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Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 [1] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 A Revista História tem o apoio do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais. Endereço: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Departamento de História, Campus Francisco Negrão de Lima - Pavilhão João Lyra Filho Rua São Francisco Xavier, 524 - 9° andar - Bloco E - Sala 06 -Rio de Janeiro. Página do Laboratório: www.leddes.com.br Página da Revista: www.revistahistoria.com.br Revisão Verônica Maria Nascimento Tapajós Diagramação Luciano Rocha Pinto Editores Profa. Dra. Marilene Rosa Nogueira da Silva Prof. Drdo. Luciano Rocha Pinto Prof. Drdo Marcelo Coimbra Biar Profa. Msa. Verônica Maria Nascimento Tapajós Conselho Consultivo Prof. Dr. Antonio Filipe Pereira Caetano Profa. Dra. Antonia da Silva Mota Prof. Dr. Augusto Cesar Freitas de Oliveira Profa. Dra. Carmen Margarida Oliveira Alveal Profa. Dra. Margarida Maria Dias de Oliveira Profa. Dra. Sônia Maria dos Santos Prof. Dr. Carlos Augusto Lima Ferreira Prof. Dr. Duarcides Ferreira Mariosa Profa. Dra. Paula Pinto e Silva Prof. Dr. Augusto da Silva Prof. Dr. Jozimar Paes de Almeida [2] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Profa. Dra. Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro Profa. Dra. Selma Rinaldi de Mattos Prof. Dr. Gustavo Acioli Lopes Prof. Dr. Cristiano Wellington Noberto Ramalho Prof. Dr. Fabio Luiz da Silva Prof. Dr. Edison Bariani Junior Prof. Dr. André Porto Ancona Lopes Prof. Dr. Ozanan Vicente Carrara Prof. Dr. Geraldo Mártires Coelho Profa. Dra. Samira Adel Osman Profa. Dra. Maria Hilda Baqueiro Paraiso Profa. Dra. Eulalia Maria Aparecida Moraes dos Santos Profa. Dra. Terciane Ângela Luchese Profa. Dra. Hustana Maria Vargas Profa. Dra. Vanessa dos Santos Bodstein Bivar Web Master André de Carvalho [3] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 SUMÁRIO 7 APRESENTAÇÃO Luciano Rocha Pinto 8 MELANCOLIA E DEPRESSÃO: FACES DA CONDIÇÃO HUMANA NA HISTÓRIA Edison Bariani 22 CÓDIGOS PENAIS TRANDFORMAÇÕES Maíra Rosin BRASILEIROS: ORIGENS E 36 ...SEPAROU A CABEÇA DO CORPO DA VÍTIMA, A SUA PRÓPRIA MÃE [...] O QUE É ISTO, SENÃO LOUCURA? Jéferson dos Santos Mendes 52 LIVROS DE MATRÍCULAS DA CASA DE DETENÇÃO: MEMÓRIAS DOS “DESEDUCADOS” DA CORTE (1880-1889). Jailton Alves de Oliveira 74 PERFIL DO PRESO DE DORES DO INDAIÁ-MG (1958 a 1974) João de Sousa Matos Monteiro / Gilberto Cézar de Noronha 103 O CONTROLE SOCIAL DA DELINQUÊNCIA INFANTIL NA CIDADE DE SÃO PAULO NA PASSAGEM DOS SÉCULOS XIX - XX PELA TEORIA DE MICHEL FOUCAULT Robson Roberto da Silva [4] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 133 O EFEITO RASCHOMON E OS PROCESSOS CRIMES COMO FONTE HISTÓRICA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS Hélio Santos 163 SOROCABA ÀS VÉSPERAS DA EMANCIPAÇÃO DE ESCRAVOS: UMA ANÁLISE DA SEMANA NO DIÁRIO DE SOROCABA Patrícia Leardine 178 IMPRESSÕES DO ILÍCITO: REPRESENTAÇÕES DO CRIME NO JORNAL DE ITABUNA (1921-1923) Bruno Alessandro Gusmão Moreira 192 NIETZSCHE: O NOVO MODO DE FAZER HISTÓRIA Pablo Martins Bernardi Coelho 204 O CÔMICO A SOCIEDADE GREGA PELO TEATRO DE ARISTÓFANES Flávia Bruna Ribeiro da Silva Braga 236 LIBERDADE RELIGIOSA – UMA QUESTÃO MILENAR Cristiano Rocha Santos 259 ÍNDIOS XUKURU: O VIVIDO, O CONCEBIDO E O EXPRESSADO. A HISTÓRIA A PARTIR DAS MEMÓRIAS Edson Silva [5] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 274 SER PORTUGUÊS E SER CATÓLICO: DIFERENTES USOS DA MEMÓRIA NA TENTATIVA DE CONFIGURAÇÃO DE UMA IDENTIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA Fábio Eduardo Cressoni 292 HISTÓRIA DA LOUCURA NA OBRA “O ALIENISTA” DE MACHADO DE ASSIS: DISCURSO, IDENTIDADES E EXCLUSÃO NO SÉCULO XIX Márcio José Silva Lima 315 O ARCO DO PASSADO, A FLECHA DO FUTURO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E AS RELAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS NA REVISTA ATLÂNTIDA (1915-1920).* Livia Pires Claro 337 D. PEDRO II NA MARGEM DIREITA DO SÃO FRANCISCO Marcello Eduardo K.L.Campos [6] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 APRESENTAÇÃO É com alegria que a Revista História coloca à disposição sua terceira edição com o dossiê "Criminalidade". Foi uma grata surpresa o número de artigos recebidos e a repercussão que a revista vem alcançando, desde sua segunda edição, no âmbito nacional. Nosso interesse pelas noções de Punição e Controle e temas relacionados - como disciplina, legislação, polícia, justiça, prisão, criminalidade, cidadania... – sem nos fecharmos ao diálogo com outros temas e noções, está suscitando interesses diversos e contribuições das mais variadas. Delinquência infantil, perfil do criminoso, Códigos Penais, Casa de Correção da Corte, crimes hediondos, criminalidade e imprensa, são alguns dos temas do dossiê. Mas não é só. Desejamos um espaço de experimentação e diálogo. Neste sentido, contribuições dos mais diversos temas, campos teóricos e metodológicos foram aceitos a fim de efetivarmos este ambiente de troca e interação. Liberdade religiosa, Nietzsche, melancolia e depressão na história, D. Pedro II, história da loucura, Primeira Guerra Mundial, formação da identidade portuguesa na América, índios Xucuru e o teatro de Aristófanes são temas que compõem também esta terceira edição. A todos os autores o meu agradecimento pela contribuição intelectual e pela qualidade de seus trabalhos. Quero ainda agradecer o contato de pessoas que escrevem sugerindo dossiês, fazendo elogios e de editoras. É nosso interesse, futuramente, selecionarmos artigos para, em uma edição especial, elaborarmos uma publicação comemorativa. Particularmente gostaria de agradecer o interesse do senhor Secretário Municipal de Segurança Pública e Cidadania, da Prefeitura Municipal de Canoas (RS), o sr. Eduardo Pazinato. Seu interesse por nossas publicações reforça nosso compromisso intelectual com a cidadania e a transformação da realidade. Muito obrigado a todos. Luciano Rocha Pinto Editor [7] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 MELANCOLIA E DEPRESSÃO: FACES DA CONDIÇÃO HUMANA NA HISTÓRIA Edison Bariani 1 Resumo: A melancolia, atualmente chamada depressão, tem afetado os homens ao longo da história e, também, tem sido objeto de estudos científicos e reflexões sociais e filosóficas, desde a antiguidade grega até os dias atuais. Todavia, tais reflexões apontam para o fato de que, mais que uma patologia ou um distúrbio, a melancolia é uma das faces da condição humana. Palavras-chave: Melancolia. Depressão. História. Condição Humana. Abstract: Melancholy, nowadays called 'depression', has affected men along history and has also been subject of scientific studies and social philosophical considerations from antiquity until today. However, these considerations point to the fact that, much more than a pathology or a disturb, melancholy is one aspect of human condition. Keywords: Melancholy. Depression. History. Human Condition. *** “Um homem é tão infeliz quanto se convence de que é”. Sêneca A depressão, no mundo atual, tem afetado cada vez mais pessoas em número e intensidade. Segundo a Organização Mundial de Saúde (2011), em relatório de 2007, a depressão atinge cerca de 121 milhões de pessoas no 1 Doutor em Sociologia, professor das faculdades de Itápolis, Novo Horizonte e Catanduva. [8] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 mundo. Aproximadamente 15 a 20% da população mundial, em algum momento da vida, sofreu de depressão, que está ligada à morte de cerca de 850.000 pessoas por ano no mundo. Até o ano de 2020, a depressão deve passar a ser a segunda maior causa de incapacidade e perda de qualidade de vida. No Brasil, estima-se que cerca de 17 milhões de indivíduos tenham depressão. Segundo o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), 74.418 trabalhadores foram afastados de suas atividades em 2007 em decorrência de depressão (VEJA.COM, 2011). Frente a esses dados, cabe questionar: haveria atualmente uma espécie de ‘pandemia’ depressiva? Seria uma ‘doença social’, no sentido de que seria causada pelas condições sociais de vida no mundo contemporâneo? Seria a depressão uma doença, um distúrbio, um transtorno? Ou seria algo inerente à condição humana, daí que a frequência e intensidade dos efeitos danosos configurariam esses sim o problema caracterizado como “depressão”? A palavra depressão tem origem no latim premere, pressionar, oprimir ou puxar para baixo, e foi usada no sentido atual primeiramente na Inglaterra do séc. XVIII, por Richard Blackmore, poeta e médico de William III, que, em seu A treatise of the spleen and vapours (1725), menciona a ideia de “estar deprimido em profunda tristeza e melancolia, ou levado à insanidade e distração” (“being depressed into deep sadness and melancholy, or elevated into lunacy and distraction”).1 Aliás, “melancolia”, do grego melagcholia (de mélas, "negro", e cholé, "bílis"), caracterizando um estado psíquico de abatimento sem causa específica, falta de entusiasmo e predisposição, era, até o século XIX, a palavra mais usada para expressar a ideia do que chamamos hoje “depressão”. Consta que no séc. XVI, na Inglaterra, Richard Baker (1568-1645), autor de Chronicle of the Kings of England, já havia mencionado o termo ao referir-se a “uma grande depressão de 1 espírito” (“a great depression of spirit”). Também o autor inglês Samuel Johnson teria mencionado a palavra em 1753. [9] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Foi o grego Hipócrates, no séc. V a. C., que classificou a melancolia como doença, a partir de sua teoria dos quatro 'humores' corporais (sangue, fleuma ou pituíta, bílis amarela e bílis negra), sendo o equilíbrio ou o desequilíbrio responsável pela saúde (eucrasia) ou enfermidade e dor (discrasia) de um indivíduo, cuja influência de Cronos ou Saturno1 levava o baço a secretar mais bílis negra, alterando e escurecendo o humor do indivíduo, levando ao estado de melancolia. Para Hipócrates, a melancolia era caracterizada pela persistência duradoura da tristeza e do medo ao longo do tempo. Aristóteles (384-322 a. C.), no séc. IV a. C., em escrito atribuído a ele (Problema XXX), é tido como o primeiro a considerar a questão: por que todos os homens considerados excepcionais são melancólicos? Assim, a melancolia passa a ser vista não como uma doença simplesmente, mas como uma segunda natureza, um estado da alma. Galeno (131- 200 d. C.), médico e filósofo romano de origem grega, afirmava, no séc. II, que a melancolia é uma patologia, uma doença do corpo que afeta as ideias, uma doença que lesa o pensamento e causa mal-estar (dysthimia) e aversão às coisas mais queridas. Na Idade Média, o persa Avicena e o judeu Maimônides consideravam a melancolia como uma doença causada pelo desequilíbrio, ainda nas condições postas por Hipócrates, todavia, Maimônides, por exemplo, receitava para isso o fortalecimento da sabedoria e da moral por meio da religiosidade, pois que o homem virtuoso é menos suscetível de ser acometido daquele mal. Assim, distancia-se de Aristóteles e da ideia da melancolia como característica do homem de gênio. No Império Bizantino, o médico Paulo de Egina, no séc. VII (625–690) associa a melancolia à possessão demoníaca. A partir de então, a melancolia passa a ser vista como uma tentação ou pecado, sendo também chamada acídia ou apatia (tristeza, abatimento de espírito). Tomás de Aquino (1225-1274), no séc. XIII, quando se refere aos sete pecados capitais, inclui a Cronos (Saturno para os romanos) é um ser mitológico, um titã, filho de Urano (Céu) e de Gaia (Terra), mutilou o pai e conquistou seu domínio. No poder, devorava seus filhos, mas sua esposa Réia e seu filho Zeus o enganam e o destronam. 1 [10] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 acídia, “a tristeza pelo bem espiritual; a acidez, a queimadura interior do homem que recusa os bens do espírito” (LAUAND, 2010) que, por vezes, foi erroneamente identificada com a preguiça, mas se referia ao anterior pecado da melancolia.1 A partir do séc. XV, com a Renascença, período no qual havia certa predileção pela melancolia, a imagem do anjo se tornará o símbolo desse estado da alma, imagem essa eternizada por meio da gravura de Albrecht Dührer (1471-1528). Personagem dividido entre o divino e o humano, o anjo não encontra seu lugar nem no mundo terreno nem no mundo extraterreno. Daí sua atitude de negação do mundo, de reflexão, interioridade e de apatia aparente. Apesar da possibilidade da genialidade, a existência do melancólico é triste e miserável. Nessa época, há uma recuperação de Aristóteles e da sua visão do gênio melancólico, do homem excepcional. Marsílio Ficino, médico florentino, no séc. XV (1433-1499), afirma que as pessoas melancólicas possuem dons especiais para a criação artística, daí a ideia da melancolia criativa, que teria forte influência entre os românticos (KONDER, 1988. p. 104). É com Richard Burton (1577-1640), médico e filósofo inglês do séc. XVII, que aparece a primeira grande obra sobre o assunto: The anatomy of Evágrio de Ibora, o Pôntico (345-397), no século IV, interpretou que havia oito pecados capitais: Gula, Avareza, Luxúria, Ira, Melancolia, Acídia (ou Preguiça Espiritual), Vaidade e Orgulho. Já o Papa Gregório I, no final do século VI, reduziu a lista a sete itens, juntando “vaidade” e “orgulho” (ou “soberba”) e trocando “acídia” ou “melancolia” por “inveja”. Para fazer sua própria hierarquia, o pontífice colocou em ordem decrescente os pecados que mais ofendiam ao amor divino: Orgulho, Inveja, Ira, Indolência, Avareza, Gula, Luxúria – Dante Alighieri utilizou a mesma ordem na Divina Comédia (1308-1321). Tomás de Aquino, no séc. XIV, analisou novamente a gravidade dos pecados e fez mais uma lista, nessa substituiu “melancolia” por “acídia”, do grego akedía, “indiferença”, “tristeza”, pelo latim acedia: abatimento do corpo e do espírito; moleza, frouxidão (FERREIRA, 2009). 1 [11] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 melancholy (1621). Na sua minuciosa descrição da melancolia, afirma que essa poderia ter várias causas (o amor à religião, a política, a influência das estrelas, o aborrecimento, etc.); ele a caracteriza pela violência de uma dor atemporal, infinita, que se prolonga e se atualiza levando à eliminação da possibilidade de sentir prazer na relação com o mundo exterior. Assim, os melancólicos não podem ter prazer e não podem evitar a tristeza. O filósofo racionalista do séc. XVII, Baruch Espinosa (1632-1677), judeu holandês, em sua obra Ética (1675), toma a melancolia como sempre má, e, em certo sentido, o mal por excelência; é um dever expulsá-la, resistir a ela é um princípio da ética, pois a melancolia é impotência e o espinosismo é uma ética da ação, da potência. Philippe Pinel (1745-1826), médico francês, estudioso das doenças mentais, um dos pais da psiquiatria, defende, na passagem do séc. XVIII para o XIX, o tratamento dos problemas mentais como doenças e vê na melancolia a manifestação de transtornos (fanatismos religiosos, desilusões intensas, amores apaixonados, etc.), cujas causas são morais, delírios por pessoas ou objetos. Sigmund Freud (1856-1939), em seus estudos sobre o superego, deparou-se com algo conhecido na época como melancolia. Segundo Freud, a melancolia se assemelhava ao processo do luto, mas sem haver necessariamente uma perda (senão uma perda narcisista). Em Luto e melancolia (1917), Freud define a melancolia como uma forma de depressão, na qual o interesse pelo mundo exterior é suspenso, há uma perda da capacidade de amar, o sentimento de auto-estima é diminuído e tem início um processo sádico de auto-acusações e autopunições (MOREIRA, 2010). No séc. XX, Viktor Emil Frankl (1905-1997), médico e psiquiatra austríaco, fundador da escola de logoterapia (que explora o sentido existencial do indivíduo e a dimensão espiritual da existência), articulou a depressão a sentimentos de futilidade e falta de significado, direcionando o tratamento para preencher o “vácuo existencial” nos indivíduos. Já o psicólogo existencialista [12] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 americano Rollo May (1909-1994) considerou a depressão como a “inabilidade para construir o futuro”; na depressão, os indivíduos perdem a capacidade de vislumbrar adiante no tempo, logo, focando algum ponto no tempo adiante, o paciente tem uma perspectiva, um projeto, que pode quebrar a cadeia depressiva. Outros psicólogos sociais e humanistas vão ainda abordar a depressão no sentido de uma incongruência entre indivíduo e sociedade, um conflito entre contexto de vida e realização das potencialidades.1 É na modernidade, com o capitalismo, urbanização e massificação social, a mercantilização da vida e a reificação dos homens que a melancolia (ou a depressão) se torna mais presente e intensa na vida social. Diante de um mundo desumanizado e desencantado, o melancólico se sentirá ainda mais isolado, marginalizado. Pode-se mesmo dizer que a melancolia reflete uma espécie de mal-estar da modernidade. Walter Benjamin, pensador marxista da Escola de Frankfurt (18921940), procedeu – principalmente em sua obra Origem do drama barroco alemão (1984) – um estudo sobre o sujeito melancólico. Para Benjamin, a melancolia poderia embasar uma posição crítica frente ao mundo, uma atitude de recusa das condições postas, isolamento e reflexão sobre a condição humana. “Assim, o melancólico flerta também com a morte, sendo seu mensageiro entre os vivos. Ele traz essa mensagem porque trai o mundo com sua atitude filosófica. Trai o mundo e o troca pelas coisas mundanas. Não dá ao mundo valor, vendo-o como um grande vazio” (BRAGA, 2010). Benjamin elabora uma nova visão da questão ao referir-se a uma “melancolia de esquerda”. A melancolia agora traz consigo a contestação, todavia, ainda é incapaz de se libertar do passado; o melancólico de esquerda se situa na posição do Angelus Novus (figura de Paul Klee, que Benjamin usa como alegoria em suas Teses sobre o conceito de história, de 1940): o anjo vislumbra Do ponto de vista médico-clínico foi em 1952 que o DSM-I (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ou Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) trouxe a 1 definição de “reação depressiva” e, em 1968, o DSM-II incluiu a “neurose depressiva”, definida como uma excessiva reação ao internalizar conflitos ou eventos. [13] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 o passado com sofreguidão, entretanto, a tempestade que sopra do passado o empurra para o futuro. “Em um mundo coisificado e desumano, a atitude melancólica permite uma via revolucionária para a transformação da realidade” (BRAGA, 2010). O tema da melancolia (ou depressão) e seu outro, a felicidade, foi discutido por vários pensadores. Na filosofia, Aristóteles pensou a melancolia como característica do homem de gênio; Kant concebeu a felicidade como ideal da imaginação e não da razão; Auguste Comte viu numa das circunstâncias da melancolia, o tédio, a motivação dos homens para mudar a história; John Stuart Mill, ele próprio um melancólico, assim como outros pensadores (Rousseau, Hegel), identificou a felicidade como a inocente ignorância e a sabedoria como algo que trazia tristeza e melancolia; ser feliz, assim, seria não conhecer profundamente as coisas e o mundo, pois quando alguém se pergunta se é feliz, deixa de sê-lo. Ainda, as considerações de Kierkegaard sobre o desespero como condição humana, de Schopenhauer a respeito do pessimismo e da vida e mundo como sofrimento, de Heidegger sobre a angústia e o homem como ser para a morte, bem como as preocupações existencialistas sobre a vida e o sentido, o nada (Sartre) e o absurdo (Camus), contribuíram para uma visão filosófica da depressão. Na sociologia, são clássicas as formulações de Durkheim (O Suicídio, 1897) sobre o suicídio como fato social e suas motivações e causas na sociedade moderna; Max Weber e a angústia de ter de escolher entre seus próprios deuses e demônios, a difícil escolha da vida num mundo regido pela racionalização e pelo desencantamento do mundo, a existência na jaula de ferro da razão; Z. Bauman e a percepção do mundo contemporâneo em termos da liquidez que rege a vida, o medo, o amor, a identidade, as relações sociais, destacando a volatilidade dos laços societários e seus efeitos. Vários desses pensadores sofreram, eles próprios, com a depressão ou doenças nervosas. Filósofos como John Stuart Mill, William James, Friedrich Nietzsche e sociólogos, como M. Weber, tinham transtornos nervosos. Notório [14] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 é o caso de Walter Benjamin, cuja melancolia derivava, em parte, da impressão de que tudo na vida era um grande erro, de que estaria sempre no lugar e no momento errados. Escritores e artistas como Edgar Allan Poe, William Blake, Mark Twain, Wolfgang A. Mozart, Charles Dickens, Vincent Van Gogh, T. S. Eliot, Ernest Hemingway e Sylvia Plath também manifestaram sintomas depressivos. Na literatura, são vários os exemplos de personagens melancólicos. Na Bíblia, no Antigo Testamento, há a história de Saul que, desprestigiado, fracassado, vendo seus filhos serem mortos na guerra, sentindo-se inferiorizado por Davi, joga-se sobre sua própria espada. Na Ilíada, Ájax, perdendo a armadura de Aquiles para Ulisses, sente-se inferiorizado e, descontrolado, degola os animais dos rebanhos dos gregos, certo de que se vingava. Ao perceber o erro, suicidou-se usando a espada do inimigo Heitor, com o qual havia lutado. A loucura de Ájax inspirou Sófocles na tragédia Ájax furioso (450 a. C.). O personagem Hamlet, de Shakespeare, tornou-se o exemplo típico do melancólico, desgostoso da vida. O poeta inglês John Keats chegou a escrever um poema, “Ode on Melancholy” (1819), no qual aborda o assunto. Também em Franz Kafka (O Processo, O Castelo, Metamorfose), Albert Camus (O Estrangeiro) e, principalmente, em Samuel Becket (Companhia, Esperando Godot) o desespero, o vazio do mundo e falta de sentido da vida são temas constantes. No mundo moderno, a melancolia e a depressão não podem ser consideradas apenas doenças, patologias, sequer de caráter médico-biológico. Há componentes sociais (o que incluem os psicológicos) que contribuem para o aparecimento, intensidade e frequência das manifestações melancólicas. Assim, devemos considerar que, no mundo moderno, nunca tantos estiveram vivendo tão próximos e tão intensamente, e nunca fomos tão solitários; somente no séc. XIX as cidades ocidentais chegaram a um milhão de habitantes (Londres foi a primeira), essa densidade demográfica, todavia, [15] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 amplificou a sensação de solidão e distanciamento social entre os indivíduos. A solidão, individualismo, o vazio da vida moderna (alguns diriam pós-moderna) permeiam a existência dos indivíduos e os lançam no limite da incompreensão. Também, nunca fomos tão providos e nunca a vida foi tão abundante, entretanto, nunca fomos tão infelizes. A abundância material não trouxe a felicidade prometida pelo capitalismo. Podemos questionar se vivemos uma época de anomia, entropia social, perda da experiência comum, perda da noção de vida como bem maior (e não a felicidade), perda da ideia judaicocristã da vida como expiação e perda da noção (presente nas religiões orientais e no espiritualismo ocidental) de vida como aprendizado e elevação por meio do sofrimento e das provações. A felicidade antiga, mormente na formulação de Aristóteles (eudemonia), estava ligada ao bem-estar, ao bem da coletividade, prosperidade relacionada à vida pública, da polis. Já a felicidade moderna está ligada à satisfação individual, prazer intenso e frequente, gozo imediato e solitário. A felicidade pública deu lugar à privada (BODEI, PIZZOLATO, 2000). A fragilidade ou perda dos laços comunitários e do sentimento coletivo fez crescer o isolamento e a incapacidade de compartilhar a vida. Todavia, será que, como se crê no mundo atual, teríamos “direito à felicidade”? Seria a felicidade um direito resguardado aos indivíduos? A felicidade seria não somente a motivação, mas também daria sentido à vida? Atualmente, há quase que uma coerção pela busca da felicidade, o que legitima o interesse individual e o culto do prazer. Sofremos com a ilusão de que se vive para sempre, de que a morte é evitável, que tratamentos e cuidados obsessivos com saúde nos farão eternos e teremos, assim, tempo para a felicidade. A luta contra o envelhecimento toma o envelhecer como decadência e não como processo da vida; a busca do corpo perfeito, de aventuras radicais, de ‘adrenalina’, faz com que pessoas com idade razoável comportem-se como adolescentes, abusando da irresponsabilidade na busca da ‘vida’ e ‘felicidade’ intensas. Há aí um evidente desprezo pela velhice e a sabedoria, pela prudência, pela calma, pela experiência acumulada pelos anos. Tais adultos, [16] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 vivendo como adolescentes, recaem – obviamente – no ridículo do eterno agora, transformando a emoção numa busca desenfreada pela ação, pela excitação. Tal busca pela ação, e consequente desprezo pela contemplação, alavanca a indústria da satisfação e do prazer, do gozo como única motivação da vida, elevando o consumo de mercadorias à condição de fruição da vida, consumo para a vida ou vida para consumo, parafraseando Z. Bauman (2008). Por outro lado, frente à insatisfação ou ao vazio desse prazer fugaz, vige também uma indústria da depressão, um mercado de drogas, medicamentos, serviços médicos, atestados, irresponsabilidade, vitimização, etc. Tudo muito conveniente para que sejamos convencidos de que nos falta comprar algo para sermos felizes e de que a nossa eventual infelicidade pode nos trazer algum ‘benefício’ ou ‘lucro’. Talvez, entre os pilares desse sentimento melancólico disseminado socialmente na modernidade tardia, a crise da política e das ideologias, das utopias, seja um componente importante. Também, a crise do sagrado, o abandono da transcendência, a perda da noção de glória, de sacrifício, de resignação, de provação e de nobreza da vida difícil ou de abnegação e entrega sejam outros componentes, uma vez que nada garante que a vida boa e útil, a vida ‘feliz’ (num sentido no qual já não usamos mais), a vida digna, deva ser vivida pela busca do prazer, mas, estranhamente para nós, pode estar ligada ao sentido de reconhecimento e busca de um propósito maior, mais elevado, algo que torne a vida individual importante para o bem-estar da coletividade e para o aperfeiçoamento da humanidade. Escapa-nos hoje o valor da morte e de um propósito maior para a vida que o prazer, a possibilidade de viver não exclusivamente para si, mas para outrem, de tornar a vida individual forma de compartilhar a vida coletiva, e reconhecer nessa vida vivida para outrem um motivo de busca da felicidade, no sentido pleno da palavra. Isto sem abdicar do destino individual, pois só o indivíduo pode determinar-se nessa entrega em benefício de outrem. [17] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Ao que parece, afastamo-nos da ideia da finitude do ser, da consciência e autoconsciência da efemeridade da vida, da resignação frente ao imponderável e à grandiosidade do mundo que não nos pertence individualmente, nem sequer coletivamente, uma vez que – já indicou Hannah Arendt (1997) – devemos cuidar do mundo, pois o legaremos aos que virão. Isso tudo faz com que autores como Z. Bauman (2009) se perguntem pelas “misérias da felicidade” e, ainda, seguindo Michael Rustin, questionem “o que há de errado com a felicidade”. A sensação que nos assola é de que experimentamos nossa existência a partir de um automóvel que segue pela estrada: vemos os outdoors com as promessas do prazer e felicidade e aceleramos para persegui-las; o passado, os princípios e os significados ficam para trás, vemo-los se distanciar pelo retrovisor, e a vida passa rapidamente pela janela do carro. Não nos damos conta do risco de acelerar a existência, e talvez estejamos em rota de colisão com a existência de outros ou os limites da própria vida. Para Z. Bauman: A incerteza é o habitat natura da vida humana – ainda que a esperança de escapar da incerteza seja o motor das atividades humanas. Escapar da incerteza é um ingrediente fundamental, mesmo que apenas tacitamente presumido, de todas e quaisquer imagens compósitas da felicidade. É por isso que a felicidade ‘genuína, adequada e total’ sempre parece residir em algum lugar à frente: tal como o horizonte, que recua quando se tenta chegar mais perto dele. (BAUMAN, 2009, p. 31-2). Todavia, é necessário vislumbrar o horizonte para perceber, ainda como uma miragem, a possibilidade da felicidade. Quando baixamos os olhos para o chão, o horizonte se esvai e a vida se enterra na inevitabilidade da morte. Talvez vã. [18] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 A melancolia, a depressão, a angústia frente à incerteza da vida ou ao que se segue na vida é algo imanente à condição humana, a esse animal que alcançou a benção e a desgraça da autoconsciência: o homem. Não há redenção possível do incômodo da existência e do pavor do vazio da alma, nem deve haver, pois um mundo sem incerteza e angústia significaria a erradicação da possibilidade de questionar, errar, compreender o outro, procurar verdades, descartar mentiras, perguntar-se pelo seu erro e perdoar o alheio... Significaria a erradicação do que conhecemos como ‘ser humano’. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANJOS, Hermenegildo. Depressão e cultura: uma abordagem arquetípica. CEFAC, Centro de Estudos da Família e do Casal, 2002. Disponível em: <https://docs.google.com/viewerurl=http://www.cefacbahia.org.br/pag_internas/a rtigos/pdf/artigos_publicados/artigo_HA000402.pdf >. Acesso em: 20 jul. 2010. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. ______. A arte da vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. 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[21] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 CÓDIGOS PENAIS BRASILEIROS: ORIGENS E TRANSFORMAÇÕES Maíra Rosin1 Resumo Não se pode pensar sobre criminalidade e todas as suas esferas, sejam elas jurídicas ou mesmo cíveis sem pensarmos acerca dos códigos legislativos que regeram os crimes praticados. Um ato só pode ser considerado criminoso uma vez que conste em um Código Penal que estabeleça suas práticas e conseqüências. Este artigo busca relacionar os diversos Códigos Penais que regeram as leis brasileiras entre si, apontando transformações e permanências assim como colocá-los dentro de um cenário mundial. Palavras chave: Código Penal; Direito Penal; Criminalidade Résumé Il est impossible de penser à la criminalité et toutes ses sphères, soient elles juridiques ou même civiles sans penser aux codes législatifs qui ont régit les crimes pratiqués. Un acte ne peut être considéré comme criminel qu'une fois qu'il apartienne à un code pénal qui établisse ses pratiques et ses conséquences. Cet article cherche à corréler les divers Codes Pénaux qui ont régit les lois brésiliennes entre elles, détachant les transformations et les permanences bien comme à les insérer dans un cadre mondial. Mots Clés: Code Pénal; Droit Pénal; Criminalité 1 mestranda em História Social na Universidade de São Paulo. [22] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 O sistema do direito e o campo judiciário são o veículo permanente das relações de dominação. Michel Foucault O Código Penal faz parte de diversos estudos e pesquisas realizadas sobretudo nas áreas de História e do Direito no Brasil, no entanto, não encontram-se artigos e outros escritos sobre a evolução do pensamento jurídico e das mudanças sociais que podem ser percebidas através do estudo das leis penais brasileiras. Desde o princípio, as sociedades mais desenvolvidas necessitaram de um sistema de leis que as regulassem em diversas esferas, como a civil e a criminal, assunto que aqui nos cabe. Mesmo sem a presença de um código de leis preciso, as sociedades se regulavam através de um superior e de alguns códigos de conduta aplicados por uma determinada autoridade tribal ou através do membro mais forte daquela comunidade para a garantia e a manutenção de uma boa convivência em grupo e do respeito entre os indivíduos que formavam estes grupos. Este trabalho foca, fundamentalmente, o Código Penal de 1890, desenvolvido após a proclamação da República para substituir o Código Criminal do Império, em vigor no Brasil desde 1830. Este código, porém, não foi pensado individualmente, mas deriva do conhecimento de outros códigos pelo mundo e se apresenta como ultrapassado mesmo em sua publicação por conter colagens de leis e ideias que não representavam a realidade da sociedade a que estava destinado. A doutrina que os legisladores haviam ignorado quando adotaram o código penal de 1890, inspirado no direito clássico, foi integrada à jurisprudência brasileira no final da década de 1930. (...) Mesmo juristas conservadores como Nélson Hungria (...) proclamava que os juízes tinham uma [23] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 obrigação moral e profissional de moldar a lei às situações específicas por meio de interpretações.1 Segundo Stuart Schwartz, o Brasil foi um país sem leis até 1530, por não ser um local colonizado. Depois desse período, a administração da justiça passou pelas mãos de diversos indivíduos, ou seja, o sistema de punição funcionava de acordo com as vontades daqueles que administravam suas porções de terra e contra os sujeitos submetidos àquela administração, ainda que oficialmente a lei em vigor era a mesma portuguesa: as Ordenações Filipinas. Com a criação de um tribunal na colônia, em 1609, o exercício da justiça passou para as mãos de pessoas como o ouvidor-mor e seus subordinados, mas ainda assim era efetivamente aplicada de acordo com a localidade da ocorrência criminal, ou seja, muitas vezes eram os próprios senhores de engenho ou administradores locais que aplicavam penas e realizavam os julgamentos daqueles acusados de cometer quaisquer tipos de crimes. 2 Com a queda do Antigo Regime o poder judiciário sai das mãos do rei, mas permanece nas mãos do Estado, se pensarmos que essa esfera de poder, mesmo que independente, faz parte do aparato estatal, o governo ainda é o regente da justiça criminal. Isso também vale para o caso do Brasil, que mesmo com a presença de um monarca dotado do poder Moderador, coloca na Constituição de 1824 um artigo onde determina que os crimes não seriam julgados nem sentenciados por ele, e sim por um corpo capacitado, seguindo os ideais lançados pela Revolução Francesa e seu pensamento ilustrado, mesmo que, como veremos depois, esses ideais fossem incompatíveis com o sistema de governo proposto por D. Pedro I. CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra. São Paulo: Editora Unicamp, 2005. P. 255. SCHWARTZ, Stuart B. “Justiça e Juízes no Brasil – 1500 - 1580” in Burocracia e Sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979. 1 2 [24] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 De acordo com Foucault, a teoria da soberania 1 continuou a existir na Europa do século XIX, e nos países inspirados pelos ideais ilustrados, com a elaboração dos códigos chamados napoleônicos (Código Civil de 1804 e Código Penal de 1810). 2 A ideia também pode ser compreendida a partir das comparações no âmbito do direito realizadas por José Reinaldo de Lima Lopes: Durante boa parte do Antigo Regime, esta convivência de princípios de direito natural com a tradição medieval (jurídica e política) será bastante complicada. Até certo ponto ela só se resolve com as revoluções liberais, especialmente a partir da Revolução Francesa de 1789. 3 É interessante notar como a França pós-revolucionária consegue alterar positivamente seu sistema jurídico e legislativo, se pensarmos que durante o período da Revolução os julgamentos eram rápidos e sumários, baseados apenas nas acusações feitas pelo comitê revolucionário e sem a exposição dos réus e de testemunhas contra ou a favor deste, tendo sido julgado e condenado à guilhotina deste modo até mesmo o rei Luis XVI, julgado como Luis Capeto, ou seja, removido de qualquer soberania que o protegesse diante daquele tribunal. Podemos entender por essa perspectiva que o período anterior à Foucault entende como teoria da soberania a importância do Rei diante da formação do Direito Ocidental. O poder de julgar era inerente ao poder monárquico até a queda do Antigo Regime. Este conceito que alia o campo jurídico ao político aparece como herança da Idade Média e do poder feudal, mas também tem seus princípios apoiados no direito romano, cuja decisão final também recaía sobre o Cesar. Portanto, a teoria da soberania refere-se à capacidade de se obter obediência por parte daqueles que estavam abaixo dos soberanos ou, com a mudança no regime, subordinados à lei que os rege. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. P. 43. LOPES, José Reinaldo de Lima. “Metodologia e ensino do direito: a Modernidade” in O Direito na História. São Paulo: Atlas, 2009. P; 199. 1 2 3 [25] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 ascensão de Napoleão ao poder foi marcado por um sistema basicamente sem leis, ou melhor, onde a lei era aplicada de forma arbitrária, mesmo com todo o ideal ilustrado que permeava a França e sua revolução. É ainda mais curioso que o sistema jurídico francês tenha servido de base para outros países do mundo após a publicação dos códigos napoleônicos, como veremos a seguir, ou seja, de um país sem lei e sem rei a modelo jurídico. No caso do Brasil, como colônia e depois, como território independente, o sistema jurídico evoluiu da seguinte forma: por mais de trezentos anos o país foi regulado em sua esfera jurídica primeiro pelas Ordenações Afonsinas, pelas Ordenações Manuelinas e em seguida, por ocasião da reforma proposta pelo rei Felipe II, pelas Ordenações Filipinas, através de um conjunto de livros que controlavam o Império Português e cuja aplicação se estendia a suas colônias. O mais famoso destes livros, e o mais importante aqui, é o Livro V, que compete o âmbito do direito penal, regulando as condutas e estabelecendo penas para cada determinado tipo de crime. Este livro funciona mais como um regulador de condutas do que propriamente um tipo de código penal. Ele apresenta as práticas que vão contra os sistemas da sociedade que regula e traz punições (a maioria relacionada a lesões corporais, degredo e galés) às ações consideradas erradas e passíveis de qualquer punição. É interessante notar que a maioria das condutas consideradas criminosas pelo Livro V são aquelas onde o rei é alvo, ou seja, são crimes de lesa-majestade, punidos geralmente com tortura e execução: Lesa-majestade quer dizer traição cometida contra a pessoa do Rei, ou seu Real Estado, que é tão grave e abominável crime, e que os antigos Sabedores tanto estranharam, que o comparavam à lepra; porque assim como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar, e empece ainda aos descendentes de quem a tem, e aos que com elle conversão, pelo que é apartado da comunicação da gente: assim o erro da traição condena o que a comete, e [26] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 empece e infama os que de sua linha descendem, posto que não tenham culpa. 1 Este livro é fundamental para a compreensão da evolução da justiça penal brasileira, uma vez que mesmo com as diversas alterações sofridas pelos códigos que o seguiram e as diversas novas ideias que os permearam, muito do tradicionalismo e dos castigos propostos nas Ordenações continuam vigorando como lei no país, mesmo que de forma bastante reduzida. Estas leis, porém, só regiam os cidadãos europeus que habitavam a então colônia. Índios e escravos estavam sujeitos às ordens eclesiásticas e à dominação de seus senhores, respectivamente. As Ordenações Filipinas estão apoiadas no Antigo Regime, e tem como característica básica a defesa do soberano. O exercício da justiça seguia no mesmo caminho, fazendo privilegiar a vontade do monarca sobre a vingança particular, tornando pública a justiça penal. Punir, controlar os comportamentos e instituir uma ordem social, castigar as violações a essa ordem e afirmar o poder do soberano constituíam elementos inerentes ao poder real. 2 O rei é dono dos corpos de seus súditos, sendo ele quem decide em caso de necessidade de uma punição, como já vimos ser base da teoria da soberania apresentada por Foucault. Stuart Schwartz aponta que os “soldados, comerciantes, clérigos e cidadãos portugueses encaravam a administração da justiça como a parte mais importante do governo real” 3. Michel Foucault LARA, Silvia Hunold (Org). Ordenações Filipinas – Livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. P. 69. LARA, 1999: P. 21. SCHWARTZ, 1979: P. 17. 1 2 3 [27] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 representa essa afirmação sobre o poder do rei na frase “Fazer viver e deixar morrer e deixar viver” 1, que vigorou até a queda do Antigo Regime como mostra de direito político do soberano, sendo substituído depois pelo que Foucault chamou de “fazer viver e deixar morrer” 2. Foram várias as tentativas de reforma do código filipino, a mais importante delas feita pelo Marquês de Pombal, que chegou a aplicar algumas das mudanças no período de seu governo, mas todas as reformas por ele implantadas foram substituídas assim que ele deixou o poder. Uma nova reforma foi tentada no governo de D. Maria I, mas fracassou, já que não se conseguiu um acordo entre aqueles que buscavam redigir um novo conjunto de leis e a nobreza, que não aceitava perder a centralidade dada pelos livros que compunham as Ordenações Filipinas. A justiça penal continuou, portanto regida no Brasil pelo Livro V das Ordenações, que se mantiveram como regra máxima mesmo com as mudanças realizadas com a chegada da família real portuguesa ao país. O sistema legislativo só viria a ser alterado com a independência do país, ou seja, quando desvinculado de Portugal passasse a ter suas próprias leis. E foi como se deu, logo após a proclamação da Independência do Brasil, o Imperador D. Pedro I outorgou a Constituição de 1824, deixando constar nela que fosse elaborado um Código Criminal que regulasse as penalidades do império o mais rápido possível. Este código entrou em vigor no ano de 1830, trazendo em si diversas semelhanças com as Ordenações Filipinas. Nele foram mantidas as penas de castigos corporais, como açoites (pena esta muito aplicada nos casos de crimes leves cometidos por cativos), pena de degredo, galés perpétuas ou temporárias e mesmo a pena de morte por forca. Naturalmente estas penas competiam a poucos crimes, se compararmos com as Ordenações Filipinas e foram aplicadas em poucos casos. 1 2 FOUCAULT, 2005: P 286 e 287. Idem. [28] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 O Código Criminal de 1830 introduz no Brasil a prisão como meio de punição para diversos crimes e em outros casos o pagamento de multas também servia como pena para um crime. Segundo o Artigo 179 da Constituição as cadeias deveriam ser “seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos Réus, conforme suas circunstâncias e natureza dos seus crimes” 1. É também a Constituição de 1824, através do Artigo 151, que transforma a Justiça em um elemento independente em relação ao governante, no caso, o imperador deixa de ter o poder de julgar, função que passa a ser tarefa de juízes e jurados, que tem o poder de fazê-lo tanto na esfera Cível quando na Criminal 2. Com esta medida o imperador, D. Pedro I, se desprende daquela que até então havia sido, como vimos, a maior função de um monarca, para entregá-la àqueles que eram considerados maiores conhecedores da justiça. Esse ponto é fundamental na compreensão dos caminhos da mudança da legislação criminal, pois esta postura assume que o rei não é a vítima da maioria dos crimes, mas que todos os cidadãos podem ocupar os papéis de criminosos e vítimas, sendo regidos por uma mesma lei e julgados por pessoas competentes na análise das situações, nas testemunhas e nas provas, e não por um soberano que o faz de maneira passional. As ideias presentes neste código estão profundamente vinculadas ao Código Francês de 1810, também conhecido como Código Napoleão, uma vez que apesar de demonstrar certo continuísmo no que se refere à legislação anterior, o Código Imperial está carregado de diversos ideais ilustrados da Revolução Francesa, e é exatamente neste ponto que está a ambigüidade de sua existência; afinal como articular um código baseado nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade quando o país ainda vive, de certa forma, nos moldes Constituição Política do Império do Brasil (de 25 de março de 1824). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm (acessado em 21/07/2011). Idem. 1 2 [29] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 do Antigo Regime, governado por um Imperador e permeado pela prática da escravidão, elementos totalmente inconsistentes diante destas ideias? De qualquer forma, ainda de acordo com o artigo 179, parágrafo VIII da Constituição de 1824 o novo Código Criminal deveria ser “fundado nas bases sólidas da Justiça e da Equidade” 1, equidade esta que foi um dos ideais mais fortes da Revolução Francesa. Foi o primeiro código criminal da América de colonização Ibérica a conter inspirações ilustradas. É também sabido que o Código Civil dos Franceses e a Constituição dos Estados Unidos, frutos das revoluções liberais do final do XVIII são base de inspiração para a grande maioria dos conjuntos legislativos em diversos pontos do mundo. Segundo o jurista José Reinaldo de Lima Lopes, “O Código (de 1830) tivera inspiração nas mesmas fontes da Constituição de 1824, isto é, o iluminismo penal do século XVIII” 2. O Código Criminal de 1830 é o primeiro a reger legalmente todos os cidadãos habitantes do país, fossem brancos, escravos ou libertos. Ao mesmo tempo em que se apresentava como inovador, o Código Criminal de 1830 é, segundo alguns juristas, como Nelson Hungria, autor do anteprojeto do Código Penal de 1940 como um código carregado de velharias. As velharias às quais Hungria se refere estão basicamente fundamentadas nas heranças deixadas pelas Ordenações Filipinas neste código, considerado moderno por suas inspirações. Alguns elementos de tortura, como os açoites, a pena de morte, o degredo e a pena de galés ainda existem no Código Criminal de 1830, deixando clara a influência da legislação anterior e ainda mais, deixando transparecer certas posturas existentes diante de um local governado por um rei, ou seja, novamente a soberania transparece, incoerente com o exemplo adotado. Este código foi substituído logo após a proclamação da República, dando lugar ao Código Penal de 1890, uma das fontes de estudo desta pesquisa. A recém proclamada república no Brasil precisava de códigos novos, que 1 2 Idem. LOPES, 2009: P. 265. [30] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 apagassem aqueles herdados do finado império e que fossem a imagem do país em pleno desenvolvimento e liberto dos antigos ideais que a monarquia carregava. O Brasil agora era um país democrático, que seguia os padrões de tantos outros considerados desenvolvidos. Escrito às pressas, o Código Penal de 1890 carregou muito das leis imperiais, embora na aplicação das punições tenham desaparecido os castigos físicos, pena de galés, degredo e pena de morte, transformando as punições em reclusão pelo período determinado pelo Código e pelo juiz em casa de detenção ou em manicômio judiciário. A República mudara novamente as cores do Brasil, trazendo novas ideias, expressando a nova doutrina do capitalismo, o laissez-faire, de forma ampla, o que abriu espaço para a atração de uma nova população, liberta, imigrante e daqueles que compunham a aristocracia do império que mantinham seu poder e prestígio durante a Primeira República. Essa nova cara do país era também responsável por uma nova dinâmica de vida, onde mais uma vez na história desaparecia a figura de um governante que poderia ser considerado superior e diferente dos demais para um sujeito às mesmas virtudes e defeitos, sujeito ao mesmo conjunto de leis que regia toda a população do país e para isso era necessária a produção de um código que atendesse a essas necessidades. O novo código, mesmo modernizado, ainda carregava críticas a algumas posturas consideradas erradas tanto nas Ordenações como no Código Criminal de 1830, como a vadiagem (agora inscrito no artigo 400) e os denominados “crimes contra a honra e a honestidade das famílias” (Capítulo I do Código Penal de 1890). Ainda que houvesse permanências, a inexistência de castigos corporais para o cumprimento das penas era uma novidade bastante interessante para o país, uma vez que era uma prática comum e recorrente em diversas esferas. A pena de reclusão passou a ser quase única, fundamental para o cumprimento das sentenças, sendo inclusive já pré-estabelecidas no próprio código, ou seja, caberia ao juiz ou ao corpo de jurados apenas adequar a punição ao delito cometido, sem excessos, sem faltas. É aqui que entra também a possibilidade de [31] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 cumprimento da pena em um manicômio judiciário. Esta modalidade deveria ser indicada por um médico, qualificando o réu como incapaz ou declarando-o portador de algum tipo de moléstia mental. A pena em manicômio judiciário era a mesma a ser cumprida nas casas de detenção, com a diferença de poder ser renovada ao seu término caso fosse comprovado que o réu em questão oferecia algum tipo de risco caso voltasse ao convívio social1. Casos como estes só foram possíveis através da incorporação das teorias Positivas do século XIX vão além do campo do Direito, impregnando diversas outras áreas como a da medicina, que será bastante importante mesmo no que compete ao âmbito do direito penal no Brasil, já que o Código Penal, ao ser reformulado e colocado em prática no ano de 1942, traz diversos usos da medicina legal e dos exames médicos para a determinação da procedência dos crimes. Isto se deve ao sistema de identificação dos corpos dos delinqüentes através de diversos sinais que este poderia apresentar, o que o transformaria em um Criminoso Nato, segundo as teorias de Cesare Lombroso. Esta condição foi bastante difundida no Brasil e trabalhada de forma intensa na esfera do direito penal do país, que viria a condenar diversos suspeitos por apresentares os tais sinais de degenerescência. 2 Foi o caso de Febrônio Índio do Brasil, condenado a pena em manicômio judiciário em 1928 através de laudo emitido pelo Dr. Manoel Clemente Reyo, que declarava que Febrônio era “portador de uma psicopatia constitucional, caracterizada por desvios éticos, revestindo a forma da loucura moral e perversões instintivas, expressas no homossexualismo com impulsões sádicas, estado esse a que se juntam ideias delirantes da imaginação, de caráter místico” (CARRILHO, Heitor. “Laudo do exame médico-psychológico procedido no accusado Febronio Í. do Brasil” in Archivos do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 77-101, 1930.). Sua pena foi constantemente renovada até sua morte, em 27/08/1984, fazendo de Febrônio a pessoa a passar mais tempo em regime correcional e abrindo precedentes para a discussão sobre a renovação indeterminada para réus que cumprem pena em manicômios judiciários. SZMRECSANYI, Tamas e SILVA, Sérgio S. (org). História Econômica da Primeira República. São Paulo: Hucitec, 2002. P. 354. 1 2 [32] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 O positivismo impôs uma ruptura com o senso comum: o senso comum, como se sabe, tende a ser conservador e fixista. O Estado liberal precisava ser implantado, precisava ser criado e substituir o Antigo Regime. A legislação deste Estado veio para por fim a todo o direito anterior e seu instrumento privilegiado foi o Código: uma lei que dispunha sistemática e completamente sobre um assunto determinado. O código pretendia ter um caráter axiomático. Opunha-se à falta de sistemas das ordenações anteriores. Quem abre as Ordenações Filipinas, que também vigoraram no Brasil desde 1603, nota que são casuísticas. No famoso Livro V, sobre matéria penal, não existe uma parte geral sobre as penas, os delitos, as circunstâncias atenuantes ou agravantes, o dolo ou a culpa: ele é uma coleção de delitos, sem que sejam agrupadas numa ordem genérica, numa tipologia definida. Cada um com suas próprias circunstâncias. 1 O conjunto de leis propostas pelo Código Penal de 1890 vigorou até 1940, quando foi substituído por um projeto novo, que incorporava a medicina legal em seu texto e que também eliminava alguns artigos obsoletos, artigos cujas mudanças na sociedade regida pelo código faziam com que estes delitos não fossem mais válidos, como é o caso da já citada vadiagem, que não conta mais no texto promulgado em 1940, assim como o defloramento, que foi substituído pelo crime de sedução. Apesar de tantas modernizações este ainda é um código carregado dos ideais patriarcais, que fazem com que ele seja de certa forma bastante machista. Ele também foi criticado pelo autor de seu anteprojeto, o já citado advogado 1 LOPES, 2009: 204. [33] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Nelson Hungria, que na ocasião do lançamento do código ocupava uma das cadeiras do Supremo Tribunal Federal. É interessante perceber que o sistema penal no Brasil muda a cada grande mudança política ocorrida no país, e sempre influenciado por grandes mudanças ocorridas também em nível mundial. O primeiro código surge logo após a Independência, o próximo na República e o último, em vigor até hoje, vem com as mudanças propostas pelo governo Getúlio Vargas e as mudanças do Estado Novo. Mesmo com as outras mudanças ocorridas no governo, o Código Penal se manteve funcionando e regula a justiça criminal até hoje, tendo sido ao longo destes anos apenas adaptado às novidades que o mundo oferecia, trazendo anexos, como a inclusão de alguns crimes e colocando outros em desuso, como o já citado crime de reclusão. Portanto, através dos códigos penais e de suas mudanças e permanências podemos compreender a sociedade que forma o Brasil, assim como suas mentalidades e seus conceitos de julgamento das posturas certas ou erradas e das punições a elas impostas. BIBLIOGRAFIA ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. Michel Foucault e a teoria do poder. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7 (1-2): 105-110, outubro de 1999. CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra. São Paulo: Editora Unicamp, 2005 Constituição Política do Império do Brasil (de 25 de março de 1824). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm (acessado em 21/07/2011). [34] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. HILL, Christopher. O mundo de ponta cabeça. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. LARA, Silvia Hunold (Org). Ordenações Filipinas – Livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. LOPES, José Reinaldo de Lima. “Metodologia e ensino do direito: a Modernidade” in O Direito na História. São Paulo: Atlas, 2009. MACHADO NETO, Zahidé. Direito Penal e Estrutura Social. São Paulo: Saraiva, 1977. SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e Sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979. SZMRECSANYI, Tamas e SILVA, Sérgio S. (org). História Econômica da Primeira República. São Paulo: Hucitec, 2002. [35] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 ...SEPAROU A CABEÇA DO CORPO DA VÍTIMA, A SUA PRÓPRIA MÃE [...] O QUE É ISTO, SENÃO LOUCURA? Jéferson dos Santos Mendes1 Resumo: O presente artigo busca trabalhar um crime cometido em 1909, na serra do Taquary, no município de Soledade, Rio Grande do Sul. Neste o réu após um episódio de “loucura” agride a irmã e mata a mãe, decapitando-a. Abordando um estudo histórico-sociológico dos sujeitos envolvidos no crime. O tratamento dado pela justiça às vítimas e aos réus. Qual era o fator desencadeador do delito. Alguns conceitos chaves como de desvio e norma. Palavra-chave: crime, norma, direito. Résumé: Présent article cherche travailler un crime commis en 1909, dans la montagne du Taquary, dans la ville de Soledade, de Rio Grande do Sul. Dans cet o accusé après un épisode de “folie” il agresse la soeur et tue la mère, en la décapitant. En abordant une étude historique-sociologique des sujets impliqués dans le crime. Le traitement donnée par la justice aux victimes et aux coupables. Quelle ère le facteur déchaîner du délit. Quelques concepts clés comme de détour et de norme. Parole-clef: crime, norme, droit. Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo. Pós-graduado em Sociologia pela Universidade de Passo Fundo. Graduado em História pela Universidade de Passo Fundo. 1 [36] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 O homem, no fundo, é um animal selvagem e terrível. Nós o conhecemos unicamente no estado subjugado e domesticado, denominado civilização: por isto nos assustam as eventuais erupções de sua natureza. Porém, onde e quando a trava e a cadeia da ordem jurídica se rompem, e se instaura a anarquia, se revela o que ele é. [...] é a essência interna e inata do homem. Em cada um se aninha inicialmente um egoísmo colossal, a ultrapassar com maior a facilidade os limites impostos pelo direito [...]. [...] No coração de cada um repousa efetivamente um animal selvagem, apenas à espera de uma oportunidade para bramir com fúria e devastação, na pretensão de prejudicar outros e mesmo, quando se lhe opõem, de aniquilá-los [...]. [...] Quando dois cachorros pequenos brincam, apresentando uma visão tão pacífica e agradável, e se aproxima uma criança de 3 a 4 anos, imediatamente esta baterá nos animais com seu chicote ou pedaço de pau, mostrando assim que já é l’animal méchant par excellence. (o animal perverso por natureza). Shopenhauer As práticas criminosas sempre foram e ainda são comuns em nossa sociedade. Ao mesmo tempo. Sempre foram duramente combatidas. Mas o Estado, como instituição mantenedora da ordem pública nem sempre conteve os impulsos conscientes ou inconscientes dos indivíduos. O crime entendido de diferentes formas, e, em diferentes épocas. Sofreu diversos processos tanto de condenação como de prática. Michel Foucault percebeu essas transformações e as novas correções nas execuções das penas. [37] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Dentre tantas modificações, atenho-me a uma: o desaparecimento dos suplícios. Hoje existe a tendência a desconsiderá-lo; talvez, em seu tempo, tal desaparecimento tenha sido visto com muita superficialidade ou com exagerada ênfase como "humanização" que autorizava a não analisá-lo. De qualquer forma, qual é sua importância, comparando-a às grandes transformações institucionais, com códigos explícitos e gerais, com regras unificadas de procedimento; o júri adotado quase em toda parte, a definição do caráter essencialmente corretivo da pena, e essa tendência que se vem acentuando sempre mais desde o século XIX a modular os castigos segundo os indivíduos culpados? Punições menos diretamente físicas, uma certa discrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação, merecerá tudo isso acaso um tratamento à parte, sendo apenas o efeito sem dúvida de novos arranjos com maior profundidade? No entanto, um fato é certo: em algumas dezenas de anos, desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal.1 Esse desvio social, transformou o atrativo penal conduzido a privação da liberdade do indivíduo e não mais o corpo como elemento punitivo. Agregador de modelos de suplício. Em contrapartida o desenvolvimento da FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir: nascimento da prisão, Trad. Raquel Ramalhete, Petrópolis, Vozes, 1987, p. 12. 1 [38] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 sociedade industrial, trouxe precipuamente um arrojado sistema punitivo com novos agentes sociais institucionalizados. [...] um exército inteiro de técnicos veio substituir o carrasco, anatomista imediato do sofrimento: os guardas, os médicos, os capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os educadores; por sua simples presença ao lado do condenado, eles cantam à justiça o louvor de que ele precisa: eles lhe garantem que o corpo e a dor não são os objetos últimos de sua educação punitiva.1 O crime e sua ocorrência nos grandes centros urbanos passou a ser entendido como algo comum,2 recrescente ao início do século XX. O próprio Durkheim, o percebia como um fato social normal.3 O recrudescimento das normas aos atos falhos dos indivíduos tornaram o sistema punitivo mais democrático. As ações humanas seriam contidas através das leis. Um conjunto de regras éticas e morais foram elaborados para manter a ordem social. Um processo civilizatório em construção. Entretanto, nem todos estavam envolvidos a essa rede em desenvolvimento. Os grandes centros urbanos, envoltos de problemas de crescimento e densidade populacional tornavam as relações sociais mais estáveis, deletérias, nocivas. Mas controlados substantivamente pelas ações do Estado. Já os pequenos centros urbanos mais vulneráveis as ações reguladoras da instituição estavam propícios aos desvios ascendentes. Enquanto nos grandes centros urbanos, os crimes podem ser entendidos como processos de imitação, “por exposição anormal à influência FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir: nascimento da prisão, Trad. Raquel Ramalhete, Petrópolis, Vozes, 1987, p. 15. DURKHEIM, Emile, As regras do método sociológico, Trad. Paulo Neves, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 15. SELL, Carlos Eduardo, Sociologia Clássica, Itajaí, Univali, 2001, p. 146. 1 2 3 [39] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 de pessoas e grupos já criminosos”.1 Então, como explicar as ações criminosas de indivíduos em pequenos centros urbanos?, O que levaria um filho a matar a própria mãe? E, depois decapitá-la?. Nesse emaranhado de hipóteses é que tentaremos costurar as ideias, tecendo o objeto a partir dos sujeitos envolvidos. Em mais um domingo vivido por uma família humilde do norte do Estado do Rio Grande do Sul, tudo parecia estar nos seus devidos lugares, entretanto a aparente calmaria daria lugar aos ventos tortuosos de náufragos antigos. Em 12 de dezembro de 1909, as primeiras horas do dia repetiam a rotina pacata do interior. Até que, [...] às 11 horas da manhã, no 1º distrito do município da Soledade, na Serra de Taquary, achando Ignácio dos Santos Vaz em companhia de suas irmãs Conceição e Apolinária, em casa de seus pais, altercando com a primeira, armou-se de um pau e deu com ele um golpe em Conceição, ferindoa gravemente e deixando-a sem sentidos, caída ao chão. Acudindo a outra irmã Apolinária, Ignácio dos Santos Vaz vibrou-lhe um golpe com o pau que tinha a mão, ferindo-a também. Correndo Maria Vaz dos Santos em socorro de suas filhas, Ignácio seu filho armando-se de um machado, vibrou-lhe tremendo golpe, que a derrubou por terra, já quase morta e repetindo os golpes, separou a cabeça do corpo da vítima, a sua própria mãe. Como Ignácio dos Santos Vaz, assim procedendo, venha cometido os crimes previstos nos art. Os 304, 303 e 294 § 1º do Código Penal da República, oferece o promotor público da comarca a presente denúncia, que espera, seja afinal julgada provada. Assim P. q. A. esta, se proceda a JOHNSON, Harry M, Introdução sistemática ao estudo da Sociologia, Trad. Edmond Jorge, Rio de Janeiro, Lidador Ltda, 1967, p. 647. 1 [40] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 formação da culpa, inquerindo-se as testemunhas arroladas, que devem ser citadas para depor em dia e hora, que forem designados, com ciência do indiciado, cuja prisão preventiva requer continue até final sentença. O dano causado é incalculável. Testemunhas. [...] em tempo. – em face do hediondo crime, que autoriza a duvidar-se do estado mental do denunciado, requeira que se proceda a exame de sanidade mental no mesmo. Passo Fundo, 24 de dezembro de 1909.1 O réu foi autuado nos arts. 303, 304 e 294 § 1º do Código Penal da República. O art. 303 compreende a ofensa física que produz algum tipo de lesão, sem derramamento de sangue, tendo prisão de três meses a um ano.2 O art. 304, se a lesão corporal resultar de “mutilação ou amputação, deformidade, ou privação permanente de uso de um órgão ou membro, ou qualquer enfermidade incurável e que prive para sempre o ofendido de poder exercer o seu trabalho”, registrando pena de dois a seis anos.3 Já o art. 294 § 1º, condiz ao matar alguém,4 e esse “crime for perpetrado com qualquer das circunstâncias agravantes mencionadas nos §§ 2, 3, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 16, 17, 18 e 19 do art. 39 e § 2º. Do art. 41”.5 Prevê prisão de 12 a 30 anos.1 Assim, Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo PPGH-UPF (2ª Vara Civil da comarca de Soledade-RS) - Caixa 10. Referente às lesões causadas nas irmãs do réu. Referentes às lesões causadas na mãe do réu. O criminoso, portanto, deve ser visto de maneira diversa daquela pela qual a penalogia o olhara anteriormente, deve ser visto dentro do moderno conceito biológico do crime como expressão de normalidades orgânicas e funcionais, ainda que não se possam perder de vista os fatores sociológicos e as necessidades da defesa social. In: BRITTO, Lemos, A questão sexual nas prisões, Rio de Janeiro, Livraria Jacintho, sd, p. 51. Art. 39 – São substancias agravantes: 1 2 3 4 5 [41] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 O que transforma este fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu ser tal como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema da natureza, mas o sentido objetivo que está ligado a esse ato, a significação que ele possui. O sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por intermédio de uma norma que ele se refere com o seu conteúdo, que lhe empresta a significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma. A norma funciona como esquema de interpretação. Por outras palavras: o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui § 2.º - Ter sido o crime cometido com premeditação, mediando entre a deliberação criminosa e a execução o espaço, pelo menos, de vinte e quatro horas; § 3.º - Ter o delinquente cometido o crime por meio de veneno, substancias anestésicas, incêndio, asfixia ou inundação; § 6.º - Ter o delinqüente procedido com fraude, ou com abuso de confiança; § 7.º - Ter o delinqüente procedido com traição, surpresa ou disfarce; § 8.º - Ter procedido ao crime com emboscada, por haver o delinqüente esperado o ofendido em um ou diversos lugares; § 9.º - Ter sido o crime cometido contra ascendente, descendente, cônjuge, irmão, mestre, discípulo, tutor, tutelado, amo, doméstico, ou de qualquer maneira legitimo superior agente; § 10.º - Ter o delinqüente cometido o crime por paga ou promessa de recompensa; § 11.º - Ter sido o crime cometido com arrombamento, escalada ou chaves falsas; § 12.º - Ter sido o crime cometido com entrada, ou tentativa para entrar, em casa do ofendido com intenção de perpetrar o crime; § 13.º - Ter sido o crime ajustado entre dois ou mais indivíduos; § 16.º - Ter sido cometido o crime estando o ofendido sob a imediata proteção da autoridade publica; § 17.º - Ter sido o crime cometido com emprego de diversos meios; § 18.º - Ter sido o crime cometido em ocasião de incêndio, naufrágio, inundação, ou qualquer calamidade publica, ou de desgraça particular do ofendido. In: PIRAGIBE, Vicente, Consolidação das Leis Penaes: Código Penal Brasileiro, Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1933. PIRAGIBE, Vicente, Consolidação das Leis Penaes: Código Penal Brasileiro, Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1933. 1 [42] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa. Mas também na visualização que o apresenta como um acontecer natural apenas se exprime uma determinada interpretação, diferente da interpretação normativa: a interpretação casual. A norma que empresta ao ato o significado de um ato jurídico (ou antijurídico) é ela própria produzida por um ato jurídico, que, por seu turno, recebe a sua significação jurídica de uma determinada norma. [...] Isso que dizer, em suma, que o conteúdo de um acontecer fático coincide com o conteúdo de uma norma que consideramos válida.1 Através do conceito elaborado por Kelsen, o Estado possuía a sua expressão mais sintomática, definindo-o como “a ordem política a qual se atribui o uso exclusivo do poder coativo”, em contrapartida “o Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano".2 Dessa forma, “direito e Estado se confundem”.3 Após a consumação do ato em questão foi dado o auto de prisão em flagrante ao réu, pela tentativa de fuga. Depois de efetuado o corpo de delito no cadáver de Maria Vaz dos Santos, no qual os peritos eleitos faziam as seguintes perguntas: 1º Se houve a morte? 2º Qual a causa imediata? 3º Qual o meio empregado que o produziu? KELSEN, Hans, Teoria pura do direito, Trad. João Baptista Machado, São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 3-4. KELSEN, Hans, Teoria pura do direito, Trad. João Baptista Machado, São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 4. COELHO, Fábio Ulhoa, Para entender Kelsen, São Paulo, Saraiva, 2001, p. XIX. 1 2 3 [43] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 4º Qual o valor do dano causado? Sendo feita a perícia, [...] declararam que examinando o cadáver referido, verificaram achar degolada tendo a cabeça separada do corpo e quebrada; e que, portanto respondem: ao 1º quesito, sim; ao 2º quesito, consequência do golpe; ao 3º quesito, instrumento cortante (machado); ao 4º finalmente que avaliam em vinte contos de reis o dano causado.1 Após o auto do corpo de delito na mãe do réu, o mesmo foi feito nas irmãs. Com os seguintes questionamentos: 1º Se a ofensa física produzida nas pacientes, dor ou alguma lesão corporal? 2º Qual o instrumento que o produziu? 3º Se as lesões corporais são ou não mortais? 4º Se as lesões corporais, por sua natureza, serão causa eficiente das mortes das ofendidas? 5º Se as lesões corporais em vista da constituição o estado mórbido anterior das ofendidas concorrerá irremediavelmente para a morte destas? 6º Se das lesões corporais resultaram ou podem resultar copulação ou mutilação de algum órgão ou membro? 7º Se das lesões corporais resultaram ou podem resultar deformação e qual seja esta? 8º Se das lesões corporais podem resultar privação permanente de algum, digo, do uso de algum órgão ou membro e qual seja ele? 9º Se das lesões corporais podem resultar qualquer enfermidade incurável e que prove para sempre as ofendidas de exercer o seu trabalho e qual seja ele? Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo PPGH-UPF (2ª Vara Civil da comarca de Soledade-RS) - Caixa 10. 1 [44] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 10º Se as lesões corporais produz algum incomodo de saúde que desabilite os pacientes do serviço ativo por mais de trinta dias? 11º Finalmente qual o valor do dano causado? A partir dos exames relatados os peritos encontraram diversos golpes de machado pelo chão, [...] e que examinado as pacientes verificaram existir na região frontal da primeira paciente uma contusão com três centímetros mais ou menos, e na segunda paciente existir também uma contusão na região occipital com cinco centímetros mais ou menos ambos as contusões em forma arredondadas, declararam mais os peritos terem encontrado na inclusa casa um machado todo ensanguentado, [...].1 Com isso "Todo um conjunto de julgamentos apreciativos. diagnósticos, prognósticos, normativos, concernentes ao indivíduo criminoso encontrou acolhida no sistema do juízo penal".2 Para provar os momentos de insanidade do réu, ou mesmo não consciência, consciência instintiva. Feito o exame de sanidade mental, por dois médicos, ambos fizeram as mesmas perguntas. 1º Se Ignácio dos Santos Vaz sofre de alienação mental? 2º Se é contínuo ou tem nítidos êxitos? 3º Se é geral ou parcial? 4º Qual é a sua espécie de gênero? 5º Desde que tempo dota esta loucura? 6º Se a morte? Dessa forma, foi verificado que o réu sofria de “loucura”. Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo PPGH-UPF (2ª Vara Civil da comarca de Soledade-RS) - Caixa 10. FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir: nascimento da prisão, Trad. Raquel Ramalhete, Petrópolis, Vozes, 1987, p. 23. 1 2 [45] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Conforme exame feito em Ignácio de Tal, na prisão desta vila e que diz ter somente 12 anos, devendo ter acima de 21 anos de idade. Julgo. 1º que Ignácio sofre de alienação mental; 2º que Ignácio tem momentos de lucidez; 3º que o seu estado de alienação é parcial; 4º que sofre de idiotismo; 5º que este é congênito; 6º que Ignácio de tal devia ter morte a sua mãe e ferido as suas irmãs em estado mórbido; Kurt Spalding Soledade, 8 de janeiro de 1910.1 Já o médico João Joseph Krein, ressalta que [...] pelo exame que fiz no Ignácio de Tal... que se acha na cadeia e que declara de ter somente 12 anos, classifico seu estado mental. Idiotismo congênita, esta criatura criada no mato, privada de cultivo físico e moral, alcançou o alto grau de idiotismo e uma brutalidade capaz de praticar o mais horroroso crime, se ele encontrou obstáculo no desejo de satisfazer certo instinto. Considero também que o sujeito deve de ter 21 anos mais ou menos.2 Além disso, “Todos nós reconhecemos que a doença mental é uma perturbação da personalidade, implicando portanto em motivação Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo PPGH-UPF (2ª Vara Civil da comarca de Soledade-RS) - Caixa 10. Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo PPGH-UPF (2ª Vara Civil da comarca de Soledade-RS) - Caixa 10. 1 2 [46] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 inconsciente”, o mesmo autor acredita que as vítimas na maioria das vezes contribuem inconscientemente ou não para a ação do delituoso.1 A pessoa em desvio expressa sua atitude negativa contra pessoas ou na forma de seu ato em desvio – assalto e agressão, por exemplo – ou apenas pelo desvio em si, como quando uma pessoa infringe uma norma sobretudo porque esta foi estabelecida ou é mantida por alguém contra quem se sente agressiva. Os psicólogos muitas vezes dizem que esta pessoa tem uma atitude negativa para com a autoridade. Isto significa que uma atitude alienadora originalmente dirigida, supõe-se, contra determinada pessoa com autoridade – por exemplo, o pai – ampliou-se mais ou menos inconscientemente, atingindo todas as pessoas cuja posição-função lembra a da figura autoritária original. Este processo de disseminação por associação inconsciente ou ligações simbólicas é às vezes chamada de generalização.2 Segundo as testemunhas consultadas referem-se o réu na ocasião do crime como muito alterado, no depoimento de seu irmão “disse que o denunciado depois do crime, disse que sua mãe queria bater em suas irmãs então ele resolveu agredi-la”.3 A condição da suposta demência do fato deste ter caído quando criança do cavalo, tendo depois disto estados de desequilíbrios mentais. JOHNSON, Harry M, Introdução sistemática ao estudo da Sociologia, Trad. Edmond Jorge, Rio de Janeiro, Lidador Ltda, 1967, p. 652. JOHNSON, Harry M, Introdução sistemática ao estudo da Sociologia, Trad. Edmond Jorge, Rio de Janeiro, Lidador Ltda, 1967, p. 652. Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo PPGH-UPF (2ª Vara Civil da comarca de Soledade-RS) - Caixa 10. 1 2 3 [47] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Pela defesa O réu Ignácio dos Santos Vaz é alienado. Do próprio fato praticado se infere a sua loucura. Sem nenhum motivo se enraivece contra as irmãs e as esbordoa. Aproxima-se, carinhosamente, a sua mãe, ele a mata com uma machadada. Morta, separa a cabeça do corpo e, em seguida, vai para a casa de uma sua irmã e ali fica. O que é isto, senão loucura? O exame de sanidade mental, [...] apesar de muito imperfeito, serve para atestar que o réu é um louco. Os depoimentos das testemunhas afirmam o estado mórbido de sua inteligência, sendo que uma delas atribui o seu estado doentio a uma queda, ou seja, a um choque traumático. [...]. Está, pois, provado dos autos que o réu sofre de enfermidade mental que lhe tolhe a consciência ou a liberdade dos próprios atos. [...] Na qualidade de curador nomeado ao réu, sentimo-nos no dever de não deixar passar esta oportunidade legal sem pugnar a sustentação de seus direitos. E pelo que exposto fica e que em face das provas dos autos, esperamos que o réu não seja pronunciado nas penas pedidas na denuncia e que de conformidade com o disposto no art. do Cód. Penal, seja ele entregue e sua família, por ser isto de direito e justiça. Soledade, 14 de fevereiro de 1910. O curador do réu [48] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Abelardo de Almeida Campos.1 Para considerar o réu alienado conforme provam as testemunhas, é aplicado o exame de sanidade, assim, este, “[...] não tem mesma consciência do ato que praticou. Considerando que nestas condições senão pode dizer que haja crime (Cód. Penal. Art. 27 § 4º). [...] que seja o mesmo recolhido ao hospício, requisitando-se do governo as necessárias providências para isto”.2 O Estado, paga as custas do processo e da internação do jovem no hospício. Para fundamentar que o réu sofre de um tipo de demência, foi fundamentado no art. 27 § 4º, “Os que se acharem em estado de completa perturbações de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime”. E o papel do psiquiatra em matéria penal? Não será o perito em responsabilidade, mas de conselheiro de punição; cabe-lhe dizer se o indivíduo é "perigoso", de que maneira se proteger dele, como intervir para modificá-lo, se é melhor tentar reprimir ou tratar. Bem no começo de sua história, a perícia psiquiátrica tivera que formular proposições "verdadeiras" sobre a medida da participação da liberdade do infrator no ato que cometera; ela tem agora que sugerir uma receita sobre o que se poderia chamar seu "tratamento médico-judicial.3 Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo PPGH-UPF (2ª Vara Civil da comarca de Soledade-RS) - Caixa 10. Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo PPGH-UPF (2ª Vara Civil da comarca de Soledade-RS) - Caixa 10. FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir: nascimento da prisão, Trad. Raquel Ramalhete, Petrópolis: Vozes, 1987, p. 25. 1 2 3 [49] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 O Estado comprometido com o problema em voga, determinou que o melhor tratamento ao paciente não era a prisão mas a internação hospitalar. Essa decisão demonstra progressivamente o desenvolvimento das novas visões jurídicas de institucionalização das penas. A regulação do aparato normativo busca impedir a repetição das ocorrências sociais de novos distúrbios. Não temos informações a respeito do réu após a internação, se ele voltou ao convívio familiar, se tem novas incidências de transtornos ou algo aconteceu enquanto estava internado. Dessa forma, por falta de documentos carecemos de maiores informações. CONSIDERAÇÕES FINAIS O trabalho aqui referenciado,1 trouxe além de uma fonte inédita a questão dos trabalhos produzidos a partir dos processos judiciárias. Estes engatinham nas mãos dos historiadores e sociólogos. Dessa forma, vemos a necessidade de abrir esse campo de análise. As práticas criminosas para serem combatidas primeiro devem ser entendidas. Em seus variados aspectos. Independente de tempo e espaço. É um problema social. O contexto acima, um crime hediondo onde o filho após um ataque de fúria agrediu as duas irmãs e matou a mãe com um machado. Depois da prisão e do corpo de delito, a conclusão foi que o réu sofria de distúrbios desde um acidente na infância. O resultado foi enviá-lo para um hospital psiquiátrico. Previsto no art. 27 § 4º do Código Penal, que se o indivíduo estiver em estado de “completa perturbações” no momento do crime o mesmo deve ser “recolhido ao hospício”. Sendo o Estado responsável pelas demais despesas quanto à internação. Ou seja, o desvio do indivíduo consciente ou não, através 1 Este segue em andamento. [50] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 da lei permitiu que a instituição do Estado agisse supostamente de forma eficaz quanto à regulação do delito do infrator. REFERÊNCIAS Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, acervo do PPGH-UPF. BRITTO, Lemos, A questão sexual nas prisões, Rio de Janeiro, Livraria Jacintho, sd. COELHO, Fábio Ulhoa, Para entender Kelsen, São Paulo, Saraiva, 2001. DURKHEIM, Emile, As regras do método sociológico, Trad. Paulo Neves, São Paulo, Martins Fontes, 1999. FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir: nascimento da prisão, Trad. Raquel Ramalhete, Petrópolis, Vozes, 1987. JOHNSON, Harry M, Introdução sistemática ao estudo da Sociologia, Trad. Edmond Jorge, Rio de Janeiro, Lidador Ltda, 1967. KELSEN, Hans, Teoria pura do direito, Trad. João Baptista Machado, São Paulo, Martins Fontes, 1999. PIRAGIBE, Vicente, Consolidação das Leis Penaes: Código Penal Brasileiro, Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1933. SELL, Carlos Eduardo, Sociologia Clássica, Itajaí, Univali, 2001. Schopenhauer, Parerga e Paralipomena, São Paulo, Abril Cultural, 1974, Os Pensadores, v. XXXI. [51] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 LIVROS DE MATRÍCULAS DA CASA DE DETENÇÃO: MEMÓRIAS DOS “DESEDUCADOS” DA CORTE (1880-1889). Jailton Alves de Oliveira Resumo O artigo tem como objetivo principal discutir, a partir das análises de alguns Livros de Matrículas de Presos, como a então Casa de Detenção da Corte pode ser considerada um espaço formal de educação, via adestramentos dos corpos, para milhares de presos homens (livres e libertos), mulheres e crianças. Procura-se, também, perceber quem são esses sujeitos, como e porque entram na prisão. Para tal, investiga-se a construção da figura do vadio, a partir das análises de alguns discursos jurídicos oitocentista, e as características físicas, guardando as suas especificidades, dos mesmos. Palavras-chave: Prisão; Educação; Vadiagem. Abstract The article’s main objective is to discuss, from the analysis of some books for the registration of prisoners, then as the Court House of Detention can be considered a formal space education, through training of the bodies for thousands of imprisoned men (free or freed), woman and childrens. We try to also understand who these guys are, how and why enter the prison. To this end we investigate the construction of the figure of the vagrant, from the analysis of some nineteenth-century legal discourse, and physical characteristics, keeping their specificities, the same. Keywords: Prison; Education; Truancy. Mestrando em História da Educação. Programa de Pós-Graduação em História da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. [52] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 A Casa de Detenção da Corte,1 atual penitenciária Milton Dias Moreira, foi o grande xadrez da então sede do governo imperial, principalmente após o fechamento do Calabouço em 1874. [...] escriptura de venda de chácara que fazem a Manuel de Passos Correa e sua mulher dona Rosa Maria Abreu Correa á fazenda nacional, pelo excellentissimo procurador da coroa soberana e fazenda nacional srº José Antonio da Silva Maia, sres. proprietários de uma chácara e benfeitorias nella existentes situada no lugar determinado Catumby e que se divide pela frente com a rua do Conde [...] vendião por esse instrumento de hoje para compra mencionada chácara com todas as benfeitorias existentes á fazenda nacional pela quantia de oitenta contos de reis valha mais ou valha menos que esses contos de reis.2 Para lá convergiam todos os dias uma massa de deserdados, desocupados e desvalidos que caíam na malha fina do poder jurídico-policial da época. Foi criada e instalada nas dependências da Casa de Correção da Corte do Rio de Janeiro,3 atual penitenciária Lemos de Brito, e fazia parte do complexo penitenciário onde se encontrava também o Calabouço. Foi criada para substituir o Aljube, uma antiga prisão eclesiástica desativada por não mais atender as necessidades da justiça. Embora também pudesse abrigar presos condenados, sua principal função era manter detidos aqueles que ainda não tivessem sido condenados ou cometidos pequenos delitos sem pena. A maioria Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). BRASIL . Decreto de número 1774, de 02 de julho de 1856. Coleção das Leis do Império do Brasil de 1856. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1857, p.294. A Casa de Detenção da Corte foi criada e instalada nas dependências da Casa de Correção da Corte do Rio de Janeiro, atual penitenciária Lemos de Brito. Arquivo Nacional. Fundo Estados e Chácaras. Série Justiça. IJ6, nº. 2523, Cx.419, Gal. A. O complexo da Frei Caneca, como era comumente conhecido, foi implodido em março de 2011 e os presos da instituição foram transferidos para algumas alas do complexo penitenciário do Gericinó. 1 2 3 [53] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 das prisões era feita sob prerrogativa da manutenção da ordem constituída e, por isso, muitos transeuntes eram direcionados à instituição sob argumento de simples averiguação. A maioria das prisões era feita sob prerrogativa da manutenção da ordem constituída e, por isso, muitos transeuntes eram direcionados à instituição sob argumento de simples averiguação. Essa hipótese pode ser confirmada pelo elevado número de presos que eram diariamente conduzidos à Casa de Detenção, para prestar esclarecimentos sobre suas condutas. Assim, pedreiros, fundidores, latoeiros, guardas freio, ostreiros, lavadeiras, lustradores, estivadores, barbeiros, quitandeiros, escravos ao ganho, pautadores, alfaiates, cigarreiros, calafates, cafeteiros, cigarreiros, entre outros, eram encaminhados à instituição por incorrerem em delitos como vadiagem, mendicância, embriaguez, desordem, ofensas públicas, agressões, insultos, portar navalha, entre outros. O Decreto de criação da Casa de Detenção da Corte determinava que cinco tipos de livros fossem mantidos: De entradas e saídas (para homens, mulheres e escravos separadamente), de óbitos, de inventário, de conta-corrente dos presos sustentados pelo Estado e de índice alfabético devidamente numerados e na última página deveria ter o fechamento com a assinatura do diretor da instituição.1 Esses Livros de Matrículas de Presos constituem, para o historiador Soares, “o maior repositório de informações pessoais sobre indivíduos das classes populares no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX”. 2 Os mesmos fazem parte do Fundo Casa de Detenção do Rio de Janeiro. Este BRASIL. Decreto de número 1774, de 02 de julho de 1856., op. cit. p. 294. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Negredada Instituição: os capoeiras da corte imperial (18501890). Coleção Biblioteca Carioca, vol. 31. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1994, p.34. 1 2 [54] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Fundo é um corpus documental compreendido por quinhentos e dezesseis Livros de Matrículas de presos homens (livres e libertos), mulheres, menores, escravos e presos políticos, que deram entrada na instituição entre os anos de 1860 e 1969. Nos Livros encontramos importantes dados sobre os detentos como nome, filiação, naturalidade, nacionalidade, ocupação, idade, sexo, moradia, data da entrada, como foi preso, quem o prendeu, motivo da prisão, local da prisão, se houve julgamento, data da condenação, entrada e saída da enfermaria, data da saída, quem o conduziu à prisão, entrada e saída da enfermaria, sinais característicos visíveis (cor, olhos, boca, nariz, olhos, sobrancelhas e pele), entre muitas outras informações.1 Os Livros são, supostamente, oriundos da penitenciária Milton Dias Moreira, antiga Casa de Detenção do Rio de Janeiro, que na década de 1990 transferiu todo o acervo para o APERJ. Afinal, para que tantas informações sobre o preso? Chazkel,2 lembra que as informações contidas nos livros, esses saberes formulados, contribuíam muito para os órgãos policiais da cidade. Nesse ritual de classificação saber sobre filiação, por exemplo, significava saber se o detento pertencia a chamada família legítima, ou seja, se não era escravo ou simplesmente perambulava pela cidade; as vestimentas, como “grande indicador da condição socioeconômica”3 eram investigadas nos livros. O personagem documental acaba sendo considerado como um “criminoso conhecido”4, na medida em que a polícia, a partir dessas e outras informações, passava a construir o perfil dos criminosos da cidade. Ter mais de um registro em algum dos livros era outro fator que marcava o ex-detento. As informações variam conforme o tempo e o livro. No livro dos escravos, por exemplo, existe o campo destinado ao nome do seu senhor. Em outro, o termo “ocupação” é substituído pelo de “profissão”. CHAZKEL, Amy. Uma perigosíssima lição: a Casa de Detenção do Rio de Janeiro na primeira república. In. Maia; Bretas (orgs.). História das Prisões no Brasil. Volume II. Rio de Janeiro, Rocco, vol. II, 1999, p.7-34. Ibid., loc. cit. Ibid., loc. cit. 1 2 3 4 [55] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Olmo1, problematizando a criminologia no espaço da América Latina, nos diz que diante dos avanços tecnológicos ocorridos na Europa do século XIX, a ciência foi “chamada para ordenar”2 os acontecimentos. Nesse sentido, o delito também foi palco de discussões científicas; abordado sob aspectos científicos do “positivismo, da antropologia e psiquiatria”.3 Busca-se, com isso, construir cientificamente a figura do criminoso. Em vários países da Europa estuda-se o criminoso. Estudos morfológicos e anatômicos procuram definir a natureza desse personagem. Era necessário classificar, pela fisionomia, e identificar a presença de características criminosas, ressalta Faria.4 Vale ressaltar que mesmo com o serviço de fotografia, inaugurado na instituição na década de 1870,5 as autoridades policiais não deixavam de consultar as anotações dos livros, pois ainda acreditavam que assim conseguiriam capturar criminosos. Como exemplo disso, em ofício expedido pela secretaria de polícia da corte, em 1888, para o diretor da Casa de Correção constava um pedido para confecção de “24 livros, contendo cada um com 250 folhas numeradas, em almaço pautado para o expediente da Casa de Detenção da Corte”.6 Em cada página, salvo quando o livro está em péssima condição de uso, podem-se ter informações variadas para três presos e, desta forma, chegando-se a uma média de setecentos e cinquenta presos por livro. Em vinte e quatro livros, teremos anotações para aproximadamente dezoito mil presos. No ano de 1888, por exemplo, tendo sido utilizados seis livros, temos anotações para quatro mil e quinhentos presos. OLMO, Rosa Del. A América Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2004, p. 34. Ibid. loc. cit. Ibid. loc. cit. FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Raça e poder no império do Brasil. In. MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2000. p.128. SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Um lugar para os deserdados e deserdadas. In. FILHO, Silvio de Almeida Carvalho (org). Deserdados: dimensões das desigualdades sociais. Rio de Janeiro : Ed. H.P. Comunicação, 2007, p.28. Fundo Justiça. op.cit., Códice 106, p. 21. 1 2 3 4 5 6 [56] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 No dicionário da língua portuguesa o termo educado corresponde a alguém que recebeu educação; foi instruído, ensinado; é cortês e adestrado. Por outro lado, o termo deseducado (des+educado) significaria estragar a educação de ou mesmo um sujeito sem educação.1 Nos limites deste trabalho, o termo “educação” será tratado não como um conjunto de normas “pedagógicas tendentes ao desenvolvimento geral do corpo e do espírito”2, e sim como “uma forma de instrução, polidez”.3 Essa posição justifica-se na medida em que a elite político-econômica oitocentista, particularmente a partir do segundo quartel, procurou polir os comportamentos dos ditos desviantes. Refletir a respeito da educação no Brasil oitocentista, em particular na cidade do Rio de Janeiro, é ter em mente: [...] heterogeneidade das formas de educação e de apropriação dos modelos educacionais, enfatizando a pluralidade das possibilidades históricas e usos diversos que os agentes fazem das instituições educativas, escolares e nãoescolares, remodelando e reconstruindo os espaços, os saberes e os tempos sociais.4 É observar, também, que a educação, como instrumento de interferência no curso da vida desses sujeitos, estava presente em lugares variados. Portanto, há, aqui, uma aproximação com a “[...] existência de forças distintas que, agindo de modo solidário ou concorrente, delineiam aquilo que encontramos em termos de iniciativa e conteúdo educativo”.5 Pensar, portanto, em escola ou escolarização no Brasil do XIX é se apropriar de termos plurais, Novo dicionário da língua portuguesa. Dicionário Michaelis. Editora Melhoramentos Ltda., 2011, p. 110. Ibid., p. 112. Novo dicionário da língua portuguesa. op. cit., p. 118. GONDRA, José Gonçalves; SCHUELER, Alessandra. Educação, poder e sociedade no império brasileiro. São Paulo : Cortez, 2008, p. 19-25. Ibid., p.41. 1 2 3 4 5 [57] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 que perpassam o campo de visão onde apenas em espaços escolares, ditos formais, poderemos perceber a presença de mecanismos educadores. Esses espaços não podem, em uma perspectiva da cidade do Rio de Janeiro oitocentista, ser limítrofes da educação populacional; nem os únicos de aprendizado. Para, além disso, pode-se entender que prisões, quartéis, manicômios e ordens religiosas também foram locais selecionados para educação da população. A significativa ampliação de fontes e campos do saber na história da educação brasileira, observada em dissertações e teses de doutoramento, produzidas nos diferentes programas de pós-graduação em educação, em diferentes instâncias e processos de difusão do saber, também tem contribuído muito às “novas abordagens e problemas, provocando um deslocamento no campo e fazendo aparecer novos perigos”.1 Pensar a educação supõe inscrever em nosso horizonte os interesses que esse tipo de prática aciona e mobiliza. Nesse movimento, é possível observar que a vontade de educar, de interferir no curso da vida de modo mais ou menos “racional”, mais ou menos “científico”, está presente em lugares variados. Dessa forma, consideramos a existência de forças distintas que, agindo de modo solidário ou concorrente, delineiam aquilo que encontramos em termos de iniciativa e conteúdo educativo. 2 Os recentes estudos sobre o período, no campo educacional, demonstram intensidade nos debates sobre a escolarização de uma camada populacional como, por exemplo, negros, índios e mulheres. Os estudos têm se distanciado daqueles que consideram o período como “idade das trevas”3 da GONDRA, José Gonçalves. Paul-Michel Foucault: uma caixa de ferramentas para a História da Educação. In. FILHO, Luciano Mendes de Faria (org.) Pensadores sociais e história da educação. São Paulo, 2004, p. 285-311. GONDRA, José Gonçalves; Shueler, Alessandra. op. cit., p.41. FILHO, Luciano Mendes de Faria Filho. op. cit., loc.cit. 1 2 3 [58] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 educação brasileira. Os modelos de educação escolar para o país estavam diretamente ligados aos ideários civilizatórios iluministas segundo os quais, para que houvesse progresso, era preciso ordenar, adestrar a população dita perigosa. Inventar o Brasil, a partir de ideário iluminista foi um processo que perdurou até o final do regime imperial e trouxe significativas modificações nos diferentes mecanismos educacionais, particularmente nos debates pedagógicos, pois a “instrução possibilitaria arregimentar o povo para um projeto de país independente”1 Assim, o país assistiu à formação de escolas de primeiras letras, ainda nas primeiras décadas do século, até aos sistemas de ensino primário, no final da centúria. Refletir sobre educação oitocentista, portanto, é perceber “múltiplas possibilidades da educação como agente normalizador, dentro de um sistema biopolítico de manutenção da ordem e dos bons costumes”,2 como apregoado pelos homens da boa sociedade. A pedagogia, portanto, vista como participante desse jogo de saber-poder, bem como utilizada como agente normalizador dos corpos desses “deseducados” nos espaços intramuros da prisão.3 Quando Foucault problematiza a respeito de “lugares de sequestro”,4 se referindo as prisões, escolas, manicômios e hospitais, está tentando demonstrar como esses locais colaboram para educar, adestrar, os corpos desses sujeitos, via vigilância e punição. A vigilância hierárquica e a sanção normalizadora, combinadas com um procedimento de exame, formam instrumentos aos quais se de deve o sucesso do poder disciplinar. O exame exerce “[...] uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir [...]”5 estabelecendo, nesse sentido, Ibid., p. 140. BITTENCOURT, Letticia Portes. Foucault e a educação: libertação ou controle? In. Revista Sul-americana de Filosofia e Educação – RESAFE. Nº 6/7: maio/2006 – abril/2007, p. 25-35. Ibid., loc. cit. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Ed. Vozes, 16ª Ed., p.154 -passim. Ibid., loc. cit. 1 2 3 4 5 [59] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 uma visibilidade constante sobre os indivíduos fazendo com que sejam diferenciados e sancionados. O fim do século XIX caracteriza-se, guardando suas especificidades, por um período de turbulências econômicas, políticas e sociais, em virtude da desmontagem do sistema escravocrata no país. A Lei do Ventre Livre, a crescente chegada de trabalhadores estrangeiros, a constituição do partido abolicionista, ascensão e declínio da produção do café no Vale do Paraíba, o fim da guerra do Paraguai, as pressões de diferentes setores, a resistência negra, alteraram significantemente o comportamento do Estado imperial que se viu diante da inadiável decisão de por fim ao sistema. A partir de 1870 houve um significativo crescimento do espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro. Inúmeras transformações já eram tangíveis na sociedade brasileira, relacionadas, particularmente, à expansão do capitalismo e ao processo de urbanização. A cidade do Rio de Janeiro, como sede do governo central e onde esteve localizada a Casa de Detenção da Corte, não poderia deixar de ser o espaço geopolítico a ser estudado neste trabalho. A partir de 1870, houve um significativo crescimento do espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro. Inúmeras transformações já eram tangíveis na sociedade brasileira, relacionadas, particularmente, à expansão do capitalismo e ao processo de urbanização. A cidade do Rio de Janeiro não era mais a dos tempos joaninos. A extinção do tráfico negreiro, liderado pela Inglaterra a partir do segundo quartel dos oitocentos, liberou grande soma de capitais que afluíram para outras atividades econômicas. Como empório comercial e Sede do Governo Central, foi a cidade que mais se beneficiou com os estrangeiros. No final do século XIX a modernidade na cidade era percebida pelos calçamentos de muitas ruas; a implantação de redes de esgotos; a criação de serviços de limpeza pública e de transportes urbanos; iluminação a gás; além de empresas industriais, bancos, caixas econômicas, companhias de navegação a vapor, companhias de seguros e estradas de ferro. Soma-se a isso o surgimento de novas freguesias, em função do fluxo de pessoas que a cada dia enchia a [60] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 cidade. Nesse final de século os espaços da urbe carioca haviam se transformado; permitindo ou produzindo relações ambíguas onde homens livres, escravos fugidos e ao ganho, alforriados misturavam-se a comerciantes, intelectuais e políticos. Um local para “encontro de desconhecidos”.1 Embora, segundo Neder,2 no século XIX ainda não existissem formas de produção capitalista, mas sim uma inserção do Brasil em um quadro de economia mundial, muito particularmente após a abolição do tráfico transatlântico, a importação dos ideais liberais de progresso, igualdade, ética, trabalho, estiveram presentes no quadro social, político, cultural e econômico do país. No entanto, esse processo de troca de ideais baseou-se em ajustes e reajustes à realidade brasileira. Portanto, não acreditando em pura e simples cópia do que acontecia na Europa. O processo jurídico, além de encaminhar o processo de construção de nação, promove uma ideologização que acompanha a constituição do mercado de trabalho no Brasil. Através do processo de criminalização esses discursos jurídicos encaminham a disseminação da ideologia burguesa de trabalho, elemento constitutivo de um sujeito útil, civilizado e cidadão. Ao mesmo tempo as instituições de controle social visam lembrar o sujeito sobre as consequencias de seus atos, bem como dissuadir os desocupados a cometerem delitos ou crimes face às necessidades, se mostram propensos a cometerem delitos.3 Na ordem liberal os atos transforman-se em autos. O crime vai sendo percebido como dando social e o criminoso como aquele que rompeu com o pacto social. Souza, problematiza essa questão ao levantar a hipótese sobre uma “ideologia da vadiagem”,4 onde os pobres, que no século XII eram de Cristo, no XVIII passaram a ser classificados como vadios.5 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 2001, p. 22. NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil. Ed. Sérgio Antônio, 1995, p.18-20. NEDER, Gizlene. Op.cit. loc. cit. SOUZA, Laura de Mello e. Os Desclassificados do Ouro: A pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro : Ed. Graal, 4ª ed., 2004, p.46. Ibid. p.47. 1 2 3 4 5 [61] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 A noção de vadio e vagabundo, no Código Criminal, assinalava uma aproximação com ideal histórico-ideológico burguês quanto ao que seria trabalho. Assim, para ociosos, previa-se prisão com trabalho na penitenciária.1 Tendo vigorado entre 1831 e outubro de 1890, o Código Criminal do Império,2 imbuído pelo ideal de modernização do sistema jurídico-penal, veio em substituição às leis contidas no livro V das Ordenações Filipinas que, embora muito alteradas, ainda mantiveram algumas disposições em vigência no Brasil até o ano de 1916, quando da promulgação do Código Civil brasileiro. Juridicamente, o Código é uma observância da Constituição Imperial de 1824 que previa a constituição de um “Código Criminal, fundado nas sólidas bases da justiça e da equidade”.3 No campo das ideologias, o Código foi baseado nas ideias liberais, iluministas, onde a escola classista de Beccaria teve grande participação e influência sobre nossos legisladores imperiais. Na língua portuguesa, a palavra “vadiagem”, além de expressar a condição de indivíduos vagabundos, errantes e sem moradia certa, queria exprimir também a recusa em se conduzir de acordo com as normas do trabalho. As ordenações Filipinas definiam o vadio como indivíduo sem ocupação, sem senhor e sem moradia certa, pessoas ociosas e refratárias ao trabalho.4 O dicionário de Antonio Morais, publicado em 1813, definia vadio como alguém que vivia sem amo ou sem senhor, sem “[...] tracto honesto”, negócio, ofício, emprego, nem modo de vida nem domicílio certo [...]”.5 O código Criminal do Império, porém, foi mais incisivo ao criminalizar os ociosos: NEDER, Gizlene, op. cit., p.45. Coleção das Leis do Império do Brasil. Typografia Nacional, 1831. Código Criminal do Império do Brasil de 1830, p.143. Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824. Artigo 179, inciso XVIII. FILHO, Walter Fraga. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do séc. XIX. São Paulo, Hucitec/Salvador: Ed. UFBA, 1996, p. 12-20. Idem. 1 2 3 4 5 [62] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta, útil de que possa substituir depois advertido pelo juiz de paz, não tendo renda suficiente, pena de prisão com trabalho de oito a vinte e quatro dias, simplesmente por ser vadio, e de prisão simples ou com trabalho segundo o estado de forças do mendigo, de oito dias a um mês, por estar simplesmente andar mendigando. 1 O Código não especifica claramente se o criminoso é um vadio, apenas trás formulações subjetivas sobre quem deveria ser o criminoso. O crime é definido como “toda acção, ou ommissão voluntária contrária ás leis penaes” 2 e os criminosos são os “os autores, os que commeterem, constrangerem ou mandarem, alguém commeter crimes”.3 Os decretos que compõem à categoria de crime policial, por exemplo, são destinados a “manter a civilidade e os bons costumes” 4 e isso incluía perseguição a “vadios, desordeiros, capoeiras, prostitutas e sociedade secreta”. 5 No Título I, cap. I, referente a crimes e dos criminosos, o Código informa que “não haverá crime, ou delicto sem uma lei anterior que o qualifique”.6 No entanto, era de se esperar que nessa sociedade estamental oitocentista, que se formava à luz dos pensamentos liberais jurídicos, que “[...] o homem pobre, sem quase nenhuma chance de ascensão profissional, acabaria mais cedo ou mais tarde atrás das grades das prisões da cidade”. 7 Essa associação entre crime e vadiagem persistiria no Brasil República. O código Penal de 1890 também tipifica a vadiagem como crime quando previa pena de reclusão para Código Criminal do Império do Brasil. op. cit., p. 129. Ibid., loc. cit. Ibid., p.131. Ibid., p.132. Ibid., p. 133. Ibid, p. 134. CARVALHO, José Murilo. Teatro de Sombras: A política imperial brasileira. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ. p. 231. 1 2 3 4 5 6 7 [63] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 aqueles que deixassem de “exercer profissão, ofício [...] prover subsistência por meio de ocupação proibida por lei [...]”. 1 Em uma suposta intercessão entre delito, ociosidade e vadiagem, a preta e lavadeira Julieta Maria da Conceição, 18 anos, moradora da Rua do Resende, filha de Manoel e Maria Isidora, presa no dia 03 de abril de 1888, 2 por desordem e vagabundagem, era, portanto, uma suposta descumpridora do pacto social. Pela ocupação, cor da pele, por exemplo, e motivo da prisão, pode-se deduzir que Juliana não pertencia ao mundo da ordem, governo ou trabalho, mas sim ao mundo da rua. Mas, trajando sua saia de chita e paletot branco, com seu “nariz reggular, bocca reggular, olhos escuros, lábios reggular, semblante reggular, cabelos carapinha e rosto redondo”3, Julieta foi solta somente dez dias após ter dado entrada na instituição. A preta Dionísia Maria da Silva Lopes, escrava, presa em nove de novembro de 1889, vestia um vestido verde, e, assim como Juliana, foi presa por vadiagem. Tinha nariz “reggular, bocca reggular, olhos escuros, lábios grossos, semblante reggular, cabelos carapinha e rosto redondo”. 4 Como foi presa descalça, o escrivão, que por algum motivo não especificou o motivo de sua prisão, deduzimos que Dionísia poderia ser uma escrava fugida que, nos dizeres de Chalhoub, contribuía para tornar a cidade, além de perigosa, um “esconderijo”. 5 Dionísia ficou vinte dias presa e ambas não foram beneficiadas com o pedido do Ministro da Justiça que, em 1888, MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: Desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na capital federal (1890-1930). Rio de Janeiro : EdUERJ, 1996,p.132. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Livro de Matrícula de Presos da Casa de Detenção da Corte. Notação número 61, p. 210. Ibid., p. 211. Ibid., p.212. CHAULOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos trabalhadores da Belle Époque. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986, p.35. 1 2 3 4 5 [64] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 pediu “alguma providencia para os presos encarcerados por mais de oito dias”.1 A preta Dionísia Maria da Silva Lopes, escrava, presa em nove de novembro de 1889, trajada com um vestido verde, assim como Juliana foi presa por vadiagem. Tinha nariz “reggular, bocca reggular, olhos escuros, lábios grossos, semblante reggular, cabelos carapinha e rosto redondo”. 2 Como foi presa descalça, o escrivão, que por alguma razão não especificou o motivo de sua prisão, deduzimos que Dionísia pode-se levantar a hipótese de que era uma escrava fugida, que nos dizeres de Chalhoub ,contribuía para tornar a cidade, além de perigosa, um “esconderijo”. Dionísia ficou vinte dias presa e ambas não foram beneficiadas com o pedido do Ministro da Justiça que, em 1888, pediu alguma providencia para os presos encarcerados por mais de oito dias. Todos os habitantes desta cidade serão alistados nas freguesias de suas residências. Todos os chefes de família deveriam listar seus habitantes com nome, ocupação, nome da rua, número, parentes, agregados, escravos, idades, empregos, e estados de origem. Eles, os chefes, assignam e são responsáveis pelos dados. O chefe de quarteirão com uma cópia e outro para o juiz. E uma outra na Câmara.3 O Código de Posturas da cidade continha ordenações quanto à saúde pública, polícia, calçamentos, tráfego da cidade, pinturas emplacamento das casas, tamanho dos muros das residências, prédios comerciais e públicos, entre muitas outras. Embora constituído em 1838, pouco mudou em suas ordenações até o final do império, principalmente às Arquivo Nacional. Relatório do ministro da justiça, 1888, p.5. Livro de Matrícula de Presos da Casa de Detenção da Corte. op. cit., Notação número 59, p. 21. Código de Posturas Municipais da cidade do Rio de Janeiro, op. cit., Titulo VII. Artigo 10º, §9º. 1 2 3 [65] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 destinadas à ordem pública. As novas determinações para o funcionamento de fábricas de velas e o emplacamento de carroças de limpeza e de café; novas medidas a remoção do lixo; novas determinações para as albergarias, entre alguns outros, são exemplos de algumas mudanças ocorridas no Código entre 1880 e 1889. Assim como no Código Criminal, encontram-se referências e aproximações entre uma figura dita vadia e a dinâmica do trabalho. Diferentemente da Europa, onde os meios de produção capitalista esboçavam o desejo por um tipo de trabalhador livre, no Brasil imperial o vadio poderia ser considerado todo aquele que não se inserisse nos padrões de trabalho ditados pela obtenção do lucro imediato. Nossos legisladores ordenavam que inspetores de quarteirões registrassem, nos respectivos mapas de moradores, qualquer desconfiança [...] que haja sobre a conduta de ociosos, os vadios, os bêbados, mendigos, os sem profissão, turbulentos [...] e achando desconfiança proceda sobre elles como perturbadores públicos”.1 No final do império, já era possível verificar que os moradores da cidade eram obrigados informar ao juiz de paz “casos de suspeitos, dos vícios anteriores”. Além de informar qualquer manifestação de desordem, seja em sua casa, seja na do vizinho. O espectro da periculosidade rondava tabernas, bares, e todo e qualquer espaço da cidade. Atitudes, antes consideradas corriqueiras, passam a ser marginalizadas. Na cidade perigosa muitos foram presos por “perturbarem o sossego público nas horas de silêncio, com gestos, palavrões, vozerias, assobios, serão multadas em 10$000 [...]”.2 No livro de Matrícula de Presos, aparecem algumas prisões como por desordem pública, proferir obscenidades, embriagues, vagabundo e vozeria na rua, embriaguez e desordem pública, cúmplice e desordem, espiando as casas alheias, entre outros. Código de Posturas Municipais da cidade do Rio de Janeiro, op. cit., Titulo VII. Artigos 6 e 7. §8º Ibid., Titulo VII. Artigos 3 e 4. §9º. 1 2 [66] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Não serão permitidas as construções de habitações vulgarmente conhecidas cortiços, entre as praças D. Pedro II e Onze de Junho, e todo o espaço da cidade entre as ruas do Riachuelo e do Livramento. Serão multados em 30$000 e obrigados á demolição. 1 Numa dialética perversa entre crime e vadiagem, a parte da sociedade desprovida de direitos civis, sem muitas oportunidades de trabalho, sem mobilidade social, era naturalmente enquadrada nos códigos de crime contra a conduta aceitável por parte das elites dominantes, resultando em relações de poder onde as “forças antagônicas estavam sempre em evidência”. 2 Isso fica mais claro nos conflitos que se sucediam e como essa parcela da população reagia às imposições das leis, pois prisão por desordem, embriagues, desacato a autoridade, vadiagem, conflitos com armas, eram freqüentes. Uma ideologia onde os maus tratos infligidos aos suspeitos, detenção por alguns dias, continuaram como práticas abusivas de uma polícia despótica e violenta. Educar a população pareceu ser um dos principais ingredientes para o envio de tanta gente à prisão da corte. Nessa direção, a instituição deveria ser um prolongamento dos acontecimentos sociais, políticos e econômicos do espaço da cidade. Deveria se a escola para educar, produzir comportamentos desejáveis, ensinar o vadio a ser produtivo mediante as oportunidades de trabalhos nas diversas oficinas da instituição. Deveria contribuir com o processo de construção da nação. E não por acaso a instituição chega ao final do império superlotada; correcionais e apenados, na mesma cela, participantes de uma teia de poder onde as múltiplas relações ocasionassem, por exemplo, em motins, assassinatos, promiscuidade, jogos de azar, suborno a policiais, brigas Ibid., Portaria do Ministério do Império, em sessão realizada em 05/11/1873, proibindo a construção de habitações chamadas de cortiços. Artigo I, p. 223. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: A formação do estado imperial. São Paulo, ed. Hucitec, 1987. p. 30. 1 2 [67] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 entre outros. A instituição como uma escola de todas as perdições para os desviantes do pacto social e que, portanto, deveriam ter seus comportamentos adestrados nos diferentes espaços da instituição. Por fim, os livros de registros denunciam um encontro entre duas sociedades: uma branca, onde a vigilância e punição eram os principais mecanismos pedagógicos, e outra subterrânea, vadia, cujas estratégias próprias de sobrevivência iam de encontro com os ideais liberais de liberdade, prosperidade e fraternidade. A “cidade negra desafiando a cidade branca”.1 Nesse confronto, “a cidade negra” superlota as dependências da Casa de Detenção da Corte. Milhares de pessoas, incluídas na categoria de vadio acabavam por contribuir ao velho problema de superlotação da Casa de Detenção da Corte. Em relatório expedido no ano de 1885, o Ministro da Justiça constata que “[...] 600 internos chegavam a ficar espremidos numa área construída para 200 pessoas [...]” tornando urgente a construção de um prédio separado e que “[...] fosse compatível com nosso estado de civilização [...]”.2 Três anos mais tarde, o mesmo ministro sugeriu “que as pessoas em detenção simples, sempre em grande número, deveriam ser ou formalmente acusadas de crime ou libertadas”.3 Como a instituição foi criada em 1856, levou mais de trinta anos para que alguma providência fosse tomada a fim de eliminar o problema da superlotação. Por fim, na canção intitulada “Pai João” o personagem principal, que se identifica como africano, não demonstra ter um espírito “resignado” ou CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores da Belle Époque. São Paulo : Brasiliense, 1986, p.19. Ibid., p. 21. HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: Repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro. Ed. FGV, 1997, p 144. Ibid., loc. cit. 1 1 2 3 [68] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 “acabrunhado pela escravidão.”1 Pelo contrário, parece demonstrar possibilidades de os escravos não terem sido “vítimas nem heróis o tempo todo.”2 Antes, participantes dessa teia de poder. Baranco – dize quando môre Jezuchrisso que levou, E o pretinho quando môre Foi cachaça que matou... Baranco dize – preto fruta, Preto fruta co rezão; Sinhô baranco também fruta Quando panha casião. Nosso preto fruta garinha Fruta sacco de fuijão; Sinhô baranco quando fruta Fruta prata e patacão. Nosso preto quando fruta Vai pará na correção, Sinhô baranco quando fruta, Logo sai sinhô barão. MENDES, Canções populares do Brasil apud ABREU, Márcia. Conflitos raciais, protesto escravo e irreverência sexual na poesia popular, 1850-1990. In. Revista Afro-Ásia, nº31, 2004, p. 235-276. Ibid. loc. cit. 1 2 [69] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 FONTES MANUSCRITAS Arquivo Nacional (AN): Fundo Estados e Chácaras. Série Justiça. IJ6, nº. 2523, Cx.419, Gal. A. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ): Fundo Casa de Detenção do Rio de Janeiro: Livros de Matrículas de Presos. Coleção de Leis Imperiais: Código Criminal do Império do Brasil de 1830. Constituição do Império do Brasil de 1824. Art. 179, inciso XVIII. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro(AGCRJ): Código de Posturas Municipais da cidade do Rio de Janeiro. Titulo VII. Artigos 3 e 4. §9º; Artigo 4. § 6,º 8º e 10º. Portaria do Ministério do Império: sessão realizada em 05/11/1873. Artigo I. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Maurício de A. A evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro : IPLANRIO/Zahar, 1987. 147p. AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo - 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 197p. 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To this end, took as its main source of the book record of prisoners in the chain of Dores do Indaiá, as well as additional sources such as newspapers and interviews. In addition to seeking to draw a profile of the arrested was found to link the arrests to the military dictatorship. The result reveals important part of the social history of the region west of Mines in its relations with the broader processes of Brazilian history. Key words: Profile of prisoners, Chain, DoresdoIndaiá 1 2 Historiador. FASF-Luz. Graduando em Direito – UNIPAC – Bom Despacho Doutor em História Social – UFU; Professor Adjunto F.H. – UFG [74] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 INTRODUÇÃO A história é uma arte, a história é literatura. (...) a história é uma ciência, mas uma ciência que tem como uma de suas características, o que pode significar sua fraqueza, mas também sua virtude, ser poética, pois não pode ser reduzida a abstrações, a leis, a estruturas. (Marc Bloch,19441) Marc Bloch escreveu que a história é uma “ciência do homem no tempo”, que pode abordar todas as dimensões da vida do ser humano, porque tem como objetivo de estudo e compreensão do homem em seu meio ambiente e o domínio sobre ele (Marc Bloch, 2001, p.5.). O estudo da história tem como um de seus propósitos fundamentais procurar explicar as perguntas que ainda não foram respondidas. Desde a Nova História2 proposta pela escola dos Annales, o historiador passou a considerar um amplo campo de documentos históricos, deixando de lado a noção tradicional de documento, que considerava apenas as fontes oficiais: passou a tomar por fontes históricas todos os indícios da vida humana, produzidos ao BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da História, ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. “De acordo com Peter Burke, a novellehistoire pode ser definida por uma via negativa, em outras palavras, defini-la em termos do que ela não é, daquilo a que se opõe seus estudiosos. “Os 1 2 historiadores tradicionais pensam na história como essencialmente uma narrativa dos acontecimentos, enquanto a nova história está mais preocupada com o análise das estrutura”(Burke.1992, p12). Ou seja , a nova história não estuda épocas, mas estruturas particulares. Aqui reside o conceito de “História de Longa Duração”. Segundo Braudel a história situa-se em três escalões: a superfície, ou seja, uma história dos acontecimentos que se insere no tempo curto (concepção positivista); a meia encosta, uma história estrutural de longa duração, que põe em causa os séculos. Nesse sentido, a nouvelle histoire, isto é, a história sob a influência das ciências sociais realizou uma revolução epistemológica quanto ao conceito de tempo histórico. Não obstante,a pesquisa histórica dentro do quadro do tempo longo consiste em um esforço de superação do evento e de seus corolários: a história continua, progressiva e irreversível da realização de uma consciência humana capaz de uma reflexão total. (Burke,1992) [75] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 longo do tempo, tais como os produtos de escavações arqueológicas, fotos, documentos orais, dentre outros. Para além dessa ampliação do campo documental com que trabalha o historiador, hoje é de comum acordo a necessidade de ampliar os estudos científicos direcionados para a vida do homem em suas diversas dimensões que não a estritamente política ou econômica. “O historiador não pode ser sedentário, um burocrata da história, deve ser um andarilho fiel a seu dever de exploração e de aventura” (Le Goff, 2001, p 21), é nesta perspectiva que se pretende discutir a importância do tema desta pesquisa: um estudo analítico que tem como objetivo geral analisar dados sobre a criminalidade numa pequena cidade de Minas Gerais, em meados do século XX (1958 a 1974), registrados no livro da Delegacia Municipal de Dores do Indaiá, cidade localizada no oeste de Minas Gerais, a 182 km da capital Belo Horizonte. O interesse pelo tema surgiu a partir da descoberta de um livro de registro de presos condenados e/ou aguardando julgamento que cumpriram pena na cadeia de Dores do Indaiá entre 1958 a 1974. Este livro traz dados importantes sobre a composição social dos presos e representa um recorte importante para explorarmos ljos dados sobre a composição social da região. O interesse pelo tema surgiu quando, ainda em 2005, participávamos de um projeto de pesquisa na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Alto São Francisco (FASF-LUZ)que propunha problematizar temas locais ainda pouco explorados pela historiografia. Assim, surgiu a ideia de pesquisar sobre a cadeia da cidade de Dores do Indaiá, especialmente, quando nos deparamos com o livro de registro de presos. Desde então, o interesse em analisar os dados contidos no livro tornou-se uma meta e decidimos recolher elementos teóricos e metodológicos para compreendê-lo. O objetivo principal do documento era registrar os presos que se encontravam condenados ou aguardando julgamento. Em suas páginas são registradas características importantes de cada preso que possibilitam traçar um perfil dessa população, tanto no que se refere às questões qualitativas, quanto àsquantitativas. Assim, estão registradas a cor, escolaridade, [76] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 idade e o crime cometido, além do estado civil, a origem do preso e data da condenação do preso. A partir dos dados registrados neste documento, pretendeu-se pensar melhor a criminalidade de Dores do Indaiá naquele período específico de sua história. Os objetivos gerais da pesquisa foram, portanto, analisar o perfil dos presos de Dores do Indaiá no período de 1958 a 1974, verificando as mudanças e permanências nesse perfil, procurando compreender questões relacionadas às configurações sociais, econômicas e políticas brasileiras neste recorte temporal, como por exemplo, observando as possíveis relações entre o perfil dos presos e a política de Segurança Nacional, desenvolvida na Ditadura Militar, no período de 1964 a 19741. Os dados trazidos pelo documento são importantes não apenas para se conhecer melhor o perfil da população carcerária de Dores do Indaiá num período significativo da história de uma região de composição social pouco conhecida na historiografia, mas também possibilita investigar as possíveis movimentações de presos políticos de outras regiões para o interior do estado, à época da ditadura militar. A observação da vinda de presos transferidos de outras cidades para Dores do Indaiá chamou a atenção para uma possível relação entre a repressão política e a mudança do perfil dos presos da cadeia de Dores especialmente a partir de 1968, período em que a mudança no perfil dos presos coincide com a criação do Ato Institucional número 5 (AI-5) que “endureceu” o regime pela suspensão da “garantia de habeas corpus aos acusados de crimes e das infrações contra a ordem econômica e social e economia popular” (Fausto, 2006, p.480). Para a apresentação dos resultados, o trabalho foi dividido em três tópicos: No primeiro, serão apresentados os dados gerais encontrados no documento: registros dos réus recolhidos na cadeia de Dores do Indaiá e a descrição dos crimes mais cometidos de 1958 a 1974. O objetivo é traçar o A Ditadura Militar durou de 1964 a 1985. No entanto, os dados sobre os presos correspondem ao período de 1964 até 1974. 1 [77] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 perfil do preso em Dores do Indaiá. Em seguida, será realizada uma análise diacrônica, investigando melhor as mudanças e permanências percebidas no perfil dos presos. Para o período entre 1964 e 1974, numa análise sincrônica, procuraremos apontar as possíveis relações da mudança desse perfil com a repressão política na ditadura militar. Por último, pretende-se retomar elementos para a reconstituição da historia do presídio, a Cadeia Regional de Dores, local onde o documento foi produzido. REGISTRO DOS RÉUS NA CADEIA DE DORES DO INDAIÁ DE (1958/1974) A criminalidade está entre os mais preocupantes problemas sociais que vêm inspirando trabalhos em diversas áreas tanto no Brasil como em outras partes do Mundo. Como observa Rafael Barbosa (2007): O mercado editorial começa a enxergar nos relatos dos presos um novo vilão, a indústria fonográfica investe no rap produzido dentro das cadeias, filmes e documentários sobre a realidade carcerária. (Barbosa, 2007, p.19) No entanto nessas abordagens, como observa o autor, os presos são rotulados de diversos adjetivos, e a própria instituição carcerária tem contribuído para que isso ocorra, reproduzindo diversos preconceitos de representação. Essa situação nos remete àquilo que Foucault (1997) observava na década de 1970: A arte de punir deve, repousar sobre toda uma tecnologia da representação. A imprensa só pode ser bem sucedida se estiver inscrita numa mecânica natural. (Foucault, 1997, p.87). Nesse sentido, essas ideias interferem na forma como enxergarmos os presos, como temos entendido o papel social da prisão e como têm sido desenvolvidas as políticas governamentais. Considerando essa perspectiva, acreditam-se na pertinência de pensar melhor as ideias comuns sobre a [78] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 população carcerária tomando como ponto de partida a situação específica na cadeia de Dores do Indaiá, no período de 1958 a 1974. A partir de um olhar sobre os crimes mais cometidos em Dores do Indaiá, naquele período, pretende-se traçar um perfil desses presos através dos registros, considerando sua origem, escolaridade, estado civil, dentre outros, no período de 1958 a 1974. A composição étnica dos presos pode ser vislumbrada na Tabela I. Nela, foram considerados como critérios de classificação as divisões utilizadas no próprio documento de registro para a classificação da cor. O documento oferece as seguintes opções: morena, branca, preta, mestiça e parda. Um outro campo, associado à composição de cor, foi o estado civil do preso. No entanto, é necessário alertar que essa classificação tem o inconveniente de se estruturar ainda de acordo com o conceito de raça, daquela época, como qual hoje já não é mais possível concordar. Esse conceito, presente desde pelo menos o século XV, motivou um forte intento em descobrir a razão das diferenças entre europeus e não-europeus, já que a princípio os não-europeus não eram nem considerados como seres humanos, mas sim bestas e feras, o que justificava a exploração e a violência sobre esses povos. Nessa perspectiva, a humanidade foi dividida basicamente em três “raças”: branca, negra e amarela, sendo que a justificativa para esta divisão, fundamento das teorias raciais do século XIX, pautava-se na biologia, a qual denotava uma superioridade natural da “raça” branca com relação à negra e amarela (Ribeiro, 2005). Desde 1950, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) utiliza a classificação branca, preta, parda e amarela para designação da cor. Conforme os dados do IBGE,desde 1950, (apud Ribeiro, 2005), no Brasil, negro é quem se auto-declara preto ou pardo, pois a população negra é o somatório de pretos e pardos (Ribeiro, 2005). No entanto, não se pode ter certeza se esses procedimentos de classificação do IBGE eram seguidos na cadeia de Dores do Indaiá. Parece que a classificação na cadeia de Dores do Indaiá era feita pelos próprios carcereiros. [79] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Atualmente, considera-se negra a pessoa de ancestralidade africana, desde que assim se identifique. Na mestiçagem1, ser negro possui vários significados, que resultam da escolha da identidade racial de quem tem a ancestralidade africana como origem (afro-descendente). Ou seja, ser negro, é, essencialmente, um posicionamento político, em que se assume a identidade racial negra. Merece destaque o fato de que população negra, para a demografia, é o somatório de preto + pardo (Oliveira, 2004). Cabe ressaltar, como nos lembra a autora, que “preto é cor e negro é raça”. Assim, as categorias branca e preta representam extremos das etnias mais importantes, pois representam descendências europeias e africanas. A parda abrange vários termos que definem a mistura racial entre negros e brancos ou negros e índios, ou ainda índios e brancos. Como alerta Oliveira (2004): O conceito de raça é uma convenção arbitrária e pode ser enquadrada como uma categoria descritiva da antropologia, uma vez que é baseada nas características aparentes das pessoas. Portanto, o uso dos termos raça ou etnia está circunscrito à destinação política que se pretende dar a eles. (Oliveira, 2004, p.3) Portanto, considerando todas essas ressalvas, foi adotada a divisão de cor apresentada pelo documento da cadeia Municipal de Dores do Indaiá, que define os brancos como aqueles de descendência europeia e os negros e pretos como afrodescendentes e os morenos como oriundos da mistura das etnias portuguesa e africana (branca + preta). Desde modo, o carcereiro olhava a cor A mestiçagem foi o principal tema abordado por Gilberto Freyre, em Casa-grande e Senzala. A miscigenação é entendida pelo autor como fator benéfico para as raças, tomando o negro como parte importante no processo de formação do povo brasileiro, que recebe das diferentes raças contribuições da língua, religião, costumes e culinária. Segundo o autor, a miscigenação comprova a democracia racial no Brasil. (Ribeiro, 2005) 1 [80] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 da pele do preso e definia se ele era moreno, dito mulato e/ou moreno claro. O mestiço era a pessoa que não tinha a sua composição étnica bem definida de acordo com as referências dos carcereiros. Segundo Franchin1, que trabalhou nesse presídio na época da produção do documento, não importava se o preso era moreno ou preto, dependia muito da visão do carcereiro. Pretos ou pardos, portanto, denotavam mais a forma como carcereiro considerava o preso do que a cor da sua pele. Para o IBGE, as duas cores tem o mesmo significado. Essa classificação sustentava-se por um critério subjetivo, advindo não do declarante como hoje, mas do próprio funcionário que observava o fenótipo e tecia a classificação. É possível, por exemplo, que a origem social, a situação econômica do preso, dentre outros fatores, pudessem influenciar na classificação feita pelo escrivão. TABELA 1: Presos da cadeia de Dores do Indaiá segundo a cor. Como é possível observar na tabela 1, na década de 1950, a população carcerária de Dores do Indaiá era composta por 66 presos, dos quais 29 eram de cor morena, representando 43,94% do total, 22 eram de cor branca (33,33%), sendo apenas 7 de cor preta, o que correspondia a 10,61%. Quatro eram pardos, e os quatro restantes eram mestiços, representando apenas 6,06% cada uma. FranchinCalistro de Oliveira. Conversa informal. Dores do Indaiá, 05 de ago. 2008. 1 [81] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Comparando-se essa composição à da década seguinte, no entanto, observa-se um aumento de mais de 300% da população carcerária. Na década de 1960, dos 245 presos que estavam na cadeia de Dores do Indaiá (um aumento de 179 presos), 115 eram da cor morena (46,94%), 87 eram de cor branca, correspondendo a 35,51%, 36 eram da cor preta, o que correspondia (14,69%), 4 eram mestiços e 3 eram pardos representando respectivamente 1,63% e 1,22% desse montante. Pelos dados registrados, é possível observar o aumento da quantidade de presos, de 1958 a 1974, em termos absolutos. E dentre os criminosos, a maioria era de cor morena. Na década de 1950 encontravam-se entre os presos da cor morena 43,94%, já na década de 1960, passou a representar 46,94%, ou seja, um aumento de 3%. O que se percebe com menor intensidade na década seguinte: menos de 2%. Mas, se comparamos com a cor Branca, o aumento também foi significativo nas duas primeiras décadas (1950 e 1960), de 2,18%. Na década de 1970, houve uma queda pouco significativa do número de presos (da ordem de 0,66%)mas o de cor morena não diminuíram. Assim, como os de cor branca, os presos de cor pretaaumentaram 4,08% nas duas primeira décadas e diminuíram na década seguinte (cerca de 1,05%). Embora a população carcerária mestiça e parda fosse menos expressiva, num total de 2,85%, ocorre uma situação interessante nas décadas em que aparecem essas duas cores: permanece a mesma quantidade populacional. Percebe que, na década de 1950, há uma porcentagem maior do que na década de 1960. Quanto às tendências da criminalidade relacionada à cor, segundo as fontes de informação mencionadas, são semelhantes, existindo apenas uma diferença nos dados absolutos de uma década para a outra. Outro aspecto que pode ser observado, é que não aparecem presos classificados com a cor mestiça e parda na década de 70, isto porque dependia muito de como o carcereiro olhava e classificava o preso. Para o IBGE, desde pelo menos 1950, preto, pardo e mestiço tinham o mesmo significado. [82] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Pelo documento analisado, é possível também observar o nível de escolaridade dos presos de Dores do Indaiá entre as décadas de 1950 a1970 (Ver tabela 2). Percebe-se que a maioria dos presos na década de 1950 sabia ler e escrever: eram 33,33% de uma maioria de um total de 36 presos de todas as etnias que sabiam ler e escrever. E, na sua maioria eram de cor branca, 14 presos (21,21%), e da cor morena 17 presos (25,76%). Daqueles classificados como de cor preta apenas um sabia ler e escrever. Dentre os pardos e mestiços apenas 4 presos sabiam ler e escrever. No entanto, se observarmos o número daqueles que não sabiam ler nem escrever (15 pessoas) a maioria era de cor morena ou preta (5 cada) e da cor branca era apenas 1. Pardos e mestiços continuaram com a mesma quantidade dos que sabiam ler e escrever (4 presos) e 6 presos (3 Branca e 3 Morena) sabiam apenas ler e escrever. TABELA 2: Grau de instrução dos presos da cadeia de Dores do Indaiá associado a cor. [83] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 O aumento da criminalidade vista pelo aumento da população carcerária não pode ser relacionado a nenhuma cor específica, quando se analisa a criminalidade relacionada à cor e escolaridade. Observa-se que os presos negros eram em sua grande maioria analfabetos. Isso não significa que os negros analfabetos tivessem mais tendência ao crime, já que o percentual de pretos não se modifica em relação ao das outras etnias. Mas significa apenas que os negros, mesmo aqueles que cometeram crimes, estavam em desvantagem em relação ao branco ou ao mestiço no acesso à educação escolar na década de 1950. Segundo Boris Fausto: Após a Segunda Guerra Mundial, o ritmo de crescimento da educação no Brasil ficou acima dos outros pais como latino – americanos mais avançados, como o Chile, a Argentina e o Uruguai. (Fausto, 2006, p. 543) Na década de 1960, aumentou em apenas 5% o percentual dos presos que sabiam ler e escrever, de um total de 146 (59,59%) presos. Destes, 58 (39,73%) eram brancos, os morenos eram 66 (45,21%), os pretos 17, e os mestiços 2 e pardos 3. Os que não sabiam ler nem escrever somavam 67 pessoas divididas entre 15 brancos, 42 morenos e 1 mestiço. Os que assinavam o nome eram oito presos; destes, 4 eram brancos, dois morenos e dois pretos. Na década de 1970, mais uma vez, o maior índice dos que não sabiam ler e escrever (analfabetos) era de cor morena (62,69%). Os presos que possuíam o primário eram 11, destes, a maioria era de cor branca (7); os morenos 3, e 1 preto. Havia um analfabeto que era moreno e um que só sabia ler, mas não escrevia. Na década 70 ,4 presos sabiam ler e escrever, destes apenas 2 eram brancos e 3 morenos, Dos que não sabiam ler e escrever havia 14 - 5 que eram Brancos ,8 Morenos e 1 Preto. O que assinavam o nome eram [84] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 2 Morenos, 29 presos tinham o curso primário1 das quais 10 eram Brancos, 15 Morenos e 4 Pretos. Os que tinham o ginasial 2 eram Brancos, 2 tinham curso Superior, 1 Branco e outro Moreno e 2 eram analfabetos. Na análise das três décadas, dos 186 presos que sabiam ler e escrever, a maioria era de cor morena (86 presos), depois vem aqueles de cor branca (73 presos), os pretos com 18, os mestiços com 4 e os pardos com 5. Os presos desse período que não sabiam ler e escrever eram 96% dos quais 55 presos eram morenos, 21 eram Brancos,15 Pretos, 3 Mestiços e 2 Pardos. Os que escreviam e liam mal eram 39 presos dos quais 21 eram cor morena, 21 de cor branca, 7 de cor preta. Percebe-se que durante as três décadas, o aumento significativo da criminalidade só ocorreu entre aqueles de cor branca e morena, em todos os níveis da educação. Entre as outras etnias só existem dados para as primeiras décadas e, nas décadas de 60 e 70, o índice de presos que tinham algum grau de instrução era bem significativo entre aqueles de cor branca e morena e apareceram pessoas que tinham primário e ginasial, dois presos tinham Curso Superior. Não é difícil imaginar a razão pela qual houve o aumento na escolarização dos presos: o nível de escolarização havia melhorado para toda a população como parte de um movimento educacional mais amplo. Neste sentido, Noronha observa que, dentro de uma formação de Estado Nacional a escola cumpria uma missão de civilização de um povo tão heterogêneo, a pedagogia se concentra nesse esforço de transformar o súdito em cidadão e trabalhador. A educação assumia o papel de formar um novo cidadão para uma sociedade urbana – industrial que aos poucos estava se consolidando. (Noronha, 2004, p.73). E a mesma Noronha diz: 1 É a designação dada ao nível de ensino correspondente aos primeiros anos de educação formal. [85] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Ao perceber que a atitude reformista, civilizadora e moralizadora na nação, ao eleger a educação como um tema de “salvação nacional” fazia convergir interesses antagônicos mas nem sempre contraditórios:o de setores das elites modernizastes que viam na educação das massas um veículo político de mudança do eixo hegemônico, de agrário – exportador para urbano- industrial. (Noronha, 2004, p.102) No entanto, a maioria dos presos era da cor morena, categoria que concentra mais daqueles que sabiam ler e escrever além dos analfabetos. O aumento da escolarização dos presos nos remete às transformações sociais ocorridas na sociedade brasileira neste período, embora não possamos fazer uma relação direta entre as transformações na educação e a população da cadeira. Mas, o Brasil vivia tempos de transformação na educação, seja pelo movimento de educação popular nos anos 1960 e a alfabetização de adultos pelo método Paulo Freire, pela elaboração das diversas cartilhas, do aumento na oferta de vagas, da contratação de professores, enfim, vivia-se um amplo processo de democratização educacional. Essa mobilização educacional deve ser pensada num conjunto maior de mudanças que afetaram também o campo político, como a possibilidade de eleger um representante. Uma outra variável que o documento também possibilita analisar é o estado civil dos presos que se encontravam em Dores do Indaiá, entre as décadas 1950 a1970, associado com a sua cor (tabela 3). [86] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 TABELA 3: Estado civil do preso de Dores do Indaiá associado com a cor Observando-se o estado civil dos presos, percebe-se, que na década de 50, de um total de 34 (51,51%) eram casados e pertenciam a todas as etnias. Que a maioria dos casados era da cor morena e branca (15 presos), correspondendo a 45,45% dos presos. Os da cor parda era 3 correspondendo 4,55% e dos mestiço apenas um era casado correspondendo 3,33%. Ospresos solteiros de cor branca e morena eram em menor número do que os casados, num total de 19, 13%, em que corresponde 6 da cor branca e 7 da cor preta, 1 da cor parda e 3 mestiços, que não tinham ocorreu com os casados. Havia também um desquitado da cor morena e um eclesiástico (padre) de cor branca. Este padre foi preso em fevereiro de 1959 em Estrela do Indaiá e autuado em [87] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 flagrante por lesões corporais. Foi solto cinco meses depois (Minas Gerais, preso 27). Na década de 1960, os presos solteiros eram em número superior aos casados. De um total de 138 solteiros (56,33% do total), 69 (49,28%) eram brancos, 44 (31,88%) morenos, e 23 (16,67%) eram da cor preta. Os casados eram 100 (40,82% do total). Destes, os da cor morena eram 45(45,%), os da cor branca 38 (38%), os pretos 12 (12%) Já os pardos e mestiços correspondiam a 5% do total restante. Os viúvos apareceram nas etnia branca e morena um na cor branca e mais um na cor morena, e um outro de cor morena, que no documento não registrou o seu estado civil. Na década de 1970, os presos que se encontravam solteiros eram 42 (63,64% do total de presos). Destes, 24 eram da cor morena, 13 da cor branca e 5 da cor preta. Os casados eram 18 (27,27% do total). Destes, 9 eram da cor morena,7 branca e 2 preta. Dois eram viúvos de cor branca e 3 pretos. Havia um dos presos que não teve definido o seu estado civil. Analisando as três décadas, vimos que a maioria dos presos eram solteiros: 210 (correspondendo a 55,85% do total de presos). Destes, 106 eram da cor morena, 63 de cor branca, 35 pretos e a parda e a mestiça correspondem a 6. Os presos casados nas três décadas correspondem a total de 152 (40,43%), que correspondia 69 da cor morena e 60 brancos. Vemos que a diferença de um para o outro é mínima,os da cor preta só vai aparecer nas duas ultimas décadas com 14. Percebe-se que tem um desquitado da década de 1950 e 10 viúvos nas décadas de 60 e 70, 2 da cor morena, 6 da cor branca e 2 da cor preta. Observando as três tabelas, vimos que as cores que mais predominam são a branca e morena, seguida pela preta, a parda e a mestiça. Portanto, cada uma das tabelas apresentadas determina dados variáveis de fatores como: cor predominante, o grau de instrução escolar e o estado civil dos presos, do quais, no entanto percebe-se que a cor morena também pode ser composta pelos pardos, mestiços e pelos pretos, sobressai perante a cor branca em todas as das três décadas. [88] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 OS PRESOS DA CADEIA DE DORES DO INDAIÁ DA ÉPOCA DA DITADURA MILITAR Depois de analisar o perfil dos presos, tomando como referência os dados reunidos por três décadas, será realizada uma análise diacrônica, investigando melhor as mudanças e permanências percebidas no perfil dos presos, no período de 1964 a 1974. E num movimento concomitante, numa análise sincrônica, procurar-se-á apontar as possíveis relações da mudança desse perfil de presos antes da ditadura e após a repressão política na ditadura militar1. Para avaliar as mudanças ocorridas na cadeia de Dores do Indaiá durante a Ditadura Militar, é necessário analisar, primeiramente, qual era o O Ato Institucional nº 1 mantém a Constituição de 1946, as Constituições Estaduais e suas respectivas Emendas, modificando as regras para “a eleição do Presidente e do Vice-Presidente 1 da República, cujos mandatos terminarão em trinta e um de janeiro de 1966, será realizada pela maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, dentro de dois (2) dias a contar deste Ato, em sessão pública a votação nominal” (Brasil, AI-1, 09/04/1964). A partir desta data, os inquéritos e processos visando à apuração da responsabilidade pela prática de crime contra o Estado ou seu patrimônio e a ordem política e social ou de Atos de guerra revolucionária poderiam ser instalados individual ou coletivamente. Ato Institucional nº 2: suspendia as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por tempo certo, Ato institucional nº 3: “A eleição de Governador e ViceGovernador dos Estados far-se-á pela maioria absoluta dos membros da Assembléia Legislativa, em sessão pública e votação nominal” respeitada os mandatos em vigor, serão nomeados pelos Governadores de Estado, os Prefeitos dos Municípios das Capitais mediante prévio assentimento da Assembléia Legislativa ao nome proposto, mais os Prefeitos dos demais Municípios do inteiro serão eleitos por voto direto e maioria simples, admitindo-se sublegendas, nos termos estabelecidos pelos estatutos partidários. Ato Institucional nº 4: convocado o Congresso Nacional para se reunir extraordinariamente, de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967, o objeto da convocação extraordinária é a discussão, votação e promulgação do projeto para a nova Constituição apresentado pelo Presidente da República.. Ato institucional nº 5: é mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições estaduais, com as modificações constantes deste Ato Institucional; no interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.(Acervo, 2008) [89] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 perfil do presidiário da cadeia antes do período da ditadura, para observar se houve alguma mudança no perfil dos presos que nela se encontravam. Entre 1954 e 1973, o documento registra a entrada de 367 presos dentre réus recolhidos na cadeia de Dores do Indaiá para cumprir pena ou acusados aguardando julgamento. Para efeito de análise, reorganizamos os dados em dois períodos: a) o período de 1954 a 30 de março de 1964 e b) o período de 1964 (após o dia 9 de abril1) a 1973. Para qualificar esse universo foram utilizadas tabelas para que fosse possível identificar alguma mudança no perfil: no grau de instrução, cor, crimes mais cometidos além de se atentar para a movimentação dos presos da cadeia. O resultado encontrado é apresentado na tabela 4: TABELA 4: Movimentação de presos em Dores do Indaiá Atentando-se sobretudo para o número de presos transferidos nos dois períodos, observa-se que no primeiro momento, o percentual de presos transferidos correspondia a 40% e no segundo momento, já em plena ditadura Militar, esse número sobre para 53,60 %. Apesar do aumento do número de transferências não ter sido muito significativo, é válido questionar se haveria alguma relação entre o aumento do número de transferências e o fechamento do regime, ou mesmo se haveria algum preso político sendo recebido na cadeia de Dores do Indaiá. Nesse sentido, foi importante saber a origem do preso que chegava à Cadeia Regional de Dores do Indaiá. 1 Rio de Janeiro- GB, 9 de abril de 1964, quando teve inicio ao golpe militar [90] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Observa-se que a maioria dos presos no segundo período, vieram do presídio de Vigilância Geral de Belo Horizonte1 e de delegacias da região2. A transferência desses presos para Dores do Indaiá vindos da capital mineira poderia ter relação com Ato Institucional nº 5. Procurou-se vestígios de presos político na cadeia de Dores do Indaiá, mas não foi encontrado, isso porque a categoria “presos políticos” não era registrada. Segundo Domingos Ferolla, em uma entrevista para o Jornal o Liberal (O Liberal,1980) que circulava na região, tiveram dois presos políticos: o senhor Rubens Fiúza3 que era tido como socialista e foi levado para Bom Despacho, depois para o DOPS de Belo Horizonte e o senhor Hugo de Souza de Araújo, todos os dois considerados subversivos. Analisando o aumento dos presos de Dores do Indaiá de um período a outro, pode-se retomar o nível de escolaridade para tentar surpreender mudanças nas configurações sociais por meio desse novo agrupamento dos dados. (tabela 5), Esta delegacia se encontra ativa até os dia de hoje. À época da ditadura ela era responsável por receber todas as pessoas que eram presas na capital. Ela se encontra na Av. Antônio Carlos, 901, São Cristovão, Belo Horizonte MG. Delegacias: Luz (MG), Bom Despacho (MG), Abaeté (MG), Pompéu (MG), Belo Horizonte (MG), Uberaba (MG), São João Del Rei (MG), São Paulo (SP),Carmo da Mata (MG), Recife (PE) Rubens Fiúza foi professore escrito e Hugo de Souza de Araújo foi Prefeito, Farmacêutico. 1 2 3 [91] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 TABELA 5: Grau de instrução dos presos O que teria contribuído para a melhoria gradual dos indicadores de instrução dos presos na transição do período de 1964 a 1973? Esse fenômeno talvez seja decorrente da alta transferência de presos de outras localidades com mais oportunidades de freqüentar a escola. O que se observa é que os presos desse período tinham melhor grau de instrução independente da cor da pele. Com a constatação um aumento da presença de alfabetizados, deve-se perguntar sobre os resultados da política educacional do regime militar que tinha como meta erradicar o analfabetismo. Neste sentido, foi criado o Movimento Brasileiro de Alfabetização – MOBRAL (1967) para ensinar os jovens e adultos a lerem e escreverem. Nota-se um aumento na quantidade de presos que sabiam ler e escrever e alguns que possuíam o primário e o ginasial. [92] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Outro aspecto importante para analisarmos a relação entre a mudança do perfil dos presos e a ditadura militar é a natureza dos crimes cometidos, como se observa as tabelas dos dois períodos abaixo: TABELA 6: Crimes mais cometidos Não temos dados suficientes para saber de quais crimes eram acusados os presos políticos que estavam em Dores do Indaiá. Analisando a tabela dos dois períodos, observamos que os crimes mais cometidos são homicídio e furto. O número de homicidas de 1954 a 1963 correspondia a 40% e de 1964 a1973 a 36,47%: houve portanto uma queda. Já os furtos tiveram seu índice aumentado. Se no período de 1954 a 1963 foi de 21,38 %, de 1964 a 1973 [93] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 aumentou para 31,53 % o número de furto. Os períodos permaneceram quase invariáveis, temendo a uma leve redução de 0,43% em relação ao período de 1954 a 1973. Observa-se também que a tentativa de homicídio de 1954 a 1963 foi de 6,9%. Já no período posterior (1964 a 1973) não apareceu nos registro dos documentos. Os roubos tiveram um aumento significativo. Se entre 1954 a 1963 representavam 2,76% do total de crimes, no período seguinte de 1964 a 1973 passa a representar 5,85% do total. Pela análise dos dados não foi possível encontrar prova de que a cadeia de Dores tenha recebido ou enviado presos políticos e, portanto, que tenha feito parte do esquema de perseguição e repressão política. Foram outras fontes que nos deram informações sobre a existência de dois presos tidos como subversivos, Prof. Rubens Fiúza que foi preso em 1964, na casa de sua mãe levado para Bom Despacho e logo depois para o DOPS de Belo Horizonte e também Hugo de Souza. No entanto, o mais perseguido foi Rubens Fiúza em que 1978, ele próprio definiu o que era considerado uma pessoa subversiva: o “individuo que propõe derrubar o regime pelo emprego da violênciarevolucionaria”, ele não deseja derrubar o regime atual do país, mas apenas deseja uma nova legalidade democrática para o país. E ainda ironizava “será o presidente Geisel então um subversivo? Então eu estou em boa companhia”. (Fiúza,1980) O PRESÍDIO DE DORES DO INDAIÁ Se os dados encontrados no documento da cadeia de Dores do Indaiá não permitem dimensionar seu significado para a região, isto não quer dizer que a Cadeia Regional de Dores não tenha significado político para a cidade. Uma rápida retomada da história de sua construção e funcionamento corrobora essa ideia. [94] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 A construção do presídio de Dores do Indaiá começou em 1928, a pedido do então deputado federal dorense Francisco Luiz da Silva Campos (Francisco Campos) que, queria ver sua região ser conhecida. Segundo Domingos Ferolla a justificativa dada era que a criminalidade dos grandes centros estava crescendo. A obra fazia parte de um conjunto de ações públicas destinadas a Dores do Indaiá, como a construção da Escola Normal (Escola Estadual Francisco Campos). A cadeia foi terminada em 1932, ano em que Francisco Campos deixou Ministério da Educação. No ano seguinte, Francisco Campos disputou, sem sucesso, as eleições para uma cadeira na Assembléia Nacional Constituinte de Minas Gerais, como candidato avulso. O presídio foi construído no alto de um morro, estrategicamente localizado, de onde até hoje, é possível visualizar todos os pontos da cidade (figura 1). Sua arquitetura é de estilo neoclássico: suas fachadas de inspiração romana com colunas jônicas. O prédio é composto por dois andares. Na época, nas salas da frente encontravam-se o Batalhão da Policia Militar e da Delegacia de Policia Civil. A área construída é de 903,99 m², em uma forma de caixa quadrada, num terreno de 4050m² (figura 2). O presídio foi dividido em dois andares, que possuía 14 selas, nos fundos se encontrava umquadra de futebol, nas laterais do fundo do terrenos haviam duas guaritas e na sua frente uma, como se pode observar na planta original do edifício. O prédio, segundo Domingos Ferolla (2008), foi construído para ser uma penitenciária. Na época de sua construção, era um dos presídios mais modernos do Estado de Minas Gerais. Ele teria construído para manter presos de altíssima periculosidade, que vinham de todas as regiões de Minas e de outros estados. Se no início do século, o presídio fora recebido como símbolo do progresso e da civilização, no final do século XX, entretanto, ele é ressignificado: na década de 1980, representantes da população local se empenharam numa campanha de mais para tentar desativá-lo. Esta campanha começou [95] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 FIGURA 1: A cidade vista da Janela do andar superior do prédio da Cadeia [96] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 FIGURA 2: Cadeia de Dores do Indaiá de 1932 a 1983, hoje a Prefeitura Municipal de Dores do Indaiá. Na imprensa pela iniciativa do prof. Rubens Fiúza1, que escrevia artigos enfáticos sobre o presídio, em sua coluna no jornal O Liberal, folha quinzenal que circulou na cidade (com sua primeira circulação de 1933 a 1989 depois reapareceu em como informativo da prefeitura de 1993 a 2000). O periódico registrou as tentativas dos líderes locais de convencer as autoridades estaduais a desativarem a cadeia. Cartas enviadas para deputados, como as que Domingos O Prof. Rubens Fiúza (1923-2000) foi sempre um grande estudioso de História, Geografia e Sociologia, sobretudo nos aspectos relacionados com a sua região 1 [97] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Ferolla enviou ao deputado Dalton Canabrava líder, do PP (Partido Popular), continham o seguinte argumento contra a manutenção do presídio na cidade: Funciona escandalosamente no centro residencial de Dores do Indaiá, uma penitenciária, cuja desativação vem sendo reivindicada por todos as munícipes, sem, contudo, merecer a atenção das insensíveis autoridades do nosso Estado. A localização do prédio, as condições sub-humanas em que vivem os detentos, rebeliões, assassinatos, constantes tentativas de fugas, corre-corre nas ruas do bairro de policiais no encalço de fugitivos, às vezes até com tiros, além dos gracejos obscenos e dos palavrões dirigidos às professoras e aos alunos da Escola Estadual Mestre Tonico, localizada nas imediações, são algumas das razões que nos força a solicitar às autoridades por um fim a esta calamidade que há anos vem afligindo a terra de Francisco Campos.(Ferolla, O Liberal,1980, p.2). Rubens Fiúza em um dos seus artigos que também pedia a desativação do presídio se referia às condições dos presos da cadeia: É necessário que o prédio seja urgentemente reformado e restaurado, e inclusive melhoradas as suas instalações, de modo a poder oferecer aos detentos condições humanas de habitação, dentro das modernas concepções criminologias da missão lidimamente pedagógica, reeducacional das instituições carcerárias dos paises civilizados e da civilização cristã. (Fiúza,1980,p.1) [98] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 O Livro de registro de presos da cadeia não se refere às condições oferecidas aos presos. No entanto, a imprensa registrou outros vestígios que permitem a aproximação do modo como viviam os internos. No ano de 1982, um detento transferido da capital Belo Horizonte revoltado com o tratamento que obteve na Cadeia de Dores do Indaiá através de seu advogado, faz um pedido ao juiz de Contagem para que não fosse transferido outra vez para aquela prisão. Dizia preferir ser mandado para a Sibéria do que retornar. No seu pedido argumentava: Sou Antonio Carlos Braga, meliante não vulgar/tenho muitos anos de vida/muitos desenganos pra mostrar/recolhido na condição de cativo, na cadeia de Dores do Indaiá. Dizem que a violência do mundo/ não reside apenas no Nilo ela se encontra no fundo até no ar que respiro.../ em Dores não se toma banho/água nem para tomar/um médico em nossos sonhos/ que nos venha examinar... /sim, porque doente e rua/ é mais comum que barata/ nas celas de dor mais crua, duma cidade antes pacata.../presidiários vão desencarnar/ isso eu posso afirmar – na terceira esquina depois do inferno/ que é Dores do Indaiá...(Braga, 1982,p,1) A despeito do tom satírico, pelo trecho acima é possível ter ideia das condições da cadeia de Dores do Indaiá, na década de 1980. Analisado os artigos dos jornais, percebemos que a campanha foi bastante dura em defesa do fechamento do presídio. Embora os sofrimentos dos presos tenham sido muito exagerados, estas fontes podem dar uma dimensão de como era a vida dos presos e completar o quadro social apresentado nos registros de presos. A campanha foi bem-sucedida. Em 1983, a cadeia foi desativada pelo governo estadual e passou a pertencer em caráter de comodato, por um período de 20 anos (vinte anos), ao município. Antonio Lopes Cançado, [99] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 festejando o ato escrevia que aquele “prédio estava desperdiçado como cadeia, vai ter agora uma destinação condigna: será a sede da Casa da Cultura de Dores do Indaiá, uma velha aspiração da comunidade dorense.” (Cançado, 1983,p.1). A doação do prédio para a Prefeitura fez parte do acordo entre o município e o estado, pelo qual, para “substituir a ex-cadeia a prefeitura se comprometeu a construir uma delegacia à altura das necessidades municipais”.(Cançado,1983,p,1). Entretanto, a Casa da Cultura nunca chegou a funcionar no local. Desde a sua desativação, o prédio imponente da antiga cadeia passou a ser a sede do governo municipal de Dores do Indaiá: as antigas celas viraram grandes salas e escritórios que abrigam os diversos setores administrativos do governo municipal. CONCLUSÃO: Através da pesquisa realizada verificou-se que não existiram registros de presos políticos na cadeia de Dores do Indaiá entre os detidos. Embora alguns habitantes tenham sido presos e perseguidos, foram levados a outros lugares.Boa parte dos presos era alfabetizada e os crimes cometidos, em sua maioria, respectivamente, homicídios, furtos e roubos. Verificou-se também que o índice de escolaridade dos presos era mais elevado à época da ditadura militar. Se pelo estudo dos registros de presos da cadeia de Dores do Indaiá do período de 1964 a 1974, não foi possível fazer uma relação direta com a ditadura militar, indiretamente podemos perceber que a instalação do novo regime contribui para o aumento dos presos da cadeia de Dores, sobretudo na década de 1960 quando subiu o número de presos transferidos de diversos lugares, em especial da capital Belo Horizonte. Embora não haja registros de presos políticos no Presídio de Dores do Indaiá, isto não quer dizer que não tenha havido prisões políticas relacionadas à ditadura militar. Rubens Fiúza, por exemplo, escritor e jornalistatomado por socialista, foi delatado como subversivo e preso em abril de 1964. Recolhido da [100] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 casa de sua mãe foi levado para Bom Despacho e depois para o DOPS, em Belo Horizonte, onde ficou por 3 meses, incomunicável, à espera de interrogatório. Também houve o caso do senhor Hugo de Souza de Araújo tido também como subversivo, que logo foi posto em liberdade. Nenhum deles passou pela cadeia de Dores, ou pelo menos, não deixaram registro sobre essa passagem. Afinal, esta não era sua função. Ela tinha sido construída, nos tempos de Francisco Campos, para contribuir para o processo civilizatório, encarcerando os bárbaros e não os militantes de outras causas. FONTES: BRAGA, Antônio Carlos. “Preso pede ao Juiz para sair da cadeia de Dores do Indaiá”.O Liberal, Dores do Indaiá, 30, janeiro, 1982. Periódico, p.2, c. 1-2. CANÇADO, Antônio Lopes. “Cadeia Vira Casa da Cultura”, O Liberal,Dores do Indaiá, 12, março de 1983. Periódico p.1, c.1-3. FEROLLA, Domingos. “Vereador dorense continua lutando contra a Cadeia de Dores do Indaiá”,O Liberal,Dor do Indaiá MG, 20, setembro, 1980. Periódico p.2, c.1-3. FEROLLA, D. da.Domingos Ferolla: depoimento [out. 2008]. Entrevistador: J.S.M. Monteiro Dores do Indaiá – MG, 2008.1 fita cassete (60 mim), estéreo. Entrevista concedida para a monografia PERFIL DO PRESO DE DORES DO INDAIÁ – MG. FIÚZA, Rubens. “Estamos em Pleno Século XVlll”, O Liberal, Dores do Indaiá MG, 21, junho, 1980. O Vigilante, p.1, c.1-3. FIÚZA, Rubens. “O Que e ser Subversivo”, O Liberal, Dores do Indaiá, 28, outubro, 1979. O Vigilante, p. 2, c.1. MINAS GERAIS. “Delegacia especial de Dores do Indaiá”. Registros dos réus recolhidos na cadeia de Dores do Indaiá. Dores do Indaiá, 1958. Não publicado. [101] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 REFERÊNCIAS ACERVO a Luta Contra a Ditadura. Atos Institucionais, Disponível em: http://www.acervoditadura.rs.gov.br/legislacao.htm. Acesso em: 25 de ago. 2008 BORIS, Fausto. História do Brasil. 12. Ed. São Paulo: Edusp, 2006. BARBOSA, Antonio Rafael.“Os desafios do sistema penitenciário brasileiro”. Revista Ciência Hoje. São Paulo, v.40, n° 40, p.18-23, jun.2007. BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da História, ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BURKE, Peter. A Escrita da História – Novas Perspectivas. São Paulo. ed. Unesp, 2001. FOUCAULT, Michel.Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 39. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. NORONHA, Olinda Maria. Ideologia, trabalho e educação. Campinas, São Paulo: Alínea, 2004. OLIVEIRA, Fátima.Ser negro no Brasil: alcances e limites. SIELO Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340142004000100006 . Acesso em: 15 abr. 2008 RIBEIRO, Eliana Marques. Cor/raça no senso escolar 2005:o que é ser preto, branco pardo. Disponível em: www.anped.org.br/reunioes/29ra/trabalhos/trabalho/GT21-2545--Int.pdf . Acesso em 28 mar. 2008 RIBEIRO, Flávia Maria Franchini. A Disputa Pela Memória: Prisões Políticas do Regime Militar. Disponível em: www.rj.anpuh.org/Anais/2006/conferencias/Flavia%20Maria%20Franchini%20R ibeiro.pdf. Acesso em : 20 ago. 2008. [102] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 O CONTROLE SOCIAL DA DELINQUÊNCIA INFANTIL NA CIDADE DE SÃO PAULO NA PASSAGEM DOS SÉCULOS XIX XX PELA TEORIA DE MICHEL FOUCAULT1 Robson Roberto da Silva2 Resumo: As instituições disciplinares de característica laica e científica surgiram no Brasil entre o final do século XIX e início do século XX e a cidade de São Paulo foi uma das pioneiras na inauguração desses institutos para o atendimento ao constante crescimento da delinqüência e criminalidade infantil nas ruas e cortiços da cidade, pois as antigas entidades religiosas não tinham estrutura para essa crescente demanda social. Analisando essas instituições pela teoria de Michel Foucault, filósofo e historiador francês, especialista nos estudos sobre essas instituições de controle social (orfanatos, reformatórios, prisões, manicômios, etc.) analisa a dinâmica social no interior dos institutos e como eram formadas e realizadas as hierarquias e as relações de poder e os mecanismos de disciplina e vigilância sobre os internos, com o objetivo principal de inserir na mentalidade das crianças delinqüentes os princípios morais de organização e conduta através do trabalho. Palavra-chave: Infância, Delinqüência, Instituições, Relações de Poder, Disciplina Esse artigo baseia-se no terceiro capitulo do projeto de dissertação cujo titulo: A instrumentalização da infância: estudos sobre as condições sociais e as políticas publicas das crianças marginalizadas na cidade de São Paulo (1888-1927) Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Historia Social - Universidade Estadual de Londrina – PR. 1 2 [103] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Summary The institutions to discipline of laica and scientific characteristic had appeared in Brazil enters the end of century XIX and beginning of century XX and the city of São Paulo was one of the pioneers in the inauguration of these justinian codes for the attendance to the constant growth of the deliquency and infantile crime in the streets and tenement houses of the city, therefore the old religious entities did not have structure for this increasing social demand. Analyzing these institutions for the theory of Michel Foucault, philosopher and French historian, specialist in the studies on these institutions of social control (orphanages, reformatories, arrests, lunatic asylums, etc.) it analyzes the social dynamics in the interior of the justinian codes and as they were formed and carried through the hierarchies and the relations of being able and the mechanisms of it disciplines and monitoring on the interns, with the main objective to insert in the mentality of the delinquent children the moral principles of organization and behavior through the work. Word-key: Infancy, Deliquency, Institutions, Relations of Being able, Discipline [104] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 1. A DELINQUÊNCIA INFANTIL NA CIDADE DE SÃO PAULO NO INÍCIO DO SÉCULO XX São Paulo, final do século XIX e início do século XX, era uma cidade em plena mutação urbanística e social, a industrialização mostrava um dinamismo nunca antes experimentado por outra cidade no Brasil, com exceção do Rio de Janeiro. A vinda de grandes levas de imigrantes europeus, especialmente italianos para tentar a vida na América. Além disso, a abolição da escravidão colocou uma grande quantidade de indivíduos negros e mestiços no mercado de trabalho, porém esses tiveram maiores dificuldades para ser alocados na produção industrial por diversas razões, mas todas elas baseadas no preconceito racial, relegando-os a sub-empregabilidade. Todos esses fatores históricos e demográficos transformaram profundamente as estruturas sociais de São Paulo, aprofundando as contradições socioeconômicas da capital paulista, entre elas o aumento da pobreza da maioria da população. Uma das conseqüências mais graves da elevação da carestia social será o aumento da indigência e da criminalidade infantil entre os últimos anos do século XIX e as primeiras décadas do século seguinte (Figura 1). Pela Tabela 1 pode-se observar claramente que os índices de criminalidade infantil superam dos adultos em 1916. A questão da infância abandonada, antes tratada como caso privado das famílias ou das instituições religiosas, se converteu em uma preocupação de ordem pública, a infância indigente se tornara a plataforma política dos governos na Primeira República. [105] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Figura 1 - Aurélio Becherini: Detalhe de foto Rua Capitão Salomão, 1912. Fonte: Aurélio Becherini, São Paulo: Editora Cosac Nayfy, 2009. Acervo – DPH / SMC São Paulo. [106] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Segundo Marco Antônio Cabral dos Santos: Assim como o menor em São Paulo era iniciado (...) nas atividades produtivas que o mercado proporcionava, (...), também o era nas atividades ilegais numa clara tentativa de sobrevivência numa cidade que hostilizava as classes populares. Desta maneira o roubo, o furto, a prostituição e a mendicancia tornaram-se instrumentos pelos quais estes menores proviam a própria sobrevivência e a de suas famílias. Inúmeros são os relatos da ação destes meninos e meninas pelas ruas da cidade, em bandos ou sozinhos, compondo o quadro e as estatísticas da criminalidade e da delinquência. O moleque travesso que alegremente saltitava pelas ruas, era também o esperto batedor de carteiras, que com sua malícia e agilidade assustava os transeuntes. Frequente tambem era a presença de garotas, ora mendígando pelas calçadas ou furtando pequenos estabelecimentos, ora prostituindo-se para obter o dificil sustento.1 A preocupação da sociedade em relação às crianças que ficavam vagando pelas ruas, soltas e propícias a influência de todos os tipos de vícios e perversidades que a cidade oferecia, causava a consternação das autoridades e da sociedade, que viram nisso a emergência da elaboração de políticas públicas que atendessem essas demandas sociais. “As sociedades industriais, intensificando as relações entre os grupos, multiplicam normas e interdições; sob muitos aspectos constrangedoras e repressivas, elas codificam tudo e, ao mesmo tempo, fabricam SANTOS, Marco Antonio Cabral dos.Criança e criminalidade no inicio do sec. XX. In: PRIORE, Mary Del. Historia das crianças no Brasil, São Paulo. Contrexto, 1999, p. 218 1 [107] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 delinquentes.”1 Nesse período da passagem dos séculos XIX - XX houve o surgimento de uma grande estrutura assistencialista voltada para o recolhimento, internação e adestramento dessas crianças para se tornarem cidadãos úteis para a sociedade pela pedagogia do trabalho. Os conceitos de ociosidade e criminalidade se confundiam nessa época. Segundo Sérgio César da Fonseca: O ócio, associado ao ambiente contaminador das ruas, estava identificado com a corrupção moral a qual estavam submetidos os menores (...). A desocupação dos menores, desde as idades mais jovens, não era tratada tão somente como um problema social, mas também como um fenômeno moral. Se tinha essa conseqüência moral, o ócio e rua tinham a responsabilidade por produzir distorções de caráter que comprometeriam os menores. Há nesse aspecto moral, acerca da perversão dos menores pela ociosidade nas ruas, algo implícito, que e justamente a individualização de um fato social, ou seja, não há uma avaliação que aponte para a marginalização como a eminente produtora dessas pessoas, e sim a transferência da responsabilidade da criminalidade e da mendicância para os indivíduos.2 O coro discursivo das autoridades da época era que poderia se evitar o crescimento da criminalidade infantil com a inserção cada vez mais precoce das crianças a educação voltada ao mundo do trabalho, para que esse indivíduo pudesse se tornar útil para a sociedade industrial que emergia em São Paulo no PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução de Denise Bottman. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988 (Coleção Oficina da História). p.236 FONSECA, Sérgio César da. Infância e disciplina: O Instituto Disciplinar do Tatuapé em São Paulo (1890 - 1927). Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2007., p. 134 1 2 [108] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 início de século XX “A disciplina industrial, (...), não é senão uma entre outras, e a fábrica, (...) a escola, o exército, a prisão etc., pertence a uma constelação de instituições que, (...), participa da elaboração dessas regulamentações.”1 Rizzini explica como era idealizado a decência: Para ser um 'homem de bem' não havia outro caminho senão o do trabalho, o trabalho idealizado, que conduz à grandesa nacional', que requer a participação de todos (do 'garimpeiro' ao 'capitalista'...) — os 'obreiros do -progresso da Pátria': "Vós que viveis ainda nos brincos da infância e que, da escola, passaes para a ridente vida domestica, ainda não chegastes á idade em que o homem sente a necessidade impulsiva de trabalhar. Quando lá chegardes, vereis quão delicioso é o trabalho! Elle desenvolve o corpo e o espirito; avigóra o animo; fortalece o caracter; evita a tentação da vida vagabunda. Raramente encontrareis um criminoso, repulsivo e odiento, num homem de trabalho; mas encontrareis centenas de delinquentes aos quaes elle renegou.2 Tantos os políticos quantos os empresários viam a inserção precoce das crianças indigente ao trabalho como uma forma de salva-las dos vícios das ruas e da criminalidade, era o pensamento filantrópico da classe burguesa que atuava no salvamento das classes populares de sua inata indolência para o trabalho, em salvaguardar a infância. “As novas posturas (...) defendidas pêlos médicos higienistas e pelas elites pensantes, mostravam o caminho da filantropia como solução racional e técnica para atender à questão social do PERROT, Op. cit. 1988, p.53 BRITO, 1919, p.79 apud RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas sociais para a infância no Brasil. Rio de Janeiro: EDUSU, AMAIS Livraria e Editora, 1997. p. 110 1 2 [109] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 menor abandonado.” 1 Era uma política baseada no pensamento científico, onde as questões sociais eram vistas moléstias a serem curadas “Esboça-se, (...), uma política mais racional, normalizada, "científica" e global do social. (...). ”2 Stein explica o filantropismo da classe empresarial do século XX: Os empresários da indústria têxtil algodoeira recrutavam a sua mão-de-obra não especializada nos orfanatos, nos juizados de menores, nas Casas de Caridade e entre os desempregados das cidades do litoral. Ao se utilizarem dessas fontes de mão-deobra, os proprietários das fábricas asseguraram o desenvolvimento de um segmento industrial da economia brasileira, convertendo-se, ao mesmo tempo, em benfeitores e filantropos; ambos os papéis estavam entrelaçados, e disso tinham plena consciência os empresários e os observadores da época.3 Tais políticas de assistência a infância marginalizada visavam principalmente o saneamento moral da população empobrecida, sendo isoladas em instituições especificas de acolhimento dos degenerados sociais. “Em compensação, é o corpo da sociedade (...) que será preciso proteger, de um modo quase médico: (...) como a eliminação dos doentes, o controle dos contagiosos, a exclusão dos delinqüentes.”4 Assim, durante do período da Primeira República, os governos implantaram estruturas correcionais para educar e corrigir os delinqüentes e enquadrá-los nas normas sociais. “Matéria facilmente moldável, o Estado deveria preocupar-se em formar o caráter da MARCÍLIO, Maria Luíza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998, p.201 MARCILIO, Op. cit. 1998, p.202 STEIN, Stanley J. Origens e evolução da indústria têxtil no Brasil. 1850 - 1950. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1979, p.66 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 29ª Edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2004. Sec. XX p. 146 1 2 3 4 [110] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 criança, incutindo-lhe o amor ao trabalho, (...), de civilização e barbárie, enfim, os princípios da moral burguesa.”1 Foi no início do século XX que surgiram as primeiras instituições correcionais fundamentada na doutrina do utilitarismo e nos princípios de uma filantropia científica, para melhor adestramento das crianças delinqüentes, incutindo neles os princípios da moral, dos bons costumes e da dignificação do ser humano através do trabalho. 2. ANÁLISE DOS MECANISMOS DE PODER E DISCIPLINA NAS INSTITUIÇÕES CORRECIONAIS PELA TEORIA DE MICHEL FOUCAULT A questão da infância abandonada não era uma novidade no Brasil no início do século XX, esse problema já era conhecido desde o período colonial, onde as crianças bastardas ou expostas eram criadas pelas famílias motivadas pela caridade ou pelas iniciativas das instituições religiosas. Maria L. Marcílio denominava essa fase de caritativa. “Do período colonial até meados do século XIX vigorou a fase (...) caritativa. O assistencialismo dessa fase tem como marca principal o sentimento da fraternidade humana, de conteúdo paternalista, sem pretensão a mudanças sociais.” 2 Esse sistema vigorou por todo século XIX e somente na passagem para o século XX sua atuação assistencial foi questionada, sendo taxada de ineficiente e retrógada, isso expressava o pensamento social do final do século XIX e inicio do século seguinte em que a elite intelectual e política brasileira exigiam a separação do Estado da influência da Igreja e a reforma imediata das estruturas políticas e sociais depois da Proclamação da Republica de 1889. “Nos últimos anos do século XIX e primeiros anos desse século, a idéia de reforma social e moral (...), preocupados com a devassidão dos costumes, a indisciplina cívica e com a RAGO, Margareth. A preservação da infância. In: Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Brasil. (1890 – 1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.121 MARCÍLIO, Op. cit.1998, p.134 1 2 [111] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 desobediência civil nas suas mais diversas formas.” 1 Nesse espírito de reformismo, as crianças, especialmente aquelas tuteladas pelo Estado ou em situação de risco moral e social, deveriam ser doutrinadas pelos novos mecanismos educacionais para serem inseridas no mercado de trabalho aberto pela industrialização. Cada vez mais sendo cerceados pelas instituições correcionais, os delinqüentes se vêem analisados pelo saber médico e psiquiátricos, enquadrando-os, organizando-os, mensurando seu comportamento. Segundo Margareth Rago: Assim, desde o final do século XIX, a preocupação com os destinos da criança, (...), ocupa cada vez mais os horizontes dos médicos higienistas, pedagogos e governantes. Através da apropriação da infância, o poder médico procura projetar-se no mundo da política, outorgando-se um papel de importância vital para a sobrevivência física e moral dos habitantes, das crianças aos adultos, de todas as classes sociais. De fato, os médicos adquirem uma crescente participação no aparato governamental, seja dirigindo o serviço sanitário, seja definindo dispositivos estratégicos de regulação dos comportamentos e da vida íntima dos diversos setores da sociedade. A tarefa de recuperação da infância abandonada, neste contexto, cumpre a função de justificar a crescente intervenção da medicina no campo da política e sua interferência no domínio privado da família.2 Assim, desde as primeiras décadas do século XX, proliferam-se inaugurações de instituições laicas de acolhimento e internação de crianças abandonadas e delinqüentes. “São abertas instituições especialmente destinadas ADORNO, Sergio. A experiência precoce da punição In: MARTINS, Jose de Souza. O massacre dos inocentes, p.181 RAGO, Op. cit. 1987, p. 120 1 2 [112] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 a recolhe−los e a ministrar−lhes cuidados particulares (...), encontrarão um meio de desenvolvimento mais favorável e economicamente menos custoso que um asilo, (...).” 1 As crianças delinqüentes que tivessem cometidos crimes eram recolhidas das ruas e cortiços da cidade de São Paulo e imediatamente internados nessas instituições correcionais para sua reeducação. “Mudanças (...) nos métodos de internação para crianças (...), deslocando-se dos orfanatos e internatos privados para a tutela do Estado (...). Foi o ternpo das (...) políticas sociais que valorizou, (...), a internação (...).”2 O Código Penal de 1890 determinava que os menores que cometessem crimes com discernimento deveriam ser internatos nessas instituições. “Art. 30. Os maiores de 9 annos e menores de 14, que tiverem obrado com discernimento, serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriaes, (...), comtanto que o recolhimento não exceda á idade de 17 annos.”3 Não apenas os menores criminosos ficariam confinados, mas todos aqueles considerados marginais ou desajustados da sociedade. O Instituto Disciplinar do Tatuapé foi inaugurado em 1902 pela iniciativa de políticos paulistas como Paulo Egydio e Candido N. Nogueira Motta, ambos criminalistas e filantropos, regulamentado pela Lei n. 844 de 1902. “Artigo 1.° Fica o Governo do Estado auctorizado a fundar, (...), um Instituto Disciplinar e uma Colonia Correccional, subordinados á Secretaria de Estado dos Negocios do Interior e da Justiça e sob a immediata inspecção do chefe de policia.”4 Pela explicação de Sérgio César da Fonseca: No caso de São Paulo, em especial, o Instituto Disciplinar – mais tarde conhecido como Instituto disciplinar do Tatuapé – e criado em lei de 1902, entrando em funcionamento no FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1984, p.200 PASSETTI, Edson. Crianças carentes e políticas públicas. In. PRIORE, Mary Del (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. p.348 BRASIL. Decreto – Lei Federal n. 847 de 11 de Outubro de 1890 (Código Penal do Brasil) SÃO PAULO: Lei-Estadual n. 844 de 10 de Outubro de 1902 1 2 3 4 [113] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 ano seguinte, também nessa onda de instituições que surgem em outros centros urbanos. Esse tipo de instituição, diretamente motivado pela preocupação social despertada pelo menor, veio também para operacionalizar preceitos legais já estabelecidos outrora.1 Basicamente, os candidatos mais freqüentes ao internamento eram as crianças mais pobres e problemáticas, através de mandatos criminais expedido pelo Juizado de Órfãos. “Mas a figura do menor, (...), aplica-se em toda sua extensão aos meninos pobres. (...) a menoridade na sua dimensão ligada à esfera do trabalho ou a pedagogia terapêutica é um conceito aplicável a gente pobre.” 2 Marco A. Cabral dos Santos descreve os procedimento de entrada dos menores e sua rotina de tarefas no instituto: Na sua entrada, o menor era registrado em um livro de matrícula e depois sujeito a longo interrogatório, feito na maioria das vezes pelo próprio diretor. Em seguida passava por um rigoroso exame médico, extraindo-se suas medidas antropométricas e tirando-lhe fotografia. Recebia então seu uniforme, pelo qual devia zelar enquanto durasse sua estadia, sendo então encaminhado para a seção que lhe fosse designada, “de acordo com sua robustez física e aptidão”. (...) Após breve período de adaptação, o jovem era imediatamente integrado às frentes de trabalho, que naquele momento inicial era essencialmente agrícola. A regeneração pelo combate ao ócio e a pedagogia do trabalho eram moedas correntes no cotidiano do instituto. Tentava-se a todo custo incutir naquelas mentes, hábitos de produção e 1 2 FONSECA, Op. cit. 2007, p.93 FAUSTO, Op. cit. 1980, p. 80 [114] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 convívio aceitáveis pela sociedade que os rejeitava. Por meio de contínuas seções de exercícios físicos, tentava-se doutrinar os jovens para uma vida mais regrada e condizente com os anseios de uma cidade pautada pela lógica da produção. (...) Além do trabalho agrícola, para complementar as atividades físicas, os jovens recebiam aulas de “ginástica moderna”, além de instrução militar completa, com manejo de armas e exercícios de combate, “donde resulta uma vantagem individual para a pátria, pelo magnífico núcleo que se vai formando de excelentes soldados para a defesa nacional”. Além disso, os internos recebiam aulas complementares de educação cívica, na intenção de reprimir o “desamor” que muitas vezes expressavam pela pátria. 1 Pela descrição acima de Marco Antônio Cabral dos Santos, as crianças delinqüentes ao darei entrada no Instituto Disciplinar, passavam por uma triagem e inspeção detalhada através do interrogatório e do exame antropométrico. Possivelmente, a primeira impressão que o instituto causava nelas não deveria ser das mais agradáveis. “O orfanato e a prisão para crianças e jovens são imagens que aterrorizam está fora delas e apavoram quem está dentro.”2 Esses procedimentos estão estabelecidos pelo Regimento interno da instituição: Artigo 13. - Por occasião de ser admittido cada menor ao Instituto, lavrar-se-ão os assentamentos respectivos, no livro da matricula geral, e proceder se á ao interrogatorio, que ficará sob a guarda do director do estabelecimento, 1 2 SANTOS, Op. cit. 2007, p. 224 – 225. PASSETTI, Op. cit. 1999, p.356 [115] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 mantendo-se a respeito inteiro sigillo. Terá logar, em seguida, a visita medica, finda a qual vestirá o menor o uniforme do Instituto, sendo depois photographado, e conservando-se-lhe, em reserva, o retrato, para ulterior verificação de identidade. Artigo 14. - Divididos os menores em classes, segundo o disposto no artigo 10, caberá aos mais distinctos de cada turma, conforme a designação do director, o encargo de vigiar a conducta de seus companheiros, de admoestal-os, de transmittir-lhes as ordens ou instrucções da auctoridade superior, e de levar ao conhecimento desta as faltas commettidas, para a necessaria repressão.1 Os internos eram submetidos à imposição de disciplina e postura regulamentada, ou seja, a sua liberdade de ação era determina pela regras impostas. Nas teorias de Foucault as relações do poder se davam pela sanção e imposição de comportamentos, ele formula que o domínio sobre os internos se dava principalmente sobre seus corpos. “Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as "disciplinas".2 Para Foucault, diferentemente do suplicio medieval, a disciplina era imposta de forma mais sutil e complexa: Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de 1 2 SÃO PAULO: Decreto-Lei Estadual n. 1079 de 30 de Dezembro de 1902 FOUCAULT, Op. cit. 2004, p. 118 [116] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (...); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia; pode muito bem ser direta, física, usar a força contra a força, agir sobre elementos materiais sem no entanto ser violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e no entanto continuar a ser de ordem física. Quer dizer que poder haver um “saber” do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e esse controle constitui o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo. (...) Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças. 1 A política disciplinar priorizava o controle absoluto sobre as atitudes dos internados, onde o medo da punição e o castigo rondavam a mentalidade das crianças. “Ao escolher políticas de internação (...), o Estado escolhe educar pelo medo. (...), vigia comportamentos a partir de uma idealização das atitudes, (...) e estabelece rígidas rotinas de atividades, higiene, alimentação, vestuário, ofício, lazer e repouso.” 2 Na chegada, os internos sofrem o efeito do quadriculamento, ou seja, cada individuo sera separado dos demais de acordo com suas caracteristicas: idade, condição fisica, delito, etc. “Cada individuo no seu lugar; e em cada lugar, um individuo. Evitar as distribuições por grupos; 1 2 FOUCAULT, Op. cit.1984, p. 25 – 26. PASSETTI, Op. cit. 1999, p.356 [117] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças ou fugidias.”1 Essa separação sistemática dos corpos dos internos era regulamentada: Artigo 2.° - O Instituto Disciplinar constará de duas secções destinadas a incutir habitos de trabalho e a educar, fornecendo instrucção litteraria, profissional e industrial, de referencia agricola: a) a maiores de 9 annos e menores de 14, no caso do artigo 30, do Codigo Penal; b) a maiores de 14 e menores de 21 annos, condemnados por infracção do artigo 399 do Codigo Penal e artigo 2.º da lei federal n. 145, de 11 de Julho de 1893; c) a pequenos mendigos, vadios, viciosos, abandonados, maiores de 9 e menores de 14 annos. Artigo 3.º - Os menores serão distribuidos por classes e aproveitados nos trabalhos, conforme a sua edade, robustez physica e aptidão. 2 Além do quadriculamento, as crianças desde cedo tinha uma rígida rotina de disciplina militar, onde cada função elas ficavam perfiladas e em posição de sentido, igual nos quartéis. “Os recrutas são habituados a manter a cabeça ereta e alta; a se manter direito sem curvar as costas, a fazer avançar o ventre, a salientar o peito, e encolher o dorso; (...).” 3 Isso quebrava a resistência juvenil dos internos em relação à hierarquia e incutia neles o respeito pelas regras. Essa prática não acontecia apenas no Instituto Disciplinar, mas em outras instituições correcionais como na Escola de Aprendizes e Artífices (Figura 2). Na explicação de Carmem S. V. Moraes: 1 2 3 FOUCAULT, Op. cit. 2004, p. 123 SÃO PAULO: Lei-Estadual n. 844 de 10 de Outubro de 1902 FOUCAULT, op. cit. 2004, p. 117 [118] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Dentro e fora da casa os educandos obedeciam a um regime militar adaptado, com postos de graduação semelhantes aos existentes no exército, de forma a que o sistema de emulação provocasse neles o incentivo à “melhor conduta” e “maior adiantamento”, ambos premiados no final do ano, durante as festas de encerramento, na presença do Presidente da Província (...). A exemplo das práticas militares, (...), como bons soldados, os meninos trajavam uniforme militar; nos dias de parada, (...) ou festa nacional, compareciam em uniforme e com o maior asseio.1 MORAES, Carmem Sylvia Vidigal. A normatização da pobreza: crianças abandonadas e crianças infratoras. In: Revista Brasileira de Educação. n. 15, set/out/nov/dez p. 70 – 96. São Paulo, 2000, p.74 1 [119] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Figura 2 - Duzentos aprendizes em formatura na hora inicial dos trabalhos na Escola de Aprendizes e Artífices de São Paulo – 1914. Fonte: Revista A Vida Moderna n. 218 23 de Abril de 1914. Acervo: Arquivo Publico do Estado de São Paulo (AESP) Os exercícios físicos eram uma rotina no currículo das atividades no Instituto (Figura 3). “Artigo 22. - Nos domingos e dias feriados, os menores farão exercicios militares, de gymnastica, de cantos coraes, e darão licções de musica vocal e instrumental.” 1 Tudo para que os infantes se tornassem homens honestos era preciso incutir o soldado dentro dele. “(...) o soldado tornou-se algo que se fabrica; (...); corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, (...).” 2 A disciplina é explicada por Foucault: A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos "dóceis". A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma "aptidão", uma "capacidade" que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potencia que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita.3 1 2 3 SÃO PAULO: Decreto-Lei Estadual n. 1079 de 30 de Dezembro de 1902 FOUCAULT, Op. cit., 2004, p. 117 FOUCAULT, Op. cit. 2004p.118 [120] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Figura 3 - Internos do Instituto Disciplinar executando exercícios físicos sob a vigilância da Força Policial. Fonte: A regeneração pelo trabalho In: Revista A Cigarra n.2 30 de Março de 1914. Acervo: Arquivo Publico do Estado de São Paulo (AESP) A desobediência não era tolerada, entretanto pelo regulamento não se admitia o castigo físico, esse sistema que Foucault tão bem teorizou privilegiava mais vigiar do que punir. “O castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios. Deve, portanto ser essencialmente corretivo.”1 Normalmente os castigos aplicados afetavam muito mais o psicológico das crianças do que seu corpo. “Pela palavra punição, deve-se compreender tudo o que e capaz de fazer 1 Idem, p.149 [121] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 as crianças sentir a falta que cometeram, tudo o que e capaz de humilhá-las, de confundi-las: (...).”1 Segundo o regulamento sobre as punições: Artigo 27. - As unicas punições auctorizadas são as seguintes: a) A advertencia ou reprehensão, em particular ou em classe ; b) A privação do recreio ; c) Os maus pontos, que determinam a perda dos bons anteriormente conquistados ; d) O isolamento durante as refeições, em virtude do qual o alumno castigado come numa mesa à parte, e ás mesmas horas que os outros: e) A perda definitiva ou temporaria das insignias de distincção e dos empregos de confiança ; f) A cellula clara com trabalho; g) A cellula escura, mas sómente para as faltas de extrema gravidade.2 Em contrapartida, havia também uma política de benefícios e recompensas para os internos bem comportados e obedientes. Aliás, isso era vantajoso, pois eles serviam de vigilantes para fiscalizarem o comportamento dos mais rebeldes. “A disciplina recompensa unicamente pelo jogo das promoções que permitem hierarquias e lugares; pune rebaixando e degradando. O próprio sistema de classificação vale como recompensa ou punição.” 3 Segundo o Regulamento sobre as recompensas e benefícios: Artigo 26. - As recompensas auctorizadas são: 1 2 3 FOUCAULT, Op. cit. 2004, p. 148 SÃO PAULO: Decreto-Lei Estadual n. 1079 de 30 de Dezembro de 1902 FOUCAULT, Op. cit. 2004, p. 151, [122] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 a) A inscripção no quadro de honra ; b) Os lugares de honra na mesa; c) O supprimento de fructas; d) Os bons pontos; e) As insignias de distincção ; f) Os empregos de confiança; g) Os passeios especiaes; h) Os elogios em particular ou em público; i) Os premios de qualquer natureza ou em dinheiro; j) As cadernetas da Caixa Economica.1 A instrução ministrada aos internos do Instituto Disciplinar baseava-se principalmente na educação profissional voltadas para a indústria e nas atividades agrícolas, tanto que possuíam instalações industriais para esse aprendizado (Figura 4). “Além do internamento (...), o poder médico defendia o aprendizado de uma atividade profissionalizante, muito mais em função do aspecto moral — manter a criança ocupada, "incutir hábitos de trabalho", reprimir a vadiagem.”2 O desenvolvimento intelectual não era aplicado, pois os pobres devem ser adestrados na sua posição social na cadeia produtiva. “O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior "adestrar"; ou sem duvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor.”3 As matérias curriculares do Instituto Disciplinar limitavam-se ao ensino básico e primário: Artigo 24. - A instrucção, fornecida diariamente aos alumnos, (...), comprehenderá as seguintes materias: Leitura, principios de grammatica, escripta e calligraphia; calculo arithmetico sobre os numeros inteiros, fracções e 1 2 3 SÃO PAULO: Decreto-Lei Estadual n. 1079 de 30 de Dezembro de 1902 RAGO, Op. cit. 1987, p.122 FOUCAULT. Op. cit. 2004, p. 143 [123] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 systema metrico decimal; rudimentos de sciencias physicas, chimicas e naturaes, applicaveis á agricultura; moral pratica e educação civica; desenho a mão livre.1 Figura 4 - Aspecto da oficina industrial inaugurado num dos pavilhões do Instituto Disciplinar para o aprendizado dos internos. Fonte: A regeneração pelo trabalho In: Revista A Cigarra n.2 30 de Março de 1914. Acervo: Arquivo Publico do Estado de São Paulo (AESP) No cotidiano dos internos, suas atividades sempre envolviam algo referente ao trabalho, seu dia era ocupado nas mais variadas tarefas. Veja na descrição de Fonseca: 1 SÃO PAULO: Decreto-Lei Estadual n. 1079 de 30 de Dezembro de 1902 [124] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 As rotinas do Instituto foram montadas de tal maneira que os afazeres dos internos estiveram constantemente resultando no trabalho, sendo ainda aproveitados para gerar excedentes que provessem a casa de recursos e de mantimentos. A manutenção da casa também estava a cargo dos internos, sendo parte de suas obrigações, entre as tarefas que envolviam o trabalho. (...) A faxina dos dormitórios, a lavagem das roupas, as margens do rio Tiete, a capina do terreno do Instituto a arrumação da própria cama e o asseio com a cozinha, tudo envolvia a participação regulamentar dos internos. O trabalho corroborava, assim, para a disciplina geral da casa, pois servia a manutenção da ordem física das instalações, o que por sua vez espelhava a própria organização do Instituto.1 As atividades de educação voltadas para a profissionalização industrial faziam com que as regras de conduta da produção fossem incutidas na mentalidade dos internos. “Cada vez mais invisível e distante, a disciplina também é cada vez mais interiorizada. Pela educação (...) modelaram a consciência dos homens que se definem pelo seu lugar num processo de trabalho.”2 Para que essa aprendizagem fosse realmente eficaz, um fator era importante: a vigilância, feito pelos contramestres e alunos mais experiente (Figura 5). Para Foucault, o panoptismo, um fenômeno de vigilância extenso e continua introjeta na mentalidade dos internos o constrangimento de fazer atos ilícitos. “Apenas um olhar. Um olhar que vigia e que cada um, sentindo−o pesar sobre si, acabará por interiorizar, a ponto de observar a si mesmo; sendo assim, cada um exercerá esta vigilância sobre e contra si mesmo.”3 Assim a 1 2 3 FONSECA, Op. cit. 2007, p.136 PERROT, Op. cit. 1988, p. 80. FOUCAULT, Op. cit. 1984, p, 130 [125] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 disciplina era método de adestramento que necessita da vigilância. “A disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos. (...). É preciso vigiá-los durante todo o tempo (...) e submetê-los a uma perpétua pirâmide de olhares.”1 Segundo Foucault: E o problema das grandes oficinas e das fabricas, onde se organiza um novo tipo de vigilância. (...); tratasse agora de um controle intenso, continuo; corre ao longo de todo o processo de trabalho; (...) sobre a produção (...), mas leva em conta a atividade dos homens, seu conhecimento técnico, a maneira de fazê-lo, sua rapidez, seu zelo, seu comportamento. (...). A medida que o aparelho de produção se torna mais importante e mais complexo, a medida que aumentam o numero de operários e a divisão do trabalho, as tarefas de controle se fazem mais necessárias e mais difíceis. Vigiar torna-se então uma função definida, mas deve fazer parte integrante do processo de produção; deve duplicá-lo em todo o seu comprimento.2 1 2 Idem, p. 106 FOUCAULT Op. cit. 2004, p.146 [126] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Figura 5 - Alunos em aula pratica de marcenaria na Escola Profissional Masculina. Fonte: Revista A Cigarra n.15 31 de Dezembro de 1914. Acervo: Arquivo Publico do Estado de São Paulo (AESP) Mas somente a vigilância constante não bastava, era também fundamental o senso de organização do próprio comportamento do interno, ou seja, domesticar os corpos das crianças para melhor executarem as tarefas. “O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, os chamados "corpos dóceis".1 As falhas na execução são punidas em conformidade com as faltas cometidas. Michel Foucault explica essa regulamentação do comportamento e as punições dos internos: 1 FOUCAULT, Op. cit. 2004, p. 119 [127] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Na oficina, na escola, no exercito funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligencia, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes "incorretas", gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo e utilizada, a titulo de punição, toda uma serie de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levando ao extremo, que tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada individuo se encontre preso numa universalidade punivelpunidora.1 As atividades educacionais não se limitavam a área industrial, o trabalho na lavoura e plantações dentro do perímetro do Instituto também era de extrema importância na formação dos internos (Figura 6). Essas tarefas também eram supervisionadas por vigias e alunos mais experientes que auxiliavam na faina agrícola. 1 FOUCAULT, Op. cit. 2004, p. 148 [128] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Figura 6 - Fotografia de crianças internadas executando trabalhos agrícolas nas lavouras dos institutos correcionais. Fonte: O Estado de São Paulo, 15 de Julho de 1911, p.3 Acervo: Arquivo da Agencia Estado As crianças internadas, agora adolescentes, não trabalhavam em vão, ao final de seu período de internato eles recebem um pecúlio pela produção dentro do Instituto. “Artigo 59. - O producto do trabalho executado no Instituto será dividido em duas partes, uma das quaes constituirá renda do Estado, sendo a outra distribuída (...) entre os menores, como peculio, quando sahirem do estabelecimento.”1 Além disso, dependendo do seu comportamento e postura durante o período recebia uma premiação da diretoria. “Artigo 4.º Aos menores que se houverem recommendado pela sua conducta e 1 SÃO PAULO: Decreto-Lei Estadual n. 1079 de 30 de Dezembro de 1902 [129] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 aproveitamento, será concedido pelo director, ao sahirem do instituto, um certificado e um premio que não excederá de cem mil réis.”1 É difícil dizer quais seriam os destinos desses jovens após o período de internamento, muitos possivelmente caíram novamente na criminalidade, outros conseguiram levar suas vidas pelo caminho da honestidade. Para finalizar, Foucault critica a função social das instituições correcionais, para o filosofo francês esses institutos assim como os presídios, os manicômios, etc. apenas acabam reproduzindo os mesmos degenerados e desajustados que aprisionaram, realimentando um sistema socialmente vicioso. “Sem delinqüência não há policia. O que torna a presença policial, o controle policial tolerável pela população se não o medo do delinqüente?”2 As instituições não reformam os detentos, mas os estigmatiza ainda mais. Na conclusão de Foucault: A prisão não pode deixar de fabricar delinqüentes. Fabricaos pelo tipo de existência que faz os detentos levarem: que fiquem isolados nas celas, ou que lhes seja imposto um trabalho inútil, para o qual não encontrarão utilidade, e de qualquer maneira não "pensar no homem em sociedade; e criar uma existência contra a natureza inútil e perigosa"; queremos que a prisão eduque os detentos, mas um sistema de educação que se dirige ao homem pode ter razoavelmente como objetivo agir contra o desejo da natureza? A prisão fabrica também delinqüentes impondo aos detentos limitações violentas; ela se destina a aplicar as leis, e a ensinar o respeito por elas; ora, todo o seu funcionamento se desenrola no sentido do abuso de poder.3 1 2 3 SÃO PAULO: Lei-Estadual n. 844 de 10 de Outubro de 1902 FOUCAULT, Op. cit. 1984, p.221 FOUCAULT, Op. cit. 2004, p.222 [130] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Enfim, segundo Foucault, a delinquência se perpetua no tempo porque se realimenta do próprio sistema correcional e penitenciário, ou seja, não soluciona a questão social, mas apenas reaparelha e moderniza um sistema vicioso que somente tende a aumentava os índices de delinquência e criminalidade. LEGISLAÇÃO BRASIL. Decreto – Lei Federal n. 847 de 11 de Outubro de 1890 SÃO PAULO: Lei-Estadual n. 844 de 10 de Outubro de 1902 SÃO PAULO: Decreto-Lei Estadual n. 1079 de 30 de Dezembro de 1902 REFERENCIA HEMEROGRAFICA: Revista A Cigarra n. 2 30 de Março de 1914 Revista A Cigarra n. 15 31 de Dezembro de 1914 Revista A Vida Moderna n. 218 23 de Abril de 1914 Jornal O Estado de São Paulo 15 de Julho de 1911 REFERENCIA BIBLIOGRAFICA ADORNO, Sérgio. A experiência precoce da punição. In: MARTINS, José de S. O massacre dos inocentes: a criança sem infância no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1991. FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo: 1880 1924. São Paulo: Brasiliense, 1984. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1984. Sec. XX _________________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 29ª Edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2004. Sec. XX [131] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 FONSECA, Sérgio César da. Infância e disciplina: O Instituto Disciplinar do Tatuapé em São Paulo (1890 - 1927). Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2007. MARCILIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1ª Edição, 1998. Sec. XIX MORAES, Carmem Sylvia Vidigal. A normatização da pobreza: crianças abandonadas e crianças infratoras. In: Revista Brasileira de Educação. n. 15, set/out/nov/dez p. 70 – 96. São Paulo, 2000 PASSETTI, Edson. Crianças carentes e políticas públicas. In. PRIORE, Mary Del (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução de Denise Bottman. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988 (Coleção Oficina da História). RAGO, Margareth. A preservação da infância. In: Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Brasil. (1890 – 1930). 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Antes, iniciarei historiando, de forma bastante resumida, o uso historiográfico que os pesquisadores têm feito com os processos crimes. Depois desse pequeno breviário, indico algumas considerações metodológicas que pude realizar trabalhando com tais fontes no âmbito da Gerência de Documentos Escritos da Superintendência de Arquivo Público. Palavras chaves: Processos crimes, verdade, metodologia Devo esclarecer que o texto foi elaborado a partir da experiência de trabalho profissional de leitura, classificação e organização do acervo proveniente do Fundo do Poder Judiciário, Grupo Cartório do 6º Ofício, no âmbito da Gerência de Documentos Escritos da Superintendência de Arquivo Público de Mato Grosso e foi preparado, primeiramente, para exposição oral. Mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Historiador do Arquivo Público de Mato Grosso, com ingresso através de concurso público. O autor agradece aos colegas de trabalho pelas sugestões e críticas, mas reserva o direito de assumir total responsabilidade pelos erros e falhas. Endereço eletrônico: [email protected] [133] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Abstract This article aims to defend nothing original in historical research that uses criminal documents as source. It not only defends, but also introduces research procedures and considerations about methodological points that are important source that seduces researchers every day. Before, I started doing a concise history from the historiographical use by researchers has done with criminal process. After this part, I indicate some methodological considerations I could work with that sources in the Management of Writing Documents of Mato Grosso Public Archive. Keyboards: Criminal process, truth, methodology *** INTRODUÇÃO Efeito Raschomon, para quem se perguntou o que vem a ser isso, acredito que seja importante eu iniciar explicando. E para isso é necessário recorrer a um filme e a um conto. O filme é Raschomon, de Akira Kurosawa. Raschomon é um filme clássico de Akira Kurosawa sobre o Japão, o mais conhecido do diretor no ocidente, e o termo Efeito Raschomon traduz o fato de que os participantes de um evento são muito capazes de dar testemunhos contraditórios sobre o que aconteceu. Mas na verdade, o filme é uma adaptação de conto do escritor, também japonês, Ryûnosuke AKUTAGAWA (2008). Kurosawa adapta o conto intitulado “Dentro do Bosque”, mas ambienta toda trama baseado em outro conto, chamado justamente “Raschomon”. Assim, o primeiro conto oferece a trama e o segundo a ambientação e o título. Nesse momento, o que nos interessa é o conto Dentro do bosque, porque é ele quem oferece a [134] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 oportunidade de pensar a prática historiográfica do trabalho com as fontes judiciais. Dentro do Bosque, escrito em 1922, trata-se de um conto onde a pluralidade de vozes, seis no total, confunde o leitor para saber a verdade do que aconteceu. Um homem é encontrado morto dentro do bosque e as testemunhas relatam fatos que se contradizem totalmente. Há um suspeito que confessa o crime; há a mulher da vítima que também diz sua versão e, inusitadamente, há a versão do próprio morto, por meio de uma médium. O detalhe é que cada uma dessas três versões da morte são incompatíveis. O assassino diz que matou com uma espada, após uma horrível luta onde ele apenas conseguiu matá-lo no 23º golpe; a mulher diz que quem matou o marido foi ela mesma, após ser violentada pelo ladrão. Não suportando a vergonha, ambos decidem morrer. Ela então o mata, mas quando chega a sua vez de suicidar, acaba desfalecendo; já na versão da vítima, ou seja, o próprio morto (transmitida por uma médium), o que houve foi um suicídio. Ele foi vítima de uma armadilha do ladrão, que o amarrou e violentou sua esposa. No entanto, a esposa desejou acompanhar o seu agressor e ainda pediu para que matasse o marido. O ladrão não o fez. E ele então, diante de tão intensa calamidade, consegue sair das cordas em que estava amarrado e apanhando um punhal de sua própria esposa, crava-o no peito. Vamos parar por aqui, só lembrando que o conto termina sem que tenhamos qualquer esclarecimento sobre o fato do assassinato, do suicídio ou do próprio estupro (na verdade, o estupro parece ser, à primeira vista, o único evento em que as três personagens concordam). O Efeito Raschomon é, então, o efeito que se deriva quando testemunhos de um mesmo acontecimento podem oferecer relatos ou descrições substancialmente distintos, mas, todavia, igualmente plausíveis. E é justamente esse efeito que, à primeira vista, pode causar ao compulsar uma documentação judiciária e/ou policial. Afinal, como saber de fato o que ocorreu, quando há várias versões para o mesmo acontecimento, negações, confissões, denúncias de torturas etc.? Como os eventos são contados a partir [135] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 de quatro diferentes versões, diferentes pontos de vista, o leitor/espectador fica se perguntando qual das versões está correta, ou se pode confiar em apenas uma delas. Porque não são meras versões de pessoas que apenas presenciaram o fato, não são testemunhas “por ouvir dizer”, mas são personagens envolvidas diretamente no evento; e mais, as versões não só são diferentes, como totalmente incompatíveis e, no entanto, todas são igualmente plausíveis. E um complicador é que dos três personagens (Esposa, Bandido e Samurai morto) não tentam se inocentar, mas ao contrário, cada um busca se responsabilizar. Assim fica difícil, não é mesmo? Quando li o conto não pude deixar de fazer o paralelo com a documentação judiciária. Afinal, já estava trabalhando no Arquivo Público e passava por minhas mãos e olhos uma quantidade enorme de processos penais dos mais variados crimes. Em não poucas vezes o julgamento final ia em direção totalmente contrária “as provas dos autos” e os jurados acabavam inocentando o réu, porque o mesmo não fora autor do crime. Outras vezes as testemunhas diziam coisas tão diferentes entre si que era impossível saber quem está de fato falando a verdade ou estava falando a verdade sob sua perspectiva. Felizmente, no caso brasileiro ainda não temos a versão do próprio morto, pois aí sim complicaria de vez a coisa toda: afinal, se em vida todos mentem, por que razão o morto deveria dizer a verdade? Assim, o drama ficaria insolúvel e daí para o relativismo, ceticismo ou mesmo o niilismo é um passo quase automático. Diante desse novo horizonte que se abria, decidi me aprofundar no assunto e tentar esboçar algumas idéias sobre a prática de trabalhar com processos crimes. O presente texto tem o objetivo nada original de defender a pesquisa histórica tendo como fonte o processo crime1. Não só defender, como apresentar alguns procedimentos, algumas considerações metodológicas pontuais sobre a utilização dessa importante fonte documental que a cada dia Quero dizer que nessa ocasião estou privilegiando os processos crimes, no entanto, as fontes do judiciário são muito mais amplas, pois ainda comporta os Inventários e Testamentos e um número bastante variado de ações criminais e cíveis. 1 [136] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 mais seduz pesquisadores. Antes, iniciarei historiariando, de forma bastante resumida, o uso historiográfico que os pesquisadores têm feito com os processos crimes. Depois desse pequeno breviário, indico algumas considerações metodológicas que pude realizar trabalhando com tais fontes no âmbito da Gerência de Documentos Escritos da Superintendência de Arquivo Público. OS PROCESSOS CRIMES NA HISTORIOGRAFIA A intenção não é elaborar uma recensão bibliográfica exaustiva, ma simplesmente listar algumas obras que são marcos na historiografia. A primeira delas é Crime e cotidiano, de Boris FAUSTO (1984). Nesse estudo pioneiro, para apresentar uma visão geral da criminalidade em São Paulo no período de 1880 a 1924, o pesquisador elabora um profundo levantamento dos crimes, numa exaustiva quantificação estatística, cujo fim último, segundo o autor, seria “apreender regularidades que permitam perceber valores, representações e comportamentos sociais, através da transgressão da norma penal”, pois, ainda segundo Fausto, “se apreendida em nível mais profundo, a criminalidade expressa a um tempo uma relação individual e uma relação social indicativa de padrões de comportamento”. Ou seja, seguindo a linha inaugurada por Fausto, no estudo da criminalidade, podemos adentrar num nível mais profundo da sociedade e encontrar, investigando a documentação judicial, padrões de comportamento, de representações e valores sociais que, de outra forma, poderia ser ocultado mais facilmente ou relegado às margens. Outro estudo pioneiro foi o realizado por Maria Sylvia de Carvalho FRANCO (1997). Ao analisar as relações entre os homens livres na ordem escravocrata, a autora elabora uma poderosa janela para o século XIX que até então não era vista. Contrapondo-se aos estudos que sublinhavam excessivamente a integração e as solidariedades em detrimento do conflito, a autora infere, tendo como matéria prima principal os processos crimes, que havia uma mediação extremamente violenta entre os grupos comunitários, em [137] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 que a hostilidade e a tensão formavam o código do sertão, constituído por uma cultura da violência. E essa inferência, em minha opinião, não deve ser sustentada e abaixo eu explico. Acredito que um grande risco ao perscrutar a documentação judicial é sobrevalorizar um aspecto da vida em sociedade e, consequentemente, extrapolar o sentido do que se vê em tais corpora documentais. Como exemplo, no caso de Maria Sylvia de Carvalho Franco, uma das primeiras pesquisadoras a utilizar os processos crimes como fonte para perscrutar o cotidiano das camadas pobres da sociedade; em minha opinião, ela exacerba a violência contida nos processos criminais e acreditou descobrir uma cultura da violência na sociedade brasileira do Oitocentos. Não considero como sendo operacional a utilização do conceito cultura da violência1. Não só Carvalho Franco, mas até trabalhos mais atuais tem se utilizado desse conceito para mostrar que não vivíamos idilicamente como os saudosistas gostam de dizer. Ivan de Andrade VELASCO (2005), autor de um estupendo trabalho diz que “a cultura da violência marca a sociedade oitocentista” porque “A violência constituía um ethos, que atravessa as relações sociais”. No entanto, para consertar o que disse antes, não considero que havia somente uma cultura de violência, mas outras culturas igualmente importantes. Tudo bem, ao examinar rigorosamente a documentação judicial, e mesmo a policial do período que o autor está tratando veremos sim que a violência é “corriqueira de solução dos problemas, de enfrentamento de conflitos...”. No entanto, o próprio processo crime é rico em informações que vai além da violência. É claro que quando se lê que no dia 19 de março de 1876, Maria Josefa de Jesus desfere uma facada no baixo ventre de seu próprio pai, João Sobre cultura, Edward Palmer Thompson ressaltou que “na verdade o próprio termo cultura, com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro de um conjunto ”. Cf: 1 THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 17. [138] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Baptista de Oliveira e o mata1; ou quando lê que Fernando Costa Leite, após ter uma filha raptada, por Joaquim José do Espírito Santo sai a procura do raptor; após encontrá-lo, degola-o, além de castrá-lo e depois o mata. Por fim, joga o cadáver no Rio Cuiabá2, ou ainda que numa reza, na noite de 30 de agosto de 1930, por causa de uma pequena desinteligência entre a vítima (Benedito Soares do Espírito Santo), que empurrou um menino, e o acusado (Guilhermino Dias), pai do referido menino, que por causa desse empurrão vibrou-lhe uma forte facada que lhe ocasionou a morte3, a tentação de dizer “matava-se por qualquer coisa” e indicar que havia uma cultura de violência é grande. Mas, a documentação judicial e policial trata especificamente dessa ordem, dessa característica da sociedade e não podemos nos esquecer que a sociedade não é só isso, ou seja, não está toda na documentação judicial. Se nem mesmo a totalidade dos atos ilegais culmina necessariamente na instrução do processo (haja vista existirem outras instâncias intermediárias que podem servir, e servem, para evitar a manifestação do conflito, sem que seja preciso à intermediação do Terceiro4 [a justiça]), então devemos ter em mente também que a totalidade dos atos de solidariedade, de ajuda etc., não ficou registrada pelos procedimentos do aparelho repressor. Para usar um exemplo da própria Carvalho Franco, o mutirão. Quantos mutirões existiram onde nenhuma ordem foi quebrada, nenhum crime aconteceu? Parafraseando Ciro Flamarion Cardoso quando dizia alhures que “uma revolta que escapa à repressão escapa à história”, podemos dizer que um mutirão que escapou a repressão, escapou à história. Mas, aí uma pesquisadora (FRANCO, 1997) vai tratar “dos homens livres na ordem escravocrata” e nos diz que “a violência aparecia em toda parte, como elemento APMT. Cartório do 6º Ofício. Série: Penal; Subsérie: Homicídio. Caixa: 059. APMT. Cartório do 6º Ofício. Série: Penal; Subsérie: Homicídio. Caixa: 064. APMT. Cartório do 6º Ofício. Série: Penal; Subsérie: Homicídio. Caixa: 082. Sobre a instituição do terceiro, como caracterização da justiça, ver: RICOEUR, Paul. O justo 1: a justiça como regra moral e como instituição. (Tradução de: Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 1 2 3 4 [139] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 constitutivo” e que não cabe dizer que ela chegou a essa conclusão por causa da documentação, mas porque “foi a violência entranhada na realidade social que fez a documentação nela expressiva e válida”. Ora, é claro que cabe essa arguição. Não fosse a autora esquadrinhar essa documentação, é bem capaz que não chegaria a essa conclusão. Os mutirões onde ela se baseou permitiu a inferência de uma cultura da violência. Assim, os mutirões que a autora revela foram aqueles em que especificamente ocorreram alguma quebra da norma. Porém, e reconheço ser forçosa a repetição, a realidade social não está toda na documentação judicial, ela é muito mais complexa, pois comporta além dessa suposta cultura da violência, também a da ajuda mutua, das solidariedades, do afeto e da compreensão. E mesmo nos processos crimes pode-se perceber um “componente de ajuste social e mesmo de convivência social” (SOARES, 2009. p.112), para muito além da violência, ou da cultura da violência como argumentam os autores acima citados. Tendo a sociedade paulista da metade do século XIX, Denise Soares de MOURA (2005.) mostra que havia um código de conduta doméstico e que “O principio da amizade também orientava a solução de miúdas demandas cotidianas”; e ainda, mais à frente, a autora vai dizer que além da amizade, a confiança era outro principio recíproco e fundamenta; claro que autora não deixa menor dúvida de que esse código de conduta familiar e doméstico não apagava o teor tensamente hierárquico das relações sociais. Por isso, levo a sério o conselho de Frans de WAAL (2010, p. 18-9), quando diz para não acreditarmos seriamente em ninguém que afirme que só resta aos humanos viver lutando eternamente entre si, já que a natureza se baseia numa luta pela vida, só resta a nós, os humanos, viver dessa maneira. Muitos animais sobrevivem cooperando e compartilhando os recursos e não se aniquilando uns aos outros ou conservando tudo por si mesmos. Nesse mesmo sentido e bem anteriormente, Piotr KROPOTKIN (2009) em Ajuda mútua, publicado em 1902, mobilizou fortes argumentos para mostrar que a luta pela sobrevivência não é só feita de batalhas entre indivíduos, pois a cooperação é até mais frequente do que a própria luta. Ainda segundo o príncipe e anarquista russo, em lugar de animais atacando-se uns aos outros, [140] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 havia um principio muito mais forte: um princípio comunitário. Levando isso para o plano da história, se havia violência, havia também ajuda mútua, cooperação, solidariedades1. Outro estudo importante foi o realizado por Maria Helena MACHADO (1987). Utilizando de forma competente os processos criminais para analisar a vida dos escravos e suas formas de resistência. A autora nos lembra que esse tipo de documento (os processos crimes) possibilita ao pesquisador uma apreensão de aspectos da vida cotidiana, revelando um pouco do dia a dia dos indivíduos, suas relações, laços de amizades e de inimizades. Acredito que esses três trabalhos citados, mais aqueles produzidos por Sidney CHALHOUB (1986), para quem os processos crimes representam uma encruzilhada de muitas vozes e lutas, são marcos referencias para todo aquele que deseja se aventurar no tema da criminalidade e tomar os processos criminais como fontes para essa aventura. No entanto, ao lado desses, há outros que gostaria de citar, porque trazem importantes contribuições para se pensar a relação do historiador com suas fontes, no caso, a documentação judicial. Em “Um herege vai ao paraíso”, Plínio Gomes FREIRE (1997) lembra que a documentação judiciária teria um forte teor ideológico, existindo uma infinidade de mediações a separar o fato real da sua passagem para o papel; existiram filtros linguísticos, culturais, burocráticos entre tantos outros. As falas das personagens envolvidas são filtradas pela autoridade, por meio dos escrivães. O texto já estava pronto quando tive acesso ao trabalho de Maria Cristina Martinez Soto (ver bibliografia). À página 410, nota 533, a autora pondera que: “A ênfase na solidariedade resulta 1 insuficiente para explicar por que estas soluções estavam pontilhadas por regulares atos violentos. Por outro lado, a associação entre violência, mecanismos de sobrevivência e ajuda mútua e resistência explicam de forma deficiente algumas formas de violência, como a conjugal, e desconsidera os numerosos sinais de aceitação e a vontade de integração evidenciada por esses grupos através de seus gestos violentos”. Acredito, embora reconhecendo que é preciso me deter mais nesse aspecto, que a autora citada não faz mais do que corroborar minha tese de que as ‘culturas’ da violência, solidariedade, ajuda mútua, etc., estavam tão imbricadas que qualquer menção a uma delas, excluindo as demais, é desfavorável em qualquer circunstância. [141] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Outra historiadora que lança mão da documentação judiciária para estudar “As práticas da justiça no cotidiano da pobreza”, é Celeste ZENHA (1985), chegou a dizer que um processo criminal constitui uma historieta cuja verdade final se constitui numa verdadeira fábula, pois fruto das distintas versões apresentadas nos autos. Para a autora, apropriando-se de idéias originalmente exposta por Mariza Corrêa em “Morte em família”, o processo produz uma verdade final e essa verdade pode ser identificada como uma fábula. Porque a ação que serviu para a abertura do processo, está perdida para sempre: o que realmente ocorreu ficou perdido no tempo. Assim, o processo produz uma verdade responsável pela condenação ou não do réu. As práticas judiciárias produzem uma verdade dos autos e jamais a repetição do fato ocorrido no passado que ocasionou a agressão e/ou morte. No entanto, prossegue a autora, essa fábula não pode ser reconhecida como uma mentira. Ela deve conter os critérios mínimos para que seja verídica. Assim, as fábulas dos processos penais não são simples fantasias: são discursos tidos como verdadeiros pela comunidade local. A verdade, registrada no Libelo acusatório, é a que leva o réu ao julgamento. Se o juiz e os jurados entenderem que ela é verídica, que aquilo de fato ocorreu daquela maneira, o réu e condenado. Se ao contrário, a verdade não encontrar crentes o réu é absolvido. Ao analisar a escravidão e violência em Botucatu, num trabalho intitulado justamente Processo Crime: escravidão e violência em Botucatu, Cesar Mucio SILVA (2004) analisa uma quantidade expressiva desses processos conseguindo detectar que um grande número de escravos fugiam do comportamento dito normal para os cativos: detectou desleixo e pouca preocupação com regras e normas. Feita essa pequena e, reconheço, insuficiente história das pesquisas com processos judiciais na historiografia brasileira, passo a expor de forma também breve alguns usos que essa documentação ensejou nessa mesma historiografia [142] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 OS PROCESSOS COMO FONTE Pelo que vimos acima, pode-se perceber que os processos crimes já se fazem presentes na produção intelectual brasileira há algum tempo. Porém, é necessário ter em mente que são documentos produzidos com determinados objetivos (mas quais não são?), sendo que para entendê-los é necessário conhecer quem os produziu, em que momento e atendendo a que normas. Nessa mesma direção, torna-se necessário abordar o processo crime com criticidade e vê-lo com ele de fato é: um processo que procura a elucidação da verdade. O Processo é uma fonte institucional, produzida pela justiça e carregada de manifestações de interesses distintos. Aceitando a sugestão de alguns autores (ROSEMBERG & SOUZA, 2009), podemos dizer que pesquisa com fontes judiciais e policiais, do aparelho repressor, para utilizar uma linguagem althusseriana, enquadra-se numa problemática mais geral sobre a possibilidade do conhecimento em geral e do conhecimento histórico em particular. Como Carlo GINZBURG (2002. P. 45) salientou, o conhecimento, mesmo o conhecimento histórico, é possível. Mas vamos transformar essa afirmativa em pergunta: para além do texto, o conhecimento de algo que se aproxima do real, o conhecimento histórico é possível? Como já indiquei, as primeiras leituras que fazemos dos processos crimes causam-nos um efeito parecido com o que o leitor do conto de Akutagawa pode ter: como descobrir a verdade, já que por vezes não se entra num consenso sobre o crime, nem sobre o criminoso, nem também pelas razões do crime. Assim, podemos nos perguntar: há possibilidade de construir algum conhecimento tendo por base uma documentação tão ambígua como os processos judiciais? Todavia, acredito que a documentação em questão não pode ser vista só dessa maneira, só pelo seu conteúdo ambíguo. O ceticismo epistemológico é interessante, mas apenas como método, não como finalidade. Se formos em busca da verdade do ocorrido, poderemos nos frustrar; mas se formos movidos [143] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 pelo ceticismo de que nada podemos concluir, a atividade torna-se sem sentido. Afinal, se for para o arquivo, realizar o árduo trabalho de manusear e ler a documentação, muitas vezes dificílimo de entender, e não tirar nenhuma afirmação, nenhuma conclusão (por mais tênue que seja) então é melhor nem ir. Só exercício acadêmico? Na verdade, acredito que o trabalho em arquivos, a busca pelas fontes, sejam elas quaisquer que sejam, revela que os pesquisadores não levam muito a sério o jargão pós-moderno que coloca a história como um discurso como o literário. Ora, se é certo que, como escreveu Mario Bunge (Apud: CARDOSO, 2006. p. 25-6), A execução de provas empíricas supõe a existência autônoma do mundo exterior ao sujeito que as executa. Sem este suposto não teria objeto buscar dados por meio de observações, medições ou experimentos: bastaria inventá-los ou, mesmo, ignorá-los. Em outras palavras, as operações empíricas supõem o realismo. Em particular, pressupõem que o objeto observado e o instrumento de observação tenham existência independente do sujeito cognoscente. Isto não veda que o experimentador planeje e estabeleça seus meios de observação, valha-se deles para modificar algumas das propriedades das coisas que observa, ou mesmo, fabrique algumas delas, como acontece quando produz novas partículas ou moléculas, novos materiais, ou até mesmo novos organismos. creio que o fato de buscarmos nos arquivos material para nossas demandas, já supõe uma filiação, mesmo que inconsciente, a alguma forma de racionalismo epistemológico. Procuramos provas, isso nos faz historiadores e não romancistas! Como o historiador italiano Adriano PROSPERI (2010. P. 26-7) escreveu recentemente, ao narrar a história de Lúcia Cremonini, que em dezembro de 1709 matou seu filho que acabara de nascer: a tentativa de [144] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 compreender está na origem mesma da historiografia como forma de conhecimento. Mesmo se as respostas dadas são sempre parciais. Marcadas por sucessos e insucessos. Mas a única coisa que resta é repetir mais uma vez a tentativa, demonstrando a falsidade de algumas e tentando construir outras explicações. Creio que há, ou pelo menos deve haver, uma alternativa entre o objetivismo absoluto e o relativismo e/ou ceticismo também absolutos. E essa alternativa é buscar nas fontes do judiciário aquilo que elas mostram quase sem querer. Um processo crime de homicídio, instaurado para solucionar um crime, revela muito mais do que podemos crer. Nesse sentido, há muitos trabalhos historiográficos que enfatizam as possibilidades de pesquisas com a documentação judicial. Para citar um importante exemplo, num texto bastante atual e interessante, Oswaldo MACHADO FILHO (2008. pp. 225-6), nos diz que os processos crimes podem nos fornecer a possibilidade de resgatar aspectos do cotidiano cuiabano, costumes e tradições, a ‘baixa intuição’ das pessoas do povo, como forma de conhecer o que se contrapõe ao conhecimento científico ou à ‘alta intuição’, tal como aponta Ginzburg. Ainda complementa que seu pressuposto é: o de que as falas dos juízes, advogados, promotores, peritos dos exames de corpo de delito, escrivães, testemunhas, réus e vítimas, ainda que em meio a um universo permeado pela intencionalidade da maioria desses relatores que instruem o processo, são reveladoras. Abrem novas possibilidades de leitura, fornecem sinais e pistas que cabem ao historiador (...) recompor, bem ao gosto de Paul Veyne, uma trama capaz de oferecer um quadro bastante surpreendente. [145] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Embora extensa, não poderia me furtar de citar essa passagem, pois a mim me parece que não poderia expressar de forma melhor as possibilidades que o trabalho com fontes criminais oferece ao historiador interessado em chaves de leituras alternativas ao “tal como aconteceu” ou ao seu oposto cético de que “não podemos saber o que de fato aconteceu”. Entre uma e outra, abrese a alternativa de, escusando-se do arrogante objetivo de saber o que de fato aconteceu, não caia no abismo cético e com isso percamos a característica intrínseca humana de tentar saber, ou pelo menos compreender o que pode ter acontecido. Na verdade, ao perscrutar a documentação proveniente dos fundos da justiça e/ou da polícia, não há como ficar indiferente. A leitura de um processo crime instaurado para investigar um crime de homicídio, por exemplo, nunca nos deixa indiferentes. As passagens onde são descritas quase que de forma realística os ferimentos, as causas que motivaram o crime, as falas dos envolvidos e tantas outras, não nos permite ficar impassível, mesmo sabendo que não podemos fazer nada além de nos indignar ao constatar a verdade de que a violência é algo recorrente como uma permanência histórica (RADÜNZ, 2007. P. 39), assim como outras manifestações humanas. Mesmo sabendo que temos que manter certa distância para poder melhor avaliar, é de suma dificuldade conseguir esse distanciamento1. Sobre essa questão, Arlette Farge nos alerta: “perigosa, porque esse jogo de espelhos bloqueia a imaginação, imobiliza a inteligência e a curiosidade, permanecendo confinado em caminhos escritos e sufocantes. Identificar-se é anestesiar o documento e a compreensão que se pode ter dele”. A autora aqui está falando da distancia que devemos ter em relação ao documento. 1 Distancia essa necessária para poder retirar do documento toda sua potencialidade. Acreditamos realmente que o conhecimento exige esse distanciamento. No entanto, acredito também que se pode relativizar esse postulado. Acredito que podemos sim ter uma relação bastante íntima, até intimista com o documento e mesmo assim saber guardar a diferença. Podemos nos identificar com o documento, ou com os sujeitos ali representados e mesmo assim não ‘operar’ o documento de forma inconseqüente e/ou reprovável. Nesse sentido, acredito que uma dose de empatia não faz mal ao bom andamento no trabalho do historiador. Sobretudo, quer dizer, mesmo com os documentos judiciais e policiais. Acredito que podemos ter acesso, mesmo que mitigado, às vidas das partes e, mesmo assim, guardar os devidos distanciamentos. [146] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 No entanto, devemos ponderar que se trata de uma documentação em que os personagens principais, acusados, vítimas, testemunhas não pediram para estarem ali, pelo contrário, foram coagidas a tal pela quebra de alguma norma e lei. Nesse sentido específico, Arlette FARGE (p. 13-4), contrapondo o arquivo ao texto impresso, cujo fim é ser dirigido necessariamente ao público, nos diz que: [O arquivo] Vestígio bruto de vidas que não pediam absolutamente para ser contadas dessa maneira, e que foram coagidas a isso porque um dia se confrontaram com as realidades da polícia e da repressão. Fossem vítimas, querelantes, suspeitos ou delinqüentes, nenhum deles se imaginava nessa situação de ter de explicar, de reclamar, justificar-se diante de uma polícia pouco afável. Suas palavras são consignadas uma vez ocorrido o fato, e ainda que, no momento, elas tenham uma estratégia, não obedecem à mesma operação intelectual do impresso. Revelam o que jamais teria sido exposto não fosse a ocorrência de um fato social perturbador. De certo modo, revelam um não dito. Mais uma vez recorrendo ao professor Osvaldo MACHADO FILHO (2006, p. 15), quando, num soberbo trabalho historiográfico sobre um crime e suas verdades jurídicas, diz que num processo crime, atuavam-se os operadores “em busca de uma verdade, [e que nessa busca] cenas do cotidiano iam se revelando, nem que fosse uma fração de tempo”. Cenas do cotidiano iam se revelando. São essas cenas do cotidiano se revelando que fazem com que os processos crimes sejam uma importante fonte para os historiadores. No entanto, o arquivo judicial não foi constituído para servir de matéria prima para o historiador. Não é essa a sua função primeira, e para [147] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 alguns nem sequer deveria ser guardado por tanto tempo1. Nesse sentido, a documentação proveniente do fundo judicial deve ser objeto de leitura atenta, embora saibamos que isso deve ser praxe para todas as fontes. Creio que não é necessário afirmar que é possível contar a história tal como aconteceu. A fórmula rankeana2 já não guarda mais as motivações dos historiadores. Porque a verdade tal como aconteceu é impossível de restituir nos mínimos detalhes. Um crime de homicídio, por exemplo, está definitivamente perdido. Mas, isso não quer dizer que devemos abdicar da pretensão de buscar uma aproximação real do evento. E por isso, é necessário ao historiador analisar os processos criminais de forma critica. É preciso estar atento aos elementos que se repetem de forma sistemática, mentiras e ou contradições que aparecem com frequência, versões que se reproduzem várias vezes. Ler nas entrelinhas para tentar captar os não-ditos, os silêncios e atos falhos. É necessário também um conhecimento, pelo menos parcial, das noções de direito, do campo jurídico como um todo. Estratégias de defesa perpetradas por advogados experientes também são bons indícios de como atuavam seus colegas no passado. Assim sendo, estamos convictos que análise de processos crime fornece informações importantes sobre o que se passa numa comunidade qualquer, como vivem, divertem, ganham a vida na sociedade do período Embora tenha mudado um pouco, mas no senso comum ainda continua a idéia de que o Arquivo é um lugar de guardar papéis velhos, sem importância efetiva. Na verdade, observamos isso até entre alguns funcionários, que dizem sempre que a “papelada velha” não serve para nada, exceto para dar trabalho e ocupar espaço que deveria ser utilizado para outro fim. Não dá mais para fazer referência a Leopold von Ranke sem mencionar que muito do que se sabe sobre o historiador alemão como verdade, trata-se apenas de um mito historiográfico, inventado pelos “revolucionários” criadores dos Annales. Ranke é, na verdade, muito citado (sobretudo sua fórmula), mas pouco ou quase nada lido efetivamente. Ver: CALDAS, Pedro Spínola Pereira. “O Espírito dos papéis mortos: Um pequeno estudo sobre o problema da verdade histórica em Leopold Von Ranke”. Emblemas. N 1, 2007. Disponível: Cf. também: MATA, Sérgio da. “Leopold von Ranke”. IN: MARTINS, Estevão de Rezende (org). História pensada: teoria e método na historiografia européia do século XIX. São Paulo: Contexto, 2010. Pp. 187-215. 1 2 [148] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 estudado. No entanto, sabemos que a linguagem é filtrada e que, inevitavelmente, os processos são apenas amostras de tudo isso. Pois a quantidade de crimes é bem maior do que os processados. Quando se trabalha com Processos crimes, seja um pesquisador visando um trabalho acadêmico ou um profissional realizando atividade para a qual é pago, há alguns detalhes dignos de menção. Uma delas é a quantidade enorme de sugestões para se realizar um trabalho historiográfico. De fato, a documentação judiciária permite várias opções para estudo e é uma fonte ainda com enormes possibilidades de pesquisas. É sabido que uma das maiores controvérsias da historiografia versa sobre a possibilidade de conhecimento objetivo através das fontes. Ora, segundo os céticos de variados escopos, é o historiador quem cria sentido, logo a verdade está para além da possibilidade de qualquer pesquisador. O que antes poderia ser um conselho bem vindo acabou gerando a total abstenção de tentar encontrar algo parecido com o real nas pesquisas históricas. A busca da verdade está sendo conhecida como “prática extravagante”1. No entanto, como já deixei claro um pouco antes, acredito que as alternativas não se resumem apenas entre um positivismo absoluto ou o ceticismo também absoluto. Creio que pode, deve haver uma solução, uma terceira via (embora o termo não me agrade, lembranças de Giddens) entre um e outro. E essa alternativa fui buscar, ou estou buscando em um autor que pouco ou quase nada sabemos: Sebastian Castellion. Só para exemplificar, ver essa passagem: “Se a linguagem é incerta, então o conhecimento que adquirimos através dela é igualmente indeterminado. Isso significa que não é possível construir narrativas verdadeiras como explanação histórica. Apesar do argumento posestruturalista de Derrida e Barthes (...), a maioria dos historiadores ainda insiste na prática excêntrica de ler textos (documentos e narrativas históricas) para localizar a verdade”. MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a história. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 47. Apud: AMED, Fernando. “Das possibilidades do conhecimento histórico quando aproximado do ceticismo radical”. História da historiografia, nº 4, março de 2010. Pp. 163-77. Disponível: http://www.ichs.ufop.br/rhh/index.php/revista (Acesso: 29/07/2011) 1 [149] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 No período da vida de Castellion1, com a Reforma Luterana, instalouse uma contenda filosófica sobre a veracidade e a capacidade de encontrar a verdade. Na famosa disputa entre Católicos e luteranos, Castellion, autor dos livros “Sobre os Heréticos” e “Sobre a arte de duvidar”, argumentou, contrapondo-se os defensores da tradição como autoridade, mas também aqueles que sugerem uma verdade subjetiva, optando por destacar que, o critério seria “a razão e os sentidos que, por serem limitados, não permitem o alcance de um conhecimento provido de certeza absoluta”. E aí ele vai propor o que mais me interessa no momento: Não sendo possível a certeza no conhecimento religioso, é possível discernir graus de probabilidade e de razoabilidade: o conhecimento é limitado em escopo e a certeza alcançável é só probabilística e razoável, até que, por meio de outras operações, decrete a falsidade da mesma2 É essa afirmativa que levo em consideração ao perscrutar as fontes criminais. Ora, é claro que não podemos obter o acesso ilimitado ao que de fato aconteceu. Mas isso não significa que podemos fantasiar/fabular e escrever o que quisermos sobre o que estamos tratando3. Existem graus de probabilidade O parágrafo está baseado em uma resenha do livro de Richard Popkin. Infelizmente ainda não consegui encontrar os livros de Castellion. Mas creio que para o objetivo presente, isso não compromete a argumentação. (Ver bibliografia) Isso remete a questão do falsacionismo de Karl Popper. Julio Aróstegui comenta: “Existem 1 2 aproximações científicas que terminam não em leis ou teorias, mas no descobrimento de tendências probabilísticas, de tipologias redundantes ou da necessidade de concorrência de elementos constantes e precisos para que se produzam certas conjunturas históricas. A isso se chega com o uso de generalizações empíricas, ainda que imperfeitas, e podem ser produzidas explicações que, se não são completas, são, certamente, refutáveis, falseáveis, na terminologia de Popper, o que é uma prova de sua cientificidade”. P. 79. Numa polêmica bastante acirrada, Elione Silva Guimarães e Francisco Carlos Limp Pinheiro fazem denúncias graves às professoras doutoras Cláudia Maria Ribeiro Viscardi e Mônica de Oliveira, autoras de capítulos do livro “Solidariedades e Conflitos: Histórias de vida e trajetórias de grupos em Juiz de Fora”, organizado por Célia Maria Borges. Os autores denunciam principalmente o uso inadequado das fontes, no caso, os processos crimes. Argumentam que a professora Cláudia Viscardi, não tendo a devida preocupação no trato com os processos crimes, trocou nomes, datas, entre outros detalhes e que, com isso, pela falta de seriedade, ao narrar fatos que não existiram, escreveu um romance em vez de História. É por isso que defendemos o uso 3 [150] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 e razoabilidade, conseguidos por meio de nossa empatia com o mundo e as pessoas, derivadas das próprias fontes. Graus de probabilidade e razoabilidade. Acredito que existe nos processos um grau de plausibilidade para além de toda ambiguidade; não podemos nos esquecer que o processo ou um lastro de possibilidade em que o pesquisador se escudaria. Isso porque é necessário dividir o processo criminal em dois momentos distintos e muitas vezes irreconciliáveis: a apreciação judiciária (realmente desvirtuada pelas representações sociais vigentes) e a construção das circunstâncias, em que a plausibilidade se sustenta. Como argumenta André ROSEMBERG (2007. P. 23) Muitas vezes, o desfecho do processo (sentença) e o andamento da “construção da verdade” não apresentam vínculos lógicos e é sob essa óptica que deve trabalhar o historiador na execução de seu ofício. Isso fica evidente quando, após a leitura de todo o processo, estamos quase convictos de que o réu é mesmo o autor do crime, ficamos convictos que o mesmo irá ser condenado ao grau máximo que a lei ordena; mas aí, eis que na sessão do júri em que ele é julgado, os jurados respondem “não” ao quesito sobre a autoria do crime e o réu, que até então tínhamos como certo ser o autor, acaba se livrando, julgado inocente e das fontes sob regras, o que nos situa no campo da historiografia e não da literatura. Ver toda a polêmica, com as críticas, réplicas tréplicas em: http://historia_demografica.tripod.com/bhds/bhd22/1-critica.pdf http://historia_demografica.tripod.com/bhds/bhd22/2lista.pdfhttp://historia_demografica.tripod.com/bhds/bhd22/3-replica.pdf http://historia_demografica.tripod.com/bhds/bhd22/4-solidar.pdf http://historia_demografica.tripod.com/bhds/bhd22/5-final.pdf (Acesso a toda a polêmica: 29/07/2011). O que toda essa polêmica mostra de forma cabal é que não podemos inventar coisas que não aparece nos processos criminais. Mesmo tendo a tentação de tentar descobrir algo além do que está narrado e descrito, o espaço de invenção é bastante restrito, em se tratando de trabalho historiográfico, onde as regras da profissão devem sempre ser levadas a sério. Ou fazer como fez a pesquisadora Ana Foa (ver bibliografia), quando apanha alguns casos verídicos e extrapola a leitura e inventa um conjunto de oito histórias que, embora baseadas nos fatos que os processos narram, são construídas como romances. No entanto, a autora faz questão de esclarecer a fronteira entre história e romance. [151] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 absolvido de todo o processo, pois os jurados não o consideram com autor do crime. O PROCESSO CRIME: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS Ao compulsar e examinar a documentação judicial e/ou policial, alguns procedimentos a priori devem ser elaborados. E são sobre esses procedimentos que tentarei realizar algumas reflexões. Aqui, parte-se do pressuposto que o interessado já realizou todo o levantamento prévio sobre as fontes, ou seja, aquela etapa em que todos os manuais de pesquisa histórica nos manda: antes de realizar a pesquisa em si, é necessária uma definição prévia, uma busca incessante para saber onde encontrá-las e em que estado físico se encontram. Assim, reiterando, parte-se do principio de que essas reflexões são para quem já realizou essa etapa e só espera colocar as mãos à massa. Antes mesmo de aventurar-se numa pesquisa em arquivos com a documentação judicial (aliás, com qualquer documentação), a primeira coisa é lembrar que os processos não existem para que os historiadores e cientistas sociais façam pesquisa. Não foram feitos para servir ao historiador, mas sim para apurar, investigar alguma demanda. Os documentos judiciais não estão lá como que só esperando alguém vir desvendá-lo. Transformar um processo em fonte histórica é uma operação de escolha e seleção feita pelo historiador e que supõe seu tratamento teórico e metodológico no decorrer de toda pesquisa desde a definição do tema à redação do texto final. Depois, acredito ser necessária ter uma visão, pelo mesmo espacial, dos distintos diplomas legais que regeram a execução da justiça no Brasil. Saber que o Brasil possuiu diferentes códigos penais e diferentes códigos de processos penais. É fundamental essa questão para poder entender um processo. Para dar um exemplo, a tipologia criminal. O crime de Defloramento, tão afamado por estudos clássicos da historiografia brasileira, só teve essa nomenclatura no Código Penal da República de 1890. No anterior, o Código Criminal do [152] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Império, não existia a figura tipológica, mas sim (ver). Já no Código Penal de 1940, que é o vigente ainda nos dias de hoje, o mesmo fato, ou seja, deflorar mulher, torna-se a figura da Sedução. Assim, é necessária uma visão panorâmica dos distintos marcos legais, sobretudo os códigos de processos, para poder entender a dinâmica da sociedade em termos de criminalística. Estou de acordo com Carlos BACELLAR (2005. P. 44) quando diz que nós historiadores “deveria[mos] ter preocupações em conhecer o funcionamento da máquina administrativa para o período que se pretende pesquisar”. De fato, sem uma compreensão pelo menos mínima de como funcionava a máquina administrativa de outrora, o trabalho com as fontes se torna muito menos factível, embora também não deva ser empecilho para tal empreendimento. Outro item fundamental para quem deseja se aventurar no trabalho com fontes da justiça é saber que se trata de um tipo de documento onde a dialogia se faz presente nitidamente. Embora já falamos sobre isso, é fundamental saber que um processo, seja criminal ou civil, é um documento onde há muitas vozes se entrecruzando. Um processo criminal, basicamente é formado pelo seguinte estrutura: 1. Denúncia Embora seja a primeira folha de um processo crime, ela é uma peça elaborada após o término da fase policial, ou seja, a fase do Inquérito policial. A partir dos distintos procedimentos e indícios, e a partir do relatório do delegado, o Promotor pede a Pronúncia do indiciado. Ou, se ele não estiver satisfeito e os indícios não forem seguros, ele pode mandar baixar o Inquérito novamente para a polícia ou pedir o arquivamento, nesse caso, se ele estiver convicto da inocência do indiciado. 2. Auto de Corpo de Delito; Peça fundamental de todo o processado. É só por meio do corpo de delito, ou exame cadavérico, que se constata que houve o crime. Embora se trate de peça [153] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 fundamental, vê-se que somente no século XX é formado um corpo pericial especializado para a feitura de tais exames. (lembrar o relatório) 3. Auto de perguntas ao ofendido; Só válido, é claro, quando o crime não for de homicídio consumado. Aqui, a vítima dá a sua primeira versão do acontecido. A linguagem usualmente utilizada é de denúncia. 4. Auto de Qualificação e perguntas ao acusado Aqui, qualifica-se o acusado. As perguntas são padronizadas, dependendo do marco legal, isto é, o Código de Processo Penal ou Civil. Nesse momento, ainda no âmbito policial, normalmente os acusados prestam declarações mais extensas e pormenorizadas. Nesse momento ele ainda não se faz acompanhar por seus patronos, logo, a sua versão ainda pode ser vista como algo natural, embora mesmo aqui o grau de naturalidade possa ser inferido, mas nunca sabido verdadeiramente. Até porque, mesmo se há naturalidade na fala do acusado, o filtro do escrivão e o encaminhamento das questões por parte da autoridade policial. No Inquérito Policial não oferece ao suspeito a oportunidade do contraditório, a mesma que terá no âmbito judicial. Como diz Hélio Tornaghi (Apud: MARZAGÃO JÚNIOR. p. 50), “o caráter inquisitório significa que a autoridade policial enfeixa nas mãos todo o poder de direção”. 5. Inquirição de testemunhas As primeiras testemunhas são ouvidas para fundamentar o relatório do delegado. 6. Relatório do delegado; Peça que encerra a fase inquisitorial. É nele que o delegado expõe, de forma detalhada, todos os indícios e provas que levam ao acusado, fazendo-o autor do crime. Essa peça deve ser lida com bastante critério. Primeiro porque o delegado tem um prazo para o encerramento do Inquérito, logo, ele não pode ficar muito tempo para proceder outros atos. E mais, o delegado, como os inquisidores, deseja, geralmente, a incriminação do acusado, pois isso o faz competente. Ora, se ele prendeu o acusado e depois [154] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 7. Denúncia (Tudo que já falei, mais o fato de que é nesse momento que o acusado, a partir da denúncia se torna um denunciado. 8. Inquirição de testemunhas (Atentar para as diferenças entre testemunhas de acusação e testemunhas informantes. O que é uma testemunha informante? E mais: o Código de Processo exige, sempre, o número de testemunhas para cada caso. Atentar para esse fato. 9. Interrogatório Nesse momento, o denunciado, já devidamente orientado, presta declarações sucintas. Como diz Boris Fausto, o denunciado responde ao que é perguntado não para esclarecimento da verdade, mas para sua própria defesa. Assim, as versões, nessa fase, são quase padronizadas, a individualidade quase some de vez. Não há mais individuo, mas há O DENÚNCIADO, o sujeito que deve, necessariamente, construir sua imagem, de acordo com os preceitos legais. Imagem essa que ajudará na sua absolvição, a sua Impronúncia como autor do ato criminoso. Mais uma vez recorrendo a Boris Fausto, percebe-se nitidamente que o acusado, sua fala, vai se apagando, à medida que os feitos se aproximam do final. Agora ele só fala por meio do advogado, em momentos oportunos. 10. Pronúncia De posse de todo o processado, o juiz então irá decidir se o denunciado é ou não passível de julgamento. Se a culpa estiver provada, o magistrado pronunciará o denunciado, operando mais uma transformação: de denunciado, agora nosso cidadão será réu num processo e terá seu nome lançado no rol dos culpados. Enfim, nesse momento, para o judiciário já ficou provada a culpabilidade do acusado. Ele já é um criminoso. Mas, no nosso sistema judicial, os juízes não são os agentes da pena. Isso é feito pela sociedade, por meio do Tribunal de Júri. 11. Libelo; Como o réu foi pronunciado, agora cabe ao Promotor dizer por qual crime ele será julgado pela sociedade. No libelo, que também e uma peça quase padronizada, a autoridade da Promotoria diz que irá provar que “em determinada data houve um crime” e que o réu é o autor de tal crime. E pedirá, [155] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 de acordo com o diploma legal (Processo Penal), que os jurados o julguem culpado. 12. Interrogatório 13. Julgamento Pela experiência retirada da leitura de mais de mil processos, pude perceber que o julgamento na sessão do júri é o que de fato determina a sorte do réu. Nada, ou muito pouco vale todos os procedimentos anteriores. Nos processos lidos, percebe-se que o que é levado em conta nessas sessões são as argumentações da defesa e da acusação. Infelizmente, não há as transcrições dessas falas, mas infere-se que, dependendo do status do réu, da vítima ou das famílias, ele é julgado culpado ou inocentado. É nessa fase que o juiz elabora os quesitos pelos quais os jurados responderão e, consequentemente, decretará a sorte do infeliz. Os quesitos são elaborados tendo o libelo como fonte, pois o réu não será julgado pelo que não consta na tal peça (o Libelo). 14. Apelação 15. Novo Julgamento 16. Sentença Importante salientar que o Inquérito policial, existente na nossa realidade desde 1871, remetido ao juiz, mesmo se após esse envio for arquivado, a peça documental deixa de ser Inquérito e passa a terminologia de Processo Crime e/ou Sumário Crime. Um Inquérito só permanece assim se ele, por algum motivo não for enviado; se o delegado ou o responsável pela sua execução não conseguir por termo às diligências e, assim, não o terminar. Nesse caso, a peça ficará sob domínio da polícia e depois remetida às instancias arquivísticas. Em todas essas fases, é importante que tenha claramente o sentido de que trata de um processo de construção, da busca da verdade. O produto final dessa investigação, ou seja, o processo criminal só ganha essa forma quando os trabalhos são efetivamente terminados. E mesmo assim, caso o réu tenha sido condenado, ainda há os pedidos de livramento condicional, perdão de pena, [156] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 soltura. O que eu quero chamar a atenção é que não devemos tomar o processo como hoje e não levar em consideração que as personagens envolvidas não tiveram a mesma consciência que nós agora já temos, ao manuseá-los. Cada passo era dado sem o conhecimento dos resultados e tendo que seguir as regras que os diplomas legais (Códigos de Processos) determinavam. Nesse jogo1, em que cada uma das partes envolvidas jogava para ganhar, há a possibilidade de entrever aspectos da sociedade e, por que não, do crime que motivou a demanda. Assim, acredito que um passo importante ao ler um documento judicial é ater-se, primeiramente, ao que está dito de forma evidente. Embora levando também em consideração a ressalva que Jacob GORENDER (1991. P. 24) faz quando diz que “Não cabe tomar o processo judicial ao pé da letra...”. No entanto, por mais que tenhamos que ler nas entrelinhas, olhar por trás dos documentos para ver as tramas escondidas, observar os não-ditos e todos os procedimentos metodológicos exigidos, é imprescindível que, num primeiro momento, nos atenhamos no que de fato está escrito, pois isso diminui a possibilidade de trocar nomes, personagens, sentenças, procedimentos. Uma boa leitura e anotação do processo até sua última folha pode minimizar esses erros. Nada pior do que ler um trabalho historiográfico ou não e perceber que o autor ou autora troca os nomes: o que era réu virou testemunha e vice versa2. Ou diz que o réu foi condenado a tantos anos quando, na verdade, nem julgamento houve. Enfim, a leitura densa deve começar, primeiramente, pela parte mais visível do documento. É importante também buscar o cruzamento de fontes, quando for possível. Sobre a relação entre o direito e o jogo, Johan Huizinga escreve: “A possibilidade de haver um parentesco entre o direito e o jogo aparece claramente logo que compreendemos em que medida a atual prática do direito, isto é, o processo, é extremamente semelhante a uma competição, e isto sejam quais forem os fundamentos ideais que o direito possa ter”. Ver supra, nota 7. 1 2 [157] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 FINALIZANDO Retornemos ao conto de Akutagawa. Como disse acima, o conto termina sem que tenhamos qualquer certeza sobre os fatos assinalados. Ficamos com aquele gosto de falta de sentido, uma vez que não conseguimos detectar quem fala a verdade no conto: o marido morto, o bandido ou a esposa. Segundo alguns intérpretes da obra de Akutagawa, o conto pode ser descrito como uma metonímia de julgamentos de crimes de guerra ocorridos após a 1ª Guerra Mundial, em que os depoimentos dos acusados, analisados individualmente, pareciam indicar sempre a própria inocência. Assim, podemos inferir, aceitando a sugestão desses críticos, que Akutagawa não quis escrever um conto expondo a incapacidade humana de descobrir a verdade, ou pelo menos se aproximar dela, mas efetivar uma crítica bem circunstancial. Ou seja, não era um convite ao abandono da busca, ou da impossibilidade da verdade, mas uma denúncia. BIBLIOGRAFIA AKUTAGAWA, Ryônosuke. Rashômon e outros contos. (Tradução de Madalena Hashimoto Cordaro e Junko Ota). São Paulo: Hedra, 2008. ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. (Tradução de Andréa Dore). Bauru, SP: Edusc, 2006. BACELLAR, Carlos. “Fontes documentais: uso e mau uso dos arquivos” IN: PINSKY, Carla Bassanezi. (org.) Fontes Históricas. 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During the week of emancipation, the newspaper “Diario de Sorocaba” invites the slaveholders to discuss future changes about work. Concern about truancy attributed to the slaves spills through the pages, while slaveholders grants “limited freedom”. Keywords Slaves emancipation, Brazil Empire, slavery in Sorocaba. Graduada em História pelo Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio de Itu. Trabalho de conclusão de curso orientado por Fábio Casemiro. Professora autônoma de História em Sorocaba. Correspondência: Rua Antídio de Oliveira Santos, 321 CEP: 18103-155 Sorocaba – SP. E-mail: [email protected] 1 [163] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 INTRODUÇÃO "(...) a ignorância do passado não se limita a prejudicar a compreensão do presente; compromete, no presente, a própria ação". Marc Bloch Perguntei-me o que poderia ter acontecido aos escravos em Sorocaba após a emancipação. Inicialmente, percebia que compreender tal processo era buscar por eventos muito específicos numa realidade feita no plural. Decidi utilizar algumas edições do Diário de Sorocaba considerando que, “A imprensa constitui um instrumento de manipulação de interesses e intervenção na vida social”1. Utilizar os jornais não é fazer uma pesquisa sem rigor, tampouco é preciso verificar verdadeiro ou falso como a produção histórica tradicional pedia. Segundo Capelato, "todos os documentos são ao mesmo tempo, falsos e verdadeiros”2. A tarefa é chegar à construção do significado aparente, analisar as condições de produção da fonte. Através das edições do Diário de Sorocaba3 pretendo analisar como o jornal vê o negro, escravo e liberto às vésperas do fim da escravidão. Durante a pesquisa a novidade veio: Sorocaba havia emancipado seus escravos um ano antes de maio de 1888. Mas por quê? Carlos Cavalheiro4 conta que, "Às portas da abolição da escravatura, a cidade de Sorocaba já possuía algumas fábricas, uma das quais era têxtil de grande porte, uma estrada de ferro, capital obtido com o CAPELATO, Maria Helena Rolin. A imprensa na história do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1988. Ibid. Publicações de 20 a 24 de dezembro de 1887 e de 27 a 28 de dezembro de 1887. CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008. 1 2 3 4 [164] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 tropeirismo (tanto no mercado de animais como na prestação de serviços e no comércio em geral) e com a produção e comércio de algodão". Nesse contexto de firmamento capitalista os escravos eram mais custosos porque correspondiam a um capital que, segundo Prado Junior1, dura a vida de um indivíduo numa forma de “adiantamento em longo prazo” de seu trabalho, enquanto que o assalariado trabalha sem o adiantamento, portanto, o capitalismo dispensaria a escravidão. Segundo Cavalheiro2, a modernização capitalista se intensificou em Sorocaba a partir do cultivo do algodão, do surgimento de máquinas, do processo de urbanização, e também do surgimento de outras indústrias, usando o trabalho livre e assalariado. O cultivo também precisava do transporte por ferrovia, o que implicou numa rede de modernizações na cidade. Segundo Andrews3, anos depois da emancipação da colônia, o tráfico de escravos é proibido (1831), mas a lei é desobedecida. Somente em 1850 acontece o fim do tráfico no Brasil, e o comércio de escravos continua acontecendo internamente. Nesse momento, aumenta a pressão diplomática para abolir a escravidão. Iniciam-se as concessões de liberdade: os escravos passam ter a oportunidade de serem ouvidos em tribunais. Rebeliões, que anteriormente já ocorriam, continuam existindo. Diante de uma população escrava exigindo sua libertação, a elite se preocupa com revoltas e sobre um "futuro" após a abolição. Segundo Cavalheiro4, após a proibição do tráfico, Sorocaba começa a receber escravos de outros estados brasileiros. Quanto ao número, Straforini1 PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994. CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008. ANDREWS, George Reid. Escravidão e abolição, 1800-1890. In Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). São Paulo: EDUSC, 1998. CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008. 1 2 3 4 [165] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 comenta que o abastecimento de escravos era menor, pois a sociedade estava baseada na atividade tropeira e na pequena propriedade rural. O escravo negro em Sorocaba foi usado tanto no campo como na cidade. Havia escravos de ganho e artesãos. Na indústria, trabalharam na fábrica de ferro (Fábrica de Ferro de São João do Ipanema), na produção de chapéus e têxtil, como comenta Cavalheiro2. No processo para alterar as condições escravistas, havia defensores da causa como também os que eram inflexíveis. Porém, os escravos também tentaram mudar essas condições. Segundo Cavalheiro3, exigiam melhoria no trabalho, atraiam donos para conseguirem carta de alforria, acumulavam ganhos para comprar a liberdade, fugiam, organizavam levantes, quilombos, ou então, viam através da morte outra vida: contraiam doenças incuráveis ou cometiam suicídio. ÓCIO, VADIAGEM E DESORDENS Pretendo começar esta pesquisa analisando os artigos que tratam sobre as questões de ócio, vadiagem e desordens de negros, escravos e libertos. O comentário do Jornal dos Economistas (Rio de Janeiro) publicado na capa da edição de 20 de dezembro de 1887 em comemoração ao aniversário do Diário de Sorocaba diz que, “(...)É um dos jornaes da provincia que muito se sobresahe, pela parte activa que toma nas discussões dos problemas economicos e sociaes que pendem de solução em nosso paiz". Esse é apenas um artigo para podermos começar a compreender a existência de articulações entre jornais de outras províncias: compartilhamento de questões políticas da época. STRAFORINI, Rafael. No caminho das tropas. Sorocaba: TCM, 2002. CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008. Ibid. 1 2 3 [166] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Ainda nessa edição, outro artigo traz uma citação do Jornal do Commercio (Porto Alegre) sobre “as maiores necessidades que nos opprime”: a questão dos escravos em meio às pressões de cessar a escravidão, enquanto se perguntavam o que fariam com seus criados e futuros libertos: Quando se trata de libertar os escravos que ainda existem para provincia, è necessário que tambem alguma cousa so faça no sentido de, garantindo o bem-estar social, obrigal-os, libertos, ao trabalho1. O mesmo artigo sugere a criação de colônias e estabelecimentos em que libertos encontrem trabalho e "sejam a elle obrigados", é a ideia de que é incorreto libertar escravos sem providências que garantam trabalho aos libertos, pois se acreditava que eram inclinados ao ócio e desordem. Há uma queixa sobre a "criadagem" que afirma que antes os escravos não levantavam "clamores", mas agora com os libertos, "poucos elles servem", retiram-se ou deixam a família (acreditavam que se o escravo não fugia era porque tinha medo dos castigos). Um abolicionista teria mencionado que a necessidade os levaria ao trabalho, e que a província tampouco sofreria com a libertação. O artigo discorda, “(...) poderiamos oppôr innumeros factos passados n'esta capital, onde crescido numero de libertos preferem a ociosidade ao trabalho, tornandose assim elementos de desordens”2. Apesar dessa associação, o artigo concorda com a libertação, sendo o trabalho livre “o único admissivel". “(...) Acostumou-se a pensar que os escravos não estariam prontos para a vida em liberdade. Entretanto, parece ser o contrário: os proprietários é que não estavam preparados para viver sem eles”3. Era essa preocupação com a Diário de Sorocaba, 20 de dezembro de 1887. Diário de Sorocaba, 20 de dezembro de 1887. CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008. 1 2 3 [167] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 transição de trabalho que escorria dos artigos do Diário de Sorocaba às vésperas da emancipação. Contudo, não era somente através da obrigação ao trabalho que o jornal representava o escravo e negro naquele momento. No artigo Magistratura1, um juíz da comarca de Palma que “nunca julgou um só caso” é retratado como um suplente de cor preta que mal escreve o nome. Não coincidentemente, destacar a cor e a incapacidade era importante. Em outro, trechos do Diário de Notícias da Corte contam sobre mulher que abandonou parto por saber que a paciente era escrava. Dentre anúncios sobre presuntos, sabonetes, querosenes, sandalhas, lampeões elétricos, cigarros, alguém precisava de um quitandeiro “livre ou escravo”. Na edição de 21 de dezembro de 1887, o artigo “Não temos policia” opina sobre uma desordem ocorrida na Estação Sorocabana em que as pessoas estavam armadas, e segundo Aluísio de Almeida2, tentavam embarcar os escravos, mesmo contra a vontade de polícia: A' sahida dos trens da manhã e uma hora agglomeram-se grupos de mais de 300 pessoas armadas de cacetes, garruchas e navalhas que ameaçam à entrada da estação sorocabana, todos quantos presumiam que iam alli impedir o embarque de escravos e depois percorrem a cidade em gritaria infernal. A policia, ou por sentir-se fraca, ou por ciminoso pacto com os anarchistas, nem lá apareceu! Triste! Triste! Ainda na edição, um aviso sobre a Reunião Emancipadora, que acontecerá dia 25 de dezembro na Câmara Municipal, promete resolver a Diário de Sorocaba, 20 de dezembro de 1887. CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008. Apud ALMEIDA, Aluísio de. A feira de 1852: as feiras e os jornais da época. In Cruzeiro do Sul, 04 de janeiro de 1981, p.13. 1 2 [168] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 situação dos escravos e impedir a vadiagem “não se permittindo vagarem pelas ruas sem occupação honesta individuos de qualquer côr ou nacionalidade”1. Outro conflito, dessa vez entre duas mulheres, aparece na edição do dia 23 de dezembro. Na rua Santa Clara, uma “preta” teria atacado uma mulher com um cabo de vassoura: (...) a preta armada de uma cabo de vassoura convidou a dita mulher a fim de receber - aquelle genero de pagamento; a mulher, porem vendo a moeda, não quiz entrar. Após algumas trocas de palavras, sahiu a dita preta enfurecida, derrubou a mulher, que pelo que parece achava-se um pouco alcoolisada, montou-a sobre a mulher que então cahira de costas, e peguando-lhe na garganta pretendia estrangular (...)2 MANUMISSÕES Às vésperas de emancipação de escravos os artigos que anunciavam as alforrias de escravos são publicados em todas as edições sob o título de “Manumissões”. Francisco, Quirino, Vicente, Joanna e Paula são anunciados na edição do dia 21 de dezembro como libertos. Estão sob a condição de prestarem serviços por mais um ano. Sob as mesmas condições, David, José, Candido, Brasilio, Amadeu, Firmino, Armindo, Antonio, Ignez, Elisa, Gertrudes, Brasilia, Francisca "parda" e Francisca "preta". O artigo ainda menciona o coronel Francisco Ferreira Prestes concedendo a liberdade a todos os trinta escravos, inclusive aos já fugidos! 1 2 Diário de Sorocaba, 21 de dezembro de 1887. Diário de Sorocaba, 23 de dezembro de 1887. [169] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Mais declarações de manumissões são vistas em outras das edições analisadas. Alguns ainda estavam sob a condição de prestarem serviços, tendo escravos que receberam e não receberam suas cartas de alforria. O dia 23 de dezembro anunciava a escrava Benedicta, 25 anos, comprando sua liberdade por 100$000, e enquanto outros “libertos” estavam sob prestação de serviços, um proprietário concedia liberdade sem cláusula a sua escrava, Rita, 38 anos. As alforrias ocorriam em massa (entre 1885 e 1887), conta Cavalheiro1. As condicionais diziam que o escravo deveria servir por alguns anos, o que dava "segurança" ao seu proprietário, "isso porque se acreditava que os escravos não estavam preparados para a vida em liberdade dado suas más inclinações"2. Até a edição de 25 de dezembro, as manumissões acompanham um aviso aos proprietários de escravos na cidade. Os artigos anunciam e convidam à “Reunião Emancipadora” que acontecerá no Natal, “afim de resolver-se pacificamente a emancipação completa de escravos (...) sem desorganização do trabalho”3. Na edição do dia da Reunião, o aviso ainda enfatiza que os propósitos são “altamente humanitarios e civilisadores”. A partir dos artigos do Diário, percebemos que o público que o jornal se destinava fazia parte da classe proprietária da sociedade sorocabana, mas isso não quer dizer que não pudessem existir outros leitores. Contudo, os avisos eram exclusivos aos proprietários de escravos, e havia outros artigos de leitores e correspondentes que discutiam assuntos econômicos, estrangeiros, publicados, às vezes, misturando francês ou alemão ao português. Sem falar dos “Folhetins”, capítulos de romances que prezavam “bons costumes” e delineavam suas histórias à sociedade católica, como em “Como ella o amava”4, CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008. 1 2 3 4 Ibid. Diário de Sorocaba, 22 de dezembro de 1887. Diário de Sorocaba, 21 de dezembro de 1887. [170] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 uma narrativa sobre soldados, tiros, Igreja e boas moças que foram possuídas por demônios. O artigo “Educação do Povo”1 valoriza o estudante segundo "idéias adiantadas nos ramos que avançam para atingir a inteligência dos homens: noção do justo (direito), princípios corretos (política), prolongar a vida (medicina), riquezas do povo (artes)”. Já o Colégio do Santíssimo Coração de Jesus, pago e somente para mulheres, baseia-se na “educação intelectual" tanto para o lar como para a sociedade2. Esses artigos têm seu caráter liberal e elitista, pois fazem parte de uma realidade muito diferente dos escravos, libertos e trabalhadores pobres. Em exemplo de oposição à cultura religiosa popular, o artigo "Spiritismo"3 declarava que um homem teria saltado de um navio no Rio de Janeiro por conta de "perseguição dos espíritos", esse é colocado como vítima da "perigosa monomania spirita". Apesar do teor abolicionista, segundo Cavalheiro4, posição mais clara a partir de 1885 quando o Diário está contra abolição apressada e formas ilegais de tirar o escravo do cativeiro, o jornal ainda não cede espaço aos valores culturais dos negros ou libertos. SOROCABA REDIMIDA O artigo “Sorocaba Redimida” dizia às vésperas da emancipação de escravos que, (...) Os genuinos sorocabanos, os legitimos herdeiros de um nome glorioso, bem assim aquelles que vieram conviver Ibid. Diário de Sorocaba, 23 de dezembro de 1887. Diário de Sorocaba, 28 de dezembro de 1887. CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008. 1 2 3 4 [171] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 comnosco na vida do trabalho honesto, nunca basearam as suas fortunas no sólo regado com o alheio e sangrento suor1. Porém, Sorocaba já havia sido regada sobre o alheio e sangrento suor. Para Cavalheiro2, "(...) é comum a tradição oral afirmar que como em Sorocaba não havia grandes culturas agrícolas e, portanto, a economia estava calcada na prestação de serviços, no comércio e outras atividades (como artesanato, indústrias, criação de gado...) os escravos ou eram chamados 'de ganho' ou domésticos. Então, não eram maltratados, não sofriam preconceito, não eram discriminados". Construída por escravos, Sorocaba só estaria “redimida” a partir da emancipação para o trabalho livre e assalariado. Em 27 de dezembro de 1887, o artigo “Sorocaba Redimida” vem celebrar a libertação: Calorosos bravos se ouviram de todos os angulos do salão, e serenada a commoção electrica que produziram as palavras eloquentissimas do illustre representante d'este districto, muitos fazendeiros concederam liberdade incondicional a seus escravos e outros reduziram a um anno o praso de liberdade anteriormentes concedidas. Segundo o artigo, essa decisão refletia a união entre senhores e escravos. O texto glorificava a história sorocabana e o presidente da Assembleia, Ferreira Braga, que discursou durante a Reunião. O mesmo artigo afirmava que Diário de Sorocaba, 24 de dezembro de 1887. CAVALHEIRO, Carlos C. A escravidão negra em Sorocaba. In Biblioteca Sorocabana História. v.1. Sorocaba: Crearte, 2005. 1 2 [172] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 foram declaradas 460 cartas de liberdade que seriam entregues aos escravos no dia 1 de janeiro. Quanto aos festejos de libertação de escravos, Capelato1 conta que, “(...) os interesses que efetivamente nortearam o projeto abolicionista não aparecem: as antigas e constantes pressões da Inglaterra, as exigências dos setores mais dinâmicos da economia (cafeicultores paulistas, em especial) aos quais convinham novas relações de trabalho - estes e outros fatores que explicam o movimento abolicionista não são mencionados nas páginas dos jornais”. Portanto, a “redenção” de Sorocaba se relacionava com a festividade do Natal de 1887, e o acontecimento só foi possível graças aos libertadores de escravos, o que legitimava os feitos dos abolicionistas e ex-proprietários de escravos, desconsiderando, mesmo que implicitamente, a participação dos próprios escravos nesse processo. No artigo “Festa de Natal”, a comemoração e a missa "Concorreu sem duvida para isso o facto grandioso da Redempção da cidade"2. Ainda no artigo “Sorocaba Redimida”, a aposta ao trabalho do imigrante é citada como a "concessão illimitada para a introducção de immigrantes". Cavalheiro3 explica que ao mesmo tempo em que acontecem os debates abolicionistas, surgem projetos que facilitam a entrada de imigrantes. Segundo Fausto4, a opção pela mão-de-obra imigrante em regiões de economia dinâmica refletiu em desigualdade social negra, pois o término da escravidão não suprimiu o problema dos negros, pelo contrário, reforçou o preconceito. CAPELATO, Maria Helena Rolin. A imprensa na história do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1988. Diário de Sorocaba, 27 de dezembro de 1887. CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008. FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2008. 1 2 3 4 [173] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Azevedo diz sobre a transição de mão-de-obra que, “Até meados da década de 1880 temos como enfoque privilegiado a escravidão, o negro e sua rebeldia, o movimento abolicionista e as sucessivas tentativas imigrantistas, enfim, o chamado momento de transição para o estabelecimento do trabalho livre. A partir da data abolição, o tema da transição deixa subitamente de existir e o negro, como que num passe de mágica, sai de cena, sendo substituído pelo imigrante europeu. (...)”1. Entretanto, a imigração incentivada era, essencialmente, a imigração europeia. No artigo "A Loucura na China"2 afirma-se que os chineses não seriam tão bons quanto os europeus, pois não possuíam "febre de ambição ou especulação". Associada à libertação dos escravos, a imigração europeia era a promessa de trabalho numa Sorocaba livre, já que o negro estava marginalizado ao ócio. Quanto às manumissões em seguida, é anunciada a liberdade “sem condição alguma” ao escravo Delphino, e o Ministério da Agricultura passa a dispensar a coletoria de impostos dos senhores que libertarem seus escravos. Na próxima edição, dia 28 de dezembro de 1887, as manumissões anunciam um senhor reduzindo em um ano o prazo de serviços dos escravos, enquanto outro; retira a condição de prestação por mais cinco anos. Nessa edição, a última que analisei durante a pesquisa, também pude observar que o jornal passa a se preocupar em repudiar a ideia da venda de escravos, ou melhor, agora trata de "homens livres vendidos como escravos"3, AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX. São Paulo: Annablume, 2008. 1 2 3 Diário de Sorocaba, 28 de dezembro de 1887. Diário de Sorocaba, 28 de dezembro de 1887. [174] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 como anuncia o artigo de capa, uma crítica à província do Amazonas que já cantou seu "hymno da liberdade", mas que ainda vendia seus homens. CONCLUSÃO Considero esse trabalho com valor fundamental por contribuir na minha experiência com a imprensa como fonte de pesquisa histórica. Deixoume outro olhar em relação à cidade em que moro: o alicerce de Sorocaba parte, sem dúvida, de uma raiz negra e escrava. É muito comum que se apresente o tropeiro e o bandeirante como agente formador da região, omitindo, quase que sem querer, histórias de outros grupos. Contudo, valorizar a identidade afro-brasileira também é considerar que escravidão não é um elemento “do passado”. Se voltarmos há algumas gerações constatamos memórias na própria família ou amigos sobre a escravidão. Isso porque ela foi forte base para sociedade brasileira até o final do século XIX. Através da análise do Diário de Sorocaba observamos que às vésperas da própria emancipação, os conteúdos de alguns artigos propõem atenção às propensões de ócio e desordem do escravo e liberto para “educá-los ao trabalho”, concomitante ao incentivo à entrada de imigrantes. Entretanto, encerro a pesquisa sem me aprofundar nas relações entre o jornal e o abolicionismo sorocabano, como a influência da loja maçônica Perseverança III citada por Cavalheiro1. Acredito que dar continuidade a essa pesquisa permitiria o estudo sobre a emancipação meses antes de maio de 1888. Encerro o trabalho com a certeza de que muita coisa ficou à deriva, tanto nas páginas do jornal como em outras fontes não analisadas, como as cartas de alforria e inquéritos da época. CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008. 1 [175] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Perguntas surgem: Sorocaba teria integrado seus escravos a partir da preocupação com a desorganização de trabalho? Quais seriam as relações entre o Diário de Sorocaba e os abolicionistas? Quem representava e quais investidas tomaram os membros da Reunião Emancipadora1? Muitas hipóteses vêm à tona me levando a imaginar a conclusão como outro ponto de partida. Compreendo que os ideais civilizatórios da transição de século passam a deslegitimar a escravidão, enquanto que a incerteza sobre a mudança se apresentava, e esse temor vindo da elite reforçava a crença de que o negro era ocioso, dando legitimidade ao trabalho forçado e castigos. Se hoje presenciamos uma profunda desigualdade social é porque existem raízes históricas para tanto, mas sua transcendência só pode acontecer através do presente, por isso a importância da consciência junto à memória. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDREWS, George Reid. Escravidão e abolição, 1800-1890. In: Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). São Paulo: EDUSC, 1998. AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX. São Paulo: Annablume, 2008. CAPELATO, Maria Helena Rolin. A imprensa na história do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1988. CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. A escravidão negra em Sorocaba. In: Biblioteca Sorocabana – História, v.1, Sorocaba: Crearte, 2005. _________. Scenas da escravidão: breve ensaio sobre a escravidão negra em Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2008. FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2008. PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994. Nos artigos sob o título de “Reunião Emancipadora” são apresentados nomes como um abaixoassinado a favor da emancipação. Quais seriam as relações dessas pessoas no processo abolicionista sorocabano? 1 [176] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 STRAFORINI, Rafael. No caminho das tropas. Sorocaba: TCM, 2002. DOCUMENTOS Diário de Sorocaba. Periódico. 20 de dezembro de 1887. Gabinete de Leitura Sorocabano, Sorocaba, SP. Diário de Sorocaba. Periódico. 21 de dezembro de 1887. Gabinete de Leitura Sorocabano, Sorocaba, SP. Diário de Sorocaba. Periódico. 22 de dezembro de 1887. Gabinete de Leitura Sorocabano, Sorocaba, SP. Diário de Sorocaba. Periódico. 23 de dezembro de 1887. Gabinete de Leitura Sorocabano, Sorocaba, SP. Diário de Sorocaba. Periódico. 24 de dezembro de 1887. Gabinete de Leitura Sorocabano, Sorocaba, SP. Diário de Sorocaba. Periódico. 27 de dezembro de 1887. Gabinete de Leitura Sorocabano, Sorocaba, SP. Diário de Sorocaba. Periódico. 28 de dezembro de 1887. Gabinete de Leitura Sorocabano, Sorocaba, SP. [177] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 IMPRESSÕES DO ILÍCITO: REPRESENTAÇÕES DO CRIME NO JORNAL DE ITABUNA (1921-1923) Bruno Alessandro Gusmão Moreira1 Resumo Este trabalho analisou o entrelaçamento entre vida pública e privada influente na produção do periódico Jornal de Itabuna. Foram examinadas interpretações de crimes publicadas entre julho de 1921 e janeiro de 1923. Este trabalho articulou duas temáticas amplas: imprensa e crime. Entretanto seu foco de análise esteve mais direcionado para a primeira. As fontes de imprensa apresentam especificidades. A história a partir da imprensa deve levar em consideração a história da própria imprensa. Compreendemos a imprensa escrita, em específico os jornais, como meios de propagação de representações da sociedade. Representações estas resultantes de interpretações – realizadas a partir de um lugar social – de aspectos do contexto no qual a mesma imprensa está inserida. Os crimes interpretados e impressos no periódico Jornal de Itabuna forneceram indícios para analisar a articulação e funcionamento deste órgão de imprensa na sociedade itabunense no início da década de 1920. Palavras-chave: Crime. Imprensa. Itabuna. 1 Graduando em História - UESC [178] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Abstract This work investigates the interconnectedness of public and private life in the production of the influential Jornal de Itabuna. We examined published interpretations of crime between July 1921 and January 1923. This work articulated two broad themes: media and crime. However the focus of analysis was more directed to the first. The media have specific sources. The story from the media should take into consideration the history of the press itself. We understand the print media, specifically newspapers, as a means of spreading representations of society. Representations resulting from these interpretations made from a social - aspects of the context in which the same media is inserted. Crimes interpreted and printed in the Jornal de Itabuna provided evidence to analyze the joint operation of this body and of the press in society itabunense in the early 1920s. Keywords: Crime. Press. Itabuna. *** INTRODUÇÃO No início da década de 1920 existiam em Itabuna três órgãos de imprensa: Jornal de Itabuna, propriedade de Lafayette Borborema; A Época, propriedade de Gileno Amado e O Dia, propriedade de Antonio Tourinho. A documentação encontrada indica que os três jornais tinham periodicidade semanal e produção regular. Itabuna, no período abordado, possuía uma imprensa consolidada e estável. A pesquisa que resultou este trabalho se deu na análise do periódico Jornal de Itabuna. A única obra que versa sobre a história da imprensa itabunense foi produzida fora dos meios acadêmicos. Trata-se do livro De Tabocas a Itabuna: 100 anos de imprensa, de autoria do jornalista e memorialista itabunense [179] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Ramiro Aquino. Aquino (1999, p.52), ao se referir ao Jornal de Itabuna aponta que “talvez este tenha sido um dos mais equilibrados jornais itabunenses, numa época onde tomar partido de alguma facção política era praticamente obrigação dos veículos e jornalistas.” De fato o Jornal de Itabuna apresentava postura moderada se comparado a outros periódicos da mesma época. A título de exemplo, cabe lembrar que o proprietário do periódico “A Época”, Gileno Amado, era membro do partido político situacionista na cidade de Itabuna no início da década de 1920. O periódico A Época atuou enquanto instrumento político. Se comparado a outros periódicos, a exemplo do A Época, cujo posicionamento político é evidente, a tarefa de identificação da “parcialidade” do Jornal de Itabuna não se apresenta enquanto tarefa fácil. Para darmos conta deste objetivo analisamos dados aparentemente irrelevantes: representações de crimes. Notícias relacionadas à temática “crime” em geral não ocuparam lugar privilegiado na distribuição interna de conteúdo (diagramação) do periódico Jornal de Itabuna. Este fator, em um primeiro momento, pode levar o historiador a descartar o exame das matérias sobre tal temática por acreditar que estas sejam pouco pertinentes para se analisar a historicidade do periódico. O exame de tais notícias foi revelador dos meios pelos quais se davam as interpretações da sociedade levadas a cabo nas publicações do Jornal de Itabuna Seguindo sugestões de Cruz e Peixoto buscamos trazer à luz a história do órgão de imprensa com o qual estávamos trabalhando. Deste modo situamolo dentro do contexto em que atuou, a cidade de Itabuna na década de 1920. O JORNAL E A CIDADE O periódico Jornal de Itabuna começou a circular no ano de 1920. Seu proprietário, diretor e redator, entre outras ocupações, era Lafayette de Borborema. Nas obras de memorialistas locais Lafayette de Borborema é freqüentemente lembrado como o primeiro advogado de Itabuna: [180] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Pioneiro no setor da sua atividade, quando fez 50 anos de formatura, Itabuna prestou-lhe grandes homenagens; dentre as muitas que recebeu há uma também muito bonita e significativa, vinda de Salvador. Foi um pergaminho assinado por todos os Juízes que passaram pela Comarca de Itabuna, com os dizeres que bem retratam o advogado que ele foi... (BORBOREMA, 1984, p.30) Relação nominal dos PIONEIROS, de várias categorias, chegados aqui nos princípios de TABOCAS-ITABUNA. [...] Dr. Lafayette de Borborema – Décano dos advogados. (GONÇALVES, 1960, p.35) Certamente a advocacia foi a principal ocupação da vida de Lafayette de Borborema. Exerceu esta atividade antes, durante e depois de suas vivências e práticas como homem de imprensa. Todavia, para compreendermos seus valores e ações não podemos nos deter apenas em um recorte profissional de sua vida. Lafayette Borborema enquanto sujeito histórico esteve presente em espaços e grupos sociais diversos dentro da sociedade itabunense. Para compreendê-lo em sua complexidade partilhamos do método onomástico proposto pelo historiador Carlo Ginzburg. Este método consiste em utilizar o “nome próprio” como fio condutor da investigação de sujeitos históricos, reconstituindo o universo de forças diversas que os constituem. Para Ginzburg (1989, p.175) “as linhas que convergem para o nome e que dele partem, compondo uma espécie de teia de malha fina, dão ao observador a imagem gráfica do tecido social em que o indivíduo está inserido.” Inicialmente identificamos duas ocupações de Lafayette Borborema, a advocacia e a imprensa. Outra ocupação social foi identificada a partir da investigação dos esquemas de sustentação financeira do periódico. Lafayette de Borborema também era comerciante. [181] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 As leituras das obras dos memorialistas locais nos indicam que o periódico A Época foi usado como instrumento político de seu proprietário. Gileno Amado além de ser um político atuante pelo partido situacionista no período estudado, como presidente do conselho municipal, também era cacauicultor. Frente estes dois fatores não é difícil presumir o “conforto” financeiro de que gozava este periódico, visto que: Por ordem de importância, os principais produtos exportados pela Bahia eram: cacau, fumo, açúcar, café, couros curtidos e em salmoura (couro cru), peles, piaçava, pedras preciosas, cera de carnaúba, borracha e madeiras. [...] O cacau sempre esteve em primeiro lugar. [...] A existência de terras férteis no sul baiano, suas condições climáticas, mais a cobertura da floresta atlântica explicam o rápido desenvolvimento da lavoura cacaueira naquela zona. (TAVARES, 2001, p.362-363.) No entanto, diferente de Gileno Amado, Lafayette de Borborema esteve envolvido em atividades ligadas ao cultivo e comércio de cacau. O exame das publicações do Jornal de Itabuna revelou que seu esquema de sustentação financeira se assentava nas seguintes bases: Venda de exemplares avulsos do periódico. Venda de exemplares do periódico a partir de assinaturas. Venda de espaços no corpo da publicação para publicidade. Venda de materiais produzidos pela tipografia (faturas, circulares, cartões de visita, recibos, entre outros) do periódico para o comércio local. [182] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Apesar da maior parte da renda da cidade ser composta pelo comércio do cacau, é necessário não perder de vista a expressividade do comércio local em outras categorias. Carvalho, ao estudar a formação de Itabuna, afirma que: A localização do distrito de Tabocas contribuía para que as pessoas se fixassem no local, já que se situava na estrada Ilhéus – Conquista, funcionando como pouso de tropeiros que armavam feiras para venderem seus produtos. (CARVALHO, 2007, p.109) Itabuna, desde o início de sua formação se destacava enquanto entreposto comercial. De sua emancipação política, em 1906, até o período aqui estudado, início da década de 1920, Itabuna passa por transformações significativas. Estas, segundo Carvalho (2007), ocorrem, sobretudo, a partir da atuação dos latifundiários do cacau. A cidade gradativamente se transforma no sentido de possuir infra-estrutura que atenda aos interesses da elite cacauicultora. Neste sentido a cidade desenvolve um expressivo comércio Cabe lembrar também que Itabuna na época dispunha de serviços como telégrafo e ferrovia, que a ligava às cidades Ilhéus e Vitória da Conquista. O esquema de sustentação financeira do periódico Jornal de Itabuna permite compreender a, e se torna compreensível a partir da, dinâmica econômica da cidade no período. Em específico, pode-se entender a venda de espaços no corpo da publicação para publicidade e a venda de materiais diversos produzidos pela tipografia como demandas do expressivo comércio local. [183] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 DIAGRAMAÇÃO E HIERARQUIZAÇÃO DE CONTEÚDOS As publicações do Jornal de Itabuna eram compostas por quatro páginas, cada qual dotada de cinco colunas em que entrecortavam textos e imagens. O periódico não apresentava uma hierarquização rígida de conteúdos. A única regularidade observada ao se comparar as publicações foi a presença maciça e constante das publicidades nas terceira e, em especial, quarta páginas. As notícias das primeiras páginas, consideradas mais importantes dentro na organização do conteúdo da publicação, variavam muito de tema a cada publicação. Elas contemplam temas como: pleitos eleitorais, comércio, embates políticos e até mesmo crime. Esta variação foi esclarecida ao compreendermos o jornal enquanto gênero documental específico. O Jornal de Itabuna enquanto órgão de imprensa de produção semanal buscava, a cada publicação, dar conta de fatos e vivências ocorridos em um período de tempo relativamente curto. As publicações do Jornal de Itabuna foram práticas sociais delimitadas em uma temporalidade (semana), com exceção das publicações voltadas à construção de memórias. Levando em consideração a especificidade temporal do periódico é possível perceber uma coerência na alternância de temas das notícias de primeira página do Jornal de Itabuna. CRIME E IMPRENSA A temática “crime” não ocupava um lugar privilegiado na hierarquia de conteúdos deste periódico. Temas diversos se sobrepuseram à temática “crime” de acordo com as especificidades temporais do periódico. O espaço destinado ao tema “crime” raramente excedia metade de uma coluna e apresentava uma linguagem descritiva e moderada. O acontecimento de uma situação atípica no [184] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 período abordado nos permitiu ver “normas surdas” do funcionamento do periódico. Para compreender como se dava a produção de interpretações no Jornal de Itabuna, as sugestões do historiador inglês Edward Palmer Thompson foram de grande importância: A vida “pública” emerge de dentro das densas determinações da vida “doméstica”. [...] Geralmente, um modo de descobrir normas surdas é examinar um episódio ou uma situação αtípicos. Um motim ilumina as normas dos anos de tranqüilidade, e uma repentina quebra de deferência nos permite entender melhor os hábitos de consideração que foram quebrados. Isso pode valer tanto para a conduta pública e social quanto para atitudes mais íntimas e domésticas. (THOMPSON, 2001, p.235) No dia 9 de outubro no ano 1922 aconteceu o assassinato, no distrito urbano de Itabuna, do médico Oscar Augusto do Nascimento. A mando do fazendeiro e comerciante de cacau Francisco Briglia, Oscar Augusto do Nascimento, acusado de adultério com a mulher do referido mandante, foi alvejado e morto por um pistoleiro. A série de notícias acerca deste fato, que vão de outubro de 1922 a janeiro de 1923, pôs a temática “crime” em evidência nas publicações. Mesmo as notícias sobre a categoria criminal “homicídio”, ápice das relações de violência humanas, não ocupavam grande espaço nas publicações do Jornal de Itabuna até então. De onze notícias veiculadas no segundo semestre de 1922 sobre a categoria criminal “homicídio” oito eram interpretações do assassinato de Oscar Augusto do Nascimento. Seis ocuparam a primeira página com espaço e destaque. A atipicidade deste homicídio está no fato de que a vítima em questão fazia parte da rede de relações pessoais de Lafayette de Borborema. [185] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Como dito anteriormente, Lafayette de Borborema esteve presente em espaços e grupos sociais diversos na sociedade itabunense do início da década de 1920. Para compreendermos sua atuação a partir das práticas de imprensa foi necessário identificar traços de sua vida que transcendem sua posição de “homem de imprensa”. Passemos então à identificação das relações existentes entre Lafayette de Borborema e Oscar Augusto do Nascimento. A primeira relação identificada foi a de clientela. Como foi esclarecido anteriormente, uma das fontes de renda do Jornal de Itabuna era a venda de espaço no corpo da publicação para a propaganda. Oscar Augusto do Nascimento usou o Jornal de Itabuna para propagandear seus serviços clínicos. Uma segunda relação se deu nas práticas de imprensa propriamente ditas. O Jornal de Itabuna freqüentemente publicava colaboração de sujeitos exteriores ao periódico. Oscar Augusto do Nascimento chegou a escrever duas matérias para o jornal no ano de 1921. Outra proximidade entre os dois sujeitos se deu no Hospital Santa Cruz e na Santa Casa de Misericórdia. Na década de 1920, Lafayette de Borborema manteve proximidade com o segmento médico. Ocupou um dos cargos, voluntários, administrativos de provedor das referidas instituições. Nestas mesmas instituições trabalhou, até a sua morte, o médico Oscar Augusto do Nascimento. Os dois conviveram constantemente e mantiveram relações profissionais e pessoais em um mesmo espaço de trabalho. Em função desta proximidade entre a vítima e o jornalista as notícias sobre este homicídio o apresentaram um tom trágico e evocaram uma série de interpretações antes não realizadas nas notícias sobre a temática “crime”. As notícias sobre homicídios acontecidos em Itabuna, por exemplo, regularmente apresentavam descrições factuais breves e considerações moderadas. Foi uma affronta à sociedade, um desrespeito às nossas leis, um attentado a ordem publica o nefando crime commetido [186] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 em plena rua da cidade, aos olhos de todos, na segundafeira desta semana, 9 do corrente e do qual foi victima a pessoa do Dr. Oscar Augusto do Nascimento. [...] O barbaro e brutal assassinato perpetrado contra a vida do illustrado e sympathisado medico e levado a effeito em pleno dia , em uma das ruas de grande movimento, foi uma scena que a todos revoltou, e a sociedade itabunense não pode deixar de estar envergonhada deante de tão monstruoso crime praticado acintosamente por um bandido, a mando de terceiro, como si a sua victima não fosse um ente humano cuja vida devera ser respeitada. (QUE HORROR! Em plena rua, um bandido, cumprindo as ordens do mandante, assassina miseravelmente o Dr. Oscar Nascimento. Jornal de Itabuna, Itabuna, 12/10/1922. p. 1) Assim começam as interpretações do Jornal de Itabuna sobre o homicídio cometido contra Oscar Augusto do Nascimento. Este trecho da matéria é ilustrativo para percebermos a abordagem trágica dada a este crime específico. É perceptível a atuação do periódico visando comover seus leitores em torno de uma causa. Se os crime anteriores ao assassinato de Oscar Augusto do Nascimento eram escritos de maneira breve e justificados a partir da descrição de contendas individuais entre as partes envolvidas. Este homicídio, em específico, é eleito pelo jornal como um crime contra o coletivo, um crime contra a sociedade itabunense como um todo. Não somente nesta matéria citada, mas em outras posteriores, o periódico usa termos como “clamor público” como estratégias para convencer o público leitor a participar da causa. O jornal tenta representar uma suposta indignação popular frente ao crime. As notícias sobre este crime possuem grande extensão e linguagem saturada de adjetivações. Os adjetivos ornamentam a narrativa e produzem o [187] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 efeito de tragédia em torno do acontecimento. Destacamos o uso de termos como “bárbaro” e “miserável” para caracterizar o crime e as atribuições elogiosas à vítima. Neste sentido, freqüentemente o jornal reforça a imagem do assassino desumano e da vítima bem querida popularmente e, em especial, inocente. O ferido devido o seu estado melindroso, não podia falar; entretanto, momentos antes de fallecer, fez um esforço e disse: “morro inocente, nada devo àquella mulher” (O assassinato do Dr. Oscar Nascimento. Jornal de Itabuna, Itabuna, 12/10/1922. p. 4) Não pode haver justificativa para o procedimento do snr. Francisco Briglia, porquanto não encontrou a sua esposa em adulterio; pensou, reflectiu, premeditou e mandou executar o seu plano; do inquerito policial já encerrado, não ficou provado o adulterio. (ITABUNA SANGUINARIA! NÃO. Jornal de Itabuna, Itabuna, 19/10/1922. p. 1) O reforço dado à inocência da vítima foi ponto fundamental nesta memória construída. O código penal da república velha aponta o adultério como crime passível de punição de um a três anos. Em uma sociedade muito afeita à moral da família, pode-se pensar na hipótese de que o adultério, enquanto ofensa à honra, pudesse justificar o ato homicida. A série de notícias acerca do crime constrói uma memória da vítima. Entendemos aqui memória enquanto um processo; uma apropriação e construção, consciente ou inconsciente do passado, que produz efeitos em um dado momento presente (TODOROV, 2002). Entendemos a apropriação enquanto uma prática delimitada por questões de caráter social, cultural, institucional, entre outras (CHARTIER, 1988). [188] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 A construção de uma memória enaltecedora do assassinado reforçava a idéia de que crime cometido era uma “barbárie”. Assim propagava-se a idéia de Oscar Augusto do Nascimento enquanto benfeitor e vítima. [...] aquelle era um cidadão qualificado, de posição definida, moço intelligente, medico illustre e humanitario, bem relacionado, com vasta clientela, symphatisado, com camarada, amigo e pae de familia. (ITABUNA SANGUINARIA! NÃO. Jornal de Itabuna, Itabuna, 19/10/1922. p. 1) A construção de memórias e interpretações teve como base interesses em um dado momento presente. É importante também voltar a refletir sobre as especificidades temporais do periódico. O Jornal de Itabuna, enquanto órgão de imprensa de produção semanal, acompanhou os trâmites levados a cabo pelos órgãos responsáveis pela investigação e punição do crime em questão. Neste processo não buscou apenas informar seu público leitor1, mas também intervir. A decisão do Jury no julgamento do snr. Francisco Briglia de Magalhães, accusado de haver mandado assassinar o inditoso dr. Oscar Augusto do Nascimento, não repercutiu bem na sociedade itabunense, que esperava do digno tribunal, um outro “veredicum” que viesse desmentir o mau conceito que se faz da índole da nossa população, quando se diz - «Itabuna, a cidade do crime».. (A extrema Na edição de 09/11/1922 foi publicada na primeira página do Jornal de Itabuna a peça de acusação apresentada pela promotoria pública sobre o assassinato de Oscar Augusto do Nascimento. 1 [189] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 benevolencia do Jury. Jornal de Itabuna, Itabuna, 14/12/1922. p. 1) O Jornal de Itabuna buscou comover seu público leitor em torno de uma causa e intervir nos processos legais de punição dos responsáveis pelo assassinato de Oscar Augusto do Nascimento. Para isso, representou o crime como um problema concernente a toda sociedade itabunense e pressionou os órgãos responsáveis pelo julgamento e punição do mesmo. As notícias do Jornal de Itabuna acerca deste crime findam no início do ano de 1923, quando falece na cadeia pública Ruffino Augusto de Andrade, executante do assassinato de Oscar Augusto do Nascimento. A presença de Lafayette de Borborema em diferentes ambientes e sua proximidade a indivíduos, como Oscar Augusto do Nascimento, de grupos diversos da sociedade itabunense do início da década de 1920 influenciaram a produção do periódico Jornal de Itabuna. Compreendemos que o jornal é uma prática social e sua produção é influenciada pelo emaranhado de relações públicas e privadas dos sujeitos que o produzem, seus membros responsáveis. Concluímos que a interpenetração entre vida pública e privada se fez presente na produção deste órgão de imprensa. BIBLIOGRAFIA ANDRADE, José Dantas de. Itabuna cinquentenária: documentário fotográfico histórico de Itabuna. [Itabuna]: [S.n.], [1960]. (sem paginação) AQUINO, Ramiro. De Tabocas a Itabuna: 100 anos de imprensa. Itabuna, BA: Agora, 1999. 250p. BORBOREMA, Helena. Lafayette de Borborema: uma vida, um ideal. Ilhéus: CEPLAC/PACCE, 1984. 35p. CARVALHO, Philipe Murillo Santana de. “A construção de Itabuna: idéias de urbanização e de civilidade na região cacaueira (1910-1930)”. In: SOUSA, [190] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Antônio Pereira. Cadernos do CEDOC: o rural e o urbano, cidades em construção. Ilhéus (BA): Editus, 2007. p. 97-147. CHARTIER, Roger. 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Memória do mal, tentação do bem: Indagações sobre o século XX. São Paulo: Editora Arx, 2002. 384. [191] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 NIETZSCHE: O NOVO MODO DE FAZER HISTÓRIA Pablo Martins Bernardi Coelho Resumo No presente trabalho pretendemos analisar a abordagem de Nietzsche sobre a história. Nosso autor empreende uma crítica ao modo de se fazer história, cuja suas raízes são fundamentadas pelo pensamento filosófico socrático-platônico. Desse modo, ao colocar o sentido histórico da modernidade em questão, Nietzsche o fez movido pela crítica à racionalidade ocidental, na qual, a partir de Sócrates, a sensação da veracidade e do conhecimento, adquiriu um caráter universal e primordial, evidenciando uma vida, a partir da qual, os instintos seriam avaliados, controlados e explicados. Palavras-chave: Nietzsche; História; Modernidade; Razão Abstract In this paper we intend to analyze the approach of Nietzsche's history. Our author undertakes a critique of the way to do history, whose roots are based by the Socratic-Platonic philosophical thought. Thus, by placing the historical sense of modernity in question, did Nietzsche moved by the critique of occidental rationality, in which, from Socrates, the sense of truth and knowledge, acquired a universal and primordial, showing a life from which the instincts would be assessed, monitored and explained. Keywords: Nietzsche; History; Modernity; Reason Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP/Franca Brasil. Orientador: Héctor Luis Saint-Pierre. Email: [email protected]; Endereço: Rua Irmã Dulce n°25 Ap.201, Bairro Jardim Finotti, Uberlândia/MG, Cep.38408-734. [192] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 INTRODUÇÃO Podemos considerar que a filosofia nietzschiana está pautada na crítica a tradição metafísica da filosofia ocidental iniciada a partir do pensamento socrático-platônico. A tradição metafísica considera a realidade a partir da estrutura de pensamento racional, onde a consciência emerge como fonte, lócus da racionalidade, trabalhando efetivamente com uma cisão entre coisa-em-si e fenômeno, entre um mundo verdadeiro, essencial, imutável e outro aparente, contingente. Nesse sentido, verifica-se que a metafísica gera uma cisão entre o ente e aquilo que seria sua verdade, entre o ente e sua essência, ou como Nietzsche trata, ora utilizando a terminologia kantiana, entre “fenômeno” e “coisa em si”; ora utilizando sua própria terminologia, entre “mundo aparente” e “mundo verdadeiro”. Já em sua primeira obra, O nascimento da tragédia (1872), Nietzsche inicia sua crítica à ra zão ocidental. Em tal obra o filósofo mostra como a civilização grega pré -socrática foi o a u g e d a c u l t u r a grega ao estar ainda sob a esfera do pensamento trágico, q u e p r o p õ e u m a afirmação incondicional da vida, mesmo na dor e no sofrimento. Mas essa atitude trágica diante da e x i s t ê n c i a p r e v a l e c e u a t é o triunfo da razão socrática, a cabeça teórica, a partir do q u a l a consciência e a razão passam a julgar e dominar a vida e os instintos. Com Sócrates, a razão, a percepção da verdade e do conhecimento, passou a ter um caráter prioritário e universal, colocando-se como o interesse a partir da qual a vida e os instintos seriam julgados, controlados e justificados. O o t i m i s m o d a d i a l é t i c a socrática fulmina a dilaceração, dor e sofrimentos inerentes à vida, abrindo caminho para dialética ascensional de Platão que nos promete o mundo perfeito das idéias e deprecia esse mundo sensível. Ora, mas segundo Nietzsche esse mundo, é o único que temos. Não há o outro mundo. Para de certo modo criar uma erosão na filosofia tradicional, Nietzsche utiliza de elementos da ciência que vão contrapor as verdades éticas ou [193] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 epistemológicas fundadas na metafísica. Desafiador da verdade absoluta, Nietzsche é anti-fundacionista, não tendo pretensão de encontrar fundamentos metafísicos para a filosofia. Nesse ínterim, Nietzsche considera que a essência do pensamento socrático-platônico origina uma sociedade ocidental cujos membros têm uma vida vazia de finalidade. A oposição razão/sentimentos foi o grande erro deste pensamento ocidental, condenando o ser humano a uma vida submetida a normas racionais e morais que lhe são estranhas (NIETZSCHE, 2003). Assim, Nietzsche interpreta a metafísica como um movimento de afirmação a valores que diminuem e ameaçam a vida, na medida em que a mesma se apresenta como duplicação do mundo, como reflexão em torno de um transcendente que desconhece o homem palpável, a realidade viva que se consagra numa constante batalha e jogo de forças. A partir dessa oposição – razão/sentimentos, Nietzsche conclui que a sociedade ocidental se caracteriza pelo niilismo, ou seja, pela iniciativa de recusar a vida, de menosprezar a existência. Neste caso, a vida é conduzida por valores superiores, transcendentais, por um ideal ascético. O homem esboça sua experiência em uma irrealidade, um além-mundo onde não existe tempo. Pela crença neste mundo, a vida é recusada, eliminada e agrilhoada. A vida admite-se, deste modo, como negadora de si mesma. Nesse sentido, Nietzsche considera que a sociedade ocidental se encontra em um estado de decadência, numa alusão a posição de debilidade e fraqueza do espírito humano em seu comprometimento de evasão diante da realidade. Para ele, todos os idealistas simbolizam o espírito de declínio por anunciarem o instinto que corrompe e que se volta contra a vida, na medida em que, inventando uma duplicação de mundo, conferem valor de veracidade real a um hipotético mundo transcendental, e valor negativo e imaginário ao mundo corporal. Nas palavras de Deleuze, Sócrates é o primeiro gênio da decadência: ele opõe a idéia à vida, julga a vida pela idéia, coloca a vida como devendo [194] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 ser julgada, justificada, redimida pela idéia. O que ele nos pede é que cheguemos a sentir que a vida, esmagada sob o peso do negativo, é indigna de ser desejada por si mesma, experimentada nela mesma (DELEUZE, 1976, p.12). Nietzsche afirma que o niilismo é o pressuposto de toda metafísica, e a luta para derrubar aquele, seria a derrubada da própria metafísica. Esta seria sua grande empreitada. Porém, nas palavras de Deleuze “isto envolve uma nova maneira de pensar, uma convulsão do princípio do qual depende o pensamento, uma retificação do próprio princípio genealógico, uma transmutação” (DELEUZE, 1976, p.28). Ou seja, um modo de discorrer regulado na compreensão de que a vida é sofrimento/desgosto, mas que não cabe negá-la, nem tramar outro fato a fim de justificá-la, incumbindo ao homem vivê-la em toda sua veracidade: Nova maneira de pensar significa um pensamento afirmativo, um pensamento que afirma a vida e a vontade da vida, um pensamento que expulsa enfim todo o negativo. Acreditar na inocência do futuro e do passado, acreditar no eterno retorno. Nem a existência é colocada como culpada nem a vontade se culpa por existir: isto é que Nietzsche chama sua alegre mensagem [...] A mensagem feliz é o pensamento trágico, pois o trágico não está nas recriminações do ressentimento, nos conflitos da má consciência, nem nas contradições de uma vontade que se sente culpada e responsável [...] Trágica é a afirmação, porque afirma o acaso e a necessidade do acaso; porque afirma o devir e o ser do devir, porque afirma o múltiplo e o um do múltiplo. Trágico é o lance de dados. Todo o resto é niilismo, pathos dialético e cristão, caricatura do trágico, comédia da má consciência (DELEUZE, 1976, p.28). [195] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Dessa forma, na exaltação do trágico, nosso autor ressalta a força da vida em oposição a toda e qualquer negativa: O consolo metafísico – com que, como já indiquei aqui, toda a verdadeira tragédia nos deixa – de que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria, esse consolo aparece com nitidez corpórea como coro satírico, como coro de seres naturais, que vivem, por assim dizer indestrutíveis, por trás de toda a civilização, e que, a despeito de toda a mudança de gerações e das vicissitudes da história dos povos, permanecem perenemente os mesmos (NIETZSCHE apud SILVA, 2005). Enfim, “dar à irresponsabilidade seu sentido positivo”, este seria o objetivo principal da filosofia de Nietzsche. O NOVO MODO DE FAZER HISTÓRIA Nietzsche afirma que a perspectiva da história não escapa aos cânones da metafísica. Por isso, ele condenou as várias formulações do historicismo (três modalidades de fazer história: monumental, tradicional, crítica) e pôs em questão a validade do emprego do método histórico. Em relação à história monumental, Nietzsche critica seu caráter de generalizar arbitrariamente as particularidades históricas, visto que, aqueles que praticam esse tipo de história procuram no passado, modelos para o presente. Este seria o erro: “a eternização de tudo quanto houve de clássico e de raro no passado oculta na verdade, nos historiadores monumentalistas, o aviltamento do presente, talvez um ódio do presente, a impossibilidade de um futuro diverso” (SOBRINHO, 2005, p. 28-29). Em relação à história tradicional, [196] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Nietzsche critica sua incapacidade de capturar os fenômenos históricos no seu conjunto e profundidade, visto que, os historiadores dessa modalidade, atribuem um mesmo valor a todas as coisas, e às vezes uma valorização maior sobre as coisas consideradas insignificantes. Ou seja, o modo tradicionalista, tem como objetivo capturar o passado nas especificidades e singularidades. Para Nietzsche, essa concepção neutraliza a ação, o presente e a vida, além de colocar obstáculos impeditivos e paralisar a disponibilidade do homem de ação: O modelo clássico de abordagem do passado começa por uma comparação e uma identificação impertinente do passado com o presente, em que o passado aparece como modelo e exemplo para o presente que deve ratificá-lo. O modo tradicionalista, ao contrário, pretende capturar o passado na sua especificidade e singularidade. Na primeira, a versão, o sentido histórico – independentemente da verdade que contenha – toma o passado como um impulso para a vida; na segunda versão, ele quer o conhecimento e a verdade; no primeiro caso, o historiador é um artista; no segundo, é um cientista; no primeiro caso, o passado histórico alimenta a vida; no segundo, ele está morto e não leva mais nada (SOBRINHO, 2005, p.31). Em relação à história crítica, Nietzsche recrimina seu caráter exacerbado, afirmando que pode trazer muitos problemas para a vida, pois, ao contrário do que pensam os historiadores críticos, é impossível eximir-se da cadeia da história, com tudo o que ela tem de justo e de injusto: quer queiram ou não, os homens são herdeiros do seu passado e terão sempre de viver a contradição entre a herança e a novidade [...] Uma vez admitindo que não há nada de positivo no passado, [197] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 como de resto o presente é testemunha, o historiador crítico perde qualquer referência simbólica com os monumentos da cultura, os homens e as experiências que construíram o que há de mais elevado na história (SOBRINHO, 2005, p.32). No entanto, é importante frisar que Nietzsche não desqualifica a perspectiva histórica como tal, que se determina por seu direcionamento ao passado. A sua crítica se faz contra o historicismo fundamentado em preceitos metafísicos. Nesse sentido, ao negar o idealismo socrático-platônico, Nietzsche desenvolveu uma genealogia da história, desqualificando a concepção de tempo linear, sucessivo e encadeado para criar uma temporalidade circular e instantânea, eliminando os suportes teóricos da crença na finalidade para substituí-los pela noção de devir múltiplo do mundo. Genealogia não no sentido de buscar a origem, mas sim de procurar o momento em que a história toma determinada direção/sentido. Nas palavras de Foucault: Fazer genealogia não será, portanto, partir em busca de sua “origem”, negligenciando como inacessíveis todos os episódios da história; será, ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos começos; prestar uma atenção escrupulosa à sua derrisória maldade; esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro; [...] O genealogista necessita da história para conjurar a quimera da origem, um pouco como o bom filósofo necessita do médico para conjurar a sombra da alma. É preciso saber reconhecer os acontecimentos da história, seus abalos, suas surpresas, as vacilantes vitórias, as derrotas mal digeridas, que dão conta dos atavismos e das hereditariedades; [...] A história, com suas intensidades, seus desfalecimentos, seus [198] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 furores secretos, suas grandes agitações febris como suas síncopes, é o próprio corpo do devir (FOUCAULT, 1992, p.14). Todo raciocínio de Nietzsche parte do pressuposto de que não há nada “escondido”, não há nada que fundamente aquilo que foi enunciado pela sociedade, tudo é evidente. A essência é construída, ela não é essência no sentido de ser fundamental. Tudo está sujeito ao acaso, tudo é muito instável, ou nós desiludimos de tudo porque achávamos que existiam coisas certas, ou nós acreditamos que as incertezas trazem a liberdade plena, abrindo-se muitas oportunidades. Nesse sentido, Nietzsche afirma que a história não suporta conceitos, o que o ser humano é só pode ser apreendido no próprio movimento das coisas. Assim, não existem as coisas mesmas, lidamos com as coisas interpretadas, e elas não derivam de um esquema estático e invariável, mas sim de um jogo social, no qual o poder se encontra disperso. Assim, a história não objetiva restabelecer uma grande continuidade, muito menos buscar algo fundante, pelo contrário, ela deve ser regida pela proveniência: Seguir o filão complexo da proveniência é, ao contrário, manter o que se passou na dispersão que lhe é própria: é demarcar os acidentes, os ínfimos desvios – ou ao contrário as inversões completas – os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que existe e tem valor para nós; é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que somos – não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente (FOUCAULT, 1992 p.15). Assim, somos considerados uma confluência de identidades, e elas são provisórias. Nossos parâmetros subjetivos são construídos a partir da sociedade, [199] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 ou seja, somos parte da história. O Eu é instável, é dado historicamente. A própria relação com o corpo tem associação com a história, ou seja, a história “fala” e age sobre nossos corpos. O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos [...] lugar de dissociação do Eu [...], volume em perpétua pulverização. A genealogia, como análise da proveniência, está, portanto no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo (FOUCAULT, 1992, p.15) Para Nietzsche esse seria o “sentido histórico”, onde o homem é o próprio desdobramento da história, onde tudo está sujeito ao acaso, uma história onde não existem conceitos mais sim interpretações que são tomadas como verdades pactuais (Nietzsche, 2005). Um “sentido histórico” que não supõe uma verdade eterna, uma consciência sempre idêntica de si mesma, um “sentido histórico” que não apóia sobre nenhum absoluto, enfim, um contraponto da metafísica. A história “efetiva” se distingue daquela dos historiadores pelo fato de que ela não se apóia em nenhuma constância: nada no homem – nem mesmo seu corpo – é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles. Tudo em que o homem se apóia para se voltar em direção à história e apreendê-la em sua totalidade, tudo o que permite retraçá-la como um paciente movimento contínuo: trata-se de destruir sistematicamente tudo isto [...] A história será “efetiva” na medida em que ela reintroduzir o descontínuo em nosso próprio ser (FOULCAULT, 1992, p.18). [200] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Portanto, temos um sentido histórico onde o sujeito varia no tempo, sem continuidades, sendo anti-fundacionista, não tendo pretensão de encontrar fundamentos metafísicos. Assim sugere Foucault: Há toda uma tradição da história (teleológica ou racionalista) que tende a dissolver o acontecimento singular em uma continuidade ideal – movimento teleológico ou encadeamento natural. A história “efetiva” faz ressurgir o acontecimento no que ele pode ter de único e agudo [...] De modo que o mundo tal como nós conhecemos não é essa figura simples onde todos os acontecimentos se apagaram para que se mostrem, pouco a pouco, as características essenciais, o sentido final, o valor primeiro e último; é ao contrário uma miríade de acontecimentos entrelaçados [...] Mas o verdadeiro sentido histórico reconhece que nós vivemos sem referências ou sem coordenadas originárias, em miríades de acontecimentos perdidos (FOUCAULT, 1992, p.18). CONCLUSÃO Para Nietzsche, não há verdade que antes de ser verdade, não seja a efetuação de um sentido ou a realização de um valor. Temos a verdade que merecemos ou suportamos, diria nosso autor. Nesse sentido, jamais o pensamento encontraria por si mesmo o verdadeiro, pois este não passa de um sentido e de um valor c o n f e r i d o à s c o i s a s p o r f o r ç a s ativas ou reativas. A verdade de um pensamento deve ser, p o r t a n t o , “interpretada e avaliada” segundo as forças e as vontades que o determinam a pensar “isto e não aquilo”. Diante daquilo que se apresenta como verdade, devemos sempre nos perguntar pelo “sentido e valor” das forças que subjazem a tal fenômeno. Esse trabalho das forças é ocultado pelo pensamento [201] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 dogmático, que é incapaz de estabelecer uma “tipologia” das forças (ativas ou reativas) e uma genealogia que determine a origem dessas forças e dos valores por elas instituídos (DELEUZE, 1976). Nietzsche nos ensina, por exemplo, que por trás de cada verdade é preciso aprender a vislumbrar o interesse prático que ela manifesta. Nesse sentido, na perspectiva de nosso autor, a filosofia deveria tomar como tarefa principal, não questões ontológicas ou gnosiológicas, mas questões de valor. A filosofia deve estabelecer uma espécie de genealogia dos valores, explicitando as condições de suas origens e os interesses que manifestam, pois, em cada uma das épocas da história da filosofia, e mesmo por trás de todo pensador, valor ou conceito, fala os sintomas de intensificação ou decadência da vida. Assim, a história do homem não é uma totalidade, mas uma pluralidade de processos de ascensão e declínio simultâneos, que não obedece, portanto, a qualquer sucessividade, a quaisquer ordens, plano, razão ou fim. Assim, não há uma história universal, como também não há um fim universal, ou pelo menos não é possível conhecê-lo. O que há de fato são os indivíduos concretos e reais. Dessa forma, com a genealogia, Nietzsche cria uma “supra-história”, na qual investigar o passado consiste em estar fora do tempo linear, contínuo, encadeado e progressivo. Por isso, “analisar genealogicamente é descobrir a vontade de poder que se disfarça sorrateiramente na multiplicidade dos símbolos que o pretérito nos traz e compõe uma tipologia dos valores e do caráter, dos homens e de seus feitos” (SOBRINHO, 2005, p.56). Nietzsche assim definiu o supra-histórico: “[...] forças que afastam o olhar do devir e o orientam para aquilo que confere ao devir um caráter de eternidade e de significação igual ao da arte e da religião” (NIETZSCHE, 1980, p.201). [202] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976. _______________. A Filosofia Crítica de Kant. Lisboa: Edições 70, 2009. FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a Genealogia e a História”. In: Microfísica do Poder; trad. de Roberto Machado, 10ed. Rio de Janeiro: Graal, 1992. MACHADO, R. Nietzsche e a polêmica sobre o nascimento da tragédia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. MARTON, Scarlett. Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial/Editora da UNIJUÍ, 2000. NIETZSCHE, F. O Nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. _______________. A Genealogia da Moral. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2001. _______________. Escritos sobre História. Rio de Janeiro: Editora PUC – Rio; Edições Loyola, 2005. ______________. Além do Bem e do Mal. Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ______________. NIETZSCHE, F. Da Utilidade e dos Inconvenientes da História para a Vida. In: Considerações Extemporâneas. Lisboa: Ed. Presença/Martins Fontes, 1980. SILVA, Flávio de oliveira. O fenômeno dionisíaco como questão fundamental em Nietzsche. In: http://www.unirio.br/morpheusonline/Fl%C3%A1vio_Silva.htm. Revista Eletrônica em Ciências Humanas. Vol.6, Rio de Janeiro, 2005. SOBRINHO, Noéli Correia de Melo. Apresentação e comentário. In: NIETZSCHE, F. Escritos sobre História. Rio de Janeiro: Editora PUC – Rio; Edições Loyola, 2005. [203] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 O CÔMICO A SOCIEDADE GREGA PELO TEATRO DE ARISTÓFANES Flávia Bruna Ribeiro da Silva Braga1 Resumo Este trabalho trás uma análise acerca da sociedade grega pelas obras do comediógrafo Aristófanes, autor da Comédia Antiga, tradicionalmente posta. Neste trabalho utilizamos as obras Lisístrata, As Tesmoforiantes e A Assembléia das Mulheres para tratar do tema político, social, de gênero, enfim, de diversos aspectos da sociedade grega presentes nas obras. Palavras-chave: Aristófanes; Comédia; Grécia. 1. IMPORTÂNCIA DO TEATRO GREGO PARA A HISTÓRIA De uma maneira geral, é da expressão dos artistas que os costumes e os pensamentos de uma civilização se eternizam com mais afinco. Olhemos para as estátuas esculpidas nas igrejas medievais e é quase palpável o sentimento de apreensão do homem diante do desconhecido. O juízo final, o diabo, os monstros, eternizados em expressões vivas. Os versos de Camões podem reavivar a centelha portuguesa que há em nós, desse passado grandioso e perdido. Enfim. As obras de artes demonstram como o homem comum e individualizado percebe sua sociedade, como transporta essas idéias e como as encara. Mas falemos de teatro grego. Se engana quem pensa que peças gregas são algo antiguíssimo apenas compreendida dentro de um contexto delimitado 1 Graduanda pela Universidade Federal de Pernambuco [204] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 da Grécia Antiga. Qualquer dia, pegue a peça de Antígona de Sófocles ou Lisístrata de Aristófanes e não mostre o nome dos autores para uma pessoa leiga. É possível que perguntem se os autores eram brasileiros, se foram lançados agora. E responda que foram escritos há mais de 2000 anos. A pessoa levará um susto. A atualidade das obras gregas é algo realmente impressionante, não recordo haver outra civilização que tenha logrado tal imortalidade. Mas não apenas no âmbito artístico se vê a importância das obras gregas. Autores como Sófocles, como já citei, trazem debates atuais sobre a moral individual e a lei de Estado, ainda citado em muitos discursos políticos congressistas e em muitos textos de direito. Críticas como a de Aristófanes contra os maus políticos, contra a demagogia, são tão atuais como os meninos do CQC1 ou o Casseta & Planeta Urgente2 que ainda utilizam do riso para falar de coisa séria. As peças de teatro gregas nos dão um panorama geral de como era ser grego há milhares de anos, e não apenas isso. Mas de como os próprios atenienses lidavam com a cidadania e a democracia, como as relações entre Estados se davam e como isso era refletido no dia-a-dia das pessoas. Assim como nós e nossas constituições, aludem a esse passado político e faz referência, como a formação da nossa democracia e da nossa consciência cidadã é essencialmente grega. Heloisa Helena, por exemplo, política brasileira anteriormente ligada ao PT, quando no congresso brasileiro rompe com esse partido para fundar o PSOL, diz “Antes Sócrates a Galileu” numa referência clara ao filósofo grego que morre em nome dos seus ideais. Esse mesmo filósofo que será ridicularizado por Aristófanes em As Nuvens. Conhecer o teatro grego é um estudo interdisciplinar que envolve de História à Filosofia. Outro ponto, importante, é a grandíssima influência das obras gregas para o mundo ocidental desde que a Grécia surgiu. Podemos dar exemplos vários de filmes, series, novelas, livros, coleções, peças de teatro, arquitetura, que aludem ao mundo grego. Nosso Maracanã é circuncêntrico de influência Programa de TV da emissora RedeTV, Custe o Que Custar, em que repórteres se utilizam de ridicularização e piadas para fazer críticas aos políticos brasileiros. Programa de comédia exibida pela Rede Globo de Televisão. 1 2 [205] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 grega e relembram os palcos onde eram apresentadas as peças, depois influenciam os coliseus romanos até chegar em nós. Nossas novelas são baseadas em tragédias gregas. Nossa literatura universal, Machado de Assis, José Saramago, Freud, Nietzsche, Cervantes, pense em um escritor ocidental que não tenha bebido das fontes gregas e provavelmente você não terá resposta. Isso porque nós somos essencialmente gregos. Podemos ter influências muçulmanas, portuguesas, romanas, germânicas. Mas somos gregos, antes de tudo. Porque a nossa filosofia é aristotélica, nosso teatro é grego, nossa Olinda é montanhosa como Atenas. As similaridades são muitas e ao mesmo tempo sutis. Mas não vamos nos restringir a importâncias políticas e culturais. O teatro é importante para a própria constituição do ser humano. O riso das comédias é curativo e o choque das tragédias ensina. O Teatro grego existiu para nos relembrar das nossas fraquezas, das nossas angústias, dos nossos medos e astúcias. Incrivelmente os autores gregos conseguiram transpor para seus escritos a angústia de gerações milenares pois, quando vemos Antígona agonizar pelo corpo do irmão, também nós choramos e nos revoltamos. Quando Aristófanes apela pela paz, também nós desejamos. O teatro é uma forma única de nos encontrarmos com nós mesmo e com o mundo. É uma forma de lembrarmos que temos algo em comum. Não é a toa que o coro grego se dirigia a seu público, pela ligação, pela catarse. Essa é uma palavra definidora do teatro grego: catarse. As peças movimentam multidões a amarem conjuntamente, odiarem conjuntamente, rirem conjuntamente. Uma herança que os Antigos nos legou e que não podemos perder. E um ultimo ponto, mais específico para o fazer histórico, é a recente volta da discussão acerca da narrativa histórica. Os escritos gregos são fáceis de ler. São narrados, são contemporâneos. É talvez mais fácil ler Platão que Saramago. Ainda que 2500 anos os separe. Essa capacidade de tornar a escrita universal (tanto em extensão territorial quanto nas camadas sociais) é de uma maestria exclusiva grega. Estamos caminhando num processo de retorno do [206] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 acontecimento, do relato. E estamos voltando a esses autores gregos para fundamentar o fazer do historiador. Por todos esses motivos e muitos outros que a ignorância socrática não nos permite aludir, o estudo do Teatro Grego torna-se imperativo para um mundo que tanto dele necessita e se agrada. 2. A COMÉDIA: ORIGEM E CARACTERÍSTICAS As origens da comédia grega são tão confusas quanto às da tragédia. E, por isso mesmo, são controversas. Quando J. de Souza Brandão, citando o helenista Maurice Bowra, argumenta que o problema é complexo, ele deixa claro que o assunto merece atenção. Sobre o problema da gênese da comédia, abordado por M. Bowra, Brandão diz o seguinte: Não há dúvidas, acentua o mestre britânico, acerca da origem da palavra comédia. Provém do grego, komoidía, que significa canto de um grupo de foliões, mas isso não nos esclarece muito, uma vez que o kômos, que significa, em termos de teatro, uma procissão alegre, podia celebrar-se em qualquer ocasião, convival ou festiva, sem relação alguma com a comédia. O que se deve deixar claro é que esta estava ligada, em suas origens, a esses grupos de foliões e que conservou algumas de suas características, mesmo depois de se haver tornado uma forma de poesia. O gênero era conhecido em Atenas nos inícios do séc. V a.C. e o nascimento da comédia ática, na forma com que chegou até nós, deve-se a combinação de dois elementos completamente díspares: o antigo kômos, ou dança cômica e determinadas farsas literárias. A verdade é que, originando-se, tanto quanto a tragédia, do culto dionisíaco, a comédia é o antônimo da tragédia, já que sua [207] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 finalidade é contemplar a vida de um ponto de vista antitético1. (Adaptado por nós). Para o autor, a afirmação de M. Bowra é irrefutável, porém incompleta, pois, é preciso fazer uma distinção entre o kômos popular, profano, e o kômos dionisíaco, religioso. Ele acredita que a comédia antiga seja realmente formada a partir dos dois elementos: o kômos e a farsa, e a esse respeito ele concorda com Paul Mazon que, segundo ele, oferece uma visão pouco animadora: A antiga Comédia Ática é um gênero desconcertante. Sua origem nos parece, à primeira vista, um verdadeiro enigma. O motivo é simples: a Comédia Antiga combina elementos tão diversos, que a síntese, uma vez passadas as circunstâncias que lhe permitiram o surto, não pôde durar por muito tempo. De outro lado, a Comédia Antiga, no curso de sua breve existência, revestiu-se de formas tão flexíveis, que a unidade real do gênero é dificilmente perceptível pela crítica2. J. de Souza Brandão, tomando como base oito das dez comédias de Aristófanes que chegaram até nós, conclui que a comédia antiga se divide em duas partes. A primeira, o ágon, uma luta, um debate; a segunda é uma revista. Aquela comporta uma ação, com o prólogo, párodo, o ágon, a parábase e o êxodo; esta, uma série de sketches, que esclarecem o sucesso da ação desenvolvida na primeira. Nesta, o coro desempenha o papel de um verdadeiro ator; naquela, ele é somente o porta-voz do poeta. Encontramos, entretanto, a farsa em ambas sob as mais diferentes formas. Segundo ele, a presença da farsa Junito de Souza Brandão, Teatro Grego: tragédia e comédia, 1984, p. 71. Paul Mazon, La Farce dans Aristhofane et les Origenes de la Comédie en Grèce. In: Revue de la société d’histoire du théâtre. Paris, Jean Chaffiotte, 1951, I, 7-18. Apud: Junito de Souza Brandão, Teatro Grego: tragédia e comédia, 1984, p. 72. 1 2 [208] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 é visível, sobretudo, na revista, onde surge, muitas vezes, um desfile de tipos grotescos que vêm provocar o protagonista. Se suprimirmos o êxodo com que se fecha a comédia, diz ele, e colocarmos a parábase, será perceptível que esta funciona como um divisor de águas na comédia antiga. A parábase é como uma chamada dos espectadores à realidade, uma parada na ação, ou seja, uma sátira que o poeta faz contra os cidadãos, responsáveis política, social e religiosamente pela polis. Enfim, o que nos importa, na interpretação de Brandão, é saber que, quando a parábase foi introduzida para servir de divisor de duas partes completamente diferentes da comédia: a primeira que provém do kômos, e a segunda, de origem na farsa dórica1. Em sua Poética, Aristóteles comenta que a comédia primitiva era improvisada e originária dos cantos fálicos. Trata-se das faloforias, o cortejo em que se escoltava um falo, símbolo da fecundidade e da fertilização da terra. O vocábulo komoidía, que não é estranho à origem de comédia, apresenta um elemento, kômos, que tem muitos sentidos, entre eles grupo de festas. Em Atenas, o kômos, tinha um valor ritual, figurando nas procissões oficiais das Grandes Dionísias, primitivamente chamadas de kômoi. Isso faz com que o Brandão conclua que o nosso comédia vem de: kômos = procissão jocosa + oidé = canto + ía, komoidía, pelo latim comoedia, dos kômoi dionisíacos2. Como já foi dito, o teatro grego surgiu em volta das Grandes Dionisíacas. A comédia seguiu a Tragédia após 50 anos, em 488ac quando foi introduzida nos festivais. De acordo com Aristóteles a comédia teria surgido das procissões phalliká ou kómos, mais bem traduzido por “canto dos kósmos”, como um ato burlesco e religioso. Diacov & Kavalev irão traduzir como “O Canto dos Camponeses cabeludos”. Esses cortejos têm, ainda de acordo com Aristóteles, sentidos fálicos, que seriam o surgimento da comédia. Eram compostas de 24 coreutas, em muitos casos representando animais com danças e cantos vivazes pelas ruas. A Comédia (komoidia) tem um sentindo, então, de 1 2 Junito de Souza Brandão, Teatro Grego: tragédia e comédia, 1984, p. 73. Idem. [209] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 procissão, komoi, que se dividia em dois tipos. Uma os jovens vão às ruas brincar com os cidadãos, pedindo prendas, em que a origem da comédia estaria ligada a procissões com objetos fálicos e sentidos sexuais. Os cavaleiros da Ática, em nome de Dionísio, invertiam a ordem da sociedade e lançavam-se à dança e a saciação dos desejos. No século V veremos se juntar ao Kosmos os comediantes dóricos, que introduzirão os falos e as barrigas falsas. E procissões de celebração da fertilidade da natureza. Enquanto a Tragédia trata de temas ligados aos deuses, heróis, destino e resignação, a comédia irá tratar do que Aristóteles chamou de “homens inferiores”, homens comuns, temas mais presentes e do convívio do espectador. Em 440ac a Comédia entra nas Lenéias, festivais de honra a Dionísio no inverno. É possível perceber pelas obras que o gênero da comédia era visto como inferior à tragédia. Um exemplo disso é que no julgamento das obras dos concursos das Dionisíacas, o julgamento da Tragédia era feito por aristocratas e o julgamento da comédia se dava com a escolha de 5 membros da platéia quaisquer. Desse período só temos completas as 11 obras de Aristófanes. A Comédia grega é dividida em três partes: A Comédia Antiga (500-400ac) , marcada pela sátira política e pelos ataques pessoais. Dessa época são representantes Aristófanes, Creatino, Êupolis, Crates, Ferécrates e Magnes. A primeira obra de comédia conhecida é de Epicarmo (VI-Vac). Tentou-se proibir as comédias de fazer inserções de personagens relacionados a personalidades vivas, proibição de alusões jocosas aos mortos e a crítica contra juízes. Pelas obras de Aristófanes percebemos que essas pretensões foram em vão. A Comédia Antiga irá cair com Atenas, em 404ac no fim da Guerra do Peloponeso. Esse período é visto como o de maior liberdade para os comediantes pois vemos que até tentativas da sociedade de barra-los foram insuficiente para sua escrita ácida. É em Atenas que a comédia será, digamos assim, “profissionalizada”. A Comédia Antiga é reservada para os atenienses de berço, não poderiam ser escritas por metecos. As obras desse período eram apresentados em edifícios de parede de madeira pintada e tecidos e o coro, assim como na tragédia, ficava próximo a orquestra. Para cenas de transporte [210] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 aéreo utilizava-se o teto da skene. As máscaras usadas na comédia vão desde animais até caricaturas de personagens vivos. Dizem que por ninguém querer ter feito a máscara de Cléon, em os Cavaleiros, de Aristófanes, o próprio autor teve que interpretar com o rosto pintado de vermelho, motivo que o teria feito levar uma surra depois da peça. A dança das peças cômicas eram tão vivas e obscenas que era visto como vergonhoso dança-las sem máscara. Talvez tenha sido esse um dos motivos que levou a exclusão das mulheres na comédia por tanto tempo. A diferenciação nas roupas da comédia se fazia mais enfaticamente na divisão de gênero. Para o homem o phallus e para a mulher seios simulados. A Comédia Antiga tem muitas semelhanças com a organização da tragédia. O párodo, a entrada do coro e o êxodos, a saída do coro. Tinha uma sequencia obrigatória na sua construção. O prólogo, onde são demonstrados os fatos. O párodo, primeiro canto do coro, o ágon, onde se desenrrola a disputa entre os personagens e a parábase, onde o coro se dirige ao espectador e o corifeu fala, geralmente aludindo aos pensamentos do autor. A Comédia Intermediária tem como característica o desaparecimento do coro. Incluem-se nesse período a obra Pluto de Aristófanes, as obras de Aléxis e Antífanes. Nesse período a comédia passa a ser escrita também por metecos. A Comédia Nova (323 à 260ac) surge no período de Alexandre, o Grande. Seu maior representante é Menandro que não trás mais o conteúdo político para as suas peças como era de costume na Comédia Antiga, mas sim enredos de costumes e fixação de tipos. Esse teatro será mais marcado por enredos bem definidos e não por partes intercaladas, as vezes sem nexo, na Comédia Antiga. Esse período grego é diferente. Na Comédia Antiga existia a preocupação de sempre ressaltar o valor dos atenienses e da democracia. Atenas vive agora um momento de helenização. É um teatro que irá se basear mais nas intrigas íntimas e na vida privada. [211] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 a. Aristófanes A data do nascimento de Aristófanes é bastante discutida e pouco se sabe sobre a sua vida. Teria nascido por volta de 445ac e vivido até 386ac, essa datação não é precisa, mas nos ajuda a nortear o contexto grego que Aristófanes teria vivido e assim compreender suas obras. Seria filho de Filípides e talvez tenha sido criado no meio rural em uma propriedade na ilha de Egina. Teria exercido cargo público e teria tido dois filhos, Araros e Filipos que também teriam seguido o teatro cômico. Os escritos de Aristófanes são livremente baseados na vida ateniense e têm como temas geralmente a crítica aos governantes (lembrar que estamos vivendo o esplendor da democracia ateniense em seu auge, momento bastante favorável para os escritores da Comédia Antiga) em Os Cavaleiros e os Arcanenses, principalmente. Também trata da educação dos sofistas em As Nuvens, sobre a guerra do Peloponeso, em Lisístrata, sobre os escritores trágicos em As Tesmoforiantes. Aristófanes é contrário a popularização da democracia ateniense e partidário de um sistema de governo aristocrático e de proprietários de terra. Das 47 peças que escreveu, só chegaram completas ao nosso conhecimento 11. Nessas busca elementos que julgava serem responsáveis pela decadência ateniense. 10 peças são do período da primeira metade da Guerra do Peloponeso das quais 7 têm conteúdo político. Ganhou 4 primeiros lugares, 3 segundos lugares e 1 terceiro lugar. Sua peça As Rãs foi a única comédia que temos notícia que foi reapresentada diante do público na abertura das Grandes Dionisíacas, prestígio esse reservado apenas às tragédias. Em 427ac tem sua primeira obra encenada, “Os Babilônicos” onde faz uma crítica à Cleon, sucessor de Péricles. Continua sua crítica ao mesmo governante em “Os Cavaleiros” onde a crítica era tão ácida que nenhum ator se dispôs a representá-la tendo o autor mesmo que encenar. Dizem que a performance não teria agradado tanto. Cleon tenta processá-lo nas duas apresentações, sem sucesso. Aristófanes demonstra em suas obras o desejo ardente pela paz da Grécia e seus primeiros escritos demonstram essa insatisfação com a guerra. As [212] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 comédias antes de 400ac têm como características em geral fazer rir e criticar os políticos e intelectuais de Atenas. As peças Assembléia das Mulheres e Pluto já possuem um caráter de transição, são geralmente classificadas como Comédia Intermediária pela características de diminuição do coro, desaparecimento da sátira política e redução da sátira pessoal. Sua peça Cocalos teria sido a única com aspectos da Comédia Nova, pioneira, com aspectos da comédia romântica. Aristófanes é citado por Platão, em O Banquete, como alguém agradável, jovial e divertido. “Na verdade, Erixímaco, disse Aristófanes, é de outro modo que tenho a intenção de falar, diferente do teu e do de Pausânias. Com efeito, parece-me os homens absolutamente não terem percebido o poder do amor, que se o percebessem, os maiores templos e altares lhe preparariam, e os maiores sacrifícios lhe fariam, não como agora que nada disso há em sua honra, quando mais que tudo deve haver. É ele com efeito o deus mais amigo do homem, protetor e médico desses males, de cuja cura dependeria sem dúvida a maior felicidade para o gênero humano. Tentarei eu portanto iniciar-vos em seu poder, e vós o ensinareis aos outros. Mas é preciso primeiro aprenderdes a natureza humana e as suas vicissitudes.” (ARISTÓFANES in O BAQUETE, de Platão) As obras de Aristófanes são geralmente divididas em algumas partes. Inicialmente o prólogo, em que expõe os acontecimentos que se desenrolarão na peça. Depois o Párodo, em que o coro faz sua intervenção inicial. Ágon, o momento mais importante da peça, onde existe o debate/disputa que permeará a questão central da obra. A parábase, em que o coro se direciona ao público para falar sobre a ação ocorrida no Ágon ou para introduzir um assunto não- [213] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 relacionado. Seguem-se episódios breves que desenrolarão a disputa e o êxodo, em que os personagens se dispersam e o coro faz a intervenção final. b. A sociedade grega por Aristófanes Ninguém está à salvo das palavras ácidas desse autor. Aristófanes usa de sua Comédia para demonstrar seu desgosto contra os demagogos, contra os filósofos, contra os trágicos, contra a guerra, seu apreço por Esparta, sua revolta contra a democracia, a genialidade feminina, a conduta dos homens, enfim. A tragédia e a comédia têm objetivos diferentes, mas ambos trazem sentidos para suas histórias. As peças gregas nunca dizem somente o que dizem, é preciso ler mais vivamente. A tragédia, que se baseia na conduta moral, no temor aos deuses, nos princípios humanos, difere da comédia porque essa comenta sobre o cotidiano, sobre a vida presente, sobre o tempo presente, sobre a política, sociedade, costumes que os espectadores vivenciam. A risada que ainda hoje damos nas peças de Aristófanes é fruto dessa “cotidianidade” dos enredos, esses aspectos da vida pública e privada que toda geração perpassa, por questões que todo casal, que toda mulher, que todo cidadão, em qualquer sociedade, passa. A comédia de Aristófanes se tornou eterna porque é possível, hoje, compreender seu sarcasmo, sua ironia, sua revolta, quase como se ele estivesse falando sobre nós, brasileiros. Para fazer uma análise da sociedade grega por Aristófanes escolhemos dentre as suas 11 conhecidas obras apenas 3. São elas “Lisístrata” 1 (411ac), “As Tesmoforiantes” (411ac) e “Revolução das Mulheres” (392ac) porque é sobre a visão da mulher que partiremos a nossa análise. Na primeira obra, Lisístrata, Atenas e Esparta estão no meio da Guerra do Peloponeso. Para acabar a guerra a trazer seus maridos e a paz de volta a cidade, as mulheres reúnem-se e deliberam que é necessário buscar um meio de impedir o prosseguimento da guerra. Essa medida é a greve de sexo. Através 1 Seu nome significa “a que dissolve/ separa exércitos” bem explicativo para a trama. [214] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 da resistência feminina Atenas e Esparta conseguem chegar à paz e os maridos retornam para suas mulheres. No mesmo ano da apresentação de Lisístrata, 411ac, dois meses seguintes Aristófanes apresenta a obra As Tesmoforiantes. Essa peça tem como enredo o julgamento de Eurípedes. Escritor trágico, é acusado por uma assembléia de mulheres de falar calúnias e atacar as mulheres em suas obras, sempre diminuídas. A fim de que seja inocentado Eurípedes pede a seu colega Agathon, também escritor trágico, que com jeitos afeminados se passe por uma mulher e defenda Eurípedes diante das mulheres. Agathon termina por recusar e Eurípedes envia seu primo, Mnesilochous para a assembléia das mulheres. Eurípedes consegue, ao final, um acordo com as mulheres e resgata seu primo. Na Revolução das Mulheres, obra geralmente enquadrada na Comédia Intermediária, mulheres se fingem de homens e deliberam na assembléia que o governo deveria ser dado as mulheres que seriam melhor administradoras. Suas decisões incluem um governo popular, igualitário onde tudo seria de todo mundo e não haveria diferença entre as pessoas. De uma maneira geral é possível identificar (ainda que seja muito difícil separar o que é de fato opinião de Aristófanes e o que é sarcasmo...) três posições distintas acerca da mulher. A visão em geral, da sociedade ateniense, a visão dos trágicos e a visão do autor. A mulher em geral é vista em Atenas: Cleonice – Você não receia que os homens contra-ataquem daqui a pouco? Lisistrata – Não tenho medo deles. Só abriremos as...portas quando aceitarem nossas condições. Cleonice – Isso mesmo, ou então não mereceríamos a fama de criaturas mais perigosas do mundo. [...] 1º Velho – Não há fera mais indomável que a mulher, nem fogo mais destruidor. Nem a pantera é mais traiçoeira. (LISÍSTRATA) [215] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 As mulheres são vistas em Atenas como traiçoeiras, como seres que atuam por debaixo dos panos e que a tragédia as identificaria dessa mesma forma. Outro trecho de A Revolução das Mulheres, encontramos essa mesma visão sobre a figura feminina: 1ª mulher – e como nós, as mulheres, criaturas delicadas e de coração fraco, iremos falar ao povo? (A REVOLUÇÃO DAS MULHERES) Neste trecho percebemos também a visão de que as mulheres seriam frágeis, delicadas diferentemente dos homens, corajosos e guerreiros e que assim sendo podem governar o estado. Percebemos nessa simples linha que a concepção de governo da época era de um governo autoritário e não para as “criaturas delicadas”. Aristófanes também nos dá idéia do que seria a vida cotidiana dessas mulheres, como se encaixavam dentro da sociedade. Cleonice – mas queridinha, elas virão. Você sabe como é difícil para a mulher sair de casa. Uma deve ter estado muito ocupada com o marido; outra teve de acordar a empregada; outra deve ter tido de fazer as crianças dormirem; outra teve que lavá-las, outra deve ter tido trabalho com o mingau... (Lisístrata) Vemos que a vida feminina em Atenas girava em torno da casa, do marido e dos filhos, como é tradicionalmente em muitas sociedades. Em As Tesmoforiantes as mulheres se utilizam da administração da casa para basear seu governo, pois seria o conhecimento que teriam sobre administração. Os autores trágicos se mostram por Aristófanes como cheios de preconceitos contra as mulheres. Eurípedes é ridicularizado em As Tesmoforiantes, assim como Agathon que é visto como afeminado. Em várias passagens encontramos referências a esse pensar dos trágicos acerca da mulher. [216] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Lisistrata – Ó sexo dissoluto! Não escapa uma! Não é sem razão que somos assunto tudo quanto é tragédia. Quando vocês não estão pensando num homem é porque estão pensando em vários! [...] (Lisistrata) [...] 1.º Velho – Eu lembro disso! Também ajudei a cercar o homem! Seria uma vergonha se eu, só com minha presença, não conseguisse impedir umas mulheres, essas criaturas odiadas pelos deuses e pelos autores de tragédias, de continuarem a fazer violências! Se eu não der um jeito nelas jogo fora todos os meus troféus de guerra! [...] 1.º Velho – Não há ninguém mais inteligente que os autores de tragédias. Eles é que tem razão. Pode haver criatura mais sem vergonha que a mulher? [...] 1.º. Velho – Chegue para lá, aduladora! Os poetas têm razão quando dizem que com essas pestes a coisa vai mal e sem essas pestes pior. Pois bem! Agora faremos as pazes com vocês. Não maltrataremos mais vocês, nem vocês nos maltratarão. Vamos! Todo mundo junto para comemorar! (Lisístrata) De uma maneira geral percebemos que os autores trágicos de Atenas costumavam diminuir as mulheres em suas peças e percebe-se que Aristófanes se incomoda com tal comportamento pois pelo menos nas três peças analisadas as mulheres são tomadoras de decisões e pensam por si próprias a ponto de arranjarem soluções para seus problemas. É claro que o autor se utiliza da sexualidade e de muitas alegorias para fazer entender sua visão, mas não podemos destacar as críticas implícitas que existem nas suas peças. A [217] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 dificuldade da Comédia está, justamente, em conseguir compreender o sentido por detrás das alegorias e brincadeiras eróticas. Nas Tesmoforiantes é importante uma passagem do texto em que uma mulher descreve sua raiva contra o poeta Eurípedes de maneira vivaz e demonstra que esses insultos contra o gênero feminino deveria ser bem mais freqüente do que se imagina na tragédia: FIRST WOMAN - Has he not hit us enough, calumniated us sufficiently, wherever there are spectators, tragedians, and a chorus? Does; he not style us adulterous, lecherous, bibulous, treacherous, and garrulous? Does he not repeat that we are all vice, that we are the curse of our husbands? So that, directly they come back from the theatre, they look at us doubtfully and go searching every nook, fearing there may be some hidden lover. We can do nothing as we used to, so many are the false ideas which he has instilled into our husbands. […]Again, it is because of Euripides that we are incessantly watched, that we are shut up behind bolts and bars, and that dogs are kept to frighten off the adulterers. (As Tesmoforiantes) Através da voz de uma mulher Aristófanes demonstra que grande parte da desgraça feminina é conseqüência da visão da tragédia, que perpetua uma idéia de mulheres ardilosas e infiéis e que muitas permaneciam trancadas pela popularização desse estereótipo. Nas três obras que analisamos, encontramos partes em que poderiam demonstrar como Aristófanes via a mulher e o quanto isso diferia da visão geral e da visão dos poetas trágicos. Valentina – [...] Nem perguntemos o que elas irão fazer, mas deixemo-las governar logo e bem! Pensemos um pouco: sendo mães, elas pouparão de cuidar da vida de seus [218] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 filhos, de nossos soldados, evitando as guerras; para arranjar dinheiro, as mulheres são muito mais hábeis; nos cargos que ocuparão, ninguém as enganará, pois elas que vivem enganando os homens conhecem todos os truques e saberão defender-se . Quanto ao resto, nem vou falar. Se vocês acreditarem em mim serão felizes para o resto da vida! (A Revolução das Mulheres) 1.ª Mulher – [...] Vocês não crêem que eu possa dar bons conselhos à cidade? Não é crime Ter nascido mulher e o sexo não me impede de ter idéias melhores que as que andam por aí. Posso dar ao país outras coisas boas além dos filhos que já dei! E vocês? Não dão mais nada! (Lisístrata) De certa forma vemos uma visão de Aristófanes sobre a mulher, de independência intelectual, de vigor e amabilidade. Infelizmente não temos como afirmar categoricamente que essas passagens possam demonstrar a visão do autor sobre as mulheres de fato. É possível que esteja sendo sarcástico sobre isso, mas de acordo com as leituras quando Aristófanes é sarcástico ele deixa explicito seu desgosto e geralmente ataca outra pessoa ou um grupo de pessoas para demonstrar isso. Nessas passagens ele é claro e os personagens não estão em situação ridícula o que nos dá mais segurança para acreditar que sejam visões do próprio autor acerca das mulheres. Vemos através de Aristófanes que na sociedade ateniense a mulher não tinha voz dentro dos espaços políticos pois quando as mulheres pretendem entrar disfarçadas na assembléia não sabem como se portar diante dos magistrados o que demonstra que muito distantes deveriam estar das tomadas de poder. Esse “golpe” feminino é bastante recorrente nas obras desse autor. A crítica a tragédia ultrapassa o debate acerca do gênero feminino. A Comédia é inferiorizada diante da Tragédia pela sociedade ateniense e Aristófanes utiliza das suas obras para atacar esse gênero. É possível perceber [219] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 uma visão da Tragédia acerca da mulher escrito por Aristófanes de maneira sarcástica. MNESILOCHUS - Because he has known and shown up two or three of our faults, when we have a thousand? Are these not our everyday tricks? Why certainly, by Artemis, and we, are angry with Euripides, who assuredly treats us no worse than we deserve! (As Tesmoforiantes) É claro que o personagem que Aristófanes utiliza para dar voz a visão da tragédia acerca das mulheres é a do primo de Eurípedes que tem um papel essencial na peça para demonstrar o embate das visões da comédia e da tragédia. Esse personagem, parcial, demonstra a concepção da tragédia. Aliás, Eurípedes é visto por Aristófanes como inferior a Ésquilo e a Sófocles sendo esse autor o mais baixo de todos. Não sabemos qual o motivo de tamanha aversão ao mesmo escritor mas é bastante evidente em suas obras que existia alguma querela em relação a ele. Eurípedes será ridicularizado nas Tesmoforiantes, Os Arcanenses e as Rãs das obras que conhecemos. Na obra As Tesmoforiantes, Aristófanes faz parodização de personagens de Eurípedes tais como Télefo, Palamedes, Helena e Andrômedra, o que nos mostra que Aristófanes era bastante conhecedor das tragédias e não apenas um ignorante enciumado do prestígio dos trágicos. Mas partiremos para a discussão de outros pontos na obra de Aristófanes. Outra das suas características está diante da visão dos deuses. Não aparenta Aristófanes se sentir muito agradado acerca da fé incondicional nos deuses, mas devoto de pessoas de espírito forte e tomadas de decisões. Vemos no trecho seguinte essa idéia. EURIPIDES Come, get yourself to the temple. MNESILOCHUS No, by Apollo, not unless you swear to me.... EURIPIDES What? [220] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 MNESILOCHUS ....that, if anything untoward happen to me, you will leave nothing undone to save me. EURIPIDES Very well! I swear it by the Aether, the dwelling-place of the king of the gods. MNESILOCHUS Why not rather swear it by the sons of Hippocrates? EURIPIDES Come, I swear it by all the gods, both great and small. (As Tesmoforiantes) Veja que Aristófanes generaliza entre deuses “grande e pequenos” como se demonstrando que não há importância para qual deus jurar, irrelevante. Em Lisístrata também encontramos referencias pejorativas a deuses. A peça As Tesmoforiantes é muito rica para nos dar detalhes do mundo grego. Por exemplo da existência de filhos trocados entre senhoras e escravos: MNESILOCHUS Have I told how you attributed to yourself the male child your slave had just borne and gave her your little daughter? A provável aparência comum entre os homens atenienses, que deveriam usar barba e se orgulharem disso sendo sinal de virilidade (No início de Assembléia das Mulheres, as mulheres para se disfarçarem de magistrados usam barbas) (Agathon quando recusa ajudar Eurípedes em As Tesmoforiantes interrompe um processo depilatório): MNESILOCHUS This is pure invention! What man is fool enough to let himself be depilated? As for myself, I don't believe a word of it. Rituais pagãos sagrados que envolviam os mortos, em que a mãe tenta guardar o sangue da criança: [221] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 FIRST WOMAN Oh, my beloved daughter! Mania, hand me the sacred cup, that I may at least catch the blood of my child. Como era o sistema de denúncias na Grécia Antiga, que os crimes deveriam ser relatados aos magistrados e julgados: FIRST WOMAN That wretch. But as you are here, watch him well, while I go with Clisthenes to the Magistrates and denounce him for his crimes. As Tesmoforiantes, assim como todas as peças de Aristófanes por tratarem de temas mais cotidianos nos dão uma visão individualizada do mundo grego antigo e de como esses costumes (mumificados por nós Historiadores, que só vemos o mundo antigo como uma tela pintada para ser admirada) como gestos comum, diários, que têm espontaneidade e eram de visão geral entre seus contemporâneos. Também encontramos passagens que nos revelam os crimes que eram cometidos com certa freqüência em Atenas e que podemos considerar em suas obras: Valentina – Isso não terá importância. As crianças julgarão seus pais todos os homens que tiverem idade para isso. Blêpiro – Agora é que a rapaziada vai espancar os velhos à vontade, pois até hoje, sabendo quem era o pai, eles espancavam, quanto mais quando não souberem! (A Revolução das Mulheres) MNESILOCHUS ....Have I mentioned the woman who killed her husband with a hatchet? Of another, who caused hers to lose his reason wither potions? And of the Acharnian woman.... FIRST WOMAN Die, you bitch! [222] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 MNESILOCHUS ....who buried her father beneath the bath? (As Tesmoforiantes) Vemos por esses trechos que a sociedade Ateniense tinha uma vida privada violenta, fraternal que envolvia diversos tipos de crimes. Aristófanes também é mestre em utilizar-se de alegorias para conceitos espirituais e idealizações, como a Conciliação, vista no corpo de uma mulher, que une Atenas e Esparta, em Lisístrata: Embaixador – Se soubéssemos que a Conciliação era assim já estaríamos nos braços dela há muito tempo! Ministro – Nós também queremos a Conciliação! Primeiro nós! Lisístrata – Calma! Calma! Ela será de todos! A Conciliação dará tudo que vocês querem quando as negociações de paz forem concluídas. Agora vão consultar todos os outros gregos. Ministro – Para quê? Quem não vai querer essa Conciliação? (Lisístrata) Vê-se pela passagem que a Conciliação é bonita, desejável. A paz, de uma forma geral, é assim representada por Aristófanes, o desejo de ver Atenas em seu esplendor é tanta que a personificação da Conciliação se faz através do desejo e da beleza. E por falar em Atenas e Esparta, essa é outra questão bastante vista dentre as peças de Aristófanes. Esse autor é contrário a democracia, sua peça, A Revolução das Mulheres, é sarcástica quanto a um governo popular. Aristófanes é amante de Esparta e deixa esse fato explítico. Os personagens mais sensatos e fortes são espartanos, Esparta é modelo de inteligência, determinação e cautela. Quando Lisistrata propõe a guerra de sexo para salvar a Grécia, todas as atenienses parecem relutantes em deixar o prazer [223] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 dos seus maridos, mas dentre todas a única, espartana, Lampito, se mostra disposta a levar à Esparta a idéia da greve. Lisístrata – [...] Mas minha querida espartana, você parece a única que está comigo. Unamo-nos! Ainda poderemos salvar a situação! Lampito – É doloroso para uma mulher dormir sozinha, sem uma certa coisa... Em todo caso, estou resolvida, pois precisamos de paz! Lisístrata – Querida! Você é a única mulher de verdade entre todas essas aí! Aristófanes é partidário de Esparta e isso fica claro, defende um governo aristocrático ao modelo de Esparta. Talvez – e peço desculpas por permanecer apenas no “talvez” – a visão da mulher de Aristófanes seja decorrente do modelo social da própria Esparta onde não existia uma liberdade extrema às mulheres, como em Creta, mas que em relação ao sistema “democrático” ateniense elas tinham maior participação da administração publica. As peças de Aristófanes, creio, deveriam causar rebuliço na sociedade ateniense, apesar de algumas peças terem saído nos primeiros lugares. O pior lugar em que Aristófanes teria ficado no concurso das Grandes Dionisíacas teria sido o terceiro lugar, justamente na peça que ridiculariza Sócrates, As Nuvens. Sobre essa dualidade entre Atenas e Esparta, ainda encontramos outro trecho em Lisístrata acerca disso: Lampito – Nós em Esparta convenceremos nossos homens a votar por uma paz justa, leal. Mas os atenienses, que são de briga, como vai ser possível aquietá-los? Lisístrata – Não tenha receios quanto a isso. Daremos um jeito neles... [224] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Lampito – Enquanto eles tiverem navios de guerra e o Tesouro lá na Acrópole estiver cheio, acho difícil. Vemos pelo comentário final da espartana que Atenas era vista como “ladra” das finanças da Liga de Delos e que seu crescimento era visto como desvio da verba. Motivos geralmente aceitos para o início da Guerra do Peloponeso. Demonstra os espartanos como comedidos, justos e leais e os atenienses como impulsivos e violentos. Acerca da oposição entre democracia e ditadura também encontramos passagens que revelam a relação do governo democrático com seus opositores. 2.º Velho – Para mim esse cheiro não é propriamente da situação. É de coisa pior. Sinto no ar um cheirinho de... ditadura!... Se há alguma coisa espartana nisso, na certa ela está conspirando com as outras mulheres para por a mão em nosso dinheiro! (lisístrata) Cremes – Mas as mulheres, continuava o orador brancoso, são um prodígio de bom senso; sabem guardar segredos, são leais e honestas. Elas não denunciam ninguém, não processam ninguém, não falam mal da vida alheia, não entram em golpes contra a democracia, enfim, atribuía mil qualidades às mulheres e não esgotava a fonte de elogios às virtudes delas. (A Revolução das Mulheres) Podemos ver que Aristófanes, ainda que partidário de Esparta, vê aspectos positivos de uma democracia e considera os espartanos como “ditadores”. O governo democrático, pelo que entendemos, é constantemente ameaçado por golpes. Um aspecto fundamental na obra de Aristófanes é a guerra que se desenrolava entre Atenas e Esparta. É comum vermos referências à costumes de guerra, embates políticos, enfim, a situação predominante na Grécia Antiga desse [225] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 tempo. Podemos perceber por um trecho de Lisístrata como eram feitos os julgamentos dos guerreiros Cleonice – Que juramento você quer fazer, Lisístrata? Lisístrata – Vamos todas jurar com as mãos em cima de um escudo, como fazem os homens. Cleonice – Ora, Lisístrata! Esse negócio de escudo cheira a guerra e nós queremos paz. Vemos também como esse exército estava incluso na vida de Atenas e como eram vistos pelos cidadãos: Lisístrata – Por haver feito que não haja mais soldados fanfarrões desfilando sua vaidade nas ruas! Cleonice – Isso mesmo! Lisístrata – Pois atualmente as ruas estão repletas deles, passeando cheios de armas e pose, mais duros que postes! Comissário – É a atitude que convém aos bravos. Lisístrata – Com toda bravura fica muito difícil andar por aí de capacete e escudo fazendo comprinhas... Cleonice – Exatamente! Um dia desses vi um comandante de cavalaria parado perto de uma vendedora ambulante, montado, tomando sopa de legumes no capacete. Vi outro com suas armas treinando pontaria em figos e azeitonas, assustando todo mundo... O soldado fanfarrão é um dos tipos de personagens mais recorrentes de Aristófanes. É mais um elemento que conjuntamente faz parte da crítica de Aristófanes contra a guerra, a sociedade da guerra e os governos de guerra que tanto é contra. É um exército que desfila vaidoso, orgulhoso de sua bravura, mas que não passam de brutos e sem educação cidadã, pois comem em capacetes e assustam o povo com seus modos. Ou pelo menos é isso que [226] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Aristófanes nos faz acreditar. Também demonstra como a guerra é capaz de afetar a vida privada dos cidadãos e como a guerra não se restringe ao âmbito político mas a própria organização da sociedade. Lisístrata – Você é mesmo um retardado! O fato é que nós, as mulheres, sofremos duplamente com a guerra. Primeiro, quando levam nossos filhos para combater... Comissário – Cale a boca, mulher! Não fique recordando coisas tristes! Lisístrata - ...Depois, quando o natural seria experimentar os prazeres da vida e gozar a mocidade com nossos maridos, ficamos em casa sozinhas por causa da guerra. Não quero nem falar no que nós, as casadas, sofremos com isso, mas para as solteiras ainda é pior, pois elas envelhecem solitárias em seus quartos. Sabe lá o que deve ser isso? Novamente Aristófanes faz referência a vida das mulheres para exemplificar os males da guerra. Esses males os correlaciona com os afazeres administrativos. Enfim, percebemos que Aristófanes demonstra uma genialidade a respeito dos costumes e da guerra, pois, ele elenca dentro de suas peças vários âmbitos que são correlacionados com as batalhas e como isso afeta a polis grega. É preciso ser muito observador, conhecedor e perspicaz para compreender todas as amarras sociais e expô-las de forma risível (e ambígua). Vê-se pelo emaranhado das falas que Aristófanes compreende ser a guerra de âmbito político, social, cultural, privado, de gênero, econômico, diplomático, ou seja, enxerga a Grécia com uma certa “unidade” política, compreende que para Atenas continuar com seu esplendor também o tem de acontecer para o resto das ilhas e do continente grego. E é incrível enxergar isso pois, como sabemos, a Grécia é dividida em cidades-estado, muitas vezes isoladas, carregadas de patriotismo, tanto que existem rivalidades entre elas. Mas Aristófanes, comicamente, nos ensina que para que Atenas não sucumba [227] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 necessita das outras cidades-estado, ainda que com críticas. Não pormenorizando a Tragédia – é claro, tem sua genialidade própria – mas a comédia não é apenas uma ficção que faz rir, é um elemento político de características um tanto livres que demonstram a “esperteza” daqueles que ousam pensar diferente. Não é à toa que Cleon tenta processar Aristófanes duas vezes. Para demonstrar essa correlação da economia, a administração e a guerra, encontramos em Lisistrata: Comissário – Então é por causa do dinheiro que fazemos guerras? Lisístrata – Sim senhor! Vocês e todos os outros. É para poderem roubar nos cargos públicos que vocês vivem armando encrencas. Vocês podem fazer o que quiserem mas no dinheiro do povo, que está lá dentro, ninguém põe a mão! Comissário – E você! Que é que vai fazer? Lisístrata – Você ainda pergunta? Agora somos nós, as mulheres, que vamos administrar os dinheiros públicos. Comissário – Vocês vão administrar o Tesouro? Lisístrata – Que há de estranho nisso? Não somos nós que administramos os bens de vocês em nossas casas? Comissário – Mas não é a mesma coisa! Lisístrata – Como não é a mesma coisa? Comissário – Os dinheiros públicos são para a guerra. Lisístrata – mas para início de conversa não é absolutamente necessário que haja guerras. Vemos claramente a correlação entre administração e tesouro, tesouro e guerra, relações de causa e conseqüência. Observe a perspicácia de Aristófanes ao perceber que o motivo das guerras não está em outra coisa a não ser no tesouro. Além do mais, a visão de que as guerras não são necessárias. O [228] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 ponto em que gira todas essa argumentação é a paz. A paz para Aristófanes é um bem supremo, que deve ser buscado por Atenas. O autor demonstra também perceber a unidade cultural existente entre Atenas e Esparta. Também em Lisístrata podemos perceber nos últimos trechos do texto, tais falas: Lisístrata – Vocês, espartanos, têm sido muito injustos com os atenienses. Parecem até esquecidos de que são todos gregos e muitas vezes foram ajudados e até salvos por eles. [...] Lisístrata – E vocês, atenienses, não se julguem melhores que os espartanos. Se vocês pensassem um pouco perceberiam que eles fizeram mais bem do que mal a vocês até hoje! Um ultimo âmbito da nossa análise trata-se a respeito da concepção de cidadania, do governo e da justiça. Aristófanes também perpassa conceitos existenciais e de filosofia política de sua época. São passagens curtas, espaçadas mas que demonstram uma firmeza de conceitos do autor. Por exemplo, na obra A Revolução das Mulheres, Cremes – Bobo? Um Homem – E não é? O maior bobo do mundo! Cremes – Por fazer o que a lei manda? Um Homem – Então um sujeito sensato tem de fazer tudo o que a lei manda? Cremes – Mais que os insensatos. Um Homem – Isso é para os trouxas! Nesse trecho podemos perceber a relação conflituosa que convivia o ateniense entre fazer o que era moral pessoal e o que era lei de Estado. Sófocles, em Antígona, também irá fazer uma exposição acerca desse ponto, de [229] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 uma maneira trágica. Aristófanes o faz através do riso. Sobre as leis e a justiça, encontramos algumas passagens que demonstram esse pensamento de Aristófanes. 