Lindonéia #1 - Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes

Transcrição

Lindonéia #1 - Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes
> Francis Alÿs, Fabiola,
National Portrait Gallery, Londres, 2009
Fonte: www.we-make-money-not-art.com/archives/2009/07/fabiola-by-francis-alys-at.php
As imagens reproduzidas na capa desta edição
e acima são da obra “Fabiola”, de Francis Alÿs,
2009. A instalação consiste em 300 retratos da
mesma mulher, de perfil, com o mesmo manto
vermelho cobrindo sua cabeça. Durante anos,
Francis Alÿs buscou quadros de Santa Fabíola
em mercados de pulgas da Grã Bretanha, Europa continental, México e os Estados Unidos.
Muitos dos seus achados – bordados, tapeçarias,
pinturas à óleo – não foram feitos por artistas
profissionais, mas todos estão baseados na mesma imagem; a pintura original de Jean-Jacques
Henner exibida no Salão de Paris de 1885 e hoje
perdida. Fabíola foi uma nobre matrona romana, que viveu no século IV d.C. Divorciada do
seu primeiro marido, casou-se de novo e após
ficar viúva, doou sua fortuna para criar hospitais
em Roma. É a santa das enfermeiras, das malcasadas e das mulheres maltratadas.
Neste número
Editorial
Hélio Nunes
06
Ariel Ferreira
09
Estética ou cosmética:
A arte abjeta de Nicola Constantino
17
Saltos
Maria Angélica Melendi
Escritos e situações:
manifestos como estratégias de fortalecimento do contexto poético-político
proposto pelas obras da série Situações
(década de 1970), de Artur Barrio
Expediente
28
Júlia Rebouças
Perigo:
“Existe arte em frente de seus olhos”
35
Fabíola Tasca
Revista Lindonéia #1 - maio de 2012
Grupo de Estudos Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes
Escola de Belas Artes-UFMG π Belo Horizonte/MG/Brasil
Contatos: [email protected]
Site: www.estrategiasarte.net.br
Coordenação do Grupo: Prof . Dr . Maria Angélica Melendi
Editor deste número e revisão de textos: Hélio Nunes
Coordenação de imagens: Fabíola Tasca
Projeto gráfico e diagramação: Douglas Pêgo e Alexis Azevedo
a
a
O poder da linguagem mostrando
seu vestígio mesmo depois do silêncio
39
Melissa Rocha
Arte, arquitetura e filosofia no contexto
das práticas artísticas contemporâneas que
invadem o espaço cotidiano.
ParteII: O possível ainda não realizado
Raquel Falcão Costa
45
Estación Darío y Maxi, uma leitura
Clara Albinati
Homens das solas de vento,
cidades dos calcanhares de asfalto
53
60
José Schneedorf
Flusser e a tentativa do lugar de silêncio
em meio à pós-história
69
Águeda Ferrão
A morte da arte da era da arte
Adolfo Cifuentes
Obras visuais
76
Paulo Nazareth
05
Fabíola Tasca
08
João Castilho
15, 16
Adolfo Cifuentes
Melissa Rocha
Inês Linke & Louise Ganz
Lucas Delfino
Tales Bedeschi
Kaza Vazia XI
José Schennendorf
26, 27
34, 38, 44
51, 52
58, 59
67, 68, 75
74
82, 83
Paulo Nazareth, Sem título, 2011, cortesia do artista e Mendes Wood, São Paulo
Editorial:
H É L I O A LVA R E N G A N U N E S
(doutorando EBA-UFMG)
Continua desaparecida, “Lindonéia desaparecida”, e chega ao
primeiro número — ou melhor, segundo número, não fosse a humildade do zero que dá tanto trabalho às contagens.
Agora que a edição se fecha, minha função é abri-la, sumariar
cada texto, talvez exaltar o heroísmo ante as dificuldades, remediar
o atraso (meu em grande parte), requentar o que já é de praxe. Ou,
nada disso, poderia imitar o conhecido parêntesis do Quincas Borba: “Pegai, em Tom Jones, livro IV, cap. I, lede esse título: ‘Contendo
cinco folhas de papel’”. A aporia magistral de Machado, citando os
autores antigos, dos quais muitos capítulos quedavam lidos só pelo
sumário, serviria bem, pois nada mais se lê dessa forma. Abri Rabelais, aí está: “Os divertimentos de Gargantua” e uma lista – como
não a ler, item a item? E se, pegando daí, começo a tentar expulsar
Arcimboldo da memória, evitar mencionar a sensação de um certo
maneirismo, não é culpa minha. E, afinal, humor não faz mal a
editoriais.
É que este número não tem um tema. Deveria ter. Seria um
exercício do grupo de pesquisas Estratégias das Artes numa Era de
Catástrofes, o Grupo, do qual a Lindonéia é algo como um órgão
oficial. Discutíamos Ser Crânio de Didi-Huberman, ensaio sobre a
obra de Giuseppe Penone, e apreciávamos a incrível erudição, de
tal forma concentrada no livreto, a ponto de nos parecer impossível
descascar a cebola, isso é, dissecar as inúmeras camadas de sentido,
6
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descascando
cebolas
texto das práticas artísticas contemporâneas que invadem o espaço
cotidiano” — José Scherdof, abordando o inventário de pichações
que colheu durante sua pesquisa sobre Bansky — Águeda Ferrão,
sobre Flusser, aparelhos e funcionários. Outros analisando exposições e acontecimentos: Fabíola Tasca, a pedidos, sobre os trabalhos
de três membros do Grupo na exposição Sismógrafo (2011) — Melissa Rocha, sobre a exposição VALIE EXPORT (2011), relacionando-a
a Marina Abramovic — Clara Abinati, com uma leitura de sua experiência de engajamento, em 2007, numa série de manifestações
em Buenos Aires, que ocorrem desde 2002. E Adolfo Cifuentes,
tentado pelo capetinha da teoria (como eu), com um bom exemplo
da recorrência daqueles autores em nossas discussões no texto “A
morte da arte na Era da arte”.
O espaço de um editorial impede que eu vá muito além do
sumário; como a lista do Gargantua, confio, impossível não ler um
a um. π
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cada vez mais profundas, que Didi-Huberman ia construindo por
meio de um percurso por “referências longínquas, caminhando por
suas superfícies, justapondo e conectando qualidades afins; como
se reenviasse uma obra de arte de nossos dias até genealogias de
história e tradição das imagens no Ocidente, se valendo também do
movimento inverso, como de uma crítica de arte contemporânea
aplicada à arte e imagens do passado.” Aspas para Ariel Ferreira,
o único a cumprir explicitamente o desafio, em nota preliminar ao
texto “S A L T O S”. Nota que cortei pelas escusas desnecessárias,
visto o ótimo trajeto com Salto no Vazio de Yves Klein: Armstrong,
Gilberto Gil, Dante, um pouco de taoismo, Robert Capa, até um
mergulhador da antiguidade. Cortei, inclusive, porque ninguém
esperará um Didi-Huberman senão por Didi-Huberman; daí que
tais exercícios de estilo visam sempre o achamento de um estilo
próprio, algo que não demanda muita explicação.
Sem notas ou desculpas, talvez nem mais pensando no exercício proposto, pois já é este há muito seu estilo próprio, Maria Angélica Melendi também pratica uma escritura cebola ao problematizar
a arte abjeta de Nicola Constantino: “Estética ou cosmética?”. Mas
agora as camadas são mais sanguinolentas, um desenho conforme
Alberti – ossos, músculos, depois carne e pele –, sem esquecer o
caminho inverso, a dissecação, a vivissecção, o esfolamento, a profanação: O que significam os gritos de Louise Bourgeois ante o Espartilho de tetinhas? Um denso vetor do Juízo Final às catástrofes do
século XX, com uma pitada de Tlacaxipehualiztli e DOPS.
Não houve um tema, mas há um acordo entre quase todos
os textos e que tributo à cumplicidade do Grupo que, mesmo sem
muita publicidade, se reúne, verdadeiramente discute e produz pesquisa sobre arte. Cada autor com sua especificidade, todos descascam cebolas, pois é isso que fazemos nas nossas reuniões, habitadas
por Didi-Huberman, Foster, Rancière, Groys, os mais recentemente
lidos, e um rol já considerável de autores, de onde não arredam
pé Benjamin, Baudelaire, Adorno, Malraux, Warburg, Foucault. Alguns comunicando resultados ou desenvolvimentos de suas pesquisas recentes: Júlia Rebouças sobre Artur Barrio — Rachel Falcão,
com a segunda parte do texto “Arte, arquitetura e filosofia no con-
Fabíola Tasca, Desenho Impossível (Rotas: procedimento comércio), Coleção da artista, 2011
s a l t o s
A riel F erreira
O salto na lua
(mestre EBA-UFMG, doutorando EBA-UFMG)
Em 1967, Gilberto Gil antevia a chegada do homem à lua com
muita lírica e ironia. O que sucedeu três anos depois, transmitido
pela TV, foi representado por um militar norte-americano chamado
Neil Armstrong quando pisava a poeira fina, branca e cândida do
quintal de São Jorge. Talvez se fazendo de poeta, talvez repetindo
uma frase cuja autoria deve pertencer ao órgão de marketing da
NASA, solta essa: “Este é um pequeno passo para um homem, mas
um salto gigante para a humanidade”.
Além de catar um monte de pedras, ele e mais um boneco
idêntico, colega dele, fizeram questão de desfraldar a bandeira de
seu exército, como se imitassem alpinistas quando chegam num
lugar muito alto. A disputa espacial era a Guerra Fria sublimada,
esta marcada pelo acúmulo e inovação de armas de destruição em
massa, numa escala industrial, com ameaças de extinção total da
espécie humana.
Benjamin já dizia em seu tempo que, muito embora o avanço
técnico já corresse à galope, a humanidade como tal ainda apenas
engatinhava. Embora não passe de uma simples marca de bota sobre uma superfície fofa, a pegada de Neil Armstrong é uma das
Ω 1. GIL, Gilberto. Louvação. Rio de Janeiro: Universal, 1967. Todas a citações (letra
e comentários) de Gilberto Gil referem-se à sua canção Lunik 9 e foram retiradas
de seu site, disponível em <http://www.gilbertogil.com.br>.
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Poetas, seresteiros, namorados, correi
É chegada a hora de escrever e cantar
Talvez as derradeiras noites de luar
Gilberto Gil, Lunik 9.1
O salto no vazio
< Pag. Anterior >
Neil Armstrong,
Pegada de homem
na lua, 1969.
Lunik 9, nome de uma astronave, nome da canção de Gilberto
Gil, “um temor” zombeteiro “exagerado da tecnologia e de que se
inaugurava a possibilidade de extinção do próprio luar – da luz interior da lua”2. Os artistas, ao menos os românticos, deviam se apressar. Sete anos antes, Yves Klein já tinha se aprontado com uma publicação que continha uma foto da evidência de sua capacidade de
realizar uma viagem lunar sem auxílio “de truques ou ilusões, nem
com um avião ou um paraquedas ou um foguete”. “Sem truques
ou ilusões” é uma ironia debochada se sabemos por algumas fontes
> Buzz Aldrin, Neil
Armstrong, 1969.
imagens mais repetidas da chegada do homem à lua, e quase sempre em companhia de sua frase. A fotografia e a frase se tornaram símbolos de um progresso científico que diz respeito a toda a
humanidade, no geral. Todavia, o palco desse evento midiático foi
encenado onde a humanidade não poderia estar mais afastada: na
lua, onde não existe oxigênio nem água, onde a temperatura varia
de 100 a -40 oC. Uma paisagem desértica, embora fosse dia, o céu
não era azul, era um céu de uma noite nunca vista. Nada, ninguém,
muda e vazia.
Uma pegada pode ser o signo mais econômico da existência
humana. Dante na Divina Comédia se surpreendeu pelos mortos
saberem ser ele o único vivente à margem do Hades. Virgílio o
explica que é porque seu corpo tem um peso que grava pisadas
na praia, diferente dele ou dos outros mortos cujos corpos só possuíam imagens, feitos de espectros, não deixavam traços na areia.
A vida é propriedade de um corpo que pesa, que afunda na terra,
erguido que pode cair, que inscreve sua presença por registros de
contiguidade física, sabendo ou deixando de saber.
Ω 2. GIL, Gilberto. Louvação. Rio de Janeiro: Universal, 1967. Todas a citações (letra
e comentários) de Gilberto Gil referem-se à sua canção Lunik 9 e foram retiradas
de seu site, disponível em <http://www.gilbertogil.com.br>.
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> Yves Klein (fotografia de Harry
Shunk), O Salto no
Vazio, 1960.
que o Salto no Vazio foi criado
por fotomontagem a partir de
fotografias de Harry Shunk.
A fotografia de seu salto
foi impressa como uma espécie de manifesto onde declarava as expedições lunares da
NASA como arrogantes e estúpidas. Yves Klein, o artista do
espaço, “se projeta ele mesmo
ao vazio!”. Chegou lá por seus
“próprios meios, por força individual e independente, em uma palavra, ele deve ser capaz de
levitação”.
Infelizmente o coração desse homem parou repentinamente
em 1962; como será que iria se comportar no Maio francês?: exigiria o impossível. Os jornalistas têm um clichê para esse tipo de carreira: meteórica. Ali se faz de meteoro, de estrela cadente. Ele salta
como quem mergulha no mar, no ar, ou além da linha do horizonte
que divide os dois azuis, num suprematismo, um nirvana.
Gostaria de entrar um pouco no Salto de Klein. Vejo um fio
de pedra irregular que divisa o passeio de uma rua com o asfalto
remendado, casas europeias de tijolinhos e fachadas gradeadas, árvores, um cipreste gigante no quintal, e as costas de um ciclista a
meia distância. Inesperadamente um homem irrompe do alto de
uma construção de tijolos, ele mira corajosamente algum ponto
para lá do canto superior direito do quadro, algum ponto além do
céu claro acinzentado – coitado, só pode se espatifar.
O ciclista não nos olha, tampouco o homem impulsionado para
o vazio (toda a cena é fotográfica e, narrativamente, até inocente).
O ciclista seria um elemento meramente redundante se estivesse
ali para nos “contar” que o incidente ocorreu sem a expectativa de
uma audiência (e o fotógrafo? e todos aqueles do lado de cá da rua?
e nós?). Não creio que seja apenas isso: o ciclista nos conduz a uma
natureza específica de um tempo: não é o tempo do carro, do avião
ou do foguete, nem chega a ser o do cavalo de corrida; é um tempo,
poderíamos dizer, mais humano. O corpo do homem ali provém e
controla a velocidade (o espaço /o tempo), mediado tecnicamente
pelo objeto de metal. A escala e as distâncias de onde pula o artista
são também humanizadas, quero dizer, não pensamos que o artista
caindo daquela altura vá morrer provavelmente, embora haverá de
se machucar bastante. Se fosse uma altura de uns 30 metros seria
trágico, de poucos metros é cômico.
A Ironia, um tema romântico da maior recorrência, foi ali
construída milimetricamente. No instante em que o saltador se
encontra, a franja de seu cabelo se levanta como de um corpo que
principia a cair, mas o saltador não parece saber disso, nem chega
a pensar, convicto, que pode sair por aí voando. Como Yoko Ono,
outra artista fascinada pelo vazio, descreve em sua Instrução de voar
(1963) – “Voe” –, ele simplesmente pula, sem mais, irrompe daquele cenário tão cotidiano europeu como uma bicicleta ou um terno
preto podem ser.
Nos jornais, manchetes, sensação
Reportagens, fotos, conclusão:
A lua foi alcançada afinal
Gilberto Gil, Lunik 9.
Yves Klein se fez fotografar com o jornal de Domingo, 27 de
novembro de 1960, com a manchete de sua fotomontagem e o manifesto Teatro do Vazio lhe tampando o rosto; deixa à mostra a ponta
da Torre Eiffel, ao fundo. A ponta da Torre Eiffel, que foi construída
originalmente como antena de radiodifusão para a Exposição Universal do fin de siècle XIX, deveria ser desfeita, mas “caiu no gosto”.
Giulio Carlo Argan não nos deixa esquecer que a Torre símbolo de Paris é também um símbolo da vitória dos engenheiros (mais
cientistas) sobre os arquitetos (mais artistas), que revolucionaram
a construção urbana pelo desenvolvimento da técnica racional e
estrutural de montagem de pequenas peças de ferro. Na foto do
artista, seus cotovelos repetem a forma da base triangular da Torre
semi ausente. A figura de seu salto, impressa no jornal, alude a um
salto da própria Torre, como se o artista pulasse do arco lateral do
edifício. Assim, o salto quase anônimo em uma rua pacata e quase
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> Yves Klein, Yves
Klein lê o jornal de
um dia na frente
da Torre Eiffel,
1960.
Um salto no sonho
PAH! (estrondo e som de derrapagem de pneus). Um outro
homem acaba de sofrer um acidente, lançado de uma moto que
se chocou com um automóvel. Está a morrer sentado no meio fio.
Em Asas do Desejo de Wim Wenders, o anjo corre para socorrer o
moribundo que se lamenta “por ainda ter tanto o que fazer”, con> Wim Wenders,
Asas do Desejo (Der Himmel
ünder Berlin).
1987. Alemanha,
130min.
Sonha-se antes de contemplar.
Antes de ser um espetáculo consciente,
toda paisagem é uma experiência onírica.
Gaston Bachelard3
> Desconhecido,
The Scholar Immortal, século XVI.
No século XVI, um artista chinês concebeu a história do encontro de um aprendiz com o Absoluto, ilustrando um poema taoista. A narrativa se dá por uma linda paisagem, que se desdobra
com uma montanha no primeiro plano em diagonal. À esquerda
há um vale brumoso e cumes esmaecidos de vários montes. Nesse
ponto nos surpreende a presença humana de um monge solto no
vazio, mais próximo que as montanhas lá atrás, atravessando as alturas; não está andando, levita. E não é tudo: atrás da pedra encimada por uma árvore na montanha do primeiro plano existe uma casa.
A residência está com a janela aberta e lá dentro deixa ver o mesmo
monge a dormir: ele sonha sua imortalidade. Ao mesmo tempo em
que sua alma é livre como ser espiritual, leve, viajando pela alturas
da paisagem, ele está protegido, confortável como alguém que dorme em sua cabana. A imortalidade, é, assim, uma espécie de morte
sem morrer, um sonho bom.
Ω 3. BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p.18.
fuso que está nesse momento difícil. O anjo abaixa e acolhe a cabeça do homem com suas mãos, logo o acalma e o ajuda a recitar
o começo de uma lista de coisas vistas ou que lhe tenha acontecido
em vida: “... O sol da manhã. Os olhos das crianças... As primeiras gotas de chuva. O salto. A Páscoa. As nervuras das plantas. O
vento no capim. Os seixos no fundo do rio... Sonhar com uma casa
na casa. O ente querido dormindo no quarto ao lado. O domingo
tranquilo. O horizonte...” A ideia de que “revemos toda nossa vida
no último suspiro” é estendida a um elenco poeticamente refinado
de imagens. O consolo da Morte não é a vida além,“dessa para uma
melhor”, encontra-se na lembrança da certeza da beleza do que foi
vivido.
Habitamos o mundo e sabemos dele por nossos sentidos. Ao
dormir, vamos povoar o mundo dos sonhos, um mundo dentro de
nós e um tanto “fora do mundo”. O sonho de “uma casa na casa”
(um punctum para mim naquela lista), ou seja, um sonho cujo espaço seria contíguo ao espaço ocupado pelo sonhador, aproxima os
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vazia ganharia a monumentalidade fornecida pelo meios de comunicação em massa, divulgação em larga escala, e pelas tecnologias
de montagem.
O soldado tombando
Acima, chamei atenção para o instante do Salto no Vazio, de
sua composição obtusa, se representa alguém que decola ou que
está a cair. Na fresta desta ambiguidade passaria toda a ironia romântica de Yves Klein. O Soldado Tombando, de Robert Capa, também condensa um instante de um homem no ar, mas seu vazio
> Robert Capa,
Soldado tombando
(Guerra Civil Espanhola), 1936.
não promete a felicidade; Klein se atira para a frente; o soldado é
disparado para trás, e vai deitar sobre sua sombra.
Tombar: tumb- (para alguns, prov. de orig. germ.), imitativo do som da pancada
de um objeto que cai: deitar por terra; fazer cair; derrubar. cair ao desprender-se
de . cair rolando; despencar [...] descer, baixar, declinar [...] deslocar-se ou deslizar em movimento contínuo sobre (uma superfície, e sem perder contato com
essa) . perder a vida; morrer . soar com força; ressoar, retumbar4.
Ω 4. DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. CD-Room, 2001.
Tomber, em francês, traz
conotação mais clara para a foto
com Périr, être tué. Foi nessa língua que a fotografia foi legendada primeiramente na revista
VU (mas como Mort d’un milicien) e pouco depois em inglês
na revista norte-americana Life
(1937). Com ela, Robert Capa
passa a ser conhecido como fotógrafo de guerra. A sua mais
famosa foto, um ícone contra o
fascismo, havia de ser também
a mais controversa: até bem pouco tempo se discutia se havia sido
encenada.
Nela vemos um miliciano legalista que descia a borda de uma
colina ser alvejado por um francoatirador, a foto o mostra cair. O instante disparado pelo fotógrafo, pungente, é o primeiro instante morto daquele homem. De um corpo que acaba de morrer dizemos que
ainda está quente, aquele soldado ainda está erguido sobre o solo!,
mas sem vida, cede. Falling Soldier, nosso português conta com o gerúndio, tombando, é um processo, uma duração temporal, embora
o soldado já esteja morto, seu corpo em retardo ainda não encontrou
essa posição, o he passa ao it. Deslocar-se ou deslizar em movimento
contínuo sobre (uma superfície, e sem perder contato com essa). O
corpo, ligado à vida ou ligado à morte, a foto é representação daquela
passagem, do ir-se, o corpo é tudo quanto podemos ver do soldado anônimo. O que ali aconteceu num lapso curtíssimo de tempo
não faz diferença para seu rifle, a cartucheira, a camisa clara, a calça
(bege?), o céu sobre a colina com a planície atrás, ou seja, tudo que
a câmera deixa ver e que se desloca em movimento contínuo com a
superfície sem perder o contato com essa. Mas, para o homem que
habitava aquele corpo, sua vida (algo invisível, o que há de haver perdido o contato) fez a diferença que existe entre o Tudo e o Nada.
> Robert Capa,
Soldado tombando.
Página de LIFE
Magazine, Julho de
1937.
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dois mundos até um ponto onde o Monge Aprendiz encontrou sua
passagem?
A morte é uma vitória sobre si,
que como toda superação,
procura uma nova e mais leve existência.
Novalis
> Anônimo, A
tumba do mergulhador, 470 a. C..
Fonte: R. Ross Holloway. The Tomb
of the Diver, in
American Journal
of Archaeology,
Vol. 110, n. 3, July
2006 (pp. 381)
> Anônimo, A
tumba do mergulhador, 470 a. C..
Fonte: R. Ross Holloway. The Tomb
of the Diver, in
American Journal
of Archaeology,
Vol. 110, n. 3, July
2006 (pp. 367)
Quando a cápsula lunar
retorna ao planeta inicia-se a
última e uma das mais delicadas manobras da missão.
A ponta da nave deve se posicionar em um justo ângulo
quando adentra a atmosfera
terrestre com o risco de se desintegrar ao atrito com o ar,
como os meteoritos que se queimam e se fazem de estrelas cadentes. Os cientistas não encontram maneira mais exemplar de explicar o fato como quando se mergulha na água. Se o mergulho não
é bem sucedido, a passagem do corpo de um meio menos denso a
outro (do ar para a água da piscina como do vácuo ao ar do planeta)
pode resultar em um tapa, num choque violento.
Quase um ano antes da viagem lunar, próximo à cidade de
Paestum, no sul da Itália, uma tumba grega era encontrada. Um
achado precioso para a arqueologia, “dentre as centenas de tumbas
gregas conhecidas desse tempo (aprox. 700-400 a.C.), essa é a única delas decorada com figuras humanas”5. O túmulo foi escavado
diretamente na rocha, como um paralelepípedo plantado na pedra
dura, uma cápsula. A forma abrigava o esqueleto de um jovem servido de frascos com líquidos de sua predileção: bebidas e óleos para
o uso em práticas de esporte no ginásio. As quatro paredes interiores da tumba foram ladeadas por placas de calcário, cobertas com
lindas pinturas em afresco que representam um festim: grupos de
homens em posições homoeróticas conversando entre si, tocando
instrumentos, cantando e bebendo de finas taças desfrutam de um
agradável simpósio. O último afresco que serve de tampa do monumento traz a figura que empresta o nome à Tomba del Tuffatore (a
Tumba do Mergulhador).
O homem foi representado ali de perfil, nu “como veio à Terra”. Em posição de mergulhar, sua forma é esquemática, naturalista, simples e leve. Sua face não expressa medo nem dúvida, a calma
e a beleza do quadro são comoventes. Ele mergulha nas águas do
Oceano, na concepção grega, um rio muito grande que rodearia a
Terra. Porque dúvida ou medo, se o idílio o espera? O jovem mergulhador constrói a imagem de sua morte com a imagem de um
estado de êxtase. π
Ω 5. HOLLOWAY, R. Ross. The Tomb of the Diver. American Journal of Archaeology,
v. 110, n. 3, jul. 2006. p. 381.
