genocídio em paracatu
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genocídio em paracatu
UMA SOLUÇÃO PARA O GENOCÍDIO DE PARACATU Paulo Maurício Serrano Neves, Procurador de Justiça Criminal do Estado de Goiás, em 23 de janeiro de 2011 “É para não recuar. A única arma que eu tenho hoje é para não recuar.” (...) “Nós somos sete guardas, oito guardas contra trinta invasores. Se fizer isso, vai acontecer o que aconteceu, vai ter morte!” Luis Alberto Alves, Gerente Geral da RPM-Kinross. “São os Canela, vamos matar agora!” Palavras dos assassinos, momentos antes da chacina dos irmãos Canela, membros da Comunidade Quilombola, segundo depoimento de um dos sobreviventes, Evandro Oliveira Lopes. “O impacto potencial e real é de intensidade alta, abrangência regional e significância crítica, com incidência direta e tendência a progredir durante o processo de lavra”. EIA-RIMA do projeto de expansão da mineração de ouro da mineradora Kinross em Paracatu, página 500. “Não são despejadas um milhão de toneladas de arsênio na barragem de rejeitos, mas apenas uma ínfima quantidade residual de cerca de 1% do que é movimentado na rocha (i.e., cerca de 463.640 toneladas)”. Declaração da Kinross na Ação Civil Pública movida pela Fundação Acangaú. Basta 1 grama de arsênio para matar sete seres humanos adultos e apenas 1% da ‘ínfima quantidade residual’ declarada pela Kinross seria suficiente para matar mais de 3 bilhões de pessoas, ou cerca de metade da população do planeta. “Medições de arsênio na poeira colhida em residências e estabelecimentos comerciais em 20 pontos diferentes de todo o assentamento urbano da cidade de Paracatu realizadas em duplicata pela UFMG e pela Universidade Técnica de Freiberg, na Alemanha indicaram concentrações de arsênio variando entre 32 mg/kg e 2980 mg/kg. Essas concentrações são tão danosas à saúde pública, a ponto de qualificar o efeito da mineração de ouro a céu aberto em Paracatu como um verdadeiro genocídio.” Sergio U. Dani, em julho de 2010. "No período de 17 de julho a 8 de agosto de 1945, reunidos na Inglaterra, na Conferência de Potsdam, os aliados firmaram a ‘Carta de Londres’, dando origem ao Tribunal Militar Internacional – o primeiro tribunal internacional da história –, conhecido como ‘Tribunal de Nuremberg’ com o objetivo de punir os criminosos de guerra das Potências do Eixo.". "Henry King, um dos promotores de Nuremberg afirmou que: ‘Nuremberg modernizou as leis da guerra e criou um denominador sob o qual todos os cidadãos do mundo deveriam viver e serem julgados. Ao fazê-lo, Nuremberg lançou o movimento internacional de direitos humanos’." [1] Os réus de Nuremberg causaram temor, angústia, sofrimento e dano à saúde e à vida das pessoas envolvidas, e o fizeram em nome de enriquecer a ciência e enchendo os cofres científicos de precioso conhecimento para o bem da humanidade. Ocupado nos últimos anos, juntamente com parceiros, na análise do cenário da mineração de ouro lindeira à cidade de Paracatu-MG, Brasil, onde a população exposta à difusão ambiental sistêmica de arsênio oriundo da pulverização da rocha arsenopirita em milhões de toneladas, e sabedor dos riscos ao longo prazo desta atividade que enriquece o erário e enche os cofres de preciosos impostos para o bem da economia, forçosamente o termo "genocídio" apareceu e ficou entre aspas. E entre aspas levou à indagação se poderia o caso de Paracatu ser um genocídio. Adianto a conclusão para conforto dos responsáveis: não é genocídio, ou até agora não foi possível dizer que é, mas com certeza é aquela "coisa parecida" a que nos referimos quando uma coisa é tão parecida com outra coisa que parece ser a própria coisa. Assim, dispenso interpretar para que as pessoas leiam a transcrição seguinte na qual os textos entre parênteses substituem o texto anterior entre aspas. CÓDIGO DE NUREMBERG Tribunal Internacional de Nuremberg - 1947 1. O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas "ao experimento" (às consequências de uma atividade) devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo, para tomarem uma decisão. Esse último aspecto exige que sejam explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito "do experimento" (da atividade); os métodos segundo os quais será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à sua "participação no experimento" (exposição às consequências da atividade). O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o "pesquisador" (empreendedor) que inicia ou dirige "um experimento" (atividade) ou se compromete nele. São deveres e responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem impunemente. 2. "O experimento" (A atividade) deve ser tal que produza resultados vantajosos para a sociedade, que não possam ser buscados por outros métodos de estudo, mas não podem ser feitos de maneira casuística ou desnecessariamente. 3. "O experimento" (A atividade) deve ser baseado em resultados de experimentação em animais e no conhecimento da evolução da doença ou outros problemas em estudo; dessa maneira, os resultados já conhecidos justificam a condição do experimento. 4. "O experimento" (A atividade) deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento e danos desnecessários, quer físicos, quer materiais. 5. Não deve ser conduzido qualquer "experimento" (atividade) quando existirem razões para acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez, quando o próprio "médico pesquisador" (autorizador, licenciador, empreendedor) se submeter ao "experimento" (atividade). 6. O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância do problema que o "pesquisador" (autorizador, licenciador, empreendedor) se propõe a resolver. 7. Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o "participante" (qualquer pessoa) do "experimento" (atividade) de qualquer possibilidade de dano, invalidez ou morte, mesmo que remota. 8. "O experimento" (A atividade) deve ser conduzido apenas por pessoas cientificamente qualificadas. 9. O participante do "experimento" (atividade) deve ter a liberdade de se retirar no decorrer do "experimento" (atividade). 10. O "pesquisador" (autorizador, licenciador, empreendedor) deve estar preparado para suspender os "procedimentos experimentais" (atividades) em qualquer estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que a continuação do "experimento" (atividade) provavelmente causará dano, invalidez ou morte para "os participantes" (qualquer pessoa). Conquanto existam várias definições do termo “genocídio” [2], a maioria dos estudiosos considera que a “intenção de destruir” é uma condição para rotular um ato de genocídio, e existe um crescente consenso sobre a inclusão do critério da destruição física. [3] Em tese o caso de Paracatu poderia ser tipificado como genocídio na medida em que estiver caracterizada a intenção dos responsáveis de eliminar a população para obter território para a mineração criando um ambiente hostil à vida ao exercer atividades que extrapolam a licença concedida pelos gestores públicos que autorizaram a expansão da mina de ouro em Paracatu. A intenção de destruir dos responsáveis estaria qualificada por alguns elementos: . A chacina dos “irmãos Canela”, perpetrada sob orientação e mando dos responsáveis, “para servir de exemplo” contra o que os responsáveis alcunharam de “quadrilha” e “criminosos”. Os “criminosos” eram membros da comunidade Quilombola residente no Vale do Machadinho, ambicionado pelos responsáveis como local de depósito dos rejeitos que, conforme veio a ser revelado mais tarde, viabilizaria a expansão de sua atividade de mineração [4]; . A expulsão dos Quilombolas do seu território no Vale do Machadinho, apesar da proteção desse território pela Constituição Federal brasileira; a criação de um ambiente hostil à vida nesse território, agora em fase de inundação após construção da segunda grande barragem de rejeitos tóxicos da mineração de ouro contendo arsênio; . A liberação para o ambiente de cargas constantes de arsênio pelos responsáveis, através da pulverização da rocha da mina contendo arsenopirita, e a conseqüente poluição de toda a cidade, atmosfera, solos e rios da região, resultando no envenenamento crônico de toda a população de Paracatu, tornando o ambiente inóspito e insalubre, e assim abrindo caminho para a exploração aurífera em todo o território da cidade. O DNPM-Departamento Nacional de Produção Mineral concedeu o direito de lavra de ouro para os responsáveis em todo o território da cidade de Paracatu, mas não concedeu aos responsáveis o direito de envenenar ou expulsar a população para abrir caminho para a mineração de ouro como de fato já vêm fazendo, esfacelando a comunidade Quilombola do Vale do Machadinho e seu território protegido constitucionalmente, e expulsando milhares de moradores dos bairros e comunidades Amoreiras, Morro do Ouro, Alto da Colina, São Domingos, Chapadinha, Santa Rita e Lagoa de Santo Antônio, intoxicando a população de 100 mil habitantes da cidade de Paracatu. . A caracterização das armas e da intenção de seu uso pelos responsáveis. No caso da chacina dos “irmãos Canela”, houve contratação de indivíduos munidos de armas de fogo com a intenção de criar a condição de confronto com as vítimas e êxito letal: “ – A orientação é não recuar!”, “– Vai haver mortes!”, disse o gerente-geral da mineradora RPM/Kinross, responsável pela contratação do serviço de vigilância armada que executou os irmãos Canela, conforme registrado no vídeo-documentário “Ouro de Sangue”. [4] E a orientação de extermínio dos irmãos Canela aparece no mesmo documentário, durante depoimento de um dos sobreviventes da chacina, que relata os dizeres dos executores da chacina, durante a tocaia e perseguição dirigida: “– São os Canela, vamos matá-los agora!”. No caso da eliminação de toda a população de Paracatu do cenário da mineração, a arma utilizada é o arsênio, um dos venenos ambientais mais potentes conhecidos. O arsênio e seus compostos são armas químicas clássicas, deliberadamente usadas em assassinatos, homicídios e atos terroristas em diversos locais, circunstâncias e épocas da história humana. Na Wikipédia está escrito: “O arsênio tornou-se a arma de assassinato favorita na Idade Média e Renascimento, particularmente entre as classes dominantes na Itália, especialmente os Borgias. Como os sintomas do envenenamento agudo por arsênio são semelhantes aos da cólera, que era comum naquele tempo, quase ninguém detectava o envenenamento por arsênio. Por volta do século 19, o arsênio adquiriu a alcunha de ‘pó da herança’, talvez porque sabia-se ou suspeitava-se que os herdeiros impacientes usavam o arsênio para assegurar ou acelerar suas heranças”. [6] Semelhante ao que ocorria na idade média, em que os sinais e sintomas da intoxicação aguda por arsênio permaneciam dissimulados e confundidos com os sintomas do cólera, os sinais e sintomas da intoxicação crônica por arsênio modernamente permanecem dissimulados e confundidos, posto que cursam com um longo período de latência que dá aos responsáveis oportunidade e tempo suficientes para obter seus lucros antes da revelação definitiva do seu crime – seja de natureza culposa ou dolosa – de extermínio em massa. A poluição não autorizada dos recursos hídricos de abastecimento público, atmosférica e dos solos que resultam na intoxicação de toda a população de Paracatu sustentaria a tese de genocídio, na medida em que as licenças concedidas aos responsáveis para exploração de ouro em todo o território da cidade de Paracatu não são licenças para poluir ou matar, como de fato já vêm fazendo. De vez que a Constituição Federal do Brasil não dá licença para atos de extermínio em massa, e da mesma forma, as licenças para explorar não são licenças para poluir, portanto os responsáveis extrapolam as licenças concedidas. Poderão argumentar que matar ou poluir não era a intenção, e sim um resultado inesperado da atividade. Então a alternativa para a tese de genocídio é a tese do “experimento”, como definido no Código de Nuremberg, tipificado nesse caso pela atividade de mineração a céu aberto liberando substância tóxica potente em forma bioacessível a milhares de “cobaias humanas” residentes na área urbana confrontante com a mina de ouro. Trata-se, na menos grave das interpretações, de crime por culpa consciente, forma própria dos peritos que, à moda do atirador de facas no circo – habilitado e experiente – que crê ter a “exposição ao perigo” sob absoluto controle porque seu alvo é a tábua e o ser humano presente no cenário alvejado o “risco de dano” não desejado. À mesma moda do circo, existe um concurso de pessoas, pois ambas as atividades são autorizadas e licenciadas. Porém, a lei, a autorização e a licença não isentam de responsabilidade quanto ao resultado seja este um sucesso ou um fracasso. A redução da hipótese menos grave – acima descrita – para a responsabilidade civil relativa ao “risco inerente” à atividade inclui admitir que os atos de governo consideram que as soluções em favor das pessoas (emoção circence, crescimento da economia, moradia, transporte etc.) podem ser tão mais baratas e de mais rápida implementação quando o risco inerente é ampliado para o risco criado por uma “autorização”, qual seja: se a atividade é legal, então os danos à saúde e à vida também são legais, caso em que os direitos humanos inerentes estariam sendo derrogados. A hipótese poderia evoluir para a culpa inconsciente do não-perito, mas os envolvidos no empreendimento se esmeram em declarar a competência para os cuidados objetivos, sem, contudo, demonstrar que os cuidados estejam sendo eficazes. Tentar fugir das hipóteses penais de culpa consciente ou inconsciente minimamente conduz ao dolo eventual caracterizado pela assunção do risco do resultado, e considerar o resultado como hipótese finalística do contexto conduz ao dolo direto. Para considerar a aplicação do Código de Nuremberg basta caracterizar a existência de uma “pressão” sobre os espaços físicos, culturais ou morais da população implantando uma “ideologia do desenvolvimento” no sentido de exercer a posse tranquila das áreas mineráveis ou operacionais. A atmosfera das câmaras de gás de Auschwitz-Birkenau era formada com um pesticida (Zyclon-B) e a atmosfera de Paracatu contém um pesticida (arsênio). Qualquer coincidência é mera semelhança. Referências e notas: [1] Barros, Miguel Daladier. Os legados jurídicos, éticos e humanísticos do Tribunal de Nuremberg: 60 anos depois. Disponível em http://www.lfg.com.br 18 setembro. 2008. http://www.lfg.com.br/public_html/article.php? story=20080916132535431&mode=print , acessado 23.01.11, 10:59 h. [2] Em 9 de dezembro de 1948, à sombra do Holocausto, e em grande parte devido aos esforços de Lemkin, as Nações Unidas aprovaram a Convenção sobre Prevenção e Punição do Crime de Genocídio. Essa convenção estabelece "genocídio” como um crime internacional, cujas nações signatárias “se comprometem a prevenir e punir”. A convenção diz: “Genocídio significa qualquer um dos seguintes atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: (a) matando membros do grupo; (b) causando sério dano corporal ou mental aos membros do grupo; (c) deliberadamente inflingindo sobre o grupo condições de vida calculadas para causar sua destruição física no todo ou em parte; (e) impondo medidas com a intenção de prevenir nascimentos dentro do grupo; (f) transferindo crianças do grupo à força para outro grupo.” A característica que separa o crime de genocídio dos outros crimes comuns é a intenção especial, ou dolus specialis, de destruir o grupo em parte ou no todo. Como a ICTY afirmou em 1999 em Jelisic, "Genocídio é caracterizado por dois ingredientes legais de acordo com os termos do Artigo 4 do Estatuto: (i) o elemento material da ofensa, constituído por um ou vários atos enumerados no parágrafo 2 do Artigo 4; (ii) a mens rea da ofensa, consistindo na intenção especial de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal." Em tese, então, o assassinato de um único indivíduo poderia constituir uma tentativa de genocídio se a intenção do agressor era matar aquela pessoa como parte de um plano maior para destruir o grupo. O Aegis Trust colheu as seguintes definições de genocídio: "uma forma de extermínio em massa unilateral no qual um estado ou outra autoridade tem a intenção de destruir um grupo, conforme o grupo ou sua pertinência ao grupo sejam definidas pelo perpetrador." – Frank Chalk and Kurt Jonassohn, The History and Sociology of Genocide, 1990. "A matança em massa de números substanciais de seres humanos ... em condições de indefensibilidade e desamparo absolutos das vítimas." – Israel Charny in George Andreopoulos (ed), Genocide: Conceptual and Historical Dimensions, 1994 . “Ação sustentada e propositada de um perpretador para destruir fisicamente uma coletividade diretamente ou indiretamente, através da interdição da reprodução biológica e social dos membros do grupo, mantida independentemente da capitulação ou falta de perigo oferecida pela vítima” - Helen Fein, Genocide: A Sociological Perspective, 1993/1990. “A promoção da execução de políticas por um estado ou seus agentes que resulta na morte de uma porção substancial de um grupo ... (quando) os grupos vitimados são definidos primariamente em termos de suas características comunitárias, i.e., etnicidade, religião ou nacionalidade” - Barbara Harff and Ted Gurr,‘Toward empirical theory of genocides and politicides,' International Studies Quarterly, 37:3, 1988. “Genocídio não é guerra ou conflito extremo; é exclusão extrema. A exclusão pode começar com alcunhas, mas pode terminar com um grupo de pessoas sendo excluído de uma sociedade até o ponto em que ela é destruída” – James M. Smith, falando para a Assembléia de Londres, em Janeiro de 2006. [3] Jones, Adam. Genocide: A Comprehensive Introduction. Routledge/Taylor & Francis Publishers, 2006. ISBN 0-145-35385-8. Chapter 1: The Origins of Genocide, pp.20–21. [4] “Ouro de Sangue” (“Blood Stained Gold”) video-documentário de 2008, de Sandro Neiva e Alessandro Silveira, acessível em http://www.bloodstainedgold.blogspot.com/ [5] Vide processo movido contra as vítimas transformadas em “criminosos” na Comarca de Paracatu, e o filme “Ouro de Sangue”, que documentou as circunstâncias da chacina. A absolvição dos responsáveis foi feita por um juiz local que recebeu doações e contribuições dos responsáveis pela chacina. [6] Wikipedia, disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Arsenicosis. RÉPLICA À CONTESTAÇÃO DA KINROSS RÉ, APRESENTADA PELA FUNDAÇÃO AUTORA Dr. Sergio Dani, médico formado pela UFMG-Universidade Federal de Minas Gerais, Doutor em Medicina pela Medizinische Hochschule Hannover-Alemanha, Doutor em Patologia pela UFMG, livre docente em Genética pela Universidade de São Paulo, atualmente trabalhando como médico e cientista do Hospital das Clínicas da Universidade de Heidelberg, Alemanha ANEXO: DVD DOCUMENTÁRIO – OURO DE SANGUE MAIS INFORMAÇÕES EM alertaparacatu.blogspot.com sosarsenic.blogspot.com “O impacto potencial e real é de intensidade alta, abrangência regional e significância crítica, com incidência direta e tendência a progredir durante o processo de lavra”. (EIA-RIMA do projeto de expansão da mineração de ouro da mineradora RPM/Kinross em Paracatu, página 500). RÉPLICA À CONTESTAÇÃO DA KINROSS RÉ, APRESENTADA PELA FUNDAÇÃO AUTORA A advocacia da ré preparou um documento confirmador da extrema gravidade do impacto socioambiental das suas atividades, bem como revelador de seu desconhecimento de aspectos fundamentais do ordenamento jurídico e constitucional brasileiro, e da sua falta (ou ocultação ?) de conhecimento científico e técnico crítico para o entendimento do objeto desta Ação Civil Pública. A presente réplica será feita em duas partes, a primeira tratando do OBJETO DA AÇÃO. A matéria técnica discutida pela ré, QUE NÃO OBJETO DA AÇÃO, será rebatida em título próprio com argumentos científicos, intitulando-se a peça INDÍCIOS DA PRESENÇA DE ELEMENTOS PERIGOSOS E CIRCUNSTÂNCIAS INDICADORAS DE INTERAÇÕES CAPAZES DE AUMENTAR O POTENCIAL DANOSO DA EXPOSIÇÃO CRÔNICA AO ARSÊNIO EM LONGO PRAZO. Antes de iniciar, gostaríamos de apresentar os princípios inspiradores desta Ação Civil Pública, para que a ré compreenda as nossas boas intenções: “Se você viola as leis da Natureza, você se torna a um só tempo seu próprio advogado de acusação, juiz, juri e carrasco”. — Luther Burbank “Eu sou eu mesmo e o que me rodeia, e se eu não salvar o que me rodeia, eu não salvarei a mim mesmo.” — Jose Ortega y Gasset “Que época extraordinária para se estar vivo! Nós somos o primeiro povo no nosso planeta a ter uma escolha real: nós podemos continuar matando uns aos outros, varrendo outras espécies, destruindo nosso ninho. Entretanto em cada continente uma revolução na dignidade humana está emergindo. Ela está reconciliando a comunidade e nossas ligações com a terra. Então nós temos uma escolha. Nós podemos escolher a morte; ou nós podemos escolher a vida.” — Frances Moore Lappe “Nós nos encontramos destituídos de ética no exato momento em que, pela primeira vez, nós nos deparamos com o ultimato, o encerramento irreversível do funcionamento da terra nos seus principais sistemas de vida. Nossas tradições éticas sabem como lidar com o suicídio, o homicídio e mesmo o genocídio, mas essas tradições colabam inteiramente quando confrontadas com o biocídio, a matança dos sistemas vivos da terra, e o geocídio, a devastação da própria terra.” — Thomas Berry “Isso nós sabemos: a terra não pertence ao homem: o homem pertence à terra... Todas as coisas estão conectadas como o sangue que une uma família... Tudo o que acontece com a terra, acontece com os filhos da terra. O homem não tece a teia da vida: ele é meramente um fio dela. Tudo o que ele faz à teia, faz a si próprio”. — Chefe Seattle em uma carta ao Presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce, em 1855, época da corrida do ouro no oeste americano. "Os governos devem banir a extração, processamento e uso de materiais que causam doença séria". Editorial da revista "Nature" de 16 de dezembro de 2010. (A "Nature" é a revista científica mais antiga e de maior prestígio do mundo). 