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Conversações Política, Teoria e Direito Cadernos do Seminário da Pós 2015 Revista Discente da Pós Graduação - PUC-Rio ISSN 21769826 Um novo necessário? Uma análise do consumismo na sociedade capitalista contemporânea com o auxílio das lentes de Locke e Rousseau A new need? An analysis of consumerism in contemporary capitalist society with the aid of the lenses of Locke and Rousseau Carolina Lopes de Oliveira1 Resumo O presente artigo tem como objetivo apresentar uma visão sócio-política da sociedade capitalista contemporânea e seu consumismo estimulado ao limite, inclusive na infância. Pretende-se discutir, com o resgate das considerações presentes nas obras de John Locke e Jean-Jacques Rousseau, os fundamentos teóricos utilizados para justificar o “individualismo possessivo” atual, as consequências do consumismo para a sociedade e seus efeitos nas crianças, bem como buscar soluções para recuperar o significado original da infância. Para isso, serão utilizadas, além dos ensinamentos destes teóricos clássicos, as obras de Norberto Bobbio, Crawford B. Macpherson, Jean-Jacques Chevallier, François Châtelet e do sociólogo Zygmunt Bauman, uma dissertação de mestrado em educação e o documentário americano Consuming Kids. Palavras-chave: Liberalismo. Consumo. Infância. Ensino. Modernidade. Abstract This paper aims to present a socio-political vision of modern capitalist society and its consumerism spurred to the limit, even in childhood. It intends to Carolina Lopes de Oliveira discuss with the rescue of the considerations in the works of John Locke and Jean-Jacques Rousseau, the theoretical foundations used to justify the current “possessive individualism”, the consequences of consumerism for society and its effects on children, and seek solutions to recover the original meaning of childhood. To do so, will be used beyond the teachings of these classical theorists, the works of Norberto Bobbio, Crawford B. Macpherson, JeanJacques Chevallier, François Châtelet and the sociologist Zygmunt Bauman, a dissertation in education and the American documentary Consuming Kids. Keywords: Liberalism. Consumption. Childhood. Education. Modernity. I. Introdução No dia 29 de agosto de 1632, na vila de Wrington, nasce em uma casa modesta, pertencente a uma família da pequena burguesia mercantil, o filósofo John Locke. Neto de um comerciante de tecidos, filho de um juiz de paz (também chamado John Locke) e de uma dona de casa (Agnes Keene), aos quinze anos, Locke conta com a ajuda de Alexandre Popham, amigo da família e deputado da região, para ser aceito na renomada e seletiva escola de Westminster1. Em 1652, consegue ser admitido em um colégio de Oxford e entra para a universidade, onde se matricula no Christ Church, colégio célebre, cujo reitor havia sido capelão de Cromwell durante a Guerra Civil. Dois anos depois, Locke perde sua mãe, o que o faz estreitar os laços com seu pai, um homem culto e severo a quem ele tinha grande devoção. Locke alcança os títulos de bachelor of arts em 1656 e de master of arts em 1658, mas sua grande vocação estava nos estudos científicos que, contudo, eram banidos das universidades, exceto pelo ensino da medicina, que John Locke estuda de forma autodidata. Após conseguir seu segundo título, ele permanece na Universidade, indeciso entre a carreira eclesiástica (única que o permitiria progredir na carreira universitária), de magistério ou médica. Locke chega a ser nomeado lecturer2 de grego e depois de retórica, mas sua amizade com o cientista inglês Robert Boyle o faz aproximar-se da filosofia e abandonar a ideia da possível carreira eclesiástica. 1 2 No ano de 1661, com apenas vinte e nove anos, Locke perde também o Na época composta somente por duzentos alunos. Denominação comum em países de língua inglesa para professores universitários no início da carreira acadêmica, quando possuem um diploma de doutorado ou estão em formação para sua obtenção. 32 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Um novo necessário? Uma análise do consumismo na sociedade capitalista contemporânea com o auxílio das lentes de Locke e Rousseau pai, que lhe deixa um pequeno patrimônio de herança e em 1663, chega ao último degrau possível de sua carreira docente o que o leva a despedir-se da academia. No verão de 1665 inicia sua carreira de diplomata, sem abandonar os estudos científicos. É através de tais estudos que Locke conhece o Lord Anthony Ashley Cooper, que indo a Oxford para tratarse de um problema nos rins é confiado aos seus cuidados médicos. Lord Ashley considera que Locke salvou sua vida e, portanto, o convida em 1667 para morar em sua casa em Londres e ser seu médico pessoal. Anos mais tarde, Locke ainda executa com êxito uma cirurgia complexa em Lord Ashley que, ainda mais grato, passa a considerá-lo um amigo de extrema confiança e o nomeia seu conselheiro econômico e político até o ano de 1673, quando o Lord (agora chamado Lord Shaftesbury) é obrigado a demitir-se. Locke então viaja para a França, onde vive um período de grande crescimento intelectual até 1679, ano em que retorna à Inglaterra e compra em Oxford um exemplar do Patriarcha de Robert Filmer – que criticará em todo o seu Primeiro Tratado sobre o Governo. O filósofo passa a ser perseguido e resolve refugiar-se na Holanda onde permanece até 1689. Quando retorna à Inglaterra, com 56 anos, Locke é um dos conselheiros do futuro monarca inglês Guilherme de Orange, mas não possui notoriedade, pois muitos de seus textos foram publicados anonimamente. John Locke falece em 28 de outubro de 1704 e graças às suas obras, especialmente o Ensaio acerca do entendimento humano (publicado em 1690), fica conhecido como o “John Locke da história intelectual”3. No dia 28 de junho de 1712 nasce o filósofo, escritor, teórico político e compositor musical autodidata suíço Jean-Jacques Rousseau. Dias após seu nascimento, sua mãe, Suzanne Bernard, falece. Rousseau passa a viver com seu pai, o famoso relojoeiro Isaak Rousseau, que o incentiva a ler (desde os seis anos) diversos livros clássicos da Grécia e de Roma. Com apenas dez anos de idade, perde também seu pai, o que faz com que Rousseau seja posto sob a responsabilidade de seus tios que, por sua vez, confiam sua educação a um pastor protestante, Lambercier, que morava no campo. Quando atinge a juventude, Rousseau tenta trabalhar, mas não se adapta. Depois de muito viajar, torna-se professor de música e, posteriormente, educador particular de crianças de famílias burguesas. 