação original] 59 110 Perguntam-me freqüentemente por que não dou claramente a preferência às minhas preferências, nestas canções que falam de desejo: trata-se de histórias de mulheres com mulheres, dado que é de notoriedade pública que sou daquelas? De fato, se não tomo partido, é que penso no universal (sic) e que quero que meus textos possam tocar mesmo os que têm uma sensualidade banal, atraídos estupidamente pelo outro sexo!! (quanto aos homens que gostam dos homens, é igual, quero poder atingi-los!). Então, me vejo condenada a pretensiosamente procurar a maior neutralidade possível, evitando os adjetivos e as conjugações demasiado precisas, dando uns “vocês” e outros “você” indistintos e ambíguos! Mas francamente, é muito mais divertido tentar evitar as armadilhas do que cair nos lugares comuns! Doravante, vemos que os eixos de pertinência que estruturam o espaço sociossemiótico do artista homossexual são a arte e a identidade, com a recepção pelos públicos em perspectiva,. Três campos nocionais abrem a visão dos possíveis da homossexualidade nas canções – e, por extensão, nas artes cênicas: IDENTIDADE: posição, atitude, revelação eventual, pertencimento, orgulho… ARTE: repertório, temática, performances, implicação, excelência, singularidade… RECEPÇÃO: audiência, acomodação, identificação, apropriação, reinterpretação… Esta investigação verifica assim o postulado inicial, segundo o qual são os processos sociais – incluídos os ditos artísticos – que orientam e determinam em primeiro lugar as obras da cultura de massa e a sua recepção. Finalmente, a posição social do artista homossexual não é separável daquela que ocupa o indivíduo homossexual em nossas sociedades e continua a ser dependente do grau da aceitação social – ou da recusa – da diferença e da alteridade. Portanto, salvo reivindicar o direito de jogar com a ambigüidade das situações, a exemplo de Juliette, não existe nenhuma posição serena nem banalização para o artista homossexual declarado – aquele que afirma uma 111 escolha de vida específica, porque a sua posição no espaço público continua a ser sobredeterminada pelo social: quadro jurídico, costumes e representações. Certos pesquisadores julgarão decepcionante a constatação de que os artistas homossexuais para todos os públicos – os que se acomodam ao compromisso sócio-sexual indicado neste texto conforme o modelo hegemônico, e que por isso se concentram sobre o único terreno do espetáculo – sejam permanentemente obrigados a comprometer-se, senão a enganar o público repelindo em parte a sua inclinação comportamental. Recordarei simplesmente que esta atitude é comum em todos os artistas da cena, cuja vocação primeira é deixar, em segundo plano, durante o tempo de uma representação, sua própria persona e o seu estatuto social a fim de criar e fazer compartilhar ilusão. A palavra final é tomada da obra já citada de Jean Guidoni; mas quem fala? É o homem comum, o cantor famoso em cena ou o mito nascente de um artista de personalidade complexa? Quelle importance, le corps ? Après tout, y a-t-il viol sur un homme? Je ne suis pas une femme. Je suis les deux; je ne suis ni l’un ni l’autre.61 Que importância tem o corpo? Afinal, existe estupro de um homem? Não sou uma mulher. Sou os dois; não sou nem um nem o outro. 61 Guidoni, Op. cit., p. 85. 112 Anexos Discografia Álbuns em vinil e CDs coletivos dedicados a este tema a. Domínio francófono Chansons érotiques, CD Musisoft SPMS 2003, 2000. Chansons interlopes 1908-1936, CD Les Gais-musettes LGM 1, 1997. Chansons interlopes (1906-1966), duplo CD Labelchanson LBC 001, 2006. Essayez donc nos Pédalos, vinyle autoproduit AT 26005, 1980. Les Pornographes vol. 3 “Mathis à voile et à vapeur”, vinyle Les Tréteaux LP 6367, 1980. Lesbos, anthologie poétique de l’amour féminin, vinyle Pacific 25 cm B 2264, s.d. 113 b. Outras culturas ocidentais A Gay century songbook (New York City Gay men’s chorus), CD DRG Records Inc. 19015, 2000. A love worth fighting for, vol. 1, CD Streeter Music ST 1001, 1995. Can’t help lovin’ that man, CD Columbia Legacy “Art Deco” CK/CT 53855, 1993. Die Schwule Plattenkiste, Schwules und Lesbiches in historischen Auhnahmen 1908-1933, CD Duophon / Berliner Musenkinder BEST Nr : 05 18 3, 2001. Ich will, daß es das alles gibt, Homosexualität aus Schallplatte, Teil 2 1952-1976, CD BEAR FAMILY BCD 16059 AS, 2004. Es ist ja ganz gleich wen wir lieben – Lieder vom