1.0 – PRIMEIRA PARTE: DAS PRELIMINARES, DE FORMA OBJETIVA, DENTRO DO OBJETO DA AÇÃO E DO PEDIDO 1.1 – IRREGULAR FUNCIONAMENTO DA FUNDAÇÃO AUTORA A regularidade de funcionamento da Fundação autora é matéria administrativa que não afeta a legitimidade para a causa e para o processo. Pudesse tal matéria afetar e a Fundação estaria impedida de postular até mesmo lesão a direito próprio – caso estivesse irregular – constituindo tal situação uma forma de "banimento judicial". Apenas a extinção da pessoa jurídica ou a impossibilidade de fazer-se representar como pessoa judicial afetariam a legitimidade "ad processum" visto que, em se tratando de AÇÃO CIVIL PÚBLICA para a qual o MINISTÉRIO PÚBLICO é legitimado – e cuja intervenção foi requerida "ab initio" – o objeto da ação de natureza ambiental (ordem pública primária) impediria a extinção. Ademais, se os causídicos da ré KINROSS houvessem lido a Constituição da República do Brasil saberiam que a Carta autoriza, no art. 213, que entidades sem fins lucrativos gerem excedentes financeiros que os economistas da ré deveriam saber que não se confundem com lucros, dados que os primeiros se reinvestem na internalidade econômica e os segundos são distribuídos aos investidores. 1.2 – DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL Reclama a ré a presença do DNPM na lide por entender que a matéria é minerária, deixando passar que o objeto da ação é a PREVENÇÃO E A PRECAUÇÃO em relação a efeitos locais que impactam sujeitos passivos e objetos materiais locais. No entanto, tal alegação que desloca a competência é de menor importância, visto que a prestação jurisdicional alcançará seu objetivo venha da competência estadual ou federal, mormente que Paracatu já tem Vara Federal instalada. A formação de um litisconsórcio passivo, no entanto, exigiria serem chamados os órgãos ambientais licenciadores, embora não esteja sendo questionado o licenciamento. A ré Kinross, ao trazer para o debate a regularidade do licenciamento criou a esdrúxula figura da PREVENÇÃO E PRECAUÇÃO RETROATIVAS, ou seja, quer prevenir e precaver hoje o que já aconteceu anteontem. A matéria técnica contida nas licenças tão somente serve de memória técnica facilitadora – para a própria ré, diga-se de passagem – iniciar as providências acauteladoras para o futuro, evitando mesmo a repetição de ações e diminuindo custos, mas a ré preferiu dar um tiro no pé. 1.3 – DA AUSÊNCIA DE INTESSE DE AGIR Faltou à ré – e seja permitido retrucar na mesma linguagem que usou contra a autora – a cultura jurídica que, se tivesse, saberia ser a ação de prevenção e precaução uma espécie cautelar que se impõe pelo "fumus bonis iuris" e pelo "periculum in mora", não sendo necessário provar nenhum dano, mas apenas a probabilidade de dano, o que existe quando os próprios relatórios técnicos da ré assinalam a presença do VENENO MORTAL denominado ARSÊNIO e não nega – nem poderia negar – a evidência de sua dispersão no meio ambiente. Ademais, o interesse de agir é PÚBLICO e a autora é apenas substituta processual do INTERESSE DIFUSO pertencente à coletividade titular "ad causam". Deveras a ré não quer litigar com a autora, podendo preferir litigar contra o MINISTÉRIO PÚBLICO cuja intimação foi requerida "ab initio" e até estas folhas não concretizada. 1.4 – DA IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO Renove-se que a ação é de PREVENÇÃO E PRECAUÇÃO e o objeto do pedido são providências de PREVENIR E PRECAVER, de sorte que o impossível é a extinção, visto que o objeto só se resolve diante dos prognósticos que as circunstâncias de fato permitirem fazer num cenário que se modifica a cada tonelada de rocha extraída. A ré confundiu prevenção e precaução com remediação. A remediação não é objeto desta ação – mas será de ação futura – e se refere ao passado, enquanto o objeto desta ação é o futuro para o qual a ré pretende – mesmo diante de seus próprios anúncios de mais de trinta anos de impactação ambiental – que nada acontecerá de novo, ou nada mudará, ou tudo ficará "congelado". 1.5 – LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Assim como a autora não se opõe ao deslocamento para a competência federal, não se opõe à formação de litisconsórcio envolvendo todas as partes regulatórias, licenciadoras e fiscalizadoras mas, neste caso, DEVE O MINISTÉRIO PÚBLICO MANIFESTAR-SE sobre a formação. 1.6 – DO MÉRITO O mérito desta ação, repita-se "ad nauseam" para que a ré compreenda, é PREVENÇÃO E PRECAUÇÃO, de sorte que as alegações fáticas apenas caracterizam o perigo e a mora. A contestação de que o arsênio representa apenas 1% é o segundo tiro no pé que a ré se dá – por falta de matemática – pois tal "quantidade mínima" (um em cem) significaria que cada 100 kg de rocha conteriam 1 kg de arsênio, e isto não é verdade. A ré parece não saber que o percentual é de 1 kg de arsênio para cada 1000 kg de rocha, e como serão depositados 1 bilhão de toneladas de rejeitos na nova barragem a matemática primária das quatro operações diz que existirão 1 milhão de toneladas de arsênio, mas a ré quer que existam 100 milhões. A matemática impede a construção de falácias. Ademais, não está em discussão somente a quantidade de arsênio, mas o impacto que QUALQUER QUANTIDADE DE ARSÊNIO possa causar no meio ambiente e na população do entorno de influência ao longo de mais 30 ANOS. Como não existem estudos que apontem para as HIPÓTESES DE DANO EM LONGUÍSSIMO TEMPO DE EXPOSIÇÃO CONTÍNUA AO ARSÊNIO – seja em que quantidade for – é que o objeto PREVENÇÃO E PRECAUÇÃO ganha solidez. A prevenção e a precaução tomadas a partir da memória técnico/fática indicarão, a cada avaliação na evolução do cenário ao longo do tempo, quais as providências a serem tomadas para evitar, minimizar, ou remediar o impacto da exposição crônica ao arsênio. 1.7 – O PODER JUDICIÁRIO NÃO SE IMISCUIR NAS ATIVIDADES DO PODER EXECUTIVO Estaria a ré querendo dizer que o Poder Judiciário não pode emitir decisão cautelar ou definitiva contra a omissão ou desvio do Poder Executivo ? Deve ter sido um ato falho. 1.8 – DA VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO E PRECAUÇÃO Mais uma vez a ré se confunde, pois o que é feito diante de dano comprovado é remediação ou reparação. Prevenção e precaução são feitas a partir da HIPÓTESE CIENTÍFICA DA PROBABILIDADE DE DANO quando no cenário a ser estudado estão presentes elementos que a CIÊNCIA reconhece como perigosos, circunstâncias indicadoras (chuva, vento, etc.) que prenunciem a movimentação de tais elementos, e interações entre elementos e circunstâncias que aumentam o potencial de perigo. A ré sabe e diz (item 124, fls. 30) exatamente o que é o princípio, apenas nega que possam vir a existir "eventuais danos ainda não descobertos pela ciência". O objeto desta ação é exatamente DESCOBRIR OS EVENTUAIS DANOS AINDA NÃO DESCOBERTOS PELA CIÊNCIA. 1.9 - FINALMENTE Como prova de suas alegações a ré Kinross oferece (item 135, pág 333): 1) 2.000 (dois mil) empregos gerados; 2) impostos pagos. Deveras vantajoso (!) pois os bandeirantes que começaram a levar o ouro de Paracatu para a Europa não geravam empregos nem pagavam impostos. Assim, tratadas as preliminares de forma objetiva, dentro do objeto da ação e do pedido, requer seja REITERADA A INTIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO para a intervenção necessária antes de qualquer ato de prosseguimento. II – SEGUNDA PARTE: DOS INDÍCIOS E PROVAS DA PRESENÇA DE ELEMENTOS PERIGOSOS E CIRCUNSTÂNCIAS INDICADORAS DE INTERAÇÕES CAPAZES DE AUMENTAR O POTENCIAL DANOSO DA EXPOSIÇÃO CRÔNICA AO ARSÊNIO EM LONGO PRAZO. Entre as substâncias tóxicas liberadas para o ambiente pela ré, encontramse o cianeto de sódio, o ácido sulfúrico e o arsênio. O cianeto é introduzido pela ré no ambiente como reagente utilizado na recuperação do ouro, enquanto o ácido sulfúrico e o arsênio são subprodutos do processo de mineração na rocha dura da mina contendo arsenopirita, um minério sulfetado de fórmula química FeAsS (ferro, arsênio e enxofre). O processo de mineração em rocha dura cria todas as condições para a liberação, hidratação, oxidação, mobilização e difusão de substâncias extremamente danosas ao meio ambiente e à saúde. Pela primeira vez na história do nosso planeta, as emissões de arsênio causadas por certas atividades humanas excedem as emissões por causas naturais, como o vulcanismo, que no passado ocasionaram extinções em massa no planeta.1 A atividade humana que mais emite arsênio é a mineração em rocha dura, principalmente a mineração de ouro em rocha arsenopirita, como ocorre em Paracatu.2 2.1. QUANTIDADE TOTAL DE ARSÊNIO LIBERADA PELA RÉ A PARTIR DO DESMONTE DA ROCHA DURA CONTENDO ARSENOPIRITA EM PARACATU A ré afirma na folha 317 que o arsênio “está presente em 1,5% do minério de ouro, em média”. Um e meio por cento significa 1,5 kg de arsênio para cada 100 kg de minério, equivalente a 15 partes de arsênio por mil partes de minério, ou 15 kg por tonelada. Essa concentração é quinze vezes maior que a anunciada pela própria ré em seus relatórios técnicos3,4, demonstrando inconsistência e contradição. Considerando a quantidade total de minério de ouro com arsênio a ser processado pela ré a partir do chamado “projeto de expansão III” iniciado 1 Dani SU. Gold, coal and oil. Medical Hypotheses. 2010 Mar;74(3):534-41. Epub 2009 Oct 28. Dani SU. 2010. Gold mining is by far the largest single source of anthropogenic arsenic. http://sosarsenic.blogspot.com/2010/08/gold-mining-largest-source-of_24.html 3 Henderson RD. 2006. Paracatu Mine Technical Report. Kinross Gold Corporation, July 31, 2006. Disponível na internet em: http://www.kinross.com/operations/pdf/Technical-Report-Paracatu.pdf 4 Relatório da ré reproduzido na folha 1344 indica concentração de arsênio de 1000-1500 ppm. 2 em 2007 – cerca de um bilhão de toneladas – chega-se à quantidade total de arsênio, multiplicando-se 1,5% por um bilhão: 15 milhões de toneladas (em vez de 1 milhão de toneladas, conforme é do conhecimento geral). A ré informa que “apenas uma ínfima quantidade residual de cerca de 1%” do arsênio liberado da rocha é lançado na lagoa de rejeitos, sendo o restante depositado em tanques específicos (fls. 318). Essa quantidade “ínfima” seria então equivalente a 150 mil toneladas (1% x 15 milhões de toneladas = 150 mil toneladas), embora a ré informe, na folha 318, que trata-se, na verdade, de 463.640 toneladas de arsênio 5, portanto uma quantidade 3x maior. A ré informa, na nota de rodapé da folha 318, que desse valor total, “apenas 1,8 toneladas estão diluídas na água; o restante permanece estável nos rejeitos, da mesma forma como estavam na mina”. Essa quantidade “ínfima” de arsênio dissolvido na água já seria suficiente para matar, em questão de horas ou dias, 10 milhões de pessoas, e para intoxicar, cronicamente, um número muito maior de pessoas em questão de anos ou décadas de exposição6. Apesar de assustadores, esses números representam um valor subestimado. Um estudo publicado pela ré, em colaboração com o CETEM – Centro de Tecnologia Mineral informa que apenas 30% do arsênio é recuperado pelo processo de hidrometalurgia utilizado pela ré 7. Esse estudo indica que o processo de hidrometalurgia utilizado pela mineradora em Paracatu não é capaz de recuperar todo o arsênio tóxico que ela libera do minério arsenopirita. O ouro na mina a céu aberto de Paracatu ocorre juntamente com a arsenopirita, um mineral sulfetado de arsênio de fórmula química FeAsS. O concentrado gravitado de ouro possui uma composição média de 58,3 g de ouro por tonelada, 15,2% de ferro (Fe), 21,9% de enxofre (S) e 11% de arsênio (As), sempre conforme o estudo publicado pela ré em conjunto com o CETEM. 5 A ré dá a entender que esta seria a quantidade a ser depositada na nova lagoa de rejeitos (barragem do Córrego do Eustáquio), não informando quanto de arsênio já está depositado na lagoa de rejeitos atual (barragem do Córrego Santo Antônio). 6 Para matar um ser humano adulto em questão de horas ou dias, bastam cerca de 140 a 180 miligramas de arsênio inorgânico. Quantidades muito menores – da ordem de milionésimos do grama – se ingeridas ou aspiradas ao longo de meses ou anos, podem causar uma série de doenças incluindo câncer, doenças vasculares, diabetes, doenças neurológicas, imunodeficiência, etc. 7 Monte MBM, Lins FF, Dutra AJB, Albuquerque CRF, Tondo LA. The influence of the oxidation state of pyrite and arsenopyrite on the flotation of an auriferous sulphide ore. CT2002-195-00 Comunicação técnica elaborada para o periódico Minerals Engineering. CETEM – Centro de Tecnologia Mineral, MCT – Ministério da Ciência e Tecnologia, Coordenação de Inovação Técnológica – CTEC, Rio de Janeiro, Dezembro/2002. O Sr. Luis Albano Tondo, funcionário da RPM/Kinross há muitos anos, é coautor desse artigo. Enquanto a recuperação média de ouro no circuito da hidrometalurgia varia de 40% a 80%, a recuperação máxima do arsênio é de apenas 30%, informa o estudo já citado. Isso quer dizer que 70% ou mais do arsênio – equivalente a 105 milhões de toneladas – não são recuperados, segundo o estudo. A baixa taxa de flotabilidade da arsenopirita pode ser atribuída à formação de espécies de óxidos de ferro sobre a superfície do sulfeto ou arsenopirita. A reação do oxigênio com a superfície da arsenopirita é rápida e muito facilitada, e produz espécies altamente tóxicas de óxidos de arsênio, certamente as espécies que a ré chama de “arsênio perigoso” (fls. 318). O uso de nitrogênio no lugar do oxigênio na função de gás para flotação pode aumentar a recuperação de arsênio, porém a própria ré reconhece e afirma e sabe que a recuperação do arsênio não é completa. Isso significa que o arsênio originalmente presente na arsenopirita, incluindo compostos mais tóxicos que a própria arsenopirita, é deliberadamente descartado junto com os rejeitos, tanto nos tanques específicos quanto na lagoa de rejeitos. Prova disso é que a ré afirma que parte do arsênio descartado fica dissolvido na água – cerca de 1,8 toneladas (nota de rodapé da folha 318). As quantidades de arsênio liberado admitida pela ré e estimada a partir dos dados e estudos fornecidos pela própria ré é assustadora e constituem evidência de poluição grave e persistente. A afirmação da ré de que parte do arsênio liberado da rocha e descartado na lagoa de rejeitos “permanece estável nos rejeitos, da mesma forma como estavam na mina” (nota de rodapé da folha 318) é falaciosa. Na mina, o arsênio encontrava-se solidamente cimentado em rochas duras que datam do período proterozóico8, enquanto que nos rejeitos o arsênio encontra-se finamente moído e disperso em uma bacia sedimentar terciária artificial aplainada. Em outras palavras, a ré está liberando da rocha um veneno que levou bilhões de anos para ser cimentado pela natureza numa época da história natural da Terra em que só existiam formas primitivas de organismos, como proto-bactérias que conseguiam sobreviver em meio ao arsênio.9 A ré quer que os “rejeitos permaneçam estáveis, da mesma forma como estavam na mina”. Quanta pretensão irresponsável, igualar um processo que durou entre centenas de milhões de anos a bilhões de anos, e um processo que dura poucos dias, meses, anos ou décadas! 8 Na escala de tempo geológico, o Proterozóico (do grego proteros, anterior + zoikos, de animais) é o éon que está compreendido entre 2,5 bilhões e 542 milhões de anos, abrangendo quase metade do tempo de existência da Terra. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Proterozoico. 9 Wolfe-Simon F, Blum JS, Kulp TR, Gordon GW, Hoeft SE, Pett-Ridge J, Stolz JF, Webb SM, Weber PK, Davies PC, Anbar AD, Oremland RS. A bacterium that can grow by using arsenic instead of phosphorus. Science. 2010 Dec 2. [Epub ahead of print] Na linha contraditória, confundidora e dissimulada adotada pela ré, evita-se discorrer sobre a liberação de arsênio na poeira fugitiva da mina. Em seu “Relatório de Desenvolvimento Sustentável” de 2003, a ré mostrava que a quantidade de arsênio na "poeira fugitiva" da sua mina de ouro a céu aberto em Paracatu aumentou de 3,42 kg em 2001, para 5,79 kg em 2002, e para 6,10 kg em 200310. Esse relatório não deixa dúvida nem sobre a fonte nem sobre a autoria desta poluição. A Tabela 1 mostra as contradições entre as informações publicadas pela ré e as prestadas pela ré no bojo desta Ação Civil Pública (ACP). Inexplicavelmente, a ré evita informar a quantidade de arsênio que ela está liberando anualmente na forma de poeira. Na fase atual do empreendimento chamada “projeto de expansão III”, iniciado em 2007, a ré processará cerca de 1 bilhão de toneladas de minério, volume que é cerca de três vezes maior que o volume de minério processado antes da expansão. Fazendo-se uma regra de três simples a partir do último dado disponível de 2003, podese estimar uma liberação anual de cerca de 18 kg de arsênio para a atmosfera, na forma de material particulado (poeira). Como não existe diferença entre as vias de absorção no que diz respeito à toxicidade do arsênio11, pode-se afirmar que apenas essa quantidade de arsênio que é liberada na forma de poeira é suficiente para intoxicar 100 mil pessoas, equivalente a toda a população de Paracatu. Tabela 1 – Liberação de arsênio a partir do minério de ouro para o ambiente, conforme informações da própria ré Parâmetro Concentrações médias de arsênio no minério de ouro Quantidade total de arsênio liberada das rochas da mina do Morro do Ouro pela ré no “projeto de expansão III” Quantidade de arsênio liberada para a atmosfera, na forma particulada, por ano Quantidade de arsênio 10 Informações publicadas pela ré 1 parte por mil Informações prestadas pela ré nesta ACP 15 partes por mil (1 kg de arsênio por tonelada de minério) (15 kg de arsênio por tonelada de minério) 1 milhão de toneladas 15 milhões de toneladas A quantidade de arsênio na "poeira fugitiva" da mina de Paracatu aumentou de 3,42 kg em 2001, para 5,79 kg em 2002, e para 6,10 kg em 2003 Cerca de 70% do arsênio Não informado Cerca de 1% do arsênio Rio Paracatu Mineração SA. Relatório de Desenvolvimento Sustentável de 2003, página 14. Smith AH, Ercumen A, Yuan Y, Steinmaus CM. 2009. Increased lung cancer risks are similar whether arsenic is ingested or inhaled. Journal of Exposure Science and Environmental Epidemiology 19, 343– 348. 11 lançado na lagoa de rejeitos presente no minério (equivalente a 105 milhões de toneladas na fase de expansão) presente no minério (s.i.c.), corrigido pela ré para 463.640 toneladas 12 2.2. “ARSÊNIO PERIGOSO” E “ARSÊNIO NÃO PERIGOSO” A ré introduz, na página 318, os conceitos “arsênio perigoso” e “arsênio não perigoso” para designar, respectivamente, as formas altamente oxidadas de arsênio depositadas nos tanques específicos, e todo o restante do arsênio depositado na lagoa de rejeitos. Essa classificação arbitrária esconde o fato de que todas as formas de arsênio liberadas pela mineradora no ambiente são de fato “perigosas”. Internacionalmente convencionou-se dividir os compostos de arsênio em duas categorias: arsênio orgânico e arsênio inorgânico. As formas orgânicas de modo geral são menos tóxicas que as formas inorgânicas, embora as primeiras possam se transformar nas segundas nas condições prevalentes no ambiente e do organismo humano, e muitas formas orgânicas comumente geradas pelo metabolismo das formas inorgânicas sejam altamente tóxicas. De fato, tanto as formas inorgânicas de valência 3+, também chamadas de iAs(III), quanto as de valência 5+, chamadas de iAs(V) são ativamente transportadas para dentro das células, as primeiras por aquaglicoporinas que normalmente transportam água e glicerol 13, e as últimas pelo transportador de fosfato14. Após entrar na célula, o iAs(V) é rapidamente reduzido a iAs(III). Essa redução é pré-requisito para o processo de metilação que ocorre no organismo gerando as formas trivalentes metiladas MMA(III) e DMA(III), cujas citotoxicidade e genotoxicidade excedem a das formas inorgânicas15. Normalmente, os seres humanos expostos ao arsênio excretam 10-30% de arsênio inorgânico total, 10-20% de MMA total (III + V) e 60-80% de DMA total (III + V)16. Embora as formas MMA(V) e DMA(V) sejam menos citotóxicas, mutagênicas e clastogênicas que os arsenicais metilados 12 A ré dá a entender que esta seria a quantidade a ser depositada na nova lagoa de rejeitos (barragem do Córrego do Eustáquio), não informando quanto de arsênio já está depositado na lagoa de rejeitos atual (barragem do Córrego Santo Antônio). 