3 LASLETT apud CHEVALIER, 1982, p. 29. Conversações: Política, Teoria e Direito 33 Carolina Lopes de Oliveira Thérèse Levasseur, uma criada, vive como sua amante por vinte e três anos. Com ela, Rousseau tem cinco filhos, mas todos são deixados na “roda dos enjeitados” e nunca mais conseguem ser encontrados por ele, apesar de todos os seus esforços. Por esta razão, quando publica seu livro Emílio ou da Educação em 1762, Rousseau recebe inúmeras criticas, afinal, se não criou os próprios filhos, como poderia aconselhar a criação do filho dos outros? Ocorre que Jean-Jacques Rousseau inspirou-se profundamente em suas experiências de vida para criar suas obras. E o mesmo ocorreu com John Locke, o que se mostra evidente mediante esta breve análise de suas biografias. Sendo assim, da mesma forma que as teorias de Locke sempre estiveram envoltas nas ideias burguesas e sob a influência do parlamentarismo – pois ele mesmo era burguês 4 e teve sua carreira patrocinada por parlamentares, desde sua aceitação em Westminster até seus cargos de conselheiro –, Rousseau escreve o Emílio partindo, não da experiência da criação de seus filhos, mas do fato de ter sido professor e ter tido uma infância peculiar (com acesso a obras consideradas difíceis para sua idade, em contato com o campo e aprendendo música de maneira autodidata). Deste modo, as teorias burguesas de Locke acabam lhe transformando em um dos principais ideólogos do individualismo liberal e as teorias educacionais de Rousseau, graças a sua obra considerada um marco da pedagogia, lhe dão fama de revolucionário do ensino. Todavia, seus textos, por mais clássicos e antigos que possam parecer, não estão ultrapassados5. Nos dias atuais, há na sociedade capitalista contemporânea um consumismo exacerbado e estimulado até mesmo às crianças mais novas, que desde a sua gestação já são vistas como mercado consumidor pelas grandes marcas. Tais crianças nascem em um mundo que não mais as prepara para alcançarem sua realização pessoal e profissional, mas que as enclausura em uma confusão de valores, onde ser feliz é sinônimo de ter. 4 5 Segundo Macpherson, na década de 1670 Locke tinha muitas terras, altos investimentos no comércio de sedas, no tráfico de escravos e também em hipotecas, chegando a ter quantias em dinheiro “jazendo mortas”. Afirma o autor que na época de seu falecimento, Locke possuía uma fortuna de cerca de vinte mil libras esterlinas. (Cf. MACPHERSON, 1979, p. 265) A ideia de Locke do primeiro estágio do estado de natureza – que será explicada adiante – pode ser, inclusive, visualizada na prática em uma comunidade alternativa na ilha de Evia, Grécia, que existe há cerca de três anos. (Cf. CARVALHO, Vicente. Para fugir da crise na Grécia, jovens criam comunidade sustentável e vivem menos dependentes do dinheiro. Disponível em: <http://www.hypeness.com.br/2014/07/jovens-criamcomunidade-sustentavel-para-driblar-a-crise-da-grecia-e-vivem-melhor>. Acesso em: 02 jul. 2014). 34 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Um novo necessário? Uma análise do consumismo na sociedade capitalista contemporânea com o auxílio das lentes de Locke e Rousseau Por esta razão, o presente trabalho pretende trazer de volta as considerações de Locke para discutir quais foram os fundamentos teóricos utilizados para justificar o “individualismo possessivo” atual. Do mesmo modo, buscaremos discutir os aspectos da modernidade que levaram e têm levado pessoas de todas as idades a consumirem cada vez mais, bem como se procurará tratar das consequências que tal consumo exacerbado tem provocado nas crianças, cuja infância aparenta ter recebido uma ressignificação, bem diferente da trazida nos ensinamentos de Rousseau. Para isso, a apreciação das obras de Locke será realizada em conjunto com as críticas elaboradas por Norberto Bobbio, Crawford B. Macpherson, Jean-Jacques Chevallier e François Châtelet. Já a análise da obra Emílio, de Rousseau, terá como objetivo recuperar a consideração da criança como indivíduo em formação e resgatar a importância da vivência da infância em sua plenitude. Além disso, para entender a sociedade contemporânea, serão estudadas as ideias do sociólogo Zygmunt Bauman sobre a liquidez da modernidade, o documentário norte-americano Consuming Kids, do ano de 2008 e a pesquisa da Mestre em Educação Núbia de Oliveira Santos, realizada em creches públicas da cidade do Rio de Janeiro. II. O estado natural de Locke “No fundo encontramos, em Locke, a dicotomia tradicional entre a natureza ideal e a real – dicotomia que atua na configuração do estado da natureza. Se os homens fossem sempre racionais, em toda parte, bastar-lhes-iam as leis da natureza. Entretanto, como isso não acontece, o estado da natureza, perfeito em teoria, é menos perfeito na prática.” (Norberto Bobbio, 1998) A ideia de estado de natureza como parte primordial do sistema foi elaborada pela primeira vez por Thomas Hobbes. Antes dele, a ideia do estado de natureza existia, mas não em uma noção jurídico-política, no sentido de oposição ao estado civil. John Locke foi contemporâneo a Thomas Hobbes e há autores que afirmam que suas teorias foram inspiradas pelos ensinamentos hobbesianos6, principalmente no que concerne ao estado de natureza. 