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A tumba do mergulhador
João Castilho, Hotel Tropical, Fotoinstalação, 18 Fotografias,
25 cm x 37 cm | cada uma, Inkjet Print, 2011
João Castilho, Hotel Tropical, Fotoinstalação, 18 Fotografias,
25 cm x 37 cm | cada uma, Inkjet Print, 2011
Estética ou cosmética?
A a r t e a b j e ta de N i c o l a C o n s ta n t i n o
(UFMG, CNPq, FAPEMIG)
A beleza do corpo reside somente na pele. Se os homens visem o que há debaixo
da pele [...] a mera vista das mulheres lhes resultaria nauseabunda; essa graça
feminina não é mais que saburra, sangue, humor, fel.
Odon de Cluny
O sujeito não existe, está fora de si, no êxtase ou na morte.
Mario Perniola
Além da pele
Na Capella Sistina, no Juízo Final, de Michelangelo, 1541, São
Bartolomeu, à direita de Cristo, é um homem maduro e forte olha
para o Juiz supremo empunhando uma faca em sua mão direita,
enquanto segura sua pele frouxa na esquerda. Romain Rolland
observa o terror que impregna a cena onde os mártires e santos
exibem com orgulho seus tormentos para suscitar a clemência do
juiz e reflete: “São Bartolomeu levanta sua pele ensanguentada e
empunha a faca nua com tal ferocidade, que parece menos a vítima
que o algoz”1.
Na Accademia Nazionale de San Luca, em Roma, podemos
observar a távola lateral de um retábulo onde está figurado São Bartolomeu. A obra completa representava “Cristo nu com a cruz e
em volta dele muitos Santos entre os quais um São Bartolomeu
esfolado que parece uma verdadeira anatomia e um homem verdaΩ 1. ROLLAND, Romain. Michelangelo. Salt Lake City: Project Gutemberg, 2010.
Disponível em <http://www.gutenberg.org/ebooks/32762>. Acesso em: jul. 2010.
p.52.
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L in d on é ia # 1 | Fe ve r e i r o d e 2 0 1 2
M aria A ngéli c a M elen d i
deiramente esfolado”2. A pintura que está na Accademia, um óleo
sobre madeira de 1555, exibe a São Bartolomeu semi-ajoelhado sobre a própria pele que se estende aos seus pés como um veludo
espesso. O rosto de perfil – que olha para um Cristo que já não
> Michelangelo.
São Bartolomeu,
Capela Sistina, 1541
está –, os dedos de sua mão estendida e parte do pé que se apoia no
chão de mármore, ainda estão revestidos pelo véu pálido de uma
pele sedosa. O corpo do santo, em atitude de adoração se constitui
como um belo exercício de anatomia. A carne – músculos e tendões
– articula-se em massas tão compactas e harmônicas que o agudo
gume do alfanje, que repousa no piso, não conseguiu extrair uma
só gota de sangue.
Nos poucos anos que separam uma imagem da outra, aparece
delineada uma erótica do despir que se exacerbaria na Europa da
contrarreforma. A necessidade do conhecimento do corpo humano
já está claramente proposta por Leon Battista Alberti, em Della Pittura, 1435, onde recomenda começar a desenhar a figura humana
desde os ossos e os músculos, para depois vesti-los com a carne e a
pele.
Se as primeiras dissecções do corpo humano, foram feitas secretamente – Ascanio Conivi relata que Messer Realdo Colombo,
um anatomista, envia a Michelangelo, o corpo de um jovem moro,
no qual o artista mostrou-lhe “muitas coisas raras e recônditas, quiçá nunca ates entendidas”4 –, mais tarde se constituíram como atos
rituais, performances realizadas para audiências particulares cuidadosamente controladas pela lei e a religião. No frontispício de Fascículo de Medicina, 1493, de Joanes Ketham, Anatomy Lesson, vemos
o professor ditando ex cathedra enquanto seus ajudantes realizam a
Ω 2. VASARI, Giorgio. Delle vite de più eccellenti pittori, scultori et architetti, 3.
v. 2. Manolessi: Bologna, 1681. p. 176: “E non partì di Pisa il Bronzino, che gli fu
allogata per mezzo del Martini da Raffaello del Setaiuolo, Operaio del Duomo, la
tavola d’una delle cappelle del detto Duomo; nella quale fece Cristo ignudo con la
croce et intorno a lui molti Santi, fra i quali è un San Bartolomeo scorticato, che pare
una vera notomia et un uomo scorticato da dovero, così è naturale et imitato da una
notomia con diligenza; la quale tavola, che è bella in tutte le parti, fu posta da una
capella, come ho detto, donde ne levarono un’altra di mano di Benedetto da Pescia,
discepolo di Giulio Romano.”
Ω 3. ALBERTI, León Battista. On Painting. Translated with Introduction and notes of
John R. Spencer. Avon: The Bath Press, 1966. p. 73.
Ω 4. CONVIVI apud KEMP, Martin; WALLACE, Marina. Spectacular Bodies. London: University of California Press, 2000. p. 72.
18
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Mas, como para vestir uma pessoa, primeiro a desenhamos nua e depois a envolvemos de pano, ao pintar um nu, primeiro colocamos os ossos e os músculos
que depois cobrimos com as carnes de tal modo que não é difícil perceber onde se
encontra cada músculo3.
dissecção de um corpo jacente5.
Desde começo do século XVI
encontramos desenhos e gravuras em livros de anatomia,
como De humani corporis fabrica, 1543, de Andreas Vesalius,
onde a fascinação pelos interiora confunde-se e se sobrepõe ao
desejo de conhecimento, sem
escapar à categoria estética do
horrendo ou do asqueroso.
Os desenhos de Gérard de
Lairesse, que ilustram a Anatomia humanis corporis, de Gottfried Bidloo, Amsterdã, 1685,
exploram e interpretam a superfície de texturas e padrões
dos órgãos, montados sobre apoios visíveis como blocos de madeira ou livros e sustentados por instrumentos e alfinetes realistas.
Quando uma mosca é desenhada caminhando sobre um abdome
aberto há um apelo ao trompe l´oeil, que conduz ao realístico da
cena. Nas imagens dessa obra, os traços do desenhista se detêm
nas belas superfícies dos músculos e dos órgãos internos. A beleza
do corpo já não reside apenas na pele, porém, a pele persiste como
veste de suaves dobras, que desnuda os músculos e tendões do antebraço e da mão ou que se acumula em volta da cintura para exibir
os músculos das costas.
Mario Perniola afirma que, no barroco, se estabelece um trânsito entre a veste e o corpo que se manifesta não somente no uso
erótico do panejamento – a Santa Teresa de Bernini –, mas também, na ilustração do desenho anatômico que trata o corpo como
despojo vivo6. Os corpos seriam “despojos e não estátuas, vestes e
não formas substanciais”7; Gérard de Lairesse, o Poussin holandês,
Nas ilustrações, o corpo aparece como um paramento excelso,
tão externo e digno, como uma veste litúrgica. Dobrada para fora
dos músculos, dos tendões e dos órgãos, a pele retirada não é um
trapo ensanguentado, mas um
tecido suntuoso – brocado ou
veludo –, da mesma natureza
da fita que sujeita os cabelos, ou
dos próprios cabelos. O trânsito entre a vida e a morte, desliza sutilmente nesse devir que
mostra o braço, ainda revestido
de sua pele, apoiado no assento,
e ao lado suave do rosto, o cabelo penteado.9
Porque é a pele que conserva a integridade visual do corpo
humano, que lhe consigna sua
identidade. Nos gravados de
Theodore de Bry10, os canibais
tupinambás cortam, fervem o
assam corpos, que, ainda que esquartejados, conservam a pele e,
por isso, as formas humanas. O mesmo acontece na pintura de Albert Eckhout, onde a Mulher Tapuia,1641, carrega um pé decepado
na cesta e leva na sua mão, uma mão humana.
Imagens de esfolamento como martírio ou punição são repetidas em pinturas que abordam temas míticos como A justiça de
Cambyses, de Gerard David, 1499 e O Castigo de Marsias de Tiziano,
1576, mas também aparecem nas varias lições de anatomia dos séculos XVII e XVIII. A dissecação do corpo humano cumpria, entre
Ω 5. KETHAM apud idem. p. 23
Ω 6. PERNIOLA, Mario. Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo. São Paulo:
Studio Nobel, 2000. p. 100.
Ω 7. Idem. p. 112.
Ω 8. PERNIOLA, Mario. Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo. São Paulo:
Studio Nobel, 2000. p. 112.
Ω 9. Idem. p. 117.
Ω 10. DE BRY, Thedore, Americæ Tertia Pars. Frankfurt, 1592. (Grands Voyages, 3).
[...] passa a lâmina da faca, o fio da navalha sobre as belas túnicas de pele de
Poussin abrindo-lhes e desdobrando-lhes as bordas, pondo à vista as belas superfícies dos músculos e dos órgãos internos, exaltando ao máximo seu encanto
erótico.8
> Gérard Lairesse
Gottfried Bidloo,
Anatomia Humanis
Corporis, 1685
19
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> Agnolo Bronzino, São Bartolomeu, Academia
Nazionale de San
Luca, 1555
Ω 11. LIBROS MALDITOS. Libros demasiado humanos. 13 fev. 2009. Disponível
em: <http://www.librosmalditos.com/files/libros_piel_humana.php>. Acesso em:
mar. 2010.
> Xipe Totec, Nosso
Senhor, o esfolado.
Imagem do Códice
Borbónico, códice
nahua precolombino, século XVI.
The Werner-Forman Archive
pele do assassino executado e livros de anatomia, com a de cadáveres dissecados12.
Em Paris, Ítalo Calvino visita o Grande Museu Anatômico-etnológico do Dr. P. Spitzner, fundado em 1856. O museu dos
monstros de cera, como o autor o denomina, exibe, entre cópias de
cera de cabeças guilhotinadas e espécimes anatômicos, uma pele
humana completa e curtida, de um homem de 35 anos. Essa peça
única, “um tapete humano, plano como uma flor prensada entre
as páginas de um livro”13, lhe pareceu a imagem mais fraternal e
tranquilizadora daquela coleção de horrores. O escritor encontra
uma espécie de consolo “naquele homem todo extensão, espalhado
Ω 12. LIBROS MALDITOS. Libros demasiado humanos. 13 fev. 2009. Disponível
em: <http://www.librosmalditos.com/files/libros_piel_humana.php>. Acesso em:
mar. 2010.
Ω 13. CALVINO, Ítalo. Colección de arena. Madrid: Alianza, 1987. p. 34.
20
L in d on é ia # 1 | Fe ve r e i r o d e 2 0 1 2
> Xipe Totec, Nosso
Senhor, o esfolado.
Escultura nahua.
s/d Museum der
Kulturen, Basel.
The Werner-Forman Archive
outras, a função de expor aos iniciados a “divina simetria” do corpo
humano. Esculturas de esfolados – écorchés –começaram a ser produzidas para serem utilizadas em escolas de medicina e academias
de arte. Num primeiro momento foram modeladas em tamanho
natural, em cera ou fundidas em bronze; anos depois, versões menores, fabricadas em marfim, bronze ou madeira, se transformaram em itens colecionáveis.
Fora da tradição ocidental, Xipe Totec (Nosso Senhor, o esfolado), divindade das culturas totonacas, é sempre representado
vestindo a pele de um dos sacrificados ante seu altar. Durante o
segundo mês ritual do calendário asteca, Tlacaxipehualiztli (Esfoladeiro de Homens), os sacerdotes esfolavam os corpos das vítimas e
vestiam suas peles pintadas de
amarelo e chamadas teocuitlaquemitl (vestiduras douradas),
que, posteriormente, eram alojadas numa câmara interna do
templo. E, se na Segunda Guerra Mundial, os nazistas foram
acusados de usar a pele das vitimas da Shoah para fazer capas
de livros e cúpulas de abajures,
não devemos nos esquecer que,
durante o século XVIII, a paixão
pelo estranho autorizava a coser
suaves sapatilhas de pele, um
cinto no qual se distingue claramente um mamilo, sapatos
de salto alto confeccionados com a pele de um criminoso executado ou a encadernar com uma pele humana delicadamente tingida
de verde pálido uma copia da Constituição Francesa de 1793, que
ainda se conserva no Museu Carnavalet, em Paris11. Essa prática,
conhecida como “encadernação antropodérmica”, foi utilizada até
o XIX, quando escritos sobre assassinatos eram encapados com a
Visões do Sagrado
O que sempre se espera da arte, nos diz Bataille, é a fulguração que consome. A insistência da arte em representar a morte, o
repugnante, o asqueroso, o abjeto é sempre uma aposta no prazer;
um prazer forte, doloroso, porém prazer ao fim15. Livre da servidão da religião, do dever da transmissão do dogma, a arte manteve
sempre uma submissão ao horror, porque, aberta a todo o possível,
a arte continua sendo o que sempre foi: um dos locais privilegiados
para a expressão dos desejos e dos medos dos homens.
Nas últimas décadas do século XX, as formas icônicas e os
rituais da religião foram deslocados para outros contextos onde
apareceram visões de um sagrado subjacente, um sagrado em nascimento, ainda não codificado pela doutrina.
Na Argentina, durante os anos da ditadura, a identificação entre os mártires cristãos e os caídos na luta contra o governo militar
colaborava para a manutenção de uma identidade nacional calcada
sobre a construção de relatos gloriosos. Esse movimento parece se
prolongar até o presente em manifestações artísticas e não artísticas que clamam por punição e justiça. Paralelamente, nas últimas décadas, alguns artistas abandonaram o discurso religioso e se
voltaram para uma investigação sobre o corpo enfermo ou dolente
que o transcende, numa espiritualização não confessional; outros
ostentam um cinismo profanador, no qual a exibição da abjeção se
confunde com os encantamentos e as demandas da sociedade de
consumo neoliberal.
No primeiro caso, o retorno a certas manualidades sutis que
vemos florescer nos anos 90, antes de ser um regresso ao construtivismo, como quer Carlos Basualdo16, ou uma arte light, como proΩ 14. CALVINO, Ítalo. Colección de arena. Madrid: Alianza, 1987. p. 35.
Ω 15. BATAILLE, 2008. p. 117. [???REF???]
Ω 16. BASUALDO, Carlos. Ejercicio de Lejanía. In: The Rational Twist. New York:
Apexart, 1996. p. 6-9. Catálogo de exposição.
voca Jorge López Anaya17, denunciaria a renovação do impulso romântico. Esses artistas perpetuariam a tradição dos séculos XVIII
e XIX: imersos na vida cotidiana, mas fascinados pela ilusão, pelo
sonho ou pelos pesadelos; afinados com a cultura contemporânea,
mas profundamente influenciados pela arte que se produz fora do
circuito, exploraram os vários tópicos do romantismo histórico: a
ênfase na expressão individual da emoção e a imaginação, a divergência profunda com as formas clássicas e a atitude de rebeldia
contra as regras e as convenções sociais.
Em torno dos anos 80 começou a se manifestar no mundo
ocidental um retorno à religiosidade. A emergência de um sagrado,
sem nome e sem lugar, precede esse momento e antecipa as práticas atuais. Incluir no espaço religioso o que está fora dele, para
consagrá-lo; separar o religioso do profano, para profaná-lo, para
devolvê-lo à sua própria abjeção, a sua própria natureza mortal, são
estratégias que a arte do final do século XX utilizou, não somente
para fazer emergir os traços do sagrado, mas também para destacar as marcas do sacrifício e do sacrilégio que ainda penduram no
nosso corpo.
Em 1997, na I Bienal do Mercosul, o artista chileno Arturo
Duclós, expôs A Lição de Anatomia, 1983: uma coleção de ossos
humanos exibida desordenadamente numa vitrine. A obra, descrita como “Pintura sobre 119 ossos humanos/ Base com caixa de
vidro/ 180 x 150 x 100 cm”, suscitou, durante a Bienal, o repúdio
de Leon Ferrari, que se manifestou publicamente contra a ossada
ornamentada com tintas coloridas. Em 2006, Ferrari se negou a
expor seus trabalhos na Estação Pinacoteca, em São Paulo, porque
o edifício – que abriga o Memorial da Resistência – tinha sido sede
do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), responsável
por detenções clandestinas, torturas e assassinatos.
A apresentação ou a representação de corpos torturados ou
despedaçados parece ocupar um lugar de interdição para alguns
artistas argentinos. Ferrari contorna a questão através da implementação de técnicas de montagem e apropriação: em sua obra
Ω 17. ANAYA, Jorge López. El Absurdo y la Ficción en una Notable Muestra. La Nación, Buenos Aires, 1 ago. 1992.
21
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na sua inteira superfície, com exclusão de toda espessura e de qualquer intenção secreta”14.
não só com o refinamento da sublimação, mas com o deslocamento
do desejo: transgredir, com a esperança secreta de ser castigado ou
se afundar na imundície, convencidos de que o mais asqueroso é o
mais sagrado. Mesmo existindo uma longa tradição de arte abjeta
no ocidente, nesses anos, obras como as de Andrés Serrano ou Joel-Peter Witkin alcançam uma pietas estranha à contemporaneidade,
já que, ao nos fazer testemunhas do irrepresentável, conseguem
despertar o horror sagrado e, ao provocar a perda simbólica do eu,
nos proporcionam meios de reinventar ou de reencontrar nosso eu.
> Arturo Duclós,
A Lição de Anatomia, 1983
Aquém da pele
Ω 18. Entrevista concedida por Edgardo-Antonio Vigo à autora, em junho de 1997.
Louise Bourgeois,
Arco da Histeria
Sigo considerando esse momento um desses instantes mágicos do individuo frente à obra de arte. Por quê? Porque não se pode explicar, porque me deixou sem
palavras, porque tudo era de uma beleza dura e seca; formal e materialmente
estarrecedora e ao mesmo tempo econômica. Nunca vi um corpo tão torturado
e de maneira tão bela. 19
O texto de Nicola Constantino continua com o relato de uma
visita que, tempos depois, faz ao estúdio de Louise Bourgeois em
Nova Iorque e da reação da velha senhora ante um dos seus trabalhos: “um espartilho de tetinhas”:
Ω 19. Constantino, Nicola. Épater la Bourgeois. Página 12 / Radar, Buenos Aires, 9 nov. 2008.
22
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os suplícios dos condenados aos infernos são ressignificados para
aludir ao passado recente; o distanciamento temporal da representação canônica, porém, o salva da ameaça da abjeção. Para Edgardo-Antonio Vigo, a tortura e a morte são irrepresentáveis. A abjeção
reproduzida na obra exerceria uma violência sobre os espectadores.
“Eu não posso ser testemunha da tortura. Se eu odeio tanto a tortura, como posso aceitar ser testemunha da tortura?”18 Para o artista,
o ato da enunciação verbal ou escrita deve bastar. Somente a subversão das palavras permitiria um afastamento que propiciasse o
repúdio e a resistência.
A representação da abjeção na arte, porém, começa a reaparecer nos anos de 1990, quando a arte abjeta parece não poder evitar
o uso instrumental, e portanto moralista, do abjeto. O corpo desperdiçado, o corpo resíduo que essa arte nos apresenta, seja através da
mimese, do simulacro ou do índice, provoca repulsa a partir da exposição dos órgãos abertos, de suas secreções e excreções, da marca
da abjeção que denuncia a finitude irremediável desse corpo.
O ideal de se fixar na perversão e de se prender ao abjeto é
adotado por artistas e escritores contemporâneos, inconformados,
“Nunca vi um corpo tão torturado e de maneira tão bela”. A
frase de Nicola Constantino, no
artigo Épater la Bourgeois, publicado em 9 de novembro de 2008,
no jornal Radar, na seção “Fã: um
artista escolhe sua obra favorita”,
doeu como uma bofetada. Ao
visitar a 50ª Bienal de Veneza,
Constantino tinha-se deparado
com a escultura Arco da histeria,
de Louise Bourgeois, e lembra:
Chegou minha vez. Então mostrei uma obra minha que era um espartilho de tetinhas e, sem pensar, Louise Bourgeois começou a gritar. Tapava-se a cara e gritava e eu queria lhe explicar de que se tratava: dizia-lhe que era de silicone e ela
gritava mais e mais, e o velho advogado furioso me gritava que tirasse isso de lá.20
Constantino intentou, em vão, mitigar os gritos de horror de
Bourgeois com a explicação de que o espartilho era de silicone. Esse
fato, aparentemente irrelevante ou apenas curioso, desde o ponto
de vista de Constantino, denuncia colisão de duas temporalidades,
de dois mundos: o tempo longo de Louise Bourgeois, que atravessou todas as catástrofes do século XX e algumas do XXI, batendo
contra este novo tempo, breve, vazio, dessacralizado o suficiente
para não contar com a existência de limites, nem com as possibilidades simbólicas da transgressão.
> Nicola Constantino, Peleteria de Pele
Humana, 1998
O Espartilho de tetinhas (Constantino parece cultivar o hábito
infantil de se referir com diminutivos às partes erógenas do corpo;
em outra entrevista, fala de um “cuzinho”) pertence a serie Peleteria de Pele Humana, exibida pela primeira vez em 1997, na Feria
Arco, e que participou da XXIV Bienal de São Paulo, organizada
sob o lema da Antropofagia, em 1998. São roupas e acessórios –
vestidos, casacos, carteiras, bolsos, sapatos, botas – feitos com um
fac-símile de pele humana com detalhes como mamilos, umbigos
e ânus. Mais tarde, foram fabricadas, com o mesmo material, bolas
de futebol e bolsas femininas (Dangerous Beauty) – que ostentavam
uma bunda de silicone de um lado e dois peitos do outro – que se
compram no New Museum, no Malba e no site de Nicola.
Não há piedade nos trabalhos de Peleteria de Pele Humana de
Nicola Constantino, que, apesar de simulacros, se inscrevem nessa
estranha linhagem de curiosidade, profanação, sacrifício, castigo e
barbárie.
Giorgio Agamben propõe derivar a palavra religião, não mais
de religare (unir), mas de relegere (separar, apartar), para afirmar
que a religião opera por um principio de separação. A separação
se realizaria através de um sacrifício, um ritual escrupuloso que
divide o sagrado do profano. Depois do rito de passagem, o que
pertencia aos deuses, o sagrado, se interdita ao uso e não pode ser
vendido, nem emprestado, nem cedido21. Separar a pele humana
do corpo vivo – sacrifício oferecido a Xipe Totec, martírio de Santo Bartolomeu, castigo de Marsias –, consagra a pele da vítima, a
torna sagrada. Porém, as vestimentas e os objetos de pele humana
– de simulacro de pele humana – de Nicola Constantino nunca
pretenderam ser relíquias sagradas, são apenas objetos irônicos e
suntuosos, destinados ao consumo e ao uso, aparentemente inseridos, através da arte, no campo da moda. A falsamente ingênua
ocorrência de Constantino se infiltra, sem críticas nem inibições,
Ω 20. Constantino, Nicola. Épater la Bourgeois. Página 12 / Radar, Buenos Aires, 9 nov. 2008.
Ω 21. AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2005. p.98.
23
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Visões do sacrifício
nesse campo em que Benjamin detecta o “amargo diálogo com a
podridão”22 que abre uma fenda “entre a mulher e a mercadoria;
entre o desejo e o cadáver”23. Cadáveres multiplicados: o cadáver da
moda e os cadáveres potenciais cuja pele teria sido retirada e recortada para fazer as roupas. O jogo macabro de Constantino abre, no
sex appeal do inorgânico, uma fresta pela qual o fetichismo escoa
para a abjeção dos corpos.
Savon de Corps consiste na produção de sabonetes com a forma
de um torso feminino em cuja composição se inclui um 3% de “essência de Nicola”, ou seja o resíduo orgânico de uma lipoaspiração
à qual a artista se submeteu. O sabonete se apresenta com um display publicitário onde Constantino faz a vez de modelo e oferece ao
cliente, para promover o produto fabricado com uma parte extraída
de seu corpo, uma imagem que a mostra seminu. A obra despertou
> Nicola Constantino, Savon de Corps,
2004
José Emílio Burucúa, em um artigo publicado no jornal argentino Página 12, destaca que a operação de Constantino, apesar
de a artista assegurar que contou com o beneplácito de instituições
judias, relaciona-se inequivocamente à mesma operação atribuída
aos nazistas e realizada com a gordura de suas vítimas: os hebreus
internados nos campos de concentração durante a Segunda Grande
Guerra.
O historiador vincula a obra da artista ao kitsch, decorrente
da sua abjeção adoçada por uma estetização banal; mas aponta: a
projeção do kitsch de Constantino age sobre o ato e o efeito da produção industrializada do assassinato em massa. Insiste, porém, em
relacionar o trabalho como resultado da aplicação de um princípio
social, o chiagaliovismo, inventado por Chiagaliov, personagem de
Os demónios de Dostoievsky. O chiagaliovismo consiste em acreditar que tudo está permitido ao grupo
polêmica, e não só em Buenos Aires, onde a memória de milhares
de cidadãos desaparecidos estende um manto de horror sobre o
destino dos corpos insepultos.