13 Liu Z, Shen J, Carbrey JM, Mukhopadhyay R, Agre P, Rosen BP. Arsenite transport by mammalian aquaglyceroporins AQP7 and AQP9. Proc Natl Acad Sci USA 99 (2002) 6053-6058. 14 Huang RN, Lee TC. Cellular uptake of trivalent arsenite and pentavalent arsenate in KB cells cultured in phosphate-free médium. Toxicol Appl Pharmacol 136 (1996) 243-249. 15 Kligerman AD, Doerr CL, Tennant AH, Harrington-Brock K, Allen JW, Winkfield E, Poorman-Allen P, Kundu B, Funasaka K, Roop BC, Mass MJ, DeMarini DM. Methylated trivalent arsenicals as candidate ultimate genotoxic forms of arsenic: induction of chromosomal mutations but not gene mutations. Environ Mol Mutagen 42 (2003) 192-205. 16 Vahter M, Concha G. Role of metabolism in arsenic toxicity. Pharmacol Toxicol 89 (2001) 1-5. trivalentes, elas também afetam o reparo de DNA e induzem dano ao DNA17. Os seres humanos diferem de outras espécies na medida em que excretamos muito mais MMA total que outras espécies18. Está claro que todas as formas de arsênio liberadas pela ré para o ambiente são do tipo inorgânico “perigoso”, uma vez que absorvidas pelo organismo humano tornam-se altamente tóxicas e reativas. Assim a categorização de “arsênio perigoso” e “arsênio não perigoso” feita pela ré é arbitrária, confundidora, e danosa na medida em que dá a entender que a poluição que ela causa é “não perigosa”. 2.3. ESTUDOS INDEPENDENTES E CASOS SEMELHANTES A ré afirma que a Fundação autora “não trouxe um indício sequer de contaminação” (fls. 342). Ou a ré não leu, ou não entendeu os estudos independentes sobre a contaminação ambiental com arsênio e outras substâncias causada por ela em Paracatu, e os casos semelhantes apresentados na inicial. Para tratar o estado confusional da ré, vamos refrescar-lhe a memória, reafirmando os indícios trazidos na inicial, agora reforçados pelos indícios e provas gerados e fornecidos pela própria ré no bojo desta Ação Civil Pública: Estudo de uma equipe de pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa indicam que o rejeito gerado pela ré “apresentou potencial de geração de acidez e solubilização de elementos como As, Fe e S, o que pode acarretar problemas ambientais, como a drenagem ácida e a contaminação de solos e cursos d’água, bem como a incorporação desses elementos na cadeia trófica”19. Os autores não mencionam o nome da ré em seu estudo, mas a ré sabe que o estudo foi feito em sua mina em Paracatu, e evita comentar a respeito. Medições feitas pelo CETEC (MG) em 2008 indicam altíssima concentração de sulfatos nas águas que drenam da lagoa de rejeitos atual, indicando drenagem ácida ativa. Cópia desse estudo encontra-se em poder do Ministério Público Estadual em Paracatu, cuja intervenção foi requerida "ab initio". 17 Revisto em Tapio S, Grosche B. 2006. Arsenic in the aetiology of cancer. Mutation Research 612:215246. 18 Vahter M. Mechanisms of arsenic biotransformation. Toxicology 181-182 (2002) 211-217. 19 Estudo de Silva SR et al. (2004), apresentado na inicial pela Fundação autora, folhas 192-199. Estudos de 2008-2009 publicados por cientistas da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais20,21 mostram poluição grave e persistente por arsênio nos sedimentos dos córregos à jusante da mina: Córrego Rico e Ribeirão Santa Rita. Em alguns trechos, as concentrações exorbitam os limites legais em mais de 700 vezes. Pela sua importância, esses estudos merecem alguns comentários. As cientistas mediram a quantidade de arsênio nos sedimentos dos córregos e rios do município. Segundo elas, a análise da poluição das águas pelo método de dosagem dos poluentes nos sedimentos revela informações mais confiáveis que a simples dosagem na água, pois os poluentes carregados pela água ficam retidos nos sedimentos de forma mais duradoura, sem sofrer flutuações sazonais. Os sedimentos dos córregos e rios de Paracatu estudados pelas pesquisadoras apresentaram uma concentração natural média abaixo de 2 mg de arsênio por quilo. Após a passagem dos córregos e rios por Paracatu, a concentração média aumenta para 150 mg de arsênio por kg, podendo chegar a mais de 1000 mg/kg. As concentrações mais altas foram observadas no ponto de amostragem PTE023, no Córrego Rico. Uma medição feita em Agosto de 2008 indicou uma concentração de 1116 mg de arsênio por kg de sedimento, o que corresponde a uma concentração 190 vezes maior que a estipulada pela legislação do CONAMA (Conselho Nacional de Meio Ambiente) e 744 vezes maior que a concentração média natural dos rios e córregos da região. A maior parte do arsênio detectado no sedimento do leito do Córrego Rico neste ponto está na forma de arsenopirita, mineral presente na mina de ouro na proporção média de 1-1,5 kg por tonelada de minério. 22 Neste ponto também foi detectado o argilomineral ilita. Esse mineral também é encontrado na mina de ouro operada pela canadense Kinross, e o ponto de amostragem está à jusante da mina. O arsênio da mina de Paracatu pode alcançar os córregos de duas maneiras principais: pela deposição da poeira contaminada e pela drenagem da mina, como será explicado adiante. Os resultados da UFMG 20 Moura PAS, Rezende PS, Nascentes CC, Costa LM, Windmoeller CC. Quantificação e distribuição de arsênio e mercúrio em sedimentos da Bacia do Rio São Francisco. In: XXII Encontro Regional da Sociedade Brasileira de Química, MG, 2008, Belo Horizonte. 21 Rezende PS. 2009. Avaliação da mobilidade e biodisponibilidade de metais traço em sedimentos da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. Tese de Mestrado em Química. Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Brasil. 22 Henderson RD. 2006. Paracatu Mine Technical Report. Kinross Gold Corporation, July 31, 2006. Disponível na internet em: http://www.kinross.com/operations/pdf/Technical-Report-Paracatu.pdf contradizem os resultados do automonitoramento realizados pela ré e aceitos pelos órgãos públicos de controle ambiental. “A contaminação por arsênio atingiu teores superiores ao nivel 2 do CONAMA (17 mg/kg) em Paracatu. Essa região apresenta teores de arsenopirita naturais elevados, que estão sendo liberados para o meio ambiente devido à atividade de mineração de ouro.” – informam as pesquisadoras da UFMG. Não é a primeira vez que estudos científicos comprovam a poluição das águas de Paracatu pela mineradora canadense Kinross. Estudo realizado pelo pesquisador Giovani Melo e publicado em 2008 em Paracatu já revelava uma contaminação de gravidade extrema, com repercussões sobre a saúde da população.23,24 Análises do laboratório CAMPO realizadas para a comunidade Santa Rita em 2010 indicaram aumento da concentração de arsênio na água de 6 partes por bilhão (ppb). 25 O laboratório CAMPO, que é colaborador da mineradora, não detectou arsênio nas águas a montante da mina, indicando que a responsável pela poluição é a ré. A própria ré apresenta um relatório próprio, reproduzido na folha 604, onde consta uma medida de arsênio total na incrível marca de 0,18 mg/L, ou seja, 180 microgramas por litro, ou 180 ppb (partes por bilhão), nas águas superficiais da barragem atual (Córrego Santo Antônio)! Em outras palavras, a ré aumentou de 180 vezes a concentração solúvel de arsênio na água (do limite de detecção de 1ppb, para 180ppb), extrapolou de 18 vezes o valor máximo permitido pela legislação brasileira, que é de 10 ppb (mais da metade dos valores das medidas realizadas pela ré ultrapassaram o valor máximo permitido por lei). Medições de arsênio na poeira colhida em residências e estabelecimentos comerciais em 20 pontos diferentes de todo o assentamento urbano da cidade de Paracatu realizadas em duplicata pela UFMG e pela Universidade Técnica de Freiberg, na Alemanha 26 indicaram em julho de 2010 concentrações de arsênio variando entre 32 mg/kg e 2980 mg/kg. Essas concentrações são tão danosas à saúde 23 Dani SU. Agora está confirmado: RPM/Kinross polui água de Paracatu com metais pesados. Níveis são alarmantes e contaminação já atinge as áreas vizinhas da mina. Jornal Alerta Paracatu, Ano I, número 00, edição especial de junho de 2008, p. 23. Fundação Acangaú, Paracatu, MG, Brasil. Documento acostado na inicial, folhas 210-212. 24 Melo G. Contaminação é de gravidade extrema, diz especialista. Jornal Alerta Paracatu, Ano I, número 00, edição especial de junho de 2008, p. 24. Fundação Acangaú, Paracatu, MG, Brasil. 25 Análises do laboratório CAMPO, de 2010, anexos. 26 Resultados anexos. pública, a ponto de qualificar o efeito da mineração de ouro a céu aberto em Paracatu como um verdadeiro genocídio.27 Vários estudos científicos indicam que o arsênio persiste no ambiente pelo menos durante séculos. É o caso, por exemplo, da Sierra Nevada, no oeste americano, que apresenta poluição persistente causada por minas de ouro abandonadas da época da corrida do ouro, por volta de 1850. 28 É também o caso da região do Quadrilátero Ferrífero, que mereceu recente estudo conduzido por cientistas da Universidade Federal de Viçosa. Nesse estudo, os cientistas analisaram os sedimentos e as águas dos córregos da região utilizando o procedimento de extração sequencial em quatro estágios proposto pela comissão do Bureau de Referência das Comunidades Européias (BCR).29 O resultado encontrado foi uma alta mobilização de arsênio quase 300 anos depois do início da mineração de ouro no Quadrilátero Ferrífero. A extração do elemento dos sedimentos mostrou concentrações de arsênio e metais traço associadas com frações facilmente mobilizadas. Isso significa que o arsênio passa facilmente dos sedimentos para a água dos córregos, mesmo decorridos 3 séculos de mineração. A concentração de arsênio na água dos córregos entre Ouro Preto e Mariana está acima dos limites legais em todos os pontos analisados. A ré tenta desqualificar o exemplo do Quadrilátero Ferrífero, alegando tratar-se de mineração sem controle, em condições diversas das de sua mina em Paracatu. Entretanto, as semelhanças geológicas (rochas sulfetadas contendo o mineral arsenopirita) e edafo-climáticas (clima tropical e ambiente propício à mobilização dos elementos contaminantes, conforme admitido pela ré na folha 321) são semelhantes entre Paracatu e o Quadrilátero Ferrífero. As diferenças mais marcantes entre os dois casos são o tipo e a escala da mineração (a mina de ouro a céu aberto da ré em Paracatu é a maior do Brasil, uma das maiores do mundo), o volume de minério mobilizado e quantidade de arsênio liberada (muito maiores em Paracatu), o tempo decorrido após o início da mineração (muito menor em Paracatu), e a drenagem ácida (um dos principais problemas da mina de Paracatu, um dos fatores que potencializa a poluição ambiental a curto, médio e longo prazos). O Quadrilátero Ferrífero é a região de mineração de ouro mais antiga do Brasil, e uma das mais antigas do mundo: são quase 300 anos de história de mineração. Desta forma, o caso do Quadrilátero Ferrífero representa uma 27 Arsênio em Paracatu atinge níveis de genocídio. Artigo publicado pelo Dr. Sergio U. Dani, em 18 de julho de 2010, no http://alertaparacatu.blogspot.com/2010/07/arsenio-em-paracatu-atinge-niveis-de.html 28 http://sosarsenic.blogspot.com/2010/07/difficult-to-clean-up.html 29 Varejão EV, Bellato CR, Fontes MP, Mello JW. Arsenic and trace metals in river water and sediments from the southeast portion of the Iron Quadrangle, Brazil. Environ Monit Assess. 2011 Jan;172(1-4):63142. janela para o futuro de Paracatu, uma lição do que a mineração de ouro conduzida pela ré nos reserva para o futuro. O estudo mostra que o arsênio e outros metais traço (Cádmio [Cd], Cobalto [Co], Crômio [Cr], Cobre [Cu], Níquel [Ni], Chumbo [Pb], e Zinco [Zn]) continuam a ser liberados tanto para os ambientes terrestres quanto para os ambientes aquáticos por muitos anos ou séculos, não se podendo falar em “estabilização”, como quer a ré (nota de rodapé da folha 318). Parece que a ré não leu o próprio EIA-RIMA, onde está escrito o seguinte: “Os valores de background encontrados para pH são bastante influenciadores na questão da fixação ou solubilidade de arsênio (As), um dos principais elementos constituintes das rochas presentes na área da mina. Essa é uma situação também presente nas minas de ouro do Quadrilátero Ferrífero, onde as principais fontes naturais de As estão relacionadas às rochas que hospedam os depósitos auríferos sulfetados. As fontes antrópicas são as pilhas de rejeito, solos e sedimentos contaminados. Em águas coletadas em algumas minas auríferas subterrâneas e nascentes das regiões de Ouro Preto e Mariana, foram encontrados valores de As variando de 2 a 2980 microgramas/L (Borba et al. 2004).” (fls. 769). 2.4. IMPOSSIBILIDADE DE DESINCUMBÊNCIA DO ÔNUS E ALIENAÇÃO DA CULPA A ré reservou espaço relativamente grande (fls. 319-331) para tentar em vão desincumbir-se do ônus e alienar sua culpa. Começa afirmando que sua presença em Paracatu “fez o nível de arsênio na água diminuir drasticamente, eis que acabou por minimizar a atividade garimpeira.” (fls. 320). A ré tenta assim lançar a culpa pela contaminação ambiental nos ombros dos garimpeiros. Entretanto, uma comparação entre esses dois agentes poluidores (garimpeiros e a ré) revela diferenças de muitas ordens de grandeza. Os garimpeiros utilizavam mercúrio para apurar o ouro nos garimpos de aluvião, enquanto a ré utiliza cianeto na hidrometalurgia de minério obtido em rocha dura. Os primeiros garimpeiros utilizavam a força dos seus braços, enxadas e bateias, e não usavam mercúrio. Posteriormente vieram os garimpeiros que usavam dragas e exploravam o cascalho do leito dos córregos em busca de ouro, e usavam mercúrio. A maquinaria pesada, a energia, os explosivos e os produtos químicos utilizados pela ré são de potencial danoso de muitas ordens de grandeza maiores que os meios utilizados pelos garimpeiros em todos os tempos. A quantidade de mercúrio lançada nas águas de Paracatu pelos garimpeiros não chega aos pés da quantidade de arsênio que a ré está liberando para a atmosfera, os solos e a água. Os estudos da UFMG já citados30,31 mostram que os sedimentos dos córregos e rios de Paracatu possuem mercúrio na faixa de 0-2 mg/kg. Nessas mesmas águas, a equipe da UFMG detectou arsênio na faixa de 2-1000 mg/kg, ou seja, até 500 vezes mais arsênio que mercúrio. O trabalho da UFMG indica que a poluição dos córregos de Paracatu por arsênio é grave e persistente: “Essa região apresenta teores de arsenopirita naturais elevados, que estão sendo liberados para o meio ambiente devido à atividade de mineração de ouro”,32 sendo que o garimpo artesanal terminou na década de 1980, não podendo ser responsabilizado por níveis tão elevados sendo liberados para o meio ambiente. Foram feitas três medições de arsênio, no período das secas e no período das águas, nos sedimentos de diferentes córregos, ribeirões e rios, a montante e a jusante da mina de ouro a céu aberto da ré em Paracatu. As concentrações médias de arsênio nos sedimentos permanecem altas, indicando contaminação persistente. A contaminação não está restrita ao Córrego Rico. Ela atinge o Córrego Santo Antônio, o Ribeirão Santa Rita, o Ribeirão São Pedro e o Rio Paracatu, em gradiente decrescente a partir da mina de ouro a céu aberto de Paracatu. Esses três rios ficam na bacia oposta à bacia do Córrego Rico. O ponto 29, por exemplo (PTE029 Ribeirão São Pedro a jusante do Ribeirão Santa Rita. -17º 07’ 13” -46º 46’ 00”) consistentemente apresentou o dobro das concentrações de arsênio medidas no ponto 31 (PTE031 Ribeirão Entre Ribeiros próximo à sua foz no Rio Paracatu. -16º 54’ 50” -46º 23’ 26”). Nessa bacia, a única mineradora é a ré RPM/Kinross. A montante do complexo minerário da ré, a concentração de arsênio não está elevada. O ponto 25, por exemplo (PTE025 Ribeirão São Pedro a montante da confluência com o Ribeirão Santa Rita. -17º 02’ 17” -46º 48’ 54) está normal, mas o ponto 29 está contaminado, indicando que após o ponto 25 já aparece a contaminação persistente provocada pela mineradora. A composição mineralógica do Córrego Rico é diferente da do Morro do Ouro, que está sendo escavado a céu aberto pela RPM/Kinross, e o 30 Rezende PS. 2009. Avaliação da mobilidade e biodisponibilidade de metais traço em sedimentos da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. Tese de Mestrado em Química. Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Brasil. 31 Moura PAS, Rezende PS, Nascentes CC, Costa LM, Windmoeller CC. Quantificação e distribuição de arsênio e mercúrio em sedimentos da Bacia do Rio São Francisco. In: XXII Encontro Regional da Sociedade Brasileira de Química, MG, 2008, Belo Horizonte. 32 Idem. estudo da UFMG mostrou que o material encontrado no Córrego Rico é proveniente do Morro do Ouro. Como explicar isso? A ré apresenta na folha 320 um “gráfico do arsênio total no Córrego Rico antes e depois do início das operações da Kinross”, onde a data da primeira medida é 22/02/1985 e a data da última medida é 29/03/1986, portanto na verdade somente dados de épocas anteriores às operações da ré, contrariando sua afirmação acima de que os dados incluiriam informações posteriores à sua atuação. O valor máximo informado neste gráfico é de 20 mg/litro (medição realizada em época de estiagem), o valor mínimo informado no gráfico é de cerca de 5 mg/litro (medição realizada na época das chuvas). Como a ré não apresentou os valores de concentração de arsênio atuais, não é possível comentar a respeito, a partir dos dados apresentados pela própria ré. Ressalte-se que a ré não fez referência à metodologia empregada nessas medidas e reconhece que “os dados coletados antes das operações da RPM são limitados”, grifo nosso (fls. 320). Entretanto, um estudo menos limitado conduzido pelo CETEC comprova que a quantidade de arsênio na água do Córrego Rico realmente AUMENTOU depois do início das atividades da ré. A Tabela 2 mostra que o valor máximo de concentração de arsênio da água entre 2000 e 2003 (portanto entre 13 e 16 anos depois do início das atividades da ré) foi de 37,4 mg/L (21,3 ± 16,1 mg/L), portanto significativamente MAIOR que o valor máximo de 20 mg/L medido pela ré entre os anos de 1985-1986. Então como pode a ré falar que sua presença fez diminuir a concentração de arsênio na água? O garimpo terminou na década de 80, coincidente com o início das atividades da ré. O garimpo poluiu o Córrego Rico com mercúrio, isso ninguém discute. Mas o garimpo não liberou arsênio na medida em que está sendo ativamente liberado pela ré. Então a ré não pode transferir o ônus e a culpa da poluição ambiental para os garimpeiros e muito menos o ônus da prova para a Fundação autora, como reiteradamente pretende. Tabela 2 – Geoquímica do arsênio na região do Morro do Ouro.33 33 Modificado de CETEC, 2006, apud Vasconcelos F. Background Geoquímico em Mineração. II Simpósio de Mineração e Recurso Hídrico Subterrâneo. 2 de Junho de 2010. Acessado em 22 de janeiro de 2011 no sítio http://www.abas.org.br/simposio/palestras/palestras/11.pdf Compartimento Arsênio (As) Sedimento aluvionar 0,35 ± 0,17 % Água superficial(1) -Cabeceira do Córrego Rico(2) -Jusante do Córrego. Rico(3) Água subterrânea(4) 3,9 ± 2,4 mg/L As sol. 9,4 ± 8,0 mg/L As tot 21,3 ± 16,1 mg/L As tot 11,6 ± 0,01 mg/L As sol. 29,1 ± 19,9 mg/L As tot Observação Média e desvio de 131 amostras coletadas em 23 furos de sondagens (07 m. prof.) ao longo da calha do Córrego Rico, dentro da área piloto (1) Sub-bacia do córrego Rico. (2) 9 medições entre 30/10/1997 e 04/03/2002. (Per.seco/chuvoso) (3) 6 medições entre 31/08/2000 e 180/02/2003. (Per. Seco/chuvoso). (4) Águas de poços, nascentes e do fluxo de base do córrego Rico. Dados de 4 pontos de amostragem (região do Morro do Ouro). Apresentam-se a seguir diversas razões, indícios e evidências dessas nossas alegações: 2.4.1. A ré sugere que a contaminação ambiental com arsênio é natural e preexistente, e que teria sido provocada pela atividade garimpeira que terminou há 30 anos. Essa explicação é errônea por duas razões muito simples. Primeiro, porque sedimento significa contaminação recente. Os sedimentos analisados pela equipe da UFMG foram colhidos na Camada I (areia lavada de superfície), e não nas camadas profundas dos córregos e rios. A calha do Córrego Rico é dividida em seis camadas. As duas últimas camadas contendo filito (que poderia ser uma possível fonte de arsenopirita) são as camadas V e VI, as mais profundas, localizadas entre 2 e 7 m de profundidade, e que não foram amostradas no estudo da UFMG. Culpar o garimpo pela presença de arsenopirita nos sedimentos também é errado por uma outra razão. O garimpo retirava ouro do cascalho. O ouro do garimpo é o ouro grosso de aluvião, não o ouro fino da rocha dura rica em arsênio, que necessita de explosivos e máquinas possantes para ser quebrada, carregada e transportada. Garimpeiro é pobre, não tem acesso a essa tecnologia cara e destrutiva. O cascalho do garimpeiro é constituído por intercalações de camadas arenosas e argilosas, de espessuras variáveis, contendo seixos quartzosos. A rocha dura explorada pela mineradora pertence à formação Morro do Ouro, constituída por filitos carbonosos com intercalações de quartzito e sericita-clorita filitos, metassiltito e clorita filito, apresentando sulfetos (arsenopirita) e expressiva ocorrência de boudins de quartzo. O garimpo artesanal antigo e mesmo as dragas da década de 80 não mexeram em rocha dura, inclusive porque a quantidade e o tipo de ouro presente na rocha dura (0,4 g/tonelada, “ouro fino”) não a torna economicamente viável para o explorador de baixa renda, portanto não podem ser responsabilizados pela liberação de arsênio para o leito dos córregos de Paracatu. O garimpo artesanal antigo não usava mercúrio. O garimpo recente foi responsável pela contaminação com mercúrio na faixa de 0-2 mg/kg, isso ninguém discute, mas não pode ser responsabilizado pela liberação de arsênio na faixa de 2-1000 mg/kg, conforme demonstrado pelos estudos da UFMG. Essa concentração tão alta de arsênio, afirmam os especialistas, só pode ser explicada pela atividade da mineradora. Quais seriam as possíveis fontes de contaminação? 