6 Norberto Bobbio chega a afirmar que “Locke é hobbesiano também na substância, mesmo se preferisse dissimular-se” (Cf. BOBBIO, 1998, p. 169). Conversações: Política, Teoria e Direito 35 Carolina Lopes de Oliveira Entretanto, observa-se uma grande diferença na teoria dos dois autores. De acordo com Norberto Bobbio, é possível dividir as concepções do estado de natureza entre otimistas e pessimistas. A primeira pensa no estado de natureza como um estado de paz, liberdade e bemestar e a segunda, como um estado de guerra, opressão e miséria. Nesse sentido, a teoria de Hobbes se encaixaria na segunda hipótese, porque ele acreditava na natureza má, egoísta dos instintos. Assim, apesar de reconhecer o estado de natureza como um estado de liberdade e igualdade, acreditava que justamente por este motivo os homens – maus por natureza e constantemente com medo, “o homem é o lobo do homem” – sempre o tornariam instável e perigoso, praticamente uma guerra perpétua. É por este motivo que seu Leviatã era tão justificado, afinal, somente através de um homo artificialis, de um corpo político forte e absoluto, os homens conseguiriam viver em paz. Por outro lado, um bom exemplo para a primeira hipótese, segundo Bobbio, seria a teoria do jurista alemão Samuel von Pufendorf. Para este teórico, havia dois tipos de concepção do estado de natureza: o puro, em que todos os homens eram iguais ao mesmo tempo, e o limitado, que só existiu em pequenos grupos e em momentos determinados. Desta forma, para Pufendorf o primeiro tipo nunca existiu, uma vez que conforme as Sagradas Escrituras, a origem da humanidade se deu com um único casal. Já o limitado – único que haveria existido historicamente – seria pacífico, como narrado nas Sagradas Escrituras. John Locke, por sua vez, acreditava que o estado de natureza era uma situação histórica real e não uma premissa hipotética como pensado por Hobbes, razão pela qual não podia concordar com ele. Por outro lado, pensava que se o estado de natureza fosse tão bom como afirmava Pufendorf, os homens não teriam instituído o estado civil. Sendo assim, Locke cria uma teoria – que Bobbio denomina de “meio-termo” – através da qual o estado de natureza era um estado de paz, mas que por apresentar inconvenientes, acabou sendo transformado. Desta forma, para a teoria lockeana o estado natural é diferente do estado de guerra, mas pode tomar esta direção, ou seja, o estado de natureza não é essencialmente um estado de guerra (como afirmava Hobbes), mas o é potencialmente – daí a necessidade da instituição de um Estado Civil. Todavia, ressaltam Chevalier7 e Macpherson que haveria dois estágios no estado de natureza de Locke: um momento em que o homem não deseja possuir mais do que lhe é necessário e um momento em que o homem sente a necessidade 7 CHEVALIER, 1982, p. 42-43. 36 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Um novo necessário? Uma análise do consumismo na sociedade capitalista contemporânea com o auxílio das lentes de Locke e Rousseau de ampliar suas posses (acumulação) e que coincide com a invenção da moeda. No primeiro estágio, havia igualdade, liberdade e sociabilidade (no que difere da ideia do estado de solidão dos indivíduos pensada por Rousseau8). A liberdade e a igualdade, porém, não se identificam com as imaginadas por Hobbes. A primeira corresponde a uma liberdade negativa, ou seja, significa ausência de obrigações, mas ainda está limitada pela lei da natureza. Desta forma, cada um agirá segundo sua vontade, sem pedir permissão ou estar submetido à vontade arbitrária de outra pessoa, mas isto sem violar preceitos que para Hobbes não existem no estado de natureza (para ele, cada um pode fazer neste momento aquilo que quiser). Já a igualdade teve inspiração em sua ideia da tabula rasa, publicada no Ensaio acerca do Entendimento Humano (1690). John Locke acreditava que todas as pessoas nascem sem conhecimento algum e, por este motivo, a mente é inicialmente uma “folha em branco”. Para ele, todo o conhecimento, para ser adquirido, teria de passar pela experiência – razão pela qual também ficou conhecido historicamente por seu protagonismo na corrente empirista do pensamento. Assim, por não existirem ideias inatas, todos os homens nasceriam iguais. Locke, portanto, não discorre sobre uma igualdade física, de forças – como faz Hobbes – ele enxerga nesta primeira etapa do estado natural uma igualdade jurídica, pois não há subordinação ou sujeição de um individuo sobre outro; todos são igualmente soberanos. Em seu Segundo Tratado sobre o Governo John Locke afirma que “o objetivo principal da união dos homens em comunidades, colocandose eles sob governo, é a preservação da propriedade”9, disto Macpherson conclui que para Locke os homens tinham um direito natural à propriedade que antecede a própria existência da sociedade e do governo civis. Esta noção de propriedade para Locke, inclusive, se estende à própria pessoa do indivíduo, ou seja, todo homem tem propriedade sobre si mesmo e, consequentemente, sobre o trabalho que suas mãos executam. Deste modo, tudo aquilo que ele retire do estado natural e modifique com seu trabalho passa a ser propriedade sua, ele pode se apropriar individualmente sem o consentimento alheio. Assim, ninguém poderá tomar aquilo que passar a ser propriedade de outro alguém, mas isto enquanto “houver bastante e igualmente de boa 8 9 Cf. CHÂTELET, 1993, p. 675. LOCKE, 1973, §124. Conversações: Política, Teoria e Direito 37 Carolina Lopes de Oliveira qualidade em comum para terceiros”10. É de tal modo que Locke justifica a apropriação limitada, uma vez que cada um só pode se apropriar sem que haja desperdícios, do contrário, estaria retirando o que deveria ser dos outros (a não ser que trocasse o excedente perecível, o que demonstra que nesta fase já havia a aceitação do comércio por Locke). Todavia, é esta apropriação que começa a retirar os homens da igualdade natural. Macpherson adverte, no entanto, que John Locke, além de ignorar a possibilidade da propriedade coletiva da terra no primeiro estágio do estado de natureza (via a apropriação individual como a única forma de cultivá-la), ao explicar o início do segundo estágio, defende a apropriação ilimitada. Isto porque Locke explica que com o consentimento tácito dos homens na introdução do ouro e da prata (metais que não estragam) como moedas de troca, os únicos limitadores da apropriação – os problemas do desperdício e do perecimento – foram exterminados. Ainda segundo Macpherson, Locke justifica que se surge nos homens o “desejo de ter mais do que precisa” com o uso do dinheiro, isto não seria apenas a vontade do avarento de