Burucúa, ainda, adverte ao espectador para não se transformar, sem perceber, num contemplador indulgente, de um crime
por mais distante e longínquo que ele esteja. Nessa advertência percebe-se a latência de um gozo profano e perverso que corre paralelo
à capacidade mnemônica da arte.
Esse poder mnemônico nos faz também questionar até que
ponto o trabalho de Nicola Constantino renega a grande tradição da
arte feminista da segunda metade do século XX. Enquanto Carole
Schneeman ou Gina Pane (para citar apenas duas artistas) expunham à visibilidade seus fluidos corporais e ou suas feridas abertas,
Constantino exibe obras onde o sangue e a dor nunca são evidentes;
exangues, a pele e a gordura humanas são transformadas, por meio
Ω 22. BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/Imprensa
Oficial, 2006. p.103
Ω 23. Idem. p.102.
Ω 24. BURUCÚA, José Emílio. Los límites del arte en la mirada del horror. Página12,
Buenos Aires, 9 ago. 2004. Disponível em: <http://www.pagina12.com.ar/diario/
sociedad/3-39387-2004-08-09.html>. Acesso em: jul. 2010.
24
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[...] dos lúcidos auto-formados, auto-elegidos e auto-impostos para o governo das
massas. […] Neste caso, tudo é possível os conhecedores, a liberdade radical, o
escárnio sem limites, o sarcasmo procaz, pois o ressentimento, o escrúpulo e
o controle ético são instrumentos interiorizados nas almas dos simples com a
finalidade de sua mais eficaz submissão.24
25
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de uma operação cosmética, em produtos agradáveis, prontos para
o consumo. Esses trabalhos estetizam a abjeção e dissimulam a
profanação, escamoteando-a em objetos suntuosos, nos quais os
fragmentos do corpo desaparecem, transformados em objetos de
luxo que ostentam um padrão erótico inócuo. π
à esquerda: Adolfo Cifuentes, Da série In Corpus Hominis (Em Corpo Humano), Desenho, serigrafia, instalação (detalhe), Bogotá/Colômbia, Setembro 2011
à dierita: Adolfo Cifuentes, Da série In Corpus Hominis (Em Corpo Humano), Desenho, serigrafia, instalação (detalhe), Bloomington, Indiana/EUA, dezembro 2009
Adolfo Cifuentes, Da série In Corpus Hominis (Em Corpo Humano)
Desenho, serigrafia, instalação (detalhe), Bloomington, Indiana/EUA, dezembro 2009
Escritos e situações:
m a n i f e s t o s c o m o e s t r at ég i a s
de f o r ta l e cim e n t o d o c o n t e x t o
poético-político proposto pelas obras
da s é rie Si t uaç õ e s ( déca da de 19 7 0),
de Artur Barrio
(mestre EBA-UFMG)
Para o II Salão de Verão, realizado no Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro, em fevereiro de 1970, Artur Barrio apresentou
como obra um texto escrito em três tábuas de madeira. O texto dizia:
Manifesto:
contra as categorias de arte
contra os salões
contra as premiações
contra os júris
contra a crítica de arte.1
Talhado na madeira, o texto foi inscrito na categoria “desenho”
e, como pelo regulamento o número mínimo de desenhos admitido era três, o artista repetiu as mesmas frases em três tábuas.
O trabalho foi aceito no Salão e no dia da abertura Artur Barrio
distribuiu o Manifesto contra o júri, no qual acusa de caduco o regulamento e a estrutura daquele salão. No texto, reforça que se tratava
Ω 1. BARRIO, Artur. Barrio: Arte brasileira contemporânea, Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978. p. 5.
28
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J ú lia R e b ou ç as
O júri, ao aceitar o Manifesto, agiu com um liberalismo paternalista e falso,
tentando retirar todo o potencial do meu protesto. Mas iludiu-se, caindo numa
baita contradição da qual não pode sair. Esta contradição, aliás, é a de toda
crítica de arte hoje. Aceitar as críticas contidas no Manifesto é dizer que o Salão,
pelo contrário, está desestimulando novos valores e revelando o que já deixou de
existir há muito tempo. A aprovação do Manifesto implicaria automaticamente
na recusa de todos os trabalhos inscritos em categorias, inclusive os meus. Ou
então o júri não entendeu nada. De minha parte estou contra todos os critérios.2
O mal-estar causado pela larga distribuição deste segundo manifesto, associado ao primeiro, que estava exposto junto aos demais
trabalhos do Salão, provocou a reação imediata do júri, que respondeu nas figuras de Antonio Bento e Roberto Pontual.
Diz Bento, então Presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte:
A posição de Barrio [...] é antiarte, antiestética, anticultura. Não há novidade na
sua posição, análoga à de muitos jovens que nos últimos anos têm-se declarado
anarquistas, enquanto outros proclamam-se filiados a Dada e fazem trabalhos
que se assemelham aos dos adeptos dessa corrente, nascida há mais de meio século. Ainda depois da Primeira Guerra Mundial ou logo após a Segunda, havia
motivo para a antiarte. Já agora este tipo de protesto é anárquico e negativista.3
Na esteira dessas declarações, Roberto Pontual, autor do Dicionário dos Artes Plásticas no Brasil, publicado em 1969, também
fala:
A análise detida dos textos que esses manifestos procuram divulgar indica imediatamente a sua inconsistência: são, sobretudo, um palavrório que a nada leva,
Ω 2. BARRIO, Arthur. A metáfora dos fluxos 2000/1968. São Paulo: Paço das Artes/
Secretaria de Cultura de SP, 2001. p. 101.
Ω 3. BENTO, Antonio apud AYALA, Walmir. Salão de verão: dois depoimentos. In:
FERREIRA, Glória (org). Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas, Rio
de Janeiro: Funarte, 2006. p. 258.
ou que leva apenas à possibilidade de Barrio elaborar, em precários silogismos
(muito ao gosto de quem vive da pressa e voa sobre as coisas), suas frases de
efeito, sem efeito. A impressão que se tem é de que ele quis aproveitar a superfície
de uma situação, repudiando o pleno mergulho nela para encontrar uma saída,
como outros mais silenciosamente buscam. [...] Com um farelo de calma se verá
que o júri soube ser mais sutil e prático, contestando, por incorporação, uma
contestação que nada contesta realmente. E contestando sem excluí-la da vista e
da análise de qualquer pessoa. De minha parte, proponho para os trabalhos de
Barrio uma nova categoria: a das coisas que, ao mesmo tempo, estão e não estão,
dependendo do desejo do autor. Isto lhe arrefeceria a veemência.4
Os textos de Bento e de Pontual representavam o pensamento
corrente daquele início dos anos 1970, por parte do tímido sistema
das artes brasileiro. É esclarecedor notar, por exemplo, que Antônio Bento considerava não haver motivo para uma postura crítica
por parte dos artistas em pleno regime ditatorial. E, ao nominar a
produção de Barrio de antiarte, antiestética, anticultura, de certa
maneira, previa (rejeitando, evidentemente) que aquele artista não
cabia nos conceitos estabelecidos até aquele momento, que escapava das classificações e precisava ser visto, lido e ouvido a partir
de novos preceitos. Pontual vai mais além, propondo para Artur
Barrio a categoria “das coisas que, ao mesmo tempo, estão e não
estão”. O incômodo dos dois críticos, membros do júri, revelaria,
junto com o total descrédito à produção do artista, um lugar que o
próprio Barrio revindicaria para si: a fronteira entre arte e não-arte,
entre ser artista e não ser artista, o limite entre a arte e a vida, o real.
Artur Barrio nasceu no Porto, Portugal, em 1945, mas ainda
criança mudou-se para o Rio de Janeiro, onde vive hoje. Sua produção artística sempre contestou as categorias da arte, desafiou
instituições, tensionou as condições de produção, de circulação e
de consumo da arte. Ao escolher suas matérias-primas, optou por
relacionar-se com os resíduos orgânicos, o lixo, as sobras, tudo
aquilo que é refugo.
Na maior parte da trajetória da produção de Barrio não há propriamente um objeto. Há, sim, ações, eventos, acontecimentos que
trazem o real, o poético e o político para a cena, há situações: “qual-
Ω 4. PONTUAL, Roberto apud AYALA, idem, p. 256-257.
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de um manifesto e que, por isso, jamais poderia ter sido aceito,
e tampouco deveria ser analisado esteticamente – “beleza gráfica,
textura, que isso é belas-artes”. Avança dizendo que, comparado
aos demais desenhos aceitos pelo Salão, os seus trabalhos só poderiam ser considerados lixo. Segue:
Situações partem do pressuposto de pegar o outro pela surpresa, de criar uma
situação que o desconecte do momento em que ele se encontrava e lance-o em
outro espaço de percepção, de visão das coisas através da surpresa, fazendo-o
viajar para um outro sistema perceptivo, algo inabitual. [...] Então as Situações
para mim partem desse pressuposto, como foram as Trouxas, como chegaram os
envelopes criando algo impactante pelos materiais, caso se considerasse aquilo
arte ou não, o que seria aquilo? O que quer dizer? Enfim, mexer com as pessoas,
com seus fundamentos, conceitos num mundo canalizado, formal.6
As Situações tiveram espaço no final do ano de 1969 e início
dos anos 70, um período marcado por forte repressão do Governo
Militar do Brasil. Das marcas de um período de perseguição e coerção como o que houve no Brasil, certamente uma das mais contundentes é aquela que afeta a subjetividade do artista, violenta os
processos criativos, a força do pensamento, a liberdade individual.
Como pontua Luiz Camillo Osório:
Barrio pertence a uma geração de sobreviventes, formada no bojo do enfrentamento barra-pesada dos anos 68-75. Quem escapou, saiu escaldado. Seus deΩ 5. AZULGARAY, Paula. A insubordinação de Artur Barrio. Trópico, 2003. Disponível em: <http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1759,1.shl>. Acesso em: 12
fev. 2009.
Ω 6. BARRIO apud FREIRE, Cristina. Poéticas do Processo: Arte Conceitual no Museu, São Paulo: Iluminuras, 1999. p. 150.
senhos dos anos 70 [...] são de uma força impressionante. Palavra e imagem
saíam com bílis. Ele mesmo sintetizou o motor criativo de sua obra: “necessária
é a raiva.7
Para a realização das Situações, não cabe o espaço do museu,
da galeria, não cabe o esforço de normatizar a arte. A obra de Artur
Barrio está constantemente ligada à ideia de quebra de ordenação.
Dentro da institucionalidade, seus trabalhos viram provocações,
uma vez que não se prestam às categorias, ou são impossíveis de
serem conservados, restaurados. Qualquer processo de enquadramento esvaziaria imediatamente a potência de sua obra. Por isso,
o espaço da sua poética é a rua, o córrego no parque, o jardim na
entrada do museu, a cidade em si.
No Salão da Bússola, realizado em 1969 no Rio de Janeiro,
no Museu de Arte Moderna, Artur Barrio apresentou como obra
um saco com pedaços de jornal, espuma de alumínio e um saco de
cimento velho, preenchido por espuma de borracha, sangue, tinta e
outros dejetos. Amarrados na forma de trouxas, as obras sugeriram
que o museu poderia ser um depósito de lixo. Tratava-se de SITUAÇÃO .... ORHHHHHHH... ou 500....T.E... EM... N.Y.... CITY...1969.
Durante um mês, as trouxas sofreram intervenções do público e de
outros artistas. Barrio descreve essa participação como intensa: as
pessoas jogaram mais lixo sobre elas, picharam o tecido com palavrões, jogaram dinheiro8. Essa foi a primeira etapa do trabalho, que
o artista chama de “fase interna”.
Na “fase externa”, por sua vez, as trouxas e todo o lixo acumulado foram levados para fora do MAM, apoiados sobre uma base
de concreto onde normalmente ficavam expostas esculturas. Às
trouxas, o artista acrescenta pedaços de carne. Segundo registro do
artista, o lixo/obra foi colocado na parte externa do museu no final
da tarde. No dia seguinte, Barrio viria a saber que a presença das
trouxas causou espanto a um grupo de policiais que fazia ronda na
área. Até que se identificasse que se tratava de uma obra do Salão da
Ω 7. OSÓRIO, Luiz Camillo. A tripa e o vento. In: SALGADO, Renata (org.). Imagem
Escrita. Rio de Janeiro: Graal, 1999. p. 114.
Ω 8. BARRIO, Artur. Situações: Artur Barrio: registro. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 1996. p. 14.
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quer situação em que você não sabe plenamente o que fará, é uma
‘situação’. Um ponto de interrogação, que eu chamo de ‘situação’”,
disse o artista, em entrevista a Paula Azulgaray5.
Num momento de forte repressão política, o sentido de extrapolar os limites da instituição ganha contornos para além do pensamento artístico. A recusa aos parâmetros estabelecidos de produção
e recepção de arte, a tentativa recorrente de desafiar os próprios
suportes e materiais, e o confronto à postura passiva acabam por se
somar a um discurso enunciado pela resistência política da época.
Transgredir parâmetros, resistir às pressões e confrontar as ideias
mais conservadoras fazia parte do espírito contestador daquele
tempo.
Sobre as Situações, Artur Barrio, em depoimento à pesquisadora Cristina Freire relata:
Devido a uma série de situações no setor das artes plásticas, no sentido do uso
cada vez maior de materiais considerados caros, para a nossa, minha realidade,
num aspecto sócio-econômico do 3º mundo (América Latina inclusive), devido
aos produtos industrializados não estarem ao nosso, meu alcance, mas sob o poder de uma elite que contesto, pois a criação não pode estar condicionada, tem de
ser livre. [...] Portanto, por achar que os materiais caros estão sendo impostos por
um pensamento estético de uma elite que pensa em termos de cima para baixo,
lanço em confronto situações momentâneas com o uso de materiais perecíveis,
num conceito de baixo pra cima.10
A segunda parte de Situação T/T, 1, ocorreu na manhã seguinte, no local que Barrio identifica como “rio/esgoto”. As trouxas
foram dispostas às margens do Arrudas e, aos poucos, a ação foi
ganhando a audiência popular. Durante a tarde, houve intervenção
da polícia e do corpo de bombeiros, acionados pela população, sob
denúncia de haverem corpos esquartejados no parque. Depois da
colocação das trouxas ensanguentadas, Barrio ainda continuaria
Situação T/T, 1, em sua terceira parte, no dia 21 de abril, quando
desenrolou 60 rolos de papel higiênico nas pedras que margeavam
o Arrudas.
Espalhadas ao longo do rio, no meio do parque, as trouxas de
Situação T/T, 1 surgiram como objetos misteriosos, confundindo
mais que elucidando um suposto acontecimento. Faziam sangrar
um corpo social, ideológico, paulatinamente atacado por suas
ideias e punido em sua carnalidade. “Cada apresentação era para
provocar fragmentação, uma polêmica, uma questão, uma surpresa, desestabilizar um conceito”, disse Barrio em entrevista a Paulo
Herckenhoff11.
No mesmo dia em que as trouxas foram depositadas no Parque Municipal, Barrio escreveu o texto/manifesto que intitulou
LAMA / CARNE / ESGOTO:
Já em 1970, meses depois dos eventos do II Salão de Verão,
Barrio viria até Belo Horizonte, para participar da semana organizada por Frederico de Morais, conhecida como Do corpo à terra.
Na ocasião, o artista desenvolveria o projeto Situação T/T, 1 (1970)
que se dividia em três partes. Na noite do dia 19 de abril de 1970,
iniciou-se a ação que culminaria no aparecimento de trouxas ensanguentadas ao longo do Rio Arrudas, dentro do Parque Municipal de Belo Horizonte. Naquela madrugada, o artista preparou as
14 trouxas, nas quais foram utilizados sangue, carne, ossos, barro,
espuma de borracha, pano, cabo, facas, sacos, cinzel.
O que procuro é o contato com a realidade em sua totalidade, do tudo que é renegado, do tudo que é posto de lado, mais pelo seu caráter contestador; contestação
essa que encerra uma realidade radical, pois que essa realidade existe, apesar de
dissimulada através de símbolos. Em meus trabalhos, as coisas não são indicadas (representadas), mas sim vividas, e é necessário que se dê um mergulho, que
se mergulhe/manipule, e isso é mergulhar em si. O trabalho tem vida própria
porque ele é o todos nós. [...] Portanto, esses trabalhos, no momento em que
são colocados em praças, ruas, etc, automaticamente tornam-se independentes,
sendo que o autor inicial (EU), nada mais tem a fazer no caso, passando esse
compromisso para os futuros manipuladores/autores do trabalho, isto é:....Os
pedestres, etc. O trabalho não é recuperado pois foi criado para ser abandonado e
seguir sua trajetória de envolvimento psicológico. [...] Nessa dispersão de elementos deflagradores, o importante é que o envolvimento é total, em todos os pontos,
ao mesmo tempo, sem um ponto único definido, criando polos de energia entre
si. Belo Horizonte, 20/04/70.12
Ω 9. HERKENHOFF, Paulo. Liberdade, igualdade e ira. In: A METÁFORA DOS
FLUXOS 2000/1968 (catálogo). São Paulo: Paço das Artes / Secretaria de Cultura
de SP, 2001. p. 36.
Ω 10. BARRIO, Barrio, p. 5.
Ω 11. HERKENHOFF. Liberdade, igualdade e ira, p. 27.
Ω 12. BARRIO, Barrio, p. 6.
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Bússola muito tempo foi levado e, por fim, o trabalho foi recolhido
para as lixeiras do museu.
No mesmo ano, Barrio escreve o Manifesto Estética Terceiro
Mundo, onde defende o uso de materiais baratos, acessíveis ao
“Terceiro Mundo”, em prol da liberdade absoluta da criação, que
não pode estar condicionada a nada. Além da luta pela liberdade
de expressão, o artista também atacava a desigualdade de expressão
entre as nações no sistema capitalista. Segundo Paulo Herkenhoff,
Barrio expôs o constrangimento econômico do “Terceiro Mundo”
e politizou os materiais que utilizava para encadear ele próprio as
etapas de criação e distribuição, alterando inclusive o modo como
sua obra seria recebida9. Barrio desestabiliza as regras do mercado
de arte de então, que propunha começar a criar valores para a produção de seu tempo. Mas atribuir “valor de uso” a trabalhos feitos
com dejetos não parecia possível em nenhuma instância.
Ω 13. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia.
Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. (v. 2).
Ω 14. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
mais que o sistema da arte, seu mercado, seu público, seus museus
e galerias. Há um substrato político que permeia e constitui suas
iniciativas artísticas. No entanto, suas obras não se prestam à militância, pura e simplesmente, não constituem-se como panfletos,
mas “a questão política se coloca nas entranhas da própria poética”15. A violência da ditadura incide no corpo do artista, do cidadão,
criando uma memória imaterial da opressão que afeta diretamente
sua capacidade criativa.
Em certo momento do livro A partilha do sensível, Jacques Rancière afirma que arte e política produzem “rearranjos materiais dos
signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz,
entre o se faz e o que se pode fazer”16. Assim, as Situações de Barrio
adentram o real e adquirem uma potência heterogênea, tornam-se
similares, mas ainda assim diferenciam-se do que existe efetivamente. E essas intervenções no real acabam por fundar um regime
de intensidade sensível.
Traçam mapas do visível, trajetórias entre o visível e o dizível, relações entre modos do ser, modos do fazer e modos do dizer. Definem variações das intensidades
sensíveis, das percepções e capacidades dos corpos. Assim se apropriam dos humanos quaisquer, cavam distâncias, abrem derivações, modificam as maneiras,
as velocidades e os trajetos segundo os quais aderem a uma condição, reagem a
situações, reconhecem suas imagens. Reconfiguram o mapa do sensível confundindo a funcionalidade dos gestos e dos ritmos adaptados aos ciclos naturais da
produção, reprodução e submissão. O homem é um animal político porque é um
animal literário, que se deixa desviar de sua destinação “natural” pelo poder das
palavras.17
Chegamos, assim, ao entendimento de que a produção textual
de Artur Barrio não acontece de forma paralela ou marginal à sua
produção artística, propriamente. Não vêm de matrizes diferentes
os estímulos que o fazem realizar um ato ou redigir um manifesto.
Tratando-se de um artista que procura abolir as categorias, classifiΩ 15. ROLNIK, Suely. Desentranhando futuros In: FREIRE, Cristina; LONGONI,
Ana. (org.) Conceitualismos do Sul/Sur. São Paulo: Annablume, USP-MAC; AECID,
2009. p. 156.
Ω 16. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: Estética e política. São Paulo: Ed.
34, 2005. p. 58-59.
Ω 17. Idem, p. 59-60.
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As Situações configuram-se a partir da criação de um acontecimento no espaço público, distante do contexto museológico pré-estalecido para o objeto artístico. Uma vez que ocupam as ruas, o artista
espera que criem, em suas palavras, “polos energéticos”, “traços de
tensão” e que “reverberem essa tensão”. Assim, cabe pensar como os
textos produzidos na mesma época pelo artista funcionam como elementos ora fundadores, ora potencializadores desse contexto poético
e político em que as Situações se inscrevem.
Para Deleuze e Guattari, as ordens dos signos e das coisas,
apesar de diferentes e independentes, se relacionam intimamente.
A partir do conceito de performatividade de Austin, em que os atos
existiriam e se realizariam nas palavras e pelas palavras, Deleuze e
Guattari falam do fato de que todo enunciado está sediado no contexto em que é proferido. Vem da pragmática a ideia de que a língua
está necessariamente articulada com o social, com o político. Assim,
defendem que a linguagem não reflete o real, mas interfere nele.13
Anos antes, Michel Foucault, em As palavras e as coisas, relaciona intimamente os atos de dizer e de fazer, apontando que a palavra
não é necessariamente coisa, nem tão pouco é apenas representação, como propunha Platão. A palavra funda a coisa, a institui. Dos
discursos é que surgem os objetos de que se fala, e é a partir do
momento em que existem enquanto prática social que de fato se
efetivarão.14
Esses conceitos nos ajudam, então, a pensar como os manifestos de Barrio estão intrinsecamente ligados aos atos performáticos
e artísticos que os seguiram ou os antecederam. É impossível, por
isso, afirmar se os textos fundaram as ações ou vice-versa. Fica claro
que trata-se do mesmo ato de enunciar um desconforto, relatar e
praticar uma tal violência, como forma de interferência social.
No Brasil dos anos 1960 e 1970, a dimensão política é agregada à crítica institucional que se desenvolve nos circuitos artísticos,
mundo afora. Ao engendrar suas Trouxas e Situações, Barrio ataca
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cações, ou normatizações de sua obra, podemos afirmar que textos
e atos, manifestos e situações são parte do mesmo movimento de
transformação da arte, transformação do mundo.
Sua produção textual, no entanto, acaba sendo requerida pelo
terreno da crítica artística e acadêmica por escancarar e mesmo
antecipar uma série de questões que mais tarde viriam a ser discutidas no âmbito da teoria e da recente história da arte brasileira.
Artur Barrio, porém, não diferencia sua atuação; ao contrário, ele
constantemente exercita sua capacidade de ser do mundo, que, independente do suporte que tenha escolhido, parte para a inserção
na vida, no corpo social, longe dos guetos do conhecimento especificamente artístico. π
MELISSA ROCHA, Subliminar, colagem digital, 2010
F a b í ola T as c a
(doutora pela EBA-UFMG, professora Escola Guignard-UEMG)
Uma imagem de rio. Água cristalina. Um homem escreve cuidadosamente uma palavra dispondo pesadas letras no fundo do rio.
S + E + R. Na qualidade de verbo intransitivo, SER simplesmente
denota a existência do rio. O rio é. O rio existe. O gesto é silencioso.
O homem entra e sai do quadro. A água corre devagar. Mais outras
duas letras vêm se somar à aparente suficiência da palavra SER +
T + O. Então é isso! Trata-se de sublinhar a permanência do rio.
Mas “certo” está escrito errado! O artista quer nos dizer então que
a existência do rio não é auto evidente? Que sua permanência está
ameaçada? Mas, esperemos... Trata-se de um vídeo, é preciso apreender todo o movimento da imagem. Agora mais duas letras vêm
completar a palavra: D + E + SERTO. O rio é deserto. O rio é o seu
contrário. E o é pela ação humana. Será que estamos diante de um
enunciado sobre as relações pouco amistosas entre homem e natureza? Sobre a tão contemporânea possibilidade de que o recurso
natural “água” se esgote? Mas pensemos menos em para onde o vídeo pode apontar e nos concentremos no gesto que é produzido. A
ação humana que interessa aqui é aquela do artista, que ao conformar a palavra deserto o faz por uma via que não obedece a ordem
linear de suas sílabas, colaborando para a emergência de outros
significados, que não se fixam numa leitura, que não propõem uma
mensagem unívoca, mas que convidam a uma incessante produção
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pErigo:
“existe arte em frente
de seus olhos”
Ω 1. Adolfo Cifuentes utiliza esta expressão em texto no qual discorre sobre
o caráter polissêmico da arte – recorrendo a filósofos como Kant e Deleuze: CIFUENTES, Adolfo. A Arte: Radical Livre Polivalente. In: TASCA, Fabíola Silva.
Por um conceito do político na arte contemporânea: o Fator Santiago Sierra, 2011.