2.4.2. Uma fonte ativa de contaminação que contribui para a alta concentração de arsênio nos sedimentos dos córregos é a lixiviação da poeira da mina que é constantemente depositada na região, 24 horas por dia, desde o início da mineração de ouro em rocha dura pela ré, em 1987. Estamos falando de toneladas de minério sulfetado contendo arsênio. Relatório da própria ré, publicado em 2003, reconhece que a ré havia liberado, naquele ano, 6,1 kg de arsênio na poeira fugitiva da mina de Paracatu34. Isso representa seis toneladas de poeira, pois a própria ré admite que cada tonelada de minério na mina contém, em média, um quilo de arsênio35. Foram mais de 100 toneladas de poeira venenosa liberadas nos últimos 20 anos em Paracatu, contendo mais de 100 kg de arsênio, quantidade de veneno suficiente para intoxicar 700 mil pessoas. Com a expansão iniciada em 2008-2009, a quantidade de poeira visivelmente aumentou. Como a produção de ouro foi triplicada, pode-se estimar que a quantidade de poeira fugitiva esteja em torno de 18 toneladas/ano. Esse material é respirado pelas pessoas e contamina os solos e as águas. 2.4.3. Circunstâncias geradas pela ré e que aumentam o potencial danoso a curto, médio e longo prazo são os vazamentos e descargas, o desvio das águas, e a drenagem ácida da mina. O vazamento incontrolável do arsênio liberado pela ré a partir da mina, das pilhas e depósitos de rejeitos, agravado pela drenagem ácida está comprovado em inúmeros trechos da documentação apresentada pela própria ré. Por exemplo, na folha 789, a ré apresenta resultados de monitoramento de arsênio total mostrando variações nas concentrações de arsênio nas águas subterrâneas sob influência das suas atividades 34 RPM, Relatório de Desenvolvimento Sustentável 2003. www.riotinto.com-documentsReportsPublications-2003_socEnv_Brazil.mdi 35 Henderson RD. 2006. Paracatu Mine Technical Report. Kinross Gold Corporation, July 31, 2006. Disponível na internet em: http://www.kinross.com/operations/pdf/Technical-Report-Paracatu.pdf minerárias. “O ponto PM-M-03-10 apresentou, por sua vez, as concentrações mais elevadas. Apenas a título de referência, o padrão de 0,01 mg/L estabelecido para águas potáveis foi ultrapassado em diversas amostragens, dos 03 pontos monitorados.” (fls. 789). Nas páginas seguintes, a ré apresenta séries históricas mostrando um aumento significativo da concentração de arsênio total e arsênio solúvel neste ponto, no decorrer de sua atividade minerária. Nesta série histórica, a concentração de arsênio total medida nas águas subterrâneas no ponto PMM-03-10 partiu de “abaixo do limite de detecção” em abril de 2005, e ultrapassou em mais de 6 vezes o limite máximo permitido para águas potáveis, em dezembro/janeiro do mesmo ano, com metade desse valor representando arsênio solúvel. Apresenta também séries históricas de concentração de arsênio solúvel nas águas subterrâneas sob influência dos tanques específicos, indicando concentrações crescentes e significativamente acima das concentrações de fundo, que não podem ser explicadas simplesmente pela composição geológica natural. Aqui a concentração superou em mais de 9 vezes a concentração máxima permitida por lei para águas potáveis, em fevereiro de 2006, com quase a totalidade desse aumento representado por arsênio solúvel, indicando claramente a fonte e a natureza da poluição (v. gráficos nas fls. 799 e 780). Ao contrário do que afirma a ré em vários trechos de sua réplica, a quantidade e o tipo de arsênio detectados NÃO podem ser atribuídos simplesmente à geoquímica das rochas da região. Somente as atividades minerárias da ré podem explicar os padrões de variação de concentração e tipo de arsênio verificados. Esse arsênio solúvel liberado diuturnamente pela ré alcança facilmente os córregos e rios da região. O Córrego Rico e o Ribeirão Santa Rita correm sobre fraturas geológicas, e a drenagem superficial e subterrânea da mina naturalmente corre para essas águas. Além dessa carga poluente ativa, constante e incontrolável documentada pela própria ré, existe também registro de cargas poluentes esporádicas decorrente de acidentes. Houve pelo menos duas grandes descargas de rejeitos da mina para o Córrego Rico e uma para o Córrego Santo Antônio, afluente do Ribeirão Santa Rita. Duas dessas descargas foram documentadas pela TV local. O mais recente desses vazamentos de que se tem notícia ocorreu em 2008. Um vazamento anterior ao de 2008 gerou uma Ação do Ministério Público Estadual contra a ré. Essa Ação deu origem ao projeto de "revitalização" do Córrego Rico, que é uma farsa, uma "lavagem verde" (Greenwashing), porque não resolve os principais problemas do Córrego, que são: a contaminação por mercúrio e arsênio e a destruição das suas nascentes pela ré. A água roubada do Córrego Rico pela mineradora faz falta. Essa falta de água do Córrego Rico contribui para a concentração alta de arsênio no PTE023, porque com pouca água a capacidade de auto-depuração do Córrego Rico fica gravemente prejudicada. O Córrego Rico está no “CTI”, ele precisa de transfusão de água limpa. Em vez disso, a ré preferiu dar a ele um enterro chamado de "projeto de revitalização". As concentrações de arsênio no Córrego Rico estão mais elevadas que as do Santa Rita porque o Santa Rita ainda tem muito mais água que o Córrego Rico, portanto o Santa Rita "se limpa" muito mais que o Córrego Rico. O projeto de expansão da Mina vai causar nova catástrofe ao contaminar as nascentes do Santa Rita e roubar-lhe a água direto nas fontes. Ou seja, vai acontecer com a "Rita" o mesmo que aconteceu com o "Rico": a ré vai matá-la na nascente, e a contaminação pelo arsênio e pela drenagem ácida dos rejeitos vai acumular a jusante. A atividade da ré na Mina Morro do Ouro, que contém minerais sulfetados, como arsenopirita (FeAsS), expõe à atmosfera os sulfetos confinados que, ao entrarem em contato com a água e o ar, sofrem oxidação facilitada por microorganismos, especialmente bactérias. Os produtos da oxidação dos sulfetos, além de serem altamente solúveis, apresentam reação fortemente ácida, de modo que são facilmente dissolvidos na fase líquida, acidificando as águas de drenagem. Em razão dos baixos valores de pH, elementos tóxicos, incluindo alumínio, arsênio, manganês, cobre, chumbo, mercúrio e cádmio, presentes no meio, são solubilizados e mobilizados na poeira e nas águas de drenagem, podendo ser absorvidos em níveis tóxicos pelos seres vivos, inclusive as plantas e o ser humano, e incorporados na cadeia alimentar. A flora e a fauna assimilam compostos de arsênio com facilidade, pois este elemento substitui o nitrogênio e o fósforo em algumas vias metabólicas. A drenagem ácida da Mina Morro do Ouro constitui sério problema ambiental, capaz de comprometer a qualidade dos recursos hídricos, cujas águas se tornam inadequadas para irrigação, consumo humano e animal e para uso industrial. Ela é tanto mais séria, quanto maior é a profundidade da mina e o volume de rejeitos da mineração 36. O gráfico da Figura 1 ilustra o sistema de drenagem em torno da mina da ré, com indicação do sentido de difusão da contaminação ambiental. 36 http://alertaparacatu.blogspot.com/2008/06/drenagem-cida-um-dos-problemas-da-mina.html C. Santo Antônio e Rib. Santa Rita a C. Eustáquio e Rib. Santa Rita do r. Eustáq r ó C uio BR 040 ado neg e R r. Cór Córr . Ban deiri nha BR 040 b. Ri a nt Sa t Ri Sant a Rit a Lagoa at ual Mina Mor ro do Ouro Par acat u APE e Rib. Santa Isabel Paracatu e Córrego Rico Figura 1 – Sistema de drenagem superficial e profunda, com indicação do sentido da difusão da contaminação das águas a partir da mina de ouro da ré em Paracatu. A difusão da contaminação pela drenagem acompanha as principais linhas de falhamento geológico indicadas pela ré. O depósito de rejeitos na nova lagoa de rejeitos, à esquerda no gráfico, levará à contaminação do aqüífero que abastece a cidade (APE e Ribeirão Santa Isabel). Todas as drenagens estão dentro da bacia do Rio São Francisco. 2.4.4. Difusão e expansão da poluição A atividade da mineradora, quando comparada a outras fontes de degradação do ambiente, como a agricultura e a pecuária, afeta diretamente uma área relativamente pequena. Contudo, a poeira tóxica que se forma na área desnuda da lavra, os gases e os elementos solubilizados dos rejeitos, ao atingirem povoados e cursos d'água, impactam negativamente áreas localizadas a centenas de quilômetros da mineração e afetam a saúde de milhares a milhões de pessoas. De fato, elevados teores de metais pesados podem ser encontrados na cadeia alimentar e no homem nos arredores das áreas de mineração, pela inspiração direta da poeira e pela entrada desses elementos em solos agrícolas, córregos, rios e ribeirões, e na água e nos alimentos produzidos nestas áreas. Isso coloca em risco toda a população localizada no entorno do empreendimento minerário e também populações distantes. O empreendimento minerário da ré é de risco particularmente alto, pois encontra-se em uma área urbana habitada por 100 mil pessoas. O depósito de rejeitos contaminados do projeto de expansão III, iniciado em 2007, será feito no Sistema Serra da Anta, que abastece essa população de água potável. O arsênio e outros poluentes serão lançados sobre nascentes de água que no passado abasteciam os povoados de Paracatu no Vale do Machadinho. As nascentes desse Vale drenam água ainda potável da face leste do Sistema Serra da Anta. Essas águas abasteciam a cidade por queda livre, através do histórico Rego do Mestre de Campo. Essas águas agora serão expropriadas e poluídas pela ré. Num segundo momento, as águas da face oeste do Sistema Serra da Anta também serão contaminadas, como será discutido adiante. Em função da contaminação das águas subterrâneas, da destruição das nascentes do Córrego Rico e São Domingos pela mineradora de ouro desde 1987, e do aumento do consumo de água na cidade, cerca de 80% do abastecimento público de água potável dos 100 mil habitantes de Paracatu passou, a partir de 1996, a depender das águas da face oeste do Sistema Serra da Anta, onde se encontra o Ribeirão Santa Isabel e seus afluentes. A água do Santa Isabel é captada pela concessionária COPASA, tratada e bombeada para Paracatu, com altos custos operacionais. Figura 2 – Gráfico de vazão do Ribeirão Santa Isabel, o principal manancial de abastecimento público de Paracatu, situado na face oeste do Sistema Serra da Anta. Observa-se a queda acentuada da vazão, comparando-se períodos semelhantes. O Sistema Serra da Anta não é estanque. O aumento do consumo diário de 'água nova' pela mineradora – três vezes o consumo diário da cidade – é apontado como um dos responsáveis pelo esgotamento desse sistema hídrico, já verificado pelas medições feitas pela COPASA (Figura 2)37. 37 http://alertaparacatu.blogspot.com/2009/05/ribeirao-santa-isabel-esta-secando.html O projeto de expansão III da mina de ouro da ré Kinross em Paracatu prevê o rebaixamento do lençol freático, com o aprofundamento da cava em mais de 100 metros. Eisler e Wiemeyer (2004) descrevem os riscos do rebaixamento do lençol freático sobre a quantidade e a qualidade das águas: “A fim de evitar a inundação em minas a céu aberto, e para evitar a movimentação de terra em larga escala, é frequentemente necessário retirar a água subterrânea e usá-la para irrigação, descarregá-la em bacias para infiltração rápida ou, em alguns casos, descarregá-la em águas superficiais. As águas superficiais são desviadas em torno das operações superficiais de mineração. Efeitos adversos da retirada da água subterrânea incluem a formação de buracos de escoamento em torno de 5 km do escoamento subterrâneo; fluxos reduzidos de vazão de córregos com quantidades reduzidas de água para irrigação, armazenamento, uso doméstico, mineração e moagem e usos municipais; redução ou perda do suporte vegetacional da vida silvestre, com redução da capacidade de suporte da vida silvestre terrestre; perda do habitat aquático para peixes nativos e suas presas; e rompimento das tradições culturais. A descarga do excesso de água acumulada da mina e outras águas para manter cursos d’água pode conter quantidades excessivas de arsênio [As], sólidos totais dissolvidos, boro [B], cobre [Cu], flúor [F] e zinco [Zn]. Quando cessam as operações de mineração e as bombas d’água são desativadas, estas enormes lavras a céu aberto vão se enchendo lentamente de água, formando lagos. A qualidade da água desses lagos em lavras abandonadas apresenta uma variedade de problemas ambientais.”38 O vale escolhido para a nova barragem não apresenta contaminação ambiental natural, mas será seriamente contaminado pelo depósito de rejeitos da ré, criando perigo iminente para o abastecimento público de 100 mil habitantes e fonte permanente de poluição dos solos, atmosfera e águas superficiais e profundas com arsênio e outros poluentes. Conforme alertamos na inicial e agora sustentado pela documentação apresentada pela própria ré: (i) O vale escolhido para a nova barragem não apresenta contaminação ambiental natural nem das águas superficiais nem das águas subterrâneas; (ii) esta área será séria e irreversivelmente contaminada pelo depósito de rejeitos da ré; 38 Eisler e Wiemeyer (2004) Cyanide hazards to plants and animals from gold mining and related water issues. Rev Environ Contam Toxicol. 2004;183:21-54. Endereço dos autores: US Geological Survey, Patuxent Wildlife Research Center, 11510 American Holly Drive, Laurel, Maryland 20708-4019, USA. (iii) as fraturas ou falhas geológicas existentes em toda a extensão da área de mineração e também das lagoas de rejeitos constituem fendas ou caminhos naturais para a progressão da poluição das águas a partir dos rejeitos contaminados produzidos pela ré, o que causará a poluição dos mananciais de abastecimento público dos 100 mil habitantes da cidade de Paracatu e (iv) a superfícies das lagoas de rejeitos constituirão fonte permanente de poluição da atmosfera, dos solos e das águas superficiais e profundas com arsênio e outros poluentes. Sustentação da afirmação (i): “Quando se analisa a litologia regional, especificamente os filitos portadores da mineralização aurífera, se depara conjuntamente com a presença de sulfetos (particularmente a pirita) acompanhada da presença de arsenopirita, presentes na região da mina. Em relação à área da nova barragem de rejeitos, a presença desses minerais é bastante incipiente, como ocorrências esparsas ou até mesmo ausente de tais minerais nos afloramentos.” (fls. 769) (...) “Considerando-se estes metais não detectados, deve ser destacado o arsênio, que é frequentemente encontrado nas águas da região, proveniente da geoquímica das rochas da região, e que não foi detectado pelo método analítico em nenhuma das amostragens realizadas”. (fls. 829). “Em relação aos metais arsênio total e arsênio solúvel, cádmio total e cádmio solúvel, chumbo total e chumbo solúvel, cromo total e cromo solúvel, cobre total e cobre solúvel, mercúrio total e mercúrio solúvel, níquel total e níquel solúvel todos os resultados obtidos, em todos os pontos e campanhas de monitoramento, se apresentaram inferiores aos respectivos limites analíticos empregados.” (fls. 1489). Grifos nossos. Sustentação da afirmação (ii): A sustentação desta afirmação é a própria declaração da ré, na folha 318, de que serão depositados rejeitos da sua atividade minerária contendo 463.640 toneladas de arsênio na barragem do Vale do Machadinho (Córrego do Eustáquio). No EIA-RIMA apresentado pela ré, lê-se: “A caracterização geoquímica dos materiais retirados durante a perfuração dos poços na área da barragem de rejeitos indicou não haver potencial de geração de drenagem ácida. Porém, os rejeitos que estarão presentes no reservatório são potencialmente geradores de tal drenagem.” (...) “Assim, o impacto potencial e real é de intensidade alta, abrangência regional e significância crítica, com incidência direta e tendência a progredir durante o processo de lavra”. (fls. 1066 – Grifos nossos). Sustentação da afirmação (iii): “Bertachini & Silva (op. Cit.) ressaltam que o sistema de fraturamento existente na região é melhor registrado nas unidades pelíticas. Dados de fraturamento retirados destas unidades demonstraram através de diagrama estereográfico de rosetas (Figura 5.10) que os padrões de fraturamento principais, de direções leste-oeste e N25ºE, representam um par de fraturas de cisalhamento formadas por uma compressão de direção nordeste/sudoeste, provavelmente associada à fase D1, e o subconjunto de direção N55ºE representam fraturas trativas, relacionadas a esta mesma fase.” (fls. 692) Hidrogeologia da barragem atual (Córrego de Santo Antônio): “Conforme estudo hidrogeológico desenvolvido pela Golder Associates (2004), na região da mina e entorno da atual barragem de rejeitos, o sistema aqüífero é predominantemente fissural e composto por filitos com uma cobertura decimétrica a métrica de solo de alteração argilosa. A permeabilidade da área é bastante baixa, variando entre 5x10-5 e 5x10-6 na área da mina e 1x10-5 e 5x10-5 na área da barragem. Segundo este estudo em ambos os locais a permeabilidade apresenta redução em profundidade, o que é conseqüência da redução do fraturamento à medida que se avança no interior da rocha fresca.” (fls. 709). Hidrologia da área da mina e pilhas de estéril: “Considerando o pit da mina, a água subterrânea irá fluir para dentro da cava a partir do momento em que o pit ficar abaixo da superfície freática. O fluxo de água para dentro do pit irá afetar as condições hidrodinâmicas de entorno, reduzindo o fluxo de base para as drenagens e de entorno e diminuindo o nível do lençol freático dentro da área de influência do pit.” (fls. 710). (...) “Sistemas de falhas normais com forte mergulho foram identificados e atravessam a área da cava. Estas falhas se orientam aproximadamente segundo as direções norte-sul e leste-oeste. As zonas de falhas são geralmente estreitas, não mais largas que 10 m e contém filito menos resistente e brechas associadas. A maior parte da cava faz parte de uma estrutura em “graben”39 com direção leste-oeste” (fls. 711). (...) “Em áreas com exposição de minério sulfetado não há liberação de escoamento superficial da mina para as drenagens de superfícies vizinhas à cava, a não ser em situações emergenciais, após a neutralização da acidez da água e de acordo com o Plano de Emergência Específico.” (fls. 713). (...) “Com base em uma recarga de águas subterrâneas presumida de 50 a 100 mm anuais, a recarga total da Área da Mina (presumida de 4,5 km2) descarregaria nos córregos de entorno.” (fls. 713). “Os níveis mais elevados de águas subterrâneas encontram-se abaixo dos divisores 39 A ré não traduziu esse termo em alemão, mas nós o fazemos: “vala”. topográficos e as porções menos elevadas, nos fundos de vales.” (fls. 716). (...) “A recarga que entra na subsuperfície flui preferencialmente através das fraturas ou estruturas de foliação no interior do filito.” (fls. 716). (…) “Em rochas fraturadas, a porosidade efetiva é baixa, tipicamente na faixa de 0,05 a 5%. Nos cálculos, presumiu-se uma porosidade efetiva de 1%. Com base nos valores presumidos, o fluxo subterrâneo por quilômetro de largura da unidade hidrogeológica poderia variar de 0,04 L/s a 2 L/s (3.000 a 172.000 L/dia). A velocidade de percolação subterrânea é estimada na faixa de aproximadamente 6 a 110 m/ano.” (fls. 718). (...) “A comparação entre este resultados sugere que uma estimativa final alta de descarga de água subterrânea da área da mina para o Córrego Rico.” (fls. 718). “Os tanques da mina interceptam e armazenam o escoamento superficial e descarga subterrânea, porém não evitam a descarga de água subterrânea nos córregos. A descarga de águas subterrâneas mantém parte do fluxo de base nestes córregos e alimenta as nascentes locais como a Grota de Vênus.” (fls. 718). (...) “A figura 5.15 apresenta o nível das águas subterrâneas na condição final de mineração. A cava, nesse caso, atua como uma grande bacia onde a água subterrânea flui para tal a partir de todas as direções.” (fls. 725). (...) “O modelo prediz que ao final da mineração, o nível das águas subterrâneas nas rochas nas vizinhanças de Paracatu e outras pequenas comunidades nas vizinhanças do Córrego São Domingos pode diminuir potencialmente entre 1 e 15 metros quando comparado com as condições atuais. Essa diminuição temporária do nível da água subterrânea não é considerado significante e não é esperado efeitos adversos na produção de poços existentes nessas localidades (Golder, 2005).” (fls. 725). (...) “No final das atividades da mina, o fundo da cava atingirá uma elevação de cerca de 344 m acima do nível do mar, o que é próximo de 140 m abaixo do nível atualmente licenciado.” (fls. 729). (...) “Após a exaustão da mina e cessada a operação de bombeamento, a água fluirá para a cava a partir das seguintes fontes naturais e nela se acumulará (Figura 5.17).” (...) “-Água subterrânea da parte oeste da mina (água subterrânea de fora da mina);” (fls. 729). “O tempo de enchimento da cava varia de 11 a 16 anos.” (fls. 731). “Para o cenário Caso-Base, a qualidade da água do lago da cava será de baixa qualidade e relativamente estável ao longo do período de 30 anos. A qualidade da água será condicionada pelo pH baixo das águas de drenagem pluvial (runoff) da área da mina, que constituem o maior fluxo de entrada na cava (vide resultados do balanço hídrico). Prevê-se que o pH do lago da cava se manterá estável em torno de 3, durante o enchimento e o fechamento. Sulfatos e arsênio estarão presentes com concentrações da ordem de 500 mg/L e dezenas de ppb, respectivamente.” (fls. 733). (...) “Se comparado ao Caso-Base, a simulação do cenário Reabilitação resulta em uma melhora na qualidade da água do lago, devido à redução do runoff proveniente da área dos materiais A2/B2. A concentração de arsênio, neste caso, é uma exceção.” (fls. 734). (...) “Concentrações de metais-traço, na ordem de dezenas de ppb, são previstas no Ano 30.” (fls. 734). – Grifos nossos. Hidrogeologia – área da nova barragem de rejeitos (Vale do Machadinho, Córrego do Eustáquio): “Estas surgências ocorrem em geral no interior das “grotas” profundas, que cortam as escarpas da bacia onde o solo de alteração apresenta pequena espessura. Afloramentos de filitos com variáveis graus de fraturamento ocorrem ao longo de todo o trajeto dessas “grotas”. (fls. 740). (...) “As surgências NA-16, NA-43 e NA-44 (Fotos 23 e 25) são exemplos deste grupo, com destaque para a NA-43, que apresenta vazão pontual em uma “fenda” no solo estimada em 10 L/s. Outro fato relevante sobre esta surgência é que a cerca de 2 metros a montante, em uma outra cavidade é possível de se observar um fluxo turbulento de água no interior da fenda com direção para a nascente.” (fls. 746). (...) “Cerca de 70% das surgências de água subterrânea cadastradas apresentam restituições inferiores a 1 L/s com predomínio de valores inferiores a 0,5 L/s, conforme descrito anteriormente no item 5.1.7.4 (inventário dos pontos de água). Os valores entre 2 e 10 L/s ocorrem na borda oeste da área, no topo da região denominada de “chapada”, vazões estas de porte bem mais elevado do que as observadas no restante da área.” (fls. 750). (...) “Na área de estudo predominam rochas filíticas, onde o fluxo de água subterrânea ocorre somente através de fraturas ou fissuras abertas e se dá a partir das regiões que apresentam carga hidráulica mais elevada para zonas de menor carga hidráulica.” (fls. 189). (...) “Cabe ressaltar que as grotas normalmente encontram-se associadas com as direções preferenciais de fraturamentos da área.” (fls. 755). (...) “Na área de estudo, localizada fora da área das nascentes e surgências onde o nível d’água subterrâneo é aflorante, não há informações sobre a profundidade do nível d’água subterrâneo”. (fls. 757). (...) “Assim, ressalta-se a importância da execução de investigações de campo específicas para a medição da profundidade do nível d´água subterrâneo, bem como sua flutuação em resposta a recarga de acordo com as estações.” (fls. 757). (...) “Os estudos realizados na área da nova bacia de rejeitos indicam que o domínio fissural constitui a unidade litológica de maior expressão areal (Figura 5.22). Os filitos que ocorrem neste domínio, devido à composição argilosa, constituem aquitardos e aquicludes, decorrentes da baixa permeabilidade primária. O movimento e transporte das águas subterrâneas nestas rochas se dá pela permeabilidade secundária, através das falhas e fraturas. Dada a similaridade das condições geológicas entre as áreas da bacia de rejeitos existente e a nova bacia, espera-se obter valores semelhantes de condutividade hidráulica, como sendo o intervalo de 10-5 e 10-6 cm/s.” (fls. 757). (...) “O Córrego Eustáquio, localizado na elevação 630 m, constitui-se o nível de base da área (…).” (fls. 757). Sobre o domínio fissural: “Nesse domínio encontram-se as surgências de água subterrânea com valores inferiores a 0,5 L/s e com altitudes em torno de 700 metros.” (fls. 760). (...) Sobre o domínio granular: “Caracteriza-se como o aqüífero existente na área de estudo; ocorre na borda oeste, próximo à BR040, compreendendo o altiplano existente denominado localmente de “chapada”. Neste local, predominam solos espessos formados por blocos e material arenoso, sendo comum uma cobertura de canga. O aqüífero granular composto pelo manto de alteração apresenta características de grande permeabilidade, altas taxas de infiltração, boa capacidade de reservação e boa transmissividade. Foi observado a existência de fendas com grande fluxo de água em seu interior (NA-43). Este aqüífero encontra-se em um nível bastante superior ao domínio fissural anteriormente descrito, no entanto, também apresenta como função secundária a recarga deste.” (fls. 760). (...) “A sub-bacia da futura barragem de rejeitos da RPM é constituída por aqüíferos porosos e fraturados.” (fls. 761). (...) “Tanto o maciço das futuras barragens quanto o reservatório estão assentados sobre o aqüífero fissural. Para o conhecimento das características hidroquímicas e hidrogeoquímicas das águas subterrâneas desse aqüífero recomenda-se a construção de poços de monitoramento adequados ao meio fraturado.” (fls. 761). “Infiltração na bacia de rejeitos: isto inclui a água que infiltra no terreno que está coberto pelo depósito e pela barragem de rejeitos. Adensamento do depósito de rejeitos leva a uma redução de permeabilidade do depósito e a uma redução da taxa de infiltração, enquanto o aumento na carga hidráulica tende a aumentar a taxa de infiltração. Por simplicidade e por falta de dados, uma taxa de infiltração constante de 3.5506 m3/dia/mês foi adotada com base no trabalho feito por GHT.” (fls. 1374). “(...) A barragem da Sela, a parte oeste do futuro reservatório do Eustáquio e a maior parte da área do reservatório da Bacia do Bandeirinha estão localizadas na Serra da Anta (SA), seqüência da Formação Paracatu, que é formada principalmente por metasiltitos e quartzitos alternados com folhetos carbonosos. Nota-se que a barragem existente está em uma formação geológica diferente; está na seqüência Serra do Landim (SL) da Formação Vazante que consiste em calcofilitos e calcoxistos com lâminas de malaquita nos planos de laminação e magnetita. Isto é relevante já que os parâmetros obtidos para a barragem existente foram adotados para o estudo de viabilidade de novas barragens. Aparentemente, os materiais são semelhantes, no entanto, desde que haja diferenças na geologia também pode haver diferenças no comportamento, o que destaca a importância de revisar todas as hipóteses feitas para o estudo de viabilidade uma vez que os dados específicos do local estejam disponíveis.” (fls. 1390). (...) “Na barragem existente, os lineamentos estruturais mostrados no mapa geológico parecem correlacionar com as áreas de elevada percolação à jusante da barragem.” (fls. 1390). (...) “Nesta profundidade houve também a completa perda de circulação durante a sondagem indicando um grau significativo de fraturamento, apesar das permeabilidades medidas nos ensaios de campo não terem sido significativamente altas para esta zona, o que pode ter sido resultado de um bloqueio parcial local das fraturas. Lineamentos estruturais também foram mapeados em outros locais, incluindo a fundação da Barragem A e a fundação da Barragem da Sela, onde vários lineamentos podem ser uma preocupação para o projeto da barragem.” (fls. 1390). – Grifos nossos. Sustentação da afirmação (iv): A ré depositará centenas de milhares de toneladas de arsênio em uma superfície de mais de 4 mil hectares inicialmente inundada, posteriormente desaguada e exposta às intempéries e aos processos biogeoclimáticos. Desta forma, as superfícies das lagoas de rejeitos constituirão fonte permanente de poluição da atmosfera, dos solos e das águas superficiais e profundas com arsênio. Em junho de 2005, um estudo em colaboração entre o Departamento de Ciências Geológicas e Ambientais, o Laboratório Parsons no Massachusetts Institute of Technology, o Consórcio para Fontes Avançadas de Radiação e o Departamento de Ciências Geofísicas da Universidade de Chicago estabeleceu que o arsênio pode ser liberado próximo à superfície e depois lavado para a profundidade. Entre outras coisas, o estudo estabeleceu a existência de uma carga consistente de arsênio via deposição de sedimento nos sistemas aquáticos superficiais, com repercussão na concentração de arsênio nas águas profundas.40 Como resultado desse fenômeno, associado à existência de falhas e fraturas já descritas pela ré para a região da nova barragem de rejeitos, o represamento dos rejeitos tóxicos da ré sobre as nascentes da face leste do Sistema Serra da Anta criará uma PRESSÃO HIDROSTÁTICA POSITIVA na FACE LESTE da Serra da Anta que causará um refluxo da água contaminada pelo aquífero no sentido da drenagem da FACE OESTE do Sistema, exatamente onde estão os mananciais de abastecimento da cidade. Esse fenômeno, que poderá durar meses, anos ou séculos, acabará poluindo as águas que hoje abastecem os 100 mil habitantes de Paracatu. É tudo uma questão de tempo (Figura 3). 40 Detalhes sobre o estudo podem ser obtidos no website SOS-Arsenic: http://www.sosarsenic.net/english/source/index.html#sec1.1 Figura 3 – As águas superficiais e profundas da APE – Área de Proteção Especial de abastecimento público de 100 mil habitantes da cidade de Paracatu (nascentes do Santa Isabel) estarão condenadas pelo depósito de rejeitos da mineração de ouro da ré no Vale do Machadinho, localizado na face leste do Sistema Serra da Anta. A APE (Vale do Ribeirão Santa Isabel) está abaixo da cota 700 da nova barragem de rejeitos da Kinross. Paracatu já está seriamente afetada, porque a maior parte da cidade está abaixo desta cota [660 m (Córrego Rico sob a MG188); 705 (Alto do Açude); 720 (Jockey Clube de Paracatu)]. Como os poços artesianos buscam água a uma profundidade média de 100 metros (cotas de aquífero de 560 m a 620 m), nenhum poço tubular poderá ser utilizado. A contaminação do Santa Isabel na face oeste do Sistema Serra da Anta (conforme esquema), completará o quadro infernal. O arsênio depositado permanece nos solos por séculos ou milênios. Em um estudo sobre cambissolos próximos a áreas mineradas no município de Santa Bárbara, Santana Filho (2005)41 observou que a distribuição de arsênio no perfil dos solos apresenta tendência decrescente com a profundidade. Atribui-se esse fato à ciclagem biogeoquímica de longo prazo, durante a qual as raízes das plantas retiram o arsênio de camadas mais profundas, depositando-o na superfície. Esse fenômeno, nas barragens de rejeitos, contribuirá, ao longo dos anos, para o aumento persistente de formas oxidadas de arsênio no ambiente, mesmo após encerrada a mineração e descomissionadas as barragens de rejeitos. Resumindo, existem provas e evidências consistentes de que: (1) a origem do arsênio e do ácido sulfúrico (sulfatos) é a rocha dura do Morro do Ouro, triturada e pulverizada pela ré; (2) a culpada pela contaminação ambiental (ar, solos e águas) por arsênio e sulfatos (drenagem ácida) atual, ativa e persistente, é a ré; (3) a culpada pelo agravamento da contaminação ambiental – tanto a atual, do arsênio da mina, como a antiga da época do garimpo artesanal, como a futura, decorrente da poluição "não lavada nos rios", “infiltrada nos aquíferos” e “transportada pela atmosfera”, é a ré. A ré desvia e polui as águas, e sem água limpa e em quantidade adequada, os contaminantes são concentrados e difundidos. A ré diz que recicla água, isso é verdade, mas ela continua captando água nova. A mineradora capta e utiliza três vezes mais "água nova" que toda a cidade de Paracatu, e devolve água suja para o ambiente. COMO PODE QUERER A RÉ DESINCUMBIR-SE DO ÔNUS E DIFERIR A SUA CULPA? COMO PODE QUERER QUE AS VÍTIMAS PAGUEM PELOS PECADORES? 2.5. EFEITO DA POLUIÇÃO SOBRE A SAÚDE A indústria do ouro tem tentado convencer os reguladores que a mineração em rocha dura contendo arsênio é segura. A indústria afirma que consegue neutralizar ou imobilizar todo o arsênio liberado durante a mineração de 41 Santana Filho S. 2005. Distribuição de arsênio em solos e sedimentos e oxidação de materiais sulfetados de áreas de mineração de ouro do estado de Minas Gerais. Universidade Federal de Viçosa. Viçosa, MG. Tese de Doutoramento. ouro moderna, e que o arsênio liberado pela mineração não afeta o meio ambiente e a saúde. Para suportar isso, os advogados da indústria indicam dados e estudos científicos sobre arsênio no ambiente, muitos deles produzidos ou financiados pelas próprias mineradoras, e nenhum deles visando estudar os efeitos do arsênio sobre a saúde usando metodologias clínico-laboratoriais, toxicológicas e epidemiológicas adequadas. Embora a literatura relevante esteja repleta de resultados conflitantes, isso não pode ser visto como um endosso da sua posição. Ao contrário, isso revela uma corrente de estudos financiados pela indústria, desenhados somente com o intuito de lançar dúvida sobre a clara ligação entre arsênio e doença. Essa é uma tática conhecida da indústria. A ré cita nas folhas 332-345, resultados de um “estudo epidemiológico contratado por ela a um “consultor independente”, “Dr. Gustavo Werneck”, realizado em 2009 para avaliação de possíveis impactos de atividades da empresa na saúde da população do município de Paracatu” 42. A ré acredita que este “estudo epidemiológico” “desconstrói, de forma científica, todo o mito criado pela Fundação por meio da presente ação”. Até que seja apresentada a publicação científica deste estudo em revista com corpo editorial indexada e circulação internacional não se poderá leválo a sério, sob o risco de se desconstruir a própria ciência, fazendo-o merecedor dos mesmos prêmios de excelência que a ré alega ter recebido pelos benefícios que tem causado a Paracatu, ao Brasil, ao mundo e por que não dizer, à humanidade? Sob quem e sob o que se baseia a ré para afirmar tamanho disparate desconstrutivo da ciência? O consultor Gustavo Werneck, diretor da empresa "Centro Mineiro de Estudos Epidemiológicos e Ambientais" tem apenas dois artigos científicos publicados em revistas científicas indexadas, todos dois artigos sobre asma. Werneck não tem nenhuma competência comprovada através de estudos científicos sobre arsênio, apesar disso transborda segurança e autoridade ao afirmar que "não há nenhum risco de contaminação por arsênio em Paracatu"43. Em outras palavras, o que cientistas internacionalmente respeitados, através de estudos científicos disseram que 42 “Estudo descritivo da situação de saúde e da exposição da população ao material particulado em suspensão em Paracatu-MG. Relatório técnico, Agosto de 2009, CEMEA. Apresentado à SUPRAMNOR (protocolo n. E256803/2009), ao Ministério Público Estadual e à Secretaria de Meio Ambiente do Município de Paracatu (protocolo n. 631/2010)”, folha 332 da ACP. 43 Kinross convida incompetentes para defendê-la das acusações de genocídio em Paracatu. http://alertaparacatu.blogspot.com/2010/09/kinross-convida-incompetentes-para.html existe, o curioso Gustavo Werneck teima em dizer que não existe. Suas afirmações revelam total desprezo pela ciência e pela saúde da população, e estranho apego à ré. O “estudo epidemiológico” contratado pela ré é na verdade um levantamento fragmentário, conduzido por pessoa sem a qualificação científica necessária, valendo-se de metodologia inadequada e uma base de dados insuficiente que não suportam nenhuma de suas “conclusões desconstrutivas”. Onde estão as medições de arsênio na urina, sangue e tecidos? Onde estão os estudos de predisposição genética da população afetada? Onde estão as análises atuariais e os inquéritos sobre todas as manifestações clínicas e subclínicas da intoxicação crônica por arsênio? Onde estão as análises de associação entre medições de arsênio nos compartimentos ambientais e no compartimento humano? Onde estão os dados brutos e as análises estatísticas das correlações clínico-laboratoriais? O “estudo epidemiológico” tão propalado pela ré limitou-se a uma espécie de “enquete” e análise rasteira de dados insuficientes colhidos num sistema de saúde precário, recheada de empirismo, julgamentos de mérito e “achismo”: “(...) Segundo profissionais dessa secretaria [Secretaria Municipal de Saúde], casos de morte fetal têm reforçado a percepção de algumas pessoas da comunidade, de que esse fato esteja relacionado com a exposição à poeira gerada na RPM. Com base na experiência acumulada no serviço de saúde nas últimas décadas, consideram que não há evidência deste e de outros efeitos específicos sobre a saúde que possam ser atribuídos à poeira da mineração.” (fls. 333). – Grifo nosso. As comparações de dados de saúde pública incorrem em erros primários, como a desatenção dos autores do estudo ao erro sistêmico de registro, que oculta a ocorrência. Os consultores da ré demonstram desconhecimento completo da história natural da intoxicação crônica por arsênio, que tipicamente leva anos para se manifestar, e cujos sinais e sintomas iniciais sequer foram mencionados no “estudo epidemiológico científico”. Nas próximas seções, replicamos o “estudo científico” da ré sobre o impacto de suas atividades sobre a saúde, mostramos que seus dados e análises são incompletos, tendenciosos e errados, e que as evidências de verdadeiro genocídio em andamento em Paracatu exigem imediata e urgente tomada das providências requeridas na inicial: 2.5.1. Medição de arsênio na atmosfera é incompleta, contraditória, dissimulada e tendenciosa Os dados apresentados pela ré correspondem a apenas 10 medidas de PM10 (material particulado de tamanho de partícula menor que 10 micrômetros) executadas em 10 dias entre maio e junho de 2010. Apesar do reduzido número de medidas, “o elemento arsênio foi detectado em todos os pontos da cidade amostrados”. (fls. 1338). A ré informa que as concentrações atmosféricas de arsênio em PM10 variaram de 0,9-3,1 ng/m3, enquanto o limite proposto pela Comissão Europeia atualmente é de 6 ng/m3. Os dados apresentados pela ré são parciais e sua análise falaciosa, uma vez que não se pode tirar as conclusões sobre a normalidade da concentração de arsênio em PM10 baseando-se apenas em 10 medidas feitas em dois meses consecutivos de pouca poeira, e ainda por cima afirmar que os resultados estão dentro do padrão da Comunidade Europeia, visto que esse padrão é uma média anual! O máximo que se pode fazer é extrapolar os dados fornecidos no EIARIMA da ré pela Brandt Meio Ambiente, na folha 884, que indicam uma média anual da concentração de particulados da ordem de 50 microgramas/m3, que se manteve constante no período 1992-2005 (desconsideramos as medidas do período 1985-1991, que indicam médias até três vezes maiores). Fazendo uma regra de três simples chega-se à conclusão que a concentração anual média de arsênio no ar de Paracatu, no período de 1992 a 2005 variou de 50-75 ng/m3!44 A Tabela 3 mostra a discrepância entre o valor parcial comunicado pela ré e seus “consultores científicos” e o valor anual, conforme derivado das informações do EIA-RIMA da própria ré: Tabela 3 – Discrepância entre o valor parcial e o valor anual derivado da concentração de arsênio na atmosfera da cidade de Paracatu, conforme informações fornecidas pela ré. Concentração de arsênio na atmosfera de Paracatu (em ng/m 3) Valor parcial (10 medições em maio- Valor anual derivado da concentração junho de 2009) de particulados constante no EIARIMA (período 1992-2005) 0,9-3,1 44 50-75 Memória do cálculo: 50 microgramas/m 3 (i.e., média anual da concentração de particulados, conforme medições feitas em 5 aparelhos da ré instalados em diversos pontos da cidade que recebem poeira da mina) x concentração de arsênio na poeira (i.e., 1-1,5 ng de arsênio/micrograma de poeira, essa concentração corresponde à concentração de arsênio na poeira da mina operada pela ré, onde 1ng [nanograma] = 0,000000001g). O valor médio anual derivado de arsênio na atmosfera de Paracatu (50-75 ng/m3) chega a ser 10 vezes maior que o recomendado pela Comunidade Europeia! É preciso que se diga que, apesar de assustador, esse valor ainda deve estar aquém da concentração real, uma vez que a ré tampouco informou os valores de concentração das formas gasosas de arsênio, que são extremamente tóxicas, facilmente assimiláveis e têm importância epidemiológica descrita na literatura. As emissões atmosféricas de arsênio e o seu transporte podem ocorrer tanto na forma de partícula como na forma de gás (arsênio como arsinas na forma de AsH(3), e mono-, di- e trimetilarsina, entre outros)45,46. A biovolatilização de arsênio é um fenômeno já caracterizado em fontes ambientais como depósitos de rejeitos, com a meia-vida atmosférica das arsinas nas condições ambientais podendo se estender de 2 dias a 19 semanas47. Tanto as espécies de arsênio inorgânicas quanto as orgânicas foram encontradas na fase de gás, por isso ambas devem ser levadas em consideração nas análises toxicológicas48. A ré sequer menciona a fase gasosa de arsênio ou discrimina as espécies de arsênio em suas medições incompletas, análises tendenciosas e conclusões falaciosas. Quando fala de arsênio na poeira, a ré negligencia completamente o efeito da exposição humana, uma vez que não apresenta nenhuma medida deste aspecto fundamental. O arsênio está presente na poeira da mina principalmente na forma de arsenopirita (FeAsS) em partículas muito finas. Tanto o ar de dentro dos ambientes domésticos ou de trabalho, como o de fora carregam uma alta carga de aerossol, um material suspenso em partículas cujos tamanhos variam de nanômetros a cerca de 100 micrômetros. Enquanto as partículas grossas de aerossol (> 1 micrômetro, poeira) se instalam com mais rapidez (minutos), as partículas finas (<< 1 micrômetro) podem permanecer por um longo tempo na atmosfera (dias) e são geralmente carregadas pela água ou chuva. A maior parte do arsênio (cerca de 60%) é trazida pela poeira para 45 Planer-Friedrich B, Ball JW, Matschullat J, Nordstrom DK. 2006. Volatile arsenic and other volatile metal(oids) at Yellowstone National Park. Geochimica et Cosmochimica Acta 70(10):2480-2491. 46 Jakob R, Roth A, Hass K, Krupp EM, Raab A, Smichowski P, Gómez D, Feldmann J. 2010. Atmospheric stability of arsines and the determination of their oxidative products in atmospheric aerosols (PM10): evidence of the widespread phenomena of biovolatilization of arsenic. J Environ Monit 12 (2):409-16 . 47 Mattusch J, Wennrich R (eds.) 2005. Speciation of arsenic species. Special issue Microchimica Acta 151(3-4):137-275. 48 Hirner AV, Elmons H (eds.) 2004. Organic metal and metalloid species in the environment. Analysis, distribution, processes and toxicological evaluation. Springer Verlag, Berlin, 328. dentro das residências, sendo que o restante (40%) é proveniente do solo contaminado (trazido pelos sapatos, pneus de automóveis etc.)49. O arsênio liberado pela ré, presente na arsenopirita das rochas da mina de ouro, seja na forma de poeira, seja na forma de solo exposto, ou depositada na forma de rejeitos, sofre oxidação nas condições climáticas naturais, tornando-se mais tóxico. De modo semelhante, a arsenopirita inalada na forma de poeira acumula-se em grande quantidade nos pulmões, onde é lentamente oxidada, gerando compostos solúveis como arsenito e arsenato50. Embora a arsenopirita apresente baixa solubilidade, os compostos solúveis são rapidamente assimilados. A bioacessibilidade do arsênio aumenta com a diminuição do tamanho da partícula, de 25 +/- 16% na fração PM250 (<250-microm) a 42 +/- 23% na fração PM10 (<10-microm)51. Esses resultados indicam que a presunção de valores estáticos de bioacessibilidade de arsênio através de frações de tamanho de partículas deve ser reconsiderada se o material estiver enriquecido com frações de menor tamanho, tais como aquelas encontradas na poeira doméstica. Mas a ré não analisou poeira nas residências e ambientes de trabalho de Paracatu, e tampouco mediu os níveis de arsênio nos organismos das pessoas, plantas e animais expostos. Os gases, aerossóis e a poeira relativamente mais grossa são facilmente inalados por via respiratória e assim penetram rapidamente no corpo humano. Os compostos de arsênio são absorvidos muito rapidamente pelos pulmões e intestinos, enquanto a absorção através da pele é comparativamente lenta52. Em concentrações elevadas, como as observadas em Paracatu, tanto as fases gasosa, aerosol e poeira representam uma ameaça direta para as plantas, animais e seres humanos, uma vez que os mecanismos de defesa de todos os organismos que inalam o ar diretamente não são resistentes o suficiente para combater os efeitos da ingestão ou inalação. A inalação de matéria transportada pela atmosfera contribui significativamente para a quantidade total de arsênio absorvida53. 49 Layton D.W., Beamer, P.I. Migration of contaminated soil and airborne particulates to indoor dust. Environ. Sci. Technol. Nov 1; 43(21):8199-205. 50 Liu YT, Chen Z. 1996. A retrospective lung cancer mortality study of people exposed to insoluble arsenic and radon. Lung Cancer 14 (Suppl 1) S137-S148. 51 Smith E, Weber J, Juhasz AL. Arsenic distribution and bioaccessibility across particle fractions in historically contaminated soils. Environ Geochem Health 2009 Apr;31 Suppl 1:85-92. Epub 2009 Feb 18. 52 Savory J , Wills MR. 1984. Arsenic. In: Merian E, Editor, 1984. Metalle in der Unwelt, VCH Publ, Weinheim, pp. 319–334. 53 Matschullat J, Borba RP, Deschamps E, Figueiredo BR, Gabrio T, Schwenk M. 2000. Human and environmental contamination in the Iron Quadrangle, Brazil. Appl Geochem 15:181-190. Em um estudo54, a bioacessibilidade do arsênio da arsenopirita variou de <1% a 49%, estando as maiores taxas associadas com a presença de arsenatos de cálcio e ferro, e taxas intermediárias (1-10%) associadas aos arsenatos de ferro e oxi-hidróxidos. Próximo à superfície dos rejeitos e solos contaminados predominou o arsênio na valência 5+, indicando que a maior parte da arsenopirita originalmente presente nos rejeitos e nos solos contaminados havia sido oxidada. A presença de uma fase mais solúvel de arsênio, mesmo em baixas concentrações, resultou em bioacessibilidade aumentada de arsênio em fases mistas de arsênio associadas aos rejeitos de mineração de ouro e solos contaminados. Em outro estudo55, amostras de poeira foram colhidas em residências na vizinhança de um sítio de mineração e em residências em uma vilacontrole. A bioacessibilidade do arsênio variou de 10% a 59% (médias: 1020% para fase estomacal e 30-45% para fase intestinal). Num terceiro estudo56, a bioacessibilidade do arsênio em diversos tipos de solos contaminados variou de 17% a 48% (média: 30.5+/-3.6%), em frações de partículas de tamanho variando entre <250 micrômetros e <90 micrômetros. Em alguns pontos da cidade de Paracatu, a ordem de grandeza da concentração de arsênio na poeira chega a 1-1,5 ppm, o que está de acordo com a concentração média de arsênio no minério da mina, conforme consta dos relatórios da própria mineradora.57 Essa concentração é 67 (sessenta e sete) vezes maior que o valor de alerta fixado pela legislação brasileira para solos58 e mais de 140 (cento e quarenta) vezes maior que o valor acima do qual o arsênio inalado pela poeira já causa danos à saúde humana.59 54 Meunier L, Walker SR, Wragg J, Parsons MG, Koch I, Jamieson HE, Reimer KJ. Effects of soil composition and mineralogy on the bioaccessibility of arsenic from tailings and soil in gold mine districts of Nova Scotia. Environ Sci Technol 2010 Apr 1;44(7):2667-74. 55 Rieuwerts JS, Searle P, Buck R. Bioaccessible arsenic in the home environment in southwest England. Sci Total Environ. 2006 Dec 1;371(1-3):89-98. Epub 2006 Oct 4. 56 Girouard E, Zagury GJ. Arsenic bioaccessibility in CCA-contaminated soils: influence of soil properties, arsenic fractionation, and particle-size fraction. Sci Total Environ 2009 Apr 1;407(8):2576-85. Epub 2009 Feb 10. 57 Henderson RD. 2006. Paracatu Mine Technical Report. Kinross Gold Corporation, July 31, 2006. Disponível na internet em: http://www.kinross.com/operations/pdf/Technical-Report-Paracatu.pdf 58 Cetesb 2005. Relatório de estabelecimento de valores orientadores para solos e águas subterrâneas do Estado de São Paulo. CETESB – Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental. Decisão de Diretoria Nº 195-2005- E, de 23 de novembro de 2005. Dispõe sobre a aprovação dos Valores Orientadores para Solos e Águas Subterrâneas no Estado de São Paulo – 2005, em substituição aos Valores Orientadores de 2001, e dá outras providências. Diário Oficial do Estado – DOE, 1º de Dezembro de 2005. Acessível em http://www.cetesb.sp.gov.br/Solo/relatorios/tabela_valores_2005.pdf. 59 Dani SU. Arsenic for the fool: An exponential connection. Science of the Total Environment (2010), doi:10.1016/j.scitotenv.2010.01.027 A ré comprova ter conhecimento desses riscos e do aumento dos mesmo com o projeto de expansão iniciado em 2006-2007, pois consta do seu EIARIMA a seguinte afirmação: “O aumento de particulados em suspensão sem adoção de medidas de controle ambiental pode, potencialmente, ocasionar alteração da qualidade do ar em valores fora dos parâmetros legais. Neste caso o impacto potencial terá intensidade alta, com abrangência local e significância crítica. Apresenta incidência direta, com tendência de progredir, sendo reversível.” (fls. 1065). – Grifo nosso. A simples constatação dessas concentrações letais de arsênio na poeira de Paracatu, somada ao conhecimento dos riscos de “intensidade alta” e “significância crítica” por parte da ré, e à seqüência de atos de destruição por ela cometidos, consolidam as suspeitas de um “VERDADEIRO GENOCÍDIO”.60 EM SUMA, AS ATIVIDADES DE MINERAÇÃO A CÉU ABERTO EM ROCHA DURA CONDUZIDAS PELA RÉ EM PARACATU LIBERA DIARIAMENTE ARSÊNIO ASSIMILÁVEL PELAS PESSOAS NA FORMA DE ARSENOPIRITA E PRODUTOS DA TRANSFORMAÇÃO DA ARSENOPIRITA. Entende-se agora a preocupação da ré em impedir a todo custo a realização dos estudos clínicos-laboratoriais e atuariais requeridos no bojo desta Ação Civil Pública, chegando ao cúmulo de requerer a extinção da ação sem resolução de mérito: esses estudos podem fornecer as provas que faltam da matança de pessoas em massa que segue em andamento. As tentativas da ré de ocultar, confundir e dissimular essa matança claramente indicam sua intenção de ganhar tempo, porque “tempo é dinheiro”, mas “tempo também é morte”, e uma vez estando todos mortos, o ouro já estaria no Canadá, o dinheiro já estaria ganho e o caso já estaria consumado. 60 http://alertaparacatu.blogspot.com/2010/04/mineradora-polui-as-aguas-de-paracatu.html http://alertaparacatu.blogspot.com/2009/07/arsenio-na-poeira-de-paracatu-dados.html http://alertaparacatu.blogspot.com/2009/10/o-cigarro-invisivel.html http://alertaparacatu.blogspot.com/2009/10/qual-e-o-seu-risco-de-morrer-de-cancer.html http://alertaparacatu.blogspot.com/2009/09/o-po-da-heranca-da-kinross.html http://alertaparacatu.blogspot.com/2009/09/arsenio-um-assunto-global-paracatu-e-o.html http://alertaparacatu.blogspot.com/2009/07/manifesto-de-paracatu.html http://alertaparacatu.blogspot.com/2009/07/paracatu-issue-genocide-tolerated-by.html http://alertaparacatu.blogspot.com/2010/04/barbarie-ou-genocidio.html Mas parece-nos impossível qualquer tentativa de ocultação, o risco moral é grande, o caso de Paracatu ganhou repercussão nacional e internacional. Em março de 2010, Paracatu foi incluída no mapa da injustiça ambiental e da saúde, preparado pela FIOCRUZ61. A Sociedade Internacional de Proteção dos Povos Ameaçados (GfbV) interveio junto à Organização das Nações Unidas em favor de Paracatu62. Frei Gilvander Moreira chegou a afirmar: “A injustiça e a violência que vêm sendo perpetradas sobre o povo de Paracatu e sobre o meio ambiente clama aos céus. É um pecado contra o Espírito Santo e um crime hediondo.”. 2.5.2. Cresce o número de abortos espontâneos em Paracatu: indícios apontam a ré como culpada O número de abortos espontâneos em Paracatu, cidade de 100 mil habitantes do noroeste de Minas Gerais, Brasil, está acima do número de abortos espontâneos nos municípios vizinhos de João Pinheiro e Unaí, conforme dados oficiais do sistema público de saúde apresentados pela ré (Tabela 4) (fls. 1325). Tabela 4 – Taxas de abortos em três municípios vizinhos no período 2000-2007. Tipos de aborto Paracatu Aborto espontâneo – (número e % 214 (43,2%) do total de abortos) Outros abortos 278 Razões médicas 3 Total 495 Fonte: Sistema Único de Saúde, SUS. João Pinheiro 2 (0,38%) Unaí 18 (1,95%) 517 1 520 903 1 922 Os dados foram apresentados pelos consultores da ré, liderados pelo consultor Gustavo Werneck. Aparentando preocupação em defender sua cliente, os consultores da ré interpretam as diferenças como sugestivas da 61 Paracatu está no mapa oficial da injustiça ambiental disponível na internet no endereço http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php. Este mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil é resultado de um projeto desenvolvido em conjunto pela Fiocruz – Fundação Oswaldo Cruz e pela FASE – Fundação de Atendimento Sócio-Educativo, com o apoio do Departamento de Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde. Paracatu foi incluída neste mapa por causa das graves consequências da extração de ouro a céu aberto na cidade: poluição ambiental grave e persistente, exposição crônica ao arsênio e outras substâncias tóxicas, destruição de nascentes de água potável e expulsão de comunidades tradicionais, entre outras injustiças. A contaminação do solo, do ar e da água e a corrupção causadas pela RPM/Kinross em Paracatu ameaçam a sustentabilidade do desenvolvimento econômico da cidade, além de afetar diretamente a sociedade. 62 http://alertaparacatu.blogspot.com/2009/08/alemaes-pedem-ajuda-as-nacoes-unidas.html "existência de padrões diferenciados de codificação dos óbitos fetais por parte dos médicos assistentes nos três municípios estudados." (fls. 1325). Vamos mostrar nesta seção que os consultores da ré estão errados, e que seu erro e seu despreparo científico são piores que um crime. O número de abortos espontâneos registrados em Paracatu é uma das partes visíveis de uma tragédia e de um crime em grande parte invisível. Somando-se os 11.278 nascidos vivos no período 2000-2007 em Paracatu com o total de abortos registrados (495) e não registrados (estimativa: 250)63, obtém-se cerca de 12000 gestações diagnosticadas para o período. Como em condições normais o aborto espontâneo ocorre em cerca de 1520% das gestações64, então esperar-se-ia entre 1800 até 2400 casos de abortos espontâneos em Paracatu no período estudado. Então o número de abortos espontâneos em Paracatu é pelo menos dez vezes maior que o registrado. Qual seria a razão de tão baixo registro de abortos espontâneos em Paracatu e nos demais municípios da região? A primeira razão é que o abortamento que acontece antes de quatro semanas de gestação (correspondente a um período menstrual) é subclínico, ou seja, não é percebido ou detectado. Não sendo percebido, não é registrado, fica “invisível”. A segunda razão é que mulheres grávidas frequentemente não admitem sua condição, e algumas mulheres nunca vão aos hospitais e clínicas. A identificação dos casos de aborto é confundida por erros de comunicação não intencionais (16-83% dos controles menstruais são feitos em mulheres não grávidas) e intencionais (50% das mulheres que sofreram aborto não notificaram o mesmo, de acordo com um estudo feito na Hungria e divulgado pela Organização Mundial da Saúde).65 Portanto, realmente existe um erro sistêmico de registro dos abortos espontâneos em Paracatu, mas esse erro é para menos, e não para mais, e o número real de abortos espontâneos em Paracatu é pelo menos 10 vezes maior que o número registrado pelo sistema público de saúde. 63 Em um estudo populacional “The World Fertility Survey” discutido por Barreto e colaboradores [Stud. Fam. Plann.1992 May-Jun;23(3):159-70], 20-50% dos abortos espontâneos e uma porcentagem ainda maior de abortos induzidos não foi registrada. 64 Steer C, Campbell S, Davies M, Mason B, Collins W. Spontaneous abortion rates after natural and assisted conception. Br Med J (Clin Res Ed) 1989;299(6711):1317–1318. doi: 10.1136/bmj.299.6711.1317. 65 Barreto T, Campbell OM, Davies JL, Fauveau V, Filippi VG, Graham WJ, Mandani M, Rooney CI, Toubia NF. Investigating induced abortion in developing countries: methods and problems. Stud. Fam. Plann.1992 May-Jun;23(3):159-70. Qual seria a razão da diferença tão grande entre o número de abortos espontâneos em Paracatu e nos municípios vizinhos, João Pinheiro e Unaí? Não existem razões para acreditar que os médicos que trabalham no sistema de saúde nesses três municípios sejam tão diferentes, e que os médicos de Paracatu cometam erros de registro da ordem de 40%. Somente um erro dessa grandeza poderia justificar as conclusões dos consultores contratados pela ré, de que haveria “padrões diferenciados de codificação dos óbitos fetais por parte dos médicos assistentes nos três municípios estudados”. Admitir um erro desses seria admitir o desconhecimento de conceitos básicos de medicina, vez que "aborto espontâneo" e "aborto intencional ou provocado" são condições distintas, com causas distintas e manifestações clínicas distintas, existindo várias classificações dos abortos espontâneos, levando em conta características anatomo-patológicas e etiológicas66. O aborto espontâneo é definido como "término acidental de uma gravidez com menos de vinte semanas de gestação". O aborto espontâneo também é chamado de aborto involuntário ou "falso parto". Já o aborto provocado ou intencional é definido como a "interrupção deliberada da gravidez". Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde, metade das gestações no mundo é indesejada, com uma a cada nove mulheres recorrendo ao "abortamento intencional" (ou “aborto provocado”) para interrompê-las. Para o Brasil, calcula-se que 31% de todas as gestações terminam em abortamento intencional. Esse dado permite estimar em cerca de 4.000 abortos (31% x 12.000 gestações) o número de abortos intencionais ocorridos em Paracatu entre os anos 2000 e 2007. Dividindose o número estimado de abortos espontâneos (1.800 a 2.400) pelo número estimado total de abortos (1.800 a 2.400 abortos espontâneos + 4.000 abortos intencionais = 5.800 a 6.400 abortos totais) temos que, em condições “normais”, os abortos espontâneos em Paracatu perfazeriam 3137% dos abortos totais (1.800 ÷ 5.800 = 0,31; 2.400 ÷ 6.400 = 0,37). Conclui-se que a taxa de aborto espontâneo registrada em Paracatu pelos órgãos públicos de saúde (43,2%) está acima da taxa esperada (31-37%), o que explica a diferença entre os dados de aborto entre os municípios de Paracatu e os municípios vizinhos de João Pinheiro e Unaí. 66 Rushton DI. Simplified classification of spontaneous abortions. Journal of Medical Genetics, 1978,15,1-9. Qual seria a causa desse aumento tão significativo do número de abortos espontâneos em Paracatu? A causa mais comum do aborto espontâneo no primeiro trimestre (até 12 semanas) é um distúrbio de origem genética. 67 Em 60-70% dos casos tratase de um defeito cromossômico no embrião que impede seu desenvolvimento natural. O embrião morre e depois é absorvido ou expulso do útero. O distúrbio genético pode ser hereditário (por exemplo, uma condição genética conhecida por homozigose para alelos letais, cuja frequência aumenta em casamentos consanguíneos) ou adquirido (por exemplo, mutações genéticas causadas pela exposição da mãe a certos medicamentos ou à poluição ambiental). Em uma população geneticamente semelhante, cientistas do King’s College de Londres mostraram que os fatores ambientais explicam melhor as variações nas taxas de aborto espontâneo.68 Isso significa que fatores ambientais são responsáveis pelo abortamento espontâneo, mesmo quando os conceptos (embriões ou fetos) são geneticamente normais. Entre esses fatores ambientais, destacam-se aqueles que interferem no desenvolvimento e funcionamento da placenta e na regulação hormonal, como a intoxicação crônica por arsênio. Diante de um quadro fortemente indicativo de aumento de abortamento espontâneo em Paracatu, os consultores da ré preferem invocar a “existência de padrões diferenciados de codificação dos óbitos fetais por parte dos médicos assistentes nos três municípios estudados” (folha 1325), para então concluir erroneamente que o abortamento espontâneo não está aumentado em Paracatu. Se tivessem se dado ao trabalho de fazer uma revisão da literatura científica, teriam se deparado com diversos estudos que mostram uma correlação consistente entre intoxicação crônica por arsênio e ocorrência de aborto espontâneo, partos prematuros e morbi- 67 Hassold TJ. A cytogenetic study of repeated spontaneous abortions. Am J Hum Genet 1980 Sep;32(5):723-30. 68 Burri AV, Cherkas L, Spector TD. Exploring genetic and environmental influences on miscarriage rates: a twin study. Twin Res Hum Genet. 2010 Apr. 13(2):201-6. mortalidade (adoecimento e morte) peri-natal e infantil 69,70,71,72,73,74,75. Esses estudos baseiam-se em coletas de dados clínico-laboratoriais, incluindo dosagens de arsênio no organismo das mães e análises atuariais e estatísticas. Os erros sistêmicos típicos do nosso sistema de saúde não impedem de mostrar a tragédia de Paracatu. Mas o erro dos consultores da ré parece ocultar um crime de genocídio. Seu erro é pior do que um crime. 2.5.2. Cresce o número de casos de câncer em Paracatu: indícios apontam a ré como culpada A ré destaca as afirmações dos seus consultores de que “os dados de internação hospitalar do município de Paracatu mostram um padrão de adoecimento semelhante ao dos municípios de Unaí e João Pinheiro, e até mesmo ao do Estado de Minas Gerais”, e que “em Paracatu, os fatores ambientais e comportamentais associados a óbitos por câncer do aparelho respiratório sejam semelhantes aos que ocorrem no Estado” (fls. 334). A ré apresenta esses “resultados” do seu “estudo epidemiológico científico” de forma falaciosa, tendenciosa e distorcida, claramente visando ocultar a realidade do aumento comprovado de câncer coincidente com o período de suas atividades minerárias em Paracatu. Estranhamente, a ré deixou de comentar outros trechos do “estudo científico” em que os consultores afirmam o seguinte: 69 Ahmad SA, Sayed MH, Barua S, Khan MH, Faniquee MH, Jalil A, Hadi SA, Talikder HK. Arsenic in drinking water and pregnancy outcomes. Environ Health Perspect 2001 Jun;109(6):629-31. 70 He W, Greenwell RJ, Brooks DM, Calderón-Garciduenas L, Beall HD, Coffin JD. Arsenic exposure in pregnant mice disrupts placental vasculogenesis and causes spontaneous abortion. Toxicol Sci 2007 Sep;99(1):244-53. Epub 2007 Jun 14. 71 Milton AH, Smith W, Rahman B, Hasan Z, Kulsum U, Dear K, Rakibuddin M, Ali A. Chronic arsenic exposure and adverse pregnancy outcomes in Bangladesh. Epidemiology 2005 Jan;16(1):82-6. 72 Rahman A, Persson LA, Nermell B, El Arifeen S, Ekstrom EC, Smith AH, Vahter M. Arsenic exposure and risk of spontaneous abortion, stillbirth, and infant mortality. Epidemiology 2010 Nov;21(6):797-804. 73 Sen J, Chaudhuri AB. Arsenic exposure through drinking water and its effect on pregnancy outcome in Bengali women. Arh Hig Rada Toksikol 2008 Dec;59(4):271-5. 74 Tabocova S, Hunter ES 3rd, Gladen BC. Developmental toxicity of inorganic arsenic in whole embryo: culture oxidation state, dose, time, and gestational age dependence. Toxicol Appl Pharmacol 1996 Jun;138(2):298-307. 75 Bloom MS, Fitzgerald EF, Kim K, Neamtiu I, Gurzau ES. Spontaneous pregnancy loss in humans and exposure to arsenic in drinking water. Int J Hyg Environ Health. 2010 Oct 1. [Epub ahead of print] “Se for considerado o conjunto dos cinco grupos de causas de internação selecionadas para este estudo, ou seja, neoplasias, doenças do aparelho respiratório, afecções do período perinatal e malformações congênitas, observa-se que a proporção deste conjunto de causas de internação em Paracatu variou de 48% e 65% do total de internações por todos os outros grupos de causas (exceto o parto), proporções também semelhantes às encontradas para a mortalidade que variou entre 53% e 61%. Esses valores proporcionais para as internações hospitalares são superiores às observadas em Minas Gerais e aos dos municípios de João Pinheiro e Unaí, nos quais a variação foi de 38% a 52%.” (fls. 1322). “Até 2004, as doenças que mais contribuíram para a elevação do número de internações em Paracatu foram as doenças do aparelho circulatório e respiratório. A partir deste ano, a proporção de internações por neoplasias se elevou, e as doenças respiratórias sofreram acentuado declínio, enquanto que as circulatórias se mantiveram em patamares elevados (Tabela 2). Contrariamente ao ocorrido em Paracatu, em João Pinheiro as doenças respiratórias se mantiveram em elevação durante todo o período de 2000 a 2008, e assim como Unaí, a proporção de internações por este grupo de doenças foi superior à observada em Paracatu.” (fls. 1323). Os consultores da ré não comentaram nada a respeito desse fato incontestável do aumento, a partir de 2004, da proporção de internações por neoplasias (câncer) em Paracatu, compatível com o final do período de latência (isto é, o período decorrido entre o início da exposição ou contato com o agente cancerígeno e o aparecimento do câncer) descrito na literatura científica sobre os vários tipos de câncer causados por exposição crônica ao arsênio. O período de latência para o arsênio varia tipicamente entre 10 e 20 anos, podendo chegar a 50 anos. 76 A mineração começou em 1987, portanto 2004 corresponde ao final do período de latência típico (17 anos) para as primeiras gerações de vítimas. Esse comportamento atuarial não se verificou em Unaí e João Pinheiro. A tática de ocultação adotada pela ré e seus consultores não é capaz de ocultar o que está claramente demonstrado: que o número de casos de câncer aumentou em Paracatu em relação aos municípios vizinhos de João Pinheiro e Unaí. A ré e seus “consultores científicos” insistem em afirmar que seus trabalhadores não apresentam nenhum sinal de doença suspeito de intoxicação por arsênio: “De acordo com os médicos consultados, durante os 20 anos de existência da empresa, apenas um caso suspeito de doença ocupacional foi 76 Tapio S, Grosche B. 2006. Arsenic in the aetiology of cancer. Mutation Research 612:215-246. encaminhado ao INSS, cujo diagnóstico de silicose não foi confirmado pelos peritos daquele instituto.” (fls. 1330). “No que diz respeito à ocorrência de problemas respiratórios e/ou câncer entre os trabalhadores, as informações disponibilizadas pelo serviço de saúde da empresa até o presente momento, não evidenciam um número de casos acima do esperado.” (fls. 1330). A ré e seus “consultores científicos” não discutem o “efeito do funcionário saudável sobrevivente” (“healthy worker survivor effect”), que sugere que os funcionários menos saudáveis têm maior probabilidade de deixar o emprego nas atividades de mineração. Esse efeito tem como consequência a diminuição do registro interno das ocorrências. A verdade é que a inalação de arsênio inorgânico e poeira contaminada com arsênio inorgânico é um problema comum em minas de ouro 77,78. Considerando o período de latência da carcinogênese relacionada ao arsênio (10 a 50 anos), espera-se uma explosão de casos de câncer entre funcionários e ex-funcionários da ré nos próximos anos ou décadas. Funcionários e ex-funcionários da ré já apresentam alterações de pigmentação de pele, câncer e doença renal em idade precoce.79 É preciso que todos os funcionários e ex-funcionários da ré sejam regularmente acompanhados por toda a vida, com a realização de exames clínicos, laboratoriais e moleculares periódicos. Os exames devem ser realizados em laboratórios independentes e qualificados, que incluem a dosagem de arsênio e diversos outros parâmetros moleculares na urina, sangue, unhas e cabelos. Não existe dose segura para uma substância cancerígena como arsênio, e os efeitos carcinogênicos da intoxicação crônica por arsênio são cumulativos. As conclusões falaciosas da ré destoam dos resultados publicados em uma tese de doutorado defendida em 2007 na Universidade de Brasília80. Nessa tese, a autora examinou os dilemas do desenvolvimento sustentável a partir de uma base mineira. A economia de Paracatu já não é mais de base mineira (segundo a autora, a contribuição da mineração na economia do 77 Kusiak RA, Springer J, Ritchie AC, Muller J. Carcinoma of the lung in Ontario gold miners: possible aetiological factors. Br J Ind Med. 48 (1991) 808-817. 78 Simonato L, Moulin JJ, Javelaud B, Ferro G, Wild P, Winkelmann R, Saracci R. 1994. A retrospective mortality study of workers exposed to arsenic in a gold mine and refinery in France. Am J Ind Med 25:625-633. 79 Informações colhidas em Paracatu junto a familiares de ex-funcionários já falecidos e ex-funcionários doentes que pedem para não ser identificados, temendo represálias da ré (perda de benefício de tratamento, transplante renal etc.). O Dr. Sergio Dani atendeu pelo menos um caso suspeito de intoxicação por arsênio em ex-funcionário da ré. 80 Enríquez, M.A.R.S. Maldição ou dádiva? Os dilemas do desenvolvimento sustentável a partir de uma base mineira. Tese de Doutorado, Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. 2007, 449 páginas. município é de apenas 4%, e apenas 6% dos empregos formais), mas assim mesmo o caso da cidade foi estudado na tese. A autora encontrou aumentos significativos de neoplasias, transtornos mentais, máformação e lesões nos municípios mineradores estudados, em comparação com municípios-controles.81 A ré e seus consultores não discutem o mais importante fator confundidor de suas análises, que é intrínseco ao processo de tumorigênese. Tumorigênese, carcinogênese ou oncogênese é o processo de acúmulo de alterações genéticas sucessivas e progressivas que terminam com a manifestação clínica do câncer. As vítimas de intoxicação crônica por arsênio só apresentam sinais ou sintomas clínicos do câncer numa fase tardia da tumorigênese, tipicamente décadas após o início da exposição ao arsênio, quando o processo canceroso já se tornou irreversível. A relativa “invisibilidade” desses casos também é agravada por deficiências do sistema de saúde de Paracatu, que fazem uma falta de registro ser interpretada como falta de ocorrência. Mas “a ausência da prova não é prova da ausência”, e os consultores da ré aparentam desconhecer que o precário serviço de saúde de Paracatu (aliás objeto de 81 Embora não seja o foco da análise sobre saúde, vale ressaltar que Enríquez reconheceu que a atividade mineradora em Paracatu compromete vastas áreas, em um território onde o custo de oportunidade do uso do solo (e acrescentamos: da água) é alto, por causa dos usos alternativos do solo (e da água) no agronegócio e na própria ocupação urbana. Numa análise de cluster de um índice de crescimento econômico, Paracatu situou-se bem abaixo de municípios mineradores como Parauapebas (PA) e Itabira (MG). A autora afirma categoricamente: “No município de Paracatu, é baixo o peso da mineração na economia local”. O PIB per capita de Paracatu situa-se abaixo do PIB per capita do município vizinho não minerador de Unaí, e a taxa de crescimento deste índice na cidade de Paracatu entre os anos de 1970 e 2003 tem sido menor do que a taxa de Unaí. A taxa de crescimento populacional de Paracatu é superior à taxa de crescimento populacional de Unaí. Em 2000, 42% da população estava ocupada em Unaí, contra apenas 37% da população de Paracatu. Em 2006, a CFEM (Compensação Financeira pela Exploração Mineral) per capita era de R$34,00 em Paracatu, contra R$489,00 em Mariana (MG), R$310,00 em Itabira (MG), R$551,00 em Parauapebas (PA) e R$920,00 em Canaã dos Carajás (PA). Numa classificação de municípios mineradores de acordo com fatores de crescimento e desenvolvimento, Paracatu situa-se no mesmo nível de desenvolvimento que Crixás (GO), e num nível de desenvolvimento pouco menor que o de Itabira, mas Itabira apresenta um crescimento muito maior. Apesar de Paracatu crescer mais que Forquilhinha (SC), o município está muito abaixo de Forquilhinha no que diz respeito ao índice de desenvolvimento. Na análise de cluster, o índice de desenvolvimento de Paracatu foi menor do que os de Forquilhinha (SC), Corumbá (MS), Mariana (MG), Itabira (MG), Santa Bárbara (MG) e Minaçu (GO). Em 2000, Paracatu ocupava a 205ª posição no ranking de IDHM – Índice de Desenvolvimento Humano Municipal entre todos os municípios do Estado de Minas Gerais. Apesar de o município ter subido 9 posições no ranking estadual do IDHM no período de 1991 a 2000, esse avanço não pode ser atribuído à mineração propriamente dita, nem ao aumento do nível de renda. Ele foi provavelmente decorrente da migração de pessoas mais qualificadas para a cidade, e não o reflexo de um desenvolvimento endógeno sustentável. No período de 1991 a 2000, Paracatu conseguiu reduzir a pobreza, medida em termos da redução do percentual de pessoas com renda abaixo de R$75,50 (47,43% da população era considerada “pobre” em 1991; 37,42% era considerada “pobre” em 2000). Entretanto, nesse nível de pobreza, que mais adequadamente descreve “miséria”, essa redução não pode ser atribuída à mineração, e sim aos programas de assistência social do governo federal. Outros índices, como a concentração da renda, provavelmente dão uma melhor dimensão do empobrecimento da cidade. E realmente houve aumento da concentração de renda em Paracatu no mesmo período analisado. O município de Paracatu não conseguiu conciliar baixo nível de pobreza com alta taxa de ocupação e baixa concentração de renda. Paracatu apresentou alta concentração de renda e gastos com saúde altos relativamente a outros municípios mineradores. O benefício da CFEM foi identificado como muito inferior aos danos causados pela mineradora ao município. “CPIs da Saúde” movidas pela Câmara Municipal de Paracatu) não oferece, entre outros, um serviço de oncologia (diagnóstico, prevenção e tratamento de câncer), e que muitos dos pacientes oncológicos de Paracatu procuram outros serviços, em Brasília-DF, Patos de Minas, Uberlândia, Belo Horizonte e também no Estado de São Paulo para serem diagnosticados e tratados. Assim como no caso do aumento do número de abortos espontâneos, os erros sistêmicos típicos do nosso sistema de saúde não impedem de mostrar a tragédia de Paracatu. Mas o erro dos consultores da ré parece ocultar um crime de genocídio. Seu erro é pior do que um crime. Finalmente, a ré e seus consultores evitam citar os diversos estudos científicos que mostram que o arsênio é o mais potente agente carcinogênico ambiental, figurando no primeiro lugar das listas nacionais e internacionais de agentes carcinogênicos.82,83 2.5.3. Uma em cinco crianças de Paracatu apresentam lesões de pele suspeitas de intoxicação crônica por arsênio Entre os primeiros sinais de intoxicação crônica por arsênio citam-se as lesões de pele. As lesões de pele mostradas na foto da Figura 4, feita em Paracatu em maio de 2010 são típicas dos primeiros efeitos do envenenamento crônico por arsênio. Esse tipo de lesão é chamado de hiperpigmentação da pele (surgimento de manchas escuras na pele). A hiperpigmentação geralmente surge como um padrão de "gotas de chuva" no tronco ou nas extremidades e na língua. 82 Smith, A.H., Hira Smith, M.M., 2004. Arsenic drinking water regulations in developing countries with extensive exposure. Toxicology 198, 39–44 83 Tapio S, Grosche B. Arsenic in the aetiology of cancer. Mutat Res 2006 Jun; 612(3):215-46. Epub 2006 Mar 29. Figura 4: Sinal de intoxicação crônica por arsênio em Paracatu, 2010. Outro tipo de lesão é a hipopigmentação (surgimento de manchas brancas). Tanto a hiperpigmentação quanto a hipopigmentação representam exposição recente ao arsênio. Esses sintomas são chamados de melanose. Após uma exposição mais prolongada, pode ocorrer ceratose (surgimento de crostras na pele), geralmente acometendo as palmas das mãos e dos pés. O tempo de exposição que leva a um ou outro tipo de lesão de pele varia entre as pessoas, e muitas pessoas expostas ao arsênio podem sofrer efeitos do envenenamento crônico sem apresentar lesões de pele. Mas um fato comum aos efeitos do arsênio sobre a saúde é que existe um período de latência entre a exposição e as primeiras manifestações das doenças. Esse período pode variar de poucos anos a décadas. Em um estudo publicado em 200884, Ferreira e colaboradores encontraram uma elevada incidência de lesões cutâneas entre as crianças e adolescentes de Paracatu. Quase a metade (43,6% ou 7.450) dos estudantes examinados apresentaram algum tipo de lesão de pele. Os autores encontraram 1.898 estudantes (11,42% do total das crianças e adolescentes examinados) com discromias (nevus etc.) e 900 estudantes com dermatoses papulovesicobolhosas (5,41% do total das crianças e adolescentes examinados). Em contraste, os autores estabeleceram o diagnóstico de hanseníase em "apenas" 68 estudantes, o que já foi o bastante para caracterizar uma hiperendemia de hanseníase na cidade de Paracatu. 84 Ferreira IN, 2008. Busca ativa de hanseníase na população escolar e distribuição espacial da endemia no município de Paracatu. – MG (2004 a 2006). Tese de doutorado, Universidade de Brasília – UnB, Faculdade de Ciências da Saúde. Resumo publicado por Ferreira IN, Evangelista MSN e Alvarez RRA, na Revista Brasileira de Epidemiologia, vol.10, no. 4, São Paulo, Dec. 2007, acessível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-790X2007000400014&script=sci_arttext. Apesar de os autores não terem considerado a possível intoxicação crônica por arsênio e outros metais liberados pela mineração a céu aberto na cidade, é sabido que a intoxicação crônica por arsênio pode provocar o aparecimento de lesões de pele de grau e aparência variáveis, desde discromias, até lesões escamosas e ceratoses. Neurites também são descritas, o que impõe o diagnóstico diferencial com hanseníase. Portanto, é uma feliz circunstância que esse trabalho de pesquisa ativa da hanseníase em Paracatu tenha identificado e quantificado objetivamente uma alta prevalência de lesões de pele não-leprosas: quase 1/5 dos estudantes examinados apresentaram algum tipo de lesão de pele nas categorias "discromias" e "dermatoses papulovesicobolhosas". Este achado objetivo, associado à comprovada presença de arsênio em doses elevadas na cidade de Paracatu proveniente da mina de ouro a céu aberto no município, constituem uma forte indicação de intoxicação crônica por arsênio em parcela significativa da população e uma justificativa muito forte para que estudos epidemiológicos clínicolaboratoriais e atuariais da intoxicação crônica por arsênio sejam conduzidos em Paracatu. 2.6. A INSUFICIÊNCIA DO PROCESSO DE LICENCIAMENTO A ré enaltece as virtudes e os rigores do processo de licenciamento ambiental que aprovou seu projeto de expansão III, para justificar seu pedido de extinção desta ação, considerada “impossível” e “incabível”, por estar imiscuindo-se em assunto de competência do órgão licenciador (fls. 310-315), ou desnecessária e exorbitante, em vista da alegada complexidade, completude, exaustividade, multidisciplinaridade, rigor e suficiência do processo licenciatório (fls. 323-326). Limitamo-nos a transcrever aqui as impressões de Greg McKnight, vicepresidente de uma outra mineradora canadense, a Yamana Gold: "o Brasil tem uma excelente infraestrutura, os custos da mineração são baixos e o processo de licenciamento é simples."85 2.7. DANO REVERSO A ré defende a tese do dano reverso a impedir a suspensão de suas atividades poluidoras. Especialmente a construção da nova barragem, 85 Citado em um artigo de Peter Blackburn, publicado em 6 de outubro de 2004, disponível em http://www.minesandcommunities.org/article.php?a=1098 (acessado em maio, 2010) segundo a ré, não deveria ser interrompida, “sob pena de se expor as áreas envolvidas ao risco de assoreamento e de outros acidentes naturais incontroláveis em decorrência das chuvas e outros fenômenos.” (fls. 345). Risco infinitamente maior é a poluição dos mananciais decorrente do depósito dos rejeitos nessa nova lagoa, conforme anteriormente explicado (item 2.4.4). Melhor será drenar essa lagoa, ou devolvê-la e toda a área à comunidade quilombola, que poderá, a título de indenização, usar a lagoa para suas atividades, e como fonte de água não contaminada para abastecimento público, revitalização e perenização dos mananciais. A ré apresenta, como prejuízo decorrente da suspensão de suas atividades poluidoras, a diminuição na arrecadação de impostos, a perda de postos de trabalho e o prejuízo dos credores, “particularmente das instituições financeiras que emprestaram os recursos necessários ao investimento na expansão da empresa na expectativa de serem pagos com as rendas decorrentes do próprio aumento da produção da Mina do Morro do Ouro”. (fls. 347). De quanto de prejuízo a ré está falando? E de quem será o prejuízo? O projeto de expansão III custou 570 milhões de dólares à ré, que já devem estar pagos pelo aumento da produção e alta valorização do ouro no mercado internacional. Os impostos cobrados pelo ouro correspondem a apenas 1% do FATURAMENTO LÍQUIDO AUTODECLARADO PELA RÉ, e a contribuição da mineração na economia do município é de apenas 4%, e apenas 6% dos empregos formais.86 Estudo de Enríquez já citado anteriormente mostra que o benefício da CFEM (Compensação Financeira pela Exploração Mineral) é muito inferior aos danos causados pela mineradora ao município. Em contrapartida, a atividade da ré em Paracatu compromete vastas áreas, em um território onde o custo de oportunidade do uso do solo (e acrescentamos: da água) é alto, por causa dos usos alternativos do solo (e da água) no agronegócio e na própria ocupação urbana. Enríquez afirma categoricamente: “No município de Paracatu, é baixo o peso da mineração na economia local”. Fica assim caracterizado que a perda com a suspensão das atividades é a cessação dos lucros da ré, enquanto que a população ganharia sua saúde e sua água de volta, e a economia poderia finalmente se recuperar, utilizando recursos que de outra forma seriam destruídos 86 Enríquez, M.A.R.S. Maldição ou dádiva? Os dilemas do desenvolvimento sustentável a partir de uma base mineira. Tese de Doutorado, Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. 