amealhar, mas racionalmente justificado pelo comércio. Por esta razão, o fato de nesta segunda etapa do estado natural todas as terras serem apropriadas, deixando alguns homens sem nenhuma, ou seja, em desigualdade de posses, é consequência do consentimento tácito dado por eles junto à adoção do dinheiro. Todavia, por mais que a desigualdade fosse “tacitamente consentida pelos homens”, ela fez com que eles passassem do “período feliz de comunismo primitivo”11 para uma fruição precária e constantemente ameaçada de suas propriedades, pois na medida em que todos eram livres (não governo ou subordinação), todos os indivíduos detinham em mãos os poderes de proteção e punição. Desta forma, diante da ausência de uma lei estabelecida, fixada, conhecida e admitida por todos, de um juiz competente e imparcial para aplicálas e de uma força coerciva para impor a execução da sentença proferida pelo juiz, eram os próprios homens que: criavam suas leis, eram os juízes de suas causas e usavam de sua própria força para executar aquilo que achavam certo. Para Locke, foi por esta situação de total insegurança que os homens resolveram abandonar o estado de natureza e formar, através de um primeiro pacto, o corpo civil. Posteriormente, em um segundo pacto, o corpo social deposita sua confiança, seu trust, em representantes (governantes futuros) e assim é criado 10 11 Ibidem, §27. CHÂTELET, 1993, p. 678. 38 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Um novo necessário? Uma análise do consumismo na sociedade capitalista contemporânea com o auxílio das lentes de Locke e Rousseau o Estado Civil. Vê-se, portanto, que para ele o direito preexiste à formação do Estado Civil e a função do Estado é mais de garantir do que de criar o direito. John Locke também ressalta que, na medida em que o poder civil é derivado dos indivíduos e estes só possuem os poderes de proteção e punição, o Estado Civil não poderá ser como pensado pelas teorias absolutistas, ou seja, se nem os indivíduos têm direito sobre a vida e as propriedades dos outros, o Estado não poderá receber deles estes poderes. Assim sendo, seu papel será de fazer as leis, vigiar seu cumprimento e executar a força conjunta necessária para punir os que se rebelam – um papel, portanto, muito mais fiscalizador. Inúmeros problemas na teoria lockeana são apontados por Macpherson, desde o seu conceito de povo (que excluía os desempregados e afirmava que o assalariado “vive da mão para a boca”, não devendo participar dos assuntos do governo), até as ambiguidades presentes em suas ideias de Estado Civil (em que todos os homens são membros, mas apenas os de fortuna podem governar) e individualismo (onde “a plena individualidade para alguns era produzida pelo consumo da individualidade de outros” 12). Explica Macpherson que John Locke considerava a “apropriação privada como sendo natural e racional desde o começo”, assim como a acumulação ilimitada “natural e racional após a introdução do uso do dinheiro”13, bem como que o poder político deveria existir a serviço do econômico. Observa-se, portanto, que com sua teoria Locke forneceu inspirações para as ideias de individualismo liberal e subsídios às políticas liberais como a utilizada, por exemplo, pelo presidente americano Ronald Reagan 14. Não obstante, é inegável – e isto o próprio Macpherson reconhece – que Locke apenas defendia o sistema que conhecia e concordava. Ele não poderia visualizar as contradições contidas em suas obras ou prever que suas teorias fossem se tornar o “manancial do liberalismo inglês”. O fato é que, ainda que não tenha agido com “maldade”, seus escritos serviram para negar o individualismo à metade da nação na época e nos dias de hoje são utilizados para justificar o “individualismo possessivo” e a política liberal adotada por países capitalistas modernos, como os Estados Unidos da América. 12 13 14 MACPHERSON, 1979, p. 273. Ibidem, p. 249. Presidente dos Estados Unidos nos anos de 1981 a 1989. Conversações: Política, Teoria e Direito 39 Carolina Lopes de Oliveira III. O Estado liberal moderno: o consumo justificado “O que caracteriza o consumismo não é acumular bens (quem o faz deve também estar preparado para suportar malas pesadas e casas atulhadas), mas usá-los e descartá-los em seguida a fim de abrir espaço para outros bens e usos.” (Zygmunt Bauman, 2004) Apesar de John Locke ter vivido no século XVII, suas ideias de liberalismo econômico e político não apenas serviram como justificativa para a burguesia que ascendia ao poder na época, como também fazem com que seus ensinamentos carreguem em si certos aspectos de atualidade, como mencionado, e possam ser ainda observados nos dias de hoje. Assim, se a filosofia política de Locke, fundamentada nas noções de “governo consentido pelos governados, autoridade constituída e do respeito ao direito natural do ser humano (à vida, à liberdade e à propriedade)”15, foi capaz de influenciar revoluções como a francesa, fortalecendo o grito por “liberdade, igualdade e fraternidade” e capacitando os revolucionários para que pudessem quebrar as anciãs estruturas de opressão, teóricos apontam que, no mundo moderno, talvez a primeira reivindicação (liberdade) tenha ido longe demais. Em seu livro Modernidade Líquida, Zygmunt Bauman cita uma passagem de Herbert Marcuse onde o mesmo explica que ao final das “três décadas gloriosas” de crescimento econômico no Ocidente, poucas pessoas desejavam se libertar da sociedade rica e poderosa que havia se formado e que um número ainda menor de pessoas estavam dispostas a agir para isso. Desta forma, era possível visualizar uma diferença entre a liberdade objetiva e a subjetiva, pois ao mesmo tempo em que havia a possibilidade de que aquilo que as pessoas sentissem como liberdade não fosse de fato liberdade, elas poderiam estar satisfeitas com o que tinham, ainda que não fosse o “objetivamente satisfatório”. Para Bauman, contudo, “a perplexidade de Marcuse está ultrapassada, pois o individuo já ganhou toda a liberdade com que poderia sonhar e que 15 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/John_Locke>. Acesso em: 02 jul. 2014. 