anderen Ufer 19261942, CD Mister Phono, s. ref., 2005. Masculine women and feminine men, CD Flapper PAST CD 7072, 1995. Mischa Spolianski, Ein Komponistenportait – Es liegt in der Luft, CD Duophon / Berliner Musenkinder BEST Nr : 01 45 3, 1998. Sissy man blues, Authentic straight & gay blues & jazz vocals, CD Jass records / Milan CD CH 504, 1989. Was hast du für Gefühle, Moritz ?, “Schwule” Schlager des 20er und 30er Jahre, CD Truesound Transfers / Shimmy SH-7003, 2000. Wir sind wie wir sind !, Homosexualität aus Schallplatte, Teil 1 - 19001936, CD Bear Family BCD 16055 AS, 2002. Women like us : Lesbian favorites, CD Rhino Records 72915, 1997. Artistas estudados para escrever este artigo que publicaram álbuns em vinil, CDs ou DVDs Bacchus, Nicolas, Coupe d’immondes…, CD autoproduit BAC 9901, 1999. Bacchus, Nicolas, Balades pour enfants louches, CD autoproduit NBAC 0202, 2002. 114 Bacchus, Nicolas, À table, CD Kiui prod NBAC 0503, 2005. Bourbon, Ray, Integral em 9 CDs (canções, monólogos, gravações ao vivo), Cool Cat Daddy CCD CD 01 à 09, 2002. Byng, Douglas, One of the Queens of England, CD Windyridge-Variety VAR6, 2004. Caramels fous (Les), Il était une fois Tatahouine, CD Bastille Productions CFOU 0497, 1997. Cerisay, Gil, Homoportrait, vinyle Productions Gayrilla GAY 791, 1979. Cerisay, Gil, Âme frère, vinyle Productions Gayrilla GAY 811, 1981. Charmer (The) (aka Louis Farrakhan), Calypsos favorites 1953-54, CD Bostrox Records 9908, 1999. Charpini et Brancato, Succès et raretés – 1930-1938, CD Chansophone 117, 1992. Coccinelle, Chercher la femme, CD Marianne Mélodie 041625, 2004. Dee, Georgette (Georgette Dee and Terry Truck), Na Also ! - Goodbye -, CD Viellieb 016, 1998. Eller, Cássia, A Arte de Cássia Eller, CD Mercury/Universal 60249819907, 2004. Eller, Cássia, Acústico – MTV, DVD Mercury / Universal 04400609049, 2001. Guidoni, Jean, Je marche dans les villes, vinyle RCA 1980 – réédition CD Vogue VG 651 600238, 1989. Guidoni, Jean, Putains, vinyle Philips 1985 – réédition CD Universal 8344522, 1985. Hermon, Michel, Rue de la Gaité, vinyle Chant du Monde LDX 74733, 1980. Juliette, Irrésistible, CD Le Rideau bouge (dist. Scalen’ Disc) MT 102, 1993. Juliette, Rimes féminines, CD Le Rideau bouge (dist. Scalen’ Disc) MT 104, 1996 Juliette, Le Festin de Juliette, CD Polydor 589 593-2, 2002. 115 Juliette, Fantaisie héroique – Concert au Grand Rex, DVD Polydor/Universal 983 367 1, 2005. Lemper, Ute, Berlin cabaret songs, CD Decca 452 601-2, coll. “Entartete Musik”, 1997. Matogrosso, Ney, Vinte e cinco (Anthologie 1975-1996), CD duplo Mercury / Polygram 534348-2, 1997. Matogrosso, Ney, Ao vivo, DVD Universal 04400532099, 2000. Matogrosso, Ney, Batuque, DVD Mercury Universal 04400640739, 2001. Matogrosso, Ney, Um Brasileiro – Ney Matogrosso interpreta Chico Buarque, DVD Universal 325912006606, 2005. Mayol, Félix, Succès et raretés – 1904-1932, CD Chansophone 151, 1995. Méchin, Gilles, Il y a…, vinyle I rouge / Chant du Monde 74688, s. d. Méchin, Gilles, Tant je suis fou de vous, vinyle I rouge IR 82001, 1982. Méchin, Gilles, Chansons !… SOS !…, vinyle RGM 85001, 1985. Molina, Miguel de, Las Grabaciones de 1934 a 1949 [vol. 1], CD El Delirio SGAE 092, 1998. Molina, Miguel de, Las Grabaciones de 1934 a 1950 [voL. 3], CD El Delirio 8435022802820, 2000. O’Montis, Paul, Ich bin verrückt nach Hilde, CD Musik Antik MUSANT 002, 1997. Py, Olivier, Les Ballades de Miss Knife, CD Actes Sud AT 34113, 2002. Secos & molhados (com Ney Matogrosso), série Dois momentos (Integral 1973 e 1974), CD Continental (Warner) 857381095-2, 1999. Secos & molhados (documentos TV 1973 e 1974) e Ney Matogrosso (documentos TV 1975 até 2003), documento inédito: DVD Piratexrecords (sic), edição pirata, 2006. Solidor, Suzy, Succès et raretés – 1934-1935, CD Chansophone 109, 1991. 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Sua proposta é divulgar os resultados parciais das pesquisas realizadas por professores, alunos e outros pesquisadores participantes. Os Cadernos do GIPE-CIT podem ser encontrados na secretaria do PPGAC, na Escola de Teatro da UFBA e nas bibliotecas especializadas em artes cênicas. GIPE-CIT Endereço: Av. Araújo Pinho, 292, Canela CEP 40.110-150 Salvador - Bahia Telefax: (71) 3245 0714 E-mail: [email protected] Página do PPGAC/UFBA na Internet http://www.teatro.ufba.br/ppgac/ Página dos Cadernos Gipe-Cit na Internet http://www.teatro.ufba.br/gipe/