2007, 449 páginas. pela ré, inclusive gerando um número muito maior de empregos e uma renda muito maior e mais sustentável do que os gerados pela ré. É possível calcular os prejuízos que a mineração de ouro a céu aberto em Paracatu causa para o país, na medida em que afeta a saúde e a vida de milhões de pessoas, no presente e no futuro, polui irreversivelmente mananciais de abastecimento público e compromete o uso sustentável dos recursos naturais. Os prejuízos causados pela poluição são de uma ordem de grandeza superior aos lucros obtidos pela ré. Nem todo o ouro extraído de Paracatu seria suficiente para pagar os custos de neutralização dos efeitos do arsênio liberado pela mineração. Um estudo publicado em 2010 pelo Instituto Nacional de Pesquisa Econômica da Suécia usou uma abordagem médico ambiental que leva em conta a exposição ao arsênio, a fim de analisar como os riscos de câncer em locais contaminados por arsênio e suas vizinhanças são implicitamente valorados no processo de remediação.87 Os resultados mostram que o custo por vida salva varia de SEK 287 milhões a SEK 1.835 milhões (equivalente a R$ 73.973.607,53 – R$472.967.142,21), a despeito de cálculos conservadores que de fato subestimam os custos. Considerando-se conservadoramente apenas 1% da população atual de Paracatu vitimada por câncer causado pelo arsênio (sem considerar novas gerações ou as outras doenças causadas por arsênio, como Doença de Alzheimer, diabetes, doenças cardiovasculares etc.), teríamos um custo conservador estimado entre R$ 73 bilhões e R$ 472 bilhões. Isso quer dizer que os prejuízos causados pela mineração em Paracatu são de 5 a 10 vezes maiores que o VALOR BRUTO de todo o ouro retirado da cidade pela ré. Infelizmente, nem 1% do VALOR LÍQUIDO fica na cidade na forma de impostos. O ouro vai e não volta, mas os problemas, os venenos, a pobreza e a morte ficam. Compreende-se porque a ré teme as análises e estudos requeridos nesta ação, vez que as provas e evidências indicam que os danos causados pela ré ao ambiente e à saúde rivalizam com os lucros por ela auferidos e põem em risco a continuidade do seu enriquecimento ilícito. 2.8. SOBRE ATAQUES PESSOAIS DA RÉ AO DR. SERGIO ULHOA DANI E À FUNDAÇÃO ACANGAÚ 87 Forslund J, Samakovlis E, Johansson MV, Barregard L. Does remediation save lives? - on the cost of cleaning up arsenic-contaminated sites in Sweden. Sci Total Environ. 2010 Jul 15;408(16):3085-91. Epub 2010 May 1. A campanha de calúnia e difamação movida pela ré contra a pessoa do Dr. Sergio Ulhoa Dani e a Fundação Acangaú não é objeto desta ação. Limitamo-nos aqui a informar que o Dr. Sergio Dani é médico formado pela UFMG-Universidade Federal de Minas Gerais, Doutor em Medicina pela Medizinische Hochschule Hannover-Alemanha, Doutor em Patologia pela UFMG, livre docente em Genética pela Universidade de São Paulo, atualmente trabalhando como médico e cientista do Hospital das Clínicas da Universidade de Heidelberg, Alemanha, considerada uma das melhores universidades do mundo e ranqueada como a melhor Faculdade de Medicina da Alemanha. O Dr. Sergio Dani Possui diversos trabalhos científicos publicados em revistas científicas internacionais com corpo editorial e indexadas nos principais bancos de dados científicos mundiais. Entre esses trabalhos originais, cita-se a primeira prova da literatura mundial de que o arsênio é causa da doença de Alzheimer 88. Por seus trabalhos, o Dr. Sergio Dani já ganhou vários prêmios científicos e tecnológicos nacionais e internacionais. Não se limitando à medicina, seu conhecimento se estende inclusive para a conservação da natureza89, campo em que destaca seu trabalho pioneiro de manejo sustentado de cerrado para produção de lenha e carvão vegetal (“biochar”), iniciado em 1986, em parceria com o IEF – Instituto Estadual de Florestas, estendida a pequenos produtores da APACAN – Associação dos Produtores de Água do Acangaú. A quantidade mínima de árvores derrubadas para a manutenção de estradas ou abertura de curvas-de-nível (55 árvores, correspondente a menos de 0,1 hectare de cerrado nativo) e a quantidade de carvão vegetal resultante do seu aproveitamento caseiro (3 metros cúbicos) apresentadas pela ré como provas de uma suposta índole criminosa do Dr. Sergio Dani não exigem licenciamento ambiental (ao contrário das atividades da ré, que envolvem a destruição de milhares de hectares, milhões de árvores e extinção de espécies na área do seu empreendimento), e tampouco configuram crime ambiental. “O único crime que ele cometeu foi o de colocar seu conhecimento a serviço do povo de Paracatu”90. Lembramos também à ré que o Dr. Sergio Dani e a Fundação Acangaú nunca receberam doações da ré; todos os recursos que a ré transferiu para a Fundação Acangaú foram recursos públicos decorrentes de uma obrigação 88 Dani SU. Arsenic for the fool: An exponential connection. Science of the Total Environment (2010), doi:10.1016/j.scitotenv.2010.01.027. 89 Conservação da natureza (do latim “conservare”: con, junto; servare, guardar) é a ciência ou técnica de uso sustentável dos recursos naturais nativos dos ecossistemas, conciliando a presença do elemento humano com a sustentabilidade desses recursos. Preservação da natureza (do latim “preservare”: pre, antes; servare, guardar) é a ciência ou técnica de proteção dos ecossistemas intocados, como eram antes da chegada do elemento humano. 90 Comentário sobre o Dr. Sergio Dani feito pelo Procurador de Justiça Criminal do Estado de Goiás, Paulo Maurício Serrano Neves, no blog “Paracatu.net”, publicado em 17/08/10, 07:10 horas. ou medida compensatória fixada pelo órgão ambiental, a FEAM – Fundação Estadual de Meio Ambiente. A participação do Dr. Sergio Dani e da Fundação Acangaú na aplicação desses recursos foi feita em decorrência da aceitação do convite feito pela FEAM para a Fundação Acangaú aplicar uma medida compensatória dos impactos já causados pela mineração da ré em Paracatu (Processo COPAM/PA n. 099/1985/019/1999-DNPM 830.241/80), portanto nada tendo a ver com o projeto de expansão da ré iniciado em 2006-2007. Enfatizamos para que a ré entenda, que os recursos dessa medida compensatória não foram doados pela ré à Fundação Acangaú, eles foram uma obrigação legal, e as prestações de contas foram aprovadas tanto pela FEAM quanto pelo Ministério Público Estadual. Portanto, nem o Dr. Sergio Dani nem a Fundação Acangaú precisaram de favores da ré, nem tampouco devem qualquer coisa a ela. Por isso mesmo são independentes dela, o que possibilita, inclusive, a propositura de Ações Civis Públicas imparciais contra a ré. Isso não impede que a ré e a Fundação autora colaborem ou se enfrentem em questões ambientais, como aconteceu no passado, e como acontece nesta Ação Civil Pública. Finalmente, a tarefa de ajudar as esclarecer os impactos da mineração de ouro em Paracatu começou em 2007, a partir de um convite feito ao Dr. Sergio Dani e à Fundação Acangaú pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, na pessoa do Promotor Carlos Eduardo Ferreira Pinto. Nessa época, o Dr. Sergio Dani trabalhava como cientista principal e diretorpresidente da Excegen Genética SA, empresa de biotecnologia que nunca teve nada a ver com mineração ou com a ré. Ainda assim, o Dr. Sergio Dani encontrou e encontra tempo para dedicar-se à tarefa de entender o problema da mineração de ouro em Paracatu através de estudos científicos e ações nas esferas sociais e jurídicas. Isso não passa de uma obrigação do Dr. Sergio Dani para com seu povo e a sua terra, seja como cidadão, seja como médico e cientista. Esperamos que a ré entenda de uma vez por todas essas razões e se conforme. O CONJUNTO DE EVIDÊNCIAS E PROVAS Nesta réplica está evidenciado, através de DOCUMENTAÇÃO E ESTUDOS ATUAIS REALIZADOS POR CIENTISTAS COM COMPETÊNCIA COMPROVADA ATRAVÉS DE CURRÍCULO E PUBLICAÇÕES EM PERIÓDICOS INDEXADOS, COM CORPO EDITORIAL E CIRCULAÇÃO INTERNACIONAL, BEM COMO MEDIANTE APRESENTAÇÃO DE RELATÓRIOS PELA PRÓPRIA RÉ E DE SEUS COLABORADORES que: 1. A RÉ LIBERA ATIVAMENTE E CONTINUAMENTE ARSÊNIO PARA A ATMOSFERA, OS SOLOS E AS ÁGUAS DE PARACATU; 2. A QUANTIDADE E A CONCENTRAÇÃO DE ARSÊNIO LIBERADO PELA RÉ NA ATMOSFERA, SOLOS E ÁGUAS DE PARACATU SÃO INFINITAMENTE SUPERIORES À QUANTIDADE E CONCENTRAÇÃO DE ARSÊNIO NATURALMENTE LIVRE NESSES AMBIENTES ANTES DA ATIVIDADE DA RÉ, INDICANDO POLUIÇÃO AMBIENTAL ATIVA E PERSISTENTE PROVOCADA PELA RÉ; 3. AS PROPORÇÕES, TIPOS OU FORMAS DE ARSÊNIO OU COMPOSTOS DE ARSÊNIO LIBERADOS PELA RÉ EM PARACATU (MINÉRIO DE OURO FINAMENTE PULVERIZADO CONTENDO ARSENOPIRITA E OUTROS COMPOSTOS DE ARSÊNIO BIOASSIMILÁVEIS NA FORMA DE GASES, SOLUTOS, POEIRA E SEDIMENTOS QUATERNÁRIOS DE POUCOS ANOS OU DÉCADAS DE IDADE, FACILMENTE EXPOSTOS AO INTEMPERISMO FÍSICO-QUÍMICO E ÀS TRANSFORMAÇÕES BIOGEOQUÍMICAS) SÃO DIFERENTES DAS PROPORÇÕES, TIPOS OU FORMAS DE ARSÊNIO EXISTENTE NO AMBIENTE ANTES DA AÇÃO DA MINERADORA (ARSENOPIRITA FORTEMENTE CONFINADA E CIMENTADA NA ROCHA DURA PROTEROZÓICA DE CENTENAS DE MILHÕES DE ANOS A BILHÕES DE ANOS DE IDADE, NÃO BIOASSIMILÁVEL); 4. AS ATIVIDADES DE MINERAÇÃO A CÉU ABERTO EM ROCHA DURA CONDUZIDAS PELA RÉ EM PARACATU LIBERAM DIARIAMENTE ARSÊNIO ASSIMILÁVEL PELAS PESSOAS NA FORMA DE ARSENOPIRITA E PRODUTOS DA TRANSFORMAÇÃO DA ARSENOPIRITA. 5. AS PROPORÇÕES, QUANTIDADES, TIPOS E FORMAS DE ARSÊNIO LIBERADAS DIUTURNAMENTE PELA RÉ SÃO SUFICIENTES PARA INTOXICAR CRONICAMENTE A POPULAÇÃO DA CIDADE E POLUIR O AMBIENTE; 6. A POPULAÇÃO EXPOSTA AO ARSÊNIO LANÇADO AO AMBIENTE PELA RÉ JÁ APRESENTA SINAIS CLÍNICOS E SINTOMAS INICIAIS DA INTOXICAÇÃO CRÔNICA PELO ARSÊNIO, COMO LESÕES DE PELE E ABORTOS ESPONTÂNEOS, CUJAS OCORRÊNCIAS ESTÃO DOCUMENTADAS E PUBLICADAS. TAMBÉM EXISTE PROVA DO AUMENTO DO NÚMERO DE NEOPLASIAS A PARTIR DE 2004, PORTANTO COMPATÍVEL COM O PERÍODO DE LATÊNCIA DESCRITO NA LITERATURA CIENTÍFICA PARA O APARECIMENTO DE CÂNCER CAUSADO POR EXPOSIÇÃO CRÔNICA AO ARSÊNIO; 7. O ARSÊNIO LIBERADO PELAS ATIVIDADES DE MINERAÇÃO DE OURO EM ROCHA ARSENOPIRITA CONDUZIDAS PELA RÉ EM PARACATU ESTÁ SENDO DIARIAMENTE ASSIMILADO PELA POPULAÇÃO DA CIDADE; 8. A INTOXICAÇÃO SUBCLÍNICA DA POPULAÇÃO EXPOSTA NECESSITA SER DIAGNOSTICADA ATRAVÉS DE ESTUDOS CLÍNICO-LABORATORIAIS E ATUARIAIS, NUMA BASE CONTÍNUA, SISTEMÁTICA E PERMANENTE, PARA QUE AS PESSOAS EM RISCO DE DESENVOLVER MANIFESTAÇÕES TARDIAS DA INTOXICAÇÃO CRÔNICA POR ARSÊNIO SEJAM DIAGNOSTICADAS E TRATADAS; 9. OS PREJUÍZOS SÓCIO-ECONÔMICOS-AMBIENTAIS QUE SERÃO CAUSADOS PELA CONTINUIÇÃO DAS ATIVIDADES POLUIDORAS DA RÉ EM PARACATU SUPERAM EM UMA ORDEM DE GRANDEZA O VALOR BRUTO DO OURO PRESENTE NA MINA DE PARACATU, SENDO QUE O VALOR DOS IMPOSTOS INCIDENTES SOBRE SUA RECEITA LÍQUIDA SOMADO AO VALOR DOS DEMAIS IMPOSTOS DIRETOS E INDIRETOS RESULTANTES DA ATIVIDADE ECONÔMICA QUE DESENVOLVE NÃO SERÁ SUFICIENTE PARA ARCAR COM ESSES PREJUÍZOS; 10. A CONTINUIDADE DAS ATIVIDADES POLUIDORAS DA RÉ CRIA CONDIÇÕES QUE AMEAÇAM A SAÚDE PÚBLICA, A SEGURANÇA PÚBLICA, A ECONOMIA POPULAR E O AMBIENTE DE USO COMUM A CURTO, MÉDIO E LONGO PRAZOS; 11. A DEPOSIÇÃO DE REJEITOS TÓXICOS DE MINERAÇÃO NA FACE LESTE DA SERRA DA ANTA, QUE FAZ PARTE DO SISTEMA HIDROGEOLÓGICO QUE FORNECE ÁGUA POTÁVEL PARA UMA POPULAÇÃO DE 100 MIL PESSOAS, TEM UM IMPACTO POTENCIAL E REAL “DE INTENSIDADE ALTA, ABRANGÊNCIA REGIONAL E SIGNIFICÂNCIA CRÍTICA, COM INCIDÊNCIA DIRETA E TENDÊNCIA A PROGREDIR DURANTE O PROCESSO DE LAVRA”; 12. A CONTINUIDADE DO PROJETO DE MINERAÇÃO DA RÉ EM PARACATU RESULTA NA INVALIDEZ E MORTE DE MILHARES A MILHÕES DE PESSOAS E NA POLUIÇÃO PERSISTENTE DE UMA PORÇÃO SIGNIFICATIVA DO TERRITÓRIO NACIONAL, AFETANDO A BACIA DE UM DOS MAIS IMPORTANTES RIOS BRASILEIROS, O RIO SÃO FRANCISCO, CONSIDERADO “O RIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL”. CONSIDERAÇÕES FINAIS A mineração de ouro a céu aberto em Paracatu começou em 1987. Antes de se completarem duas décadas do início das atividades da ré, já existiam sinais de envenenamento crônico da população por arsênio. Alguns efeitos iniciais do envenenamento crônico por arsênio, como manchas de pele, e efeitos mais graves, como abortamento espontâneo, doenças renais e vários tipos de câncer já são observados em Paracatu com frequência comprovada e consistentemente aumentada. É possível comprovar o nexo causal entre a poluição ambiental causada pela ré e esses efeitos. O mundo inteiro está despertando para os danos persistentes à saúde e ao ambiente causados pela mineração de ouro em grande escala. O número de publicações científicas sobre intoxicação crônica por arsênio cresce exponencialmente, comprovando as suspeitas de que mesmo baixíssimas quantidades do elemento inaladas ou ingeridas cronicamente causam doenças de alto impacto biológico e socioeconômico. Em todo o mundo, mudanças regulatórias estão em curso, em reconhecimento à percepção de que o arsênio pode causar efeitos deletérios em concentrações muito mais baixas do que se pensava há pouco tempo. O standard atual de 10ppb talvez seja o primeiro para o qual a EPA explicitamente comparou os custos e benefícios e usou o valor de US$ 6,1 milhões (seis milhões e cem mil dólares) calculado por vida salva. Em 2010, o Parlamento Europeu aprovou resolução para proibição total do uso de cianeto na mineração. Uma campanha global para banir a mineração em rocha arsenopirita e fazer as mineradoras pagarem pelas perdas e danos que causam foi iniciada em 2010.91 Os compostos de arsênio não têm cheiro, nem gosto, são invisíveis para todos os sentidos dos seres humanos e dos demais organismos. Devido à semelhança com o elemento fósforo, o arsênio pode ser absorvido inadvertidamente pelo organismo pelas mesmas vias de absorção do fósforo. Dessa forma o arsênio entra “disfarçado” no organismo, onde interfere com centenas de sistemas enzimáticos. Essas características contribuem para que o arsênio seja o veneno ambiental mais poderoso e persistente, constante no topo de todas as listas nacionais e internacionais dos venenos e toxinas ambientais. Bastam milionésimos do grama de arsênio para causar as doenças que mais matam no mundo, incluindo doenças vasculares, câncer, diabetes, doenças neurológicas, entre outras. A absorção do arsênio pelo organismo acontece principalmente via ingestão ou inalação, não havendo diferença entre essas vias no que diz respeito ao efeito tóxico92. Parte do arsênio absorvido é metabolizada num processo que gera intermediários metabólicos mais ou menos tóxicos que são excretados, outra parte acumula-se no organismo com a idade, num processo que causa efeitos ao longo prazo para a saúde dos organismos, populações e ecossistemas. Conforme já informamos na inicial e reafirmamos aqui, apenas 0,1% de todo o arsênio a ser liberado pela ré RPM/Kinross nos próximos 30 anos em Paracatu bastaria para matar toda a população atual do nosso planeta: 7 bilhões de pessoas. As atividades minerárias da ré em Paracatu estão criando verdadeiros depósitos de uma poderosa arma química de extermínio em massa, com sérias implicações para a segurança nacional e mundial. Entre esses depósitos citam-se os tanques específicos contendo arsênio altamente oxidado, a barragem de rejeitos sobre o Córrego Santo Antônio e a nova barragem de rejeitos sobre o Córrego do Eustáquio. Esta nova barragem de rejeitos está projetada para ter o dobro do tamanho da primeira barragem e está localizada numa área crítica do Sistema Serra da Anta de abastecimento público da cidade de Paracatu. A ocorrência comprovada de falhamentos geológicos nesta região é uma condição natural que comunica a drenagem da nova barragem com a drenagem do Sistema Serra da Anta, e o enchimento da barragem criará uma pressão hidrostática positiva sobre esses falhamentos, resultando no transporte de 91 http://sosarsenic.blogspot.com/2010/07/stop-invisible-mass-killing-worldwide.html Smith AH, Ercumen A, Yuan Y, Steinmaus CM. 2009. Increased lung cancer risks are similar whether arsenic is ingested or inhaled. Journal of Exposure Science and Environmental Epidemiology 19, 343– 348. 92 poluentes para a água de abastecimento público. Autorizar o depósito de rejeitos minerários nesta barragem equivale a autorizar o envenenamento da água de abastecimento público. Nós mostramos que somente a quantidade de arsênio comprovadamente liberada na poeira da mina já é suficiente para intoxicar cronicamente todos os 100 mil habitantes de Paracatu, e os dados epidemiológicos preliminares comprovam esse efeito. Para evitar a continuação dessas catástrofes, a ré teria que operar com uma eficiência de neutralização e imobilização do arsênio da ordem de 99,9%, um índice claramente muito superior à atual capacidade técnica comprovada pela ré. Apresentamos nesta réplica provas e evidências já publicadas de que esta intoxicação está ocorrendo em Paracatu, sendo necessário urgentemente iniciar os estudos clínico-laboratoriais, epidemiológicos e atuariais para diagnosticar e tratar as pessoas afetadas, conforme requerido “ab initio”. Quando existe suspeita de contaminação ambiental mais extensa, por exemplo, por meio da poeira transportada para regiões povoadas ou contaminação do lençol freático, deve-se conduzir estudos clínicolaboratoriais, epidemiológicos e atuariais visando detectar intoxicação crônica subclínica na população em geral. Uma grande porcentagem da população (30-40%) exposta ao arsênio pode ter níveis elevados de arsênio na urina, cabelo e unhas, mesmo sem mostrar sintomas clínicos aparentes, como as lesões de pele. Por isso é muito importante conduzir testes clínicos da exposição ao arsênio na população sob risco. A detecção precoce de lesão renal nessas populações expostas, por exemplo, é necessária para que medidas preventivas possam ser tomadas no sentido de evitar a progressão da doença para um estágio irreversível. A literatura científica indica que todas as populações residentes em regiões e locais de mineração em rocha arsenopirita analisadas por metodologia científica adequada apresentaram concentrações de arsênio em níveis tóxicos. Essas populações devem ser permanentemente e regularmente monitoradas usando métodos clínico-laboratoriais, epidemiológicos e atuariais sensíveis e adequados, a exposição às fontes de arsênio deve ser rigorosamente evitada, as doenças resultantes das intoxicações agudas e crônicas devem ser diagnosticadas e tratadas, e as áreas contaminadas devem ser descontaminadas e monitoradas numa base regular. Sabe-se que o arsênio liberado da rocha persiste no ambiente por centenas de anos na forma de compostos mobilizáveis e absorvíveis pelos organismos vivos. O arsênio está historicamente caracterizado como veneno clássico, e tem sido utilizado para perpetrar homicídios e genocídios em diversos países, culturas, circunstâncias e épocas. É conhecido internacionalmente como "o rei dos venenos" e "o pó da herança”. O caso de Paracatu tem uma semelhança muito forte com genocídio. Mostramos que os prejuízos socioambientais e socioeconômicos causados pela ré em Paracatu são de 5 a 10 vezes maiores que o VALOR BRUTO de todo o ouro retirado da cidade pela ré. Como nem fração insignificante do VALOR LÍQUIDO fica na cidade na forma de impostos, impõem-se a imediata cessação dos danos. Compreende-se (mas não se pode jurídica e moralmente aceitar) as razões pelas quais a ré teme as análises e estudos requeridos nesta ação, vez que consolidarão as provas e evidências já apresentadas, indicadoras de que os danos causados pela ré ao ambiente e à saúde rivalizam com os lucros por ela auferidos e põem em risco a continuidade do seu enriquecimento ilícito. A obrigação da ré de prestar caução para dar início imediato aos trabalhos de recuperação socioambiental das áreas impactadas na cidade e região, e de indenizar a população e o município pelas perdas e os danos infligidos será objeto de uma outra Ação Civil Pública. A mina a céu aberto da ré gera passivos socioambientais e socioeconômicos gigantescos, e transferir o problema e o risco de envenenamento para as gerações futuras é ferir o princípio da moralidade. A complacência é o problema. A complacência das autoridades cria em muitas mentes uma falsa sensação de segurança. O público deve ser alertado sobre os riscos associados à exposição ao arsênio, e os governos devem banir a extração, processamento e uso de materiais que podem causar doenças sérias. DO REFORÇO DO PEDIDO INICIAL DIANTE DE TODAS AS PROVAS E EVIDÊNCIAS APRESENTADAS NO BOJO DESTA AÇÃO CIVIL PÚBLICA, NÃO NOS RESTA OUTRA SOLUÇÃO SENÃO REFORÇAR O PEDIDO DE LIMINAR, COM A TOMADA DE PROVIDÊNCIAS URGENTES NO SENTIDO DE PARALISAR IMEDIATAMENTE AS ATIVIDADES POLUIDORAS DA RÉ EM PARACATU, E TOMAR AS DEMAIS PROVIDÊNCIAS REQUERIDAS DA INICIAL.