40 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Um novo necessário? Uma análise do consumismo na sociedade capitalista contemporânea com o auxílio das lentes de Locke e Rousseau seria razoável esperar”16. O tempo contemporâneo é, portanto, o tempo da “modernidade fluida”, onde a estrutura do sistema é inalcançável e o “cenário da política-vida é fluido e não estruturado”, o tempo de um poder cada vez mais “escorregadio e fugitivo”, em que a “desintegração social é tanto sua condição, quanto seu resultado e usa como ferramentas o desengajamento e a arte da fuga”. Assim, como o poder hoje precisa ter liberdade para fluir, explica Bauman que “o mundo deve estar livre de barreiras e fronteiras”, assim como “qualquer rede de laços sociais é um obstáculo a ser eliminado”, pois é justamente o “derrocar, a fragilidade, o quebradiço, o imediato dos laços e redes humanos que permitem que esses poderes operem”17. Utilizando-se de uma metáfora, Bauman denomina “Capitalismo Pesado” o navio que era comandado por um seleto grupo da tripulação, cujos passageiros seguiam as regras por eles emanadas e que, quando reclamavam, era contra o capitão que se dirigiam, pois “não levava o navio a porto com a suficiente rapidez, ou negligenciava o conforto dos passageiros”. Já o capitalismo dos dias atuais, “Capitalismo Leve”, seria o avião cuja cabine do piloto está vazia e onde não há meio de extrair da “caixa preta” qualquer informação sobre o seu destino. Bauman também explica que o capitalismo moderno (“leve”) é obcecado por valores e que no mundo contemporâneo, cheio de possibilidades, a vida torna-se “uma mesa de bufê com tantos pratos deliciosos que nem o mais dedicado comensal poderia esperar provar de todos”. Por isso, a infelicidade dos comensais (em verdade, os consumidores) vem do excesso e não da falta de opções, da dificuldade em aceitar a renúncia necessária a cada escolha. O autor ainda argumenta que, na busca incessante por uma vida sem problemas, a compulsão da escolha se torna um vício, assim como a consciência de permanecer na “corrida particular da atividade de comprar”. Para o sociólogo, não se compra apenas roupas, sapatos comida, as pessoas também buscam, através da atividade do comprar, “receitas de vida”18. Ao mesmo tempo, o consumismo não é mais para a satisfação das necessidades (ainda que artificiais e inventadas) ou para o desejo (fadado a permanecer insaciável), sua justificação é substituída pelo “querer”, que traz à compra uma “qualidade de sonho”19. Diante do exposto, no Estado liberal moderno a tarefa é o consumo, um passatempo individual que se dá em “ilhas de ordem, livres de mendigos, BAUMAN, 2001, p. 30. Ibidem, p. 15-22. 18 Ibidem, p. 87. 19 FERGUSON, 1992 apud BAUMAN, op. cit., p. 90. 16 17 Conversações: Política, Teoria e Direito 41 Carolina Lopes de Oliveira desocupados, assaltantes e traficantes”, templos do consumo que as pessoas não vão para socializar e onde qualquer encontro deve ser breve e superficial20. E é esta sociedade, que no Brasil somente no ano de 2010 gastou mais de dois trilhões de reais21, em que crianças participam cada vez mais das escolhas dos produtos comprados e são ensinadas que ter é sinônimo de ser22. IV. A criança moderna “Núbia: e você, Pedro, sem ser o ouro, o que vale muito pra você? Pedro: dinheiro. Núbia: é? Por que dinheiro vale muito? Pedro: dinheiro vale muito porque eu vendo um amigo e pego outro. (fala rindo e todos o acompanham na gargalhada)” (Núbia Santos, 2005) Vistas como mais um segmento do mercado consumidor, as crianças modernas também são usadas para influenciar o poder de compra de seus pais e isto fica ainda mais aparente no documentário Consuming Kids: The Commercialization of Childhood. Este documentário retrata a realidade das crianças americanas que, antes de 1984 correspondiam a 4% do consumo anual – o que equivalia a 4,2 bilhões de dólares – e, em 2010, passaram a representar 40 bilhões de dólares, aumentando em 852% sua importância no mercado. De acordo com o documentário, este aumento foi devido, principalmente, à política adotada pelo presidente Ronald Reagan nos anos de 1980. Para Reagan, o governo não era a solução para os problemas, mas sim, o problema, razão pela qual deveria se afastar e deixar de regular o mercado – inclusive a publicidade infantil. 20 21 22 Na mesma época, a Comissão Federal do Comércio dos Estados Unidos Cf. BAUMAN, op. cit., p. 114. Outsourcing de Inteligência Setorial do SEBRAE/PR. Estudo de Comportamento de Consumo – Segmento de Vestuário, Calçados e Acessórios. Disponível em: <http://www.sebraepr.com.br/StaticFile/ InteligenciaCompetitiva/docs/Comercio_Varejista/Estudo%20de%20Comportamento%20de%20Consumo/ Estudo_Comportamento_Consumo.pdf>. Acesso em: 01 jul. 2014. Segundo a empresa de pesquisa Nielsen, em média, 90% das crianças foram às compras pelo menos uma vez ao mês no ano de 2006 e o faturamento do mercado infantil brasileiro chegou a R$7 bilhões no ano de 2002 (Cf. CORRÊA, G.; TOLEDO, G., 2006). 42 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Um novo necessário? Uma análise do consumismo na sociedade capitalista contemporânea com o auxílio das lentes de Locke e Rousseau (Federal Trade Comission – FTC), havia suspendido a permissão da veiculação de propagandas voltadas às crianças de até oito anos, alegando que até esta idade elas não conseguem escolher por si mesmas. Inconformadas, as indústrias de brinquedos e cereais açucarados (problemáticas pelo alto índice de cárie que estavam gerando) não pouparam esforços para derrubar a proibição. Assim, contando com o apoio da política de Reagan, o Congresso americano aprovou, em maio de 1980, o Ato Público 96-252 (denominado “Ato de melhorias do FTC”) que estipulava que o FTC não teria mais nenhuma autoridade para promulgar leis sobre a publicidade infantil. Quatro anos mais tarde, o presidente Reagan desregulamentou toda a televisão infantil, sob o seguinte argumento: “Não há porque não substituir os burocratas de Washington, pelos profissionais das redes de TV”. Graças a esta sua teoria, de que por estudarem as crianças a fundo, os profissionais de marketing eram os melhores especialistas