O desenvolvimento da escrita na criança, uma análise
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O desenvolvimento da escrita na criança, uma análise
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS Departamento de Metodologia de Ensino Trabalho de Conclusão de Curso O DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA NA CRIANÇA, UMA ANÁLISE COMPARATIVA DAS TEORIAS DE FERREIRO E LURIA Aluna: Larissa Mendes Gontijo Dornfeld Orientadora: Claudia R. Reyes São Carlos 2008 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS Departamento de Metodologia de Ensino Trabalho de Conclusão de Curso O DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA NA CRIANÇA, UMA ANÁLISE COMPARATIVA DAS TEORIAS DE FERREIRO E LURIA Larissa Mendes Gontijo Dornfeld Trabalho de Conclusão de Curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal de São Carlos. Orientado pela Profª. Drª. Claudia Raimundo Reyes, do Departamento de Metodologia de Ensino, Centro de Educação e Ciências Humanas. São Carlos 2008 3 Aos meus pais, Claudia e Leonardo, que sempre me incentivaram e apoiaram nos meus estudos e na minha vida, mesmo de longe muito me ajudam. 4 AGRADECIMENTOS À professora Claudia, por acreditar no meu trabalho e pelas orientações. Ao professor Nosella pelos sábios ensinamentos e pela compreensão. À professora Roseli e à Danitza por acreditarem no meu trabalho e pela participação na banca. Ao Maykon, companheiro para todas as horas, pela paciência e força nos momentos difíceis. Às grandes amigas Mônica, Silmara e Dalitha que muito me apoiaram durante esta jornada. 5 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8 CAPÍTULO 1: A PERSPECTIVA CONSTRUTIVISTA DE ALFABETIZAÇÃO.........10 1.1 As bases teóricas do trabalho de Ferreiro e Teberosky.................................................12 1.2 A metodologia de pesquisa...............................................................................................14 1.3 Concepção de escrita de Ferreiro....................................................................................16 1.4 Resultados das pesquisas desenvolvidas por Ferreiro e Teberosky.............................17 CAPÍTULO 2: A PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA................................................................................23 2.1 As bases teóricas do trabalho de Luria...........................................................................23 2.2 A metodologia de pesquisa...............................................................................................28 2.3 Concepção de escrita de Luria.........................................................................................30 2.4 Resultados das pesquisas desenvolvidas por Luria........................................................30 CAPÍTULO 3: ANÁLISE COMPARATIVA DAS PERSPECTIVAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO................................................................................................................36 3.1 As metodologias de pesquisa............................................................................................37 3.2 As concepções de escrita...................................................................................................38 3.3 Os resultados das pesquisas.............................................................................................41 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................44 REFERÊNCIAS......................................................................................................................47 6 RESUMO Este trabalho constitui-se em uma pesquisa bibliográfica que teve como objetivo comparar as teorias de Emilia Ferreiro e de Alexander Ramonovich Luria sobre o desenvolvimento da escrita na criança. Dessa forma, descreve as teorias desses autores tendo como eixos a concepção de escrita, a metodologia de pesquisa e os resultados dos estudos desenvolvidos para, posteriormente, realizar a análise comparativa desses aspectos. A análise realizada é importante devido à grande influência dessas pesquisas sobre os trabalhos dos professores alfabetizadores. Aponta aspectos semelhantes entre as duas teorias, mas conclui que elas não podem ser consideradas complementares, pois se apóiam em pressupostos teórico-metodológicos distintos. Palavras-chave: Desenvolvimento da escrita. Alfabetização. Construtivismo. Abordagem histórico-cultural. 7 ABSTACT This paper consists in a bibliographic insight that aimed to compare Emilia Ferreiro's and Alexander Ramonovich Luria's theories about developing writing skills in children. This way, it describes both authors' theories by having writing as its main field of address, the principles of scribbling, the research methodology and the developed study results in order that, later on, to perform comparative analysis with these data. The analysis done is important due to the great influence of these researches over the works done by Literacy teachers. It also entails similar aspects between these two theories, but it concludes that they do not complement each other since they are based on distinct theoretical-methodological assumptions. Keywords: development of scribbling, Literacy, Constructivism, Historic-Cultural Approach. 8 INTRODUÇÃO Este trabalho constitui-se em um Trabalho de Conclusão de Curso da graduação em Pedagogia da Universidade Federal do São Carlos-UFSCar, cujo objetivo é permitir aos alunos desse curso que aprofundem as experiências vivenciadas na graduação por meio da realização de um trabalho monográfico relacionado a um tema de interesse do estudante. Dessa forma, acreditamos que, ao pensar sobre o que é condição inicial para que um sujeito seja professor, a necessidade de habilitação profissional advinda da formação básica apresenta-se como elemento primeiro. [...] Pode-se dizer que no longo percurso que vai do tornar-se ao ser professor, a formação básica é o primeiro passo. Por intermédio, o estudante tem acesso a um corpo de saber, saber-fazer e normas e valores da atividade docente que o tornarão capaz de ingressar no magistério. Será a formação adquirida neste âmbito que diferenciará a sua função dos demais agentes da sociedade (MELLO, 1998, p. 18). Portanto, o curso de Pedagogia é o primeiro passo para tornar-se professor, para o exercício da docência. Desse modo, [...] “‘ser professor’ implica estar em contínua formação” (Ibid). Nesse sentido, quanto mais aprendemos sobre um tema, mais queremos buscar para aperfeiçoamento da nossa prática futura. É importante estar sempre em contínua formação, pois, quanto mais aprendermos, mais segurança teremos para ensinar. A monografia foi realizada sob orientação da Profª. Drª. Claudia Raimundo Reyes do Departamento de Metodologia de Ensino da Universidade Federal de São Carlos. Ela teve como tema o desenvolvimento da escrita na criança e buscou comparar as teorias de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky e Alexander Ramonovich Luria. Dessa forma, descrevemos e examinamos as concepções de escrita, as metodologias utilizadas no desenvolvimento das pesquisas e os resultados obtidos pelos pesquisadores com relação ao processo de desenvolvimento da escrita. A escolha da temática, desenvolvimento da escrita, justifica-se devido à grande influência dos trabalhos desses autores nas formas de ensinar a ler e a escrever dos professores, nos dias atuais. Considerando essa influência, acreditamos que este trabalho será de grande importância para formação de professores e professoras, pois ajudará a compreender que existem diferentes formas de pensar o processo de alfabetização. Além disso, as teorias desenvolvidas pelos autores contribuíram para romper com as concepções tradicionais de ensino-aprendizagem da língua escrita, o que dá possibilidade aos professores 9 alfabetizadores refletirem sobre sua prática e na participação da criança no seu processo de aprendizagem. Nesse sentido, parece-nos, a princípio, extremamente produtivo para o processo de construção de conhecimentos, o desenvolvimento de investigações que cotejam teorias sobre o mesmo tema, pois a comparação do instrumental analítica decorrente de suas construções teóricas amplia os recursos de interpretação e explicação de fenômenos complexos como a aquisição de um sistema simbólico culturalmente elaborado (AZENHA, 1996, p.9). [Além disso,] os educadores brasileiros têm como referência importante o trabalho de Piaget como fonte de reflexão sobre as inúmeras questões a serem enfrentadas pela educação e escolarização, e a divulgação mais recente das idéias de Vygotsky e do grupo de pesquisadores dos quais foi mentor tem levado a discussões que buscam pontos de convergência ou divergência entre os diferentes universos teóricos (Ibid., p.9-10). Assim, ao compararmos as duas teorias, criamos um contexto de discussão teórica sobre alfabetização inicial, fazendo com que para nós, professoras iniciantes e, talvez, para professores em exercício, comecemos a pensar sobre como queremos que seja a nossa prática e, como pesquisadoras, observar, com maior clareza, os pontos fortes e fracos das pesquisas sobre alfabetização para buscar novas formas de pensar o processo de ensino-aprendizagem. A metodologia de pesquisa definida para o desenvolvimento do trabalho foi a bibliográfica. O trabalho foi iniciado com um levantamento bibliográfico dos artigos, dissertações, teses e livros que tratavam do tema da pesquisa. Após esse levantamento, foi feita uma seleção dos textos relevantes para a pesquisa. Em seguida, foi realizada a leitura dos textos selecionados e o seu fichamento, para que pudéssemos desenvolver a análise comparativa das duas teorias. Este trabalho foi organizado em três capítulos. No primeiro, apresentaremos as análises elaboradas sobre o trabalho de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky. No segundo, o exame do estudo de Luria. Ao analisarmos os estudos, consideramos as bases teóricas, a metodologia de pesquisa, a concepção de escrita e resultados obtidos em cada uma das pesquisas. No terceiro, elaboramos as comparações entre os trabalhos; tomamos como referência os aspectos analisados em cada uma das teorias no primeiro e segundo capítulos. E, no último, apresentamos as considerações finais. 10 CAPÍTULO 1: A PERSPECTIVA CONSTRUTIVISTA DE ALFABETIZAÇÃO Neste capítulo, discutiremos as pesquisas realizadas por Emilia Ferreiro com Ana Teberosky. Desse modo, vamos destacar, principalmente, os resultados apresentados no livro “Psicogênese da língua escrita”, tratar das bases teóricas dos trabalhos desenvolvidos pelas autoras, a metodologia que orienta a pesquisa, a concepção de escrita e, finalmente, apresentar os resultados das pesquisas a respeito da evolução da escrita, já que pretendemos comparar os resultados das pesquisas dessas autoras com os da pesquisa de Luria sobre o desenvolvimento da escrita. Emilia Ferreiro é uma psicóloga argentina, licenciada pela Universidade de Buenos Aires em 1962 e doutora pela Universidade de Genebra, sob a orientação de Jean Piaget. Após seu doutoramento retornou, à Argentina, mas, devido ao golpe de Estado, passou a viver em exílio na Suíça, em 1977. Em 1979, muda-se para o México, país em que reside até hoje, onde publicou “Los sistemas de escritura em el desarrolo del nino” em co-autoria de Ana Teberosky, “contendo resultados e reflexões sobre as pesquisas realizadas na Argentina, nos anos 1974, 1975 e 1976, com seu grupo de pesquisa” (MELLO, 2007, p. 32). Em 1985, no Brasil essa obra é publicada com o nome “Psicogênese da língua escrita”. A pesquisa relatada nesse livro será objeto de estudo deste trabalho. Como mencionado, enfocaremos os pressupostos teóricos e a concepção de escrita que orientaram seus estudos, a metodologia usada no desenvolvimento de suas investigações. Além da obra mencionada, estudamos o livro “Reflexões sobre alfabetização”, que nos ajudou a compreender, principalmente, a concepção de escrita. A utilização da obra “Psicogênese da língua escrita” se justifica pelo fato de, segundo Mello (2007), ser um marco do pensamento construtivista de Emilia Ferreiro na alfabetização e ainda vale ressaltar que, embora tendo sido escrito em co-autoria com Ana Teberosky, ficou conhecido no Brasil como ‘O livro de Emilia Ferreiro”, e as idéias nele contidas ficaram conhecidas como o ‘construtivismo de Emilia Ferreiro’, pelo fato de a imagem da pesquisadora ter ganho proeminência desde seus primeiros contatos com educadores de nosso país (MELLO, 2007, p.19). Segundo Ferreiro e Teberosky (1999, p.17), o livro tem como objetivo “tentar uma explicação dos processos e das formas mediante as quais a criança consegue aprender a ler e a escrever”. Para isso, as autoras não propõem nem metodologias novas da aprendizagem nem nova classificação dos transtornos da aprendizagem, mas pensam em fazer uma interpretação dos processos de aprendizagem, do ponto de vista do sujeito que aprende e não do sujeito que 11 ensina com “embasamento nos dados obtidos no decorrer de dois anos de trabalho experimental com crianças entre quatro e seis anos” (Ibid., p.17). As autoras justificam a importância da pesquisa com base nos altos índices de repetência e evasão nas séries iniciais de escolarização, principalmente nas escolas públicas. A justificativa é apresentada na introdução do livro sob o título “A situação educacional da América Latina”. Fundamentadas nos dados da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), concluem que “o fracasso escolar nas aprendizagens iniciais é fato constatável por qualquer observador” (Ibid., p.18). De acordo com as autoras, apesar de as aprendizagens da ‘lectoescrita’1 e do cálculo elementar serem objetivos da instrução básica, preocupação central dos educadores e condição essencial para o sucesso escolar, o fracasso nessas aprendizagens é um problema que deve ser considerado pelos órgãos nacionais e internacionais, principalmente, porque costuma vir seguido do abandono da escola pelos aprendizes. Segundo Ferreiro e Teberosky (1999), diante do quadro de cerca de 800 milhões de adultos analfabetos no mundo, em 1977, a UNESCO convocou os estados a criar programas de alfabetização com financiamento destinado a armamentos. Assim, elas dizem que está implícito nessa decisão o reconhecimento do fracasso das campanhas de alfabetização realizadas no mundo e uma crítica à priorização da produção armamentista, o que confirma que o problema do aumento de analfabetos não é de ordem financeira. Trata-se de um problema de dimensões sociais do que da conseqüência de vontades individuais. Por essa razão, acreditamos que em lugar de ‘males endêmicos’, deveria se falar em seleção social do sistema educativo; em lugar de se chamar ‘deserção’ ao abandono da escola, teríamos de chamá-lo de expulsão encoberta. E não se trata de uma mudança de terminologia, mas de um outro referencial interpretativo, porque a desigualdade social e econômica se manifesta também na distribuição desigual de oportunidades educacionais (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p.20). Assim, as autoras colocam o fracasso escolar na alfabetização como central e remetem ao “papel social dos sistemas educativos” na busca de solução para esse problema. Por outro lado, revelam que os seus estudos visaram a dar respostas que tendessem à solução do problema do fracasso escolar, considerando o papel da pedagogia que orienta a ação educativa. 1 Termo utilizado pelas autoras para falar de leitura e escrita. 12 1.1 As bases teóricas do trabalho de Ferreiro e Teberosky Ferreiro e Teberosky (1999) debatem em seu livro os métodos tradicionais – propostas analíticas e sintéticas – de ensino da leitura e da escrita, mostrando que existe uma busca por parte dos educadores do método mais eficaz, o que gera uma grande polêmica. Assim, os sintéticos vão da parte para o todo e buscam a equivalência entre o oral e o escrito, tais como o método alfabético, que parte da letra, pouco usado e o método fonético, muito utilizado nos anos 70 na Argentina, o qual propõe a identificação do som com a grafia. Nesse sentido, Ferreiro e Teberosky (1999) dizem que essas propostas são mecânicas e voltadas para aquisição de técnicas de decodificação e codificação, tirando da leitura o seu significado social. As autoras mostram que essas práticas pedagógicas estão fundamentadas em concepções psicológicas associacionistas, isto é, o meio seleciona o que é socialmente aceito. Assim, o modelo tradicional associacionista da aquisição da linguagem é simples: existe na criança uma tendência à imitação, e no meio social que a cerca existe uma tendência a reforçar seletivamente as emissões vocálicas da criança que correspondem a sons ou a pautas sonoras complexas da linguagem própria desse meio social (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p. 24). Os analíticos ou globais vão do todo para as partes, isto é, podem partir dos textos, das orações ou das palavras. As autoras têm como objetivo mostrar, ao discutir esses métodos, que todos envolvem estratégias perceptivas, auditivas para as propostas sintéticas e estratégias visuais para as propostas analíticas, os quais necessitam, portanto, de pré-requisitos ou competências prévias para a “‘boa aprendizagem’ da escrita” (AZENHA, 1996, p.22). Apesar de esses métodos estarem amparados em concepções psicológicas diferentes do funcionamento do sujeito e em teorias da aprendizagem diversas, “ambos têm como ponto de partida a mesma concepção do aprendiz, vinculada ao associacionismo como teoria de aprendizagem da língua escrita, reduzindo-a à associação de respostas sonoras a estímulos gráficos” (Ibid., p.23). Contrariamente a essa visão, as autoras enfatizam “a idéia de que é a criança que aprende, mediante interação com o objeto de conhecimento”. Assim, não é o método que alfabetiza, mas as crianças que constroem o conhecimento em relação com a escrita. Dessa forma, as autoras colocam a criança no centro do processo de aprendizagem e consideram como inaceitável que os êxitos da aprendizagem sejam atribuídos ao método. Para as autoras, “[...] no lugar de uma criança que espera passivamente o reforço externo de uma resposta produzida [...] aparece uma criança que procura ativamente 13 compreender a natureza da linguagem que se fala à sua volta [...]” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p. 24), portanto, a criança aprende de forma ativa, formulando hipóteses, buscando regularidades, testando, criando uma gramática original e reconstruindo a linguagem com base em informações dadas pelo meio. Desse modo, os erros cometidos pela criança ao longo da aprendizagem fazem parte do processo, ou seja, são erros construtivos que não se fixam e permitem acertos posteriores, pois uma criança não regulariza os verbos irregulares por imitação, posto que os adultos não falam assim (uma criança filho único também o faz); não se regularizam os verbos irregulares por reforçamento seletivo. São regularizados porque a criança busca na língua uma regularidade e uma coerência que faria dela um sistema mais lógico do que na verdade é (Ibid., p.25). Ferreiro e Teberosky (1999) entendem a teoria de Piaget como uma teoria geral dos processos de aquisição de conhecimento e não como uma teoria dos conhecimentos lógicomatemáticos. Daí, a possibilidade de sua aplicação a domínios ainda pouco explorados, como o da aprendizagem da linguagem escrita. Assim, partem de pressupostos piagetianos e compreendem a escrita como objeto de conhecimento e o sujeito da aprendizagem como sujeito cognoscente, porque, para Piaget, os estímulos não atuam diretamente, mas sim [...] são transformados pelos sistemas de assimilação do sujeito (seus ‘esquemas de assimilação’): neste ato de transformação, o sujeito interpreta o estímulo (o objeto, em termos gerais), e é somente em conseqüência dessa interpretação que a conduta do sujeito se faz compreensível. [...] Então, um mesmo estímulo (ou objeto) não é o mesmo, a menos que os esquemas assimiladores à disposição também o sejam (Ibid., p.29-30 – grifo das autoras). Segundo as autoras, a construção de conhecimentos não é possível sem a ocorrência de conflitos cognitivos e eles ocorrem [...] quando a presença de um objeto (no sentido amplo de objeto de conhecimento) não assimilável force o sujeito a modificar seus esquemas assimiladores, ou seja, a realizar um esforço de acomodação que tenda a incorporar o que resultava inassimilável (e que constitui, tecnicamente, uma perturbação) (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p.34). De acordo com a teoria de Piaget, as autoras vêem as crianças como sujeitos produtores de conhecimentos e não apenas como receptores passivos que aprendem por meio da repetição e conseqüente memorização. Por isso, afirmam que a construção de conhecimentos pelos sujeitos aprendizes ocorre por meio de conflitos cognitivos que força os 14 seus esquemas assimiladores realizando novas acomodações. Segundo as autoras, é essencial detectar esses momentos sensíveis a conflitos e contradições para que possamos ajudar as crianças “a avançar no sentido de uma nova reestruturação” (Ibid., p.34). Ferreiro e Teberosky revelam ainda que [...] a aprendizagem da leitura, entendida como questionamento a respeito da natureza, função e valor desse objeto cultural que é a escrita, inicia-se muito antes do que a escola imagina, transcorrendo por insuspeitados caminhos. Que, além dos métodos, dos manuais, dos recursos didáticos, existe um sujeito que busca a aquisição de conhecimento, que se propõe problemas e trata de solucioná-los, segundo sua própria metodologia [...] (FERREIRO; TEBEROSKY apud AZENHA, 1993, pp.37-38). Assim, conforme a opinião, análise das autoras, a leitura e a escrita estão presentes no meio social das crianças, e não apenas na sala de aula; portanto, quando as crianças chegam à sala de aula, independentemente de sua classe social, já pensam algo sobre a leitura e a escrita, ou seja, já têm concepções sobre elas, pois “saber algo a respeito de certo objeto não quer dizer, necessariamente, saber algo socialmente aceito como ‘conhecimento’” (FERREIRO, 2001, p.17). 1.2 A metodologia de pesquisa No desenvolvimento das pesquisas, ancoradas nos pressupostos piagetianos sobre a psicogênese dos conhecimentos, a metodologia usada pelas autoras é o método de indagação, inspirado no ‘método clínico’ de Piaget. Este consiste em um diálogo com a criança de forma sistemática, a fim de apreender a seqüência dos seus pensamentos a partir do que ela responde ou faz sobre o que foi proposto. Portanto, o método clínico é um procedimento de entrevista com as crianças, com coleta e análise de dados, onde se acompanha o pensamento da criança, com intervenção sistemática, elaborando sempre novas perguntas a partir das respostas das crianças e, avaliando a qualidade e abrangência dessas respostas. Também se avalia a segurança que a criança tem sobre suas respostas diante das contra-argumentações (BAMPI, 2006). Segundo Ferreiro e Teberosky, foi justamente o modelo do interrogatório e a flexibilidade da situação experimental que lhes permitiram encontrar respostas inesperadas para um adulto e, simultaneamente, elaborar hipóteses para compreender seu significado. Para as autoras, é essencial o pressuposto piagetiano de que a “aprendizagem da leitura e da escrita 15 se dá mediante a interação da criança com o objeto de conhecimento, que neste caso é a escrita” (MELLO, 2007, p. 57). Com base nesse pressuposto e nos dados obtidos nas situações experimentais, elas mostram que as crianças têm idéias, pensamentos e hipóteses sobre a língua escrita e que essas idéias vão se modificando até as crianças adquirirem o domínio do caráter alfabético da escrita. Elas utilizaram, para análise dos resultados, o método qualitativo, com alguns dados quantitativos para indicar a freqüência das respostas. Não realizaram a avaliação de respostas certas e erradas, pois tinham a intenção de entender a conceitualização da criança em relação à leitura e escrita, portanto, o que motivava seus “erros”. Na realização das situações experimentais, que exigiam a interação dos sujeitos com objeto de conhecimento, fazia-se que eles passassem por situações conflitivas para que pudessem resolvê-las. Essas situações “envolviam tanto os atos de produção gráfica quanto os de interpretação do código alfabético” (MELLO, 2007, p.75). Então, o experimentador propunha diversas tarefas, por meio de entrevistas individuais, para saber o processo pensado pelas crianças e as concepções delas sobre a escrita. Essa entrevista tinha um roteiro elaborado previamente, mas “sempre que necessário o experimentador fazia outras perguntas, com intenção de ajudar a criança a resolver ‘um conflito’” (Ibid., p. 76). Assim, a pesquisa tem como objetivo estudar o processo de construção dos conhecimentos no domínio da língua escrita, a partir de: a) identificar os processos cognitivos subjacentes à aquisição da escrita; b) compreender a natureza das hipóteses infantis; e c) descobrir o tipo de conhecimentos específicos que a criança possui ao iniciar a aprendizagem escolar (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p. 35). Assim, ela é dividida em duas etapas: a primeira “foi realizada no ano de 1974, por meio de estudo de caso longitudinal” 2 (MELLO, 2007, p.76), com a participação de trinta crianças que cursavam a primeira série de escolarização, de classe baixa, filhos de operários ou trabalhadores temporários, moradores de favelas. Esse estudo foi finalizado com a participação de 28 crianças. Os resultados mostraram que a aprendizagem da criança segue por vias desconhecidas dos professores e que as crianças de classe social baixa não começam sua aprendizagem do zero; a segunda consistiu em um estudo transversal, 3 realizado nos anos de 1975 e 1976, com a participação de 68 crianças das classes sociais “baixa” e “média” 2 Estudo que acompanha o comportamento de determinados sujeitos ao longo de um processo para identificar mudanças que ocorrem durante este processo. 