Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
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Dossiê CÂMARA MUNICIPAL
1 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 2 Revista História – ISSN 1983-0831 Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais. Endereço: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Campus Francisco Negrão de Lima - Pavilhão João Lyra Filho Rua São Francisco Xavier, 524 - 9° andar - Bloco E - Sala 06 - Rio de Janeiro. Página do Laboratório: www.leddes.uerj.br Página da Revista: www.revistahistoria.com.br Capa e diagramação eletrônica Luciano Rocha Pinto Imagem de capa: Câmara Municipal – Campo da Aclamação (Litografia de P. Bertichem). Editores Marilene Rosa Nogueira da Silva Luciano Rocha Pinto Verônica Maria Nascimento Tapajós Conselho Consultivo André Porto Ancona Lopez International Council of Archives (ICA, França) Universidade de Brasília (UNB) Antonio Filipe Pereira Caetano Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Augusto da Silva Universidade Federal de Sergipe (UFS) Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Carlos Augusto Lima Ferreira Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira Cristiano Wellington Noberto Ramalho Universidade Federal de Sergipe (UFS) Duarcides Ferreira Mariosa Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Camp.) Edison Bariani Junior Faculdade Santa Rita (FASAR) / Faculdade de Itápolis-SP (FACITA) REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 3 Eulalia Maria Aparecida de Moraes Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Paranaguá (FAFIPAR) Fabio Luiz da Silva Universidade Norte do Paraná (UNP) Hustana Maria Vargas Universidade Federal Fluminense (UFF) Margarida Maria Dias de Oliveira Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Ozanan Vicente Carrara Universidade Federal Fluminense (UFF) Samira Adel Osman Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) Vanessa dos Santos Bodstein Bivar Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMGS) Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 4 Sumário O discurso historiográfico 6 Sobre os poderes locais no Brasil Colônia/Império (Apresentando o dossiê, tramando uma discussão) Luciano Rocha Pinto Dossiê Câmara Municipal: Fontes, formação e historiografia do poder local no Brasil Colônia e Império Poder local e arrecadação de impostos na América portuguesa 19 A administração de contratos pela Câmara Municipal de Olinda (1690-1727) Breno Almeida Vaz Lisboa Câmara Municipal de Vila Boa de Goiás 42 Controle sobre a vida e os espaços da cidade Fernando Lobo Lemes Correições e provimentos 69 A ação dos ouvidores régios junto às câmaras municipais (Ouvidoria de Paranaguá – século XVIII) Jonas Wilson Pegoraro As câmaras em Minas Gerais no século XVIII 97 Entre enquadramentos administrativos e desventuras tributárias Pablo Menezes e Oliveira Câmaras e identidades regionais (século XVIII) Denise Aparecida Soares de Moura 123 Comércio e câmaras. Regulamentação e vigilância Thiago Alves Dias 150 A “Leal” Câmara da cidade de Mariana e as atas das sessões 175 A lei de organização municipal e a prática política dos camaristas Kelly Eleutério Machado Oliveira O bom governo da municipalidade Notas sobre a Câmara Municipal do Recife e sua organização para a administração da cidade (1829-1849) Williams Andrade de Souza REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 201 5 Contra o municipalismo incoerente e bárbaro 221 As câmaras municipais sob a ótica da legislação liberal oitocentista Pablo de Oliveira Andrade Cercado de inimigos 251 elite local e as relações escravistas em Pelotas (1832-1850) Victor Gomes Monteiro O triunfo da urna com o bacamarte 269 O conflito de 1852 em São José dos Pinhais Luiz Adriano Gonçalves Borges O ordenamento do espaço urbano na corte imperial 285 O caso dos “inconvenientes” quiosques frequentados por “gente grosseira” (décadas de 1870-1880) Juliana Teixeira Souza Artigos Estudos sobre prostituição 313 Uma revisão da bibliografia sobre o tema e sua inserção no campo dos estudos de gênero Amanda Gomes Pereira História e gênero 334 Um estudo da condição feminina na cidade de Dom Aquino/ MT (1970-1990) Lidiane Álvares Mendes Luís Xavier de Jesus, de escravo a retornado 353 O “lugar” social dos africanos na Bahia do século XIX Elaine Santos Falheiros O figurino da colônia 377 Uma análise da sociedade colonial brasileira a partir da indumentária Sara Raquel de Andrade Silva Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 6 O discurso historiográfico Sobre os poderes locais no Brasil Colônia/Império (Apresentando o dossiê, tramando uma discussão) O discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas uma história. Michel Foucault A historiografia que se debruça sobre as municipalidades ou que, de alguma forma, a tangencia, pode ser dividida em três grupos específicos. Tal divisão não deve ser tomada com rigidez. Não se trata de um conjunto monolítico de categorizações hermeticamente arquitetadas. São aproximações a partir da abordagem que os diversos autores tramaram. No primeiro, formado por autores clássicos, em geral, da primeira metade do século XX, a Câmara aparece como instituição de menor importância nos quadros administrativos. Em primeiro plano o papel das instituições centrais de governo, seguindo um padrão narrativo de grandes explicações da formação do Brasil a partir de uma história de longa duração. O segundo grupo reúne trabalhos onde as câmaras municipais emergem como objeto central das discussões. São produções que dialogam com a História Social e que analisam uma documentação produzida no âmbito local, atenta aos diferentes aspectos do cotidiano da cidade, principalmente do Rio de Janeiro. Dentre seus interesses pode-se ver a configuração do poder local, sua estrutura interna, as alianças e conflitos com outras instâncias, notadamente o governo central e provincial. A municipalidade aparece como um espaço de demanda e disputa, sujeito a pressões e ao enfrentamento por parte dos diferentes grupos da cena política. É uma historiografia que, mesmo compartilhando certas características com os intérpretes clássicos da história do Brasil – como a longa duração, enquanto procedimento de análise – distancia-se por eleger a municipalidade como objeto principal de estudo e por forjar a noção de autonomia como condição de entendimento do governo local no ultramar em relação à metrópole. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 7 Por fim, na trilha desta historiografia que se volta ao poder local, estão trabalhos diversos que se ocupam dos grupos, cargos e funções dos quadros camarários ou dos grupos específicos que se relacionavam com a municipalidade. A partir de uma história social, mas, também econômica, buscam, de modo geral, preencher as lacunas deixadas pelas pesquisas anteriores. Os atores principais destas cenas discursivas são os indivíduos e suas ocupações nos quadros administrativos da localidade. Com forte ênfase na subordinação das municipalidades aos demais órgãos de governo, hierarquicamente superiores, estão os autores clássicos. Para Capistrano de Abreu, as câmaras municipais não passam de órgãos administrativos sem muita relevância. Em Capítulos de História Colonial, escrito entre 1906 e 1907, critica João Francisco Lisboa, que defendia posição contrária, de não ter se dado o trabalho de “recorrer às fontes”. 1 A formação de Capistrano se deu pós 1870, conforme José Carlos Reis, em um ambiente determinista e cientificista. Dentre suas matrizes teóricas estão Spencer, Darwin, Buckle, Ranke, Ratzel, Comte e outros, que pensavam a história como mecanismo submetido a leis, autorregulado, passível de um conhecimento objetivo.2 Naquele discurso não havia lugar para a singularidade, para o descontínuo. Se fosse singular e descontínuo não poderia ser histórico, pois, a história era uma grande continuidade de fatos movidos por causas e efeitos constantes. Em carta a João Lúcio de Azevedo, aos 25 de Janeiro de 1917, afirma: “cada vez me convenço mais que João Francisco Lisboa falseou a história, dando-lhes uma importância que nunca possuíram as municipalidades”.3 Caminho semelhante segue Raimundo Faoro em Os donos do poder, de 1958.4 Precursor do uso da abordagem weberiana para entender o Brasil, arquiteta uma construção “a-histórica” com um enfoque linear, sem levar em consideração as mudanças temporais da colonização ao Estado Novo, do Mestre de Avis à Getúlio Vargas. Busca demonstrar como o estamento burocrático se mantém imutável, com a conservação da estrutura patrimonial e a transformação do Estado governante, de aristocrático em 1 ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial, 1500-1800. 7a ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p. 177. 2 REIS, José Carlos. Capistrano de Abreu (1907): O surgimento de um povo novo: o povo brasileiro. Rev. Hist., São Paulo, n. 138, jul. 1998. Acesso: 4/1/2012. 3 ABREU, Capistrano de. Op. cit., nota no 98. 4 FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3a ed. Porto Alegre, Globo, 2001. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 8 burocrático. Os conselhos, por sua vez, aparecem como um “elo” – conforme expressão do autor 5 – naquela corrente de controle do Estado luso. Os mais fortes são as Capitanias e o Governo Geral. As atribuições das câmaras eram amplas, mas sua atuação estaria ligada a casos de menor importância. Maior poder tiveram no início da colonização. Em Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942,6 atravessado pelo pensamento dialético marxista, Caio Prado Jr. analisa a história colonial como chave de compreensão do presente, de suas injustiças e contradições. Sua perspectiva passa pelo entender o presente na apreensão do passado, para só então planejar o futuro como partes de um processo de longa duração.7 A administração colonial, por sua vez, estava marcada pela “confusão de poderes e atribuições”.8 Em seu capítulo Administração, faz a distinção entre os diversos cargos e suas atribuições. As câmaras emergem como departamentos do executivo, mas, com uma singular relevância que pode ser identificada no trato de matérias que nada tem com os assuntos locais, como, por exemplo, a nomeação dos fiscais da Intendência do Ouro. Afirma sua autoridade em seus termos e descreve, inclusive, sua competência em destituir os governadores. Destaca, ainda, sua participação decisiva para o sucesso da constitucionalização, independência e fundação do Império, sendo o único órgão da administração que sobreviveu a derrocada geral das instituições coloniais. 9 Para Oliveira Viana, a administração colonial seria uma máquina complexa e que funcionava mal. Influenciado pela escola sociológica de Pierre Guillaume-Frederic Le Pay, pela antropologia física de G. Vacher de Lapouge e pelo evolucionismo positivista de Sylvio Romero, arquiteta um discurso dualista, onde o Brasil legal se opõe ao real. Seguindo aqueles modelos interpretativos, principalmente a escola de Le Pay, utiliza-se de um método que se volta às “fontes primárias” – conforme suas palavras no Addendum à 4ª edição de Populações Meridionais do Brasil –10 das instituições 5 Ibidem, p. 212. PRADO Jr. Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. – 23ª ed. – 7a reimpressão, São Paulo: Brasiliense, 1942. 7 RICUPERO, Bernardo. Sete loções sobre as interpretações do Brasil. São Paulo: Alameda, 2008, p. 138. 8 PRADO Jr. Caio. Op. cit., p. 313. 9 Ibidem, p. 316-319. 10 VIANA, Oliveira.Populações Meridionais do Brasil. In: Interpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2a ed. 2002, pp. 1174-1175. 6 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 9 políticas, apontando para a “força colossal” das municipalidades. 11 Apesar disso, aproxima-se de Faoro ao considerar que a aristocracia da terra seria incapaz de promover uma unificação nacional, uma vez que não houve unanimidade entre os diversos poderes locais – ou entre os caudilhos, conforme expressão do autor – no processo de emancipação. Escrito entre 1916 e 1918 e publicado em 1920, tem como pano de fundo a crítica à experiência republicana e a reorientação da vida política do país. Sérgio Buarque de Holanda, em O Brasil Monárquico: o processo de emancipação, de 1962, destaca o papel das câmaras municipais como “cabeças do povo”, no princípio da colonização e de “primeiros governos do mundo”, conforme expressão que traz de Manuel Guedes Aranha, procurador do Estado do Maranhão em 1654 e de “representantes da pessoa de sua Majestade”, segundo a provisão de 18 de junho de 1677. 12 No entanto, em subtítulo denominado a aniquilação dos corpos municipais, considera que a reforma liberal, de final dos anos 1820 e primeira metade de 1830, anulou seu campo de ação subordinando-as ao Presidente da Província e seu Conselho.13 Na tessitura de uma história político-administrativa mais preocupada com as instituições centrais, as municipalidades aparecem muito timidamente uma vez que os autores dedicam pouca atenção às suas especificidades. Segundo essas matrizes discursivas, estas seriam instituições de menor relevância, com uma tímida participação decisória no período imperial. Uma historiografia posterior elegerá as câmaras municipais como objeto principal de suas investigações. Uma nova arquitetura se trama em novo modelo historiográfico. Charles R. Boxer, em O Império colonial português (1415-1825), publicado em 1969, tem em comum com os clássicos da historiografia brasileira, a preocupação com as instituições de governo onde o Brasil é parte de uma lógica maior: a expansão marítima portuguesa. No entanto, é um dos primeiros a considerar, seguindo Edmundo Zenha, a autonomia das câmaras municipais. Em seu trabalho, as câmaras do Ultramar surgem, no projeto colonizador, como uma das instituições mais importantes ao 11 Ibidem, p. 1038. HOLANDA, Sérgio Buarque (Dir.). História geral da civilização brasileira: 1 – O processo de emancipação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993, pp. 24-25. 13 Ibidem. 12 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 10 lado das Santas Casas de Misericórdia. 14 Estavam espalhadas por todo império, contribuindo com sua uniformidade, mas, também com sua manutenção, estabilidade, unidade e continuidade. Eram compostas por homens da terra e suas atribuições eram amplas. Em seu relato o elemento policial estaria ancorado à noção de governo. 15 Boxer contribui, não só para pensar a municipalidade a partir da noção de autonomia, mas, aponta para uma prática de governo absolutamente singular. É importante destacar que polícia era um dispositivo político composto de procedimentos diversos. Chamava-se de polícia uma forma de associação regida por uma autoridade pública, como também o conjunto de atos coordenados por uma autoridade instituída, seja para fazer a autoridade do Estado crescer, seja para manter a boa ordem social. Tratavase, portanto, de uma ação de governo, de um ato de condução dos indivíduos e da população, de um conjunto de procedimentos associados à noção de “reger bem” ou estabelecer uma ordem. Policiar, portanto, é uma noção que se aproxima da de governar. A palavra polícia, conforme estudo de Robert M. Pechman, possui dois sentidos etimológicos. Do latim, politio, polir, aperfeiçoar e assear. Do grego, polites (cidadão) e polis (cidade), aponta para governo e boa administração, segurança, salubridade e subsistência.16 Seus domínios atravessam a preocupação com a moralidade, a religião, a saúde, o abastecimento, as estradas, as pontes, os caminhos, a segurança pública, o comércio, as fábricas, os empregados domésticos, as pessoas com dificuldades e os pobres. Governar a população e integrar os indivíduos a uma totalidade normalizada era objetivo das câmaras em seus termos. Outro trabalho importante para a compreensão da instituição é A cidade e o Império, de Maria Fernanda Bicalho. 17 Uma extensa documentação consultada em arquivos brasileiros, portugueses e franceses ancora sua analise das relações político-estratégicas entre a cidade do Rio de Janeiro e a coroa portuguesa no século XIX. Problematiza os acontecimentos do cotidiano administrativo e ilumina as funções rotineiras da municipalidade, por vezes, atravessadas pela precariedade dos meios à sua 14 BOXER, Charles R. O Império colonial português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1981, p. 305. Ibidem, p. 308. 16 PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002, p. 69. 17 A publicação, de 2003, é o resultado de sua tese de doutorado, defendida na USP em 1997. 15 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 11 disposição e pelas tensões sociais entre funcionários, colonos e, até mesmo, escravos. Se os intérpretes clássicos abordavam os conselhos como uma parte menor de um todo mais importante, esses trabalhos adentram a instituição, apontam para sua capacidade de gestão e adaptação. Para Maria Fernanda Bicalho,18 mais distantes geograficamente do centro do poder, eram as câmaras o poder oficial acessível, visível e presente que acolhia as demandas dos colonos. A distância entre o poder central e as terras que colonizava aparece como um elemento de fragilidade da Metrópole. Em As Câmaras Ultramarinas e o Governo do Império,19 arquiteta contornos característicos de instituições fundamentais na manutenção do Império. O poder local era, então, a ligação entre dois mundos: o centro metropolitano e o local colonial. O rei esperava que as câmaras municipais fossem seus “braços” no projeto colonizador e os colonos a reconheciam como a autoridade de fato. Bicalho aponta para algumas honrarias como, por exemplo, o decreto de 6 de julho de 1647, no qual Dom João IV concede o título de Leal à cidade do Rio de Janeiro e amplia as prerrogativas da Câmara. Assim, poderia fazer às vezes de Capitão-Mor, assumindo as funções militares, na ausência do governador e do Alcaide-Mor.20 Seus respectivos cidadãos passavam a gozar dos mesmos privilégios e prerrogativas de fidalguia daquela carta régia concedida aos cidadãos do Porto em 1 o de junho de 1490. Ficavam protegidos de certos constrangimentos, como o encarceramento sem homenagens, a não obrigatoriedade de servir em guerras ou o confisco de seus bens. 21 Cidadania, neste cenário, refere-se a indivíduos com determinado número de bens e outorgados do direito de 18 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 19 Idem. “As Câmaras ultramarinas e o governo do Império”.In FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII).Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 20 Ibidem, p. 198. 21 Segundo a Carta Régia de 1º de junho de 1490, aqueles cidadãos não poderiam ser “metidos a tormentos por nenhuns malefícios que tenham feito”; não poderiam “ser presos por nenhum crimes, somente sobre suas homenagens (...) e que possam trazer e tragam quais e quantas armas lhes prouver de noite e de dia”; também não deveriam ser “constrangidos para haverem de servir em guerras, nem outras idas por mar, nem por terra (...) nem lhes tomem suas casas de moradas, adegas, nem cavalariças, nem suas bestas de sela nem de albarda, nem outra nenhuma cousa do seu contra suas vontades.” AHU, Rio de Janeiro, Documentos Catalogados por Castro e Almeida, N. 334. In: Ibidem, nota 18. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 12 participação política no governo local, que recebiam privilégios, honras e mercês do rei de Portugal. Tratava-se de uma sociedade organizada e hierarquizada nos moldes do Antigo Regime. 22 Outros trabalhos, também da década de 1990, contribuem para consolidar outra posição das municipalidades nos quadros do Brasil colonial e, posteriormente, no Império do Brasil. Em 1998 Maria de Fátima Silva Gouvêa publica Redes de Poder na América Portuguesa: o caso dos homens bons do Rio de Janeiro (ca. 1790-1822).23 Analisa a dinâmica do poder local e suas redes no interior da sociedade colonial, na virada do século XVIII para o XIX. O Rio de Janeiro é, por sua vez, focalizado como espaço privilegiado da gênese do Brasil independente, processo que se inicia com a chegada da família real. Neste sentido, Gouvêa discute o processo de representação e participação política da Câmara, evidenciando a formação de uma elite fragmentada, mas, com circuitos de solidariedade que se consolidaram ao longo do processo de emancipação. Dentre suas principais referências estão Maria de Lourdes Viana Lyra e Evaldo Cabral de Mello. 24 A noção de “sentimento de pertencimento” cunhada por Mello, como elemento motivador dos homens de governança do Rio de Janeiro atravessa seu trabalho e aponta para a participação dos homens da terra no processo de emancipação. A tese de doutorado de Gouvêa, apresentada em 1989 na University College de Londres, e publicada em 2008 com o título de O império das províncias também contribuiu com a trama daqueles personagens na cena política, principalmente nos anos que se seguiram à emancipação. Diferente dos autores clássicos que preconizam a legislação na década de 1820 como opressiva e limitadora da ação dos municípios, a autora afirma “um razoável nível de autonomia local”.25 A lei de 1828 aboliu sua capacidade de fazer justiça, mas, reforçou seu caráter policial e disciplinar. Idem. “O que significa ser cidadão nos tempos coloniais”. In:ABREE, Marilia; SOIHET, Rachel. Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, FAPERJ, 2001, p. 139. 23 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. “Redes de poder na América Portuguesa: O caso dos homens bons do Rio de Janeiro, ca. 1790-1822”. Rev. bras. Hist., 1998, vol.18, no.36, p.297-330. ISSN 0102-0188. nota 19. 24 LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da política – 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994. MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos Mozambos. Nobres contra mascates. Pernambuco (1666-1715). São Paulo: Cia. Das Letras, 1995. 25 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Império das Províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 22. 22 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 13 O trabalho de Iara Lis Carvalho Souza, reforça ainda mais a condição de autonomia dos poderes locais acentuando sua participação no processo de independência política. Para a autora, D. Pedro apoiou-se nas Câmaras para promover a emancipação, em curso desde a chegada da família real. Seus trabalhos – A adesão das Câmaras e a figura do Imperador,26em 1998, e Pátria Coroada: o Brasil como corpo político autônomo (1780-1831),27 publicado no ano seguinte – procuram explicar como o imperador, baseado naquela antiga relação de apoio mútuo entre os poderes locais e central, recorreu às câmaras com o objetivo de legitimar sua soberania. A autoridade tradicional das elites da terra funcionaria, então, como elemento de estabilidade no novo Império. A antiguidade das câmaras e seu caráter mediador entre os interesses locais e reais fortaleceriam a figura do imperador diante da população que sentia o poder das câmaras muito mais próximo e acessível. Dialoga os diversos intérpretes do Brasil com uma extensa documentação pesquisada no Brasil e em Portugal. A aproximação que faz da Câmara carioca à figura de D. Pedro, tramando uma relação complexa de interesses, reforça o olhar em direção aos arranjos e adaptações cotidianas. O governo da cidade passava pela prática administrativa da Câmara Municipal e seu lugar de fala encontra reconhecimento na população, mas, também, nos demais homens de governança. Assim como Maria de Fátima Silva Gouvêa, Iara Lis tangencia a lei de 1º de outubro de 1828. O Regimento foi analisado pelos autores clássicos como falência das municipalidades. A historiografia da década de 1990, por sua vez, considera a Câmara como instituição fundamental para a administração da cidade e sobre ela deposita parte significativa da vitória da emancipação e do constitucionalismo. De forma que o Regimento para as municipalidades imperiais não informa o esgotamento, mas, a ressignificação de sua estrutura e atribuições. Promulgada por D. Pedro, faz parte de um cenário reformista liberal que se produziu após a emancipação política e se estendeu até a década seguinte. O recém-criado Império do Brasil produziu uma legislação que, além de reforçar sua autonomia, mitigasse as desordens internas, produzisse a organização SOUZA, Iara Lis Carvalho. “A adesão das Câmaras e a figura do Imperador”. Rev. Bras. Hist., 1998 vol.18, no.36 pp. 367-394. ISSN 0102-0188. 27 Idem. Pátria Coroada: o Brasil como corpo político autônomo (1780-1831). São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, pp. 143-146. 26 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 14 necessária à sua reiteração temporal e sufocasse os resquícios coloniais. A base teórica para um novo pensamento político emergiu de um tipo específico de poder/saber: o liberalismo. Para compreender essa ruptura e o lugar da Câmara Municipal naquele cenário, um conjunto de pesquisas lançadas a partir do ano 2000 problematizam as funções camarárias em suas pesquisas. Destaco o estudo de Arno e Maria José Wehling, de 2004, Direito e Justiça no Brasil Colonial. Analisam a inserção da justiça na sociedade colonial por meio da atuação do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro e seu desenvolvimento na transição do Antigo Regime. O trabalho, dedica dois capítulos, na primeira das cinco partes, à atuação dos juízes não letrados da municipalidade e ao juiz de fora, problematizando suas práticas e relações institucionais. Neste sentido, pontua o perfil daqueles homens bons, a hierarquia do judiciário, seus cargos e atribuições. Dialoga com António Manuel Hespanha e Paolo Grossi, adota procedimentos metodológicos da história social, da história do direito e da história política, informada por René Rémond e Pierre Rossanvallon. Até as reformas políticas e institucionais liberais, promovidas nas décadas de 1820 e 30, a justiça podia ser dividida em justiça real diretamente exercida e justiça concedida.28 A primeira é a mais conhecida e estudada, compreendendo as áreas criminal e cível, conforme o costume no Antigo Regime, que incluía tanto os tribunais de primeira, como os de segunda instância. Hierarquicamente fazia parte da primeira instância os juízes não letrados da localidade, como os juízes ordinários ou o juiz de fora e, acima deles, os ouvidores. Os Tribunais da Relação correspondiam à segunda instância e consistiam em uma corte de apelação. Quem se sentisse prejudicado, por alguma decisão daqueles juízes, poderia recorrer à Relação por meio de apelações ou agravos.29 O magistrado do Tribunal da Relação era o desembargador. O governador da capitania – no caso do Rio de Janeiro, após 1763, o Vice-rei do Estado do Brasil – presidia o tribunal, sendo substituído pelo chanceler nas suas ausências. Acima da Relação encontrava-se a Casa da Suplicação, última instância para os recursos. WEHLING, Arno e Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial – O Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004,p. 37. 29 “Desde a Idade Média a apelação tinha o caráter de recurso contra a sentença definitiva dada por um juiz. Já o agravo consistia em reação ao despacho de juiz contrário ao interesse da parte, mas sem o caráter de sentença definitiva. Ambos os instrumentos recursais mantém, na tradição jurídica lusobrasileira, estas características até o presente” (Ibidem,p. 83-84). 28 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 15 A justiça concedida, por sua vez, era exercida pelos cidadãos sem formação jurídica que atuavam, como o próprio nome indica, por meio de uma concessão. Havia uma delegação para seu exercício e pode ser vista na justiça municipal exercida pelo juiz de vintena, o juiz almotacé, o juiz dos órfãos e os juízes ordinários, posteriormente, na década liberal, o juiz de paz.30 A justiça concedida – aplicada pelas câmaras municipais – foi a mais constante em todo período colonial. Conforme comentários à atividade judicial dos camarários que Cândido Mendes de Almeida faz nas Ordenações Filipinas, “eram juízes independentes da realeza e a legislação que executavam estava fora do alcance do poder real, e só o costume podia alterá-la”.31 Essa afirmação é repetida por Oswaldo Rodrigues Cabral, Aurelino Leal e Rodolfo Garcia.32 Há dois campos de ação da justiça concedida: o das povoações ou localidades mais afastadas, onde atuava o juiz de vintena e os termos ou municípios, com os juízes ordinários e juiz de fora. Acima deles, ainda correspondendo à primeira instância da justiça, havia os ouvidores, nas comarcas33 e o ouvidor-geral, no Governo-geral. Há outros autores, ainda, que estudaram grupos específicos que passaram a ocupar cargos e funções na Câmara Municipal ou que se relacionavam por dividir atribuições. É o caso, por exemplo, dos negociantes de Grosso trato, que após a chegada da família real passaram a ocupar os quadros da vereança. Assim, a tese de doutorado de Jupiracy Affonso Rego Rossato, Negociantes de Grosso Trato e a Câmara Municipal da Cidade do Rio de Janeiro: estabelecendo trajetórias de poder (1808-1830)34 identifica a atuação do grupo dos negociantes ligados ao comercio de africanos. Rossato apresenta a atuação da Câmara, o modo como foi se apropriando dos espaços, e legislando, a partir da lei de 1828 – o Regimento das Câmaras Municipais do 30 Antes de Lei de 1828 as atribuições das câmaras estavam definidas nas Ordenações Filipinas, Livro I, título 65. ALMEIDA, Cândido Mendes. Ordenações Filipinas. Comentadas por Cândico Mendes de almeida (Volume 1).Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, p. XXIX. 32 Cf. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Organização das justiças na colônia e no Império e a história da comarca de Laguna. Porto Alegre: EGST, 1955, p. 15-16. LEAL, Aurelino. “História Judiciária”.In: Dicionário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Volume 1).Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1922, pp. 1107ss. GARCIA, Rodolfo. Ensaio sobre a história política e administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 95. 33 No século XVIII cada capitania possuía apenas uma comarca, exceto Minas Gerais e Bahia, com quatro comarcas, e São Paulo e Pernambuco com três. Cf. PRADO JR., Caio. Op. cit., p. 306. 34 ROSSATO, Jupiacy Affonso Rego. Os Negociantes de Grosso Trato e a Câmara Municipal do Rio de Janeiro: estabelecendo trajetórias de poder. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006 (Tese de doutorado). 31 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 16 Império – inclusive com posturas voltadas à fiscalização por meio de ações policiais. Acentua o papel da Intendência Geral da Polícia da Corte e do Império do Brasil a quem cabia fiscalizar as obras, abastecer a cidade, investigar crimes e vigiar a população, conforme seu alvará de criação de 5 de abril de 1808. Seu objetivo era manter a ordem e defender os interesses dos comerciantes locais e proprietários de terras – muitos destes integrantes da vereança – mantendo dentro de limites rígidos a população negra, escrava ou liberta e os brancos pobres. Para Rossato, a partir de 1825, o novo intendente geral da polícia, Francisco Alberto Teixeira Aragão, intensificava o controle social na cidade, através de uma série de regulamentos policiais internos, que incluía repressão violenta e um toque de recolher a ser seguido por toda a população. 35A autora pondera que as agitações ocorridas entre “portugueses” e “brasileiros” depois da independência, e que durou até o início da década de 1830, pode ter desgastado a imagem da Intendência de Polícia, devido à agressividade de sua atuação. A partir daí cresce a autoridade policial da Câmara Municipal, no caso do Rio de Janeiro, que procura restringir as violações de ordem pública, como bebedeiras, jogos, prostituição, vozerios e desordens diversas. No Império do Brasil, esta função ficava a cargo dos guardas municipais e dos fiscais da Câmara. Outra função que aparece junto à Câmara Municipal ou a seu serviço é o médico-higienista. No final da década de 1970, em plena efervescência da História Social e do sucesso historiográfico de E. P. Thompson, um filósofo e, em seguida, um psiquiatra publicavam dois trabalhos de história, explorando temas como as políticas de saúde pública, as instituições médicas e a organização do espaço público a partir de medidas higienistas. O primeiro foi Danação da norma, de Roberto Machado, Ângela Loureiro, Rogério Luz, Kátia Muricy; 36 e o outro de Jurandir Freire Costa, Ordem médica e norma familiar,37 respectivamente, publicados em 1978 e 1979. Jurandir Freire Costa analisa o papel da medicina na normatização e disciplinarização dos corpos no espaço urbano, controlando o comportamento individual e familiar. Seu olhar sobre o período regencial permite identificar a atuação da medicina social ou higienista, que se Ibidem, p. 28-29. MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Kátia. Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978. 37 COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e a norma familiar. Edições Graal, 1979. 35 36 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 17 apossou do espaço urbano. Valendo-se dos altos índices de mortalidade infantil, das precárias condições de saúde dos adultos, a higiene conseguiu impor seus preceitos sanitários. Por seu intermédio, buscava-se exterminar a desordem dos velhos hábitos coloniais.38 Os pobres e os escravos compunham a “gentalha” e só vinham à cena como exemplo de antinorma. Em Danação da Norma, Machado considera que a medicina social aparece aliada às práticas de governo. Torna-se um instrumento de poder que normatiza as diferentes instituições da sociedade brasileira. No caso específico do Rio de Janeiro, o médico passa a agir como uma espécie de agente policial, identificando se as doenças provêm de um comportamento social inadequado.39 A partir de 1830, a medicina passa a ser tema político no Brasil que adota medidas semelhantes aos países europeus. Os próprios médicos, organizados um ano antes na Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, começam a se envolver em questões políticas. As câmaras municipais geriam as questões da saúde pública, o que era objeto de crítica dos membros da Sociedade de Medicina. Como instrumento de pressão, argumentavam em favor de leis que possibilitassem o desenvolvimento de políticas consideradas “civilizatórias”. Os médicos criticavam os vereadores e suas decisões sobre a salubridade urbana. Não demorou muito passou a informar à Câmara Municipal práticas de salubridade urbana. Os três grupos elencados apontaram caminhos e suscitaram inquietações. Outros caminhos são possíveis. Neste sentido, a Revista História coloca à disposição, da comunidade acadêmica e dos amantes da História, este dossiê que problematiza o poder local e suas práticas de governo ao longo dos períodos colonial e imperial. Mais que dar visibilidade àquele espaço administrativo – enquanto lugar de ordem – e a seus membros – enquanto sujeitos de fala – pretendemos propiciar o diálogo, revisar o debate historiográfico e aprofundar as reflexões sobre o governo da cidade. Experimentamos novos significados para as municipalidades, como instituições dotadas de dinâmica e interesses específicos, espaços de aprendizado e deliberação política. Tramamos um espaço onde novos olhares, sobre temporalidades distintas e lugares específicos – como Recife, Olinda, Goiás, Mariana, Rio de Janeiro, 38 39 Ibidem, p. 12. MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Kátia. Op. cit., pp. 106-122. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 18 Paranaguá, São José dos Pinhais, Pelotas... – permitem repensar as perspectivas de análise das câmaras municipais e de sua ação cotidiana tanto no Brasil colônia, quanto no Brasil Império. Luciano Rocha Pinto Editor Revista História LEDDES-UERJ REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 19 Poder local e arrecadação de impostos na América portuguesa A administração de contratos pela Câmara Municipal de Olinda (1690-1727) Breno Almeida Vaz Lisboa 1 1Resumo: A Câmara Municipal de Olinda era responsável por arrecadar uma série de impostos em nome da Coroa portuguesa, utilizando-se para isso do sistema de arrematação de contratos. Era sobretudo a partir das arrematações que essa câmara captava recursos para dar conta dos seus principais compromissos financeiros que eram bastante avultados. Ao mesmo tempo também percebemos o quanto a administração desses recursos trazia para os membros da câmara a possibilidade de manejar o dinheiro camarário para fins privados. Percebendo essa e outras situações a Coroa portuguesa resolve depois de uma série de ponderações retirar a administração dos contratos pela câmara em 1727. Palavras-chave: Câmara de Olinda. Administração de contratos. Impostos. Abstract: The Municipality of Olinda was responsible for raising a number of taxes on behalf of the Portuguese crown, using this system for auctioning contracts. Was mainly from arrematações this camera captured resources to account for its major financial commitments which were quite substantial. At the same time we also realize how the management of these resources brought to the chamber members the ability to handle money camarário for private purposes. Realizing this and other situations solves the Portuguese crown after a series of weights withdraw the administration of contracts by the council in 1727. Keywords: Town of Olinda. Contract administration. Taxes. 1 Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 20 U ma das funções das câmaras era gerir o patrimônio da Coroa. Para isso, arrecadavam impostos para assim utilizar estes recursos nas suas obrigações financeiras. Variavam bastante os tipos de impostos geridos pelas câmaras, mas, em geral, os tributos mais importantes como o Dízimo e a Dízima da Alfândega eram administrados diretamente pela Fazenda Real através da provedoria. Já as arrecadações que competiam às câmaras eram arrendadas a particulares, através do sistema de arrematação de contratos, onde em hasta pública os contratos eram arrematados ao contratador que desse o maior lance. Para as câmaras que administravam contratos importantes, as rendas advindas da arrematação eram parte importante na formação do seu patrimônio. Uma série de pagamentos era feita a partir de consignações desses contratos, de modo que a renda era direcionada para um pagamento específico. Assim, muitas vezes era através da administração dessas rendas que as câmaras conseguiam dar conta dos seus principais compromissos financeiros. Para a Câmara de Olinda, a administração de contratos era de importância vital na formação das rendas do conselho. Apesar de não dispormos de informações precisas sobre as rendas da câmara, percebe-se a importância dos contratos pelo fato de as despesas mais volumosas serem pagas a partir das rendas desses contratos. Some-se a isso o fato de que quando a câmara queixava-se da falta de recursos justificava-se sempre pelas baixas nos contratos que administrava. A administração desses contratos durou até 1727, quando a Coroa resolve tirar da Câmara de Olinda a prerrogativa de arrecadar impostos, passando-se a administrá-los e arrematá-los através da provedoria. É interessante observar que essa perda da administração dos contratos não ocorreu só em Olinda. Na verdade, a partir da primeira década do século XVIII várias câmaras da América portuguesa perderam tal prerrogativa, em geral devido à má gestão dos recursos arrecadados. Apesar do caso da Câmara de Olinda ser bastante específico e particular, podemos enquadrálo entre as ações gerais da Coroa no sentido de uma maior interferência nos poderes locais, tentando reduzir a autonomia da instituição. Essas ações vão desde a criação do cargo de juiz de fora (ofício de nomeação régia e que atuava como presidente das câmaras) em fins do século XVII até a questão, que presentemente examinamos, da interferência na gestão dos recursos administrados pelas câmaras. Na capitania da Paraíba bem cedo se começou a tirar da câmara a administração de contratos. Em 1705, o contrato do subsídio do açúcar que era administrado pela Câmara da cidade da Paraíba desde 1665, passava REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 21 para as mãos da Coroa. Neste caso, bem diferente de outros que veremos a seguir, a transferência foi feita por solicitação da própria câmara, que objetivava, segundo Vergeti de Menezes, manter o recebimento do aluguel da balança que pesava o açúcar e deixar os outros ônus da cobrança do tributo para a Fazenda Real.2 Já em relação ao contrato do subsídio das carnes, as coisas se passaram de forma diferente. A Coroa vinha suspeitando de descaminhos na administração deste contrato, pois o mesmo aparentava estar subavaliado. Em decorrência disso, resolve-se em 1732 retirar da câmara esta administração, provocando protestos por parte da instituição que pedia o retorno do contrato às suas mãos, já que era parte importante de suas rendas. Com a administração do contrato pela Fazenda Real pareciam-se confirmar as suspeitas da Coroa sobre descaminhos e má gestão de recursos pelo Conselho, pois no primeiro ano sob o controle real o valor do contrato chegou a 40% acima do que se arrematava antes.3 Em Itamaracá a câmara também perdeu a prerrogativa de administrar os impostos. Os contratos do subsídio do açúcar e do tabaco passaram para a provedoria da capitania em 1728 em decorrência da má administração desses contratos pela municipalidade de Goiana. 4 Com o contrato do subsídio das carnes também houve problemas. O governador de Pernambuco, Duarte Sodré Pereira, em carta ao rei comentava que as rendas deste contrato eram má administradas pela câmara, gerando descaminhos para a Fazenda Real. Nesse sentido, afirmava que “os vereadores fazem várias despesas sem ordem de Vossa Majestade dando propinas e recebendo-as a seu arbítrio e outros desmanchos semelhantes”.5 Como resposta às prováveis irregularidades, a Coroa decide passar também a administração do contrato do subsídio das carnes para a 2MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em ação:Fiscalismo economia e sociedade na Paraíba (1647-1755). Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2005, p. 125. 3 Ibidem, pp. 132-138. 4 Carta do governado da capitania de Pernambuco, Duarte Sodré Pereira Tibão, ao rei D. João V, sobre o contrato do subsídio do açúcar e tabaco que administrava a câmara de Itamaracá e passou para a Provedoria da Fazenda Real, como fonte de pagamento dos soldos da guarnição da fortaleza de Santa Cruz e para as obras do forte de Cabedelo, e os contratos que ainda administra a mesma câmara. 26 de maio de 1726. AHU_ACL_CU_015, Cx. 38. D. 3435; BARBALHO, Luciana de Carvalho. Capitania de Itamaracá, poder local e conflito: Goiana e Nossa Senhora da Conceição (1685-1742). Dissertação de Mestrado. João Pessoa: UFPB, 2009, pp. 5152. 5 AHU_ACL_CU_015, Cx. 38. D. 3435. Doc. cit. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 22 provedoria em 1729.6 Pouco depois a câmara reagiu pedindo a restituição da administração dos contratos, alegando que sem essas rendas faltava dinheiro para as despesas com obras públicas, organização das festas, pagamentos de ordenados diversos, entre outras despesas. 7 Argumentava também que tal situação impedia que se fizesse o conserto das pontes da vila, prejudicando assim o bem comum. 8 O problema da má gestão também trouxe problemas para a Câmara do Rio de Janeiro. A municipalidade administrava os contratos do subsídio grande dos vinhos, o da aguardente consumida na terra e o da exportada e o do azeite doce. Preocupada com possíveis descaminhos, a Coroa aventava a hipótese de retirar esses contratos da câmara. Para isso solicitou em 1727 do governador Luís Vahia Monteiro uma declaração sobre a possibilidade de se passarem tais contratos para a administração da provedoria. O governador, que mantinha relações tensas com a câmara, considerou que o melhor para a Fazenda Real seria se retirar os contratos da câmara, para assim se evitarem os descaminhos. Com o parecer do Conselho Ultramarino em concordância com o do governador, a Coroa resolve em 1731 incorporar tais contratos diretamente à administração régia.9 A Câmara do Rio de Janeiro também reagiu à decisão régia, pedindo ao rei que se restituísse a administração de alguns contratos, alegando a dificuldade para se dar conta dos seus principais compromissos financeiros.10 Pretendemos neste trabalho analisar não apenas a forma como a Câmara de Olinda administrava os contratos de arrecadação de impostos e os eventuais problemas relacionados a essa administração, mas, sobretudo entender as questões que levaram a Coroa a retirar a administração desses contratos da câmara e passá-los ao controle direto da provedoria. BARBALHO, Luciana de Carvalho. Capitania de Itamaracá, poder local e conflito. Op. cit. p. 52. Carta dos oficiais da Câmara de Goiana ao rei D. João V, sobre a ordem recebida para passar os contratos administrados por aquele senado para a Fazenda Real daquela capitania. 30 de junho de 1729. AHU_ACL_CU_015, Cx. 38, D. 3458; Carta do governador de Pernambuco, Duarte Sodré Pereira Tibão, ao rei D. João V, sobre a representação dos oficiais da câmara de Itamaracá, pedindo a restituição da administração dos contratos de açúcar, tabaco e carnes, que passaram para a Provedoria da Fazenda. 13 de agosto de 1731. AHU_ACL_CU_015, Cx.41, D. 3729. 8 Carta dos oficias da Câmara de Goiana ao rei D. João V, sobre a construção ou reparação das pontes de Japomim e Capibaribe e a restituição dos bens do conselho. 30 de julho de 1729. AHU_ACL_CU_015, Cx. 38, D. 3460. 9 OLIVEIRA JÚNIOR, Paulo Cavalcante de. Negócios de trapaça: caminhos e descaminhos na América Portuguesa. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2002, pp. 210-213. 10 Ibidem, pp. 214-215. 6 7 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 23 Em Olinda, os contratos administrados pela câmara eram os seguintes: o das carnes; o dos vinhos; o do tabaco; o do açúcar; o das garapas; e o da balança.11 Exceto o do subsídio dos vinhos, o restante dos contratos foi criado durante ou logo após a Restauração. Inicialmente os rendimentos destes eram todos direcionados para o pagamento da infantaria, segundo a Informação Geral. Mais tarde, os contratos do açúcar e das carnes eram consignados por ordem real para o pagamento dos soldados, enquanto os outros contratos eram direcionados para outros pagamentos. O das garapas era usado para o pagamento do soldo dos governadores12, enquanto o dos vinhos era eventualmente empregado para a remessa de 10 mil cruzados que se pagava do “Dote de Inglaterra e Paz de Holanda”.13 Desde os governos de Câmara Coutinho (1689-1690) e do Marquês de Montebelo (1690-1693) havia sérias desconfianças quanto às rendas administradas pela Câmara de Olinda. A câmara era habituada a administrar suas contas de forma praticamente independente, fazendo com os rendimentos o que bem entendia, o que resultava, por vezes, em irregularidades e improbidades. Praticamente se desconheciam as verdadeiras rendas da câmara, pois não se tomavam as contas do senado. Câmara Coutinho, em 1690, foi o primeiro governador a ordenar a prestação de contas da Câmara de Olinda, apesar de o capítulo 28 do Regimento dos Governadores de 1670 ordenar que os governadores mandassem anualmente uma relação detalhada com todas as despesas da câmara.14 Para evitar abusos e irregularidades nas arrematações dos contratos administrados pela câmara, o Marquês de Montebelo implementou a ordem do seu antecessor (Câmara Coutinho), exigindo que os editais de arrematação fossem antes apresentados para aprovação do governador. Alegando usurpação dos seus direitos antigos, a câmara se Informação Geral da Capitania de Pernambuco (1749). Publicado em 1908 no V. XXVIII dos Anais da Biblioteca Nacional, pp.167-170. 12 AHU_ACL_CU_015, Cx. 32, D. 2934. Doc. cit. 13Carta dos oficiais da Câmara de Olinda a Vossa Majestade sobre a situação financeira do senado da mesma cidade. 15 de fevereiro de 1713. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias (1712-1716). V. 98, pp. 172-174. DHBN. 14Informação Geral da Capitania de Pernambuco (1749). Publicado em 1908 no Vol. XXVIII dos Anais da Biblioteca Nacional. Pg. 28 11 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 24 negou a cumprir a ordem, fazendo com que Montebelo ordenasse a prisão de dois oficiais, um vereador e um juiz ordinário. 15 Neste caso a atitude da Coroa foi de complacência com as irregularidades praticadas pela câmara, pois Montebelo foi censurado pela Coroa por sua maneira de exigir as prestações de contas da câmara. No caso da prisão dos dois oficiais recomendava-seque se “advertisse o governador da ilegalidade que cometia” e que a câmara comunicasse prontamente a Coroa em caso de ocorrência semelhante. 16 Assim, a Coroa parecia não levar em conta as palavras de Montebelo que, se referindo aos camaristas de Olinda, dizia que “sendo a fazenda de Vossa Majestade, morrem por viver dela”.17 No final das contas, a Câmara de Olinda parecia sair fortalecida na afirmação desses interesses, pois os usos e abusos na administração das rendas da câmara permanecem uma constante nas primeiras décadas do século XVIII. 18 No entanto, em carta régia de 1692 a Coroa tentava melhor organizar a gestão dos recursos que advindo dos contratos, ordenando que a câmaradeveria todos os anos mandar à Coroa uma relação da receita e despesa dos contratos que administrava. Além disso, reafirmava-se a ordem que obrigava a câmara a declarar as suas receitas e despesas todos os anos. Ficava assim determinado que nas despesas que excedessem as permitidas e aprovadas pela Coroa, teria a câmara a obrigação de repor através dos seus próprios recursos.19 O governador Sebastião de Castro e Caldas, conhecido como opositor da nobreza de Olinda 20, dizia em 1710 que a câmara fazia as “despesas que lhe parece com pretextos menos verdadeiros, dispondo das ditas rendas como se fossem próprias do conselho”. Por isso defendia que, para o bem da Fazenda Real, se deveria retirar da câmara a administração 15MELLO, Evaldo Cabral de Mello. A fronda dos mazombos: Nobres contra mascates, Pernambuco 1666-1715. São Paulo: Editora 34, 2003. p. 82; ANDRADE, Gilberto Osório de. Montebelo, os Males e os Mascates: contribuição para a história de Pernambuco na segunda metade do século XVII. Recife: UFPE, 1969.p. 120 16MELLO, Evaldo Cabral de Mello. A fronda dos mazombos. Op. cit. p. 83. 17ANDRADE, Gilberto Osório de. Montebelo, os Males e os Mascates. Op. cit. p. 119. 18Sobre outros problemas nas contas da Câmara de Olinda nas primeiras décadas do século XVIII: LISBOA, Breno Almeida Vaz. Uma elite em crise: a açucarocracia de Pernambuco e a Câmara Municipal de Olinda nas primeiras décadas do século XVIII. Recife: UFPE, 2011. Dissertação de Mestrado. 19Informação Geral da Capitania de Pernambuco (1749). pp. 143-144. 20Sobre a oposição entre a nobreza de Olinda e Castro e Caldas: MELLO, Evaldo Cabral de Mello. A fronda dos mazombos. Especialmente o capítulo “O desgoverno de Castro e Caldas”, pp. 217-277. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 25 dos contratos.21 Em 1712, a Coroa já se mostrava preocupava com possíveis improbidades na administração dos contratos. Neste ano mandava uma ordem régia ao governador Félix Machado onde se ordenava que através do provedor da capitania se deveria averiguar possíveis conluios nas arrematações de contratos e assim se proceder devassas através do ouvidor.22 A insistência da câmara em não colocar às claras os seus rendimentos levou os ministros régios a ações mais enérgicas contra a instituição. Com a demora da câmara em declarar suas contas, em 1713 o ouvidor João Marques Bacalhau fez três notificações para que o tesoureiro da câmara, Feliciano de Melo da Silva, fizesse a prestação de contas do conselho para os anos de 1710 e 1711. Não atendidas as notificações, o ouvidor ordenou a prisão do tesoureiro, que acabou encarcerado.23 Comunicado o ocorrido à Coroa, o Conselho Ultramarino manifestava-se sobre o caso. Alguns conselheiros concordavam, outros não com a prisão do tesoureiro. Entretanto, o Conselho era unânime em considerar que se deveria ordenar ao ouvidor que se tomasse as contas das rendas que administrava a câmara nos dez anos anteriores. 24 Além disso, o Conselho já discutia a possibilidade de se retirar a administração dos contratos das mãos da câmara. O conselheiro José Gomes de Azevedo dizia que pelo mau uso que os oficiais da câmara faziam da renda que administravam, deveria o rei retirar os contratos da sua administração. Entretanto, alguns conselheiros eram mais cautelosos com a questão, como Alexandre da Silva Corrêa, que enxergava lucidamente a situação ainda tensa nesses primeiros anos pós Guerra dos Mascates. No seu parecer sobre o assunto considerava que “por hora deve dissimular esta matéria, enquanto os povos de Pernambuco não estiverem Carta do Conselho a Vossa Majestade sobre se tirar à câmara a administração dos contratos. 12 de maio de 1713. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias. (1712-1716). V. 98, pp. 194-197. DHBN. 22 Carta (2ª via) do governador da capitania de Pernambuco, Félix José Machado de Mendonça Eça Castro e Vasconcelos, ao rei D. João V, sobre a ordem para ter cuidado com os conluios já ocorridos nas arrematações dos contratos daquela praça. 14 de setembro de 1713. AHU_ACL_CU_015, Cx. 25, D. 2312. 23 Carta o ouvidor de Pernambuco João Marques Bacalhau informando Vossa Majestade que prendeu o tesoureiro da Câmara de Olinda por não ter dado logo conta do seu rendimento. Traz a resolução do Conselho sobre o assunto. 1 de fevereiro de 1713. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias. (1712-1716). V. 98, pp. 159-164. DHBN. 24 Ibidem, p. 162. 21 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 26 em mais sossego do que hoje estão”.25 Ou seja, considerava que passar-se a administração dos contratos para a provedoria seria o mais acertado, porém não seria este o melhor momento. Percebia que na tensão ainda reinante, essa nova perda para a Câmara de Olinda poderia servir de motivação para novas alterações por parte dos senhores de engenho. 26 Enquanto a questão não era resolvida a Coroa tratava de exercer cada vez mais controle sobre a arrematação dos contratos pela câmara. Ainda em 1713 o procurador da fazenda da Coroa dizia que o provedor da capitania de Pernambuco deveria sempre assistir às arrematações dos contratos da câmara.27 Já o Conselho Ultramarino recomendava ao rei que se mandasse observar inviolavelmente a ordem que foi dada ao governo de Pernambuco em 1693, onde se declarava que os oficiais da Câmara de Olinda seriam obrigados a dar conta dos lanços que houvesse nos contratos que administram e das arrematações que deles se fizessem. Também dizia o Conselho que deveria ser nula toda arrematação que fosse feita sem a assistência do provedor, para assim se evitar “todo o conluio e dano que disso resultasse”.28 Essa questão dos possíveis conluios era algo que preocupava a Coroa. Além de recomendar aos governadores que sempre estivessem atentos aos conluios nas arrematações, constatava que em Olinda os valores dos contratos muitas vezes eram baixos justamente por conta deste problema. Isso era percebido “pelas repetidas notícias que há de não crescem antes se diminuem (os valores dos contratos) por se interessarem nela os mesmos oficiais da câmara, por cuja causa se não pode esperar zelem muito o seu aumento”.29 25Carta o ouvidor de Pernambuco João Marques Bacalhau informando Vossa Majestade que prendeu o tesoureiro da Câmara de Olinda por não ter dado logo conta do seu rendimento. Traz a resolução do Conselho sobre o assunto. 1 de fevereiro de 1713. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias. (1712-1716). V. 98, p. 163. DHBN. 26 Sobre as tensões em Pernambuco nas décadas após a Guerra dos Mascates: LISBOA. Breno Almeida Vaz. Uma elite em crise. Op. cit. 27 Carta do governador de Pernambuco Félix José Machado a Vossa Majestade sobre o contrato do subsídio do açúcar. 13 de fevereiro de 1713. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias. (1712-1716). V. 98, pp. 169-170. DHBN. 28 Ibidem, p. 170. 29 Carta do provedor da fazenda de Pernambuco, João do Rego Barros, a Vossa Majestade sobre o pagamento do soldo dos soldados da infantaria. 28 de fevereiro de 1726. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias (1716-1727). Vol. 99, pg. 231-235. DHBN. Anos antes, em 1686, a Coroa escrevia à câmara para falar sobre o contrato do subsídio dos vinhos e comentava sobre “diligências que se fizeram por se averigues se haveria algum suborno.” Registro de carta de Sua Majestade escrita aos oficiais da câmara sobre a arrematação do subsídio dos vinhos. 28 de janeiro de 1686. Cartas, Provisões e Ordens régias de Olinda. APEJE. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 27 A Coroa também analisava outros pontos relativos à questão dos contratos. O mesmo procurador da fazenda da Coroa ainda no ano de 1713 percebia o quanto os contratos eram parte fundamental do poder econômico da câmara e por isso de grande importância para a manutenção de poder político que exercia a Câmara de Olinda. Retirar os contratos da sua administração seria então uma maneira de enfraquecê-la, deixá-la com menos poder para se insurgir contra as ordens da Coroa. Nas palavras do procurador: “é necessário deixá-la menos rica, e poder atrever-se menos”.30 Portanto, nesses complicados primeiros anos após a Guerra dos Mascates preocupava à Coroa não só os descaminhos presentes na administração dos contratos, mas também o poder econômico ainda possuído pela câmara, o que poderia encorajá-la a resistir às determinações reais ou até mesmo promover novas alterações. Outra questão também preocupava a Coroa. Com a lembrança recente das alterações de 1710-1711 percebia-se que as tropas da capitania poderiam servir aos interesses das parcialidades em conflito. Sendo assim, já que as tropas regulares eram pagas pela Câmara de Olinda, seria mais lógico que elas obedecessem ao seu comando em eventuais disputas. Assim, tirando-se os contratos da câmara o pagamento das tropas seria feito não mais por ela e sim pela Fazenda Real. Seria então uma medida preventiva contra o poder de fogo da nobreza de Olinda representada na câmara, pois dizia o conselheiro Antônio Rodrigues da Costa que “é máxima infalível que a milícia é de quem a paga e nas dissensões segue sempre o partido de quem recebe os soldos”. 31 Uma carta anônima de meados de 1717 complicava ainda mais a situação dos contratos da câmara, pois trazia informações que pareciam confirmar as suspeitas de descaminhos. Nesta carta, endereçada ao rei D. João V, comenta-se sobre “o lastimoso estado do porto de Pernambuco” por conta dos descaminhos “a respeito da alfândega, almoxarifado, décima e tudo mais que pertence a fazenda de Vossa Majestade, especialmente sobre tabacos.” Além disso, o autor anônimo também colocava a Câmara de Olinda como protagonista de vários desvios. O documento esmiúça as rendas dos principais contratos da capitania e as despesas com a infantaria. 30Carta o ouvidor de Pernambuco João Marques Bacalhau informando Vossa Majestade que prendeu o tesoureiro da Câmara de Olinda por não ter dado logo conta do seu rendimento. Traz a resolução do Conselho sobre o assunto. 1 de fevereiro de 1713. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias. (1712-1716). V. 98, p. 196. DHBN. 31 Ibidem, p. 197. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 28 Numa comparação entre as rendas e as despesas argumenta que só uma parte do que é arrecadado é gasto com a infantaria, quanto ao resto: “... sem saber com que as gasta, pois as pontes estão arruinadas, fontes e calçadas não as há para se repararem”.32 A carta responsabilizava alguns membros da câmara pelas improbidades: o escrivão Manuel de Miranda de Almeida e tesoureiro Gaspar da Terra, pois “por insultos e maquinações se dissipam a cada ano mais de vinte mil cruzados” que eram usurpados pelos dois funcionários. A carta cita também dois vereadores “que andam sempre nos pelouros”, Pedro Cavalcanti e José Camelo. Esses dois eram acusados de se sustentarem do que retiravam dos bens do senado a partir de um conluio com o escrivão e o tesoureiro. Assim, recomendava a carta que estes vereadores fossem proibidos de servir na câmara, pois “se Vossa Majestade não ordenar que nenhum dos dois sirva mais na câmara não haverá no cofre um vintém.” Defendia também que o único remédio seria a expulsão da câmara e da cidade dos quatro homens citados por serem “prejudiciais à república”.33 Transparece na carta a desconfiança que ainda havia em relação à nobreza de Olinda por conta das alterações recentes. 34 Qualificava-se os oficiais da câmara de “revoltosos” e “sobretudo demasiadamente apaixonados contra tudo que é do reino por serem dos cabeças dos motins que houve nesta terra.” Por fim, o autor anônimo recomendava ao rei uma seleção mais criteriosa para a escolha dos oficiais da Câmara de Olinda como uma forma de se evitar a eleição de figuras corruptas e não zelosas com o real serviço. Nas suas palavras: “sirva-se nesta câmara com pessoas de melhor condição e costumes; e mande tomar conhecimento e pacto de tudo; em razão dos descaminhos de sua fazenda que administrada por estes quatro homens não terá existência”.35 Boa parte das rendas advindas dos contratos administrados pela câmara era destinada ao pagamento da infantaria. Desde o post Requerimento ao rei D. João V, pedindo que se observe os descaminhos da Fazenda Real que vêem acontecendo na Alfândega do Recife nos contratos do açúcar, nas pessoas que a administram e que pessoas de melhor condição e costume sirvam na câmara de Olinda. Obs.: documento sem autor. Ant. a 12 de junho de 1717. AHU_ACL_CU_015, Cx. 28, D. 2514. 33 Ibidem. 34 Sobre a Guerra dos Mascates o trabalho já clássico: MELLO, Evaldo Cabral de Mello. A fronda dos mazombos. Op. cit. 35 Ibid. 32 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 29 bellum36havia dificuldades para se dar conta desta despesa, gerando reclamações por parte da câmara. No período após a Guerra dos Mascates essas dificuldades ocasionaram constantes atrasos no pagamento das tropas, sendo frequente que os terços ficassem meses sem receber soldo. Os constantes atrasos nos pagamentos traziam problemas para a defesa da capitania. Em 1713, o governador Félix Machado comunicava ao rei que teve que se valer do dinheiro da Dízima da Alfândega para o pagamento dos soldos da infantaria. Tal dinheiro era destinado às fortificações da capitania, por isso não poderia ser desviado para outros fins sem ordem real. Por isso o governador se justificava ao rei dizendo que a câmara não vinha pagando a infantaria com conformidade, atrasando os pagamentos. Segundo ele“a câmara de Olinda não acha a pagar a gente da guerra nessa capitania”, daí a necessidade de se utilizar dinheiro da Fazenda Real, pois “não se podem conservar soldados dilatando-se os pagamentos”.37 Analisando a questão, o Conselho Ultramarino dava parecer favorável ao governador, argumentando que “as praças não se conservam e nem se defendem sem soldados”. 38 Em 1721 era o governador geral Vasco Fernandes César de Menezes que reclamava contra o atraso no pagamento da infantaria. Em carta à câmara comentava que estranhava muito o procedimento da instituição em relação ao atraso dos pagamentos, “de cujo descuido se tem seguido a deserção de tantos soldados.” Possivelmente já sabendo que os atrasos eram constantes, falava aos oficiais da câmara de forma enérgica, num tom quase ameaçador: “e porque me não seja preciso fazer alguma demonstração severa com esses vereadores espero que se abstenham de me Termo usado por Evaldo Cabral de Mello para designar a história da capitania de Pernambuco após a expulsão dos holandeses, ou seja, a grosso modo a segunda metade do século XVII. 37 Carta (1ª via) do governador da capitania de Pernambuco, Félix José Machado de Mendonça Eça Castro e Vasconcelos, ao rei D. João V, sobre o pagamento que fez aos soldados através da dízima e pedindo que, no caso da falta do pagamento dos contratos da câmara, ele possa suprir os provimentos dos ditos soldados na forma que o fez. 22 de dezembro de 1713. AHU_ACL_CU_015, Cx. 26, D. 2383. 38 Idem; Carta do governador de Pernambuco Félix José Machado de Mendonça a Vossa Majestade sobre se pagar aos soldados pela dízima quando falte o pagamento dos contratos da câmara. 26 de abril de 1714. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias (1712-1716). Vol. 98, pg. 216-217. DHBN. 36 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 30 dar semelhante motivo”.39 As palavras enérgicas do governador geral parecem ter surtido efeito imediato, pois poucos meses depois a câmara enviava carta comunicando ao mesmo que já havia pago a infantaria, “valendo-se para este efeito de algum dinheiro de empréstimo”.40 O governador da capitania, D. Francisco de Souza, resolveu promover uma interferência mais incisiva nos contratos administrados pela câmara. Para evitar que o dinheiro dos contratos não chegasse prontamente para o pagamento da infantaria, passou portaria ordenando aos contratadores que não entregassem o dinheiro das arrematações ao tesoureiro da câmara. Para o governador essa seria uma maneira de fazer com que o dinheiro dos contratos consignados para o pagamento dos soldados não deixasse de chegar pontualmente ao seu destino. Segundo o mesmo a medida era necessária porque as tropas ficavam oito a dez meses sem pagamento, já que a câmara empregava o dinheiro das consignações em despesas inúteis. Em vista disso, recomendava ao rei que a administração dos contratos relacionados diretamente com o pagamento dos soldados fosse passada à provedoria.41 No entanto, tal procedimento do governador gerou reações por parte da câmara. Em 1721 os oficiais da câmara pediam ao rei que suspendesse a portaria baixada pelo governador, pois existia ordem real para que não houvesse intromissão dos governadores na administração dos contratos. Já o Conselho Ultramarino afirmava que o governador não tinha jurisdição para interferir dessa forma nos contratos, mas seu excesso era desculpável, pois se fez no intuito de evitar os constantes atrasos no pagamento da infantaria.Além disso, afirmava que se deveria ordenar aos contratadores que entregassem ao provedor da capitania a lista com os soldados dos terços todas as vezes que se houver de fazer pagamento. Só após esse procedimento é que o dinheiro das arrematações seria entregue ao tesoureiro da câmara. Por fim, defendia o Conselho que se deveria Vasco Fernandes César de Menezes. Para o Senado da Câmara de Olinda. 18 de julho de 1721. Pernambuco e outras capitanias do norte. Cartas e ordens. (1717-1727) V. 85, p. 66. DHBN. 40 Vasco Fernandes César de Menezes. Para os oficiais da Câmara de Olinda. 3 de novembro de 1721. Cartas e ordens. (1717-1727) V. 85, pp. 76-77. DHBN. 41 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. João V, sobre carta dos oficiais da câmara de Olinda, informando que o governador da capitania de Pernambuco, D. Francisco de Souza, proibiu que os contratadores dos contratos da administração daquele senado repassasse dinheiro algum, nem mesmo ao tesoureiro. 13 de outubro de 1721. AHU_ACL_CU_015, Cx. 29, D. 2640. 39 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 31 ordenar aos oficiais da câmara que não invertesse o dinheiro consignado para outras despesas.42 Os atrasos no pagamento da infantaria pareciam continuar frequentes, gerando mais intromissões de governadores na administração dos contratos. Para garantir o pagamento das tropas o governador D. Manoel Rolim de Moura resolveu embargar quase todos os contratos da câmara – o da balança, o do tabaco, o das garapas e o dos vinhos – nas mãos dos contratadores para que o dinheiro não chegasse às mãos do tesoureiro. A intenção do governador era utilizar não só os contratos do açúcar e das carnes, que já eram consignados para o pagamento da infantaria, mas também os outros contratos direcionando-os para o tal pagamento. Muito provavelmente o governador também concordava que as rendas dos contratos não deveriam ser mais administradas pela câmara, pois possivelmente tinha conhecimento das notícias de que as rendas eram mal administradas pelos oficiais do conselho. A câmara, em contrapartida, reagia contra a ação do governador. Reclamava ao rei em 1725 que o governador, com tal atitude, intrometia-se na jurisdição da câmara, pois, reiteravam os oficiais, havia ordem real que proibia a intromissão dos governadores nos contratos administrados pela câmara. Dessa forma, a câmara pedia que fosse respeitada a ordem real para que nenhum contrato fosse embargado por nenhum governador. 43 Ao Conselho Ultramarino muito incomodava o atraso no pagamento dos soldados. Reprovava o fato da Câmara de Olinda desviar o dinheiro destinado ao pagamento da infantaria para outros fins, afirmando que a câmara deveria explicar ao governador por escrito os motivos de não ter aplicado as consignações para o dito pagamento, mostrando onde gastou esses recursos.44 Outras irregularidades eram constatadas nas arrematações. Com o contrato do subsídio dos vinhos em 1718 houve a irregularidade da arrematação ter sido feita por tempo de seis anos, quando as ordens e regimentos reais mandavam que se fizesse por três anos, não sendo permitida qualquer alteração sem prévia autorização real. O responsável por tal denúncia era o provedor João do Rego Barros, que também Ibidem. Carta dos oficias da câmara de Olinda ao rei D. João V, sobre os conflitos de jurisdição com o governador da dita capitania, D. Manoel Rolim de Moura, na administração dos contratos. 22 de agosto de 1725. AHU_ACL_CU_015, Cx. 32, D. 2962. 44 DHBN, V. 99, pp. 231-235. Doc. cit. 42 43 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 32 afirmava que fora tudo feito com aprovação do governador Manoel de Souza Tavares. Além disso, dizia que o mesmo e os oficiais da câmara foram lembrados sobre o regimento real acerca do assunto, por isso não poderiam alegar ignorância. A par das denúncias do provedor, o Conselho Ultramarino dizia que “na arrematação que se fez desse contrato não só se contrariou a disposição do regimento da fazenda, mas se faltou a observância da ordem de Vossa Majestade”. Por isso considerava que a arrematação deveria ser cancelada. Como Manoel de Souza Tavares fora conivente com as irregularidades, o Conselho declarava que deveria ser ordenado que o governador pagasse pela eventual diminuição na próxima arrematação, além de ser severamente repreendido por ter desobedecido às ordens reais.45 Antes mesmo das denúncias do provedor chegarem ao Reino, a câmara já se preocupava em justificar o seu procedimento à Coroa. Em carta ao rei de junho de 1718 alegavam os oficiaisque a arrematação por seis anos foi uma solicitação dos arrematantes, pois “por seis anos era mais dilatado o tempo para os fazerem conduzir e terem algum lucro”. Também afirmavam que o contrato foi colocado em praça por tempo de três e de seis anos e que o de seis anos recebeu maior lance. Por isso teriam agido de tal forma “pelo interesse que nisto recebe a Real Fazenda de Vossa Majestade a que todos temos obrigação de atender.” Assim, pediam ao rei, “prostrados aos seus reais pés”, que aprovasse a tal arrematação feita pela câmara.46 A municipalidade mandava ainda no mesmo ano ao Reino uma certidão escrita, subscrita e assinada pelo escrivão da câmara Manuel de Miranda de Almeida onde se certificava o seguinte: que na arrematação do contrato do subsídio dos vinhos “não houve quem nele lançasse por três anos coisa alguma, e por seis maior lanço que chegou foram quarenta e cinco mil e quinhentos cruzados.” O documento também certificava que com o contrato do subsídio do açúcar ocorrera coisa semelhante, pois “por três anos não houve quem desse maior lanço que de trinta e nove mil e quinhentos cruzados. E por seis o maior lanço foi de oitenta mil cento e dez cruzados”, arrematando-se assim pelo preço oferecido por tempo de seis anos.47 Nas arrematações dos anos seguintes a câmara parece ter continuado a enfrentar problemas com os baixos rendimentos dos AHU_ACL_CU_015, Cx. 28, D. 2556. Doc. cit. Ibidem. 47 Ibid. 45 46 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 33 contratos. Em dezembro de 1723, os oficiais comunicavam ao rei que o contrato do subsídio do açúcar estava em praça desde agosto, mas não havia sido arrematado, pois não deram por ele mais do que quinze mil cruzados, preço bem abaixo dos anos anteriores. Por conta dissoo contrato ainda não havia sido arrematado, pois ainda esperavam uma melhora no valor dos lanços.48 O governador D. Manoel Rolim de Moura também comunicara ao rei a baixa no mesmo contrato do subsídio do açúcar do ano de 1723. Enquanto a câmara dizia que se chegou a dar pelo contrato quinze mil cruzados, o governador relatava que por conta da grande seca não houve quem quisesse arrematar o dito contrato, “nem pouco nem muito.” Por conta disso ficava para se arrecadar o subsídio pela Fazenda Real, de que se esperava muito pouco rendimento. Com o reduzido rendimento do contrato não haveria dinheiro suficiente para pagar as tropas, assim era necessário novamente recorrer ao dinheiro da Dízima da Alfândega para o pagamento da infantaria. Foi o que solicitou o governador ao rei, pedindo que se pudesse novamente recorrer ao dinheiro da dízima enquanto os valores dos contratos não subissem. 49 A constante baixa nos rendimentos dos contratos parecia também estar relacionada a uma questão que fugia ao controle da câmara. Por volta de 1718 as câmaras de Olinda e do Recife e os negociantes desta praça reclamavam que os moradores das vilas de Serinhaém, Porto Calvo, Alagoas e Penedo e suas freguesias mandavam seus açúcares e tabacos direto para a Bahia, “só afim de não pagarem a Vossa Majestade os seus direitos.” Isso quer dizer que muito açúcar e tabaco não era taxado, acarretando baixas nos respectivos contratos. Quanto ao tabaco a situação era ainda mais complicada, pois os moradores das vilas das Alagoas e “Rio de São Francisco” (Penedo) haviam conseguido desde as últimas décadas Carta dos oficiais da câmara de Olinda ao rei D. João V, informando que desde o mês de agosto o contrato do açúcar foi posto em praça para ser arrematado e até então não chegou lance maior do que o do ano passado. 16 de dezembro de 1723. AHU_ACL_CU_015, Cx. 30, D. 2704. 49 Carta do governador da capitania de Pernambuco, D. Manoel Rolim de Moura, ao rei D. João V, sobre a seca que assola a capitania e que o subsídio do contrato das carnes não cobrirá as despesas do pagamento das Companhias de Infantarias, tendo que ser utilizado o do açúcar. 17 de dezembro de 1723. AHU_ACL_CU_015, Cx. 30, D. 2705; Carta do governador de Pernambuco, Dom Manuel Rolim de Moura, a Vossa Majestade sobre o contrato do açúcar. 22 de setembro de 1724. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias (1716-1727). V. 99, pp. 208-209. DHBN 48 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 34 do século XVII sentença favorável do Tribunal da Relação da Bahia que os autorizava a embarcar o tabaco diretamente para a Bahia. 50 Para a câmara tratava-se de um problema muito sério, pois ameaçaria a “saúde” econômica da capitania: “além desse grande prejuízo da Fazenda Real segue-se um irreparável dano ao comércio daquela praça e lhe parece que de todo se extinguirá remetendo aquelas vilas os seus frutos para a Bahia.” De tal forma que se não fosse dado pronto remédio, a situação pioraria, pois “a seu exemplo farão o mesmo todas as outras só afim de não pagarem direitos.” Com uma razoável dose de exagero os oficiais das duas câmaras argumentavam que a persistência do problema traria a ruína da capitania, já que “não acharão os navios da frota naquele porto, com que se carregarem para Portugal, por consequência não irão mais a ela que será a total extinção do comércio daquela praça e abatimento dos povos”. 51 Com o contrato do subsídio dos vinhos também houve outros problemas. A câmara reclamava que os negociantes da Bahia e do Rio de Janeiro traziam vinho e aguardente para comercializar em Pernambuco. Isso prejudicava o contrato dos vinhos –“patrimônio deste senado” -, pois os comerciantes não queriam pagar o subsídio ao contratador, alegando que já haviam pago na Bahia e no Rio. Assim, pedia a câmara que o rei ordenasse que toda a aguardente e vinho que entrasse na capitania pagasse subsídio aos contratadores. É interessante notar que a câmara não pede a extinção desse comércio com o Rio e com a Bahia, solicita apenas que sejam pagos os impostos devidos, pois isso implicava no valor da arrematação deste contrato.52 Outro problema com o contrato do subsídio dos vinhos se deu por conta do consumo de vinho dos conventos da capitania. A Coroa havia ordenado que a câmara arbitrasse a quantidade de pipas de vinho que os Registro de carta de Sua Majestade para a câmara no que manda usarem de via ordinária para cobrar o subsídio do tabaco das Alagoas e Rio de São Francisco. 8 de novembro de 1689. Cartas, provisões e ordens régias de Olinda. APEJE. 51 Carta do Conselho expondo a Vossa Majestade o requerimento em que as câmaras de Olinda e vila do Recife, e os homens de negócio daquela praça, pedem para que obrigue a que as mercadorias paguem taxa na Bahia. 23 de novembro de 1718. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias (1716-1727). V. 99, pp. 52-56. DHBN; Carta dos oficiais das câmaras de Olinda e Recife a Vossa Majestade sobre o roubo de umas caixas de açúcar. 20 de julho de 1719. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias. (1716-1727). V. 99, pp. 77. DHBN. 52 Carta dos oficiais da câmara de Olinda ao rei D. João V, sobre a entrada de vinhos e aguardente na praça da capitania de Pernambuco, vindos do Rio de Janeiro e Bahia e os prejuízos para o contrato do subsídio dos vinhos pertencente a dita câmara. 18 de agosto de 1725. AHU_ACL_CU_015, Cx. 32, D. 2940. 50 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 35 conventos da capitania teriam livres do pagamento do subsídio dos vinhos. Assim, ficara estabelecido que os conventos poderiam consumir até no máximo dez pipas de vinho por ano livre do subsídio, com exceção do Mosteiro de São Bento, que teria direito a quatorze. No entanto, os religiosos conseguiram uma provisão real que liberava o consumo de qualquer quantidade de vinho livre do subsídio. O problema é que, segundo a câmara, era “extraordinário e incrível o gasto de vinho destes religiosos”, chegando a se consumir oitenta ou noventa pipas em cada triênio. Como esse alto consumo sem taxação influía no valor do contrato, a câmara se queixava da situação e pedia ao rei que mandasse taxar o vinho dos religiosos.53 Tais queixas da câmara surtiram efeito. Num requerimento dos religiosos da Congregação do Oratório do Recife ao rei, reclama-se que por conta das queixas da Câmara de Olinda se passou nova provisão em 17 de agosto de 1727 ordenando que o vinho dos religiosos fosse taxado (caso o consumo ultrapassasse dez pipas). Os religiosos alegavam que as informações da câmara não eram verdadeiras, pois os religiosos não consumiam tanto vinho como afirmavam os oficiais da câmara. Dizia que em três triênios consecutivos somente em um se consumiu oitenta e duas pipas e em outro se consumiu apenas vinte e três pipas. Juntando os três triênios teriam se consumido cento e cinquenta pipas, o que daria dezesseis por ano. Assim, pediam que a provisão de 1727 fosse revogada e se desse cumprimento a antecedente.54 A câmara tinha razão em se preocupar com a arrematação do contrato do subsídio dos vinhos. Em 1712 era o segundo contrato que mais rendia à câmara (46.010 cruzados), perdendo apenas para o subsídio das carnes (60.000 cruzados).55 Era tratado pelos oficiais da câmara como “patrimônio especial deste senado”. Isso se devia ao intenso comércio de vinhos portugueses que existia não só em Pernambuco, mas também em Carta dos oficiais da Câmara de Olinda ao rei D. João V, sobre a ordem para se arbitrar as pipas de vinhos consumidas pelos conventos de religiosos da capitania de Pernambuco. 14 de setembro de 1726. AHU_ACL_CU_015, Cx. 34, D. 3144. 54 Requerimento do prepósito da Congregação do Oratório do Recife, padre Francisco Monteiro, ao rei D. João V, pedindo suspensão da ordem que alterou as antigas provisões, pela qual se estabeleceu o não pagamento do direito dos vinhos necessário para o consumo de seus conventos. Anterior a 8 de janeiro de 1729. AHU_ACL_CU_015, Cx. 38, D. 3383. 55 Lista das cartas enviadas pela câmara de Olinda ao rei D. João V, referentes ao ano de 1712. 1712. AHU_ACL_CU_015, Cx. 25, D. 2273. 53 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 36 outras áreas da América portuguesa, constituindo um dos negócios mais importantes do Atlântico português. Valor dos contratos administrados pela Câmara de Olinda em 1712.56 Subsídio do Renda da Contrato da Subsídio dos Subsídio do Contrato das Tabaco Garapa Balança Vinhos Açúcar Carnes 4:10$000 9$000 14$250 46$010 36$100 60$000 réis cruzados cruzados cruzados cruzados cruzados No Rio de Janeiro, onde o comércio de vinho era intenso, o contrato do subsídio dos vinhos também era importante para a câmara da cidade, que aplicava suas rendas no pagamento das tropas e na defesa da capitania.57 Outro produto importante para a economia do Rio era a aguardente de cana. A partir da segunda metade do século XVII a aguardente era um produto de grande importância para o funcionamento dos engenhos da região, pois era uma alternativa para resistir aos baixos preços do açúcar no mercado europeu. Nesse período muitos engenhos se especializavam na produção da aguardente ou combinavam a produção de açúcar com a da “geribita”. Com isso, o comércio do produto crescia rapidamente. Havia um considerável consumo interno, já que a bebida estava presente desde as mesas dos escravos e pessoas mais humildes até nas mais opulentas, tornando-se um hábito alimentar enraizado entre as populações de toda a América portuguesa.58 No entanto, o comércio da aguardente adquiriu maior vulto por ter sido o produto preferido nas trocas comerciais com a África, notadamente Angola, utilizando-se como moeda de troca para a aquisição de escravos. 59 56Idem. CAETANO. Antonio Felipe Pereira. Entre a sombra e o sol – A revolta da cachaça, a freguesia de São Gonçalo de Amarante e a crise política fluminense. (Rio de Janeiro, 1640 – 1667) Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFF, 2003. 58 ALGRANTI, Leila Mezan. “Aguardente de cana e outras aguardentes: por uma história da produção e do consumo de licores na América Portuguesa”. In: VENÂNCIO, Renato Pinto; CARNEIRO, Henrique. Álcool e drogas na história do Brasil. São Paulo: Alameda; Belo Horizonte: PUCMinas, 2005, pp. 85-86. 59FERREIRA, Roquinaldo. “Dinâmica do comércio intra-colonial: geribitas, panos asiáticos e guerra no tráfico angolano de escravos”. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Batista; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séc. XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 348-349. Segundo tal autor em fins do século XVII Pernambuco era o segundo maior exportador de cachaça para Angola, perdendo apenas para a Bahia. Neste mesmo período parece ter havido problemas com este comércio entre Pernambuco e Angola, já que a Coroa impôs uma ordem para que 57 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 37 Tal expansão no comércio da aguardente prejudicava o mercado para os vinhos portugueses, que encontraram na geribita uma forte concorrente. Por conta disso em 1649 a Coroa portuguesa resolve proibir o a produção e o comércio do produto. Dada a importância do comércio de aguardente para o Rio, tal determinação trouxe grande insatisfação para vários setores da população da capitania, fazendo eclodir em 1660 a chamada “revolta da cachaça”.60 Depois de tantos problemas e irregularidades constatados na administração dos contratos pela Câmara de Olinda, a Coroa parecia perceber que tal administração era prejudicial não só para a Fazenda Real como também para a manutenção da ordem na própria capitania de Pernambuco. Em 1726, uma sublevação das tropas por falta de pagamento complicava ainda mais as coisas. Neste ano, por estarem sem receber soldo há um ano e meio (!) os soldados dos terços do Recife e de Olinda se sublevaram, marchando juntos, se colocando em acampamento e abandonando suas praças e fortalezas. Segundo Kalina Vanderlei, como se não bastassem os baixíssimos soldos pagos aos soldados, eram comuns os atrasos nos pagamentos das tropas coloniais. Constituía uma característica do próprio sistema de manutenção das tropas, um “vício público”, onde “mal, tarde ou nunca” era o lema régio para o pagamento de suas tropas. 61 Nas possessões portuguesas do Oriente se observa uma situação semelhante, já que segundo Charles Boxer os atrasos também eram constantes na manutenção das tropas da região.62 Pela gravidade da situação da sublevação das tropas o governador D. Manuel Rolim de Moura convocou uma junta formada pelo ouvidor, provedor, juiz de fora e os mestres de campo dos dois terços, resolvendo não se mandassem aguardentes desta capitania para Angola. A Coroa justificava a ordem dizendo que seria por conta “dos danos que causa com as mortes na infantaria” em Angola. Já que o fim desse comércio acarretaria a diminuição no valor do respectivo contrato, a Câmara de Olinda reclamou contra tal ordem, pedindo que fosse suspensa. Registro de carta de Sua Majestade aos oficiais da câmara em que manda se observe inviolavelmente a ordem que mandou passar de não haverem aguardentes para Angola. 5 de outubro de 1690. Cartas, provisões e ordens régias de Olinda. APEJE. 60 CAETANO. Antonio Felipe Pereira. Entre a sombra e o sol. Op. cit. 61SILVA, Kalina Vanderlei. O Miserável Soldo e a Boa Ordem da Sociedade Colonial. Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco dos Séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001.pp. 162-163. 62 BOXER, Charles R. O império marítimo português. 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.p. 330. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 38 por unanimidade pagar os soldados através da Fazenda Real, mais uma vez através do dinheiro da Dízima da Alfândega como empréstimo. 63 Pouco tempo depois do ocorrido, a notícia chegava à Bahia. O governador geral, Vasco César de Menezes, em carta ao ouvidor de Pernambuco demonstrava grande preocupação com o motim, considerando que “o sucesso acontecido que vossa mercê me dá conta é um dos mais graves que se pode imaginar.” Considerava justa a pretensão dos soldados, mas estranhava “o modo por incivil e de perniciosas conseqüências.” Por isso, defendia severa punição para os responsáveis, dando como exemplo sua própria experiência numa situação semelhante passada por ele no Reino: “A mim me lembra muito bem haver enforcado e arcabuziado muitos soldados por menos culpa sendo general da província do Alentejo no tempo da guerra, de cuja demonstração não se seguiu dano algum; mas antes utilidade naquele proveitoso exemplo”.64 Chegando o caso à Coroa, discutia-se no Conselho Ultramarino a melhor maneira de se proceder quanto ao motim. Preocupava o Conselho o fato deste motim não ser o primeiro no Brasil, pois já haviam ocorrido outros na Bahia e no Rio de Janeiro. Temia assim que situações como estas pudessem se multiplicar pelo Brasil, por isso o motim de Pernambuco não deveria ser perdoado. Seria preciso assim que neste caso o rei mostrasse “o seu real desagrado”. No entanto, assumia uma postura ambígua reconhecendo a “extrema necessidade” dos soldados, sendo por isso dignos de perdão por parte da Coroa. Apenas alguns oficiais deveriam ser punidos, pois “casos tão graves, e de tão mau exemplo não devem ficar de todo impunes e sem alguma demonstração de indignação do príncipe.”65 Apesar das recomendações do governador geral e do Conselho Ultramarino, durante o governo de D. Manuel Rolim de Moura em CARTA (1ª via) do governador da capitania de Pernambuco, D. Manoel Rolim de Moura, ao rei D. João V, sobre a insubordinação dos Terços de Recife e Olinda por falta de pagamento de soldos de um ano e meio, e as medidas tomadas para pacificar o movimento remunerando os ditos soldados a fim de retornarem para suas praças e fortalezas. 12 de agosto de 1726. AHU_ACL_CU_015, Cx. 34, D. 3114. 64 Carta para o provedor da fazenda de Pernambuco. 23 de setembro de 1726. Cartas e ordens. Pernambuco e outras capitanias do Norte. (1717-1727). Vol. 85, pg. 238-239. DHBN; Carta para o governador de Pernambuco Dom Manuel Rolim de Moura. 23 de setembro de 1726. Cartas e ordens. Pernambuco e outras capitanias do Norte. (1717-1727). Vol. 85, 239-240. DHBN. 65 Carta do governador de Pernambuco, Dom Manuel Rolim de Moura, informando Vossa Majestade que os dois terços do Recife e Olinda se sublevaram por não terem recebido soldo. 2 de maio de 1727. Consultas do Conselho Ultramarino. Pernambuco e outras capitanias. (17161727). Vol. 99, pp. 254-259. DHBN. 63 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 39 Pernambuco a sublevação das tropas ficou sem punição. Somente com a chegada de outro governador em 1727, Duarte Sodré Pereira, iniciaram-se as punições. Segundo Pereira da Costa uma dos primeiros cuidados do governador logo que tomou posse foi prender e punir os cabeças do motim, embarcando alguns para a Colônia do Sacramento em uma expedição militar que partiu em 1728.66 Para o Conselho Ultramarino a principal responsável pela sublevação das tropas era a Câmara de Olinda. Dizia que “a falta de dinheiro para o pagamento destes terços de Pernambuco em parte procede da má administração com que a Câmara de Olinda governa os contratos que são aplicados ao pagamento da infantaria.” Dessa forma, um ano depois da sublevação o Conselho parecia chegar a sua decisão final sobre os contratos administrados pela câmara, afirmando: “será conveniente que se lhe tire e se incorpore na provedoria da Fazenda Real.” 67 Após tantos problemas e irregularidades na gestão desses recursos, o referido motim parecia ser o que faltava para a Coroa tomar uma decisão que vinha sendo amadurecida já há alguns anos. Assim, em 1727, como já dissemos, a câmara perde a prerrogativa de administrar tais contratos, passando-se estes à provedoria, sob controle da Fazenda Real. Das tais rendas restaram à câmara 600 mil réis por ano do rendimento do contrato dos vinhos pagos pela provedoria para o conserto das pontes. 68 Dois anos depois da resolução real, a câmara representava à Coroa pedido para que os contratos do subsídio dos vinhos e o da balança fossem restituídos a sua administração. Alegavam os oficiais que as rendas de que dispunham, provenientes das rendas dos foros, dos aluguéis das casas e das condenações, respondiam a vários pagamentos, mas não eram suficientes para o conserto das pontes. 69 Em 1730 a Coroa resolvia a PEREIRA DA COSTA. F. A. Anais Pernambucanos. V. 5.Edição Coleção Pernambucana, Recife: Secretaria de Turismo, Cultura e Esportes / FUNDARPE / Diretoria de Assuntos Culturais, 1983, p. 377; Segundo Kalina Vanderlei uma das formas de punição adotadas em Pernambuco para soldados que promovessem motins era o chamado “degredo útil”, ou seja, o soldado era transferido para alguma região distante ou inóspita para servir como soldado nesses locais. SILVA. Kalina Vanderlei Paiva da.O miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial. Op. cit. 67 DHBN, vol. 99, pp. 254-259. Doc. cit. 68 CARRARA, Ângelo Alves. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco. Juiz de Fora: UFJF, 2009, p. 228; Informação Geral da Capitania de Pernambuco (1749). Publicado em 1908 no V. XXVIII dos Anais da Biblioteca Nacional, p. 170. 69 Provisão do rei D. João V ordenando que se entregue à câmara de Olinda a administração do contrato da balança. 28 de abril de 1730. AHU_ACL_CU_015, Cx. 40, D. 3634. 66 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 40 questão passando provisão restituindo à câmara apenas a administração do contrato da balança.70 Referências documentais Arquivo Histórico Ultramarino – Papéis Avulsos de Pernambuco: AHU_ACL_CU_015, Cx. 38. D. 3435; AHU_ACL_CU_015, Cx. 38, AHU_ACL_CU_015, Cx.41, D. 3729; AHU_ACL_CU_015, Cx. 38, AHU_ACL_CU_015, Cx. 25, D. 2312; AHU_ACL_CU_015, Cx. 28, AHU_ACL_CU_015, Cx. 26, D. 2383; AHU_ACL_CU_015, Cx. 29, AHU_ACL_CU_015, Cx. 32, D. 2962; AHU_ACL_CU_015, Cx. 30, AHU_ACL_CU_015, Cx. 30, D. 2705; AHU_ACL_CU_015, Cx. 32, AHU_ACL_CU_015, Cx. 34, D. 3144; AHU_ACL_CU_015, Cx. 38, AHU_ACL_CU_015, Cx. 25, D. 2273; AHU_ACL_CU_015, Cx. 34, AHU_ACL_CU_015, Cx. 40, D. 3634. D. D. D. D. D. D. D. D. 3458; 3460; 2514; 2640; 2704; 2940; 3383; 3114; Documentos Históricos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro: Volumes: 85; 98; 99. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE) – Cartas, Provisões e Ordens régias de Olinda: Registro de carta de Sua Majestade escrita aos oficiais da câmara sobre a arrematação do subsídio dos vinhos. 28 de janeiro de 1686; Registro de carta de Sua Majestade para a câmara no que manda usarem de via ordinária para cobrar o subsídio do tabaco das Alagoas e Rio de São Francisco. 8 de novembro de 1689; Registro de carta de Sua Majestade aos oficiais da câmara em que manda se observe inviolavelmente a ordem que mandou passar de não haverem aguardentes para Angola. 5 de outubro de 1690. Referências bibliográficas ALGRANTI, Leila Mezan. “Aguardente de cana e outras aguardentes: por uma história da produção e do consumo de licores na América Portuguesa”. In: VENÂNCIO, Renato Pinto; CARNEIRO, Henrique. Álcool e drogas na história do Brasil. São Paulo: Alameda; Belo Horizonte: PUCMinas, 2005. ANDRADE, Gilberto Osório de. Montebelo, os Males e os Mascates: contribuição para a história de Pernambuco na segunda metade do século XVII. Recife: UFPE, 1969. BARBALHO, Luciana de Carvalho. Capitania de Itamaracá, poder local e conflito: Goiana e Nossa Senhora da Conceição (1685-1742). Dissertação de Mestrado. João Pessoa: UFPB, 2009. BOXER, Charles R. O império marítimo português. 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CAETANO. Antonio Felipe Pereira. Entre a sombra e o sol – A revolta da cachaça, a freguesia de São Gonçalo de Amarante e a crise política fluminense. (Rio de Janeiro, 1640 – 1667) Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFF, 2003. CARRARA, Ângelo Alves. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco. Juiz de Fora: UFJF, 2009. FERREIRA, Roquinaldo. “Dinâmica do comércio intra-colonial: geribitas, panos asiáticos e guerra no tráfico angolano de escravos”. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda 70 Ibidem. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 41 Batista; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séc. XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. LISBOA, Breno Almeida Vaz. Uma elite em crise: a açucarocracia de Pernambuco e a Câmara Municipal de Olinda nas primeiras décadas do século XVIII. Recife: UFPE, 2011. Dissertação de Mestrado. MELLO, Evaldo Cabral de Mello. A fronda dos mazombos: Nobres contra mascates, Pernambuco 1666-1715. São Paulo: Editora 34, 2003. MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em ação: Fiscalismo economia e sociedade na Paraíba (1647-1755). Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2005. OLIVEIRA JÚNIOR, Paulo Cavalcante de. Negócios de trapaça: caminhos e descaminhos na América Portuguesa. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2002. PEREIRA DA COSTA. F. A. Anais Pernambucanos. V. 5. Edição Coleção Pernambucana, Recife: Secretaria de Turismo, Cultura e Esportes / FUNDARPE / Diretoria de Assuntos Culturais, 1983. SILVA, Kalina Vanderlei. O Miserável Soldo e a Boa Ordem da Sociedade Colonial. Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco dos Séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 42 Câmara Municipal de Vila Boa de Goiás Controle sobre a vida e os espaços da cidade Fernando Lobo Lemes 1 1Resumo: O objetivo deste artigo é estudar a projeção e o alcance dos poderes da Câmara Municipal de Vila Boa sobre a vida dos habitantes da Capitania de Goiás no final do século XVIII. Neste contexto, a organização da cidade – a partir de uma concepção cenográfica do espaço – através da normatização dos comportamentos e do controle das relações de mercado, indica o pleno vigor das atribuições da Câmara Municipal. Este fenômeno revela uma consciência específica de cidade: trama em que se encontram reunidos os aspectos estruturais urbanos e as relações econômicas que movimentam o mercado local. Trama que tecia e mantinha, sob o controle dos oficiais municipais, a vida urbana de Goiás. Palavras-chave: Câmara Municipal. América Portuguesa. Vila Boa de Goiás. Abstract: The purpose of this article is to study the projection and the scope of the powers of the Municipal Council of Vila Boa over the life of the inhabitants of the Captaincy of Goiás in the late 18th century. In this context, the organization of the city – from a scenographic conception of space – through the standardization of behaviors and control of market relations, indicates the full vitality of the powers of the Municipal Council. This phenomenon reveals a specific consciousness about the city: scheme in which they are gathered the urban structural aspects and economics relations that move the local market. Scheme that wove and kept under the control of the municipal officials the urban life of Goiás. Key-worlds: Municipal Council. Portuguese America. Vila Boa de Goiás. Doutor em História pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Professor convidado da Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO. 1 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 43 Introdução C onhecido por bandeirantes desde o início da colonização da América, ocupado por exploradores em 1725, quando se fundou o arraial de Sant‟Ana, e desmembrado da Capitania de São Paulo, em 1749, Goiás entra na história como as Minas dos Goyazes 2. Especializada na produção do ouro, no interior da hierarquia econômica organizada no Brasil, as minas e, mais tarde, Capitania de Goiás, funcionavam como uma espécie de colônia dentro da colônia, onde os alimentos e todos os demais produtos necessários para a manutenção da vida provinham das capitanias litorâneas: constituíam assim um território economicamente dependente, principalmente dos comerciantes vindos da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. De um dinamismo populacional considerável, afluiu para Goiás uma verdadeira multidão. Dados coligidos por Luiz Palacin indicam que apenas dez anos após o início da mineração haviam se instalado em Goiás cerca de 20.000 pessoas, abrindo caminhos, fundando núcleos urbanos e pontos de mineração, pondo em atividade parte significativa de seu imenso território3. Em 1750, sua população girava em torno de 40.000 habitantes. Em 1781, de acordo com informações do então governador Luis da Cunha Meneses, havia em Goiás 58.829 habitantes e, em 1783, 59.287 pessoas 4. Dados coligidos por nós, a partir de um mapa elaborado pelo governador Tristão da Cunha Meneses em 1792, indicam uma população de 60.428 habitantes, apontando para um índice populacional ainda crescente, embora em ritmo mais lento, mesmo na última década do século XVIII5. Constituída no centro de uma rede de arraiais, Vila Boa de Goiás concentrava, em 1792, mais de 22% da população da capitania, com 13.312 habitantes, sendo 8.840 homens e 4.472 mulheres. Espaço institucional, político e administrativo, a Câmara Municipal, com sede em Vila Boa, acumulava as atribuições de duas áreas de fundamental importância, da PALACIN, Luiz. O século de ouro em Goiás 1722 – 1822: Estrutura e conjuntura numa capitania de minas. Goiânia: UCG, 2001, p. 27. 3 PALACIN, Luiz; MORAES, M. A. História de Goiás (1722-1972). Goiânia: UCG, 2001, p. 30-31. 4 PALACIN, Luiz, O século de ouro em Goiás,op. cit., p. 77. 5 Sobre o tema ver LEMES, F. L. Goiás dans l´empire oceanique portugais. Pouvoir politique et réseau urbain en Amérique coloniale (1720-1828). Saarbrucken: EUE, 2012. 2 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 44 mesma forma que suas congêneres no reino português. Como confirma Nuno Gonçalo Monteiro a respeito das Câmaras municipais de Portugal, “Até ao triunfo da Revolução Liberal”, na primeira metade do século XIX, “as Câmaras detinham indistintamente competências que, na linguagem atual, designaríamos de administrativas e judiciais” 6. É importante lembrar que os vestígios deixados pela atuação dos vereadores na América portuguesa, contemplam com certa abundância os registros da atuação administrativa das Câmaras Municipais, sendo menos comuns os documentos que evidenciam sua atuação enquanto tribunais judiciais de primeira instância, o que nos leva a conhecer mais profundamente suas atividades administrativas, em detrimento daquelas associadas à justiça7. Entretanto, os documentos dos quais dispomos certamente serão suficientes para demonstrar uma autonomia significativa exercida pela Câmara Municipal de Vila Boa de Goiás, no interior dos limites autorizados pelas esferas de seu poder. Noutras palavras, no interior de um raio de ação imposto pelas fronteiras da cidade: delimitação espacial para aplicação das posturas e regras de convivência comunitária, no âmbito das relações urbanas coloniais. Criação e imposição de tributos Para além dos limites de Vila Boa – único núcleo urbano com o título de “vila” em Goiás ao longo de todo o século XVIII – assistimos a expansão de uma rede de arraiais onde o poder da Câmara Municipal se impôs sobre os vários aspectos da vida urbana. Por exemplo, a prática de sobrecarregar os habitantes com gastos associados a serviços que atendessem ao bem comum, estabelecendo taxas, donativos ou contribuições voluntárias, permitia aos oficiais da Câmara de Vila Boa a ampliação dos limites de sua autonomia sobre os espaços da cidade. Estudando a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, Maria Fernanda Bicalho demonstrou a existência da prática de impor novos tributos em MONTEIRO, N. G. Os concelhos e as comunidades. In: HESPANHA, A. M. (Coord.). História de Portugal – O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, v. 4, 1993, p. 306. 7 Na opinião de Nuno Monteiro isso não decorre apenas dos percursos provavelmente tortuosos pelos quais passou a documentação municipal. Como sabemos parte significativa das câmaras não contavam com juízes ordinários alfabetizados, e muitos deles, até as décadas iniciais do século XIX, ainda assinavam “de cruz”, sendo possível que muitas deliberações nunca tenham chegado a assumir a forma escrita. Cf. MONTEIRO, N. G. Os concelhos e as comunidades, op. cit., p. 316. 6 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 45 função da defesa de territórios contra invasores, custeando o reparo de fortalezas, a construção de trincheiras ou o serviço de proteção contra piratas e corsários. Neste aspecto, as Câmaras das cidades litorâneas, na América portuguesa, desempenhavam as mesmas funções atribuídas àquelas do reino português8. Ribeiro da Silva confirma esta função da municipalidade na cidade do Porto, afirmando que o poder da governança incluía a organização da defesa militar contra eventuais agressores externos e que seus vereadores davam enorme importância ao exercício desta atividade, considerada ao mesmo tempo como um direito e uma obrigação9. Bicalho também demonstrou que a prática de “lançar tributos sobre si”, como indica Figueiredo, “abriu um significativo precedente na política fiscal ao possibilitar às Câmaras um direito apenas dos reis” 10. Em Goiás, eram freqüentes os conflitos com as populações autóctones, cujos ataques impunham a necessidade de uma constante vigília, exigindo dos moradores a manutenção de mecanismos de defesa e proteção. Neste aspecto, dentre as despesas realizadas pela Câmara de Vila Boa, incluíam-se gastos com a defesa e organização militar embora fosse, via de regra, uma responsabilidade pertencente à alçada dos governadores da capitania. A leitura de uma carta do escrivão da Junta da Real Fazenda, na qual cobrava da Câmara Municipal uma dívida equivalente a duzentos mil réis, faz referência a este tipo de despesa em Goiás. Em resposta, os vereadores de Vila Boa informaram ao escrivão que “segundo as despesas que se acham nas linhas dos tesoureiros consta dever a Real Fazenda a esta Câmara muito maior quantia de assistências, que se fizeram com as canoas para a expedição [na Ilha] do Bananal, pólvora e chumbo para as Bandeiras, e outros gêneros”11. Quanto à criação de novos tributos, a Câmara de Vila Boa de Goiás também foi pródiga. E tal atribuição não permaneceu confinada às atividades ligadas à guerra ou à defesa das fronteiras do território. Manifestou-se no controle do cotidiano da cidade. Por exemplo, quando o BICALHO, M. F. B. As Câmaras Municipais no Império Português: o exemplo do Rio de Janeiro. Rev. bras. Hist. [online]. 1998, v. 18, n. 36, p. 251-580. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010201881998000200011&lng=pt &nrm=iso>. Acesso em 10 nov. 2005, p. 252. 9 BICALHO, M. F. B. As Câmaras Municipais no Império Português, op.cit., p. 256. 10 Idem, p. 254. 11 VILA BOA DE GOIÁS. Arquivo Frei Simão Dorvi (AFSD). Livro de Registro do Senado da Câmara (doravante LRSC), 1793, f. 101. 8 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 46 juiz ordinário do julgado de Santa Cruz informou a necessidade da realização de uma obra na rua Direita, a Câmara de Vila Boa ordenou a licitação do serviço ou que se mandasse executar por conta do orçamento do julgado, até o valor de 50 oitavas de ouro, comunicando “aos ditos moradores para que concorram com adjutorio possivel, vista a deterioração e pouca possibilidade do julgado” 12. Noutras palavras, que os moradores contribuíssem voluntariamente para a solução do problema. Noutra oportunidade, como as posturas da Câmara proibiam a passagem de carros pelas pontes que cruzavam o rio Vermelho, destinadas apenas a pedestres, era necessário encontrar uma solução para a travessia do rio, já que a ponte de uso costumeiro se encontrava em condições precárias. Entendendo ser indispensável a construção de outra ligação para a passagem dos carros, os oficiais da Câmara mandaram que fossem “avisadas todas as pessoas que tem carro, para ajudarem com a pedra precisa”13, impondo uma contribuição que na verdade tinha pouco de voluntária e muito mais de obrigatória. Exemplo da obrigatoriedade no cumprimento das disposições emanadas pela Câmara foi o caso do furriel Paulo Antonio da Rocha. Recebendo ordem para “fazer sem perda de tempo o Cais do Rio Vermelho [em frente] de suas casas da banda da ponte até o canto de São Francisco de Paula”, o furriel respondeu que seria preciso conversar a respeito, já que se tratava de serviço de dimensão considerável. Mas como ao invés de comparecer à Câmara se ausentou da cidade, mandou-se avisá-lo para que no prazo de quinze dias iniciasse a obra ou se apresentasse à Câmara, a fim de explicar suas dificuldades, “com pena de não o fazendo, se proceder a factura da obra a sua custa, e vê-la fazer da Cadeia”14. Na verdade, a Câmara se baseava para a cobrança de contribuições voluntárias nas determinações registradas nas ordenações do reino15. No Brasil, o direito das Câmaras de lançar fintas ou coletas, apenas foi extinto com a lei de outubro de 1828. Antes desta data era muito comum em Vila Boa de Goiás, a prática de impor e criar tributos, donativos e contribuições para a defesa e realização de serviços comunitários. LRSC, 1792, f. 71. LRSC, 1793, f. 92. 14 LRSC, 1793, f. 95. 15 ORDENAÇOES FILIPINAS. Reprodução “fac-símile”, edição Candido Mendes de Almeida, Rio de Janeiro, 1870. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990, Livro I, Título LXVI, Parágrafos 40-43. 12 13 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 47 Mas se o poder de lançar novos tributos acaba por abrir um precedente sem igual na política fiscal da Coroa, emprestando à Câmara um direito que apenas o rei de Portugal poderia dispor, outra atribuição da Câmara Municipal de Vila Boa indica a existência de uma autonomia considerável: a escolha dos oficiais das ordenanças. Escolha e nomeação de oficiais das ordenanças Se o rei detinha o poder exclusivo da justiça e da guerra, as atribuições sobre a primeira acabaram sendo transferidas, ainda que parcialmente, para os juízes ordinários que presidiam as Câmaras que exercitavam a justiça em primeira instância, cujas decisões apenas podiam ser refeitas nos tribunais superiores de apelação. Contudo, como afirmam M. H. Cruz Coelho e J. R. Magalhães, no “que diz respeito à parte militar a sua autoridade efectiva [a autoridade do monarca] vai-se diluir”16. Num reino onde as ordenanças são efetivamente organizadas em função de uma intensa militarização, todos os homens válidos estão arrolados como soldados para guerras eventuais. Mas, segundo estes autores, “e aqui está a fraqueza [do rei], na prática entrega-se às Câmaras a escolha dos oficiais, ou seja, capitães-mores, sargentos-mores e capitães”17. Em função desta situação, são as elites locais, em busca de poder, prestígio e honra, que vão se instalar nestes cargos via nomeação pela Câmara Municipal. É exatamente isso que acontece em Vila Boa de Goiás. Na sessão da Câmara de 15 de junho de 1793, carta do governador Tristão da Cunha Meneses solicitava aos vereadores providências “para eleição dos oficiais dos Postos Militares de Ordenanças que se acham vagos”18, revelando como atribuição da Câmara a escolha dos oficiais militares das Ordenanças. Além disso, também havia a preocupação em remunerá-los. É o que demonstra a decisão de 14 de abril de 1794, onde os vereadores determinaram que os julgados da Capitania ajuntassem recursos que seriam alocados para o aumento do pagamento dos oficiais militares 19. CRUZ COELHO, M. H. da; MAGALHÃES, J. R. O poder concelhio: das origens às cortes constituintes. Coimbra: Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986, p. 31. 17 Idem, p. 32. 18 LRSC, 1793, f. 96. 19 LRSC, 1794, f. 133v. Este fato, por outro lado, talvez ajude a compreender o alto índice de acesso a títulos militares por parte dos membros das Câmaras em toda a América portuguesa. Embora sem dispormos de dados concretos a respeito de Vila Boa de Goiás, é perceptível a presença de membros das ordenanças ocupando cargos na Câmara Municipal. Para o Rio de 16 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 48 Evidentemente, se os poderes conferidos à Câmara se limitavam às fronteiras definidas pela cidade, a manifestação de tais poderes poderia assumir contornos de importância considerável: “Menos que uma delegação na aparência, trata-se de uma verdadeira transferência de uma parcela de Poder-Mando”. De fato, uma “Parcela substancial”20. Desde logo, se de acordo com Norbert Elias as sociedades de Antigo Regime estavam associadas à construção do Estado absolutista, caracterizado, por sua vez, por um duplo monopólio do soberano 21, ambos os monopólios encontravam-se partilhados com a Câmara Municipal: o monopólio fiscal e o monopólio da violência legítima, consubstanciado no controle do aparato militar. Neste sentido, um conjunto de atribuições conferia poder de mando, tornando a Câmara de Vila Boa responsável pelas comunidades que habitam os núcleos urbanos de Goiás durante o século XVIII: justiça em primeira instância, possibilidade de lançar novos tributos e nomeação para as ordenanças. Em que pese a retomada de privilégios associados às municipalidades por parte da Coroa nas últimas décadas do Setecentos, as medidas centralizadoras do governo ilustrado português não alcançaram, com a força esperada, os espaços de atuação das Câmaras Municipais. Mantinham-se, portanto, poderes e privilégios locais ampliados pelo uso de mais uma atividade exercida pelas Câmaras Municipais: o direito de almotaçaria. O direito de almotaçaria Na América portuguesa, o direito de almotaçaria vinculava as atividades da Câmara aos mais diferentes aspectos da vida dos habitantes das cidades: a preservação dos espaços públicos e privados, a manutenção do aspecto sanitário e as relações de mercado. Assim, a prática da almotaçaria, nos permite detectar com bastante clareza aspectos importantes a respeito da sociabilidade quotidiana, do pensamento sobre Janeiro, Gouvêa (1998, p. 310) chega a afirmar que os dados compulsados demonstram que cerca 72,8% dos oficiais camarários, entre 1790 e 1822, tiveram acesso a títulos militares. Cf. GOUVÊA, M. de F. S. Redes de poder na América Portuguesa – o caso dos homens bons do Rio de Janeiro, 1790-1822. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 36, 1998, p. 310. 20 CRUZ COELHO, M. H. da; MAGALHÃES, J. R. O poder concelhio: das origens às cortes constituintes, op. cit., p. 32. 21 ELIAS, N. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 49 as formas possíveis de organização sócio-espacial da cidade e sua configuração econômica 22. Embora não seja nosso objetivo retornar às origens da instituição da almotaçaria, convém identificar alguns aspectos pontuais de sua genealogia23. De acordo com Magnus Roberto Pereira, na cidade muçulmana, o almotacé24 era o responsável pela Hisba – em árabe, o titular da Hisba era denominado Muhtasib –, cujas funções eram a aferição dos pesos e medidas, o equilíbrio nas transações comerciais, o controle dos ofícios existentes na cidade, a garantia do abastecimento alimentar, a higiene e sanidade urbana e a manutenção dos aspectos físicos da cidade. Por sua vez, as Câmaras Municipais coloniais tratariam logo de submeter ao seu controle as funções relativas à almotaçaria, provocando uma atrofia do cargo de almotacé, fazendo dele um oficial menor, de nomeação dos próprios vereadores25. No caso de Vila Boa de Goiás, suas atribuições foram parcialmente absorvidas, ocupando posição estratégica dentre as ações desempenhadas pela Câmara Municipal. Assim, responsáveis pela fiscalização do mercado, pela manutenção da higiene pública e controle das demandas relativas à parte edificada da cidade, os almotacés atuavam como uma espécie de juízes de pequenas causas, resolvendo as irregularidades encontradas in loco, ou seja, no próprio local de origem das pendências que feriam as posturas municipais, promovendo o julgamento e determinando as penas cabíveis. Neste aspecto, durante séculos o palácio da justiça da almotaçaria teria sido a própria rua26. PEREIRA, M. R. M. Almuthasib – Considerações sobre o direito de almotaçaria nas cidades de Portugal e suas colônias. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 42, 2001, p. 381. 23 Estudando o sentido da palavra almotaçaria, Magnus Roberto Pereira nos informa que ela foi usada, desde o período medieval, tanto em sentido geral quanto particular, para designar a instituição ou suas atribuições e as atividades correntes do almotacé e, mais tarde, da câmara em relação ao abastecimento das cidades. Almotaçar correspondia a fiscalizar o comércio, garantindo que todos pudessem desfrutar de alimentos encontrados no mercado, racionando ou tabelando quando necessário. Foi este o sentido que chegou até o século XIX, quando a almotaçaria era entendia como qualquer espécie ou tipo de tabelamento de preços. Idem, p. 372 e 391. 24 O termo almotacé nos parece bastante incomum, sendo conseqüência de uma adaptação para a língua portuguesa do nome original em árabe. O nome só teria sido latinizado, no Brasil, durante o século XIX. Idem, p. 392. 25 Idem, p. 373. 26 PEREIRA, M. R. M. O direito de almotaçaria. In: PEREIRA, M. R. M; NICOLAZZI, N. Frehse (Orgs.). Audiências e correições dos almotaçés (Curitiba, 1737 a 1828). Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2003, p. 7. 22 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 50 Espaço urbano e ordenamento da cidade Resultado de uma nova concepção espacial urbana no âmbito da política expansionista de Portugal, Vila Boa de Goiás constituiu-se numa das primeiras experiências que marcaram uma nova disposição arquitetônica na América portuguesa27. Assim, “a concepção cenográfica do espaço, a valorização das fachadas e a adoção de modelos uniformes aos quais devem obedecer todas as construções” 28, foram elementos incorporados à estrutura urbana de Vila Boa, definindo de forma clara a visibilidade de um espaço urbano colonial planejado. Em sua carta de fundação, o rei D. João V indicava as inovações previstas na estrutura urbana que seriam implantadas nas proximidades do arraial de Santana, abandonando o padrão anterior que norteava a organização urbana do império português 29. Contudo, Luis de Assis Mascarenhas, governador de São Paulo e responsável pela fundação de Vila Boa de Goiás, teria sido negligente em exigir o cumprimento do padrão reticular no traçado das ruas 30, o que justificaria novas recomendações de Lisboa, durante a década de 1770, para que fosse estabelecido um plano diretor para a cidade, a fim de se evitar a irregularidade e a falta de alinhamento que caracterizava a construção de seus edifícios. Em que pese as preocupações urbanísticas do governador José de Almeida Vasconcelos (1772-1778), responsável por executar importantes calçadas, pontes e o conhecido Chafariz, o maior reformador urbano de Vila Boa foi Luis da Cunha Meneses. Em seu mandato, introduziu propostas de realinhamento do traçado da cidade e um código de posturas definindo a uniformidade das fachadas para a construção de novos edifícios31. Esta nova concepção urbana, inspirada na imagem de quadras BOAVENTURA, D. M. R. Arquitetura religiosa de Vila Boa de Goiás no século XVIII. 2001. 135 f. Dissertação Mestrado em Arquitetura e Urbanismo/Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2001, p. 42. 28 TEIXEIRA, M. C.; VALLA, M. O urbanismo português. Lisboa: Livros Horizonte, 1999, p. 254. 29 Provisão do rei D. João V, ao governador e capitão-general de São Paulo, conde de Sarzedas, ordenando-lhe que passe às Minas de Goiás e nelas determine o lugar mais adequado para a criação de uma vila. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Conselho Ultramarino (CU), Cx. 1, D. 25. Lisboa, 11 de fevereiro de 1736. 30 DELSON, R. M. Novas vilas para o Brasil-colônia. Brasília: Alva-Ciord, 1997, p. 31. 31 BOAVENTURA, D. M. R. Arquitetura religiosa de Vila Boa de Goiás no século XVIII, op. cit., p. 34. 27 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 51 compactas, ruas uniformes e casas com fachadas alinhadas, se contrapunha aos modelos baseados em assentamentos introduzidos anteriormente com suas linhas gerais irregulares, reconhecidos pela historiografia como configurações espontâneas32. Neste sentido, é Vila Boa de Goiás que inaugura este novo padrão imposto pelo urbanismo português em todo o Império. De acordo com Nicolazzi Júnior, esse “procedimento começa com as ordens régias para as fundações de Vila Boa de Goiás e Icó, no Ceará”, tendo sido expedida carta régia semelhante, em 1746, para a fundação de Vila Bela, em Mato Grosso33. Desfazendo um engano decorrente de interpretações presentes na historiografia brasileira, que considera o passeio público do Rio de Janeiro como o primeiro a ser construído na colônia americana, Mello Pereira demonstra que o primeiro jardim público construído entre nós, embora de menor porte, foi o de Vila Bela, em Mato Grosso. Em seguida, durante o governo de Luiz da Cunha Meneses (1778-1783), foi criado em Vila Boa de Goiás outro passeio público vegetado, aproveitando-se de um logradouro existente, o Largo do Chafariz, onde se fez plantar uma alameda 34. Corroborando a proposição de Mello Pereira, Luiz Antônio da Silva e Souza, que viveu em Goiás na segunda metade do século XVIII, lembra que Luiz da Cunha Meneses, “Formou uma alameda e passeio público no largo do Chafariz, e para isto se plantaram por ordem as arvores, que depois foram cortadas, por se dizer que suas raízes damnavam as águas”35. Segundo informa Mello Pereira, as árvores ali existentes foram cortadas durante o governo de João Manoel de Meneses entre os anos 1800 e 180436. Por esta via, a concepção de cidade presente no imaginário português acabou por nortear a elaboração de posturas urbanas, orientando, ao mesmo tempo, a dinâmica cotidiana dos oficiais municipais, através, sobretudo, do instituto da almotaçaria. Neste sentido, se a Carta Régia de fundação de Vila Boa demonstrava a preocupação do rei de Ibid. NICOLLAZI JÚNIOR., N. F. O almotacé na Curitiba colonial. In: PEREIRA, M. R. M; NICOLLAZI JÚNIOR., N. F (Orgs.). Audiências e correições dos almotaçés (Curitiba, 1737 a 1828). Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2003, p. 52. 34 PEREIRA, M. R. M. De árvores e cidades. In: SOLLER, M. A.; MATOS, M. I. A cidade em debate. São Paulo: Olhos d‟Água, 2000, p. 18-19. 35 SILVA E SOUZA, L. A. Memória sobre o descobrimento, governo, população e cousas mais notáveis da Capitania de Goyaz. In: TELES, J. M. Vida e Obra de Silva e Souza. Goiânia: UFG, 1998, p. 99. 36 PEREIRA, M. R. M. De árvores e cidades, op. cit., p. 19. 32 33 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 52 Portugal quanto a uma estrutura urbana pensada a partir de um plano préestabelecido e se os governadores perseguiam a execução de procedimentos que formatavam a cidade de acordo com uma nova concepção urbana, foi a Câmara Municipal que melhor exprimiu a existência de um imaginário associado a uma ordem urbana em Vila Boa de Goiás. Pois eram os juízes ordinários, vereadores, procuradores e almotacés os encarregados pelo controle de uma ocupação urbana que deveria resultar num conjunto considerado harmonioso37. Assim, encontramos a Câmara Municipal promovendo uma intervenção na estrutura urbana de Vila Boa, fundamentada a partir das definições encontradas num “mapa e prospecto” que parece ser o mesmo elaborado por Luiz da Cunha Meneses, cuja proposta de alinhamento do tecido urbano, datado de 1782, foi publicada por Reis Goulart38. Em fevereiro de 1795, “como tinha caído o muro dos fundos das casas de Manoel de Siqueira, o qual se devia levantar de novo”, os vereadores advertiam que o muro fosse reconstruído “na forma do Mapa e prospecto que se acha determinado para a boa regularidade das ruas”. Para isso, prescreveram a demolição dos muros de outras residências para que fosse retificado o traçado da rua de acordo com o prospecto, “cordeando todas com o canto das casas onde mora Antônio Moreira de Oliveira”. Noutras palavras, realinhando a partir de novo posicionamento as fachadas das casas e seus muros39. Esta política urbana teve seu vértice ancorado nos poderes locais, mas, sobretudo, na atuação conjunta entre governadores, ouvidores e representantes da Câmara Municipal. É o que indica uma carta do governador ao ouvidor-geral de Goiás, contendo as recomendações que deveriam ser repassadas à Câmara de Vila Boa. Justificando a concepção do plano de realinhamento para as ruas da cidade, o governador Luiz da Cunha Meneses, afirmava não ser menos importante ao bem público e pertencer igualmente a minha obrigação a boa regularidade de se construírem seus edifícios, para que debaixo do preceito de alinhamento formem um agradável prospecto e consequentemente subam ao maior auge NICOLLAZI JÚNIOR., N. F. O almotacé na Curitiba colonial, op. cit., p. 52. GOULART, N. R. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo: EDUSP, 2000. 39 LRSC, 1795, fs. 179-179v. 37 38 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 53 da Polícia e civilidade, de que tanto depende a conservação da sociedade civil40. De fato, os conflitos e as execuções envolvendo propriedades públicas e particulares em Vila Boa eram tão freqüentes, que a Câmara nomeava oficiais anualmente “para avaliarem os bens móveis e de raízes em que se fizerem execuções nos juízos desta vila” 41. Da mesma forma, elegiam arruadores, freqüentemente mestres-de-obras, responsáveis pelas medições e informações quanto ao andamento das linhas e traçados das áreas, ruas, lotes e testadas dos edifícios da vila. Entre o público e o privado: o uso do solo rural e urbano Se a criação de novos tributos, a indicação de nomes para as ordenanças militares e o controle das edificações compunham a agenda dos oficiais da Câmara, outra atividade fundamental terá sido a organização e o ordenamento do espaço urbano42. Neste aspecto, as parcelas dos espaços urbanos geridos pela Câmara Municipal, transformavam esta atribuição num intenso poder de controle sobre a vida dos habitantes da cidade. Estudando o assunto no reino de Portugal, Nuno Monteiro é taxativo: “Um domínio decisivo da acção camarária, particularmente na segunda metade do século XVIII, era o da administração dos baldios e maninhos”43. Além disso, do ponto de vista da legislação reinol, “a Câmara passa a aparecer como a instituição que detém o poder de legitimar a subtracção de bens [...] (ao) usufruto colectivo e a sua redução à posse individual”44. Noutras palavras, a legislação lusa sinalizava no sentido de transferir a administração dos logradouros comuns para a competência das Câmaras, oferecendo-lhes a possibilidade de fazerem aforamentos, apesar de mantidas sob a tutela das instituições centrais da monarquia 45. BERTRAN, P. Notícia Geral da Capitania de Goiás em 1783. Goiânia: UGC/UFG; Brasília: Solo Editores, 1996, p. 59. 41 LRSC, 1795, f. 172v. 42 NICOLLAZI JÚNIOR., N. F. O almotacé na Curitiba colonial, op. cit., p. 71. 43 MONTEIRO, N. G. Os concelhos e as comunidades, op. cit., p. 319. 44 Idem, p. 320 45 Ibid. 40 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 54 Em Goiás não foi diferente. São inúmeros os casos de solicitações e autorizações para ocupação de áreas foreiras 46, mantidas sob o controle da Câmara Municipal. Por exemplo, na sessão da Câmara de 22 de agosto de 1792, foi autorizada a transferência de posse de uma área que, ao que tudo indica, devia tratar-se de uma chácara nas proximidades da cidade. Durante a reunião, os oficiais da Câmara favoreceram a Amaro Jose da Rocha com uma propriedade de setecentas e cinqüenta braças, “cujas terras foram de Pedro Dias da Sylva, filho de Estevão da Cunha, ambos já falecidos” 47. Caso parecido está descrito na “carta de aforamento do sitio que foi de Joaquim Bueno e de Dona Rosa Leite de Mesquita”. O beneficiado foi o tenente Joze Victoriano que pagou “os foros que se venceram desde o dia de sua concessão”48. Pouco tempo depois, uma ordem de notificação emitida pela Câmara Municipal, em junho de 1794, indica a dificuldade de controle sobre essas áreas, provavelmente devido à enorme quantidade de terrenos disponíveis, o que, por outro lado, não impedia a cobrança por seu uso desautorizado. Na oportunidade, os oficiais municipais despacharam um requerimento de mandado para serem notificadas algumas pessoas que estão plantando em terras foreiras da Câmara, sem título ou pagamento de foro para no termo de oito dias apresentarem os títulos por onde as possuam ou pagarem em dobro os foros respectivos desde o tempo que as estão desfrutando49. Se o uso de terras nas proximidades do núcleo urbano estava submetido ao controle da Câmara, a disponibilidade do uso de lotes e a construção de edifícios no interior da cidade, também dependiam de uma “provisão de licença”, mecanismo sobre o qual também incidia taxas pecuniárias. Felix Alves, morador de Vila Boa, teve autorizada, em agosto de 1792, uma solicitação para construção, quando “se mandou passar Provisão de Licença para [...] edificar as suas casas na rua Direita adiante As áreas foreiras, objeto de aforamentos por parte da Câmara Municipal, representavam um domínio de propriedade pública sobre o qual eram cobrados encargos pelo privilégio do usufruto cedido temporariamente e controlado pela municipalidade. Nelas, os foreiros (aqueles que detinham o domínio útil de uma propriedade), pagavam foros ou direitos aos oficiais da Câmara, correspondentes a uma quantia fixa e periódica (anual). 47 LRSC, 1792, fs. 70-70v. 48 LRSC, 1793, f. 98v. 49 LRSC, 1794, f. 139. 46 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 55 da ponte da Lapa, junto ou defronte das casas do Reverendo José Dantas”50. Da mesma forma, Maria dos Prazeres obteve uma licença autorizando “uma morada de Casas” em Vila Boa51. Manoel do Sacramento recebeu uma provisão de concessão “de quatro braças de terras para fazer uma propriedade na Rua Nova de Santa Barbara”52. E, para um requerimento de autor desconhecido, “se assinou provisão de licença para construir uma morada de casas na rua nova do Moinho que vai para o Rio da Prata nos chãos que possui já cercados de muro”53. O uso do solo urbano e rural, bem como as autorizações para novas edificações, não eram as únicas formas de controle da expansão territorial exercida por parte da Câmara. Construídas as suas casas, todo e qualquer tipo de alteração que porventura os moradores quisessem realizar, também dependia da anuência dos vereadores. Foi o que aconteceu, por exemplo, a Joze Pereira Vale quando solicitou autorização para a reforma de sua residência e os vereadores deliberaram sobre “uma Provisão de Licença para retificar as suas casas”54. Neste caso, no horizonte da atuação da Câmara também estavam em jogo os espaços demarcados pelas fronteiras tênues entre o público e o privado. Na verdade, os oficiais camarários detinham o poder de legitimar a subtração de bens que, do ponto de vista legal, pertenciam à comunidade, submetendo-os ao usufruto coletivo e reduzindo-os à posse individual. A preocupação com a estética e embelezamento de um espaço público como a rua, podia conduzir a uma imputação de responsabilidade de um proprietário no âmbito privado. Partindo deste princípio, a Câmara Municipal mandou notificar o tenente Francisco Lopes de Miranda para que, no prazo de oito dias, deslocasse o muro “dos fundos dos quintais das suas casas”, a fim de que fosse alinhado ao dos seus vizinhos, “para formosear o prospecto daquela rua”55. Noutra sessão, de 13 de abril de 1793, os vereadores mandaram avisar a Paulo Antonio da Rocha, morador das margens do rio Vermelho, que fizesse “o cais da testada de suas casas, e quintal, assim como praticaram os mais moradores da ponte para cima LRSC, 1792, fs. 70-70v. LRSC, 1793, f. 88v. 52 LRSC, 1793, f. 104. 53 LRSC, 1794, f. 111. 54 LRSC, 1793, f. 84. 55 LRSC, 1794, f. 139v. 50 51 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 56 ate a Lapa”. Na mesma sessão, também foi notificado Manoel Lamego “para fazer a parede de seu quintal, pela grande ruína que ameaça as pessoas que passam pelo cais”56. Nestes exemplos, podemos perceber que a descontinuidade no conjunto das construções seguia sendo alvo de freqüentes demandas da Câmara Municipal, que buscava induzir o respeito à beleza e à funcionalidade do núcleo urbano, evitando construções fora do padrão definido no prospecto urbano da cidade. Por outro lado, parece claro, para além do interesse estético e meramente funcional, a importância dos muros e cercas no universo mais amplo de sociabilidade de Vila Boa. Como afirma Nicolazzi Júnior, fazendo referência à Vila de Curitiba, ao mesmo tempo em que tinham a função de delimitar os lotes urbanos, também estabeleciam uma nítida separação entre os universos público e privado, devendo haver a imposição de limites claros e objetivos entre a rua e a casa, entre a exposição nos espaços comuns e a intimidade da família e do lar57. Como vemos, a conservação da estrutura física da cidade era uma preocupação dos oficiais da Câmara Municipal de Vila Boa. Assim, ao mesmo tempo em que mantinham os olhos voltados para o interior das propriedades, contemplando os desgastes decorrentes das edificações particulares que interferiam diretamente no vai-e-vem dos habitantes, não podiam deixar de acompanhar aspectos de uma malha urbana sempre sujeita ao uso permanente e às intempéries da natureza. Espaços da cidade: conservação de ruas, estradas e edifícios A abertura e preservação de caminhos, ruas, calçadas, pontes e edifícios públicos eram indispensáveis para o bom funcionamento da cidade. A conservação dos caminhos por toda a extensão da enorme capitania era fundamental para garantir a segurança nas viagens e, principalmente, as transações comerciais que fluíam pelas vias que conectavam Goiás aos circuitos mercantis regionais e continentais. Quando o juiz ordinário do julgado de Santa Cruz solicitou à Câmara de Vila Boa o conserto da rua que dava acesso ao arraial, por se encontrar “desde as aguas do ano passado constantemente arruinado”, esperava contar com o interesse das autoridades municipais para resolver o 56 57 LRSC, 1793, f. 91v. NICOLLAZI JÚNIOR, N. F. O almotacé na Curitiba colonial, op. cit., p. 55. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 57 problema, já que o defeito na rua impedia a “passagem dos viandantes que comerciam da Cidade de São Paulo para esta Capitania”58. Na primeira sessão do mês de março do mesmo ano, movido pelas reclamações e pela “queixa geral dos viandantes”, o procurador da Câmara, reconhecendo a gravidade da situação, solicitou o concerto “da estrada geral desta Vila [Boa] para o [arraial de] Ouro Fino [...] em que tem havido alguns perigos; sendo o lugar por onde entram todos os viveres para a sustentação dos moradores desta Vila”59. Em resposta, o presidente da Câmara mandou licitar a obra e, pelo menor preço possível, realizá-la imediatamente. Se os caminhos que ligavam Vila Boa aos arraiais da capitania demandavam serviços e despesas constantes, as ruas e calçadas de seu próprio espaço urbano também requeriam a mesma atenção da Câmara Municipal. Mesmo porque, quando um problema na estrutura urbana da vila não tinha solução rápida, ia disseminando conseqüências e ampliando o raio de seus prejuízos. Era este o caso da “rua que vai para o Moinho”, cujos moradores haviam feito uma petição para a construção de uma calçada, pois “se não fizer a dita calçada ficam as águas empossadas, feito Lagoa, arruinando as paredes das casas”. Os vereadores declararam a intenção de resolver o problema assim que possível, alegando que os pedreiros estavam “todos ocupados nas mesmas obras públicas tão necessárias”60. A concepção da regularidade não era observada apenas nas fachadas e muros de Vila Boa. As calçadas também requeriam um padrão mínimo de uniformidade, garantindo conforto e segurança aos usuários. Por isso, o juiz almotacé Manoel Joze Leite, denunciando que a “calçada dos fundos das casas de sobrado do Alferes Joze Ribeiro da Costa [...] até a calçada das casas da Capela de Nossa Senhora do Rosário” estava muito baixa, causando “dano a serventia publica” (provocando a queda de várias pessoas), argumentou que era necessário “levantar em termos hábeis”, ou seja, regularizá-la, tornando-a uniforme, a fim de evitar outros acidentes 61. O cuidado com os edifícios públicos, também atraía a atenção dos vereadores, pois constituíam, às vezes, em fonte importante de rendas para a municipalidade. O açougue público é um exemplo. Local de comercialização da carne, parece sempre ter sido tratado com certa LRSC, 1793, f. 87. LRSC, 1793, f. 88. 60 LRSC, 1792, f. 74v. 61 LRSC, 1793, f. 104v. 58 59 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 58 importância no contexto das atividades da Câmara. Segundo Silva e Souza, o governador Luiz da Cunha Meneses teria aumentado “o patrimônio da Câmara, mandando fazer a casa do açougue para seu rendimento”, tendo levantado recursos para a obra por meio de uma loteria que teria rendido 1000 oitavas de ouro. Curiosamente, o projeto da casa do açougue teria sido iniciado a partir de “um risco da sua mão” que, posteriormente, teria sofrido alterações durante a execução da obra62. Em sessão da Câmara ocorrida em 19 de novembro de 1793, decidiu-se que seriam licitadas as obras de retelhamento das casas e da cozinha do mesmo açougue construído por Cunha Meneses, bem como a reforma do curral63. Entretanto, nove meses depois, foi apresentado pelo procurador da Câmara “um novo risco para a reedificação do açougue público que se acha ameaçando grande ruína”64, cujos serviços os vereadores mandaram arrematar pelo menor preço65. Além da reforma do curral público, onde se guardavam os animais pertencentes à municipalidade, a Câmara resolveu cobrar pelo uso de terceiros. Por isso, determinou “que se avaliasse o valor do uso do curral público para particulares”66, procedendo à avaliação do custo da obra para se chegar a um valor ideal. Em seguida, os vereadores decidiram, baseados no valor da construção do curral público (que teria custado aos cofres da Câmara 86 oitavas de ouro e seis vinténs), cobrar o valor correspondente a 1 vintém por cabeça aos proprietários que mantivessem seus animais no curral municipal67. Trinta dias depois, a Câmara mandava aprontar “a postura do novo curral do concelho” visando “garantir a segurança do gado nele guardado”68. Finalmente, o poder e a ordem impostos através da atuação da Câmara Municipal de Vila Boa de Goiás estavam ancorados na necessidade de organização dos espaços urbanos: a administração de edifícios públicos, a preocupação com a estética e a forma, a manutenção de calçadas, ruas, caminhos e pontes, o aforamento de áreas urbanas e rurais e, como corolário, a interferência sobre os domínios público e privado. Noutras palavras, a ação dos oficiais municipais implicava “na estruturação e SILVA E SOUZA, L. A. Memória sobre o descobrimento, governo, população e cousas mais notáveis da Capitania de Goyaz, op. cit., p. 98. 63 LRSC, 1793, f. 106. 64 LRSC, 1794, f. 150. 65 LRSC, 1794, fs. 160v, 161, 162, 162v, 163v e 165v. 66 LRSC, 1795, f. 174v. 67 LRSC, 1795, 178v. 68 LRSC, 1795, f. 180. 62 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 59 definição de um sistema de sociabilidade”69, cuja busca pelo bem comum comporia o alicerce ou as bases da sociedade, centrada numa concepção de cidade previamente elaborada. Intervenções no mercado: economia moral e preço justo Desde logo, outra atividade, garantida pelo direito de almotaçaria, ampliava a agenda diária dos oficiais da Câmara: o controle das relações de mercado. Como lembra Fernand Braudel, é a existência do mercado que, por sua própria especificidade, define os contornos mais claros da cidade. “Não há cidade sem mercado e não há mercados regionais ou nacionais sem cidades”70. Se, na definição braudeliana, cidade e mercado estão entrelaçados, em Vila Boa de Goiás era a Câmara Municipal o elo forte que os interligava. Baseada nos editais das posturas municipais, publicados a cada mês de janeiro71, a regulamentação sobre as relações comerciais submetia ao poder protetor e coercitivo da municipalidade parte essencial da vida dos moradores de Vila Boa. Como afirma Nuno Monteiro a respeito das Câmaras do reino de Portugal, “as posturas e a regulamentação da actividade econômica local delas decorrente constituíam uma das dimensões essenciais da esfera de jurisdição própria das Câmaras, ao mesmo tempo que traduziam exemplarmente o sentido global da sua actuação72. De fato, o controle das relações de mercado estava fundamentado em duas concepções que norteavam a ação dos oficiais da Câmara: primeiro, o abastecimento de gêneros alimentícios e, em segundo lugar, uma certa noção de mercado. Na economia mineradora de Goiás durante o século XVIII, de característica essencialmente urbana e mercantil, a ausência de gêneros alimentícios poderia provocar o que Júnia Ferreira Furtado, ao estudar o caráter da economia de Minas Gerais, indicou como a desorganização do mundo urbano, que poderia por em risco o equilíbrio e a estabilidade social, indispensável para o sucesso da atividade da mineração 73. NICOLLAZI JÚNIOR, N. F. O almotacé na Curitiba colonial, op. cit., p. 68. BRAUDEL, F. Civilização material, economia e capitalismo – Séculos XV-XVIII. As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo: v. 1, Martins Fontes, 1997, p. 441. 71 LRSC, 1793, f. 83. 72 MONTEIRO, N. G. Os concelhos e as comunidades, op. cit., p. 318. 73 FURTADO, J. F. Homens de Negócios – A interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 205. 69 70 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 60 Neste aspecto, o poder exercido sobre o funcionamento do mercado complementava as atribuições que conferiam enorme influência da Câmara Municipal sobre o quotidiano de Vila Boa de Goiás. Era, pois, necessário – em meio às ameaças onipresentes de crises de desabastecimento ou de altas generalizadas de preços – garantir um equilíbrio essencial à vida da cidade regulando o mercado local. Desta forma, a preocupação com o fornecimento e o acesso aos alimentos essenciais à população, era objeto de controle permanente por parte da Câmara de Vila Boa. É neste sentido que o procurador Manoel Joze Leite, em outubro de 1792, incitava seus pares a promover uma fiscalização generalizada no comércio da cidade “para se darem as providências necessárias ao clamor desse povo” que, apesar do tabelamento de preços imposto pela municipalidade, reclamava dos preços elevados, “em prejuízo grave do bem publico”74. Mais que o simples tabelamento de preços existia a preocupação em evitar a ação de atravessadores que, de acordo com o raciocínio dos vereadores, eram os principais responsáveis pela alta nos preços. Não é sem razão que o procurador da Câmara é repetitivo a respeito do assunto. Ainda no mesmo mês de outubro, por ocasião da escolha dos almotacés para os meses de novembro e dezembro, Manoel Joze Leite insistia com os eleitos para que cumprissem o Regimento dos Almotacés, “por ser constante o clamor do povo pelo excessivo preço por que estão os Taberneiros vendendo os mantimentos por maior preço das almotaçavias [...] dando as providencias necessárias não só nesta importante matéria, como também nos atravessadores dos ditos mantimentos, e outros gêneros75. Se a preocupação do procurador evidencia certa dificuldade em manter os preços dentro dos limites definidos pelos oficiais municipais, o “constante clamor do povo” parece revelar uma espécie de cobrança da população com relação ao papel da Câmara no âmbito da economia da cidade. Isso justificava, certamente, a vigilância direcionada aos atravessadores, alvos de um sentimento de aversão por parte dos oficiais da Câmara. Contudo, a simples existência dos atravessadores revela sua conexão mais profunda com o sistema comercial implantado em Goiás: alí, a distância dos centros urbanos distribuidores de produtos alimentícios estimulava seus negócios, o que resultava nos altos preços dos produtos. 74 75 LRSC, 1792, f. 73v. LRSC, 1792, f. 77. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 61 Por outro lado, a tímida produção local de alimentos destinados ao mercado agravava a situação76. Neste aspecto, no raciocínio de Júnia Furtado aplicado às Minas Gerais, mas válido para Goiás, este temor aos atravessadores revela, também, a incapacidade de se perceber a importância e o papel dos intermediários para a efetivação do comércio numa complexa rede comercial estabelecida nas minas77. Para ela, o ódio indiscriminado contra os intermediários resultava da incapacidade em distinguir aqueles necessários daqueles que atravessavam mantimentos visando apenas o proveito próprio. Seja como for, a ação dos especuladores foi constantemente combatida pelas autoridades locais, tanto em Minas Gerais quanto em Goiás, “em nome do bem-estar dos súditos e da manutenção da ordem social”78. Vale, também, ressaltar que toda ação da Câmara de Vila Boa voltada para o controle das relações comerciais, estava pautada numa noção específica de mercado. A chave do controle de todas as atividades comerciais e artesanais apoiava-se no conceito da economia moral de preço justo79. Na imagem de uma comunidade corporativa característica das sociedades de Antigo Regime, cada corpo, além de ter um lugar adequado, detinha um valor absoluto e outro relativo ou razoável. Assim, nas relações de mercado, o valor razoável correspondia ao valor moralmente justo. Por este caminho, o objetivo primordial seria garantir certo equilíbrio nas relações de produção e consumo, assegurando o bem estar e uma sociabilidade adequada. Nas fontes pesquisadas, a referência à atividade agrícola e pecuária em Goiás são muito freqüentes. Mas, de acordo com Luiz Palacin (2001, p. 141), dois graves obstáculos impediam o bom andamento da agricultura: o desprezo dos mineiros pela atividade do campo e a legislação fiscal, que confiscava boa parte da produção local, desestimulando as iniciativas por parte de eventuais produtores locais. Quando o governador José de Vasconcelos pediu a opinião da Câmara de Vila Boa sobre as causas do pouco avanço da atividade agrícola na capitania, a resposta foi direta: os dízimos. Os dízimos estiveram enraizados nas causas do fracasso de todas as tentativas de vitalizar a agricultura e a pecuária em Goiás Colonial. PALACIN, L. O século do ouro em Goiás, op. cit., 143. 77 FURTADO, J. F. Homens de Negócios – A interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 211-212. 78 Idem, p. 209. 79 PEREIRA, M. R. M. Almuthasib – Considerações sobre o direito de almotaçaria nas cidades de Portugal e suas colônias, op. cit., p. 379. 76 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 62 Em Goiás, o primeiro mecanismo utilizado para o estabelecimento do preço justo foi o tabelamento dos preços. Em Vila Boa a intervenção dos vereadores parece ter sido bastante contundente na definição dos preços dos gêneros como a carne e o sal, bem como de outros produtos, tais como roupas e sapatos. O preço justo (preço imposto a produtos ou serviços por lei ou postura) definido pela Câmara Municipal devia ser respeitado e praticado, sendo a desobediência punida severamente com castigos e multas80. Assim, o procurador da Câmara de Vila Boa, apoiado nas posturas municipais e calcado no que prescreviam as Ordenações do reino, pediu o fechamento de uma taberna, localizada no caminho do arraial do Ferreiro, por estar comercializando todos os viveres da terra [...] pelos preços que querem, sem fazer menção da Almotaçavia, e que como é [a] Estrada para esta Vila, por onde passam as Carregações de mantimentos, e que tudo se atravessa para revender ao povo contra as Posturas desta Câmara, se deve evitar, pondo-se-lhe as penas da Lei para sua emenda e exemplo de outros81. A análise dos conflitos entre oficiais da Câmara, lavradores e senhores de engenhos em Vila Boa de Goiás, ocorridos entre os anos 1793 e 1794, tendo como ponto de discórdia o tabelamento de preços dos produtos agrícolas, permite identificar a importância da noção de preço justo nos procedimentos adotados pela Câmara. Afirmando que os gêneros alimentícios produzidos pelos agricultores “são sujeitos a almotaçarem e a venderem pela taxa que lhe puser o Almotacel”, afirmavam os vereadores que os preços deveriam “sempre [...] regular se atender ao tempo, e ocasião de abundancia ou carestia dos mantimentos, e viveres, em que a elevação diminua o que for racionável sem prejuízo do Publico e dos Lavradores”82. A prática de se determinar previamente os preços dos produtos era justificada pela ideia do “prejuízo do público”, evidenciando uma racionalidade nas relações de mercado que visava impedir lucros exagerados por parte de alguns comerciantes ou agricultores. Não podemos esquecer, por outro lado, que o desrespeito às determinações da ORDENAÇOES FILIPINAS. Reprodução “fac-símile”, op. cit., Livro I, Título LXVI, Parágrafos 32-34. 81 LRSC, 1792, f. 73v. 82 LRSC, 1793, f. 105v. 80 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 63 Câmara, implicava em penalidades. No caso dos lavradores e senhores de engenhos que insistissem nas transgressões, os vereadores determinaram “ao almotacel para que faça executar as posturas desta Câmara e observar os editais que a mesma tem mandado publicar [...] fazendo executar as penas dela contra os transgressores” 83. Esta noção moral de mercado, com o intuito de impedir lucros abusivos e a alta excessiva de preços, bloqueando a ação de intermediários e atravessadores, prevenindo a formação de monopólios e garantindo o abastecimento, dependia de outros expedientes que integravam os mecanismos de controle exercidos sobre a cidade. Em primeiro lugar, a exigência de inscrição para abrir e manter qualquer tipo de comércio (venda, loja ou taberna) teria como objetivo o exercício de um controle mais estreito sobre o abastecimento urbano. Além do comércio varejista, outras atividades profissionais também estavam na mira dos almotacés e vereadores de Vila Boa. É o caso, por exemplo, dos artesãos que exerciam atividades manuais, a exemplo de ferreiros, ourives, sapateiros e alfaiates. Tratados à época por “oficiais mecânicos”, estes trabalhadores dependiam de uma Carta de Exame emitida pela Câmara para desempenharem suas atividades profissionais. A sessão do dia 15 de novembro de 1792 indica que a municipalidade se ocupava destas atividades. Após a realização de uma inspeção periódica e de algumas “averiguações tendentes ao bem publico”, os vereadores perguntaram ao porteiro da Câmara se ele havia encontrado alguma irregularidade quanto ao que determinavam as posturas municipais. Apresentando uma relação de condenações, afirmou “que [dentre] as pessoas do rol que [se] apresentavam umas não tinham Licenças, outras não tinham aferido, e por isso requeria fossem condenadas, como também alguns oficiais de oficio mecânico não tinham carta de exame”. Como tinham sido notificados e não compareceram à Câmara, “mandaram se notificassem pessoalmente para na Vereança de Sábado virem alegar o seu Direito, para se lhes diferir, como parecer justo, [sob] pena de serem condenadas a sua revelia na forma das Posturas”84. Em segundo lugar, paralelamente à prática do tabelamento de preços e o controle das atividades profissionais, uma fiscalização minuciosa dos mecanismos de pesos e medidas utilizados pelos estabelecimentos comerciais, reforçava o domínio da Câmara sobre as relações de mercado. 83 84 LRSC, 1794, f. 135v. LRSC, 1792, f. 78. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 64 Para que o consumidor não fosse ludibriado no momento da compra de alimentos, os pesos e as medidas utilizados no comércio eram periodicamente fiscalizados, coibindo o engano ou a má fé nas transações que envolviam comerciantes e consumidores. As Ordenações Filipinas previam o acompanhamento mensal por parte da Câmara, mas durante os meses de janeiro e julho seus oficiais deveriam emitir aviso público sobre a necessidade de conservarem seus equipamentos “justos e concordantes com o padrão” estabelecido pela municipalidade 85. Em Vila Boa, esta determinação parece ter sido seguida à risca, como podemos inferir através da leitura da ata da Câmara de 15 de janeiro de 1794, quando foi assinado o “Edital pelo qual se faz certo ao povo que deve afilar sem perda de tempo”86. De fato, com o uso constante e por tempo prolongado, os equipamentos acabavam se deteriorando, tornando-se imprecisos e inadequados, o que gerava prejuízo ao consumidor. Mas os oficiais da Câmara estavam atentos e de olho nos comerciantes desonestos que, ao que parece, não eram poucos. No dia dois de março de 1793, a Câmara determinava que se não consentisse pesos diminutos, aos que achasse com diminuição fossem aumentados a custa dos donos; e em nenhuma forma consentisse pesos de pedra, determinando-se-lhe que os que não quisessem reformar os pesos, desse [o povo] parte a esta Câmara, declarando [denunciando] as pessoas para se darem providencias necessárias87. Embora a reforma dos pesos e medidas não garantisse precisão absoluta nas transações comerciais, já que era feita com cera que preenchia rachaduras ou partes quebradas, demonstrava o interesse do comerciante em manter seu estabelecimento fora do alcance das denúncias dos consumidores e das punições impostas pela Câmara. O uso de pedras ou medidas menores era uma forma de adulterar e falsificar os padrões oficiais, o que poderia gerar severas penalidades. Por isso, o procurador da Câmara, em outubro de 1792, também atendendo “ao clamor desse povo”, solicitava uma fiscalização menos branda, a fim de impedir que nas ORDENAÇOES FILIPINAS. Reprodução “fac-símile”, op. cit., Livro I, Título LXVIII, Parágrafos 16-17. 86 LRSC, 1794, f. 116. 87 LRSC, 1793, f. 87. 85 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 65 tabernas de Vila Boa se vendessem “com pesos de pedras, e por mais que está almotaçado [tabelado], tudo [é] mal pesado e mal medido [...] tudo com prejuízo grave do bem publico”88. Noutra oportunidade, o mesmo procurador, exortando os almotacés para que exercessem com eficácia suas atribuições, denunciava os taberneiros por estarem vendendo mantimentos com “medidas e pesos falsos e diminuídos”89. Na verdade, se vereadores e almotacés acompanhavam os procedimentos de fiscalização de pesos e medidas na rede comercial de Vila Boa, este serviço, cujos lucros integravam as receitas da Câmara, era, por vezes, arrematado por terceiros e mantido sob o controle da municipalidade. Entre os anos de 1792 e 1795 (intervalo que corresponde à documentação utilizada neste estudo) pudemos acompanhar a rotina dos oficiais da Câmara quanto aos procedimentos que compunham o controle das rendas provenientes destes serviços terceirizados. A cada ano, a partir do mês de dezembro, os serviços da Câmara eram colocados em praça pública para serem arrematados pelo melhor preço. No dia três de janeiro de 1793, ante a ausência de propostas correspondentes ao valor mínimo exigido no mês anterior, “andando em Praça e pregão as Rendas da Affiliação, cabeças e Talhos desta Vila e seu Termo, o maior lanço que teve foi o que ofereceu João Lopes de Barros, de oitocentas oitavas de ouro, que por ser diminuto [insuficiente] ficou para a Vereança seguinte”90. Note-se que os serviços terceirizados implicavam, basicamente, em duas áreas de atuação. Primeiramente, afilar, ou seja, aferir, acertar (a balança), conferir (pesos e medidas) com o respectivo padrão os instrumentos utilizados nos estabelecimentos comerciais. A segunda atividade terceirizada correspondia às “cabeças e talhos”, ou seja, a administração dos animais pertencentes ao curral municipal, bem como do açougue público, envolvendo o corte de carne e sua comercialização. Nos limites do período citado, apenas duas pessoas apareceram como interessados pela arrematação das rendas da Câmara, já que para participar do certame, além da competência requerida, era exigido que dois fiadores confiáveis garantissem o cumprimento do contrato com a municipalidade. Se João Lopes de Barros havia oferecido oitocentas oitavas de ouro, dois dias depois Miguel Alves de Oliveira ofereceria vinte oitavas a mais, o que não convenceu aos vereadores, que consideraram o valor LRSC, 1792, f. 73v. LRSC, 1792, f. 77. 90 LRSC, 1793, f. 82 88 89 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 66 “diminuto”, transferindo o certame para outra sessão91. As rendas da Câmara, correspondentes a 1793, apenas foram arrematadas no dia 26 de janeiro, quando o mesmo Miguel Alves de Oliveira bateu o martelo em novecentas e noventa oitavas de ouro 92. Apesar da experiência que possuíam, os arrematadores encontravam dificuldades em receber de seus credores, cujas multas e penalidades iam se acumulando, o que gerava atrasos nos repasses trimestrais à Câmara, colocando-os em situação difícil perante os vereadores. Nestes casos, era comum a Câmara solicitar o sequestro dos bens do arrematante ou até mesmo mandar prendê-los, como ocorreu com Miguel Alves de Oliveira, em janeiro de 1794, por ter se dirigido à Câmara “com palavras menos decorosas e com menos respeito daquele que se deve a esta corporação, tudo com dolo e malícia [...] mandando-se recolher a enxovia o dito Miguel Alz. pela falsidade e arrogância”93. Conclusão: os termos de correição A estética da cidade e a moralidade do mercado enquanto exercícios cotidianos da Câmara Municipal eram objetos do olhar controlador dos vereadores e almotacés de Vila Boa de Goiás. Procedimentos habituais impediam que forças contrárias impusessem um desenvolvimento urbano na direção oposta àquela definida pela municipalidade. Em Goiás, ante a ausência dos livros de registro dos almotacés, que se perderam ao longo do tempo, restou-nos ainda a possibilidade de perseguir a ação dos oficiais da Câmara através dos mecanismos de fiscalização in loco registrados nos Termos de Correições. Os Termos de Correições, registrados nos livros de atas da Câmara municipal de Vila Boa, compõem-se de narrativas sobre o processo de fiscalização realizado anualmente pelas autoridades municipais, referentes aos aspectos do controle urbano exercido através do direito de almotaçaria. Desta forma, após se reunirem na sede da Câmara, o presidente, os vereadores, o procurador e o escrivão, saíam “acompanhados do Alcayde [...] e o Affiliador; e correndo todas as ruas desta mesma Vila [...] se mandarão examinar em sua presença, pelo dito Affilador todas as balanças, LRSC, 1793, f. 83v. LRSC, 1793, f. 897. 93 LRSC, 1794, f. 115. 91 92 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 67 pesos e medidas fazendo-se mais todas as averiguações necessárias tendentes ao bem público”94. Alguns dias antes afixavam edital em lugares visíveis da cidade, para que todos se preparassem para a vistoria e não alegassem desconhecimento do processo de fiscalização. Chegado o dia, nada escapava aos olhos das autoridades municipais: conflitos entre vizinhos; testadas de casas e calçadas irregulares; caminhos e ruas mal conservados; estabelecimentos comerciais sem a devida licença de funcionamento; pesos e medidas irregulares; profissionais sem a devida carta de exame; valores em contradição com o tabelamento preços e atravessadores proibidos pela vigência de uma economia moral que impunha suas regras ao mercado local. Todos eram notificados in loco e convocados a comparecerem à sede da Câmara, sob pena de serem condenados à revelia de acordo com as posturas municipais. Após terem percorrido ruas, becos e travessas corrigindo as irregularidades e normatizando a vida da cidade, os gestores municipais “por não haver mais cousa alguma que prejudicasse ao Publico”, se recolhiam, por fim, da dita correição 95. O que revela esta cena pública é o pleno vigor da instituição da almotaçaria, submetendo às posturas municipais o movimentado quotidiano urbano de Goiás, revelando a expressão de uma “consciência específica de cidade: trama em que estão inextricavelmente reunidos o sanitário, o construtivo e as relações de mercado”96. Trama que tecia e mantinha, sob o controle da Câmara Municipal, a vida urbana de Vila Boa de Goiás. Referências bibliográficas ORDENAÇOES FILIPINAS. Reprodução “fac-símile” da edição de Candido Mendes de Almeida, Rio de Janeiro, 1870. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990. VILA BOA DE GOIÁS. Arquivo Frei Simão Dorvi. Livro de Registro do Senado da Câmara (L.R.S.C) – 1792-1795, fs. 70-188v. LISBOA. Arquivo Histórico Ultramarino. Documentos Avulsos da Capitania de Goiás (D.A.C.G), 1731-1822. Goiânia: IPEH-BC, 2001. 1-7 CD-ROM. BERTRAN, P. Notícia Geral da Capitania de Goiás em 1783. Goiânia: UGC/UFG; Brasília: Solo Editores, 1996. LRSC, 1793, fs. 104-104v. LRSC, 1793, f. 104v. 96 PEREIRA, M. R. M. Almuthasib – Considerações sobre o direito de almotaçaria nas cidades de Portugal e suas colônias, op. cit., p. 389. 94 95 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 68 BICALHO, M. F. As Câmaras Municipais no Império Português: o exemplo do Rio de Janeiro. Rev. bras. Hist. [online]. 1998, vol.18, no.36, p.251-580. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010201881998000200011&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 10 nov. 2005. BOAVENTURA, D. M .R. Arquitetura religiosa de Vila Boa de Goiás no século XVIII. 2001. 135 f. Dissertação Mestrado em Arquitetura e Urbanismo – Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2001. BRAUDEL, F. 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Abstract: This article aims to propose a discussion on the exercise of royal power, noting the tensions that existed between the regal „ouvidores‟ acted in Paranaguá during the eighteenth century and local elites. In addition, we sought to demonstrate that the actions of the „ouvidores‟ were formed in order to administer regal justice, with this applying and affirming the centralization policy promoted by the Portuguese State. Keywords: royal „ouvidores‟, „Ouvidoria‟ of Paranaguá, portuguese administration. U m dos instrumentos utilizados pela Coroa lusitana para solidificar e centralizar o poder monárquico foi a constituição e promulgação das Ordenações do reino (Afonsinas em 1446, Manuelinas em 151213 e Filipinas em 1603). Nestas leis, entre outros temas, foram definidas as atribuições do ouvidor. Também foram descritas as funções que deveriam Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (PGHIS-UFPR). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Professor de Direito e História do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). 1 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 70 ser desempenhadas pelos corregedores, ofício que o ouvidor régio também veio a desempenhar na América portuguesa. Deste modo, as Ordenações e os regimentos transmitidos aos ouvidores definiram suas prerrogativas, atribuições, jurisdições etc. Nessa linha, a partir da nomeação dos ouvidores, competia a eles superintender as ações dos juízes ordinários, bem como os atos praticados pelos vereadores e demais oficiais das câmaras municipais. As correições serviam para que o ouvidor da comarca fizesse a aproximação das normas do direito régio à vida das comunidades, em audiências públicas. Destas correições, em geral, o ouvidor deixava recomendações para a manutenção da ordem social; a essas recomendações dá-se o nome de provimentos.2 Não obstante ao continuo avanço do direito escrito, o juiz ordinário, por diversas vezes, ainda se valia do direito consuetudinário (costumes) na resolução dos conflitos entre indivíduos na comunidade. Com as correições e provimentos, os ouvidores régios foram redefinindo o costume local, normatizando a justiça em prol da legislação portuguesa. Nesse sentido, entre 1719 e 1721, a região de Paranaguá recebeu a visita de um ouvidor régio que realizou as primeiras correições daquela câmara municipal, deixando ali seus provimentos. Em 7 de junho de 1720 dey conta á Vossa Magestade de ter passado em Correyção ás villas do Rio de São Francisco, Ilha de Santa Catherina, e a de Santo Antonio da Laguna penúltimas povoações de todo este Estado; do que nellas tinha achado, e me parecião. Depois subi á Villa de Curithiba a fazer correyção, e voltey a fazella tambem nesta de Pernagua, em que tenho consumido este anno. 3 Tal ouvidor era Rafael Pires Pardinho, que no final do século XVII fora aprovado no Desembargo do Paço para exercer a magistratura. Formado bacharel em leis na Universidade de Coimbra, era cavaleiro da O nome provimento deriva da fórmula utilizada pelo ouvidor para registrar suas recomendações. Assim, sobre dado assunto indicava-se que o ouvidor “proveu” tais medidas (fez provisão); ou seja, determinava quais providências haviam de ser adotadas sobre o assunto em pauta. 3 Carta do ouvidor-geral de São Paulo Rafael Pires Pardinho ao Rei D. João V, 30 de agosto de 1721. Em: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Para o Bom Regime da República: ouvidores e câmaras municipais no Brasil colonial. Monumenta, inverno 2000, Curitiba: Aos Quatro Ventos, v. 3, n. 10, 2001, pp. 21-26. p. 21. 2 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 71 ordem de Santiago e recebeu a nomeação para o cargo de ouvidor de São Paulo em 1717.4 Anteriormente, Pardinho havia sido juiz de fora das vilas de Santiago de Cacém e Sines, além de juiz criminal no bairro lisboeta da Mouraria.5 Poucos anos após tomar posse do lugar de ouvidor geral da capitania de São Paulo, Rafael Pires Pardinho empreendeu uma viagem até a vila de Laguna, extremo sul da capitania. Seu intuito era o de “fazer correição nestas quatro vilas, penúltimas povoações do Estado, ou, para melhor dizer, em as criar, como de novo, no que entendi fazia a Vossa Magestade o maior serviço, e bem a estes povos, que vivem em tão grande distância”.6 Nas vilas de Laguna, São Francisco, Curitiba e Paranaguá, o ouvidor Pardinho realizou audiências públicas para promover a adequação das justiças naquelas municipalidades. Importante salientar que uma das incumbências dos ouvidores era a de percorrerem suas jurisdições no intuito de manter a ordem pública e administrar as justiças. Rafael Pires Pardinho, na carta de 30 de agosto de 1721, também informava sobre alguns aspectos das vilas de Curitiba e Paranaguá, as últimas em que havia feito suas correições. Sobre Curitiba, descrevia sua localização e as suas construções: “fica a vila de Curitiba nos campos por detrás da Serra de Pernampiacaba [...], com cazas todas de pao a pique cubertas de telha, e a Igreja só he pédra, e barro, que os freguezes radificarão há poucos annos”.7 Pardinho descreve também que o povoamento da vila de Curitiba havia se iniciado em meados do século XVII, quando moradores de Paranaguá subiram a serra com “algûas cabezas de gado vacum, e algûas egoas, que multiplicarão em forma, que tem hoje sufficiente curraes, e he, o de que comummente vivem aquelles moradores”.8 Assim, no momento da passagem do ouvidor por Curitiba, ele observou que a pecuária era a principal atividade de subsistência da vila, não obstante há informação sobre a existência de zonas auríferas na região. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Leitura de Bacharéis – Rafael Pires Pardinho. Ano: 1700. Maço: 02. Número: 27. ANTT. Registro Geral de Mercês. Cota: Dom João V, Livro 8, folha 501. A ata de posse do ouvidor Rafael Pires Pardinho junto ao Senado da Câmara Municipal de São Paulo, data de 25 de setembro de 1717. Em: TAUNAY, Afonso E. História da villa de São Paulo no século XVIII. 1711-1720. Anais do Museu Paulista, Tomo 5, 1931, p. 466. 5 LACERDA, Arthur. As ouvidorias do Brasil colônia. Curitiba: Juruá, 2000. p. 54. 6 Carta do ouvidor-geral de São Paulo... Em: Monumenta, Op. cit. p.26. 7 Carta do ouvidor-geral de São Paulo... Em: Monumenta, Op. cit. p. 21. 8 Carta do ouvidor-geral de São Paulo... Em: Monumenta, Op. cit. p. 21. 4 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 72 Pardinho faz menção também ao número de freguesias: além da de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba existia a de São José e Senhor Bom Jesus do Perdão. Essas freguesias congregavam cerca de “200 cazaes, e mais de 1400 pessoas de confissão”. Institucionalmente, a povoação havia sido elevada à condição de vila, em 1693, por aclamação dos moradores: porque sendo do Termo desta Villa de Pernagua, ficando-lhe tão distante,e com tanta difficuldade para lhe lá ir a Justiza, entre sy se unirão, e fizerão elleyção de Juizes Ordinarios, e Officiaes da Camara, com que athe agora se governarão; mas com tantos abusos, como se pode presumir de húa tão remota terra, e aonde não chegou Menistro algum. Nella estive desde o mes de Settembro athe Fevereiro, que todo este tempo foi necessario, para atrahir a mi aquelles homens, e aos bons, que aparecerão, mostrar-lhes os erros, em que tinhão cahido, e encaminhallos para o futuro procederem com mais acertos em utilidade, e bem dos maos.9 As providências tomadas por Rafael Pires Pardinho podem ser observadas nos 129 provimentos que ele deixou anotados no livro de registros da câmara de Curitiba, em 1721. No que diz respeito a vila de Paranaguá, o ouvidor Pardinho, observou que essa vila era “a mais povoada, e de maior comercio”; no termo viviam cerca de “360 cazaes, e mais de 2000 pessoas de confissão”. Ha na entrada desta Villa duas Ilhas, a que chamão do Mel, e das Pezas, que lhe fazem três barras, duas baichas, em que arrebenta o mar, e por ellas só entrão barcos pequenos, e a do meio he a maior, e por ella entrão embarcações grandes [...]. Dentro faz duas grandes bahias com algûas Ilhas, e quantidade de peiches, de que o comum dos homens tratão: e nellas desaguão vários rios caudelosos, e dizem, que navegáveis alguns dias, que ainda estão despovoados, por estes moradores estarem cituados da villa, e a maior distancia athe 5 ou 6 legoas. 10 9 Carta do ouvidor-geral de São Paulo... Em: Monumenta, Op. cit. p. 23. Carta do ouvidor-geral de São Paulo... Em: Monumenta, Op. cit. p. 24. 10 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 73 Visto “não ter havido nella correyção de Ouvidor desde o anno de 1682, em que a ella veio o Doutor André da Costa Moreira, 11 Rafael Pires Pardinho demorou-se ali mais tempo, empenhado em “reparar os erros e abusos passados”. Nesse sentido, deixou diversos provimentos, dos quais enviou uma cópia para serem apreciados pelo rei. Para além de sua atenção com a questão da administração em geral, o ouvidor Pardinho também exerceu suas prerrogativas de magistrado: “tenho tirado sette devaças de mortes atroces, que algûas se não tinhão tirado, quando succederão, e nas que tirarão os Juizes não havia culpados por malicia destes, e insolência dos Reos, que os amiaçavão, e atemoriçavão”. 12 Portanto, as atenções e ações do ouvidor estavam em torno de diferentes temas, deixando em Curitiba e em Paranaguá “largos provimentos, que respeitão tanto ao governo da Camara, como administração da Justiza Civil, e Crime, e bens dos Orphãos; de que tomey conta a alguns tutores, emendey alguns inventários, e fiz outros de novo, e partilhas, para lhes ficarem por normas”. 13 Tudo isso para, conforme suas palavras, “o bom regimen desta Republica”. 14 Os oficiais das câmaras por ele visitadas deveriam, a partir de então, governar-se por instruções que ofereciam “informações sobre alguns dos traços básicos da administração municipal, suas jurisdições, atribuições e prerrogativas”. Além do mais, os provimentos procuravam normatizar a prática jurídico-administrativa, caracterizando “uma mudança de enfoque, por parte da coroa, em relação à administração colonial”.15 Notadamente, o texto dos provimentos de Pardinho “explicitava que o rei era a única autoridade a quem deviam obediência”. 16 Tal observação, tornava-se necessária visto que a capitania régia de São Paulo havia sido criada recentemente (1709) e sua população estava acostumada à autoridade dos procuradores dos donatários; no caso de Curitiba, por exemplo, a eleição Carta do ouvidor-geral de São Paulo... Em: Monumenta, Op. cit. p. 24. Carta do ouvidor-geral de São Paulo... Em: Monumenta, Op. cit. p. 25 13 Carta do ouvidor-geral de São Paulo... Em: Monumenta, Op. cit. p. 23. 14 Treslado dos capitulos de correição desta villa de Nossa Senhora do Rosário de Pernagua este anno de 1721. Em: Monumenta, Op. cit., p. 83. 15 SANTOS, Antonio Cesar de Almeida; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Para o Bom Regime da República: ouvidores e câmaras municipais no Brasil colonial. Monumenta, inverno 2000, Curitiba: Aos Quatro Ventos, v. 3, n. 10, 2001, p. 1-19. p. 9. 16 Ibid. p. 12. 11 12 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 74 dos oficiais de sua câmara municipal foi presidida por Mateus Leme, procurador do Marques de Cascais donatário das terras. O que sem duvida algûa se fará daqui em diante, pois sendo mais provável, que esta Villa fica no principio das quarenta léguas da doação que teve o Marquez de Cascaes para parte do Sul da Ilha de Cananea, que o Conselho Ultramarino lhe comprou para a Coroa Real, com a Capitania de S. Vicente, como consta da scriptura, que elle Ouvidor geral lhes deyxa registrada no Livro desta Camara; devem seos moradores terem entendido, que sam immediatamente Vassallos de Sua Magestade sem reconhecerem donatário algum.17 Se, por um lado, o ouvidor afirmava a autoridade régia, por outro, ele teve o cuidado de “não apenas determinar a maneira pela qual a justiça ordinária deveria agir; também cuidou em instruir os vereadores na boa administração dos bens dos Concelhos, de modo que aquelas povoações fossem bem governadas e que se assegurasse o „bem comum‟ delas”. 18 Como já mencionado, ao ouvidor competia ações de fiscalização junto às câmaras municipais e a justiça. Nesta última, o ouvidor régio atuava como instância de recurso às sentenças prolatadas pelos juízes ordinários, como também dava curso a novas ações judiciais. No que diz respeito à fiscalização das câmaras municipais, as correições e provimentos para as vilas foram os instrumentos utilizados pelo ouvidor. Desta forma, esse oficial promovia a legislação e a justiça régia nas comunidades: “A principal obrigação minha [rei], he que a meus novos Vacalos do Brazil Se administre, e faça justiça Com Igualdade”.19 Ainda em relação aos provimentos deixados pelo ouvidor Pardinho para as vilas de Curitiba e Paranaguá, é importante mencionar seu esforço em verter para a linguagem vulgar os preceitos contidos nas Ordenações. De certo modo, Pardinho entendia que os juízes ordinários, vereadores e demais oficiais municipais não tinham um contato direto com o texto das Ordenações. Treslado dos capitulos de correição desta villa de Nossa Senhora do Rosário de Pernagua este anno de 1721. Em: Monumenta, Op. cit., p. 84. – grifos meus. 18 SANTOS, A. C. de A.; PEREIRA, M. R. de M. Op. cit. p. 12. 19 Regimto. Da Relação do Estado do Brazil. Em: Revista do Arquivo Municipal de São Paulo (RAMSP). Ano I, vol. X, 1935, pp.89-102. p. 89. 17 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 75 Proveo que os vereadores guardem e observem o seo regimento, que he no ord. do Lb.º 1.º e tt.º 66, e os Juises ordin.os o seu, que he o tt.º 65 do mesmo Lb.º E no fazer das Eleysões dos officiais que ham de servir no Conc.º Guardem o tt.º 67 do mesmo Lb.º fazendo Eleyção para 3 annos por Pellouros como elle Dzor Ouv.or Gl. Lhes deixa feita; e não uzem mais da Eleysam de hum anno como athe agora se fez; pois neste povo há pessoas bastantes para a Eleysam Trienal.20 No que se refere às correições feitas pelos próprios ouvidores da comarca de Paranaguá, criada em 1723 com a divisão da capitania régia de São Paulo em duas jurisdições, ressalta-se que o cargo de ouvidor, em diversos períodos, ficou sob a tutela do juiz ordinário da vila de Paranaguá. Um dos diversos exemplos desta prática que podemos citar é o caso dos provimentos feitos para a vila de Curitiba no ano de 1726. Uma vez que o ouvidor Antonio Álvares Lanhas Peixoto estava acompanhando a comitiva de Rodrigo César de Meneses as minas dos Goiáses, desde junho de 1726, quem passou a exercer as funções do ouvidor foi o juiz ordinário e de órfãos da vila de Paranaguá, Capitão Manoel de Sampaio. Consequentemente foi esse juiz quem promoveu a correição da vila de Curitiba no final daquele ano. Esse tipo de ocorrência, em que o juiz ordinário assumia as funções de ouvidor régio ou juiz de fora, não era novidade na estrutura jurídicoadministrativa do Antigo Regime português. 21 Aliás, ordens régias poderiam alargar os poderes dos juízes ordinários, como se pode notar em despacho de 8 de fevereiro de 1717, do Conselho Ultramarino: O juiz ordinário da mesma câmara [São Paulo] Manoel Paes Botelho sobre a grande contenda, que houvera acerca da substituição do lugar de ouvidor geral dessa Capitania na ausência do Desembargador Sebastião Galvão Rasquinho e do juiz de fora da vila de Santos que tenho resoluto sirva nos seus impedimentos, por ambos estes dois [...] estarem por adjuntos da alçada do Rio de Janeiro introduzindo-se Treslado dos provimentos de correição que nesta villa fes, e deixou para bom Regimen da Republica e bem comum d‟ella, o D.zor Raphael Pires Pardinho. Este anno de 1721. [vila de Curitiba] Em: Monumenta, Op. cit., p. 84. – grifos meus. p. 35 21 Três Lado do Regimto. Dos Ouvidores Gerais do Rio de Janeiro &a. RAMSP. vol. VIII, 1935, pp. 55-60, p. 59. 20 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 76 no cargo, Bento Carvalho Maciel, pela nomeação que nele fizera o governador dessa Capitania, contra as minhas disposições, não bastando toda a diligência para o despersuadir, que largasse a dita ocupação, mostrando-se-lhe, que esta competia ao juiz ordinário mais velho, conforme o alvará de dois de julho de 1712, que mandei observar como lei neste caso; e vendo-se ao mesmo tempo, duas pessoas com as varas deste lugar, e avisando-se ao governador desta duvida, confirmara o intruso Bento Carvalho Maciel, seguindo-se disso uma grande perturbação,nesses povos, e nulidades, em todas estas disposições, contra a boa ordem da Justa; de que se podia originar grandes sedições; e que para se evitassem estas, se vos devia declarar, o que se devia guardar em semelhante duvida; me pareceu dizer-vos, que na ausência do ouvidor geral dessa Capitania , há de suceder o juiz de fora de Santos, e na falta ou ausência deste, o juiz ordinário mais velho dessa cidade de São Paulo que é a cabeça da comarca; e que o governador não tem jurisdição para nomear ouvidor.22 Ou seja, diante de uma necessidade específica, as instituições administrativas centrais poderiam decretar a “expansão” dos poderes de um oficial na tentativa de não deixar “lugares vagos” na estrutura jurídicoadministrativa da Coroa portuguesa. Esse caso que estamos destacando, reveste-se de especial interesse para a ouvidoria de Paranaguá, dado que ela ficou por um bom período de tempo sob a tutela dos juízes ordinários da vila de Paranaguá. Essa situação foi enfrentada em 1766, pelo governador da capitania, D. Luís Antonio de Souza Botelho Mourão, que informou ao conde de Oeiras, então secretário de Estado dos negócios do reino: a Comarca de Paranaguá, em que tão bem sua Majestade punha Ouvidor e se acha agora vago a dez anos, e serve de Ouvidor pela lei o Juiz Ordinário mais velho com as mesmas jurisdições acima ditas, o qual está conhecendo de tudo que nenhum outro Ministro se possa intrometer a conhecer do que se passa na sua Comarca, e além do referido com o motivo de ficar em maior distância da Relação do Rio de Janeiro, passa também cartas de seguro de todo o 22 Revista do Arquivo Histórico de São Paulo. Ano 1 – Vol. IX, São Paulo, 1935. p. 101-102. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 77 crime, o que não pode fazer o Ouvidor Letrado de São Paulo.23 Embora a historiografia considere o juiz ordinário como um oficial ignorante da prática jurídica letrada, Joacir Navarro Borges observa: De fato, em geral os juízes ordinários eram leigos, mas tratar essa característica como ignorância é cometer o mesmo erro de imaginar que a prática judiciária das câmaras era necessariamente corrupta e abusiva. O que a historiografia clássica [refere-se a Caio Prado Junior] entendeu por “ignorância”, “corrupção” e “abuso”, nós podemos entender por rusticidade, ou seja, a crença na capacidade de julgar da própria comunidade. O princípio de que os mais próximos e envolvidos conheciam melhor e, portanto, também julgariam melhor. Esse princípio estava na base da autonomia local no antigo Regime.24 Nesse sentido, quando Manuel de Sampaio, “Juiz ordinário da villa de Pernaguá e nella Ouvidor g.al por Ley e Juiz das Justificações com alçada no cível e crime”, realizou a correição na vila de Curitiba em 9 de outubro de 1726, esse oficial, amparando-se nas antigas recomendações do ouvidor Pardinho, procurou reafirmar o pertencimento daquele território à Coroa lusitana, além de prover a padronização dos pesos e medidas da vila, o conserto da ponte sobre o rio Iguaçu, a readequação da construção de casas na vila e, dentre outros assuntos, ainda procurou adaptar as necessidades da vila no que diz respeito à comercialização do ouro em pó. Em tudo procurou atender o “effeito de se faserem os acordos convenientes ao bom governo della e otilid.e do povo e os provim.tos que fazem p.ª todos os requerim.tos defferir e determinar o que fosse just.ª e com effeito por cedeo”,25 mas sempre observando os interesses da monarquia. Proveo e mandou elle Ouvidor g.al q‟ v.ta a proposta q‟ o Pro.or do Conc.º propoz em nomem do povo o qual Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo. v. 73, p. 59-60. BORGES, Joacir Navarro. Das justiças e dos litígios: a ação judiciária da Câmara de Curitiba no século XVIII (1731-1752). Curitiba, 2009. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná. 25 Capitulos de Correição que faz o Capitão Manuel de Sampaio, juiz ordinário e orfãos da Vila de Paranaguá e nela e sua Comarca Ouvidor Geral pela Lei. Boletim do Arquivo Municipal de Curitiba (BAMC). vol. VIII, 1924, p. 51. 23 24 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 78 mandou se tresladasse e registasse no Livro de Registro da Camara que pudesse livremente – correr ouro em pó nesta villa e seu termo em q.l q.r genero de negocio por evitarem o grande prejuízo deste Povo e não menos o dos quintos de Sua Mag.de q‟ D.s g.de com cuminação de q‟ não o poderão levar desta v.ª p.ª fora sinão p.ª a Casa dos Quintos de Pern.ª a quitallo p.ª cujo effeito levarão dos Juizes desta v.ª carta de guia cuya ficará registrada em o Livro do Registro da Camara e p.ª mayor segurança darão fiança abonada e não o fazendo assim e achandosse ou sabendosse que algúa pessoa de qualq.r qualidade ou estado que seye faz ou obra o contrario se procedera contra elle com todas as penas assim crimes como civeis impostas p.la Ley e declaro q‟ no Registo q‟ se fiser assignara o juiz presidente daquelle mês com o escrivão e juntam.te o q‟ leva a carta de guia p.ª a nenhum tempo haver duvida algúa.26 Ao longo dos diversos provimentos dirigidos para a vila de Curitiba, existe o constante reforço das recomendações feitas pelo ouvidor Rafael Pires Pardinho anos antes (1721). Por exemplo, na correição feita pelo ouvidor Francisco Leandro de Toledo Rondon, em 1786, ele faz menção ao esquecimento dos provimentos feitos pelo ouvidor Pardinho e demais ouvidores da comarca de Paranaguá. Por q.to se estivessem em sua inteira observ.ª o Capitullos de Provimentos do sempre memorável Dezemb.or Rafael Pires Pardinho, e os dos mais seus meretissimos Predecessores nada parece, poderia ocorrer cuja provid.ª a não esteja nelles feliz e sabiamente lembrada e determinada. O esquecim.to porem, e amortecim.to, em que elles se conservão na lembrança daquelles que sendo occupados na Governança desta Republica, tinhão, e tem rigorosa obrigaçam de os fazer observar, este culpável esquecim.to faz que pelo forçozo ônus de seu cargo lhe seja necessario dar alguma provid.ª não p.ª estabelecer novos ditames que seria temeridade intentar a vista da vasta prevenção de provim.tos de tão iluminados Jurisconsultos, mas p.ª fazer lembrar o que a 26 Ibid., p. 54. – destaque no original. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 79 ignorância, ou talvez a malicia tem posto em total esquecimento.27 A referência que o ouvidor Rondon fez à “malícia”, faz parecer que a câmara municipal de Curitiba agia de acordo com seus interesses. Contudo, o ato de correição da vila feito pelo ouvidor Rondon mostra o esforço desse oficial em reeditar alguns provimentos, para que, em sua visão, fosse assegurado o “bem comum do povo”, e não apenas daqueles “occupados da Governança desta Republica”. Considerando que o exercício do poder régio nas comunidades, por meio dos ouvidores, tinha por intuito “negociar” e adequar a ordem pública, os provimentos faziam alusão a diversas matérias voltadas para o “bem viver” em comunidade. Nesse sentido, um dos mais recorrentes pontos a que estavam atentos os ouvidores da comarca de Paranaguá era a construção e conservação de estradas, caminhos e pontes, para facilitar não só o trânsito de pessoas, mas também o de mercadorias.28 Do mesmo modo, os ouvidores da comarca de Paranaguá repetiam os cuidados que Rafael Pires Pardinho havia anunciado acerca da presença de animais no espaço das vilas.29 Portanto, o espaço da vila requeria, desses ouvidores, grande atenção. Além da presença dos animais e das práticas construtivas, as fontes de água também mereciam todo cuidado e provimentos específicos para sua conservação. No que diz respeito às relações econômicas, alguns provimentos procuravam regulamentar o comércio de animais e combater o roubo dos mesmos. Proveo em pr.º lugar que todos os criadores uzem de sua distinctiva marca e própria em todos os animais da sua criação : Em seg.do que todos os compradores e negociantes que comprão gados, e outras qualidades de animais recebão hum escrito do vendedor Auto de Provimento que mandou fazer o Doutor Francisco Leandro Toledo Rondon – ouvidor geral e corregedor da comarca de Paranaguá em correição nesta vila de Curitiba. [1786]. BAMC. vol. VIII, 1924, p. 110. 28 Auto de provimento de Correição que fez o Doutor Manuel dos Santos Lobato. [1735]. BAMC. vol. VIII, 1924, p. 60-61. 29 Autto de provimento que amndou fazer o Doutor Jerônimo Ribeiro de Magalhães Ouvidor geral Provedor e Corregedor desta Comarca como abaixo se declara em Câmera desta dita villa. [1756]. BAMC. vol. VIII, 1924, p. 83-84. 27 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 80 declarando os que vende, sua qualidade, cores, e marcas, que leva, e o comprador os não poderá levar sem que me .... licença da Cam.ª lhe faça certa com o escrito do vendedor a sua compra cujos escriptos serão guardados na arca da mesma Camr.ª para asim servir no conhecimento dos furtos, que nos d.os animais se costuma fazer com notável prejuizo de seus donos maquinado as mais das vezes pello mesmos vendedores : Em tercr.º lugar que nomeise a mesma Camr.ª na passagem do Yapó hum homem capaz p.ª rever pella licença os animais que leva o comprador, com ordem p.ª que achando alguns demais sem aprd.º marca, sinal e confrontação della, não só tomar os animais asim conduzidos, mas prendelo e remetello a Cad.ª desta Villa donde pagará a condenação por cada hum dos animais asim extraviados dous mil reis p.ª as despezas do Conselho, alem de trinta dias de cad.ª em q‟ condeno a todos o q‟ asim for compreendido, enconrrendo na mesma penna o vendedor que for sabedor daquelle roubo [...]30 De modo geral, os provimentos mandados registrar pelos ouvidores de Paranaguá nos livros das câmaras municipais, evidenciam a estreita ligação entre esses oficias régios e a administração local, seja aquela voltada à aplicação da justiça, sejam as ações compreendidas nas vereações. Essencialmente, os provimentos procuravam ordenar a vida em comunidade, promovendo, ao mesmo tempo, uma substituição do costume pelo direito letrado, nas relações entre os indivíduos e entre indivíduos e a Coroa lusa. Isto posto, é possível observar, portanto, que os ouvidores eram os responsáveis pelo estabelecimento de um elo entre as comunidades locais e o soberano. Esse oficial régio era instrumento de uma política que visava a centralização do poder, ao mesmo tempo em que respondia aos anseios das populações em terem mais próximas de si as justiças d´El Rei. Nesse sentido, as atuações dos ouvidores da comarca de Paranaguá nos ajudam a compreender, por um lado, o papel desses oficiais como agentes régios na estrutura jurídico-administrativa portuguesa implantada na América; por outro, mostra que as câmaras municipais e seus oficiais reconheciam a Auto de provimento de Correição que mandou fazer o Doutor Ouvidor Geral e corregedor desta comarca Antonio Barbosa de Mattos Coitinho neste anno de 1776. BAMC. vol. VIII, 1924, p. 102. 30 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 81 autoridade do rei, contudo, isto não significava que não defenderiam seus interesses a localidade. De modo geral, observam-se algumas ações desempenhadas por aqueles oficiais régios em sua jurisdição, salientando sua posição como agentes promotores das leis régias nas comunidades. Nesse sentido, fez-se notar a importante função dos ouvidores como intermediários entre a Coroa portuguesa e seus súditos. A obrigação de reeditar as recomendações referentes à conservação de estradas, caminhos e pontes ou à presença de animais no espaço urbano, demonstram a existência de conflitos entre disposições régias e práticas locais. Em torno de uma política de centralização do poder António Manuel Hespanha aborda de uma forma bem interessante no livro As vésperas do Leviathan que o poder não poderia ser exercido no vazio ou mesmo por intermédio da magia, ou seja, “a ação política requer a disponibilidade de meios. Desde logo, de meios financeiros. Mas também de meios humanos. Em termos tais que o impacto de um projeto de poder se pode medir no plano da disponibilidade de estruturas humanas que o levem a cabo”.31 Desta forma, a Coroa portuguesa criou e desenvolveu um estrutura jurídico-administrativa que levasse a cabo a política da monarquia. Desde os altos magistrados dos tribunais de apelação até o leigo juiz ordinário, todos faziam parte desta estrutura para a administração da lei; cada um dos oficiais inscritos na estrutura detinha prerrogativas e atribuições, que estavam consignadas nas Ordenações e nos diversos e múltiplos regimentos e instruções. Apesar da diversidade de cargos e da hierarquia existente, entendemos que frente o imaginário político da época, os oficiais desempenhavam suas funções tendo em vista a perspectiva de atender a vontade do soberano. Assim, para a monarquia portuguesa, o controle e a administração da justiça foram imprescindíveis, tanto foi que a justiça, “desde pelo menos o século XIII, [foi] o mais importante atributo da realeza”32. HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político – Portugal, século XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 299 e p. 160. 32 WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial: o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 28. 31 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 82 Nesse sentido, entende-se que a competência jurídica da Coroa, ao ser aceita como legítima, acarreta na renúncia, por parte dos indivíduos, de eles próprios gerirem os seus conflitos, deixando a cargo de oficiais nomeados pela Coroa (o soberano) esta função de “gestão”. No Antigo Regime em Portugal, o oficialato régio especializado e a estrutura jurídico-administrativa foram, respectivamente, agente e espaço utilizado pelo soberano para a propagação do seu poder político para as demais regiões do Império ultramarino. Além disso, essa estrutura era o espaço da “materialização” desse poder político régio, uma vez que as diversas instituições organizadas hierarquicamente pela Coroa portuguesa exerciam o poder que era “emanado” do rei. Nesta lógica, é congruente afirmar que o poder régio estava alicerçado no monopólio que o soberano adquiriu sobre o exercício da justiça e sobre os produtores do direito (os juristas). A concepção dos juristas sobre o direito possibilitou não apenas a codificação de um sistema de normas reguladoras, mas também a afirmação e a legitimação do poder do monarca e da estrutura que se constituiu ao seu redor, procurando refletir um poder hegemônico e promover a relação entre o soberano e a ordem social vigente. De fato, antes de a organizar, o direito imagina a sociedade. Cria modelos mentais do homem e das coisas, dos vínculos sociais, das relações políticas e jurídicas. E, depois, paulatinamente, dá corpo institucional a este imaginário, criando também, para isso, os instrumentos conceituais adequados. Entidades como «pessoas» e «coisas», «homem» e «mulher», «contrato», «Estado», «soberania», etc., não existiram antes de os juristas os terem imaginado, definido conceitualmente e traçado a suas consequências dogmáticas. Neste sentido, o direito cria a própria realidade com que opera.33 A Coroa lusitana, por exercer o domínio sobre a competência jurídica, construiu e reforçou sua legitimação por meio do próprio campo jurídico. Pode-se dizer, portanto, que o exercício da justiça forneceu os meios necessários à formação do próprio Estado português. Nesta linha, observa-se na justiça não “apenas uma das atividades do poder. Ela era – HESPANHA, Antonio Manuel. Cultura Jurídica Europeia. Síntese de um milénio. 3ª Ed. MiraSintra: Europa-América, 2003. p. 72. 33 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 83 enquanto se manteve pura e sua imagem tradicional – a primeira, se não a única, atividade do poder”.34 A consolidação do poder absoluto das monarquias da Europa ocidental teve o controle da justiça pelo soberano como aspecto fundamental. A criação do funcionalismo mais ou menos especializado nas diferentes funções judiciais e a existência de uma legislação que, gradativamente, aumentava as atribuições reais em detrimento dos costumes e de outros direitos locais foram fatores que contribuíram para definir uma esfera de atuação da monarquia.35 Em Portugal, o processo de centralização monárquica, deflagrado no século XIII, aliou-se à passagem de um direito consuetudinário para o escrito. Deste movimento, é representativa a ação em torno da consolidação de uma legislação unificada, o que vai ser realizado, como vimos, por intermédio das sucessivas coleções de leis conhecidas como Ordenações. Subsidiariamente à consolidação do direito escrito em Portugal, foram gradualmente criadas instituições e cargos que tinham por finalidade zelar pela observância dessa nova base de leis. Portanto, ao estabelecer uma estrutura jurídico-administrativa, o soberano, fundamentado nas Ordenações do reino, buscou promover a centralização do poder político, administrando e, consequentemente, controlando os espaços políticos. Nesse sentido, o exercício do poder régio estava alicerçado na capacidade da Coroa de fazer justiça. Ainda, no intuito centralizador, salientamos que a Coroa portuguesa necessitou de indivíduos para consolidar seu poder nos domínios ultramarinos. Para tanto, para desempenhar a atividade jurídica, utilizou-se de oficiais régios e de uma estrutura hierarquicamente construída. No caso da América portuguesa, gradualmente, foi estabelecido um aparato jurídico-administrativo voltado às tendências centralizadoras da Coroa lusa. À medida que esse aparato vai sendo constituído pode-se perceber que diversas práticas autônomas e não-oficiais, respaldadas pelo direito consuetudinário, coexistiam com a ordem jurídica estatal. Ou seja, o HESPANHA, A. M. Justiça e administração entre o Antigo Regime e a Revolução. Em: _____ Justiça e litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 385. 35 WEHLING, A. e WEHLING, M. J. Op. cit. p. 29. 34 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 84 poder político régio enfrentou nas comunidades coloniais uma força concorrente, que importava subjugá-la ou, ao menos, cooptá-la. Entretanto, “a monarquia absoluta possuía limitações que contrabalançavam o poder do rei e de sua burocracia – a sobrevivência de esferas tradicionais de poder, como os senhorios leigos e eclesiásticos, e os privilégios urbanos e corporativos”. 36 Assim, além dos poderes locais e outras formas autônomas de poder, a capacidade dos oficiais régios de se apropriarem dos poderes que recebiam mediante concessão régia constituía um movimento centrífugo frente ao esforço centralizador promovido pela monarquia. Esse movimento perpassa o que António Manuel Hespanha veio a chamar de “direito pluralista”, que seria a falta de um direito geral e homogêneo da Coroa lusa, o que possibilitava incoerências, ou melhor, especificidades no interior do sistema jurídico do Império ultramarino português.37 Hespanha também ressalta a “ideia de que na sociedade há, ou deve haver, apenas um centro político teve um parto longo e difícil no pensamento político ocidental”.38 A partir desse entendimento, Hespanha colocou em xeque o fortalecimento do poder régio devido à ação dos oficiais da Coroa portuguesa, considerando que, embora a ação desses agentes promovesse um enfraquecimento dos poderes locais, não ocorria, concomitantemente, o fortalecimento do poder régio, visto que tais agentes, no sistema corporativo de poder, detinham grande autonomia. Se a centralidade não pode ser real sem um quadro legal geral, tampouco pode ser efetiva sem uma hierarquia estrita dos oficiais, por meio do qual o poder real possa chegar à periferia. Daí que a eficiência da centralização política derive, por um lado, da existência de laços de hierarquia funcional entre os vários níveis do aparelho administrativo e, por outro, negativamente, do âmbito dos poderes dos oficiais periféricos ou da sua capacidade para anular, distorcer ou fazer seus os poderes que recebiam de cima.39 WEHLING, A. e WEHLING, M. J. Op. cit. p. 29. Ver: HESPANHA, Antonio Manuel. Op. cit. p. 118. 38 HESPANHA, A. M. Guiando a mão invisível. Direito, Estado e Lei no Liberalismo Monárquico Português. Coimbra: Livraria Almedina, 2004. p. 28. 39 HESPANHA, A. M. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. Em: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. (org.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio 36 37 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 85 Em um registro um pouco diferente do de António Manuel Hespanha, Arno Wehling também considerou a existência de uma força centrífuga frente ao poder político régio no Império ultramarino português. Para além da estrutura formal da justiça, seu traço invariável foi de um esforço centralizador por parte da autoridade real, caracterizado pela adoção de uma legislação superveniente como fonte do direito, aplicada pela magistratura e por um esforço de ministério público. A este esforço centrípeto na área da justiça, semelhante a outros ocorridos nas áreas fazendária, militar e eclesiástica, corresponderam reações centrífugas, algumas alicerçadas na tradição jurídica, outras em fatores novos, que dela se utilizaram ou que se valeram de instrumentos até então inexistentes. Esse esforço centralizador, entretanto, não deve ser superestimado, pois o equilíbrio alcançado pelas monarquias nos séculos XVI e XVII somente seria rompido a favor do centro político com o chamado „despotismo esclarecido‟, no qual efetivamente existe todo um esforço administrativo e legislativo a favor da centralização.40 Essas considerações podem levar a uma falsa impressão de “ausência” da monarquia, principalmente para períodos anteriores ao reinado de Dom José I. Contudo, por mais que pudessem existir indivíduos que fizessem seus os poderes concedidos pela Coroa lusa, colocando em dúvida a eficácia da administração metropolitana, deve-se observar que as instituições que estruturaram a ordem jurídico-administrativa e seus oficiais régios estavam orientadas por uma concepção corporativa de sociedade, na qual o poder “era, por natureza, repartido”. [...] numa sociedade bem governada, esta partilha natural deveria traduzir-se na autonomia políticojurídica dos corpos sociais, embora esta autonomia não devesse destruir a sua articulação natural – entre a cabeça e a mão deve existir o ombro e o braço, entre o soberano e os oficiais executivos devem existir de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 174. Ver, também: HESPANHA, A. M. A Arqueologia do Poder. Em: _____. As vésperas do Leviathan... p. 174. 40 WEHLING, A. e WEHLING, M. J. Op. cit. p. 37. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 86 instâncias intermédias. A função da cabeça não é, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social, mas a de, por um lado, representar externamente a unidade do corpo e, por outro, manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada um aquilo que lhe é próprio, garantindo a cada qual o seu estatuto («foro», «direito», «privilégio»); numa palavra realizando justiça.41 Para a realização da justiça e da harmonia entre os membros do corpo social, a Coroa contava com alguns artifícios. Tais mecanismos procuravam ditar a política da monarquia, bem como manter sob controle os oficiais régios que, para além de suas funções regulamentadas pelas Ordenações, eram gerenciados, principalmente, por meio de regimentos e das residências. Nesse sentido, a principal estratégia da administração central para o controle e gestão da colônia americana foi promover uma política para a inserção de diversos recursos que assegurassem suas prerrogativas. Assim, foram criadas e estruturadas instituições (câmaras, ouvidorias, tribunais etc) e deslocados oficiais régios (juízes, desembargadores, ouvidores, etc) para América portuguesa no intuito de propagar a justiça e as leis régias, sendo evidente o grande fluxo de agentes régios deslocados para o ultramar.42 A coroa procurou controlar política e administrativamente a periferia, especialmente nos setores da justiça e fazenda, através do oficialato XAVIER, A. B. e HESPANHA, António Manuel. A representação da Sociedade e do Poder. In: HESPANHA, A. M. (coord.). História de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa. 1998. p. 114-115. Ainda, “[...] a realização da justiça – finalidade que os juristas e politólogos tardomedievais e primomodernos consideram como o primeiro ou até o único fim do poder político – se acaba por confundir com a manutenção da ordem social e política objetivamente estabelecida”. 42 Ver: CUNHA, Mafalda Soares da. Governo e governantes do Império português do Atlântico (século XVII). Em: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. (orgs.). Modos de Governar: idéias e práticas políticas no império português – Séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. pp. 69-92. GOUVÊA, Maria de Fátima. Conexões imperiais: oficiais régios no Brasil e Angola (c. 1680-1730). Em: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. (orgs.). Modos de Governar: idéias e práticas políticas no império português – Séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. pp. 179-197.; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Governadores e capitães-mores do Império Atlântico português no século XVIII. Em: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. (Orgs.). Modos de governar: idéias e práticas políticas no império português – Séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. pp. 93-115. SUBTIL, J. Op. cit., 2002. 41 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 87 régio. As unidades básicas desta estrutura periférica eram os concelhos [câmaras municipais] e as comarcas. Os funcionários, os juízes de fora, corregedores e provedores. Por estes magistrados, que comunicavam burocraticamente com os concelhos e tribunais da administração central, a coroa fomentava a promoção e difusão da justiça oficial e do direito régio.43 Logo, em relação à América portuguesa, podemos entender que, já com a instalação do Governo-geral, em 1548, ocorreu um esforço em promover o centralismo administrativo. Tal movimento, entretanto, é percebido com maior intensidade a partir da primeira metade do século XVIII. É certo, porém, que a Coroa lusitana empenhou-se, antes mesmo do chamado despotismo esclarecido, por um “esforço administrativo e legislativo a favor da centralização”.44 Em estudo recente, Laura de Mello e Souza fez uma crítica incisiva às considerações de António Manuel Hespanha, principalmente à supervalorização dada por esse autor aos textos jurídicos, ao seu apreço pelo esquema polisinodal e à sua argumentação sobre as distâncias para a formação de “nichos de poder”; tais pressupostos “funcionam muito bem no estudo do seiscentos português, mas deixam a desejar quando aplicados ao contexto do Império setecentista em geral, e das terras brasílicas em específico”.45 É indiscutível a presença e importância das estruturas da Coroa portuguesa tanto na colonização como na administração da América portuguesa. Seus esforços em gerir a colônia americana, como apontamos acima, data da instalação do Governo-geral. Além disso, a monarquia promoveu a inserção de diversas instituições (Tribunal da Relação da Bahia, Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, ouvidorias, etc) para o controle da colônia. Neste prisma, por meio das políticas ditadas pela administração central, podemos observar uma estrutura articulada na qual SUBTIL, José. Governo e administração. In: HESPANHA, Antonio Manuel (coord.). História de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa. 1998. p. 163. 44 Ver: PEGORARO, J. W. Ouvidores régios e centralização jurídico-administrativa na América Portuguesa: a comarca de Paranaguá (1723-1812). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007. 45 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 57. 43 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 88 as prerrogativas da Coroa não estavam só presentes, mas também eram respeitadas. Nesta perspectiva, para o território abrangido pela ouvidoria de Paranaguá, tal política em favor do direito régio iniciou-se efetivamente em 1720, quando os municípios de Laguna, São Francisco, Curitiba e Paranaguá receberam a visita do ouvidor de São Paulo, Rafael Pires Pardinho. Essa intenção centralizadora foi afirmada cinco anos depois, quando Antonio Álvares Lanhas Peixoto tomou posse como o primeiro ouvidor da comarca de Paranaguá com a obrigação de aplicar e administrar a justiça régia e superintender a boa administração das “repúblicas” daquele território. Como mencionado, o ouvidor Lanhas Peixoto ficou pouco tempo à frente da comarca de Paranaguá, uma vez que foi para as minas de Cuiabá. No entanto, durante sua estada solicitou à administração central os livros de registros da comarca e demais papéis no intuito estabelecer a ouvidoria.46 Além do mais, fez algumas diligências: durante os meses de fevereiro e março de 1726, esteve na vila de São Francisco, onde promoveu os autos de residência de suspensão e devassa do capitão-mor daquela localidade, Agostinho Alves Marinho. 47 O ofício de capitão-mor era desempenhado por um indivíduo, em geral, pertencente à comunidade local; conforme o Alvará de 18 de outubro de 1709, o mecanismo de provimento do posto de capitão-mor iniciava com “a indicação de três nomes escolhidos pelos oficiais da Câmara, juntamente com o ouvidor ou o provedor da comarca. Estes informariam ao general ou cabo que governa as armas da província, para proposta ao rei, através do Conselho de Guerra, do nome julgado mais conveniente”. 48 Como Lanhas Peixoto estava apenas há dois meses no cargo de ouvidor da comarca de Paranaguá, logicamente não participou da Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). São Paulo, caixa 1, doc. 57. Certidão passada pelo escrivão da ouvidoria geral da comarca de Paranaguá, Luís Henriques, a respeito do fato do ouvidor daquela recém-criada comarca, Antônio Álvares Lanhas Peixoto ter enviado carta solicitando os papéis concernentes à sua jurisdição à comarca de São Paulo e ainda não ter obtido resposta. Paranaguá, 29 de abril de 1726. Projeto Resgate, documentos Avulsos. ______. São Paulo, caixa 1, doc. 58. Carta do ouvidor geral da comarca de Paranaguá, Antônio Álvares Lanhas Peixoto, ao rei Dom João V. Paranaguá, 30 de abril de 1726. Projeto Resgate, documentos Avulsos. 47 AHU. São Paulo, caixa 1, doc. 56. Carta do ouvidor geral da comarca de Paranaguá, Antônio Álvares Lenhas Peixoto, ao rei Dom João V. Rio São Francisco, 10 de março de 1726. Projeto Resgate, documentos Avulsos. 48 SALGADO, Graça (Org.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 312. 46 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 89 elaboração da lista tríplice; Agostinho Alves Marinho já ocupava o cargo havia três anos. Porém, como fazia parte das competências do ouvidor fiscalizar e promover as residências de outros oficiais, Lanhas Peixoto partiu para a vila de São Francisco neste intuito. Doutor Ouvidor foy Mandado vir a sua Prezença ao Capytam-Mor Sindicado Agostinho Alz' Marinho Sendo aly Prezente perante a nobreza e povo desta Villa por elle Doutor [ileg. 2 pal.] Leis de Reg. elle o Sindicara e perguntado SeSenta testemunhas cujos didos Se achão nestes autos de leis Rezultara Ser elle Capitam Mor [ileg. 1 pal.] de procedimento na occupação do dito posto e em Nada faltara a Sua obrigação com a habilidade [ileg. 1 pal.] para os subditos e Com muyta Limpeza de mãos [...].49 A fiscalização dos demais oficiais da comarca e suas câmaras municipais colocavam o ouvidor em uma posição de destaque, já que se concentrava nele a responsabilidade de garantir a “boa administração da justiça”. O ouvidor possuía poderes até para nomear oficiais para as câmaras. Frente a uma necessidade específica, o ouvidor régio possuía poderes para intervir nos ofícios municipais, mas sempre observando as normas do direito. O D.or Manoel Tavares de Siqueira do Dezembg.o de Sua Mag.de SindiCante, e ouvidor geral Corregedor, [...] Por Se achar hâ tempos Vaga na V. a de Iguape a Serventia dos Officioz de Tabalião do publico Judicial e nottas Camera, Almotaçaria, e Orphãoz por ficar criminozo em Correição Francisco Xavier Pedrozo que o Servia e por esta Cauza haver falta na boa administração da justiSsa achandoSe em total inacção as cauzas e Requerimenttoz das partes e mais deLigencias da justiSa dezejando e devendo pella obrigação que me encube occorrer a prejuizo tao consideravel e que neSeSita de Remedio prezentace; e ser enformado que na peçoa de Theodozio Roiz Comcorre os neSeSarioz Requezittoz para Servir os dittoz officioz: o nomeo na Serventia delles por tempo de tres mezes e no entanto ReCorrera ao ILustriSimo e AHU. São Paulo, caixa 1, doc. 56. Carta do ouvidor geral da comarca de Paranaguá, Antônio Álvares Lenhas Peixoto, ao rei Dom João V. Rio São Francisco, 10 de março de 1726. Projeto Resgate, documentos Avulsos. 49 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 90 Ex.o Sr. general a quem taobem darej parte: [...] mando aos Juizes ordin.os e mais Justicas da Villa de Iguape deixem Servir ao ditto Theodozio Roiz e lhe dem posce dando elle primejro fiança aos novos direitoz que dever e terça parte do Rendimento na forma das ordens de Sua Mag.de e havera juramento de que tudo Se farao os termoz neSseSarioz nas coztas deste e no Livro da chanSelaria e Se reziztara adonde he stillo dado nesta Villa de Paranagoa Sem este dado de meo Signal [...] M.el Tavares de Seqr.a 50 As intervenções nas nomeações para cargos das câmaras municipais abrem brecha para uma reflexão a respeito das “tensões” entre os ouvidores e as elites locais. Tais tensões estão presentes, por exemplo, nos provimentos de 1737 que Manoel dos Santos Lobato deixou para a vila de Curitiba. Achou elle Doutor Ouvidor geral que os Juizes e mais officiaes da Camera não davão cabal cumprimento aos Provimentos assim os que tinham deixado na ultima correição como em os mais anteçedentes pellos ministros seus antecessores; pello que Proveo que daqui em diante se lhe desse em tudo comprimento penna de pagarem cada hum dos que tiveçem servido em Camara athe a primeira correição que se fiser dose mil reis que ho por aplicado para as despezas da dita Camara em a qual cominação entrarã tão bem o escrivão da Camara pella prozunção delles não ler os ditos Provimentos pois se faz crivel que se os lesse os havião de observar.51 A partir do momento que a ouvidoria de Paranaguá foi inserida no espaço colonial, ela passou a dividir as ações jurídico-administrativas com as instituições subordinadas a ela, no caso as câmaras municipais. Assim, passa a dividir o próprio poder político na localidade. Essa divisão política dos espaços coloniais formava um instrumento de poder, um aparelho político, que serve tanto para a organização e perpetuação do poder de certos grupos sociais como para a Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). Caixa: 73, Pasta: 01, Documento: 76-1-18. Carta do ouvidor Manuel Tavares de Siqueira para a ocupação da vaga de tabelião na Vila de Iguape. Paranaguá de 15 de novembro de 1744. 51 Autto de provimentos de Correição nesta Villa [de Curitiba]. BAMC. vol. VIII, 1924, p. 63. 50 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 91 expropriação de outros grupos. Com efeito, cada grupo social detém, de acordo com as características da sua organização, a capacidade de gerir certos aparelhos, enquanto que outros aparelhos escapam ao seu poder de direção.52 Nesta linha, reserva-se a determinados grupos a administração da municipalidade, a chamada elite local, composta por indivíduos eleitos para os principais cargos das câmaras municipais (juiz ordinário, vereadores e procurador) e pelos indivíduos que elegiam os que assumiam tais cargos. Esses indivíduos eram os “homens bons” da localidade. [...] homem bom era aquele que reunia as condições para pertencer a um certo estrato social, distinto o bastante para autorizá-lo a manifestar sua opinião e a exercer determinados cargos. Na América Portuguesa, associava-se em particular àqueles que podiam participar da governança municipal, elegendo e sendo eleitos para os cargos públicos que estavam reunindos nas câmaras, principal instância de representação local da monarquia.53 O processo eleitoral para os ofícios municipais agia, assim, no sentido de formar a elite camarária local.54 Tal elite era um grupo de indivíduos que possuía o poder político no interior da municipalidade, administrando o conjunto de empregos que se encontravam nas câmaras municipais, angariando, por isso, não só prestígio na comunidade, mas também espaço de ação e controle sobre demais áreas, como a econômica e a possibilidade de legislar localmente. Isto quer dizer que o grupo no domínio do poder local, ao ser eleito para cargos públicos, dispunha de mecanismos para levar a cabo certos interesses, sendo as posturas municipais um desses artifícios. As posturas municipais possuíam força de lei e regiam o convívio da comunidade, visando a manutenção do “bem-viver” de todos os seus HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político – Portugal, século XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 87. 53 NEVES, G. P. das. Mesa da Consciência e Ordens. Em: VAINFAS, R. (org.). VAINFAS, R. Dicionário do Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 285. – itálicos nos originais. 54 Sobre o processo eleitoral na vila colonial ver: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida; SANTOS, Rosângela Maria F. dos (Orgs.). Eleições da Câmara Municipal de Curitiba (1748 a 1827). Monumenta, Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2003, 256 p. 52 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 92 membros. Nesse sentido, são “excelentes indicadores da vida cotidiana” 55 das vilas coloniais. Esses códigos locais, em alguns momentos, contrapunham-se às leis gerais do Estado português. Entretanto, com as correições os ouvidores buscavam alinhar as disposições locais às régias. As posturas, na mesma medida em que acompanhavam as mudanças sociais, políticas e econômicas dos municípios, também podiam colocar em xeque a possibilidade de ação da legislação régia sobre as localidades, já que poderiam conter os mais variados tópicos, sendo alteradas ao sabor da necessidade específica de seu tempo. Magnus Pereira observa que As posturas municipais eram um dos principais instrumentos da ação institucional dos vereadores. Elas já eram previstas nas Ordenações do Reino, e continuaram presentes na Constituição Imperial e nas constituições republicanas. Todavia, no Paraná, as câmaras municipais do período colonial pouco uso fizeram daquele instrumento. As câmaras periodicamente expediam algumas ordens, sem contudo demonstrar preocupação em consolidar códigos municipais. Em lugar destes, tanto em Curitiba quanto em Paranaguá, vigoravam, de fato, os provimentos do ouvidor Pardinho editados na década de 1720. Tais provimentos são a melhor demonstração do esforço do estado português em se fazer valer na região.56 Assim, por intermédio dos provimentos, os ouvidores régios interferiam no funcionamento das municipalidades, sendo que as posturas municipais deveriam submeter-se às determinações desses oficiais régios. Além das correições e dos provimentos, outro instrumento de fiscalização utilizado pelos ouvidores régios de Paranaguá foram as residências, que estavam voltadas a adequar o desempenho e o exercício de poder político de determinados oficiais, régios ou não. Essas ações dos ouvidores possuíam um importante valor simbólico para a adaptação das comunidades coloniais às leis do reino. No que diz respeito às residências, quando favoráveis, como no caso do capitão-mor da vila de São Francisco, enfocado acima, as ações daquele oficial local passavam a ser vistas como modelo de comportamento para o exercício de ofícios no interior da comunidade. Por outro lado, quando a residência concluía que o oficial não PEREIRA, Magnus Roberto de M. Semeando iras rumo ao progresso: ordenamento jurídico e econômico da sociedade paranaense, 1829-1889. Curitiba: Ed. da UFPR, 1996. p. 14. 56 Ibid., p. 13. 55 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 93 havia cumprido suas obrigações como se esperava que o fizesse, além das penalidades impostas ao indivíduo, procurava-se ajustar as ações dos que o sucederiam. Deste modo, tanto de um jeito ou de outro, ao fiscalizar e corrigir as ações dos oficiais locais, o ouvidor agia em favor das normas da Coroa portuguesa, procurando normatizar as práticas locais à legislação geral. Devemos, ainda, salientar aqui que estamos diante do mesmo movimento “pendular” identificado por Laura de Mello e Souza para a administração de Minas Gerais. Ou seja, ora as características da administração pendiam para uma sujeição à monarquia, ora pendiam para a autonomia local.57 Ainda em relação às residências que os ouvidores faziam acerca do desempenho de oficiais locais, é necessário retermos que os “homens-bons” da localidade detinham um peso considerável quanto a definir se determinado sujeito seria avaliado positiva ou negativamente, uma vez que eles e seus dependentes eram inquiridos pelo ouvidor para informarem sobre as ações do oficial do qual se estava tirando residência. Contudo, quem definia se o oficial sindicado havia exercido seus deveres como esperado era o ouvidor régio, que avaliava o exercício do oficial conforme as obrigações impostas pelo regimento do cargo e pelas Ordenações. Assim, as residências tiradas dos oficiais não dependiam estritamente da opinião da população local, embora esta possuísse artifícios para retirar do cargo um oficial que se excedesse em suas ações, ou contrariasse abertamente os interesses dos grupos dominantes locais. Tal situação pode ser observada, por exemplo, nos casos dos ouvidores Jerônimo Ribeiro de Magalhães e João Batista dos Guimarães Peixoto, sendo os dois acusados de abusos no exercício de suas funções.58 Nesta linha, as leis e a justiça da monarquia lusa ao serem impostas/aceitas pelos indivíduos que compunham aquela sociedade formavam um aparato que alicerçava e promovia a própria sustentação do monarca, legitimando-o como uma força dominante sobre as demais forças concorrentes dos espaços coloniais. Desta forma, gradualmente, a justiça, a fiscalização e sem esquecer da coerção estatal, tornaram-se cada vez mais presentes, sendo assim progressivamente eram aceitas/impostas como SOUZA, L. de M. Op. cit., 2004. LEÃO, Ermelino de. Dicionário Histórico e Geográfico do Paraná. Curitiba: Empresa Ghraphica Paranaense, 1994. vol. I, p.103 e vol. III, p. 956-957. AESP. Caixa: 76, Pasta: 02, Documento: 762-9. 57 58 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 94 legítimas, ocasionando aos poucos o abandono por parte dos coloniais em administrarem seus conflitos. Referências documentais A ata de posse do ouvidor Rafael Pires Pardinho junto ao Senado da Câmara Municipal de São Paulo, data de 25 de setembro de 1717. Em: TAUNAY, Afonso E. História da villa de São Paulo no século XVIII. 1711-1720. Anais do Museu Paulista, Tomo 5, 1931, p. 466. Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). Caixa: 73, Pasta: 01, Documento: 76-1-18. Carta do ouvidor Manuel Tavares de Siqueira para a ocupação da vaga de tabelião na Vila de Iguape. Paranaguá de 15 de novembro de 1744. Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). Caixa: 76, Pasta: 02, Documento: 76-2-9. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). São Paulo, caixa 1, doc. 56. Carta do ouvidor geral da comarca de Paranaguá, Antônio Álvares Lenhas Peixoto, ao rei Dom João V. Rio São Francisco, 10 de março de 1726. Projeto Resgate, documentos Avulsos. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). São Paulo, caixa 1, doc. 56. Carta do ouvidor geral da comarca de Paranaguá, Antônio Álvares Lenhas Peixoto, ao rei Dom João V. Rio São Francisco, 10 de março de 1726. Projeto Resgate, documentos Avulsos. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). São Paulo, caixa 1, doc. 57. Certidão passada pelo escrivão da ouvidoria geral da comarca de Paranaguá, Luís Henriques, a respeito do fato do ouvidor daquela recém-criada comarca, Antônio Álvares Lanhas Peixoto ter enviado carta solicitando os papéis concernentes à sua jurisdição à comarca de São Paulo e ainda não ter obtido resposta. Paranaguá, 29 de abril de 1726. Projeto Resgate, documentos Avulsos. ______. São Paulo, caixa 1, doc. 58. Carta do ouvidor geral da comarca de Paranaguá, Antônio Álvares Lanhas Peixoto, ao rei Dom João V. Paranaguá, 30 de abril de 1726. Projeto Resgate, documentos Avulsos. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Leitura de Bacharéis – Rafael Pires Pardinho. Ano: 1700. Maço: 02. Número: 27. ANTT. Registro Geral de Mercês. Cota: Dom João V, Livro 8, folha 501. Auto de provimento de Correição que fez o Doutor Manuel dos Santos Lobato. [1735]. BAMC. vol. VIII, 1924. Auto de provimento de Correição que mandou fazer o Doutor Ouvidor Geral e corregedor desta comarca Antonio Barbosa de Mattos Coitinho neste anno de 1776. BAMC. vol. VIII, 1924. Auto de Provimento que mandou fazer o Doutor Francisco Leandro Toledo Rondon – ouvidor geral e corregedor da comarca de Paranaguá em correição nesta vila de Curitiba. [1786]. BAMC. vol. VIII, 1924. Autto de provimento que amndou fazer o Doutor Jerônimo Ribeiro de Magalhães Ouvidor geral Provedor e Corregedor desta Comarca como abaixo se declara em Câmera desta dita villa. [1756]. BAMC. vol. VIII, 1924. Capítulos de Correição que faz o Capitão Manuel de Sampaio, juiz ordinário e órfãos da Vila de Paranaguá e nela e sua Comarca Ouvidor Geral pela Lei. Boletim do Arquivo Municipal de Curitiba (BAMC). vol. VIII, 1924. Carta do ouvidor-geral de São Paulo Rafael Pires Pardinho ao Rei D. João V, 30 de agosto de 1721. Em: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Para o Bom Regime da República: ouvidores e câmaras municipais no Brasil colonial. Monumenta, inverno 2000, Curitiba: Aos Quatro Ventos, v. 3, n. 10, 2001. Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo. v. 73. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 95 Regimto. Da Relação do Estado do Brazil. Em: Revista do Arquivo Municipal de São Paulo (RAMSP). Ano I, vol. X, 1935, pp.89-102. p. 89. Revista do Arquivo Histórico de São Paulo. Ano 1 – Vol. IX, São Paulo, 1935. Três Lado do Regimto. Dos Ouvidores Gerais do Rio de Janeiro &a. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo. vol. VIII, 1935, pp. 55-60. Treslado dos capítulos de correição desta villa de Nossa Senhora do Rosário de Pernagua este anno de 1721. Em: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Para o Bom Regime da República: ouvidores e câmaras municipais no Brasil colonial. Monumenta, inverno 2000, Curitiba: Aos Quatro Ventos, v. 3, n. 10, 2001. Treslado dos provimentos de correição que nesta villa fes, e deixou para bom Regimen da Republica e bem comum d‟ella, o D.zor Raphael Pires Pardinho. Este anno de 1721. [vila de Curitiba] Em: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Para o Bom Regime da República: ouvidores e câmaras municipais no Brasil colonial. Monumenta, inverno 2000, Curitiba: Aos Quatro Ventos, v. 3, n. 10, 2001. Referências Bibliográficas BORGES, Joacir Navarro. Das justiças e dos litígios: a ação judiciária da Câmara de Curitiba no século XVIII (1731-1752). Curitiba, 2009. Tese (Doutorado em História). 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Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 96 PEGORARO, J. W. Ouvidores régios e centralização jurídico-administrativa na América Portuguesa: a comarca de Paranaguá (1723-1812). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007. PEREIRA, Magnus Roberto de M. Semeando iras rumo ao progresso: ordenamento jurídico e econômico da sociedade paranaense, 1829-1889. Curitiba: Ed. da UFPR, 1996. SALGADO, Graça (Org.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. SANTOS, Antonio Cesar de Almeida; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Para o Bom Regime da República: ouvidores e câmaras municipais no Brasil colonial. Monumenta, inverno 2000, Curitiba: Aos Quatro Ventos, v. 3, n. 10, 2001. SANTOS, Antonio Cesar de Almeida; SANTOS, Rosângela Maria F. dos (Orgs.). Eleições da Câmara Municipal de Curitiba (1748 a 1827). Monumenta, Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2003, 256 p. SOUZA, Laura de Mello e. 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REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 97 As câmaras em Minas Gerais no século XVIII Entre enquadramentos administrativos e desventuras tributárias Pablo Menezes e Oliveira 1 1 Resumo: O artigo tem por objetivo analisar as câmaras de Minas Gerais, observando o processo de constituição de municipalidades, e os interesses que estiveram em torno deste ato. As municipalidades, através de seus oficiais, deram ordem às necessidades cotidianas da administração, procurando manter a ordem e salubridade dos locais em que eram instaladas. No texto que segue, pretendemos mostrar outra face das câmaras: como elas atuaram junto ao Rei para que este pudesse atender suas demandas relacionadas a questões tributárias. Tal proposta de trabalho vai ser balizada pela reflexão sobre o processo de instalação de uma administração régia no território das Minas, e como a análise das instituições municipais são importantes para revisitar o tema. Palavras-chave: administração – poder – prática política Abstract: The article aims to analyze the chambers of Minas Gerais, watching the process of constitution of municipalities, and the interests that have been around this act. The municipalities, through its officers, gave the order to the needs of everyday administration, seeking to maintain the order and cleanliness of the places in which they were installed. In the following text, we intend to show the other side of the cameras: how they acted with the King so that it could meet their demands related to tax matters. The proposed work will be buoyed by the reflection on the process of installing a royal administration in the territory of Mines, and how the analysis of municipal institutions is important to revisit the topic. Key-words: government – power – political practice 1 Pesquisador do grupo JALS – UFOP. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 98 A historiografia referente a Minas Gerais do período colonial fez dos estudos da administração um de seus mais diletos objetos de análise. Em quase todos os trabalhos a justificativa para tal escolha estava na forma como ocorreu a instalação de povos de origem europeia e africana no coração do então chamado Sertão dos Cataguás em fins do século XVII e ao longo do século seguinte, que se traduziu em uma estrutura administrativa considerada sem precedentes na história dos domínios além-mar, motivada pela natureza mineral de sua economia. A busca por metais preciosos no interior da América, intensificada no decurso do século XVII, quando o rei prometeu honras e cargos aos descobridores de riquezas minerais, mostrou que havia ouro nas terras devassadas pelos paulistas, que rasgaram o território americano em suas expedições. Com a confirmação da existência de ouro nas Minas a discussão sobre a melhor forma de administrar foi trazida à ordem do dia, e se estendeu por muitos anos. Inicialmente a coroa acabou por cumprir aquilo que havia ajustado com os possíveis descobridores: concedeu cargos na administração dos distritos recém-descobertos aos paulistas, tidos como seus descobridores. Assim, estes receberam os cargos de guarda-mor e escrivão, ficando responsáveis por repartir as lavras minerais e recolher os tributos que a atividade resultasse. Para além, as expectativas em relação aos distritos minerais não era clara. Não se sabia o tamanho das lavras, sua exata localização, e quanto elas podiam resultar, o que acabou por reforçar o intento do rei de entregar a administração dos distritos minerais aos particulares. Havia ali, e pelos anos seguintes, um tatear inseguro sobre o destino dos distritos minerais, e a melhor forma de administrá-los. Entretanto, à medida que aquele mapa liso e uniforme foi ganhando rugosidades e contornos mais precisos, a Coroa foi formatando o modo pelo qual seriam administrados os distritos minerais. Sob esta perspectiva, vamos observar que a Coroa assentou seus pilares ao mesmo tempo na acumulação de “experimentações” administrativas, como também em sua tradição política. Neste sentido, a administração do território das Minas Gerais derivou de uma experiência governativa, na qual se fundiram ao mesmo tempo tradições de administração governativa portuguesa, mesclando-se o pensamento político português, com a realidade e especificidade das localidades que compunham os domínios portugueses. Práticas de administração que se alteravam à medida que seus domínios iam se alargando, tocando regiões que em muitos casos se afastavam das realidades europeias. Neste sentido, Minas Gerais assimilou uma nova abordagem à administração do território, mas sem que isso tivesse levado a REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 99 pique as práticas políticas então vigentes em Portugal e seus domínios. Portanto, se concordamos que Minas significou uma nova forma de pensar a administração, não significou o fim de uma prática política que a antecedeu. Não creio, assim, que tenha ocorrido um processo claramente marcado pela centralização política, que em alguma altura teria cerceado as ações dos poderes periféricos, como as câmaras, por exemplo. 2 Minas Gerais não tardou chamar a atenção do Rei. Com o avançar do fim do seiscentos, e o alvorecer do setecentos, algumas questões atinentes aos recém-descobertos distritos minerais precisavam ser solucionadas. Descobridores, governadores da Repartição Sul, funcionários régios de toda sorte notaram que poderiam se beneficiar enormemente com os achados minerais. Os descobridores poderiam se habilitar à conquista de honras e mercês junto ao rei. Para os governantes poderia significar a formação de redes clientelares, a partir de concessão de cargos e postos. Estes interesses se corporificaram nas escaramuças entre o governadorgeral e o governador da Repartição Sul, para que Minas ficasse sob a jurisdição de um deles. Afinal, venceu Artur de Sá e Menezes, nomeado governador e capitão general das Capitanias da Repartição Sul em abril de 1697. Entre 1697 e 1702 Artur de Sá empreendeu três viagens aos distritos mineradores, em cinco anos conseguiu implantar as bases da estrutura administrativa nos distritos mineradores. Para obter êxito, procurou ter boas relações com os paulistas, para que estes manifestassem a descoberta de minerais nos sertões dos Cataguases. Sua estratégia consistiu em oferecer aos habitantes do planalto honras e mercês, a mesma empreendida pelo Rei anos antes.3 Esta estratégia rendeu lucros ao rei, pois permitiu o aumento dos serviços minerais, e consequentemente o aumento das rendas advindas dos impostos, especialmente o quinto, que deveria ser cobrado aos mineradores. Diante de tal quadro, a administração precisava ser repensada. Chamo a atenção para o fato da atividade mineral ter acabado por resultar em uma forma de convivência mais estreita entre os povos. As lavras concedidas aos mineradores não eram medidas em léguas, mas em braças, Chamo a atenção para dois estudos em especial, que deixaram de observar estas questões: Francisco Iglésias, no texto Minas e a imposição do Estado no Brasil (1974), e Maria Verônica Campos, na tese Governo de Mineiros: de como meter as Minas em uma moenda e beber-lhes o caldo dourado, 1693-1737 (2002). 3 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias, e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p.51. 2 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 100 fazendo com que as atividades auríferas fossem realizadas em grandes acampamentos de mineradores, depois tornados arraiais e vilas. Esta convivência demandou a instalação não só de guardas-mores e escrivães, mas de autoridades que fossem suficientemente capazes de aparar atritos que pudessem ocorrer entre os moradores locais. Compostos por pessoas de vontades distintas, estes grupamentos humanos muito depressa mostraram a necessidade de formação de estruturas que pudessem auxiliar na administração dos moradores. Havia ainda a questão da atividade aurífera que cada vez mais demandava atenção, especialmente no que tocava sua tributação. Ao contrário de outras regiões da América, relacionadas com a agro-exportação, o ouro tinha uma natureza econômica distinta. No caso do nordeste açucareiro, por exemplo, embora os senhores dominassem a propriedade da terra e o trabalho compulsório, não tinham controle sobre a comercialização dos gêneros que produziam. A mediação da metrópole na comercialização dos bens que estes produziam acabava por os deixarem a mercê de uma extrema dependência externa. Como observei acima, este modelo não era aplicável à realidade das Minas. Primeiro porque era impossível haver a dominação comercial, em face o ouro ser antes demais nada equivalente universal. Assim, “a subordinação externa, engendrada com sucesso para a economia açucareira, não foi suficiente para submeter a área mineradora”.4 Assim, a sustentação para a construção da administração de Minas Gerais veio de várias matrizes. Veio da necessidade da administração da justiça aos povos, afinal uma das funções do monarca, e da ação fiscalista, como a que acima registramos. Esteve relacionada também com práticas políticas que foram retraduzidas para o universo daquela sociedade que começava a ganhar contornos no coração da América. As Teorias Corporativas de Poder, em voga em Portugal durante o período moderno, se fizeram sentir na sociedade mineradora. Enquanto parte da construção política lusitana, foi marcada, grosso modo, por caracterizar o poder como algo simbolicamente concentrado nas mãos do monarca, mas partilhado e negociado por este com os demais corpos constitutivos da sociedade. Assim, mais que se impor, o rei negociou o lugar de seu poder, o qual sofria limitações – para que não se tornasse um tirano – em conformidade 4ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 1998, p.10-11. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 101 com os interesses da sociedade e/ou dos grupos que a compunham.5 Experiências que foram internalizadas nas Minas, afinal constituídas por pessoas que partilhavam do universo cultural europeu, sejam os moradores, sejam aqueles investidos na estrutura da justiça e da administração. Por fim, chamo a atenção para as experiências de governo, que como já observei, derivavam das tentativas de formar uma administração das várias partes de seus domínios, constituídos por realidades sociais e econômicas difusas, que faziam com que as formas de administrar fossem com alguma frequência reajustadas. Com tais questões em mira, a Coroa foi construindo a administração do território das Minas à medida que as tensões entre os moradores e os problemas na administração dos tributos se faziam presentes. Com o passar dos anos, povos de várias partes da América e de outras partes dos domínios e do Reino de Portugal migraram para Minas. A esperança de encontrar grandes riquezas, seja tirando o ouro das entranhas da terra, ou dos bolsos dos mineiros, animou as levas de gentes que migraram para a região. Tal foi o contingente de pessoas que migraram para a região que Antonil não pode deixar de registrar em seus relatos sobre a América portuguesa, produzidos nos primeiros anos de século XVIII, que a “sede insaciável” de conseguir riqueza havia trazido para Minas um grande contingente de pessoas, formando uma “mistura” de “toda condição de pessoas”.6 Tão grandes foram as levas humanas, o foram também a heterogeneidade e os interesses dos povos. Aos poucos, os grandes acampamentos minerais passariam a reunir grupos sociais com interesses distintos. Os paulistas, tidos como descobridores, e então detentores dos cargos administrativos, passariam a ter seu lugar ameaçado naquela nascente sociedade, quando os forasteiros passaram a experimentar grande projeção econômica, passando a almejar cargos na administração das Minas. A Guerra dos Emboabas teve como pano de fundo os conflitos entre paulistas e forasteiros. Apesar de descobridores, os paulistas gradativamente foram deixando de ter preponderância sobre os cargos exercidos nos distritos minerais. Por volta de 1702, a coroa criou o cargo de HESPANHA, Antônio M.; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do poder. In: MATTOSO, José (org.). História de Portugal – O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 121-155. 6ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Lisboa: Comissão Nacional para as comemorações dos descobrimentos portugueses, 2001. p. 243-244. 5 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 102 Superintendente de terras e águas minerais, cargo que deveria ser ocupado por pessoa formada em leis, nomeada e remunerada pela coroa. 7 Os forasteiros, por seu turno, conquistaram espaço e importância na região, e isto se observa na atuação que tinham na economia. As lavras minerais que os forasteiros detinham eram trabalhadas por grande número de escravos, usando técnicas de extração que apresentavam bons resultados. Os forasteiros ainda aliavam mineração, atividades agropastoris e comércio. Com sua prosperidade econômica, os forasteiros foram aos poucos tomando parte nos postos de governo. Neste clima de tensão, o conflito entre paulistas e “emboabas” teve início a partir de uma disputa pela posse de uma espingarda. Aparentemente banal, o conflito tomou enormes proporções, chegando os dois lados a reunirem um grande número de aliados para um combate no campo de Caeté. O evento levou a que Borba Gato, então superintendente das minas do Rio das Velhas, lançasse edital expulsando Manuel Nunes Viana, então um dos mais importantes “emboabas” de Minas. O aumento das tensões entre paulistas e “forasteiros” aumentou. Os “emboabas” expulsaram os paulistas de diversos locais onde estavam instalados, sendo emblemáticos os conflitos que ocorreram em Sabará e Cachoeira do Campo. Essa situação chegou ao seu ápice quando Manoel Nunes Viana assumiu o governo de Minas, alegando ter sido “eleito” pelo povo para que pusesse fim à tirania exercida pelos paulistas. O desfecho do ataque contra os paulistas deu-se entre fins de janeiro e início de fevereiro de 1709, quando um grupo de emboabas, chefiados por Bento Amaral Coutinho, seguiu rumo à região do Rio das Mortes a fim de combater os paulistas. O resultado dessa expedição foi o episódio conhecido como Capão da Traição, em que os paulistas, cercados em um capão, mesmo rendidos e desarmados, foram mortos à queima-roupa.8 Os conflitos entre as partes chegaram a tal monta que acarretaram prejuízos para a Fazenda Real. O então governador da Repartição Sul, dom Fernando, tentou entrar nas Minas, com a intenção de apaziguá-la. Os amotinados, contudo, impossibilitaram a entrada do governador nas Minas, ameaçando-o de morte. Tão logo as notícias sobre os primeiros conflitos ocorridos em Minas chegaram à Corte, o Conselho Ultramarino concluiu que o melhor meio de se chegar ao bom governo da região era CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros: "de como meter as minas numa moenda e beber-lhes o caldo dourado" 1693-1737. 2002. Tese (doutorado em História) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002, p. 64-71. 8 CAMPOS, Op. cit., p. 85-89; ROMEIRO, Op. cit., p. 169-208. 7 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 103 através da instalação dos governos político, militar e eclesiástico. Antes mesmo de tomar ciência da gravidade dos ocorridos nos distritos mineradores, o Conselho se reuniu em 17 de julho do ano de 1709 para deliberar sobre ações que deveriam ser adotadas para administrar as minas de maneira eficiente, para “pôr em melhor forma o governo daquelas terras”.9 Segundo consta das deliberações feitas na reunião referida, a tarefa de administrar as Minas estaria vinculada a vários pontos que se relacionavam à defesa da costa do Rio de Janeiro, à administração da justiça, ao governo político das Minas e à arrecadação dos quintos. Digno de nota, o Conselho Ultramarino tinha na administração da justiça e do governo um importante ponto, aos quais se referiam como “o último fim de todas as repúblicas e a principal obrigação dos príncipes sendo esta a causa final para que sejam constituídos por Deus e pelos povos”, ponto que mostra a vigência das Teorias Corporativas do Poder como parte da prática política da época. O tema revestia-se de grande importância, pois até então os distritos minerais eram “governad[o]s somente pela insaciável cobiça do ouro”. Assim, para colocar a região em ordem, deveriam ser remetidos aos distritos um contingente significativo, capaz de constituir na região um governo “cristão e político”, para o qual deveriam ser fundadas igrejas, constituir párocos, fundar vilas e povoações, ordenar milícias, estabelecer a arrecadação dos quintos e dos dízimos. Para realizar tal tarefa, deveria ser instalado um governador nos distritos minerais, que deveria ser nomeado “governador de São Paulo e distrito das minas”. Com um governo estabelecido nas Minas, os distritos mineradores deveriam ser colocados em independência dos governos do Rio de Janeiro e da Bahia.10 Além dessa medida, os conselheiros sugeriam para a administração das Minas que fossem estabelecidas na região “vilas e povoações” para fazer chegar o governo régio às várias partes dos distritos minerais. As vilas deveriam ser fundadas em “sítios salutíferos com vizinhança de rios e boas águas, terrenos férteis e em pouca distância das ribeiras principais de ouro”. Ao sugerir a criação de vilas na região, os conselheiros pretendiam instalar nos distritos minerais instituições que tinham comprovada importância para a administração de várias localidades de Portugal e seus domínios. Nessas vilas, deveriam ser instaladas casas de câmara, instituições CONSULTAS do Conselho Ultramarino, 1687-1710. Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional/Divisão de Obras Raras e Publicações, 1951. V. XCIII, p. 219-242. 10 CONSULTAS do Conselho Ultramarino, p. 222. 9 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 104 detentoras de uma vasta gama de atribuições que podiam levar a almejada ordem aos distritos minerais. Instituição longeva nos quadros da administração portuguesa, as câmaras tinham funções variadas, em áreas relacionadas à manutenção da ordem no Termo que ficava sob sua jurisdição, aplicando leis, realizando obras, aplicando tributos. Composta em geral por dois a seis vereadores, Juiz ordinário, procurador, e demais oficiais, como o alcaide, e o almotacé, em geral escolhidos entre os moradores locais que tivessem melhor projeção social, os homens bons, cabia aos oficiais ligados à câmara supervisionar a distribuição e arrendamento das terras municipais e comunais, lançar e cobrar taxas municipais, fixar os preços de produtos e provisões, passar licença aos vendedores ambulantes, construir e fazer a manutenção de estradas, pontes, cadeias e demais bens públicos. Deviam também regular os feriados e organizar os festejos e procissões. Eram responsáveis pelo policiamento das localidades sob sua jurisdição, pelo lançamento de posturas e editais. Atuavam ainda como uma espécie de tribunal de primeira instância, subjugados ao ouvidor mais próximo ou mesmo ao Tribunal da Relação. 11Além destas ações, as câmaras se tornaram um mecanismo através do qual as autoridades e os povos locais se comunicavam, procurando aparar as arestas na conformação dos interesses do rei e dos “povos”. Assim, diante de determinações régias, como aplicações de impostos, por exemplo, era através das câmaras que em muitas ocasiões os moradores de uma determinada localidade expressavam seu descontentamento, através da emissão de correspondência ao rei no sentido de terem atendidas suas reivindicações. A Capitania de Minas Gerais, ao longo do século XVIII, assistiu à fundação de quatorze municipalidades, fundadas em períodos distintos, espalhadas de maneira desigual por várias regiões da Capitania. Entre os anos de 1711 e 1718, oito vilas foram fundadas em Minas, como reposta a migração em massa que os descobertos auríferos provocaram para a região, e os muitos distúrbios e disputas por lavras que ocorreram ali. As vilas criadas neste período foram: Vila de Nossa Senhora do Carmo, Vila Rica e Vila Real de Sabará, todas em 1711, Vila de São João d'el Rey em 1712, Vila do Príncipe e Vila Nova da Rainha em 1714, Vila Nova do Infante em 1715 e Vila de São José d'el Rey em 1718. No ano de 1730 foi fundada a Vila de Bom Sucesso de Minas Novas. Passados sessenta e nove anos sem que 11ORDENAÇÕES Filipinas. Livro 1. Título LXVI. Dos Vereadores. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Edição de Cândido Mendes de Almeida, 1985, p. 145-159. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 105 novas municipalidades fossem instaladas na região, a coroa instalou mais cinco municipalidades no território mineiro entre os anos 1789 e 1798. Neste período foram fundadas as Vilas de São Bento do Tamanduá, em 1789, a Vila de Queluz, em 1790, a Vila de Barbacena, em 1791 e as Vilas de Campanha da Princesa e de Paracatu do Príncipe, em 1798.12 Fundadas as municipalidades, muitas delas cumpriram aquilo que delas se esperava. A leitura da documentação produzida pelas câmaras mostra que as municipalidades procuraram fomentar a construção de pontes, chafarizes, edifícios para abrigar as autoridades camarárias, pelourinhos, entre outros.13 Promoveram festividades, nas quais celebravam a religião e o rei, ações que foram de fundamental importância para consolidar a presença do rei nas Minas. Além de procurar dar ordem aos lugares, também foram ativas na intenção de preservar os interesses dos locais, especialmente em matérias tributárias. Para o presente trabalho, lanço luz sobre a documentação produzida pela câmara com o objetivo de apresentar ao rei suas demandas em relação aos tributos que deveriam ser aplicados aos moradores de Minas, com especial atenção para aqueles que tocavam a extração de ouro. Desde os primeiros anos do setecentos, as autoridades camarárias procuraram remeter suas reivindicações tributárias ao Rei. Uma das primeiras correspondências encontradas sobre o tema foi remetida pelos camaristas de Vila do Ribeirão do Carmo em agosto de 1724, pouco mais de trinta anos depois da instalação de mineradores na região. Os camaristas deram conta ao Rei de que algumas lavras auríferas começavam a diminuir seus rendimentos. Com a instalação das Casas de Fundição na região, poucos anos antes, as dificuldades dos moradores em pagar o quiunto OLIVEIRA, Pablo M. Cartas, pedras, tintas e coração: As casas de câmara e a prática política em Minas Gerais (1711-1798). 2013. Tese (doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013. Especialmente capítulo 1. 13 OLIVEIRA, Op. Cit., TEDESCHI, Denise Maria Ribeiro. Águas urbanas: as formas de apropriação das águas em Mariana/MG (1745-1798). Dissertação (mestrado em História). Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2011, SILVA, Fabiano Gomes da. Pedra e cal: os construtores de Vila Rica no século XVIII (17301800). Dissertação (mestrado em História Social da Cultura). Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, 2007.. SANTIAGO, Camila Fernandes Guimarães. A Vila em ricas festas: celebrações promovidas pela câmara de Vila Rica (1711-1744). Belo Horizonte: C/Arte, FACE/FUMEC, 2003, RUSSEL-WOOD, A.J.R. O governo local na América Portuguesa: um estudo da convergência cultural. Revista de História. São Paulo, v.55, p.25-81, 1977. 12 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 106 aumentou. Por conta disso, solicitavam que a coroa revisse a forma como os quintos eram cobrados, pois as minas não rendiam naquela altura como outrora.14 Para ter seu pleito atendido, os camaristas fizeram menção ao fato daquele senado ter contribuído com grandes somas para a instalação da Casa de Fundição anos antes, como haviam prometido ao governador. De maneira muito frequente, os camaristas procuravam lembrar ao rei seus esforços para realizar obras de interesse régio, como a construção de edifícios públicos. Na medida em que ofereciam um préstimo, era a hora do monarca os retribuir, como previam a “economia do dom”. 15 Assim, o rei estaria na “obrigação” de retribuir as ações realizadas pelos moradores o ato que cometeram, o que os camaristas esperavam se corporificar no atendimento às suas reivindicações. Justificativa que outras tantas câmaras de Minas irão utilizar na construção de suas petições. Anos mais tarde, em julho de 1729, os oficiais da Câmara de São João Del Rei remeteram correspondência ao rei para que este arbitrasse sobre as execuções por dívidas que eram aplicadas àqueles que viviam da mineração. Iniciaram a carta informando ao rei que as minas que eram lavradas naquela Comarca estavam em sua grande maioria esgotadas. Para dar remédio a essa situação, era necessário que os serviços minerais fossem feitos em “formações profundas”, em lugares de “muita água”, que demandavam dispêndio de grandes somas em escravos e materiais. Além disso, tinham que manter gastos mesmo sem conseguir ter resultados satisfatórios em suas novas lavras. Por tal motivo, solicitavam que os mineradores não fossem executados por dívida enquanto estivessem abrindo novas lavras. Afinal o que solicitavam ao rei era também do interesse deste, pois não havendo serviços minerais, os rendimentos diminuiriam, com prejuízo para a Real Fazenda. Além disso, lembravam ao rei que seus antecessores já haviam arbitrado sobre a matéria em benefício dos povos que viviam da arte de minerar, questão estaria expressa no Capítulo 51, do Regimento de 1692. Se este argumento não tivesse êxito, pois naquela altura o Regimento de 1692 já perdera efeito, os oficiais lembravam que outras “indústrias” conseguiram não sofrer execução por 14AHU. Caixa 5, Documento 43. Segundo Antônio Hespanha e Ângela Xavier a economia do dom, entendida como “a atividade de dar (a liberdade, a graça) integrava uma tríade de obrigações: dar, receber e restituir”. Tal questão torna-se importante para o entendimento da vida política, pois funcionava “como o meio mais eficaz para concretizar não só intenções políticas individuais, como para estruturar alianças políticas socialmente mais alargadas e com objetivos mais duráveis”. HESPANHA; XAVIER. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (org.). História de Portugal – O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 381-393. 15 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 107 dívidas. Era o caso, segundos os sanjoaneneses, daqueles que se ocupavam da “fábrica do açúcar” na região litorânea. O argumento por eles concedido mostra como circulavam informações pela América portuguesa, que afinal podiam ser utilizadas pelos camaristas naquele momento. Assim, era legítimo que também os mineiros fossem beneficiados por essa resolução, posto que “engroção tão nobremente os interesses da monarquia”. 16 Além de reclamarem dos impostos, por conta da diminuição da quantidade de ouro que extraíam, muitas câmaras de Minas Gerais solicitaram que a forma de cobrança dos tributos fosse alterada. Um exemplo de tal esforço ocorreu na tentativa de colocar um fim à Capitação. Com esse sistema, todos aqueles que tivessem escravos na Capitania de Minas Gerais deveriam pagar o imposto por cada um deles – per capita. O rei mandou que as câmaras de Minas fossem consultadas, demonstrando que havia preocupação em ouvir as partes. Tal procedimento de consulta às câmaras tinha por objetivo obter a aprovação dos povos, segundo a doutrina aceite. Em julho de 1735, tendo a presença do governador Gomes Freire de Andrada e os procuradores das câmaras da Vila do Ribeirão do Carmo, de Vila Rica, da Vila do Príncipe, de São João Del Rei, de São José e Caeté foi determinada a criação da Capitação. Ficou acertado que cada escravo deveria pagar quatro oitavas e ¾ anuais, as lojas grandes deveriam pagar 24 oitavas, e valores menores os estabelecimentos de menor porte.17 Apesar de anuência inicial das câmaras, a Capitação nunca teve adesão dos povos ao longo dos quinze anos em que esteve vigente. 18 Durante este período, os camaristas fizeram várias representações procurando mostrar que a Capitação era ruinosa para os povos. As críticas se relacionavam principalmente ao fato da cobrança incidir sobre atividades que não se relacionava com a mineração. Isso fica claro em algumas cartas remetidas pelas câmaras de Minas ao rei. Um conjunto de cartas remetidas ao rei durante a vigência da Capitação permitem fazer uma apreciação geral do sentimento dos povos da Capitania em relação à Capitação. Os camaristas de Vila Rica apresentaram em 05 de julho de 1741 suas primeiras apreciações sobre a Capitação. Os camaristas não SUPLICAS dos mineiros de São João Del-Rey, referentes às execuções por dívidas. RAPM, 1897, p. 371. 17 MAGALHÃES, Joaquim Romero, Labirintos brasileiros. São Paulo: Alameda, 2011, p. 138. 18 No de 1736, eclodiu no sertão do São Francisco uma série de motins questionando a Capitação. A respeito, ANASTASIA, Op. Cit., p. 75-99. 16 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 108 questionavam o pagamento de tributos como o quinto, tido como “tributo devido”. Segundos os camaristas, os vilariquenhos eram agravados com dois problemas. O primeiro era com o aumento em um quarto de oitava de ouro sobre o valor da Capitação, caso houvesse atraso no pagamento. Para remediar esta situação, sugeriam que se esperasse encerrar todo o prazo – presumivelmente de um ano – para cobrar a dívida. O segundo se referia a confiscar os escravos, caso as obrigações com a Fazenda não fossem quitadas. Solicitavam ao rei que fosse atento à penúria do povo das Minas, pois segundo eles, há muito não se descobriam lavras minerais na região. Para dar remédio à situação, solicitavam os camaristas que apenas se confiscassem tantos escravos fossem o suficiente para suprir as demandas com a Capitação, e não todos.19 Era uma das possíveis soluções apresentadas para colocar fim à “penúria” vivida por aqueles povos. Em 30 de setembro de 1744, foi a vez dos camaristas da Vila de São José se manifestaram contrariamente à manutenção da Capitação. Para eles, o principal problema do tributo se referia não só ao alto custo da Capitação, mas à “manutenção” dos escravos que chegavam às Minas com preços vultosos, que se somavam aos gastos que mantinham com boticas, desobrigas, enterros e missas. Assim como outras câmaras, expuseram seus problemas em relação a ter que pagar a Capitação em duas parcelas, sendo que o atraso da primeira acarretava em multas, criando problemas para o pagamento da segunda parte do imposto. 20 Aquela câmara defendia também as mulheres forras, pardas e negras que, segundo eles, se prostituíam para satisfazer o pagamento do quinto. Os camaristas ainda chamavam a atenção para o absurdo que a situação apresentava. Um rei católico tirava do pecado o sustendo da sua Real Fazenda de práticas contrárias às leis de Deus.21 O problema do pagamento, somado às custas para manter os escravos, em um quadro de “penúria” dos povos, acabou levando muitos escravos a cometerem vários delitos como roubos e assassinatos, fazendo com que a Capitação afetasse amplamente a população das Minas. Assim como em outras câmaras, os camaristas de São José propunham que se restaurassem as Casas de Fundição como forma de pagamento dos quintos. Era uma forma considerada justa, porque só seriam tributados aqueles que viviam da mineração, e a partir do que conseguissem apurar. IMPOSTOS na Capitania Mineira. Revista do Arquivo Público Mineiro (RAPM), 1897, p. 287-288. 20 IMPOSTOS na Capitania Mineira. RAPM, 1897, p. 293. 21 IMPOSTOS na Capitania Mineira. RAPM, 1897, p. 294. 19 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 109 Em 17 de outubro de 1744, os camaristas da Vila do Ribeirão do Carmo apresentaram suas considerações sobre a Capitação. Assim como outras câmaras, apontavam a injustiça do tributo que recaía igualmente sobre uma população que fazia uso dos cativos de maneira distinta, com vias de acumular recursos ou não. 22 Além disso, argumentavam que os serviços minerais não eram igualmente rendosos, pois escravos podiam se adoentar, por exemplo, e isso não era ponderado no momento de recolha do tributo. Diante de tal quadro, propunham soluções ao Rei, como restaurar a Casa de Moeda que, segundo eles, aumentaria os rendimentos régios e diminuiria os inconvenientes da Capitação. Além disso, propunham que o rei lançasse um tributo sobre todo gênero de negócio que circulavam pelas Minas, fosse produzido naquela Capitania ou não. 23 Na mesma altura que os camaristas da Vila do Carmo, os camaristas da Vila Nova da Rainha apresentarem suas demandas em relação à Capitação, feita em outubro de 1744. Mesmo concordando com a cobrança em 1735, com o tempo o esgotamento das lavras deixou o tributo cada vez mais oneroso. Ainda, o tributo não era justo porque incidia igualmente sobre o cego pobre, que tem um escravo por guia, e o rico mineiro, que tinha grande “fábrica paga pello escravo”.24 Assim como outros camaristas, lembraram que esse mesmo imposto produzia o pecado, pois muitas foram as negras que buscaram na prostituição meio de pagar a Capitação. A injustiça persistia no fato de os cativos pagarem igualmente a Capitação, mesmo que tivessem apenas doze anos, ou trabalhassem nas lavras minerais. Assim como as demais câmaras, criticavam a forma como as duas parcelas anuais deveriam ser pagas, pois o atraso levava a uma dura multa que, em muitos casos, faziam com que os escravos e bens fossem penhorados. Segundo os camaristas: “deste modo fica o mineiro perdido de todo e todos os negros rematados quando só rematado hum bastava p.ª o pagamento q. de todos se devia no q. se verifica grande damno, q. rezulta da forma da cobrança da capitação”.25 Por fim com a diminuição dos serviços minerais, as rendas que os negros tiravam das lavras iam diminuindo. Receosos dos castigos, muitos eram os escravos que vinham cometendo fugas para os matos. Disto resultava não só prejuízos com a perda do cativo, mas também com as custas com o capitão IMPOSTOS na Capitania Mineira. RAPM, 1897, p. 290. IMPOSTOS na Capitania Mineira. RAPM, 1897, p. 292. 24 IMPOSTOS na Capitania Mineira. RAPM, 1897, p. 304. 25 IMPOSTOS na Capitania Mineira. RAPM, 1897, p. 307. 22 23 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 110 do mato. Situação que se resolveria apenas se a Capitação fosse abolida, sendo substituído pela cobrança do quinto aos mineradores. Como possível solução, os camaristas sugeriram que se restabelecessem as Casas de Fundição na Capitania, tópico que já vinha sendo sugerido por outras câmaras. O conjunto de documentos aqui relacionados à Capitação aponta para uma certa homogeneidade de demandas dos camaristas de minas, sugerindo uma comunicação entre as câmaras. Consideravam a Capitação injusta porque incidia impiedosamente sobre todos os povos, independente de sua condição. Produzia mesmo o “pecado”, quando acabava estimulando a prostituição como forma de obter recursos para pagar o Erário. Era injusta porque não via a ocupação do escravo, bem como sua saúde. A solução mais sugerida era que se restabelecessem as Casas de Fundição e que novamente os quintos voltassem a incidir apenas sobre a atividade mineral, questões muitas das vezes embasadas na legislação vigente, mostrando que nem sempre as câmaras eram ocupadas por pessoas desprovidas de qualquer conhecimento. Do contrário, muitos foram os casos em que eles conseguiram construir argumentos sólidos para vencer as desventuras tributárias das Minas. Assim essa profusão de discursos muito caros uns aos outros nos anos 1740 sugere algum diálogo entre as câmaras, mostrando que, em muitos casos, a luta “bem comum” era cara a todas. Depois de muitas discussões referentes ao imposto, em fins de 1749 uma junta se reuniu nas Minas para dicutir o fim da Capitação, e sua substituição. No ano seguinte, o imposto foi encerrado, restabelecendo os quintos nas Minas. As câmaras tiveram êxito em seu intento, mesmo que aos olhos da coroa a Capitação fosse a melhor forma de tributar a região de Minas. Afinal os interesses dos moradores se sobrepuseram aos interesses tributários, mostrando que mais que a imposição, a negociação foi constantemente utilizada em Minas. Apesar do fim da Capitação, substituído pela Lei Novíssima das Casas de Fundição, implantada em 3 de dezembro de 1750, os camaristas não deixaram de reclamar da forma como o quinto passou a ser recolhido. Os mineradores deveriam arcar com um montante de cem arrobas, recolhidos desigualmente entre as comarcas de Minas Gerais. No ano de 1751, várias câmaras de Minas Gerais trocaram correspondência com o objetivo de reajustar a forma de cobrança. A troca de correspondência entre as câmaras mostra a tentativa de criar um argumento unívoco que pudesse convencer REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 111 o Rei da necessidade de reajustar partes da lei que fossem considerados prejudiciais aos moradores de Minas Gerais. A Câmara da Cidade de Mariana remeteu à Câmara de Vila Rica seus apontamentos sobre as casas de fundição em 21 de abril de 1751. Apesar de considerarem justo o restabelecimento das fundições, divergiam da forma como foi proposto o recolhimento do ouro. A Coroa havia determinado que os quintos recolhidos deveriam chegar a um montante de cem arrobas. Caso isso não acontecesse, deveria ser aplicada a derrama, uma sobre tributação que incidiria sobre toda a população com o objetivo de conseguir realizar o ajuste dos quintos. Mesmo concordando que o restabelecimento das Fundições era justo, não concordavam com a forma como poderia ser satisfeita a cota de cem arrobas. Segundo os camaristas, o Rei deveria se contentar com o que fosse apurado das lavras, pois, ao cobrar aos povos com a derrama, deixava de ser uma cobrança sobre atividades minerais.26 Os camaristas de Vila Rica reforçaram os pontos apresentados pelos camaristas de Vila do Ribeirão do Carmo em uma representação feita ao Rei em abril de 1751. Possivelmente de posse da informação de outras câmaras – pois além da Vila do Carmo, outras câmaras circularam correspondência sobre os quintos entre si naquela altura –, produziram um documento em que os anseios de todas as câmaras de Minas fosse atendido. Retomaram discussão sobre a “piíssima e santíssima” intenção régia em torno do restabelecimento das Casas de Fundição, mas chamaram a atenção aos prejuízos que a derrama poderia produzir entre os habitantes de Minas Gerais. Mesmo concordando que as cem arrobas que foram estipuladas para suprir o quinto tenham sido ideia dos moradores de Minas, lembraram que tal sugestão havia sido dada no ano de 1734. Ao resolver adotar esse sistema dezesseis anos após tal solicitação, Minas Gerais já não extraía a mesma quantia de ouro de outrora. Para resolver os problemas de diminuição do recolhimento do quinto, a Coroa deveria permitir que fosse permitido a extração de ouro em algumas partes da Comarca do Serro Frio, o que naquela altura era proibido por causa da Demarcação Diamantina. Mesmo com o fim da Capitação, os moradores de Minas continuaram a sofrer com os quintos. Mesmo diante dos argumentos dos CARTA do Senado da Câmara de Mariana sobre a representação contra a Lei Novíssima das Casas de Fundição. In: CÓDICE Costa Matoso. Coordenação geral de Luciano Raposo de Almeida e Maria verônica Campos. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999, p. 506. 26 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 112 camaristas, a Coroa manteve a derrama na Lei das Casas de Fundição, chegando a aplicá-la em algumas ocasiões. Os camaristas conseguiriam que a derrama não fosse aplicada sistematicamente, apesar da quantidade de ouro ter diminuído consideravelmente a partir da segunda metade do século XVIII, motivando os camaristas a continuar remetendo cartas ao rei para que conseguissem aliviar o peso do quinto. Em 1765, os oficias da câmara de Vila Rica remeteram carta ao rei para que este ponderasse sobre o pagamento “inteiro” das cem arrobas referentes ao quinto. Quinze anos após ter revisto a forma como os povos das Minas eram tributados, os camaristas mencionavam a falta de fôlego para suprir essa obrigação. Cuidadosamente, escreveram uma petição estabelecendo um “histórico” de Minas e suas fortunas econômicas. Nos primeiros tempos as minas eram mais rentáveis, e era comum que cada um dos escravos recolhesse até uma oitava de ouro das lavras. Mas desde meados do século, as lavras da Capitania de Minas perdiam fôlego, e isso começou a se refletir nas demandas que os camaristas remetiam ao rei. Segundo os peticionários, naquela altura do século, as Minas não rendiam mais como nos decênios anteriores. É o que se percebe em um trecho da carta: A sucessam porem dos annos trouxe inerente huma grande decadência na conveniência dos mineyros; porque dezde aquelle tempo athé o prezente tem diminuído os jornais nas lavras e faisqueiras, que igualmente falando, não há mineyro que diariamente tenha jornais de quatro vintens por dia que he a parte do que no premittivo tempo se tirava.27 Com tais argumentos em mira, os peticionários solicitavam que o rei moderasse a aplicação do tributo e, principalmente, a questão que versava sobre a derrama, uma sobre-tributação que deveria incidir sobre os povos das Minas caso as cem arrobas não fossem alcançadas, “contentando-se com o que renderem a V. Magestadeas suas Reaes Cazas de Fundição”. Para ter sucesso na solicitação, fiavam-se na clemência régia que, segundo os mesmos, “protegia os vassalos”. A solicitação urgia soluções com a maior brevidade possível, pois no ano de 1764 os moradores da Capitania 27 AHU, Caixa 86, Documento 14. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 113 já tiveram que satisfazer as demandas do Alvará de Dezembro de 1750 referente ao quinto. No ano de 1764, os moradores remeteram como sobretributação um total de treze arrobas, catorze libras, um marco, e três onças que, com o aumento da situação de penúria daqueles povos, iria apenas fazer aumentar.28O insucesso da petição feita pela câmara vilariquenha resultaria em uma situação tributária extremamente danosa para aqueles que viviam da mineração. Talvez por isso várias câmaras fizeram coro aos camaristas de Vila Rica. No mesmo ano de 1765, os moradores de Vila Nova da Rainha apresentavam suas demandas em relação ao pagamento dos quintos, especialmente no que tocava à derrama. Como já observamos, no ano de 1764, os moradores daquela vila, e como de resto toda a população da Capitania, haviam sofrido com a derrama. Naquele ano, os moradores tentaram, junto ao governador, por meio de uma junta reunida em dois de abril de 1764, que a derrama fosse suspensa. Não obtiveram êxito por conta do “inflexível zelo” do governador. Segundo os camaristas, o governador resolvera aplicar a derrama sem a devida atenção aos povos, e por conta de não haver então uma forma clara de cobrar esta sobre tributação, havia praticado injustiças.29 Assim, na construção de seus argumentos, culparam os ministros régios pelas avultadas cobrança aos povos, mesmo em face à ruína das Minas. Como meio de remediar a situação, solicitavam que os impostos asseverados na lei de três de dezembro de 1750 fossem “relaxados”. Rememorando as grandes tensões que já haviam ocorrido nas Minas, por conseguinte às questões tributárias, solicitavam que não se fizesse “gênero algum de extorção a seosvassallos, ou couza que perturbe o socego publico”.30 Dessa forma, os camaristas apenas demandavam que os governadores e ministros do rei atentassem para a adequada aplicação da lei, e era isso que tinham em mira quando tocavam no tópico que se referia à que nenhuma atitude fosse tomada de modo a não causar problemas ao sossego público. Tema que estava em consonância com as tensões que historicamente tiveram lugar nas Minas, muitas vezes derivadas de questões tributárias. Chama a atenção o fato dos camaristas colocarem a culpa pelo infortúnio da derrama no governador que não foi atento àquilo que previa a lei.31 Assim, preserva-se a imagem do rei, culpando o AHU, Caixa 86, Documento 14. AHU. Caixa 86, Documento 33. 30 AHU. Caixa 86, Documento 33. Grifos meus. 31 AHU. Caixa 86, Documento 33. 28 29 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 114 governador de cometer exorbitâncias, o que acaba inserindo o episódio na questão do rei traído. E as preocupações com a derrama e a aplicação dos quintos continuaram. Muitos anos mais tarde, em 20 de julho de 1772, os camaristas de Vila Rica remeteram correspondência ao rei para que a derrama não fosse lançada sobre os povos. Numa ordem régia de junho de 1772, o rei determinou que a derrama fosse aplicada para conseguir os valores que eram devidos dos anos de 1769, 1770 e 1771. Como nos anos anteriores, a justificativa dos camaristas para que não fosse aplicada a derrama se relacionava com a “penúria” geral dos povos. O ouro estava exaurido, as roças estavam “cansadas” e por mais esforços que fizessem para abrir novas lavras – contando com o “zelo” do governador, que não só obrava nesta tarefa, como também para evitar os descaminhos do ouro, evitando o declínio das receitas –, não conseguiam aumentar os rendimentos dos quintos. Para reverter a situação econômica de Minas, os camaristas sugeriam que a legislação referente ao Distrito Diamantino fosse alterada, tema já havia sido apresentando em 1751 pelos camaristas da Vila do Ribeirão do Carmo, permitindo a extração de ouro em regiões em que não havia diamantes. Os camaristas esperavam que a solução para o recolhimento dos quintos, sem a necessidade da aplicação da derrama, portanto longe do Termo daquela vila. Se não conseguissem que sua proposição fosse implementada, sugeriam, pelo menos, que a divisão por comarcas para pagamento do quinto fosse revisitada. Por ter as maiores minas, a Comarca de Vila Rica era a que pagava a maior parte dos quintos. Segundo os camaristas, naquela altura do século, aquela divisão já não tinha vantagem alguma para aqueles povos. Segundo eles, o termo de Vila Rica era muito diminuto e era a comarca que tinha menos lavras e roças. Acreditavam que a Comarca do Sabará era, naquela altura do século, a mais rica dentre todas, “pela sua muita extensão”, não ficando muito atrás da Comarca do Rio das Mortes que, à época, vivia “opulenta com os próprios efeitos q.e de si lança a comerciar em outras partes”.32 E a Comarca do Serro Frio, se não tinha a melhor das situações, estava pelo menos em pé de igualdade com Vila Rica. Caso essa proposição também não tivesse efeito, esperavam que pelo menos a cota destinada à Comarca de Vila Rica fosse novamente dividida entre Vila Rica e a Cidade de Mariana que acreditavam ser mais afortunada que aquela vila. Todos os argumentos pareciam válidos desde que seu quinhão tributário fosse aliviado. 32 SOBRE a derrama lançada em 1772. RAPM, 1897, p. 368. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 115 Parte das questões apresentadas pelos camaristas de Vila Rica, no tocante à impossibilidade dos povos de satisfazer os quintos anualmente, seria retomada na reunião feita pela Junta da Real Fazenda em 1772. Em alguma medida, o governador da Capitania, Conde de Valadares, mostrouse sensível aos interesses dos povos, pois lembrava que a derrama, lançada em 1763, aplicada no ano seguinte, havia sido “gravoza” aos povos. Mais adiante, porém, lembrou que, pelos termos celebrados pelos povos da Capitania com o Rei, as cem arrobas deveriam ser pagas “inteiramente” para suprir o quinto e afinal concordou com a aplicação da derrama na Capitania, pois os prejuízos da Real Fazenda vinham se avolumando ao longo dos anos. Entretanto a forma como os povos deveriam ser tributados deveria ser “suave”, pois, segundo preconizavam as determinações régias, a derrama deveria “ser inteiramente observada segundo as Reaes ordens de Sua Magestade, em cujos termos se deverião aliviar os povos de todo e qualquer vexamem”.33 Assim, apesar das solicitações dos camaristas, a coroa aplicou o quinto.34 Desse modo, a petição dos camaristas de Vila Rica acabou por não ter efeito algum sobre as determinações de 1772. Os camaristas da Vila de São João Del Rei remeteram representação ao rei, em 23 de setembro de 1772, para que as determinações para a aplicação da derrama fossem revistas. Essa questão se referia principalmente ao excesso da cota que fora estabelecida para a Comarca do Rio das Mortes em relação às demais. Essa havia sido uma das principais reivindicações dos camaristas de Vila Rica naquele mesmo ano. Os sanjoanenses diziam ser “notório” que aquela comarca tinha “menos possibilidades” do que as Comarcas de Sabará e Vila Rica; mais ainda, sua população já era onerada com as doze pontes que cortava o Rio Grande, o Rio das Mortes, o Rio Verde e o Elvas, levando os povos a pagarem tributos de passagem. Seu quinhão no pagamento do quinto podia ser menor, mas por outro lado os moradores da região eram os mais marcados pelos tributos de passagem de rio, por isso solicitavam que o tema retornasse à Junta da Real Fazenda e fossem refeitos os cálculos referentes à divisão da derrama pelas comarcas da Capitania.35 Desta feita, cada câmara tentava, TERMO da Real Junta sobre a derrama do Quinto do ouro de 1772. RAPM, 1900. p. 175. A segunda aplicação da derrama apurou cerca de 160 quilos de ouro. RENGER, Friedrich. O quinto do ouro no regime tributário nas Minas Gerais. RAPM. v. 42, nº2, p. 91-105, 2006, p.104. 35 REPRESENTAÇÃO do povo de S. João D‟el Rey contra o exagero da quota arbitrada para derrama. RAPM, 1900, p. 206. 33 34 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 116 pelo menos diminuir o ônus tributário de seus moradores, se a derrama fosse inevitável. A preocupação dos camaristas em relação aos quintos e à derrama voltaria à ordem do dia em outras oportunidades até o encerramento do século. Apesar do desolador quadro que se apresentava ao mineradores no apagar do Setecentos, que sentiam o declínios dos serviços minerais, constantemente se avizinhavam as notícias de uma nova derrama. E elas se corporificariam, na opinião de muitos, com a chegada de um novo governador para as Minas, em 1788. De fato, as instruções recebidas pelo Visconde de Barbacena, que deveria tomar assento nas Minas como seu governador, previam que a derrama fosse aplicada na região para que a enorme diferença devida fosse satisfeita. Segundos as determinações de Martinho de Melo e Castro, então Secretário de Estado da Marinha e do Ultramar, tão logo chegasse às Minas, deveria convocar a Junta da Fazenda, da qual era presidente, para lembrar que os povos eram obrigados a assegurar as cem arrobas para os reais cofres e que, não chegando a essa soma pelas vias normais, deveria ser aplicada a derrama. Ao tomar posse do governo da Capitania, o recém-empossado governador desencadeou ampla investigação na Real Fazenda. Feito isso, convocou, em 16 de julho de 1788, a Junta da Real Fazenda, transmitindo as disposições que recebeu referente a esse órgão e insistiu na imposição da derrama, prevista para fevereiro do ano seguinte, além de anular os contratos então arrematados na Capitania. 36 Apesar de ter procurado executar boa parte daquilo que previam as instruções, Barbacena acabou por reconsiderar alguns pontos, como foi o caso da aplicação da derrama. Sobre esta, já havia sido inclusive alertado pela Rainha para aplicá-la apenas se tivesse segurança de que não geraria danos à população da capitania, por isso não houve a derrama em fevereiro, como estava previsto. Ele tomou a decisão devido às condições da Capitania, e por própria iniciativa. A Câmara de Vila Rica foi informada sobre sua resolução em 14 de março de 1789, e o vice-rei, onze dias depois.37 A questão da derrama que “poderia” ter sido aplicada no governo de Barbacena veio à luz por carta remetida pelos camaristas da Cidade de Mariana em junho de 1789. Essa correspondência foi a resposta de uma carta enviada àquela câmara em 23 de março do mesmo ano, para que apresentassem as causas dos “destroços, que ha tempos tem soffrido a 36MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira, Brasil – Portugal, 1750-1808. São Paulo: Paz e Terra, 1995, p. 132. 37 MAXWELL, Op. Cit., p. 169-170. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 117 contribuição do Direito Senhorial das cem arrobas de oiro”. 38 No texto, apresentavam duas questões: uma se referia ao estado de miséria da capitania, e o outro se referia a apresentar potenciais “remédios” com alterações em várias áreas na Capitania.Uma das primeiras questões apresentadas pelos camaristas para a ruína da Capitania era o decrescimento das atividades minerais. O ouro foi abundante nos primeiros anos, quando os rios e morros estavam “intactos”. Mas, nesses mesmo anos, os mineradores cometeram equívocos nas áreas de mineração que comprometeram a atividade mineral dos anos seguintes, como foi o caso de lavar ouro nas cabeceiras dos rios. Os depósitos de areias que se formaram com a atividade arruinou o curso dos rios, dificultando a atividade mineral. O usos incorreto das águas acarretou também na dificuldade de extrair ouro nos morros, pois era necessário um curso de água para “lavar” a terra para obter o precioso metal. Além desse problema, havia um segundo: a falta de famílias “sólidas” na Capitania. Segundos os camaristas, a vida errante que muito moradores da região levavam incidia diretamente sobre a economia, pois os pais não transmitiam seus “ofícios e massames” aos descendentes. Assim, morrendo o dono das lavras, morria junto os serviços. Além do problema da ausência da família, este poderia persistir quando, havendo família, os pais não permitiam que seus filhos exercessem ofícios “grosseiros” para obter ganhos para que pudessem ascender à nobreza, através do acesso nas igrejas, quando se tornavam clérigos, ou membros dos postos militares; duas nobres atividades que pouco engrandeciam os cofres da Real Fazenda.39 A vontade da distinção social era portanto um problema para as rendas da Capitania. Apresentados os principais problemas das Minas, elencavam suas potenciais soluções, das quais apresentamos as principais. Sugeriam que os bens dos moradores das Minas não fossem sequestrados para satisfazer a derrama, ficnando o quinto satisfeito com aquilo que rendesse. Os libertos e índios aprisionado deveriam ser postos a trabalhar em lavras ou roças através de um sistema de “feudo” para que fossem mantidos em trabalho. Deveriam ser punidos aqueles que não permitissem que seus filhos se casassem, tendo privilégios os que “aumentassem” sua família. CAUSAS determinantes da diminuição da contribuição das cem arrobas de ouro, apresentadas pela Câmara de Mariana. RAPM. 1901, p.143. 39 CAUSAS determinantes da diminuição da contribuição das cem arrobas de ouro, apresentadas pela Câmara de Mariana. RAPM. 1901, p.146. 38 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 118 Retomavam a sugestão dada em 1751 de que a extração do ouro fosse permitida na Comarca do Serro Frio, região que sofria restrições por conta da Demarcação dos Diamantes. A sugestão talvez mais curiosa do documento se refere a sua sugestão de retomar a Capitação, que segundo eles poderia acabar com o extravio do ouro, bem como faria prosperar a mineração e a agricultura. Por incidir sobre escravos e libertos, faria com que a gente “vadia” tivesse ocupação, para que pudesse pagar o imposto.40O imposto que cerca de cinquenta anos antes havia motivado aquela câmara a fazer coro com as demais para que a Coroa o extinguisse voltava à ordem do dia como solução. Esqueciam que as muitas câmaras atentavam para os muitos delitos cometidos por escravos e livres, como roubos e prostituição, para conseguirem pagar os quintos. E os camaristas da Cidade de Mariana não seriam os únicos a apresentar uma possível solução para a perda de rendimentos régios na Capitania. Em 5 de agosto de 1789, os camaristas de Vila Rica enviaram correspondência ao governador da Capitania de Minas Gerais para render graças a este pela suspensão da derrama. No documento, além de agradecimentos, apresentaram a trajetória tributária das Minas, mostrando que houve uma série de equívocos que levaram os povos a ficarem constantemente arruinados com os tributos. Se referiam especialmente aos acertos para acabar com a Capitação que, segundo os camaristas, gerou “enormíssimos abusos”. A vontade de colocar um fim neste tributo levou os povos a concordarem com a contribuição de cem arrobas anuais como forma de pagamento dos quintos. À época, essa proposta parecia possível, pois figurava-se “aparentemente suave pelo copioso ouro que abundava em frequentes descubertos, custando a sua extracção pouca ou quasi nenhuma dezpesa aos mineiros”.41 Mas, segundo eles, o tempo mostrou as limitações da mineração. Um dos pontos que teriam criado essa situação era a “inutilização” do Distrito Diamantino, onde era vedada a extração de ouro, tema que os camaristas já haviam apresentado em outras oportunidades, aludindo à extração de ouro naquela região a solução dos problemas relacionados aos quintos muitos anos antes. Com as dificuldades da mineração, muitos mineradores migraram suas atividades para a lavoura, “por onde não aspirando a grandes opulencias ao menos se eximem de perecer à fome”.42 CAUSAS determinantes da diminuição da contribuição das cem arrobas de ouro, apresentadas pela Câmara de Mariana. RAPM, 1901, p. 147. 41CARTA da Câmara de Vila Rica sobre a derrama. RAPM,1899, p. 787. 42CARTA da Câmara de Vila Rica sobre a derrama. RAPM, 1899, p. 789. 40 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 119 Para remediar a situação, sugeriam alterações drásticas na forma de administração dos tributos na Capitania. Segundo os camaristas, “logo nada mais resta do que cortar tudo pela raiz mudando-se inteiramente o sistema de percepção deste rendimento real, reduzindo o ouro ao seu justo valor de mil e quinhentos reis nesta Capitania”. Sugeriam que, para o aumento das rendas régias na Capitania, as Entradas tivessem seus valores reajustados, incidindo sobre a entrada de escravos, ferro, e artigos de luxo. Dessa forma, o rei recuperaria parte daquilo que havia perdido com os quintos. Fazendo uma breve conta da população da Capitania em algo em torno de trezentas mil pessoas, e o consequente consumo, acreditavam que a o imposto de Entradas poderia chegar a soma de trezentos e cinquenta mil cruzados.43 Eram medidas, que segundos os camaristas, poderiam tirar a região de seu “estado de mizéria e desordem”. Para afastar qualquer perigo de que a derrama fosse aplicada iam além, sugerindo que várias ações fossem adotadas para que o Erário não “sentisse” a perda dos quintos. Era mais uma das cartas que tentavam remediar a situação dos povos das Minas. Ao lançar luz sobre a documentação camarária, especialmente a correspondência por eles remetida ao Rei, observamos como se construiu a administração das Minas. Longe de terem aceitado tacitamente todas as imposições régias, as câmaras procuraram, em muitas oportunidades, oferecer uma alternativa aos valores dos tributos que deveriam ser ajustados, em muitos casos com êxito. Chamo a atenção especialmente para a questão da Capitação, afinal revogada em meados do século depois de persistentes investidas das câmaras de Minas, e da derrama, que mesmo diante das sucessivas perdas que a Coroa sofria com os quintos, que não alcançavam as cem arrobas, não aplicou a derrama como havia previsto. Assim, creio que as câmaras puderam construir seu espaço de negociação a partir de duas situações. A primeira seria a internalização do pensamento político corporativista, o qual permitiu que as câmaras remetessem suas representações à cabeça do reino, o Rei, com o objetivo de manter a harmonia do corpo social. A segunda estaria na experiência de governo que se construiu nas Minas. Região marcada por algumas tensões que se originavam, por exemplo, nas questões tributárias, atender parte das reivindicações apresentadas pelos camaristas era um meio de evitar tensões com os moradores. 43CARTA da câmara de Vila Rica sobre a derrama. RAPM, 1899, p. 790-791. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 120 Por fim, ao mostrar as ações dos camaristas, especialmente as suas intervenções nas questões de âmbito tributário, podemos ampliar a discussão sobre a construção da administração de Minas Gerais, repensando o lugar ocupado pelos governadores, ouvidores, militares e camaristas instalados na região, observando questões ligadas especialmente à imposição e à negociação, situações pendulares que acompanharam as dinâmicas de constituição da sociedade mineira setecentista. Referência documental Manuscrita Arquivo Histórico Ultramarino (Minas Gerais): Caixa 5, Documento 43; Caixa 86, Documento 14; Caixa 86, Documento 33. Impressa CARTA da Câmara de Vila Rica sobre a derrama. Revista do Arquivo Público Mineiro (RAPM), 1899, p. 787-791. CARTA do Senado da Câmara de Mariana sobre a representação contra a Lei Novíssima das Casas de Fundição. In: CÓDICE Costa Matoso. Coordenação geral de Luciano Raposo de Almeida e Maria verônica Campos. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999. CAUSAS determinantes da diminuição da contribuição das cem arrobas de ouro, apresentadas pela Câmara de Mariana. RAPM, 1901, p. 147 CONSULTAS do Conselho Ultramarino, 1687-1710. Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional/Divisão de Obras Raras e Publicações, 1951. V. XCIII, p. 219-242. IMPOSTOS na Capitania Mineira. RAPM, 1897, p. 287- 307. REPRESENTAÇÃO do povo de S. João D‟el Rey contra o exagero da quota arbitrada para derrama. RAPM, 1900, p. 206. SOBRE a derrama lançada em 1772. RAPM, 1897, p. 368. SUPLICAS dos mineiros de São João Del-Rey, referentes às execuções por dívidas. RAPM, 1897, p. 371. TERMO da Real Junta sobre a derrama do Quinto do ouro de 1772. RAPM, 1900. p. 175. Referência bibliográfica REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 121 ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 1998. 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O referencial teórico aplicado foi o de identidades provinciais idealizado pelo historiador norteamericano Jack Greene. A aplicação deste referencial em um estudo de caso especifico, como o da cidade de são Paulo entre o final do XVIII e o início do XIX, revelou a emergência de um tópico de identidade, o de cidadão da cidade, tensões que esta nova valoração despertou com os emigrados, especialmente do reino e como estes procuraram se inserir na câmara, como estratégia para alcançar histórico de serviços e reconhecimento locais que lhes garantissem a condição de cidadãos da cidade. A principal conclusão deste texto é a de que no contexto de transformações políticas e econômicas do atlântico, neste período, novos tópicos de identidade, com matiz local, ganharam evidência. Palavras-chave: Câmara Municipal; Identidade; Independência. Abstract: This paper discusses how the council functioned as a space formulation of identity as a citizen of the city in a context of arising of the emigration and migration in the Portuguese Atlantic . The theoretical framework was applied to provincial identities designed by American historian Jack Greene . The application of this standard in a specific case study, as the city of St. Paul between the late 18th and early 19th centuries, revealed the emergence of a topic of identity, a citizen of the city, tensions aroused with this new valuation emigrants , especially the kingdom and how they sought to enter the council , as a strategy to achieve service history and local recognition that guarantee to them the condition of citizens of the city . The main conclusion of this paper is 1 Professor Assistente Doutor, Universidade Estadual Paulista, São Paulo. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 124 that in the context of political and economic transformations of the Atlantic , during this period , new topics of identity, with color local reached evidence. Key-words: Municipal Camara; Identity; Independence. A s câmaras instaladas no Brasil desde os primórdios da colonização foram instituições de governo local transferidas de Portugal 2 e que ao longo de três séculos se multiplicaram por todo o território. Embora houvesse uniformidade em sua estrutura funcional e obrigações judiciais-administrativa seu status, perfil de funcionários e dinâmica de funcionamento foram caracterizados pela diversidade. Estas instituições de governo local, portanto, não foram uma réplica das portuguesas e estiveram sob influência direta das mudanças políticas, demográficas e econômicas do atlântico português 3. Este tópico da história institucional do Brasil conta com volumosa historiografia renovada pela abordagem teórico-metodológica do Antigo Regime português. Através desta abordagem, a formação do Brasil-colônia passou a ser compreendida como desdobramento de uma lógica de privilégios e benefícios própria do antigo regime português e este processo teria ocorrido através das instituições políticas4. De um modo geral estes estudos Cunha, Mafalda Soares e Teresa Fonseca (org). Os municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais. Évora, Edições Colibri/CIDEHUS/EU, 2005. 3 A história atlântica é uma corrente teórico-metodológica norte americana que desde a sua formalização acadêmica, através da Revista Atlantic Studies e dos seminários da Harvard University tem adotado o atlântico com norteador da sua análise histórica. As sociedades formadas no atlântico, desde o advento de sua travessia pelos ibéricos a partir do século XV tiveram individualidades nacionais, como defendem alguns autores, mas também estiveram sob influência de forças históricas comuns que lhe fornecem uma unidade. Tais forças históricas, conforme vem sendo trabalhado por alguns autores, são o capitalismo, as relações inter-étnicas como base dos processos de ocupação e colonização, a diáspora negra, os sistemas monárquicos – católicas ou parlamentar -, os fluxos migratórios europeus espontâneos, as disputas trans-imperiais pelo acesso às fontes de abastecimento de gêneros coloniais, o liberalismo, a luta por afirmação de novas identidades, os movimentos de independência política. Cf: BAYLIN, Bernard. Atlantic history: concept and contours. Cambridge, Massachussetts, Harvard University Press, 2005 e RUSSELL-WOOD, A. J. R. Sulcando os mares: um historiador do império português enfrenta a “Atlantic History”. História (São Paulo). V. 28, n. 1 Franca, 2009: 17-70. 4 Refiro-me a abordagem do antigo regime. Cf. FRAGOSO, João Luís Ribeiro; BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Fátima. O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). RJ, Ed. Civilização Brasileira, 2001, pp. 381-420; GOUVÊA, Maria de Fátima e BICALHO, Maria Fernanda B. Uma leitura do Brasil colonial: bases da materialidade e da governabilidade no Império. Penélope, n. 23, 2000, pp. 67-88. Na 2 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 125 aplicaram esta mesma chave interpretativa para todo o século XVIII, avançando, inclusive, nas duas primeiras décadas do século XIX. O século XVIII, contudo e especialmente a sua segunda metade, exigem a colocação de novos tipos de problemas tendo em vista que este é um período de mudanças políticas e econômicas, com a valorização comercial do atlântico e a elevação do status politico dos territórios da América. Estes dois processos tiveram desdobramentos do ponto de vista do movimento das populações, da expansão das ideias liberais, dos movimentos de independência e da maneira como os habitantes destas regiões se auto-definiam. Neste caso, a divisão cronológica proposta por uma obra pioneira como a de Edmundo Zenha, para o tratamento desta questão merece ser retomada e, se associada às novas questões políticas, econômicas e demográficas do atlântico português na segunda metade do século XVIII pode fornecer novas hipóteses de trabalho5. Para este autor há dois períodos na história desta instituição: antes e depois de 1700. Nos séculos XVI e XVII estas instituições tiveram poder administrativo-judicial amplo e eram efetivos lugares institucionais de status, prestígio e afirmação de fidelidades ao rei, ocupando, portanto, uma posição proeminente na lógica do antigo regime português. Com a ampliação da estrutura funcional do Estado português na América, a partir do século XVIII, os cargos da câmara deixaram de ser alvo da cobiça dos habitantes da colônia, que preferiam posições mais altas na administração ou preparar seus filhos para tanto. Em virtude disto, para ele, o século XVIII assinala o início de um processo de definhamento do prestígio, poder político-administrativo e judicial da câmara. Do ponto de vista do enfraquecimento do poder políticoadministrativo esta é uma conclusão já derrubada pela historiografia. Contudo, o século XVIII coloca uma série de questões novas, no âmbito do historiografia sobre câmaras cf. COMMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a câmara de Porto Alegre (1767-1808). Niteró-UFF, Dissertação de Mestrado, 2006; JESUS, Nauk Maria. Na trama dos conflitos: administração na fronteira oeste da América Portuguesa (1719-1778). Dep. de História da UFF, Tese de doutorado, 2006;SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio del poder en el Brasil colonial: la Cámara municipal de Recife (1710-1822). Salamanca, Tesis Doctoral, Universidad de Salamanca, 2007; MONTEIRO, Livia Nascimento. Administrando o bem comum: os “Homens bons” e a câmara de São João del Rey, 1730-1760. Dissertação de Mestrado, História Social, Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. 5 ZENHA, Edmundo. O município no Brasil, 1532-1700. SP, Instituto Progresso Editorial, 1948. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 126 atlântico português, no que diz respeito à expansão e diversificação demográfica das cidades, a valorização do espaço atlântico pelos Impérios europeus e no caso português, ao território do Brasil, que estimula novas perguntas e formas de analisar esta instituição. Este texto discorda da conclusão de Zenha, porque reconhece o vigor da instituição camarária no século XVIII do ponto de vista administrativo, com força peticionária e de sugestão na política do Império. Trabalhos como os de Maria Fernanda Bicalho, que iniciou a valorização do tópico câmaras no estudo do Império português lançou a importante questão do poder de interlocução camarária com o Reino.6 Desde a fundação do Conselho Ultramarino em Lisboa (1642), por exemplo, estas instituições obtiveram o poder de interlocução com as autoridades estabelecidas no reino e o exerceram intensamente. Câmaras como as da Bahia (1549), São Paulo (1560) e Rio de Janeiro (1565) tiveram saltos significativos na sua comunicação. Na conjuntura de 1642-1696 estas câmaras enviaram para o reino, respetivamente, 20, 0 e 110 correspondências. No período posterior, de 1696 a 1749, estes dados foram alterados para, respectivamente, 364, 40 e 431 correspondências enviadas 7. Contudo, acredito que as mudanças sofridas pelo atlântico português no século XVIII, como a valorização do seu potencial econômico e de recursos naturais para os Impérios europeus como um todo, e, portanto não apenas para Portugal e o estímulo que isto trouxe para a mobilidade demográfica espontânea e forçada para e na América influenciou a dinâmica das instituições camarárias, que se tornaram um espaço de ressignificação das identidades em virtude da presença mais diversificada nos municípios de indivíduos de várias origens regionais. É esta perspectiva que será desenvolvida neste texto. Ou seja, as câmaras como formuladoras de identidades locais, cujas posições funcionais eram ocupadas pelos nascidos no lugar. O controle do poder camarário pelos nascidos na localidade já era uma tradição no Brasil e foi interpretada pela historiografia do ponto de vista da constituição do poder e influência da nobreza da terra, herdeira da geração dos primeiros BICALHO, Maria Fernanda Baptista. História do Brasil. História Moderna. História Moderna, História do Poder e das idéias políticas. In: Arruda, J. J. e Fonseca, Luís Adão (org.) Brasil-Portugal. História. Agenda para o milênio. Bauru, SP: EDSC; São Paulo: FAPESP; Portugal, PT: ICCTI, pp. 143-166, 2001 e BICALHO, Maria Fernanda Baptista. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. RJ, Ed. Civilização Brasileira, 2003. 7 Dados obtidos a partir do Projeto de Extensão As Câmaras nos documentos do Arquivo Ultramarino: catalogação digital das cartas camarárias do Projeto Resgate “Barão do Rio Branco” 6 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 127 conquistadores ou da construção de uma identidade de fiéis vassalos do rei, em virtude de serviços prestados. Mas na segunda metade do século XVIII esta questão pode ser analisada na perspectiva do esforço de distinção dos moradores nascidos em uma dada localidade, em relação às levas de migrantes e imigrados que passaram a viver nas cidades litorâneas ou de sua hinterland. Em relação aos provenientes do reino e tendo em vista a valoração da condição de nascido no lugar, recorrer aos cargos da câmara era uma maneira de construir um histórico de serviços no local, que pelo menos os alçasse a condição de cidadãos da localidade. Investigar e analisar o papel das câmaras como núcleo constituidor de novas identidades pode contribuir para a compreensão da sua própria participação no processo de independência e sua força de articulação e legitimação desta movimentação política por todo o território8. Para desenvolver esta discussão sobre as câmaras como espaço institucional de reordenamento das identidades no Império português, diante das novas problemáticas políticas e demográficas do atlântico, como a valorização do território do Brasil e a intensificação dos fluxos migratórios e emigratórios, estou aplicando o conceito de “identidades provinciais” de Jack Greenne Na perspectiva deste autor este conceito esta relacionado à maturação de diferentes auto-definições dos habitantes das colônias através do acúmulo de suas experiências coletivas na colonização da América e no contato com as populações nativas. Segundo Greene, na sua reflexão em torno das colônias da Virginia, Barbados, Jamaica e Carolina do sul “se os colonos compartilhavam de uma identidade britânica comum, ela existia em toda parte em simbiose com outra identidade que tinha base regional e social”. A força alcançada por estas identidades regionais pode ser um dos argumentos explicativos para os colonos terem desistido de sua identidade britânica. Além disto, os “líderes da resistência colonial”, conforme suas palavras, já tinham consolidado a certeza de serem “protestantes nascidos livres e herdeiros das tradições britânicas do governo consensual e do domínio da lei” 9 SOUZA, Iara Lis C. de. Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônomo (1780-1831). São Paulo, Ed. UNESP, 1999. 9 GREENE, Jack P. Reformulando a identidade inglesa na América Britânica colonial: adaptação cultural e experiência cultural na construção de identidades corporativas. Almanack Braziliense, n. 4, novembro de 2006: pp. 16-17. 8 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 128 A aplicação destas ideias no contexto da América portuguesa, leva à conclusão de que a condição de natural, com histórico de serviços na vila ou cidade tinha a dimensão de uma identidade regional ou local, mas como variação de uma identidade macro de pertencimento a uma Monarquia, cuja figura do rei, serviços prestados e fidelidades também eram invocados. Certamente, o processo de independência do Brasil tem relação com a consolidação destas identidades regionais. Ao mesmo tempo e na medida em que esta independência foi fortemente caracterizada por fatores de continuidade política em relação à ordem anterior, especialmente do ponto de vista da manutenção da Monarquia sob a dinastia de Bragança, pode-se cogitar a hipótese da segurança destas identidades regionais de não estarem perdendo os vínculos com o rei e a Monarquia, elemento antigo e central na definição da identidade de vassalo do rei. Para desenvolver este argumento de fortalecimento de uma identidade de nascido e com histórico de serviços no local e a posição da câmara neste processo dividi este texto em três partes: na primeira mostro como no tratamento do tema governo local ou câmaras municipais de vilas e cidades do Brasil ainda não houve a sua valorização como espaço institucional de formulação e afirmação de identidades locais, diante do contexto da segunda metade do XVIII de intensificação das migrações e emigrações para as cidades. Na segunda parte uso o caso da cidade de São Paulo para mostrar como inclusive áreas periféricas do ponto de vista político e econômico, também estiveram sob o impacto destes movimentos humanos, promoveram a diversificação regional de seu habitantes, algo que favoreceu a emergência de novos tópicos definidores de identidade, como a de cidadão nascido na cidade ou cidadão da cidade, para o caso dos provenientes do reino. Na terceira parte do artigo e ainda prosseguindo neste caso específico, mostro como os cargos da câmara eram procurados tanto por nascidos no Brasil como por portugueses como parte da estratégia para alcançar reconhecimento e construir um histórico de serviços locais que o elevariam a condição de cidadãos da cidade. Câmaras municipais e historiografia A historiografia sobre câmaras no Brasil colonial é bastante eclética. Há trabalhos que interpretam sua dinâmica de funcionamento norteados por diferentes correntes teórico-metodológicas, como a do Antigo Regime REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 129 português10, a do patrimonialismo11, do Antigo sistema colonial 12 e da genealogia do poder e do estado moderno conforme as lições do filósofo Michel Foucault13. A característica comum a todas elas, contudo, é a adoção do modelo monográfico, herdado da tradição historiográfica portuguesa sobre este assunto em especial14. Todos estes estudos, de modo geral, contribuíram para a compressão do governo local das câmaras na sua relação com a vida da cidade colonial, principalmente no que diz respeito à gestão do uso do espaço público e da economia de abastecimento ou mesmo de exportação15. Poucos autores apenas ensaiaram um tratamento do assunto que envolvesse o confronto entre mais de um concelho, como eram também chamadas as câmaras. Iniciativas de pesquisa como estas poderiam levar a novas problematizações, como a das relações intercamarárias, que tanto poderiam ser de ajuda mútua, em circunstâncias de interlocução coletiva com o rei ou com o Conselho Ultramarino para reclamar ou sugerir mudanças na política régia, como de rivalidades16. COMISSOLI, Adriano, op. cit, 2006; JESUS, Nauk Maria de, op. cit, 2006; MATHIAS, Fernanda Fioravante Kelmer. ÀS CUSTAS DO SANGUE, FAZENDA E ESCRAVOS”: formas de enriquecimento e padrão de ocupação dos ofícios da Câmara de Vila Rica, c. 1711 – c. 1736. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008; MONTEIRO, Livia Nascimento, op. cit, 2010. Borrego, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo (1711-1765). SP, Ed. Alameda, 2010. 11 RIBEIRO, Fernando V. Aguiar. Poder local e patrimonialismo: a câmara municipal e a concessão de terras urbanas na vila de São Paulo, (1560-1765). Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 2010. 12 LUCIANI, Fernanda Trindade. Munícipes e escabinos: poder local e guerra de restauração no Brasil holandês (1630-1654). São Paulo, Dissertação de Mestrado, FFLCH-USP, 2007. 13 CALBENTE, Leandro. Administração colonial e poder: a governança da cidade de são Paulo (1765-1802). Dissertação de Mestrado, FFHCH – Universidade de São Paulo, 2008. 14 CUNHA, Mafalda Soares e FONSECA, Teresa (org). Os municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais. 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Franca, UNESP, Dissertação de Mestrado, 2009. 10 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 130 Até o momento não surgiu nenhum estudo em perspectiva comparativa desta instituição, sabendo-se que tanto na América hispânica como na britânica existiram instituições de governo local também dotadas de atribuições econômicas, administrativas e judiciais17. Mas já começam a aparecer novas formas de abordagem do tema, que ao invés de documentar o perfil geral de oficiais e funcionários da câmara tem optado por investir na pesquisa de um único tipo de funcionário. 18 No que diz respeito à formulação de identidades no Império português a partir da inserção no espaço camarário, a historiografia que adota as diretrizes teórico-metodológicas do antigo regime foi a que mais trouxe contribuições. De um modo geral os autores associaram esta problemática à qualificação de cidadão, que na dinâmica do antigo regime português dizia respeito a uma lógica de privilégios e benefícios 19. Nem todos tinham o status ou qualificações que lhes permitiam se auto-definir como cidadãos, embora todos os moradores livres de uma determinada vila ou cidade e inclusive os índios, pudessem se auto-denominar vassalos do rei. A identidade de cidadão era envergada por aqueles que possuíam algumas condições como agraciamento por mercês e títulos em virtude de serviços prestados ao rei, exercício de governo ocupando cargo público na câmara, matrimônio com filhos de cidadãos, ser letrado, neto ou filho de cidadão. A identidade de cidadão, portanto, esta vinculada à relação com a ordem régia. Livia Nascimento, contudo, baseando-se em ensaio de Antonio Manuel Hespanha levantou uma questão que permite o desenvolvimento da idéia central deste artigo, ou seja, o da formulação de uma identidade local, de cidadão da cidade. Nas palavras de Hespanha e que endossam a reflexão desta autora, cidadão dizia respeito também a estar “radicado, morar e exercer cargos principalmente nas câmaras municipais”. Nas palavras da autora, “cidadão apontava para a relação indivíduo e sociedade local, assim como a pertencimento ou não a Império português”20. É este tópico de identidade ligada a um histórico de serviços Sugestão de pesquisa de John Russell-Wood. Cf. O governo local na América Portuguesa: um estudo de divergência cultural. Revista de História, n. 9, jan/março 1977: pp. 76-79. 18 Schmachtenberg, Ricardo. “A arte de governar”: redes de poder e relações familiares entre os juízes almotacés na câmara municipal de Rio Pardo/RS, 1811-c.1830. São Leopoldo, Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, 2012, 426 p. 19 FIORAVANTE, Fernanda, p. 16; JESUS, Nauk Maria, pp. 267-68. 20 MONTEIRO, Lívia Nacimento, op. cit., 34. 17 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 131 locais que acredito ganhar evidência especialmente em uma conjuntura de diversificação do espaço das cidades coloniais com a presença de indivíduos provenientes de várias partes da América portuguesa. A condição de cidadão da cidade ou de nascido na cidade teria sido, portanto, uma nova formulação de identidade, mas que a partir da segunda metade do século deve ser interpretada não mais dentro da chave do privilégio. Os moradores da colônia já estavam seguros – algo tido por Jack Geene como psicologicamente importante – da sua condição de fiéis vassalos do rei, pois era longa a trajetória de serviços prestados por sua ascendência21. Em um contexto de intensificação dos fluxos e diversidade demográfico urgia firmar sua identidade nascidos e com histórico de serviços locais. Movimentos de população em regiões periféricas da América portuguesa Mesmo cidades econômica e politicamente periféricas foram cenário de cruzamento de migrantes e emigrantes de várias naturalidades. Este movimento pode ser explicado pelo impacto das “forças e motivações atlânticas” de uma determinada época, tais como o da movimentação das populações 22. Como hinterland da cidade do Rio de Janeiro e da vila marítima de Santos, única com capacidade de navegação atlântica na costa da capitania de mesmo nome e na do Rio Grande 23, a cidade de São Paulo foi um espaço de atração da diáspora portuguesa, africana e, inclusive, de população interna à colônia. Pela sua condição de entreposto comercial, a cidade de São Paulo foi um espaço de oportunidades econômicas no ramo da prestação de serviços correlatos á atividade mercantil. O historiador Carville Earle mostrou em seu estudo o quanto cidades com esta condição de entreposto MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1986; Romeiro, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das minas: idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2008. 22 MILLETT, Nathaniel. Bordelands in the atlantic world. Atlantic Studies, v. 10, n. 2, p. 278, 2013; ADELMAN, Jeremy & ARON, Stephen. From borderlands to borders: Empires, NationStates and the peoples in north America History. The American Historical Review, v. 104, n. 3, jun 1999, p. 823. 23 BROWN, Larissa. Internal commerce in a colonial economy: Rio de Janeiro and its hinterland, 1790-1822. University of Virginia, 1986; MOURA, Denise. Entre o atlântico e a costa: confluência de rotas mercantis num porto periférico da América portuguesa (18081822). Tempo. Rio de Janeiro, volume 17, n. 34, 2013, 95-116. 21 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 132 comercial ou que faziam parte da hinterland de uma cidade marítima central eram promissoras do ponto de vista das atividades que forneciam suporte material para o comércio, como a prestação de serviços. Nos Maços de População da cidade, um tipo de fonte censitária da época, de fato percebe-se que o número de “Artistas” era superior ao de negociantes. Em 1794 eles eram, respectivamente 357 e 20624. Segundo o dicionarista dos Setecentos, Raphael Bluteau, artistas eram os destros em alguma arte, sendo que a arte também era definida como a arte mecânica, da qual dependiam todas as outras, como a agricultura, a caça, a guerra, todos os ofícios fabris, as cirurgias, as artes de tecer e navegar 25. De fato, a cidade de São Paulo abrigava uma infinidade de artes mecânicas que podem ser consideras suporte para o comércio, como os ferreiros, folquejadores de madeira, carregadores de capim, vendedores de “comida de rua”, ou seja, feita na rua, donos de estalagens, e portanto, estalajadeiros, aqueles que alugavam pastos para pouso de animais e gente em trânsito26 O historiador Carville Earle mostrou em seu estudo o quanto cidades com esta condição de entreposto comercial ou que faziam parte da hinterland de uma cidade marítima eram promissoras do ponto de vista destas atividades subsidiárias do comércio. Esta questão justifica o fato da cidade de São Paulo ter sido uma área de atração de emigrados e migrantes internos. Em estudo sobre a presença portuguesa na capitania de São Paulo, Carlos de Almeida Prado Bacellar mostrou que a cidade de São Paulo estava em segundo lugar, atrás, portanto, apenas da vila de Santos, na recepção de emigrados portugueses27. Os dados da tabela abaixo se restringem à cidade de São Paulo e fornecem uma aproximada e pequena imagem deste fluxo humano para a região: Ocupações dos habitantes da paróquia da cidade de São Paulo, 1798. Maços de População. Arquivo do Estado de São Paulo, disco 1, filme 003, 1794. 25 http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/1/arte 26 MOURA, Denise A Soares. Sociedade movediça: economia, cultura e relações sociais em São Paulo (1808-1850). São Paulo, Ed. UNESP, 2006; CARVILLE, Earle & HOFFMAN, Ronald. Urban development in the Eighteenth-Century South. Perspectives in American History, Cambridge, v. 10, p. 50-55, 1976. 24 Bacellar, Carlos de Almeida Prado. Os reinóis na população paulista às vésperas da independência. Oceanos. n. 44, out/dez. de 2000, p.25 . 27 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 133 Lisboa 43 Braga 29 Porto 23 Senhora da Ajuda 10 Viseu 06 Guimarães 03 Traz os Montes 02 Santa Maria de 02 Vimiosa Coimbra 02 Ponte de Lima 02 Mogege 01 Barcelos 01 Badajós 01 Leiria 01 Minho 01 Vila Viçosa 02 Ponte de Lima 01 Santiago 01 São Silvestre 01 São Cristovão 01 Douro 01 Vila Real 01 Amarante 01 Vila de Albuquerque 01 Alenquer 01 Vila Pouca da Beira 01 Penafiel 01 139 Total Tabela 1: População livre nascida em partes de Portugal e residente na cidade de São Paulo. Dados coletados em Maços de População., 1ª. 2ª e 3ª Companhia da Capital. APESP, 1803, disco 1, filme 4. Mas havia também uma população proveniente das ilhas portuguesas, conforme evidencia a tabela 2. Estes novos habitantes da cidade também eram provenientes de várias partes da capitania. Das vilas próximas, como Parnaíba, eles eram em torno de 117. Das vilas do sul, como Curitiba e Castro perfaziam 21. Das vilas do litoral sul, como Iguape e Paranaguá, eram 118. Das partes de Minas formavam um conjunto de 54 individuos e do Rio de Janeiro eram 45. Nesta época o número de pessoas que declarou ter nascido na cidade foi um total de 2.512 28. Este também é um dado interessante. Até 1802 os Maços de População não forneciam a Dados extraídos dos Marços de Maços de População. 1ª. 2ª e 3ª Companhia da Capital. APESP, 1803, disco 1, filme 4. 28 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 134 naturalidade do indivíduo. A partir do censo de 1803 esta informação passa a constar do documento, o que sugere uma valoração da especificação da naturalidade. Ilha da Madeira Cabo Verde Ilha do Faial Ilhas Ilha Terceira Ilha de São Miguel do Bispado de Angra Ilha Graciosa Total Tabela 2: População livre nascida nas ilhas e residente coletados em Maços de População., 1ª. 2ª e 3ª Companhia filme 4. 06 03 02 02 02 01 01 17 na cidade de São Paulo. Dados da Capital. APESP, 1803, disco 1, A valoração da condição de nascido na cidade de São Paulo é algo já enunciado na genealogia de Pedro Taques, escrita entre 1740-177029. Há indícios na escrita pública da época que a consolidação dessa identidade de nascido na cidade de São Paulo pode ter levado a certos constrangimentos em relação aos emigrados, que poderiam ser alvo de epítetos. Este é um tipo de reação própria das rivalidades étnico-culturais ou regionais. Na época os provenientes do reino, sem histórico de serviços na cidade, receberam o apelido de “novatos”. Em 1796, o parecerista da Academia Real das Ciências que analisou aquela que viria a ser as Memórias para a História da capitania de São Vicente determinou que “o epytheto novatos que no §51 dá aos Portuguezes recentemente chegados a terra, se converta em outro mais próprio ou em uma periphase, que exprima o mesmo pensamento”.30 No dicionário de Raphael Bluteau, novato significava imperito, que por sua vez estava relacionado à indouto, ignorante, tosco na arte que exercia31. Para o português recém-chegado uma das saídas para reelaborar a sua identidade em um contexto de valoração da condição de nascido na cidade era construir um histórico de serviços no local e isto poderia ser feito LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia paulistana, histórica e genealógica. (17401770)5ª. Ed. Belo Horizonte: São Paulo, Editoria Itatiaia: EDUSP, 1980, 3 volumes. 30 Parecer (1796). Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. São Paulo, Typografia da Companhia Industrial de São Paulo, 1896, p. 25. 31 http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/1/novato 29 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 135 através da ocupação de cargos na câmara, algo que pelo menos o alçaria à condição de cidadão da cidade. Portugueses na magistratura municipal A administração pública municipal da cidade de São Paulo contava a presença de provenientes do reino, como demonstram os Maços de População. Não foi possível, contudo, traçar o seu perfil socioeconômico mais geral, porque seus inventários não foram localizados no Arquivo do Estado, instituição que abriga auto-cíveis produzidos na época colonial. A documentação paroquial, como os registros de óbito, casamento, batismo de seus filhos, poderia oferecer dados para traçar este perfil, mas demandaria muito tempo de pesquisa. Em virtude disto optou em rastrear a presença destes portugueses na documentação administrativa, tanto enviada para o Conselho Ultramarino como para as autoridades internas na colônia. A pouca presença destes camaristas de origem portuguesa neste tipo de documentação sugere que eles não foram homens de projeção econômica ou política Entre 1796-1822 a cidade de São Paulo possuiu 27 juízes ordinários que exerceram 24 mandatos com duração de um ano – há uma lacuna na documentação da Câmara entre os anos 1803, 1804, 1805 e 1807 - . Destes 27 foi possível identificar a naturalidade de 11, ou seja, de 40,7%. Destes, apenas dois eram portugueses: um de Guimarães e outro do Bispado de Aveiro. Dos nascidos em São Paulo, 2 eram de Cotia, termo da cidade e 7 eram naturais da própria cidade, ou seja, a maioria. A dita “magistratura da terra”,32 porque eleita pela localidade, era uma das posições mais prestigiosas e de maior autoridade no âmbito local, certamente até mais do que a de vereador. Enquanto os vereadores tinham atribuições administrativas, os juízes ordinários tinham poder judiciário, lidando com as questões litigiosas do município. Eles tinham o poder de abrir devassa, mandar prender e verificar as contas do procurador e do tesoureiro do ano anterior. Cargos como estes, de juiz de fora, por ser um dos mais importantes na localidade não foi ocupado, contudo, por tipos com características de recém-chegados. Os dois portugueses identificados neste cargo tinham um histórico antigo na cidade e na administração pública 32 ZENHA, Edmundo.op. cit,, p. 60. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 136 municipal. José Vaz de Carvalho era formado em Coimbra e imigrou de Portugal em 1774 e no ano seguinte, em 1775, casou-se com uma mulher da cidade, descendente de negociante que fez fortuna no centro-sul na primeira metade do século XVIII. 33 Ou seja, quando ele ocupou o cargo de juiz ordinário, em 1798 e 1799 não era propriamente um recém-imigrado. Por outro lado, o seu segundo mandato, o de 1799 não foi por eleição, mas por decisão do governador Antonio Manuel de Melo Castro e Mendonça, que ordenou a permanência dos juízes ordinários eleitos em 1798.34 Assim que chegou à cidade de São Paulo José Vaz deu jeito de casar-se com mulher da terra, empregando, portanto, a clássica estratégia de inserção social dos imigrados. João Gomes Guimarães também era casado. Ele também era um mercador, certamente com menor projeção sócio-econômica do que José Vaz, pois pouco aparece na escrita pública no que diz respeito aos seus negócios, ao contrário deste último. Em 1794 ele requereu licença para viajar para Lisboa, alegando a necessidade de tratar moléstias de sua mulher, mas também “por negócios que interessa nesta Corte”.35 Ele era ainda capitão reformado no Terço de Infantaria Auxiliar na Marinha de Santos, o que sugere que tinha boas relações com o governador, que nomeava para esta posição, e a vila de Santos era a principal praça mercantil da costa da capitania de São Paulo. Contudo, o que pesava e foi registrado no histórico de João Gomes Guimarães era uma antiga trajetória na carreira municipal. José Vaz de Carvalho, embora em menor proporção do que João Gomes, também já tinha uma herança de atuação municipal. Fora almotacé em duas ocasiões, entre 1775 e 1786 e juiz em 1798 e 1799. João Gomes começou como almotacé e ocupou esta função por 6 vezes, em 1783, 1788-1789, 1791 e 1798-99. Em 1800 foi vereador e alcançou visibilidade na cidade por defender os taverneiros vendedores de sal. Para a trajetória deste negociante cf. MEDICI, Ana Paula. Administrando conflitos: o exercício do poder e os interesses mercantis na capitania/província de São Paulo (1765-1822). São Paulo, FFLCH – USP, 2010, (História, Tese de Doutorado). 34 PROVISÃO (cópia) do príncipe regente D. João, ao governador e capitão general da capitania de São Paulo, Antônio José da Franca e Horta ordenando que apresente o seu parecer dobre o libelo crime do coronel de Milícias da cidade de São Paulo, Jerónimo Martins Fernandes da Franca e Horta. AHU_ACL_CU_023, Cx. 20, D. 978. 35 Requerimento do capitão da Ordenança na cidade de São Paulo, João Gomes Guimarães, à rainha [D. Maria I], solicitando licença para passar para o Reino com sua mulher. AHU_ACL_CU_023, Cx. 12, D. 591 33 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 137 Nesse mesmo ano ele foi preso pelo governador Antonio Manoel de Mello Castro e Mendonça por incitar os membros da câmara a não obedecerem a portaria deste mesmo governador, que tirava o monopólio de venda do sal das mãos dos taverneiros e passava para a sua própria. 36 Essa antiguidade de atuação de João Gomes Guimarães em 7 mandatos certamente influenciou o resultado favorável de sua eleição para ocupar o posto de juiz ordinário em 1806. Ou seja, o topo da sua carreira como homem público da localidade. Tal notoriedade e reconhecimento podem ser vislumbrados na sua capacidade de fazer o governador Antonio José da Franca e Horta receber uma provisão e repreensão do Príncipe Regente, por sua atitude de oposição à prisão e abertura de devassa contra o físico-mor Mariano José do Amaral feita por este mesmo juiz ordinário. 37 Um histórico de atuação pública numa localidade equiparava o indivíduo a um natural da cidade. Na Nobiliarquia Paulistana, de Pedro Taques, João Franco Viegas, era natural da vila de Portela, na comarca de Évora e “cidadão republicano de São Paulo”. 38 O reinol João Gomes Guimarães alcançou o importante posto de “magistrado da terra” justamente por ser um “cidadão republicano de São Paulo”. Outros, mesmo com formação em Leis cívicas não alcançaram este posto, como Nicolau de Campos Vergueiro, cujos registros indicam que atuava na cidade desde 1779. Na época existiam na cidade apenas mais outros dois advogados.39 Manoel Joaquim de Ornellas era um deles e fora juiz ordinário em 1775. Mas depois disto apenas ocupou dois mandatos de vereador e no intervalo desta pesquisa não esteve mais na função de juiz. Ofício para o dito Secretário de Estado sobre a prisão de João Gomes Guimarães (1800). Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. São Paulo, Typographia do Diário Oficial, 1899, v. 29, pp. 203-205. 37 Carta de governador e capitão general da capitania de São Paulo, Antonio José da Franca e Horta, ao Príncipe regente [D. João], solicitando que não tenha efeito a provisão de 27 de novembro de 1806 que lhe repreendia a forma como foram feitos os exames da devassa tirada contra o físico-mor desta capitania, Mariano José do Amaral, pelo juiz ordinário, João Gomes Guimarães, acerca da morte de Jerônimo José de Freitas. Ordenava o registro desta provisão nos livros da Secretaria do governo do Estado de São Paulo, para que servisse de exemplo aos futuros governadores. AHU_ACL_CU_023, Cx. 30, D. 1324. 38 TAQUES, Pedro. Op. cit, vol. 1, p. 99. 39 Apud nota 1 In: Rendon, José Arouche de Toledo. Officio que acompanha as reflexões sobre a agricultura na capitania de São Paulo. Documentos Interessantes para a História da capitania de São Paulo. Diversos, São Paulo, Typographia Cardozo Filho & Companhia, 1915, p. 214 36 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 138 Ou seja, entre 1795-1822, um dos cargos da administração municipal de maior prestígio e autoridade local, como o de juiz ordinário da cidade esteve predominantemente nas mãos de naturais de São Paulo. Os dois únicos reinóis que o ocuparam possuíam condições muito especiais: um a prosperidade nos negócios e ambos um histórico de atuação nos serviços da república. A almotaçaria: um desvio dos embaraços para os reinóis que pretendiam a vereança. Em relação aos vereadores foram identificados 49 e a naturalidade de 34, ou seja, de 69,38%. Destes 10 eram de origem portuguesa e 24 eram nascidos em partes da capitania de São Paulo, sendo 16 na cidade, dois em Parnaíba, dois em Santos, um em Jundiaí, um em Mogy e um em Guaratinguetá. Dos 10 portugueses, 5 eram nascidos na região do Minho, 3 de Lisboa e um do Porto. Além disto, 7 deles eram casados, sendo um com mulher da Ilha da Madeira e outro com uma de Paranaguá. Os outros 3 eram solteiros. Destes 10 portugueses, 3 repetiram seus mandatos 2 vezes e um repetiu por 3 vezes. Isto significa que esse era um reduzido e concentrado universo de reinóis que conseguiu ser eleito para o topo da hierarquia da câmara, ou seja, para o cargo de vereador. A almotaçaria, que foi o primeiro degrau para a entrada de negociantes na câmara, conforme sugeriu Maria de Fátima Gouvêa e demonstrou Maria Borrego,40 manteve-se como degrau obrigatório para os nascidos no reino.41 Conforme pode ser percebido na tabela 1, exposta abaixo, dos 10 vereadores nascidos no reino, 6 começaram pela almotaçaria, ou seja, 60% dos identificados. Na comparação com os nascidos na capitania, na tabela 2, dos 24 apenas 9 começaram por este cargo (o que corresponde a 37,5% do total). A função de almotacé não era prestigiosa e nem eletiva e mesmo GOUVÊA, Maria de Fátima da Silva. Poder, autoridade e o Senado da Câmara do Rio de Janeiro, ca. 1780-1820. Tempo. v. 7, n. 13, 2002: 111-155 e BORREGO, Maria Aparecida. Op. cit.. 41 Essa questão é válida para as câmaras mais antigas, sedes de capitanias. Essas câmaras tinham maior status na hierarquia institucional municipal, tendo inclusive, o staus e prerrogativas da prestigiosa câmara do Porto. Processo diferente se deu nas câmaras de formação tardia e em áreas onde existia uma necessidade premente de estimular a ocupação. Cf. Schmachtenberg, Ricardo. Schmachtenberg, Ricardo. Op. cit. 40 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 139 um individuo de baixa inserção social poderia ser indicado para esta função. Tabela 1: trajetória dos vereadores nascidos em Portugal na câmara. Dados recolhidos nas Atas da Câmara entre os anos 1796-1822. Arquivo Histórico Municipal de São Paulo e nas Listas nominativas de 1802 a 1822. Arquivo do Estado de São Paulo Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 140 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 141 Tabela 2: trajetória dos vereadores nascidos na América portuguesa na câmara. Dados recolhidos nas Atas da Câmara entre os anos 1796-1822. Arquivo Histórico Municipal de São Paulo e nas Listas nominativas de 1802 a 1822. Arquivo do Estado de São Paulo. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 142 Ou seja, para ser indicado para o cargo de almotacé o indivíduo não necessitava ser amplamente conhecido na localidade. O exercício da tarefa era de alta rotatividade, pois este funcionário permanecia apenas 3 meses no cargo e oferecia os seus serviços. A rotatividade era uma maneira de evitar os desvios da função, tendo em vista que ela era basicamente fiscalizatória. Mas tornar-se um almotacé era uma maneira de ganhar visibilidade junto à elite de votantes da cidade. Ou seja, para um reinol, ainda esta função era uma via inicial de inserção local. Dos três casos de reinóis que foram apenas vereadores, cumpre destacar que dois deles tiveram condições diferenciadas em relação aos outros de mesma naturalidade. Todos eram negociantes, mas Antonio Cardoso Nogueira era matriculado na Junta de Comércio. Nicolau de Campos Vergueiro era Bacharel, formado em Coimbra, o que em certa medida, lhe dava notoriedade, como visto acima. A formação capacitou-o para a vereança sem necessitar passar pela almotaçaria, mas não para a “magistratura da terra”. Sua projeção econômica começaria apenas tardiamente, em 1816, quando se associou a Luís Antonio de Souza, com o fim de produzir açúcar, criar animais, até tornar-se senhor do famoso engenho de Ibicaba.42 Ou seja, a formação em leis civis poderia até atenuar os constrangimentos para os reinóis se inserirem no funcionalismo público local, mas apenas para alguns cargos e não necessariamente o hierarquicamente inferior, mas superior em autoridade e prestígio local, como o de juiz ordinário. Vergueiro ocupou apenas o posto de vereador em 1813. Em 1808 ele requereu à Câmara o cargo de juiz das medições da Comarca,43 o que não deixa de ser também uma iniciativa para tornar-se conhecido junto a um órgão legal de poder no qual, futuramente, ocuparia um cargo por eleição. Na documentação administrativa da câmara e dos governadores, todos os reinóis identificados aparecem como negociantes. A natureza da fonte não permite categorizá-los, mas pode-se concluir que eram indivíduos que viviam dos seus negócios e não do amanho da terra nas LEONZO, Nanci. Luis Antonio de Souza era Coronel do Regimento de Infantaria de Milícia da Vila de Sorocaba. Cf. LEONZO, Nanci. Um empresário nas milícias paulistas: o Brigadeiro Luis Antonio de Souza. Anais do Museu Paulista. N. 30, 1980/81, p. 247. 43 Para a Câmara desta cidade Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. Correspondência Oficial do capitão-general Antonio José da Franca e Horta (1806-1810). São Paulo, Edições do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Vol. 57, 1937, p. 311. 42 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 143 freguesias da cidade. Certamente a condição de emigrado dificultava-lhes o acesso imediato a terra. Apenas um negociante reinol tentou diversificar seus negócios criando gado. O comércio da carne verde ou fresca era muito importante nas cidades coloniais e as criações do planalto tinham como destino o corte no açougue público. Contudo, Manuel Alves Alvim sofria com as dificuldades de tentar ser um criador sem ser senhor de terras. Em 1798 ele representou à Câmara sobre a necessidade que tinha de fazer pastar seu gado e para tanto, ofereceu-se para consertar o aterrado na vargem de Santana. Em troca teria a pastagem para os seus animais. Mas um capitão-mor do mesmo bairro representou para a mesma câmara contra esta sua proposta.44 A patente militar de ordenança também era uma maneira de se alcançar reconhecimento social local, qualificando-se para os cargos eleitos da câmara. Dos 10 reinóis, apenas 4 não tiveram patente: dois letrados e os outros dois não há indicação nas fontes. A diferença entre nascidos na cidade e reinóis pode ser notada na distribuição dessas patentes militares de ordenanças, um dos principais meios de se alcançar identidade de vassalo fiel, honrado e bom prestador de serviços ao rei, visto que essas patentes deveriam ser assinadas pelo “régio punho”, mas também reconhecimento local, pois a câmara indicava o nome do agraciado ao governador, que a concedia e nomeava o indicado. Como pode ser acompanhado comparando a tabelas 1, acima exposta, com a de número 2, acima exposta, dos 10 reinóis, apenas 4 tiveram patente, sendo dois capitães, um tenente e um sargento. O restante ou não há referência alguma, dois eram letrados e um era Guarda-mor na Parnaíba. Dos 24 vereadores nascidos na cidade, 15 alcançaram o mais alto posto, o de capitão, dois foram coronéis e 4 tenentes, perfazendo um total de 21 ordenanças. Certamente não deve ter sido algo fácil para os reinóis conseguirem a indicação de seu nome pela câmara para a nomeação ao posto. Dos quatro reinóis que alcançaram postos nas milícias, três foram fora da cidade: um em Santos, um em Paranaguá e outro na Parnaíba. Curioso é Para a câmara desta cidade. Documentos Interessantes para história e Costumes de São Paulo. Ofícios do capitão-general Antonio Manuel de Melo Castro e Mendonça (governador da capitania, 1797-1801. São Paulo, Departamento do Arquivo Público do Estado-Secretaria da Educação, v. 87, 1963, p. 117. 44 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 144 que duas delas eram litorâneas na costa sul, ou seja, porta de entrada para muitos reinóis no período. O regimento das ordenanças previa que o nomeado deveria residir no local de sua nomeação. Mas não era isso o que geralmente ocorria. Manuel Lopes Guimarães conseguiu o seu posto de sargento-mor de ordenança na vila de Paranaguá, de onde, inclusive, era nascida sua mulher. Contudo, ele vivia na cidade de São Paulo. Ele era um imigrante reinol, certamente mais inserido na vila de Paranaguá, pois lá se casara, mas tinha poucos contatos na cidade de São Paulo. Em 1791 ele ocupou seu primeiro cargo na câmara da cidade, como almotacé. Mas isto não foi suficiente para ser indicado pela instituição para ocupar o posto de ordenança. Na câmara de Paranaguá, vila natal de sua mulher, ele conseguiu esta nomeação, que em 1793 o governador Bernardo José de Lorena pôs em cheque por ele residir na cidade de São Paulo, o que ia contra a determinação do regimento.45 Grandes negociantes, como José Vaz de Carvalho e Luis Antonio de Souza, alcançaram a patente militar em área onde comprovadamente tinham interesses econômicos.46 Mas para os negociantes de menor expressão, que não se tornaram arrematadores de contratos públicos e pouco ou nada aparecem na escrita pública e nem mesmo deixaram inventários, seguir para outro termo ou vila era uma maneira de começar a trilhar o caminho cada mais concorrido da notoriedade local. A procuradoria municipal: uma esfera de poder local dos reinóis Dentre o funcionalismo municipal, o cargo de procurador foi aquele que de fato concentrou o maior número de reinóis em condições opostas aos daqueles que ocuparam os postos de vereador e juiz ordinário. Dos 20 procuradores do período, 14 eram portugueses. Número, portanto, expressivo, em relação a estes dois últimos cargos. Destes 14, apenas 5 eram casados. Ou seja, a maioria ainda não tinha alcançado um nível de Para a Câmara de Paranaguá. Documentos Interessantes para História e Costumes de São Paulo. Ofícios do general Bernardo José de Lorena aos diversos funcionários da capitania, 1788-1795. São Paulo, Duprat & Companhia, 1924, v. 46, p. 223. 46 Luis Antonio de Souza era Coronel do Regimento de Infantaria de Milícia da Vila de Sorocaba. Cf. LEONZO, Nanci. Op. cit. José Vaz de Carvalho era Coronel do Primeiro Regimento de Cavalaria Miliciana de Curitiba. Seus interesses estavam ligados ao comércio de animais entre o Viamão e Curitiba e contratos públicos em São Pedro e Curitiba sobre este mesmo negócio. Cf sua exitosa trajetória em Médici, Ana Paula. op. cit. 45 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 145 inserção social própria daqueles que se casavam com mulheres da cidade. Apenas um chegou ao cargo de vereador, após o exercício de três mandatos na procuradoria. Embora não se possa esperar uma definição clara das funções de procurador na colônia, Edmundo Zenha nos permite concluir que ele tinha funções fiscais, como a do almotacé, mas também informativas, mantendo a câmara informada de tudo o que acontecia, mas também de ouvidoria, ou seja, recebendo as queixas e reclamações dos habitantes da cidade. Eles eram também responsáveis pelo livro de contas da câmara, no qual eram registrados seus orçamentos e despesas. A condição de negociantes poderia torna-los mais capacitados ou pelo menos mais bem vistos para exercerem este tipo de função específica na câmara. Ou seja, diferente do cargo de vereador, que implicava numa atuação no âmbito da própria câmara, quando aconteciam as vereanças, o cargo de procurador, assim como o de almotacé, implicava numa atuação pública, nas ruas da cidade e em contato direto com a população de um modo geral, fossem negociantes, vendedores de loja aberta, arrematadores de contratos públicos de abastecimento, população pobre livre ou escrava. Esse era um tipo de atuação menos prestigioso, mas que implicava em maior visibilidade, criando condições para um maior reconhecimento e inserção social local. Os procuradores, quando foram oficiais de ordenança, alcançaram baixa patente e eram indivíduos de baixo estrato social, pequenos negociantes. Na posição de baixa patente, desempenharam tarefas nada prestigiosas, como a de acompanhar os presos pelas ruas da cidade, em certo dia da semana, quando saiam acorrentados “a pedir esmola para o sustento dos mesmos”.47 Como pode ser visto na tabela 3, quase todos os reinóis estiveram entre uma e outra função: ora almotacé, ora procurador. A fronteira entre estas duas funções da câmara parecem ter sido bastante tênues, embora o acesso a uma fosse por eleição, no caso do procurador e a outra, de almotacé, fosse por indicação dos oficiais principais da edilidade. Nessas baixas instâncias da administração pública local os reinóis encontraram menos embaraços para entrar. Eles, inclusive, foram maioria. Esse dado sugere o quanto, de fato, “os nascidos na cidade” procuraram Para o juiz de fora, pela lei desta cidade. Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. Correspondência Official, 1820-1822. São Paulo, Typografia Andrade & Mello, 1902, v. 37, p. 70. 47 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 146 assegurar sua precedência em funções prestigiosas, em detrimento daquelas não apenas menos enobrecedoras, como de lida fiscalizatória de todos os problemas da cidade. Tabela 3: trajetória dos procuradores nascidos em Portugal na câmara. Dados levantados nas Atas da Câmara entre os anos 1796-1822. Arquivo Histórico Municipal de São Paulo nas Listas nominativas de 1802 a 1822. Arquivo do Estado de São Paulo. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 147 Na documentação do Conselho Ultramarino, onde é possível encontrar evidências de interlocução de habitantes das terras do Brasil com o rei, não há um único registro destes reinóis que ocuparam o cargo de procurador na cidade, ao contrário do que ocorre com os de juiz ordinário, principalmente e os de vereador, que escreveram petições, requerimentos, moveram libelos crime ou fizeram denúncias abertas contra governadores da capitania.48 Estes procuradores, nascidos no reino, não tiveram, pelo menos no período trabalhado, qualificações necessárias para este tipo de ação. Mal conseguiram inserir-se nas ordenanças. Como pode ser verificado na tabela 3, apenas um alcançou a patente de capitão e dos outros 4 com registros nesse sentido, 3 foram tenentes e 1 alferes. José Pinto Tavares, o único provido no posto de capitão, não tinha patente assinada pelo “régio punho”, o que levou, por ironia do destino, que um nascido na cidade, Francisco Pereira Mendes, que começou na vida municipal como vereador em 1786 e tornou-se juiz em 1808, a requerer confirmação neste posto, em detrimento de Tavares.49 PROVISÃO (cópia) do príncipe regente D. João, ao governador e capitão general da capitania de São Paulo, Antônio José da Franca e Horta ordenando que apresente o seu parecer dobre o libelo crime do coronel de Milícias da cidade de São Paulo, Jerónimo Martins Fernandes da Franca e Horta. AHU-São Paulo-cx.18, doc. 10; CARTA de governador e capitão general da capitania de São Paulo, Antônio José de Franca e Horta, ao príncipe regente [D. João], solicitando que não tenha efeito a provisão de 27 de Novembro de 1806 que lhe repreendia a forma como foram feitos os exames da devassa tirada contra o físico-mor desta capitania, Mariano José do Amaral, pelo juiz ordinário, João Gomes Guimarães, acerca da morte de Jerônimo José de Freitas. Ordenava o registro desta provisão nos livros da Secretaria do governo do Estado de São Paulo, para que servisse de exemplo aos futuros governadores. Anexo: provisão, 4 atestados (4 cópias), certidão, carta régia (cópia), bando (cópia), 4 ofícios (cópias), AHU _São Paulo, cx. 28, doc. 28; REQUERIMENTO de Alexandre Pereira Diniz, como procurador de Salvador Nardi de Vasconcelos, ao príncipe regente [D. João], solicitando o hábito da Ordem de Cristo, como havia sido determinado pelo ex-governador e capitão general da capitania de São Paulo, conde de Sarzedas, Bernardo José e Lorena Silveira. Anexo: certidão de requerimento, lembrete. AHU-São Paulo, cx. 27, doc. 24. Há muitos outros registros que poderiam ser indicados. 49 Para o Conselho Ultramarino informando a Provisão de 27 de agosto de 1804 sobre o requerimento de Francisco Pereira Mendes. Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. Ofícios do general Horta aos vice-reis e ministros, 1802-1807. São Paulo, Editora UNESP/Secretaria de Estado da Cultura/Arquivo do Estado, 1990, v. 94, p. 74 e Documentos que acompanharam o ofício n. 3 de 8 de fevereiro de 1805 dirigido ao Conselho Ultramarino. Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. Ofícios do general Horta aos 48 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 148 Conclusão O objetivo deste texto foi o de mostrar como as câmaras foram espaço de formação de identidades e histórico de serviços locais em um contexto de intensificação dos movimentos humanos e que tornaram os ambientes urbanos do período mais diversificados do ponto de vista da coabitação de várias naturalidades. Esta nova realidade demográficourbana da segunda metade do século XVIII fomentou os conflitos regionais, com destaque para aqueles que ocorreram entre nascidos e com histórico de serviços no local e portugueses provenientes do reino. Ambos os grupos aproveitaram os cargos da câmara como um suporte para a afirmação desta identidade de serviços locais. Embora a condição de vassalo ainda fosse invocada, ela estava tendo de dividir lugar com a de cidadão da cidade. A vasta literatura sobre as câmaras ainda não explorou esta questão, que pode contribuir para o debate sobre o processo de construção das identidades no Brasil após a independência. Referência bibliográfica ADELMAN, Jeremy & ARON, Stephen. From borderlands to borders: Empires, Nation-States and the peoples in north America History. The American Historical Review, v. 104, n. 3, jun 1999, p. 823 BAYLIN, Bernard. Atlantic history: concept and contours. Cambridge, Massachussetts, Harvard University Press, 2005. 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REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 151 Comércio e câmaras Regulamentação e vigilância1 1 Thiago Alves Dias Resumo: Nesse artigo pretendemos contribuir para o debate acerca da atuação das câmaras municipais na regulamentação e vigilância do comércio e das práticas mercantis nas vilas e cidades na América portuguesa, tomando como exemplo as vilas da Capitania do Rio Grande do Norte, assim como sua sede de governo, a cidade de Natal, a partir da segunda metade do século XVIII e primeiras décadas do século XIX. Palavras-chave: Câmaras. Comércio. Regulamentação. Vigilância. Abstract: In this article we intend to contribute to the debate about the role of municipalities in the regulation and surveillance of trade and commercial practices in the towns and cities in Portuguese America, taking as an example the towns of the Province of Rio Grande do Norte, as well as his seat of government the city of Natal, from the second half of the eighteenth century and the first decades of the nineteenth century. Key words: Council. Trade. Regulations. Surveillance. J osé Francisco de Paula Cavalcante, Capitão-Mor da Capitania do Rio Grande do Norte, enviou ao Príncipe Regente D. João, em 1806, uma extensa carta contento informações populacionais da Capitania. Consta na mesma que havia na capitania naquele ano, 177 negociantes, perfazendo pouco mais que 0,3 % do total da população apresentada na carta2. Poucos Sou grato a Luís Rezende e Fernando Ribeiro, amigos da pós-graduação, que juntos ministramos no primeiro semestre de 2013, no âmbito da Universidade de São Paulo, um curso de extensão, intitulado “Câmaras Municipais no Brasil Colonial: formação, historiografia e fontes”. Aos alunos do curso sou agradecido pelas inquietações que nos conduziram aos debates. 2 AHU_ACL_CU_18, CX. 9, D. 623. CARTA do [Capitão-Mor do Rio Grande do Norte], José Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque, ao príncipe regente [D. João] remetendo um 1 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 152 anos depois, num Mapa Estatístico da Capitania, compilado entre 1811 e 1813, existiam na Capitania 469 negociantes, representando quase 1% da população total apresentada no documento 3. De um censo populacional para outro, num intervalo de aproximadamente sete anos, a população absoluta da Capitania só havia aumentado em 1.238 habitantes, por outro lado, o número de negociantes praticamente triplicou. Conscientes das incertezas e flexibilizações com as quais devemos analisar essa documentação, partimos do pressuposto que esses números demonstram a atração, sempre crescente, que as práticas mercantis incitaram as sociedades modernas. Esses negociantes, cujos produtos de comercialização não foram identificados nos mapas apresentados, poderiam ser mercadores de grãos, cereais, vinhos, aguardente, panos, pescados, frutas, candeias, carnes, comerciantes de armarinhos, de drogas aromáticas ou medicinais; seja qual fosse sua ocupação mercantil ou produto comercializado, caso a mercadoria não fosse por unidade, tais mercadores deveriam possuir pesos e medidas específicos, ditados pelo Código Filipino; regulado e vigiado pela Câmara. Diante dos vários artigos e disposições do Código acerca da regulamentação do comércio, os pesos e medidas ganham notoriedade a partir das Câmaras. Os pesos e medidas deveriam ser regulados de acordo com os padrões emitidos pelo Reino e devidamente prescrito no Código Filipino, como um exemplo claro da intervenção do Estado sobre as práticas mercantis. Conforme o Código, é necessário que “os Oficiais dos Conselhos saibam quais e quantos padrões, medidas e pesos são obrigados ter, e isso mesmo as pessoas, que por razão dos seus ofícios são obrigados a ter pesos e medidas” 4. Embora haja uma aparente distinção entre aqueles que eram oficiais de ofícios mecânicos e os negociantes, é possível afirmar que, na maioria das vezes, aqueles que exerciam determinados tipo de ofício eram os mesmos que mantinham lojas abertas ou comercializavam em suas casas mapa da população do Rio Grande do Norte e uma relação dos distritos que necessitam de novas companhias de ordenanças. 3 BNRJ, I – 32, 10, 5. Mapas estatísticos do Rio Grande do Norte. 1811-1826-1834. Mapa geral da Importação, Produção, Consumo, Exportação, o que ficou em ser, da População, Casamentos, Nascimentos e Mortes na Capitania do Rio Grande do Norte calculado o termo médio dos anos de 1811, 1812 e 1813. Doc. 12. 4 CODIGO Filipino, ou, Ordenacoes e Leis do Reino de Portugal: recompiladas por mandado d‟el-Rei D. Filipe I. Ed. fac.- similar da 14a ed. de 1821 / por Candido Mendes de Almeida. Brasilia: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. (Edicoes do Senado Federal, v. 38), tomo I, tit. XVIII. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 153 e oficinas. Esse foi o caso, por exemplo, dos ourives e boticários, que além de produzirem, acabavam também comercializando seus produtos. Para esses oficiais e negociantes, o Código Filipino exigia que possuíssem, em seu poder, pesos e medidas específicos. Esse texto pretende contribuir para o debate acerca da atuação das câmaras municipais na regulamentação e vigilância do comércio e das práticas mercantis nas vilas e cidades, tomando como exemplo as vilas da Capitania do Rio Grande do Norte, assim como a sede do governo, a cidade de Natal, a partir da segunda metade do século XVIII a c.1827. Os mecanismos que regulam e vigiam o comércio As licenças de comércio para abertura de lojas e práticas de ofício, emitidas pela Câmara, constituíam um dos primeiros dispositivos de regulamentação mercantil. Isso porque elas deveriam ser requisitadas em Câmara logo no início do ano. Tal como os proprietários de lojas e tabernas eram obrigados a possuir licenças para abertura de comércio, os oficiais de ofícios mecânicos também necessitavam de licenças para o exercício do ofício e a venda dos produtos produzidos. De ofícios e conhecimento especializado, os mestres, oficiais ou aprendizes de sapateiro, ourives e alfaiates, por exemplo, deveriam registrar-se na câmara e tirar sua licença. Para a vigilância dos oficiais especializados e da qualidade de seus produtos ofertados, a Câmara passava provisão a um Juiz de Ofício, “para por eles serem encaminhados todos os oficiais que com lojas abertas trabalhassem, para que tenham precedente a provação de inteligência e idoneidade dos dados juízes” 5. Para melhor exemplificarmos a relação entre as licenças de ofício e comércio na Capitania do Rio Grande do Norte, partimos do ofício de sapateiro. Num registro de licença de Juiz de Ofício de Sapateiro da Cidade de Natal, o “mestre e oficial mais capaz Ignácio de Mello” é registrado como o Juiz de seu ofício em 1782, sendo que, “no ofício de sapateiro cotidianamente necessário deviam aplicar-se” a inteligência e idoneidade de seu julgar e “dele usar os que dissessem [ter] a requisita inteligência e suficiência” para serem sapateiros, “guardando-se a lei e regimento deste IHGRN, RCPSCN, cx. 04, lv. 12. Registro de uma provisão de Juiz de Ofício de Sapateiro passada ao mestre Ignácio de Mello morador nesta cidade. Natal, 06 de novembro de 1782. 5 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 154 Senado” 6. Assim, o Juiz de Ofício de Sapateiro, como qualquer outro juiz de ofício, constituía mais um dos mecanismos institucionais de regulamentação do comércio – eles iriam visitar as lojas e casas dos companheiros de ofício e de lá e de seus produtos, averiguariam sua capacidade de exercer tão antigo exercício técnico realizado sobre couro, cordas, agulhas e tesouras. O espaço institucional, portanto, estende seus braços sobre os ateliers, casas e oficinas diversas. Ao analisarmos o “Mapa dos oficiais de ofícios mecânicos que existem na Capitania do Rio Grande do Norte designado os lugares de seus domicílios”, datado de 1827, e, provavelmente, produzido entre 1817 e 1821, constatamos que havia nesse período 132 sapateiros entre mestres, oficiais e aprendizes, distribuídos por toda a Capitania 7. Embora o maior produtor de couro tenha sido o sertão colonial, estabeleceram-se, no litoral, seus mais significativos beneficiadores, como o sapateiro, por exemplo. Representando 84% dos oficiais totais desse segmento na Capitania, esses homens e mulheres manejaram o couro, seja ele de boi, bode ou veado, cortaram tiras e talões, fizeram chinelos e sapatos diversos. Nunca será demais lembrar as celebres frases de Capistrano de Abreu 8 acerca da época do couro. Importante também notar que, de acordo com os mapas de importação da Capitania, entre os anos de 1811 e 1813, foram adquiridos 259 peças ou pacotes de tesouras e navalhas 9. No ano de 1811, a Vila de São José recebeu 200 tesouras e Extremoz, 120 facas 10. Pelo menos em 1811, IHGRN, RCPSCN, cx. 04, lv. 12. Registro de uma provisão de Juiz de Ofício de Sapateiro passada ao mestre Ignácio de Mello morador nesta cidade. Natal, 06 de novembro de 1782. 7 BNRJ, I - 32, 10, 5. Mapas estatísticos do Rio Grande do Norte. 1811-1826-1834. Mapa dos oficiais de ofícios mecânicos que existem na Capitania do Rio Grande do Norte designado os lugares de seus domicílios. Ano de 1827. Doc. 13. 8 “[...] de couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde a cama para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou alforge para levar comida, a maca para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, as bainhas de faca, as broacas e surrões, a roupa de entrar no mato, os banguês para cortume ou para apurar sal; para os açudes, o material de aterro era levado em couros puxados por juntas de bois que calcavam a terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco para o nariz”. ABREU, Capistrano. Capítulos de História Colonial. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d, p. 71. 9 BNRJ, I – 32, 10, 5. Mapas estatísticos do Rio Grande do Norte. 1811-1826-1834. Mapa geral da Importação, Produção, Consumo, Exportação, o que ficou em ser, da População, Casamentos, Nascimentos e Mortes na Capitania do Rio Grande do Norte calculado o termo médio dos anos de 1811, 1812 e 1813. Doc. 12. 10 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório Pombalino no século XVIII. 2005. fls 700. Tese ( Doutorado em História) ─ 6 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 155 nenhum desses produtos seguiu para as vilas e localidades sertanejas; ficaram as tesouras e as facas no litoral para, entre outros fins, a confecção de sapatos e chinelos com o couro vindo do sertão. Depois de tantos sapatos produzidos e muitos pés calçados na Capitania, outros tantos seguiam dos portos litorâneos em busca do comércio intracolonial ou alémmar. Pelas dificuldades de acesso a determinados produtos e pela intensa procura, Antonil afirmava, em 1711, o quão exorbitantes eram os preços dos mantimentos na “terra que dá ouro”, que um par de sapatos de cordovão, couro de bode ou carneiro amaciado, custava cinco oitavas, ou seja, 6$000 réis em Minas Gerais11. No entanto, na “terra que dá couro”, preços como esses para os sapatos e chinelos não eram praticados. De acordo com o Regimento do Ofício de Sapateiro de 1791, feito em vereação na Câmara de Natal, “todos os oficiais desse ofício devem ter” a listagem dos valores dos sapatos, chinelos e botas, especificados por tipo de material utilizado, tamanho e formato, além de constar quanto custa o material e quanto custa o trabalho do oficial, “nas suas tendas a vista do povo como determinaram os senhores oficiais da câmara” 12. (VER QUADRO 01) Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005, Anexos, Tabela 19: produtos importados pelas vilas do Rio Grande do Norte e seus preços médios em réis – 1811, p. 185. 11 ANTONIL, Andre Joao. Cultura e opulencia do Brasil. 3. ed. Belo Horizonte : Itatiaia/Edusp, 1982. (Colecao Reconquista do Brasil), p. 71. 12 IHGRN, RCPSCN, cx. 05, lv. 15. Regimento do ofício de sapateiro feito em vereação de 12 de março de 1791, ouvido os oficiais deste ofício. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 156 QUADRO 01 – Preços em réis de chinelos, sapatos e botas em 1791, determinado pela Câmara de Natal FONTE: IHGRN, RCPSCN, cx. 05, lv. 15. Regimento do ofício de sapateiro feito em vereação de 12 de março de 1791, ouvido os oficiais deste ofício. Como podemos observar no Quadro 01, a Câmara regulava não só o preço dos produtos advindos das oficinas dos sapateiros, como determinava quanto eles deviam ganhar por cada peça feita e vendida. É possível também perceber que, embora os tamanhos e formatos dos produtos tenham valores diferenciados, o material utilizado na confecção do calçado fazia variar o preço. Os produtos feitos de cordovão custavam, em média, 10 % mais caro que os produtos fabricados com couro de veado e 20% mais caro daqueles de cabra, por exemplo. Outros detalhes, nos calçados, também faziam diferença de preço, como o talão. Este é a parte que assenta sobre o calcanhar formando um salto, sendo cosido à peça que faz o formato do pé. Com cadarços ou sem, rasos ou com talão, furados ou forrados, para REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 157 homens, mulheres ou crianças, qualquer que fosse o modelo ou tamanho, a Câmara fez questão de arrolar e arregimentar seu preço de venda e o ganho do sapateiro sobre o produto. A cobrança dos impostos e taxas sobre a produção e comércio visava, além de garantir o fluxo corrente das riquezas coloniais para a Metrópole, regulamentar a prática cotidiana comercial dos vassalos. Implicava, portanto, que todos aqueles que desejassem realizar práticas mercantis, deveriam estar cientes de que, para isso, necessitariam arcar com a tributação real. Sendo assim, a própria existência e as cobranças dos impostos já implicam na regulamentação desse comércio. Comerciar, além de representar possibilidade de ascensão social, era também aceitar as prerrogativas inerentes à prática e, acima de tudo, estar sob a égide da Coroa e seus mecanismos de regulamentação. Ao observarmos o quadro a seguir, teremos noção da variedade de tributos e taxas cobrados durante todo o período colonial. (VER QUADRO 2). No Quadro 02 constam 18 impostos, dos quais cinco eram tributos eventuais (Paz da Holanda, Finta da Rainha, Donativo Voluntário, Benefício do Banco do Brasil e a Taxa Sumptuária) e os demais permanentes. Dos 18 diferentes impostos cobrados na América portuguesa e estabelecidos durante quase toda a totalidade do período colonial, 50% deles foram condicionados a partir das práticas comerciais. Na totalidade da documentação analisada para esse estudo, encontramos referências, muitas vezes esparsas, a todos os impostos tributados sobre o comércio e cobrados aos habitantes da Capitania do Rio Grande do Norte, no entanto, por uma questão metodológica, escolhemos apenas dois deles, os Direitos de Entrada e os Direitos de Passagem, que podem exemplificar a discussão proposta nesse item: impostos enquanto regulamentação do comércio. Nessa seleção, levamos em consideração a capacidade de mensuração da relevância dos entroncamentos mercantis da Capitania do Rio Grande do Norte, a partir da regulamentação que havia sobre a entrada e saída de pessoas, animais e produtos, assim como o fluxo dessa mercadoria a partir das passagens sobre estradas e rios. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 158 QUADRO 02 – Tributação Régia no Brasil FONTE: ACIOLI, V. L. C.; ASSIS, V. M. A. de; BARBOSA, M. S. F. Fontes repatriadas: anotações de história colonial, referências para pesquisa, índices do Catálogo da Capitania de Pernambuco,. Recife: EDUFPE, 2006, p. 51. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 159 O imposto sobre as entradas foi instituído no intuito de legitimar a soberania institucional e fronteiriça de cada Capitania, controlar o comércio intracolonial, angariar recursos para a Fazenda Real, além de controlar os furtos de gado. Dessa forma, todos que entrassem ou saíssem da Capitania, com mercadorias ou animais, deveriam pagar os devidos tributos. Para o não pagamento do imposto, no momento da entrada ou saída da Capitania, era indispensável ter efetivado o registro e recebido a licença do Senado da Câmara. Caso contrário, oficial competente, conhecido como Registrador, procedia com a autuação do indivíduo. Já o imposto sobre as passagens era cobrado, sobretudo, como uma espécie de pedágio para a travessia de rios e lagoas por aqueles que não possuíam embarcações. Comumente, as passagens de rios e lagoas realizadas, pelas embarcações, eram conferidas em arrematação ou concessão a terceiros, que acabavam pagando à Câmara o direito de possuírem a „passagem‟ de determinado rio ou lugar de difícil travessia, por exemplo. No caso da Capitania do Rio Grande do Norte, os impostos de entrada e passagem muitas vezes acabam se imbricando, haja vista que algumas das principais entradas da Capitania, sejam na Ribeira do Assú ou do Potengi, localizavam-se no delta dos rios Piranhas e Potengi, respectivamente, requerendo, muitas vezes, uma entrada em embarcação. Ainda no século XVII, encontramos os primeiros registros a respeito dos impostos de entrada e passagem da Capitania. Identificamos, na leitura e análise dos Termos de Vereação do Senado da Câmara de Natal, que a passagem da Ribeira de Natal, ou seja, da travessia do Rio Potengi, foi motivo de preocupação por parte da Câmara durante todo o período colonial, dada a relevância desse contrato para as práticas mercantis da Capitania. Com o passar dos anos, o contrato da passagem da Ribeira deixou de ser gerido pelo Senado da Câmara de Natal, tornando-se responsabilidade da Provedoria. Inconformada com essa situação, a Câmara alegou em 1795 que “em vista das rendas reduzidas da Câmara, por lhe faltarem os rendimentos do antigo julgado do Açu, hoje erigido Vila, e visto também a seca que quase extinguiu o gado, quase cessando o Contrato das Carnes, por onde a Câmara vendia em necessidade”, achou por bem requerer à Junta da Fazenda Real de Pernambuco a “administração do pequeno contrato de passagem do rio da Cidade, antes Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 160 da Câmara, depois com a Provedoria” 13. Renda segura, o contrato de Passagem da Ribeira da Cidade de Natal, foi motivo de disputa do Senado da Câmara com a Provedoria. Relevantes para o acesso à Capitania e circulação de pessoas e bens, os contratos de passagem também faziam parte das rendas das Câmaras, passando a ser gerido pela Provedoria da Fazenda, no caso da Ribeira da cidade de Natal. De acordo com o orçamento apresentado pela Fazenda Pública do Rio Grande do Norte no ano de 1822, a passagem da Ribeira da cidade do Natal rendeu nesse ano 104$033 réis 14. Soma-se aos mecanismos de regulamentação institucional camarária mercantil, o imposto sobre os registros de entrada e saída de bens e produtos da Capitania, assim como a figura responsável por essa regulamentação cotidiana, o Registrador. Para a legislação metropolitana, os registros eram “estabelecimentos, verdadeiras alfândegas à beira de vias fluviais e terrestres que tinham, por objetivo, a arrecadação dos direitos”, como nos caminhos do trânsito de tropas de gado, por exemplo. “Os registros eram sujeitos a rigorosos regimentos, a fim de que fosse evitado, sobretudo por omissão dos seus encarregados, o descaminho de quaisquer direitos devido ao Erário Real”, já a competência do registro, ficava a cargo do Provedor do registro que, além de manter-se vigilante, deveria tomar nota do dia, mês e ano em que o tropeiro registrou a passagem de tantos animais e a sua qualidade 15. Um dos caminhos antigos utilizados para sair da Capitania, direcionado ao sul, era o caminho de Tamatanduba, situado entre as atuais cidades de Pedro Velho e Canguaretama, usado normalmente pelos tropeiros e tangerinos para conduzir o gado a Pernambuco. Em 1674, o Governador de Pernambuco, Matias de Albuquerque, informou à Câmara de Natal que “o registro das marcas do gado que saía da Capitania não estava sendo feito, causando prejuízo”, sendo convocado um morador em Tamatanduba para fazer esse registro e evitar furtos durante a condução do gado 16. No ano de 1750, o Senado da Câmara de Natal resolveu nomear registradores de boiadas para outros lugares, como Assú, Utinga e Cunhaú, IHGRN, LTVSCN, Termo de Vereação de 11 de julho de 1795, cx. 02, lv. 1784-1803, fl. 50. AN, Série Interior, cód. fundo: AI, notação IJJ2 433, seção CODES, p. 65. 15 WESTPHALEN, Cecília Maria. Verbete: Registro. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Dicionário da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994,p. 691-692. 16 IHGRN, LTVSCN, Termo de Vereação de 24 de setembro de 1674, cx. 03, lv. 1674-1698, fl. 03-03v. 13 14 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 161 os quais deveriam cobrar os impostos dos rebanhos que se destinavam à praça mercantil de Natal ou a outros lugares. Ocorre que a Câmara decidiu que esses registradores nomeados, “por serem pessoas fidedignas e com bom conhecimento das marcas” de ferro utilizadas nos bois e identificando a que fazenda pertenciam, “pagar por cada registro de boiada $400 réis para o Registrador e $240 réis para o Escrivão da Câmara pela licença que o Senado deve dar”. Caso a boiada fosse somente até vinte reses, esse valor cairia pela metade e não pagaria a propina do escrivão. Levando em consideração as especificidades geográficas e comerciais das diferentes localidades da Capitania, determinaram que o Registrador da Ribeira do Assú registrasse o gado que se “vende nos barcos que vêm à dita ribeira e os que passarem deve registrar no Registro declarado” 17. Tal era o controle por parte da Câmara, que o aumento populacional e as mudanças promulgadas pelo Estado português pontearam a Capitania do Rio Grande do Norte com registros, vilas e Câmaras para a vigilância das práticas comerciais, das entradas, das saídas e das passagens no espaço institucional que se sobrepõem ao espaço colonial. Por outro lado, tão excessivo era esse controle que os comerciantes, sempre em busca de mercados mais rentáveis e longe das taxações e impostos, encontravam formas de lesar a Coroa, buscando caminhos diferentes longe dos Registradores, feiras em outras Capitanias, pouso em outras paragens menos institucionalizadas pelo braço gerencial do poder reinol. O gado não foi o único produto a ser controlado pelos dispositivos institucionais coloniais. A relevância econômica que a cotonicultura teve na Capitania do Rio Grande do Norte, sobretudo, a partir de 1776, quando foi deflagrada a Guerra de Independência dos Estados Unidos, principal fornecedor de algodão para os grandes teares industriais que surgiam na Inglaterra, impulsionaram esse atividade de agricultura mercantil no Rio Grande do Norte. Os EUA deixaram de fornecer a matéria prima essencial para as fábricas têxteis inglesas, levando-as a procurarem outros mercados fornecedores. Embora, nas terras chamadas de Novo Mundo, o algodão fosse nativo e já utilizado pelos autóctones, ganhou expressão mercantil durante o processo colonizador, culminando com a Revolução Industrial Inglesa. IHGRN, LTVSCN, Termo de Vereação de 25 de setembro de 1750, cx. 01, lv. 1745-1752, fl. 95-96. 17 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 162 A historiadora Denise Monteiro chama atenção para o fato de que “a economia da Capitania, até então baseada principalmente na pecuária, diversificou-se: era a primeira vez, desde o início do povoamento europeu, que um produto era cultivado em larga escala, visando à exportação para o exterior”18. Exportado para Lisboa, o desenvolvimento da atividade algodoeira encontrou, nas terras secas da Capitania do Rio Grande do Norte, forte recepção, além de ter constituído uma alternativa de ocupação econômica para grande parcela da população, formada por aqueles que haviam sido excluídos pelo sistema açucareiro implantado na América portuguesa, tais como homens e mulheres, pobres, livres ou escravos. Como esperado, diante de uma economia colonial em ascensão na América portuguesa, levas e levas de escravos africanos desembarcaram nos portos de Recife e seguiram para as lavouras algodoeiras da Capitania. De acordo com o “Mapa geral de todas as Vilas e Lugares que se tem erigido de 20 de maio de 1759, até o ultimo de agosto de 1763”, consta a existência de 15 escravos de ambos os sexos na Missão de Guajirú, às vésperas de ser erigida em Vila de Extremoz em 1760 19. Embora esse mapa de 1760 faça referências a todas as outras vilas fundadas na Capitania do Rio Grande do Norte em vários aspectos, somente a Missão de Guajirú, que iria ser transformada na Vila de Extremoz, no momento de sua criação, possuía escravos. Por outro lado, no “Mapa da Capitania do Rio Grande do Norte de 1805”, mandado confeccionar pelo Capitão-Mor José Francisco de Paula Cavalcante, pouco menos de 50 anos depois da fundação das novas vilas, já havia um contingente de escravos significativos nelas. QUADRO 03 - População escrava da Capitania do Rio Grande do Norte em 1805. FONTE: AHU_ACL_CU_018, Cx. 9, D. 623. CARTA do [Capitão-Mor do Rio Grande do Norte], José Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque, ao príncipe regente [D. João] remetendo um mapa da população do Rio Grande do Norte e uma relação dos distritos que necessitam de novas companhias de ordenanças. MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte, 2 ed. Natal: EDUFRN, 2002, p. 79. 19 AN, Série Vice-Reinado, cód. fundo: D9, notação: CX. 761, doc. 20, secção CODES. 18 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 163 Depreendemos do Quadro 03 que as cinco novas vilas criadas, a partir dos antigos aldeamentos indígenas, possuíam escravos e escravas em quantidades relevantes, considerando que, em 1760, somente a Missão de Guajirú – futura Vila de Extremoz – fez menção a 15 escravos, nos dados populacionais do período. Embora as informações populacionais, para escravos na Vila de Extremoz, estejam atreladas a Cidade do Natal e Arez, os minguados 15 escravos de 1760 transformaram-se, em 1805, após o surto algodoeiro de 1776, em um contingente de 2.144 escravos. Partindo de uma análise mais apurada dos dados, notamos que, caso somemos a população escrava contida no litoral, teremos 2.314 homens e mulheres, enquanto as duas únicas vilas do sertão, mencionadas no documento, juntas têm 2.272 escravos. Ao fazermos um cálculo simples e adicionarmos o número de escravos do litoral e dividirmos pela quantidade de localidades, teríamos uma média de 462 escravos por vila e a cidade do Natal. Fazendo esse mesmo exercício com as únicas duas vilas do sertão mencionadas, teremos nada mais do que 1.136 escravos, ou seja, quase 700 escravos a mais em cada vila sertaneja aludida. Sendo assim, o número de escravos e escravas que seguiram para as regiões sertanejas da Capitania do Rio Grande do Norte ultrapassou em dezenas o número de escravos que seguiam para a região litorânea 20. Entende-se que o número elevado de escravos no sertão da Capitania do Rio Grande do Norte esteja atrelado ao desenvolvimento de atividades produtivas em fazendas pecuaristas que combinaram o uso da terra com a produção algodoeira, em alguns casos. Noutros, dado o atrativo econômico que a cotonicultura representou, as terras foram destinadas ao algodão e eles trabalharam exclusivamente nos algodoais. No biênio 1762-1763, o número de escravos contabilizados na Capitania do Rio Grande do Norte foi de 4.499 homens e mulheres; em 1805, essa cifra aumentou para 4.586 e praticamente dobrou entre 1811 e 1813, alcançando a soma de 8.155 homens e mulheres sob condição cativa 21. “Ao lado desses lavradores e principalmente no litoral, onde a lavoura algodoeira também se expandiu e onde o trabalho escravo negro era mais significativo, os africanos constituíam uma mão de obra importante”. MONTEIRO, Denise M. Introdução à história do Rio Grande do Norte, p. 80. 21 RIBEIRO JÚNIOR, José. Colonização e monopólio no Nordeste brasileiro: a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, 1759-1780. São Paulo: HUCITEC, 1976, p. 72; AHU_ACL_CU_018, Cx. 9, D. 623. CARTA do [Capitão-Mor do Rio Grande do Norte], José Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque, ao príncipe regente [D. João] remetendo um mapa da população 20 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 164 Tão expressiva era a produção algodoeira da Capitania que, em 3 de fevereiro de 1820, D. João VI decretou a criação da Alfândega do Algodão na cidade do Natal. As motivações para o estabelecimento de tal instituição estão declaradas no documento: para que não se perca a boa qualidade do algodão e não se diminua, consequentemente, a sua extração22. No afã de controlar a produção algodoeira, que seguia para as praças mercantis das Capitanias vizinhas, sem realizar o pagamento devido do dízimo, a Junta da Fazenda Pública resolveu estabelecer nas passagens e lugares da Capitania do Rio Grande do Norte “registros de Portos Secos para por eles serem fornecidos as competentes guias aos condutores de algodão que desta referida Província as transportam aos mercados” de Ceará, Paraíba e Pernambuco, “para com esta nota serem apresentados nesta Junta, para na respectiva contadoria se poder proceder competente escrituração, e com conhecimento das quantias existentes nas diferentes caixas se possa encontrar o que houver produzido o referido Dízimo” 23. De acordo com a legislação aduaneira brasileira de 2009, Portos Secos são recintos alfandegários de uso público, situados em zona secundária, nos quais são executadas operações de movimentação, armazenagem e despacho aduaneiro de mercadorias e bagagens. Embora essa terminologia seja aparentemente de pouco conhecimento, ela já era usada no léxico alfandegário lusitano desde o século XVI. Bluteau apontava esse mesmo significado da expressão em seu dicionário do início do XVIII24. Francisco Ribeiro da Silva, num estudo sobre o fiscalismo e funcionamento das alfândegas lusitanas, afirma que as cobranças regulamentadas e as formas de arrecadação de impostos sobre importação e exportação de forma sistemática, em Portugal, são criações modernas, do Rio Grande do Norte e uma relação dos distritos que necessitam de novas companhias de ordenanças; BNRJ, I – 32, 10, 5. Mapas estatísticos do Rio Grande do Norte. 1811-1826-1834. Mapa geral da Importação, Produção, Consumo, Exportação, o que ficou em ser, da População, Casamentos, Nascimentos e Mortes na Capitania do Rio Grande do Norte calculado o termo médio dos anos de 1811, 1812 e 1813. Doc. 12. 22 AN, Série Interior, Cód. fundo: AI, notação: IJJ2-433, CODES. Decreto de criação da Alfandega de Inspeção do Algodão de 03 de fev. de 1820. 23 AN, Série Interior, Cód. Fun.: AI, Not.: IJJ2-433, Seç.: CODES. 24 BLUTEAU, Rafhael. Verbete: Portos. In: ______. Vocabulário Portuguez e latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. p. 636. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 165 notadamente a partir de 1587 25. Diante das diversas taxas alfandegarias instituídas e dos pontos estratégicos de escoamento, recebimento e cobrança de impostos de mercadorias, surgiu em Portugal uma distinção entre as alfândegas de Portos do Mar ou Molhadas e as de Portos Secos, especialmente, depois de 1668, com a aprovação do Regimento das Alfândegas dos Portos Secos, Molhados e Vedados – criado para regular o comércio com Castela. As alfândegas de Portos do Mar eram aquelas litorâneas e de comércio volumoso, sobretudo, em Lisboa e Porto; já os Portos Secos eram alfândegas distribuídas nas imediações fronteiriças com a Espanha, localizadas em lugares estratégicos, como rotas mercantis carroçáveis ou mesmo rios volumosos trafegáveis, como o Tejo ou o Douro. Nas alfândegas de Portos Secos, “fiscalizava-se as entradas dos gêneros permitidos e cobravam-se os direitos deles ou tomavam-se guias para a Alfândega de Lisboa, cuja entrada era afiançada por fiadores uma arrecadação de direitos específicos sobre a exportação de gêneros” 26. Conforme um ofício de 27 de março de 1822 – redigido pelo escrivão da Alfândega do Algodão e enviado ao Ouvidor da Comarca da Paraíba e ministros da Fazenda Pública do Ceará 27 –, foram designados para a Capitania 21 registradores de portos secos, distribuídos por toda a extensão da Capitania, sendo que dois portos estavam estabelecidos em Natal e as guias de passagens eram diretamente emitidas pela Casa da Fazenda, totalizando assim 23 portos. Esse ofício trás a relação dos registros de Portos Secos e seus respectivos registradores estabelecidos nas passagens e lugares “para fornecerem guias aos condutores de Algodão da mesma Província que os levarem ao mercado das Províncias de Pernambuco, Paraíba e Ceará” 28. A partir desse ofício é possível visualizarmos a distribuição geográfica dos Portos Secos da Capitania e o ponto de vigilância dos registradores, evidenciando, assim, os principais caminhos e pontos de escoamento de produção da Capitania. Dos 23 portos apontados no ofício, só fomos capazes, até o momento, de identificar 18 localidades, tendo em vista as mudanças toponímicas que essas localidades sofreram com o SILVA, Francisco Ribeiro da. Alfandegas lusas em finais de setecentos: fiscalidade e funcionalismo. In: O litoral em perspectiva historica (sec. XVI a XVIII). Anais... Cidade do Porto, Instituto de Historia Moderna, 2002, p. 205-216., p. 208. 26 SILVA, Francisco Ribeiro da. Idem, p. 210. 27 AN, Série Interior, Cód. Fun.: AI, Not.: IJJ2-433, Seç.: CODES. 28 AN, Série Interior, cód. fundo: AI, notação: IJJ2-433, Secção: CODES, p. 274. 25 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 166 passar dos anos. Com o auxilio bibliográfico de Nomes da Terra de Câmara Cascudo e Municípios do Rio Grande do Norte de Nestor Lima, localizamos num mapa atual do Estado do Rio Grande do Norte onde, possivelmente, se encontravam esses registradores e deviam ser emitidas as guias de condução do algodão. FIGURA 01 – Portos Secos da Capitania do Rio Grande do Norte. FONTE: Elaboração do autor a partir de informações contidas em: AN, Série Interior, cód. fundo: AI, notação: IJJ2-433, Secção: CODES, p. 274. Mapa baseado em base planimétrica elaborada a partir do mapa político-rodoviário do Estado do Rio Grande do Norte de escala 1:500.000. Instituto de Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte – IDEMA - Secretaria de Planejamento e Finanças, 1997. Como podemos visualizar no mapa, os Portos Secos estão estrategicamente dispostos nas imediações ribeirinhas, como o Rio Apodi, Piranhas-Assú e Curimataú, ou mesmo nas próprias praias, como Guamaré e Touros. Esses portos eram os responsáveis pela comunicação econômica da Capitania do Rio Grande do Norte com o sistema-mundo econômico colonial. Foram através desses portos, juntamente com os portos de Genipabú e Ponta Negra, que saíram da Capitania algodão, sal, couro, farinha, pau-brasil, os quais coloram o Rio Grande do Norte nos circuitos mercantis modernos. Por outro lado, por meio desses portos, a Coroa estabeleceu seus administradores e cobrou seus impostos. Observa-se também que existiam portos em locais de proximidades fronteiriças, como a Serra de Luis Gomes, Serra das Almas e Patú. Embora REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 167 não haja rios correndo próximo a essas localidades, elas encontram-se nas imediações fronteiriças da Capitania. Isso atesta que – apesar do desenho original, representado nos mapas do século XVI, mostrar as Capitanias como imensos estirões de terra retilíneos e aparentemente uniformes – o avanço populacional, as guerras, as entradas e a convivência nesses territórios acabaram configurando situações diversas, espaços coloniais multiformes e que já se configurava entre os administradores e CapitãesMores da Capitania o desenho territorial (que contribuiu para a conformação atual). É interessante notar que a terminologia “Portos Secos” – que em Portugal diferenciava os portos marítimos dos pontos de escoamento terrestre de produção – designou, no caso da Capitania do Rio Grande do Norte, pontos de vigilância mercantil pelas instituições coloniais e seus dispositivos de controle. Diante da lógica de controle estabelecida e dos mecanismos empregados pelas instituições coloniais aqui trabalhadas, embora alguns dos Portos Secos mencionados fossem de fato portos marítimos – que historicamente receberam embarcações desde o avanço colonizador português, como o Porto de Água Maré (Guamaré) e Petitinga –, eles foram considerados pontos de vigilância e conferência de produtos que saiam da Capitania. Licenças para aberturas de lojas e colocar em prática ofícios; impostos sobre comercialização de produtos, passagens, entradas e saída. Todos esses dispositivos fazem parte do universo regulamentador das práticas mercantis coloniais. Durante todo o período colonial e depois dele, em maior ou menor medida, todos os agentes mercantis – homens ou mulheres, comerciantes permanentes ou ambulantes – estiverem sob a égide normativa das instituições coloniais. Embora muitas vezes ocorra o descaminho, ou seja, a prática não permitida por esses agentes, eles estiveram constantemente sendo pressionados pela regulamentação institucional. Esmiuçado alguns dos mecanismos regulamentadores do comércio colonial, passemos ao exame dos mecanismos de vigilância, evidenciando os dispositivos utilizados para a fiscalização no cumprimento da norma esperada, pela Coroa, por seus vassalos. A excessiva preocupação do poder camarário, sobre produtos e locais de comercialização, visava a controlar atitudes ilícitas que muitos comerciantes praticavam à procura de benefício próprio, como comercializar os gêneros com medidas ou pesos diferentes no intuito de Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 168 burlarem o sistema de cobrança de impostos e, ao mesmo tempo, angariar maiores recursos. A Câmara vigilante: funcionários e funções Para efetivar essa fiscalização, a Câmara dispunha de funcionários específicos que participavam do cotidiano, deslocando-se aos locais de venda. Conhecedores das práticas comerciais rotineiras e dos esquemas usuais de burla dos comerciantes em relação às posturas, esses funcionários – revestidos do poder que lhes fora conferido ao assumirem um cargo real, isto é, legítimos representantes do Rei nos domínios ultramarinos – agiam de forma significativa para o efetivo controle dos colonos na América portuguesa. Eram os Almotacéis e os Aferidores. Herdeiro de uma tradição, que remonta o período no qual a Península Ibérica esteve sob domínio mouro 29, o Almotacé foi instituído na América Portuguesa em 1532 com a fundação da Vila de São Vicente, conservando suas aptidões e deveres que lhes foram designados desde o Código Manuelino de 152130. A escolha do ocupante desse cargo – normalmente eleito a cada dois meses – podia ser realizada de duas formas. No primeiro caso, e de maneira mais constante, escolhia-se em secção da Câmara um indivíduo que já havia servido no ano anterior, geralmente como juiz ordinário ou vereador. De outro modo, também em secção ordinária, os vereadores discutiam qual dos “homens bons” do termo da cidade teria requisitos fundamentais para o cargo, apesar de não ter servido na Câmara no ano anterior. Essa prática era emblemática do tipo de ritos institucionais inerentes à Câmara: durante um ano, o oficial legislava e punia os transgressores na condição de vereador ou juiz; no ano seguinte, na função de almotacé, iria colocar em prática aquilo que anteriormente legislou como vereador. Eram encarregados de executar tarefas específicas, principalmente, a respeito das práticas mercantis como: fiscalizar o abastecimento de víveres; vigiar as trocas comerciais, os produtos, preços e qualidades dos SILVA, Isis Messias. O municipio na colonia portuguesa na America. II Ciclo Internacional de Estudos Antigos e Medievais: religiao, religiosidade e politica no Mediterraneo Antigo e Medieval. In: Anais... Sao Paulo: UNESP, 2006., p. 6. 30 SALGADO, Graca. (Org.). Fiscais e meirinhos: a administracao no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/ Arquivo Nacional, 1985., p. 135. 29 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 169 gêneros comercializados; cuidar para que comércio fosse realizado apenas no local indicado; manter a ordem entre os vendedores do mercado; observar se as lojas e tabernas possuíam licença e outras incumbências 31. Inerente ao espaço institucional camarário, o Almotacé esteve presente em todas as vilas da Capitania do Rio Grande do Norte. Para exemplificar sua atuação institucional a partir da documentação camarária, escolhemos um aspecto de sua atuação enquanto sentinela do comércio colonial: a vigilância portuária e as denúncias de saída de víveres da Capitania. Nas duas últimas décadas do século XVIII, houve intensos períodos de estiagem na Capitania do Rio Grande do Norte, notadamente, nos anos de 1780 a 1785 e 1790 a 1795 32. As secas, desde os registros dos cronistas e viajantes coloniais, são seguidas de grandes distúrbios sociais provocados pela miséria. No entanto, “medidas governamentais contra os efeitos da seca só ganharam mais efetividade no decorrer do século XVIII, quando as zonas mais áridas do [que seria hoje] Nordeste foram definitivamente ocupadas pelos colonos e a pecuária” 33. Nesse sentido, pela documentação do Senado da Câmara de Natal, percebemos que a segunda metade do referido século notabilizou-se por diversas menções e ações para o convívio com os prolongados períodos de estiagem. Um dos mecanismos utilizados pela Câmara, para amenizar os efeitos da seca, era recrudescer a vigilância nos portos de Natal, ora não permitindo a saída de víveres, ora obrigando as embarcações que entrassem a vender ao povo de Natal. O Almotacé foi uma figura central no desenrolar dessas atividades. Na Vereação de 16 de dezembro de 1801, o Almotacé da Câmara de Natal informa ter cumprido a “Portaria que proibia saída de gêneros de primeira necessidade”. No entanto, ele estava sendo questionado em virtude de uma carta do Governador-Geral de Pernambuco, informando que aos portos de Recife “chegavam gêneros da Capitania do Rio Grande e por isso a cidade de Natal estava sofrendo, inclusive pelas lavouras que se degradavam, além dos muitos atravessadores”. O Almotacé defendeu-se proclamando que havia advertido “os atravessadores em geral e acusou o SALGADO, Graça. (Org.). Idem, p. 135 Sobre o assunto ver: DIAS, Thiago Alves et al. Secas coloniais. A escassez de alimentos e o Senado da Câmara de Natal no final do século XVIII. PublICa, vol. 4, 2008. 33 FRANCA, Gileno Camara de. Rio Grande do Norte: origens da industria e discurso da seca. 2004. fls. 109. Monografia (Especializacao em Historia) – Departamento de Historia, UFRN, Natal, 2004, p. 90. 31 32 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 170 Capitão da Fortaleza [...] de haver atravessado farinhas e comprado roçados”. Os oficiais, por sua vez, “declararam que o Almotacé sempre cumprisse com suas obrigações ao útil e ao bem comum” 34. Essa Vereação atesta a estreita relação comercial entre a Capitania do Rio Grande do Norte e os portos de Recife a partir do escoamento portuário. Importante notar a relevância do Almotacé na vigilância dessas práticas econômicas em momentos de pressão, sendo o mesmo policiado pela Câmara para o exemplar cumprimento de suas funções. De acordo com os Termos de Vereação, aportaram em Natal e foram notificados, tanto na saída como na chegada à Capitania, víveres como feijão, milho, farinha, arroz e peixe seco durante as últimas décadas do século XVIII. Analisando o “Mapa geral da Importação, Produção, Consumo, Exportação, o que ficou em serviço da Capitania do Rio Grande do Norte de 1811, 1812 e 1813”, podemos averiguar o montante de importação e exportação desses produtos. (VER GRÁFICO 01) GRÁFICO 01 – Produção, consumo e exportação em alqueires. 29.521 30.000 Produção 22.518 25.000 Consumo 20.000 6.947 15.000 1.524 1.108 1.766 1.983 4.427 3.263 10.000 5.000 0 Farinha Exportação Consumo Produção Feijão e Arroz Milho FONTE: BNRJ, I – 32, 10, 5. Mapas estatísticos do Rio Grande do Norte. 1811-1826-1834. Mapa geral da Importação, Produção, Consumo, Exportação, o que ficou em ser, da População, Casamentos, Nascimentos e Mortes na Capitania do Rio Grande do Norte calculado o termo médio dos anos de 1811, 1812 e 1813. Doc. 12. IHGRN, LTVSCN, Termo de Vereação de 16 de dezembro de 1785, cx. 02, lv. 1784-1803, fl. 04. 34 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 171 Conforme o gráfico acima é possível perceber que (dentre os víveres de subsistência e comércio) a farinha de mandioca é o produto de maior relevância econômica em matéria de produção, consumo e exportação. Numa média anual entre 1811, 1812 e 1813, foram exportados 6.967 alqueires de farinha, representando quase 24% da produção total de farinha daqueles anos. As vilas litorâneas de Extremoz, Arez, São José e Vila Flor comumente produziam a farinha exportada; ela também era fabricada na vila sertaneja de Portalegre, além de outras localidades que não as vilas aqui trabalhadas 35. Da mesma forma, o feijão e arroz foram produtos de considerável exportação da Capitania, já que nos mesmos anos foram exportados 1.524 alqueires, representando quase 35% da produção total. Com tão considerável produção e exportação, somente períodos de estiagem explicariam o fato de que, em 1796, o Almotacé foi encarregado de fazer vistoria no porto de Natal e averiguar um barco que estava de saída “carregando farinha, feijão e arroz e que fizesse descarregar todo esse mantimento, deixando só o necessário à tripulação” 36. Também essencial para a alimentação humana e animal, o milho – nativo dessas paragens – esteve em alta na pauta de exportação da Capitania nas primeiras décadas do século XIX, sendo exportados 1.108 alqueires que representavam quase 34% da produção total da Capitania. A produção desses gêneros era realizada nas mais diversas localidades do Rio Grande do Norte e acabavam chegando ao porto de Natal através de carroças ou pequenas embarcações. Isso explicaria o fato de que, em 1785, o Almotacé havia apreendido feijão e milho no porto de Natal para que fossem repartidos e distribuídos à população 37. Provavelmente, esses mantimentos procediam de algum porto do sertão, para ser comercializado em Natal, ou eles estavam de passagem, esperando a compra de mais víveres e assim seguir para outros mercados coloniais. Tal como o Almotacé, o Aferidor constituía um elemento primordial na vigilância das práticas comerciais. Estando munido dos pesos e medidas pertencentes à Câmara e regulado pelas Ordenações Filipinas, o Aferidor deveria cotejar todos os pesos e medidas utilizados pelos vassalos nos engenhos, lojas, açougues ou tabernas. Sendo assim, LOPES, Fátima M. Em nome da liberdade, Anexos, Tabela 18, p. 678. IHGRN, LTVSCN, Termo de Vereação de s/d/m de 1796, cx. 02, lv. 1784-1803, fl. 71-71v. 37 IHGRN, LTVSCN, Termo de Vereação de s/d/m de 1785, cx. 02, lv. 1784-1803, fl. 04. 35 36 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 172 aferidor “é o que coteja pelo padrão das medidas”. A câmara elege o aferidor e “lhe paga um tanto, porque é renda da própria Câmara e as partes lhe pagam um vintém, de cada aferição de medida, e duas vezes no ano, quando os Almotacéis dão correição, senão acham as medidas aferidas, condenam aos donos” 38. No Tomo I, Título XVIII, das Ordenações Filipinas, encontramos 28 artigos que discutem pontualmente a questão dos pesos e medidas. É de obrigação da Câmara possuir todos padrões necessários ao cotejamento dos padrões utilizados pela população colonial, sendo obrigados a ter número diferenciados de padrões de acordo com o tamanho populacional das vilas e cidades. As medidas obrigatórias a todas as vilas e cidades eram: vara, côvado, alqueire, vinho, almude, canada, quartilho e arrátel. Os pesos deveriam ser guardados numa arca ou armário do Conselho, sendo que “os ditos Padrões não saíram fora da dita arca, somente para Casa de Câmara, quando forem necessários. E não os emprestaram a nenhuma pessoa, nem para por eles afilarem outros fora da Câmara, nem por eles pesarem”. A ordem é clara: “pessoa alguma, de qualquer estado e condição que seja, não tenha outros diferentes pesos, nem por eles venda, compre, receba, nem entregue coisa alguma” 39. De acordo com o “Mapa dos oficiais de ofícios mecânicos que existem na Capitania do Rio Grande do Norte designado os lugares de seus domicílios do ano de 1827”, havia na Capitania pelo menos dois tipos de ofícios aos quais as Ordenações impunham o uso de padrões e medidas específicos: os ourives e os caldeireiros. Na Cidade do Natal, em 1827, existiam seis mestres ourives; na Vila de São José, três mestres, quatro oficiais e três aprendizes; na Vila da Princesa, três mestres; e na Vila do Príncipe, um mestre ourives 40. Conforme as Ordenações, todos esses oficiais ourives deveriam ter em suas lojas “uma pilha [chama-se pilha certo número de pesos enconchados uns aos outros] de quatros marcos, convém a saber, dois marcos de pilha, e dois nos outros pesos miúdos” 41. Sendo assim, o aferidor necessitaria, pelo menos uma vez por ano, visitar todos esses mestres, oficiais e aprendizes, assim como suas respectivas lojas, examinando seus pesos e fazendo BLUTEAU, Rafhael. Verbete Aferidor. In: ______. Vocabulário Portuguez e latino, p. 148. CODIGO Filipino, ou, Ordenacoes e Leis do Reino de Portugal, tit. XVIII,§36 a §40. 40 BNRJ, I - 32, 10, 5. Mapas estatísticos do Rio Grande do Norte. 1811-1826-1834. Mapa dos oficiais de ofícios mecânicos que existem na Capitania do Rio Grande do Norte designado os lugares de seus domicílios. Ano de 1827. Doc. 13. 41 CÓDIGO Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal, tit. XVIII, §42. 38 39 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 173 revista em suas balanças, para só assim passar um selo de aferição atestando a legitimidade de seus pesos. Também sobre os caldeireiros incidia a vigilância dos Aferidores, aqueles, de acordo com a norma institucional reinol, eram obrigados a ter os pesos equivalentes à “arroba, e meia arroba, e quarto de arroba, e quarto arráteis, e dois arráteis, e um arrátel, e meio arrátel, e duas quartas” 42. Em 1827, havia em Vila Flor dois oficiais de caldeireiros – um mestre e um aprendiz 43. Por outro lado, os comerciantes e oficiais não foram os únicos a serem repelidos pela Câmara em relação aos aferimentos. Os próprios aferidores também foram alvo passíveis de censura por parte das Câmaras. Na Vila de Portalegre, em fevereiro de 1772, Manoel de Souza Tavares chegou à Câmara – morador da vila, ele possuía empreendimentos comerciais na sede e no povoado de Martins, também jurisdição da vila –, relatando aos camaristas sua insatisfação sobre os preços cobrados pelo Aferidor de $80 réis por cada peso a ser aferido. Os oficiais, por sua vez, sabendo da futura correição que haveria, mandaram que o aferidor, embora sabendo da distância entre a sede da Vila e o povoado de Martins, fosse por obrigação “aferir os pesos de uma e outra parte, sendo lhes trazido, e quanto à cobrança não incorrerá réu em correição” 44. Ou seja, o aferidor deveria ir a ambos os lugares, buscar os pesos e trazer para Câmara para o cotejamento e quanto à cobrança, essa era justa, pois feito o cotejamento, Manoel de Souza Tavares não pagaria muito mais caro quando houvesse a correição e ele fosse condenado. Caso também relevante ocorreu na Correição realizada pela Câmara de Natal, em 1798, na qual o Aferidor Pedro Frazão foi condenado em 1$000 réis por aferir sem padrão 45. Ou seja, o próprio oficial camarário acabou utilizando-se de suas prerrogativas, enquanto servente do rei, para aferir com seus próprios padrões ou mesmo sem nenhum padrão, do seu jeito, beneficiando-se diretamente, sem precisar levar os pesos à Câmara ou mesmo realizando um serviço rápido e mal feito. CÓDIGO Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal, tit. XVIII, §47. BNRJ, I - 32, 10, 5. Mapas estatísticos do Rio Grande do Norte. 1811-1826-1834. Mapa dos oficiais de ofícios mecânicos que existem na Capitania do Rio Grande do Norte designado os lugares de seus domicílios. Ano de 1827. Doc. 13. 44 IHGRN, LTVSCP, Termo de Vereação de 17 de fevereiro de 1772, cx. RCPSCN nº6, lv. Câmara de Portalegre, 1771 a 1794, p. 14v-15. 45 IHGRN, LTVSCN, Termo de Vereação de s/d/m de 1798, cx. 02, lv. 1784-1803, fl. 107v-108108v-109. 42 43 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 174 A partir da análise desses dispositivos institucionais de vigilância do comércio colonial, perceber-se que a norma nem sempre ditava a prática. No entanto, apesar da burla e transgressões realizadas, o comércio estava ocorrendo. Independente do fato da loja e taverna ter ou não licença, elas estavam abertas e funcionando, pelo menos, até que os corregedores as identificassem. Diante do quadro exposto – mecanismos de regulamentação e vigilância das práticas mercantis –, compreendemos a centralidade das Câmaras enquanto normatizadoras do espaço institucional. Verificamos também que as Câmaras coloniais incorporaram todos os segmentos e mecanismos institucionais capazes de institucionalizar espaços, como os dispositivos de regulamentação e vigilância das práticas mercantis. Referências documentais ANTONIL, Andre Joao. Cultura e opulencia do Brasil. 3. ed. Belo Horizonte : Itatiaia/Edusp, 1982. (Colecao Reconquista do Brasil). ARQUIVO Histórico Ultramarino (AHU), Projeto Resgate Barão de Rio Branco, Capitania do Rio Grande do Norte, 1 cd-s room. ARQUIVO Nacional (AN) do Rio de Janeiro, Várias Séries, Vários Documentos. BIBLIOTECA Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ), Secçao de Manuscritos, vários documentos. BLUTEAU, Rafhael. Vocabulário Portuguez e latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. CODIGO Filipino, ou, Ordenacoes e Leis do Reino de Portugal: recompiladas por mandado d‟el-Rei D. Filipe I. Ed. fac.- similar da 14a ed. de 1821 / por Candido Mendes de Almeida. Brasilia: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. (Edicoes do Senado Federal, v. 38). INSTITUTO Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), Fundo Senado da Câmara de Natal, vários livros. Referências bibliográficas DIAS, Thiago Alves et al. Secas coloniais. A escassez de alimentos e o Senado da Câmara de Natal no final do século XVIII. PublICa, vol. 4, 2008. FRANCA, Gileno Camara de. Rio Grande do Norte: origens da industria e discurso da seca. 2004. fls. 109. Monografia (Especializacao em Historia) – Departamento de Historia, UFRN, Natal, 2004. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório Pombalino no século XVIII. 2005. fls 700. Tese ( Doutorado em História) ─ Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005. MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte, 2 ed. Natal: EDUFRN, 2002. RIBEIRO JÚNIOR, José. Colonização e monopólio no Nordeste brasileiro: a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, 1759-1780. São Paulo: HUCITEC, 1976. SALGADO, Graca. (Org.). Fiscais e meirinhos: a administracao no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/ Arquivo Nacional, 1985. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 175 SILVA, Francisco Ribeiro da. Alfandegas lusas em finais de setecentos: fiscalidade e funcionalismo. In: O litoral em perspectiva historica (sec. XVI a XVIII). Anais... Cidade do Porto, Instituto de Historia Moderna, 2002, p. 205-216. SILVA, Isis Messias. O municipio na colonia portuguesa na America. II Ciclo Internacional de Estudos Antigos e Medievais: religiao, religiosidade e politica no Mediterraneo Antigo e Medieval. In: Anais... Sao Paulo: UNESP, 2006. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Dicionário da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 176 A “Leal” Câmara da cidade de Mariana e as atas das sessões A lei de organização municipal e a prática política dos camaristas. Kelly Eleutério Machado Oliveira 1 1 Resumo: O objetivo deste artigo é discutir, a partir das atas das sessões da Câmara Municipal, como a lei de 1828, somada às reformas liberais da década de 1830, repercutiu na prática política dos camaristas da cidade de Mariana, Minas Gerais. Tendo como marcos cronológicos os anos de 1828-1836, trata-se de refletir se, de fato, a Câmara da Leal cidade de Mariana perdeu autonomia e poder político cumprindo, sem mediações, as determinações do poder provincial. Além disso, outra questão norteia este texto, a saber: qual foi a relação que os homens da vereança estabeleceram com o governo regencial? Continuaram leais ao Imperador D. Pedro I ou aceitaram a Regência? O posicionamento dos camaristas indica que as práticas da municipalidade escapam, muitas vezes, das normalizações e que os tempos já eram outros. Palavras-chave: Lei de 1828, Atas das sessões, Câmara Municipal de Mariana. Abstract: The purpose of this article is to discuss, from the minutes of the meetings of the City Council, such as the law of 1828, plus the liberal reforms of the 1830s, had repercussions in the councilors' political practice in the town of Mariana, Minas Gerais. Holding as chronological marks the years 1828-1836, it tries to reflect whether in fact the Chamber of the Loyal city of Mariana lost autonomy and political power by fulfilling, without mediation, the determinations of the provincial power. Also, another question guides this text, namely: what was the relationship that the men of the parish established with government Regency? Did they remain loyal to the Emperor Dom Pedro I or accept the Regency? The positioning of the councilors indicates that the practice of the municipality often escapes norms and regulations and that things were already different. Keywords: Law of 1828, Minutes of Sessions, City Council of Mariana. 1 Mestranda em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 177 N o dia 1º de outubro de 1828, Sua Majestade Imperial mandou executar a Carta de Lei sancionada pela Assembléia Geral Legislativa. Essa Lei regulamentou algumas disposições já previstas na Constituição de 1824, por isso é chamada de Lei Regulamentar. É importante dizer que, até 1828, as Câmaras Municipais se orientavam pelas Ordenações Filipinas, de 1603. A Lei de 1828 estabeleceu a forma das eleições dos membros das Câmaras das cidades e vilas do Império, marcando suas funções e dos empregados respectivos. Ao todo, foram 90 artigos2. Como veremos adiante, apesar do Regimento ter imposto claros limites à atuação política desta instituição, não impediu que ela continuasse exercendo competências importantes para o bom desenvolvimento da cidade e seu termo. Em relação às eleições, a Lei determinou que as Câmaras da cidade fossem compostas por nove membros e as das vilas, de sete vereadores e um secretário. Um aumento bem considerável, tendo em vista a estrutura antecedente, que determinava um número de três vereadores. O mandato passou de um para quatro anos. Estariam habilitados a serem vereadores todos aqueles que pudessem votar nas Assembléias Paroquiais desde que tivessem dois anos de residência no termo (artigo 4º). Votante não poderia ser vereador. As eleições eram diretas. Na prática, isso significava que um número maior de cidadãos estaria apto a escolher seus representantes. Os vereadores reeleitos poderiam escusar o cargo desde que a eleição fosse imediata (artigo 18º). Por exemplo, na sessão extraordinária de 1 de maio de 1833, o vereador José Joaquim Campos pediu demissão por já ter servido nos quatro anos anteriores. Alegou para isso o artigo 18 da Lei Regulamentar. Moléstia grave ou prolongada e emprego civil, eclesiástico e militar cujas obrigações fossem incompatíveis de se exercer conjuntamente com a vereança também poderiam ser motivos para a escusa do cargo (artigo 19º), desde que comprovados por documentos. Muitos pedidos de escusa do cargo de vereador foram registrados nas atas da Câmara e, em muitos deles, os solicitantes alegavam os impedimentos permitidos pela Lei. Em alguns casos, a Câmara julgou improcedente o pedido. Ainda de 2AHCMM, Livro para registro da Carta de Lei de 1º/10/1828. Cód. 88. Registro da Carta de Lei de 1º de Outubro de 1828, 1º/04/1829, f. 01f-08v. Disponível também em: http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/LegimpK_20.pdf. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 178 acordo com a Lei, não poderiam servir como vereadores, no mesmo ano e na mesma cidade, pais, filhos, irmãos e cunhados (artigo 21). Como se pode notar, no que diz respeito à forma de eleição das Câmaras, nenhuma medida foi tomada no sentido de reduzir a autonomia da instituição. Porém, o título segundo, nomeado “Funções Municipais”, deixou claro qual seria o novo ordenamento político. O artigo 24 determinou que a Câmara seria uma instituição meramente administrativa. Com relação às sessões, estabeleceu quatro sessões ordinárias por ano e, caso necessário, o presidente poderia convocar extraordinariamente outra sessão. Cada sessão deveria ter no mínimo cinco vereadores para que uma matéria pudesse ser votada. Na impossibilidade de comparecer às sessões, cada vereador deveria comunicar os motivos pelos quais isso se dava. Caso a falta não fosse justificada, pagar-se-ia uma multa no valor de quatro mil réis. Não foram raras as vezes em que houve falta de vereadores, no entanto, nas atas não há menção a essa multa. O artigo 29 também determinou que, no dia marcado para o princípio de cada uma das sessões ordinárias, os vereadores deveriam se reunir às nove horas da manhã na Casa da Câmara, com as portas abertas, havendo assentos para os espectadores que concorressem diariamente e estando o presidente sentado no topo da mesa, tendo ao seu lado os vereadores, sem distinção nem precedências. Dava-se início à sessão. Uma vez aberta, o presidente declarava a matéria da discussão e deveria manter a ordem dando a palavra ao primeiro que lhe pedisse, fazendo sempre observar a civilidade entre os vereadores e espectadores. Se algum vereador não quisesse voltar à ordem, o presidente o mandaria calar-se e, não lhe obedecendo, o faria sair da sala, consultando primeiramente os outros vereadores, ou levantaria a sessão, quando a nada se quisesse sujeitar. De acordo com a mesma Lei, era função dos vereadores: tratar dos bens e das obras do município, do governo econômico e policial da terra, não se permitindo, de maneira alguma, que os proprietários dos prédios fizessem mudanças nas estradas. Não poderiam aforar, vender ou trocar imóveis do Conselho sem autorização do Presidente de Província. Competia também aos vereadores, em cada reunião, nomear uma comissão de Cidadãos probos, composta por pelo menos cinco membros, à qual se encarregaria de visitar as prisões civis, militares e eclesiásticas, e de todos os estabelecimentos públicos de caridade para informarem do seu estado e dos melhoramentos que precisavam (artigo 56º). REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 179 Funções administrativas amplas foram as determinadas pelo Título 3º, “Posturas Policiais”. Aqui, fica claro que, apesar da perda de competência para deliberar sobre assuntos de natureza política e judiciária, as Câmaras assumiram o governo da cidade. Isso significa que eram responsáveis por tudo que dizia respeito à polícia e à economia: alinhamento, limpeza, iluminação, conservação e reparo de muralhas para segurança dos edifícios e prisões públicas, calçadas, pontes, fontes, aquedutos, chafarizes, poços, tanques, estabelecimento de cemitério fora dos templos religiosos, observância sobre ajuntamento de pessoas em horários e locais inapropriados etc. O artigo 72, porém, deixou a cargo do Conselho Geral de Província o poder de alterar ou revogar as posturas. Isso gerou um grande debate na Câmara Municipal. O vereador José Justino Gomes Pereira, por exemplo, se posicionou contra essa decisão, afirmando que a “Câmara não deve obediência cega e absoluta ao Conselho, sua subordinação inteira é à primeira autoridade administrativa da província em Conselho ou fora dele, artigo 78 da Lei regulamentar das Câmaras”3. A autoridade a que se refere Gomes Pereira é o Presidente de Província que era escolhido pelo Imperador. Já o Conselho era eletivo4. As derradeiras determinações que sujeitaram as Câmaras à tutela do Conselho Geral de Província estariam no Título 4º da Lei de 1º de outubro: “Da aplicação das rendas”. Esse título subordinou economicamente as Câmaras ao Conselho. Não poderiam vender, aforar bens, realizar obras públicas sem a autorização do mesmo. Os vereadores da Câmara encontraram algumas saídas para as poucas rendas da instituição. Não podendo contar com a ajuda financeira do Conselho ou diante da demora e mesmo inexistência de verbas, os administradores da cidade concorreram, eles próprios, com subscrições. Isso nos leva à hipótese de que existiu, dentro da Câmara Municipal, apesar das mudanças decorridas dos esforços da construção do Estado Nacional (ainda em seus inícios), um forte componente patrimonial. O componente AHCMM. 6ª sessão ordinária de 17 de dezembro de 1831. Cód. 214. Ver: SLEMIAN, Andréa. “Delegados do chefe da Nação”: a função dos presidentes de província na formação do Império do Brasil (1823-1834). Almanack Brasiliense, nº6, novembro de 2007, p. 20-38. Disponível em: http://www.almanack.usp.br/PDFS/6/06_artigo-01.pdf 3 4 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 180 patrimonial do Estado brasileiro no século XIX já foi bastante discutido, dentre outros, por Fernando Uricoechea5. O último Título (Título 5º) desse Regimento, intitulado “Dos empregados”, determinou as funções dos outros empregados da Câmara. O secretário era nomeado pela Câmara e receberia uma gratificação anual paga pelas rendas do Conselho. O procurador também era nomeado pela Câmara e por ela ou por outra pessoa idônea seria afiançado para um mandato de quatro anos e receberia 6% de tudo que arrecadasse. A Câmara também nomearia um porteiro pago pelas rendas do Conselho, fiscais e suplentes para servirem por quatro anos. De maneira geral, as disposições previstas na Lei Regulamentar foram implementadas na Câmara de Mariana. Esta edilidade contou com nove vereadores e todos os outros empregados determinados pela Lei. Procurou-se também seguir a exigência de quatro sessões ordinárias por ano, conviveu-se com as determinações do Conselho Geral sobre seu orçamento etc. No entanto, também percebemos dissonâncias entre a Lei e o funcionamento concreto da instituição. Vejamos, a seguir, alguns exemplos. Segundo Iara Lis Schiavinatto, pela Lei de 1828, “a Câmara ligavase de vez ao Governo Provincial e se desligava do monarca”.6 Tal afirmação nos permite concluir que o interesse dos legisladores era o de restringir o poder das Câmaras como apoiadoras de D. Pedro I, como se deu na época da Independência, fazendo-as ficar sob o controle da província. Num contexto em que o primeiro imperador vinha perdendo prestígio, retirar as Raimundo Faoro, em Os donos do Poder, também propõe uma análise a partir da concepção de Estado Patrimonial. Porém, as contribuições dele são menos indicadas aqui, sobretudo porque o autor não leva o emprego do conceito às últimas consequências, como aponta Laura de Mello e Sousa, em O Sol e a Sombra. Segundo Laura de Mello e Souza, Faoro super dimensionou o papel do Estado, afirmando que ele antecedeu à sociedade; “não houve lugar, em sua análise, para as tensas e complexas relações entre os administradores coloniais e as oligarquias, tão amiúde documentadas nas fontes coevas” (SOUZA, Laura de Mello e. Política e administração colonial: problemas e perspectivas. In: O sol e a sombra: política e administração na América Portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 33). Além disso, desconsiderou a questão da ruralização, do mando local, o que acabou por “gerar uma distorção fatal na obra de Faoro, que apela para a onipresença e o peso excessivo do Estado mas, a cada momento, fornece evidências empíricas que inviabilizam sua tese, indicando os processos de centrifugação presentes na sociedade” (Ibidem, p. 34). Cf. URICOECHEA. Fernando. O Minotauro Imperial. Rio de Janeiro: Difel, 1978. 6 SCHIAVINATTO, Iara Lis. “Questões de poder na fundação do Brasil: o governo dos homens e de si (c.1780-1830)”. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, 214. 5 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 181 Câmaras de sua órbita de influência poderia ser uma estratégia das elites liberais para diminuir o poder do monarca. Mas a questão fundamental, era diminuir os poderes de uma instituição de Antigo Regime 7. Continua a autora, referindo-se ainda à Lei de 1828, “era [a Câmara] proibida de destituir qualquer autoridade, como aconteceu no início da década de 20, ou de nomeá-la sem o aval do governo provincial”.8 O fato de ser proibido por Lei não impediu, portanto, que a Câmara da cidade de Mariana o fizesse. Na sessão ordinária de 2 de março de 1831, há uma discussão sobre se o secretário da Câmara de Mariana, Manoel Berardo Acursio Nunan, diretor do periódico Estrella Marianense, deveria ser demitido do cargo, sob acusação de ser ele “incendiário e inimigo da Nação”. Nunan teria falado em “federação no Brasil”. Os vereadores se dividiram quanto à demissão ou não do secretário. O vereador Gomes Pereira foi enfático: Acursio Nunan deveria ser demitido porque a Câmara precisava zelar pelo título de representar a Leal Cidade de Mariana. Alguns vereadores disseram que não cabia à Câmara decidir a questão, que deveria ser levada ao tribunal do júri. Nunan foi demitido. E na sessão de 21 de março de 1831 Gomes Pereira justificou a demissão da seguinte forma: O secretário é o eixo dos trabalhos da Câmara, é o fiel do Arquivo, é o guarda dos livros e papéis da secretaria, e estas funções exigem um homem probo, de firme caráter, de fé e confiança pública; mas à vista do expedido poder-se-á dizer que o ex-secretário é ornado dessas qualidades? São, pois, estes e não outras, Excelentíssimo Senhor, as causas que teve a Câmara para lançar fora o referido secretário, que As Câmaras, no Antigo Regime, se relacionavam diretamente com o rei. De acordo com Xavier Guerra, “a complexidade corporativa do Antigo Regime, com múltiplos corpos e estamentos, com diversidade jurídica e a defesa que todos fazem de seus privilégios, é um obstáculo à existência da pátria e da nação” (GUERRA, 2003: 46). Na construção do Estado Nacional, era, portanto, imperativo acabar com esses poderes autônomos. Sérgio Buarque de Holanda, segundo Lucília Siqueira, afirmava que, para os liberais que viviam no século XIX manter as autonomias locais ou regionais era ser conservador, “enquanto que fortalecer o poder central significava homogeneizar procedimentos administrativos e extirpar privilégios próprios do Antigo Regime” (SIQUEIRA, 2006: 97). Ver, respectivamente: GUERRA, FrançoisXavier. A Nação Moderna: nova legitimidade e velhas identidades. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec, 2003, p. 33-60; e SIQUEIRA, Lucília. O ponto em que estamos na historiografia sobre o período de rompimento entre Brasil e Portugal. Almanack brasiliense, nº3, maio de 2006, p.81-104. Disponível em: http://www.almanack.usp.br/PDFS/3/03_artigos_3.pdf. 8 SCHIAVINATTO, Iara Lis. Questões de poder na fundação do Brasil. Op. cit., p. 214. 7 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 182 falsa e imprudentemente ousa tachar a Câmara de infratora de Leis, de ser compelida por ódios e patronatos; mas como a Estrela é um dos Astros influentes na órbita federativa porque a seu modo ilumina e orienta, é por isso mesmo que se tem feito tão ruidosa sua demissão, encarando-a os apaixonados através do prisma de suas imaginações para a tratarem de despótica, arbitrária e ilegal.9 Para Schiavinatto, além das questões mencionadas, a Lei de 1828 também afetou “sua [da Câmara] carga simbólica, sua habilidade e capacidade de mobilizar signos e investi-los com determinados sentidos ou de celebrar o contrato social com o monarca ou com o Brasil, como fizera entre 1822 e 1824”.10 Todavia, na sessão extraordinária de 12 de janeiro de 1831, o presidente da Câmara de Mariana expôs que tinha certeza que já se encontravam nessa cidade o Imperador e sua esposa e que, por isso, “deveria arrumar as ruas, limpá-las, caiar a frente das casas”. Dizia ainda que, se “a Lei de 1 de outubro de 1828 proíbe despesas com festas, isso não impede que cada um possa fazer sua parte para bem receber Suas Majestades”. E foi nesse sentido que os vereadores da Câmara da Leal Cidade de Mariana ornaram as ruas, fazendo entender que não era a determinação de uma Lei que os impediria de bem receber Suas Majestades Imperiais. Temos aqui, portanto, outro exemplo das dissonâncias entre a Lei e a prática cotidiana. Por fim, segundo Iara Lis Schiavinatto, “a lei igualmente coadunava-se à montagem de um Estado fundado numa Soberania única e indivisível, que se pautaria pela centralização, diferentemente do Antigo Regime.11 De fato, a Lei de Organização Municipal deixou claro que era preciso reduzir os poderes amplos das Câmaras inserindo-as no modelo de Estado Liberal que se queria criar. Ficaram, pois, subordinadas ao Conselho Geral de Província, mas não deixaram de atuar na localidade como “legítimas representantes”, mediando conflitos, zelando pela paz e sossego públicos e, principalmente, administrando o município. Continuaram, por esses motivos, exercendo algumas competências típicas da Ordem anterior, isto é, do Antigo Regime. Queremos dizer com tudo isso que, se as Câmaras e, no nosso caso específico a Câmara de Mariana, perderam autonomia, elas não deixaram, por outro lado, de ter importância AHCMM. Sessão de 21 de março de 1831. Cód. 206. SCHIAVINATTO, Iara Lis. Questões de poder na fundação do Brasil. Op. cit., p. 214. 11 Ibidem. 9 10 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 183 política, mesmo porque se tornaram a instância mediadora das relações entre o local e o provincial. As reformas liberais da década de 30 A década de 30 do século XIX assistiu à implementação das chamadas Reformas Liberais de caráter descentralizador. Referimos-nos ao Código de Processo Criminal de 1832 e ao Ato Adicional de 1834. O primeiro deu mais poderes aos juízes de paz. Já o Ato Adicional atribuiu mais autonomia às províncias. No que diz respeito às Câmaras, não houve mudanças sensíveis uma vez que, se antes eram subordinadas ao Conselho Geral de Província, depois do Ato Adicional, passaram à tutela da Assembléia Legislativa. Segundo Edneila Chaves, a concessão de autonomia para as Câmaras poderia pôr em risco a unidade provincial e, em última análise, a própria unidade do império. É preciso lembrar que os vereadores tinham projetos políticos que se manifestavam muitas vezes pelas sedições que encabeçavam12. Para a administração da justiça, conforme o estabelecido com o Código do Processo Criminal de 1832, criaram-se alguns cargos e deu-se maior autonomia para outros, o de juízes de paz, por exemplo. Todos os cargos previstos para os termos de vila e cidade, bem como de seu distrito, foram instituídos em Mariana, conforme se verifica nas atas das sessões da Câmara. Alguns vereadores assumiram os cargos de juiz de paz, juiz municipal, juiz de direito e promotor público. Apesar de serem cargos da administração provincial, a Câmara tinha ingerência nos mesmos. Além disso, também era a Casa de Vereança que passava os títulos e conferia posse a todos os responsáveis por essa administração. Foi a esse quadro de administração judiciária que os vereadores da Câmara de Mariana parecem ter-se adequado. Há certo consenso em se afirmar que o Ato adicional de 1834 reduziu ainda mais os poderes da municipalidade. De fato, pela Lei, foram as províncias que ganharam destaque. Elas passaram a concentrar poderes Como é o caso daqueles que se envolveram na Sedição caramuru de Março de 1833, a Sedição do Ano da Fumaça. Na ocasião, os sediciosos tomaram a capital da província de Minas Gerais, Ouro Preto, e depuseram o presidente, Manoel Ignácio de Mello e Souza, e o vice-presidente, Bernardo Pereira de Vasconcellos. Falaremos mais adiante um pouco mais sobre isso. Caso também dos vereadores que se envolveriam, anos mais tarde, na Revolução Liberal de 1842. O então presidente da Câmara Municipal de Mariana, Manoel Francisco Dasmasceno, foi preso por envolvimento na revolta. 12 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 184 e exigir das Câmaras Municipais obediência. Em todo caso, para a municipalidade, parece que apenas havia mudado a instância de poder à qual deveriam se submeter. Obviamente que a Lei repercutia nos assuntos tratados pela Câmara, tanto que a mesma é referenciada nas sessões, porém a prática cotidiana dos vereadores não se alterou significativamente. Pelo menos é isso que os registros das atas evidenciam. A Câmara de Mariana recebeu com festejos o Ato Adicional. No dia 7 de setembro de 1834, os vereadores se reuniram em sessão extraordinária para se informarem sobre a matéria de dois exemplares do Ato enviados pela vice-presidência da província de Minas Gerais. Tratavase da carta de lei de 12 de agosto de 1834, o Ato Adicional, contendo as mudanças e adições feitas à Constituição do Império. Junto aos exemplares, um ofício ordenava à Câmara que se fizessem publicar por editais de maneira solene. Seguindo as determinações da presidência de Província, os vereadores convidaram o Bispo arquidiocesano para assistir ao ato e pediram aos povos para iluminar as casas. Manoel Julio de Miranda propôs que se convidasse ao desembargador Mello e Souza 13. Nos meses finais do ano de 1834 e durante todo o ano de 1835, não foi registrada nas atas uma única indisposição entre a instância de poder local e a Assembléia Legislativa. Na sessão ordinária de 14 de janeiro de 1835, “o senhor Bhering apresentou um esboço de representação que tem de ser dirigida à Assembléia provincial desta província felicitando-a no ato de sua instalação e prometendo-lhe toda coadjuvação desta Câmara”14. Não custa lembrar que Bhering foi eleito deputado a essa Assembléia. De fato, como já dito anteriormente, as Câmaras ficaram atreladas à Assembléia Geral e não mais ao Conselho Geral de província, abolido com o Ato adicional. Em outras palavras, a descentralização, no âmbito regional, implicou a centralização em nível local. Segundo Miriam Dolhnikoff, tanto os liberais quanto os conservadores estavam de acordo sobre a necessidade de limitar o poder local; “foram os liberais que, no ato adicional, submeteram as localidades ao governo da província”. 15 As Câmaras, porém, já haviam sido subordinadas ao governo da província com a Lei de 1828. A autora afirma ainda que “vale lembrar que, se os liberais, por meio do Código de Processo Criminal promulgado em 1832, favoreceram os potentados locais ampliando as funções dos juízes de paz, AHCMM. Sessão extraordinária de 7 de setembro de 1834. Cód. 221. AHCMM. 3ª sessão ordinária de 14 de janeiro de 1835. Cód. 221. 15 DOLHNIKOFF, Miriam. O Pacto Imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 463. 13 14 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 185 não relutaram, por outro lado, em neutralizar o poder das Câmaras Municipais”.16 As Câmaras Municipais não tiveram seus poderes neutralizados. Perderam autonomia, mas não representatividade. Os vereadores da Câmara assumiram outros cargos na administração local, como o próprio cargo de juiz de paz, além de cargos no nível provincial, como deputados. Ademais, os ocupantes dos cargos provinciais, como o de juiz municipal, de promotor, de juiz de órfãos etc, eram escolhidos pela Câmara Municipal em lista tríplice. Não podemos nos esquecer de que era em nível local que se dava um dos processos mais importantes da vida política do Império: as eleições. Inclusive, a eleição de eleitor acontecia no prédio da Câmara, diferentemente da eleição dos votantes, que se dava dentro da igreja matriz.17 Os responsáveis por eleger os representantes em nível provincial e, consequentemente, no âmbito geral, eram os membros da elite local, que estavam, muitas vezes, dentro da Câmara Municipal. Apesar das reformas da década de 30 do século XIX, a instituição de poder local continuou sendo, como outrora, a “legítima representante”. As atas das sessões da Câmara Municipal e a Leal cidade de Mariana As atas da Câmara são fontes oficiais que acompanhavam o cotidiano administrativo da cidade e a rotina do poder local. Essas fontes possibilitam a análise dos diversos momentos políticos pelo qual a Câmara Municipal passou. Quem redigia a ata era o secretário. Também era ele o responsável por cuidar do arquivo. As atas têm um cabeçalho em que se apresentam o dia e hora da sessão, geralmente entre 9 e 10 horas da manhã. Aberta a sessão pelo presidente da Câmara, a ata da sessão antecedente era lida, podendo ou não ser aprovada. Iniciava-se, então, a sessão do dia. Por serem fontes oficiais elas podem reproduzir certas visões da situação no poder em detrimento da oposição. Em outras palavras, o pesquisador, em contato com essa documentação, pode ter acesso a apenas uma visão dos fatos. Não só isso: o secretário pode acrescentar ou suprimir trechos importantes. Apesar disso, estamos certos que as atas são apropriadas para pensar a organização e o funcionamento da Câmara Municipal. 16 17 Ibidem. CAIXETA, 2012: 149 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 186 Em primeiro lugar, buscamos rastrear os assuntos que eram levados até a Câmara, ou seja, sobre quais matérias versavam as atas. Notamos que os temas eram os mais variados possíveis: solicitações de pagamento de ordenados atrasados, problemas de abastecimento de água, ruas sujas, cercas quebradas por animais, pedidos de pagamentos dos expostos, professores solicitando material para suas aulas, bem como ofícios de juízes de paz, da presidência da Província, do Conselho Geral de Província. Nenhum assunto, porém, foi mais recorrente, do que a preocupação dos vereadores com as obras públicas, as estradas e, principalmente, as pontes. Em quase todas as atas, havia espaço para queixa do péssimo estado das mesmas. Não é demais dizer que estradas e pontes são lugares de passagem de cargas, de pessoas e de gêneros alimentícios. A preocupação com estradas e caminhos também corresponde à construção de uma infraestrutura essencial à construção da unidade nacional, à criação do Estado Nação, além de condição de subsistência. Outra questão a que ficamos atentos na leitura da fonte foi com relação ao número de vereadores presentes nas sessões. O objetivo era verificar se a ausência desses camaristas seria um sinal de desinteresse. Constatamos que, na maioria das vezes, a sessão iniciava-se com número igual ou superior a sete vereadores (lembrando-se, que para as cidades, a Lei de 1828 estabeleceu um total de nove vereadores). Nos casos em que o número não atingiu o mínimo de 5, para que a sessão ocorresse, os vereadores eram chamados nas suas residências. Foi o que aconteceu na sessão de 5 de novembro de 1832. Por haver apenas quatro vereadores, convidou-se o capitão Lucindo Pereira dos Passos para servir na sessão e chamaram-se os vereadores Gomes Pereira, José Joaquim Campos e Lopes da Cruz para comparecer à reunião18. Foram poucos os registros que informaram sobre cancelamento da reunião por falta de vereadores, aproximadamente três em todo o período estudado. Num segundo momento, optamos por fazer as leituras das atas referentes ao ano de 1830, com o propósito de verificar como (e se) a conjuntura conturbada do ano que antecedeu à abdicação de D. Pedro I repercutiu na Câmara da Leal cidade de Mariana. Interessou-nos também toda e qualquer notícia sobre a pessoa do Imperador ou pareceres que nos permitissem inferir qual era o posicionamento dos camaristas. Sendo a Câmara Leal, engajada que foi à adesão ao Imperador no contexto da Independência do Brasil, esperava-se encontrar nas atas das sessões da 18 AHCMM. Sessão extraordinária de 5 de novembro de 1832. Cód. 214. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 187 Câmara manifestações de apoio à permanência de D. Pedro I em terras brasílicas. Mas os tempos já eram outros, e a Leal Câmara de Mariana demonstrou que seu título não se referia apenas ao monarca. Foi leal também à Regência aceitando sua legalidade. Antes disso, porém, na 5º sessão ordinária de 17 de dezembro de 1830, leu-se um ofício da Presidência de Província que comunicava “a prazenteira notícia da vinda de Suas Majestades Imperiais a esta Província e ensinando que se devem prestar todas as demonstrações de regojizo próprias do respeito e acatamento”. O presidente da Câmara Municipal “propôs acusar-se o recebimento deste ofício significando o prazer desde já que [sic] concebem os Povos deste termo com a esperança de verem as Augustas Pessoas Imperiais: o que foi aprovado...”.19 Quase um mês depois, no dia 12 de janeiro de 1831, o presidente da Câmara expôs que tinha certeza que já se encontravam nessa cidade o Imperador e sua esposa e que, por isso, dever-se-iam arrumar as ruas, limpá-las, caiar a frente das casas. A cidade de Mariana preparava-se para receber as Majestades Imperiais com júbilo. Se em janeiro o clima era de festa, em março adquirira outra tonalidade: circulavam rumores sobre as pretensões anticonstitucionais do Imperador. No dia 2 de março, leu-se um ofício do juiz de paz de Ponte Nova20 pedindo à Câmara que fizesse extrair cópias da proclamação feita por D. Pedro I “para que os povos se certifiquem do espírito constitucional do imperador”.21 Assim, em março foram registradas nas atas da Câmara questões que revelam a tensão que se fazia sentir naquela conjuntura – se não podemos afirmar para a cidade, no geral, ao menos para os administradores dela. Nesse sentido, na sessão extraordinária de 21 de março de 1831, o camarista Esteves Lima, que servia de vereador suplente, uma vez que o titular do cargo Manoel José de Carvalho22 havia pedido AHCMM. 5ª sessão ordinária de 17 de dezembro de 1830. Cód. 206. Sabemos que o ofício foi enviado pelo juiz de paz de Ponte Nova, mas não identificamos seu nome. Esse é um dos exemplos da dificuldade de trabalhar com as atas. Nem sempre se mencionavam os nomes dos titulares do cargo. As Atas de eleição, todavia, podem ajudar nesse ponto. Elas estão disponíveis no AHCMM. 21 AHCMM. 3ª sessão de 2 de março de 1831. Cód. 206. 22 Os pedidos de licença de Manoel José de Carvalho estavam relacionados às visitas que fazia à sua fazenda. “O senhor Carvalho pediu licença para se retirar para sua roça e que talvez não possa vir na sessão ordinária de julho por ser ela na Freguesia do Presídio, e a Câmara resolveu conceder-lhe, e que atendendo o estado “mortozo” do senhor Coelho, e criminoso o senhor Esteve Lima, o senhor presidente oficie ao suplente que competir da lista geral para vir tomar assento na sessão ordinária”. AHCMM. Sessão extraordinária de 12 de maio de 1832. Cód. 19 20 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 188 licença na 5º sessão ordinária, de 4 de março, por fortes dores na mão, fez a seguinte indicação: Havendo o Argos [(periódico da época)], número sessenta e oito, espalhado doutrinas subversivas da Ordem, propondo emendas à Constituição que juramos, querendo invadir o poder executivo, fingindo que sua opinião é da maior parte dos habitantes desta Província, constando que esta incendiária folha é escrita por um que habita nesta cidade aonde sabemos que com muita pequena exceção todos os seus honrados habitantes e do Termo que compõem nada mais nem menos querem que a Constituição jurada e que defenderemos até a última gota de sangue; espalhando essa infame folha em descrédito não só da mesma província, como principalmente do Termo, em que ela se escreve, exigindo esse escritor um fiel intérprete dos Mineiros, e Órgão se sua vontade geral para reclamar mudanças na Constituição, requeiro que esta Câmara faça declarar ao público, e ao Governo, por ofícios, Editais, e periódicos, que esta Câmara, em seu nome e de todo o povo que representa, de tudo abomina as doutrinas daquele Argos número sessenta e oito, e seus antecedentes e conseqüentes, que é fiel ao juramento e sempre será enquanto lhe restarem meios e forças; que àquele escritor compete declarar perante o governo quem são os de sua opinião; porque se não deve comprometer a honra de um povo inteiro só porque um ou outro, para fazer sua fortuna, quis acarretar a desgraça sobre ele e sacrificar a pátria, a honra e a fazenda de todos23. O número 68 do Novo Argos, ao qual Esteves Lima se refere, versa sobre várias mudanças na Constituição. Segundo o periódico, uma das proposições mais obscuras do Art. 83 estava prevista no seu parágrafo 1º: Não podem propor sobre interesses gerais da Nação. “Este artigo é tão obscuro que, prevalecendo em qualquer uma das Câmaras o partido Ministerial, uma só posposta dos Conselhos Gerais não será aprovada”. Diante disso, o 214. Nessa ocasião, Manoel Esteves Lima “estava criminoso”, provavelmente em função dos motins em Santa Rita do Turvo. Sobre esse assunto, ver GONÇALVES, Andréa Lisly. Estratificação social e mobilizações políticas no processo de formação do Estado Nacional Brasileiro: Minas Gerais, 1831-1835. São Paulo: Editora Hucitec, 2008 (ver especialmente o capítulo 4). 23 AHCMM. Sessão extraordinária de 21 de março de 1831. Cód. 206. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 189 Argos propunha que se substituísse o Art 83 da Constituição pelo seguinte: São atribuições dos Conselhos Gerais: 1º Promover o bem geral de suas respectivas provinciais, decretando para esse fim as resoluções convenientes. 2º Suspender o Presidente da Província, o Comandante das Armas, o Bispo e os juízes de Direito e mandar processá-los quando assim o entendam conveniente e qualquer deles se tenham constituído criminoso. 3º Fixar o número dos Representantes Provinciais na Assembleia Geral. 4º Deliberar sobre impostos, precedendo informação das Câmaras Municipais, tendo em vista o dever de contribuir para as despesas gerais da Nação em quota que for decretada pela Assembleia Geral24. As divergências se estampavam nas páginas dos jornais e repercutiam na Câmara. Estava claro, portanto, que o interesse era dar mais autonomia ao poder legislativo, descentralizando as decisões do governo. Segundo o historiador Marcello Basile, o interesse dos liberais moderados era promover reformas político-administrativas para reduzir os poderes do imperador, conceder maiores prerrogativas à Câmara dos Deputados e dar autonomia ao judiciário. Era contra tudo isso que Esteves Lima daria “até a última gota de sangue”. Afirma Basile: Havia, ainda, um terceiro grupo, organizado logo no início da Regência, os caramurus. Alinhados à vertente conservadora do liberalismo, tributária de Burke, eram contrários a qualquer reforma na Constituição de 1824 e defendiam uma monarquia constitucional firmemente centralizada, nos moldes do Primeiro Reinado, chegando, em casos excepcionais, a nutrir anseios restauradores.25 Sobre as demais reformas propostas pelo Argos, ver: O NOVO ARGOS. 01/03/1831. Nº 68. Disponível em: Biblioteca da FAFICH/UFMG. 25 O segundo grupo que Basile define é o dos liberais exaltados. O pensamento central deste grupo se manifestava no seguinte vocabulário político: soberania popular, pregação revolucionária, cidadania plena, liberdade de imprensa, o fim gradual da escravidão e uma relativa igualdade social. Ver: BASILE, Marcello. Linguagens, pedagogia política e cidadania: Rio de Janeiro, cerca de 1830. In: SABINA, Gladys Ribeiro (Org.). Brasileiros e cidadãos: modernidade política, 1822-1930. São Paulo. Alameda Casa Editorial: 2008, p. 207-224. 24 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 190 É importante ressaltar que as pretensões dos que propunham a reforma da Constituição sofreram um duro golpe no desbaratamento dos que conspiraram no Golpe de 30 de julho de 1832. Diante da recusa do Senado em apoiar as reformas constitucionais requeridas por grande parte da elite política brasileira, no sentido de maior descentralização administrativa, e da sua recusa em aprovar a destituição de José Bonifácio da tutoria de D. Pedro II, os moderados tramaram o golpe. O Senado era visto como sustentáculo do conservadorismo, e muitas tentativas de reforma política que lá entravam não saíam. Num momento de crise generalizada, agravada pelo crescimento das atividades contrarrevolucionárias dos restauradores, cujo epicentro era identificado em José Bonifácio, tutor do futuro Pedro II, os moderados intentaram o golpe. A Câmara dos deputados, após a renúncia do ministério e dos regentes, se declararia em Assembleia Nacional Constituinte e aprovaria uma nova Constituição (conhecida como Constituição de Pouso Alegre), que contemplava as reformas requeridas. Tudo foi tramado na Chácara da Floresta, residência do padre José Custódio Dias. O golpe não foi vitorioso, embora estivesse próximo de ser. Foi abortado por dissensões entre os próprios liberais, por intervenção de Honório Hermeto Carneiro Leão.26 A indicação de Esteves Lima permite-nos inferir que o mesmo comporia esse terceiro grupo, o grupo dos caramurus. Essa inferência é confirmada pelos acontecimentos que eclodiram na capital mineira em 1833, a Sedição de Março27. Esteves Lima foi, portanto, uma liderança restauradora. Por esse motivo, a crítica feita ao periódico se transforma em crítica aos liberais. Antônio José Ribeiro Bhering, um político liberal, foi redator de O Novo Argos. Nota-se, portanto, que é possível delinear grupos distintos atuando nas vereanças. Ver: PASCOAL, Isaías. José Bento Leite Ferreira de Melo, padre e político: o liberalismo moderado no extremo sul de Minas Gerais. In: Varia História, Belo Horizonte, vol. 23, nº 37. Jan/Jun 2007, p. 208-222. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/vh/v23n37/v23n37a12.pdf. 27 Manuel Esteves Lima foi apontado como a principal liderança dos distúrbios em Santa Rita do Turvo no ano de 1831. Em 1833, ele novamente aparece envolvido na Sedição de Ouro Preto. A permanência daquelas lideranças envolvidas em 1831 nos acontecimentos do ano 1833 foi um dos elementos que fez com que a historiadora Andréa Lisly Gonçalves afirmasse que a última foi um desdobramento da primeira. Para o perfil e participação de Esteves Lima em tais motins, ver: GONÇALVES, Andréa Lisly. Estratificação social e mobilizações políticas no processo de formação do Estado Nacional Brasileiro: Minas Gerais, 1831-1835. São Paulo: Editora Hucitec, 2008 (ver especialmente o capítulo 4). 26 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 191 As agitações que tomavam conta da Corte chegavam à cidade de Mariana. E na sessão de 24 de março de 1831, Gomes Pereira fez uma “enérgica indicação”, expondo, o desassossego em que se acha a maior parte dos habitantes desta cidade com boatos aterradores de ereções de República, insultos a cidadãos por Pasquins e algumas maneiras de Proclamações; um fato de denúncia de haver encomenda de dois bombons, supondo-se ser para sinal por serem encomendados em segredo28 A notícia da Abdicação só foi registrada em ata 10 dias após o evento, no dia 17 de abril. A Câmara de Mariana foi comunicada através de um ofício do Presidente de Província que o Imperador havia abdicado à Coroa em nome do seu filho, D. Pedro II, e que, a partir daquele momento, governava o Brasil uma Regência Provisória em nome do futuro Imperador. O ofício acrescentava ainda que: O Conselho do Governo, verificada a Constitucionalidade de todo este procedimento, resolvera o reconhecimento da dita Regência, e que se participasse sua resolução a todas as Câmaras da Província, recomendando-lhes que promovam o quanto em si couber o esquecimento do passado e a [?] de todas as forças para a tranquilidade da Pátria.29 Ao ler o ofício da Presidência de Província, o presidente da Câmara Municipal de Mariana30 concluiu que: AHCMM. Sessão extraordinária de 24 de março de 1831. Cód. 206. Procuramos saber o que seriam os bombons consultando as versões dos dicionários de Raphael Bluteau, Morais e Silva e Luiz Maria da Silva Pinto, todos disponíveis no site http://www.brasiliana.usp.br. No entanto, não encontramos pistas. 29 AHCMM. Sessão extraordinária de 17 de abril de 1831. Cód. 206. 30 O presidente da Câmara era o vereador mais votado. Na vereança de 1829-1832, foi eleito presidente o Tenente-coronel Cavaleiro da Ordem de Cristo e Advogado Fortunato Rafael Arcanjo da Fonseca. CHAVES, Cláudia Maria das Graças; MAGALHÃES, Sônia Maria; PIRES, Maria do Carmo (orgs). Casa de Vereança de Mariana: 300 anos de História da Câmara Municipal. Ouro Preto: Editora da UFOP, 2008, p. 227. Na vereança seguinte, 1833-1836, foi eleito Gonçalo da Silva Lima com 1.335 (mil trezentos e trinta e cinco) votos (VER QUADRO 1). O NOVO ARGOS. 17/11/1832. Nº 157. Ouro Preto-MG. Jornais Diversos. 1823-1833. Cx: 447. Disponível em: Biblioteca da FAFICH/UFMG. Porém, para cada sessão, era nomeado um 28 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 192 Por informação do Secretário, ainda se achavam muitos ofícios para se enviarem aos juízes de paz e Ordenanças com as cópias da Proclamação que o senhor D. Pedro I, quando ainda era Imperador do Brasil, havia feito no Ouro Preto, e que lhe parecia não deverem ser mais remetidos vistas as circunstâncias que têm ocorrido e sua abdicação da Coroa, constando que este ato fora consequência da violação da Constituição, querendo o Absolutismo. Foi resolvido que se não fizessem tais remessas.31 Nenhum dos vereadores presentes na sessão deu parecer sobre o assunto. Assinaram a ata os senhores Ignácio José Rodrigues Duarte, Rafael Arcanjo da Fonseca, Manoel Francisco Silva da Costa, Coelho Bernardino Reis e José Ferreira de Oliveira, todos eles titulares do cargo. A Abdicação, portanto, não foi discutida na Câmara Municipal de Mariana. As reuniões seguintes também não trataram dessa matéria e, não fossem as sedições, como a que se levantou na capital da província de Minas Gerais, Ouro Preto, em março de 1833, diríamos que a recomendação do Conselho de Governo, para se promover o esquecimento do passado, tinha logrado êxito. As sessões da Câmara continuaram registrando assuntos relacionados à administração da cidade. Às vezes, aparecia uma notícia ou outra de que a tranquilidade pública estava ameaçada pelos desejosos de ver D. Pedro I novamente no trono do Brasil, mas logo o assunto era interrompido porque a cidade precisava consertar suas pontes e estradas, havia porcos e bêbados pelas ruas. Esteves Lima e Gomes Pereira, vereadores da Câmara, defensores do governo de D. Pedro I, não mencionaram uma única palavra sobre os rumores da restauração do Trono do primeiro imperador. Esses dois vereadores não estavam na sessão do dia 17 de abril quando a notícia da Abdicação foi apresentada à Câmara. Em todo caso, eles voltaram às sessões seguintes, e o silêncio continuou. Silêncio que se fez sentir no registro das atas, mas que pareceu indicar a preparação da trama que, dois anos mais tarde, arrebentaria em Ouro Preto, a Sedição Caramuru de 1833. Esteves Lima e José Justino Gomes Pereira foram identificados como sediciosos32. presidente. Ou seja, é difícil dizer se se trata do presidente da Câmara ou o que estava ocupando o cargo naquela sessão especificamente. 31 AHCMM. Sessão extraordinária de 17 de abril de 1831. Cód. 206. 32 GONÇALVES, Andréa Lisly. op.cit., p. 151-153. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 193 No dia 10 de junho, houve uma reunião urgente para tratar da notícia vinda da Corte, apresentada pelo senhor presidente de Província, Manoel Ignácio de Mello e Souza33, de que “os inimigos de nossa causa tramam contra nossas vidas e fortunas”. A Câmara ficou de zelar pelo bem e sossego públicos.34 Em 26 de julho de 1831, a Câmara recebeu uma Proclamação da Assembleia Geral e da Regência afirmando que a Corte do Império se achava em estado de perturbação. E que “nosso jovem imperador, ora guardado pelos dignos representantes da Nação”, estava em perigo. Apenas notícias. Nenhuma discussão. A Câmara apenas foi informada dos acontecimentos que ocorriam na Corte. Nas sessões que se seguiram a esta, não houve nenhuma notícia sobre D. Pedro I. Os vereadores da Câmara continuaram seus trabalhos de administradores da cidade, cuidando das estradas, pontes, presos, expostos etc. e, assim, findou-se o ano de 1831, ano em que se assistiu à Abdicação de D. Pedro, primeiro Imperador do Brasil. As atas das sessões e as identidades políticas No ano de 1832, foram lidos alguns ofícios enviados à Câmara e registrados nas atas das sessões. Tais documentos nos permitem inferir qual era o posicionamento político da instituição. Está registrado na ata: Foi presente um ofício da sociedade promotora do bem público sobre reformas da Constituição, e a Câmara, reprovando inteiramente semelhantes sentimentos, resolveu que o senhor presidente lhe oficie que a Câmara rejeita clara e decisivamente os criminosos meios propostos por tal sociedade, pois que só se devem esperar as Reformas pelos meios legais que os legisladores do Brasil julgaram convenientes.35 Segundo Marcilaine Soares Inácio Gomes, a Sociedade Promotora do Bem Público da Vila do Príncipe (Serro) foi criada pelo liberal exaltado Teófilo Ottoni, em 2 de fevereiro de 1832, como espaço de mobilização política em favor das reformas constitucionais descentralizadoras. O jornal Mello e Souza tomou posse do no cargo de Presidente de Província em 22 de abril de 1831. AHCMM. Sessão Extraordinária de 31 de maio de 1831. Cód. 206. 34 AHCMM. Sessão extraordinária de 10 de junho de 1831. Cód. 206. 35 AHCMM. Sessão extraordinária de 17 de março de 1832. Cód. 214 33 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 194 A Sentinela do Serro, inclusive, esteve vinculado à mesma Sociedade 36. A reforma da Constituição era interesse tanto dos liberais exaltados quanto dos liberais moderados. A diferença estava, porém, nos meios que se intentavam empregar para tal fim. Nesse sentido, a Câmara de Mariana condenou o ofício da Promotora do Bem Público por entender que os meios propostos eram “criminosos”. No jornal O Universal, foi transcrito um trecho da correspondência que nos oferece uma ideia do que era o centro da proposta: Deliberou convidar a todas as municipalidades e sociedades patrióticas, não só desta como de outras províncias, para que, no caso de que até o dia da convocação da futura assembleia legislativa, não tenha ainda passado ou tenha sido rejeitado no senado o projeto de reformas Constitucionais, se esforcem em comum acordo para que, nos respectivos círculos eleitorais, se dêem poderes constituintes aos futuros deputados para se reformarem a Constituição [...] fazendo a reforma independente do senado [...] 37. Provavelmente, o que a Câmara de Mariana (a proposta de Otonni foi enviada a várias Sociedades e Câmara Municipais, tendo sido recebida com críticas) julgou como “criminosos meios” era que se fizessem tais reformas independentemente da decisão do Senado. O trecho da correspondência registrada em O Universal nos leva à hipótese de que o Golpe de 30 de julho de 1832, mencionado acima, pode ter sido preparado tendo em vista a manobra planejada por Otonni meses antes. A Câmara Municipal de Mariana, portanto, apresentava-se como liberal-moderada. A sessão de março de 1832 diz, Foi presente um ofício do secretário do Comitê permanente da Sociedade Patriótica Marianense convidando a esta Câmara para assistir ao Te-Deum Ver: GOMES, Marcilaine Soares Inácio. Estado, política e educação em Minas Gerais: o caso das sociedades políticas, patrióticas, literárias e filantrópicas (1831-1840). In: VI Congresso de Pesquisa e Ensino de História da Educação em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 1-14. Disponível em: http://www.fae.ufmg.br/portalmineiro/conteudo/externos/4cpehemg/eixo2.html 37 O UNIVERSAL, n.669, 1832; OTONNI, 1916: 78. O trecho do documento foi citado por Marcilaine Soares (GOMES, 2010: 65). A autora estudou o movimento associativo no período regencial. Ao todo, ela identificou 38 associações entre 1831-1840. Ver: GOMES, Marcilaine Soares Inácio. Educação e Política em Minas Gerais: o caso das sociedades políticas, literárias e filantrópicas, 1831-1840. Belo Horizonte: FAE-UFMG, 2010 (Tese de Doutorado em Educação). 36 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 195 que celebra no dia 7 de abril, e a Câmara aceitou o convite, prometendo os vereadores de comparecer e querendo dar provas de prazer com semelhante festividade, resolveu-se que, à custa de seus membros, se ilumine a frente dessa Casa na noite do dia seis.38 A Sociedade Patriótica Marianense instalou-se no dia 13 de agosto de 1831. Para essa Sociedade, qualquer mudança na Constituição deveria vir pela Lei. Muitos vereadores da Câmara de Mariana foram sócios e membros da Comissão da Patriótica Marianense. Um de seus objetivos era “promover com todas as forças a estabilidade da Monarquia Constitucional Representativa, essa forma de governo, única que pode fazer a felicidade do Brasil”.39 Na sessão do dia 23 de agosto de 1831, a notícia da instalação da Sociedade foi comunicada à Câmara nas seguintes palavras: O senhor presidente fez ver estar instalada nessa cidade a Sociedade Patriótica Marianense e aprovados seus estatutos que só tendem ao aumento da instrução pública e beneficência dos pobres e enfermos e, por não ter ainda uma casa em que o comitê faça suas sessões, propunha conceder-se a sala das audiências interinamente, não complicando seus trabalhos com o da justiça. 40 A Câmara reconhecia a importância da Sociedade e, por esse motivo, cedeu sua sala de audiência para as suas reuniões. Dois anos mais tarde, a Sociedade pediu à Câmara a mesma sala de audiência para instalar sua biblioteca41, que, vale dizer, não era pública. A organização na Câmara: o trabalho em comissões A leitura das atas da Câmara evidenciou que a edilidade se organizava a partir da divisão de tarefas, por assim dizer. Todos os ofícios AHCMM. Sessão ordinária de 31 de março de 1832. Cód. 214. A título de nota: Cada Sociedade possuía o seu periódico. O da Patriótica Marianense era a União Fraternal que, segundo Marcilaine Soares, foi redigido por Antonio José Ribeiro Bhering. SOARES, Marcilaine, op.cit. p.148. 39 ESTRELLA MARIANENSE. 20 de agosto de 1831. N. 66. 40 AHCMM. Sessão de 23 de agosto de 1831. Cód. 214 41 AHCMM. Sessão extraordinária de 10 de setembro de 1833. Cód. 221 38 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 196 remetidos à Câmara eram distribuídos a uma Comissão, que os avaliaria e daria o seu parecer. Os camaristas se organizavam em comissões, como a de papel e ofícios, de obras, de contas. Tão logo a nova Câmara assumia a legislatura, os vereadores se dividiam para a realização dos trabalhos. Por exemplo, Gomes Pereira era membro da comissão de papéis e ofícios, na vereança de 1829-1832. Quando a nova vereança tomou posse, em 7 de janeiro de 1833, foram eleitos para membros da Comissão de papéis Ribeiro Bhering, Manoel Julio de Miranda e João Paulo Barboza, todos eles padres42. Para a comissão de contas, foi eleito José Justiniano Carneiro 43. Os vereadores também se juntavam em comissões para resolver variados assuntos. Na sessão extraordinária de 12 de fevereiro de 1833, Bhering propôs que se criasse uma comissão para tratar do cemitério da cidade. Foram eleitos ele próprio, Barbosa e Damasceno 44. A Câmara também nomeava uma comissão para levar os cumprimentos da edilidade a todo presidente de Província que tomava posse na capital, Ouro Preto. Nomeava-se comissão para fazer vistorias e visitas aos prédios públicos. Também era comum nomear responsáveis por cumprir as demandas de certos ofícios. Por exemplo, o vereador Gonçalo da Silva Lima foi encarregado pelos demais vereadores de responder ao ofício da presidência que indagava à Câmara sobre a existência de bicho-da-seda na cidade e seu termo. Com essa tarefa, o vereador deveria se informar do assunto e conseguir o máximo de elementos possíveis para dar seu parecer sobre o ofício. Diante da determinação vinda da presidência de Província, Silva Lima apresentou o seguinte parecer: encarregados de promover a descoberta do bicho-daseda e do modo de os pensar e fazer propagar, apenas tivemos notícias de que em outros tempos os houveram (sic) nesta cidade e que infelizmente se perdeu a criação. Temos promovido a descoberta recomendando a diversos patriotas fazendo saber o prêmio prometido e do resultado daremos contas45. AHCMM. 1ª sessão ordinária de 7 de janeiro de 1833. Cód. 221 AHCMM. 5ª sessão ordinária de 7 de janeiro de 1833. Cód. 221 44 AHCMM. Sessão extraordinária de 12 de fevereiro de 1833. Cód. 221 45 AHCMM. 6ª sessão ordinária de 19 de abril de 1834. Cód. 221. Na sessão de 14 de novembro, porém, foram enviados à Câmara pelo juiz de paz de Tapera um ofício e “três casulos de bicho-da-seda retirados dos arbustos de algodão”. E antes disso, no dia 7 de julho, “leu-se um ofício do diretor da Agência Americana em Nova Yorque oferecendo à Câmara circulares, desenhos e listas dos preços das melhores manufaturas daquela cidade e suas vizinhanças, o 42 43 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 197 Assim, podemos afirmar que os vereadores se organizavam em comissões para facilitar o trabalho de administração do município, dividindo entre si as obrigações, que, como vimos, eram muito amplas. Porém, é preciso dizer que os ofícios não eram distribuídos entre os vereadores de maneira aleatória. Constatamos que, toda vez que era necessário escrever para a presidência de Província ou para o Conselho Geral de Província, e, depois de 1834, para a Assembléia Legislativa, o vereador eleito era, na maioria das vezes, Antonio José Ribeiro Bhering. E isso não se dava por acaso. Bhering era professor e redator de jornal. Estava, portanto, apto a realizar a tarefa. Obviamente, não se tratava apenas do mais apto, ou seja, essa era também uma escolha política: Bhering era um liberal-moderado. Podemos citar outro caso. Trata-se de Manoel Francisco Damasceno, carpinteiro e pardo, eleito vereador no ano de 1833. Esse vereador assumiu a vereança por vários mandatos consecutivos, na maioria deles foi presidente da Câmara, ou seja, o vereador mais votado 46. Antes de ser eleito vereador, ele já aparecia nas atas da Câmara como um perito, isto é, alguém que tinha seu trabalho reconhecido pelos colegas e visibilidade na cidade. Na sessão extraordinária de 13 de abril de 1832, leu-se o seguinte ofício: Foi presente um ofício do secretário do Conselho Geral do dia 3 deste mês enviando a resolução pela qual foi aprovada a proposta desta Câmara para fazer a Ponte do Mainart no lugar da existente, e o senhor presidente informou a Câmara que se inteligenciará com o perito Manoel Francisco Damasceno para ir com seu companheiro [fazer] o necessário exame, e ficou a Câmara inteirada.47 que, aceitando a Câmara, resolveu fazer público e agradecer a referida oferta”. A Câmara, portanto, incentivava o desenvolvimento de atividades econômicas. 46 O vereador Damasceno habitava o fogo que tinha por chefe sua mãe, Ana Jacinta da Encarnação. Sua mãe era tecelã e sua irmã, rendeira. Antonio dos Reis, que também habitava o fogo, era carpinteiro como Damasceno. Todos foram descritos na lista nominativa de 1831 como pardos. Ver: Banco de dados das listas nominativas da província de Minas Gerais. CEDEPLAR/UFMG. Org. por Clotilde Paiva. 47 AHCMM. Sessão extraordinária de 13 de abril de 1832. Cód. 214. Na 5ª sessão ordinária de 6 de julho de 1832, Teotônio de Souza Guerra Araújo Godinho se ofereceu para arrematar a ponte do Mainart. O fiador da obra foi João Luciano de Souza Guerra. A informação é digna de nota, uma vez que ambos se envolveram na Sedição de 1833. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 198 Depois de eleito vereador, ele foi incumbido de cuidar de assuntos relacionados às obras públicas. Na sessão extraordinária de 12 de novembro de 1833, consta a informação de que Damasceno foi eleito para a comissão que iria analisar, a pedido do juiz de direito da comarca, as condições da cadeia da cidade. Feita a análise, o seu parecer foi de que seria necessária a realização de obras, que se estenderiam por cerca de 30 dias. Na prisão, somente se achava em condições de ser ocupado o xadrez, no qual, segundo o vereador, caberiam entre 17 e 18 pessoas e também a enxovia, que poderia acomodar 1248. A formação de comissões contribuiu para a organização dos trabalhos da Câmara revelando seu funcionamento. As atividades eram exercidas por aqueles que tinham “autoridade” no assunto. Eram todos vereadores, porém, cada um exercia uma função específica na edilidade. Por esse motivo, encontramos Damasceno como o responsável por vistoriar, analisar, avaliar e dar seu parecer sobre o conserto de pontes e de obras públicas de maneira geral. Ninguém melhor do que um carpinteiro experiente para realizar tal serviço. Também encontramos José Justiniano Carneiro dando parecer sobre a situação das estradas. Justiniano Carneiro foi juiz de paz de Tapera e Coronel da 2ª Legião de Guardas Nacionais. Portanto, sua experiência como Coronel tornava-lhe apto a avaliar o estado das estradas. E dessa maneira cada vereador exercia seu papel, colaborando para o funcionamento da Câmara na gestão do governo da cidade. Por tudo que foi dito, podemos afirmar que a Câmara de Mariana não perdeu seu prestígio e sua representatividade política. Tampouco foi esvaziada de poder com o decreto que instituiu a Lei de 1828. Ser vereador da Leal Câmara era um elemento de distinção e os camaristas souberam utilizar desse status para se projetarem politicamente a outros níveis de poder, nomeadamente o provincial e o geral. A Câmara Municipal da cidade de Mariana apoiou o governo imperial, sustentando praticamente todas as medidas propostas por ele, como a Lei de 1828, as reformas liberais da década de 1830 e, por último, o Ato adicional de 1834. Obviamente que havia aqueles vereadores que não compartilhavam das mesmas identidades políticas, caso dos que se envolveram na Sedição de Março de 1833. Mas, de maneira, geral, pode-se dizer que a Câmara Municipal da primeira cidade de Minas Gerais possuía 48 AHCMM. Sessão extraordinária de 12 de novembro de 1833. Cód. 221 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 199 uma tendência liberal-moderada. A Leal Câmara mostrou sua lealdade. Foi leal à Regência. Referências Documentais AHCMM, Livro para registro da Carta de Lei de 1º/10/1828. Cód. 88. Registro da Carta de Lei de 1º de Outubro de 1828, 1º/04/1829, f. 01f-08v. Disponível também em: http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/LegimpK_20.pdf. AHCMM. 6ª sessão ordinária de 17 de dezembro de 1831. Cód. 214. AHCMM. Sessão de 21 de março de 1831. Cód. 206. AHCMM. Sessão extraordinária de 7 de setembro de 1834. Cód. 221. AHCMM. 3ª sessão ordinária de 14 de janeiro de 1835. Cód. 221. AHCMM. Sessão extraordinária de 5 de novembro de 1832. Cód. 214. AHCMM. 5ª sessão ordinária de 17 de dezembro de 1830. Cód. 206. AHCMM. 3ª sessão de 2 de março de 1831. Cód. 206. AHCMM. Sessão extraordinária de 12 de maio de 1832. Cód. 214. AHCMM. Sessão extraordinária de 21 de março de 1831. Cód. 206. AHCMM. Sessão extraordinária de 24 de março de 1831. Cód. 206 AHCMM. Sessão extraordinária de 17 de abril de 1831. Cód. 206. AHCMM. Sessão Extraordinária de 31 de maio de 1831. Cód. 206. AHCMM. Sessão extraordinária de 10 de junho de 1831. Cód. 206. AHCMM. Sessão ordinária de 31 de março de 1832. Cód. 214. A AHCMM. Sessão de 23 de agosto de 1831. Cód. 214 AHCMM. Sessão extraordinária de 10 de setembro de 1833. Cód. 221 AHCMM. Sessão extraordinária de 17 de março de 1832. Cód. 214 AHCMM. 1ª sessão ordinária de 7 de janeiro de 1833. Cód. 221 AHCMM. 5ª sessão ordinária de 7 de janeiro de 1833. Cód. 221 AHCMM. Sessão extraordinária de 12 de fevereiro de 1833. Cód. 221 AHCMM. 6ª sessão ordinária de 19 de abril de 1834. Cód. 221 AHCMM. Sessão extraordinária de 13 de abril de 1832. Cód. 214. AHCMM. Sessão extraordinária de 12 de novembro de 1833. Cód. 221 Banco de dados das listas nominativas da província de Minas Gerais. CEDEPLAR/UFMG. Org. por Clotilde Paiva. Periódicos: ESTRELLA MARIANENSE. 20 de agosto de 1831. N. 66. O NOVO ARGOS. 01/03/1831. Nº 68. Ouro Preto-MG. Jornais Diversos. 1823-1833. Cx: 447. Disponível em: Biblioteca da FAFICH/UFMG. O NOVO ARGOS. 17/11/1832. Nº 157. Ouro Preto-MG. Jornais Diversos. 1823-1833. Cx: 447. Disponível em: Biblioteca da FAFICH/UFMG. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 200 Referências bibliográficas BASILE, Marcello. Linguagens, pedagogia política e cidadania: Rio de Janeiro, cerca de 1830. In: SABINA, Gladys Ribeiro (Org.). Brasileiros e cidadãos: modernidade política, 1822-1930. São Paulo. Alameda Casa Editorial: 2008, p. 207-224. CHAVES, Cláudia Maria das Graças; MAGALHÃES, Sônia Maria; PIRES, Maria do Carmo (orgs). Casa de Vereança de Mariana: 300 anos de História da Câmara Municipal. Ouro Preto: Editora da UFOP, 2008. DOLHNIKOFF, Miriam. O Pacto Imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005. FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 10. ed. São Paulo: Globo; Publifolha, 2000, vol. 1. 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Entrevemos que a busca por uma administração sob os moldes da normatização e civilidade, conforme prescreviam as leis imperiais, eram marcas da ação da municipalidade favorecendo-lhes influências e importâncias para além das suas funções governativas/administrativas, até mesmo políticas e culturais, conforme conjeturamos. Palavras-chave: Câmara Municipal do Recife, organização, administração. Abstract: In this article we discuss about the organization of the Recife's House of Representatives in 1829 and 1849 and its action to establish the socalled "good government of the city." His administration favored them influence and importance beyond its governmental functions / administrative, political and cultural perhaps, as we conjectured. Key words: Recife's House of Representatives, organization, administration. N 1o Império Marítimo Português as Câmaras Municipais formavam um dos pilares da sociedade colonia.1 Na base da estrutura governativa implantada na América Portuguesa, tornaram-se as mais híbridas dentre todas as instituições, exercendo funções administrativas, judiciárias, fiscais, militares e eclesiásticas, assim como intervindo no cotidiano das cidades e vilas em que atuavam. Assumindo aspectos divergentes do previsto, chegando a ter um papel de vulto muito BOXER, Charles Ralph. O Império Colonial Português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 286, 299. 1 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 202 maior que o idealizado pela legislação lusitana, transformaram-se claramente em veículos dos interesses locais, com “vitalidade, poder de influência e atuação nos núcleos urbanos que governavam” 2. No entender de Oliveira Viana, eram elas os centros da agitação por excelência dos partidos locais, e, em suas atividades administrativas, sempre demonstravam o caráter partidário inerente ao seu governo 3. Ou seja, eram instituições com características corporativas que atuavam em prol dos interesses das elites ali alocadas e buscavam preservar os valores comuns do grupo, através da proteção, das benesses mútuas, das trocas e favores entre si. Isso implicava na busca pelo controle das relações de poder, das atividades econômicas, dos cargos públicos, das disputar eleitorais na localidade (heranças que não foram apagadas durante o período imperial). Mas, como bem observou Charles Boxer, “seus poderes foram drasticamente reduzidos pelas reformas da administração provincial introduzidas pelo novo governo imperial” 4. Nas interpretações dos autores Victor Nunes Leal, Caio Prado Júnior e Raimundo Faoro, no período imperial, ocorreu a derrocada das instituições coloniais e a lenta estruturação do país enquanto nação, alargando-se o “poder” provincial, subtraindo-se a autonomia das municipalidades5 pelas vias da lei, restringindo-se a competência das SOUZA, George Félix Cabral de. Os homens e os modos de governanças. A Câmara Municipal do Recife no século XVIII num fragmento de história das instituições municipais do império colonial português. Recife, Gráfica Flamar, 2003, p. 17, 76, 83-4; cf.: PRADO JR., Caio. Evolução política do Brasil e outros estudos. 7. Ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1971b, p. 298-340. Cf.: SOUZA, George Félix Cabral de. O rosto e a máscara: estratégia de oposição da Câmara do Recife à política pombalina. In: Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades. Lisboa, 2 a 5 de novembro de 2005, FCSH/UNL. Disponível em www.institutocamoes.com, acessado em 25.01.2008.; e, BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império, o Rio de Janeiro no século XVIII – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; WEHLING, Arno. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, pp. 299-312. 3 VIANA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Brasília: Senado federal, 2004, p. 217. Segundo Charles Boxer, as Câmaras Municipais e as Misericórdias ajudaram a manter unidas as diversas colônias portuguesas além mar, destacando-se de tal forma que quem queria viver bem, à larga e com liberdade, devia tentar pertencer a uma delas, ou às duas. BOXER, 2002, p. 299. 4 BOXER, 2002, p. 299. 5 Municipalidade, Edilidade, Conselho, Senado, Vereança são termos utilizados para se referir às câmaras, aos vereadores, ou às reuniões dos componentes daquela instituição. 2 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 203 câmaras à matérias econômicas locais e proibindo-se que os vereadores deliberassem sobre temas políticos provinciais ou gerais. 6 Esse processo foi instaurado a partir de 25 de março de 1824, quando passou a vigorar a Primeira Carta Constitucional para o novo país. Dos 179 artigos nela inscritos apenas três foram dedicados exclusivamente às Câmaras Municipais. Mas, de acordo com Octaciano Nogueira, ela “representou um enorme avanço sobre a concepção colonial das funções das Câmaras que passaram a reger a vida municipal.”7 A partir de então, ficava desenhada a limitação do poder municipal às questões do governo econômico8, inclusive sua relação de dependência aos Conselhos (depois, Assembleias) provinciais9. A partir daquela década, novos atores e instituições foram sendo introduzidos no xadrez das relações de poder, obrigando as municipalidades a aprimorar suas ações de governo da cidade dentro dos limites legais impostos, e, por meio de um leque cada vez maior de obrigações e intervenções no cotidiano citadino, (re)montar e/ou preservar uma teia de relações capaz de garantir velhos privilégios na localidade. Conforme bem observou Adriana Pereira Campos, no plano político as leis liberais do Império brasileiro buscaram a continuidade e o aceleramento do controle sobre os poderes locais. A criação e regulamentação dos Juizados de Paz em 1827, por exemplo, foi um desses 6ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privado no Império. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 17. 7 NOGUEIRA, Octaciano. Constituições Brasileiras: 1824. Brasília: Senado federal e Ministério da Ciência e tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001, p. 33. 8 Entenda-se “governo econômico” como um tipo de governo que consistia em um grande número de práticas e ações emanadas da Câmara municipal visando ordenar, disciplinar as relações sociais desenroladas no espaço urbano cujo fim era “garantir o bem comum da urbe”. Segundo Leandro Calbente, “econômico se refere ao governo da casa, ao modelo de condução do governo à moda da condução da casa”, assim, “os assuntos da cidade deveriam ser conduzidos segundo o modelo do governo doméstico”. CÂMARA, Leandro Calbente. Administração colonial e poder: a governança da cidade de São Paulo (1765-1802). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008, p. 20, 96, 23, 101, 111 e 162. 9 O artigo 167 propunha a criação de câmaras para todas as vilas e cidades do império, competindo a elas o governo econômico e municipal nos espaços de sua atuação. No art. 168 confirmou-se a eletividade nas instituições. Já o último, artigo 169, determinou a posterior elaboração de uma lei regulamentar que normatizaria “o exercício de suas funções municipais, formação de suas posturas policiais, aplicação de suas rendas, e todas as suas particulares e úteis atribuições.” Cf. art. 82. NOGUEIRA, 2001, p. 33. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 204 mecanismos que, além de obliterar o poder de disciplina/político das municipalidades, ampliou a participação popular no processo de escolha dos juízes leigos e vereadores, possibilitando, portanto, a integração dos cidadãos no jogo político sem a intervenção ou dependência direta de outras figuras ou instituições10. No ano seguinte foi promulgada a lei regulamentar que ficou conhecida como o Regimento das Câmaras Municipais. Por meio dela o governo imperial normatizou e deu novos contornos às municipalidades, limitando sua autonomia e dando-lhe um caráter puramente administrativo. Entretanto, o regimento representou um avanço ao definir claramente as normas para estruturação e o funcionamento dessas instituições. Composto por noventa artigos, dispostos em cinco títulos, ele versava sobre a “forma da eleição das Câmaras”, as “funções municiais”, as “posturas policiais”, a “aplicação das rendas”, “dos empregados” – rompendo com os padrões pouco estruturantes do período colonial, apresentava-se como um modelo de racionalização para a organização e o governo municipal. Na percepção de Raimundo Faoro, uma normatização baixada do governo central para que os municípios com seus vereadores e juízes não se perdessem no exercício de atribuições mal delimitadas. 11 A partir de então se reservava às câmaras as competências administrativas referentes à “criação de normas urbanísticas e construtivas, salubridade pública, assistência social e regulamentação das normas de trabalho urbano.” 12 Cabendo-lhe apenas a elaboração das posturas policiais, as quais deveriam passar pelo crivo do Presidente da Província. Nesse processo, as câmaras municipais foram absorvidas pelo poder provincial, estabelecendo-se uma hierarquização entre o governo da província e do município13. CAMPOS, Adriana Pereira. Magistratura leiga no Brasil independente: a participação política municipal. In: CARVALHO, José Murilo [et al.]. Linguagens e fronteiras do poder. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, pp. 257-271. 11 FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 12. ed. Rio de Janeiro: Globo, 1997, p. 177. 12 ARRAIS, Raimundo. O pântano e o riacho: a formação do espaço público no Recife do século XIX. – São Paulo: Humanitas /FFLC/USP, 2004, p. 123. 13 SOUZA, Maria Aparecida Silva de. Construindo a “nação brasiliense”: Poderes locais e identidades políticas na Bahia, (1815-1831). Almanack Braziliense, n. 02, nov. 2005, p. 118. Disponível em: http://www.almanack.usp.br/PDFS/2/02_ informes_2.pdf, acessado em: 30.11.2010. A “intervenção” provincial nos assuntos municipais já assinalada no Regimento de 1828, foi ratificada em 1834 por meio do Ato Adicional que legitimou um controle maior do governo provincial sobre as municipalidades no Brasil. Ele estabelecia a criação de 10 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 205 Percebe-se, portanto, que no processo de organização do Estado brasileiro na primeira metade do XIX houve uma tentativa de cercear as funções políticas das municipalidades alinhando-as às prerrogativas do Estado, em contrapartida realizou-se uma ratificação de suas funções governativas, o que ampliava suas possibilidades de intervenção no cotidiano das cidades e vilas do Império. Portanto, para determinada elite local interessada em pertencer aos quadros da municipalidade, era preciso desenvolver novas táticas, aprimorar as atribuições e potencializar as ações administrativas camarárias, fazendo-as mais eficientes para se poder angariar dividendos positivos dentro da conjuntura instaurada. Ou seja, se os interessados quisessem auferir vantagens nas Câmaras, preservar velhas regalias ou conquistar outras tantas, deveriam buscá-las dentro do viés imposto pelas leis imperiais, fazendo-se as devidas apropriações e adaptações em prol de seus interesses, fossem eles políticos, econômicos, simbólicos, ou qualquer outro. Tomando como objeto de pesquisa a Câmara Municipal do Recife na primeira metade do século XIX, destacamos os trabalhos dos agentes camarários para organizar a instituição internamente e estabelecer o chamado “bom governo da cidade”. E, nesse contexto, entrevemos a rearrumação administrativa impetrada pela municipalidade como um caminho necessário para a ampliação das influências e importâncias para além das suas funções governativas/administrativas, quiçá políticas e culturais, conforme conjeturamos. Até a aurora do ano de 1829 a Câmara Municipal do Recife era organizada e funcionava de acordo com as regras e tradições herdadas do Assembléias legislativas para as províncias, com funções deliberativas e normativas sobre a polícia e economia municipal e as despesas e empregos municipais, precedendo propostas das câmaras. A interpretação de alguns dos artigos do Ato Adicional, feita pela Lei número 105, de 12 de maio de 1840, não mudou muito a situação das municipalidades. Só para citar um exemplo, em seu primeiro artigo a lei apenas explicava a palavra “municipal” e “polícia”, ambas se referindo à administração municipal, mas sem retirar o caráter de dependência dessas instituições às Assembleias Provinciais. Cf.: CAMPOS, Maristela Chicharro de. O governo da Cidade: elites locais e urbanização em Niterói (1835-1890). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004, pp. 39-44; Cf.: NOGUEIRA, 2001, pp. 107-116; SLEMIAN, Andrea. Sob o império das leis: Constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834). Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006; DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 206 período em que o Brasil era parte do Império Marítimo Português 14, cumprindo os vereadores os seus afazeres cotidianos sem aparentes percalços. Mas, aquele ano foi um divisor de águas para aquela instituição no que se refere à sua organização interna, funcionamento e administração da cidade. Em 1828 a escolha dos vereadores que assumiriam a legislatura anual ocorreu sob os mesmos moldes do período colonial: eleição do pelouro15. No dia marcado para dar posse à nova municipalidade, sete de janeiro de 1829, foi lido um ofício do mês anterior pelo qual o Presidente da Província determinava o segundo domingo de fevereiro para se proceder as eleições dos vereadores e juízes de paz na conformidade da Lei de 1º de outubro de 1828. Com dúvidas se deveriam prosseguir ou não com o expediente previsto e dar a dita posse conforme o antigo costume, ou esperar a realização de novas eleições, os vereadores oficiaram ao dito presidente para ele declarar o que lhe parecesse sobre aquele negócio16. A morosidade na comunicação ou desencontro das informações entre as instituições e autoridades provocara a questão, mas tratava-se de um problema muito comum no período em tela. No caso, a última sessão ordinária da Câmara Municipal do Recife ocorreu no dia 20 de dezembro de 182817 e a comunicação do presidente da província foi enviado posteriormente, no dia 30 de dezembro, e só foi lida em 7 de janeiro, exatamente na data em que ocorreria a posse dos novos vereadores à moda antiga. Ao remeter-lhe o ofício pedindo esclarecimentos, os vereadores endossaram o documento dizendo não querer agir deliberadamente segundo o costume, mas “marchar em conformidade com a [nova] lei” 18, buscando assim revestir de legitimidade as ações camarárias, indicando 14Ou seja, continuava “presa” às antigas normas. As Ordenações, Leis e Decretos promulgados pelos Reis de Portugal até 25 de abril de 1821 continuariam válidos durante o Império enquanto não fossem revogados ou substituídos. Cf.: PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Código Filipino, ou, ordenações e Leis do Reino de Portugal: recopiladas por mandado d‟elRei D. Felipe I. – Ed. fac-similar da 4ª ed., segundo a primeira, de 1603, e a nona, de Coimbra, de 1821 / por Cândido Mendes de Almeida. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004, p. LXXV. 15 Modelo de eleição baseado no sorteio anual das listas dos homens aptos para exercerem a vereança. Cf.: SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder en el Brasil colonial: la Cámara Municipal de Recife (1710-1822). Tese (Doutorado em História) – Universidad de Salamanca, Salamanca, 2007, pp. 196-7. 16 Termo de Vereações de 07.01.1829. Livro de Vereações da Câmara Municipal do Recife, n. 7, (1829-1833), IAHGP. 17 Termo de vereação de 20.12.1828. Livro de Vereações da Câmara Municipal do Recife, n. 7, (1829-1833), IAHGP. 18 Ofício de 07.01.1829, Câmaras Municipais – Recife, 1829, APEJE. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 207 uma ligeira concordância às prerrogativas do Império. A adaptação à lei de 1º de outubro de 1828 foi, a partir de então, uma característica marcante no discurso dos vereadores, e um importante expediente de apropriação e barganha para alcançar seus anseios. O presidente da província orientou a observação do Regimento dos Corpos Municipais das Ordenações Filipinas até que se instalassem as novas Câmaras. No dia 10 de janeiro tomaram posse o 1º Vereador, Thomaz José da Silva, o 2º, Antônio José Pires e o 3º, José Ramos de Oliveira sob as velhas regras e costumes, ficando eles nos cargos por poucos dias19. Dirimidas as dúvidas, contudo, os vereadores sabiam que após as eleições marcadas para o 2º domingo de fevereiro de 1829 na conformidade da lei e a efetiva posse dos que saíssem eleitos, estariam diante de um novo desafio: se ajustar às normatizações do novo Regimento. Aliás, o presidente da província não abriu mão de enfatizar o “novo” caráter atribuído às Câmaras Municipais. Para ele, elas seriam “novas” porque pela Lei de 1828 tais instituições se organizariam “na forma da Constituição do Império” e não mais pelo costume anterior, devendo elas, portanto, se adequarem às prerrogativas de um Estado que começara a ensaiar feições de moderno. Claro que o governo provincial via com bons olhos tal conjuntura, pois que ela teoricamente limitava os poderes locais, submetendo-os à autoridade provincial. Na primeira semana de janeiro a Câmara Municipal recebeu do presidente da província um exemplar da lei de 1º de outubro de 1828 e, no final do mês, oito exemplares do aditamento às Instruções de 1828 (Decreto de 1º de dezembro de 1828) para as eleições das Câmaras municipais e juízes de paz, com a ordem de que os vereadores do Recife enviassem aqueles exemplares aos colégios eleitorais nas Freguesias dos Distritos para que por tais regulamentos se realizassem as eleições e se formassem as novas Câmaras20. Era preciso marcar os limites de atuação das instituições camarárias, foi isso que se buscou fazer em Pernambuco naqueles idos. A princípio, conforme podemos notar, o presidente da província estava preocupado com as eleições daquele ano, mas no decorrer do tempo, cobrou da Câmara Municipal do Recife o cumprimento das normas do regimento de 1828. Em seu Art. 2º, a lei dizia que os membros das Câmaras Termo de Vereações de 10.01.1829. Livro de Vereações da Câmara Municipal do Recife, n. 7, (1829-1833), IAHGP; Ofício, 08.01.1829. Ofícios da Presidência, 1829, IAHGP 20 Ofício de 05.01.1829, Documentos avulsos, APEJE; Ofício 29.01.1829, Ofícios da Presidência, 1829, IAHGP. 19 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 208 Municipais seriam eleitos de quatro em quatro anos, no dia 7 de setembro nas paróquias e nos lugares que as Câmaras designassem, sendo o pleito anunciado quinze dias antes por meio de editais. Completando com o Art. 16, dizia que no dia 1º de dezembro os vereadores eleitos enviariam à Câmara os seus títulos, conferidos e parecendo legais, o Secretário e o Escrivão informariam aos mesmos vereadores o dia do juramento e posse; estes últimos deveriam se apresentar à Câmara no dia 7 de janeiro e prestarem juramento pela maneira seguinte: “Juro aos Santos Evangelhos desempenhar as obrigações de vereador da cidade ou vila de tal, de promover quanto em mim couber, os meios de sustentar a felicidade pública”. Essas datas não chegaram nem a vigorar no Recife, pois o decreto de 1º de dezembro de 1828 que deu as instruções para as eleições das Câmaras Municipais e dos Juízes de Paz e seus Suplentes, em seu Art. 1º determinou que tais eleições fossem feitas em todas as Províncias do Império, exceto na do Rio de Janeiro, no dia que os seus Presidentes designassem. Assim, os procedimentos seriam os mesmos, mas as datas ficariam sob o encargo do presidente da província, o qual as escolheria quando lhe parecesse conveniente, ou seja, no momento que lhe fosse mais favorável para travar os pleitos eleitoreiros da época. De posse da lei e sob as ordens do presidente da província procedeu a eleição dos vereadores na conformidade do novo Regimento. No segundo domingo de fevereiro de 1829, os votantes 21 se reuniram nos lugares designados pela Câmara, entregaram ao presidente uma cédula com sua respectiva assinatura contendo o número de nomes de pessoas elegíveis correspondentes ao dos vereadores que se havia de eleger, fechando-a com o rótulo: “Vereadores para a Câmara da cidade do Recife”.22 Após a votação a mesa declarou a quantidade das cédulas e com ofício as remeteu à respectiva Câmara. Não demorou e em 7 de fevereiro a edilidade mandou “afixar editais para constar ao público que no dia nove do corrente se havia de dar princípio a apuração dos votos para os vereadores da Câmara” 23, conforme Podiam votar e serem votados nas eleições para vereadores os que tivessem voto na nomeação dos eleitores de paróquia, ou seja, os que se enquadrassem nos artigos 91 e 92 da constituição de 1824. Cf. NOGUEIRA, Octaciano. Constituições Brasileiras: 1824. Brasília: Senado federal e Ministério da Ciência e tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001, p. 91. 22 COLEÇÃO das Leis do Império do Brasil de 1828. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1878, p. 75. 23 Termo de Vereações de 07.02.1829. Livro de Vereações da Câmara Municipal do Recife, n. 7, (1829-1833), IAHGP. 21 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 209 obrigava a lei. Com atraso, no dia 11 de fevereiro de 1829 deu-se princípio à apuração dos votos que definiriam os nove vereadores que comporiam a nova Câmara, tudo isso feito a portas abertas. Daquela apuração os mais votados seriam os vereadores e o que obtivesse no total maior número de votos deveria ser o presidente. Eleitos, informados e regulamentados documentalmente os novos vereadores deveriam se apresentar à Câmara no dia designado a fim de prestarem juramento e tomar posse no referido cargo. Foi o que aconteceu no dia 23 de maio de 1829, quando “compareceram os vereadores eleitos para servirem nesta Câmara na conformidade da lei do 1º de outubro de 1828”24. Todo esse procedimento era necessário e se repetiria a cada eleição. Formada a nova Câmara, era preciso se organizar e atuar em conformidade com o estabelecido na dita lei. A partir de então percebemos que os novos vereadores e funcionários da Câmara procuraram observar e organizar a instituição de acordo com as determinações da lei que durante todo o Império lhes regeria, e, dentro desse processo, parece-nos, buscaram apropriar-se das brechas legais presente na legislação para tentar preservar seu “lugar de fala”, barganha e atuação mais racionalizada e eficiente na localidade, de forma a atender e manter os seus interesses peculiares e manter a ordem estabelecida. Aquela poderia ser uma boa estratégia para encontrar novos caminhos e contornar possíveis limitações para se estabelecer novas relações de força na localidade. Dentro dessa perspectiva, o veterano vereador Felipe Neri Ferreira argumentou na recém instalada Câmara que cumpria aos que a compunha o dever de observar ipsis litteris a nova lei25. No seu entender, para cumprir com suas novas atribuições era indispensável à edilidade recifense munir-se primeiro que tudo das Instruções de 1828, somente assim se habilitariam das qualidades necessárias “as quais ou de todo nos faltam, ou as temos de tal modo incompletas que mal nos pode seguir de guia na carreira que vamos instar”. Se a elite camarária não concordou na íntegra com tudo que a lei Cf.: COLEÇÃO, 1878, pp. 76-77; Decreto de 1º de dezembro de 1828 – Dá instruções para as eleições das Câmaras Municipais e dos Juízes de Paz e seus Suplentes. In: Coleção das Leis do Império do Brasil (1808-1889). Disponível em http://www2.camara.gov.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/ do império. Acesso em 20 de dezembro de 2010; Termo de vereação e posse aos novos vereadores de 23.05.1829. Livro de Vereações da Câmara Municipal do Recife, n. 7, (1829-1833), IAHGP. 25 Ata da 1ª sessão da Câmara Municipal desta cidade, 25.05.1829. Livro de Vereações da Câmara Municipal do Recife, n. 7, (1829-1833), IAHGP. 24 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 210 dispunha, ao menos procurou lançar mão dela em seus discursos e ações inclusive na hora de se opor a alguma norma vinda do PP. Isso, obviamente porque a lei definia o que era e como deveria ser a gestão da instituição e os caminhos a serem percorridos para a manutenção das relações de poder na localidade. Assim, em termos de funcionamento, a partir daquela data (23 de maio de 1829) a edilidade recifense deveria realizar por ano “quatro sessões ordinárias de três em três meses, no tempo que elas marcarem”, durando os dias que fossem necessários (nunca menos que seis), não excedendo mais de quatro horas cada reunião. Podendo ser convocada a Câmara extraordinariamente em caso de negócio urgente. Na prática, os encontros da Câmara Municipal do Recife eram mensais e o número de vereações era variável 26. Nos dias marcados para o princípio de cada uma das sessões, os vereadores se reuniam às nove horas da manhã na casa da Câmara, de portas abertas e havendo assentos para os espectadores. O presidente dava início e fechamento às sessões nas quais os vereadores deliberavam e votavam sobre questões pertinentes, mantendo-se sempre a decência, ordem e civilidade e o que melhor conviesse aos interesses do município, conforme a lei.27 Nesse expediente, registravam as ações, informações, documentos das eleições, escrituras, acontecimentos, reclames populares, solicitações, entre outros, em livros, papeis, atas, etc. e guardavam os documentos nos cofres e armários, que compunham, assim, as partes necessárias de seu arquivo. Diante desse desafio a edilidade recifense precisava de início organizar os empregados municipais, a saber: Secretário, Procurador, Porteiro, Fiscais, que, segundo os doze artigos do Título V da lei de 1828 seriam nomeados juntamente com seus suplentes. Esses empregados deveriam receber uma gratificação pelos serviços prestados e deviam auxiliar a edilidade na administração do município e normatização social e, na maioria das vezes, o trabalho de um estava diretamente ligado ao bom desempenho do outro. Os homens de governo apelavam para que tais empregados fossem pessoas de boa índole, organizadas, obedientes, zelosas, eficientes, ou seja, carregassem os atributos da polidez e civilidade. Tabela 1 - Das vereações da Câmara Municipal do Recife (1825-1849). In: SOUZA, Williams Andrade. Administração, normatização e civilidade: a Câmara Municipal do Recife e o governo da cidade (1829-1849). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Rural de Pernambuco, 2012. 27 COLEÇÃO, 1878, pp. 78-79. 26 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 211 Comecemos por aquele que deixou registradas as atas de que agora nos valemos para compormos parte deste trabalho: o Secretário da Câmara. Esse empregado era o antigo Escrivão. Segundo o Regimento, a seu cargo estava a escrituração de todo o expediente da Câmara, organização e guarda de seus livros, assim como, emissão de certidões que lhe fossem pedidas sem precisão de despacho, recebendo emolumentos por elas, além da gratificação anual e proporcional ao trabalho realizado e paga pelas rendas do Conselho. Este devia ser homem de bem, escrever com acerto, ser zeloso com a escrituração, conservação, guarda, ordem e segurança dos papéis da Câmara. Uma importante tarefa sua era fazer, por meio do porteiro e do seu ajudante, a remessa dos ofícios e a afixação dos editais, posturas etc.28 Ou seja, passava pelas mãos dos secretários, entre outras informações, as notificações das regras de convívio que seriam publicadas para a sociedade. O Procurador deveria se nomeado por quatro anos. A ele competia a arrecadação e aplicação das rendas e multas destinadas às despesas do Conselho; demandar perante os Juízes de Paz a execução das posturas e a imposição das penas aos infratores; defender os direitos da Câmara perante a Justiça; dar conta da receita e despesas camarárias trimestralmente nas sessões do órgão. Para isso, receberia 6% de tudo quanto fosse arrecadado, salvo se este rendimento fosse superior ao trabalho executado, quando a Câmara convencionaria com ele a gratificação merecida 29. Este era um empregado muito importante para a edilidade, tendo em vista que a ele competia uma tarefa que movimentava capital, envolvia bens da Câmara, dava lucros para a instituição e para o próprio nomeado. Além disso, as sanções das posturas municipais dependiam de sua atuação, portanto, ele poderia cumprir um importante papel no processo de normatização da sociedade impetrado pela municipalidade. Na execução das atribuições uma verdadeira teia de comunicação e ação interligava os trabalhos dos empregados da Câmara Municipal do Recife. Por exemplo, quando ocorria uma infração das posturas policiais, o fiscal de freguesia anotava o fato, informava ao Porteiro da Câmara ou a um dos seus ajudantes; estes, por sua vez, notificavam ao Procurador que deveria comparecer pessoalmente perante o Juiz de Paz para lhe requerer a punição aos infratores, mas nem sempre ou necessariamente nessa ordem. Quando o problema fosse da alçada das Justiças Ordinárias, o Procurador 28 29 COLEÇÃO, 1878, p. 86. COLEÇÃO, 1878, pp. 86-87. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 212 deveria constituir Advogado e Solicitador, vigiar o bom andamento da causa e contribuir com as despesas necessárias. Nesse contexto, esse empregado era um importante interlocutor da Câmara Municipal comas demais autoridades. Do Porteiro, no artigo vinte e oito está disposto apenas que ele também seria nomeado “e sendo necessário, um, ou mais Ajudantes deste, encarregados da execução de suas ordens, e serviço da casa com uma gratificação paga pelas rendas do Conselho”, proporcional ao trabalho prestado. O deputado Diogo Antônio Feijó, que escreveu uma espécie de cartilha para as Câmaras do Império, deu mais esclarecimentos sobre as funções do porteiro. Segundo ele esse empregado devia “ser pessoa limpa, capaz de desempenhar com seriedade e exação serviço de que for encarregado pela Câmara e Fiscal”. Cumpria organizar a entradas das pessoas nas sessões para encaminharem seus respectivos requerimentos e ofícios, atender aos chamados da mesa, ir à casa do fiscal de freguesia nos dias e horas marcadas, servindo-se de um ou mais ajudantes, também nomeados, para executar as ordens do fiscal 30. Dentre os empregados das câmaras municipais, os fiscais de freguesias e seus suplentes eram os que tinham, ou pelo menos deveriam ter, uma atuação mais próxima da população. Os ditos fiscais eram autoridades nomeadas pelas câmaras municipais para servirem por quatro anos em cada freguesia das cidades ou vilas existentes. A intervenção camarária no cotidiano das pessoas ocorria principalmente através da fiscalização destes empregados. A eles cabia vigiar a observância das posturas policiais, promover “a sua execução pela advertência aos que forem obrigados a elas, ou particularmente ou por meio de editais.” Deveriam também acionar o Procurador para o desempenho de seus deveres; executar as ordens da edilidade e comunicar-lhe o estado de sua administração servindo-se do Secretário e do Porteiro para o dito expediente. Seriam ainda responsáveis pelos prejuízos ocasionados por sua negligência, podendo até serem multados ou demandados pelo Juiz de Paz em caso de gravidade e continuidade de arbitrariedades prejudiciais à Câmara. Aos Fiscais de Freguesias das capitais das províncias ficava COLEÇÃO, 1878, p. 87. FEIJÓ, Diogo Antônio. Guia das câmaras municipais do Brasil no desempenho de seus deveres por um deputado amigo da instituição. Rio de Janeiro, Typografia D‟Astréa, 1830, p. 10. 30 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 213 estatuído o recebimento de uma gratificação paga pelas rendas do Conselho e aprovada pelo Conselho Geral. 31 O Fiscal de Freguesia era um importante empregado da Câmara, pois comunicava as necessidades observadas na cidade e executavas as ordens e posturas municipais. Por ele se faria as arrematações, alienações, o arrendamento dos bens do Conselho; se daria as licenças e se obteria todas as informações necessárias para as intervenções na cidade32. Nas atas da Câmara Municipal do Recife notamos que ao longo da década de 1830 tais empregados se destacaram cada vez mais no processo de administração da cidade, fiscalizando as obras empreitadas e colocando administradores subalternos nos trabalhos que fossem feitos à custa da câmara, assim como vigiando a arrecadação e administração das suas rendas e a conservação dos seus bens e direitos; vistoriando e fazendo correições determinadas por posturas ou ordem especial da Câmara, cuidando para incuti-las na sociedade através de editais, ou particularmente, acionando o Procurador para punir os contraventores por meio do Juiz de Paz. Assim, o fiscal figuraria como importante empregado da Câmara para a administração da cidade. Nas palavras de Victor Nunes Leal, como a Lei de 1º de outubro de 1828 “não instituiu um órgão executivo municipal, deixando tal incumbência à própria Câmara e seus agentes”, as atividades executivas da instituição ficaria a cargo dos funcionários subalternos do município, notadamente aos Fiscais de Freguesias 33, ou nas mãos das comissões internas, formadas principalmente pelos vereadores. Assim, para aprimorar a sua administração, além da nomeação dos fiscais de freguesias a Câmara Municipal do Recife também instituiria várias comissões responsáveis por atuar de acordo com suas deliberações, exerceriam funções executivas. Buscando fomentar a eficácia de suas atividades “executivas”, na sessão extraordinária de 12 de agosto de 1841 os vereadores do Recife criaram um Regulamento Interno para a instituição 34. Com 14 artigos e 16 ROSSATO, Jupiracy Affonso Rego. Os negociantes de grosso trato e a câmara municipal da cidade do Rio de Janeiro: estabelecendo trajetórias de poder (1808-1830). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007, p. 47; COLEÇÃO, 1878, p. 88. 32 FEIJÓ, 1830, pp. 11-2. 33 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997, p. 138. 34 Sessão extraordinária de 12.08.1841, Livro das Sessões da Câmara Municipal do Recife (1838-1844), ff. 126, 127 (verso), IAHGP. 31 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 214 parágrafos, este regulamento tinha como objetivo normatizar as atividades internas da instituição e esclarecer os deveres dos seus empregados. Era uma espécie de decodificação, esclarecimento e simplificação da lei de 1º de outubro de 1828. Explicava as funções e obrigações do Porteiro e seus Ajudantes, do Secretário, dos Fiscais e Advogado da casa, além de enfatizar a necessidade da existência de livros para os registros das atividades desses empregados e das deliberações da Câmara Municipal do Recife. Contudo, mais importante talvez tenha sido o estabelecimento da nomeação trimestral de quatro Comissões compostas cada uma delas por dois vereadores. Seriam elas: Saúde Pública, Edificação, Petições e Polícia. Consideramos, entre outras coisas, que aquele trabalho foi uma tentativa de se racionalizar o governo econômico e policial da mesma. Antes da elaboração do dito regimento as deliberações camarárias funcionavam ao sabor dos acontecimentos que chegavam ao seu conhecimento, ou seja, não havia uma estrutura previamente organizada para recepcionar e tratar dos problemas, pedidos, requerimentos que lhes eram dirigidos. À medida que uma solicitação era feita, os vereadores instituíam uma comissão formada por dois ou três membros que ficavam responsáveis por analisar, discutir e dar um parecer a respeito; feito isso, a proposta ou decisão da respectiva comissão era apresentada em sessão para ser votada. A partir daquele regulamento essa estrutura não seria modificada, mas sistematizada e melhor organizada, uma vez que foram estabelecidas comissões específicas para atenderem às petições que fossem surgindo e isso dinamizou as respostas aos inúmeros requerimentos que diariamente eram remetidos à Câmara. Após a aprovação do regulamento, todos os pedidos dirigidos à Câmara passariam pela avaliação da Comissão de Petições, a qual faria uma triagem e, dependendo do assunto, os remeteria a uma das três outras comissões citadas. Destas, a que apareceu com mais obrigações e importância foi a de Polícia. De maneira geral, suas atribuições eram: “observar e fazer executar o presente Regulamento” 35; organizar o arquivo camarário, sistematizando com clareza e ordem as informações de todos os negócios da Municipalidade em comum acordo com o Secretário; assinar, juntamente com o Procurador da Câmara, os documentos de compras e a folha de pagamento dos Empregados. Mas suas incumbências não paravam por aí. Os livros da casa também seriam escritos conforme os Sessão extraordinária de 12.08.1841, Livro das Sessões da Câmara Municipal do Recife (1838-1844), ff. 126, 127 (verso), IAHGP. 35 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 215 modelos dados pela dita Comissão; todos os empregados eram obrigados a cumprir suas determinações, desde que estas não fossem de encontro às ordens da Câmara ou de suas posturas; e até os que faltassem ao serviço teriam seus ordenados descontados ou não mediante parecer da referida comissão. Enfim, era ela a responsável pela organização interna e por algumas das principais diretrizes de funcionamento da Câmara Municipal do Recife. Foucault sintetizou essa preocupação das instituições do Estado Moderno com a regulação de si mesma como parte de uma governamentalidade, uma “racionalização do exercício do poder como prática de governo”. É possível tomarmos os regulamentos, regimentos e códigos de posturas da Câmara Municipal do Recife como marcas dessa governamentalidade36. É-nos notória a intencionalidade de organização e eficiência administrativa desejada e buscada pelos vereadores. Por que eles se preocupavam com a elaboração de tais mecanismos normatizadores? Ter mais trabalho é que não era, muito pelo contrário. Encurtar os caminhos da administração, melhorar o desempenho do governo municipal parece-nos ter sido os anseios da municipalidade. Os ganhos disso seriam uma maior racionalidade e eficiência da CMR, logo, maior controle e normatização do espaço público, ainda que na prática isso não se realizasse plenamente. Paralelo a essa organização interna, também se elaborou um conjunto de regras para reger a cidade e as pessoas. Em 1831, a Câmara Municipal do Recife cuidou logo em promulgar um Código de Posturas, publicando-o no Diário de Pernambuco. A elaboração desse código foi uma importante tarefa dessa instituição para “o Governo econômico e municipal da cidade”, como um conjunto de normas e preceitos que buscava obrigar os recifenses a cumprirem regras de convívio; determinar os possíveis usos dos espaços da cidade; adentrar diretamente na vida das pessoas, tentando Segundo Foucault, a governamentalidade seria o “conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem como alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança.” Em outras palavras, ela seria o processo de racionalização do exercício do poder por parte do Estado como prática do governo, que conduz à gestão da vida dos homens, controlando suas ações para que seja possível e viável sua máxima potencialidade e utilização. Nesse sentido, Foucault privilegia o aparelho produtor da disciplina, discorrendo sobre o mesmo. Esse aspecto de sua análise nos interessa aqui. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 23ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985, pp. 191-2, 286. Cf. FALCON, Francisco José Calazans. Despotismo esclarecido. Série princípios. São Paulo: Ed. Ática, 2002. 36 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 216 transformar seus hábitos, incutindo-lhes novos costumes, normatizarem seus espaços, traçar seus valores; em suma, “civilizá-los” e preservar a ordem pública. Conforme bem observou Manuela Arruda dos Santos, havia uma relação direta entre o artigo 66 da lei de 1828 e o Código de Posturas editado entre os anos de 1831 e 1832 no Recife 37. Assim as posturas municipais do Recife envolviam “os temas mais abrangentes, todas no âmbito da polícia (civilidade) e da economia (boa administração) da cidade” 38. Notadamente, tais códigos tinham como princípio norteador o discurso higienista, esteticista, profilático, a fim de imprimir novos hábitos para a sociedade, dando indícios de que o legislador camarário fora possivelmente influenciado pelos princípios da urbanidade, polícia, civilidade, pois, conforme apontou Raimundo Arrais, a civilidade estava associada à remoção de costumes antigos, sólidos, ditos bárbaros, os quais deviam ser eliminados, ou pelo menos modificados 39. A partir de então outras posturas foram elaboradas, como as Adicionais de 1839 e o Código de 1849, assim como vários outros regulamentos, lançando-se sobre o cotidiano citadino um amplo conjunto de interditos, normas de condutas, regras de convívios. Além daquele regulamento que falamos acima, encontramos outro sobre a cobrança de uma taxa de barreira da ponte do Socorro sobre o Rio Jaboatão (interligando os arrabaldes da cidade), uma proposta de regulamento sobre polícia dos mercados públicos, praças e cais do município, e um regimento de aferição de balanças, pesos e medidas do município, aparatos regulatórios fundamentais para se aprimorar os mecanismos de mando da Câmara e melhorar a sua administração, a fiscalização, a arrecadação de impostos e a execução das suas prerrogativas. Foucault chamou isso de “limites” que o governo impõe a si mesmo, ou seja, a “regulação interna da racionalidade governamental”.40 Ao criar regulamentos internos os vereadores davam sinais do conhecimento das leis, da necessidade de apropriação prática dos preceitos legais, e da busca pela racionalidade e interesse pela eficiência administrativa. Não queremos dizer, contudo, que a soma disso redundou Para uma comparação conferir: SANTOS, Manuela Arruda dos. Recife: entre a sujeira e a falta de (com)postura, 1831-1845.Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, 2009., pp. 52-67. Sobre as Posturas no Recife Imperial, conferir: SOUZA, Angela de Almeida Maria. Posturas do Recife imperial. Tese (Doutorado em História) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002. 38 Idem, p. 161. 39 ARRAIS, 2004, p. 288. 40 FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp. 15-7. 37 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 217 numa eficácia do governo da Câmara Municipal do Recife, nem que o contrário é verdadeiro, mas que tais princípios de racionalidade e eficiência administrativa parecem permear a atuação deles na cidade do Recife a partir da década de 1830, dando sinais de que os ares da modernidade influenciavam os partícipes da instituição 41. Essa regulação interna e relativa busca pela racionalidade governamental aparentemente intentada pelos vereadores do Recife de então, sinaliza também que todos os assuntos que regiam o cotidiano citadino, fossem eles econômicos, policiais, políticos, entre outros, eram inerentes à dinâmica da organização e funcionamento da Câmara Municipal, fazendo das ações da vereança uma peça fundamental para as transformações ou permanências que se quisessem estabelecer na cidade, na província, quem sabe até no império. Diante do exposto até aqui é inegável a importância das câmaras municipais no Brasil como instituições reguladoras do cotidiano citadino. As leis imperiais aproveitaram bem esse legado dos tempos coloniais, só que lapidando tais instituições para que elas se atrelassem especificamente à administração das cidades e vilas imperiais e seus respectivos termos dentro das perspectivas do Estado em formação. A Câmara Municipal do Recife em sua nova configuração a partir de 1829 não hesitou em se adequar às novas normas, aliás, nem o poderia, afinal era o que determinava a constituição. Esse foi, segundo sugere a documentação, o início de um processo de apropriação e adaptação da municipalidade recifense às regras instituídas na dita lei de 1828. Isso que dizer que havia muito a se fazer. Nas duas décadas seguintes vemos a atuação da municipalidade recifense no sentido de normatizar o cotidiano citadino, mas as dificuldades e vicissitude enfrentadas pela instituição foram muitas, pois a sociedade não se curva de um todo aos caprichos do Estado, antes, resiste, muitas vezes em pequenas práticas cotidianas. Fazendo um link com a reflexão da autora Adriana Campos apresentada no início deste artigo, percebemos que o esforço das elites camarárias para estabelecer o bom governo da cidade era, entre outras coisas, político. Entendemos que as elites camarárias viram-se forçadas a renovar suas estratégias e adaptar seu diálogo com as forças locais, pois elas além de fazer toda a diferença na hora de movimentar os clientes em torno da eleição dos eleitores ou candidatos que se queriam, também eram fundamentais para se consolidar ou alcançar os projetos e interesses locais 41 Cf. SOUZA, 2012. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 218 que desejavam preservar ou conquistar. Mas agora, a elite camarária não dispunha dos cargos públicos, das honrarias, do poder de mando que ostentava no passado colonial, senão, do governo administrativo da cidade, realidade política que implicava em novos arranjos institucionais. Assim, nas palavras da autora, no campo eleitoreiro, “suas estratégias precisavam contar, em alguma medida, com a aceitação e a popularidade de seus pleitos entre os votantes” 42, o mesmo se aplicava na rotina administrativa e governo da cidade. Portanto, era preciso, entre outras coisas, agradar aos páreas, manter sob controle os espaços administrativos legados pelas leis imperiais, cumprir suas tarefas administrativas de maneira a melhorar o cotidiano da cidade, portanto, beneficiar de alguma forma as camadas menos favorecidas da sociedade. Nesse cenário, entendemos que a força política dos líderes locais na câmara se estabeleceria, entre outras maneiras, dentro do viés administrativo imposto pelas leis imperiais. Ampliar o leque de atuações e intervenções no cotidiano das cidades poderia ser um caminho para as elites camarárias estabelecer/fortalecer redes de influência e dependência, que poderiam ser manejadas em seu favor nos momentos oportunos. Portanto, era preciso uma renovação que promovesse novos modus operandis, assim como, desse uma ressignificação ao governo econômico exercido pelas edilidades, contribuindo para o seu fortalecimento e ampliação, quiçá, de seu poder de barganha na política local. Garantir a eficiência administrativa não significava apenas a manutenção de determinados privilégios (influência política, poder de intervir na cidade, controle das relações de comércio, autorização sobre os processos construtivos, mando nas liberações de licenças e nos contratos das arrematações, só para citar alguns exemplos), mas também a possibilidade de orquestrar um controle maior sobre o cotidiano das classes menos abastadas e a civilização do homem ordinário, condição sine qua non para a manutenção da ordem e dos poderes vigentes. Por isso, as leis que normatizaram as Câmaras explicitaram um modelo de governo econômico para as municipalidades norteado por princípios de ordem, limpeza, beleza, enfim, civilidade e urbanidade. Logo, ao que nos parece, não foram apenas um instrumento cerceador das elites locais, não tinham apenas a intenção de suprimir as potencialidades políticas das edilidades, eram também um instrumento de instrução para a civilidade dos costumes. Normatizados por ela, os vereadores estariam aptos para intervir de forma 42 CAMPOS, 2011, p. 262. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 219 eficiente no costume da população, perpetuando assim o status quo. Nesse contexto, era preciso reorganizar-se internamente e, no mínimo, estabelecer um bom governo para demarcar o espaço de atuação e importância das elites ali alocadas. É dentro dessa perspectiva que tentamos entrever a organização e funcionamento da Câmara Municipal do Recife a partir de finais da década de 1820. Por fim, não podemos deixar de pensar que o interesse dos vereadores pela apropriação das normas estatuídas pelo Império, a busca por um governo da cidade mais eficiente e a adaptação às conjunturas estabelecidas poderiam ser reflexo do alinhamento político das elites dentro da Câmara Municipal do Recife, ou pelo menos parte dela, ao Estado em formação. Sendo verdadeira a assertiva, as câmaras municipais no Império tiveram um papel significativo no processo de construção da Nação uma vez que poderiam alinhavar as demandas locais aos interesses imperiais (vice-versa) e fortalecer os laços da unidade, ou mesmo buscar submeter o homem ordinário às normas do Estado moderno através de um expediente administrativo mais eficiente, regulatório e civilizatório 43, entre outros, e assim fomentar a unidade desejada. Mas, por hora, deixemos esta conjectura e a busca por sua “verificação” para um exercício em outro momento. Referências documentais COLEÇÃO das Leis do Império do Brasil de 1828. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1878. DECRETO de 1º de dezembro de 1828 – Dá instruções para as eleições das Câmaras Municipais e dos Juízes de Paz e seus Suplentes. In: Coleção das Leis do Império do Brasil (1808-1889). Disponível em http://www2.camara.gov.br/atividadelegislativa/legislacao/ publicacoes/oimperio. Acesso em 20 de dezembro de 2010. DOCUMENTOS avulsos. Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano (APEJE) LIVRO das Sessões da Câmara Municipal do Recife (1838-1844), IAHGP. LIVRO das Sessões da Câmara Municipal do Recife (1838-1844), Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (IAHGP). LIVRO de Vereações da Câmara Municipal do Recife, n. 7, (1829-1833). Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (IAHGP). OFÍCIOS da Presidência, 1829. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (IAHGP). Cf. SOUZA, 2012; ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: formação do Estado e civilização. V. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994; __________. O Processo Civilizador: uma história dos costumes. V. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. 43 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 220 PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Código Filipino, ou, ordenações e Leis do Reino de Portugal: recopiladas por mandado d‟el-Rei D. Felipe I. – Ed. fac-similar da 4ª ed., segundo a primeira, de 1603, e a nona, de Coimbra, de 1821 / por Cândido Mendes de Almeida. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. Referências bibliográficas ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privado no Império. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. ARRAIS, Raimundo. O pântano e o riacho: a formação do espaço público no Recife do século XIX. – São Paulo: Humanitas /FFLC/USP, 2004. BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império, o Rio de Janeiro no século XVIII – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. BOXER, Charles Ralph. O Império Colonial Português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CÂMARA, Leandro Calbente. Administração colonial e poder: a governança da cidade de São Paulo (1765-1802). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008 CÂMARAS Municipais – Recife, 1829. 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REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 221 ROSSATO, Jupiracy Affonso Rego. Os negociantes de grosso trato e a câmara municipal da cidade do Rio de Janeiro: estabelecendo trajetórias de poder (1808-1830). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. SANTOS, Manuela Arruda dos. Recife: entre a sujeira e a falta de (com)postura, 18311845.Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, 2009. SLEMIAN, Andrea. Sob o império das leis: Constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834). Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. SOUZA, Angela de Almeida Maria. Posturas do Recife imperial. Tese (Doutorado em História) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002. SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder en el Brasil colonial: la Cámara Municipal de Recife (1710-1822). 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Para este exame cotejei as mudanças ocorridas com a implantação do Estado liberal em Portugal e no Brasil no início do século XIX, principalmente relacionadas com o papel que as câmaras municipais deveriam exercer neste novo Estado. Palavras-chave: espaço de poder, câmara municipal, liberalismo. Résumé2: Cet article est composé d‟une partie du premier chapitre de ma dissertation de masters. Dans cet dissertation j‟avais proposé d‟analyser l‟intégration des groupes politiques et des espaces du pouvoir locaux dans l‟État impériale et l‟adaptation de ces groupes et des espaces dans les transformations que le constitutionnalisme a imposé dans le cadre institutionnel de l‟Empire brésilien. Au présent article, je cherche spécifiquement, examiner comment le liberalisme politique pensait l‟engagement de l„Etat e la fonction des espaces du pouvoir locaux dans la nouvelle logique administrative proposé par cette doctrine. Pour faire cet examen, J‟ai comparé les changements intervenus avec l‟implantation de l‟État libérale au Portugal et au Brésil au début du XIX siécle, sourtout ayant un rapport dans le rôle que le chambres municipales devraient envisager dans cet nouveau Etat. Mot-clés: espace de pouvoir, chambre municipale, liberalisme. Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. Instituição: Prefeitura Municipal de Lagoa Santa – Minas Gerais. 2 Agradeço a colaboração de Thelma Palha na tradução deste resumo para a língua francesa. 1 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 223 Introdução E ste trabalho é composto de parte do primeiro capítulo da minha dissertação de mestrado, intitulada A "legítima Representante": câmaras municipais, oligarquias e a institucionalização do Império liberal brasileiro (Mariana, 1822-1836)3. Nesta dissertação me propus a analisar a incorporação dos grupos políticos e espaços de poder locais ao Estado imperial liberal e a adaptação destes grupos e espaços às transformações que o constitucionalismo impôs ao arcabouço institucional do Império brasileiro, tomando como exemplo a cidade mineira de Mariana no período entre 1822 e 1836. Já no presente artigo, procuro, especificamente, examinar como o liberalismo político pensava a atuação do Estado e a função dos espaços de poder locais na nova lógica administrativa proposta por esta doutrina. Para este exame cotejei as mudanças ocorridas com a implantação do Estado liberal em Portugal e no Brasil no início do século XIX, principalmente relacionadas com o papel que as câmaras municipais deveriam exercer neste novo Estado. Nos primeiros anos após a Independência, o Estado imperial brasileiro procurou apoio nos espaços de poder locais para a sua legitimação e o reforço da sua autoridade, especialmente nos atos de fundação do Império – tais como, o Ato de Aclamação do Imperador em 1822 e a aprovação da Carta Constitucional em 1824. Nestes momentos ficou claro que para fazer valer a sua autoridade e construir a unidade nacional, o Estado Nacional precisava do apoio político e burocrático dos poderes locais e de seus membros. Esta dependência que o Estado tinha dos poderes periféricos para se legitimar diante das populações dispersas pelo imenso interior do Império ficou mais evidenciada nas legislações feitas entre 1827 e 1832 que deram aparato legal para a incorporação dos espaços de poder locais, nomeadamente das câmaras municipais, ao arcabouço estatal liberal. Esta legislação foi amplamente apresentada e discutida neste trabalho tendo como contraponto o exame de alguns postulados do liberalismo. ANDRADE, Pablo de Oliveira. A "legítima Representante": câmaras municipais, oligarquias e a institucionalização do Império liberal brasileiro (Mariana, 1822-1836). Dissertação de mestrado. Mariana: ICHS/UFOP, 2012. Nesta oportunidade gostaria de agradecer a orientação da Profa. Dra. Andréa Lisly Gonçalves durante todo o meu mestrado. 3 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 224 O poder local e o liberalismo político em Portugal (c. 1820-1840) Com a transferência da sede da monarquia para o Brasil em 1808, Portugal ficou sob a tutela britânica durante o período de lutas contra as tropas napoleônicas. Neste período foi implantado um Conselho de Regência que governaria o Reino até a volta da Família Real, mas na prática quem comandava o país era o marechal-general irlandês William Beresford. O que evidenciava politicamente o abandono do reino pelo Príncipe Regente d. João, que após a expulsão dos franceses insistia em continuar na América. Esta insistência era publicamente demonstrada por atos como a elevação do Brasil ao status de Reino Unido a Portugal e Algarves, portanto o Brasil deixava de ser colônia e se tornava um reino igual a Portugal, e a própria aclamação e coroação de d. João após a morte de d. Maria I no reino americano. A situação no reino europeu era humilhante, a Regência teve suas funções reduzidas a meramente administrativas em 1817, enquanto que Beresford foi nomeado delegado imediato do soberano, concentrando toda a autoridade política. O que era agravado pela crise econômica 4 em que se encontrava Portugal. Uma crise derivada tanto das invasões napoleônicas e da longa guerra que arrasou a agricultura, quanto da perda do monopólio sobre o comércio brasileiro que estava aberto às nações amigas desde 1808. Portugal não estava preparado para competir com os outros países europeus, nomeadamente a Grã-Bretanha, no mercado brasileiro e sem este mercado o reino europeu também não tinha muito a oferecer aos outros países. Ou seja, era uma crise de difícil solução, que necessitava de uma ampla reformulação da economia executada por um governo que tivesse respaldo político para agir, coisa que a Regência ou Beresford não tinham. Aliás, tanto um quanto o outro agiam para camuflar a crise impedindo que a precária situação de Portugal se tornasse pública através da imprensa, muito embora concordassem com os diagnósticos dramáticos da situação. Entretanto, este quadro se tornou insustentável no final da década confluindo para que altos burocratas e comerciantes da cidade do Porto fundassem uma sociedade secreta chamada Sinédrio em 1818. E a partir Para as informações citadas sobre esta crise, as ações da Regência e a formação do Sinédrio me baseei em: SOUZA, Iara Lis Franco Schiavinatto Carvalho. Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônomo – 1780-1831. São Paulo: Editora da UNESP, 1999, p. 74-80. 4 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 225 desta sociedade liderassem um vitorioso movimento revolucionário em 1820 conhecido como Revolução do Porto. Esta revolução procurava recolocar o Reino de Portugal entre as grandes nações da Europa, espaço que os revolucionários acreditavam já ter sido ocupado pelo país no passado, regenerando as suas instituições políticas. Contudo, mais que regenerar, o Vintismo5 intensificou as reformas modernizadoras ilustradas que estavam sendo sistematicamente propostas e, muitas vezes, adotadas desde o consulado pombalino. Intensificou porque procurou se guiar pelas ideias políticas liberais que propunham reformas muito mais profundas que as tentadas pelos ilustrados, embora as práticas liberais tivessem muito a dever a alguns postulados do despotismo esclarecido. (...) o projecto de centralização do poder nas mãos dos monarcas absolutos, não apenas antecipou a centralização do poder nas assembleias absolutas do liberalismo – uns e outros insusceptíveis de tirania -, como preparou o reforço do Estado que iria ser necessário para impor a nova ordem aos estados e corporações privilegiados e constituir os fundamentos da nova sociedade burguesa. Para além disso, a centralização do governo traduziu-se na construção de uma panóplia de aparelhos administrativos (desde o sistema de ensino público, instituições bancárias e de crédito, companhias de fomento, prisões e asilos, repartições administrativas, etc.) que o liberalismo iria, paradoxalmente, utilizar para construir a nova sociedade civil, em todos os seus vectores. Finalmente, a centralização jusracionalista trouxe consigo uma nova ética de serviço público, um espírito de racionalização...6 Como podemos ver, o liberalismo também sustentava uma forte centralização política, porém não mais nas mãos do soberano absoluto. Estava na raiz do pensamento liberal o ideal de construção de uma sociedade civil que tivesse meios legais para se defender do poder absoluto Outro nome pelo qual ficou conhecido o movimento iniciado em 24 de agosto de 1820 na cidade do Porto. 6 HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível: direitos, Estado e lei no liberalismo monárquico português. Coimbra: Livraria Almedina, 2004, p. 29. 5 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 226 do rei que o paradigma individualista 7 pregava e que foi implantado por quase toda a Europa na segunda metade do século XVIII. Portanto, a doutrina liberal foi uma arma contra o Antigo Regime, o absolutismo. Contra o absolutismo de d. João VI e da sua Corte instalada no Brasil foi que os revolucionários do Porto hastearam a bandeira liberal. Segundo Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, para estes revolucionários (...) tornava-se essencial assegurar ao indivíduo as garantias consideradas essenciais – os direitos do cidadão, a liberdade de expressão, de imprensa, de reunião e de associação. Nesse sentido, a única forma de garantir esses direitos e liberdades era através de uma Constituição, que limitasse os poderes do soberano e desse voz à sociedade, por meio de uma representação nacional.8 Foi este caminho que a revolução seguiu. Tomado o poder em Lisboa a 15 de setembro, imediatamente foi convocada uma reunião das Cortes a fim de escrever uma Constituição para a monarquia portuguesa em que estivessem contidos os direitos do cidadão perante o Rei e as bases para a implantação da nova ordem liberal, sobretudo a existência de espaços de representação política nacional dos cidadãos. Residiria nesta representação nacional, no congresso soberano, a centralização política que antes estava concentrada no Rei. Não estava em questão a centralização, mas sim a absolutização do poder em Sua Majestade. Segundo António Manuel Hespanha 9, ao contrário do que se espera, o liberalismo político implantado no século XIX em Portugal – como em toda a Europa – nada tinha de Estado mínimo, a governança era a máxima possível, influindo em todos os ramos da sociedade para construir a sociedade civil que tivesse meios legais e instrução suficientes para se opor à absolutização régia. Por isso, em muitos momentos a política liberal portuguesa se utilizou da estrutura administrativa implantada no final do Sobre este assunto consultar as obras de António Manuel Hespanha, especialmente o seguinte artigo: HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. “A representação da sociedade e do poder”. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. S.l.: Editorial Estampa, v. 4 – O Antigo Regime – coord. António Manuel Hespanha, 1998, p. 113-140. 8 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “Liberalismo político no Brasil: idéias, representações e práticas (1820-1823)”. In: GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal; PRADO, Maria Emília (org.). O liberalismo no Brasil Imperial: origens, conceitos e prática. Rio de Janeiro: Revan / UERJ, 2001, p. 76. 9 HESPANHA, op. cit., 2004. 7 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 227 século XVIII, centralizadora e intervencionista, para fundamentar o Estado e a governança que lhe interessava. Estrutura que correspondia às instituições, ao funcionalismo burocrático, apesar deste funcionalismo se encaixar melhor dentro daquilo que Fernando Uricoechea chamou de “estrutura burocrático-patrimonialista”10, e aos postulados administrativos de um governo ativo. E este governo ativo, centralizador e intervencionista necessitava de uma base comum de atuação legisladora para executar as tarefas que lhe cabiam na construção da sociedade civil e na educação desta para a cidadania. Não podia mais conviver com a multiplicidade de direitos e privilégios, assim como o despotismo já não mais admitia a concorrência ao direito pátrio embora mantivesse os privilégios sociais. Para o liberalismo, a uniformidade era um grande bem, por isso deveria haver um direito universal a reger a sociedade portuguesa. Universalidade que, por sua vez, era incompatível com “os privilégios dos grupos sociais e territoriais fixados por lei”. Segundo Joaquim Romero Magalhães, “o intento de uniformização legislativa dos liberais acaba com a situação anterior de ser „cada terra uma nação com a sua lei diferente para se governar‟”11. Neste sentido, a Constituição aparece como instrumento para uniformizar o direito e os cidadãos, mesmo que apenas no aspecto civil, e para estabelecer a Assembleia Nacional – neste momento as Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa – como o centro da atividade legislativa. E era de lá que deveria emanar a administração da nação. Devendo ser as Cortes o centro do poder e da governança nacional, era preciso impor a sua autoridade por todo o Império português. Em busca deste objetivo, os políticos liberais procuraram se aproveitar de uma característica marcante do poder no Antigo Regime português. Como bem afirma Joaquim Romero, até o século XVIII “(...) o poder em Portugal é aregional e anti-regional. Nem os monarcas querem que aconteça de outro modo, nem as câmaras o desejam ou admitem: são demasiado ciosas dos seus poderes para os partilharem ou articularem entre si” 12. Portanto, o poder no Antigo Regime português se caracterizava pela oposição a URICOECHEA, Fernando. O minotauro imperial: a burocratização do estado patrimonial brasileiro no século XIX. Rio de Janeiro / São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1978, p. 14-16. 11 As duas citações estão em: MAGALHÃES, Joaquim Romero. “As estruturas sociais de enquadramento da economia portuguesa de Antigo Regime: os concelhos” [1994]. In: ________. Concelhos e organização municipal na Época Moderna – Miunças 1. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, p. 36. 12 Ibidem, p. 30. 10 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 228 qualquer tentativa de implantação de mecanismos de poder que, funcionando no espaço regional, fossem autônomos do poder central e/ou dos poderes locais. Assim sendo, os políticos liberais, necessitando se imporem diante do poder real, utilizaram desta característica do poder no Antigo Regime. Desde as invasões napoleônicas foram estabelecidas em Portugal juntas regionais de governo para combater o mando napoleônico e que eram relativamente autônomas do poder central, seja da Regência ou da Corte no Brasil. A estratégia das Cortes para minar a autoridade régia foi justamente reestruturar e difundir estas juntas por Portugal e pelas capitanias brasileiras. Elas exerciam o poder executivo nas antigas capitanias que agora eram denominadas províncias. Ao exercerem este poder se tornavam autônomas do poder executivo do Rio de Janeiro e das câmaras municipais existentes nas províncias. E no âmbito legislativo dependiam das normatizações das Cortes, ou seja, estavam submetidas ao poder destas em Lisboa. Mas, não eram compostas por pessoas nomeadas pelas Cortes e sim através de eleições locais, o que aumentava a legitimidade delas e propiciava a adesão dos grupos hegemônicos locais. Embora muitas vezes esta adesão não tenha ocorrido de imediato, sendo muito mais rápida e profunda no Brasil nas capitanias do Norte e Nordeste. Estas Juntas de Governo Provisório, como eram chamadas, promoveram uma revolução na maneira de se conceber o exercício do poder na monarquia portuguesa acabando com o anti-regionalismo característico do poder e difundindo os ideais liberais propostos pelas Cortes nas duas partes mais importantes do Império. Bem como significaram uma quebra substancial na autoridade da Corte carioca no Brasil. Segundo Iara Lis Schiavinatto Souza, As Cortes aproveitaram essa reformulação do poder provincial no Brasil promovida pelas Juntas, e transformaram-na em parte do seu projeto de reorganização do poder político-institucional, vinculando, assim, as províncias ao governo lisboeta norteado pelo liberalismo vintista e atenuando os elos entre as províncias, inaugurando um outro modo de relacionamento entre elas e o Rio de Janeiro.13 13 SOUZA, op. cit., 1999, p. 117. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 229 A regionalização do poder feita pelas Cortes Constituintes funcionou como uma tentativa de estabelecer uma aliança entre elas e os grupos políticos locais a fim de romper a aliança que existia entre estes e o Rei, especialmente no Brasil. Portanto, podemos concluir que o poder regional era algo tão oposto aos modos de exercício do poder no Antigo Regime que quando ele de fato foi exercido, através de mecanismos autônomos regionais, foi como instrumento de destruição deste regime. O que também fica demonstrado ao analisarmos a tentativa frustrada de d. João VI de criar uma Constituição alheia as ações das Cortes. Não querendo aderir a elas, mas percebendo que a situação já estava crítica e que alguma coisa precisava ser feita para deter a revolução, d. João, ao menos aparentemente, resolveu aceitar a Constituição. Entretanto, não a Constituição que viesse a ser feita pelas Cortes, e sim uma que fosse escrita sob o seu beneplácito. Assim sendo, Sua Majestade resolveu recorrer às antigas formas de exercício do poder na monarquia portuguesa para promover a feitura de uma Constituição. Em fevereiro de 1821 decretou que se fizesse uma consulta a todas as câmaras do Império “para delinear uma nova Constituição” que seria escrita por uma comissão de doutos escolhidos por ele e estabelecida no Rio de Janeiro. Com tal procedimento, astutamente, o rei recorria às instituições de consulta e de mando local, à câmara, usando-a como respaldo e contra-argumento para, possivelmente, opor-se às Cortes, que, agora, deliberavam sobre a autoridade real, limitando-a, e promovendo uma viragem na noção de soberania. À instauração das Cortes, D. João VI respondeu com o apelo às câmaras, mobilizando uma outra maneira de garantir sua legitimidade.14 Ou seja, para garantir a sua legitimidade diante dos novos tempos ao Rei não interessou os novos corpos regionais e sim recorrer a uma autoridade de Antigo Regime, as câmaras. Somente a estas instituições o poder real reconhecia a legitimidade de poder constituinte da monarquia, afinal no Antigo Regime só existiam duas autoridades políticas: o Rei e as câmaras15. E assim deveria continuar, mesmo sob um novo regime As duas citações então em: SOUZA, op. cit., 1999, p. 93. “Em Portugal havia no Antigo Regime apenas duas autoridades políticas: o rei e as câmaras. Uma una, a outra fragmentada. [...] Duas forças em presença. Mas forças. Ambas. E nem sempre a que apresenta maior autoridade – por nacional – será a mais decisiva no viver das 14 15 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 230 constitucional. No entanto, a ação de uma parte da classe política fluminense impediu que este decreto real fosse colocado em prática. Diante de uma iminente revolta na Corte no dia 26 de fevereiro e da solução encontrada pelo Príncipe herdeiro d. Pedro, o Rei se viu obrigado a, junto com o Príncipe, jurar as Bases Constitucionais escritas pelas Cortes. Esta situação só fez aumentar a desconfiança dos liberais em relação às câmaras municipais que já eram mal vistas devido aos empecilhos que colocavam ao desenvolvimento e à atividade econômicos 16. Era preciso barrar a autonomia camarária para que as tentativas de legitimação do absolutismo perdessem um importante apoio institucional. No entanto, mesmo assim a reforma das câmaras municipais foi de difícil aprovação nas Cortes, porque, segundo Romero, “os deputados enredaram-se na escolha de processos alternativos de organização, e não convém esquecer que muitos deles provinham desse estrato da gente nobre da governança [local] que via acabar o seu estatuto especial” 17. Não era fácil para os deputados ferirem de morte a autoridade política que deu a muitos deles o espaço inicial para as suas carreiras. E procurando uma solução razoável para este problema, as Cortes preferiram manter as atribuições tradicionais das câmaras, nomeadamente o governo econômico das municipalidades e a capacidade de fazer posturas18. Entretanto, criou ao nível regional em Portugal – haja vista que, por motivos que analisaremos mais à frente, o Brasil proclamou a independência antes da aprovação da Constituição Portuguesa de 1822 – órgãos administrativos distritais chefiados por administradores-gerais nomeados pelo Rei e auxiliados por juntas administrativas eleitas localmente. A estes organismos distritais cabia recurso em relação a todas as competências das câmaras existentes em cada distrito. Portanto, optou-se por uma solução intermediária que não acabava com as câmaras nem as tutelava totalmente, mas criava um expediente de recurso às suas decisões. Entretanto, a Constituição de 1822 teve vida curta em Portugal, logo em 1823 uma contrarrevolução absolutista liderada pelo Príncipe d. Miguel fechou as Cortes e suspendeu a validade da Constituição. E, numa gentes” [MAGALHÃES, Joaquim Romero. “Reflexões sobre a estrutura municipal portuguesa e a sociedade colonial brasileira” [1985]. In: ________. Concelhos e organização municipal na Época Moderna – Miunças 1. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, p. 124]. 16 MAGALHÃES, op. cit., 2011, p. 31-32. 17 Ibidem, p. 37. 18 Para as informações relativas à Constituição Portuguesa de 1822 me baseei amplamente em: HESPANHA, op. cit., 2004, p. 60-61 e 206-207. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 231 clara demonstração da íntima relação que existia entre o funcionamento das câmaras municipais à maneira do Antigo Regime e a legitimidade do poder absoluto do Rei, imediatamente após o golpe miguelista – mais conhecido como “Vila-Francada” – foram, em 10 de junho de 1823, “dissolvidas as câmaras municipais eleitas na vigência constitucional, e substituídas pelas anteriores à revolução” 19. Nas palavras de Joaquim Romero, “uma boa contra-revolução não pode esquecer os provados princípios antigos”20. Mais do que nunca era reforçada esta associação do poder local com o Antigo Regime. Especialmente de um poder local com amplas atribuições administrativas e que funcionava como uma continuação do Rei e fortemente imbricado à mística da realeza21. E foi contra este poder local sustentáculo do poder real que os liberais vão lutar até conseguirem submetê-lo ao poder central e desarticular todo o apoio popular que tivesse. Esta reforma do poder local promovida pelos liberais portugueses foi levada a cabo somente na década de 1830 e, devido a muitas reformulações nas normas estabelecidas, só foi de fato concluída no início da década seguinte. Demorou tanto assim porque, apesar do pequeno período constitucional existente entre 1826 e 182822, a Carta Constitucional outorgada por d. Pedro, I do Brasil e IV de Portugal, em 1826 deixava para uma lei ordinária a regulamentação do espaço de poder local, nomeadamente das câmaras municipais. No entanto, logo em 1828 d. Miguel, em um novo golpe, assumiu o trono e reimplantou o absolutismo que perdurou até 1832. Somente a partir deste ano é que o espaço de poder local passou a ser alvo de importantes reformas. Estas reformas23, apesar de muitas idas e vindas, resultaram em uma forte centralização política que redefiniu a divisão territorial HESPANHA, op. cit., 2004, p. 90. MAGALHÃES, op. cit., 2011, p. 37. 21 SOUZA, op. cit., 1999, p. 146. 22 Este período resultou da morte de d. João VI em março de 1826 que ocasionou na herança do trono por d. Pedro I do Brasil, que se tornou d. Pedro IV de Portugal e outorgou ao reino europeu uma Carta Constitucional nos moldes da Carta brasileira de 1824 em abril daquele ano, abdicando ao trono logo em seguida em nome de sua filha d. Maria da Glória. Como esta era ainda criança, a Regência do Reino ficou para a irmã de d. Pedro, d. Isabel Maria, até que em 1828 foi concluído um acordo entre d. Pedro e seu irmão d. Miguel para que este se casasse com d. Maria da Glória e assumisse a Regência. Ao assumir a Regência, d. Miguel traiu o irmão e se proclamou Rei absoluto de Portugal, restaurando o Antigo Regime mais uma vez [ver: HESPANHA, op. cit., 2004, p. 91-92]. 23 Para as informações relativas às reformas liberais concernentes ao poder local em Portugal me baseei amplamente em: HESPANHA, op. cit., 2004, p. 201-208. 19 20 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 232 concelhia, acabando com quase metade dos concelhos portugueses, e que fez das câmaras municipais órgãos periféricos do poder central que tinham importantes funções administrativas locais, mas não tinham poder legislativo autônomo nem recursos financeiros suficientes para arcar com as suas funções. A ideia principal por trás destas reformas era utilizar as câmaras como um instrumento do poder central que desoneraria o centro de administrar as localidades, mas que não teria forças para se opor a ele. E esta força foi retirada através da perda das autonomias legislativa, agora a elaboração das posturas necessitava de aprovação superior, e financeira, às câmaras foi estabelecido um valor máximo para a arrecadação tributária direta. Não bastando tudo isto, as câmaras ainda precisaram arcar com um funcionalismo cada vez maior e mais oneroso, a que não mais cabia emolumentos ou funções honorárias mas sim salários. Além de inúmeras funções administrativas que, se não excediam mais o espaço local e nem podiam influir para além dele, não paravam de aumentar. E para encerrar o desmonte da força política das câmaras, os políticos liberais trataram de sobrecarregá-las com a cobrança da maior parte dos tributos nacionais. De modo que as câmaras não conseguiam arcar com todas as suas atribuições e ainda pagavam os custos políticos da tributação, corroendo desta maneira qualquer apoio popular a uma política municipalista. E isto só foi possível por que: A nova organização do poder governativo encontrava-se muito mais apta, apesar da debilidade das suas extensões periféricas, a desempenhar as funções de uma administração activa, pelo progresso das suas estruturas e organização no sentido de uma administração deste tipo.24 Assim sendo, o poder central tinha muito mais força para agir sobre os poderes locais e impor a eles o direito geral que limitava a ação legislativa deles e impedia que eles legislassem sobre temas regionais ou nacionais. Se, como de fato ocorria, o centro tinha uma débil estrutura periférica, não mais precisava delegar poderes às câmaras. Isto porque os liberais lograram a construção de uma legislação e de uma estrutura administrativa que conseguia determinar funções aos órgãos municipais e destes cobrar os resultados sem que estes alcançassem qualquer tipo de 24 HESPANHA, op. cit., 2004, p. 203. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 233 autonomia ou o mérito de qualquer boa ação governamental. Realizando desta forma dois importantes postulados do liberalismo político oitocentista: a centralização política, o poder tinha que ser único, e, mesmo que parcialmente, a descentralização administrativa, a administração podia ser cometida às comunidades. Esta era parcial porque existia nas amplas funções administrativas das câmaras, mas não era realizada plenamente devido à crônica falta de recursos financeiros que estes órgãos sofriam. Afinal, como dizia Joaquim Thomaz Lobo d‟Ávila, um importante político português adepto da descentralização administrativa, o Estado não podia ter por base os municípios, porém precisava dos órgãos municipais a seu serviço para de fato ser liberal. O Estado, que tinha por base os municípios, era um corpo formado de membros desconexos, a que faltava a vida de relação, a unidade e a harmonia, que só podem provir da aplicação de princípios gerais estribados na justiça e no direito, e inspirados pelo interesse comum [...]. O municipalismo multiforme, incoerente, individualista, privilegiado e bárbaro da idade média não era a descentralização administrativa, era o fraccionamento do País em circunscrições isoladas e às vezes hostis [...] era a negação de todos os princípios gerais de direito político, civil e criminal, a condenação de toda a economia pública, a supressão de todo o viver nacional, o menosprezo de todos os interesses gerais, e o impedimento de todo o progresso e civilização da sociedade.25 Este foi o caminho seguido pelos liberais portugueses, romper com um passado municipalista “incoerente”, “privilegiado” e “bárbaro” para construir o “progresso” e a “civilização” da sociedade, princípios básicos do Estado liberal. Esta foi a maneira encontrada para que os princípios liberais fossem de fato implantados em Portugal e que a sombra do absolutismo fosse dissipada definitivamente. Veremos que muito deste caminho também foi trilhado pelos políticos liberais brasileiros após a Independência e principalmente entre a metade da década de 1820 e a metade da de 1830. D‟ÁVILA, Joaquim Thomaz Lobo. Estudos de administração. Lisboa: s. n., 1874, p. 19. Apud HESPANHA, op. cit., 2004, p. 201 [grifo meu]. 25 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 234 A constitucionalização do Império brasileiro e a busca da unidade sob a égide do liberalismo político Como já apontei, até 1821 as Cortes conseguiram angariar um forte apoio entre as oligarquias locais brasileiras através da promoção das Juntas de Governo Provisório nas províncias. Obtiveram também uma importante ajuda de parte da classe política fluminense para forçar d. João VI a jurar as Bases Constitucionais em março deste ano. O que resultou na sua volta para Lisboa em abril deixando o Príncipe d. Pedro como Regente do Reino do Brasil. Entretanto, entre dezembro de 1821 e janeiro de 1822 acirraramse as tensões entre o Príncipe e as Cortes. Estas promulgaram decretos que foram interpretados pelos brasileiros como recolonizadores e que exigiam a volta de d. Pedro a Portugal em setembro de 1821. Este, com o apoio, entre outros, do vice-presidente da junta provisória de Minas Gerais José Teixeira da Fonseca Vasconcelos, decidiu, em janeiro de 1822, ficar no Brasil desrespeitando as decisões das Cortes. E para melhor respaldar essa sua decisão, organizou, em fevereiro daquele ano, um Conselho de Procuradores-Gerais das Províncias. O objetivo do Príncipe era legitimar, com o apoio das províncias brasileiras, a sua Regência, que após o Fico se tornou ilegítima aos olhos das Cortes. Instaurou-se assim uma duplicidade no governo do Reino do Brasil, tendo de um lado a regulamentação dada pelas Cortes lisboetas para este governo e de outro as decisões tomadas pela Regência de d. Pedro26. Esta duplicidade no governo brasileiro foi favorecida pelas mudanças ocorridas na repartição do poder nas províncias que o sistema de juntas, instaurado pelas Cortes, promoveu. Como disse anteriormente, as juntas exerciam o poder executivo ao nível regional, no entanto não concentravam mais o poder militar como ocorria com os antigos capitãesgenerais. Este poder era exercido por um Governador de Armas nomeado diretamente pelas Cortes para cada província. Segundo Iara Lis 27, esta cisão da autoridade, aliada à desconfiança que muitas oligarquias locais passaram a nutrir quanto às verdadeiras intenções das Cortes, instaurou um conflito institucional em algumas províncias. As juntas destas províncias eram formadas, geralmente, por homens ligados aos interesses brasileiros, sobretudo rechaçavam qualquer possibilidade de recolonização, enquanto que os Governadores de Armas eram homens fiéis à política das SLEMIAN, Andréa. Sob o império das leis: Constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834). São Paulo: Editora Hucitec / FAPESP, 2009, p. 74-75. 27 SOUZA, op. cit., 1999, p. 118. 26 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 235 Cortes. O que muitas vezes fazia com as juntas acusassem os governadores de usarem a força militar para intervir em favor das Cortes nos negócios públicos locais e nas próprias juntas. Diante desta situação, as câmaras municipais surgiram como uma segunda via para os políticos locais manifestarem suas posições políticas. Foi estabelecido um sistema de correspondências entre muitas câmaras e o Príncipe Regente em que as oligarquias locais expressavam suas opiniões políticas. Especialmente as suas adesões à chamada causa do Brasil, ou seja, à preservação da igualdade entre as duas partes da monarquia portuguesa, Brasil e Portugal, representada pela permanência de Sua Alteza Real à frente do governo do Reino do Brasil. Assim sendo, diante da duplicidade governativa entre as Cortes e o Regente e das disputas entre juntas e governadores de armas, muitos grupos políticos apelaram para os tradicionais órgãos da governação local para expressarem as suas opiniões mesmo em um novo contexto político. De modo que, A câmara, instituição nascida na colônia, tornou-se um espaço maleável de atuação e debate políticos, funcionou enquanto lugar institucional reconhecido como capaz de manifestar uma vontade legítima para a edificação da soberania de um novo monarca, pautado, agora, no liberalismo.28 A autora fala deste reconhecimento das câmaras como um lugar legítimo para a edificação da soberania de um monarca liberal porque a partir de março de 1822 a relação entre o governo brasileiro e as Cortes só tendeu a piorar. As medidas das Cortes eram cada vez mais hostis aos interesses dos principais grupos políticos brasileiros. De maneira que, em junho d. Pedro convocou uma Assembleia Constituinte exclusiva para o Reino do Brasil que teria como missão adaptar o texto da Constituição Portuguesa à realidade americana. Contudo, as correspondências camarárias informavam incessantemente que as Cortes queriam recolonizar o Brasil e apelavam para a ideia da separação entre os dois reinos. Somente a fundação de um Império brasileiro tendo d. Pedro como Imperador Constitucional seria a solução para a crise política. Daí a afirmação da autora de que as câmaras foram um lugar legítimo para a edificação da soberania de um novo monarca liberal. 28 Ibidem, p. 119. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 236 Portanto, a Independência ocorreu com um projeto de instalação de uma Constituinte para o Brasil já iniciado. E foi tendo isto em vista que os grupos hegemônicos do centro-sul brasileiro apoiaram a emancipação política com d. Pedro como futuro imperador. Este teve que garantir a manutenção da convocação da Assembleia. Foi assim que as câmaras municipais de todo o Brasil foram conclamadas a aclamar d. Pedro como Imperador do Brasil em 12 de outubro: Imperador Constitucional do Brasil. Para Ana Rosa Cloclet da Silva, a adesão das oligarquias mineiras ao novo monarca foi consagrada através de “um vínculo contratual entre o Príncipe e a sociedade, [em que] os limites à sua autoridade estavam dados, desde aquele momento, pelo indissociável binômio „Imperador & Constituição‟” 29. Aceitava-se a Independência como sendo a única possibilidade para a consecução de uma Constituição que levasse em consideração as características políticas, econômicas e sociais do Brasil. O interessante deste processo de independência e constitucionalização do Império do Brasil foi que as câmaras municipais, instâncias de poder relacionadas com o Antigo Regime, tiveram um papel basilar na sua fundação desde que ele fosse uma monarquia constitucional e liberal. Evidência de que as instâncias de poder existentes tidas como constitucionais, as juntas de governo provisório, não eram representativas dos interesses das oligarquias locais do novo Império. Foi preciso recorrer a uma instituição de Antigo Regime para fundamentar a legitimidade necessária ao estabelecimento de um regime constitucional no Brasil. Segundo Caio Prado Júnior, as câmaras intervieram “decisivamente, nos sucessos da constitucionalização, independência e fundação do Império”, sendo “o único órgão da administração que na derrocada geral das instituições coloniais, sobreviverá com todo seu poder, quiçá até engrandecido”30. Contudo, mesmo tendo as câmaras como importante espaço de atuação, os principais grupos políticos exigiam a instalação da Assembleia Constituinte. Intentavam assim adquirir maior participação na construção da nova nação, bem como realizar aquele pressuposto liberal de que a representação nacional era a maneira, por excelência, dos cidadãos SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Identidades em Construção: o processo de politização das identidades coletivas em Minas Gerais: 1792-1831. Pós-doutorado. São Paulo: FFLCH / USP, 2007, p. 209. 30 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: Colônia. 18 ed. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 319. 29 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 237 preservarem e fazerem valer os seus direitos essenciais diante do rei. Além do mais, para o liberalismo a Constituição exercia a importante função de limitar os poderes do soberano e de uniformizar o direito e os cidadãos, mesmo que apenas no aspecto civil. Foi neste sentido que em maio de 1823 foi instalada no Rio de Janeiro a Assembleia Geral Legislativa e Constituinte do Império do Brasil. A relevância das câmaras sobre as divisões e estruturas provinciais herdadas da organização do poder regional estabelecida pelas Cortes, neste momento, era tão grande que, por mais que muitas medidas legislativas referentes à administração local procurassem dotar de instituições políticoadministrativas os espaços provinciais, na prática os deputados ainda tinham no horizonte de suas ações projetos localistas de futuro para a nação que se construía. Mesmo quando eles se dividiam em bancadas provinciais, estas não tinham uma coesão e muitos deputados de uma mesma bancada expressavam opiniões completamente opostas sobre os mesmos assuntos. Repetia-se no Brasil aquilo que ocorrera em Portugal, era muito difícil para os deputados, ao menos neste momento, promoverem uma política que favorecesse a construção de mecanismos provinciais de poder em detrimento das câmaras municipais. Afinal, para o Brasil também valia a análise de Joaquim Romero de que “não convém esquecer que muitos deles [dos deputados] provinham desse estrato da gente nobre da governança [local]”31. Ou como bem afirma Slemian, Por mais que existissem posições comuns entre os vários representantes das localidades, o problema era que a “Província”, como canal de representação e unidade política de convergência de regiões a integrarem-na, ainda estava em construção.32 Portanto, a instituição camarária ainda exercia uma forte influência nas decisões dos deputados constituintes que, como em Portugal, tinham dificuldades para implantar o ideal liberal das câmaras como sendo órgãos periféricos do poder central. Neste momento, ainda era muito difícil tornálas apenas órgãos administrativos, isto foi algo que somente o desenvolvimento da estrutura institucional do poder central e da prática liberal permitiu realizar. No meu entender, durante a Constituinte a construção da província como canal de representação perante o governo 31 32 MAGALHÃES, op. cit., 2011, p. 37. SLEMIAN, op. cit., 2009, p. 86. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 238 central era tida pelos deputados como um reforço da atuação já desenvolvida pelas câmaras municipais no exercício consagrado do mando local. Às câmaras era facultado manter a matriz societária do Antigo Regime e evitar a anarquia e à província e a sua representação na Assembleia evitar o despotismo que pudesse vir do Imperador. Isto porque, segundo Cloclet da Silva33, estes eram os dois maiores inimigos dos grupos que promoveram a independência brasileira, e o primeiro só poderia ser extirpado com a reprodução da matriz societária do Antigo Regime. Me preocupa que algumas análises feitas sobre este período anteveem uma preponderância da organização provincial sobre as câmaras municipais na confecção da Constituição ou mesmo na composição da Assembleia Constituinte, influindo nas decisões dos deputados. Elas acabam por sobrevalorizar o papel que as províncias adquiriram na Constituinte e na Carta Constitucional, minorando o papel e a influência que a instância municipal de poder ainda possuía 34. As câmaras acabam sendo excluídas do processo de constitucionalização e provincialização do Império, tendo a sua atuação destacada apenas quando se opõem a este processo. Ou seja, mesmo compreendendo que a província ainda estava em construção nos primeiros anos do Império, estes trabalhos não contrabalançam a ênfase dada pelos constituintes ao andamento desta construção com a importância que as câmaras municipais tiveram neste processo, abordando-as sempre como meras coadjuvantes. Até 1826, os órgãos camarários ainda exerceram importante papel como representantes dos grupos locais. Na ausência das instituições representativas criadas pela Carta de 1824, eles eram as únicas instituições em funcionamento que tinham este perfil. Isto ocorreu porque no âmbito das províncias a Assembleia de 1823 extinguiu as Juntas de Governo Provisório e criou provisoriamente o Presidente de Província nomeado pelo Imperador e um Conselho eleito que era meramente consultivo 35. Portanto, até a implantação dos Conselhos Gerais de Província, de que falarei mais adiante, em 1828, o único órgão representativo provincial existente não tinha nenhum poder diante do presidente nomeado, aliás até SILVA, op. cit., 2007, p. 150. SLEMIAN, op. cit., 2009, sobretudo o primeiro capítulo. 35 Lei de 20/10/1823 que deu nova forma ao governo das províncias e um regimento provisório para os presidentes provinciais. Apesar de provisório, este regimento teve validade até 1834. É interessante que uma solução do mesmo tipo tenha sido colocada em prática em Portugal na Constituição de 1822, porém permanentemente. 33 34 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 239 dependia da convocação deste para se reunir. Já em âmbito nacional, em novembro de 1823 o Imperador dissolveu a Assembleia Constituinte, que também era legislativa, deixando o Império sem Constituição e sem instituições representativas nacionais. O que se tinha então eram apenas as câmaras municipais funcionando como instâncias legislativas e representativas. Diante desse quadro, acredito que era improvável existir, já neste momento, uma oposição daqueles grupos que procuravam se afirmar nacionalmente às câmaras como espaços legítimos de representação e como instâncias de poder. Alcir Lenharo afirma, inclusive, que os políticos que, no final da década de 1820, representaram o importante setor econômico sul-mineiro enriquecido com o abastecimento da Corte e que contribuíram fundamentalmente para a derrubada do primeiro Imperador e implantação definitiva de muitos preceitos liberais, acumularam forças e conhecimentos políticos, neste período, atuando nas câmaras municipais36. Neste período imediatamente posterior ao fechamento da Assembleia Constituinte, d. Pedro criou uma comissão para escrever uma Constituição para o Brasil. O projeto desta nova Constituição ficou pronto no início de 1824 e para adquirir legitimidade perante a nação foi submetido à apreciação dos “povos”. Esta apreciação se deu via câmaras municipais. Mais uma vez a instância de poder típica do Antigo Regime foi usada para reforçar o pacto constitucional brasileiro, muito embora este pacto tivesse origem em um ato despótico do Imperador como o foi a outorga da Constituição. O que não era proposto pela primeira vez, já que d. João VI em 1821 também estipulou que se criasse uma Constituição para o Império português a partir de proposições camarárias. Mesmo que ele [o ato de submissão do projeto de Constituição às câmaras municipais] tenha significado a negação da soberania da Assembleia como nova instância de representação política, em função da valorização das municipalidades como formas tradicionais de Antigo Regime, eram elas que de fato ainda funcionavam como portadoras de legitimidade política num momento em que a novidade LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil – 1808-1842. 2ª ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1993, p. 24 e 56. 36 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 240 constitucional ainda não sedimentara as próprias bases.37 Apesar de a Assembleia ser entendida como a instância de representação liberal por excelência, na sua ausência a maior parte dos grupos políticos existentes no Brasil, fossem locais ou nacionais, não teve problema em aprovar a Constituição do Império por meio das câmaras. Se houve uma oposição à Carta Constitucional por parte da Câmara de Recife – talvez a única de fato manifestada –, esta não foi derivada da sua submissão à aprovação das câmaras municipais, mas sim da aversão dos políticos recifenses ao conteúdo da Carta e ao fechamento da Assembleia Constituinte38. Portanto, até esse momento as câmaras ainda eram instâncias de poder legítimas a partir das quais os grupos locais agiam em favor da constitucionalização do país. Constitucionalização que para estes grupos deveria levar à implantação de instâncias que os representassem em nível nacional e lhes permitissem influir na governança do Império através do estabelecimento de órgãos administrativos compostos por membros eleitos nos níveis regional e local. E esta Carta Constitucional aprovada pelas câmaras tinha o nítido objetivo de garantir a unidade nacional através do atrelamento das províncias ao governo do Rio de Janeiro – por meio da criação do cargo de Presidente de Província nomeado pelo Imperador e do estabelecimento da Assembleia Geral formada por deputados e senadores eleitos por província – e das câmaras municipais ao governo das províncias 39. O governo provincial, que até a aprovação da Carta Constitucional era composto pelo presidente e pelo Conselho de Governo ou da Presidência, passou a contar também com um Conselho Geral de Província. Este segundo conselho tinha funções muito mais amplas que aquele primeiro, que continuava existindo. Inclusive adquiria uma importância tão grande na organização que a Carta deu ao governo provincial, que a ele foi atribuído um capítulo inteiro nela, o Capítulo V do Título 4º40. Segundo as disposições contidas neste capítulo, todo cidadão tinha o direito de intervir nos negócios de sua província (artigo 71) através do SLEMIAN, op. cit., 2009, p. 139-140. Ibidem, p. 141-142. 39 A propósito deste tema ver: DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Editora Globo, 2005. 40 BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brasil, 1824. Doravante não mais referenciada. 37 38 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 241 Conselho Geral de Província, que era eletivo, e das câmaras dos distritos, as Câmaras Municipais (artigo 72). Ou seja, o direito liberal de intervenção e de representação de cada cidadão podia ser exercido tanto no conselho geral quanto na câmara municipal. Os dois órgãos eram entendidos na Carta como espaços legítimos de representação. Não há uma oposição entre eles nesse aspecto. Mais adiante, no artigo 81, a Carta determinava que a principal função desses conselhos era “propor, discutir, e deliberar sobre os negócios mais interessantes das suas Províncias; formando projetos peculiares, e acomodados às suas localidades, e urgências”. Nesse artigo estava o cerne da administração provincial, aos conselheiros eleitos na província estava dado o direito de deliberar sobre esta administração, que, como já disse, era algo fundamental para os liberais que viam em um governo ativo, em que a administração era peça imprescindível, o ideal de Estado a ser implantado. No entanto, não estava dado a eles o direito de aprovar as suas medidas, capacidade que estava reservada à futura Assembleia Geral (artigo 85). Reproduzindo o preceito liberal de que a centralização política deve residir na assembleia nacional. Assim, ao mesmo tempo em que facultava às oligarquias locais a capacidade de intervirem na administração de suas províncias, a Carta fixava mecanismos que evitavam que as províncias se tornassem totalmente autônomas do governo central, buscando construir, dessa maneira, a unidade nacional e a centralização política. Estabelecida a forma de ligação entre as instâncias regionais e nacional, restava determinar a ligação entre as instâncias locais e regionais. Seguindo o mesmo espírito dos artigos 81 e 85, o artigo 82 determinava que os negócios que tinham origem nas câmaras deveriam ser discutidos e aprovados nos conselhos gerais. Mas, a que se relacionavam esses negócios originários nas câmaras? Segundo os artigos 167 e 169, do Capítulo II do Título 7º, esses negócios estariam relacionados ao governo econômico e municipal das vilas e cidades, tais como a “formação das suas Posturas policiais, aplicação das suas rendas, e todas as suas particulares, e úteis atribuições” (artigo 169). Ou seja, procurando forjar a unidade nacional, a Carta de 1824 firmava uma forte ligação entre as três esferas de poder existentes. Além de permitir ao centro, onde deveria residir o poder político na lógica liberal, a capacidade de controlar as outras instâncias de poder, podendo distribuir a elas importantes funções administrativas sem correr o risco de elas se tornarem autônomas dele. E, sem dúvida, este arranjo também procurava Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 242 evitar atritos entre as instâncias hierarquicamente estabelecidas no mesmo nível administrativo. Pois, ao determinar que o governo provincial aprovasse as proposições das câmaras municipais, entendia-se que ele teria um melhor conhecimento das necessidades e peculiaridades de cada municipalidade evitando que a decisão de uma afetasse o interesse de outra ou de todo o conjunto provincial. Além de favorecer a uniformização jurídica necessária para o bom desenvolvimento da economia e do país como um todo. Afastando da organização do Estado liberal brasileiro aquele municipalismo “bárbaro” e “incoerente” que Lobo d‟Ávila apontava como sendo característico do Antigo Regime e que não correspondia a uma verdadeira descentralização administrativa, mas apenas a um fracionamento do país em circunscrições isoladas e hostis. O mesmo ocorrendo na ação da Assembleia Geral sobre as deliberações provinciais. A Assembleia Geral, por sua vez, não necessitava de um controle de outra instância representativa justamente por ser constituída por membros eleitos provincialmente. A existência desta Assembleia eletiva, especialmente da Câmara dos Deputados, era a garantia para os políticos liberais da preservação dos direitos essenciais dos cidadãos e da capacidade das oligarquias locais e, posteriormente, regionais intervirem na administração central e poderem defender os seus interesses mediante a negociação com suas congêneres em um espaço legítimo para isso. A unidade de todo o território da América lusitana sob a hegemonia do governo do Rio de Janeiro foi possível [...] graças à implementação de um arranjo institucional por meio do qual essas elites se acomodaram, ao contar com autonomia significativa para administrar suas províncias e, ao mesmo tempo, obter garantias de participação no governo central através de suas representações na Câmara dos Deputados.41 O arranjo político-institucional estabelecido na Carta de 1824 de nenhum modo determinava a priori a esfera provincial como o principal espaço de poder local42, criando um conflito institucional entre este espaço e as tradicionais formas de exercício do poder consubstanciadas nas câmaras municipais. No meu entender, o que estava explícito nos artigos analisados da Carta era uma melhor adequação das três esferas de poder 41 42 DOLHNIKOFF, op. cit., 2005, p. 14. SLEMIAN, op. cit., 2009, p. 135. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 243 no novo aparato constitucional do Estado, de forma a concretizar a unidade nacional e o ideal liberal de um governo ativo em que as esferas provincial e local exerciam importante papel administrativo. E para que isso de fato ocorresse era necessário que houvesse um sistema de regulação das três esferas em que cada uma agisse de alguma forma sobre a outra. Inclusive a esfera local exercia este controle por meio da organização das eleições, que estava sob a sua responsabilidade43. A adequação dos espaços de poder locais ao Estado liberal brasileiro Como vimos, as câmaras municipais atuaram de maneira decisiva na constitucionalização, independência e fundação do Império 44 e foram os únicos órgãos legislativos e representativos a estar em atividade entre o fechamento da Assembleia Constituinte, em novembro de 1823, e a abertura dos trabalhos da Assembleia Geral Legislativa, em maio de 1826. O que demonstra quanta legitimidade elas possuíam no quadro político da época e perante a sociedade brasileira. No entanto, o excesso de poderes que elas continham e a forma com que funcionavam eram incompatíveis com o regime constitucional que se procurava implantar. Por mais que elas estivessem na dependência dos conselhos gerais de província para a aprovação de suas propostas, elas, até então, ainda conjugavam atribuições administrativas, legislativas e judiciárias. O escopo de atuação delas era muito amplo, correspondendo ao aparato institucional do Antigo Regime em que elas tinham uma enorme liberdade de ação45. Isto em nada correspondia a um regime que pretendia se basear na separação de poderes. Sendo agravado ainda mais pelo postulado liberal da existência de um único poder residente na representação nacional dos cidadãos, embora na realidade brasileira este poder fosse repartido entre a Assembleia Geral e o Imperador. Esta era a situação em 1826, quando o aparato político-institucional criado pela Carta Constitucional de 1824 começou a se efetivar. Apesar de a Carta ter atrelado as câmaras municipais ao governo provincial, elas, até aquele momento, exerciam funções que não se encaixavam em um quadro constitucional e liberal. Portanto, a adequação da esfera de poder local ao A respeito deste tema ver: DOLHNIKOFF, op. cit., 2005, p. 100-118. PRADO JÚNIOR, op. cit., 1983, p. 319. 45 RUSSEL-WOOD, A. J. R. “O governo local na América portuguesa: um estudo de convergência cultural”. Revista de História, vol. 55, nº 109, São Paulo, jan./mar. 1977, p. 25-79. 43 44 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 244 regime constitucional passava, sem outra alternativa, por uma redução drástica dos poderes concentrados nas câmaras. A separação de poderes em todas as esferas era condição sine qua non para o estabelecimento de um verdadeiro sistema constitucional de governo. Não havia dúvidas quanto a isso, a questão era de que forma isto seria feito. Era necessário diminuir os poderes das câmaras municipais, mas também era preciso garantir o apoio das oligarquias locais a ação do Estado nas diversas localidades espalhadas pelo interior do país, uma vez que o poder central não tinha uma estrutura burocrática capaz de agir em todos os rincões imperiais. Como também era preciso evitar que se colocasse em risco a unidade nacional com uma possível exclusão total destas oligarquias do jogo político. O governo imperial dependia muito das câmaras, especialmente do oficialato camarário e dos grupos locais que nelas se faziam representar, em relação ao conhecimento do território e à imposição da sua autoridade nos recantos mais recônditos do Império. Esta questão era um dos pontoschave do enquadramento das municipalidades no aparato institucional do Estado. Nem o governo central nem os governos provinciais tinham pessoal burocrático e recursos materiais e financeiros suficientes para fazerem valer suas autoridades em todos os lugares. Neste sentido era urgente enquadrá-las nos ritos do Estado moderno, as câmaras precisavam deixar de funcionar como no Antigo Regime, se adequando ao Estado constitucional e aos princípios de organização estatal propostos pelo liberalismo político. No entanto, o equilíbrio entre a restrição dos amplos poderes camarários e a necessidade de conservar o apoio das oligarquias locais à administração imperial era algo complicado de se alcançar e de se manter. Ainda mais se lembrarmos de que muitos dos deputados e senadores empossados em 1826 provinham destas oligarquias e atuaram fortemente nas câmaras municipais até a instalação da representação nacional, construindo ali suas carreiras e aprendizados políticos. Ou seja, os políticos responsáveis por estabelecer a regulamentação do poder local e do poder provincial estavam intimamente ligados ao poder local. Contudo, muitos destes políticos também se vinculavam ao pensamento liberal que pregava a centralização do poder na representação nacional e que via nas instituições de poder periféricas apenas órgãos do poder central que exerciam, sob o seu controle, a administração periférica. E, além de tudo isto, os deputados e senadores liberais que estiveram presentes nas câmaras até 1826 sabiam da íntima relação que existia entre elas e d. Pedro I, no sentido de que muitas vezes, como já citei, REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 245 elas legitimaram o poder do Imperador. Entretanto, as relações entre a Câmara dos Deputados e o Imperador se deterioraram muito neste período, bem como pairava sobre d. Pedro o epíteto de absolutista devido às medidas centralizadoras em sua pessoa e arbitrárias que vinha tomando ao longo da segunda metade da década de 1820. Portanto, para estes parlamentares, acabar com o poder político das câmaras, mas não dos espaços de poder locais, poderia vir a ser uma boa medida para enfraquecer o poder e a legitimidade de Sua Majestade. Este problema era muito parecido com o enfrentado pelos parlamentares portugueses após a queda de d. Miguel. Em busca destes objetivos foi aprovada em 1º de outubro de 1828 na Câmara dos Deputados a Lei de Organização Municipal 46. Aprovada praticamente sem discussão, portanto da mesma forma que o projeto viera do Senado. O objetivo da lei era claro e estava muito bem explicitado no seu artigo 24, tornar as câmaras municipais “corporações meramente administrativas” sem jurisdição contenciosa alguma. Deixando evidente que a separação dos poderes concentrados nas câmaras e a transformação delas em órgãos periféricos da administração central eram os pontos principais da lei. Cabendo a elas apenas administrar os municípios, conforme a Carta Constitucional já previra em seu artigo 167: “Em todas as cidades, e vilas ora existentes, e nas mais, que para o futuro se criarem haverá câmaras, às quais compete o governo econômico, e municipal das mesmas cidades, e vilas”. Assim sendo, as funções judiciárias e legislativas pertencentes às câmaras desde o período colonial deveriam ser repassadas a outros órgãos do aparelho estatal. Quanto às primeiras, a lei de 1828 apenas determinava que não pertencessem mais às câmaras (artigo 24), afinal grande parte delas já fora transferida para os juízes de paz segundo a lei que os havia regulamentado em 1827. Quanto às segundas, foram melhor definidas seguindo um duplo propósito: esvaziar o poder político das câmaras e atrelá-las à esfera provincial de poder. A lei de 1828 estabeleceu que aos vereadores coubesse apenas tratar do governo econômico e policial das municipalidades (artigo 40) e que tudo o que propusessem a este respeito na confecção das posturas Todas as citações retiradas desta lei foram transcritas da seguinte fonte – doravante não mais referenciada –: ARQUIVO HISTÓRICO DA CÂMARA MUNICIPAL DE MARIANA, “Livro para registro da Carta de Lei de 1º/10/1828”, códice 88, Registro da Carta de Lei de 1º de Outubro de 1828, 1º/04/1829, f. 01f-08v. 46 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 246 municipais deveria ser aprovado pelo conselho geral da respectiva província (artigo 39). Sendo que este princípio também estava inscrito na Carta de 1824 em seu artigo 82, que já analisei mais acima. Ou seja, a Lei de Organização Municipal procurou reforçar ainda mais a Carta de 1824 e os seus artigos nos quais os critérios que regeriam a separação de poderes já estavam delimitados. Seguindo este princípio e aprofundando a dependência da esfera local em relação à esfera provincial de poder, que, convém não esquecer, era presidida por um funcionário nomeado pelo poder central, diversos artigos da referida lei acabavam com qualquer independência financeira das câmaras. Elas não poderiam aforar, vender ou trocar bens da municipalidade sem a autorização do conselho geral de província (artigo 42) e em caso de obra de grande porte feita por empreitada, a mesma autorização era necessária (artigo 47). Não deveriam pagar dívidas sem a permissão do conselho, sob pena de nulidade e de pagarem o dobro (artigo 52). E por fim, sempre que precisassem fazer alguma despesa extraordinária ou quisessem dispor de meios para aumentarem suas rendas era necessário ter a aprovação do conselho (artigo 77). Sendo que também enviariam anualmente o balancete de suas rendas e despesas para a devida aprovação do conselho geral (artigo 46). Ou seja, em matéria financeira em tudo as câmaras ficaram na dependência dos conselhos gerais de província. Este era o mesmo espírito das reformas implantadas em Portugal nas décadas de 1830 e 1840, restringir a atuação das câmaras à área administrativa, mas retirar delas a maior parte de suas rendas. Esta manobra impedia que elas lograssem alcançar um mínimo de autonomia política em relação ao poder central, representado nas províncias pelo Presidente de Província. Dessa forma, a lei de 1828 criava um mecanismo eficiente de atrelamento das câmaras municipais ao Estado Nacional. Retirava delas a capacidade financeira, obrigando-as a dependerem da esfera provincial para poderem realizar as despesas mais banais, e, consequentemente, impunha a elas subserviência às instâncias provinciais em troca da ajuda financeira e das diversas autorizações apontadas acima. Estas medidas também retiravam das câmaras a capacidade financeira para prover e organizar as celebrações locais, abatendo desta maneira “sua carga simbólica, sua habilidade e capacidade de mobilizar signos e investi-los com determinados sentidos ou de celebrar o contrato REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 247 social com o monarca ou com o Brasil, como fizera entre 1822 e 1824”47. Desta forma, a lei atingia a competência que as câmaras tinham no Antigo Regime de participarem da mística da realeza ao celebrarem o Rei e de funcionarem como uma continuidade dele nas localidades. Esta era uma forma de enfraquecer a legitimidade do governo cada vez mais absoluto de d. Pedro I. Além de diminuir muito o apoio institucional que ele tinha. Segundo Cloclet da Silva, “a Monarquia Constitucional de D. Pedro I continuava operando como „absoluta‟, mas já então desprovida de uma legitimidade capaz de ser garantida pelo arcabouço institucional e pelos princípios normatizadores formalmente vigentes” 48. E na busca de reforçar esta mudança, o padre Antônio Diogo Feijó, futuro Regente do Império, chegou a publicar um Guia das Câmaras Municipais49 em que redefinia todo o cerimonial e simbolismo das câmaras, complementando a lei neste sentido. Entretanto, outras medidas foram tomadas para que se mantivesse o apoio político e estrutural das oligarquias locais para a execução das determinações centrais. Duas delas estavam na própria Lei de Organização Municipal. Segundo João Camilo de Oliveira Tôrres, O artigo 24 da lei de 1º de outubro de 1828 dispunha que “as Câmaras (municipais) são corporações meramente administrativas, e não exercerão jurisdição alguma contenciosa”. Mas essas atribuições “meramente administrativas” constituíam um conjunto bem respeitável. Ei-las, nos termos do título III da referida lei – “posturas policiais” – [...] que assim classificaríamos: a) urbanismo em geral e obras públicas; b) saúde pública; c) assistência social; d) polícia “social”; e) proteção ao trabalho e à propriedade.50 Portanto, mesmo que as câmaras municipais não tivessem recursos financeiros suficientes para arcarem com todas estas responsabilidades, o SCHIAVINATTO, Iara Lis. “Questões de poder na fundação do Brasil: o governo dos homens e de si (c. 1780-1830)”. In: MALERBA, Jurandir (org.). A Independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 213-214. 48 SILVA, op. cit., 2007, p. 397. 49 FEIJÓ, Diogo Antônio. Guia das Câmaras Municipais do Brasil no desempenho de seus deveres por um deputado amigo da instituição. Rio de Janeiro: Typographia D‟Astréa, 1830. 50 TÔRRES, João Camilo de Oliveira. História de Minas Gerais. 3 ed. Belo Horizonte / Brasília: Lemi / INL, vol. 2, 1980, p. 939 e 943. 47 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 248 poder administrativo que a elas competia não era pouca coisa e permitia um amplo espectro de formas de intervenção na vida e na organização da comunidade local. Desta maneira, aos membros das câmaras ainda eram dados meios importantes de fazerem valer a sua autoridade e para reforçarem o seu prestígio social. Mantendo assim o interesse dos grupos políticos em comporem os corpos camarários e atuarem através deles na aplicação das determinações do poder central e na administração local. Outra medida contida nesta lei era a determinação de que a organização das eleições ficaria a cargo das oligarquias locais. Era ao juiz de paz, posteriormente a uma junta composta pelo juiz de paz, o delegado de polícia e o vigário, que competia qualificar quem estava habilitado a votar nas eleições. Em 1846 uma lei criou um Conselho Municipal de Recursos ao qual deveria se recorrer em caso de discordância relativa à qualificação feita pela junta. Este conselho era constituído pelo presidente da câmara municipal, pelo eleitor mais votado na paróquia cabeça do município e pelo juiz municipal. Por fim, no dia da eleição era formada uma mesa eleitoral em cada seção. A esta mesa cabia conduzir o pleito e identificar cada votante qualificado, ou seja, somente votaria quem a mesa determinasse. Eram membros desta mesa o juiz de paz e quatro eleitores da paróquia escolhidos nas eleições anteriores 51. De todos estes indivíduos, apenas o delegado de polícia e o juiz municipal eram de nomeação dos governos central ou provincial e, portanto, poderiam não estar envolvidos na política local. Mas, este não envolvimento era apenas suposto já que até a Reforma do Código do Processo, em 1841, não existia o delegado de polícia e o juiz municipal era indicado pelo governo provincial a partir de uma lista tríplice elaborada pelos vereadores. E, após esta Reforma, nenhuma lei impedia os delegados e os juízes municipais de se imiscuírem no jogo político das localidades em que exerciam seus cargos ou de os exercerem em suas localidades de origem. No entanto, mesmo que estes indivíduos não pertencessem aos grupos políticos de uma dada localidade, estava garantido a estes grupos o controle do processo eleitoral. Afinal, todos estes órgãos eleitorais eram colegiados e os membros destes grupos eram maioria em todos eles, portanto, por maioria de votos, sempre acabava em suas mãos a decisão final. Consequentemente, mesmo que as câmaras municipais não estivessem envolvidas diretamente no processo eleitoral, os políticos locais tinham enorme influência em seu andamento. 51 DOLHNIKOFF, op. cit., 2005, p. 108-109. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 249 Uma terceira solução encontrada pelos parlamentares residia neste cargo tantas vezes citado na organização das eleições, o juiz de paz. Segundo a lei que os regulamentou – lei de 15 de outubro de 1827 –, deveria haver um juiz e um suplente em cada freguesia e era de sua responsabilidade: contribuir para a boa administração das câmaras; fazer auto de corpo de delito, interrogatórios e prisões; proceder contra criminosos, vadios, mendigos, bêbados, meretrizes e perturbadores da ordem em geral; obrigar a observância das posturas municipais; agilizar o julgamento e a resolução de pequenos crimes 52. Ou seja, a maior parte das atribuições judiciárias das câmaras municipais foi repassada a estes juízes de paz que eram eleitos localmente. As atribuições judiciárias que competiam no Antigo Regime ao espaço de poder local continuaram competindo a ele, o que mudou foi que saíram da responsabilidade das câmaras. Evidenciando que o objetivo dos liberais era esvaziar o poder político das câmaras pelos motivos já apontados, mas sem perder o apoio necessário das classes dominantes locais. Enfim, impossibilitado de estender a hegemonia do Estado a todo o território imperial, o poder central se viu forçado a angariar o apoio dos principais grupos político-econômicos locais estabelecendo compromissos e pactos com eles. Sem os quais veria minada a sua própria autoridade. Assim sendo, os parlamentares e governantes imperiais, sobretudo do período regencial inaugurado com a abdicação de d. Pedro I em 1831, se viram forçados a implantar no Brasil Imperial uma estrutura burocráticopatrimonialista, conforme a descrição feita por Fernando Uricoechea53. Eles criaram um aparato burocrático central nos moldes determinados pelos preceitos liberais e que vinham sendo tentados desde as reformas ilustradas, mas não tinham forças para fazer chegar este aparato à periferia. Nesta, apenas lograram romper com a concentração de poderes nas câmaras municipais, porém continuaram necessitando do apoio dos notáveis locais e de suas clientelas políticas para fazerem valer suas determinações e manterem um governo ativo do centro à periferia, postulado fundamental do credo liberal. Este apoio se dava através de políticas patrimonialistas, como a implantação da Guarda Nacional e dos ANDRADE, Francisco Eduardo de. “A reforma do Império e a Câmara da Leal Cidade de Mariana”. In: CHAVES, Cláudia Maria das Graças; PIRES, Maria do Carmo; MAGALHÃES, Sônia Maria de (orgs.). Casa de Vereança de Mariana: 300 anos de História da Câmara Municipal. Ouro Preto: Editora UFOP, 2008, p. 156-157. 53 URICOECHEA, op. cit., 1978, p. 14-16. 52 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 250 juízes de paz eletivos. Instituições que serviam para os notáveis locais acomodarem seus interesses políticos nas localidades, ao mesmo tempo em que ajudavam o centro a difundir sua autoridade política através do exercício gratuito de funções administrativas por parte destes notáveis e de suas clientelas – um dos pressupostos básicos da estrutura patrimonialista. A permanência desta estrutura também era evidenciada nesta noção de que servir à autoridade central era uma maneira de reforçar o prestígio social. Só assim foi possível ao Estado liberal brasileiro centralizar o poder político ao mesmo tempo em que mantinha sua capacidade intervencionista. Portanto, mesmo que o liberalismo implantado no Brasil, como em Portugal, tivesse um forte cariz regional, ele ainda foi muito dependente dos espaços locais de poder. Mesmo ferindo as câmaras municipais, não foi capaz de matar as instituições locais. Transformou-as, mas não as eliminou. Mesmo com a transferência da atividade legislativa que recaía sobre as províncias e as municipalidades para as Assembleias Legislativas Provinciais em 1834, o que, sem dúvida, reforçou o poder regional perante as instituições locais e centrais, não se mexeu mais nas amplas funções administrativas das câmaras. Quanto às funções judiciárias dos juízes de paz, só foram diminuídas com o Regresso em 1841. Entretanto, os tempos já eram outros e os poderosos locais, sobretudo os grandes latifundiários do café, começavam a exercer forte influência no governo central, mediando e aprofundando as relações entre o centro e as periferias através de outros acordos entre os grupos políticos nacionais e locais. Referências Bibliográficas ARQUIVO HISTÓRICO DA CÂMARA MUNICIPAL DE MARIANA, “Livro para registro da Carta de Lei de 1º/10/1828”, códice 88, Registro da Carta de Lei de 1º de Outubro de 1828, 1º/04/1829, f. 01f-08v. ANDRADE, Francisco Eduardo de. “A reforma do Império e a Câmara da Leal Cidade de Mariana”. In: CHAVES, Cláudia Maria das Graças; PIRES, Maria do Carmo; MAGALHÃES, Sônia Maria de (orgs.). Casa de Vereança de Mariana: 300 anos de História da Câmara Municipal. Ouro Preto: Editora UFOP, 2008, p. 152-167. ANDRADE, Pablo de Oliveira. A "legítima Representante": câmaras municipais, oligarquias e a institucionalização do Império liberal brasileiro (Mariana, 1822-1836). Dissertação de mestrado. Mariana: ICHS/UFOP, 2012. BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brasil, 1824. D‟ÁVILA, Joaquim Thomaz Lobo. Estudos de administração. Lisboa: s. n., 1874. DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. 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Rio de Janeiro / São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1978. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 252 Cercado de inimigos elite local e as relações escravistas em Pelotas (1832-1850) Victor Gomes Monteiro1 1 Resumo: O presente artigo discute os temores relacionados à figura do escravo que afligiram a elite dirigente pelotense na primeira metade do séc. XIX (1832-1850). Mediante pesquisa nas Atas da Câmara Municipal elenca-se um círculo de inimigos que eram potencialmente perigosos à hegemonia escravista em Pelotas. Observa-se essa documentação como um dos instrumentos de “governamentalidade” que as autoridades locais se valiam para intervir, direta ou indiretamente, na vida da localidade, percebendo e confirmando a busca por uma ordenação regulada dos espaços e o disciplinamento dos corpos, condutas e pensamentos. Demonstra-se como este contexto de preocupação das autoridades locais com os escravos, possíveis rebeliões, quilombos e os perigos da fronteira, levou à criação de dispositivos e mecanismos de controle que visaram normatizar o cotidiano dos escravos e estruturar os aparelhos de vigilância. Palavras-chave: Escravidão; Elite; Medo Abstract: This paper discusses the fears related to the figure of the slave that afflicted the ruling élite from Pelotas in the first half of the nineteenth century (1832-1850). By researching the Acts of the Intendence of Pelotas it lists a circle of enemies that were potentially dangerous to slavery hegemony in Pelotas. That documentation is observed as an instrument of "governmentality" which local authorities resorted to intervene, directly or indirectly, in the life of the town, realizing and acknowledging the quest for regulated spaces and the discipline of bodies, behaviors and thoughts. It demonstrates how this background of concern by local authorities about the slaves, possible Bacharel em História, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas (RS), [email protected] 1 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 253 insurrections, quilombos and the dangers of the border, led to the creation of devices and control mechanisms that aimed to regulate the daily lives of slaves and structure the surveillance apparatus. Keywords: Slavery; Elite; Fear. I nvestigar os medos que permearam o imaginário e os discursos da elite dirigente com relação à figura do escravo, na Pelotas da primeira metade do séc. XIX, constituiu o principal objetivo de meu trabalho de conclusão de curso no bacharelado em História da UFPEL (MONTEIRO, 2012). Nesse processo de investigação, cujas fontes foram as “Atas da Câmara Municipal de Pelotas dos anos de 1832 a 1850”, sobressaíram-se elementos relacionáveis que constituíram boa parte dos temores e da atenção das autoridades locais: o contingente de escravos; os estrangeiros aliciadores; os quilombos da Serra dos Tapes; os revoltosos maleses. Posto isso, o principal objetivo deste artigo é desenvolver como estes elementos perigosos a hegemonia escravista desencadearam a criação de dispositivos de controle e intermediaram as relações de poder entre a população escravizada e as elites escravocratas que se encontravam a frente das instituições administrativas/executivas de Pelotas. Estes elementos, indícios dos temores da elite dirigente, são agora tomados como efeitos das relações de poder, pois permitem discorrer a respeito do processo de constituição e institucionalização dos poderes na Pelotas oitocentista. Pelotas escravista: uma breve introdução à constituição do escravismo em Pelotas Não há como não relacionar a História da atual cidade de Pelotas, antiga Vila São Francisco de Paula, ao advento das charqueadas no Rio Grande do Sul e a conseqüente estruturação do sistema escravista na região meridional do Brasil. O sistema escravista pelotense esteve diretamente associado à produção do charque. A cidade de Pelotas se edificou através das mãos de trabalhadores escravizados e constituiu no decorrer do século XIX um dos maiores contingentes de escravos da Província do Rio Grande de São Pedro. Em linhas gerais, o processo de ocupação da localidade se inicia a partir da segunda metade do séc. XVIII, em meio a disputas territoriais entre Espanha e Portugal, com as doações das sesmarias de Pelotas e Monte Bonito ao coronel Tomás Luís Osório. Estas terras foram posteriormente divididas em diversos lotes e situariam algumas das Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 254 primeiras charqueadas da localidade. Até 1812, quando se estabelece a Freguesia São Francisco de Paula, a região ainda pertencia e respondia a comarca de Rio Grande2. O marco para a autonomia administrativa e a constituição da cidade de Pelotas é a criação da Câmara Municipal, no ano de 1832. Este processo de emancipação administrativa e o crescimento da população escravizada foi decisivamente impulsionado pelo advento das charqueadas, que possibilitou o enriquecimento e a ascensão política dos indivíduos que conformaram a Câmara Municipal. Nesse contexto, é oportuno indicar outras questões importantes a respeito desse processo de constituição da cidade. Um ponto essencial com relação à formação de Pelotas diz respeito a sua inserção num contexto mais abrangente de disputas pelos territórios do Prata. Digo isso para salientar que a constituição da elite charqueadora está intimamente relacionada à “delimitação” de fronteiras com a região platina. Esta condição fronteiriça de Pelotas e das cidades vizinhas com a região do Prata possuía pelo menos duas significações complementares e ambíguas: sua condição beligerante e conflituosa; e a condição de espaço de circulação de homens e bens. Esses dois elementos são formadores e constituintes das elites sul-rio-grandenses3. Ao mesmo tempo em que os charqueadores pelotenses disputavam o comércio do gado e charque com a concorrência platina, muitos possuíam terras e aliados comerciais no Estado Oriental. Gonçalves Chaves, João Rodrigues Barcellos e Francisco Henrique de Faria são alguns exemplos de políticos e importantes comerciantes pelotenses que representam de certo modo essa relação ambígua e múltipla da fronteira do Rio Grande de São Pedro com os Estados Vizinhos (principalmente com o Uruguai). O início da década de 1830 assinala por um lado o início de um longo processo de constituição do Estado Nacional Uruguaio através da promulgação de sua Constituição, de outro demarca o princípio de uma disputa entre dois partidos antagônicos (colorados e blancos) pelo controle político do Estado, que desencadeará numa grande guerra civil no Estado Oriental, a chamada “Grande Guerra”. Essa conjuntura de tensão e conflitos internos no Estado GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas e olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. 2.ed. Pelotas: Ed. Universitária/UFPEL, 2001; MAESTRI, Mário. A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST, 1984; MAGALHÃES, Mário Osório. Opulência e cultura na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul: um estudo sobre a história de Pelotas (1860-1890). Pelotas: EDUFPel, 1993; OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e movimento. Tese de Doutorado. Pós-Graduação em História das Sociedades Ibéricas e Americanas. Porto Alegre: PUC, 2005. 3 KÜHN, Fábio. Breve história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Leitura XXI, 2011. 2 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 255 Oriental era vista com preocupação pelas autoridades pelotenses, pois esse ambiente poderia ser uma ameaça aos interesses brasileiros (e sul-riograndenses) na região4. A nível local o Império brasileiro passava na década de 1830, após a abdicação de Dom Pedro I, por um processo de reformulação política através da descentralização do Estado, maior autonomia das Províncias e fortalecimento dos grupos provinciais atrelados a produção movida pela mão-de-obra escravizada5. É justamente nesse cenário de constituição embrionária do Estado Nacional brasileiro, de estruturação de seu aparelho jurídico e da constituição de suas instituições administrativas/executivas que se conformou a Câmara Municipal de Pelotas. Esta instituição exercia uma gama ampla de funções, abarcando atribuições executivas e legislativas, visto que além de ter autonomia para estipular posturas e normas locais que ampliavam e complementavam o Código Criminal, a Câmara demandava para instâncias (instituições) menores a execução das ações oficiais. A maior parte dos indícios das ações da Câmara Municipal de Pelotas está registrada em suas correspondências oficiais, assim como, em suas atas de sessões. Deste modo cabe destacar mais alguns pontos sobre o meu entendimento a respeito das características constitutivas (e funcionais) dessa documentação e de sua instituição produtora. Em primeiro lugar: entendo a Câmara Municipal (por sua função simultaneamente executiva e legisladora), e seus aparelhos de ação (atas e correspondências) como componentes de “governamentalidade” ou “dispositivos de poder” 6, a partir do momento em que permitiram a um grupo seleto de pessoas o ato de legislar a respeito da vida social da localidade nos mais diversos aspectos. Em segundo lugar: uma “ata”, no caso de uma instituição ligada ao Estado como uma Câmara Municipal, tem o papel de registrar o que foi ALADRÉN, Gabriel. Escravidão e hierarquias sociais na fronteira sul do Rio Grande de São Pedro nas primeiras décadas do século XIX: notas iniciais de pesquisa. In: Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 4., Curitiba, maio 2009; KLAFKE, Álvaro. Antecipar essa idade de paz, esse império do bem. Imprensa periódica e discurso de construção do Estado unificado (São Pedro do Rio Grande do Sul, 1831-1845). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011; KÜHN, Fábio. Breve história do Rio Grande do Sul. Op.cit., p.81-82. 5 PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 6 FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População: curso dado no Collège de France (19771978); SENELLART, Michel; EWALD, François; FONTANA, Alessandro (orgs.). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 4 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 256 objeto de decisão na Câmara, suas deliberações e ordenações legislativas e executivas. Seguindo essa linha de pensamento, as “atas”, através do que registram, permitem visualizar para além da projeção e arquitetura de espaços e paisagens, a própria burocratização do aparelho administrativo e codificador das relações sociais, que constituiu dispositivos e ferramentas específicas no intuito de regular, gerir e controlar as pessoas (e principalmente os escravos) e manter o “estado natural das coisas”. A hegemonia escravista da nascente localidade de Pelotas, logo nos primeiros anos de exercício de sua Câmara Municipal, se via envolta por uma série de ameaças que classifico tipologicamente em duas categorias de “antagonistas” do status quo local: 1) “inimigos internos” e 2) “inimigos externos”. A primeira categoria define estes “inimigos” tanto pelo fator geográfico quanto pela condição social/cultural, uma vez que se refere ao “contingente” de escravos assenzalados e aos quilombolas localizados na região de Pelotas. A segunda categoria define-se pelo fator geográfico, mas também “político” de seus personagens: os estrangeiros aliciadores do Estado vizinho e o embrião insurgente dos maleses. Cabe destacar que as categorias aqui expostas são relacionáveis, de modo que se produzirão durante esta narrativa, correlações entre ambas. É então segundo essa dupla classificação dos “inimigos” que fixaram o sinal de alerta nas autoridades locais na primeira metade do séc. XIX que se pretende abordar as relações escravistas e a criação de dispositivos de controle que visavam em primeira instância normatizar e disciplinar os agentes sociais. Quilombos na Serra e o perigo Malês O triênio 1834-1836 concebeu um período bastante conturbado para a elite dirigente pelotense, não somente pela agitação política ocasionada pela deflagração da Revolução Farroupilha, mas principalmente por questões que tangem as relações escravistas, visto que se constataram nesse ínterim: a formação de um quilombo “violento” e organizado na Serra dos Tapes e a eclosão e reverberação nacional da Revolta dos Malês na Bahia (1835). Estes eventos que se relacionam contextualmente produziram uma série de dispositivos cujo propósito era fazer frente a esses “sinais de perigo” que poderiam atentar contra a hegemonia local. De um lado “inimigos” internamente rebelados e de outro a possibilidade de outros elementos revoltosos, provenientes de um movimento insurrecional de REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 257 repercussão nacional, aportarem em Pelotas, promoveram ações imediatas das autoridades locais como se verá a seguir. A respeito do registro e estudos sobre a formação de quilombos na região de Pelotas é possível afirmar que há uma rarefação de pesquisas nessa área, principalmente no que se refere a trabalhos que abordem essa temática como objeto principal de análise. Citam-se planejamentos de insurreições na primeira7 e segunda metade do séc. XIX8. Porém no que tange a formação de quilombos na localidade de Pelotas não há ainda registro de outro evento cujo porte e repercussão superem a formação do quilombo situado na Serra dos Tapes sob a liderança de Manoel Padeiro. Os poucos estudos que abordam a questão quilombola em Pelotas, dizem respeito à formação do “Quilombo de Manoel Padeiro” 9. As primeiras notícias oficiadas nas reuniões da Câmara sobre o precitado quilombo se remetem ao mês de outubro de 1834 e as últimas ao ano de 183610. Não foi possível durante a pesquisa delimitar a dimensão do quilombo em termos de quantidade de integrantes. Nas menções da Câmara (e correspondências) o número varia de 10 a 23 quilombolas, incluindo a presença de pelo menos 4 mulheres. Por outro lado o “Quilombo de Manoel Padeiro” constituiu-se de algumas características que foram compartilhadas, de certo modo, por diversas formações MAESTRI, Mário. A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Op.cit., p.131. LONER, Beatriz Ana. 1887: A revolta que oficialmente não houve ou de como abolicionistas se tornaram zeladores da ordem escravocrata. História em Revista (UFPel). Pelotas -RS, v. 3, p. 29-52, 1997; MOREIRA, Paulo R. S. Seduções, boatos e insurreições escravas no Rio Grande do Sul na segunda metade dos oitocentos. In: Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 5., Porto Alegre, maio 2011. 9 AL-ALAM, Caiuá. C. A negra forca da princesa: polícia, pena de morte e correção em Pelotas (1830-1857). Dissertação de Mestrado. São Leopoldo: UNISINOS, 2007; MAESTRI, Mário. O quilombo de Manoel Padeiro. In: SEFFNER, Fernando (org.). 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Usualmente os quilombos costumavam se situar em regiões afastadas da zona urbana e de difícil acesso, como terrenos montanhosos e de grande concentração de matas. O espaço favorável era um dos fatores que facilitavam e condicionavam a formação de quilombos. A Serra dos Tapes, que dá nome ao quilombo que atemorizou as autoridades locais nos primeiros anos da década de 1830, parece ter sido local privilegiado de fugas, aquilombamentos e esconderijo preferido dos escravos, ou de qualquer indivíduo que desejasse sumir do controle repressivo12. O relevo sinuoso da região dos Tapes, em conjunto com a grande concentração de matos, o complexo de coxilhas e serras e o fato de ser cortada por arroios e possuir importante vegetação, dava as condições ideais para um grupo de escravos fugidos se esconderem e sobreviverem. Para além do quesito geografia desenvolverei três categorias que considero marcantes para a constituição e manutenção do “Quilombo de Manoel Padeiro”. 1ª) O líder: a questão da liderança de Manoel Padeiro é bastante ressaltada pelas autoridades locais como elemento formador do Quilombo da Serra dos Tapes. Padeiro além de líder do grupo era considerado o governador, ou general. A eleição de líderes não é uma premissa para a formação de quilombos, mas parece ter sido através de algumas figuras específicas que organizavam o movimento e incentivavam o aquilombamento que se desenvolveram os quilombos de maior impacto no Brasil. Esses líderes assim são considerados por receberem um poder simbólico e prático dos seus pares quilombolas e por serem reconhecidos pelos mesmos. A importância de Manoel Padeiro para o movimento quilombola pode se remeter a uma questão de longo prazo, uma vez que sua figura além de dar nome a eventos culturais na cidade de Pelotas é objeto de narrativas míticas a respeito de sua presença na região dos Tapes até os dias atuais. GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – Séc. XIX. Dissertação de Mestrado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade de Campinas, Campinas (SP), 1992. 12 Caiuá Al-Alam (op.cit., 2007), ao citar o caso de José Ramos, jovem de 25 anos que foi preso por deserção, arrombamento da prisão do quartel e insubordinação, traz um exemplo de como a Serra dos Tapes não servia apenas de refúgio aos escravos, mas a qualquer indivíduo que fosse marginalizado pela sociedade. José Ramos, ao fugir da prisão, por padecer de fome, se refugiou por algum tempo na Serra dos Tapes, até ser recapturado. 11 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 259 2ª) Violência e tática de guerrilha: é possível perceber através da pesquisa documental (“atas da Câmara” e “revisão bibliográfica”) que o grupamento de Manoel Padeiro empreendia considerável dose de violência em suas ações. Munidos de facões, facas e inclusive armas de fogo, os quilombolas efetuaram diversos saques a fazendas e estabelecimentos locais, no intuito de se apossar de alimentos e utensílios diversos para a manutenção do grupo. Feijão, farinha, graxa, estribos, colheres de prata, roupas, armas estavam entre os itens dos saques. Era prática do grupo seqüestrar mulheres livres ou escravas (declaradas forras quando capturadas) e recrutar escravos para se unirem ao grupo, seja de forma compulsória ou deliberada13. Conforme os relatos das autoridades locais o grupamento de Manoel Padeiro operava de “modo ousado”. Fala-se da audácia dos mesmos de chegarem numa noite bem perto da então Vila São Francisco de Paula, onde teriam roubado uma taberna, atacado uma olaria, ferido alguns homens e matado outro, isto tudo a poucas “léguas” de distância da Vila14. A organização do grupo quilombola lhes permitia investir em saques sobre áreas bem próximas a área central da cidade. Essa organização se demonstra nas práticas estratégicas de sobrevivência dos quilombolas e explica de certa forma a dificuldade das autoridades locais em exterminar com o Quilombo. Um dos fatores que podem explicar a permanência da atividade dos quilombolas é sua utilização de uma espécie de “tática de guerrilha”, que os mantinha sempre em movimento, parando periodicamente em locais onde se abrigavam em pequenos ranchos feitos de “jiriba”, que facilmente podiam ser abandonados com a aproximação das partidas repressoras15. É possível perceber a partir dessas informações que os quilombolas de Manoel Padeiro estavam intimamente adaptados com a região das matas da Serra e se utilizavam de estratégias diversas para sobreviverem. 3ª) Ampla rede de relações e contatos: este é um fator estratégico de sobrevivência e de atuação dos quilombolas. Os quilombolas não viviam apartados da sociedade escravista, mas sim se encontravam inseridos nela. Dependiam de redes de comércio (de alimentos e munição), troca de informações, aliados de diversas origens sociais 16. Uma das características AL-ALAM, Caiuá. A negra forca da princesa. Op.cit., p.58. MARSICO, Dilson. Charqueadas. Op.cit., p.39-40. MONTEIRO, Victor Gomes. Um inventário do medo. Op.cit., p.71. 15 AL-ALAM, Caiuá. A negra forca da princesa. Op.cit., p.60. 16 GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas. Op.cit., p.26-53 13 14 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 260 do cotidiano da ação quilombola da Serra dos Tapes é a relação que os mesmos mantinham com parte da escravaria da região, trocando informações sobre as partidas e diligências. Inclusive, indica-se que mantinham contato direto com alguns escravos “assenzalados”, que se encontravam com os quilombolas em seus acampamentos para “dançar e comer” e, ao amanhecer, voltavam a sua rotina, sem permanecer com o grupo. Para as autoridades locais (vereadores da Câmara) as falhas de muitas diligências efetuadas pelos guardas nacionais estariam fadadas ao fracasso, pois eram organizadas em frente a seus escravos, que certamente os “atraiçoavam” e logo informavam aos quilombolas a respeito das partidas17. A rede dos quilombolas era ampla e não se resumia ao universo da senzala. Manoel Padeiro e seu grupo mantinham contatos comerciais e trocavam informações com indivíduos livres dos setores populares da sociedade pelotense. Os produtos dos saques e furtos eram trocados com pequenos comerciantes locais por gêneros diversos, tais como: aguardente, fumo, alimentos (pimenta, açúcar, cominho), chumbo e pólvora. Este último produto foi ponto central para a criação de um dispositivo de controle, que como demonstrarei a seguir, se remete subjetivamente a essa rede de contatos e solidariedades empreendida entre quilombolas e outros setores sociais. Estas categorias que representam de modo resumido a multiplicidade dos mecanismos de ação dos quilombolas e que se remetem diretamente a criação de dispositivos de controle e da própria modificação nas relações cotidianas dos escravos, foram potencializadas pela conjuntura criada com o advento da Revolta dos Malês. As notícias do evento que atemorizou as autoridades baianas tiveram ressonâncias diversas em todo o Brasil, causando preocupação, inclusive, nos territórios mais afastados geograficamente do núcleo central da revolta, como é o caso da cidade de Pelotas. Como já foi dito, o ano de 1835, em Pelotas, iniciara-se com o conhecimento e a ameaça dos quilombolas que transitavam pelas matas da Serra dos Tapes, causando prejuízos e disseminando o sentimento de insegurança e medo nas autoridades locais. As informações que vinham da Bahia foram recebidas com maior precaução e receio por parte da elite política local, justamente pelo contexto de inquietação social e de ameaça em que se encontrava a cidade naquele momento. Mas não se resumiram a meras notícias as repercussões da Revolta dos Malês. Os senhores baianos enviaram muitos dos escravos 17 AL-ALAM, Caiuá. A negra forca da princesa. Op.cit., p.63. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 261 insurgentes para região meridional, principalmente para Rio Grande e Pelotas. A reação das autoridades locais a chegada desses indivíduos na localidade de Pelotas salienta um ponto fundamental para as relações escravistas: a consideração da etnicidade dos cativos como um fator impulsionador da rebeldia escrava e elemento a ser temido e evitado. É justamente os fatores associados “etnicidade” e “rebeldia” que são salientados pelos vereadores da Câmara para justificar ação de “barrar” a entrada de escravos das etnias “haussas” e “nagôs” provenientes da Bahia. A entrada desses “inimigos” externos, munidos de uma propensão à rebeldia, poderia ser desastrosa para hegemonia escravista local, principalmente se inseridos nas charqueadas. Esse local seria propício para que se incitasse à revolta, tanto pela proximidade dos estabelecimentos saladeris, quanto pela mobilidade que os escravos tinham em Pelotas e ainda mais pelo exemplo local dos acontecimentos na Serra dos Tapes. Em meio a esse contexto de alerta com relação à rebeldia externa dos maleses e interna por parte dos quilombolas da Serra dos Tapes, destacam-se os múltiplos dispositivos formulados pela elite dirigente local para fazer frente a esse cenário de perigos e para evitar que as resistências cotidianas dos cativos se tornassem insurreições em massa. Um desses dispositivos se refere a criação de diversas diligências e partidas que constituíram grande esforço por parte das autoridades locais em articular diversos setores da localidade em pro da luta contra o Quilombo de Manoel Padeiro. Cabe ressaltar que os aparelhos de controle (Guarda nacional e municipal; polícia; juízes de paz) estavam em fase de implementação e se encontravam em estado de precariedade e mau funcionamento conforme os diversos ofícios dos vereadores pelotenses ao Presidente da Província requisitando um fortalecimento dos aparatos de controle locais, tanto em material humano quanto em utensílios para este controle (material bélico e mantimentos); As recompensas monetárias conformam dispositivos utilizados pelas autoridades locais para articular e incentivar o extermínio do grupamento quilombola na Serra dos Tapes. Ofereciam-se quantias em dinheiro as pessoas que organizassem partidas exitosas em capturar os quilombolas, com valores especificados para cada indivíduo do grupo, ficando a maior bonificação pela cabeça do chefe Manoel Padeiro. As recompensas seriam subsidiadas por alguns dos ex-proprietários dos quilombolas, assim como pelos envios periódicos de quantias em dinheiro do Presidente da Província. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 262 Outra ferramenta que a elite dirigente lançou mão para lidar com o perigo quilombola e que repercutiu no cotidiano dos cativos, foi a criação de posturas específicas que visavam tanto normatizar a movimentação dos cativos no interior da cidade, quanto ao controle do acesso dos escravos (e principalmente dos quilombolas) a utensílios bélicos, especialmente no que diz respeito ao comércio da pólvora. A criação de posturas proibitivas que visam regular a condição dos escravos na cidade reflete o temor manifesto dos vereadores a respeito de uma generalização do movimento quilombola e pressupõe uma demanda de problemas ou situações que se intenta solucionar ou sanar. Em uma das propostas de posturas requeria-se a demarcação de um local específico para o comércio de pólvora e a regulamentação de sua venda a escravos, que só poderiam comprar o produto sob a posse de um bilhete de seus respectivos senhores. Como já foi visto, os quilombolas possuíam armas de fogo, que inclusive foram utilizadas contra diversas diligências. Desse modo fica claro que essa proposição tem o objetivo específico e direcionado de tolher as possibilidades dos quilombolas se armarem, mesmo que estes não sejam diretamente citados na informação trazida pelas atas. Na segunda parte da mesma proposta se solicita a proibição da venda da pólvora a “pessoas suspeitas”. Esta requisição reforça a idéia de que a “rede de comunicação” ou de “contatos” que os quilombolas mantinham com alguns setores da sociedade ultrapassava a relação quilombo/senzala e se efetuava junto aos indivíduos livres dos setores populares da sociedade pelotense. Ou seja, a postura indica a possibilidade de que alguns indivíduos dos setores populares poderiam auxiliar os quilombolas na compra de pólvora, intermediando o comércio deste produto. A outra requisição de postura previa a criação de dois elementos conjuntos: uma “polícia dos escravos” e a regulamentação da circulação de escravos tanto nas ruas da cidade quanto nos subúrbios ou distritos do termo após o toque de recolher, ou seja, no período noturno. 18 Neste requerimento é possível constatar a formulação de dois dispositivos de controle que visavam a disciplinarização da circulação dos cativos e uma vigilância mais apurada. A polícia dos escravos foi idealizada justamente para ser o aparato repressivo necessário ao “controle das ruas”, que passavam a ter sua circulação normatizada a partir das posturas recém “[...] através dos estudos de Bakos, visualizamos que na década de trinta do século XIX, tanto em Porto Alegre como em outras cidades da Província, o toque de recolher se dava às nove horas da noite [...]”. AL-ALAM, Caiuá. A negra forca da princesa. Op.cit., p.65. 18 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 263 criadas. A implementação dessas novas posturas ocasionou a necessidade de se constituir aparato humano para o controle e vigor das novas determinações legais. As posturas municipais eram normas que estendiam e complementavam o código criminal e o código de procedimento criminal e o papel de execução das Posturas era da polícia local. Caiuá Al-Alam19 aborda a dificuldade que se tinha em controlar a circulação de escravos na cidade, demonstrando que a determinação não foi obedecida da maneira prevista, pois constatou o aumento no número de prisões efetuadas pelo desrespeito às normas estabelecidas pela nova postura. Quanto às normas estabelecidas para a circulação de escravos após o toque de recolher, deve-se salientar a criação de uma ferramenta específica de controle: o advento do bilhete ou cédula que deveria acompanhar os cativos em suas andanças pela cidade. Foram elencados cinco itens obrigatórios que deveriam constar na descrição da cédula: 1) Nome do escravo; 2) Naturalidade; 3) Seus mais salientes sinais; 4) Lugar para onde se encaminha; 5) Tempo ou validade da cédula ou bilhete. O detalhamento de informações parece ter o objetivo de dificultar a falsificação dos bilhetes ou cédulas. Perece haver um tipo de ação padronizada em situações de ameaça quilombola e de rebeldia escrava. Assim como aconteceu em Pelotas, a regulação da circulação dos escravos durante a noite também ocorreu na Bahia, nesse mesmo período posterior ao levante dos malês. A obrigatoriedade que os escravos tinham de andar com bilhetes (ou passes) assinados por seus senhores para que pudessem circular a noite, foi ferramenta utilizada em ambos os contextos. As diferenças dizem mais respeito às informações obrigatórias para cada bilhete ou passe em cada localidade, além do fato de que as posturas na Bahia valiam inclusive para os libertos africanos. 20 O advento da Revolução Farroupilha não permitiu pelo menos por intermédio das Atas da Câmara delimitar o que ocorreu aos quilombolas da Serra dos Tapes. No entanto é possível afirmar que o perigo do Quilombo se representava tanto pela questão da sua “influência” sobre a escravatura, quanto pela violência das ações que perpetravam. A dupla de inimigos internos e externos, o quilombola Manoel Padeiro e seu grupo, em conjunto com a possibilidade de entrada de escravos revoltosos 19 Op.cit., p.63-64. MONTEIRO, Victor Gomes. Um inventário do medo. Op.cit., p.88; REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 20 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 264 provenientes da Bahia junto à escravaria local, ressaltaram alguns dos temores da elite dirigente em Pelotas Esta produziu e lançou mão de diversos dispositivos e mecanismos disciplinares, além de criar ferramentas específicas para fazer frente aos perigos à hegemonia escravista na localidade. Boataria ou audácia estrangeira? Um contingente de problemas. Na Pelotas da primeira metade do séc. XIX, para além dos elementos perigos apresentados no item anterior, outra ordem de inimigos, coadunáveis e relacionais, foi alvo da preocupação e do exercício dos poderes das autoridades pelotenses. Um deles é mais “abstrato” no sentido de se referir à “massa de escravos” ou como nos termos dos vereadores pelotenses: ao contingente de escravos. A outra figura antagônica se refere ao “estrangeiro”, especificamente aquele, que se encontra no além-fronteira meridional do Estado Oriental, atual Uruguai. Paulo Roberto Staudt Moreira21 ciente desse contexto salienta o que considera os medos fundamentais no imaginário das elites fronteiriças: a escravaria e o estrangeiro. Ironicamente o principal problema do sistema escravista era a própria figura que dava “sentido” ao sistema, o escravo. Nas reuniões da Câmara Municipal de Pelotas (1832-1850) é manifesta a preocupação dos vereadores pelotenses com o contingente de escravos, principalmente nesse contexto inicial de estruturação do aparelho burocrático, administrativo e coativo da localidade. Essa preocupação com o contingente de escravos vem sempre atrelada à questão dos conflitos internos do Estado Oriental e da possibilidade de interferência de emissários estrangeiros na escravaria pelotense. Ambos elementos se coadunam e potencializam os perigos de uma ação conjunta de escravos e estrangeiros contra a hegemonia escravista local. Todas as referências relativas às possíveis “seduções” ou “incitações a rebeldia” por parte dos estrangeiros junto à escravaria local vem à tona sob a forma de boatos. É perceptível a amplitude e presença dos boatos nas sociedades baseadas em regimes escravistas. As notícias de conspirações escravas (em grande escala), mesmo que na maioria das vezes consistissem apenas em boatos ou ações não concretizadas de fato, são processos que permeiam tanto Cuba quanto o Brasil, como no registro da preocupação dos senhores e MOREIRA, Paulo R. S. Seduções, boatos e insurreições escravas no Rio Grande do Sul na segunda metade dos oitocentos. Op.cit., p.11. 21 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 265 administradores locais da região de Guamacaro (Cuba), de uma possível conspiração escrava, que acabou não tomando proporções maiores em 183022 ou nos exemplos das suspeitas de conspirações escravas na província do Rio Grande de São Pedro no decorrer do séc. XIX 23. A habitual preocupação com o contingente de escravos, só aumentou com a boataria que rondava as autoridades locais de que o Estado Vizinho havia mandado emissários seus para revoltar a escravatura. Em caso de êxito estrangeiro a possibilidade de acontecer uma revolta escrava em grande escala era grande e conseqüentemente seria “desastrosa” para as autoridades locais e para a “ordem pública”, pois a proximidade das charqueadas fazia com que os mais de 4.000 escravos que habitavam a região ficassem quase unidos, além de estarem a poucas léguas do núcleo urbano. O contingente de escravos era temido enquanto conjunto. Os cativos individualmente também eram motivos para preocupação, porém sua “força maior”, na perspectiva das autoridades locais, se encontrava no seu conjunto, na “união” e “contato” dos mais de 4.000 cativos, que caso se rebelassem, causariam grande transtorno à ordem pública e ameaçariam diretamente a hegemonia escravista. Esse fato é particularmente sentido pelas autoridades locais na apelação dos vereadores ao presidente da Província para que não envie os guardas nacionais para a fronteira, pois estes seriam os únicos meios de proteção contra qualquer levante escravo. Essa requisição demonstra de certa maneira a falta de estruturação dos aparatos repressivos e de controle dos escravos nessa fase inicial de organização administrativa da então Vila São Francisco de Paula. Essas “deficiências” nos aparatos coercitivos parecem não ser apenas um problema local. Sugere-se, através do exemplo da Revolta dos Malês, o quão despreparadas estavam as autoridades para lidar com revoltas em ampla escala, tanto pela falta de homens, quanto ARREDONDO ANTÚNEZ, C.; HERNÁNDEZ DE LARA, O.; RODRÍGUEZ TAPANES, B. E. Esclavos y cimarrones en Cuba: arqueologia histórica en la Cueva El Grillete. Buenos Aires: Instituto Superior del Profesorado Dr. Joaquín V. González – Centro de Investigaciones Precolombinas, 2012. 23LONER, Beatriz Ana. 1887: A revolta que oficialmente não houve ou de como abolicionistas se tornaram zeladores da ordem escravocrata. História em Revista (UFPel). Pelotas -RS, v. 3, p. 29-52, 1997.MAESTRI, Mário. A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST, 1984; MOREIRA, Paulo R. S. Seduções, boatos e insurreições escravas no Rio Grande do Sul na segunda metade dos oitocentos. In: Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 5., Porto Alegre, maio 2011. 22 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 266 pelas dificuldades em relação aos armamentos, inclusive alimentação e vestimenta24. A presença do inimigo estrangeiro junto a escravaria demonstra a importância estratégica do escravo não somente para executar o trabalho que enriquecia seus senhores. Sua função era dupla. Ao se evidenciar o temor em relação à possível influência de emissários do Estado Vizinho, salienta-se a questão de que um dos principais meios de atingir a elite política escravocrata brasileira era incentivar os escravos a sublevarem-se, ou seja, os escravos se tornariam o alvo das investidas estrangeiras e, conseqüentemente, seriam uma “arma” poderosa para destruir “internamente” e desestruturar o Estado brasileiro. Essa visão pode e certamente foi alimentada pelas autoridades brasileiras que se ocupavam da fronteira, uma vez que conheciam em detalhes as diversas implicações da guerra civil que tomava corpo no Estado Vizinho e tinham consciência de que uma sublevação em grande escala nos territórios sulinos e, principalmente, em Pelotas, teria resultados desastrosos, devido ao despreparo da estrutura policial e repressiva que se dispunha naquele momento. Os boatos e as notícias da possível interferência estrangeira junto a escravaria local multiplicaram os pedidos por parte dos vereadores ao presidente da Província para reforçar a estrutura de controle e assim realçaram a necessidade de dar maior sustentação ao aparato repressivo que tanto se fazia necessário para fazer frente a qualquer inimigo. Note-se, ainda, que os guardas nacionais, durante a década de 1830, não possuíam armamento suficiente, e muitos dos disponíveis não tinham as mínimas condições de uso25. Essa afirmação salienta ainda mais o despreparo do sistema repressivo que dispunham as autoridades locais nesse período em específico. A boataria parece ter sido uma constante no Brasil escravista, gerando ambientes de tensão e medo. Os “rumores” tiveram papel fundamental para que as autoridades locais e os senhores de escravos estivessem sempre alertas a qualquer possibilidade de revolta ou insurreição escrava. Para os fins deste trabalho, não interessou saber se os emissários do Estado Oriental realmente foram enviados para a Província, por mais que a confirmação dessa informação seja importante em termos MONTEIRO, Victor Gomes. Um inventário do medo. Op.cit., p.94; REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 25 AL-ALAM, Caiuá. A negra forca da princesa. Op.cit., p.76. 24 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 267 explicativos e contextuais. O que se demonstrou mais esclarecedor foi constatar a repercussão que a probabilidade desse acontecimento causou junto às autoridades locais. Conclusões Sob um olhar geral de pesquisa nas Atas da Câmara Municipal de Pelotas é possível afirmar que de certa forma os dispositivos criados pelas autoridades locais visavam em primeira instância o controle dos escravos para além do ambiente das senzalas, uma vez que possuíam intrinsecamente o objetivo (disposição) de regular e em alguns casos tolher as formas de sociabilidade dos cativos nos espaços “públicos” (ou fora do âmbito privado das senzalas e casas senhoriais), como no exemplo da proposta de um vereador da Câmara cujo conteúdo objetivava evitar “jogos de escravos” junto às cacimbas de beber água; ou da normatização da circulação dos cativos no interior da cidade sem bilhete de identificação assinado pelos respectivos senhores ou amos; ou ainda da proposta (negada, mas aventada) de proibição de tabernas ou estabelecimentos junto às charqueadas cujo trabalho fosse realizado por escravos. O arquivamento de documentos, tanto nas ações colonialistas como nos nascentes “Estados-Nação”, são componentes cruciais de “governamentalidade”26. Esta afirmação é bastante relevante para os fins deste trabalho, pois se entende as atas e correspondências da Câmara Municipal de Pelotas como elementos de governamentalidade e dispositivos de poder, pois conferem meios para que determinados sujeitos sociais possam intervir, direta ou indiretamente, na vida da localidade. A respeito dos dispositivos (discursivos ou institucionais) e tecnologias de vigilância que têm por finalidade esquadrinhar o tempo e os lugares, disciplinar os corpos e fazer o ordenamento regulado dos espaços, condutas e pensamentos, cabe evidenciar que compartilho o raciocínio de que esses dispositivos repressivos concedem necessariamente um lugar, no FOUCAULT, Michel. Governmentality. In: The Foucault effect: studies in governmentality. BURCHELL, G; GORDON, C; MILLER, P (eds.). Chicago: University of Chicago Press, 1991. p.87-104. 26 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 268 momento em que são recebidos, ao distanciamento, ao desvio, à reinterpretação, à adaptação e à resistência 27. Em síntese, nesta pesquisa delineei um contexto de preocupação das autoridades locais com os escravos e com os perigos da fronteira para a manutenção do status quo do escravismo pelotense. Mostrei como o medo da rebelião de escravos levou à criação de novos dispositivos de controle e de aparatos repressivos do sistema escravista. Referências bibliográficas ALADRÉN, Gabriel. “Escravidão e hierarquias sociais na fronteira sul do Rio Grande de São Pedro nas primeiras décadas do século XIX: notas iniciais de pesquisa”. In: Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 4., Curitiba, maio 2009. AL-ALAM, Caiuá. C. A negra forca da princesa: polícia, pena de morte e correção em Pelotas (1830-1857). Dissertação de Mestrado. São Leopoldo: UNISINOS, 2007. 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O conflito foi fruto da disputa local pelo poder exercido através das Câmaras e acelerou a emancipação do Paraná da Província de São Paulo. Para compreensão do que estava em jogo neste conflito, analisamos a trajetória política de um integrante da Câmara que esteve envolvido na confusão e que teve um grande peso na disputa pelo poder local. Palavras chaves: Câmaras Municipais, eleições, Brasil Império. Abstract: In this article we analyze a political conflict that occured in São José dos Pinhais, Paraná, in 1852, during secondary elections, for deputy. The conflict was caused by a local dispute for power acted through Councils and speeded up the emancipation of Paraná from the Province of São Paulo. For full comprehension about what was at stake in this conflict, we analyze the political trajectory of a Council member that took part in the tumult and that had great weight in the dispute for local power. Keywords: Municipal Councils, elections, Brasil Império. A s Câmaras Municipais representavam o locus privilegiado do poder local. Para compreender o jogo político nas localidades partimos da análise da trajetória política de um indivíduo que ocupou diversas vezes esse Conselho: Manuel Mendes Leitão. Este português de Coimbra estava desde o início do século XIX atuando na política local e havia exercido diversos cargos governativos e administrativos, além de ter recebido o título de Comendador em 1842. Pretendemos com esse artigo analisar um conflito político ocorrido em São José dos Pinhais, Paraná, em 1 Doutorando, UFPR, bolsista REUNI. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 271 1852. Como cenário temos as eleições municipais e a busca pelo poder através da ocupação de cargos camarários. A elite local estava interessada em desmembrar-se da província de São Paulo. Os argumentos da elite paranaense para a emancipação se centravam em dois aspectos: de um lado, apontavam o papel de fronteira de Curitiba com o Rio Grande do Sul, Argentina e Paraguai; de outro, apresentavam as condições econômicas da vila de Curitiba e assinalavam as relações desta com as regiões mais ao Sul e com a Corte, sendo o porto de Santos uma pedra no sapato.2 O que determinou a emancipação do Paraná foi a disputa entre Conservadores e Liberais, que dominava o campo político brasileiro. Com relação à situação política do período, Ricardo Oliveira diz que “em 1852, os conflitos entre conservadores e liberais explode na Província de São Paulo (...). As eleições de 1849 vencidas pelos liberais foram anuladas em Curitiba. Novas eleições foram realizadas e vencidas pelos conservadores em 1850, quando os liberais denunciaram violências e fraudes”. 3 Nas eleições de 1852 em São José dos Pinhais, onde Leitão possuía sua maior propriedade, ocorreu um tiroteio com vários mortos. Segundo Belato, a emancipação da Comarca de Curitiba teve como finalidade diminuir a importância dos liberais paulistas e criar uma nova Província sob domínio conservador.4 Desta forma, analisaremos o conflito de São José, demonstrando a insatisfação local e como serviu para acelerar o processo de emancipação. Notícias deste conflito chegaram a ecoar na Corte e aponta m para a importância do poder local. Membros da família Mendes Leitão estavam envolvidos no conflito que originou a disputa por cargos de vereança na recém elevada vila. Para compreender plenamente a natureza do conflito devemos transcorrer sobre a política eleitoral e a municipalidade no Império. São José dos Pinhais era uma freguesia subordinada à vila de Curitiba até o ano de 1852, quando se emancipou e teve suas primeiras eleições locais. Foi exatamente nesse ano, durante as eleições secundárias OLIVEIRA, Ricardo. O silêncio dos vencedores. Genealogia, classe dominante e Estado no Paraná. Curitiba: Moinho do Verbo, 2001, p. 145. 3 Idem, p. 146. 4 BELOTO, Divonzir Lopes. A criação da província do Paraná: a emancipação conservadora. Dissertação de mestrado. Departamento de economia, PUC-SP, 1990, APUD: OLIVEIRA, opus cit. 2 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 272 para a Câmara de Deputados, que ocorreu o conflito que repercutiu em diversas regiões e foi tida por muitos como o acelerador do processo de emancipação do Paraná de São Paulo. Manuel Mendes Leitão construiu um poder local com seu campo de atuação na Câmara de Curitiba, o que o permitiu adentrar nos círculos camarários, inserindo-se na elite dos Campos Gerais, a região que englobava Curitiba, Guarapuava e Castro e que fazia parte da 5ª. Comarca da província de São Paulo. Entretanto, sua posição foi construída e fortalecida tendo como base uma outra localidade; e é ali que ele participará de um evento fundamental para a política regional. A disputa de 1852 em São José ocorreu entre representantes do Partido Conservador e do Partido Liberal servindo como um espelho dos conflitos que grassavam o Segundo Reinado. O primeiro presidente de Província do Paraná, Zacarias de Góes e Vasconcelos relatou esse evento: Um tal fenômeno, se não exprime perfeita harmonia e conciliação dos partidos em a nova província, cumpre, ao menos, que fique bem registrado afim de mostrar que aqueles, que, tomando por termômetro, para avaliar a civilização deste povo, os tristes acontecimentos de S. José dos Pinhais em 7 de novembro de 1852, pensaram que os partidos aqui medem-se ordinariamente pela força física, e pleiteiam o triunfo da urna com o bacamarte, caluniam atrozmente a índole e o caráter dos habitantes do Paraná. Haja um pouco de perseverança na encetada carreira de moderação e tolerância, e creio, que, em breve, até os nomes – cascudo e farrapo – que hoje um partido aqui aplica, por escárnio, ao outro, e com que ambos, sem o pensarem, se desairão aos olhos de estranhos, serão riscados do vocabulário político.5 Esse conflito foi o fim de um longo processo que marcou a separação política de São José, a legitimação da classe dominante no poder local e ajudou à emancipação do Paraná, que ocorreria um ano depois. O fato é que à muito tempo os moradores de São José requeriam a sua elevação à categoria de vila. O pedido para a elevação aparece pela primeira vez nas atas da Câmara de Curitiba em 18326, mas a emancipação somente aconteceu vinte anos mais tarde. 5 6 RELATORIO DO PRESIDENTE DE PROVINCIA DO PARANA, 1854: P. 3 Atas da Câmara Municipal de Curitiba, BAMC, vol. XLV. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 273 Com a emancipação, o primeiro passo para a nova vila seria eleger seus representantes, que atuariam na nova câmara. A responsabilidade de tomar medidas para a instalação oficial da nova vila coube à Câmara Municipal de Curitiba que, em sessão extraordinária, realizada no dia 3 de setembro de 1852, expõe uma carta assinada pelo Vice-Presidente da Província de São Paulo. Essa carta apontava que o Juiz de Paz mais votado da Freguesia de São José deveria coordenar a eleição para a escolha dos sete primeiros vereadores da nova vila. A eleição ocorreria no primeiro domingo de outubro de 1852. Os resultados foram apresentados em uma sessão ordinária da Câmara de Curitiba no dia 22 de outubro. Os candidatos mais votados e eleitos foram Manoel Alves Pereira, José Lionel da Silva, José Joaquim Passos de Oliveira, Antonio Joaquim Oliveira Portes, Manoel Mendes Leitão e Francisco de Paula Prestes Branco. 7 O evento que o presidente de província do Paraná relata na passagem acima se refere a eleição que aconteceu na seqüência à de vereadores: as chamadas eleições secundárias, onde seriam escolhidos novos deputados. Essas eleições foram marcadas para o dia 7 de novembro de 1852, mas nunca ocorreram. A descrição dos acontecimentos ficou registrada em um processo que a Câmara de Curitiba, na época responsável pela Freguesia de São José, ficou encarregada de enviar ao presidente da província de São Paulo. 8 Infelizmente não tivemos acesso a esse documento, entretanto, no centenário da emancipação política de São José, em 1953, o deputado estadual Dario Marchesini discursou sobre aqueles eventos. Seu relato é o mais completo sobre esses eventos, já que o deputado realizou uma pesquisa junto ao processo judicial, que pode facilmente ser comparado com outros relatos da época, como jornais e relatórios oficiais. Mesmo assim devemos estar cientes de que se trata de um relato de um político de carreira e não de um historiador. Alguns fatos podem ter sido distorcidos em função da comemoração cívica. Pelo valor descritivo, citaremos o discurso, procurando embasar o discurso com outras fontes: ...não podemos deixar de reparar, nesta oportunidade, grande injustiça que se fez à maior parte destes homens, ao encobrir a verdade dos acontecimentos lutuosos que aqui se verificaram a Atas da Câmara Municipal de Curitiba, BAMC, vol. LVIII, Sessão de 22 de outubro de 1852. É questionável o fato de que a Câmara de Curitiba devesse enviar o processo sobre este evento para São Paulo. 7 8 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 274 sete de novembro de 1852, e de que, direta ou indiretamente, participaram. Era para se realizar naquela data as eleições para deputados. Degladiavam-se os partidos Liberal e Conservador, ou dos Luzias ou Saquarema. À hora marcada, depois de rezada a indispensável missa do Divino Espírito Santo, acorriam os eleitos à Igreja para a votação. Manoel Alves Pereira, o vereador mais votado, Juiz de Paz, e que devia assumir a presidência da nova Câmara, era um dos chefes liberais e, como ele, maioria dos vereadores. Dirigindo-se com alguns votantes à Mesa Paroquial, viu Manoel Alves Pereira interceptada a sua passagem pela força policial e de linha que estacionava à porta da Igreja, sob o comando do cadete Benjamim Pereira de Vasconcelos autoridade local, a mais graduada, não podia Manoel Alves Pereira concordar com tal arbitrariedade e daí estabelecer-se ligeira discussão com o sub-delegado José Olinto Mendes de Sá e seus irmãos, sem que entrasse em acordo. Retirando-se então com os seus correligionários, foi Manoel Alves alvejado pelas costas ali caindo morto. Como era natural, veio o revide incontinente, travando-se uma luta entre os que ali se achavam e o grupo armado. Outros chegaram, e mais outros, e o tiroteio infernal só veio a cessar depois de tombarem mais de 30 pessoas (...) o que se vê claro é que sendo os conservadores politicamente fracos no município, mas contando com a força do pretexto de manter a ordem, enviar de Curitiba um destacamento policial de linha, que postou à frente da Igreja, com o objetivo evidente de amedrontar e evitar, assim, a votação dos adversários. Essa conclusão decorre logicamente do fato de contarem os saqueremas 47 votantes entre os 496 qualificados. É claro, pois, que os luzias não podiam nutrir outro desejo senão o de votar livremente, porque certa era a vitória, ante à grande maioria que mantinham9 Longa passagem, de alto valor descritivo, que aponta os personagens e o palco político. Segundo o deputado, no processo emergem morto o cadete Benjamim e feridas mais sete pessoas do lado dos SÃO JOSÉ DOS PINHAIS, CAMARA MUNICIPAL, 1953, APUD MAROCHI, Maria Angélica. Câmara Municipal de São José dos Pinhais – 150 anos (1853 – 2003). São José dos Pinhais: Câmara Municipal, 2003, p.52. 9 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 275 conservadores. Do lado liberal tombou morto Manoel Alves Pereira, e dezenove pessoas saíram feridas. O relatório do Ministro da Justiça, José Ildefonso de Souza Ramos, aponta que Benjamim Pereira de Vasconcelos havia sido enviado para São José “afim de manter a tranqüilidade pública e de evitar o ingresso de gente armada na povoação, e especialmente na Igreja, como é tão fácil e comum naqueles lugares”.10 A interceptação da entrada na igreja descrita no discurso do deputado de São José se deveu ao fato de que um eleitor, Francisco Franco, estava “armado de hum par de garruchas que trazia à vista”. O Juiz de paz, Manoel Alves Pereira queria que Franco entrasse, e na discussão Benjamim “caiu morto por ser-lhe disparado traiçoeiramente e a queima-roupa, um tiro de garrucha na boca”. O que se seguiu foi o conflito, em que morreram 6 pessoas.11 Nestes dois relatos percebemos dois pontos de vista um pouco diferentes. No primeiro, do deputado de São José, Manoel Alves Pereira é a principal vítima, no segundo, do Ministro da Justiça, os papéis se invertem e é Benjamim Pereira de Vasconcelos que assume o lugar de vítima. De qualquer forma, conflitos como esses ocorreram diversas vezes em diferentes locais. Eram os conhecidos, porém pouco estudados, processos de violência eleitoral.12 Vários ministros do Império apontavam em seus relatórios as agitações nas eleições e a Lei de 4 de maio de 1842, que procurava dar instruções acerca da maneira de se proceder as eleições, tentou abrandar os conflitos através de um sistema eleitoral mais claro e organizado, procurando manter um certo rigor no registro de eleitores.13 Entretanto, não havia um documento que identificasse esse eleitores, e cabia à mesa conhecer a identidade dos votantes. Os partidos Liberal e Conservador procuravam disputar o poder em todos os níveis, desde a vereança local até os deputados que seriam RELATÓRIO APRESENTADO À ASSEMBLEIA GERAL LEGISLATIVA, 1853 Nos registros de óbito encontramos os seis indivíduos que faleceram “no triste conflito que teve lugar nesta vila”, como é referido o acontecimento nos registros: Antonio Franco, pardo liberto; Manoel Alves Pereira; Custodio Teixeira da Cruz; Mathias Pereira do Vale; Matheus Jose, pardo; o cadete Benjamin Pereira de Vasconcelos. REGISTROS DE OBITO. ARQUIVO DA CURIA DE SÃO JOSÉ DOS PINHAIS: 1852. 12 DIAS, Maria Odila Leite. Sociabilidades sem história: votantes pobres no Império, 1824-1881. IN: FREITAS, Marcos Cezar de. (org.) Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2003. 13 FERREIRA, Manoel Rodrigues. A evolução do sistema eleitoral brasileiro. Brasília: Senado Federal, p.173. 10 11 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 276 enviados a Corte no Rio de Janeiro. Segundo Manoel Rodrigues Ferreira, é com o surgimento desses partidos na década de 1830 que as lutas políticas se intensificam: (...) era nos dias de eleição que os adversários se enfrentavam e procuravam ou ganha-las ou tirar a limpo suas questiúnculas (...). No dia das eleições (...) todo o furor antes reprimido explodia, provocando entre os partidos, toda a série de desatinos. Tudo se corrompia nesse dia: mesas eleitorais, autoridades, eleitores, etc. O objetivo era ganhar de qualquer maneira.14 A disputa do poder local, porém, pesava para o lado daqueles que possuíam maior apoio político através de uma rede de alianças, mas tinham que lutar o mais dentro da esfera da legalidade possível. No pensamento dos políticos do século XIX havia três impulsos conflitantes, que se evidenciavam no momento das eleições, como Richard Graham aponta: Primeiro, sabiam que a legitimidade do sistema político estava nos mecanismos que possibilitavam a todos os membros da elite exercerem alguma autoridade, ou a certeza de poder fazê-lo se assim o quisessem. (...) Segundo, sentiam como os alicerces do edifício social eram precários e tentavam consolidá-los, impondo tranqüilidade pública e comportamento ordeiro. Por conseguinte, as eleições não deveriam disseminar violência, pois as dissensões poderiam destampar um vulcão. Terceiro, a liderança numa sociedade hierárquica dependia de demonstrações públicas de lealdade.15 Desta maneira, as eleições deveriam ser honestas e ordeiras, mas o partido governante deveria vencer sempre. “No final, a elite política brasileira resolvia sem problema exercendo um firme controle eleitoral através do uso do clientelismo.” 16 Talvez o abalo dessa ordem foi o que fez com que as notícias do conflito em São José ecoassem em outras regiões, e servissem de exemplo do que não deveria ocorrer em uma eleição. Ibidem, p.168. GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997, p 104 16 Ibidem, p. 105. 14 15 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 277 Através da prática do clientelismo, havia uma repartição da autoridade, com pessoas controlando alguns canais de passagem do poder, que emanava do imperador até o efetivo ocupante do cargo. Graham percebeu que muitas vezes desafiar uma liderança municipal exigiu a formação de um grupo alternativo que levantaria publicamente acusações de fraude eleitoral ou, de um modo mais imediatamente efetivo, usar diretamente a força para derrubar o ocupante do cargo. 17 O resultado de uma eleição durante o Império pode ser compreendido como a conseqüência de uma complicada rede de alianças, que foram sendo confeccionadas ao longo do tempo em tramas políticas diversas. Aqueles que contavam com mais apoio venciam. O que ocorria algumas vezes era que o governo decidia apoiar ou fortalecer uma facção. Foi o que aconteceu com a escolha para suplentes de delegado em Curitiba em 1841 visando evitar conflitos políticos.18 Mas talvez a ação mais forte neste sentido tenha sido a nomeação de certos indivíduos à Comenda da Ordem de Cristo em 1842.19 A lista de pessoas que foram agraciadas com a Comenda foi enviada pelo futuro Barão de Antonina, e representava os principais membros da elite no Paraná. Um desses novos comendadores foi Manuel Mendes Leitão, que desde o início do século XIX vinha participando ativamente na vida política do Paraná. Compreender sua trajetória política nos ajuda a entender o conflito político de São José. Os cargos políticos de Manuel Mendes Leitão Leitão inicia sua vida política em 1808 quando é eleito pela primeira vez para ocupar o cargo de vereador em Curitiba. Outros cargos que Leitão assumiu foram o de capitão de ordenanças, juiz de paz, delegado, juiz de órfãos e sub prefeito de São José. Todos esses cargos são posições de grande poder local, e seu acúmulo representava um enorme controle dos destinos políticos da vila. Analisaremos o poder político presente em cada uma dessas funções. Ibidem, p. 165. AESP. Ofícios diversos - Curitiba. Ofício de Francisco Jose Correa, sobre a indicação de cidadãos para suplente de delegado de Curitiba, pasta 3, caixa 209, ordem 1004, 1843. 19 LEÃO, Ermelino de. Diccionário histórico e geográfico do Paraná, vol. III, Instituto histórico, geográfico e etnográfico paranaense. Curitiba, 1994 [1926], p. 1229. 17 18 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 278 Tabela 1. Cargos desempenhados por Manuel Mendes Leitão Função Ano Vereador 1808, 1829, 1831, 1833,1842 Capitão de Ordenanças 1829 Vice-administrador de São José 1831 Juiz municipal 1833 Juiz de paz em São José 1833 Administrador da estrada do Arraial 1834 Sub-Prefeito em São José 1835 Delegado 1843 Juiz de Órfãos de Curitiba 1842 Fonte: Atas da Câmara de Curitiba, BAMC: 1931. O cargo de prefeito é pouco estudado na historiografia brasileira, até porque teve uma duração bem curta. Foi instituído através da Lei Provincial no. 18, de 11 de abril de 1835.20 Este cargo era de designação do presidente da província, e estava incumbido de comandar a Guarda Nacional, de fiscalizar empregados e receber os ofícios que fossem dirigidos pelos vereadores ao governo; além disso, os prefeitos deviam assistir às sessões das Câmaras e de propor quaisquer medidas para melhorias dos serviços. Segundo esta lei, a vila teria um prefeito, e as freguesias e capelas teriam sub-prefeitos, nomeados pelo presidente de Província. Claramente esta era uma tentativa do poder central de ter maior controle sobre as decisões locais. Entretanto, essa lei foi revogada em março de 1838 pela província de São Paulo. Não possuímos muitas informações acerca das funções próprias do cargo, mas podemos intuir que ele também tinha uma grande importância local, já que Leitão pede demissão do cargo de juiz de paz suplente de São José para entrar no exercício de sub-prefeito em 1835.21 No que concerne ao cargo de Leitão de capitão, Fernando Uricoechea assinala que os corpos de ordenança eram compostos de civis não alistados para as tropas regulares ou as milícias. 22 Essas unidades não recebiam qualquer pagamento e sua ação se dava a nível municipal. Ao Lei Provincial, n. 18, de 11 de Abril de 1835. Promulgada pelo presidente da província de São Paulo, Rafael Tobias de Aguiar. IN: http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1835/lei%20n.18,%20de%2011.04.1835.h tm. Consultada em 06/08/2013. 21 ATAS DA CAMARA MUNICIPAL DE CURITIBA. IN: Boletim do arquivo municipal de Curitiba (BAMC) . 1931, XLVII. 22 URICOECHEA, Fernando. O minotauro brasileiro. A burocratização do Estado patrimonial brasileiro no século XIX. Rio de Janeiro, SP; Difel, 1978, p.110. 20 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 279 contrário das milícias, que também atuavam no Paraná, as ordenanças tinham uma organização local e suas funções extravasavam a atividade militar. Comandadas por um capitão-mor, com subdivisões em companhias comandas por capitães, as ordenanças abrigavam as elites locais, onde os mais altos ocupantes da hierarquia social também ocupavam os postos mais graduados de comando. Quando ocupou pela primeira vez a vereança em Curitiba, em 1808, Manuel Mendes Leitão era alferes de Ordenanças e em 183123 ocupava o posto de Capitão, um dos postos mais altos a nível local. A principal função desses corpos era auxiliar na administração da ordem, o que lhes conferia muito poder. A função de juiz de paz que Leitão exerceu em 1833 em São José, talvez tenha sido uma de suas funções mais importantes em sua trajetória política. Criado em 1827, o juizado de paz alterou profundamente o cotidiano da justiça. Com atribuições administrativas, policiais e judiciais, o juiz de paz acumulava amplos poderes, até então distribuídos por diferentes autoridades (como juízes ordinários, almotacés, juízes de vintena). Seu exercício se relacionava à justiça conciliatória, julgamento de pequenas causas, à manutenção da ordem pública e emprego da força pública, vigiar o cumprimento das posturas municipais, enfim, funções que estavam ligadas à administração, jurisdição e policiamento da freguesia.24 O viajante alemão Carl Seidler, relata em seu livro Dez anos no Brasil, no qual descreve sua viagem entre os anos de 1833 e 1834, que Só os juízes de paz, que são eleitos pelo povo e desempenham suas funções sem qualquer remuneração, gozam de estima pública e quase cega obediência. Seus plenos poderes são amplos, se bem que não possam decidir dos processos desde que a causa exceda ao valor de dezesseis talers, a sua palavra é quase sempre acatada e confirmada pelas instâncias superiores; uma recomendação deles vale por uma sentença.” E prossegue: “Em caso de desordem, todas as forças militares ficam às suas ordens, assim como dispõem integralmente da polícia. Seu distintivo é uma faixa verde-amarela, com a largura da mão, que passa do ombro direito ao Após 1831, com a criação da Guarda Nacional, as ordenanças foram incorporadas a esta corporação, mantendo a mesma hierarquia. 24 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. O município e o regime representativo no Brasil. São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1986, p.193. 23 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 280 quadril esquerdo e atesta sua dignidade judicial.” E conclui: “Mostrando essa faixa num motim ou no mais louco ajuntamento popular, instantaneamente se restabelece a ordem; até o aparecimento de um juiz de paz, com suas palavras severas, amigáveis, tem muito mais influência sobre a massa do que toda a ostentação da força militar.25 Essa citação dá visibilidade ao grau de poder que o juiz de paz possuía. Além disso, o juiz de paz coordenava as eleições municipais. Um cargo imbuído de um poder tão grande gerou constantes conflitos pelo seu acesso. Em Franca, por exemplo, ocorreram distúrbios envolvendo elites locais. Em 27 de setembro de 1838, Anselmo Ferreira de Barcellos, acompanhado de um grupo de pessoas armadas, invadiu a casa do juiz de paz eleito Manuel Rodrigues Pombo, obrigando-o a passar o cargo para o seu suplente. O juiz destituído provocou uma reação armada na qual acabaram mortas quatro pessoas, entre elas o próprio Rodrigues Pombo. O ocorrido, que ficou conhecido como “Anselmada” é exemplar para se perceber como as disputas por posições de poder nas localidades eram conduzidas num período de maior autonomia. Diga-se de passagem que o evento ficou registrado na história da cidade de Franca de uma maneira bastante visível: até hoje, a bandeira da cidade é representada por um homem, à direita, vestido de marrom, com um bacamarte, que representa a figura de Anselmo Ferreira de Barcellos, o líder do levante armado. 26 Na época do conflito de São José, o juiz de paz eleito era Manoel Alves Pereira e, portanto, o responsável pela organização da chamada eleições secundárias, onde seriam escolhidos novos deputados. Alves Pereira foi morto, talvez, porque representava um opositor forte face ao grupo que queria comandar a política local. No ano de 1843 Mendes Leitão é um dos eleitos para o cargo de suplente de delegado em Curitiba. Esta era uma época crítica, em que se desenrolava a Revolução Farroupilha no Sul e revoltas liberais haviam ocorrido recentemente em São Paulo (Sorocaba, Itu, Itapetininga). Curitiba, de certo modo, estava cercada de revoltosos. Segundo ofício de Francisco José Correa, “os suplentes atuais são quase todos de partido exagerado, e SEIDLER, Carlos. Dez anos de viagem no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia: USP, 1980. APUD: BRAGA, Pedro. Crime, pena e sociedade no Brasil pré-republicano. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 40 n. 159 jul./set. 2003. 26 LIMA, Marco Antunes de. A cidade e a província de São Paulo às vésperas da Revolução Liberal de 1842. Relatório de bolsa de iniciação científica, USP, 2001. 25 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 281 por isso não convém a sua continuação”.27 O partido exagerado referido é o Partido Liberal e deveria ser substituído para que não ocorressem revoltas em Curitiba. Os indicados para o cargo de suplentes de delegado foram, nesta ordem, Joaquim Gonçalves Guimarães, o Coronel de Legião Antonio Mauricio da Costa Guimaraens, o major Manoel João da Costa Bittencourt, o Tenente Coronel Ricardo Lustosa de Andrade, o capitão Manuel Mendes Leitão, e Manuel d‟Oliveira Franco. 28 Todos ocupavam posições de destaque na vila de Curitiba e, pelos títulos, percebemos que possuíam prestígio local. Graham aponta que os delegados de polícia eram eleitos pelo poder central, o que freqüentemente gerava conflitos em diversas regiões entre os Conservadores (do lado do poder central) e os Liberais. O mesmo autor ainda diz que “a partir de 1837, quando o café emergiu, dando à nação um novo centro econômico de gravidade, houve um contínuo afastamento do liberalismo da década anterior e uma reação no sentido da restauração do poder do governo central. A instituição, em 1841, dos delegados de polícia nomeados pelo poder central e com ampla autoridade judicial, foi o auge desse processo e continuou sendo a pedra de toque das diferenças subseqüentes entre Liberais e Conservadores”.29 Demonstrando a continuidade do poder da família, um filho de Leitão ocupará a posição de sub-delegado de polícia em São José na época do conflito de 1852. Um chefe de polícia para cada província – em nosso caso São Paulo –, delegados em cada município, e subdelegados em cada paróquia. Estes eram os principais agentes dos presidentes provinciais, que faziam cumprir lei e ao mesmo tempo aglutinavam os interesses políticos.30 O Cargo de Juiz de órfãos, que Leitão exerceu em 1842 em Curitiba, também era um dos mais importantes, conferindo um alto grau de poder a quem o possuía. Eram eleitos ou nomeados e não necessitavam ter formação em direito31. No século XIX seu papel estava ligado aos OFÍCIOS DE SÃO PAULO. Ofício de Francisco Jose Correa, sobre a indicação de cidadãos para suplente de delegado de Curitiba, DAESP, 1943. 28 AESP. Ofícios diversos - Curitiba. Ofício de Francisco Jose Correa, sobre a indicação de cidadãos para suplente de delegado de Curitiba, pasta 3, caixa 209, ordem 1004, 1843. 29 GRAHAM, opus cit, p. 89 30 GRAHAM, opus cit, p. 87 31 “A administração da Justiça ressentia-se de falta de juízes profissionais, o que explica sua morosidade e irregularidade. Contava a Província, em 1858, com dez municípios, vinte freguesias, e com três juízes de direito e seis juízes municipais”. HISTÓRIA do Poder Judiciário no Paraná, 1982: p. 38. Apud: GRAF, Marcia Elisa de Campos, et al. Redescobrindo o 27 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 282 órfãos, assim, cuidava dos diversos processos de partilhas de heranças, inventários e pedidos de emancipação por parte de menores. Um dos processos mais importantes e corriqueiros era o de solicitação de tutela. Isto ocorria quando uma criança se tornava órfã e o juiz de órfãos nomeava um tutor para cuidar dela, caso não houvesse algum nome indicado em testamento. O juiz de órfãos se tornava momentaneamente administrador dos bens do órfão, e mesmo após a escolha de um tutor, ele continuava a supervisionar a gerência dos seus bens. 32 Com a Lei de Terras, o juiz de órfãos assume ainda mais funções na segunda metade do século XIX. O acesso à terra se torna maior, o que acaba gerando uma grande quantidade de inventários, atribuindo um controle temporário de riquezas às mãos do juiz.33 Por ter ocupado estes cargos, além de ter recebido o título de comendador em 1842, Manuel Mendes Leitão se tornou um grande chefe político local. Seus filhos também ocupavam posições de destaque, herdando o prestígio do pai. Na época do conflito de 1852, seu filho José Olinto Mendes de Sá, era sub-delegado e um dos principais envolvidos. Com a morte de um vereador eleito, outro filho de Leitão assume o cargo, juntamente com o pai, o que tornava a força política da família Mendes ainda mais poderosa. Conclusão Em 1858, quando Robert Ave-Lallemant viajou pelo Paraná, as notícias sobre o conflito que ocorrera em São José, seis anos antes, ainda estavam vivas. O viajante alemão escreve que “as eleições para o Senado e a Câmara dos Deputados são apaixonadíssimas, têm dado ocasião a conflitos sangrentos. Em São José, uma simples aldeia, houve há poucos anos um conflito político, no qual, dentro e perto da igreja, foram assassinadas poder judiciário paranaense: o acervo do poder judiciário paranaense trabalhado a partir de oficinas. IN: http://www.pr.gov.br/arquivopublico. 32 AZEVEDO, Gislane Campos. Os juízes de órfãos e a institucionalização do trabalho infantil no século XIX. IN: Arquivo do Estado de São Paulo: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao27/materia01/tex to01.pdf. 33 LIMA, Carlos A. M. Índios de Palmas expostos em Campo Largo, preação, resgate e os ecos da lógica do tráfico de escravos (Paraná, décadas de 1830 e 1840). In: Colóquios. Revista do Colegiado de História da Faculdade de Filosofia – FAFIUV. União da Vitória, v. 1, n. 1, novembro/2007, pp. 12-29. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 283 dez pessoas e, ao intervir a força armada legal, foram feridos mais vinte homens".34 A disputa pelo poder desgastava diversas regiões do Brasil em meados do século XIX. As Câmaras Municipais representavam o locus privilegiado do poder local. Eram nelas que se reunia a categoria dos homens bons e onde eram tomadas decisões que afetavam a vida econômica, social e política de uma região. Houve constantes redefinições das atribuições camarárias ao longo do século XIX, mas isso não culminou em um esvaziamento por parte das elites, que continuaram a disputar as eleições para o cargo de vereador. Os processos de violência eleitoral são um exemplo disso, onde grupos opostos utilizavam da força para obter uma colocação nas Câmaras. Há muitas outras facetas para se analisar em conflitos como esses, mas optamos por um fio condutor que nos possibilitasse perceber a formação do poder de maneira mais circunscrita. A análise da trajetória política de um indivíduo nos ajuda na compreensão do funcionamento das Câmaras por “dentro”, já que conseguimos visualizar sua atuação nessas instituições. A escolha pelo estudo da trajetória de Manuel Mendes Leitão se mostrou profícua no sentido de que este indivíduo navegou por várias esferas do poder local. Ocupou diversos cargos e estabeleceu alianças, que o ajudaram na sua ascensão social. De alferes de ordenanças no início do século, se torna comendador “sendo a segunda pessoa da lista dos homens bons e bem estabelecidos da Comarca”35 no ano de 1842. Através da política, estes “potentados locais” procuravam defender uma estrutura social baseada no clientelismo e em ações paternalistas, onde esperavam angariar a maior quantidade de apoio político que conseguissem. Também fazia parte de suas ações a projeção do poder adquirido para a geração seguinte. A participação na política por parte desses indivíduos visava manter uma rede de dependentes e clientes além de conseguir obter medidas que fossem favoráveis as suas atividades econômicas.36 AVE-LALLEMANT, Robert. 1858, viagem pelo Paraná. Curitiba: Fundação Cultural, 1995, p 73 35 LEAO, Ermelino. Dicionário histórico e geográfico do Paraná. Curitiba, 1994, p. 1229 36 GRAHAM, Richard. O Brasil em meados do século XIX à guerra do Paraguai. IN: BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina: da Indepedência a 1870, vol III. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Imprensa oficial do Estado; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2004, p 806. 34 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 284 Manuel Mendes Leitão se esforçará na disputa pelo governo da Câmara, utilizando-se inclusive de pressão. Não sabemos com certeza qual seu objetivo ao se envolver no conflito, mas com a morte do candidato mais votado, Leitão passa a ocupar a posição de presidente da Câmara e um de seus filhos assume a vereança. Esse seria um dos últimos atos políticos deste potentado, que estava dando continuidade à permanência da família Mendes no poder. Referências documentais ATAS DA CAMARA MUNICIPAL DE CURITIBA. IN: Boletim do arquivo municipal de Curitiba (BAMC) . 1931, Vols. LVIII, XLIV, XLV, XLVII. AVE-LALLEMANT, Robert. 1858, viagem pelo Paraná. Curitiba: Fundação Cultural, 1995. LEAO, Ermelino. Dicionário histórico e geográfico do Paraná. Curitiba, 1994. OFÍCIOS DE SÃO PAULO. Ofício de Francisco Jose Correa, sobre a indicação de cidadãos para suplente de delegado de Curitiba, DAESP, 1943. RELATORIO APRESENTADO A ASSEMBLEIA GERAL LEGISLATIVA, 1853. IN: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1844/000003.html, consultado em 06/08/2013 RELATORIO DO PRESIDENTE DE PROVINCIA DO PARANA, Zacarias de Góes e Vasconcelos. 15 de julho de 1854. IN: http://brazil.crl.edu, consultado em 06/08/2013. REGISTROS DE OBITO. ARQUIVO DA CURIA DE SÃO JOSÉ DOS PINHAIS: 1852. Referências bibliográficas AZEVEDO, Gislane Campos. Os juízes de órfãos e a institucionalização do trabalho infantil no século XIX. IN: Arquivo do Estado de São Paulo: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao27/materia01/te xto01.pdf. BELOTO, Divonzir Lopes. A criação da província do Paraná: a emancipação conservadora. Dissertação de mestrado. Departamento de economia, USP, 1990 CARNEIRO, David. História da emancipação do Paraná. Curitiba, Instituto de Pesquisas históricas e arqueológicas, 1954. DIAS, Maria Odila Leite. Sociabilidades sem história: votantes pobres no Império, 1824-1881. IN: FREITAS, Marcos Cezar de. (org.) 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Rio de Janeiro, SP; