pulsional 158.Artcolor.p65
Transcrição
pulsional 158.Artcolor.p65
Nina Virgínia Araújo Leite Tradução, tradição, traição Proponho, em Tradução, tradição, traição, a partir das traduções para o português, inglês e francês, comentar a questão da ausência da indicação de se tratar de três línguas diferentes (francês, alemão e iídiche) que aparecem em Traduttore, traditore ou: Tratase de uma letra, quando Sarah Kofman alude às três línguas das mulheres, fazendo referência ao episódio, em O chiste e sua Relação com o Inconsciente, da baronesa em trabalho de parto. >Palavras-chave : Letra, iídiche, psicanálise, chiste Assim, não é casual a observação que faz J. Strachey – editor das obras completas de Freud – na introdução ao texto “Os chistes e sua relação com o inconsciente” ao afirmar que o chiste “Traduttore-Traditore!” poderia estar convenientemente inscrito na página de rosto do trabalho ali apresentado, face às dificuldades que o tradutor enfrenta em sua tarefa: passar o chiste tendo que modificar a sua materialidade lingüística. Tarefa impossível, uma vez que a tese fundamental de Freud – o caráter do chiste como chiste depende de sua estrutura pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 O trabalho de tradução pode ser pensado como desdobrando, para quem o empreende, efeitos de formação; se tal afirmação é verdadeira quando se trata de qualquer campo, é, entretanto, na especificidade que as questões da tradução adquirem na psicanálise que o seu alcance pode ser melhor avaliado. Isto porque a prática do psicanalista com o texto, com a língua, com a técnica do significante reveste-se de particularidade em função da hipótese fundadora de seu campo, que explicita as relações do inconsciente com a linguagem. artigos > p. 35-40 In Translation, tradition, betrayal, and based on the Portuguese, English, and French translations, I discuss the question of the absence of any indication that three different languages (French, German, and Yiddish) are present in Traduttore, Traditore or: in reference to a letter, in Sarah Kofmann’s allusion to the three languages of the women in the episode referred to by Freud in Jokes and their Relation to the Unconscious, about a baroness in labor. Key words >Key words: Letter, Yiddish, psychoanalysis, joke >35 artigos pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 >36 verbal – é justamente demonstrada pelo método de redução que consiste em construir paráfrases que acabam eliminando o afeto definidor do chiste: o riso. É por essa dependência com relação à materialidade lingüística que, para estudar a particularidade dessa formação do inconsciente, Freud procede por um exame detalhado das diferentes técnicas verbais empregadas na sua produção. A fórmula “Traduttore-Traditore!”, que no texto de Freud, em alemão, não recebe nenhuma tradução, escreve paradigmaticamente tanto a verdade da tradução [em sua fatalidade traidora] quanto ilustra o que um chiste realiza: faz passar uma verdade que se escreve em letra, mas não se enuncia em palavras. Quando apresenta esse chiste, como ilustração da técnica de leve modificação – trata-se apenas de uma letra – exemplo retirado de uma língua que não a sua, Freud apenas acrescenta, em 1912, uma nota de rodapé em que cita a formulação análoga de Brill em 1911 [que realizou em 1916 a primeira tradução do livro dos chistes para o inglês] “amantes amentes”, fórmula inspirada por um verso de L’ Andrienne de Térence. Por que o chiste “Traduttore-Traditore!” convocou os tradutores de Freud para, junto com a fórmula original em italiano, realizar uma tradução, se no contexto em que foi apresentada por Freud a formulação permanece apenas em língua estrangeira? De que forma se marca a intervenção do tradutor nas diferentes línguas e o que isso nos permite pensar quanto à transformação [traição] assim introduzida? Na tradução para o francês, diretamente do alemão, realizada por Denis Messier e publicada em 1988, o chiste é assim apresentado: Il existe aussi un remarquable exemple de mot d’esprit fondé sur une modification de ce type, c’est la célèbre exclamation “TraduttoreTraditore!” [“Traduire, c’est trahir!”] (p. 86). James Strachey realizou a tradução para o inglês, publicada em 1960, a partir do texto em alemão e introduz uma nota de rodapé, no ponto em que no texto aparece a expressão em italiano, enunciando: [Translator-traitor!] (p. 34). José L. Etcheverry realizou a tradução para o espanhol, diretamente do alemão, publicada em 1979, e decidiu por uma solução semelhante à que posteriormente será tomada por Denis Messier, como se pode verificar a partir do seguinte trecho: Notable ejemplo de uno de estos chistes por modificación es la conocida exclamación: “Traduttore-Traditore!” (“!Traductor, traidor!”) (p 34). A edição brasileira de 1996, dirigida por Jayme Salomão e feita a partir do inglês e do alemão, propõe uma solução idêntica àquela encontrada pelo tradutor inglês, fazendo constar em uma nota de rodapé, indicada no ponto do texto em que aparece o chiste Traduttore-Traditore! , apontando: [Tradutor-traidor!] (p. 41). Apesar de realizada de formas diversas, o ponto comum a essas traduções é a insistência em traduzir o chiste por Freud apresentado apenas em língua estrangeira. Se o autor não considerou necessário traduzir o chiste para o alemão é porque, coerente com a sua teorização, o seu sabor se encontra na materialidade da língua estrangeira. Por que então traduzir, especialmente se consideramos a proximidade das línguas com relação àquela em que o chiste se faz? Ou seja, que dificuldades o leitor do texto em português, francês ou espanhol teria para apreciar o chiste em sua língua de origem? Traduzi-lo não seria justamente des- artigos vendo para Jones em 1910 e afirmando que Brill tem um inglês abominável, e lamentando que Freud tenha sido apresentado de forma tão abominável para o público anglófono. A partir de 1914 Brill não mais traduzirá os textos de Freud; além das críticas quanto ao seu estilo, ganha relevância nesta cena o partido tomado por Brill em 1919 quanto à questão da análise leiga. Em um artigo para um jornal de Nova Iorque desautoriza os analistas não-médicos, indo contra a argumentação freudiana. Depois da guerra inicia-se uma outra fase nessa disputa, dessa vez com a entrada em cena do inglês James Strachey, que se instala em Viena com sua mulher Alix. É então encarregado por Freud da tradução de “Bate-se numa criança”, que impressiona Freud. Quando retorna para Londres em 1922 recebe de Freud a incumbência de traduzir a “Metapsicologia”, “Cinco lições de psicanálise” e outros textos; essas traduções foram realizadas com a colaboração de Alix e Joan Riviere. Depois da morte de Freud em Londres, em 1939, instala-se uma guerra entre o bloco dos americanos que tinham ido à Viena para se analisar com ele e os ingleses. Em 1938 as obras completas de Freud [ Gesammelte Schriften] tinham desaparecido: foram interditadas e destruídas como literatura judia. Em 28 de setembro de 1938, Jones escreve a Strachey para pedir que ele faça a tradução: inicia-se aqui o terceiro momento identificado por May (2000) que conduz ao estabelecimento da Standard Edition. Tratava-se de buscar uma edição definitiva para as gerações futuras, o que se concretizará depois da guerra, com os ingleses assumindo a direção do trabalho, uma vez que Strachey e Putnam defenderam o ponto de vista sobre a aquisição de uma segunda língua, desqualificando os “refugiados” que tinham sido escolhidos pelo comitê americano. Se tantas lutas marca- pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 considerar a própria tese demonstrada por Freud com relação à dependência do chiste quanto à sua literalidade? E, se for assim, não seria tal gesto uma intervenção no texto que, por esse acréscimo, modifica o estatuto do próprio exemplo? O estudo desse acontecimento pode ilustrar, em contrapartida, um aspecto relevante que opera vigorosamente nos trabalhos de tradução da teoria psicanalítica: a transferência com o autor. No presente caso, o que vem à cena é toda a história do estabelecimento da edição completa das obras de Freud, realizada sob a responsabilidade de James Strachey, convocando para exame as relações de ciúme e amor entre os discípulos de Freud. May (2000) relata com propriedade a história da violência na tradução da obra de Freud a partir de uma leitura das lutas empreendidas entre americanos e ingleses quanto ao privilégio de edição das obras do mestre. Tal disputa se inicia entre Brill – primeiro tradutor de Freud para o inglês –, psiquiatra de origem judia que emigrou do império austro-húngaro para Nova Iorque, e o inglês Ernest Jones, considerado por Freud em 1913 como o único porta-voz da psicanálise na Inglaterra. Juntamente com Putnam – neurologista da Harvard Medical School – foram responsáveis pela organização da viagem de Freud aos Estados Unidos em 1909. Por ocasião do I Congresso Internacional em Salzburg (1908), Brill pede a Freud a exclusividade da tradução de seus textos para o inglês, com o que Freud concorda prontamente. Mas Jones logo buscará se sobrepor a ele, comentando com Freud sobre o trabalho de Brill e demonstrando o seu interesse na tradução de A interpretação dos sonhos. O próprio Freud não deixou de apontar para Jones a hostilidade manifesta que demonstrava para com Brill. Putnam intervém nessa disputa escre- >37 artigos pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 >38 ram a história da transmissão do patrimônio freudiano é justamente porque, como aponta May, essa tarefa fará de seus executores os filhos privilegiados de Freud. Considerando-se os únicos competentes a realizar o trabalho de estabelecimento da edição das obras completas e de sua tradução para o inglês, possibilitaram a transmissão da psicanálise para as gerações futuras e inauguraram uma leitura que, embora não definitiva, é referência presente para todos os que se dedicam ao estudo da psicanálise. Retornando para o livro sobre os chistes, é possível afirmar que a presença do tradutor de Freud em sua insistência de traduzir o chiste por ele apresentado, no texto em alemão, em língua estrangeira, nos autoriza a articulação revelada no título desse trabalho que insere, entre tradução e traição, o lugar da tradição consagrada na história do movimento psicanalítico quanto à responsabilidade de transmitir a psicanálise. E é neste ponto que a consideração da técnica do chiste vem corroborar a proposta de fazer passar, pela tradição, o jogo que entre tradução e traição faz eclodir a verdade que as articula. Pois, para que se revele a verdade do chiste “Traduttore-Traditore” em português, é preciso incluir um terceiro elemento a partir do qual a modificação em apenas uma letra [por troca ou elisão] produz tanto tradução quanto traição. Ou seja: TRADIÇÃO – D= TRAIÇÃO; TRADIÇÃO onde se troca I por U= TRADUÇÃO. Não seria essa a razão pela qual todos os tradutores do texto em alemão insistem em fornecer uma tradução para a fórmula do chiste apresentado originalmente em língua estrangeira? Na transmissão do texto funda-se uma tradição que pode ser reportada à solução pri- meira encontrada por Strachey. Um outro exemplo retirado do livro sobre os chistes nos permite abordar essa mesma questão por um viés diferente. Conforme apontado por Sarah Kofman1 trata-se de um chiste que pode bem ilustrar que há vários graus de profundidade articulados com o uso de uma língua; uma analogia é por ela estabelecida entre a posição do médico da baronesa que está em trabalho de parto e a do tradutor: para bem traduzir e escutar é necessário ser capaz de distanciar-se com relação ao que denomina língua espontânea, o que podemos aqui tomar como a consideração de uma língua na sua vertente de veiculação de significados em detrimento da abordagem de sua materialidade significante. É por estar seduzido pela significação da dor de sua mulher que o marido não consegue, como faz o médico, discriminar na forma material do que ela diz a indicação velada do momento significante da chegada do filho. O que me interessa pontuar no episódio em questão é menos o desdobramento da analogia do que o apagamento, nas traduções para o português e o inglês, da indicação de que a terceira língua em questão é o iídiche, fato apontado explicitamente pelo tradutor para o francês. O texto em português apresenta o chiste da seguinte maneira: O médico, a cujos cuidados se confiou a Baronesa em sua gravidez, anunciou que ainda não chegara o momento de dar à luz e sugeriu ao Barão que enquanto esperavam jogassem cartas no cômodo vizinho. Após um momento, um grito de dor da Baronesa feriu os ouvidos dos dois homens: “Ah, mon Dieu, que je souffre!” Seu marido levantou-se de um salto, mas o médico 1> Cf. Sarah Kofman, “Traduttore, Traditore ou: trata-se de uma letra”, neste volume, p. 27-34. Em inglês, Strachey apresenta o chiste dessa maneira: The doctor, who had been asked to look after the Baroness at her confinement, pronounced that the moment had not come, and suggested to the Baron that in the meantime they should have a game of cards in the next room. After a while a cry of pain from the Baroness struck the ears of the two men: “Ah!, mon Dieu, que je souffre!” Her husband sprang up, but the doctor signed to him to sit down: “It’s nothing. Let’s go on with the game!” A little later there were again sounds from the pregnant woman: “ Mein Gott, mein Gott, what terrible pains!” – “Aren’t you going in, Professor?”, asked the Baron. – “No, no. It’s not time yet” – At last there came from next door an unmistakable cry of “Aa-ee, aa-ee, aaee! ” The doctor threw down his cards and exclaimed: “Now Now, it’s time” (p. 81) Importa salientar o contraste que pode ser observado com relação ao texto do tradutor para o francês que apresenta o chiste assim: Le médecin auquel on a demandé d’assister madame la baronne lorsqu’elle va accoucher, déclare que le moment n’est pas encore venu et propose au baron d’attendre em faisant une partie de cartes dans la pièce voisine. Au bout d’un certain temps, une plainte de madame la baronne em français parvient aux oreilles des deux hommes: “Ah! mon Dieu, que je souffre!” L’époux bondit de son siège, mais le médecin lui fait signe de rester assis: “Ce n’est rien, dit-il, continuons a jouer”. Peu aprés, on entend de nouveau la parturiente crier, cette fois em allemand: “ Mein Gott, mein Gott, was für Scherzen!” [Mon Dieu, mon Dieu, que je souffre!] – “Vous ne voulez pas entrer voir, monsieur le professeur?”, demande le baron. “Non, non, le moment n’est pas encore venu”. Enfin, de la chambre d’à côté, s’échappe une incontestable plainte en yiddish: “Aï, waïh, waïh! ” Alors le médecin jette ses cartes et dit: “ C’est le moment”. (p. 162) A questão que se evidencia quando comparamos as três traduções é a inexistência de referência, em português e inglês, quanto à língua que finalmente coloca o médico em ação. O que se apaga quando as traduções deixam de referir que a última língua é o iídiche? Mais do que isso, o que significa apagar o fato de que seja uma língua o que aí se presentifica, deixando supor que se trataria de uma linguagem universal? Não menos importante é a consideração de que essa é a língua materna da baronesa e também, segundo várias fontes, a mame loschen, língua que a mãe de Freud utilizava para se comunicar com os filhos. Sabe-se que, originários dos guetos da Galícia Oriental, quando se instalaram em Viena, os pais de Freud passaram a integrar a população dos Ostjuden [judeus orientais] que, em sua maioria, seguiam a ortodoxia judaica e comunicavam-se entre si em iídiche, a língua errante que se escreve em caracteres hebraicos embora a maioria de seus vocábulos seja de origem alemã. Enquanto o hebraico servia como língua literária e religiosa, o iídiche era essencialmente falado no cotidiano, sobretudo pelas mulheres, que não costumavam aprender a língua sagrada. Pode-se fazer a suposição de que muito do interesse de Freud em colecionar um imenso repertório de chistes judaicos se enraíza na relação com a língua que foi para ele a pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XV, n. 158, jun/2002 fez-lhe sinal que se assentasse: “Não é nada. Vamos continuar com o jogo!” Pouco depois, novos brados da mulher grávida: “Mein Gott, mein Gott, que dores terríveis!” – “Não vai entrar, Professor?”, perguntou o Barão. “Não, não. Ainda não é a hora”. Finalmente chegou da porta próxima um inconfundível grito de “Ai, ai, ai!”. O Agora é a doutor largou as cartas e exclamou: “Agora hora” (p. 83) >39 pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XV, n. 158, jun/2002 linguagem maternante,2 aquela de um gozo proibido. A capacidade excepcional dos judeus para produzir chistes sobre si mesmos não encontraria deste modo uma explicação no fato de constituir uma forma de recuperação de um prazer recalcado? Se é assim, o que significa recalcar a referência à língua constitutiva do afeto inconsciente? Cabe também lembrar que na época de Freud era comum na cultura vienense tomar a feminilidade e a judeidade como figuras da alteridade, conforme indica o excelente trabalho de Betty B. Fuks. A figura da baronesa judia não condensa aqui as duas referências, apontando para o estranhamento que habita a terra de exílio constitutiva do sujeito? Neste sentido, longe de significar uma linguagem universal, estatuto de uma condição natural que termina por retirar o grito de um registro de língua, a mame losche indica singularmente o lugar radicalmente íntimo do qual somos arrancados para poder falar. Se a materialidade é o que faz o chiste, reduzir a materialida- >40 de do enunciado a um grito de dor não seria recusar a verdade que o chiste revela? Referências F REUD , S. Jokes and their relation to the Unconscious. London: The Hogarth Press, 1960. _____ El chiste y su relación con lo inconciente. Buenos Aires: Amorrortu, 1979. _____ Le mot d’esprit et sa relation avec l’inconscient. Paris: Gallimard, 1988. _____ Os chistes e sua relação com o inconsciente. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1996. FUKS, B. B. Freud e a judeidade: a vocação do exílio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. M AY , A. Violence en traduction: amour et jalousie des disciples de Freud. Essaim, 5, Paris: Érès, 2000. Artigo recebido em março/2002 Aprovado para publicação em abril/2002 A Livraria Pulsional possui mala direta eletrônica com 6.300 endereços da área psi. Divulgue suas atividades pela nossa mala. Consulte-nos A LG U V DI FONES: (11) 3672-8345 / 3675-1190 / 3865-8950 e-mail: [email protected] 2> Conforme denominação de Angela Vorcaro.
Documentos relacionados
pulsional 158.Artcolor.p65
textos achavam-se “suprimidas”. Darei alguns exemplos escolhidos em antigas traduções, as que eu utilizava, já que apenas recentemente se levou a cabo uma retradução do texto de Freud, sobre a qual...
Leia mais