Tese (Doutorado em Artes) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011. p. 182-192.
Ω 2. RANCIÈRE, Jacques. El espectador emancipado. Buenos Aires: Manantial, 2010.
Há ainda um terceiro vídeo. Suas imagens apresentam a situação de uma feira popular. Nele, ao contrário dos outros dois, parece
não haver um investimento na composição da imagem pela produção de cortes, enquadramentos precisos ou recursos que conotem
alguma perspectiva poética. Parece tratar-se de um mero registro,
no qual os aspectos descuidados são evidenciados por alguns tremores da câmera, como se estivéssemos diante de imagens feitas
por qualquer um. O que vemos são as cenas de pessoas circulando,
comprando, e ouvimos barulhos característicos de um ambiente
como esse. Entre barracas de carne, bananas e calcinhas, lemos a
curiosa legenda: “Existe arte em frente de seus olhos”.
A legenda em português, inglês e francês permanece todo o
tempo em que assistimos às imagens – na forma rigorosa como
Paulo Nazareth realiza suas livres traduções – como que sustentando a afirmação; algo como uma advertência. Será que se trata de
um convite para que busquemos qualidades artísticas na situação
apresentada?
Michael Archer, discorrendo sobre a relação entre ações que
não podem ser experimentadas por uma audiência e suas documentações fotográficas ou fílmicas – as caminhadas de Richard
Long, são alguns dos exemplos de Archer – pontua que tal relação
problematiza o próprio lugar da obra de arte. E prossegue nos dizendo que não deveríamos nos sentir frustrados (sentimento recorrente quando falamos em arte contemporânea) por não conseguirmos precisar onde exatamente encontra-se a obra – se no local onde
a ação acontece ou na galeria, onde encontramos sua documentação
–, mas antes deveríamos nos permitir acolher a indagação que determinados trabalhos elaboram: “Suponhamos que eu olhe para
isto como se fosse arte. O que, então, isto poderia significar para
mim?”3.
A pergunta é instigante e poderíamos endereçá-la a inúmeras situações cotidianas. Talvez o terceiro vídeo, ao registrar cenas
que não foram produzidas pelo artista, procure sugerir algo nesse
sentido. Mas a marca Paulo Nazareth arte contemporânea LTDA iroΩ 3. ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 93-95.
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discursiva. Incessante porque é da “natureza” da arte fornecer essa
“matéria para pensar”.1
Uma pessoa caminha numa rua asfaltada. O enquadramento
focaliza apenas as pernas e os pés. Simplesmente um passo depois
do outro. A atmosfera sonora nos diz que estamos em uma cidade.
No percurso, a aparente trivialidade da caminhada, que algumas
vezes se mostra mais difícil, é subvertida por passos que desafiam
a gravidade. É assim que vemos, entre uma passada e outra, uma
instigante suspensão. Os pés não alcançam o solo, mas a caminhada prossegue desafiando as condições de sua possibilidade. Já no
final do vídeo a câmera registra rapidamente um fragmento do corpo dessa pessoa, a partir do qual percebemos que ela empurra um
destes carrinhos com os quais os catadores de papel percorrem as
ruas da cidade. Compreendemos então como foi possível produzir
aquela suspensão: pelo procedimento de sustentar o peso do próprio corpo com os braços apoiados na estrutura do carrinho. Simples assim, nada extraordinário. Qualquer pessoa que já tenha visto
um catador de papel já viu também esse movimento. Mas, isolado
ali, por meio do recorte da câmera, descontextualizada, essa imagem nos fala tanto de seu referente (o movimento dos catadores
de papel) como de uma reflexão sobre o próprio modo de operar da
arte: por suspensão.
Jacques Rancière fala nesses termos para referir-se à especificidade da arte. Ele nomeia como “eficácia estética” um modo de
operar que suspende os fins representativos e promove a elaboração de um mundo sensível2. Mas não quero aqui lançar mão dos
trabalhos artísticos como ilustrações de uma tese filosófica. Trata-se
antes de valorizar os referidos vídeos pelo que eles nos dizem acerca do próprio fazer artístico antes de enunciarem qualquer comentário sobre a realidade.
Ω 4. COELHO, Teixeira. Por que Arte?: entre a regra e a exceção. In: SEMINÁRIOS
INTERNACIONAIS MUSEU VALE, 2008, Vila Velha, ES. Arte em tempo indigente.
Vila Velha, ES, 2008. p. 224-238.
(03´ 24´´), da sutileza das imagens de Ariel Ferreira, um trabalho
lindamente intitulado leviano (05´ 01´´), o qual nos conduz à produtiva associação entre “leveza” e “imprudência”, falamos de fina
ironia no vídeo de Paulo Nazareth, Feira (06´ 51´´)5. Falamos de trabalhos que não investem na contundência, violência ou em promover indignação, como o fazem algumas poéticas contemporâneas
perigosas. A polêmica costuma ser uma das medidas de eficácia
destas, como no caso do artista espanhol Santiago Sierra, reconhecido por suas ações incômodas e hostis.
Mas, os três artistas comentados aqui caminham em outra direção e, se confrontados com tais estratégias, seus trabalhos parecem inofensivos, mas apenas para aqueles que se detêm nos “efeitos de superfície da arte: a forma, o conteúdo.”6 π
Ω 5. Os três vídeos comentados participaram da exposição Sismógrafo (Palácio das
Artes, Belo Horizonte, 6 abril – 8 maio 2011, curadoria de Jacopo Crivelli Visconti),
que pretendeu apresentar um panorama da produção audiovisual mineira dos últimos anos.
Ω 6. COELHO. Por que Arte?. p. 228.
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nicamente enquadra as imagens, permitindo também que apreendamos a pergunta de Archer em sentido contrário: “Suponhamos
que eu olhe para a arte contemporânea como uma feira popular, o
que, então, ela poderia significar para mim?” Mas não vamos seguir aqui o caminho insinuado pela segunda pergunta. Retomando
a primeira, se aceitarmos o suposto convite para lermos a feira popular enquanto arte, o que poderíamos alcançar? Ou ainda, o que
quer mesmo dizer apreender algum objeto ou situação como arte?
Em uma resposta apressada, alguns diriam que consiste em
encontrar beleza nas coisas. Poesia. Mas “beleza” e “poesia” são
palavras que também apresentam opacidade. Olhar alguma coisa
como arte consiste em percebê-la de outra maneira, sob outra luz,
outra perspectiva; enfim, deslocá-la do local habitual onde a alojamos em nosso relacionamento cotidiano com elas. Certo, outra
perspectiva, outra luz, outro lugar; mas como definir essa alternativa? A pergunta persiste: O que quer dizer apreender a vida enquanto arte?
Teixeira Coelho nos lembra que Stockhausen foi execrado
quando ousou dizer que a destruição das Torres Gêmeas, em setembro de 2001, era a maior obra de arte de todos os tempos.4
Olhar a realidade como arte pode constituir um procedimento no
mínimo insultuoso se nos conduz a estetizar situações indignantes, contribuindo para anestesiar nossa capacidade de reagir contra
elas. Mas Coelho procura resgatar a relevância e pertinência de um
enunciado tão controvertido quanto este, sublinhando que, subjacente às palavras de Stockhausen, encontra-se uma pista para especularmos sobre a especificidade da arte, o poder da arte, o saber da
arte: a arte como perigo.
A arte pode ser perigosa, a arte é perigosa. Os regimes totalitários compreenderam bem essa dimensão da arte, na medida em
que procuraram cercear a produção artística.
Mas não falamos aqui exatamente de “perigo”, não é mesmo?
Falamos da delicadeza e poesia do vídeo de Lucas Dupin, Deserto
MELISSA ROCHA, 2010, colagem digital, 2010
MELISSA ROCHA
(mestre EBA-UFMG)
O Poder da Linguagem é o título do trabalho que abria a exposição de VALIE EXPORT, no Centro de Arte Contemporânea e
Fotografia da Fundação Clóvis Salgado, ocorrida durante o mês de
abril de 2011, em Belo Horizonte. A apreciação da mostra iniciava-se antes mesmo de adentrarmos o salão expositivo: ouvíamos, por
detrás da parede da entrada, um som entrelaçado, emitido por um
coro de vozes dissonantes. Todavia, uma audição atenta desvendava
no emaranhado sonoro a frase-título do trabalho sendo pronunciada em inglês.
Alguns passos adiante e avistamos o amplo salão ladeado por
seis televisores, as fontes sonoras emitentes da frase em questão.
Em seus visores, observamos laringes em atividade, cada qual correspondente a uma voz, porém emitentes de um conteúdo uníssono, pronunciado em looping: “O Poder da linguagem mostrando
seu vestígio mesmo depois do silêncio”. Silêncio este, inexistente,
afogado pela mistura sonora que impede que o mesmo impere no
espaço expositivo. A vídeo instalação, originalmente de 2002, apresenta um discurso comum, porém dessincronizado. A imagem do
movimento muscular da laringe, particular de cada emissor/televisor, ilustra cientificamente o som produzido. Ao mesmo tempo,
desenha uma ambiguidade: o vídeo das vísceras úmidas, o ato de
contrair e relaxar; as formas do órgão, que se assemelham ao órgão
sexual feminino, incitam na retina esse paralelo. O vídeo que registra simplesmente a ação muscular para gerar a vibração sonora
apresenta-se dotado de uma sensualidade selvagem, embutida no
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O poder da linguagem
mostrando seu vestígio
mesmo depois do silêncio
> FIG. 1 – Registros de VALIE EXPORT, no fim da
década de 1960, e
Marina Abramovic,
em 2005. Action
Pants: Genital
Panic.
Mais do que muitos dos seus contemporâneos (grande parte deles morando nos
Estados Unidos, onde o vídeo era popular desde o final dos anos 1960), EXPORT explorou a dinâmica entre o artista e o público de formas fisicamente
abertas. Posicionou sua arte como algo inerentemente social, político e experimental, além de tratar dos temas ostensivos de corpo, gênero e classe, igualdade
e política de identidade – questões que vêm à mente quando olhamos sua obra1.
Ω 1. SICHEL, Berta; VALIE EXPORT. VALIE EXPORT: Corpo=Linguagem. São
Paulo: Itaú Cultural., 2011. Catálogo de exposição.
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contexto imagético do receptor, que estabelece, via semelhança, a
conexão visual com a zona erógena feminina. Vemos os televisores
posicionados em semicírculo, como um grupo de pessoas em diálogo se posicionaria. Diante deles, na parede, avistamos a frase-título
adesivada e ouvida à exaustão.
A primeira obra, então, já apresentava alguns dos recursos
reincidentes utilizados por VALIE EXPORT para conceber seus trabalhos. O corpo, o feminino e o vídeo são umas das principais ferramentas criativas da produção da artista. Surpreendentemente, a exposição VALIE EXPORT: Corpo=Linguagem foi o debut de EXPORT
em solo brasileiro. Alguns dos visitantes a conheciam apenas como
autora de uma única obra de repercussão, originalmente produzida
em 1969 e com duração aproximada de 10 minutos, que foi resgatada por Marina Abramovic, em 2005, na performance homônima
Aktioshose: GenitalPanik (Action Pants: Genital Panic, FIG.1). A ação
de Abramovic foi apresentada em museus e consistia em permanecer por 7 horas – o período poderia variar – sentada em uma
cadeira. Abramovic trajava jaqueta de couro e uma calça também de
couro, que, no entanto, cobria apenas as pernas e parte do quadril.
O órgão sexual ficava à mostra, evidenciado ainda mais pelas pernas abertas da artista, que sustentava em riste e ameaçadoramente
um fuzil. Ocasionalmente, a artista levantava-se e caminhava pelo
espaço, silenciosamente, expondo a arma e sua genitália.
A grafia VALIE EXPORT neste texto, em caixa-alta, não constitui um acaso ou uma necessidade particular da escrita. Na verdade,
é uma determinação da marca criada por Waltraud Lehner, no fim
da década de 1960. Nascida em Linz (1940), na Áustria, a maior
parte de sua produção foi desenvolvida em seu país de origem:
O objetivo desses movimentos, os quais foram caracterizados pela inovação artística e provocação política, era romper com as formas de arte tradicionais, que
empregam a realidade como um meio de expressão, e ultrapassar os limites das
categorias individuais de arte como pintura, linguagem e teatro. Isso é ilustrado
de forma visual e através da linguagem. A arte era posta em questão por esses
movimentos de forma radical com o propósito de introduzir o pensamento artís-
> FIG. 2 – Otho
Mühl em Oh
Sensibility (1970)
e, abaixo, Günter
Brus em Art and
Revolution (1968).
No vídeo Oh Sensibility, aparentemente inspirado no mito de Leda e o Cisne, o
artista e uma performer encenam uma interação sexual com um ganso. Após
uma longa sequência em que o animal é manipulado por Mühl e sua parceira,
segue-se o clímax da ação: o artista mata o ganso, decapitando-o, e em seguida
utiliza a cabeça da ave para estimular sexualmente a mulher. Dois anos antes,
Mühl participa como coadjuvante da performance Art and Revolution, de seu
colega Günter Brus. Convidado a falar sobre a função da arte na sociedade capitalista a um grupo de estudantes na Universidade de Viena, Brus fica nu, urina,
bebe sua própria urina, se auto mutila, defeca, espalha as fezes em seu corpo e
finalmente se masturba enquanto canta o hino nacional austríaco2.
Dessa forma, Action Art International mescla criações que de
certa forma possuem um foco comum, que trazem à tona questões
complexas, que transgridem o aspecto formal:
Ω 2. SILVA, Priscila R. Os Acionistas Vienenses: revolucionários ou perversos. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/8665322/Os-Acionistas-Vienenses-Revolucionarios-ou-Perversos>. Acesso em: mai. 2011.
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Um dos vídeos que constituíam o conjunto da mostra na Fundação Clóvis Salgado teve única exibição no Cine Humberto Mauro,
como evento à parte. Nele, EXPORT apresenta o Action Art International (1989), um documentário sobre os movimentos da arte
moderna/contemporânea de 1945 até aquele momento. O filme
revela material documental e fotográfico relativo ao grupo COBRA,
à Internacional Situacionista, ao Fluxus, aos Acionistas de Viena,
dentre outros.
Os conterrâneos de EXPORT, como, por exemplo, os Acionistas Vienenses – um grupo formado pelos artistas Otto Mühl, Rudolph Swarzkogler, Günter Brus e Hermann Nitsch –, possuíam
como ferramentas potencializadoras de sua produção a exploração
do corpo na arte através da performance e do vídeo. Na maioria de
suas ações, o coletivo desafiava a audiência submetendo-a a presenciar situações de enfrentamento moral, social, ético, político e
artístico. Naturalmente, assim, emergiam questionamentos acerca
não somente do resultado estético, como também de seu conteúdo
polêmico. Dos trabalhos do grupo vale citar dois de Otho Mühl, de
1970 e 1968, respectivamente (FIG.2):
> FIG. 3 – Frame
de Syntagma (1983)
tico e um desejo de criar arte em novas formas de comunicação. Todos os movimentos abordados são baseados no desejo fundir sonho e vida, arte e realidade3.
Ω 3. SIXPACK FILM. Action Art International. Documents on International Actionism.
Disponível em: <http://www.sixpackfilm.com/catalogue.php?oid=1662&lang=en>.
Acesso em: mai. 2011. (Trad. nossa): “The goal of these movements, all of which
were characterized by artistic innovation and political provocation, was breaking
away from traditional art forms, employing reality as a means of expression, and
overstepping boundaries in individual categories of art such as language, painting
and theater. This is illustrated in visual form and through language. Art was called
into question by these movements in a radical way for the purpose of introducing
artistic thought and a desire to create art in new forms of communication. All the
movements dealt with are based on the desire to fuse dream and life, art and reality.”
Ω 4. SICHEL, VALIE EXPORT: Corpo=Linguagem, 2011.
ginal Raumsehen und Raumhoren (1973-74) e TEXTO Visual: Poema
de dedo Sehtext Fingerdedicht (1973). No primeiro, há novamente o
recurso de utilizar uma imagem estática que, através da edição e
montagem, simulem a sensação de movimento. A tela é dividida
verticalmente ao meio e, em cada metade, são encaixadas imagens
harmônicas ou desarmônicas em escala ou posição (FIG.4). Corpo
e áudio mesclando-se, rearranjando-se através do espaço. O segundo vídeo é uma performance para a câmera, na qual a artista apresenta o conteúdo através de gestos, usando a língua dos sinais. Em
outros momentos, a própria palavra ou frase manuscrita é exibida
(FIG. 5).
> FIG. 4 – Touch
Cinema.
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Retomando a exposição na Fundação Clóvis Salgado, no salão
seguinte ao trabalho da série Glote, havia o vídeo Syntagma (1983).
Nele evidencia-se a relação estabelecida entre o corpo da artista e a
paisagem urbana. Em outros momentos, ocorre uma fusão entre
imagem projetada e fotografia, corpo e fotografia do corpo, criando um diálogo imagético e simbólico significativo. A artista cria
movimento sobre o estático, representando de forma redundante
a ação sobre a atividade (ou inatividade) congelada pela fotografia.
Por meio de fotografias afixadas nas paredes das cidades, em espaços estratégicos, escadas, esquinas, o vídeo resvala sobre a interação
corpo-cidade – paisagem.
No segundo piso, encontramos o trabalho que sinaliza mais
explicitamente a intenção de abordar questões de gênero. O vídeo
em questão pertence à serie Cinema Expandido: Touch Cinema
(1968), o registro de uma ação da artista em espaço público, nas
ruas de Viena. Nele a artista sustenta uma caixa oca, com uma cortina, na frente de seu tórax. O público masculino era então convidado a inserir as mãos na caixa e tocá-la nos seios: “é um epítome
das relações de poder entre os dois sexos”4. O trabalho contrapõe a
objetivação do corpo, criando um momento de autorreflexividade
na qual a relação entre o espetáculo e o espectador foi confundida, e
o distanciamento do olhar do espectador foi confrontado pelo olhar
da própria artista.
Ainda nesse ambiente, encontram-se um dos vídeos pioneiros
realizados pela artista, Espaço-Vendo-Espaço-Ouvindo, de título ori-
Finalmente, figuravam os trabalhos que se situavam nas paredes laterais do primeiro piso, registros da série Body Configuration (FIG.6), em que novamente o espaço urbano é palco para suas
ações. A interação do corpo com a paisagem permite que EXPORT
realize e experiencie a construção de figuras geométricas, geradas
diante do posicionamento do corpo no espaço, fazendo emergir formas e desenhos. Pode-se visualizar mais claramente na foto em que
a curva do corpo da artista mimetiza a forma da calçada (FIG.7).
O vídeo Syntagma foi um desdobramento natural dessa série de
fotografias.
> FIG. 6 - TEXTO
Visual: Poema de
dedo Sehtext Fingerdedicht (1973).
> FIG.5 - Raumsehen und Raumhoren
(1973-74).
A mostra VALIE EXPORT: Corpo=Linguagem apresentou tardiamente parte da produção audaciosa em vídeo e fotografias, de
um conjunto considerável e instigante que, principalmente nas décadas de 1960 e 1970, constituiu um acervo de relevância considerável para as discussões de performance, corpo, gênero e política de
identidade no campo artístico. π
43
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> FIG. 7 – Body
Configurations
(1972-76)
MELISSA ROCHA, Mensagem, colagem digital, 2010
Arte, arquitetura e filosofia
no conte x to das pr áticas
artísticas contemporâneas
que invadem o espaço cotidiano.
P a r t e II : O p o s s í v e l a i n d a n ã o
realizado
(mestre EA-UFMG)
[...] objetos e conceitos só têm realidade em suas relações e no dinamismo adquirido no ambiente teórico [e prático] no qual se inserem. Passando de um ambiente a outro e inserindo-se em relações sempre novas, objetos e conceitos mudam de
função e sentido e é justamente nesta mudança que eles adquirem mais sentido.1
Lembrando e tirando partido das palavras de Carlos Antônio
Leite Brandão que constam do texto de apresentação do livro Arquitetura: Interfaces, de Flávio Carsalade, iniciamos a “Parte II”2 de
nossas reflexões acerca das relações que envolvem arte, arquitetura
e filosofia no contexto das práticas artísticas contemporâneas que
invadem o espaço cotidiano, permitindo-nos a liberdade de articular ideias, discursos e práticas que nos pareçam afins.
Apenas como esclarecimento (para quem não teve acesso à
Parte I deste texto), quando aqui mencionarmos “práticas artísticas
colaborativas”, estaremos nos referindo a interações e intervenções
propostas por artistas contemporâneos e consideradas enquanto
Ω 1. BRANDÃO in CARSALADE, Flávio de Lemos. Arquitetura: Interfaces. Belo Horizonte: AP Cultural, 2001, p.11.
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R A Q U E L FA L C Ã O C O S TA
Tudo o que pode ser experimentado esteticamente pode também ser experimentado enquanto arte; arte e estética não só se sobrepõem, mas coincidem.5
Ω 2. A primeira parte deste texto: “Modos de Operar”, foi publicada em Lindonéia,
Belo Horizonte, ano 1, n. 0, dez. 2010.
Ω 3. BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.33.
Ω 4. JUSIDMAN, Yishai. InSITE, Art Issues, San Diego, n. 36, p. 46, jan./feb. 1995.
Ω 5. GREENBERG apud DE DUVE, Thierry. Kant depois de Duchamp. Art & Ensaios:
Revista do Mestrado em História da Arte da EBA/UFRJ, Rio de Janeiro, 1998.
Entre Marcuse, Rancière e Guattari (“Do ‘possível
ainda não realizado’ à ‘politicidade sensível’,
passando pela ‘ecosofia’”)
Pelo fato de a arquitetura ser responsável por configurar espaços de vida, muitas ações artísticas contemporâneas que lidam com
questões cotidianas aparecem entrelaçadas em práticas de “criação
de” ou “intervenção em” espaços domésticos e/ou urbanos, privados e/ou públicos. E enquanto arte colaborativa, muitas questões
referentes aos projetos só se definem mesmo no processo de ação
coletiva. Sendo propostas de community-based art, as práticas só se
realizam se o público entrar em ação. São proposições que precisam ser vivenciadas. São propostas que “investe[m] no potencial
emancipatório de uma dimensão estética transformada”6, uma
vez que levam os participantes a resgatar e construir identidades,
a questionar imagens estereotipadas, a vislumbrar e implementar
outros modos de vida e a lidar com o mundo de outras maneiras,
através de um processo de convivência e troca que vivencia a ética
como estética.
Mas modelos sociais alternativos propostos por arquitetos e
artistas não são uma novidade do mundo contemporâneo. Na segunda metade do século XIX, a teoria da arte socialista de William
Morris “sonhava com a arte como parte da vida cotidiana de todos
os membros da sociedade e a considerava inseparável da criação de
uma ordem social igualitária”7. Também as vanguardas modernas
do início do século XX desenvolveram seus projetos utópicos. Os
construtivistas-produtivistas, por exemplo, queriam a “arte como
pesquisa tecnológica em estética e arquitetura, cujos ‘achados’ seriam aplicados a serviço do progresso da sociedade”8. E os situaΩ 6. Palavras utilizadas por Aléxia Bretas para se referir ao trabalho de Lygia Clark,
mas que julgamos serem pertinentes a todas as práticas mencionadas neste capítulo. Cf. BRETAS, Aléxia. O Estado da Arte sem Arte, em Lygia Clark. 30 mai. 2007.
Disponível em: <http://dimensaoestetica.blogspot.com/2007/05/ dimenso-esttica-por-lygia-clark. html>. Acesso em: fev. 2011.
Ω 7. BRADLEY, Will; ESCHE, Charles. (Eds.). Art and Social Change: a critical reader.
London: Tate Publishing : Afterall, 2007, p.12.
Ω 8. Idem, p.13.
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exemplos de processos de trabalho compartilhado, desenvolvidos
junto a comunidades específicas – as chamadas práticas de community-based art. Podem ser práticas de reflexão, de criação, de expressão ou de intervenção capazes de potencializar a percepção das
pessoas em relação ao ambiente em que vivem e de contribuir para
transformar estruturas sociais e espaciais.
Tais práticas se desenvolvem no universo da “estética relacional” – conceito desenvolvido pelo escritor e crítico de arte francês
Nicolas Bourriaud, que encara a arte como um dispositivo capaz
de gerar relações entre as pessoas, considerando mesmo “o intercâmbio humano como objeto estético em si”3. E se valem de táticas
dialógicas para discutir questões políticas e sociais. Por este motivo,
há quem veja nos projetos de community-based art “a justiça promovida como novo valor estético supremo”4, o que nos leva a pensar
se a autonomia da arte ainda se mantém ou se a “obra” estaria em
função de servir a um bem comum maior. Particularmente, não
acreditamos que seja “função” da arte fazer justiça, fazer política
ou ensinar; “apenas”, que seja “da natureza da arte” ser política, ser
didática e pedagógica, e agir em resposta ao momento civilizatório
vivido pela humanidade, o que passa pela consideração das necessidades sociais nos diferentes contextos. O que podemos dizer é
que todos os projetos a que nos referimos foram desenvolvidos por
artistas. E na dúvida entre serem experiências “meramente” estéticas ou experiências artísticas, ficamos com as palavras de Clement
Greenberg, que afirma:
Ω 9. À época, lecionando na Califórnia, Marcuse tornou-se uma espécie de “guru”
dos estudantes nos acontecimentos de Maio de 1968 que tiveram mais visibilidade
na França e nos EUA, apesar de terem se estendido a vários outros países.
transformadoras da realidade social, material e espiritual, revelando-se como um caminho possível para tornar realizável a utopia
marcuseana.