3 “Os estudos transversais procuram identificar a seqüência de estados ou de mudanças que ocorrem durante determinado processo, comparando-se sujeitos em diferentes estágios desse processo” (MELLO, 2007, p.77). 16 (filhos de engenheiros, psicólogos, médicos, entre outros), de quatro a seis anos de idade. A realização dos estudos longitudinal e transversal permitiu às pesquisadoras comparar o desenvolvimento das crianças de classe baixa e de classe média. 1.3 Concepção de escrita de Ferreiro Ferreiro (2001, p. 9) argumenta: “Tradicionalmente, a alfabetização inicial é considerada em função da relação entre método utilizado e o estado de ‘maturidade’ ou de ‘prontidão’ da criança”. Assim, para começar a ler e a escrever, é necessário ter a criança alcançado um determinado nível de desenvolvimento, ou seja, ter capacidade de efetuar discriminações auditivas, sonoras e visuais, isto é, ter competências perceptivas e motoras para que possa aprender. Segundo a posição de Azenha (1996, p. 23), nessa perspectiva, há uma redução da aprendizagem da língua escrita “à associação de respostas sonoras a estímulos gráficos”, ou seja, escrever é um processo de codificação e ler um processo de decodificação. De acordo com Ferreiro (2001, p.10), a escrita pode ser entendida como “uma representação da linguagem ou como um código de transcrição gráfica das unidades sonoras” (grifos da autora). Além disso, “a invenção da escrita foi um processo histórico de construção de um sistema de representação, não um processo de codificação” (Ibid., p.12). Então, as dificuldades encontradas pelas crianças são dificuldades conceituais parecidas com as da construção do sistema. Assim, elas reinventam esses sistemas, pois, para entendê-los, precisam compreender seu processo de construção e suas regras de produção. Logo, se a escrita é concebida como um código de transcrição, sua aprendizagem é concebida como a aquisição de uma técnica; se a escrita é concebida como um sistema de representação, sua aprendizagem se converte na apropriação de um novo objeto de conhecimento, ou seja, em uma aprendizagem conceitual (FERREIRO, 2001, p.16). Nesse sentido, Ferreiro e Teberosky procuram “não identificar leitura com decifrado” (apud MELLO, 2007, p. 69), pois ler não é o mesmo que decodificar grafias em sons, não podendo reduzir a leitura a puro decifrado; nem podemos, de acordo com as autoras, “identificar escrita com cópia de um modelo externo” (Ibid., p.69), pois “escrita não é cópia passiva, mas interpretação ativa dos modelos do mundo adulto; ao interpretar, a criança põe em suas hipóteses acerca do significado da representação gráfica” (MELLO, 2007, p.69). Ademais, os 17 progressos na leitura e na escrita não podem ser vistos como avanços no decifrado ou na exatidão da cópia. De acordo com Mello, não é o método que alfabetiza, mas a criança que aprende, na interação com o objeto de conhecimento, a leitura e a escrita. Então, “as escritas de tipo alfabética (tanto quanto as escritas silábicas) poderiam ser caracterizadas como sistemas de representação cujo intuito original – e primordial – é representar as diferenças entre os significantes” (FERREIRO, 2001, pp.13-14). 1.4 Resultados das pesquisas desenvolvidas por Ferreiro e Teberosky Neste item, trataremos os resultados das pesquisas de Ferreiro e Teberosky (1999), porém somente os resultados referentes à evolução da escrita, pois o objetivo do trabalho é estudar a concepção de alfabetização de Ferreiro para, posteriormente, compará-la com a concepção de alfabetização defendida por Luria. Assim, sendo esse o ponto central da pesquisa, para não perdermos de vista os objetivos traçados, já que Luria trabalhou apenas com o desenvolvimento da escrita (evolução da escrita), não falaremos dos resultados referentes à leitura apresentada por Ferreiro e Teberosky (1999) no livro Psicogênese da língua escrita. De acordo com os resultados da pesquisa, expostos no capítulo 6 do livro Psicogênese da língua escrita, Ferreiro e Teberosky (1999) revelam, em primeiro lugar, que, desde muito pequenas, as crianças assistem a diversos atos de leitura e de escrita. Dessa maneira, a criança é capaz de produzir escritas desde a mais tenra idade. Suas “primeiras tentativas de escrita são de dois tipos: traços ondulados contínuos [...] ou uma série de pequenos círculos ou de linhas verticais” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p.191). Conforme assinalado pelas autoras, “nesse momento, já existe escrita nas crianças”, que começa a partir dos 2 anos e meio ou 3 anos, a qual já uma semelhança global do traçado do adulto: traçados ondulados representam a escrita cursiva e os círculos e riscos verticais, a escrita de imprensa. Porém, “imitar o ato de escrever é uma coisa, interpretar a escrita produzida é outra” (Ibid., p.191). Com base na diferenciação entre imitação e interpretação, as autoras perguntam: “a partir de que momento a criança dá interpretação a sua escrita? Em outras palavras, a partir de que momento deixa de ser um traçado para se converter numa representação simbólica?” Segundo Ferreiro e Teberosky (1999), a essas perguntas só se pode responder mediante a realização de estudos longitudinais que comecem com crianças com idades de dois a três anos. No momento da elaboração do livro, elas não tinham respostas satisfatórias para essas 18 questões e, por isso, relatam os resultados com base nas pesquisas que haviam conseguido realizar. Nas propostas de escrita organizadas pelas autoras, elas exploravam a escrita das crianças de várias maneiras: pedindo que escrevessem o próprio nome, o nome de amigo ou membro da família, contrastando situações de desenho com escrita, solicitando que escrevessem palavras com as quais iniciavam o aprendizado escolar e sugerindo que escrevessem palavras que não conheciam e, por fim, experimentassem escrever também pequenas orações. Elas sempre pediam às crianças que, após a escrita das palavras, lessem o que tinham escrito, imediatamente após a escrita e, se possível, alguns minutos depois. Então, os estudos realizados com crianças de 4 a 6 anos das duas classes sociais permitiram às autoras definir cinco níveis do desenvolvimento da escrita. No nível 1, segundo as autoras, “escrever é reproduzir os traços típicos da escrita que a criança identifica como a forma básica da mesma” (Ibid., p.192). Quando a forma básica conhecida pela criança é a escrita de imprensa, temos grafismos separados entre si, compostos de linhas cursas. Mas, se temos grafismos ligados por uma linha, essa forma básica será a escrita cursiva. Desse modo, o tipo de letra usado na escola ou no meio social interfere na forma como a criança produz suas primeiras escritas. Entretanto, segundo elas, somente nas grafias de imprensa é que evidenciamos “duas hipóteses de base sobre as quais trabalha a criança [...]: as grafias são variadas e a quantidade de grafias é constante” (FERREIRO; TEBEROSKI, 1999, p.202). Apesar de as crianças fazerem traços muito parecidos entre si, elas podem identificálos como diferentes. Nesse momento, a escrita não é vista como “[...] veículo de transmissão de informação: cada um pode interpretar a própria escrita [...]”, (Ibid., p.193), pois cada uma sabe o que escreveu, mas ela não pode ser interpretada por outras pessoas. Além disso, o tamanho da escrita é proporcional ao tamanho ou à idade da pessoa, animal ou objeto, cujos nomes se escrevem. Então, nesse nível, de acordo com as pesquisadoras, as crianças não reproduzem as características dos objetos, ou seja, não usam, grafias circulares para escrever bola, ou ângulos para escrever casa, mas um número maior de grafias ou grafias maiores, ou fazem um comprimento maior do traçado total se objeto é grande, mais comprido se uma pessoa é mais velha. É observada também, nesse momento, uma dificuldade momentânea em diferenciar as atividades de escrever e desenhar, pois “ambas são produtoras de grafias interpretáveis, mas o modo de remeter ao objeto próprio do desenho não é o mesmo que o modo de remeter ao objeto próprio da escrita (nem sequer a este nível)” (FERREIRO; TEBEROSKI, 1999, p.198). 19 Nesse sentido, o desenho aparece dando apoio à escrita e garantindo o seu significado. De acordo com Ferreiro e Teberosky (1999), há também uma modificação da orientação espacial considerada como normal, pois, “em alguns casos, estas inversões são voluntárias, e testemunham um desejo de exploração ativa dessas formas dificilmente assimiláveis” (Ibid., p.201). Para visualizarmos, segue um exemplo de uma escrita no nível 1: Escrita de uma criança participante da pesquisa de Ferreiro e Teberosky1 O que marca o final desse nível é o fato de as crianças formularem duas hipóteses acerca das características que a sua escrita deve ter para ser interpretável. Dessa forma, estabelece que, para ser lida, a escrita precisa ter grafias variadas e quantidade de grafias constantes, ou seja, escrevem observando a variação e a quantidade mínimas de caracteres. No nível 2, as crianças consideram que, “para poder ler coisas diferentes, deve haver uma diferença objetiva nas escritas” (Ibid., p.202). Há também a utilização de modelos conhecidos para escrever novas palavras. Elas mantêm, nesse nível, as hipóteses de quantidade e de variedade mínimas de caracteres para poder escrever algo, mantendo, como no nível anterior, uma quantidade de grafias constantes. Podemos observar que “a partir desses modelos, Martín, conservando um número fixo de 5 ou cinco grafias, propõe: MINMA = sapo MIMIT = pato OTIM = urso OBTMN = coelho MILTE = minha menina toma sol” (Ibid., p.208). 1 Figura retirada do livro “Psicogênese da Língua Escrita” de Ferreiro e Teberosky (1999). 20 Ferreiro e Teberosky (1999) dizem que a aquisição de formas fixas de escrita pode levar a duas reações opostas: bloqueio e utilização dos modelos adquiridos para novas escritas. Com isso, o bloqueio, que pode ser profundo ou momentâneo, leva a criança pensar que se aprende a escrever copiando e que não é possível escrever de outra forma. A aquisição de formas fixas se deve às influências culturais, mais presentes na classe média. Assim, um exemplo dado pelas autoras é de Laura: “quando lhe perguntamos o que sabe escrever, responde assim: ‘mamãe, papai, urso, Laura’ [...]” (Ibid., p.206). As pesquisadoras dizem que ela se nega a escrever as outras palavras propostas, porque “isso não aparece no meu livrinho” (Ibid., p.206). “[...] Além disso, assinalemos que a regra geral é uma proeminência marcante da escrita em maiúsculas de imprensa sobre a cursiva” (Ibid., p.208), pois essas aparecem com maior freqüência na amostragem das pesquisadoras, sendo que as formas em cursiva “indicam claramente a origem extra-escolar deste conhecimento” (Ibid., p.209) e, segundo, porque a escrita de imprensa é mais fácil da criança ver e aprender a traçar. Já o nível 3 é caracterizado “pela tentativa de dar um valor sonoro a cada uma das letras que compõem uma escrita” (Ibid., p.209). Nesse momento, há uma superação da correspondência global da escrita para uma correspondência entre partes do texto; portanto, pela primeira vez, a criança começa a trabalhar com “a hipótese de que a escrita representa partes sonoras da fala” (Ibid., p. 209), isto é, a hipótese silábica, que pode ter valor sonoro estável ou não. Nessa hipótese, podem aparecer duas características do nível anterior: variedade e quantidade mínima de caracteres. Segundo as autoras, “a hipótese silábica é uma construção original da criança que não pode ser atribuída a uma transmissão por parte do adulto” (Ibid., p. 213). Nesse nível, podemos evidenciar exemplo a escrita de Mariano, citado no estudo de Ferreiro e Teberosky (2003) que escreve AO para “sapo” e PO para “pau” (palo), e ainda, segundo as autoras, “ela faz uma análise silábica exaustiva na oração ‘minha menina toma ‘sol’ e escreve IEAOAO” (Ibid., p.211). No nível 4, ocorre a “passagem da hipótese silábica para a alfabética” (Ibid., p.214), havendo assim um conflito entre hipótese silábica e formas fixas recebidas do meio social, principalmente do próprio nome, que é muito ensinado pelos pais mesmo antes de a criança entrar na escola. Além disso, de acordo com Ferreiro e Teberosky, o conflito torna-se mais intenso, tratando-se da escrita de nomes de que a criança não tem uma imagem visual estável entre a hipótese silábica e a quantidade mínima de caracteres. Esse é o momento “quando a criança descobre que a sílaba não pode ser considerada como uma unidade, mas que ela é, por sua vez, reanalisável em elementos menores [...]” (FERREIRO, 2001, p.27). Para ilustrar 21 temos a escrita de Geraldo de seis anos, exemplificada no texto de Ferreiro e Teberosky (2003), “em plena transição entre a hipótese silábica e a escrita alfabética propõe: MCA = ‘mesa’ (mesa)2 MAP = ‘mapa’ (mapa) PAL = ‘pau’ (palo)” (FERREIRO; TEBEROSKI, 1999, p.216). No nível 5, a criança escreve alfabeticamente e é o final dessa evolução. Nesse momento, há uma “ampliação dos critérios quantitativos [...], já que a criança incorpora de que a escrita da sílaba falada nem sempre pode ser realizada com uma letra [...]” (AZENHA, 1996, p. 37). Segundo Ferreiro e Teberosky (1999), a criança se defronta com dificuldades próprias da ortografia, mas sem problemas de escrita no seu sentido estrito. Como exemplo, podemos observar a escrita de Vanina: MESA = MESA (só ficou na dúvida se escrevia com S ou com Z). PALO = PALO YO ME LLAMO VANINA = LLO ME LLAMO VANINA. De acordo com Mello (2007), as hipóteses infantis, no processo de aprendizagem, podem ser agrupadas em três categorias: na primeira, por meio de uma leitura global, as crianças buscam condições necessárias para que algo possa ser lido com base nos princípios de quantidade mínima e variedade de caracteres; na segunda, ainda utilizando uma leitura global, as crianças usam características dos objetos na escrita de seus nomes e a terceira, as crianças deixam a leitura global para correspondência entre partes, que é caracterizada por três hipóteses denominadas silábica, silábico-alfabética e alfabética. A autora conclui a evolução da escrita na criança com base em um texto escrito por Ferreiro em 19953 sobre a psicogênese da língua escrita. Valendo-se de seus estudos, Ferreiro e Teberosky puderam observar que nem todas as crianças avançam de uma mesma maneira, mesmo que tenham utilizado uma mesma metodologia para todas. Aquelas que chegam a aprender a ler e a escrever são as que já estavam em níveis mais avançados na conceitualização, principalmente na hipótese silábica. 2 Em todos os casos o que está entre parênteses é a versão original em espanhol. FERREIRO, Emilia. Desenvolvimento da alfabetização: psicogênese. In: GOODMAN, Y. M. (Org.). Como as crianças constroem a leitura e a escrita: perspectivas piagetianas. Trad. Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. 3 22 Assim, de acordo com as autoras, parece que o modo como o ensino é organizado (baseado no trabalho com as relações entre sons e letras) dirige-se exclusivamente às crianças que já percorreram um longo caminho antes de entrar na escola. Apresentamos, neste capitulo, a partir do livro “Psicogênese da Língua Escrita”, o pensamento construtivista de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky. Elas acreditam que a aprendizagem da escrita não se inicia na escola, mas dão ênfase à fase silábica da escrita. No próximo capítulo discutiremos os estudos de Luria sobre o desenvolvimento da escrita na criança, orientados pela perspectiva histórico-cultural no campo da Psicologia. 23 CAPÍTULO 2: A PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA Neste capítulo, discutiremos a pesquisa realizada por Luria. Assim, destacaremos, principalmente, os resultados apresentados no seu texto intitulado “O desenvolvimento da escrita na criança”. Trataremos as bases teóricas do trabalho realizado pelo autor, a metodologia que orienta sua pesquisa, a concepção de escrita e, finalmente, apresentaremos os resultados constantes no relatório de pesquisa. Alexander Romanivich Luria nasceu em 1902, em uma pequena cidade chamada Kazan no leste de Moscou. Na Universidade matriculou-se, no Departamento de Ciências Sociais, aos 16 anos e se formou aos 19 anos, em 1921, mas seu grande interesse estava voltado para a psicologia. Em 1924, conheceu Vigotski, que afirmava “não ser papel dos psicólogos formular coletâneas de citações de Marx e Engels sobre diversos aspectos da psicologia humana, mas sim introduzir na ciência psicológica o método marxista” (Retirado do Livro: Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem). Luria, Vigotski e Leontiev desenvolveram um novo tipo de psicologia, na qual relacionam os processos psicológicos com os aspectos históricos, culturais e instrumentais. De acordo com Luria, ele nada fez do que seguir as linhas de pesquisas e hipóteses formuladas por Vigotski. A pesquisa de Luria teve como referência teórica as idéias de Vigotski. No texto intitulado “A pré-história da linguagem escrita”, Vigotski “critica a forma como a escola lida com o ensino da linguagem escrita, reservando a ela um papel muito pequeno e desproporcional à importância da escrita no desenvolvimento cultural da criança” (AZENHA, 1996, p.38). O texto de Luria foi escrito no contexto da Rússia pós-revolucionária, “como parte da tarefa a que se impôs um grupo de pesquisadores dispostos a fazer a revisão da psicologia soviética” (Ibid., p.16), mas o texto ainda é considerado como contemporâneo. Vigotski (apud AZENHA, 1996, p.16) destaca que, até o momento em que elaborou o texto sobre a pré-história da escrita, tinha sido dada pouca atenção ao estudo da escrita, pois esta era considerada como mera habilidade motora. 2.1 As bases teóricas do trabalho de Luria Para tratar a relação entre o desenvolvimento e os processos educacionais, Vigotski revela que a vida da criança muda muito, quando ela vai para escola, pois passa a estar 24 envolvida por um conjunto de relações sociais (colegas, professores, funcionários entre outros) diferentes daquelas a que estava acostumada e por uma nova atividade. Desse modo, a aprendizagem escolar a leva ao desenvolvimento de novas funções e à reestruturação das existentes. Ao estabelecer os pressupostos fundamentais da psicologia histórico-cultural, Vigotski nos remete ao psiquismo humano além dos modelos mecanicistas de desenvolvimento. Segundo Shuare (apud FACCI, 2004, p. 65), os fundamentos marxistas enfatizam que mudanças históricas na sociedade e na vida material produzem mudanças na consciência e no comportamento humano. Existe um desenvolvimento histórico dos fenômenos psíquicos e estes mantêm uma relação de dependência essencial com respeito à vida e à atividade social [...]. Portanto, de acordo com Vigotski (apud FACCI, 2004), a criança se desenvolve por meio da mediação de instrumentos e do meio social, e as funções psicológicas superiores típicas do ser humano, como a memória e a abstração, têm uma base biológica, mas a constituição dessas funções é caracterizada pela interação com o meio social em que a criança está inserida. O desenvolvimento histórico da humanidade constituiu as formas superiores de comportamento nas relações entre os homens. Assim, o desenvolvimento não deve ser visto como um mecanismo adaptativo do comportamento, mas deve-se compreender “[...] a relação da criança com a sociedade construída historicamente a partir das necessidades dos homens” (FACCI, 2004, p.66). Segundo Elkonin e Leontiev (apud FACCI, 2004), colaboradores de Vigotski, “[...] cada estágio de desenvolvimento da criança é caracterizada por uma relação determinada, por uma atividade principal [dominante] que desempenha a função de principal forma de relacionamento da criança com a realidade” (Ibid., p.66). A atividade dominante é aquela que a crianças de determinada idade se concentra, num longo período de tempo, em fazê-la, e as outras atividades são denominadas secundárias, pois as crianças as realizam, mas durante pouco tempo. Porém, de acordo com Vigotski, como mostra Facci (2004), a atividade principal desenvolvida pela criança em determinada idade será determinada pela cultura, portanto, não é um processo natural, mas algo influenciado pelo meio social que determinará qual atividade é primária e qual é secundária, mostrando que o processo de desenvolvimento psicológico varia de acordo com o meio social em que as crianças vivem. É a sociedade que determina o conteúdo e a motivação na vida da criança, pois todas as atividades dominantes aparecem como elementos da cultura humana [...] e 25 as atividades são dominantes em determinados períodos e, no período seguinte, não deixam de existir, mas vão perdendo força [...] (FACCI, 2004, p. 72). Para Vigotski as idades constituem formações globais e dinâmicas e as estruturas determinam o papel e o peso específico de cada linha parcial de desenvolvimento (FACCI, 2004, p. 75). Vigotski (apud FACCI, 2004) diz que as relações entre desenvolvimento e aprendizagem são complexas, pois ele identificou dois níveis desenvolvimento: o efetivo ou real e o próximo, visto que o desenvolvimento real pode ser determinado pelas atividades que as crianças conseguem realizar sozinhas. Já o desenvolvimento próximo pode ser observado nas atividades que as crianças não conseguem fazer sozinha, precisando de auxílio de alguém que saiba realizá-las. “À medida que ocorre a interação com outras pessoas, a criança é capaz de movimentar vários processos de desenvolvimento que, sem ajuda, seriam impossíveis de ocorrer” (FACCI, 2004, p. 78). De acordo com a teoria de Vigotski (2001b), o desenvolvimento de conceitos científicos baseia-se na mediação com o outro, no auxílio e na participação do adulto na vida da criança. Assim, os conceitos científicos não são diretamente acessíveis às crianças e, por isso, precisam ser sistematizados e ensinados na escola por pessoas que os dominam. Porém, de acordo com Vigotski, uma escola de pensamento acredita que os conhecimentos científicos não têm nenhuma história interna, isto é, não passam por nenhum processo de desenvolvimento, sendo absorvidos já prontos mediante um processo de compreensão e assimilação; esses conceitos chegam à criança em forma pronta ou ela os toma de empréstimo ao campo do conhecimento dos adultos, e o desenvolvimento dos conceitos científicos deve esgotar-se essencialmente no ensino de conhecimento científico à criança e na assimilação dos conceitos pela criança (2001b, p.245). Vigotski (2001b) quer mostrar que, na verdade, a criança chega à escola, não como uma tábua rasa, como pressupõe a teoria associacionista, mas com alguns conhecimentos, os quais foram desenvolvidos fora da escola, os chamados conceitos cotidianos4. Então, a aprendizagem dos conceitos científicos transmitidos pelo educador propiciará novos processos de desenvolvimento e a reestruturação dos conceitos aprendidos no cotidiano e os conceitos cotidianos provocarão mudanças nos conceitos científicos. Assim, eles são interdependentes. As crianças chegam à instituição escolar com conceitos que influenciam o 4 Vigotski usou o termo conceito cotidiano para evidenciar que esses conceitos se desenvolvem na criança sob a intervenção do meio social. Desse modo, ele distinguiu a sua visão da perspectiva piagetiana que considera que esses conceitos são espontâneos, porque se desenvolvem na criança sem influência do meio social. 26 modo como se apropriam dos conceitos ensinados nessa instituição. Porém, Vigotski, influenciado por Tolstói, afirma que [...] o ensino consciente de novos conceitos e formas da palavra ao aluno não só é possível como pode ser fonte de um desenvolvimento superior dos conceitos propriamente ditos e já constituídos na criança, que é possível o trabalho direto com o conceito no processo de ensino escolar (VIGOTSKI, 2001b, p. 250). Diante disso, o conceito não deve ser transmitido de forma mecânica, por meio de memorizações e repetições, mas exige que o professor dê ao aluno a possibilidade de adquirir novos conceitos e novas palavras de formas diversas, pois o processo de formação de conceitos (em termos psicológicos) engloba operações internas complexas (memória, atenção, abstração, capacidade de comparar e diferenciar) e, para apreendê-los, a criança necessita de uma intensa atividade mental. A escola, portanto, torna-se fundamental nesse processo, já que a assimilação desses conceitos necessita da relação com o mundo externo e com os conceitos anteriormente elaborados aos conceitos agora ensinados pela escola, para o pleno desenvolvimento da criança. Conforme assinala Gontijo (2002), a apropriação da linguagem escrita deve ser situada no processo de desenvolvimento de conceitos na infância. Assim, o seu domínio pela criança não deve ocorrer de forma mecânica com associação de letras e sons apenas, pois, para Vigotski, a linguagem escrita “[...] é, na realidade, o resultado de um longo desenvolvimento das funções superiores do comportamento infantil” (apud GONTIJO, 2008, p. 39). Dessa forma, o desenvolvimento é construído ao longo de sua vida, nas constantes interações com o meio social em que vive. As formas psicológicas superiores emergem da vida social, assim o desenvolvimento do psiquismo humano é sempre mediado pelo outro. Para Gontijo (2008, p.38), o desenvolvimento da escrita integra o desenvolvimento da linguagem na infância e possibilita que a criança amplie e diversifique duas possibilidades de expressão por meio da linguagem e de integração com outras pessoas. Esse é um princípio fundamental, pois se alicerça na idéia de que a escrita é linguagem e não apenas um sistema de símbolos gráficos que representa os sons da fala. Vigotski (2000) assinala que a tendência, em sua época, em valorizar somente os aspectos mecânicos da escritura se refletiu na prática de ensino da linguagem escrita e na forma como era concebida teoricamente. Vigotski apontou a grande dificuldade no estudo do desenvolvimento da linguagem escrita. Esta é vista como “um sistema complexo de signos, o seu domínio pela criança implica o ápice de um processo longo de desenvolvimento de funções comportamentais 27 complexas” (AZENHA, 1996, p. 38). Essa complexidade ocorre devido às involuções e descontinuidades no desenvolvimento. Então, isso significa que, juntamente com processo de desenvolvimento – movimento progressivo – e com o aparecimento de formas novas, podemos distinguir, a cada passo, processos de redução, desaparecimento e desenvolvimento reverso de formas. A história do desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças é plena dessas descontinuidades. Às vezes, a sua linha de desenvolvimento parece desaparecer completamente, quando, subitamente, como que do nada, surge uma nova linha; e a princípio parece não haver continuidade alguma entre a velha e a nova. Mas somente a visão ingênua de que o desenvolvimento é um processo puramente evolutivo, envolvendo nada mais do que acúmulos graduais de pequenas mudanças e uma conversão gradual de uma forma em outra pode esconder-nos a verdadeira natureza desses processos (VIGOTSKI apud AZENHA, 1996, p. 38-39). O desenvolvimento da linguagem escrita, um conceito científico, de acordo com Vigotski (2000), em seu texto “La prehistoria del desarrollo del lenguaje escrito”, possui uma história muito complexa que começa antes de a criança ir para escola para aprender a escrever. Portanto, para ele, uma investigação científica coerente “deve partir da premissa de que esse é um processo histórico e único e que, portanto, integra de forma ampla o desenvolvimento da linguagem cujos momentos passam por outras formas de representação, como o jogo e o desenho” (GONTIJO, 2008, p. 40). Para Vigotski, a primeira tarefa de um pesquisador é descobrir a pré-história da linguagem escrita da criança, é mostrar o que leva a criança a escrever, apontando os importantes momentos pelos quais passa a pré-história e sua relação com ensino escolar. Para Vigotski a história da linguagem escrita inicia [...] quando aparecem os primeiros signos visuais na criança e se sustenta na mesma historia natural do nascimento dos signos dos quais já nasceu a linguagem. O gesto, precisamente, é o primeiro signo visual que contém a futura escritura da criança (VIGOTSKI apud GONTIJO, 2008, p. 40). Vigotski aponta dois momentos que corroboram a existência do laço genético entre gesto e o signo. O primeiro [...] está representado pelos riscos que a criança traça. Como pudemos observar em numerosas ocasiões durante nossos experimentos, a criança, ao desenhar, passa, freqüentemente, à representação, assinala com o gesto o que tenta representar e a marca deixada pelo lápis não é mais que o complemento do que representa com o gesto (VIGOTSKI apud GONTIJO, 2008, p. 42). O segundo momento em que se pode verificar o nexo genético entre gesto e a linguagem escrita leva, segundo o autor, aos jogos infantis. Durante o jogo, os objetos reais são substituídos por outros. Nessa situação, o que importa não é a relação entre o objeto de brincadeira e o objeto que ele designa, mas sua ‘utilização funcional’. Vigotski acredita que somente no gesto representativo está a chave de 28 explicação de toda função simbólica dos jogos infantis.[...] São os gestos que conferem ao objeto da brincadeira a função de signo, ou seja, que lhe conferem novos sentidos (GONTIJO, 2008, p. 43). Assim, segundo Vigotski, com os gestos indicativos o objeto adquire seu significado e o desenho apoiado pelo gesto “se converte em signo independente”. Mas com o uso prolongado dos jogos e desenhos, fazem que os objetos sejam representados mesmo sem os gestos. E com o avanço da idade da criança, ela inclui um contexto mais amplo de relações sociais, portanto, “a criança não apenas brinca de motorista de ônibus, ela assume o papel do motorista procurando reproduzir suas ações” (GONTIJO, 2008, p. 44). Nesse sentido, “[...] a diferença do jogo entre crianças de três a seis anos não está na percepção dos símbolos, mas no modo em que utilizam as diversas formas de representação” (apud. GONTIJO, 2008, p.44). Com o desenvolvimento, os desenhos, como os objetos do jogo, também adquirem independência. Primeiro, o desenho “é um complemento do gesto no ar” (Ibid., p. 45) e, posteriormente, designa o objeto por si mesmo, até que ele passa a ser antes da sua elaboração, o que indica um avanço, “pois o desenho se torna de fato uma representação simbólica” (Ibid., p.45). 2.2 A metodologia de pesquisa No desenvolvimento da pesquisa, ancorado nos pressupostos teóricos de Vigotski, Luria utilizou o método instrumental ou histórico-genético criado por Vigotski e seus colaboradores. Para estudar o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Ele é denominado dessa forma, porque possibilita a análise do desenvolvimento infantil do ponto de vista histórico, ou seja, desde que ele surge, as suas transformações, mudanças etc. (GONTIJO, 2008, p. 57). Para desenvolver a pesquisa, ele utilizou o seguinte procedimento: pegava um sujeito que não sabia escrever e lhe dava a tarefa de lembrar certo número de sentenças e/ou palavras, que ultrapassava a capacidade mecânica de um indivíduo recordar. Quando esse sujeito compreendia que não seria possível lembrá-las, Luria entregava um pedaço de papel a eles e dizia que tomassem nota ou ‘escrevessem’ as palavras e/ou sentenças apresentadas por ele. Como os sujeitos estranhavam tal sugestão, e diziam que não sabiam escrever, então, o pesquisador mostrava que usamos a escrita para lembrar, o que levava o sujeito à imitação da 29 forma externa da escrita. Assim, começa o experimento de Luria, que o repetia algumas vezes, sempre fazendo que a criança voltasse à escrita para tentar ler o que havia escrito. Então, Luria (2006) apresentou um estratagema com cuja técnica intrínseca [a criança] não estava familiarizada e observamos até que ponto ela era capaz de manipulá-lo e em que extensão o pedaço de papel, o lápis e os rabiscos que fazia no papel deixavam de ser simples objetos que o interessavam, brinquedos, por assim dizer, e tornavam-se um instrumento, um meio para atingir algum fim: recordar um certo número de idéias que lhe foram apresentadas (p.147-148). A pesquisa teve como objetivo investigar o desenvolvimento da escrita em sujeitos que não foram influenciados pela educação escolar. Podemos dizer que o autor “se dedicou a estudar experimentalmente o momento em que a criança descobre o simbolismo da escritura” (GONTIJO, 2008, p. 45). Além dos sujeitos não escolarizados, Luria observou uma escolarizada de nove anos e outra com deficiência cognitiva. Com que com a primeira procurava examinar “os procedimentos de uma criança com capacidade de escrever certo número de palavras com os dos sujeitos não-escolarizados, para avaliar até que ponto a posse de modelos de escrita implicava a compreensão da função simbólica do grafismo” (AZENHA,1996, p.44); com a segunda Luria supunha que, devido à lentidão no seu desenvolvimento, ele pudesse observar certas etapas que julgava ser muito passageiras em crianças sem deficiência. Nesse sentido, podemos dizer que Luria centra seus estudos e sua atenção na fase préescolar da vida da criança, pois, segundo o autor, “iniciamos onde pensamos encontrar as origens da escrita e deixamos de lado o ponto em que os psicólogos educacionais usualmente começam: o momento em que a criança começa a aprender a escrever” (LURIA, 2006, p.144). As tarefas desenvolvidas com as crianças e adultos, participantes da pesquisa, consistiam em lembrar certo número de palavra e/ou frases que excedia a capacidade natural que os indivíduos possuem para lembrar, isto é, uma tarefa em que teriam que lembrar o conteúdo ditado, pois o número de sentenças e palavras dadas “ultrapassava a capacidade mecânica da criança para recordar. Uma vez que a criança compreendia ser incapaz de lembrar o número de palavras dado na tarefa, nós lhe entregávamos um pedaço de papel e lhe dizíamos para tomar nota ou ‘escrever’ as palavras por nós apresentadas” (LURIA, 2006, p.147). Portanto, nesse caso, “a escrita é colocada como um recurso de ajuda ao problema de 30 memorizar conteúdos” (AZENHA, 1996, p. 45). Em razão disso, podemos dizer que “ela é uma instrumento de extensão da atividade mental” (Ibid., p.45). 2.3 Concepção de escrita de Luria Luria e Vigotski vêem a linguagem de escrita como um sistema complexo de signos e mostram que o seu domínio depende de um longo desenvolvimento. Nesse sentido, Vigotski expõe que esse é “um sistema particular de símbolos e signos cuja dominação prenuncia um ponto crítico em todo desenvolvimento cultural da criança” (AZENHA, 1996, p.16). Para Luria (2006, p. 145), “o escrever pressupõe, portanto, a habilidade para usar alguma insinuação (por exemplo, uma linha, uma mancha, um ponto) como signo funcional auxiliar, sem qualquer sentido ou significado em si mesmo mas apenas como uma operação auxiliar”. Com isso, podemos dizer, de acordo com o mesmo autor, que a escrita é “uma função que se realiza, culturalmente, por mediação” (Ibid., p.144). Assim, para esse autor, a escrita é um sistema de signos que serve de apoio à memória, uma das funções intelectuais do ser humano. Portanto, “a escrita é uma dessas técnicas auxiliares usadas para fins psicológicos [...]” (LURIA, 2006, p.146). O signo, de acordo com Azenha (1996), é um elemento que contém significado e serve de apoio as funções psicológicas. E “a utilização da escrita como apoio das funções intelectuais superiores é o requisito mais importante para a utilização futura do sistema de signos convencionais” (AZENHA, 1996, p.65). 2.4 Resultados das pesquisas desenvolvidas por Luria O objetivo do trabalho de Luria era identificar as condições e o percurso realizado pela criança que a leva a se relacionar com a linguagem escrita como um recurso, um auxiliar para lembrar das palavras e/ou frases ditadas pelo experimentador. Com esse objetivo em mente, Luria “descreveu o desenvolvimento da escrita na criança a partir das análises elaboradas das escritas produzidas pelos sujeitos e, também, do modo como se relacionavam com elas para realizar a tarefa de lembrar as palavras e frases” (GONTIJO, 2008, p.45). Com base nas suas pesquisas, o autor observou duas fases maiores no desenvolvimento da escrita: a pré-escrita ou a pré-instrumental e a instrumental. 31 A primeira fase, chamada de pré-instrumental, é o momento anterior ao qual a criança utiliza a escrita como recurso mnemônico, isto é, para lembrar as palavras e frases ditadas pelo experimentador. Assim, a escrita não serve como instrumento para lembrar as situações postas pelo pesquisador. Segundo Luria, as crianças, inicialmente, eram incapazes de ver a escrita como meio ou instrumento para lembrar algo; de certo modo, a criança só se interessava em “escrever como os adultos”, pois “escrever não é um ato para recordar, para representar algum significado, mas um ato suficiente em si mesmo, um brinquedo” (LURIA, 2006, p. 149) o qual não tem nenhuma finalidade. Nesse momento, o autor diz que as crianças, em muitos casos, não se recusam a fazer a tarefa insistentemente, “mas argumentavam sobre a sua impossibilidade de realizá-la, pois ainda não sabiam ler e escrever” (GONTIJO, 2008, p.46). Abaixo segue um exemplo de uma escrita produzida por uma criança de cinco anos de idade, participante da pesquisa de Luria. Escrita de uma criança participante da pesquisa de Luria 5 Fundamentado nessa escrita, Luria assinala alguns pontos importantes que ajudam a análise desse tipo de escrita: “primeiro, escrever está dissociado da finalidade de lembrar”, pois a criança não compreende a instrução dada, e “segundo, as escritas não possuíam qualquer relação com os significados que motivaram o registro” (GONTIJO, 2008, p.47). Então, observando as características da escrita, vemos que a criança fez, para significados diferentes, rabiscos muito parecidos, quase que indiferenciados. 5 Figura retirada do texto de Luria (2006) sobre o desenvolvimento da escrita. 32 Nesse sentido, também foi observada pelo pesquisador a escrita como uma forma externa e imitativa, portanto, dissociada do conteúdo. Isso foi observado em um dos casos em que Luria pediu à criança que anotasse o que seria ditado, porém ela não “se limitou a ‘tomar nota’”, anotando mesmo antes de falar algo para ela escrever. Desse modo, segundo Luria (2006), fica claro que o sujeito “não tem consciência do seu significado funcional como signos auxiliares” (p.150), podendo ser dissociado de sentença ditada. Assim, “o escrever não mantinha qualquer relação com a idéia invocada pela sentença a ser escrita; não era instrumental ou funcionalmente relacionado com o conteúdo do que tinha de ser escrito. Na realidade, não houve aí exatamente uma escrita, mas simples rabiscos” (Ibid., pp. 150-151). Luria observou algo considerado por ele como surpreendente: uma criança que também se utilizava da escrita indiferenciada, porém o modo como se relacionava com a escrita para lembrá-la era completamente diferente, pois ela associava o rabisco ao conteúdo ditado. Portanto, a escrita ainda não era diferenciada em sua aparência externa, mas sua relação com a criança tinha mudado completamente: de uma atividade motora autocontida, ela se transformara em um signo auxiliar da memória. A criança começara a associar a sentença ditada com seu rabisco não-diferenciado, que começara a servir com função auxiliar de um signo (LURIA, 2006, p.157). Como isso aconteceu? Na verdade, os rabiscos eram os mesmos, sem nenhuma diferenciação externa que auxiliasse a lembrança, mas eles foram “arranjados na folha de papel de modo a permitir a recordação” (GONTIJO, 2008, p.47). Assim, os rabiscos eram colocados em diferentes lugares do papel, o que a levou “[...] a associar as sentenças ditadas com suas anotações” (LURIA apud GONTIJO, 2008, p.47). Na verdade, “em si mesmo, nenhum rabisco significava coisa alguma, mas sua posição, situação e relação com outros rabiscos conferiam-lhe a função de auxiliar técnico da memória” (LURIA, 2006, p.157). Escrita de Brina (sujeito da pesquisa de Luria) 6 6 Figura retirada do texto “O desenvolvimento da escrita na criança” de Luria (2006). 33 Segundo Luria (2006), isso mostra que a criança entendeu a tarefa, escrevendo, na forma de sinais topográficos, uma forma primitiva de escrita. Eram sinais indiferenciados, mas, quando interrogada, não os misturava, distinguia-os com exatidão o significado de cada um. Essa é de acordo com o autor, “a primeira forma de escrita no sentido próprio da palavra” (LURIA, 2006, p.158). Chamada de escrita topográfica, esses sinais desempenham o papel de “signo primário para ‘tomar notas’” (Ibid., p.158). Entretanto, esse não é ainda “um signo simbólico que desvende o significado do que foi anotado” (Ibid., p.159). Assim, “o autor considera esse mecanismo como precursor da verdadeira escrita, porque nem sempre se refere a um conteúdo próprio e estável, pois indicava a presença de algum significado, mas ainda não determina qual era o significado” (GONTIJO, 2008, p.49). Para Luria o desenvolvimento da escrita segue uma linha de desenvolvimento, havendo agora a passagem para diferenciação do signo em um conteúdo específico. Portanto, “o desenvolvimento da escrita na criança prossegue ao longo de um caminho que podemos descrever como a transformação de um rabisco não-diferenciado para um signo diferenciado. Linhas e rabiscos são substituídos por figuras e imagens, e estas dão lugar a signos” (LURIA, 2006, p.161). Os primeiros sinais de diferenciação observados por Luria aconteceram após algumas intervenções realizadas por ele, com repetição do experimento. Todavia, essa primeira diferenciação ocorrida foi em relação ao ritmo da frase ditada, que refletia no ritmo do signo gráfico, e “as crianças revelaram uma tendência em anotar frases curtas com linhas curtas e frases longas com linhas longas” (GONTIJO, 2008, p.49), mas esse não era um modo de anotação estável. Assim, segundo Luria, a escrita começou com um gráfico não-diferenciado, apenas imitativo, e se foi transformando até estabelecer “uma conexão entre a produção gráfica e a sugestão apresentada. A produção gráfica da criança deixou de ser simples acompanhamento de uma sugestão e tornou-se seu reflexo” (LURIA, 2006, pp. 162-163), mas de uma forma ainda muito primitiva. Porém, esse primeiro passo dado no sentido da diferenciação ainda é muito fraco e pobre, de acordo com o autor, pois, mesmo que o sujeito seja capaz de reproduzir o ritmo de uma frase, não é capaz de marcar o seu conteúdo na sua apresentação gráfica. Desse modo, “esperamos o momento em que um signo venha a adquirir significado” (Ibid., p.163). Outra forma observada por Luria que influenciou o modo como as crianças escreviam, o que influenciou o desenvolvimento da escrita, “era o conteúdo das frases a serem escritas. Assim, a introdução, no conteúdo das frases, de quantidade e forma levou os sujeitos a retratar, por meio da escrita, esses aspectos.” (GONTIJO, 2008, p.50). Luria também 34 observou que a quantidade fez que se dissolvesse o caráter puramente imitativo da escrita e, segundo o autor, “é possível que as origens reais da escrita venham a ser encontradas na necessidade de registrar o número ou a quantidade” (LURIA, 2006, p. 164). Mas, no início, as diferenças ainda eram muito primitivas, por exemplo, “[...] o que distingue ‘um nariz’ de ‘dois olhos’ é que os rabiscos representando o primeiro são muito menores. A quantidade ainda não está claramente manifestada, mas as relações já estão expressas” (Ibid., p.165). E com o tempo as produções gráficas, segundo esse autor, começaram a ter contornos mais definidos, descobrindo que poderiam usar o desenho como escrita, como um instrumento mnemônico, iniciando a fase que Luria chamou de pictográfica. Nesse momento, o desenho se torna “um meio para o registro”, pois, de acordo com Luria, primeiro o desenho é uma brincadeira pouco representativa, até que se transforma numa estratégia para lembrar. O autor assinala que, muitas vezes, essa fase não é percebida como momento de desenvolvimento da escrita, pois é considerada como simples desenhos e não como uma forma de lembrar significados. Para ele, “uma criança pode desenhar bem, mas não se relacionar com seu desenho como um expediente auxiliar. Isso distingue a escrita do desenho e estabelece um limite ao pleno desenvolvimento da capacidade de ler e escrever pictograficamente, no sentido mais estrito da palavra” (LURIA, 2006, p. 176). Por fim, ocorre o surgimento da escrita simbólica, que acontece quando a criança é estimulada a escrever algo difícil de representar pictograficamente, assim, ela tem de criar uma estratégia para retratar as sentenças sugeridas, com significado. Nesse momento, a criança já superou a tendência de retratar o objeto com todos os detalhes, isto é, na sua totalidade, tendo a aparição do desenho representativo, representando “a parte em vez do todo”. Vejamos o exemplo dado por Luria (2006, p.179) para esclarecer esse momento: Shura N., sete anos e meio, foi instruída a escrever a sentença que apresentamos anteriormente: ‘Há 1000 estrelas no céu’. Primeiramente, desenhou uma linha horizontal (‘o céu’); em seguida desenhou cuidadosamente duas estrelas e parou. O pesquisador: ‘Quantas mais você tem de desenhar?’ Ela: ‘Apenas duas. Eu me lembrarei que há 1000’. Então, uma criança capaz de agir assim, segundo Luria, está no limite da escrita simbólica. Esse é período primitivo, segundo o mesmo autor, quando começa a aprender os símbolos convencionais da escrita, as letras. Então, o que acontece com a escrita infantil quando as crianças começam a aprender a ler e a escrever na escola? Os dados apresentados por Luria são incipientes, mas ajudaram aos pesquisadores a continuar a investigar esse intrigante processo de 35 desenvolvimento, pois, como aponta Vigotski (2000), o desenvolvimento da escrita não consiste somente numa melhoria gradual de um procedimento utilizado pela criança, mas compõe-se por saltos bruscos que proporcionam a mudança de um procedimento para outro (GONTIJO, 2008, p.51). Segundo Luria (2006), aprender as formas externas das letras não quer dizer que a criança compreendeu os mecanismos da escrita, mas que essa compreensão pode ocorrer muito depois do domínio exterior da escrita. Assim, acreditando nessa nova técnica de escrita, a criança passa novamente à fase de escrita não-diferenciada, pois conhece as letras, mas ainda não sabe como usá-las. Assim, Vigotski nos mostra que após as crianças realizarem tentativas de criar grafias expressivas, o próximo passo no desenvolvimento da escrita na criança é marcado pela aprendizagem de que as letras representam os sons que compõem as palavras, ou seja, a compreensão de que a escrita, usada na nossa sociedade, é um simbolismo de segunda ordem. Para chegar a compreender esse simbolismo, é necessário que a criança aprenda como representar as unidades da linguagem e que unidades são representadas com as letras. Além disso, Vigotski (2001) diz ainda que é difícil determinar como se produz essa mudança e que as investigações em sua época não haviam chegado a resultados sobre essa questão e nem mesmo os métodos de ensino da leitura e da escrita utilizados possibilitavam a observação dessa transição (apud GONTIJO, 2008, p.51). Como mostra Vigotski, no excerto acima, não existem fases definidas e nem momentos de transição definidos, pois o desenvolvimento é influenciado pelas aprendizagens. Assim, neste capítulo, apresentamos o pensamento histórico-cultural de Luria. Também esse autor demonstra que a história da escrita tem início antes de a criança começar a aprender e a ler na escola. Por isso mesmo, analisa todo um percurso de desenvolvimento anterior à aprendizagem das letras. A partir dos dois capítulos apresentados, realizaremos, no próximo capítulo, a comparação das teorias anteriormente descritas. 36 CAPÍTULO 3: ANÁLISE COMPARATIVA DAS PERSPECTIVAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO Neste capítulo, faremos uma análise comparativa das teorias de Emilia Ferreiro e de Alexander Romanivich Luria, considerando as diferenças e/ou semelhanças na metodologia, na concepção de escrita e nos resultados das pesquisas dos dois autores, em relação ao processo de desenvolvimento da escrita. De acordo com Azenha (1996, p.20), a “grande parte das diferenças a serem enfatizadas tem sua origem nos postulados teóricos subjacentes a cada pesquisa”. Seguiremos, na apresentação das comparações, a ordem já posta: primeiro trataremos as metodologias, em seguida, as concepções de escrita e, por último, os resultados das pesquisas. Para começar, podemos dizer, de acordo com Azenha (1996, p.15), que o propósito geral dos trabalhos de investigação empreendidos por Ferreiro e Teberosky e por Luria é coincidente: ambos demonstraram que a aprendizagem da escrita implica uma história no interior do desenvolvimento individual, iniciado pela criança ‘muito antes da primeira vez em que o professor coloca um lápis em sua mão e lhe mostra como formar letras’” (VIGOTSKI apud AZENHA, 1996, p.15). Porém, devido às abordagens teóricas que orientam as duas pesquisas, podemos observar diferenças importantes nos modos como Ferreiro e Teberosky e Luria desenvolvem as suas pesquisas. As duas primeiras autoras tiveram como inspiração para o trabalho postulados piagetianos que levam a uma interpretação mais linear do processo de desenvolvimento da escrita na criança. Luria tem como base os pressupostos teóricos da perspectiva histórico-cultural que concebe o desenvolvimento como processo marcado por descontinuidades e pela aprendizagem. Segundo Azenha (1996, p. 18), “para a descrição e a explicação do percurso genético, tanto Luria quanto Ferreiro lançam mão do recurso auxiliar da história da constituição social da escrita como objeto cultural, pesquisando possíveis analogias iluminadoras da aquisição individual” (AZENHA, 1996, p. 18). A partir da leitura das duas teorias, observamos também que essas perspectivas utilizam diferentes fontes, porém ambos chamam a atenção para o papel do conhecimento histórico, pois os processos históricos ajudam a analisar os resultados obtidos. Nesse sentido, Ferreiro e Teberosky acreditam que a leitura e a escrita estão presentes no meio social, no qual as crianças estão inseridas e não apenas na sala de aula. Shuare (apud FACCI, 2004) utilizaVigotski para dizer que “existe um desenvolvimento histórico dos fenômenos psíquicos 37 e estes mantêm uma relação de dependência essencial com respeito à vida e à atividade social [...]” (SHUARE apud FACCI, 2004, p.65). Assim, para Vigotski, e, conseqüentemente, para Luria, a criança se desenvolve por meio da mediação de instrumentos e do meio social. Azenha (1996) mostra também que os dois autores enfatizam que as aprendizagens da leitura e da escrita não se iniciam na escola, nem restringem-se a ela. A existência de um percurso prévio à escolarização é o que define uma pré-história em relação à aprendizagem escolar da escrita. Essa contribuição dos dois autores é revolucionária em relação ao ensino da escrita [...]. [Nesse sentido,] a crítica de ambos à forma como a escola tem tratado a escrita aponta para o caráter mecânico do exercício de técnicas motoras relacionadas ao desenho das letras ou ao estabelecimento das associações de formas sonoras a formas gráficas e à sua memorização (AZENHA, 1996, p.19). Neste sentido, Azenha (1996) aponta um ponto em comum entre as teorias de Ferreiro e de Luria, pois os dois irão falar de uma pré-história da escrita, porém, Ferreiro não dará muita atenção a esse momento, enquanto Luria o vê como fundamental para entender o desenvolvimento da escrita na criança. 3.1 As metodologias de pesquisa Ferreiro e Teberosky (1999) utilizam, em suas pesquisas, o método de indagação que foi inspirado no método clínico de Piaget. Essa metodologia consiste em um diálogo com a criança de forma sistemática a fim de apreender a seqüência dos seus pensamentos com base em suas respostas ou no que elas fazem do que foi proposto pelo experimentador. Já Luria utilizou o método instrumental ou histórico-genético criado por Vigotski e seus colaboradores. De acordo com Vigotski, esse método possibilita a análise do desenvolvimento infantil do ponto de vista histórico. Ele busca compreender o desenvolvimento de uma determinada função desde o seu surgimento, estudando o desenvolvimento natural e escolar como processo único. Com relação aos sujeitos envolvidos no trabalho de Luria (2006) e de Ferreiro e Teberosky (1999), é importante assinalar que as crianças envolvidas nas pesquisas dessas últimas já estavam cursando uma educação escolarizada. Desse modo, o trabalho de coleta de dados foi dividido em duas etapas: uma longitudinal com crianças de classe baixa cursando a 38 primeira série de escolarização e outra transversal com crianças de quatro a seis anos de diferentes classes sociais (baixa e média). O estudo de Luria consistiu em investigar crianças que não estavam matriculadas na escola, pois tinha como objetivo investigar o desenvolvimento da escrita em pré-escolares, com isso, “se dedicou a estudar experimentalmente o momento em que a criança descobre o simbolismo da escritura” (GONTIJO, 2008, p.45). Portanto, diferentemente de Ferreiro e Teberosky, Luria centra seus estudos e sua atenção na fase pré-escolar da vida da criança. Azenha (1996) também mostra uma diferença entre as pesquisas referentes ao critério de escolha das palavras pelos pesquisadores. Nesse sentido, ela diz que, a cada entrevista [realizada por Luria], as crianças eram solicitadas a escrever mais de um conjunto de estímulos. A constituição desses conjuntos merece ser pontuada em detalhe, por representar um elemento crucial da investigação. O critério de elaboração, além do fato de que as palavras deveriam estar vinculadas ao universo de significações acessíveis à criança, seja pelo vínculo aos seus interesses, seja pela presença do item no léxico utilizado pelos sujeitos, privilegiava a natureza do conteúdo das palavras. Enquanto em Ferreiro o ditado de conjuntos de palavras tinha como critérios de organização a pertinência da palavra a um grupo semântico e a diferença de extensão lingüística dos estímulos, aqui o conteúdo ou significado é o elemento central (p.47 – grifos da autora). Assim, os sujeitos da pesquisa de Luria eram orientados a escrever um conjunto de palavras das quais deveriam se lembrar. Desse modo, a escrita tinha uma finalidade ou objetivo importante: servir como recurso para lembrar ou função de registro. Por isso mesmo, as crianças eram incentivadas a ler apenas depois de escrever todo o conjunto de palavras e frases ditadas. No caso de Ferreiro e Teberosky, não foi criada uma situação em que as crianças pudessem, no percurso da pesquisa, compreender a função, essa ou outra função da escrita. Era pedido às crianças que escrevessem um conjunto de palavras e frases que deveriam ser lidas imediatamente após a escrita de cada uma delas. 3.2 As concepções de escrita Considerando os modos como foram conduzidas as atividades de escrita, assinalamos que, para Ferreiro (2001), a escrita é uma representação da linguagem. Nesse sentido, de acordo com Ferreiro (2001), “a construção de qualquer sistema de representação envolve um processo de diferenciação dos elementos e relações reconhecidas no objeto a ser apresentado e 39 uma seleção daqueles elementos e relações que serão retidos na representação” (p. 10). Assim, podemos dizer, como apresentado no primeiro capítulo, que Ferreiro e Teberosky (1999) buscam “não identificar leitura com decifrado” (apud MELLO, 2007, p. 69) e “identificar escrita com cópia de um modelo externo” (Ibid., p.69), pois “escrita não é cópia passiva, mas interpretação ativa dos modelos do mundo adulto; ao interpretar, a criança constrói hipóteses acerca do significado da representação gráfica” (MELLO, 2007, p.69). Desse modo, os progressos na leitura e na escrita não podem ser vistos como avanços no decifrado ou na exatidão da cópia. Já Luria vê a linguagem escrita como um sistema complexo de signos e esclaresse que o seu domínio depende de um longo desenvolvimento. Nesse sentido, Vigotski expõe que esse é “um sistema particular de símbolos e signos cuja dominação prenuncia um ponto crítico em todo desenvolvimento cultural da criança” (AZENHA, 1996, p.16). Dessa forma, para Luria (2006), “o escrever pressupõe, portanto, a habilidade para usar alguma insinuação (por exemplo, uma linha, uma mancha, um ponto) como signo funcional auxiliar, sem qualquer sentido ou significado em si mesmo, mas apenas como uma operação auxiliar” (p.145). Assim, “escrita pode ser definida como uma função que se realiza, culturalmente, por mediação” (Ibid., p.144). Portanto, a escrita também é, segundo Luria (2006), uma técnica auxiliar usada para fins psicológicos, com isso “a escrita constitui o uso funcional de linhas, pontos e outros signos para recordar e transmitir idéias, conceitos e relações” (p.146). Assim, com relação à concepção de escrita, podemos dizer, de acordo com Azenha (1996, p.63), que existe uma contraposição “subjacente em cada uma das investigações e [...] [na] forma como cada um postula o papel da linguagem no desenvolvimento cognitivo em geral”. Então, em relação à concepção de escrita, a pesquisa de Ferreiro “busca compreender basicamente as tentativas infantis de relacionar o oral e o escrito e as diferentes formas como as crianças compreendem essa relação” (Ibid., p.63). Assim, o que a pesquisa “focaliza é a gênese da escrita em seu sentido pleno, como um signo simbólico específico do contexto lingüístico” (Ibid., p.63). Por isso, a grande importância dada ao período silábico, que é visto “como ponto de viragem” da gênese da escrita, ocorre quando começam os rudimentos da fonetização da escrita. Conseqüentemente, há, segundo essa autora, uma desvalorização do período que o antecede, que seria a pré-história da língua escrita, sendo esse período apenas um antecessor do ponto crucial, pois, nesse momento, a escrita produzida não representa unidades da fala ou da linguagem oral. Entretanto, “a investigação de Luria [...] tem como questão central a compreensão de como a criança opera através de signos” (Ibid., p.64), pois, segundo Vigotski, 40 um aspecto deste sistema é que ele constitui um simbolismo de segunda ordem que, gradualmente, torna-se símbolo direto. Isso significa que a linguagem escrita é constituída por um sistema de signos que designam os sons e as palavras da linguagem falada, os quais, por sua vez, são signos das relações e entidades reais (apud AZENHA, 1996, p.64). Na perspectiva de Vigotski e Luria, o “signo é todo elemento possuidor de significado que artificialmente serve ao sujeito como apoio para funções psicológicas” (AZENHA, 1996, p.65). Assim, segundo Azenha, o signo servindo de apoio para as funções mentais e este sendo um requisito para utilização da escrita como recurso simbólico, é o que a investigação de Luria se propõe a explicar. Além disso, “a utilização da escrita como apoio de funções intelectuais é o requisito mais importante para utilização futura do sistema de signos convencionais” (AZENHA, 1996, p. 65). Então, de acordo com Azenha (1996), poderíamos dizer que, por as duas pesquisas olharem para questões diferentes, poder-se-ia pensá-las como complementares, pois Luria demonstra “como a criança constrói a relação funcional com os signos e a investigação de Ferreiro e Teberosky descreve como os sujeitos constroem a compreensão do funcionamento do sistema simbólico convencional, que implica identificar as relações entre escrita e leitura” (p.65). Entretanto, não concordamos com essa posição, pois as bases teóricas e os procedimentos metodológicos são muito diferentes. Nesse sentido, a base piagetiana de Ferreiro coloca em primeiro plano a construção de estruturas cognitivas endógenas mobilizadas por requisitos lógicos de compatibilidade e desenvolvimento segundo o modelo do equilíbrio, imanente do próprio organismo na relação com o meio [...]. Diferentemente de Vygotsky, e conseqüentemente em Luria, as funções mentais complexas ou superiores são constituídas nas condições sociais da vida humana historicamente situadas. [Além disso,] os desdobramentos dessas concepções têm repercussões profundas na interpretação dos dados, já que o modelo piagetiano coloca em relevo um sujeito epistemológico que adquire um objeto de conhecimento, enquanto na abordagem [...] de Vygotsky o sujeito opera com a cultura, constituindo-se em sujeito psicológico nessa interação (Ibid., p. 65-66). Azenha também afirma que Ferreiro emprega situações descontextualizadas, nas quais as crianças não têm um motivo concreto para escrever, tendo uma focalização apenas na produção gráfica. Já no estudo de Luria, segundo Azenha (1996), a situação de escrita é mais pertinente, pois escrever tem finalidade. Assim, a “inserção da escrita como solução para um problema real de memorização agrega à situação um conjunto de informações altamente relevantes para o desenvolvimento de princípios funcionais da escrita [...]” (p.66-67). 41 Podemos dizer que uma pesquisa complementar à de Luria teria de ser desenvolvida, considerando os mesmos pressupostos teórico-metodológicos, e também realizada com sujeitos que freqüentam a escola. Desse modo, poderíamos compreender, de acordo com a abordagem do autor, como as crianças, ao longo do desenvolvimento escolar, passam a usar letras com finalidade de lembrar conteúdos que deseja registrar. 