2.ª Mulher – Exatamente. A bebida forte! Todas as leis, quando bem examinadas, parecem ter sido feitas por bêbedos, bem perto da demência! E se não bebessem, como se explicariam as xingações, os palavrões que eles trocam? [...] Um Homem – Pode haver um terremoto ou alguma outra calamidade, ou vir uma nova lei, e então fica tudo como estava, idiota! [...] Um Homem – Conheço muito bem o nosso povo: votar, todo o mundo vota, mas na hora de cumprir a lei... (A Revolução das Mulheres) Também encontramos passagens em que Aristófanes faz referência à formação cidadã. Vendo-se que o autor tem domínio sobre a discussão da liberdade e sobre as leis. Também em A Revolução das Mulheres encontramos: Um Rapaz – Que falta faz a liberdade!... Mas o meu broto é muito legal! Valentina põe a mão no queixo, refletindo sobre a situação. Contempla novamente o rapaz; de repente põe as mãos nas cadeiras, com ar de quem tomou uma decisão. Valentina – Muito bem! Diante da intransigência das cidadãs e tendo em vista o artigo da lei segundo o qual os casos omissos serão resolvidos pela chefa do governo e, [230] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 mais ainda, que o espírito da lei é mais importante que a sua letra... (dirigindo-se ao Rapaz) Quantos anos tem o seu broto? Essa obra é muito importante para se perceber as concepções a respeito do governo e seus governantes. É sabido que Aristófanes não era partidário de governos populares e a obra da Revolução das Mulheres trata justamente desse tema. É através desse livro que temos idéias bastante ácidas acerca da do governo ateniense e sua formação: Valentina – Quem nada trouxer terá de jurar que nada tem, e ninguém vai querer cometer perjúrio. Blêpiro – Mas foi com perjúrios que muita gente fez fortuna! [...] Blêpiro – Só uma pergunta mais: quando alguém perder uma questão na justiça, como vai arranjar dinheiro para pagar o advogado e os escreventes? No fundo comum? Não haveria dinheiro que chegasse!... Valentina – Para início de conversa, não haverá mais questões. Blêpiro – Se você acabar com as questões o seu governo não se agüentará por muito tempo. Vê-se pela passagem acima que o governo se faz ao redor de mentiras e intrigas e que esse é o principio formador de todo governo. Bem, essa é nossa análise acerca das três obras de Aristófanes. Apenas essas páginas nos foi capaz de demonstrar acerca da vida das mulheres, da concepção das leis, do governo, da paz, da guerra, da unidade das cidades gregas, costumes de guerra, personalidades históricas, governos populistas etc. [231] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 São textos muito ricos que nos mostram que o Teatro grego está longe de ser apenas uma demonstração artística. COMO A COMÉDIA DE ARISTÓFANES COMPREENDERMOS A GRÉCIA ANTIGA? CONTRIBUI PARA Resposta: Aristófanes é um escritor que utiliza o seu ambiente, a sua cidade e seus governantes para criar seus escritos. Através dele podemos compreender como o ateniense via seus governantes. Como pensavam a sua própria cidadania, como encaravam a guerra, como viam os outros povos da Grécia, como lidavam com o exército, etc. Suas obras não falam de conceitos gerais como o amor, o destino, a imortalidade. Elas falam do momento político que vive. Utiliza do dia-a-dia, da vida cotidiana do ateninense para fazer os outros rir. Se quisermos compreender a vida cotidiana do grego antigo, precisaremos recorrer às comédias. São elas que nos mostram como se vestiam, como se portavam, como as personalidades vivas eram introduzidas no meio urbano. Conhecer a Grécia sem estudar as comédias é ter uma visão parcial, “de cima”, que pouco diz sobre o homem comum grego. Dessa forma, o que temos com a Comédia é uma visão panorâmica do mundo grego enquanto ele vivia. Os comediógrafos, especialmente Aristófanes, precisava ter conhecimento de mundo para escrever suas obras. Quando trata da guerra utiliza de argumentos democráticos, econômicos, sociais, culturais para montar suas cenas. Percebemos pelos escritos que era preciso ter domínio tanto do mundo, quando da linguagem e do espírito humano, pois a risada na Comédia é construída pelo autor pela percepção dos fatos humanos que são rizíveis, pela observação dos costumes, dos gostos, da forma do ateniense se portar. Para fazer rir é preciso conhecer o seu povo, a sua história, pois é a partir desses topoi que se constrói o hilário. Graças a genialidade desse mestre somos capazes de compreender como estava o ateniense diante da Guerra do Peloponeso, como lidava com a sua própria formação cidadã, como via o governo corrupto, como encarava seus ditados populares, como era vista a [232] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 sexualidade, as intenções homossexuais, por exemplo, são percebidas em obras como Lisístrata, quando os homens já não agüentam permanecer sem suas esposas. Ou entender como se vestiam as pessoas, ao ver as mulheres da obra A Revolução das Mulheres se caracterizarem de homens, imitar políticos e apresentar costumes de guerra. Vemos por Aristófanes a consciência da condição feminina na cidade de Atenas ou como ficava disposta a cidade através da descrição nas obras. Enfim, o que queremos dizer é que a obra de Aristófanes é a “fotografia” do passado grego. Não apenas da cidade-estado, mas uma fotografia do dia-a-dia, o medidor da temperatura, o grau de liberdade dentro da democracia, a relação dos comediantes ousados diante de um estado belicoso. Essas mesmas obras influenciarão se não me arrisco a dizer todas, ou quase todas, as obras da História do ocidente a partir de então. Todo grande autor no mundo buscou nas fontes gregas a sua inspiração. A própria História vive, hoje, um momento de volta a narrativa histórica que não por menos se baseia nos cantos, nos ágon, nas peças gregas também. Somos um mundo grego, isso é inegável. Romanos sim, mas gregos. Portugueses sim, mas gregos. Toda civilização que com a Grécia viveu, grego ficou. [233] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 BIBLIOGRAFIA Aristófanes. Duas comédias: Lisístrata e As tesmoforiantes . 1.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 192 p. Aristófanes. Obras completas. 3.ed. -. Buenos Aires: El Ateneo, 1958. 704 p. BONNARD, André. 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[235] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 LIBERDADE RELIGIOSA – UMA QUESTÃO MILENAR Cristiano Rocha Santos1 Resumo O objetivo deste artigo é apresentar o conceito de liberdade religiosa e como no Brasil essa mesma liberdade foi tratada pelas autoridades desde a época colonial. Veremos que apesar de mais de quinhentos e dez anos de história a discussão a respeito da liberdade de crença é um tema ainda presente na sociedade brasileira. Apresentarei os momentos históricos em que a busca pela liberdade religiosa ganhou força a proporção. Uma análise cuidadosa de todas as constituições brasileiras referentes ao tema servirá de fundamento para comprovarmos que o Estado sempre se preocupou, seja positiva ou negativamente, com essa temática. Por conta disso este artigo mantém constante diálogo com o Direito, uma vez que a análise proposta requer respaldo jurídico para discussão. Esse artigo é concluído com perspectivas sobre o assunto na atualidade, sendo apresentado os ranços e avanços na sociedade brasileira. Palavras-chave: Religião; Liberdade religiosa; Constituições brasileiras. Abstract The aim of this paper is to present the concept of religious freedom in Brazil and how that freedom was treated by the authorities since colonial times. We will see that despite more than five hundred and ten years of discussion about the history of freedom of belief is an issue still present in Brazilian society. Present the historical moments in which the quest for religious freedom gained strength ratio. A careful analysis of all Brazilian constitutions on the subject will Pós-graduando em História do Brasil- Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC [email protected] 1 [236] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 serve as the foundation and to show that the state has always been concerned, either positively or negatively, with this theme. Because of that this article maintains constant dialogue with the law, since the proposed analysis requires legal backing for discussion. This article concludes with perspectives on the subject today, and presented the stuffiness and advances in Brazilian society. Keywords: Religion, Religious Freedom; Brazilian Constitutions. *** INTRODUÇÃO A liberdade religiosa é um tema recorrente. Desde a antiguidade o homem luta pelo direito de cultuar publicamente seu(s) deus(es). A história está repleta de relatos de pessoas ou grupos que lutaram pelo direito de acreditar numa força superior, desafiando muitas vezes o poder instituído. Não seria exagero afirmar que toda religião em algum momento da sua história enfrentou problemas envolvendo essa temática. Na Roma antiga o teólogo Tertuliano já apelava em favor da liberdade religiosa. Ele escreveu: “É um direito humano fundamental, um privilégio natural, que todo homem adore segundo as suas próprias convicções.” 1 Tendo por base tal afirmação esse assunto será discutido. O Papa João Paulo II, no dia mundial da paz em 1999, deixou como mensagem aos chefes de Estado uma definição de liberdade religiosa. A liberdade religiosa constitui o coração dos direitos humanos. Essa é de tal maneira inviolável que exige que se reconheça às pessoas a liberdade de mudar de religião se assim sua consciência demandar. Cada qual, de fato, é 1 Revista Despertai! , 08/01/1999, p. 6. [237] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 obrigado a seguir sua consciência em todas as circunstâncias e não pode ser constrangido a agir em contraste com ela. Devido a esse direito inalienável, ninguém pode ser obrigado a aceitar pela força uma determinada religião, quaisquer que sejam as circunstâncias ou as motivações.1 As palavras acima do chefe supremo do Vaticano nos ajuda a perceber quão importante é o tema ao mesmo tempo que aponta seu valor enquanto um direito nato de todo ser humano uma vez que a motivação para cultuar determinada divindade parte do intimo de cada pessoa. A liberdade de religião engloba, na verdade, três tipos distintos, porém intrinsecamente relacionados de liberdades: a liberdade de crença; a liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa. A primeira, segundo José Afonso da Silva2: Na liberdade de crença entra a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir à religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença, pois aqui também a liberdade de alguém vai até onde não prejudique a liberdade dos outros. Se considerarmos a crença como algo subjetivo, o que na verdade é, apesar de muitas vezes ser considerada objetiva, chegaremos à conclusão que Boletim Jurídico - ISSN 1807-9008 http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=465 . SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo . São Paulo: Malheiros, 2004. 1 2 [238] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 impossível amputar a liberdade de crença. Citando Toma, Oliveira1 ratifica a impossibilidade de um governante cercear a liberdade de crença tento por base as palavras do rei persa Addashir do terceiro século a. C. : Sabei que a autoridade somente se exerce sobre o corpo dos súditos, e que o rei não tem poder algum sobre o coração humano. Sabei que, ainda que se domine os homens no que diz respeito a suas posses, não se dominará nunca o fundo da suas mentes.2 [tradução livre] Por mais ferrenha e organizada que seja uma perseguição ou proscrição é impossível afirmar que tal ação tenha tido resultados duradouros e verídicos na mentalidade individual e/ou coletiva. Um exemplo claro foi a produção de um documento utilizado pelo regime nazista, a SS, contra judeus e cristãos nos campos de concentração que os forçavam a renegar sua fé. Com certeza muitos assinaram aquela declaração tendo em mente a liberdade posterior, mas nada comprova que após a assinatura a pessoa passou a desacreditar em suas convicções. Até mesmo quem não crê acaba crendo em sua descrença. A consciência, sendo o juiz da ação humana, seria a verdadeira reguladora das práticas encaradas como “certas” ou “erradas” pela sociedade. Sendo assim, o que importa à liberdade religiosa é a “projeção da consciência”, a possibilidade de sua exteriorização já que o pensamento é por natureza livre. Entretanto, em muitas sociedades primitivas, modernas e até mesmo contemporâneas a manifestação do pensamento não era, e não é, permitida. OLIVEIRA, Neidsonei Pereira de. Liberdade Religiosa e o pleno exercício da cidadania: Ponderações sobre o descanso semanal como dia sagrado a partir do sistema constitucional brasileiro. Salvador 2007. 1 OLIVEIRA Apud TOMA. Liberdade Religiosa e o pleno exercício da cidadania: Ponderações sobre o descanso semanal como dia sagrado a partir do sistema constitucional brasileiro, Salvador 2007; p. 36. 2 [239] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 A liberdade de culto, por sua vez, consiste na liberdade de orar e de praticar os atos próprios das manifestações exteriores em casa ou em público, bem como a de recebimento de contribuições para tanto. Assim, todas as formas de exteriorização da fé devem ser respeitadas desde que não entrem em conflito com a ordem. Entretanto, essa liberdade, em certos momentos causa polêmica e divide opiniões. Um exemplo é a pratica da Imolação1. Religiões como o Candomblé, a Umbanda e até mesmo o Islamismo utilizam-se frequentemente dessa prática. Na visão biocêntrica2 os animais, assim como o homem, são seres integrantes da natureza, logo seu direito a vida deve ser respeitado. No ângulo religioso a prática da imolação ajuda a preservar a identidade religiosa e contribui para o sustento de sua tradição. A questão é: qual direito deve ser respeitado? Da tradição religiosa ou dos animais? E, por fim, A liberdade de organização religiosa diz respeito à possibilidade de estabelecimento de igrejas templos e suas relações com o Estado. Ainda envolve a criação, organização, estruturação interna e o funcionamento. Diante disso seria honesto afirmar que qualquer grupo social poderia “dar luz” a uma nova organização religiosa sem a intervenção estatal, exceto quando se tratar dos direitos legais tributários estipulados a qualquer instituição religiosa; escolher livremente as regras de filiação e exclusão como também as normas de distribuição interna do poder; e finalmente, ter a liberdade para deliberar sobre a forma como será custeada possuindo controle próprio sobre o fluxo de caixa. Diante dessas análises, é possível concluir que a liberdade religiosa pode ser classificada como plena, relativa e nula. Plena quando os três princípios básicos são honrados, relativa, quando um ou dois são amputados, e nula, quando os três são desrespeitados. A Imolação consiste em se matar um animal como forma de sacrifício a um ente superior. O princípio Biocêntrico se inspira na intuição do universo organizado em função da vida e consiste em uma proposta de reformulação de nossos valores culturais que tomam como referencial o respeito a vida. 1 2 [240] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 O discurso de Tertuliano, citado na parte inicial do artigo, aponta sua ampla visão sobre o tema. Primeiro por sua crença que a liberdade religiosa é um direito fundamental do homem. Segundo, porque ele encara o direito de crê como um privilégio natural. Terceiro, pela defesa da exteriorização da crença (culto) de acordo a consciência individual. E por fim, essa exteriorização poderia resultar na formação de locais de adoração, indo do mais simples, a saber, uma residência, a um mais complexo, um templo construído especificamente para este fim. Historicamente são três os grandes momentos em que a busca pela liberdade religiosa cristã ganha as ruas. O primeiro encontra-se na Roma antiga. A capital italiana era conhecida como uma cidade politeísta. Durante sua expansão territorial, Roma absorveu influências culturais de diversas nações. Pode-se destacar a etrusca, persa, síria e principalmente a grega. Dos últimos, não apenas a forma de adoração, mas também muito do seu modo de vida. Os deuses possuíam características humanas como virtudes e defeitos. Até certo momento na história romana, os direitos espirituais foram respeitados, o que nos leva a pensar numa liberdade religiosa plena. Os romanos exerciam o livre arbítrio para acreditar em seus deuses. O direito de crença era levado em consideração. A liberdade de culto era uma constante. Os romanos poderiam adorar seus deuses, e até mesmo aos povos conquistados era permitido prestar homenagem a sua divindade. A princípio a adoração romana ocorria nas casas e posteriormente em público através dos templos e santuários mediado pelos sacerdotes, e estes, sob autoridade do Pontifex Maximus (Sumo Pontífice), a maior autoridade religiosa romana. A construção de santuários e templos comprova a existência da liberdade de organização religiosa. O panteão, construído por Agripa com o intuito de aglutinar os deuses é uma demonstração do interesse do Estado pela adoração plural. Após o panteão ser destruído por um incêndio em 80 d. C. o imperador Adriano o reconstruiu durante seu governo no segundo século. Entretanto as coisas mudaram após o surgimento do cristianismo. [241] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 A crença surgida na Palestina se espalhou por todo o império, gerando desconforto e atritos com os adoradores politeístas que envolvia diretamente o próprio Imperador. A recusa dos cristãos em cultuar o imperador, defendendo claramente o monoteísmo levou a uma onda de perseguição, martírio e intolerância religiosa no império. Muitos Imperadores perseguiram com afinco os cristãos, tendo por destaque Nero, Juliano, Diocleciano e Galério. Contudo, a força ideológica do cristianismo conseguiu “tocar o coração” de um número cada vez maior de indivíduos gerando uma verdadeira revolução religiosa no império romano. Com o passar dos anos, o modo de pensar cristão aproxima-se das classes sociais mais abastadas de Roma o que posteriormente levará sua aproximação com o Estado. Essa aproximação ocorre em dois momentos. Primeiro, com o Edito de Milão, quando o imperador romano Constantino libera o culto aos cristãos, acabando com um longo período de perseguição, prisão, martírio e morte. A partir daquele ano, 313 d. C, os seguidores de Cristo poderiam exteriorizar sua crença, seja de forma simples através dos cultos nas casas e nas praças, como em momentos mais complexos, a exemplo as grandes assembléias (eclésias) e congressos. Segundo, com a estatização do Cristianismo. A promulgação do Edito de Constantinopla pelo imperador Teodósio I tornou o cristianismo a religião oficial do Estado. A partir daí Igreja e Estado se entrelaçam jurídica e administrativamente e juntos dão um novo fôlego ao quase derrotado império. Por outro lado, a estatização do Cristianismo custou um preço caro para os adoradores politeístas e seus deuses. Suas liberdades agora foram cerceadas, e aos poucos, o paganismo foi sendo banido do seio do Império. A intolerância estatal retira por completo a liberdade religiosa dos pagãos, sendo os mesmos posteriormente perseguidos recebendo duras penalidades. O grande paradoxo desse fato é a inversão dos papéis: A religião cristã deixa de ser perseguida, enquanto a penalidade é transferida e executada nos pagãos, isto é, afaga-se uma e maltrata-se a outra. [242] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Alguns séculos depois o segundo grande momento acontece: A Reforma Protestante (Século XVI). Influenciado pelos escritos de João Wycliffe e João Huss, Martinho Lutero, encabeça o movimento reformista na Alemanha. Com uma atuação dúbia Lutero apóia e condena os que o apoiaram. Além de defender a doutrina da justificação pela fé e a bíblia como única fonte de autoridade nos assuntos de fé, o luteranismo negava a infalibilidade do papa sustentando a necessidade da instituição de igrejas nacionais e rejeitando as ambições políticas do papado. Calvino e Henrique VIII também são exemplos de reformadores que lograram êxito em suas lutas na Suíça e na Inglaterra respectivamente. Lembrando que o calvinismo pregava a separação entre Igreja e Estado. Esse “Não” ao dogma católico ganha toda a Europa e posteriormente o mundo gerando toda uma gama de religiões. Percebe-se neste fato histórico que a liberdade religiosa é ansiada por cristãos católicos descontentes com os rumos que a administração papal tinha tomado. Por isso a Reforma é um movimento cristão dentro do mundo cristão que como conseqüência gerou novas interpretações da Bíblia e por extensão novas formas de culto e de organização religiosa. A inflexibilidade católica frente às idéias protestantes gera uma verdadeira batalha no campo intelectual, moral e físico. Como conseqüências dessa intolerância guerras são travadas, a exemplo da Guerra dos Cem anos, a contra-reforma é instaurada e a inquisição utilizada com maior freqüência e rigidez. A Revolução Americana (1776) é o terceiro grande momento. Formada em seus primórdios por europeus fugidos devido perseguição religiosa, a sociedade americana deu passos fundamentais para defender o direito de consciência. Citando Aldir Guedes Soriano, Neidsonei Pereira de Oliveira (2007,p.39) diz que “entre os perseguidos migravam cristãos, e também os humanistas, os defensores do contrato-social e os deístas”. A constituição americana é a primeira a propor a liberdade de crença. Nela a liberdade religiosa se transforma num direto e a separação entre Igreja e Estado tornou-se uma realidade protegida pela primeira emenda constitucional, a chamada Bill [243] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 of rights de 1791. Segundo essa emenda o congresso não fará lei relativa a instituição de religião ou que proíba o livre exercício desta; ou que restrinja a liberdade de palavra ou de imprensa; ou o direito do povo de reunir-se pacificamente e de dirigir petições ao governo para a reparação de suas lesões. Vejamos agora o histórico da liberdade religiosa no Brasil e como este país tratou esta questão. LIBERDADE RELIGIOSA NO BRASIL No Brasil, a liberdade religiosa pode ser analisada desde os primórdios da colonização. Nesse período há o predomínio do preconceito religioso. Prova disso é a imposição da fé cristã em detrimento da religião indígena e posteriormente dos escravos africanos. Havia um empenho maciço para manter a hegemonia da fé católica, sendo comum a propaganda maniqueísta entre o bem (catolicismo) e o mal (demais religiões). Até mesmo discussões se os indígenas teriam ou não alma foram travadas, sendo resolvida posteriormente com a publicação da bula papal Sublimis Deus em 1537. Na obra Viagem do Descobrimento (1998, p. 11), citada por Ribeiro1, Eduardo Bueno afirma: Pedro Álvares (diante da notícia do encontro da terra em 22 de Brasil de 1500) [...] ajoelhou-se em frente a imagem de Nossa Senhor da esperança, que ele próprio escolhera para ser padroeira da viagem e mandara entronizar num altar erguido no convés da Capitania. Esse fato revela a fé abrigada no coração do colonizador, o que, mais tarde, iria naturalmente influenciar a orientação religiosa da nova colônia. Outro fator de destaque é a quantidade de religiosos que compunha a esquadra 1 RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa: uma proposta para debate. São Paulo: Mackenzie, 2002. [244] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 de Cabral., entre eles o erudito teólogo Frei Henrique Soares de Coimbra, que rezou a primeira missa no Brasil. Todavia, os primeiros ecos da liberdade religiosa foram sentidos ainda nos séculos XVI e XVII. Além de muitas etnias indígenas que lutaram bravamente contra o domínio ideológico-cristão português, podem-se destacar dois “invasores” europeus, a saber, a França e a Holanda. Os primeiros durante a tomada da ilha de Guanabara no Rio de Janeiro, chamada de França Antártica, onde o comandante da expedição francesa Nicolas Durand, com o intuito de colonizar o país, prometeu liberdade religiosa total a nova colônia conseguindo “encher dois navios de guerra e um de carga com 600 homens que partiram sob bênçãos cristãs, católicas e protestantes”. 1 Os segundos, conquistando parte do Nordeste do Brasil, fundaram a colônia em Olinda através de Maurício de Nassau. O mesmo se preocupou em praticar a política da “boa vizinhança” mantendo pacífica convivência entre os locais e principalmente com os senhores de engenho, incitando entre outras praticas “a liberdade religiosa entre brasileiros (católicos), holandeses (protestantes) e Judeus”. 2 Com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, pode-se notar referências legais sobre liberdade religiosa. O apoio inglês no deslocamento dos navios lusitanos para o Brasil, fez com que Portugal abrisse as “portas” da colônia para a crença inglesa. O tratado de Comércio e Navegação assinado em 1810, no artigo XII comprova tal fato Sua Alteza Real , o príncipe regente de Portugal , declara e se obriga no seu próprio nome, e no de seus herdeiros e sucessores, que os Vassalos de Sua majestade Britânica... não serão perturbados, inquietados, perseguidos ou molestados por causa de sua religião, mas antes terão 1 NEIDSONEI apud Eduardo Bueno e Pedro Bial. É muita História. São Paulo: Objetiva, 1998. 2 http://marfaber.vilabol.uol.com.br/brasil/holandes.htm [245] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 perfeita liberdade de consciência e licença para assistirem e celebrarem o serviço divino em honra do Todo-poderoso Deus, quer seja dentro de suas casas particulares, quer nas igrejas e capelas, que Sua Alteza Real agora, e para sempre graciosamente lhes permite a permissão de edificarem e manterem dentro de seus domínios. Contanto, porém, que as sobreditas igrejas e capelas sejam construídas de tal modo que externamente se assemelhem as casas de habitação; e também que o uso de dos sinos não lhes seja permitido para o fim de anunciarem publicamente as horas do serviço divino... Porém , se se provar que eles (Vassalos Britânicos) pregam ou declamam publicamente contra a religião católica, ou que eles procuram fazer prosélitas (sic), ou conversões, as pessoas que assim delinqüirem poderão manifestando-se seu delito, se mandada sair do país, em que a ofensa tiver sido cometida. [...]1 É observado que a liberdade concedida pelo Rei lusitano aos ingleses é controlada. A adequação física das edificações religiosas as casas de habitação; A proibição do uso do sino como “sinal” do início das atividades públicas; a não permissão de críticas a igreja Católica nas pregações como o desrespeito pela liturgia da mesma são exemplos desse parcial cerceamento. Sendo assim, pode-se afirmar que a liberdade religiosa no período é parcial, já que o Estado Lusitano mantém controle sobre a forma de culto e organização religiosa dos britânicos, apesar de não desrespeitar suas crenças. 1 REILY, Duncan A. História documental do protestantismo no Brasil. São Paulo: Aste, 1993. [246] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 AS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS E A LIBERDADE RELIGIOSA A análise de todas as constituições brasileiras oferece suporte prático para a compreensão da liberdade religiosa no país. Como elas regiam e continuam regendo (atualmente a de 1988) as ações do Estado torna-se oportuno sua contemplação. Assim sendo, é imperativo apresentá-las. A constituição imperial de 1824, a primeira do Brasil, claramente expressa a cumplicidade entre Igreja e Estado. Adota certo tom liberal no “tratamento da individualidade”1 conseqüência da formação intelectual de muitos constituintes em Coimbra influenciados pelo liberalismo e reformas pombalinas. O Império reafirma, na forma da lei, a coesão e o estreitamento com a religião Católica. O artigo 52 reza: A religião Catholica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior ao templo. Além de definir a religião oficial do Império, ato que por si só gera preconceito direto e aberto às outras formas de adoração, o Estado brasileiro impõe limites a forma de adoração. Percebe-se que a exteriorização dos cultos estava limitada apenas aos locais anteriormente escolhidos para tal fim, provavelmente de conhecimento prévio do próprio Estado, forma de manter vigilância sobre os fatos. A liberdade de organização religiosa existia indiretamente, já que os lares eram os únicos e exclusivos locais de encontro. Era impedida a padronização dos imóveis (formato ou aparência de igreja ou templo), já que isso criaria representações sobre os locais, e provavelmente anúncios que 1 2 Idem, 2002, p.61 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.htm. [247] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 divulgassem os momentos de reunião ou culto. Não existe artigo que fale do poder de interferência do Estado frente a organização interna das demais crenças. Isso seria inviável diante da relação exclusiva com o catolicismo podendo gerar, se comprovado, embates sobre a real relação entre igreja e Estado terminado em possíveis crises. Entretanto, a mesma constituição impõe limites a liberdade religiosa aqui praticada no que tange a relação política-religião. Era impossível eleger-se ou votar caso o indivíduo não praticasse a religião do Estado. Diz o artigo 95: Todos os que podem ser eleitores são hábeis para serem nomeados deputados. Excentuam-se: [...] § 3° – Os que não professam a religião do Estado. Isso exclui parte da população do meio político, forçando a interiorização da fé católica, muitas vezes momentaneamente não afetando diretamente a crença pelo processo da moral provisória, como pré-requisito para eleger e ser eleito. Os “não Católicos” estavam excluídos da vida pública como Deputados e como eleitores. A intolerância religiosa é uma verdade nessa constituição. A total ausência de perseguição não é descartada. O artigo 179 § 5 da mesma nos informa: “Ninguém pode ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite a do Estado, e não offenda a moral pública”. Interpretamos a palavra “respeito” como obediência passiva e incondicional as cláusulas apresentadas no Tratado de Comércio e Navegação (Artigo XII) citado anteriormente. Esse pré-requisito era fundamental para a continuidade da “vida normal” longe de boatos, desaprovação e perseguição. Assim sendo, pode-se concluir que essa constituição não amputa a total [248] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 liberdade religiosa do brasileiro e do estrangeiro, mas na prática invalida sua eficácia já que a liberdade de culto em locais públicos e de organização religiosa era restrita. Quer dizer, a crença distinta da oficial pode existir, até porque é impossível combatê-la devido sua subjetividade, mas externá-la fora dos locais estabelecidos era inconstitucional, sujeito possivelmente a repressões. CONSTITUIÇÕES REPUBLICANAS A primeira constituição republicana, 1891, deu os primeiros passos, mesmo que lentos, para “separar” a Igreja romana do Estado brasileiro. Muitos privilégios foram retirados do catolicismo, causando descontentamento de diversos líderes da denominação religiosa. Entretanto, a Igreja também logrou benefícios com essa separação. A título de exemplo, destaca-se a manutenção intocável de suas propriedades, sejam em forma de Igrejas, paróquias, terrenos e etc. Encontramos no artigo 721, as disposições a respeito do tema religião. A sua análise ratifica esse “rompimento”. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: § 3º - Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum. § 4º - A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita. 1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao91.htm [249] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 § 5º - Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis. § 6º - Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos. § 7º - Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados. Percebe-se na leitura acima algumas mudanças nessa Constituição em relação a sua antecessora. Por exemplo, a liberdade de culto ganha maiores proporções, as confissões religiosas passam a ter liberdade para cultuar livremente sua divindade como também o direito de adquirir imóveis, gerando certa liberdade de organização religiosa. Os cemitérios seriam administrados não mais pela Igreja, mas sim pelas autoridades municipais; os casamentos civis são os reconhecidos perante a lei; e o ensino laico seria uma prerrogativa nas escolas públicas. Todavia, não se percebe mesmo diante de imposições a igreja católica a plenitude da liberdade religiosa. São muitos os privilégios ainda desfrutados por ela. Além dos citados acima, acrescente-se o financiamento de seminários católicos por um ano pelo Estado.1 Sendo assim , contesta-se esse chamado “rompimento” ou laicidade do Estado, porque se entende a liberdade em sua plenitude quando na teoria e prática as relações de cumplicidade são inexistentes entre Estado e qualquer denominação religiosa. Promulgada em 15 de julho de 1934, durante o governo Vargas, a terceira Constituição mantém a república federativa, o presidencialismo, o regime representativo e institui o voto secreto. Ela foi a que menos durou em toda a História Brasileira: apenas três anos, mas vigorou oficialmente apenas 1 Decreto nº. 119-A - de 7 de Janeiro de 1890, Art. 6. [250] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 por um ano. Segue a linha separatista entre Estado e Igreja iniciada por sua precedente. O artigo 171 é contundente neste aspecto. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: II - estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; III - ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto, ou igreja sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo; Quanto aos direitos fundamentais do homem, dando ênfase a liberdade religiosa, o Artigo 113 diz: A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: § 1- Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas. § 4 - Por motivo de convicções filosóficas, políticas ou religiosas, ninguém será privado de qualquer dos seus direitos, salvo o caso do art. 111, letra b . § 5 - É inviolável a liberdade de consciência e de crença e garantido o livre exercício dos cultos religiosos, desde que não contravenham à ordem pública e aos bons costumes. 1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao34.htm [251] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 As associações religiosas adquirem personalidade jurídica nos termos da lei civil. O uso do termo “Inviolabilidade” oferece subsídios jurídicos para que o direito individual e coletivo de crença, culto e organização religiosa seja respeitado. Lembrando que dentro dos limites estabelecidos (ordem pública e bons costumes) pelo Estado conforme citado no parágrafo 5. Quanto a liberdade de organização religiosa é tolerado dentro dos limites citados no parágrafo anterior e as Associações religiosas passam a adquirir personalidade jurídica, isto é, passam a ter direitos e deveres próprios, não se confundindo com as pessoas naturais que nelas atuam. Entretanto ocorre um fato curioso na constituição de 19371. A ausência do termo “inviolabilidade” abria brechas para que o aparelho estatal, segundo interesses políticos pudesse coibir a liberdade religiosa por meio do direito. Art. 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] § 4 - todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum, as exigências da ordem pública e dos bons costumes; Produzida no período conhecido como Estado Novo essa carta não poderia deixar de espelhar a conturbada conjuntura que o mundo atravessava. Muitos países ainda se reestruturavam economicamente após a grande 1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao37.htm [252] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 depressão de 1929; o mundo vivia na iminência da Segunda Guerra Mundial; os regimes totalitários na Alemanha de Hitler, e na Itália de Mussolini ameaçavam a hegemonia das então principais potências mundiais: Estados Unidos e Inglaterra além de parte da Europa. Internamente o Brasil passava por uma mudança radical no campo político. Desde 1934 o país vivia sobre constante agitação política, greves e o aprofundamento da crise econômica. Nesse quadro, ganham importância movimentos como a Ação Integralista Brasileira (AIB) e a Aliança Nacional Libertadora (ANL). Usando o poder que lhe conferiram como presidente, Getúlio fecha o Congresso Nacional e torna o movimento da ANL ilegal. Para difundir a ideologia do Estado Novo e censurar os eventuais descontentamentos pelos meios de comunicação Vargas cria o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Passado o período de guerra e do Estado Novo, pensou-se em uma nova constituição para o país. O presidente em curso, Eurico Gaspar Dutra começa a governar a partir de 1945 e no ano seguinte, uma nova carta magna é produzida. Esta perde o caráter fascista proveniente de sua antecessora. (GARCIA, 2006, p. 150). A nova constituição restabelece o Estado de direito, a forma federativa, as garantias aos direitos individuais, a autonomia dos poderes, eleições diretas para todos os cargos e criou a liberdade partidária e de imprensa. Quanto à liberdade religiosa, não se percebe grandes mudanças, entretanto alguns progressos são notados. O artigo 1411 aborda essa temática: A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: 1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao46.htm [253] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 [...] § 7º - É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil. § 8º - Por motivo de convicção religiosa, filosófica ou política, ninguém será privado de nenhum dos seus direitos, salvo se a invocar para se eximir de obrigação, encargo ou serviço impostos pela lei aos brasileiros em geral, ou recusar os que ela estabelecer em substituição daqueles deveres, a fim de atender escusa de consciência. Nota-se certa flexibilidade quanto à escusa de consciência. O brasileiro poderia “compensar” sua recusa prestando serviços alternativos ao Estado. O termo “inviolabilidade” retorna a nova carta após seu amputamento na constituição passada. Contudo, ainda encontra-se arraigado nesta constituição a questão da moral e dos bons costumes, cabendo o seguinte questionamento: O que era considerado bons costumes no Brasil nesse período? Uma sociedade fortemente influenciada pelo cristianismo católico concerteza refletia seus valores. Assim sendo, a lei deixa brechas para a arbitrariedade, principalmente onde a presença católica era mais visível. As religiões Afros, a título de exemplo, foram e são as que mais sofrem preconceitos no Brasil. Eram perseguidas com freqüência. As batidas policiais ocorriam com determinada constância, fruto da colonização cristã católica que a rotulou de várias maneiras, a saber, “religião do diabo”, “seita diabólica”, gente do mal” e “lugar de encostos”. Como resultado, freqüentemente ocorriam prisões, condenações, espaçamentos e até mesmo assassinatos de praticantes e adeptos. O Brasil vive sob essa constituição durante vinte e um anos. Durante esse período, vários são os acontecimentos marcantes para o país. A criação da [254] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Petrobras, do BNDES, crescimento das ferrovias e rodovias e o incentivo a industrialização, tendo por referência a automobilística são os destaques no campo econômico. No político, passa por um processo de redemocratização; recebe Getúlio novamente e o “brasileiro” desdobra-se em choro diante de seu suicídio; contempla o ambicioso plano de desenvolvimento de Juscelino; vê a nova capital ser erguida; conhece o sistema Parlamentar com Jango; enfrenta uma verdadeira convulsão entre os pretensos dirigentes e por fim, acaba retornando a ditadura, agora nas mãos dos militares. No plano social, os trabalhadores têm reconhecidos vários direitos trabalhistas, com a construção de Brasília muitos nordestinos migram para o centro-oeste chegando alguns a acumular capital. Claro que a situação não se tornou ideal (se é que algum dia existiu!), greves eram constantes, reivindicações idem. No cultural, nota-se a influência do cinema norte-americano; a chegada da Televisão; mudança nas estruturas das casas; altera-se o consumo e o comportamento dos trabalhadores dos grandes centros, consolidando a chamada “sociedade urbano-industrial”. A nova carta magna, construída em 24 de Janeiro de 19671, tratou assim o tema da liberdade religiosa: Art. 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] § 5º - É plena a liberdade de consciência e fica assegurado aos crentes o exercício dos cultos religiosos, que não contrariem a ordem pública e os bons costumes. 1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao67.htm [255] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 § 6º - Por motivo de crença religiosa, ou de convicção filosófica ou política, ninguém será privado de qualquer dos seus direitos, salvo se a invocar para eximir-se de obrigação legal imposta a todos, caso em que a lei poderá determinar a perda dos direitos incompatíveis com a escusa de consciência. Apesar de o Brasil viver num período político conturbado, com a instauração do regime militar, consegue-se notar pouquíssimas mudanças. Destacando a possibilidade da perda dos direitos incompatíveis com a escusa de consciência. Sendo assim, era necessário cumprir a “pena” estabelecida pelo Estado, mediante lei anteriormente aprovada. Mesmo com a emenda constitucional nº. 1/1969, nada se alterou. Fato notório é a permanência da expressão “bons costumes”. Este também pode ser entendido como uma tradição já que foi construída ao longo da existência do país canarinho. Destaca-se também a influência da mentalidade. Como destacado pelo historiador Lê Goff ela muda de forma gradual e lenta. As liberdades de culto e organização religiosa não ganham maiores dimensões. Novamente, como apresentado no parágrafo anterior, os bons costumes são exigidos. Os cultos são permitidos obviamente com suas limitações. A atual constituição, promulgada em 19881, é conhecida pelo seu caráter liberal, democrático e inclusivo. Por este motivo, muitos a batizaram de “Constituição Cidadã”. Esta procura objetivar a realização dos direitos fundamentais do homem pelo Estado. E muitos são os trabalhos realizados na interpretação dessa Constituição na vertente da Liberdade religiosa. O artigo 5 dessa Constituição aborda essa questão: 1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm [256] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; Essa constituição trás mudanças notáveis. A priori, o direito inviolável da liberdade de crença e consciência é consolidado. José Cretella Júnior afirma “ser a liberdade de consciência um dos mais invioláveis e supremos valores do ser humano, sendo que em tal “santuário” nenhum poder terrestre tem o direito de penetrar”. 1 Outro fator interessante é a obrigação do Estado brasileiro de proteger os locais de adoração e as liturgias dos grupos religiosos. Agora o Estado teria que se comportar como um defensor dos direitos individuais e coletivos da nação. Sendo assim, arbitrariedades cometidas pelas autoridades pode tornar o Estado culpado de negligência e intolerância. A liberdade de organização religiosa é defendida. As religiões poderiam adquirir imóveis, quando registrados frente aos órgãos competentes, recebem benesses do Estado, como a redução da carga tributária do Imposto Predial. 1 CRETELLA JUNIOR, José, op. cit., p. 216 [257] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Outra novidade é a criação de prestação alternativa a escusa de consciência. Enquanto a constituição de 1967 não previa essa alternativa a nova constituição oferece a oportunidade de reaver a pendência com o Estado. Apenas a insistência em não cumprir a prestação alternativa estipulada pelas autoridades competentes leva o indivíduo a perder alguns direitos fundamentais de cunho civil sem interferência na sua opção religiosa. Diante das abordagens algumas conclusões são válidas. Primeiro que as cartas magnas brasileiras, apesar da atual adotar um caráter progressista, nunca apontaram para uma liberdade religiosa plena. A permanência da expressão “bons costumes” retira essa possibilidade já que arbitrariedades eram cometidas a depender da influência católica, principalmente no interior, onde as idéias de liberdade chegaram com certo atraso. Segundo, mesmo nos dias atuais a sociedade brasileira continua a ser influenciada pelo Cristianismo Católico através de feriados nacionais, estaduais e municipais e ensino religioso escolar. Pensar em mudança num curto período de tempo é complexo. A princípio pelo caráter ocioso dos dias comemorativos, e por extensão, a afirmação da fé de uma das maiores colônias católicas do mundo. Contudo, algumas críticas já são percebidas principalmente pelos meios formadores de opinião, a saber, os meios de comunicação, que costumam contabilizar os “prejuízos” das indústrias e empresários atingindo o próprio Estado brasileiro com a redução na arrecadação de impostos. Como as transformações são graduais, uma mudança de conjuntura pode produzir novas formas de olhar esses dias comemorativos. Entretanto, deve-se ressaltar a inviabilidade de novos dias comemorativos para cada denominação religiosa, já que isso culminaria em conflito com os investidores e com o próprio sistema capitalista ávido por produção, venda e consumo. [258] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 ÍNDIOS XUKURU: O VIVIDO, O CONCEBIDO E O EXPRESSADO. A HISTÓRIA A PARTIR DAS MEMÓRIAS Edson Silva Resumo Apesar do discurso oficial no início da década de 1980 sobre os índios Xukuru na Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), ter enfatizado as precárias condições sociais, a falta de terras para trabalho, as perseguições de fazendeiros e ainda uma suposta tendência ao desaparecimento indígena, por meio das memórias orais constatamos que aqueles índios viviam intensas experiências de sociabilidades com o trabalho em mutirões e expressões socioculturais, como a dança do Toré e as festas religiosas em Cimbres que fora a sede de um antigo e conhecido aldeamento. A pesquisa documental e também principalmente das memórias Xukuru, revelou como a partir do vivido, do concebido e do expressado, os Xukuru fizeram uma releitura dos acontecimentos históricos para afirmarem a identidade indígena e os direitos à demarcação de terras reivindicadas. Palavras-chaves: história indígena; memórias Xukuru; Nordeste do Brasil Doutor em História Social pela UNICAMP. É professor no Programa de Pós-Graduação em História/UFPE, no Centro de Educação/Col. de Aplicação-UFPE/Campus Recife e no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena na UFPE/Campus Caruaru, destinado a formação de professores/as indígenas em Pernambuco. E-mail: [email protected] [259] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Abstract Despite the official discourse in the early 1980s on the Indians of the Sierra Xukuru Ororubá (Pesqueira/PE), have emphasized the precarious social conditions, lack of land for employment, harassment of farmers and even a supposed tendency to disappear indigenous through oral memories of those we find that Indians lived with intense experiences of social work in task forces and social cultural expressions such as dance Toré and religious festivals in which Trusses outside the headquarters of an old and well known resort. The desk research and also mainly Xukuru memories, as revealed from the lived, conceived of and expressed the Xukuru made a rereading of historical events to assert indigenous identity and rights to the demarcation of lands claimed. Key-words: aboriginal history; memories Xukuru; Northeast of Brazil *** Uma publicação de 1981 do governo estadual traz informações de seis dos sete grupos indígenas então oficialmente reconhecidos em Pernambuco. Com o objetivo de conhecer a situação em que viviam os índios no Estado, após uma pesquisa bibliográfica e contatos com pessoas vinculadas ao assunto, com o apoio da Funai, posteriormente foram realizadas visitas para observações e entrevistas nos locais de moradias indígenas, entre os meses de março a julho do ano anterior a publicação. (Condepe, 1981). O texto publicado repetiu as concepções, bem como o etnômio oficial sobre a identidade indígena, para localizar e nomear “O aldeamento dos remanescentes Xucuru”, na Serra do Ororubá. “Os Xucuru” foram contabilizados em “2.228 caboclos”, apresentando uma situação peculiar em relação aos demais grupos indígenas em Pernambuco, por serem oficialmente reconhecidos, contarem com um Posto Indígena e não possuírem uma “Reserva” com terras demarcadas. A pesquisa constatou que “os caboclos” viviam em pequenas glebas de terras espremidas entre “propriedades de [260] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 civilizados”, dificultando “o contato mais estreito entre os grupos familiares” (Condepe, 1981, p.63). Estas afirmações não correspondiam à situação vivenciada pelos Xukuru1 como narraram índios que entrevistamos. As observações resultantes da pesquisa oficial, realizada em tão curto período, não possibilitaram perceber que, apesar das perseguições e pressões por parte dos fazendeiros e de poucos índios possuírem pequenos pedaços de terras (“sítios”), os Xukuru mantinham intensas relações sociais. Os então chamados “sítios” eram espaços de sociabilidades sejam por meio de festas, novenas, ou com as “juntadas”, o trabalho em mutirão nas roças dos que possuíam terras. A pesquisa oficial constatou ainda a moradia de índios em diversas localidades, nomeadas como “aldeias” e não mais sítios, significando o reconhecimento da presença de uma população com identidade étnica específica naqueles lugares, ainda que, contraditoriamente, a própria Funai, ao nomeá-los “caboclos” ou “remanescentes”, e obviamente os fazendeiros invasores negassem a existência de indígenas na Serra do Ororubá. O texto publicado lista como “aldeias” onde moravam “descendentes da população” indígena: Canabrava, Brejinho, Gitó, Boa Vista, Goiabeira, Afetos, Santana, Lagoa, Trincheira, Matinha, Caetano, Caldeirão, Retiro, São Brás e Canivete. Muitas dessas localidades são relacionadas em documentos históricos e foram citadas ou visitadas, para realização de entrevistas, durante a pesquisa para elaboração de nosso estudo sobre aqueles índios. Após fazer uma retrospectiva histórica sobre a presença indígena na Serra do Ororubá, o texto do Condepe abordou a situação socioeconômica dos Xukuru. Foi constatado apenas um diminuto número de famílias indígenas possuindo um pedaço de terra: “Do número total de famílias, apenas 160 Utilizamos a grafia atual Xukuru, seguindo a norma da “Convenção para a grafia dos nomes tribais”, estabelecida pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em 14 de novembro de 1953 que determina o uso de maiúsculas para os nomes tribais, mesmo quando a palavra tem função de adjetivo e o não uso do plural. 1 [261] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 dispõem de terra própria, em lotes de aproximadamente ½ ha”.1 As demais trabalhavam em terras de outros índios ou de fazendeiros criadores de gado. O texto colocou em oposição os índios e os fazendeiros, afirmando que os primeiros usavam técnicas agrícolas rudimentares e nomeando os segundos como “civilizados”. Ou seja, em plena década de 1980, um texto elaborado por técnicos governamentais expressava concepções já então superadas pelos estudos especializados sobre a temática indígena. Segundo aquele levantamento (Condepe, 1981), com as terras em mãos dos fazendeiros seu uso pelos índios, ocorria em regime de arrendamento, para plantar o milho e feijão, e o capim, este último para os fazendeiros. O que restava da roça era destinado à alimentação do gado. Contudo, o texto deixou de informar em que condições isso ocorria. Vários depoimentos esclareceram que o gado era solto dentro da roça indígena quando esta estava sendo colhida. Como nos afirmou se sua entrevista “Seu” Gercino, morador na Aldeia Pedra d’Água. De acordo com a publicação, a escassez de terras influenciava nas condições de pobreza dos Xukuru, com a desnutrição e doenças decorrentes da fome. O Posto da Funai realizava o atendimento e distribuía remédios. Todavia, na própria documentação que pesquisamos do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), estão registrados os constantes pedidos dos encarregados do Posto, anteriormente a vigência da Funai, de remédios para a farmácia destinada a atender os Xukuru. Do ponto de vista das “Manifestações Culturais e Religiosas” a publicação oficial do início da década de 1980, tratou os Xukuru a partir da ênfase na idéia das perdas culturais. Eles foram denominados de caboclos que estavam “totalmente aculturados”, isso porque as expressões culturais estavam em acelerado processo de “desaparecimento”. Por essa razão a unidade do grupo estava fragilizada, e não eram mais percebidos traços de vida comunitária. Apenas na Aldeia Canabrava havia alguma coesão e apenas vestígios da língua 1 Condepe. Op. cit, p.65. [262] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 materna falada somente pelos mais velhos. Permeia o texto, portanto, a idéia de uma essência cultural expressa por meio de sinais distintivos, a exemplo do falar pleno de uma língua original, cuja ausência entre os moradores na Serra do Ororubá, significava o desaparecimento daqueles “remanescentes” indígenas. Ainda que o Toré continuasse sendo dançado, como constatou a equipe que visitou a Serra do Ororubá, o texto negava a existência de expressões socioculturais indígenas. Os pesquisadores não conseguiram “ler”, nas entrelinhas, o significado das queixas Xukuru sobre as humilhações dos fazendeiros que ridicularizavam os “costumes” indígenas. Mesmo evidenciando Cimbres como o “centro das manifestações comunitárias de cunho místicoreligiosas” indígenas, onde ocorriam grandes festejos em louvor a São João e Nossa Senhora das Montanhas, o texto afirma não se tratar de uma festa indígena, mas de uma festa regional da qual os “caboclos” participavam, juntamente como os não-índios. Não foi levada em consideração a apropriação e o sentido que os Xukuru sempre deram àquele local e as festas ali celebradas, como constatamos em entrevistas realizadas. O texto da publicação oficial não explorou o significado das narrativas indígenas sobre o “achado da imagem” de N.Sra. das Montanhas, e igualmente os rituais em que os indígenas se vestem com adereços de palhas próprios para a ocasião, enquanto expressões das apropriações e reelaborações culturais Xukuru. As narrativas e informações sobre as expressões socioculturais indígenas foram relatadas pelo “caboclo Antero”, figura que não recebeu a devida importância na pesquisa, não obstante tratar-se de Antero Pereira, o Cacique Xukuru na época, morador na atual Aldeia Cana Brava, de onde se originou o cacicado Xukuru e também um dos locais, na Serra do Ororubá, em que a maioria das famílias indígenas sempre possuiu pequenos pedaços de terras. Ainda que, do ponto de vista oficial, continuassem sendo chamados de caboclos e assim tivessem negada sua identidade étnica indígena, em meados dos anos 1980 os Xukuru se mobilizaram e participaram ativamente dos debates em torno da Assembléia Nacional Constituinte e da elaboração da nova [263] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Constituição aprovada em 1988. A participação Xukuru foi incentivada e apoiada, durante todo tempo, pelo Cimi-NE (Conselho Indigenista Missionário-Regional Nordeste, órgão anexo a CNBB). A discussão da temática indígena na Constituinte em vias de convocação foi o motivo para o Cimi se aproximar dos Xukuru, após várias tentativas anteriormente impedidas pelos encarregados dos Postos da Funai, segundo afirmaram mais tarde os índios. Em 1986, um casal de missionários foi morar na área urbana de Pesqueira, de onde se deslocavam para a Serra do Ororubá, com o objetivo de conhecer os índios e promover reuniões para discussões sobre a Constituinte. Apoiados e custeados pelo Cimi-NE, grupos de Xukuru, juntamente com os de outros povos indígenas no Nordeste, viajaram por diversas vezes a Brasília para participar de encontros de estudos, seminários, e para pressionar os deputados que discutiam a elaboração da nova Constituição. A presença dos indígenas nordestinos na Capital Federal, em conjunto com índios vindos das demais regiões do Brasil, em um momento político tão significativo, deu uma considerável visibilidade às reivindicações dos índios no Nordeste. Nesse processo, destacou-se e tornou-se bastante reconhecida, entre os índios no Nordeste, a liderança de Francisco de Assis Araújo, o “Xicão”, que, retornando de Brasília seria escolhido Cacique do povo Xukuru.1 A participação nos eventos em torno da Constituinte em muito impulsionou a organização e mobilização Xukuru. Durante as várias estadas em Brasília, o Toré foi dançado em diversas vezes e assumiu, além de um significado político, um marco da identidade e mobilização Xukuru. Promulgada a Constituição e retornando da Capital Federal, assessorados pelos missionários do Cimi-NE os Xukuru promoveram, acompanhada de muito Toré, uma reunião na Aldeia Cana Brava, com índios das diversas aldeias na Serra do Ororubá. Para relatar os acontecimentos vivenciados em Brasília, bem como tratar dos direitos indígenas garantidos na nova Constituição. Decidiram Considerações sobre a etnicidade: os Xukuru do Ororubá. Recife, Cimi-NE, p. 2-6, dig. 1 [264] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 também pela realização de reuniões nas demais aldeias, para continuar discutindo o assunto1 Ainda em 1988, como registrou a imprensa pernambucana, os Xukuru se mobilizaram também ao tomarem conhecimento de que o fazendeiro Otávio Carneiro Leão tivera um financiamento aprovado pela Sudene, para implantação da Empresa Agropecuária Vale do Ipojuca S/A, no Distrito de Cimbres. Os índios pressionaram a Superintendência Regional da Funai sediada no Recife, para impedir a emissão do atestado negativo da existência de uma população indígena no local destinado ao projeto agropecuário. Como receio de que outros fazendeiros recebessem o mesmo benefício oficial, exigiam, “em pé de guerra”, a devolução de suas terras.2 Instalou-se um clima de tensão entre os Xukuru, que exigiam a demarcação de suas terras, baseados nos direitos indígenas garantidos na então recém promulgada Constituição.3 As lideranças Xukuru reuniam-se diariamente, para discutir os direitos indígenas fixados na nova Carta Magna do país e, ao final dos encontros, dançavam o Toré, invocando a proteção e a força dos Encantados e de N. Sra. das Montanhas. Reivindicavam a devolução de documentos de suas terras, assinados pela Princesa Isabel, e uma túnica de capitão, uma espada e botões de ouro pertencentes aos seus antepassados, ex-combatentes na Guerra do Paraguai, pois tanto os papéis como os objetos tinham sido levados, em 1944, pelo sertanista Cícero Cavalcanti, ainda trabalhando na Funai no Recife, mas que, naquela época, estivera na Serra do Ororubá, a serviço do SPI. Por outro lado, os fazendeiros ampliavam as plantações de capim e soltavam o gado, para ocupar as terras reivindicadas pelos Xukuru, que prometiam reaver, baseados nos preceitos constitucionais, o que lhes pertencia por direito.4 Relatório da Equipe Xukuru. Recife, Cimi-NE, p.3, dig. “Em pé de guerra, índios Xukurus exigem devolução de terras” Folha de Pernambuco, Recife, 22/10/1988, p.1. “Xucurus querem terras de seus antepassados”. Jornal do Comercio, Recife, 22/10/1988, p.5. Idem 1 2 3 4 [265] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Com a destituição, em 1989, do Cacique José Pereira de Araújo, conhecido por “Zé Pereira” ou ainda “Zé de Ismaé”, acusado de alianças com a Funai e de não favorecer as reivindicações indígenas, os Xukuru escolheram, para substituí-lo, Francisco de Assis Araújo, o Cacique “Xicão”. O carisma e a liderança de “Xicão”, demonstrada em Brasília, durante a participação nos eventos da Constituinte, deram um novo impulso à organização e mobilização interna Xukuru, e na busca de apoio da sociedade civil, a exemplo do Cimi-NE, para a conquista dos direitos indígenas sobre as terras reivindicadas. Após pressões dos Xukuru, que ingressaram com uma ação judicial na Procuradoria da República no Recife contra o Projeto Agropecuário Vale do Ipojuca, uma portaria ministerial determinou a criação de um Grupo de Trabalho (GT), formado por técnicos da Funai, para iniciar o processo de identificação e delimitação da terra indígena Xukuru. O levantamento realizado pelo GT, coordenado pela antropóloga Vânia Fialho Souza, cadastrou 281 imóveis rurais na área delimitada em 26.980 hectares. O Prefeito de Pesqueira, secretários municipais, pelo menos um vereador e familiares do então Vice-Presidente da República Marco Maciel foram listados como posseiros. O trabalho realizado pelo GT foi bastante significativo para os Xukuru, uma vez que oficialmente as reivindicações indígenas estavam sendo reconhecidas. Mas, por outro lado, aumentaram as tensões entre os índios e os fazendeiros, que passaram a não mais ceder terras em regime de arrendamento e não aceitar trabalhadores que se identificassem como Xukuru. A recusa dos fazendeiros de utilizar mão-de-obra indígena agravou as condições de pobreza dos Xukuru que, motivados pelo levantamento do GT, iniciaram o processo de retomada de parte das terras em disputa. (OLIVEIRA, 2006, p.107-108). A primeira área a ser retomada foi Pedra d’Água, em fins de 1990. Pedra d’Água fora ocupada pelos índios, no início dos anos 1960 numa ação conjunta com a Liga Camponesa. Cerca de 300 índios, em 1990 contando com apoio jurídico do Cimi-NE, ocuparam 110 ha. em Pedra d’ Água, que estava nas mãos de 15 posseiros arrendatários de Prefeitura da Pesqueira, em terras de propriedade da União cedidas ao Município. Em nota distribuída à imprensa, [266] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 assinada pelo Cacique “Xicão”, lideranças Xukuru e de outros povos indígenas no Nordeste, parlamentares e entidades dos movimentos sociais, foi explicado ser a mata em Pedra d’ Água um local de rituais sagrados e que tinha sido destruída por posseiros. Além disso, as terras Xukuru estavam invadidas por fazendeiros, pequenos e médios posseiros, impedindo o plantio para a sobrevivência indígena, que exigiam providência à Funai.1 Em 1992, os Xukuru retomaram a Fazenda Caípe, uma área com 1450 ha, até então sob o domínio do posseiro e vereador municipal pelo PFL Hamilton Didier. Contando sempre com o apoio conquistado de organizações da sociedade civil, como o Cimi-NE, a Comissão Pastoral da Terra/PT, o Conselho Mundial de Igrejas/CMI, sindicatos rurais e urbanos da região de Garanhuns, parlamentares do PT-PE, como o então Deputado Estadual João Paulo, professores/as da UFPE, UFPB, dentre outros órgãos e personalidades, ocorreram outras retomadas. Se, por um lado, esse processo ampliou a dimensão da visibilidade política da organização e mobilização Xukuru pela demarcação de um território, por outro, aumentou a rejeição e negação por parte dos fazendeiros sobre a existência de um grupo indígena na Serra do Ororubá. Os questionamentos sobre a identidade indígena e a disputa pelo direito às terras ultrapassaram Pesqueira e ocuparam espaços na imprensa pernambucana e de outras regiões do Brasil, como o importante jornal Folha de São Paulo, que trouxe uma página inteira de uma edição de domingo, com uma longa reportagem, incluindo vários depoimentos de índios xukurus e fazendeiros. Os argumentos apresentados por índios e de fazendeiros expressavam um confronto de concepções no presente, relacionado a um passado que fundamentava a identidade indígena, conferindo o direito à propriedade das terras em disputa. Na citada reportagem, Evandro Maciel Chacon, Prefeito de Pesqueira, primo do então Vice-Presidente da República, Marco Maciel, e posseiro na Os Xukuru retomam área invadida. Porantim, Brasília, nº. 133/134, nov./dez. 1990, p.9. 1 [267] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Serra do Ororubá, dizia estar procurando mediar o conflito. Para garantir os mananciais que abasteciam a cidade de Pesqueira, localizados nas terras reivindicadas pelos indígenas, o Prefeito recorrera à Justiça contestando o relatório da delimitação do território Xukuru elaborado pela Funai. Evandro Chacon questionou a existência Xukuru, quando afirmou: “Houve uma aculturação. Se bobear, tem índio mais para São Paulo do que eu”. Para o fazendeiro Hamilton Didier, que tivera as terras em seu poder ocupadas pelos Xukuru, muitos estavam se passando por índios: “Eles estão estudando o dialeto, para dizerem que são índios. Eu dou minha fazenda para você, se você achar algum índio lá”. Ele também afirmou: “Aqui (em Pesqueira) existem tantos índios quantos existem hoje na Avenida Paulista ou em Copacabana”. E ironicamente, ainda acrescentou: “Eles, os que se dizem índios, perderam o dialeto na estrada, talvez na subida da serra”. Ao que respondeu Cacique “Chicão”: “Tomaram nossa língua. Isso foi até bom. Imagine se a gente não soubesse falar português. Estávamos mortos”.1. Para o fazendeiro, uma identidade indígena perdida e expressa, por exemplo, no falar de uma língua nativa, era um dos critérios ausentes nos que se afirmavam índios para exigir os direitos às terras. Para os Xukuru, as relações históricas explicavam a condição até vantajosa em que se encontravam, para reivindicar o que afirmavam ser de direito. Foi a partir de suas memórias que os Xukuru do Ororubá lêem a história para justificar a reivindicação de seus direitos (SILVA, 2008). As memórias Xukuru foram por eles retomadas tanto no início dos anos 1950, quando buscaram os benefícios da lei para familiares de ex-combatentes na Guerra do Paraguai e o reconhecimento oficial para a instalação de um Posto do SPI na Serra do Ororubá, como em fins dos anos 1980, quando, após participarem nas discussões e mobilizações para a elaboração da nova Constituição Federal que garantiu os direitos indígenas, passaram a reivindicar as suas terras invadidas por fazendeiros. Naquela década quando os conflitos “Caboclo, xucuru pode virar sem-terra”. Folha de São Paulo, São Paulo, 7/12/1996, p.11. 1 [268] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 por terras e os direitos indígenas em Pesqueira ocuparam o espaço público de debates por meio da imprensa, os Xukuru do Ororubá recorreram as suas memórias para contrapor as afirmações contrárias à existência indígena por parte dos fazendeiros. Por meio da pesquisa das memórias, percebemos elos de uma história coletiva, de um pertencimento, em um conjunto de situações e experiências históricas que conferem uma identidade, baseada em um espaço ancestral comum: a Serra do Ororubá. Daí ser possível afirmar a existência de uma memória coletiva: “A memória coletiva aparece como um discurso da alteridade, no qual a posse de uma história que não se divide, dá ao grupo sua identidade” (GODOI, 1999, p.147). Uma memória compondo um patrimônio dinâmico e, a exemplo do ocorrido em outros lugares e situações, “Verifica-se que ela é ativada num contexto de pressão sobre o território do grupo, atuando como criadora de solidariedades, produtora de imaginário, erigindo regras de pertencimento e exclusão, delimitando as fronteiras sociais do grupo” (GODOI, 1999, p.147). As memórias orais dos Xukuru do Ororubá sobre a Guerra do Paraguai ocupam um lugar central nas leituras da História feitas pelos índios para afirmarem o direito às terras. Elas foram conquistadas como recompensa pela participação de seus antepassados naquela Guerra. Um entrevistado lembrou o famoso batalhão “30 do Ororubá”, relatando como os Xukuru voluntários da Pátria, após lutarem e vencerem a Guerra do Paraguai foram recebidos pessoalmente, no Rio de Janeiro, pelo casal imperial. Estes, não tendo como agradecer reconheceram o direito indígena as terras, Chamavam o número Trinta dos Voluntários. Chama os Trinta dos Voluntários porque foram pro Paraguai, lutaram na guerra lá, venceram... Mas quando veio de volta, passaram no Rio de Janeiro, o rei e a rainha não tinham [269] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 com que agradecer a eles e disse: “Vocês faça sua divisão de terra, é patrimônio que eu vou assinar pra vocês”.1 Moradora da Aldeia Gitó, Dona Josefa também ouviu do pai e do avô que seus antepassados venceram a Guerra. No encontro com o Imperador Pedro I e a Princesa Isabel, os índios não foram recompensados em dinheiro, porque podiam ser enganados e roubados pelos brancos, mas receberam as terras: A pessoa que foi para a Guerra, naquele tempo eu não era nascida, eu sei contar coisa assim, alguma coisa que eu já ouvi meu avô falar, meu pai. Os parentes deles foram para a Guerra, lutaram, venceram a Guerra. E depois que eles lutaram e venceram a Guerra, a Princesa Isabel queria dar dinheiro para eles. D. Pedro disse “Não dê, porque eles são inocentes, os brancos vão roubar o dinheiro. A terra deles. Dê terra a eles, não dê dinheiro, não”. Aí ela foi e deu a terras a eles.2 Em uma alusão às abotoaduras de bronze do fardamento militar, a entrevistada afirmou terem os Xukuru recebido ainda roupas com botões de ouro. Ela falou ainda do chapéu. Destacando, em suas lembranças, o adereço que completava o uniforme de combate. Enfatizou, porém, a importância das terras, motivo de contínuas disputas, mas que foram conquistadas e documentalmente registradas no Rio de Janeiro, em uma referência à recompensa recebida pelos índios diretamente do casal imperial: Entrevista com João Jorge de Melo. Área Indígena Xukuru, Aldeia Sucupira, Pesqueira/PE, em 30/03/2002. Josefa Rodrigues da Silva. Área Indígena Xukuru, Aldeia Gitó, Pesqueira/PE, em 30/03/2002. 1 2 [270] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Ganharam aquela roupa de ouro, com aqueles botão de ouro, aquele chapéu, aquelas coisa, não é? E ganharam a terra também. O principal foi a terra. Que justamente essa terra que ainda hoje estão lutando, querendo acabar com os índios, sabendo que a terra é dos índios porque foi ganha. Está lá no Rio de Janeiro, essa cópia das terras está no Rio de Janeiro.1 “Seu” Gercino morador na Aldeia Pedra d’Água também narrou o encontro dos Xukuru com a Princesa Isabel ao retornarem da Guerra. Em seu relato, foram os índios que, receando serem roubados pelos brancos, recusaram dinheiro ou ouro oferecido, e pediram, como recompensa, as terras onde habitam: Ela queria dar o dinheiro prá pagar. Mas já tinha índio veio que já entendia mais ou menos, ai disse: “Bem, se é da senhora dar o dinheiro, o ouro nós não quer. Que a senhora dá o ouro eles roubam. Os homem branco rouba, dar a coroa eles carrega, dar espada eles toma. Assim nós queremos em terra”. Ela deu a terra. É essa aldeia aqui. Essa aldeia aqui foi dada por ela.2 A história contada pelos Xukuru do Ororubá é pontuada por acontecimentos, momentos e marcos por eles considerados fundamentais tais como: a participação na Guerra do Paraguai, a época da busca pelo reconhecimento do SPI, nos anos 1950, e o período da mobilização para as retomadas das terras, nos anos 1980, sob a liderança do Cacique Xicão. As Idem. Gercino Balbino da Silva. Área Indígena Xukuru, Aldeia Pedra d’Água, Pesqueira/PE, em 11/08/2004. 1 2 [271] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 memórias sobre a participação dos Xukuru na Guerra do Paraguai, portanto, são relidas em diferentes contextos. Nos relatos das memórias orais dos Xukuru do Ororubá, é possível perceber outros momentos que expressaram o cotidiano, os espaços de sociabilidades criados na Serra do Ororubá, o significado de Cimbres como um espaço de referência da memória mítico-religiosa para a afirmação da identidade do grupo, as relações de trabalho com os fazendeiros ou como operários na indústria, em Pesqueira. E ainda nas atividades exercidas, para sobrevivência, por falta de terras, e em razão da seca, na lavoura canavieira na Zona da Mata Sul pernambucana e Norte alagoana, ou nas plantações de algodão no Sertão paraibano. São fragmentos colhidos de relatos individuais, de memórias autobiográficas, mas que fazem parte de uma história coletiva, na medida em que toda memória individual se apóia na memória grupal, pois toda história de vida faz parte da história em geral. (HALBWACHS, 2004, 59). Analisando os relatos dos Xukuru do Ororubá, é possível afirmar, como disse Michael Pollak, quando discutiu sobre memória e identidade social, que, entre aqueles indígenas é “perfeitamente possível que por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase herdada”. (POLLAK, 1992, p.2). Compreender o significado das memórias orais Xukuru do Ororubá é compreender a “história de experiências”. Um debruçar sobre essas narrativas possibilita entender como “pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram experiências”. (ALBERTI, 2004, p.25). Essas experiências foram e são marcantes, porque foram intensamente vividas. As narrativas das memórias orais do povo Xukuru nos ajudam ainda a “entender como pessoas e grupos experimentaram o passado e torna possível questionar interpretações generalizantes de determinados acontecimentos e conjunturas”. (ALBERTI, 2004, p.26). As reflexões aqui apresentadas procuraram evidenciar como os Xukuru do Ororubá, apoiados na memória e [272] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 na história que compartilham sobre o passado, fazem à releitura de acontecimentos que escolheram como importantes, para afirmarem seus direitos, mesmo em meio às tantas perseguições, enquanto um povo indígena, a partir do vivido, do concebido e do expressado. A história de “Seu” Gercino, em 83 anos de vida, nascido sem-terra e falecendo como morador na retomada Aldeia Pedra d’Água, um lugar míticoreligioso para os Xukuru do Ororubá, é bastante significativa: no período de um século, ou seja, desde a extinção oficial do aldeamento de Cimbres em 1879, até o início dos anos 1980, quando os Xukuru do Ororubá iniciaram as mobilizações para retomada de suas terras. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERTI, V. Ouvir contar: textos em História Oral. Rio de Janeiro, FGV, 2004. CONDEPE. Instituto de Desenvolvimento de Pernambuco. As comunidades indígenas de Pernambuco. Recife, Governo do Estado de Pernambuco/Secretaria de Planejamento, 1981. GODOI, Emilia Pietrafesa de. O trabalho da memória: cotidiano e história no Sertão do Piauí. Campinas, Editora da UNICAMP, 1999. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004. OLIVEIRA, Kelly. E. de. Guerreiros do Ororubá: o processo de organização política e elaboração simbólica do povo indígena Xukuru. João Pessoa, UFPB, 2006. (Dissertação Mestrado Sociologia). POLLAK, Michael. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, 1992, 5(10), pp. 200-212. SILVA, Edson. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1959-1988. Campinas, UNICAMP, 2008. (Tese Doutorado História Social). [273] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 SER PORTUGUÊS E SER CATÓLICO: DIFERENTES USOS DA MEMÓRIA NA TENTATIVA DE CONFIGURAÇÃO DE UMA IDENTIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA Fábio Eduardo Cressoni1 Resumo Este trabalho destina-se a compreensão dos diferentes usos da memória na tentativa de constituição de uma identidade específica ao homem português quinhentista no decorrer do processo de expansão marítima-comercial desse Império. Nesse sentido, consideramos as diversas estratégias adotadas pelos padres da Companhia de Jesus na ação constituinte desse processo, agindo, com efeito, na elaboração, disseminação e manutenção de uma determinada forma de ser na América portuguesa. Palavras-Chave: Império português; Memória; Identidade. Abstract This work aims at understanding the different uses of memory in an attempt to establish an identity specific to the man during the sixteenth century Portuguese expansion process of maritime and commercial empire. Thus, we consider the various strategies adopted by priests of the Society of Jesus in action component of this process, acting, in effect, the development, dissemination and maintenance of a particular way of being in Portuguese America. Keywords: Portuguese Empire; Memory; Identity. Doutorando em História e Cultura Social / UNESP campus Franca. Docente da Fundação Hermínio Ometto (UNIARARAS) 1 [274] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 INTRODUÇÃO Muitas vezes somos apenas um eco. Seguindo essa reflexão, Maurice Halbwachs nos indica o papel da memória coletiva perante a memória individual. Quantas ações (reflexões, idéias, sentimentos e emoções) as quais acreditarmos sermos responsáveis são, na verdade, reflexos de um espelho que emite uma construção coletiva, na qual estamos inseridos juntamente aos demais membros de uma sociedade (2006, p. 64). Apreendermos a rememoração de fatos compartilhados tornase, pois, mais fácil justamente pela socialização desses, enquanto que as lembranças particulares dos eventos vivenciadas de forma única, destinadas exclusivamente a nós, são, considerando essa ausência maior de participação, com efeito, menos evocadas quando do uso da memória. O pensamento coletivo ao qual estamos sempre em contato, ao qual estabelecemos um estreito relacionamento, permite-nos essa distinção quanto às duas formas de memória aqui identificadas. (Idem, p. 67). Halbwachs inicia sua discussão acerca da memória coletiva e memória individual conjugando a idéia de que, mesmo não estando presente, podemos compartilhar uma determinada lembrança com outro indivíduo. Fazemos isso justamente porque não estamos sozinhos. Estamos sempre em contato com outros sujeitos. E, esse estar em contato, permite-nos a elaboração de uma experiência coletiva determinante a constituição de nossa memória. Lembramos individualmente também. Nosso ponto de vista sobre uma determinada vivência faz-se presente nesta situação. No entanto, esse é sempre constituído a partir do lugar e da temporalidade na qual lembramos. Logo, o individual perpassa pelo coletivo em sua constituição.1 A esse processo de rememorar, conjugando as lembranças individuais em associação com as recordações de outros indivíduos, fazendo-as, portanto, coletivas, no sentido do compartilhamento de uma determinada experiência social, a partir de diferentes perspectivas, sublinhamos seu caráter pedagógico. Esse compartilhamento social de outras vivências, determinante a elaboração dessa nova memória, fecunda no estar com o outro, modifica o sujeito 1 [275] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Feitas essas primeiras considerações, passamos a analisar o funcionamento de uma memória coletiva entre os portugueses do século XVI, memória esta destinada a constituição e manutenção de uma identidade conjunta, específica a uma determinada forma de ser.1 A todo instante, como demonstraremos, diferentes estratégias destinavam-se ao ato de lembrar o significado de se ser português na sociedade quinhentista. MÉMORIA E IDENTIDADE PORTUGUESA QUINHENTISTA Não devemos perder de vista que o indivíduo, enquanto membro de um grupo social, como afirma Halbwachs, é sempre o agente capaz de se lembrar de algo (Idem, p. 69). Evidentemente que, ao sentirem as experiências postas na sociedade portuguesa quinhentista, nem todos as percebiam da mesma forma. Uns mais, outros menos, a vivenciavam, conforme a realidade desempenhada por cada um, em meio a esse quadro social, rememorando-a nas suas mais diversas maneiras: De bom grado, diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sob a memória coletiva, que este ponto de que relembra, propondo-lhe um novo aprendizado. Aprende-se, com efeito, à medida que as recordações resignificam a vida desse sujeito, fazendo da memória uma possibilidade desse permanente transformar-se. “Forma, numa primeira acepção, designa o padrão do agir humano, quase numa dimensão de exterioridade. A acepção mais profunda, relativa à consistência, compreende ‘aquilo que faz de um sujeito o que ele é’, ou seja, sua identidade. Em outras palavras, forma quer significar, de uma vez, toda a realidade do sujeito (pessoa ou coisa)” (PAIVA, 2007, p. 07). A definição aqui empregada nos remete a possibilidade de compreender o agir humano a partir de sua forma de ser, revelando, pois, seus traços, aquilo que faz o ser ser o que é. Procura-se, com essa categoria, identificar o ser na sua concretude, isto é, de maneira concreta – do latim cum crescere, ou seja, crescer com. Todo sujeito está, constantemente, envolvido por essa realidade. Detentor de sua forma social de ser, cada indivíduo desenvolve-a constantemente, moldando-a e transformando-a a todo o momento. É a forma que caracteriza o ser, qualificando-o e revelando sua identidade. Logo, essa categoria quer explicitar o ser por inteiro, expondo sua unidade. 1 [276] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. Não é de surpreender que nem todos tirem o mesmo partido do instrumento comum. Quando tentamos explicar essa diversidade, sempre voltamos a uma combinação de influências que são todas de natureza social (Ibidem). O fato a ser destacado aqui, diz referência ao reconhecimento dessa experiência. Reconhecimento esse, dado em colaboração com a memória. O dizer missa, as procissões e outros atos públicos de fé faziam lembrar os lusitanos de sua condição, do dever ser ligado a sua identidade. Tratamos de um estado permanente, fixo, imutável? Evidente que não! A vida social, e sua dinâmica, impunham outros ditames, de toda sorte. Mas o recordar, papel permeado por essa memória específica, constituída no antigo regime português, capaz de influenciar também a memória individual de cada membro do corpo social português, estava, a todo instante, presente, cumprindo uma função própria: permitir recordar e, portanto, vivenciar uma determinada experiência. Reconhecemos a existência de lembranças compartilhadas, adotadas entre si por diferentes sujeitos. A variabilidade da identificação dessas permeia sua individualidade. Agora, os pontos vivenciados em comum indicam seu estar conectado com o outro, de maneira ampla, coletiva.1 Seu exemplo de um passeio por uma cidade européia na primeira metade do século XX é sugestivo nesse sentido. Sozinho fisicamente, a visualização de uma série de lugares sugere-lhe um compartilhamento de sentimentos e sensações congênitas a mais de um sujeito, formando, pois, um quadro de lembranças inerente a um mesmo grupo social: “Outras pessoas tiveram essas lembranças em comum comigo. Mais do que isso, elas me ajudam a recordá-las e, para melhor recordar, eu me volto a elas, por um instante adoto seu ponto de vista, entro em seu grupo, do qual continuo a fazer parte, pois experimento ainda sua influência e encontro em mim muitas das idéias e maneiras de pensar a que não me teria elevado sozinho, pelas quais permaneço em contato com elas” (2006, p. 31). 1 [277] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 A idéia da pré-existência de um testemunho ocular de uma história, na perspectiva de confirmar literalmente, via depoimento, uma acontecimento, é desmontada por Halbwachs. Para ele, novas possibilidades são reconhecidas. A junção de outras pessoas permite descrever uma experiência, reconstituindo-a a partir de um compartilhamento comum. Retomamos aqui a idéia inicial apresentada, da configuração de uma memória coletiva inerente a um determinado grupo, memória esta capaz de ajustar a configuração da identidade portuguesa no decorrer do antigo regime. Por quais motivos torna-se provável essa possibilidade? Pela vivência da mesma temporalidade e espacialidade, mas também pela socialização de uma experiência comum. Neste caso, uma experiência de organização pautada em um modelo social corporativo, de base políticoteológica. Dessa condição vemos emergir outra forma mentis, sustentada por ações determinadas a partir de uma realidade diferente do mundo no qual estamos inseridos hoje.1 A racionalidade, e afirmamos racionalidade no sentido de uma consciência dessa condição, era sentida de outra maneira. O mercador, o missionário, o oficial mecânico, o nobre situado no reino ou inserido na Tratamos de uma sociedade com bases políticas alicerçadas nos moldes de uma antiga experiência (medieval) em associação com uma nova possibilidade (moderna), na qual elementos como mercancia e fé dispunham-se a associar-se no processo de expansão marítima do Império português. Desenhamo-la tal qual a representação portuguesa quinhentista, isto é, como um corpo social. Composta pelo rei (cabeça) e demais súditos – nobres, clérigos, comerciantes, oficiais mecânicos, peões e escravos - (membros superiores e inferiores), noções como hierarquia e ordem, advindas da organização cosmológica do mundo português, apresentavam uma racionalidade político-teológica que se sustentava na figura do rei (representante da sacralidade de todo o reino), em associação com o restante desse mesmo corpo social. Originário da idéia de corpo místico, herdada do cristianismo, esse modelo de organização social se encontrava amparado no Direito, sendo, com efeito, legitimado pelo Estado. A identidade, constituída pela posição dos diferentes indivíduos nesse desenho socialmente posto aos portugueses, deveria ser compartilhada pelo entendimento comum da colaboração das múltiplas partes com o todo, interligando-as pelo sentimento de religiosidade a ser socializado pelos integrantes desse mesmo reino. Era esse o entendimento existente, legitimado na forma da lei pelo Estado. Nesse sentido, para uma visão específica do caso português, ver Xavier & Hespanha (1993). Considerando a Europa em geral, observar Kantorowicz (1998). 1 [278] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 expansão marítima, todos, em maior ou menor escala, deveriam tomar essa razão como forma de ser. Razão que possibilitava a mercancia em consonância com a fé. Lembrar, portanto, desse Cosmos auto-regulador da vida social era necessário a manutenção da hierarquia e da ordem. Consideremos hierarquia e ordem apenas no sentido de submissão, subordinação ou sujeição, como na sociedade contemporânea? Não! Tratemos essas com outro sentido, posto como de arranjamento, organização. Aqui, o papel dessa memória coletiva, sobressaindo e influenciando a memória individual, fazia-se necessário a constituição e manutenção dessa identidade. Enfim, queremos demonstrar que, entre uma multiplicidade de atores, deveria perpassar um fio condutor comum a todos, sentido em diferentes níveis de escala, conforme a condição e disposição de cada indivíduo, experimentando-o de forma diferente (por conta da percepção de sua própria memória individual, vez que esta mesma memória não atua como uma tabula rasa, conforme lembra-nos Halbwachs). A própria existência de uma multiplicidade não fere ou infringe a unidade que acabamos de mencionar. Quando pensamos na palavra unidade, tomamo-la enquanto capaz de dizer por inteiro, abranger o uno. Agora, devemos pensar na composição desse uno: faz-se ele, sozinho, composto de uma só característica? Não! Esse mesmo uno é, todo ele, múltiplo e, por isso mesmo, total. Com isto, queremos afirmar que o homem é formado por inúmeros aspectos construídos ao longo de sua vida social. Todos nós nos fazemos unos justamente pela nossa multiplicidade. O uno que forma a unidade não é algo singular, mais que isso, têm-se aqui mil faces em seu contorno. Sua variabilidade não esvazia sua unidade. Ao contrário: a multiplicidade dá vida à unidade. O ser múltiplo não nega sua unidade, assim como a unidade não nega sua multiplicidade. O estudo da forma de ser quer atingir o homem em sua totalidade, apontando, pois, para sua vivência, que é, dessa maneira, desenhada por diversos traços. Existem aspectos (traços) da [279] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 realidade que perpassam por um mesmo grupo social, definindo sua forma para todos os seres postos no mesmo quadro social. Isso não significa dizer que todos esses seres traduzem a realidade da mesma forma, a partir das perspectivas geradas por esses mesmos aspectos. No entanto, essa multiplicidade não quebra a unidade, e por sua vez a identidade, do grupo. E a colaboração dessa memória coletiva na integralização dessa identidade ocupava papel preponderante nesse processo. Essa memória resignificava o sentido dado ao passado. O evento praticado por um só sujeito, como a batalha de Dom Sebastião contra os mouros, é, não somente a experiência do rei desaparecido, mas, sobretudo, uma vivência coletiva, à medida que os portugueses não só reconheciam, mas ligavam seu passado ao passado do ato praticado por seu antigo monarca. Evidente a presença da intuição sensitiva, proposta por Halbwachs, atuando como um filtro ao receptor (Idem, p. 42-43). Mas, sobreposta, por outra forma de lembrança neste caso. Halbwachs nos fala do ponto de contato entre diferentes memórias na constituição das lembranças. Identificações em comum, que permitem aos indivíduos recordarem uma determinada experiência social (Idem, p. 39). O ponto de contato aqui estabelecido, devendo ser praticado por todos, sem distinção, era a religiosidade, marcada pelo ser português e dever ser católico.1 A própria configuração da sociedade dada pelo Estado, ao fazer-se representar como um corpo social, como anteriormente citado, expõe essa condição. Sentir-se português deveria ser sentir-se, em sua forma de ser, católico, acompanhando o restante desse modelo de organização social. O ponto comum entre todos, referendando pelo modelo era o cristianismo. Xavier e Hespanha sintetizaram essa identidade a partir da seguinte percepção: “Uma identidade que se manifestava positivamente no sentido da unidade da república dos crentes, quotidianamente veiculada na liturgia, na pregação, na organização eclesial ou, mesmo, na ordem processual canônica, pois de todo o orbe católico se podia apelar para o papa. Negativamente, este sentimento de identidade promovia a recusa de tudo o que fosse estranho ou adverso a comunidade católica, desde os pagãos, ou infiéis, aos judeus e hereges” (1993, p. 21). 1 [280] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 O compartilhamento de um mesmo ponto de contato permite, por intermédio dessa rememoração coletiva, uma reconstrução de uma determinada percepção ou lembrança inerente a um evento passado: É preciso que esta reconstrução funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no de outros, porque elas estão sempre passando destes para aquele e vice-versa, o que será possível somente se tiverem feito parte e continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo. Somente assim poderemos compreender que uma lembrança seja ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída (Ibidem). É interessante considerarmos o fato de que o reconhecimento e a reconstrução dessas lembranças ocorrem segundo as condições dispostas à capacidade de nossa rememoração. Conforme apontamos no início desse trabalho, a temporalidade e a espacialidade na qual os agentes desse processo encontravam-se inseridos devem ser elementos a serem convalidados nessa ação. Relembramos, a partir dessas pré-disposições, de acordo com nossas probabilidades. Dizemos nossas, por que individuais, mas sempre em contato com outros, portanto, coletivas também. Feitas essas considerações, interessa-nos observar os chamados pontos de convergência que permeiam essa experiência social coletiva na América portuguesa. Tratamos dessa possibilidade a partir da análise de uma série de práticas referendadas pelas cartas emitidas pelos missionários da Companhia de Jesus quando da sua instalação nos trópicos.1 Da Sob o conteúdo e função das cartas analisadas, devemos considerar o seguinte: “(...) a narrativa jesuítica não é nunca apenas relatos de fatos passados ou diagnóstico de uma situação inalterável, mas é sobretudo relato de expectativas de uma história futura, quer dizer, narração de práticas ou projetos de intervenção da Companhia de Jesus nas coisas do Brasil, de modo a dispô-las 1 [281] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 correspondência epistolar inaciana observaremos o conteúdo simbólico de uma escrita destinada a função de lembrar e ensinar os moradores dessa extensão do Império o ordenamento social pré-estabelecido por Deus, por meio do dever obrigatório da junção de todos em um só corpo social.1 USOS DA MÉMORIA NA RECONFIGURAÇÃO IDENTITÁRIA AMÉRICA PORTUGUESA: A vivência posta em prática, ela toda, fazia referência ao religioso na América portuguesa, quando da observação da documentação jesuítica. O dizer missa, as procissões, a visita dos padres aos engenhos de moer cana, enfim, o constante estar com o outro, em diversas ações, deveria ser permeado pela referência ao sagrado. Nisso, cotidianamente, o português deveria ir se adaptando, plasmando a antiga experiência a partir da nova realidade que o cercava. Essa idéia deveria ser validada para as práticas em concordância ou discordância com o estado permanente de fé proposto pelos padres da Companhia de Jesus. Sobre a necessidade do desenvolvimento da religião em novas terras, considerava-se a construção de novas igrejas como algo fundamental a rememoração do ser português, em consonância com esse dever ser católico: “(...) acabamos a igreja e é a mais devota que agora há nesta costa. A capela é segundo o mandato divino e a colher nelas os frutos católicos esperados” (PÉCORA, 1999, p. 395). Justifica-se a escolha das fontes jesuíticas pelo fato de considerarmos os missionários como mediadores desse processo. Como letrados, trabalhando em defesa da fé, da lei e do rei, estes detinham essa condição. Nesse sentido, atuavam como mediadores culturais em meio à sociedade colonial (GRUZINSKI, 1991; 2001), na perspectiva de garantirem a adoção e continuidade do modelo social pretendido. Esse estar com o outro significava lembrar, a todo instante, as conformidades do ser português com a identidade proposta. Complementando o uso das fontes jesuíticas, optamos por também observar essa questão a partir de documentos que não tivessem sido produzidos pelos padres da Companhia. Nesse sentido, fazemos uso das Atas da Câmara Municipal da Vila de São Paulo de Piratininga, destacando um conjunto de informações que nos auxiliam a interpretar o problema proposto. 1 [282] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 mui bem forrada e formosa e um terço da igreja, por causa dos altares, é também forrado. Temos o Santíssimo Sacramento enquanto eu estou em casa (...)” [São Vicente, 1551] (CARTAS II, 1988, p. 91). Nesse espaço, as práticas religiosas eram inicialmente desenvolvidas. Ainda recém desembarcados, acompanhados do primeiro governador-geral, Tomé de Souza, os padres já se punham a atuar: Achamos a terra de paz e quarenta ou cinquenta moradores na povoação que antes era; receberam-nos com grande alegria e achamos uma maneira de igreja, junto da qual logo nos aposentamos os Padres e Irmãos em umas casas a par dela, que não foi pouca consolação para nós para dizermos missas e confessarmos. [Bahia, 1549] (CARTAS I, 1988, p. 71). Ao dizer missa, no interior das igrejas, a parte considerada mais importante era a pregação. Do alto do púlpito, os jesuítas tinham como função lembrar, atuando de forma coletiva, o lugar destinado a cada indivíduo naquela sociedade. Com efeito, a pregação fazia-se o momento mais significativo da liturgia. A todo instante, as cartas fazem referência a esta questão, operando no sentido de buscar posicionar cada qual conforme seu reconhecimento, fazendo uso da memória por meio do verbo divino, resignificado na sociedade colonial pelos inacianos: “Eu [Nóbrega] prego ao Governador e à sua gente na nova cidade que se começa e o Padre Navarro à gente da terra. Espero em N. Senhor fazer-se fruito, posto que a gente da terra vive toda em pecado mortal (...)”(apud LEITE, 1956, p. 110). O trecho final da última carta citada expõe ainda a situação da América aos olhos dos membros da Companhia de Jesus. O estado [283] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 permanente, por mais que atuassem, era de constante pecado. Essa situação era praticamente imutável em diferentes povoações da Colônia: (...) quiseram tratar mal o nosso Padre e o ameaçaram com um pau, e o ameaçador foi um homem que há 40 anos que está nesta terra [João Ramalho] e tem já bisnetos e sempre viveu em pecado mortal e anda excomungado. E o padre não quis dar missa com ele e daqui veio, depois da missa acabada, a querê-lo maltratar. [São Vicente, 1551] (CARTAS II, 1988, p. 118). Nesta capitania a mor parte da gente estava em pecado (...) [Espírito Santo, 1550] (CARTAS II, 1988, p. 84). (...) os cristãos que aqui viviam em conformidade com eles [índios] e talvez em piores costumes [Bahia, 1550] (CARTAS II, 1988, p. 75). Logo, os jesuítas atuavam no sentido de lembrar e também inserir no corpo social português os novos participes, determinando suas funções. Todos deveriam pertencer ao mesmo corpus, postos que estavam pelo pacto de sujeição, sendo que a presença jesuítica nesse processo tinha como finalidade (re) atualizar “(...) a memória da alienação coletiva ao poder no ato mesmo em que a enunciação produzia o destinatário e nele a audição adequada” (HANSEN, 2000, p. 35). Nesse sentido, os jesuítas traçavam diferentes estratégias, considerando a permanente necessidade de garantir a manutenção da ordem e da hierarquia pré-existentes, entre os habitantes da Colônia, procurando fazer da religiosidade um elemento presente nessa identidade, reconfigurada na América. Entre as formas propostas, a devoção por meio dos atos públicos de fé também era utilizada, no sentido de atuar na elaboração de uma memória coletiva, voltada a tarefa de unificar a todos. [284] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 As cartas fazem referência a ações desse gênero a todo o momento, como nas comemorações alusivas a Semana Santa: “Chegado o tempo da Semana Santa, determinou-se que se fizesse o monumento mais concertado e devoto que se pudesse, e dele tomou o encargo um devoto ourives que viera aquele ano de Lisboa, mui afeiçoado à Companhia (...)” [Bahia, 1561] (CARTAS II, 1988, p. 335). Na Vila de São Paulo de Piratininga, os vereadores se reuniam para designar a assistência do poder público em relação à festa, determinando a organização das ruas dessa localidade: “(...) a limpem a longo do campo (...) para os caminhos estarem limpos e que isto façam e cumpram esta semana que vem que é a semana santa ( ...)” [14.04.1585] (ACTAS I, 1914, p. 263). As recordações da forma de ser portuguesa também aparecem nas narrativas alusivas às procissões. Aqui observamos o exemplo do Corpus Christi português na América: “Outra procissão se fez dia de Corpus Christi, mui solene, em que jogou toda a artilharia que estava na cerca, às ruas muito enramadas, houve dança e invenções à maneira de Portugal” (apud LEITE, 1956, p. 129). Aqui, destacamos a referência ao fato da representação ocorrer conforme o modelo praticado no reino, isto é, na rememoração do ato original, refeito novamente em outro espaço e em outra temporalidade, mas com o mesmo significado inicial. Aos ausentes nas procissões, por vezes eram aplicadas penas, como cobrança de multas. O mais interessante diz respeito ao fato de tais cobranças serem arbitradas e executadas, ou desconsideradas, não pela Igreja. Não era encargo dos padres fiscalizarem, punirem, ou dispensarem do pagamento os faltantes. Faziam-no os vereadores, registrando suas ações nas atas das Câmaras. Isso ocorria justamente pelo motivo dessa prática fazer parte do conjunto de ações inerentes a identidade portuguesa. E a punição, neste caso, atuava no sentido de lembrar ao indivíduo ausente seu papel no corpo social instalado em novas terras. Observemos o caso da Vila de São Paulo de Piratininga: [285] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 (...) os senhores vereadores condenaram os que não vieram a procissão de Santa Isabel, conforme a ordenação do Rei, em duzentos réis cada um (...) [03.07.1581] (ACTAS I, 1914, p. 180). Os vereadores deram juramento dos Santos Evangelhos a Antonio de Proença, para que declarasse que se ao dia de Santa Isabel e véspera se estava doente de doença que não pudesse vir a procissão; ele disse e declarou que pelo juramento que tinha recebido que a tal tempo estava doente e os ditos vereadores o absolveram de duzentos réis por não vir a procissão [03.07.1581] (ACTAS I, 1914, p. 184). As procissões, assim como outros atos públicos de fé, excluíam os indígenas e os negros da participação em conjunto com os brancos. Acompanhando as concepções de ordem e hierarquia do corpo social quinhentista português, a separação e o ordenamento do desenvolvimento dessas ações expunham a lógica lusitana no arranjamento dos diferentes indivíduos em meio à sociedade colonial. Assim o era em Pernambuco, e também nas demais capitanias, ficando a cargo dos jesuítas esse modelamento, que dava forma a nova experiência praticada nestas terras, resignificando o antigo modo de ser por meio do contato com o outro. Observamos essa condição a partir da descrição de uma das correspondências elaboradas por Nóbrega: Fiz procissão com eles [indígenas e negros] todos os domingos da Quaresma, e entre homens e mulheres seriam perto de mil almas, afora muitos que ficam nas fazendas, não entrando nela os brancos, porque mais à tarde faziam os brancos a sua; e o que ia de uma à outra de diferença era que os brancos, a poder de varas, juízes e meirinhos e [286] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 almotacéis, se não podiam meter em ordem, sempre falando; e os escravos iam em tanta ordem e tanto concerto, uns atrás dos outros, com as mãos sempre alevantadas, dizendo todos “ora pro nobis”, que faziam grande devoção aos brancos (...) [Pernambuco, 1552] (CARTAS I, 1988, p. 149-150). As romarias também aparecerem na narrativa jesuítica como acontecimentos destinados a rememoração da cultura portuguesa. A peregrinação a um determinado local, considerado sagrado, explica-se pela inserção de um elemento da natureza, valorizado pelo caminhante. Deslocando-se sozinho ou em grupo, o peregrino reafirmava determinadas práticas por meio de um ato devocional, associando a fé a determinados espaços físicos, havendo ainda a possibilidade da veneração a um determinado santo. Dessa maneira, os romeiros surgem nas cartas elaboradas pelos inacianos, sempre os apresentando a partir de uma perspectiva que procura preencher os elementos aqui citados: A primeira [celebração] em uma ermida da casa, que se chama Nossa Senhora da Ajuda, em que estiveram os padres antigamente e, por estar agora longe da vila, não residem nela: é casa de muita devoção e romagem, pelos muitos milagres que tem feito e faz, e eu sou testemunha de vista de alguns, como é sarar pessoas que eram quebradas e de outras muitas diversas enfermidades quase incuráveis, encomendando-se a Nossa Senhora e lavando-se em uma fonte que miraculosamente nasceu ao pé dela. E outras pessoas, mandando buscar água e bebendo-a, por sua intercessão o Senhor é servido dar-lhe saúde, e dos milagres que Nossa Senhora tem feito há aí um instrumento público, [287] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 ainda que não de todos, porque cada dia se fazem. Não duvido que, se fora nesse Reino, fora de grande concurso de gente (...) [Porto Seguro, 1566] (CARTAS, II, 1988, p. 502). Assim como as demais práticas mencionadas ao longo do texto, esse deslocamento realizado como ato público de fé, era estimulado pelos padres da Companhia, sempre na direção de permitir o compartilhamento de uma memória coletiva a partir de um presente vivido como experiência sacra, possível a partir da reprodução de determinados gestos. Essa reconfiguração da realidade marcaria a formatação das experiências sociais praticadas nessa nova dimensão do Império português, ficando a cargo dos padres, como letrados maiores dessa sociedade, atuar em conformidade com as concepções de ordem e hierarquia, buscando fazê-las funcionais pela rememoração da religiosidade como elemento preponderante ao significado social do ser português no mundo colonial quinhentista. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nosso objetivo foi demonstrar o uso de diferentes práticas adotadas pelos padres da Companhia de Jesus para tentarem efetivar uma determinada forma de ser, pautada por um modelo de organização social estabelecido pelo reino português na sede e nas demais dimensões do Império. Pautado pela concepção de ordem e hierarquia no arranjo de um grande corpo social, pré-estabelecido por Deus, essa cosmologia procurava garantir uma identidade uniforme aos portugueses e demais habitantes submetidos a este modelo de organização, caso dos indígenas e negros da América portuguesa. No interior dessa identidade, observamos uma característica comum em meio à multiplicidade dos habitantes da Colônia. O fio condutor proposto a todos era a religiosidade (leia-se catolicidade), como tentativa de aceitação de um modo tido como correto de se viver. Das ações cotidianas [288] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 públicas, narradas a partir da análise da documentação epistolar inaciana, notamos esse constante vigiar jesuítico, disposto a modificar a forma social adotada pelos moradores da Colônia, propondo-lhes, por intermédio de diferentes mecanismos, uma transformação, na perspectiva de moldá-los, conforme os parâmetros aqui identificados. As ações citadas visavam rememorar os gestos culturais portugueses experimentados na sede do Império. Evidente que não se reproduzia fielmente a forma de ser reinícola. A realidade social quinhentista variava muito. A distância guardada entre duas terras separadas pelo Atlântico mediava não somente uma extensão física. A diversidade geográfica e os contatos com o outro (colono, índio, negro) constituíam uma nova experiência. Com certeza, havia modificações. Mas, essas ocorriam sempre tomando como base o modo de vida anterior, reorientado pela condição diferenciada do novo momento. A ação jesuítica em meio a esse processo visava atuar no sentido de proporcionar a rememoração da identidade portuguesa quinhentista, lembrando a todo instante o lugar de cada indivíduo nesse desenho social. Nesse sentido, consideramos que as diferentes ações mencionadas ao longo de nosso texto – construções de igrejas, dizer missa, pregação aos diferentes grupos, combate aos maus costumes e pecados, punições, comemorações, procissões e romarias - podem ser lidas como símbolos de uma estratégia de compartilhamento de uma cultura, a partir da constituição de uma memória coletiva frente à memória individual dos portugueses. Trata-se, pois, de uma tentativa de configuração, ajustada a partir das novas experiências realizadas além-mar. Das sensações provocadas pelas manifestações de fé na Colônia, procurava-se, portanto, realinhar a vida social, fazendo uso dessas ações como formas de memória destinadas não só a lembrar, mas, sobretudo, tentar manter uma lógica social tida como ideal. Assim, ficando a cargo da Companhia de Jesus, esse processo fora praticado nas diferentes extensões do Império português, tecendo uma série de representações sacras destinadas a [289] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 lembrar que o ser português deveria o ser em consonância com o ser católico, fazendo de cada gesto social uma referência a Deus. Essa terra, na ação missionária jesuítica, deveria construir-se a partir da experiência anterior, despertada na memória de seus habitantes como vivência do sagrado em permanente associação com todas as demais práticas sociais, procurando, por meio dessa mesma memória, tentar definir a forma de ser de toda a gente que a habitava. 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[291] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 HISTÓRIA DA LOUCURA NA OBRA “O ALIENISTA” DE MACHADO DE ASSIS: DISCURSO, IDENTIDADES E EXCLUSÃO NO SÉCULO XIX Márcio José Silva Lima1 Resumo Este trabalho tem por finalidade analisar a loucura a partir dos discursos da construção de identidade do louco. Para tanto, relacionamos a pesquisa historiográfica com a obra “O Alienista” que traz uma abordagem contundente sobre a forma como a sociedade e a ciência do século XIX, tratava o problema da loucura no Brasil. Neste período, a loucura esteve permeada por uma relação de poder que ao produzir discursos acabava por recorrer à exclusão como solução do problema. A partir daí foram construídos os primeiros hospícios que tinham como função excluir um “transtorno” que se fazia cada vez mais presente. Não apenas o indivíduo cientificamente diagnosticado como doente mental, mas também, o morador de rua, o órfão, o “diferente”, o alcoólatra... Todos deveriam ser escamoteados e afastados do convívio social. Palavras chaves: Loucura. Discurso. Identidades. Graduado em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). Especialista em história do Brasil e da Paraíba pela Universidades Integradas de Patos (FIP). Atualmente mestrando em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: [email protected] 1 [292] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Abstract This study aims to analyze the madness from the speeches of the construction of identity of the madman. For this, we relate the historical research with the book "O Alienista" that brings a forceful approach on how society and science of the nineteenth century was the problem of madness in Brazil. During this period, the madness was permeated by a balance of power to produce speech ended up resorting to exclusion as a solution to the problem.From there the first hospices were built which had the function to delete a "disorder" that was increasingly present. Not only the individual scientifically diagnosed as mentally ill, but also the homeless, the fatherless, the "different", the alcoholic ... Everyone should be palmed and away from social life. Keys words: Madness. Discourse. Identities. INTRODUÇÃO No século XIX, o Brasil passava por transformações no campo da esfera política, econômica, social e cultural. Entre 1841 e 1889 tivemos a consolidação do Estado Monárquico conhecido como Segundo Reinado. Seus objetivos principais eram reforçar a figura do Imperador – D. Pedro II, recém coroado – e restaurar o Poder Moderador criado outrora pelo seu pai D. Pedro I. Dessa forma, o Império brasileiro almejava a implementação de novas práticas políticas e institucionais, uma vez que a população aumentava nas cidades de forma desordenada. Com o crescimento das cidades aumentava também os seus problemas de ordem social. Era preciso, portanto, uma série de transformações por parte das autoridades a fim de sanar tais problemas. É neste contexto que a medicina, inspirada no ideal positivista e pelas práticas médicas francesas, vai servir como meio neste processo de transformação, defendendo a moral e o progresso dessa sociedade. Em meio a tantas transformações, uma delas acabou sendo a [293] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 produção de um discurso que iria qualificar e excluir aqueles que estivessem fora do padrão social da época, identificando-os como loucos. “O doente mental, o excluído do convívio dos iguais, dos ditos normais, foi então afastado dos donos da razão, dos produtivos e dos que não ameaçavam a sociedade”. (GONÇALVES E SENA, 2001, p. 49). A loucura como doença psicossomática não é uma adversidade contraída pelo homem apenas na modernidade. Desde muito tempo relata-se a presença da doença mental. Entretanto, o seu tratamento ao longo da história foi deveras questionável. Sua cura muitas vezes este ligada à extrema exclusão ou até mesmo a rituais religiosos e cerimônias de exorcismo. A loucura enfocada pela ciência, tendo a psiquiatria como uma especialidade médica, só ocorreu a partir do século XVIII, quando em 1793, o médico francês Philipp Pinel, libertou os doentes mentais que estavam acorrentados no Hospital Bicêtre. Desde então, a abordagem de cunho científico, passou a fazer parte do tratamento da doença mental. (PERES; BARREIRA, 2009) Porém, esta nova abordagem materializou também o olhar da indiferença. Aquele que não seguia o padrão comportamental que a sociedade determinava como uma pessoa sã, passou a ser “diferente” e caracterizado como louco. A loucura foi transformada em uma identidade para representar não apenas o louco de origem psicossomática, mas todos aqueles que estivessem para além do padrão social estabelecido. O louco, a partir dos discursos de poder-saber estipulado pela religião, política e ciência, foi excluído do convívio social e afastado daqueles que eram ditos normais, racionais, os que não ameaçavam a ordem da sociedade. Diante do quadro acima citado, buscamos nesta pesquisa aproximar os fatos relatados pela historiografia com a narrativa da Literatura. Encontramos na obra “O Alienista” de Machado de Assis, um retrato do Brasil no século XIX, no que concerne ao comportamento social em relação à loucura. A nosso ver, História e Literatura não se opõem, mas podem se relacionar. Nelas o fato histórico se amplia com a narração e o trabalho científico se valoriza com o estilo literário sem que se comprometa à totalidade dos fatos. [294] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 O uso da Literatura como fonte de pesquisa pode ser de fundamental importância para o historiador em sua labuta. Não queremos dizer com isso que a literatura documenta o real ou constitui representações semelhantes àquelas produzidas pelos discursos científicos, filosóficos, políticos, jurídicos. Mas o que deve ser considerado na literatura é que toda sua ficção de algum modo está sempre enraizada na sociedade. Pois o contexto em que ela é escrita abarca determinadas condições de tempo, espaço, cultura e relações sociais em que seu autor está inserido a criar suas fantasias. (FERREIRA, 2009) Desse modo, a Literatura constitui uma fundamental ferramenta na pesquisa histórica. Sua utilização permite ao pesquisador refletir as condições sociais, bem como todo o contexto em que a obra fora escrita. Segundo Ferreira: Afora tal propósito específico, perseguido também pela Sociologia, devem interessar à pesquisa histórica todos os tipos de textos literários, na medida em que sejam vias de acesso à compreensão dos contextos sociais e culturais: literatura maior ou literatura menor, escritos clássicos ou não, eruditos ou populares, bem-sucedidos no mercado ou ignorados, incensados ou amaldiçoados. (FERREIRA, 2009, p. 71) Assim, mesmo que a Literatura não tenha a pretensão de representar fielmente o passado – tal como almeja a História – ela nos fornece informações de grande utilidade acerca da época em que ela foi abordada. Como diz Roger Chartier: “a ficção é “um discurso que ‘informa’ do real, mas não pretende representá-lo nem abonar-se nele”, enquanto a História pretende dar uma representação adequada da realidade que foi e já não é”. (CHARTIER, 2009, p.24). [295] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Portanto, neste trabalho procuramos buscar uma aproximação da Literatura – no caso a obra machadiana O alienista – com a pesquisa historiográfica, pois concordamos com Ferreira quando declara que: Afirmar que a literatura integra o repertório das fontes históricas não provoca hoje qualquer polêmica, mas nem sempre foi assim. Mais que isso, nas últimas décadas, os textos literários passaram a ser vistos pelos historiadores como materiais propícios a múltiplas leituras, especialmente por sua riqueza de significados para o entendimento do universo cultural, dos valores sociais e das experiências subjetivas de homens e mulheres no tempo. (FERREIRA, 2009, p.61). Quanto ao referencial teórico, ainda nos apoiamos em Michel Foucault por este ter produzido um vasto trabalho sobre o tema abordado, principalmente no que diz respeito à análise do discurso. A leitura de Foucault nos possibilitou compreender as relações de poder1 que permeavam os discursos das autoridades que administravam o Brasil em meados do século XIX. Época em que as transformações políticas e econômicas, bem como o desenvolvimento científico, fizeram com que a Medicina interviesse na sociedade, sendo a partir daí construído os primeiros discursos em relação ao tratamento da doença mental. A partir de sua obra Vigiar e punir, Michel Foucault passa a examinar as relações entre poder, saber, ciência, controle e dominação na sociedade contemporânea. Seu estudo, baseado na filosofia de Nietzsche, é denominado “Genealogia do Poder”. Nele Foucault parte da constatação de que o poder é exercido na sociedade não apenas através do Estado e das autoridades, mas em todas as relações sociais de maneira distinta e variada. Mesmo que por muitas vezes não nos demos conta, vivemos permeados por relações de poder. Ver mais em: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução e organização de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 1 [296] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 MACHADO DE ASSIS E A LOUCURA Em 1882 o escritor brasileiro Machado de Assis publica em Papéis Avulsos, o conto “O Alienista”. Nesta obra o autor lança uma crítica desenfreada ao cientificismo, à sociedade da época e às relações de poder, sobretudo naquilo que diz respeito à loucura. A narrativa se passa numa vila brasileira do século XIX, chamada Itaguaí. Conta a história do Dr. Simão Bacamarte, um grande estudioso brasileiro, que aos trinta e quatro anos, após concluir seus estudos nas universidades de Coimbra e Pádua, retorna ao Brasil para se dedicar totalmente às atividades científicas. Ao chegar às terras brasileiras, Simão Bacamarte casa-se com D. Evarista da Costa e Mascarenhas e continua seus estudos sobre as ciências médicas. Percebendo que em Itaguaí os doentes mentais são afastados da sociedade e vivendo no mais completo isolamento em suas residências, Simão Bacamarte tem a ideia de construir uma casa especial onde toda população com problemas de loucura pudesse ser assistida. A partir daí, pediu licença às autoridades para realizar a construção daquilo que seria o primeiro asilo brasileiro. Apesar de alguns comentários contra, em pouco tempo o asilo havia sido construído. Localizado na Rua Nova, uma das mais belas ruas de Itaguaí, o asilo recebera o nome de Casa Verde. Os loucos passaram a ser capturados, e todos os tipos de “maluquices” havia naquela casa. Porém, conversando com seu amigo boticário, Simão Bacamarte fez uma interessante confidência: revelou ao boticário que como homem de total dedicação à ciência, sua finalidade na construção da Casa Verde não era prestar assistência à população psicossomática, mas tão somente, estudar profundamente a loucura. Simão Bacamarte dá continuidade aos estudos e a administração da casa verde, entretanto, com o passar do tempo, qualquer atitude suspeita dos moradores de Itaguaí é motivo para conduzi-los ao asilo. O primeiro da lista foi o Sr. Costa, um dos mais estimados cidadãos da vila que após ter recebido uma herança, não tratou de administrá-la corretamente vindo a ficar pobre [297] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 novamente. Sendo atestada sua insanidade, foi recolhido ao asilo cinco meses depois. Simão Bacamarte levou ao asilo seu amigo boticário, o padre da Vila, entre outras figuras ilustres, e não poupou nem a sua esposa. Daí em diante, qualquer suspeita era motivo para se levar alguém à Casa Verde. De tantos recolhimentos Itaguaí sofreu uma Revolução seguida de um golpe de Estado, pois a população começava a demonstrar insatisfação diante de tais fatos. Contudo, de nada adiantou. Em seus estudos Simão Bacamarte concluiu que quatro quintos da população itaguaiense estava hospedada naquele asilo e que a sua teoria, bem como suas experiências avançava a um novo estágio. Os hóspedes da Casa Verde deveriam ser libertados e consequentemente, o Dr. Bacamarte conseguiu junto à câmara uma nova permissão para recolher o restante da população que antes era considerada em perfeito estado mental: os simples, os leais, os desprendidos e os sinceros. A situação fora invertida. Após muito tempo de estudos e pesquisas, Simão Bacamarte induzindo os pacientes da casa verde à transgressão, imaginou ter sanado suas doenças, vindo a libertar todos eles. Porém, não ficou satisfeito. Apesar dos resultados alguma coisa incomodava o Dr. Bacamarte que continuou os estudos e chegou à seguinte conclusão: ele era quem estava doente. Acreditava que era uma questão científica e reunia em si mesmo a teoria e a prática, por isso deveria se reclusar na Casa Verde e continuar com a busca pela cura de si mesmo. Morreu em sete meses sem ter encontrado a cura que tanto procurava. Podemos relacionar a obra machadiana, bem como os acontecimentos ocorridos no Brasil, num processo social permeado pelo discurso psiquiátrico. Época em que este discurso (Séc. XIX) levava a cabo um novo modo de exclusão e de inserção do louco no hospital psiquiátrico. A loucura como um empecilho deveria ser erradicada da esfera social e escamoteada para além da sua presença. No século XIX, a loucura transformava-se em um “problema” de ordem social para as autoridades brasileiras. A sociedade médica apontava como solução, a criação de estabelecimentos que pudessem atender de forma [298] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 adequada os portadores de tal patologia. As autoridades por sua vez tentavam resolver a adversidade trancafiando os doentes em cadeias públicas ou hospitais. As fugas eram constantes, os loucos de baixo poder aquisitivo ficavam na condição de moradores de rua, às margens da sociedade. Já aqueles que pertenciam às famílias mais abastadas, eram prontamente camuflados no seio de seus parentes, mas eram também, descentrado do convívio social. A CRIAÇÃO DO PRIMEIRO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO DO BRASIL Na obra machadiana, o Dr. Simão Bacamarte é apresentado como um autêntico filho da nobreza brasileira, um dos maiores médicos não só do Brasil, mas também de Portugal e da Espanha. Um homem ilustre que após ter rejeitado o glorioso convite de trabalhar lecionando na Universidade de Coimbra ou expandindo os negócios da monarquia em Lisboa, decide retornar à pátria e dedicar-se ao estudo das ciências. Saindo da ficção e retornando ao nosso recorte histórico, devemos relacionar a criação do primeiro hospício do Brasil à pessoa de José Clemente Pereira. Tal como o personagem Dr. Simão Bacamarte, Jose Clemente Pereira estudou na Universidade de Coimbra vindo a graduar-se em Direito e Cânones. Veio para o Brasil seguindo a corte portuguesa que na época fugia das invasões napoleônicas, chegando aqui aos 12 de outubro de 1815. Na capital do Rio de Janeiro viveu como advogado até iniciar carreira pública e política. Em 25 de julho de 1838, através de manobras astutas foi eleito provedor do Hospital da Santa Casa da Misericórdia, onde tornou sua gestão vitalícia, administrando aquela instituição até sua morte em 10 de março de 1854. (RAMOS E GEREMIAS, s/d, p.01). Antes mesmo de ter conquistado a administração do hospital, Clemente Pereira já havia apresentado um projeto no qual propunha uma reforma significativa àquela Instituição. Reforma esta que também já havia sido preconizada pelos membros da Academia Imperial de Medicina. A partir da [299] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 reforma deveriam ser criadas unidades especializadas que fossem responsáveis pelo tratamento específico de cada doença. Todavia, perante o aumento desordenado da população e de seu rápido crescimento urbano, a cidade do Rio de Janeiro, que havia sido transformada em Capital, não conseguia mais dar conta da saúde daquela crescente população, principalmente ao que concerne aos doentes mentais. O número de “alienados” 1 aumentava diariamente sendo recolhidos às degradáveis Santas Casas ou até mesmo às prisões. Dessa forma, a situação em que se encontravam os doentes mentais no Brasil do século XIX, era a seguinte: aqueles de famílias mais abastadas ficavam trancafiados em seus próprios domicílios, os mais carentes, que por sua vez estavam no estado mais alterado da doença, eram enviados às prisões ou às Santas Casas, e os mais mansos espalhavam-se pelas ruas das cidades. Machado de Assis narra isto no seu romance: A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam á solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a câmara lhe daria O termo “alienado” utilizado ao longo do texto concerne aquele que sofre de alienação mental; louco, maluco, doido. Difere, portanto, do termo marxista em que alienado se refere a quem vive sem conhecer ou compreender os fatores sociais, políticos e culturais que o condicionam e não se reconhece naquilo que faz, mantendo-se voluntariamente ou não, afastado da realidade que o cerca. Contudo, no Brasil dos séculos XIX e XX, nem todos aqueles taxados pelas autoridades como alienados eram de fato, doentes mentais. 1 [300] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 quando a família do enfermo o não pudesse fazer. (ASSIS, 2010, p. 15) Diante da situação de descaso para com o doente mental em nosso país, em 1830, a Comissão de Salubridade da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro foi a primeira Instituição a se manifestar a respeito do tratamento dado aos alienados brasileiros. Os protestos da referida Comissão receberam o respaldo da população, e permaneceram ininterruptamente nos anos subsequentes sendo legitimados por autoridades médicas e políticas. Entretanto, ao analisarmos os livros, revistas e artigos1 referentes a este período, o questionamento que se plasma é se a sociedade em todo seu conjunto estava sensibilizada com a situação dos alienados ou se estava apenas procurando uma forma de escamotear um determinado grupo que não se adequava aos padrões sociais? Seria uma questão de solidariedade ou uma questão de “limpeza” social? Foucault vai mais além afirmando que: Existe em nossa sociedade outro princípio de exclusão: não mais a interdição, mas uma separação e uma rejeição. [...] Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão o corpo [...] (FOUCAULT, 2007, p. 10-11) Esta discussão é deveras pertinente, pois como já fora dito antes, os hospícios que vieram a seguir não eram dedicados apenas aos alienados, mas 1 Ver referências ao final do texto. [301] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 também, aos epilépticos, alcoólatras, idosos, paralíticos, e até moradores de rua. Caso também retratado por Machado de Assis: Nunca nenhuma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí – a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu a captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas – duas ou três de consideração – foram recolhidas à casa verde. O alienista dizia que só eram admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. (ASSIS, 2010, p. 39-40) Podemos analisar este fenômeno inserido num discurso próprio daquilo que Foucault chama de sociedade disciplinadora, pois, “a disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma entidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras”. (FOUCAULT, 1996, p. 36) A trajetória dos alienados no Brasil – séc. XIX esteve inserida numa relação de poder. Poder este que disciplina de acordo com os parâmetros “legais” do Direito constituído, mas não só isso, posto que este poder disciplinador não diz respeito APENAS àquele que advém de cima para baixo, conforme cita Thomas Hobbes em seu Leviatã. Este poder é um poder que age nas relações sociais. Desta forma: O poder não deve ser pensado como fundamentalmente emanado de um ponto (em geral identificado com o Estado). Deve-se ter, pois, em mente na procura de uma compreensão da dinâmica das relações de poder, a ideia de uma rede. Rede esta que permeia todo o campo social, articulando e integrando os diferentes focos de poder [302] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 (Estado, escola, prisão, hospital, asilo, família, vila operaria, etc.) que se apóiam uns nos outros. (MAIA, 1995, p. 88.) Ainda no que diz respeito a este contexto em que a dinâmica das relações de poder encontra-se vinculada em todos os segmentos sociais, dois anos após José Clemente ter assumido o cargo de provedor da Santa Casa de Misericórdia, D. Pedro II era declarado rei do Brasil onde sua maioridade havia sido decretada. Como parte das comemorações e em homenagem ao novo rei, fora determinado pelo conselho do Império, apoiado pelo ministro do Estado e pelo provedor da Santa Casa de Misericórdia, o decreto imperial n° 82 que afirmava a criação do primeiro hospital psiquiátrico brasileiro e latino americano. O hospício recebeu várias nomenclaturas: Hospício de D. Pedro II, Hospício D. Pedro II, Hospício D. Pedro Segundo e Hospício de alienados D. Pedro II. A verdade é que apenas 11 anos depois, aos 05 de dezembro de 1852, é que o hospício foi inaugurado com honras e festas pomposas. (RAMOS E GEREMIAS, s/d, p. 07). É preciso considerar aqui que a criação do Hospício D. Pedro II estar longe de ter sido uma simples homenagem ao novo Imperador, nem tampouco teve a finalidade de ajudar aqueles pobres miseráveis alienados. Várias eram suas razões, principalmente a disputa de poder médico-político entre a junta de Higiene Pública e a Santa Casa de Misericórdia. A disputa se dava pelo fato da Junta denunciar alguns proprietários de moradias por falta de cuidado com suas casas, sendo, portanto, consideradas focos de doenças e pragas. O problema é que estes proprietários eram benfeitores da Casa de Misericórdia. Neste caso, foram prevalecidos aqueles de poder político e econômico dominante, a saber, os proprietários e a Santa Casa. (RAMOS E GEREMIAS, s/d, p. 04). Dessa forma, a intenção de manipular era maior que a intenção de prestar assistência àqueles que necessitavam. Por um lado os médicos, que representando a Junta de Higiene Pública, visavam legitimar a loucura como objeto do discurso científico, por outro, a Santa Casa de Misericórdia, que respaldada pelos proprietários de moradias, almejava continuar a gestão de [303] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 acordo com suas metas e satisfações. Sobre tal relação entre ciência (medicina) e política Foucault expõe o seguinte: Consideremos o exemplo da medicina clínica, cuja instauração no final do século XVIII é contemporânea de um certo número de acontecimentos políticos, de fenômenos econômicos e de mudanças institucionais. É fácil suspeitar, pelo menos intuitivamente, que existam laços entre estes fatos e a organização de uma medicina hospitalar. (FOUCAULT, 2007, p. 183) Segundo o próprio Foucault, este fenômeno pode ser analisado de duas formas distintas. Uma primeira análise seria do tipo simbólica onde se percebia na organização da medicina clínica, assim como no processo histórico em questão, duas expressões que agindo de formas simultâneas, refletem e simbolizam uma a outra. Elas funcionariam reciprocamente como se fossem espelhos, Medicina e Política funcionando em um jogo de mutualidade numa esfera de interesses. Assim as idéias médicas de solidariedade orgânica, de coesão funcional, de comunicação tissular – e o abandono do princípio classificatório das doenças em proveito de uma análise das interações corporais – corresponderiam (para refleti-las, mas também para nelas se mirar) a uma prática política que descobre, sobre estratificações ainda feudais, relações de tipo funcional, solidariedades econômicas, uma sociedade cuja dependência e reciprocidade deviam assegurar, na forma da coletividade, o analogon da vida. (FOUCAULT, 2007, p. 183) [304] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 A outra análise seria casual. Teria por finalidade procurar saber até que ponto a conjuntura política da época, bem como o seu contexto econômico determinou o nível de consciência daqueles que exerciam a atividade científica. Seria então, uma análise que procurasse compreender o posicionamento, o sistema de valores, a percepção das coisas e o estilo de racionalidade daqueles homens “dotados” de ciência dos séculos XVIII e XIX. De uma forma ou de outra, aplicando tais análises ao tratamento aplicado aos loucos no Brasil do século XIX, percebemos que ambas as Instituições, Medicina e Política, estavam mais interessados na ação em benefícios próprios do que em atender as necessidades daqueles que mais precisavam: os doentes mentais. Por outro lado, tudo o que a sociedade queria era se manter livre daquela escória nem que para isso fosse preciso trancafiá-los como se presos fossem. Segundo Freitas, “as pretensões de poder do alienista sobre o alienado correspondiam às pretensões da sociedade (moderna) de ser senhora de si mesma, decidir o seu destino, buscar nela própria os seus fundamentos, ser soberana sobre o bem e o mal”. (FREITAS, 2004, p.90). Portanto, o interesse político e o discurso da Medicina, de certa forma, acabaram por receber o respaldo da sociedade. SOBRE O TRATAMENTO APLICADO CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE À LOUCURA E A Sendo a doença mental uma psicopatologia possível ao ser humano, não nos causa estranheza saber que em outros lugares fora da Capital Imperial, o impasse dos loucos também se fazia presente. Em várias localidades ocorreram movimentos em prol de uma segregação institucionalizada. Os loucos formavam um grupo que aos olhos da sociedade, não deveriam manter qualquer relações, estavam, portanto, fora da esfera social. Segundo Oda e Dalgalarrondo (2005, p. 1005): [305] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Há ainda, nos documentos, clara indicação da existência de uma pressão social no sentido da internação dos alienados, de sua retirada das ruas, ação operacionada através das autoridades policiais, nas capitais e no interior das províncias. [...] Desta maneira, nossa análise dos documentos indica que, no Brasil, o processo de institucionalização dos alienados foi marcado pela construção de uma opinião pública consensual quanto à necessidade e, sobretudo, quanto à legitimidade de sua reclusão em hospícios próprios. Durante o Segundo Reinado não foi apenas o Hospício de alienados D. Pedro II o único responsável pelo tratamento dos doentes mentais. Como a loucura havia se tornado um “problema” de ordem nacional, outras instituições objetivando o tratamento psicossomático foram construídas em algumas províncias brasileiras como, por exemplo: Pernambuco (1864 – Hospício Provisório de Recife-Olinda), Pará (1873 – Hospício Provisório de Alienados), Bahia (1874 – Asilo de Alienados São João de Deus), Rio Grande do Sul (1884 – Hospício de Alienados São Pedro) e Ceará (1886 – Asilo de Alienados São Vicente de Paulo). (ODA E DALGALARRONDO, 2005). Entretanto, após terem sido inaugurados, longe de oferecer condições de igualdade aos enfermos, estes lugares pareciam mais um antro de proporções infernais. Eram desprovidos de ambientes específicos para enfermos e funcionários, não havia infraestrutura e saneamento, ausência de tratamento humanitário, sem tratamento médico específico, apresentavam problemas de superlotação e, sobretudo, sem condições básicas de higiene. Dessa forma, os hóspedes destes “hospícios” agonizavam em uma dor que parecia não ter fim. Diante desse quadro, as doenças se espalhavam como peste e o aumento no índice de mortalidade era inevitável, vindo a óbito até mesmo os funcionários destes hospícios. [306] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Um fato importante de se levar em consideração é que mesmo sendo uma época cujo conhecimento científico estava em ascensão, o conceito de doença mental parecia ainda não estar completamente definido. Os hospícios que a princípio tinha a função de receber pacientes de natureza psicossomáticas acolhiam também pessoas acarretadas por problemas de diversas naturezas: paralíticos, caducos, epilépticos, alcoólatras, mulheres apaixonadas, etc. De modo que passou a ser construído uma matriz identitária capaz de definir estas pessoas como “loucas” e assim poder escamoteá-las para as margens da sociedade, trancafiando-as e condenando-as à exclusão. Tanto na obra “O Alienista” quanto no tratamento dado aos loucos no Brasil, a problemática da Identidade se faz presente. O que é ser louco? Quais são os parâmetros utilizados para se classificar a loucura? O que deve ser seguido para se diagnosticar alguém como louco? De acordo com a ficção machadiana, para que o individuo fosse considerado louco bastava apenas uma simples mudança no seu comportamento ou simplesmente, a emissão de alguma fala “indevida”. No contexto da obra machadiana, bem como ao tratamento aplicado a doentes mentais no século XIX, percebemos uma invenção de identidade construída em torno de um discurso baseado nas relações de poder por parte das autoridades. A classificação da loucura, ou seja, a sua identidade é estipulada levando em consideração não o diagnóstico médico fundamentado pela ciência, mas tão somente, a possibilidade do sujeito, seja ele esquizofrênico, idoso, morador de rua, apaixonado ou ladrão, ser retirado do convívio social. Assim, a identidade “loucura” se expande para todos os casos que estejam descentrados do “padrão” social. Nas palavras de Stuart Hall, sobre o processo de construção da identidade, É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e [307] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 institucionais específicos, no interior de práticas discursivas especificas, por estratégias e iniciativas específicas. Além disso elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma identidade idêntica, naturalmente constituída, de uma “identidade” em seu significado tradicional – isto é, uma mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça, sem diferenciação interna. (HALL, 2000, p. 109.) Tomaz Tadeu da Silva analisando esta atuação identitária vai mais além e afirma que “a identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua definição – discursiva e linguística – está sujeita a vetores de força, a relação de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas”. (SILVA, 2000, p. 81). Exatamente como aconteceu em Itaguaí e no Brasil do século XIX. Desta forma, fica fácil perceber que a loucura no período estudado – século XIX – foi uma identidade construída por um discurso que visava não só à cura, mas que ia além, procurava através de uma relação de poder conquistar méritos, escamotear problemas sociais e alcançar glórias políticas. Em sua crítica à sociedade e a ciência de sua época, Machado de Assis evidencia este fato: O barbeiro tornou logo a si, e, agitando o chapéu, convidou os amigos a demolição da casa verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde, e derrocando a influencia do alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por [308] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 ver o seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca. (ASSIS, 2010, p. 54). Portanto, no Brasil do século XIX, em relação ao problema da loucura, o fenômeno não ficou limitado apenas ao campo científico como doença psicossomática, mas foi expandido para outros problemas de ordem social como o crime, a pobreza, a miséria, entre outros, e se cristalizando através do discurso permeado por relações de poder. Discurso esse que narrava e definia vários problemas sociais a partir de uma única identidade: o louco. Nessa construção de identidade Tomaz Tadeu constata que: Primeiramente, a identidade não é uma essência; não é um dado ou um fato – seja da natureza, seja da cultura. A identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado, podemos dizer que a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder. (SILVA, 2000, p. 96-97). A identidade se torna um conceito criado a partir de um discurso cuja finalidade é exercer sobre o outro o controle e a exclusão. Segundo Foucault (1996, p. 8-9), [309] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 [...] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. Em O Alienista também fica perceptível a construção de identidades em torno de um discurso no qual estão presentes as relações de poder. Afinal, Simão Bacamarte não teria ido além do seu projeto se não fosse a partir de um discurso que identificasse as pessoas “diferentes” como loucas. No Brasil não foi diferente. No Rio Grande do Sul, por exemplo, os alienados eram remetidos para o Hospício São Pedro, dirigido pela Santa Casa de Misericórdia que também tinha como atividade criar menores abandonados, acolher pessoas pobres, providenciar burocracias funerais aos menos favorecidos e realizar curativos nos presos. Em 1859, do total de 860 enfermos atendidos, apenas 48 eram doentes mentais. (ODA; DALGALARRONDO, 2005). Isto revela estatisticamente que a principal função da Casa estava longe de ser o tratamento dos alienados. Um problema quanto à identidade ali se fazia presente, pois quem era louco? Os menores abandonados? Os presos? Os pobres? A situação nos hospícios era tão precária que devido à falta de acomodações dignas para os hóspedes, estes eram enviados às cadeias públicas, o que a nosso ver, não trazia tantos benefícios em relação ao tratamento. Apenas retirava os doentes das ruas e do convívio social. Os doentes eram semelhantes aos mendigos, aos moradores de rua, aos ladrões e criminosos que aos olhos dos administradores públicos, precisavam ser tirados da sociedade. Quanto ao tratamento dado aos doentes mentais nos Hospícios, este não era dos melhores. Na Província de Pernambuco os alienados eram separados dos demais doentes, ficando em cubículos com pouca higiene e solidão. Ainda em 1883, o Hospício da Tamarineira (Pernambuco), abrigava 244 internos que eram acompanhados por apenas dois médicos e sete guardas. [310] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Neste lugar, o único motivo de saída do doente era o óbito. Em 1884, o Hospício apresentou problemas sanitários, ficando seus hóspedes infeccionados pelo mau cheiro advindo do depósito de dejetos fecais e pela água contaminada retirada da cacimba. (ODA; DALGALARRONDO, 2005). Nestes hospícios os médicos representavam instrumentos de poder responsáveis pela rejeição e discriminação dos loucos. Eram os médicos quem classificavam os loucos como terríveis, traiçoeiro, mansos, perigosos... Na maioria dos casos esta classificação tinha estreita relação com a condição social do doente. A vida nos hospícios era tão caótica que os moradores das cidades, onde eles se situavam, evitavam passar pelas suas proximidades só para não ver ou ouvir o clamor de seus moradores que presos às grades de ferro, gritavam e gesticulavam clamando em agonia por socorro. CONCLUSÃO Observamos aqui que o tratamento aplicado aos alienados no Brasil do século XIX, esteve longe de ser uma atitude humanitária. Poderíamos dizer que aquele foi um período diferente do atual, que nossa mentalidade é distinta e que o homem é fruto do seu tempo. Mas, a verdade é que desde o início do seu tratamento pelas vias científicas, até o final dos anos 1980, a loucura foi tratada a partir de processos de exclusão, através de asilos, manicômios, presídios ou instituições especializadas em serviços desta natureza. A loucura foi legitimada pela Medicina a partir de um discurso científico respaldado tanto pelas autoridades quanto pela sociedade. Com a Medicina, a loucura passou a ser identificada como patologia moral ou somática, o médico passou a definir o estatuto do louco. Tal como o protagonista de O Alienista, era o médico que determinava quem era louco, doente ou incapaz. Diagnóstico este que na maioria das vezes se plasmava em prol de interesses particulares. A partir do discurso científico foi possível criar um processo identitário para qualificar aqueles que deveriam ser excluídos do convívio social. Para [311] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 tanto, foram criadas as Instituições destinadas a alienados sendo o Hospício D. Pedro II, a primeira delas. Entretanto longe de oferecer soluções contundentes para os doentes mentais, aqueles que mais necessitavam, os hospícios serviram como ferramenta de exclusão onde os direitos humanos eram abolidos e a dignidade era uma palavra vazia de sentido. Neste contexto, a obra machadiana torna-se um importante veículo de reflexão sobre o tema. O Alienista não é apenas uma crítica ao cientificismo do século XIX, a narrativa é antes de tudo, uma ironia aplicada à sociedade brasileira que na época esperava da Medicina a das ciências a solução para a loucura. Em um problema que se tornava cada vez mais presente no convívio social, tal solução foi a exclusão. E, para excluir era necessário primeiro produzir um discurso capaz de legitimar a ação. Com o discurso produziram-se identidades e com a identificação do pobre, do alcoólatra, do mendigo e do doente mental como louco, obtinha-se carta branca para a exclusão. REFERÊNCIAS BARREIRA, Ieda de Alencar; PERES, Maria Angélica de Almeida. 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Procurando articulá-lo ao objetivo de aproximação política, cultural e econômica de Brasil e Portugal, o conflito europeu foi representado em diferentes estratégias por seus colaboradores e editores. Palavras-chave: Primeira Guerra Mundial – relações luso-brasileiras – relações culturais. Abstract The paper examines the way as First World War was represented by Atlântida: mensário artístico, literário e social para Portugal e Brasil. With a Binational character and intend to promote the narrowing of the Luso-Brazilian relations, the magazine was published between 1915 and 1920, covering the period of the development of the Great War. Trying to relate it to the goal of closer political, cultural and economic relation between Brazil and Portugal, the European conflict was represented at different strategies for its contributors and editors. Keywords: First World War - Luso-Brazilian relations – cultural relations. [315] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 “Porque é a ocasião de mais uma vez ligarmo-nos em acorde uníssono, brasileiros pelos portugueses, mostrandonos patriotas, certos do futuro, fiéis à nossa raça.” Paulo Barreto Revisitar, reconstruir, reunir. O uso contínuo do prefixo “re” – signo do fazer de novo, no novo olhar – é um indicativo claro dos objetivos da revista que se denominou Atlântida para trazer novamente a um denominador comum dois países. A Atlântida: mensário artístico, literário e social para Portugal e Brasil foi um periódico que se propôs resignificar e retomar toda uma pretensa tradição de união e convergência entre Brasil e Portugal, outrora colônia e metrópole, ao mesmo tempo em que não perdia do seu horizonte o futuro. E tudo isso acontecia num momento considerado decisivo para o destino do mundo moderno. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) punha em pauta para as sociedades a sensação escatológica de fim de um tempo, da chegada da decisão inadiável a ser tomada sobre o rumo do mundo. Afinal, era a guerra que acabaria com todas as guerras. Do fim ao recomeço, a revista Atlântida pretendia fazer ressurgir dos rastros da batalhas um novo continente, reviver um elo para a união luso-brasileira. No início do século XX, as relações diplomáticas, políticas e econômicas entre Brasil e Portugal não eram a das mais próximas. No âmbito econômico, a supremacia inglesa fazia dos produtos portugueses e brasileiros secundários em ambos os mercados. Em terras tupiniquins, a Grã-Bretanha mantinha o domínio sobre o comércio externo, secundada pela presença progressiva dos Estados Unidos. Situação semelhante via-se em Portugal. Economias eminentemente agrárias, pouco industrializadas, enfrentavam ainda a presença dos produtos vindos das colônias portuguesas na África, turvando a possibilidade de acordos econômicos. As relações diplomáticas e políticas não seguiam uma orientação diferente. Uma série de pequenas contendas políticas, iniciadas no século XIX com a declaração da independência brasileira, [316] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 passando pelo rompimento das relações entre os dois países no governo de Floriano Peixoto, fragilizou os laços políticos que toscamente os uniam.1 Se faltava iniciativa por parte dos governos instituídos, entre os intelectuais2 de ambos os países, as relações luso-brasileiras eram comumente tematizadas, para o bem e para o mal3. Em 1898, Sílvio Romero realizou uma conferência no Real Gabinete Português de Leitura, onde exaltou a participação do português na construção e preservação da nacionalidade brasileira contra possíveis recolonizações - notavelmente a alemã. Afirmava ser o Brasil um “prolongamento da civilização lusitana, um povo luso-americano” 4, descendente direto e incontestável de Portugal. Seu opositor regular e lusófobo agressivo, Manoel Bonfim, apontava na colonização portuguesa as raízes das deficiências brasileiras, herdeiro do parasitismo predador5 comum às nações ibéricas, num discurso compartilhado por outros intelectuais brasileiros. Em Portugal, as relações com a antiga colônia ganharam ações mais positivas. Em 1909, o presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa, Zófimo Consiglieri Pedroso, propôs a elaboração do “Acordo Luso-Brasileiro”, que estabeleceria a cooperação comercial, diplomática, legislativa e intelectual entre os dois países. A morte do seu idealizador impediu a conclusão deste projeto. 6 Cerca de sete anos se passaram até surgir outra iniciativa com a concretude da de Consiglieri Pedroso. Em 1915, a revista Atlântida foi lançada Ver Zília Osório de Castro, “Do carisma do Atlântico ao sonho da Atlântida”, Lucia Guimarães (org) Afinidades Atlânticas: impasses, quimeras e confluências, Quartet, Rio de Janeiro, 2009, p. 64 e 65. Ver também Lúcia Maria Paschoal Guimarães, “Redemoinhos da Atlântida (19151920)”, História Revista, Vol. 16, nº 1, 2011, p. 136. No presente artigo, é utilizado o conceito de intelectual proposto por Jean François Sirinelli em Jean François Sirinelli, “Os intelectuais”, René Remond (org) Por uma história política, Rio de Janeiro, Editora FGV, 2002, p. 242. Cf. Lúcia Maria Paschoal Guimarães, Op. Cit., p. 136. Silvio Romero, O elemento português no Brasil, Tipografia da Companhia Nacional Editora, Lisboa, 1902, p. 11 Ver Manoel Bonfim, A América Latina: males de origem, Rio de Janeiro, Topbooks, 2005. Cf. Lúcia Guimarães, “A campanha da revista Atlântida e o projeto de uma nova Lusitânia (1915-1920)”, Silvia Carla Pereira de Brito Fonseca e Maria Letícia Corrêa (org), 200 anos de imprensa no Brasil, Rio de Janeiro, Contra Capa, 2009. 1 2 3 4 5 6 [317] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 no Rio de Janeiro e em Lisboa, com o intuito declarado de promover o estreitamento dos laços políticos, culturais e econômicos entre Brasil e Portugal. A Atlântida foi um projeto idealizado pelo político e pedagogo português João de Barros e pelo escritor brasileiro Paulo Barreto, ambos entusiastas declarados da aproximação entre a metrópole e sua ex-colônia. Dos encontros ocorridos entre os dois, tanto no Brasil quanto em Portugal1, surgiria a ideia da publicação da revista. O objetivo do periódico foi exposto logo no seu primeiro número, no manifesto de abertura escrito por João de Barros. A intenção dos seus fundadores era a de criar um órgão em que se representassem os dois povos, dessa forma aproximando-os, ao acabar com a completa ignorância entre brasileiros e portugueses sobre os assuntos a respeito de ambos. Para os idealizadores da Atlântida, imperava nas relações luso-brasileiras não apenas o afastamento, mas o completo desconhecimento sobre aspectos e notícias dos dois países – uma séria impertinência para duas nações que compartilhavam a mesma raça, a mesma língua e o mesmo modo civilizacional. Para pôr um fim a esse estado de ignorância mútua que a revista foi edificada, tomando este objetivo como uma missão. No manifesto de abertura, afirmou João de Barros: “A verdade, porém, é que só um motivo nos guiou – a Paulo Barreto e a mim – e um motivo d’ordem moral: erguer até ao conhecimento perfeito e amorável das suas tendências e dos esforços as duas nacionalidades. Mais nada” 2 Sobre o encontro entre João de Barros e Paulo Barreto, ver Lúcia Guimarães, “Redemoinhos da Atlântida (1915-1920)”, História Revista, Vol. 16, nº 1, 2011. João de Barros, “Atlântida”, Atlântida: mensário artistico, literário e social para Portugal e Brasil, Vol.I, nº 1, 1915, p. 9. 1 2 [318] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 As intenções de Barros e de Barreto não eram meramente aproximar os dois países, mas formar uma “comunidade luso-brasileira”, onde interesses e ações políticas e econômicas de Brasil e Portugal estariam alinhadas, respeitando, ainda assim, a independência formal entre ambos. Também neste manifesto de abertura, João de Barros esclarece a quem se dirigia os esforços e as mensagens a serem veiculadas na Atlântida. A revista não falava apenas aos cidadãos comuns; sua mensagem era ligeiramente mais específica. Segundo o pedagogo português, escritores, artistas, industriais, comerciantes, homens de ciência e políticos eram as figuras a quem o empreendimento do mensário pretendia convencer da importância da aproximação entre Brasil e Portugal, com especial ênfase na última categoria. A fala de João de Barros permite entrever a relevância da participação dos governos de ambos os países nas ambições da revista, ao afirmar que tal aproximação se dava sob os auspícios dos seus respectivos representantes políticos. A missão do mensário não era algo que se restringia ao plano das ideias; afinal, o autor do manifesto afirma ter a esperança de realizar suas intenções “com a cooperação de todos aqueles que hoje constituem, pelas suas obras e pelo seu talento, as maiores razões de existir para o Brasil e para Portugal.” 1 Os clamores de João de Barros, de fato, alcançaram alguns ouvidos importantes. Na folha de rosto da revista, abaixo do subtítulo, lê-se a seguinte frase, que acompanha quase toda a coleção da Atlântida: “Sob o alto patrocínio de S. Ex. os ministros das Relações Exteriores do Brasil e dos Estrangeiros e do Fomento de Portugal”. Ainda no primeiro número, as respectivas autoridades políticas de então, Lauro Müller, Augusto Soares e Manuel Monteiro, deixam suas mensagens de apoio aos objetivos declarados do mensário, evidenciando ser este não apenas um esforço de aproximação literária, mas político e econômico, inclusive. 1 Idem, ibidem. [319] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Os colaboradores da Atlântida espalhados ao longo dos seus 48 números exemplificam os diferentes âmbitos aos quais a revista se propôs a alcançar. Historiadores, diplomatas, economistas, poetas, romancistas, músicos, médicos, pedagogos, dentre muitos outros, são algumas das profissões representadas nos índices da revista, contribuindo com artigos das mais variáveis temáticas. Poemas, contos, ensaios acadêmicos, críticas literárias, teatrais e musicais, entrevistas, análises políticas e econômicas eram publicadas sem qualquer distinção, uma após a outra.1 O eixo estrutural, porém, parece apontar para um republicanismo latente, pertinente a duas nações recémadentradas no regime e que já guardavam algumas desilusões com a nova forma de governo. A revista conformou sob a égide da adesão à República e às relações luso-brasileiras, diferentes correntes políticas, diversos entendimentos acerca da sociedade, da economia e da cultura. Era um “lugar de fermentação cultural” 2, num momento considerado crítico pelos intelectuais da época. A GUERRA E A REVISTA A Primeira Guerra Mundial foi uma temática constante nos artigos do mensário. Para Zília Osório de Castro, “curiosamente a guerra – a 1ª Grande Guerra – viria a servir de catalisador a ideias e sentimentos [...]” 3 Por certo, o conflito nas páginas da Atlântida assumiu o caráter aglutinador de diferentes interesses, considerado como o pólo irradiador de diversas ações, benéficas tanto para as relações luso-brasileiras, quanto para Brasil e Portugal, em separado. Os autores dos artigos eram jornalistas, diplomatas, historiadores, filósofos, poetas, políticos e militares. Em sua maioria, eram portugueses, Além do corpo principal de artigos, a revista contava ainda com as seções “Revista do Mês” e “Notícias e Comentários”. Para o entendimento das revistas como espaço de fermentação cultural, ver Jean François Sirinelli, Op. Cit. Zília Osório de Castro, Op. Cit. 1 2 3 [320] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 seguindo a tendência da revista em ter em maior número colaboradores dessa nacionalidade. A gama diversificada de escritores demonstra o impacto sobre diferentes grupos de interesses que o conflito teve. A forma dos textos também variava: eram cartas, ensaios, relatórios, entrevistas e conferências que tinham a Primeira Guerra como seu tema específico. A freqüência é igualmente digna de nota. Durante a guerra, entre 1915 e 1918, foram publicados 32 números da Atlântida, dos quais tiveram no seu corpo principal um ou mais textos sobre o assunto, totalizando 21 artigos. 1 Foram variadas as estratégias que editores e colaboradores da Atlântida usaram para representar a Primeira Guerra Mundial2. A entrada de Portugal no conflito ao lado dos Aliados, logo em 1914, deu o tom dos artigos publicados no mensário, que, obviamente, tendeu nitidamente a organizar as simpatias em prol desse grupo de beligerantes. Uma das maneiras com que alguns autores abordaram o conflito foi a perspectiva de tê-lo como um momento inédito e crítico do mundo moderno. A consciência da sua grandiosidade, do alcance de suas consequências era algo tido como certo, e não apenas por conta de seus efeitos econômicos. Ao longo dos artigos publicados entre 1915 e 1918, percebe-se o destaque dado ao aspecto moral da guerra. Era lamentada a tragédia e o derramamento de sangue, as perdas materiais irreparáveis, as mortes, os horrores de batalhas, mas, principalmente, a ameaça a valores morais caros aos homens. Civilização, progresso, fraternidade, e, em especial, liberdade, eram postos em risco por atitudes enumeradas como egoístas, fazendo com que a humanidade e o mundo moderno entrassem em convulsão. E como tratava-se de um periódico cujo posicionamento diante do conflito estava bem definido, a culpa de todo o colapso moral da guerra era delegado ao inimigo, no caso, à Alemanha. No presente trabalho, serão analisados apenas os textos publicados no corpo principal da revista, sem contar aqueles que se encontram nas seções. Vale lembrar que, a partir do seu 18º número, a Atlântida passou a publicar a seção “Portugal em guerra”. Para o conceito de estratégia e representação, ver Roger Chartier, História Cultural: entre práticas e representações, São Paulo, Bertrand Brasil/DIFEL, 1990. 1 2 [321] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Na grande maioria dos textos publicados sobre a Primeira Guerra Mundial, o Império do kaiser Guilherme II era representado de maneira constante e delimitada. Era o inimigo público número 1 e, por conseguinte, o grande responsável pelo desencadear do confronto; nesse aspecto, os colaboradores do mensário foram unânimes ao manterem o tom acusatório. A guerra era, na visão destes escritores, uma reação ao ataque germânico, do qual toda a Europa fora vítima. Os dedos eram apontados para esse país, como o faz José de Macedo, em que, numa análise sobre a corrida armamentista que antecipara o confronto, afirmou: “A Europa era vítima inocente da loucura dos dirigentes germânicos, que não esqueciam as menores particularidades que pudessem auxiliá-los nesse formidável choque de massas humanas contra verdadeiras muralhas vivas, oscilando aos embates de semelhantes forças em desequilíbrio, como sucedeu no Marne e depois em Verdun.” 1 O sentimento de defesa contra algo que ameaçava uma ordem instituída, ou um determinado entendimento destas diretrizes, também é visto na fala do Henrique Lopes D’Oliveira, que compara a guerra desencadeada pela Alemanha com uma reação biológica do corpo humano. “Os povos vivos logo reagiram perante o insólito ataque germânico. Ferido ou ameaçado, todo o corpo sofre imediatamente o alarme sensorial da defesa. O indivíduo José de Macedo, “A guerra e a mobilização financeira”, Atlântida: mensário artístico, literário e social para Portugal e Brasil, Vol. II, nº 8, Lisboa, p. 766. 1 [322] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 são como a sociedade sã em todos os seus elementos logo se apresta à luta.” 1 Nesse jogo de representações, a Atlântida e seus colaboradores pintavam a Alemanha com as tintas do barbarismo, do irracionalismo, da megalomania. O Império era tido como um país irresponsável, que não prezava moralidades ou valores caros ao mundo civilizado, como Justiça e Direito. Eram representados como irracionais, selvagens e cruéis em suas atitudes. Se o Império Alemão era a representação do mal, os Aliados eram os paladinos do bem. A comparação tendenciosa dos dois lados que se batiam nos campos de batalha era comumente realizada por aqueles que se propunham a escrever sobre a guerra. Opondo-se à selvageria alemã, estava a Virtude, o Direito, a Civilização, a Razão, resumidas na figura da Tríplice Entente e seus partidários, no qual se incluía Portugal. Nesse aspecto, a guerra moral que os colaboradores da Atlântida desenhavam assumia o seu contorno mais nítido. “É a luta pelo direito dos povos, pela liberdade, pela civilização, contra as forças obscuras do despotismo e da barbárie”, escrevia Henrique Lopes de Mendonça, da Academia de Ciências de Lisboa. Mais do que isso, a Atlântida tornava a guerra uma luta que ia além de uma disputa entre nações e interesses econômicos: era uma disputa entre civilizações. De um lado estavam os latinos, do outro, os germânicos, com os seus ideários de civilização diferentes e opostos. A latina havia contribuído para a iluminação da humanidade, para o seu progresso material e intelectual. A germânica, inferior, era negada em todas as suas contribuições, de duas maneiras distintas: ora pregando a corrupção pela influência prussiana dos postulados de Kant e Wagner, dentre outros expoentes da intelectualidade alemã, ora simplesmente desmerecendo qualquer desses intelectos, taxando-os como meras cópias das edificações latinas. O direcionamento da análise da guerra para uma oposição entre latinos e germânicos é vista nas falas fora do 1 Henrique Lopes D’Oliveira, “Camões, Portugal e a Guerra”, Ob. Cit., p. 708. [323] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 mensário, de seus principais nomes, como Paulo Barreto, diretor e co-fundador do mensário. Afirmou: “Os povos mediterrâneos, possuidores do espírito entusiástico e criador, sempre tiveram esse inimigo – a morte [...]. Os dois espíritos, o mediterrâneo e o germânico, não se puderam nunca compreender, desejando ambos o domínio – um, despreocupado e heróico, contentando-se com o que é seu; outro, tenaz, formidável, fanático a frio, consciente do seu poder, querendo dominar tudo, transformar tudo, moldar à sua feição a terra”1 Paulo Osório afirmou: “O alemão afivelou a máscara da civilização; mas a sua alma ficou sempre a alma de um bárbaro.”2 Se a civilização latina prezava a liberdade dos povos, a germânica apregoava a dominação pela força. Vinculado a essa suposta característica da cultura alemã, estava a ideia de dominação mundial por esse país. Em diversos artigos, ao lado da ameaça germânica à liberdade, estava a afirmação da ambição de subjugar as nações, escravizar a humanidade, inscrever uma paz baseada no medo. Sobre isso, Hermano Neves nos fala: “Dada a hipótese, o programa alemão encontra-se definido numa recente brochura do dr. Franz Liszt, que preconiza a formação de um novo império germânico, mais forte que o antigo, de mais dilatas fronteiras, com uma extensão imensamente considerável de domínios coloniais.”3 Paulo Barreto, Sésamo, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1917. Paulo Osório, “Esta Guerra”, Ob. Cit., Vol. IV, nº 16, Lisboa, p. 307. Hermano Neves, “Algumas profecias sobre a grande guerra”, Ob. Cit, Vol. I, nº II, Lisboa, p. 170. 1 2 3 [324] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Tornou-se recorrente, inclusive, comparar os alemães e seu exército a Àtila e os hunos, como o fez Paulo Osório, na seguinte passagem: “Cada homem deixava de ser ali um indivíduo capaz de raciocinar, de agir segundo a sua inteligência, de querer fosse o que fosse: era uma peça desse maquinismo complexo de que faz parte integrante, indispensável, mas fora do qual ele é inútil. Era a Alemanha moça e guerreira que passava ao longo das estradas. [...] Assim eles passavam, terríveis, cruéis, formidavelmente armados, como os hunos de Átila.” 1 Na comparação com o antigo general que estendeu seus domínios até a Europa, governando-a com mão-de-ferro, encontra-se a tentativa de imprimir o caráter devastador e tirano que atribuía-se à Alemanha e seu desejo de apoderar-se do mundo. Em outros artigos, a premissa é tomada como verdadeira e a guerra é entendida como o desenvolvimento de um plano alemão para apossar-se dos territórios internacionais. Assim o afirma Teófilo Braga: “Como o maior crime da História será designado na memória das gerações vindouras esta guerra de invasão, de assalto, de devastação e de retrocesso à animalidade bruto, organizada, estudada e posta em efeito sem motivo pelos dois impérios alemães do norte e do sul, prosseguindo nas suas tradições de barbárie e fortalecidas pelos recursos científico da civilização européia.”2 1 2 Paulo Osório, Op. Cit., p.306. Teófilo Braga, “Portugal e os aliados”, Ob. Cit., Vol. III, nº 25, Lisboa, p. 7. [325] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Tamanha insistência no assunto tinha uma razão de ser. No início do século XX, Portugal estava numa posição delicada diante das grandes potências. A corrida imperialista nos continentes africano e asiático, que começou no século XIX e se estendeu ao século XX, lançou os olhos das nações colonialistas sobre os territórios portugueses nesses locais. Embora reconhecessem Portugal como uma nação européia e soberana, sua capacidade colonizadora era posta em xeque, ao ser acusado de não corresponder aos ideais liberais que delimitavam as funções de uma potência colonizadora, conforme as determinações da Conferência de Berlim1, tanto em suas colônias, quanto em território europeu. Ao mesmo tempo, era considerado um país pequeno e sem importância para manter suas posses extracontinentais. Ameaçado constantemente no controle de seus territórios coloniais por França, Inglaterra e, sobretudo, Alemanha, o país desenvolveu tentativas para manter suas colônias e conseguir seu status de potência e nação independente, conformadas na ideia de um Terceiro Império Português. O objetivo era transformar a África em um “Novo Brasil” e estabelecer relações comerciais e imigratórias em ambas as margens do Atlântico.2 Visando esse direcionamento que foi produzido o “Mapa Cor-de-Rosa”, que instituiria um território português interligando Angola e Moçambique. A divulgação do Mapa acabou criando uma contenda com a Inglaterra, fazendo com que Portugal recuasse e passasse a ser mencionado como um protetorado da Grã-Bretanha. O tratado luso-britânico de 1891 veio a garantir a presença portuguesa no continente africano, não impedindo, porém, a ilha de realizar tratados secretos com a Alemanha, repartindo entre ambas as colônias portuguesas. A Conferência de Berlim, ocorrida entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885, determinou o teor da legitimidade de um país europeu em reivindicar posse e exploração sobre um determinado território. Sobre a Conferência de Berlim e a participação portuguesa, ver Omar Ribeiro Thomaz, Ecos do Atlântico Sul: representações sobre o terceiro império português, Rio de Janeiro, Editora UFRJ/FAPESP, 2002. Cf. Omar Ribeiro Thomaz, Op. Cit. 1 2 [326] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Dessa forma, o prestígio português tanto na Europa quanto no resto do mundo estava em baixa. Internacionalmente, Portugal era visto como uma nação de segunda categoria, sem força política ou peso econômico no cenário externo; manter suas colônias era uma questão de assegurar importância e soberania nacional. E a Primeira Guerra Mundial será entendida como a oportunidade perfeita para a recuperação desse prestígio, ao menos nas páginas da revista Atlântida. Era preciso reagir às ambições alemãs de tomar para si as colônias portuguesas, da mesma forma que o faria com o restante do mundo. Era preciso reconquistar o respeito internacional. Os colaboradores do mensário tratam a guerra como a grande chance portuguesa de realizar ambos, juntando o útil ao agradável. Pondo-se ao lado da Grã-Bretanha, a esperança era de obter o reconhecimento e as vantagens que tal posicionamento certamente traria. Para a Atlântida, tal relação estava clara. Termos como “renascimento”, “renascença”, “retorno” e “reviver” são comumente encontrados nos textos que abordam o conflito. Portugal renasceria, reviveria antigas glórias, recuperaria o seu prestígio, consolidaria-se como nação, pois existia a convicção de que a guerra traria um mundo, melhor, expurgado de males. O país era representado como acordando de um longo sono, despertado e energizado pelo clamor do conflito, conforme escreve Henrique de Vasconcelos: “Para os portugueses, rompeu a manhã heróica. Cansada dos sucessos, a nobre raça adormecera, num longo sono, por vezes convulso. Dir-se-ia que a nossa história se quebrara, que o livro de bronze em suma se transformara.” Mais adiante, completa: “Portugal ressurge, forte e belo como um deus antigo, na manhã heróica que abrasa de sol a estrada do seu futuro glorioso.”1 Henrique de Vasconcelos, “Manhã heróica”, Atlântida: mensário artístico, literário e social para Brasil e Portugal, Vol. VII, nº 25, Lisboa, p. 15 e 16. 1 [327] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 A guerra era entendida como um instrumento da história religando futuro e passado, estabelecendo um elo de continuidade entre ambos, uma vez que proporcionaria o retorno às glórias passadas para garantir e consolidar o futuro português. Tal entendimento da guerra e visão historiográfica fica entendido na seguinte passagem, na saudação destinada pela redação da revista às tropas portuguesas: “Portugal, enviando tropas para o campo de batalha onde vai combater ao lado da sua velha e nobre aliada, a Inglaterra, soube impor-se à admiração e à consideração de todos os países. Faz um sacrifício que o reabilita, que o honra, que o exalta. E mais uma vez acende, como um clarão que ilumina o futuro, esse facho de epopéia deslumbrante que o tomou grande e forte no passado.”1 Não à toa, a história nacional portuguesa é comumente evocada nos artigos sobre a guerra, como uma trajetória de tempos áureos que passaram por momentos difíceis, findados a partir do posicionamento português no conflito de 1914. Alguns colaboradores, como Henrique Lopes de Mendonça, chegaram até mesmo a afirmar a traição ao seu passado caso Portugal não pegasse em armas. E os se opor à entrada do país no conflito era taxado como falta de patriotismo. Percebe-se nesses artigos a intenção de ressaltar a guerra como um divisor de águas para a história portuguesa, recuperando prestígios e consolidando a recém-proclamada república. João de Barros afirma: “Mais uma vez, e numa hora excepcional para a história da Europa, a República dignificará a Pátria, erguendo-a no Redação, “Ao exército português”, Atlântida: mensário artístico, literário e social para Brasil e Portugal, Vol. IV, nº 16, Lisboa, p. 244. 1 [328] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 conceito dos povos cultos, enobrecendo-a pela força dum ideal civilizados, consolidando-a pela certeza dum Futuro longo e próspero!” 1 Este aspecto – a estabilização do novo regime através da participação no conflito – é outra nuance extraída dos textos sobre a guerra, vista como elemento legitimador contra opositores monarquistas. Um direcionamento previsto, uma vez que João de Barros e Paulo Barreto eram republicanos convictos e a Atlântida, em diferentes artigos, exaltava a República como um passo português em direção à modernidade, amparado pelas vantagens que a guerra traria. Nesse momento, a revista torna-se um lugar de propaganda do governo português, com a presença dos seus representantes. O mensário tinha seu tom afinado ao discurso oficial, apoiando o governo. Em um dos números publicados, reproduziu a declaração do governo português para o Congresso, onde eram expostos os ofícios trocados entre os ministérios das Relações Exteriores de Portugal, Inglaterra e Alemanha, que culminou na declaração de guerra portuguesa ao Império do kaiser Guilherme II. A Atlântida apoiava o novo regime. Dos 21 artigos publicados sobre a Grande Guerra, seis eram entrevistas ou declarações dos estadistas portugueses e do embaixador brasileiro em Portugal, Gastão da Cunha. Antecedendo a preleção, palavras de exaltação da figura pública e pessoal dos entrevistados, assim como do regime. Deram o seu depoimento o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Soares, o ministro da Guerra português e o próprio presidente de Portugal à época, Bernardino Machado. Nas suas falas, uma constância: a guerra, a República e futuro português estavam irremediavelmente entrelaçados. 1 João de Barros, Op. Cit., p. 613. [329] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 AS RELAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS E A PRIMEIRA GUERRA NA ATLÂNTIDA Nos textos da Atlântida, a Primeira Guerra Mundial serviu para destacar tanto a necessidade de fortalecimento dessa união, quanto os aspectos que a justificava e a tornava possível. Para João de Barros, ao publicar o pronunciamento do governo português que declarava guerra à Alemanha, afirmou: “A Atlântida pretende não só mostrar que vive e acompanha a magnífica ansiedade da nação portuguesa, como também lembrar que a sua missão é hoje mais do que nunca necessária, para que através do conflito que põe à prova a coragem, a serenidade e a grandeza da nossa raça, se sinta sempre, e cada vez mais ardente e mais forte, a velha amizade fraterna do Brasil e de Portugal.” 1 Era o momento de legitimar a solidariedade que os uniam. O perigo que a Alemanha representava para Portugal estendia-se ao Brasil. Circulava na Atlântida e no meio intelectual luso-brasileiro a crença na ameaça do pangermanismo. Este consistia na ideia que o Segundo Reich reuniria sob o seu domínio todos os territórios onde se encontrassem indivíduos da raça germânica ou que julgasse seu por direito, o que incluiria parte do território brasileiro, e as colônias portuguesas na África, dando à Alemanha o controle sobre o Atlântico sul. No Brasil, a ideia da perda do território sul do país para o Segundo Reich através das colônias alemãs no local foi discutida nos salões da intelectualidade brasileira antes mesmo da eclosão da Primeira Guerra Mundial. Sílvio Romero, na conferência anteriormente mencionada, expôs sua 1 João de Barros, “Portugal na Grande Guerra”, Atlântida: mensário artístico, literário e social para Portugal e Brasil, Vol. I, nº 5, Lisboa, p. 1. [330] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 desconfiança com relação à concentração maciça de imigrantes alemães no sul do Brasil e sua predominância nas atividades econômicas da região. Assim denunciou: “Deve ser com mágoa [...] que os espíritos amantes desta terra em Portugal e Brasil hão de ler investidas como esta contra a autonomia do país: “Berlim – Os pangermanistas estão atualmente ocupados com um projeto de organização mais sólida de um acordo entre os colonos alemães no Brasil.” Tem havido em diversas cidades da Alemanha conferências cujo fim é enviar alguns pastores, padres e mestres a escolas do sul do Brasil. Na cidade de Magdeburgo, um dos oradores declarou que parte do sul do Brasil é uma terra alemã, que deverá mais tarde pertencer ao império alemão.”1 Posteriormente, em 1915, com a Primeira Guerra já iniciada, o escritor Raul Darcanchy publicou o livro O plano pangermanista no sul do Brasil, onde denunciou o isolamento dos colonos alemães em Santa Catarina. Darcanchy reuniu uma série de documentos que comprovariam a intenção alemã de germanizar não apenas o Brasil, como o mundo. Proclamando sua obra como um serviço ao país, afirmou tratar de um problema que afeta diretamente a integridade nacional.2 Nas páginas da Atlântida, a insistência na veracidade da ameaça pangermânica às nacionalidades e liberdades de Brasil e Portugal era pertinente à forma como as relações luso-brasileiras eram definidas no mensário. Respeitando a independência política e territorial de ambos, Brasil e Portugal Sílvio Romero, O elemento português no Brasil, Lisboa, Tipografia Nacional Editora, 1902. p. 35. “Raul Darcanchy: o pangermanismo no sul do Brasil – 1915”, Jornal do Commércio, Rio de Janeiro, 7 de janeiro de 1916, p. 2. 1 2 [331] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 eram países interligados pela raça lusa, pelo compartilhamento da cultura latina, da tradição histórica e da língua portuguesa. Além disso, possuíam uma filiação natural: Portugal é definido como a pátria-mãe de sua antiga colônia, seu único genitor. Partilhavam, assim, a mesma raiz moral, advinda da civilização latina. Além disso, definir a Primeira Guerra como a execução do pangermanismo foi uma forma de reforçar os laços que o mensário destacou e pretendia atar de vez. Mais do que um perigo à integridade do território desses países, o pangermanismo era definido como uma intimidação à nacionalidade brasileira, tida como ainda em estágio de formação. A aproximação com Portugal, sua matriz cultural e racial, nesse momento belicoso, seria um bálsamo contra as ambições germânicas de destruírem essa nacionalidade recém-instituída, substituindo sua raiz natural latina por outra, oposta e adversária. A aliança com Portugal assume, dessa forma, caráter de urgência. Dessa forma, a Primeira Guerra Mundial legitimava a união lusobrasileira, nos termos práticos em que a Atlântida pretendia instituir. A realização de tratados econômicos que favorecessem as trocas comerciais entre os dois países, tão reclamada em inúmeros artigos no mensário, foi reforçada no cenário de guerra e na perspectiva do momento pós-conflito. A aproximação dos mercados portugueses e brasileiros era interpretada como uma forma de fortalecer ambas as economias para a futura batalha econômica que se iniciaria ao cessar dos canhões. Vale lembrar a constante inquietação da revista com a situação econômica portuguesa, temática sempre presente nos índices da publicação e considerada sempre aquém de suas possibilidades. Quando em fins de 1917 o Brasil rompe relações com a Alemanha e entra de vez no conflito, a decisão é utilizada pelos editores e colaboradores da revista para afirmar o caráter solidário que aproximava brasileiros de portugueses. João de Barros afirmou, em mais um argumento comprobatório da justeza da união luso-brasileira e dos aspectos que a viabilizavam: “E saber, e sentir que o Brasil, na hora que atravessamos [...] vinha enfileirar ao lado das nações aliadas, dando-lhes, e [332] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 dando-nos, o seu concurso moral e a adesão da sua consciência – comoveu-nos profundamente, trazendo-o a consoladora alegria do seu apoio, [...], sobretudo por ser mais uma afirmação latina do nosso sangue, da nossa raça e das nossas tradições, sempre triunfantes no Brasil...” 1 E, em um número mais adiante, reafirmou: “O Brasil está em guerra, o Brasil rompeu as suas relações com o Império Germânico, o Brasil está virtualmente em beligerância, desde o dia em que os seus jornais publicaram os telegramas de Lisboa, anunciando a guerra entre Alemanha e Portugal; beligerância de corações, beligerância de sentimentos, beligerância de espíritos [...]” 2 O final do conflito e a vitória dos Aliados trouxeram para a Atlântida uma série de artigos que reforçavam as afirmações feitas ao longo dos 32 números publicados durante a guerra. A Alemanha derrotada era a prova da superioridade da cultura latina sobre a germânica, dos Aliados sobre os inimigos vencidos. A guerra é agora representada como um plebiscito moral, onde o mundo havia optado pela latinidade. O Império Alemão era confirmado como o responsável único pelo confronto, embate este que renovaria o cenário internacional. Essa quase esperança é vista na fala de Manoel de Sousa Pinto: “À Germânia rapace ficará cabendo a glória negra de ter, com seu bélico delírio [...] com o hohenzolérnico suicídio duma casta de megalômanos, mudado o rumo dos povos, João de Barros, “A ruptura das relações diplomáticas”, Atlântida: mensário artístico, literário e social para Portugal e Brasil, Vol. V, nº 18, Lisboa, p. 493 e 494. 1 2 Idem, “O Brasil e a guerra”, Ibidem, volume VII, número 25, Lisboa, p. 158. [333] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 alterado os planos do destino, não no sentido do seu tentacular imperialismo, mas conforme a uma aliança de velhas, renascidas forças e esperançosas forças novas, cujo poder transformados é ainda ilícito prever.” 1 Era tempo de preparar-se para os novos rumos e novos tempos que viriam. A Primeira Guerra Mundial nas páginas da revista Atlântida ganhou novos significados e representações. De um confronto de razão econômica e política entre blocos de países, ganha a representatividade de um duelo entre culturas e projetos de mundo. A forma como o mensário abordou a guerra que dilacerou a Europa por quatro anos, revela a extensão das ambições dos seus idealizadores e daqueles que colaboraram para a sua existência: para além de um projeto cultural, de aproximação artística entre Brasil e Portugal, a exposição da Primeira Guerra ilumina um projeto político determinado, reforçando afirmação de Ana Luíza Martins de que revistas estão a serviço de construções de tradições. No caso da Atlântica, a tradição a ser edificada tem em seu bojo passado e futuro, onde Brasil e Portugal olhariam para o seu passado comum, para a sua história buscando o apoio para lançar-se no futuro, tendo a Primeira Guerra como sua mola propulsora, atendendo à metáfora de Paulo Barreto: “o presente, para caminhar e crer no futuro, precisa apoiar-se no passado, como a flecha que se finca no arco para projetar-se no futuro.” 1 Manoel de Sousa Pinto, “Vitória!”, Ibidem, Vol. IX, nº 33-34, Lisboa, p. 853. [334] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 REFERÊNCIAS BARRETO, Paulo. Sésamo. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1917. BARROS, João de. A aproximação luso-brasileira e a paz. Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, 1919. _________________ Caminhos da Atlântida: uma campanha luso-brasileira. Lisboa: Livraria Profissional Editora, [s/d]. BONFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005. BUENO, Clodoaldo & CERVO, Amando Luiz. História da política exterior do Brasil. São Paulo: Ática, 1992. CHARTIER, Roger. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990. HUNT, Lynn (org). A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. CORRÊA, Maria Letícia & FONSECA, Sílvia Carla Pereira de Brito. 200 anos de imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009. GARAMBONE, Sidney. A Primeira Guerra Mundial e a imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. 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Pedro II for Sergipe´s cities localized in São Francisco River´s bank at the 1859 year and research the knowledge that exists today about and the importance that people gave to this visit, beyond go through, in the actual days, the places that Emperor visited and still exists in this cities. Keywords: Pedro II . Sergipe . São Francisco River * Licenciado em História – UFS – [email protected] [337] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Hoje adentramos uma máquina do tempo, e convidamos os distintos leitores e leitoras a embarcar conosco. Vamos para os tempos do império, dos barcos a vapor, das princesas e príncipes, dos barões e cavaleiros. Vamos acompanhar a viagem de D. Pedro II realizada em 1859 rumo à Cachoeira de Paulo Afonso, especificamente seus desembarques na margem direita do Rio São Francisco, em cidades de Sergipe. A passagem do monarca foi o evento mais importante da História de muitas das cidades por onde passou. Como ela é lembrada hoje? Ainda existem lugares de memória desta visita? Qual seu estado hoje? Como a vinda do Imperador é tratada pelo poder público, enquanto evento cívico? Nós investigamos. Qual o nível de conhecimento que as atuais gerações, notadamente os jovens, possuem sobre o evento? Entrevistamos quase 117 estudantes para saber. Embarque conosco, caro leitor, sigamos juntos os caminhos do Imperador. QUEM ERA D. PEDRO II? D. Pedro II governou o Brasil por quase 50 anos, de 23/07/1840 a 15/11/1889 e, para conhecer nosso hóspede tão ilustre, vamos recorrer a José Murilo de Carvalho e sua obra D. Pedro II – Ser ou Não Ser1. Neste livro, que consideramos fascinante e obrigatório para quem deseja saber quem foi D. Pedro II, Carvalho apresenta uma imagem do imperador algo diferente da que foi construída ao longo das décadas. Aqui vamos ver uma pessoa em permanente conflito entre seus deveres como monarca e suas vontades como ser humano comum. O autor separa o personagem histórico em dois homens: D. Pedro II e Pedro d'Alcântara, o imperador e o homem. 1 CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II – Ser ou Não Ser, São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p. 312. [338] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Pedro d'Alcântara nasce em 02/12/1825 após 5 horas de trabalho de parto. Chega ao mundo robusto e medindo 47cm. Foi o primeiro filho homem do casal Pedro I e Leopoldina a sobreviver após a morte dos dois primeiros meninos e o nascimento de outras quatro irmãs. (CARVALHO, 2007, pg.12) Crescendo com a saúde frágil, logo torna-se órfão de mãe com um ano de vida, separa-se do pai aos 5, ficando órfão também deste aos 9. Por conseguinte, da figura paterna guardava algumas boas lembranças, da mãe sabia o que dela lhe contavam. (pg.13) Carvalho nos diz que sua educação foi rígida, buscando eliminar os defeitos da linhagem paterna, forjando um governante perfeito, “sem paixões, escravo das leis e do dever, quase uma máquina de governar” (pg. 10), um modelo de governante ao qual Pedro passaria a vida tentando ajustar-se. Sua rotina diária consistia em levantar-se às 07hs, almoçar às 08hs sem comer muito, estudar entre 09 e 11:30hs, divertir-se entre 11:30 e 13:30hs, jantar às 14hs, (quando as conversas deveriam girar apenas sobre ciência e beneficiência), passear nos jardins ou ler às 16:30hs, cear às 21hs e deitar-se às 21:30hs. Os banhos e a temperatura da água eram acompanhados por um médico e o contato com as irmãs era restrito. (pgs. 26-27) A instrução literária e moral era uma mistura de iluminismo, humanismo e moralismo, uma “receita” de bom Imperador, conforme se pode ver neste trecho das instruções do Marquês de Itanhaém: “[...] discernindo sempre do falso o verdadeiro, venha em último resultado a compreender bem o que é a dignidade da espécie humana, a qual o monarca é sempre homem sem diferença natural de qualquer outro indivíduo humano...” (pg. 28) O resultado foi que o menino Pedro, segundo o autor, aos 8 anos de idade, já falava Francês, Inglês e escrevia em Latim, mas não era uma criança feliz. Sua timidez não ajudava e o marcou para o resto da vida. Carvalho afirma que sua voz não chegou a engrossar, causando constrangimentos por não [339] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 combinar com seu porte avantajado. D. Pedro II media 1,90 metro de altura! Na vida pública limitava-se a missas, procissões, estudos. (pg. 29-30) O peso do poder lhe é colocado nas mãos com apenas 14 anos de idade! Em meio a mais uma crise gerada pelos desentendimentos entre os grupos que disputavam o poder, a antecipação da maioridade do Imperador foi colocada como solução para os conflitos. (pg. 38) Os primeiros anos foram, como era de se esperar, de insegurança. Governar significava encontrar uma forma de convivência entre liberais e conservadores, a pacificação de revoltas, a unificação de fato do país e uma resposta às pressões inglesas pelo fim do tráfico de escravos, dentre infinitas outras obrigações. (pgs. 44-48) Aos poucos, contudo, equilibrando-se entre os dois grupos políticos, hora pendendo para os liberais, ora para os conservadores, e utilizando-se do Poder Moderador, o jovem monarca foi dominando as rédeas do poder, embora isso lhe custasse grandes sacrifícios por ter de conviver com aquelas disputas. D. Pedro II, conforme nos diz Carvalho, parecia não suportar o dia-adia mesquinho da política onde muito se falava e pouco se fazia: “É preciso trabalhar e vejo que não se fala quase senão em política que é as mais das vezes guerra entre interesses individuais.” (pg.82). O casamento, segundo Carvalho, contribuiu para trazer experiência, embora tenha se iniciado sob circunstâncias tragicômicas, com o envio de uma pintura da noiva que não a retratava com fidelidade, na verdade a mostrava muito mais bonita do que realmente era, o que se revelou quando esta chegou e foi apresentada ao monarca, o que, logicamente lhe aborreceu profundamente. (pg. 52) Criado para ser Imperador, sem jamais ter conhecido uma vida comum, D. Pedro II vivia, de fato, dividido entre o Imperador e o Homem. Carvalho nos diz que um sentimento, porém, unificava os dois: [340] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 … a paixão pelo Brasil. Ela marcou a vida de d. Pedro II e de Pedro d'Alcântara, possibilitando que o homem que os abrigava se dedicasse integral e persistentemente à tarefa de governar o Brasil por meio século. Ele o fez com os valores de um republicano, com a minúcia de um burocrata e com a paixão de um patriota. (pg. 10) Assim, pois, seria o Imperador que embarcou para visitar as províncias ao Norte do Rio de Janeiro. A VIAGEM Durante o recesso legislativo de 1859 D. Pedro II programou uma viagem ao Espírito Santo, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Paraíba, não avançando mais ao norte justamente por conta do tempo do recesso, pois não queria estar ausente da capital em período legislativo. Nossa fonte agora é o diário do Imperador sobre esta viagem, publicado em 1959 por Lourenço Luiz Lacombe1 e republicado em 20032, que traz informações sobre a jornada. A viagem começou a ser preparada no início de setembro com a tarefa de organização cabendo ao Mordomo Imperial, Sr. Paulo Barbosa. O deslocamento de Suas Majestades, D. Pedro II e Tereza Christina, demandava uma enorme logística que ia desde a nomeação dos acompanhantes, tais como dama de companhia, reposteiro, varredor, mestres de copa e cozinha, 1 Pesquisador especializado (1940-46), chefe da divisão de documentação (1946-1967) e diretor (1967-1990) do Museu Imperial. 2 LACOMBE, Lourenço Luis & LEMOS, Renato. Viagens pelo Brasil: Bahia, Sergipe e Alagoas 1859, Rio de Janeiro, Editora Letras & Expressões e Bom Texto, 2003. [341] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 cozinheiros de primeira e segunda classe, padeiro, cocheiros, serventes, estribeiros, escravos, etc, até às questões econômicas como o pagamento de todas essas pessoas. Detalhe: tudo pago do bolso do próprio Imperador que não dispunha de recursos suficientes e, para cobrir o total das despesas, contraiu um empréstimo de “30 contos de réis na praça da Bahia e 30 na de Pernambuco” (LACOMBE, 2003. p. 22). Em 11 de setembro de 1859, D. Pedro II anunciara a viagem durante a sessão final legislativa daquele ano, na Assembléia Geral, justificando-a com a necessidade de conhecer o país: Para melhor conhecer as províncias do meu Império, cujos melhoramentos morais e materiais são o alvo de meus constantes desejos e dos esforços do meu governo, decidi visitar as que ficam ao Norte da do Rio de Janeiro, sentindo que a estreiteza do tempo que medeia entre as sessões legislativas me obrigue a percorrer somente as províncias do Espírito Santo, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Paraíba, reservando a visita das outras para mais tarde. (pg. 22) A partida deu-se em 01/10/1859, às 8:45hs e a frota do Imperador consistia do vapor Amazonas, corveta a vapor Paraense, canhoneira a vapor Belmonte e vapor APA onde viajavam Suas Majestades e o Comandante da frota imperial, Almirante Joaquim Marques Lisboa, futuro Marquês de Tamandaré. O Imperador relata os enjôos, noites mal dormidas, refeições, movimento dos navios, chuvas e as atividades de tripulação e passageiros. Comenta, ainda, de que esta época [342] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 é a de baleias paridas vagarem naquela região, já no litoral baiano. (pg. 44). A chegada à Salvador dá-se na manhã de 06 de outubro onde, dentre outras anotações, o Imperador elogia o chafariz do Terreiro de Jesus e o atual Palácio Rio Branco, mas escreve também sobre a estreiteza e a lama das ruas, o gosto de ferro da água e a ausência de tantas “caras escuras” como esperava ver. (pgs. 53-57). Em 12 de outubro a comitiva parte de Salvador rumo ao Rio São Francisco e D. Pedro II comenta a vista da torre do forte de Garcia D’Ávila e os novos enjôos. No dia seguinte, 13 de outubro, após passar por todo litoral sergipano a frota entra pela foz do Velho Chico, sendo recebido por autoridades e a escolta de um navio sergipano, o vapor de reboque Aracaju. Subindo o rio e hospedando-se em Penedo, o Imperador atravessa o São Francisco em 15 de outubro para pisar, pela primeira vez, na margem direita do Rio São Francisco, o solo sergipano. VILA NOVA - NEÓPOLIS Houve muitos vivas e foguetes, e mostraram-me um lugar pedregoso onde os holandeses tiveram um curtume,... - D. Pedro II (LACOMBE, 2003. p. 113) Neópolis, primeira localidade de Sergipe visitada pelo Imperador D. Pedro II, surge no século XVII, em 1679, com o nome de Santo Antônio de Vila Nova e com esta fundação completava-se o período da conquista do território sergipano. [343] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Em 1733 passa a chamar-se Vila Nova Del Rei e em 1835 recebe o nome com o qual recepciona a comitiva imperial: Vila Nova do Rio São Francisco. Hospedado em Penedo, onde faz diversas visitas, D. Pedro II manda avisar ao Presidente da Província, Dr. Galvão, que visitaria Vila Nova após as 14 horas do dia 15 de outubro, um Sábado. Aqui adicionamos uma nova fonte às nossas pesquisas: trata-se do livro Viagem Imperial à Província de Sergipe1, escrito por Luiz Álvares Santos por ordem do Presidente da Província de Sergipe, Manoel da Cunha Galvão. Na obra o povoado é descrito de forma nua e crua como um dos mais pobres de Sergipe: Villa-Nova, além de ser uma das Villas mais pobres da Província e sem nenhuns recursos, caminha a passos largos para sua ruína: além d'isto não tinha sido precedentemente avisada de que receberia tão honrosa visita. Não obstante S. Magestade o Imperador foi ahi recebido com as maiores demonstrações de regosijo. (SANTOS. 1860. pg. 158) O monarca desembarca em solo sergipano às 14:15hs, recepcionado pelas autoridades civis, militares, religiosas, o povo e 321 praças da Guarda Nacional, Corpo de Polícia e banda de música, todos postados desde o porto até a Igreja do Rosário. Dirigindo-se para lá o Imperador faz uma oração e vai visitar as obras da matriz sobre a qual anota em seu diário: ...fui ver as obras da nova matriz que é vasta, e onde se lê, bastante alto sobre a porta, a seguinte inscrição: “Demolida 1 SANTOS, Luiz Álvares. Viagem Imperial à Província de Sergipe, Salvador, Tipografia do Diário, 1860. p. XXX [344] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 em 1813 […]. Está em osso e apenas há a talha de um altar lateral junto ao cruzeiro. (LACOMBE. 2003. pg. 112) Dentre as raríssimas informações que se pode encontrar sobre a História de Neópolis na internet, levantamos que a Igreja do Rosário1 seria uma das mais antigas de Sergipe, tendo servido como quartel-general das tropas do Conde de Bagnuolo, que enfrentara Maurício de Nassau em 1638. A atual Matriz, Igreja de Santo Antônio, que também o era no início do século XIX, desabou em 1813, por conta do inverno rigoroso, fazendo com que a Igreja do Rosário voltasse a ocupar a condição de matriz vila-novense, posição que detinha quando da visita do Imperador. Um requerimento de ajuda para reconstrução da Matriz foi entregue a D. Pedro II e o artigo registra que no ano seguinte chegou à vila um emissário da Imperatriz que levantou custos e ordenou a reconstrução. Esta, porém, só foi concluída 100 anos depois, em 1959, quando a igreja retornou à condição de Matriz da cidade. Seguindo em sua visita, D. Pedro II dirige-se a uma escola onde estudam apenas 6 ou 8 meninos. Anota que a construção é imprópria. Na escola das meninas fica mais satisfeito pois as alunas demonstram alguma habilidade nas contas e na leitura, anotando ainda que a professora é muito jovem, casada com um velho major reformado. Fato curioso é que o professor de primeiras letras, mesmo tendo sido avisado da visita, não compareceu, sendo punido de forma rigorosíssima, “Por semelhante omissão S.Ex. O Sr. Dr. Galvão o suspendeu por 30 dias com perda dos respectivos vencimentos”. (SANTOS. 1860. pg. 159) 1 João Manoel “Neópolis, a capital sergipana do frevo.” Disp. em: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=443956 – Acesso em 31/05/2011 [345] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Após uma refeição, em visita a aula de francês, que dominava, D. Pedro II nota que há 14 alunos, registrando que um deles traduz de forma razoável uma fábula de La Fontaine e que outro responde mal sobre gramática. Às 16 horas o monarca embarca de volta a Penedo onde dormiria para, após a missa, partir rio acima. Na ocasião o Imperador doa 300 mil réis ao padre Antônio de Santa Maria Madalena para praticar caridade. Em nossas andanças pela cidade, realizadas em agosto de 2010, visitamos as duas igrejas. Notamos a beleza e a vitalidade da Igreja Matriz, em total contraste com o abandono da Igreja do Rosário, fechada ao público e com os altares vazios. Na ocasião, e em todas as demais cidades, visitamos uma escola e entrevistamos dezenas de estudantes em cada uma delas. Apresentamos a eles uma pesquisa para aferir o conhecimento que possuiam a respeito da visita e do ilustre visitante. Em Neópolis entrevistamos 39 alunos com idade média de 13 anos. Quando perguntados sobre a pessoa mais importante a visitar sua cidade em todos os tempos, 18 (46,15%) responderam que foi o Imperador, 10 (25,64%) que foi o Governador e 01 (2,56%) que foi o Presidente. Dentre os alunos, 35 (89,74%) acertaram o cargo de D. Pedro II, Imperador, enquanto 4 (10,26%) o classificaram de Presidente. Sobre o ano da visita, 21 (53,85%) acertaram escolhendo 1859, enquanto 13 (33,33%) optaram por 1860 e 4 (10,26%) marcaram o ano 2000. Perguntados onde obtiveram o conhecimento sobre a visita do Imperador, 26 (66,67%) responderam que estava sendo ali na escola, naquele momento, 12 deles (30,77%) afirmaram que adquiriram o conhecimento em livros e 1 (2,56%) que foi na TV. A grande maioria, 31 (79,49%) declararam-se orgulhosos com a passagem do monarca por Neópolis, enquanto 8 (20,51%) disseram não ligar para o fato. [346] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Por fim, a importância que atribuem à visita dividiu as opiniões, 12 (30,77%) assinalaram a visita como “Muito Importante”, 11 (28,21%) como de “Média Importância, 7 (17,95%) como de “Pouca Importância” e 9(23,08%) não viram “Nenhuma Importância” na passagem de D. Pedro II por Neópolis. Não encontramos um site da Prefeitura de Neópolis que pudesse nos permitir verificar como a visita do Imperador é tratada oficialmente. PROPRIÁ Propriá é uma vila de 3.000 habitantes com algumas casas boas e de sobrado... D. Pedro II (LACOMBE, 2003. p. 115) No Domingo, 16 de outubro, Sua Majestade madrugou para assistir a missa na Igreja de Nossa Senhora da Corrente em Penedo, localizada em frente ao Paço Imperial. A celebração inicia-se às 04:00 e às 05:30 a frota imperial parte rio acima, rumo a Propriá/SE. A cidade é avistada e o Imperador “com seu óculo de alcance apreciou a bella vista […] e reconheceu que achava-se apinhada de povo” (SANTOS, 1860. pg. 160) fato que pareceu impressionar o escritor do relato: ...nunca nos persuadimos que em Propriá, uma Villa central outrora florescente, mas já decadente, houvessemos de ver tanto povo reunido, e tanta effusão de prazer. (SANTOS. 1860. pg. 160) Para saber como era a Propriá que D. Pedro II encontrou, recorremos à História da cidade tal como é contada no site da prefeitura1, uma História oficial, por assim dizer. Procedemos assim em todas as cidades por três 1 Disp em: http://www.propria.se.gov.br/ - Acesso em 20/08/2010 [347] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 motivos: primeiro que nossa meta neste trabalho não são as Histórias das cidades, mas, sim, a visita do Imperador em si, de modo que um aprofundamento nas questões históricas municipais tornaria o trabalho por demais extenso. Em segundo lugar, a escolha das histórias extraídas dos sites das prefeituras proporciona verificar a forma como o poder público e, por tabela, o povo, valoriza (ou não) a História de suas próprias cidades. Por fim, em terceiro, nos permite verificar o grau de importância que é dado pelos poderes públicos municipais à visita do Imperador D. Pedro II às suas cidades, se o fato é explorado de alguma forma ou se é esquecido. Segundo nossa fonte, os primeiros contatos do homem branco com os indígenas na região de Propriá deu-se através dos franceses que faziam trocas comerciais. Já no século XVII, por conta de uma missão jesuíta de catequese enviada aos índios chefiados pelo cacique Pacatuba, os contatos intensificaramse. A localização estratégica permitiu um rápido crescimento da povoação e já em 1718 a localidade é elevada à sede de freguesia com o nome de Santo Antônio do Urubu de Baixo, ao ser desmembrada de Vila Nova, e em 18021 sobe à categoria de vila englobando o território de várias das cidades ribeirinhas atuais. Em 1821, quando perde a maior parte do território para a nova freguesia de São Pedro do Porto da Folha, já temos um novo nome: Santo Antônio de Propriá. Em 1866 a vila chega à classificação de cidade. No site da prefeitura, acessado em Agosto de 2010, não havia, na seção destinada à História da cidade, qualquer referência à passagem do Imperador D. Pedro II por lá, o que demonstra que o Poder Público não a considera importante a ponto de figurar como informação. Esta ausência ocorre apesar de 1 O ano de 1802 é a data informada ao Imperador como sendo a de fundação da cidade. [348] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 constar o fato de que a cidade recebeu a nomeação de um Barão, conforme se pode ver a seguir: José da Trindade Prado - agraciado com o título (Dec 14.03.1860 ) de Barão de Propriá. Filho do Capitão-Mor José da Trindade Pimentel e de Maria Francisca de Menezes. Nasceu em 1804, na Freguesia de Santo Amaro de Brotas-SE e faleceu a 25.06.1875 no Engenho Várzea Grande, hoje usina Santa Clara. Deputado, Vice-presidente do Sergipe, exercendo o governo cinco vezes1. Como vemos, nem na informação sobre a nomeação de um Barão o nome de D. Pedro II surge na História oficial de Propriá apresentada em seu site. Tal informação será encontrada apenas no breve resumo da História da cidade que encontra-se no endereço eletrônico da Câmara Municipal2. Neste caso, porém, surge como um dos destaques: “Chegada da comitiva do Imperador D. Pedro II, em 16 de outubro de 1859;”. Retornando à comitiva imperial, o desembarque se dá em uma ponte especialmente preparada, o que nos faz pensar que Propriá, assim como Aracaju, também teve a sua Ponte do Imperador, embora não conste que tenha sido construída especialmente para ocasião. O Presidente da Câmara entrega ao visitante uma chave de prata com laço de fita verde. O Imperador é recebido por autoridades civis, religiosas, militares, irmandades, pela multidão e pela guarda de honra, além de duas alas do Batalhão da Guarda Nacional, postados desde o porto até a matriz, descrita como “...bella e elegante Matriz com duas elevadas torres...” (SANTOS. 1860. pg. 160), para onde a comitiva se dirige. 1 Disp em: http://formaecor.com.br/wc2b/_download_baixa.php?sa=1&lay=N&cod=4 - Acesso em 20/08/2010 2 Disp em: http://www.camaradepropria.com.br/pagina.php?sa=1&tit=Conhe%E7a%20Propri%E1 - Acesso em 03/06/2011 [349] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Após a cerimônia religiosa, D. Pedro II visita as aulas de meninos e meninas e a aula de latim, considerando os professores despreparados, conforme anota em seu diário: “...e o professor julgo-o pouco apto.”, “...parecendo-me a professora sofrível...”, “O professor parece-me muito medíocre e a aula é inteiramente inútil.”. (LACOMBE. 2003. pg 115). Sua Majestade visita ainda a Igreja do Rosário, que considera pobre, e a casa da Câmara, onde é informado que Propriá fora criada em 1802. Dirigindo-se à casa especialmente preparada para a visita, que pertencia ao Juiz de Direito Dr. Hugolino Aires de Freitas Albuquerque, o Imperador almoça, concede audiências e às 14hs parte rumo a Porto Real de Colégio deixando na cidade 50 mil réis para ajudar a compra da alforria de uma escrava e 400 mil réis para doações de caridade. Com a partida do Imperador, o Presidente Galvão prepara o retorno a Aracaju, onde vai inspecionar as obras que determinara antes da vinda ao São Francisco, optando por não seguir até o próximo povoamento sergipano visitado por D. Pedro II. Em nossas andanças por Propriá, localizamos 3 lugares de memória da passagem de D. Pedro II por lá. A Igreja Matriz, a Igreja do Rosário e o Paço Imperial, casa do Dr. Hugolino Aires de Freitas Albuquerque, situada na frente da Matriz, e que em agosto de 2010 abrigava uma lojinha de artesanato. Defronte à casa, na praça em frente à Matriz, avistamos um obelisco erguido pelo ex-Prefeito Pedro Chaves em 1952, para comemorar os 150 anos da cidade. Descobrimos que o monumento abriga uma placa recente, comemorativa dos 150 anos da vinda de D. Pedro II, completados em 2009, que foi inaugurada em presença do Príncipe de Orleans e Bragança, que refazia a viagem de seu ilustre antepassado pelo Rio São Francisco. Apesar da recente passagem de um dos familiares de D. Pedro II pela cidade, porém, o desconhecimento da visita é relativamente grande. [350] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Entrevistamos 39 alunos com idade média de 13 anos. Quando perguntados sobre a pessoa mais importante a visitar sua cidade em todos os tempos, 19 (48,72%) responderam que foi o Imperador, 6 (15,38%) que foi o Governador, 2 (5,13%) apontaram o Presidente e 09 (23,08%) indicaram Outros, Roberto Carlos entre estes. Dentre os alunos, 22 (56,41%) acertaram o cargo de D. Pedro II, Imperador, enquanto 3 (7,69%) disseram-no Rei, 4 (10,26%) o classificaram de Presidente e nada menos que 10 (25,64%) responderam que era Papa. Sobre o ano da visita, 17 (43,59%) acertaram escolhendo 1859, enquanto 11 (28,21%) optaram por 1860, 3 (7,69%) optaram por 2009, talvez confundindo-se com a visita do Príncipe de Orleans e Bragança e 8 (20,51%) marcaram o ano 2000. Perguntados onde obtiveram o conhecimento sobre a visita do Imperador, 26 (66,67%) responderam que estava sendo naquele momento, na escola, 3 (7,69%) que foi em livros, 4 (10,26%) indicaram a TV e 6 (15,38%) afirmaram ter sido na rua. Notamos a ausência de alunos que receberam a informação em casa, o que demonstra que as gerações anteriores também não estão informadas ou não estão considerando importante retransmitir a seus filhos e netos o conhecimento da visita. A grande maioria, contudo, 34 (87,18%) declararam-se orgulhosos com a passagem do monarca por Propriá, enquanto 5 (12,82%) disseram não ligar para o fato. Por fim, quanto à importância que atribuem à visita, 29 (74,36%) assinalaram a visita como “Muito Importante”, 5 (12,82%) como de “Média Importância, 3 (7,69%) como de “Pouca Importância” e apenas 2 (5,13%) não viram “Nenhuma Importância” na passagem de D. Pedro II por Propriá. [351] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 CURRAL DE PEDRA - GARARU Às 101/2 horas fui ao Curral de Pedra, vila de recente criação[...]. É povoação muito pequena com capela decente... - D. Pedro II (LACOMBE, 2003. p. 120) A história de Gararu (Curral de Pedras), disponibilizada no site de sua Prefeitura, nos conta que a cidade foi criada como um distrito em 16/04/1875 e elevado à categoria de vila em 15/03/1877, mesma ocasião da criação do município de Gararu, desmembrado de Ilha do Ouro, mais tarde Porto da Folha. O nome é modificado para Vila do Gararu em 18/04/1888 e “A leitura dessa Resolução permite concluir que a referida comarca foi criada com nome do cacique Gararu, mas o município ainda era conhecido por Curral de Pedras...”1 Não há qualquer referência à passagem de D. Pedro II e não é para menos. Não fosse pela disciplina do Imperador em anotar suas paradas e impressões sobre cada um dos lugares visitados, jamais saberiamos da passagem do Imperador por aquele povoado. O livro Viagem Imperial não cita a visita em nenhum momento, em que pese nos parecer que na comitiva que chega ao povoado, insinuar o Imperador, em seu diário, ter a companhia do Juiz de Propriá: Trabalhava o juri, tendo sempre vindo o juiz de direito, Hugolino de Freitas e Albuquerque, que precisou de minha insinuação para fazer uma viagem de rio de 5 léguas a fim de presidir a um juri, que tem de julgar um só processo. (LACOMBE. 2003. pg. 121) 1 Disp em: http://www.gararu.se.gov.br/portal1/municipio/historia.asp?iIdMun=100128022 Acesso em 31/08/2010 [352] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Desembarcando, D. Pedro II passa pela capela, que considera decente e vai à aula de meninos onde nota atraso nas leituras e contas. A presença é breve, sendo digno de nota que o imperador avista os sertanejos em seus trajes típicos, todos de couro: “No Curral de Pedra vi uns poucos de sertanejos com seus trajes e chapéu todo de couro.” (LACOMBE, 2003. pg. 121). Certamente referia-se aos vaqueiros, que ainda hoje usam os seus gibões e demais acessórios para lidar com o gado dentro da caatinga. Curioso, ainda, é o encontro com um velho que “disse que tendo chegado o homem do mundo este estava para acabar [?], o que não sentia muito por ser velho.” (LACOMBE, 2003. pg. 121). Após curto período na vila, o Imperador parte, anotando em seu diário a passagem por Porto da Folha, que também não consta no livro “Viagem Imperial”, com a exceção do trecho em que resume as localidades visitadas: Cidades 5 – Aracaju (Capital), Maroim, Larangeiras, S. Christovão, e Estancia. Villas 4 – Propriá, Villa-Nova, Porto da Folha, e Itaporanga. Povoado 1 – Barra dos Coqueiros. (SANTOS. 1860. pg. 143) Em nossas andanças seguindo os passos de D. Pedro II, também fomos a Gararu e pudemos caminhar por sua orla de vista estonteante, por suas ruas limpas e pitorescas. Notamos que a Matriz, dedicada ao Bom Jesus dos Aflitos, traz inscrição com a data de 1910, o que dá a entender que foi construída mais de 50 anos após a passagem do Imperador, porém, segundo o site da Prefeitura1, 1 Disp em: http://www.gararu.se.gov.br/portal1/municipio/historia.asp?iIdMun=100128022 Acesso em 31/08/2010 [353] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 a capela, a qual ela substituiu, foi erguida no tempo do Marques de Pombal (séc. XVIII), quando sitiantes do morgado de Porto da Folha ocuparam a região. Portanto, a atual matriz foi visitada por D. Pedro II quando ainda era uma simples capela, antes da obra de 1910, que a deixou com a aparência atual. Em Gararu entrevistamos 39 estudantes com idade média de 13 anos. Quando perguntados sobre a pessoa mais importante a visitar sua cidade em todos os tempos, apenas 14 (35,9%) responderam que foi o Imperador. Do total apenas 1 (2,56%) disse ter sido o Presidente, 5 (12,82%) apontaram o Governador e 15 (38,46%) optaram por outros nomes, a esmagadora maioria destes lembrando do Cacique Gararu, patrono da cidade. Os restantes não indicaram ninguém. Dentre os entrevistados, 30 (76,92%) acertaram o cargo de D. Pedro II, Imperador, enquanto 1 (2,56%) o classificou de Presidente, mesma quantidade que optou por Governador, 2 (5,13%) responderam que era rei e 4 (10,26%) disseram-no papa. Sobre o ano da visita, 21 (53,85%) acertaram escolhendo 1859, enquanto 11 (28,21%) optando por 1860 e 2 (5,13%) marcaram o ano 2010 e 5 (12,82%) marcaram o ano 2000. Perguntados onde obtiveram o conhecimento sobre a visita do Imperador, 23 (58,97%) responderam que fora na escola, 6 (15,38%) que foi em livros e 4 (10,26%) que foi na TV, mesmo número que optou pela Rua como local de conhecimento sobre a visita, para 2 (5,13%) dos entrevistados esse conhecimento foi adquirido em casa. A maioria esmagadora, 36 (92,31%) declarou-se orgulhosa com a passagem do monarca por Gararu, enquanto apenas 3 (7,69%) disseram não ligar para o fato. Por fim, a importância que atribuem à visita dividiu as opiniões: 14 (35,9%) assinalaram a visita como “Muito Importante”, 8 (20,51%) como de “Média Importância, 6 (15,38%) como de “Pouca Importância” e 11 (28,21%) não viram “Nenhuma Importância” na passagem de D. Pedro II por Gararu. [354] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 PORTO DA FOLHA – ILHA DO OURO 1 menos 7' – Passamos pelo porto da Folha, em Sergipe... D. Pedro II (LACOMBE, 2003. p. 121) Em Porto da Folha D. Pedro II não visitou a atual área urbana da cidade. Seu contato com a região deu-se apenas na Ilha de São Pedro, onde encontrou-se com os índios que ali habitavam. O site da Prefeitura, na seção Histórico1, não faz qualquer referência à visita. A tradição oral dos Xocó nos diz que, atendendo à reclamação dos índios e comovido com a dança destes, o soberano lhes concedeu a posse das terras, conforme nos relata o texto de Avelar Araujo Santos Junior2: Os índios levaram reivindicações ao Imperador, queixando-se da violência e da expropriação de suas terras pelos fazendeiros. Segundo a tradição oral, o soberano teria confirmado a doação da terra aos índios, autorizando a ida de um grupo à Bahia para buscar os devidos documentos. Ao retornarem, os índios se depararam com o cel. João Porfírio, que já estava ciente de toda a situação. O posseiro ofereceu bebida e comida aos viajantes e, aproveitando-se da embriaguez e do descuido dos índios, roubou-lhes os documentos. E mais uma vez eles ficavam impossibilitados de reaverem suas terras.3 Em seu texto, Araujo descreve ainda o relato do Cacique Bá, onde o Imperador, hospedado na aldeia, lhes concede a posse do terreno: 1 Disp em: http://www.portodafolha.se.gov.br/portal1/municipio/historia.asp?iIdMun=100128055 - Acesso em 09/06/2011 2 Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe, Mestre em “Estudios Ameríndios” pela Universidad Complutense de Madrid. 3 Avelar Araujo Santos Junior, “O Povo Xocó”, Disp. em: http://www.sulanca.com/pesquisa.asp?pag=17 – Acesso em 07/06/11 [355] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Dom Pedro II foi quem demarcou. Ele disse que a gente tem o direito a esse tanto de terra. Ele passou um tempo lá dentro da Ilha, lá no “Império”. Alí ele ficou hospedado, aí umas horas ele viu os caboclos cantar, os nossos parentes, aí ele perguntou a outra pessoa se ali tinha índio; aí outro cidadão disse que sim. Aí ele mandou chamar: “vocês, cantem e dancem”; aí os índios cantaram, ele ficou emocionado, ficou encantado, e disse: “de hoje em diante, vocês têm uma légua em quadra de terra, vão pegar os documentos lá na Bahia”. (Cacique Bá, Xokó, 21 anos)1 Os registros da passagem do monarca pela ilha são escassos. Pelo que consta, Luis Alvares Santos, narrador da viagem, não registrou nada dessa visita e sequer acreditamos que tenha acompanhado o Imperador até o local, embora o resumo da viagem cite a ida à Vila: “Villas 4 – Propriá, Villa-Nova, Porto da Folha, e Itaporanga.” (SANTOS. 1860. pg. 143) O Relatório enviado à Assembléia Provincial pelo Presidente Galvão também faz apenas uma breve referência ao acontecimento2 e o diário de D. Pedro II, que destacava-se por registrar todos os momentos, traz apenas o trecho do qual reproduzimos parte na citação que abre este tópico. No livro de Lacombe consta, ainda, citação (inserida no resumo da viagem à Bahia) da passagem, ocorrida no dia 17/10/1859 quando “Às 61/4 passou pelo povoado de São Pedro, aldeia de índios, situada na ilha de mesmo nome.” (pg. 251). Este dia é o mesmo da passagem por Curral de Pedra 1 Avelar Araujo Santos Junior, “O Povo Xocó”, Disp. em: http://www.sulanca.com/pesquisa.asp?pag=17 – Acesso em 07/06/11 2 “Em sua viagem à Cachoeira de Paulo Affonso, Sua Majestade o Imperador se dignou tocar em Villa Nova e Propriá nos dias 15 e 16 de Outubro, bem como no Porto da Folha” (pg. 4) [356] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 (Gararu), de onde o Imperador partiu às 12hs. Às 20hs, segundo Lacombe1(pg.251), o navio chega à Pão de Açúcar. Ora, se a comitiva passou na aldeia às 61/4 (18:15hs) e às 20hs já estava em Pão de Açúcar, localizada há considerável distância de navegação contra a correnteza do rio, o contato com os índios foi brevíssimo, tempo suficiente apenas para uma caminhada pelo povoado e uma parada breve na referida “Casa do Império” onde teria sido ouvida e acatada a reivindicação. Essa disputa de terras entre índios e fazendeiros já vinha de longos anos e é relatada na obra de Beatriz Góis Dantas e Dalmo Dallari2 onde nos informam que: ...persiste a ocupação das terras dos índios e quando, em 1859, D. Pedro II visita a aldeia, eles se queixam que os “portugueses” lhes aproveitam as terras, argumentando o Frei Doroteu que como os índios são indolentes e como não plantam, dá a terra dos pobres... (DANTAS, DALLARI, 1980. pg. 16) A mesma obra mostra a resposta à reivindicação indígena: Oficio da Repartição geral de terras Públicas do Ministério dos Negócios do Império ao Presidente da Província de Sergipe. 21 de Abril de 1860, APES – 426 1 “Às 8 horas cheou o Pirajá à vila do Pão de Açúcar, onde S.M. desembarcou, estando a vila toda iluminada, e o povo apinhado na praia a dar vivas.” 2 DANTAS, Beatriz Góis; DALLARI, Dalmo de Abreu. Terra dos índios xocó: estudos e documentos. SP, Comissão Pró-Índio, 1980, p. 186 [357] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Sua Majestade o Imperador Houve por bem indeferir o requerimento, em que o Índio Lourenço Francisco de Souza pede se lhe confira o título de Capitão da missão de São Pedro do Rio de São Francisco, e se lhe garanta a posse das suas terras, em que diz achar-se ameaçado. O que comunico a V.Exa. em resposta ao seu ofício de 27 do passado, e para que o faça constar ao suplicante. (DANTAS, DALLARI, 1980. pg. 35) Anos depois, no final da década de 80 do século XIX, alegada a extinção do aldeamento indígena, as terras foram entregues à Câmara Municipal que as colocou em aforamento. Apenas várias décadas depois a luta dos índios teria um fim. Assim, partindo a frota da região de Porto da Folha em direção a Piranhas, onde desembarcaram para seguir a cavalo até a Cachoeira de Paulo Afonso, terminamos a etapa do Rio São Francisco da viagem. Em seu retorno de Paulo Afonso D. Pedro II vai prosseguir em suas viagens por outros estados, retornando apenas em Janeiro do ano seguinte a Sergipe, quando, no dia 11, desembarca em Aracaju, capital em construção do Estado. Essa visita à nova capital de Sergipe e à velha (São Cristóvão), serão tema de outro artigo, assim como a ida do Imperador ao Vale do Cotinguiba, o cinturão do açúcar do Estado naqueles anos. Após estas pesquisas, visitas e entrevistas nas cidades sergipanas da margem do Velho Chico, ficamos com a certeza de que a passagem do Imperador D. Pedro II foi o fato mais importante da História destas localidades pois jamais ocorreu, outra vez, que alguém de tamanha importância política e poder tenha por ali passado, mesmo que Presidentes da República. Considerando as dificuldades de deslocamento da época, as circunstâncias da viagem e a aura de poder e simbolismo que cercavam a figura do Imperador, foi um fato extraordinário que balançou as estruturas de vida dos ribeirinhos. [358] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Imagine o leitor um povoado como Vila Nova, com menos de 2000 habitantes, com seus moradores na margem do rio, observando aquela frota de grandes navios ancorados na margem oposta e assistindo, bem ali, o desembarque daquele homem de 1,90m de altura, seguido por uma comitiva de pessoas distintas, todos em seus vistosos uniformes, caminhando por suas ruas, visitando suas igrejas e conversando com seus filhos. Foi um acontecimento único e que, certamente, jamais apagou-se da memória dos que puderam testemunhá-lo. Nos dias atuais, porém, esse momento ímpar das Histórias destas cidades está apagado e não é devidamente ensinado nas escolas. Seu potencial de incentivar o amor cívico, o interesse pela própria cidade e até mesmo o turismo, não é aproveitado. O que é algo a ser lamentado profundamente em um momento em que se discute tanto a educação como garantia de cidadania e de identidade cultural. Será que nas outras cidades verificamos o mesmo? A conferir! OBSERVAÇÃO: Nas páginas a seguir, fotos recentes (2010) dos locais visitados pelo Imperador nas cidades deste artigo e que ainda existem. Lugares de memória da passagem de D. Pedro II por Vila Nova (Neópolis) [359] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 Lugares de memória da passagem de D. Pedro II por Propriá Lugares de memória da passagem de D. Pedro II por Curral de Pedra (Gararu) [360] Dossiê Criminalidade Revista História Ano 3, Vol. 1, Núm. 1– ISSN 1983-0831 [361] Dossiê Criminalidade