Marcuse, falava da necessidade da emergência de uma “nova
sensibilidade” que fosse, ao mesmo tempo, crítica e capaz de compreender as contradições sociais efetivas ou, dito de outro modo,
da necessidade do desenvolvimento de uma “razão sensível” capaz
de livrar o homem de condições existenciais inumanas e promover
uma sociedade melhor, em que se atingisse o objetivo de viver bem.
E utilizava a arte como referência, enxergando na dimensão estética
a exemplaridade de uma existência em que seria possível uma relação de harmonia entre as instâncias intelectual e sensível.
Ampliando um pouco o horizonte dessas reflexões, permitimo-nos aproximar o pensamento de Marcuse do pensamento do
filósofo francês Jacques Rancière que, em seu livro A Partilha do
Sensível: estética e política, datado originalmente de 2000, defende
a ideia de exemplaridade política que advém de práticas artísticas
ou, em outras palavras, que as práticas artísticas se apresentariam
enquanto uma “politicidade sensível”. Rancière coloca o fato de se
dividir e compartilhar a experiência sensível comum, que se encontra (ou deveria se encontrar) na base da política, já como uma
experiência estética, e reforça o papel social e político das práticas
artísticas quando diz:
As práticas artísticas são “maneiras de fazer” que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de
visibilidade.10
Ou seja, práticas com potencial para intervir em tudo o mais à
sua volta, incluindo-se aí subjetividades e objetividades, pensamentos e ações.
Tais palavras de Rancière, por sua vez, encontram paralelo, a
nosso ver, no pensamento de Nicolas Bourriaud, quando este discorre sobre o “futuro político da formas”, dizendo que:
Ω 10. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005. p.17.
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cionistas, em meados do século XX, acreditavam na construção de
situações no cotidiano como meio de explorar o potencial de cada
um e romper com a alienação reinante. (Discursos que se assemelham em muitos aspectos). Parece-nos que um ponto de diferença entre as práticas contemporâneas e suas predecessoras é o
fato de que hoje, ao invés de proposições que se desejam de ordem
universal, temos o desenvolvimento de propostas locais, que atuam em microuniversos geográficos, sociais, políticos e culturais,
configurando micro utopias até certo ponto realizáveis, além de
serem propostas que se apresentam, em primeira instância, como
“experiência-ação” e não como manifesto ou discurso teórico (vide
as práticas desenvolvidas nas residências artísticas InSite_05 e A
Quietude da Terra, por exemplo).
Analisando alguns conceitos, acreditamos ter encontrado, nas
reflexões de certos filósofos e intelectuais, ideias que sustentam o
desenvolvimento de projetos como os que povoam o pensamento
e as ações artísticas contemporâneas, ainda que tais ideias não tenham sido elaboradas no âmbito em questão.
O filósofo alemão Herbert Marcuse (1892-1979), por exemplo,
representante da Escola de Frankfurt e um dos filósofos mais em
voga no momento do auge do Situacionismo9, traçou, segundo nosso ponto de vista, o panorama teórico quase perfeito para subsidiar
as práticas colaborativas e contextuais de community-based art. Seu
conceito de utopia, por exemplo, refere-se não a algo irrealizável
ou inatingível, mas a “algo possível ainda não realizado”. Como
filósofo da liberdade e da felicidade, mas também da práxis, Marcuse enxergava a possibilidade de transformação da realidade social
através do enfrentamento crítico do mundo dado, encarado e entendido, então, como realidade social não satisfatória. E como ideia
complementar, dizia que a arte seria, em si, a negação do mundo
dado, a responsável por revelar a “Grande Recusa” ao mundo dado.
Diante disso, ousamos dizer que as práticas artísticas colaborativas
comparecem como responsáveis por várias experiências críticas e
(Compreendendo o significado de “forma”, aqui, no sentido
amplo de “plasticidade”, que abrange, inclusive, a noção de dinamismo e recepção)12.
Na sequência deste raciocínio, ainda com as ideias de Bourriaud sobre arte e política, temos que:
[...] a ação política mais eficaz para o artista é mostrar o que pode ser feito com
o que lhe é dado. [O que] não significa a esperança em uma revolução, mas a
manipulação das formas e das estruturas que nos são apresentadas como eternas
ou “naturais”.13
É importante também considerar que Marcuse desenvolveu
suas reflexões em continuidade das reflexões estéticas de Schiller
que, em suas cartas sobre A Educação Estética do Homem, citou a
arte como “o mais eficaz de todos os móveis”, “formadora de almas”, locus da amarração do juízo estético à razão prática14. Para
Schiller, a educação estética era a responsável pelo desenvolvimento
intelectual e sensível do homem. Sua valiosa contribuição estava na
capacidade de permitir ao homem o “estado de jogo”, a “disposição
lúdica”, responsável pela condição de plenitude humana. Condição
esta que levaria o homem a suportar a “dificultosa arte de viver” e
a querer aperfeiçoar o mundo em que vive, ou seja, a sensibilidade
cultivada levaria à nobreza de atitude capaz de transformar a realidade (vide epígrafe da Parte I).
O artista Joseph Beuys, em sua conferência A revolução somos
nós, também citou Schiller, ao falar do limite da liberdade que há na
Ω 11. BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009,
p.116.
Ω 12. O pensamento é também um acontecimento plástico; a enunciação, a discussão, são plásticas, na medida em que são da ordem da apresentação, da exposição. A
própria recepção tem a ver com “tomada de forma de algo”, com o modo como algo
se configura para nós.
Ω 13. BOURRIAUD, Nicolas. Quést-ce qu’un artiste (aujourd’hui). Beaux Arts Magazine, Paris, 2002. Tradução de Felipe Barbosa para a revista do Programa de pós-graduação em Artes Visuais, EBA/UFRJ, no. 10, 2003.
Ω 14. SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. 4.ed.São Paulo: Iluminuras, 2002.
atividade científica (que se submete ao pensamento lógico), se comparada à arte, dizendo que o esteta “afirmou algo extremamente
justo: a liberdade, em sua forma mais pura e absoluta, só pode ser
encontrada na atividade lúdica”. E, ainda: “apenas o homem que
joga, livre dos vínculos da lógica, sensível apenas às injunções [...]
da estética, apenas o homem que se autodetermina é um homem
livre”.15
Marcuse refletia sobre a possibilidade de uma arte capaz de
libertar o homem e integrá-lo à vida, em contraposição à experiência artística que representava um ideal impossível de ser realizado
e, portanto, instaurava uma cisão radical entre arte e mundo, entre
arte e vida. Defendendo esta ideia, em Arte e Revolução ele propõe o
[..] retorno a uma arte “imediata” que responda não só ao intelecto e a uma
sensibilidade refinada [...] (e seja o agente de sua ativação), mas seja também, e
primordialmente, uma experiência sensorial “natural”, emancipada dos requisitos de uma sociedade exploradora em crescente envelhecimento.16
Ideia que se traduz na proposta de antiarte de Hélio Oiticica.
Aliás, nas cartas trocadas entre Hélio Oiticica e Lygia Clark,
durante os anos de 1968-1969, é possível perceber claramente que
Oiticica encontrou em Marcuse um aporte filosófico para suas propostas artísticas. Segundo o artista, a dinâmica de relações que em
suas proposições liberava as pessoas de seus condicionamentos,
abrindo-as para novas possibilidades, propiciava o que o filósofo
alemão chamava de “liberação do Eros”17, que se encontrava quase
sempre reprimido por atividades opressoras. (Em seu livro Eros e
Civilização, de 1969, Marcuse apresenta uma consideração sobre
a arte como fator de resistência contra a reificação das pessoas e
das relações sociais, além de mencionar a hipótese “da própria vida
vir a se tornar arte” numa sociedade que tivesse superado a reificaΩ 15. SCHILLER apud BEUYS, Joseph. A revolução somos nós (1972). In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Orgs.). Escritos de Artistas: anos 60/70. 2. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 305.
Ω 16. MARCUSE, Herbert. Contra-revolução e Revolta. Rio de Janeiro: Zahar, 1973,
p.83.
Ω 17. “Eros” aqui entendido como “pulsão de vida”. E considerando-se que o desejo é
plástico, é nessa plasticidade das pulsões que Marcuse enxergava a possibilidade de
transformação da mente do indivíduo.
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[...] a forma produz ou modela o sentido, orienta-o, leva-o a repercutir na vida
cotidiana.11
Ω 18. CLARK, Lygia; OITICICA, Hélio. Letters: 1968-69. In: BISHOP, Claire (Ed.).
Participation. Documents of Contemporary Art. Londres: Whitechapel / Cambridge:
The MIT Press, 2006, p. 113-116.
Ω 19. GUATTARI, Félix. As Três Ecologias. Campinas: Papirus, 2002.
Ω 20. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? São Paulo: Editora
34, 1992.
Ω 21. BOURRIAUD, Estética Relacional, p.120-121.
como uma “estética potencial”22, que pode se tornar consistente de
várias maneiras. E que nos remete, diretamente, às concepções situacionistas e às relações entre potencial e real, e virtual e atual,
mencionadas na Parte I (“Modos de Operar”) deste texto.
A partir daí, a correlação com o “conceito dinâmico de essência” elaborado por Marcuse faz-se, então, inevitável. Este conceito,
que aponta para aquilo que os homens podem ser a partir da utilização de suas potencialidades diante da dura realidade em que vivem
pode ser considerado sob medida para definir o foco de trabalho
das práticas de community-based art, que envolvem as comunidades
em novas formas de pensamento, em novas histórias e visões para
o futuro, que lhes permitirão modelos renovados de organização
social, econômica e política.
Por tudo isso, enxergamos nas práticas artísticas colaborativas
– que se baseiam na troca como práxis criativa, que encorajam e
promovem a autorreflexão para além da interação social cotidiana,
que trabalham a dimensão estética em toda a sua amplitude, possibilitando novos modos de ver e viver a vida – a possibilidade de
realização de micro utopias e o ponto de partida para a instauração
de novos modelos de sociabilidade, pautados em uma nova sensibilidade.
Diríamos que as práticas artísticas colaborativas, em sua maioria, unem o ócio (skolé – que lida com as coisas do espírito: o verdadeiro, o bem e o belo) ao trabalho físico (que seria o responsável
pelas condições materiais que permitem uma existência digna e,
neste aspecto, feliz). Entretanto, é importante ressaltar que as experiências estéticas dialógicas que se desenvolvem através das práticas artísticas que se baseiam em coprodução e em co labor não
abolem o “sensorium inédito” indispensável à experiência sensível,
até porquê, disso depende a força da proposta de um novo olhar
sobre a vida e as coisas do mundo – é fundamental para que se enxergue uma “nova arte de viver” –, mas isso é explorado no contexto
natural do cotidiano. E o artista/arquiteto propositor de tais práticas
contemporâneas, apresenta-se como um construtor de novas formas de vida.
Ω 22. BOURRIAUD, Estética Relacional, p.120-121.
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ção característica do capitalismo monopolista). Oiticica diz, ainda,
a Clark, que o filósofo chega a propor uma “sociedade biológica”,
des-repressora e baseada na comunicação, em consonância com as
experimentações por ela propostas.18
Na orientação de uma sociedade pautada em um sistema biológico encontramos também o pensamento de Félix Guattari que,
em As três ecologias, propôs a ideia de uma “ecosofia mental”, que
coloca a relação de interdependência entre ambiente, meio social e
subjetividade individual como definidora de um paradigma ético-estético-operacional, no âmbito do qual a atividade artística atuaria
no sentido de contribuir para a construção de “territórios existenciais” singulares19. Aproximando-se ainda mais das propostas de
Clark, Guattari, juntamente com Gilles Deleuze, definiu a atividade artística como o conhecimento do mundo “por perceptos e afetos”20.
Poderíamos também relacionar o que Bourriaud chama de “realização experimental da energia artística”21 (quando se refere às
“situações construídas” pelos situacionistas em substituição à representação artística) com a prática de Lygia Clark e, de uma maneira geral, com todas as demais práticas que se inserem no universo
artístico a que aqui nos referimos, já que consideramos a expressão
um sinônimo do que entendemos por “prática ou ação estética”,
que envolve “presença” para além de representação, sendo capaz de
gerar um outro nível de relação interpessoal e entre as pessoas e o
mundo. Observando as práticas artísticas colaborativas atuais, suas
interações e intervenções, confirmamos o acerto de Guattari em
fornecer à estética um paradigma operacional (contexto em que o
artista se apresenta, mais uma vez, menos como autor e mais como
operador). E percebemos que tal “realização experimental da energia artística”, em seu caráter vivencial, assim como a “estética relacional”, caberiam dentro do que Bourriaud identificou em Guattari
Ω 23. HUCHET, Stéphane. A “elasticidade” da arte para com a política: breves bases
históricas e críticas. In: COLÓQUIO DO COMITÊ BRASILEIRO DE HISTÓRIA
DA ARTE, 30, 2010, Rio de Janeiro. (texto a ser publicado ainda este ano nos Anais
do XXX Colóquio do CBHA).
Ω 24. RANCIÈRE, Jacques. Será que a arte resiste a alguma coisa? Disponível em:
<http://www.rizoma.net/interna.php?id=316&secao=artefato>. Acesso em: fev.
2008., discorrendo sobre a ideia de Schiller, para quem a arte é portadora de promessa na medida em que consiste no resultado de algo que, para os que o fizeram,
não era arte.
aproximação clara e natural entre as ideias de Marcuse, Rancière, e
Guattari e as práticas artísticas colaborativas da contemporaneidade, bem como consideramos que tais práticas, sendo ou não consideradas “arte”, “a partir de” ou “contra” qualquer discurso, são,
acima de tudo, essenciais e inevitáveis no panorama de transição e
no mundo vulnerável em que vivemos.
Particularmente, acreditamos que o “construto estético”25 possa, ao mesmo tempo, se dar tanto de forma mais subjetiva quanto
interferir diretamente na realidade dada, por vezes abrindo mão do
objeto artístico em prol de uma vivência estética de maior amplitude e de aplicação mais direta na vida cotidiana. π
Ω 25. Termo utilizado por DUARTE, Rodrigo. Da “cultura afirmativa” à subjetividade
criativa. In: Dossiê Herbert Marcuse. Cult – Revista Brasileira de Cultura, São Paulo:
Editora Bregantini, n.127, p.59, ago. 2008.
50
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Pode ser que a liberdade de ação e a autonomia em relação à
necessidade presencial de um objeto artístico que configure a obra
de arte – princípios tão caros, necessários e, quase sempre, definidores das práticas artísticas colaborativas contemporâneas, que são
processuais por natureza – levem à ideia de supressão da arte, na
medida em que as formas artísticas se transformariam em formas
de um mundo sensível comum. Ou colocado de outro modo, cairíamos nas ideias de Nikolai Tarabukin, segundo as quais o “horizonte
da morte da arte [se daria] na forma de sua metamorfose em outro
regime produtivo”23. Neste caso, estaríamos a caminho de uma sociedade não alienada, em que as experiências coletivas se dariam
em comunhão e a arte não seria mais necessária enquanto “alienação da alienação”, certo? Viveríamos, então, a ideia de que “um
povo livre é aquele que não conhece a arte como realidade separada;
que não conhece a separação da experiência coletiva em formas distintas chamadas arte, política ou religião”24. Será?
Marcuse não abria mão, à princípio, da “forma” artística (enquanto objeto configurado) como elemento indispensável à obra
de arte (pelo menos é o que aparece na maioria de suas reflexões,
entretanto, devemos considerar que os tempos eram outros e que
houve um momento de exceção, quando em Arte e Revolução ele
pensa seriamente na possibilidade de abandonar a “forma” estética). E é provável que a própria Filosofia (além de uma grande maioria de pensadores interessados no assunto) acredite que para os
atuais projetos artísticos colaborativos (“a arte como projeto e prática processual”) talvez seja necessário que se conceba um novo conceito, diferente dos conceitos de “arte” ou “obra de arte” vigentes
(quais são mesmo os conceitos vigentes, no campo ampliado [in]definido pela arte contemporânea?). Apesar disso, enxergamos uma
Ines Linke e Louise Ganz, This Land Your Land, Muro Jardim, Belo Horizonte, 2011
Ines Linke e Louise Ganz, This Land Your Land, BikeFoods, São Paulo, 2011
Estación Darío y Ma xi,
uma leitura
(graduada na EBA/UFMG e em direção de cinema pela EICTV-Cuba)
Tardé en comprender, o en ver, que lo que buscaba se situaba en algún lugar de
una visión periférica, en los bordes de la imagen, en un punto impropio más allá
de la línea del horizonte, ahí donde se producen los espejismos (Francis Alÿs.
Historia de un desengaño, 2003-2006).
Estas escrituras no admiten lecturas literárias; esto quiere decir que no se sabe
o no importa si son o no son literatura. Y tampoco se sabe o no importa si son
realidad o ficción. Se instalan localmente y en una realidad cotidiana para ‘fabricar presente’ y ese es precisamente su sentido (Josefina Ludmer. Literaturas
postautónomas, mayo 2007).
Os rostos dos que frequentam a linha de metrô vão se transformando à medida que nos aproximamos da estação final em
Constitución. As mocinhas e os rapazes, as mulheres maquiadas, os
senhores elegantes, o jornal. Pouco a pouco, outros vão entrando
e permanecendo, enquanto aqueles imperceptivelmente desaparecem; traços indígenas, cabelos por fazer, roupas velhas de frio,
aparências cansadas do trabalho.
Ao chegar à estação, desço. Junto a outros desconhecidos, caminhamos apressados por corredores escuros. Em um momento,
tudo se abre, a estação é imensa, possui várias saídas, é o lugar
onde a linha de metrô se bifurca com outras linhas de trem.
Na rua a paisagem é desolada, como se estivesse em construção. É noite, início do inverno, o frio adentra no casaco pelas gotículas de chuva e vento. Vou andando como se soubesse aonde ir, não
ouso pedir nenhuma informação. De repente vejo as letras de néon
de um hotel e leio “América del Sur”. Isso me dá um súbito alento,
Constitución se parece com o bairro República de São Paulo, inclusive ali estava o hotel América do Sul onde sempre nos hospedamos,
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C L A R A A L B I N AT I
subgrupo era formado, por sua vez, por grupos menores. No caso
das artes visuais, estavam presentes alguns coletivos já conhecidos,
como os Iconoclasistas1 e o Etcétera. Também participavam alunos
de faculdades de arte, coletivos vindos de centros culturais periféricos, artistas mais velhos. Toda uma diversidade de gente, concepções do que era arte e ideias sobre o que fazer na estação.
-*-*Hemeroteca.
Quinta-feira, 27 de junho de 2002: um massacre ocorreu no
dia anterior, durante manifestação de piqueteros, entre a Av. Pavón,
puente Puyerredón e a estação de trens em Avellaneda. Dois piqueteros são mortos e muitos outros feridos. Os mortos são Darío Santillán e Maximiliano Kosteki: “E estavam os piqueteros mais radicalizados, alguns impulsionados pela fome, outros decididos a entrar em
choque, com caras tapadas, paus e gomeras”. “No Senado Nacional,
um dia atípico em que legisladores de todos os partidos preferiram
não dizer uma palavra da repressão”.2
Sexta-feira, 28 de junho de 2002: “Informe preliminar determina que os piqueteros Darío Santillán e Maximiliano Kosteki
foram mortos por disparos de escopeta com balas de chumbo”.
“Existe a convicção sobre a chegada de piqueteros com armas dessas
características”. “O governo afirmou ontem sua política de maior
dureza frente à possibilidade de interrupção de rotas e pontes como
forma de protesto”. “O fotógrafo do Clarín Pepe Mateos conseguiu
na quarta um documento fotográfico excepcional: a sequência que
mostra os instantes finais da vida do piquetero Darío Santillán”.3
“Milhares de gargantas contra a impunidade. Esta noite somos todos piqueteros”.4
Sábado, 29 de junho de 2002 / Clarín: “as imagens [...] demonstram que Santillán – que enfrentou a golpes um cordão policial no começo dos incidentes – não morreu em combate. Estava de
joelhos, atendendo a Kosteki; ao ver os policiais, pediu clemência
Ω 1. Cf. http://www.iconoclasistas.com.ar.
Ω 2. Clarín, Buenos Aires, 27 jun. 2002. p. 11. (Trad. nossa.)
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o hotel do português rabugento que dá para a Praça da República.
As táticas de sobrevivência devem ser as mesmas.
Enfim chego ao número indicado: uma construção enorme,
compacta, sem janelas e com um portão. O portão é de ferro ou
madeira e está escorado. Procuro uma campainha, vejo que não
existe, há uma fresta onde tento ir acomodando a cara o melhor que
posso, então, grito pra que me escutem lá dentro. Dois camaradas
aparecem, abrem a porta e entro.
O lugar era um grande galpão. Havia umas 40 pessoas espalhadas que aos poucos iam se concentrando em forma de roda. Alguns me abraçam. Não me perguntam nada, quem sou, de onde
venho, o que faço ali.
Numa das paredes, um mural com informações variadas: recortes de jornais, dicas para problemas recorrentes do cotidiano,
uma lista de alimentos e horários. Acima disso, estava escrito TALLER-COMEDOR. Então pensei que aquele galpão deveria ser um
taller-comedor (em português, algo como “oficina-refeitório”), sem
saber exatamente o que era isso.
Numa das esquinas, havia uma pequena cozinha. Ao fundo,
dois cômodos iluminados, onde não entrei e onde parecia morar
uma família com crianças. Algumas pessoas dessa família pertenciam ao movimento, às vezes apareciam e davam uma opinião,
outras vezes, desde os quartos, entoavam com as crianças slogans
revolucionários.
A reunião se compunha de duas partes. Na primeira, quando
se discutiam temas gerais, decidia-se sobre quais seriam as grandes
ações coletivas e como viabilizá-las. Neste ano a grande ação seria
uma marcha com tochas (marcha de antorchas). Para tanto, era necessário confeccionar o maior número possível delas. Além disso,
nessa parte da reunião, planejava-se o lugar de cada trabalho no
espaço da estação. Esquemas eram traçados sobre grandes folhas
de papel dispostas de improviso no chão, sobre as quais uma ou
duas crianças brincavam e às vezes deixavam seus desenhos nas
beiradas.
Na segunda parte, nos dividíamos em subgrupos de acordo
com as áreas: artes visuais, teatro, dança, música, vídeo e TV. Cada
com sua mão direita. Levantou-se rapidamente e tentou escapar
correndo, mas lhe atiraram pelas costas”. A culpa dos incidentes
recai sobre o comissário Alfredo Franchiotti, que dirigiu a repressão em Avellaneda. O comissário aparece nas fotografias, apontando a escopeta e arrastando Santillán já ferido para fora da estação.
O presidente argentino, Eduardo Duhalde, classifica a ação policial
como uma “caçada atroz”.5
Sábado, 29 de junho de 2002 / Página/12: pretende demonstrar o envolvimento do governo na ação criminosa e que Franchiotti não estava sozinho: “houve outros policiais disparando também
com balas de chumbo em outros lugares de Avellaneda”. Havia
“gente de civil disparando com escopetas, misturados com a polícia. [...] estavam vestidos como gente normal, quero dizer sem gorros, não disfarçados de piqueteros”.6
Domingo, 30 de junho de 2002: fatos e provas. Os policiais atiravam com balas de chumbo e utilizavam pistolas não registradas
(armas “perro”), assim como se infiltraram entre os manifestantes
com a intenção de provocar tumultos e incriminá-los. Além das forças policiais do município, atuaram também as federais, os policiais
agiram sob orientação do governo de reprimir com mano-dura. Um
relato sobre as vidas de Darío Santillán e Maximiliano Kosteki: dois
jovens que, assim como a maioria dos piqueteros, vieram de famílias
de classe média baixa, empobrecida durante as últimas décadas e a
crise. Trabalhavam para refeitórios e hortas comunitárias.7
siguen, marchan, viven, escriben la historia, tierra, vivienda, estación
Darío y Maxi. Aí estavam as fotografias realizadas pelos que estiveram presentes nas manifestações piqueteras. Estavam também
pinturas e desenhos inspirados nas fotografias que saíram nos jornais. E os stencils, uma síntese dessas imagens transformadas em
símbolos: o pneu, o material comburente, o líquido vermelho, o
piquetero, rosto encoberto, e outra vez o pneu, Darío e Maxi juntos.
Estes eram os restos-vestígios-ossos das ações dos anos de
2003 a 2006. Estávamos a alguns dias das próximas manifestações.
-*-*La estética de las buenas causas, sob essa denominação Beatriz
Sarlo escreve uma crítica a respeito das manifestações de arte-política mais recentes na Argentina. No texto homônimo publicado
na revista Punto de Vista, dá vários exemplos de manifestações que
incorreriam nessa estética. Um deles trata das ações em nome de
Kosteki e Santillán, um convite aberto a todos que queiram levar desenhos, pinturas, poemas, recordações ou fotos à estação de trens
onde os piqueteros foram assassinados. Os objetos seriam organizados no lugar de modo a criar um monumento social permanente.
O desagravo de Sarlo parece estar na impossibilidade que encontra em construir um julgamento que possa “tornar independente
a prática artística da oferenda levada ao lugar de um assassinato
político”8.
-*-*-
Ω 3. Clarín, Buenos Aires, 29 jun. 2002. p. 3, 6, 10, 11. (Trad. nossa.)
Ω 4. Página/12, Buenos Aires, 28 jun. 2002. p. 8-9. (Trad. nossa.)
Ω 5. Clarín, Buenos Aires, 29 jun. 2002. p. 3-5. (Trad. nossa.)
Ω 6. Página/12, Buenos Aires, 29 jun. 2002. p. 3. (Trad. nossa.)
Ω 7. Página/12, Buenos Aires, 30 jun. 2002. p. 2, 3, 13. (Trad. nossa.)
O que fizemos na estação pode ser considerado arte? No dia
25 de junho de 2007, logo de manhã, estávamos ali. Na entrada,
muitos trabalhavam em “restaurar” o que havia restado das fotografias e desenhos dos anos anteriores, assim como pregavam novas imagens, preocupando-se se estavam retas e bem distribuídas
no espaço. Para algumas, utilizavam placas de proteção de acetato
Ω 8. SARLO, Beatriz. La estética de las buenas causas. Punto de Vista, n. 85, 2006.
(Trad. nossa.)
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-*-*Na estação: colagens, fotografias, desenhos, pinturas, palavras
de ordem em todas as paredes; nos banheiros, no café, no hall onde
Darío e Maxi morreram, nos corredores e lugares de espera. Letras
e palavras inteiras se perderam, outras meio fantasmas ainda estavam ali: oprimidos, caminan, hablan, no están solos, vuelven, insisten,
-*-*Outro aspecto para medir o valor de ações como as de Darío y
Maxi é o da eficácia política. Mas como valorar a eficácia?
De acordo com La estética de las buenas causas de Beatriz Sarlo,
a eficácia desse tipo de manifestações é questionável. Sarlo contra-
põe essa experiência e outras semelhantes ocorridas atualmente na
Argentina a performances realizadas nos anos 70. Usa como exemplo Chris Burden, que, num contexto de guerra (Vietnã), utiliza seu
próprio corpo como espaço de violência e crítica.
A escolha dos anos 70 (final dos 60, começo dos 70) como
contraponto de resistência superior aos da atualidade, remete-nos
aos “velhos tempos” em que a “Revolução era possível” ou, melhor,
da romântica utopia da revolução possível ou do sonho. “Era um
momento juvenil, revolucionário, romântico e radical”9.
Muitas posições, tanto de defesa como de crítica aos esforços
revolucionários dos anos 60-70, se vinculam à compreensão de
revolução como um “acontecimento unidimensional” (termo desenvolvido por Gerald Raunig, filósofo austríaco contemporâneo);
o que significa pensar revolução como insurreição unicamente (por
isso seu aspecto unidimensional), como uma grande e única ruptura, cujo objetivo é a tomada dos aparatos de Estado, levando, através
de um processo “etapista”, a uma sociedade futura sem conflitos.
Contrapondo-se a essa noção, Gerald Raunig trabalha a ideia
de revolução tridimensional (seus estudos têm como base Antonio Negri, Gilles Deleuze, Félix Guattari e suas respectivas leituras
da obra de Karl Marx). Primeiramente, Raunig entende revolução
como “longo, ininterrupto movimento que já está presente na palavra latina revolvere, revolução como um constante ‘girar’ [turning]
de circunstâncias”10. Tridimensional, a revolução é constituída por
três bases essenciais: a resistência, o poder constituinte e a insurreição – elementos indivisíveis que compõem máquinas (assemblages mecânico-intelectual-sociais) de revolução.
A resistência existe sempre onde há poder, nunca em uma posição de exterioridade em relação a ele. Deve ser entendida como
heterogênea, como uma multiplicidade de pontos, moléculas, sem
um centro, em constante transformação.
O poder constituinte existe em sua relação de conflito com o
poder constituído,
Ω 9. SARLO, Beatriz. La estética de las buenas causas. Punto de Vista, n. 85, 2006.
(Trad. nossa.)
Ω 10. RAUNIG, Gerald. Art and Revolution: transversal activism in the long twentieth century. Los Angeles: Semiotext(e), 2007. p. 27. (Trad. nossa.)
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transparente. Ali também um canal de televisão era montado, as
imagens da estação seriam transmitidas ao vivo para televisões próximas e num telão instalado no local. Numa área aberta havia um
palco, barraquinhas com DVDs de documentários de realizadores
de um grupo operário, máquinas de costura onde mulheres trabalhavam na feitura de uma bandeira gigante com os rostos de Darío
y Maxi e materiais para as tochas da grande marcha. Subindo para
onde passavam os trens, muitos grupos pintavam murais. O coletivo Etcétera preparou impressões em preto e branco de meninos
de rua em tamanho natural, os Miguelitos, que colaram por toda
estação. Os Iconoclasistas prepararam materiais gráficos com textos
que criticavam a política kirchnerista. Para todo o dia, eram previstas apresentações de dança, música e teatro. Tudo era realizado nos
pequenos espaços da estação.
O que em tudo isso era arte? As fotografias? Os desenhos? Os
murais? As colagens? O canal de TV? O canal sendo montado no
momento? As bandeiras? As bandeiras sendo costuradas por mulheres e suas máquinas na estação? As tochas? As campanhas para
conseguir os materiais para as tochas? As barraquinhas? A soma
dos trabalhos daquele ano com os dos anos anteriores? Que todos
se ajudassem? Ou seria o processo (ou também o processo)? Os
encontros semanais no Taller-Comedor em Constitución. As discussões sobre se as “obras” deveriam ser “efêmeras” ou durar (utilizar
ou não acetatos). O caminho solitário até o galpão, até o encontro
com as pessoas e depois voltar pra casa. Faz diferença se era inverno? As tardes nas hemerotecas. A coleção de notícias de jornais. As
experiências-vivências-impressões pessoais dos outros. O depois
das ações é também arte? As fotografias e textos em blogs e indymedia...? Ou este mesmo texto agora?
expectativas no futuro. Assim, resistindo à “incomensurabilidade
estancada”, à “indiferença plana”14. π
A insurreição é a ruptura, o evento; enquanto resistência e
poder constituinte se caracterizam pela duração (duram, transformando-se).
Gerald Raunig utiliza essa compreensão de revolução – aqui
apenas rapidamente esboçada – para tentar pensar os abundantes
movimentos de arte-ativismo na Europa, como o EuroMayDay12 e o
NoborderNetwork13.
Acredito que também podemos pensar nossas experiências
latino-americanas a partir daí (ou também a partir daí). Nesse sentido, Darío y Maxi é um coletivo de coletivos, uma formação momentânea que reúne grupos de arte, agrupações operárias, estudantis,
piqueteras, de bairros (asambleas). Estes coletivos (moléculas), por
sua vez, reúnem-se sob outras formas, em outras circunstâncias:
manifestações de estudantes, reuniões nas asambleas, manifestações piqueteras... Previamente a cada acontecimento, há encontros,
debates, ações paralelas: cada grupo integrante está em transformação. Há, por fim, o momento escolhido para a realização da ação,
o evento. Portanto: elementos da resistência, poder constituinte e
insurreição.
Esses aspectos devem ser mais estudados nessa manifestação,
bem como em sua conexão com outras semelhantes, objetivando
estabelecer uma crítica rigorosa sem, entretanto, bloquear de imediato o valor da eficácia política das ações, o processo – revolvere –
infinito da construção do homem pelo homem.
No mesmo sentido, nossos esforços poderiam concentrar-se
em pensar e trabalhar paradigmas que abarquem as manifestações
atuais da arte, em sua multiplicidade de formas, relações e contextos, expandindo-as, vivenciando-as no presente e também com
Ω 11. RAUNIG, Gerald. Art and Revolution: transversal activism in the long twentieth century. Los Angeles: Semiotext(e), 2007. p. 27. (Trad. nossa.) p. 66.
Ω 12. Cf. http://www.euromayday.org.
Ω 13. Cf. http://www.noborder.org.
Ω 14. Cf. FOSTER, Hal. Funeral para el cadáver equivocado. Milpalabras: Letras y
artes en revista, n. 5, p. 39-52, 2003. p. 44.
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Estabelecendo possibilidades e procedimentos fora do poder constituído, fora dos
aparatos de Estado, experimentando com modelos de organização, formas coletivas e modos de ser/fazer, que resistam – ao menos temporariamente – à reterritorialização e à estruturalização.11
Lucas DELFINO, Barraca em toca de garimpeiro, 2011
Lucas DELFINO, Estrangeira no mar da Bahia, 2011
Lucas DELFINO, Venda de desenhos de viagem, 2011
Homens das solas de
vento, cidades dos
ca lca nh a re s de a sfa lto
(mestre EA-UFMG)
– Mas tantas memórias. A gente tem tantas memórias. Eu fico pensando se o
mais difícil no tempo que passa não será exatamente isso. O acúmulo de memórias, a montanha de lembranças que você vai juntando por dentro. De repente
o presente, qualquer coisa presente. Uma rua, por exemplo. Há pouco, quando
você passou perto de Pinheiros eu olhei e pensei: eu já morei ali com o Beto. E
a rua não é mais a mesma, demoliram o edifício. As ruas vão mudando, os
edifícios vão sendo destruídos. Mas continuam inteiros dentro de você. Chega
um tempo, eu acho, que você vai olhar em volta sem conseguir reconhecer nada.
– As ruas morrem – repetiu Pérsio. – As casas morrem.
– Eu sei, eu sei. Mas você não sente medo?
Caio Fernando Abreu
Signos para rotação
Das situações dos (e nos) sítios, um pequeno dicionário – ou
inventário ou breviário – situacionista repercutente e renovado pelo
fôlego temporal, cultural, citadino e cidadão, sobremaneira artístico: sensorialidades compartilhadas, partidas e contrapartidas da
partilha das ruas, pois andar a pé – antes e igualmente hoje –, o
chão e o uso do chão indicam tanto uma incontinência quanto um
dédalo muito aproveitável na contemporaneidade do extravasado e
do extraviado urbano, por sua adversidade e por sua exterioridade,
“nossa cultura não podia pensar anteriormente sobre o complexo,
apesar de outras culturas terem podido fazê-lo com maior facilida-
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JOSÉ SCHNEEDORF
Além da manipulação física dos locais, este termo também se aplica a outras
formas de demarcação. Essas formas podem operar através da aplicação de marΩ 1. KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Arte & ensaios – revista do
programa de pós-graduação em artes visuais da EBA – UFRJ, Rio de Janeiro, ano
XV, n. 17, p. 129-137, dez. 2008. p. 134-135.
Ω 2. LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Lisboa: Edições 70, 1990. p. 10.
Ω 3. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 26.
cas não permanentes, [...] forma [...] fotográfica e política de demarcar um local.
[...] Em todas essas estruturas axiomáticas existe uma espécie de intervenção no
espaço real da arquitetura.4
Arrolados, sabemos que podemos seguir frente ao verde, e que
devemos parar frente ao vermelho. Sabemos que a necessidade, a
procura e a promessa do encontro estavam guardadas nas páginas
amarelas, estão aguardadas nas redes sociais. Sabemos as segregações da vestimenta. Sabemos que os uniformizados têm o acesso a
nos interpelar, sabemos que por tal devemos sempre portar nosso
número, código de barras do convívio. Sabemos que a sirene anuncia urgência e preferência. Sabemos os imperativos, os construtos e
as normalizações, e a elas devemos estar sempre dispostos, porque
o uno deve conceder ao bom funcionamento do todo, sob pena de
caos, “a disposição à ordem, essencial para a civilização, como [...]
uma repressão semelhante”5.
Sabemos, ou bem tentamos saber, andar reto pelo incerto.
Apesar de alguns problemas ainda por decifrar, hoje parece improvável que exista
qualquer “instinto” místico associado à descoberta de caminhos. Pelo contrário,
há um uso e uma organização consistentes de indicadores sociais inequívocos a
partir do ambiente externo. Essa organização é fundamental para a eficiência
e para a própria sobrevivência da vida em livre movimento. Perder-se completamente talvez seja uma experiência bastante rara para a maioria das pessoas
que vivem na cidade moderna. [...] Contra a importância da legibilidade física,
pode-se argumentar que o cérebro humano é maravilhosamente adaptável, que,
com alguma experiência, é possível aprendermos a encontrar os nossos caminhos
até mesmo num entorno dos mais desorganizados e descaracterizados.6
Nesse entorno codificado por esforço geral, e codificável por
esforço particular, “cada cidadão tem vastas associações com alguma parte de sua cidade, e a imagem de cada um está impregnada
de lembranças e significados”7, em direto reflexo na sua mobilidade
– e vice-versa. Quanto mais se equipam as metrópoles, mais impossível o exercício do extravio ignorar a defrontação dos signos; mais
Ω 4. KRAUSS, A escultura no campo ampliado, p. 135-136.
Ω 5. FOSTER, Hal. The return of the real: the avant-garde at the end of the century.
London: MIT Press, 1996. p. 160. (Trad. nossa).
Ω 6. LYNCH, A imagem da cidade, p. 4-5.
Ω 7. LYNCH, A imagem da cidade, p. 4-5.
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> Anônimo, pichação, Belo Horizonte (fotografia
do autor, 2009).
de. Labirintos e trilhas são ao mesmo tempo paisagem e arquitetura”1.
A agigantada megalópole é mosaico de construções e de respirações; é aparte de apartamentos; faustosa de corredores e de
muramentos, seja impedimento, seja intervalo; pletora de gargalos e aglomerações; miríade
de vozes e de silêncios; eivada
de ontens e de hojes e de amanhãs; pérsica, constelacional de
simultaneidades e provisoriedades arquitetônicas, vide ruínas, vide gruas. É também uma
imagem – em movimento. “A
imagem da skyline, da silhueta
[da cidade] pode ser um símbolo de vitalidade, poder, decadência,
mistério, congestionamento, grandiosidade ou o que mais se queira, mas, em cada caso, essa imagem vigorosa cristaliza e reforça
o significado”2 pretendido pelo simbólico, ou dele resultado, bem
como o significado da cidade em si e do que para ela conflui e a
ela se incorpora: o significado das conquistas humanas e de seus
despojos, o significado da opção e do grau da vida comunitária.
Demarcar os locais é o Teseu testemunhado das convenções, dos
pactos humanos; testemunhos sociais e testemunhos políticos, de
fortes braços e “fortes traços de suas fortalezas internas, que precisam primeiro ser conquistadas e ocupadas, antes que possamos
controlar seu destino e, em seu destino, no destino das suas massas, o nosso próprio destino. [...] É aqui, portanto, que podemos
encontrar o catálogo daquelas fortalezas”3: demarcar os locais é traduzir, nas diferentes legibilidades, o catálogo.
> Anônimo, pichação, Belo Horizonte (fotografia
do autor, 2008).
A multidão desperta no homem que a ela se entrega uma espécie de embriaguez
acompanhada de ilusões muito particulares. [...] Uma embriaguez apodera-se
daquele que, por um longo tempo, caminha a esmo pelas ruas. A cada passo, o
andar adquire um poder crescente; as seduções das lojas, dos bistrôs e das mulheres sorridentes vão diminuindo, cada vez mais irresistível torna-se o magnetismo
da próxima esquina, de uma longínqua massa de folhagem, de um nome de
rua. [...] Aquela embriaguez amnésica, na qual o flâneur vagueia pela cidade,
não se nutre apenas daquilo que lhe passa sensorialmente diante dos olhos, mas
apodera-se frequentemente do simples saber, de dados inertes, como de algo experienciado e vivido. [...] A categoria da visão ilustrativa é fundamental para o
flâneur [...], o flâneur compõe seus devaneios como legendas para as imagens.
[...] A cidade é a realização do antigo sonho humano do labirinto. O flâneur,
sem o saber, persegue esta realidade.8
Flanar ou estar à deriva na multidão “representa apenas uma
saliência numa cartografia móvel. [...] Entra numa cadeia, e sua
significação depende, em parte, da posição que ocupa nesse conjunto”9. Em sentido inverso, a significação também depende da posição que a cadeia ocupa no uno, sua importância para o elo, seu
condicionamento do elo, sua inevitabilidade ao elo – outro ideal
tentou desenvolver as muito urbanas cruzadas e encruzilhadas: a
psicogeografia situacionista, em continuidade à elaboração surrealista: o estudo dos efeitos imprecisos do meio físico, edificado na
atuação direta sobre o comportamento emocional dos indivíduos,
numa reconceituação criativa da cidade a partir de suas condições
de organização e ação, suas órbitas de movimento. E de mobilismo.
A cidade reativa é o laboratório, além de ser paisagem, ser imagem:
“Na maioria das vezes, nossa percepção da cidade não é abrangente, mas antes parcial, fragmentária, misturada com considerações
de outra natureza. Quase todos os sentidos estão em operação, e a
imagem é uma combinação de todos eles”10.
O conceito de psicogeografia e todos os conceitos por conseguinte afiliados visam uma ludicidade social participativa, resistente às (e nas) rotas cotidianas compulsórias de finalidades produtivas, funcionais de entremeio entre os pontos de partida e chegada.
Ω 8. BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. p. 62-474 passim.
Ω 9. BORRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins, 2009. p. 15-16.
Ω 10. LYNCH, A imagem da cidade, p. 2.
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orientadas as desorientações, que relatam a cidade e que tomam
por indicadores cursivos e recursivos sua própria malha e sua própria arquitetura, também seu relevo e seus resquícios de natureza
sem intervenção (sobreviventes então setorizados), bem como seus
índices urbanos, suas heurísticas disponíveis pelo caminho: diagramas diretivos como os mapas, conjuntos de instruções gráficas –
sinais, caracteres e pictogramas em predileção pelas placas, pelos
estandartes, pelas faixas; até mesmo repartições por cor, como nos
semáforos, nas mesmas placas, nas chapas ou nos transportes coletivos – somados indistintamente às instruções ambientais, dados
naturais naturalmente dados: um planalto, uma curva de um rio
que corta a cidade, uma tal árvore. Bem como podem tomar para
a mesma utilidade brotaduras urbanas espontâneas, transitivas e
transitórias, como pichações e demais muralismos bidimensionais
apropriativos, processos de identificação e identidade, que aproximam locuções culturais às artes (processos estes, de fato correlatos às artes ), no legado funcional e na tradição dos idealismos de
perdição e de respiração do labirinto: o andarilho vívido, presente,
curioso, o flanêur benjaminiano, a deriva situacionista, que fincam
domicílio na multidão e que são a mais sensorial experimentação
da cidade.
Qual a duração do intervalo de tempo
compreendido entre dois períodos de sonho, se
sonhamos por metáforas?
A psicogeografia funda-se nas cartografias influentes (a concepção da cidade errática e errante de movimento nômade, o urbano
como um sistema de zonas unidas por setas e vetores de vontade
e desejo). Fundamenta-se nas novas cartografias (artefatos gráficos
e textuais que reutilizam mapas existentes, imagens topográficas e
fotografias aéreas como ferramentas para planear, traçar e registrar
esses vetores, atravessando o espaço construído, numa geografia
social que resulta, pelo matérico contraposto – ou justaposto – ao
performático, em peças artísticas, em obras físicas).
E exercita-se na deriva, técnica de flanar por “períodos ininterruptos através de ambientes diversos”13, um comportamento pauΩ 11. BENJAMIN, Passagens, p. 466.
Ω 12. LYNCH, A imagem da cidade, p. 10.
Ω 13. DEBORD, Guy. et al. Internacional situacionista, I: la realización del arte. Madrid: Literatura Gris, 1999. Disponível em: <http://www.geocities.com/autonomiabvr>. Acesso em: 18 ago. 2007. Não paginado.
tado nas circunstâncias da sociedade urbana, guiado e pontuado
tão somente por referências que despertem, pelo deixar-se atentar
pela cidade. A deriva pretendia arrolar em sítio e em temporalidade imediata as articulações, os desdobramentos geográficos da
cidade, vertidos em articulações e desdobramentos sensitivos. As
diferentes e inexatas – embora aferíveis – unidades de ambiência
e habitação, em relatórios que são seu desenho, são extrato de seu
conhecimento, empírico e apreciado, são teorias advindas da apropriação espacial.
A deriva pretendia um comportamento tipicamente labiríntico, pretendia uma experiência de abandono confiante à totalidade,
ao complexo, sobremaneira de abandono de um muito criticado “ir-e-vir produto-consumista”14, em prol da fruição, do deixar-se levar
pela desorientação da cidade, do fluir por traçados de indeterminação e sorte, a calhar, redirecionando o estar perdido para a intencionalidade dos caminhos desconhecidos. Uma segunda gramática de proveito das passagens. Um fluxo de itinerários múltiplos
e ramificações díspares, celebrando uma busca da condição
humana nos espaços públicos,
desconsiderados enquanto notados cenários de notada cisão
de classes, opondo segmentos
sociais; considerados numa flutuação determinada pelo aleatório do movimento, afirmando
a liberdade deste, da marcha,
confirmando razões outras
para a cidade, e inventariando
na experimentação extrema de
seus lugares o alinhavo de suas
conexões – riscado e arriscado.
Deriva situacionista majorada
Ω 14. DEBORD, Guy. et al. Internacional situacionista, I: la realización del arte. Madrid: Literatura Gris, 1999. Disponível em: <http://www.geocities.com/autonomiabvr>. Acesso em: 18 ago. 2007. Não paginado.
> Anônimo,
pichação, Belo
Horizonte (fotografia do autor,
2008).
63
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Um urbanismo ativo, traçado em sítio, móvel, sítio em traçado,
definindo o espaço conforme levantamentos das missões psicogeográficas – um espaço que toma o todo urbano como “uma moradia
cujos aposentos são os bairros e onde estes não se separam claramente por limiares, como os aposentos propriamente ditos, assim
também a cidade pode, por sua vez, abrir-se diante do transeunte
como uma paisagem sem limiares”11. Um espaço vivenciado pela
sensibilidade às sucessivas respostas da conduta e da afeição, setorial e consecutivamente provocadas pelo que se vê e sente, “em que
os objetos não são apenas passíveis de serem vistos, mas também
nítida e intensamente presentes aos sentidos”12 – choques acidentais frutíferos. Respostas provocadas também pelo que se vê e ouve,
porque ir às ruas é olhar as pessoas. E ouvi-las, intencionalmente
ou não. Ouvi-las individualmente ou ouvir seus rumores. Pessoas
da cidade, noticiosas de histórias para contar na (e da) cidade.
Componente fixo da vida urbana, a onipresença de estrangeiros, tão visíveis e tão
próximos, acrescenta uma notável dose de inquietação às aspirações e ocupações
dos habitantes da cidade. Essa presença, que só se consegue evitar por um período
bastante curto de tempo, é uma fonte inexaurível de ansiedade e agressividade
latente – e muitas vezes manifesta. O medo do desconhecido – no qual, mesmo
que subliminarmente, estamos envolvidos – busca desesperadamente algum tipo
de alívio.15
Cada deriva era definida como real experimentação e experiência dedálea, e podia atingir dias de duração contínua, liderada por
times de situacionistas em meio às aglomerações urbanas, através
de um caminho que poderia, em teoria, entremear quaisquer locais entre duzentos metros e três quilômetros: “a duração média
de uma deriva é a jornada considerada como o intervalo de tempo compreendido entre dois períodos de sonho”16. Sua disposição
não deveria mapear apenas uma reprodução fracionária, redutiva
da ambientação urbana, mas tendia a sistematizar uma atmosfera nova e híbrida, combinando elementos interiores e exteriores;
passagens por áreas de diferentes luminosidades, diferentes efeitos sonoros e outros tantas possibilidades de estímulos sensoriais
e conceituais. O lugar labiríntico reside em ser desenhado por si
próprio, só existe enquanto deslocamento, travessia.
Não que o exercício – cidadão por si, e/ou de reconhecimento
cidadão; artístico por si, e/ou de reconhecimento artístico – não
possa contemporaneamente ser pensado sobre rodas, ao menos
parcialmente, primeiro por que agora a segurança está a descoberto, se firma a outros termos, pouco se regula a perfis externos, seja
aparência, seja grupo social, seja região que se atravessa. Seja mesmo, a seu responsável, seu fiscal, seu vigilante, aquele para o qual
o reconhecimento e a solução, bem como a solicitude, são encargos
– aquele cujo preparo, cuja competência e cuja metodologia são
habitualmente contestados pelos antônimos urbanos.
Ω 15. BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editora, 2005. p. 36.
Ω 16. DEBORD, Internacional situacionista.