3.3 Os resultados das pesquisas Neste item, apresentaremos mais alguns resultados relevantes à análise comparativa. Observando as duas pesquisas sobre o desenvolvimento da escrita na criança, de acordo com Azenha (1996, p.62), “é possível encontrar conceitos paralelos entre escrita imitativa (Luria) e unigráfica (Ferreiro), por exemplo, igualmente observados em ambas as investigações”. Portanto, Ferreiro e Teberosky, em suas pesquisas, declaram que, desde muito pequenas, as crianças assistem a diversos atos de leitura e de escrita e são capazes de produzir algumas escritas. Suas primeiras tentativas de escritas são de dois tipos: traços ondulados contínuos ou uma série de pequenos círculos. Ambos possuem semelhanças com os traços do adulto. O primeiro representa a escrita cursiva e, o segundo, a escrita de imprensa. Luria (2006), em sua pesquisa, também observou esse caráter imitativo da escrita das crianças pequenas, pois, segundo ele, a criança só se interessava em “escrever como os adultos”, sendo essa escrita dissociada da finalidade de lembrar. Entretanto, coerente com a sua orientação teórica, Luria acredita que a criança imita os gestos dos adultos e não a sua escrita e, nesse momento, não compreende a função da escrita. Assim, Luria mostrou que aprender as formas externas das letras não quer dizer que a criança compreendeu os mecanismos da escrita, pois esse domínio vem muito depois. Ferreiro e Teberosky (1999) definiram cinco níveis de desenvolvimento da escrita, mas devemos lembrar que o estudo realizado por essas autoras foi feito com crianças já escolarizadas, o que as levou à descrição de níveis que avançam no desenvolvimento da escrita ensinada na escola. Dessa forma, somente os dois primeiros níveis podem ser comparados com os estudos de Luria, que estudou apenas crianças em fase pré-escolar. Luria, em sua pesquisa, segue um objetivo, o de identificar as condições e o percurso que proporcionam o surgimento de grafias expressivas. Em suas pesquisas identifica duas fases no desenvolvimento da escrita: a pré-instrumental e a instrumental. A primeira é caracterizada 42 pelo não-uso da escrita para fins mnemônicos e a segunda, pelo uso funcional dos signos ou da escrita. Como mencionado no nível 1, Ferreiro e Teberosky observam que “escrever é reproduzir os traços típicos da escrita que a criança identifica como a forma básica da mesma” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p.192). Nesse momento, a escrita não é vista como veículo de transmissão de informação, pois cada um interpreta a própria escrita, mas, além disso, o tamanho da escrita é proporcional ao tamanho ou à idade da pessoa, do animal ou do objeto, cujos nomes se escrevem. Nesse nível, as autoras também observam uma dificuldade momentânea em diferenciar as atividades de desenhar e escrever. Assim, os desenhos, muitas vezes, aparecem como apoio à escrita. Já no nível 2, as crianças consideram que, para ler coisas diferentes, deve haver diferenças nas escritas e, por isso, utilizam as hipóteses de quantidade e de variedade de caracteres. Outra característica importante presente nos dois níveis é o fato de as crianças efetuarem uma leitura global das escritas, pois não há correspondência entre as partes do texto e da linguagem oral. Há também uma contraposição entre Ferreiro e Teberosky e Luria em relação ao critério que diferencia escrita de desenho, pois, segundo Azenha (1996, p.55), “para Ferreiro, essa distinção está naturalmente ‘dada’ à criança pela própria natureza formal fortemente distinta existente entre desenho e escrita como sistema de signos convencionais [...]”. Porém, Luria, como mostra Azenha (1996, pp.55-56), trata em seu estudo, de transformações muito pequenas nas funções psicológicas, invisíveis nas manifestações formais dos traços em si (como na escrita topográfica, por exemplo), que só o recurso de um quadro teórico rico e amplo permite interpretar a partir de sinais que não são ‘dados’ facilmente a partir de resultados gráficos. Como aponta Gontijo (2008), apoiando-se na pesquisa de Luria, o surgimento da escrita por imagens é, para esse autor, um momento posterior ao surgimento das primeiras atividades gráficas, possível em função da própria capacidade aprendida pela criança de desenhar. Nas situações de pesquisa desenvolvidas por ele, esse tipo de escrita surge, após a introdução de determinados fatores (cor, forma, tamanho etc.) nas sentenças que foram escritas pelas crianças. Nesse sentido, elas descobriram uma maneira de registrar os conteúdos que deviam ser anotados, ou seja, construíram um apoio externo para a atividade de lembrar esses conteúdos (p. 81). Já Ferreiro diz que “[...] um dos primeiros problemas que as crianças enfrentam para constituir uma escrita é definir a fronteira que a separa do desenho” (apud GONTIJO, 2008, p.81). Então, após a criança fazer essa distinção, ela passa a escrever com traços arbitrários e 43 muito parecidos entre si. Porém, entender a escrita como “objeto substituto” se faz de uma forma lenta, processual e construtiva, havendo também um progresso genético dos grafismos em relação aos desenhos. Assim, as elaborações da autora sugerem um percurso inicial de desenvolvimento da escrita infantil que leva à diferenciação entre desenho e escrita e, ao mesmo tempo, um processo de diferenciações das grafias, por meio da definição de princípios que regulam a sua organização. Nesse processo, a compreensão da escrita como objeto substituto é fundamental. Essa compreensão é construída, quando as crianças percebem que a escrita representa um elemento do objeto que não pode ser representado nos desenhos: o seu nome. Dessa forma, como dito, a autora não concebe um momento no desenvolvimento em que as crianças utilizam o desenho com função de escrita (Ibid., p. 82). É importante salientar que temos contextos e bases teóricas diferentes que levam a resultados diferenciados. a intenção deliberadamente perseguida por Ferreiro seja a de pôr em relevo os modos de operar dos sujeitos que caracterizam os aspectos construtivos da gênese da escrita como objeto a conhecer, sua perspectiva é obscurecida com respeito a esta distinção (desenho/escrita) pelos atributos formais relevantemente diferenciados desses objetos (AZENHA, 1996, p. 56). Finalmente, devemos ter em mente que Ferreiro e Teberosky focalizam suas investigações nos “processos que se desenvolvem nas crianças durante o período, que começa pelo uso de letras para escrever até o momento em que passa a dominar a forma cultural de escrita” (GONTIJO, 2003, p.23). Ferreiro e Teberosky, de acordo com Gontijo (2003, p. 23), “se detiveram na análise das tentativas de as crianças relacionarem o oral e o escrito e nas diferentes formas como compreendem essa relação. Desse modo, enfocaram a escrita como um sistema de signos relacionados especificamente com o contexto lingüístico”. Sabemos que “a linguagem escrita representa os sons da fala e que [...] essa é uma aprendizagem necessária, mas não pode ser reduzida a essa relação, senão será esvaziada das significações que possibilitam a realização das suas funções” (Ibid., p.24). Portanto, de acordo com Azenha (1996, pp.59-60), “a habilidade em escrever letras não implica a sua compreensão, de início, em que pese a criança demonstrar um comportamento diferenciado em relação à escrita: faz distinções específicas entre grafia no registro de conteúdos diferentes”. 44 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse momento, cabe retomar os objetivos propostos, para depois fazermos nossas considerações finais, apontando para a análise feita das duas teorias. Inicialmente, traçamos como objetivos deste trabalho analisar comparativamente as pesquisas realizadas por Emília Ferreiro e Ana Teberosky e por Alexander Ramonovich Luria sobre o desenvolvimento da escrita nas crianças. Comparamos ambas as teorizações em relação à metodologia, à concepção de escrita e, também, aos resultados obtidos nas pesquisas. Com base em Azenha (1996), pudemos observar que os trabalhos desenvolvidos por Ferreiro e Teberosky e por Luria têm um propósito geral coincidente, pois ambos falam de uma história da escrita anterior à sua entrada na escola. Luria e Vigotski chamam esse momento de pré-história da escrita na criança. Porém, os autores se utilizam de pressupostos teóricos muito diferentes, pois Ferreiro e Teberosky se apóiam nos estudos de Jean Piaget, que a leva as uma interpretação linear dos processos de desenvolvimento da escrita na criança. Já Luria se utiliza de pressupostos histórico-culturais que o levam a conceber o desenvolvimento como um processo marcado de descontinuidades e a inserção das crianças na escola, ou seja, a aprendizagem das letras leva a mudanças importantes no processo de desenvolvimento. Observamos que a metodologia utilizada nas duas pesquisas é diferente, além dos objetivos das pesquisas também o serem. Ferreiro e Teberosky (1999) buscam compreender como as crianças relacionam o oral e o escrito no curso do seu desenvolvimento. Luria (2006) busca descobrir quando surge o simbolismo da escritura, tendo esse simbolismo funções psicológicas superiores, a de memória, pois a criança deveria escrever com função mnemônica, isto é, deveria utilizar a escrita com a finalidade de lembrar palavras ou frases anotadas. Apontamos em nosso trabalho que os autores têm concepções de escrita muito diferentes. Para Ferreiro e Teberosky, a linguagem escrita é um sistema de representação da linguagem; para Luria (2006), como vimos anteriormente, a linguagem escrita é um conjunto complexo de signos que serve de apoio às funções intelectuais. Nesse sentido, vimos que Ferreiro e Teberosky dão grande ênfase ao período, chamado por elas de silábico, e Luria, às tentativas de os sujeitos criarem mecanismos para lembrar com o apoio dos registros. No trabalho de Ferreiro e Teberosky, vimos também que o desenvolvimento da escrita tem início com a diferenciação entre desenho e escrita. Porém, Luria considera que a escrita, por meio de desenhos, integra o desenvolvimento da escrita infantil. 45 Dessa forma, a nossa pesquisa observou pontos em comuns das pesquisas que olham para questões diferentes, mas acreditamos que as duas teorias não podem ser consideradas como complementares, pois os procedimentos, a metodologia e os pressupostos teóricos são muito diferentes. Assim, para que uma pesquisa seja considerada complementar à de Luria, seria necessário que partisse dos mesmos pressupostos teórico-metodológicos e da concepção de escrita. Com base neste trabalho, podemos pensar que, de acordo com Ferreiro, realmente o método não alfabetiza, mas é a junção dos métodos com a contextualização social, os conhecimentos trazidos pelo aluno à sala de aula e os conhecimentos do professor na mediação que levam esse aluno a se desenvolver, pois cada aluno é diferente do outro; portanto, os alunos não aprendem no mesmo tempo ou na mesma velocidade e com a mesma forma de ensinar. Assim, não devemos seguir rigorosamente uma teoria ou outra, mas observar o aluno com suas necessidades e buscar nas teorias diferentes formas de trabalhar para que esse aluno se desenvolva na leitura e na escrita. Acreditamos que a análise das teorias foi de grande importância para nossa formação e, certamente, o será para futuras professoras e, quiçá, para professoras em exercício. Compreendemos que existem diversas teorias, diversas formas de pensar a alfabetização. Como professoras, devemos, no trabalho com as crianças, confrontar a teoria e a prática de modo a buscar formas eficazes de condução do trabalho educativo. Nesse sentido, acreditamos, de acordo com a teoria de Vigotski, que “[...] a linguagem é um produto histórico e significante da atividade mental dos homens, mobilizada a serviço da comunicação, do conhecimento e da resolução de problemas” (apud, FONTANA e CRUZ, 1997, p. 83). Por ser a linguagem um produto histórico de seres humanos, Vigotski observa a importância do outro no processo de ensino-aprendizagem. Assim, a mediação – pautada na relação com o outro – é fundamental no processo de desenvolvimento do indivíduo e, portanto, no processo de formação de sujeitos críticos, pois é, na interação entre homens e mulheres, meninos e meninas, que os conceitos são descobertos na busca pelo conhecimento. Assim, o professor tem papel fundamental em sala de aula como mediador das aprendizagens das crianças e, portanto, como pesquisador da sua própria prática. As crianças não são uma tábula rasa como pensava a abordagem tradicional, elas chegam à escola com conhecimentos o mais variados possível que precisam ser levados em consideração, pois toda aprendizagem, em geral, surge de uma interação do novo com o existente; por isso, o ensino deve considerar o ponto de partida dos alunos/as. É preciso levar em conta os estados particulares e as necessidades peculiares de indivíduos concretos, 46 assim como as subculturas a que pertencem (GIMENO SACRISTÁN, 1998, p.277). Diante disso, é importante que o professor investigue e compreenda quais são os conhecimentos prévios de cada criança, isto é, quais as suas capacidades, o que ela já sabe fazer sozinha, para que se possa fazer uma estimulação do novo, por meio de mediações professor-aluno e aluno-aluno, dando a oportunidade para que cada criança vivencie variadas experiências. Além disso, o ensino deve atender às especificidades autônomas de construção do conhecimento, caminhar na direção da possibilidade de uma formação integral do indivíduo. Nesse sentido, o trabalho com a linguagem oral ou a produção de textos orais se torna essencial na escola e durante o processo de alfabetização, pois as crianças precisam aprimorar suas formas de linguagem e, portanto, as formas de se relacionar com as pessoas em diferentes espaços e de se expressar por meio da linguagem considerando as pessoas com quem falam. 47 REFERÊNCIAS AZENHA, Maria das Graças. 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