para determinar o que era preferível a elas, as crianças americanas passaram a ter seu comportamento dissecado como num microscópio e o mercantilismo americano adentrou as escolas. A realidade dos Estados Unidos, como pôde ser observado através das cenas documentadas, é nos dias de hoje intrinsecamente relacionada às propagandas e às marcas. Quadras de basquetebol possuem logomarcas no chão, os banheiros possuem marcas nos espelhos, os ônibus escolares carregam slogans em suas laterais, os placares utilizados nos jogos são “patrocinados” pelas grandes marcas e, portanto, contém os seus símbolos, ou seja, há sempre uma propaganda, ainda que subliminar, onde quer que as crianças estejam. Outra jogada de marketing denunciada pelo documentário corresponde às excursões que são realizadas não a museus ou construções históricas, mas para multinacionais, com o pretexto de mostrar às crianças “como os produtos são feitos” e que escondem sua verdadeira intenção: fazer com que as crianças criem laços associativos de diversão com as marcas. Isto também foi notado pela pesquisadora Núbia de Oliveira Santos, nas creches públicas da cidade do Rio de Janeiro que visitou para a construção de sua dissertação de Mestrado em Educação pela PUC-Rio. Segundo ela, “sob o discurso do compromisso com a educação, a ação publicitária foi observada dentro da escola e sobrepujou claramente a ação educativa”23. O médico Michel Rich, especialista em pediatria do hospital infantil de Boston, explica que crescer é um processo difícil para todas as 23 SANTOS, 2005, p. 115. Conversações: Política, Teoria e Direito 43 Carolina Lopes de Oliveira crianças e uma das coisas que lhes dá estabilidade e continuidade é sua ligação com referências de sua infância. Para o especialista, utilizando-se deste conhecimento, as marcas têm criado personagens que as crianças aprendem a amar e confiar para que, desta forma, seja criado um vínculo extremamente forte entre eles. Assim, toda vez que a criança precisar se sentir calma e confortável, recorrerá ao desenho ou boneco do personagem. Núbia Santos também evidenciou este laço criado entre as crianças e os personagens onde realizou sua pesquisa: Um outro aspecto que ficou muito evidente foi o encanto das crianças com os personagens que representam a marca de algum produto ou brinquedo. Esta sedução acontece em função da possibilidade da fantasia, da dimensão lúdica que é usada como estratégia de marketing24. Estes laços são, portanto, cada vez mais estimulados, pois impulsionam uma maneira extremamente poderosa, duradoura e lucrativa de ganhar dinheiro. Por isso, e também para impedir que sejam esquecidos, os personagens têm estado cada vez mais presentes no cotidiano das crianças, acompanhandoos em suas mochilas, lancheiras, blusas, sapatos, roupa de cama, etc. Segundo o documentário, nos dias atuais os brinquedos não são inspirados em um filme ou desenho de sucesso, o movimento se dá ao contrário, ou seja, o filme ou desenho surge para vender o brinquedo, que é elaborado antes (são estes os casos de “He-Man” e “Tartarugas-Ninja”). Não seria por acaso, portanto, que o produtor cinematográfico dos filmes “Star Wars”, George Lucas, teria dito que era um fabricante de brinquedos e não de filmes. Consuming Kids também denuncia que através do que os profissionais de marketing chamam de placement, as marcas têm estado cada vez mais presentes em programas de TV, filmes25, video games e jogos de internet – também chamados de “jogos anúncio”, onde ao se registrar nos sites para jogar a pessoa tem seus dados e gostos mapeados pelos publicitários. Outro aspecto importante apontado no documentário consiste no fato de o comercial de hoje não ser mais voltado para demonstrar o quê o produto é capaz de fazer, mas para o quê a criança pode se tornar se o tiver. Desta forma, pretende24 25 SANTOS, 2005, p. 114. Um bom exemplo é o filme de 2001, “Náufrago”, com Tom Hanks. Sua história é intimamente relacionada com a marca FedEx (Federal Express) – multinacional americana encarregada de enviar cargas e correspondências. O personagem principal só se mantém vivo, inclusive, porque deseja entregar a única encomenda que sobrevive ao acidente de avião. Tal recurso publicitário já possui até mesmo um nome: chama-se storytelling. 44 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Um novo necessário? Uma análise do consumismo na sociedade capitalista contemporânea com o auxílio das lentes de Locke e Rousseau se vender valores e, ao invés do marketing ser contrabalançado com diálogos com as crianças, é vendida a ideia de que atrelado ao produto há um significado social que vai definir a criança como indivíduo (“você é o que você compra”). Até mesmo o propósito da escola é subvertido, pois ela passa a ser vista como mais um local de propaganda, um grandioso outdoor, ou ainda, nas palavras de Núbia Santos: “ao invés de atuar como mediadora, a escola atua como veículo de propaganda” 26. A ideia do consumismo é individualista, superficial e egoística. As pessoas são levadas a pensar que ter coisas boas e caras é sinônimo de felicidade e satisfação e que precisam acumular, garantir aquela coisa como sua, antes que ela acabe ou outro a pegue. Se esta influência é forte o suficiente para atingir adultos, que dirá crianças pequenas. Cada vez mais, meninas são incentivadas a crer que é preciso amadurecer mais rápido e meninos, que violência é entretenimento. Os ideais de carreira, por exemplo, que no passado se misturavam entre astronauta, carteiro, médico, enfermeiro, professor, se transformam em “ser rico”, “ter muitas coisas”. O documentário também menciona o fenômeno da indústria da mídia educativa, pensada para proporcionar o “desenvolvimento da criança”. Graças a ela, crianças cada vez mais novas são colocadas na frente de telas de computadores e televisores, assistindo vídeos para se divertirem e acalmarem, perdendo a habilidade de fazerem isso sozinhas. São treinadas a ficarem à margem de si mesmas, imersas, sem tempo para pensar. Além disso, devido aos novos brinquedos que possuem movimentos próprios, crianças aprendem a repetir o que vêem nos comerciais e não conseguem criar histórias por si mesmas. Assim, para “brincar de Harry Potter” não basta fazer um graveto de varinha, é preciso ter a “varinha oficial do bruxo”; para ser um “Pirata do Caribe”, é preciso ter a roupa do “Capitão Jack Sparrow”. Do mesmo modo, maioria dos brinquedos é comprada pronta e com as devidas instruções das histórias que se deve usar para brincar. Assim sendo, para onde foi a maior habilidade da infância: a imaginação? Para onde foi o “faz-de-conta”? Um número cada vez maior de crianças bipolares, hiperativas, com déficit de atenção, diabéticas, hipertensas, obesas. Quanto mais consomem, mais ansiosas e depressivas se tornam e a indústria capitalista promotora do consumo insaciável procura culpar os pais. Todavia, afirmam os especialistas 26 SANTOS, 2005, p. 115. Conversações: Política, Teoria e Direito 45 Carolina Lopes de Oliveira em Consuming Kids que os pais não podem ser responsabilizados por tudo aquilo que acontece com seus filhos. Afinal, não passam as 24 horas do dia com eles, pois parte deste tempo as crianças passam na escola que, por sua vez, não tem procurado se manter isenta do consumismo. Ao mesmo tempo, desejar que os pais assumissem esta briga seria injusto, na medida em que um dos lados é composto por uma indústria multibilionária que transformou o cotidiano de crianças a dias inteiramente gastos na frente de telas: telas de computador ou de televisores exibindo desenhos, programas ou jogos de video games. Com isso, a fase de maior espontaneidade, a infância, acaba sendo prejudicada. A indústria do entretenimento desvalorizou a infância e desmereceu sua importância. Se no início o grito era por liberdade, nos dias de hoje, em que a liberdade parece ser justificativa para tudo, é preciso que se pergunte: para onde foi a liberdade das crianças? V. A criança rousseauniana “Que se destine meu aluno à carreira militar, à eclesiástica ou à advocacia pouco me importa. Antes da vocação dos pais, a natureza chama-o para a vida humana. Viver é o ofício que lhe quero ensinar”. (Jean-Jacques Rousseau, 1762) Através de sua obra Emílio ou da Educação, Rousseau combate pensamentos conservadores da educação elitista da época, a pedagogia jesuíta (rígida, hierárquica e baseada na memorização) e tem como premissa a ideia de que o homem nasce bom, é a sociedade que o corrompe – em clara oposição ao pensamento de Hobbes. Na época em que o filósofo escreve, os pais deixavam seus filhos sob os cuidados de preceptores, amas, governantas ou em conventos e colégios internos, onde as crianças eram preparadas para viverem como “mini adultos”. O que Rousseau propõe é um novo sistema pedagógico, através do qual a infância seja vista como uma fase diferente da adulta, as crianças sejam reconhecidas como tais, sejam livres e consideradas individualmente, tenham contato íntimo com a natureza e aprendam de acordo com seus 46 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Um novo necessário? Uma análise do consumismo na sociedade capitalista contemporânea com o auxílio das lentes de Locke e Rousseau próprios interesses, com um método educacional progressivo, lúdico e interativo que desenvolva na criança o amor pelo conhecimento. Para isso, a obra Emílio ou da Educação, é dividida por Rousseau em cinco fases: o Livro Primeiro corresponde à fase da lactância (do nascimento até os dois anos de idade), fase que ele denomina de idade da necessidade e em que se preocupa com as questões de amamentação e banho, por exemplo; o Livro Segundo trata da infância (dois a doze anos) e é chamado de idade da natureza – este é o momento para Rousseau, de exercitar o corpo e os sentidos da criança; o Livro Terceiro, fase da adolescência (doze a quinze anos) é a chamada idade da força, na qual a criança pode começar a ter contato com a educação intelectual e técnica (Física, Geografia, Cosmologia, etc.); o Livro Quarto, época da mocidade (quinze a vinte anos) é reconhecida por ele como a idade da razão e das paixões, um “segundo nascimento”, em que o Emílio adentra os mundos moral e religioso, aprendendo conjuntamente sobre razão e sentimento através de histórias e fábulas; e o último Livro, o Quinto, da idade adulta (vinte a vinte e cinco anos), é a idade da sabedoria, tempo da educação política de Emílio e de sua inserção na ordem civil e também o tempo em que ele aprende sobre a sexualidade feminina – o aprendizado nesta fase dá-se com “viagens de formação”. No período do nascimento aos doze anos, Rousseau acreditava ser necessária a aplicação de uma “educação negativa”, ou seja, “a criança é educada na região rural, protegida pela ausência de contato com a família, a sociedade, os livros”27. Neste momento, o mestre deveria atuar muito mais como um observador (para conhecer o temperamento e o caráter de cada criança) e estimulador dos sentidos da criança, sem procurar impor ensinamentos acadêmicos – é justamente desta ideia de “não imposição” que surge a expressão “negativa”. É interessante pensar que uma teoria tão antiga, de séculos atrás, possa ser ainda tão rica e trazer tantas reflexões importantes. Jean-Jacques Rousseau pensava nas crianças como indivíduos em formação e não como mercado consumidor. Ele criou um conceito de infância que parece ter sido perdido nos tempos modernos. Assim, talvez seja necessário andar como disse Fernando Pessoa no poema O Guardador de Rebanhos: “olhando para a direita e para a esquerda, e de vez em quando olhando para trás...”, ou seja, talvez seja preciso parar e relembrar algumas de suas ideias por mais antigas que possam parecer, pois muitas vezes, para que se possa efetivamente avançar é necessário retroceder. 27 BROSSE, 1995, p. 8. Conversações: Política, Teoria e Direito 47 Carolina Lopes de Oliveira VI. Considerações finais: valores líquidos? “Neguinho não lê, neguinho não vê, não crê, pra quê Neguinho nem quer saber O que afinal define a vida de neguinho Neguinho compra o jornal, neguinho fura o sinal Nem bem nem mal, prazer (...) Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz Neguinho também só quer saber de filme em shopping (...) Neguinho que eu falo é nós” (Caetano Veloso, 2011) Segundo Boaventura de Sousa Santos, quando um paradigma28 pode ser identificado como uma crença que de tão antiga torna-se naturalizada, sua crise só se dará na ocorrência de dois fatores: quando os próprios conhecimentos produzidos por ele começam a contestar seus fundamentos e quando a civilização construída na base deste determinado paradigma começa a mostrar sinais de deterioração, de sua inviabilidade. Todavia, para que um paradigma se forme ou transforme é preciso outro fator: a imaginação. No contexto atual, em que o liberalismo econômico e político – muito influenciado pelas ideias de Locke – é cada vez mais incentivado e o mercado busca cada vez mais espaços livres de quaisquer barreiras para que possa “circular de maneira fluida”, pôde ser observado que as 28 Um paradigma é um “esquema global de algumas hipóteses de base sobre as quais cada época científica baseia as suas orientações privilegiadas de investigação” (Cf. LE MOIGNE, 1990, p. 59). 48 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Um novo necessário? Uma análise do consumismo na sociedade capitalista contemporânea com o auxílio das lentes de Locke e Rousseau crianças têm sido consideradas como mercado consumidor para aumentar a possibilidade de lucro, o que, como consequência, tem gerado uma total distorção da infância e inibido a capacidade imaginativa das crianças. Cada vez mais cedo influenciadas pela mídia, as crianças estão perdendo sua habilidade de estabelecer escolhas conscientes. Assim, quando crescem e se deparam com o “bufê de possibilidades capitalistas” sentem-se perdidas e indecisas, transformam-se em adultos que não conseguem tomar decisões e esperam que a mídia lhes diga o que está na moda, o que se deve comprar para parecer um indivíduo A ou B – o que o mercado agradece. Conforme mencionado anteriormente, é óbvio que John Locke não tinha como prognosticar que suas teorias serviriam para justificar o “individualismo possessivo” e uma política liberal como a adotada por países capitalistas como os Estados Unidos, onde o argumento do “laissez-faire, laissez-passer, le monde va de lui-même”29 foi utilizado até quase as últimas consequências e o Estado visto como um problema (como visto no governo Reagan). Locke não poderia prever que o consumismo seria exacerbado e que inclusive as crianças seriam incentivadas a comprar ou influenciar o que seus pais compram. Todavia, suas reflexões são de grande valia para tentar entender como funciona a lógica do liberalismo, quais as estruturas em que se sustenta e os argumentos que são utilizados para justificar os valores de grande parte da sociedade moderna que prioriza o consumo e se define por aquilo que possui. Se o Estado é a condensação do poder coativo da classe dominante, sempre representará esta classe. Portanto, no Estado liberal moderno os interesses capitalistas sempre predominarão, pois são eles que garantem a própria existência do Estado nesta forma. Assim, ainda que exista uma legislação trabalhista, por exemplo, ela também surgirá para garantir que os trabalhadores tenham um tempo para consumir, ou seja, ela servirá em parte para proteger os interesses da burguesia. A fim de que haja uma mudança no status quo e que seja possível, ao invés de alimentar, modificar o sistema parasitário do capital, o uso da imaginação se faz necessário. É preciso que a tão apregoada liberdade seja verdadeiramente alcançada e isto poderá ocorrer efetivamente, quando houver espontaneidade nas escolhas. Quando for possível escolher não por influências ou induções alienadas, mas com o verdadeiro uso da liberdade original, a criatividade 29 “ Deixai fazer, deixai passar, o mundo caminha por si mesmo”. Conversações: Política, Teoria e Direito 49 Carolina Lopes de Oliveira aparecerá e a transformação será uma questão de tempo. Afinal, se pudermos considerar o modo de vida do homem consumista moderno um paradigma, mostra-se evidente que seus fundamentos já estão sendo questionados e a civilização construída em seus moldes já reconhece sua inviabilidade. Assim, o presente trabalho pretendeu discutir o consumismo atual que apregoa uma constante “necessidade” pelo “novo”, buscando gerar em adultos e crianças uma incessante procura por novos bens a serem adquiridos. Da mesma forma, o título também faz alusão à outra ideia debatida, a de que, diante deste consumismo que objetiva invadir até mesmo a infância, deve haver uma mudança de paradigma, ou seja, um “novo paradigma se faz necessário”. Nesse sentido, entende-se que recuperar as ideias sobre liberdade, espontaneidade e natureza da obra Emilio, revelase uma alternativa para trazer de volta a consideração da criança em sua totalidade e resgatar o significado perdido da infância. Afirma Núbia Santos que “mais grave e mais perigosa do que a influência da cultura do consumo sobre o cotidiano das crianças é a possibilidade de naturalizar esta influência”30. Deste modo, que a educação possa ser repensada (e o texto de Rousseau tem muito a acrescentar neste sentido) e o sistema educacional reestruturado, para que as escolas reconheçam seu papel de mediadoras “entre a criança e a propaganda, a criança e o produto, a criança e o consumo, de forma crítica”31 e possam formar indivíduos e não consumidores. E que os pais e responsáveis possam se unir nesta “batalha” incentivando a criança a usar sua criatividade e imaginação e a aprender não só com os livros, mas também com os vínculos sociais, com as experiências no mundo físico, ou seja, com a vida. Afinal, somente com a ajuda de “crianças verdadeiramente infantis”, no auge de sua capacidade criativa, um futuro de necessidades reais, de laços e valores mais sólidos pode ser imaginado e assim, talvez, tornar-se possível para todos. Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. 30 31 SANTOS, op. cit., p. 116. Idem. 50 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Um novo necessário? Uma análise do consumismo na sociedade capitalista contemporânea com o auxílio das lentes de Locke e Rousseau ________. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. BROSSE, Emilie. 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