Mesmo os homens identificados com a violência [...] procuram a segurança nas
suas fortalezas. A [...] um movimento [...] que responde sobretudo à aspiração
das massas camponesas submetidas à violência [...] a segurança é, sobretudo,
uma obsessão urbana, muito consciente e muito viva. A cidade é, com relação ao
campo, à estrada e ao mar, um polo de atração de segurança. [...] Tanto que na
cidade os burgueses e os citadinos se
> Anônimo, pitrancam cuidadosamente à chave.17
Mas sobretudo por que
“estamos construindo rapidamente uma nova entidade
funcional, a região metropolitana”18; sua explosão de formato, seu agigantamento, não
permite ao andarilho mais que
delineios, descobertas, conhecimentos e relatos secionados, restritos, incompletos, como então eram permitidos mais integralmente,
quando de cidades infinitamente menores, cuja totalidade poderia
ser vencida, trespassada ou atalhada, nos períodos propostos – e já
antes a essa travessia correspondia o desafio, a exemplo de meados
do século XIX: “uma cidade como Londres, onde se pode caminhar
durante horas sem chegar sequer ao início do fim, sem encontrar
o mínimo sinal que indique a proximidade do campo, é algo realmente singular”19. Agora a suficiência não se daria nem mesmo a
dias. As megalópoles redirecionam projetos citadinos, a repensar o
quanto a sensorialidade sobreviveria ao rolamento.
chação, Belo Horizonte (fotografia
do autor, 2011).
Um ambiente ordenado em detalhes precisos e definitivos pode inibir novos modelos de atividade. Uma paisagem na qual cada pedra conta uma história pode
dificultar a criação de novas histórias. Ainda que isso possa não parecer um
problema crítico em nosso caos urbano atual, mesmo assim indica que o que
procuramos não é uma ordem definitiva, mas uma ordem aberta, passível de
continuidade em seu desenvolvimento.20
Ω 17. LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São
Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. p. 72-76.
Ω 18. LYNCH, A imagem da cidade, p. 5.
Ω 19. ENGELS apud BENJAMIN, Passagens, p. 471.
Ω 20. LYNCH, A imagem da cidade, p. 6.
64
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nas megalópoles majoradas, somos todos estranhos estrangeiros,
estranhos íntimos pela proximidade e pela inevitabilidade.
As veias assinaladas
Os situacionistas consideram a atividade cultural, do ponto de vista da totalidade, como um método de construção experimental da vida cotidiana que pode
desenvolver-se permanentemente com a ampliação do ócio e a desaparição da
divisão do trabalho (começando pela do trabalho artístico).22
Apostando na construção, portanto, da Nova Babilônia – cidade ideal partida das condições de organização e ação, das situações
de uso, promotora de modos outros de habitar, remodelada e moΩ 21. BENJAMIN, Passagens, p. 471.
Ω 22. DEBORD, Internacional situacionista.
dulada pelo andar de seus habitantes. Polo nômade, de habitações
e locais de trabalho renováveis ambos; encaixáveis, destacáveis e
temporários. Endereços exatamente inexatos, endereços reendereçáveis.
Uma cidade assim seria apreendida, com o passar do tempo, como um modelo
de alta continuidade com muitas partes distintivas claramente interligadas. O
observador sensível e familiarizado poderia absorver novos impactos sensoriais
sem a ruptura de sua imagem básica, e cada novo impacto não romperia a
ligação com muitos elementos já existentes. Ele seria bem orientado e poderia
deslocar-se com facilidade.23
Cidade ideal, literalmente alceada, colossal, um patamar acima da cidade existente, grandes redes sobrepostas, megaestruturas de materiais leves conectadas ao térreo, na mesma dimensão
deste, exatas de módulos revezados, respeitosos ao urbanismo unitário – “teoria do emprego do conjunto das artes e técnicas que
concorrem para a construção integral de um meio em combinação
dinâmica com experiências de comportamento”24, a considerar a
Ω 23. LYNCH, A imagem da cidade, p. 11.
Ω 24. DEBORD, Internacional situacionista.
65
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Como todas as vanguardas históricas, os situacionistas tinham
um ponto de vista dialético, como todas as vanguardas históricas
atarefando-se de uma tal superação da arte, na abolição de uma
(conteste) noção de atividade publicamente singular, distinta senão
distante, em prol de uma vertedura à parte do organismo da vida
cotidiana, apostando na inalienação entre arte e cidade, tomada
a exterioridade. Apostando nessa superação conceitual, senão semântica, prescrita numa transfiguração ininterrupta do meio urbano, uma alteração constante na qual o escoamento, a liquidez, os
formatos e os volumes viários e arquitetônicos objetivariam situações emotivas sobrepostas às formas emotivas.
Apostando no urbanismo e na arquitetura como ferramentas
revolucionárias do cotidiano, até mesmo idealizando (a suposição e
a superposição de) centros novos, na inteireza de projetos e plantas,
no acabamento de maquetes e artes-finais. Centros que representem simultaneamente o produto e o instrumento da subjugação do
utilitarismo, que representem simultaneamente a causa e a consequência de (igualmente supostas) novas modalidades comportamentais – muito relacionadas a uma eterna deriva, também ao
ócio: “O flâneur é o observador do mercado. Seu saber está próximo
da ciência oculta da conjuntura. Ele é o espião que o capitalismo
envia ao reino do consumidor. [...] A ociosidade do flâneur é um
protesto contra a divisão do trabalho”21.
> Anônimo, pichação, Belo Horizonte (fotografia
do autor, 2011).
flâneur representa o arauto do
mercado. Nesta qualidade ele é
ao mesmo tempo o explorador
da multidão”27.
Qualquer
construção,
qualquer peça do mobiliário urbano, qualquer fenda no muro,
buraco ou bueiro “pode fornecer a matéria-prima para os
símbolos e as reminiscências coletivas da comunicação de grupo.
Uma paisagem admirável é o esqueleto sobre o qual [...] erigiram
seus mitos socialmente importantes”28. Igualmente a negociação
urbana, toda e qualquer propaganda ou loja da tessitura espetacular, tão régia das cidades quanto a moradia, no mesmo efeito prático, no mesmo resultado funcional de qualquer grafite que esteja no
perímetro dos nossos trajetos ou do nosso conhecimento da cidade,
passa a poder servir como ponto de referência, e, por tal, traduzir um vínculo emocional, por, além de um apreço eleito, também
indicar a distância, a longitude ou a proximidade de um destino
pretendido. Como o lar. Um vínculo emocional facilmente constatável pelo pesar que sentimos quando de seu desaparecimento
na dinâmica das constantes substituições e superações urbanas. π
Ω 25. LYNCH, A imagem da cidade, p. 2.
Ω 26. BENJAMIN, Passagens, p. 495.
Ω 27. Idem. p. 54-62.
Ω 28. LYNCH, A imagem da cidade, p. 5.
> Anônimo, pichação, Belo Horizonte (fotografia
do autor, 2010).
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soma das demandas individuais, integrando a combinação conseguinte numa mecânica espacial. Uma deriva conclusa. Dúbio na
flexibilidade hipotética desses centros propostos que “um ambiente
urbano belo e aprazível constitui uma singularidade, ou, como diriam alguns, uma impossibilidade”25 – se é que tal acoplamento traduzir-se-ia em beleza e aprazibilidade. Dúbio que a transformação
contínua já não seja da natureza das cidades. Igualmente dúbia a
continuidade majorada da deriva, posto dúbio o prolongamento das
raízes citadinas de obstáculos, surpresas, imperfeições, impossibilidades e incompletudes; raízes construtivas e obstrutivas às quais
a prática se liga, num dos muitos paradoxos internos às vigas situacionistas. Noutro paradoxo, também dúbia a sobrevivência de pictografias urbanas, tatuagens do corpo habitado como a grafitagem, a
pichação, a adesivagem, o lambe-lambe, a inscrição, afiliados todos
ao grafite como terminologia macro, e afiliados à continência e à liberdade estrutural das cidades, e à liberdade de manifesto – e então
à política –, portanto muito oportunas ao programa situacionista.
Oportunidade de acareamento público imediato e recrudescente;
de publicação, de proclame, de protagonismo social – oportunidade
extensivamente conferida no uso, e no apoio ao uso, destas expressões pela Internacional Situacionista, como táticas, nos movimentos cidadãos de Maio de 68. Defronte, afronta, confronto.
(Con)firmara-se ali o ideário situacionista da espetacularização
anunciada e denunciada. Seus projetos de compreensão e de apropriação das cidades em geral, e sua deriva em particular, estavam
na razão direta do atestado do quanto o construto urbano tem seu
aparelho absorvido pelo granjeio da mercadoria, pela atração da publicidade, pelo liame do comércio – atestado de continência e ordenação, entre situação, constituição e convenção, de gênese na feira.
Flanar é ter com informes, “o homem-sanduíche é a última encarnação do flâneur”26. Os informes confrontam e são confrontados
pela experiência da deriva, os informes acareiam “a experiência do
flâneur, que se abandona às fantasmagorias do mercado [...], uma
fantasmagoria onde o homem entra para se deixar distrair. [...] O
TALES BEDESCHI, Palavras ao vento, Ação, 2011
TALES BEDESCHI, Palavras ao vento, Ação, 2011
Flus ser e a tentativa do
lugar de silêncio em meio
à pós-história
ÁGUEDA FERRÃO
Entre tempos
Tudo não passa de tempo. Um tempo que seremos capazes de
dizer, como Borges: “Sentimos que estamos deslizando pelo tempo, ou seja, podemos pensar que passamos do futuro ao passado,
ou do passado ao futuro, mas não há um momento em que possamos dizer ao tempo: ‘Pára! És tão belo!…’ como queria Goethe”1. A
ideia de tempo conduzido pelas variações dos ciclos naturais de um
dia é reduzida pelo relógio. O relógio do coelho de Alice evidencia
que vivemos em um tempo do fantástico: ele “é o abismo. Vórtice
do presente que suga tudo. O presente é a totalidade do real. Nele
todas as virtualidades se realizam”2.
“Ai, ai! Ai, ai! Vou chegar atrasado demais!”, diz o coelho puxando um relógio de bolso do colete3. Vivemos atrasados. Se estamos aqui, deveríamos estar lá, ocupamos duas posições no espaço
ao mesmo tempo. Estamos aqui sem o querer e, querendo, não
estamos lá onde somos aguardados.
Um tempo descontínuo e fragmentário no qual o receio e o
tédio são duas faces da mesma moeda; onde o presente e o passado
são sugados pelo futuro. Vivemos o agora desse futuro – nosso preΩ 1. BORGES, Jorge Luiz. Cinco visões pessoais. Brasília: Universidade de Brasília,
2002. p. 68.
Ω 2. FLUSSER, Vilém. Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas Cidades, 1983. p. 125.
Ω 3. Cf. CARROL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas / Através do espelho
e o que Alice encontrou por lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
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(mestre EA-UFMG)
[…] a espera é vivenciada como tédio, precisamente por ser intervalo absurdo em
funcionamento absurdo. A espera, o tempo parado, revela que somos fenda. Ao
enfrentarmos o nada, descobrimos que nada somos. Que tanto Eu como mundo
são extrapolações abstratas da concreticidade da experiência do nada6.
qual estamos munidos de aparelhos que funcionam para preencher nossas fendas e programados para bombardear o tédio – gerador potencial de consciência – com as sensações, para reprimi-lo.
“O tédio é o inimigo do funcionamento, porque o desmascara. O
tédio é a desmistificação do aparelho”7.
O que Flusser detecta na sociedade pós-industrial é o fenômeno “dos processos de comunicação e dos aparatos de comunicação”,
consequência direta da reprodução técnica das imagens, que pode
ser colocado ao lado do pensamento benjaminiano da dissolução de
qualquer aura, qualquer valor de culto, qualquer especificidade. A
integração entre sociedade e cultura não se sustenta mais em princípios, ideias e representações emanadas de um sujeito, e sim em
aparelhos que se movem num espaço que anula toda originalidade,
toda autenticidade e toda subjetividade. O homem pós-industrial
é filho desse triunfo das imagens sobre a escrita. Se em toda parte
há um culto das imagens, para Flusser, caberia a nós criticar essa
sociedade assim dominada, “sociedade do espetáculo”, descrita por
Guy Debord. Uma sociedade da espetacularização da morte, em
que “as relações humanas não são mais diretamente vividas, mas
se afastam em sua representação espetacular”8.
Então, pergunto: qual será a melhor maneira de viver este tempo agora/presente de modo a nos transformamos em seres capazes
de nos relacionarmos com o ser e os objetos, de modo a não nos
tornarmos reféns da imagem técnica, dos pontos, grânulos, pixels?
Entre imagens
No pensamento flusseano, é nesse tempo onde eu estou que
está o presente; esse é o tempo cibernético da pós-indústria, no
Partindo das imagens técnicas atuais, podemos reconhecer nelas duas tendências básicas diferentes. Uma indica o rumo da sociedade totalitária, centralmente programada, dos receptores das imagens e dos funcionários das imagens:
a outra indica o rumo para a sociedade telemática dialogante dos criadores das
imagens e dos colecionadores das imagens.9
Ω 4. FLUSSER, Vilém. Da religiosidade: a literatura e o senso de realidade. São Paulo:
Escrituras, 2002. p. 24.
Ω 5. BARTHES, Roland. A câmera clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 46.
Ω 6. FLUSSER. Pós-história. p. 126.
Ω 7. Idem. p. 127.
Ω 8. BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009. p. 12.
Ω 9. FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade.
São Paulo: Annablume, 2008. p. 14.
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L in d on é ia # 1 | Fe ve r e i r o d e 2 0 1 2
sente – e tudo dele advém. Um futuro imediato, que, para Flusser,
é caracterizado pelo aparelho, responsável pela produção das imagens técnicas.
O referido aparelho seria o aparelho fotográfico, a caixa preta,
vista por ele como o primeiro e o mais simples de todos os aparelhos; e o fotógrafo, o “primeiro funcionário”. Flusser entende que o
homem é conduzido por aparelhos e o único controle que detém
é sobre o input e o output da caixa preta: “sabe com que alimentá-la e como fazer para que ela cuspa fotografias”4, não precisa saber
como ela funciona para dominá-la. Já Barthes, por sua vez, fala do
punctum: “é também picada, pequeno buraco, pequena mancha,
pequeno corte – e também lance de dado”5, que faz o personagem
“sair da fotografia” e assumir vida à parte, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver. Para Barthes, o
fixar de um instante através da pose é o que constitui a natureza da
fotografia. A pose eterniza uma ficção e não uma realidade. A ficção
advém do fato de que a pose do fotografado é uma imagem criada,
é a imagem que se quer passar, aquilo que imaginamos ser e não o
que somos. Mas ele ainda não detectara, como Flusser, o potencial
transformador da fotografia na história da sociedade, resultado de
uma luta milenar entre a escrita e as imagens, com o surgimento
de um novo ser.
Este novo tipo de ser, o funcionário, funciona em função do
aparelho. E vive o receio de um tipo de espera pautada segundo o
tipo de espera dos nossos aparelhos. Flusser destacou que
Ω 10. FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade.
São Paulo: Annablume, 2008. p. 55.
Ω 11. Idem. p. 142.
Ω 12. Idem. p. 56.
Em relação ao poder das imagens e da força dos média, vale
lembrar o modo como experienciamos, em tempo real, os acontecimentos relevantes que acontecem dentro e fora dos limites do
nosso território: por vezes, as imagens transmitidas nos parecem
cenas de um filme de ficção e custamos a acionar o pensamento
para o fato empírico.
“Somos testemunhas, colaboradores e vítimas de revolução
cultural cujo âmbito apenas adivinhamos. Um dos sintomas dessa
revolução é a emergência das imagens técnicas em nosso torno”13.
Mas na visão de Flusser, não há nada fechado ainda, não se sabe se
a pós-história será o totalitarismo das imagens ou se a humanidade
saberá aproveitar disso e se valer dos meios técnicos para aprofundar seus conhecimentos rumo à concretização de certa utopia positiva, da realização de um sonho de liberdade, numa trilha para um
diálogo democrático entre o homem e a pós-escrita.
Entre sonhos
Para Flusser, o mundo não tem nenhum sentido a não ser
aquele que podermos atribuir a ele e sua preocupação reside justamente no avanço do predomínio das imagens técnicas sobre outros
perceptos, visto que, como a imagem tem o poder de nos programar, ela tem o mesmo poder de sedução que o acontecimento ao
vivo tem.
Em sua argumentação, o essencial é que o jogo já se iniciou
frente às câmeras. E já é possível, a partir do nada e do poder de
manipulação dos média, forjar um evento, dentro do potencial de
programas: “a imagem não permite que elas sejam respondidas”14,
nos entusiasmamos conforme o programa quer que nos entusiasmemos.
Flusser escreve e reescreve sobre a necessidade de certo distanciamento deste mundo, dos novos média, e que não há nada que
Ω 13. FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade.
São Paulo: Annablume, 2008. p. 15.
Ω 14. FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade.
São Paulo: Annablume, 2008. p. 58.
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Para Flusser, “a sociologia futura partirá da imagem técnica e
do projeto dela imanente”10. Diante de tal imagem, o homem não
se espelha, se deixa programar; seu predomínio aponta rumo à pós-história. O que o autor teme é que na pós-história o espaço público
(lugar de encontro) se dilua e as pessoas fiquem cada vez mais confinadas no espaço privado, “sentados cada qual na sua cela, movendo teclados e fitando terminais”11, e que os contatos frente a frente
se acabem, e que aproximação seja somente sensorial. “A gente não
mais sairá do privado rumo ao público a fim de informar-se, mas
será empurrada pelas imagens técnicas até o mais privado dos privados a fim de ser informada”12. Para tanto, é preciso atentar que
essa circulação íntima entre imagem e homem não é a verdadeira,
essa circulação pretende o isolamento do indivíduo, por isso há a
necessidade da atitude cultural (artística, literária, filosófica) na “sociedade informática” com diálogos capazes de publicar o privado e
privatizar o público, como escape da solidão.
Viver passa a ser um movimento que é seguido de pausa. Estamos cercados pela automatização que determina estas pausas e,
com elas, pela ideia das falsas aproximações; estamos em todos os
lugares e em lugar nenhum, estamos mais sós do que nunca, nesse tempo que nos escapa, numa era tão globalizada que atropela o
movimento das coisas do entorno ordinário e nos empurra cada vez
mais para a anulação do silêncio necessário ao pensamento.
O homem já não espera o tempo das coisas, as coisas é que
esperam pelo homem. Funcionamos como canais para a repetição
eterna: os aparelhos nos programam para funcionarmos como feedback. O aparelho – prenúncio de futuro imediato – denuncia um
presente simultaneísta no qual a realidade é o tempo todo mediatizada: a escrita, a palavra consumida pela imagem, que nos programa, hoje advém de um programa maior (digital, HD) e seu realismo se supera a ponto de nos sentirmos inteiramente nas cenas de
um filme.
Ω 15. PERNIOLA, Mário. Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo. São Paulo:
Studio Nobel, 2000.
Ω 16. FLUSSER. O universo das imagens técnicas. p. 15.
um futuro imediato, à procura do lugar onde possa parar — um
lugar de respiro frente ao bombardeio de imagens superexpostas,
quase imperceptíveis que o seguem diariamente.
O artista contemporâneo não quer denominar tudo aquilo produzido no instante. Pelo contrário, tem como proposta uma análise
crítica sobre a arte e suas práticas visuais, fala da catástrofe, sem
tão pouco utilizar das imagens dela. Ao interrogar, ao fazer uma
releitura das imagens explícitas, atribuindo novos significados à
liberdade de criação do artista, “vive-se hoje a utopia no cotidiano
subjetivo, no tempo real das experimentações concretas e deliberadamente fragmentárias. A obra de arte apresenta-se como um interstício social no qual são possíveis essas experiências e essas ‘novas possibilidades de vida’: parece mais urgente inventar relações
possíveis com os vizinhos de hoje do que entoar loas ao amanhã”17.
É preciso, pois, ter consciência das possibilidades da linguagem e da arte, não como um lugar a salvo, mas sim como práticas
obstinadas e modestas de se deslocar através de experiências e da
criação, momento em que o homem se aproxima do pessoal e se
afasta do modelo. Como a arte, a literatura trata de uma pessoa de
cada vez, são lugares onde se estabelecem os diálogos através de
uma tentativa insistente para impor silêncio ao mundo e resgatar
a imaginação, a ilusão. É justo dizer que na literatura e arte contemporâneas há espaço para uma simples oportunidade de experiências subjetivas e trocas estéticas e não dizermos tão somente de
experiência a propósito da literatura, ou da arte, e sim da comparticipação de ambas gerando a ilusão, o anúncio de uma liberdade
ainda...
É nesta ilusão que, acredita Flusser, está a chance de enganar
o aparelho; e uma das buscas dos artistas hoje é construir narrativas, estratégias nessa “era das catástrofes”, para situar-nos nesse
mundo que nos tira a ilusão, a respiração, diante do excesso de
informação, funcionando como luz que ofusca. É essa ilusão que
nos escapa, que os artistas procuram suprir em seus conflitos e
limites nada lineares, utilizando ferramentas diversas e novos códigos como a literatura, dentre outros, para criar lugares seguros,
Ω 17. BOURRIAUD. Estética relacional. p. 62.
72
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não seja aparelho na sociedade, sua esperança é que todo aparelho
pode ser desorganizado. E uma das formas de desfuncionalizar o
aparelho é através dos criadores: da atitude cultural artística, filosófica, literária, anunciando uma liberdade ainda no agora. Para
tanto, vê o artista como a figura capaz de produzir o distanciado
do mediato. Contempla nele o homo ludens, aquele capaz de usar a
imaginação, a ilusão, a fábula e produzir algo que não faça parte do
jogo, ou do rumo que tomou o jogo de imagens em que vivemos.
Alguém capaz de estar dentro do jogo e de, ao mesmo tempo, estar
do lado de fora para observá-lo. Para Flusser, a atitude criativa é a
única chance de burlar o aparelho; por meio dela, o homem não
é totalmente funcionário, ele se vê no jogo e cria assim áreas de
escape para o respiro e o silêncio, para não alimentar o programa.
Falemos do artista. É sabido que o artista de vanguarda necessitava experimentar técnicas e metodologias que permitissem
o desenvolvimento de novidades e colocar-se à frente do processo
tecnológico. Mas o artista contemporâneo tem outra mentalidade.
A tecnologia é usada, claro, mas não como um fim. Sua intenção
primeira é produzir outros significados na arte, reprocessando suas
linguagens e aprofundado a realidade, ou aquilo que ela nos apresenta. Ele reconhece a importância das imagens no momento, mas
permite a elaboração de imagens para sua visualização. E, nesse
contato, o espectador adquire outro papel: ele precisa ter um olhar
pensante, indagativo, que enxergue além daquilo que está disposto
e exposto numa obra.
Neste momento, vale lembrar uma das noções fundamentais
do pensamento de Perniola: que presente e presença são a condição
própria do homem contemporâneo que, destituído de memória e
de expectativas, conseguiu espacializar o tempo num movimento
horizontal que confere historicidade a qualquer lugar do mundo15.
Um homem à procura de se instalar no mundo, um mundo que
“não se apresenta mais enquanto linha, processo, acontecimento,
mas enquanto plano, cena, contexto”16 — onde enfrenta inseguro
Acerca do chão que pisamos19
Ninguém passa impunemente sob palmeiras (Goethe).
poéticas capazes de conduzir a uma experiência pessoal que torne
possível um movimento que continue dando origem à obra – palavra e imagem passam a ser um. O que importa é o movimento que
se dá no interstício da “fala secreta sem segredo” das coisas20; é a
maneira como se protege das distinções de poder que o mundo nos
impõe, nesse excesso de discurso e murmúrio cotidiano. Gosto da
ideia de textos inacabados, sempre prontos para serem retomados
em momentos outros… Acredito na releitura dos processos de criação, das imagens, da produção do mundo pós-histórico para criação
de uma história de identidade.
Penso que talvez tenha sido esta a pratica da escrita de Flusser durante sua vida: textos sempre relidos e sempre retomados,
textos sempre por fazer; pretendendo o advir de um olhar para as
coisas pequenas, do entorno ordinário, com o intuito de provocar
o “desfoque do olhar em uma única imagem”, e sim de “um olhar
outras imagens” — um mundo, pontuado por ele, como vontade e
não representação — que mostra que apesar de tudo (da sociedade
do espetáculo, da superexposição de imagens técnicas, das relações
mediáticas, do aparelho, do programa, das catástrofes do mundo
contemporâneo); as palmeiras, os pássaros, as borboletas, o sol, o
mar continuam naturalmente vivendo ao nosso lado.
“A atividade artística, por sua vez, tenta efetuar ligações modestas, abrir algumas passagens obstruídas, pôr em contato níveis
de realidade apartados”21, para este novo olhar, nos levando a enxergar as relações entre espaço e tempo de outra maneira, através das
relações humanas. π
O artista transita por territórios diversos, elege o de seu interesse de investigação e situa o seu pensamento na sua produção,
utilizando os mais diversificados meios e matérias para colocar sua
obra frente ao expectador. O que por vezes, não se percebe é que a
imagem pode ser lida; narrativas podem ser construídas, inventadas a partir do desejo de realidade. A palavra é uma palavra, a palavra é uma imagem. Acredito nas poéticas e no surgimento de novas
Ω 18. FLUSSER. O universo das imagens técnicas. p. 141.
Ω 19. A expressão “chão que pisamos” não é uma análise do ensaio FLUSSER. O
chão que pisamos. In: Pós-história. p. 9-15.
Ω 20. BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 321.
Ω 21. BOURRIAUD. Estética Relacional. p. 11.
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onde você se reconhece, lugares de respiro, capazes de revelar o
homo ludente a partir das aproximações do espectador com sua rede
de significações.
Mais uma das marcas contemporâneas é a aproximação do outro, do espectador, com a obra. Os artistas engendram o que teórico
francês Nicolas Bourriaud chama de “arte relacional”: lançam convites, estabelecem redes afetivas pautadas no movimento que aproxima o outro diretamente ou indiretamente à obra. E é nesse movimento, na quebra de fronteiras, que se dá a obra. Artistas como
Sophie Calle e escritores como Paul Auster desenvolvem em seus
trabalhos tais aproximações a partir de estratégias que valorizam
mais o processo e se dedicam a pensar as relações entre o tempo, a
coleção, a dileção e suas incidências sobre o trabalho da memória.
Esses novos códigos e estratégias de aproximação do outro
com a obra, por vezes envolvendo-o diretamente na produção da
mesma, e onde a realidade deriva de estímulos da memória, talvez
seja o que alimentou o pensamento de Flusser à esperança de uma
utopia, nem como positiva, nem como negativa, mas futurizante:
“a fim de articular a esperança de que as reflexões atinjam algo de
substancial, no final de contas”18.
KAZA VAZIA XI, Anekso I - Sesc Palladium, Intervenção 2011
TALES BEDESCHI, Ar de Belo Horizonte, Ação, 2011
A morte da arte na
Era da arte
ADOLFO CIFUENTES
Nostalgia de unidade
Nenhuma arte pode virar arte se não for através de uma tomada de consciência histórica. Não há arte sem uma história da arte.1
Este trecho de J. C. Lemagny sobre estética fotográfica marca
dois pontos-chave na nossa cartografia: arte e história, entremeadas
ali com outros dois conceitos. Primeiro: as coisas podem virar arte.
Segundo: trata-se não só de uma “história”, mas de uma “tomada
de consciência histórica”. A arte que deve tomar consciência é uma
técnica de produção de imagem que, desde a sua invenção, teve
um status ambíguo no campo das artes. O chamado de Lemagny
tem uma função estratégica num texto que pergunta e advoga pela
natureza da imagem fotográfica enquanto arte. Essa tomada de
consciência histórica permitiria constituir a unidade do fotográfico,
mas ela seria também o pré-requisito essencial do status artístico
de todas as artes, porque “não há arte sem uma história da arte”. A
arte seria então uma categoria que se constrói, e da qual os objetos
entram e saem. Essa ideia também estaria presente nas clássicas
reflexões de Malraux sobre a história da arte e do museu:
Um crucifixo românico não foi percebido pelos seus contemporâneos como uma
obra de arte, nem uma Madonna de Cimabue foi percebida como uma pintura.
Até a própria Pallas Athenea de Fídias não foi, principalmente, uma estátua.2
Ω 1. LEMAGNY, Jean Claude. La sombra y el tiempo: la fotografía como arte. Buenos
Aires: La Marca, 2008. p. 31. Trad. nossa.
Ω 2. MALRAUX, André. Les Voix de Silence. Paris: Galerie de La Pléiade, 1951. p. 11.
Trad. nossa.
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(doutor EA-UFMG)
alcançada por meio do relato histórico, que opera uma virada transcendente na qual o objeto narrado toma consciência de si.
Dispersão, espalhamento e multiplicidade
Foster acrescenta ainda o conceito de objetos-função para se
referir a esses objetos-arte cuja função não foi, no contexto em que
foram produzidos, a de serem “obras de arte”. A sua visão do museu é também uma crítica à modernidade, período no qual uma
série diversa de processos culturais e históricos teriam sido congelados e capturados, enquanto objetos, para virar fetiches agrupados
na categoria arte, nas subespécies escultura, pintura etc. Outras
consequências e reflexões poderiam ser tiradas do fogo cruzado
entre estes autores, Lemagny e Malraux4, por enquanto queremos
apontar o valor de sintoma dessa propensão histórica expressada
por Lemagny: ela aponta a uma “nostalgia de unidade” que seria
O status impreciso da fotografia teria várias fontes: as suas relações equívocas com a estética pictórica, por exemplo, ou então a
sua função de registrar as manifestações efêmeras que dominam
hoje o campo das artes. E teríamos ainda a multiplicidade dos seus
usos sociais (jornalismo, moda, publicidade, ciências etc.). O sistema arte colapsaria se incluíssemos nele os trilhões de fotografias
que se publicam, expõem, ou circulam na web diariamente! Nem
todo ato de acionar uma câmara produz uma obra de arte. De fato,
nenhuma arte se define pelos meios técnicos empregados. Nem
tudo o que se escreve ou filma vira literatura ou cinema. Ainda
mais: nem tudo o que se executa ou pinta com a intenção de que se
torne arte vira arte por causa dessa intencionalidade.
Uma crítica simplificada à arte contemporânea gosta de pensar que o século XX desarranjou a velha e boa partilha chamada
“Arte” com os seus urinóis e as suas caixas de sabão Brillo, objetos
tomados diretamente da realidade, ou demasiado parecidos com
ela. A verdade é que a partilha foi sempre complexa. Não só as Belas Artes ou “artes maiores” (pintura, escultura e arquitetura, em
contraposição às “menores”, decorativas ou aplicadas), formam a
categoria artes plásticas. Estudamos arte chinesa, pré-colombiana,
muçulmana, inclusive a grega, nas ânforas, vasos e bacias dessas
culturas. Esta separação só começou, na arte europeia, com a Renascença, e até períodos artísticos posteriores, como o Rococó, estão intimamente ligados ao mobiliário e à decoração de interiores.
O século XVIII é chamado Século da Porcelana, mas qual é o limite
entre uma escultura e uma porcelana? O material? Muitas peças
Ω 3. FOSTER, Hall. Design and crime, London, New York: Verso, 2002. p 85. Trad.
nossa.
Ω 4. Para quem gosta de paradoxos teríamos pelo menos dois na justaposição feita
aqui entre estas citações e autores. Por enquanto assinalaremos só um: enquanto Lemagny vê na história a possibilidade de constituir a unidade do fotográfico, a
conclusão de Malraux é, justamente que a fotografia ajudou a construir as grandes
unidades dos períodos históricos da arte. A fotografia do menor detalhe de uma
miniatura carolíngia, junto à fotografia do arquitrave de uma catedral românica permite construir uma unidade “estilística” antes impossível de enxergar. A fotografia
permitiu criar esse museu imaginário que temos à nossa disposição nas páginas
de qualquer enciclopédia da arte. Hoje, é claro, teríamos que repensar esse museu
imaginário em termos da web e da sua onívora onipresença universal.
Somente o museu poderia elevar estes objetos-função tão diferentes ao status-artístico de pintura ou escultura, por si mesmos, esta era uma elevação que se
arranjava muito bem com a abstração da arte modernista.3
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As peças listadas por Malraux viraram arte. Em que momento?
Qual foi o processo de transubstanciação operado? Muitas galerias,
críticos, casas de leilão e nós artistas gostaríamos de possuir o segredo. Na lógica de mercado que parece ter engolido o campo, possuir
esse segredo seria muito mais lucrativo do que a posse da famosa
pedra filosofal dos alquimistas! Tanto Lemagny quanto Malraux
apontam, porém, a história como um dos ingredientes operadores
dessa transformação. Em Lemagny, ela gera a tomada de consciência; enquanto em Malraux, ela seria como essas linhas de fuga
deleuzianas que unem o díspar, traçando vetores que atravessam
épocas e contextos culturais. As coisas são mais complexas, claro
está: em Malraux, as próprias coisas não viram arte, elas passam
a ser percebidas como tal. De outro lado, o museu é, também, em
Malraux, um operador forte na fórmula dessa transubstanciação.
Também para o crítico Hal Foster o museu é um operador central
nesse processo:
Filiação e identidade
A arte não é uma categoria imanente, nem aos fazeres (escrever, desenhar etc.), nem aos meios técnicos empregados (tintas, câmaras etc.), nem à natureza dos objetos ou eventos que nela
se produzem. Tratar-se-ia de um eixo transversal que trespassa os
mais diversos meios, fazeres, objetos, eventos e práticas. E também
partilhas econômicas, sociais e simbólicas. A obra de arte foi uma
invenção tardia e, mesmo na modernidade, foram várias as tentativas de apagar o limite entre artes aplicadas e Belas Artes: o Arts and
Crafts, a Bauhaus, o construtivismo, o Art Nouveau etc. estabeleceram o desvanecimento dessa divisão no centro dos seus programas.
Jacques Rancière5 aponta esse desejo de deslocar a partilha “arte”
como o coração das vanguardas. Não foi o envolvimento político
(futurismo italiano e fascismo, construtivismo e revolução russa
etc.) o que as fez políticas, mas a sua vontade de quebrar a fronteira
entre o artístico e o utilitário. Arquitetura, urbanismo, escultura,
design, cartaz, quadro, página, objeto constituiriam um espaço não
interrompido de criação. A essência política da arte não seriam os
seus temas nem discursos, mas a própria definição dos fazeres:
entre ofícios que roubam o tempo do artesão-operário, afastando-o
da vida política e da participação social, e ofícios que, ao invés disso,
constituem um lugar privilegiado de visibilidade social, de produção de pensamento e de discurso simbólico. O fazer pode até ser o
mesmo (pintar, tirar fotos, fundir peças de metal), mas a separação
criada pelas partilhas “trabalho manual” ou “trabalho intelectual”
implica divisões sociais, simbólicas e econômicas, isto é, políticas.
Ω 5. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Ed.
34, 2005.
De Duve evidencia essa dispersão da categoria arte por meio
da imagem de um marciano que, em visita ao planeta, tentasse discernir o fio condutor dessa multiplicidade díspar de objetos, eventos e práticas que nós terráqueos chamamos “arte”. Depois de várias peripécias semiológicas e filosóficas a conclusão é que se trata
de um nome próprio (como João ou Maria) usado para designar
um certo tipo de objetos. Os nomes próprios, porém, só designam,
não descrevem, muito menos definem6. Lemagny teria então razão:
o relato outorga sobrenomes (Arte Barroca, Contemporânea etc.)
possibilitando árvores genealógicas e filiações, fornecendo corpo e
identidade. Os relatos da história7, mas também os do museu, seriam essenciais para preencher esse nome próprio vazio de designação, operando assim a tomada de consciência do seu portador. É
isso, finalmente, o que faz o museu: fornecer essas histórias como
bem nos fala Donato:
O conjunto de objetos que o museu exibe está sustentado só pela ficção de que eles
constituem um mundo representacional coerente. Se a ficção desaparecesse só
restaria do museu um bricabraque, uma pilha de objetos sem sentido nem valor,
incapazes de se sustentar por si mesmos.8
Assombros histórico-taxonômicos
O que Plínio entende por “artes” é extensivo à História Natural completa; consequentemente, a noção estética da “arte” não faz parte da sua primeira definição.
Há arte cada vez que o homem utiliza, instrumentaliza, imita ou supera a
natureza. A “arte” por excelência no texto de Plínio é, antes de tudo, a medicina.
A arte da pintura – no sentido que hoje a entendemos –, ocupa só uma parte do
livro XXXV, no final do percurso de um livro gigantesco. O que Vasari entende
por “arte” é, como sabemos, bastante diferente. O que está em jogo, o objeto de
Ω 6. DUVE, Thierry de. Kant after Duchamp. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1998.
Veja-se o capítulo “Art Was a Proper Name”. A noção da arte como nome próprio,
desenvolvida por De Duve a partir da teoria dos nomes próprios de J. S. Mill é bem
mais complexa; por enquanto, não é o caso aqui aprofundá-la.
Ω 7. Falar aqui da história como ciência construtora de relatos não implica uma
desvalorização dela: a sua denominação já enuncia essa essência. Sobre este duplo
senso do verbete “história”, como História e como estória, veja-se RANCIÈRE, Jacques. Les noms de l’histoire: essai de poétique du savoir. Paris: Ed. du Seuil, 1992.
Ω 8. DONATO apud SILVERSTONE. Towards the Museum of the Future. [local: editora]: 2003. p. 165. Trad. nossa.
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decorativas são também feitas em materiais nobres (pedra, bronze)
e repetem as formas de estilos reconhecidos e valorados como arte.
E o oposto também é verdade: as esculturas banais de Jeff Koons
imitam os objetos decorativos, banais e descartáveis da cultura de
massas.
A contraposição de duas histórias da arte é um dos eixos que
articula o livro Devant le temps de Didi-Huberman: a História Natural de Plínio o Velho (ano 77 d. C.) e as Vidas dos Melhores Arquitetos, Pintores e Escultores Italianos (1542-1550) de Giorgio Vasari. Não
só o que é designado “arte” é diferente em cada uma delas, senão
também o regime no qual ela faz parte de uma configuração (a arte
como oficio versus a arte como disciplina humanística). E também
a avaliação estética de Vasari se contrapõe drasticamente ao julgamento moral de Plínio o Velho. Para este último, a verossimilhança
da imago dos antepassados devia estar inserida num regime ético: o
culto aos ancestrais e ao solo. A identidade entre a imago e a pessoa
devia estar garantida pela moldagem de uma imagem matriz feita
sobre o rosto do antepassado. A perda desse nexo, pela influência
da arte “estrangeira” (grega), marcava, para Plínio o Velho, o fim
da arte, tornando-a um fazer desprovido de sentido ontológico que
começava a pulular perigosamente.
A surpresa taxonômica de Didi-Huberman ante essas duas
histórias da arte faz lembrar aquela de Foucault em As Palavras e
as Coisas ante a classificação borgeana dos animais. Existe, porém,
uma diferença essencial: a suposta enciclopédia da qual Borges teria extraído a taxonomia era chinesa. O absurdo das suas categorias
é colocado assim no Oriente exótico, eterno lugar do Outro. O que
surpreende na contraposição Plínio – Vasari é que o projeto dentro
do qual se inscreve Vasari é a recuperação do esplendor de “l’antica
Roma”, e da arte da Antiguidade. O abismo que separa esses dois
regimes da arte, que o conceito de Re-nascimento faz aparecer
como idênticos, constitui motivo de perplexidade, e uma pergunta
para a historia da arte e sua metodologia.
Ω 9. DIDI-HUBERMAN, George, Ante el Tiempo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo,
2006. p. 85. Trad. nossa.
Uma história historicista (l’histoire était une doctrine)
Historicismo: Doutrina que estuda seus objetos do ponto de vista da origem e
desenvolvimento deles, vinculando-os às condições concretas que os acompanham.10
Retomamos De Duve, desta vez por meio do seu tom espirituoso e irônico. O seu artigo L’art était un nom propre11 utiliza o tempo
passado e a imagem de um arqueólogo futuro que se pergunta sobre a arte do período moderno, uma época na qual arte e anti-arte
se enfrentaram pela definição da “arte”. Aplico, porém, o tempo
passado a um predicado sobre a história: quando a história era uma
doutrina. As épocas e as culturas configuram de maneiras diversas
as suas práticas estéticas. E também suas práticas epistemológicas
e as condições de possibilidade dos saberes que sustentam a memória e os seus relatos. A história não é um relato impessoal narrado por um observador externo. Apesar de ambas serem histórias
e visarem (nominalmente) o mesmo objeto (a arte) as histórias de
Plínio o Velho e de Vasari são diferentes e atingem objetos distintos: um milênio e meio de abismos culturais as separam. Quais
são os abismos que nos separam, hoje, da arte e da história do século XIX? Porque o assombro de Didi-Huberman diante do tempo
é o hiato que separa a tradição historiográfica do século XIX e os
intentos esquecidos e marginalizados de historiadores que, como
Benjamin (o Benjamin historiador), Aby Warburg ou Carl Einstein,
expandiram a caixa de ferramentas metodológicas. Os suicídios de
Einstein e Benjamin, o exílio e a doença mental de Warburg, a guerra e vários outros fatores fazem com que, até hoje, os seus aportes
radicais continuem à margem. O modelo sequencial, positivista e
hierarquizado é a regra, e as noções de história e arte não fazem
parte dos problemas básicos a serem tratados quando juntamos os
termos no estudo da História da Arte.
Ω 10. Dicionário Aurélio digital, 2006.
Ω 11. “A arte era um nome próprio” foi citado acima na sua versão inglesa em DUVE,
Kant after Duchamp, 1998.
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Vidas, se assenta numa definição especifica e “exaltada” – elevada –, estética e
humanista da arte.9
Da Gnoseologia Inferior ao Homo Aestheticus
2 - Integração da História ao contexto das Ciências do
Homem e da Cultura
Não existe maneira de fazer racional o homem sensível sem torná-lo estético.
O estado moral pode nascer apenas do estético, nunca do físico. (Schiller)12
A lista começaria aqui com Vico (na sua análise da língua como
fenômeno integrado à evolução dos povos), e com Winckelmann13 e
as pesquisas que o levaram ao estabelecimento de uma cronologia
para a arte grega. Porém, mais do que pretender realizar aqui uma
análise, sublinharemos por enquanto o fato que todos os períodos e
paradigmas básicos com os quais estudamos hoje a história da arte
(entretecida à história da cultura) estão ligados a nomes próprios de
pesquisadores que, ao longo do século XIX, deram forma às suas
tabelas cronológicas e assentaram as características com as quais
enxergamos até hoje esses recortes cronológicos e culturais14.
Problematizamos as noções de História e de Arte porque os assombros históricos nos levaram a uma conclusão paradoxal: o conceito
Arte que a modernidade construiu e contra o qual lutaram as vanguardas históricas (e continuaria lutando a contemporaneidade?)
nasceu na confluência de três fenômenos:
1 - Nascimento da Estética como disciplina filosófica
Ω 12. SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem numa série de cartas. São
Paulo: Iluminuras, 1995. Carta XXIII, p. 117 e 19.
3 - A invenção do museu
Foi também na segunda metade do século XVIII que o British
Museum e o Museé du Louvre abriram as suas portas ao público.
Como todo o social, o museu nasceu na confluência de múltiplos
processos; interessa-nos, porém, o fato que esse nascimento aconteceu como parte de uma reordenação na qual a arte não só saiu
Ω 13. Princípios de uma ciência nova sobre a natureza comum das nações, de Giambattista Vico (1668-1744) foi publicada em 1725. Os estudos de Winckelmann (1717-1768)
sobre a arte grega e romana foram compendiados na sua História da Arte na Antiguidade (1764) e as suas Reflexões sobre a imitação dos gregos na escultura e na pintura,
foi publicada em 1755.
Ω 14. Os trabalhos precursores de Vico, realizados na primeira metade do século
XVIII passaram despercebidos no seu tempo e os de Winckelman, realizados na
segunda metade desse mesmo século, foram completamente pioneiros. Alguns desses nomes próprios ligados indissoluvelmente a diferentes períodos e civilizações
são: Maspero e Champollion para o Egito, Cartailhac e Breuil para a Pré-história,
Michelet e Burckhardt para a Renascença, Mommsen para Roma, Schliemann para
Creta e Micénas, Layard e Botta para a Mesopotâmia e Assíria. A construção de períodos como o Maneirismo ou o Barroco foram, por várias razões, mais complexas,
dada em parte as relações e deslindes que implicam com a Renascença. No caso do
Barroco o pressuposto de que ele constitui uma espécie de degeneração da Renascença impera até hoje, e uma abordagem dele na sua plena autonomia, como aquele
realizado por Benjamin no seu A origem do drama barroco alemão, continua, até hoje,
ignorado pelos historiadores.
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A história é longa e passa pela valoração da sensação (aesthesis)
como geradora de conhecimento no empirismo inglês, pela Aesthetica (1750-58) de Baumgarten, pelas investigações de Burke sobre
o belo e o sublime, pela síntese desses esforços na terceira crítica
kantiana, na qual o estético e o juízo sobre a beleza adquirem um
estatuto plenamente filosófico, e pela surpreendente e esclarecedora leitura e apropriação da estética kantiana realizada por Schiller nas suas Cartas sobre a educação estética do homem (1793-1794).
Nelas, o estético se constitui na própria condição de possibilidade
tanto da moral quanto da racionalidade do homem. Por contraposição ao status de Gnoseologia Inferior, um dos nomes que Baumgarten deu a essa parte do conhecimento ligada à sensibilidade, o
estético é elevado, em Schiller, à condição de elemento formador da
humanidade do homem. O homem seria, propriamente, um Homo
Aestheticus.
A Era da arte ... E da “morte” da arte
Podemos bem ter a esperança de que a arte vá sempre progredir mais e se consumar, mas sua Forma deixou de ser a mais alta necessidade do espírito. Por
mais que queiramos achar excelentes as imagens gregas de deuses e ver Deus
Pai, Cristo e Maria expostos digna e perfeitamente — isso de nada adianta, pois
certamente não iremos mais inclinar nossos joelhos. (Hegel)15
A Era da Arte é então a era da Estética, como problema epistemológico, ontológico etc., da História da Arte, como problema sociológico, antropológico etc., e do museu, instituição (estatal), ligada a
funções educativas, culturais e simbólicas (educação do povo, formação da nacionalidade etc.). A sua função já não é mais fazer inclinar os joelhos. Não existe, como nos lembra Rancière, a propósito
de Benjamin, contraposição entre o valor cultual e o valor exposicional de uma imagem, justamente porque os dois regimes são mutuamente excludentes16. Hegel nunca falou de morte da arte, falou de
Ω 15. HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Cursos de Estética I, II e III. São Paulo:
Edusp, 1999 / 2000 / 2001.
Ω 16. RANCIÈRE, A partilha do sensível, 2005. p. 29, nota de rodapé: “Mas lá onde
o serviço sagrado define a destinação da estatua o da pintura como imagens a ideia
mesma de uma especificidade da arte e de uma propriedade de unicidade das suas
obras não pode aparecer. O retraimento de um é necessário à emergência da outra.
Não se segue absolutamente que a segunda seja a forma transformada do primeiro”.
esgotamento, de seu caráter como coisa do passado. Só os seus exegetas17 falam de morte. Os filósofos não são imortais, e depois da
sua desaparição os exegetas falam por eles. Mas esse é outro problema. Interessam-nos aqui as nostalgias e os assombros históricos: a
nostalgia de construir uma unidade chamada “arte” quando sabemos que a sua natureza é, justamente, a instabilidade e a incerteza
(a beleza sem conceito kantiana, é um belo exemplo disso). O oficio
da palavra poética não é designar, mas explorar as possibilidades da
língua e puxar os seus limites. A arte não é um fazer específico e
as imagens nunca tiveram um papel fora das configurações sociais
nas quais e para as quais se produziram. Às vezes elas decoram, às
vezes embelezam, às vezes estão integradas em sistemas de crença
nos quais inclinamos os joelhos, às vezes são chamadas “arte”, às
vezes brincam com estas classificações e se perguntam pela sua
própria natureza. Reduzi-las a um só desses papéis, ou de outros
não incluídos nesta classificação, é um ato de nostalgia. Nostalgia
não pela velha e boa partilha “arte”, nem pela bela arte grega, nem
pelos tempos em que ainda conseguíamos crer em alguma coisa,
mas nostalgia de unidade, filiação e identidade. Pela unidade ficcional de que um bisão de Altamira, a Gioconda e uma Lata de Sopas
Campbell são manifestações de uma mesma coisa que pode ser
lida como um continuo nas categorias de “história” e “arte”. É uma
nostalgia necessária, claro, ela faz parte de uma nostalgia maior
chamada inteligibilidade. Mas ela não pode negar o outro principio
inerente ao Homo Aestheticus, ao pensamento e à filosofia: a nossa
capacidade de assombro. Assombro ante a multiplicidade, ante a
particularidade, ante a dispersão, ante a eterna impossibilidade da
razão para estabelecer qualquer tipo de inteligibilidade final, total e
absoluta daquilo que chamamos “realidade”. Assombro ante a tarefa (e a responsabilidade) interminável de ter que ler tudo de novo, e
explicá-lo, e reconfigurá-lo, a cada vez, novamente. π
Ω 17. Fazemos aqui alusão, de novo, a autores como Arthur Danto no seu After the
end of art (Princeton University Press).
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dos espaços sacro-religiosos e palaciano-cortesões, senão que entrou a formar parte de outra configuração: a da Arte. Seria absurdo
falar de “autonomia”: ela entrou no discurso filosófico, como Estética, nas ciências humanas, como História da Arte, e no museu,
no contexto da origem do Estado moderno e os seus processos de
laicização, entre outros. E entrou, além disso, noutros arranjos, no
contexto da economia burguesa emergente. A arte já não estava
mais nos templos, nem nas pirâmides, ou nos palácios dos nobres,
integrada a algo mais chamado religião, ritual, magia, culto oficial
ao Rei Sol etc.
José Schneedorf, Ex-voto (detalhes), 3,90 x 3,90 m, Colagem de xilogravuras, litografias,
serigrafias, gravuras em metal, gravuras mistas; acrílica e estêncil sobre tecido, 2005
José Schneedorf, Ex-voto (detalhe), 3,90 x 3,90 m, Colagem de xilogravuras, litografias,
serigrafias, gravuras em metal, gravuras mistas; acrílica e estêncil sobre tecido, 2005
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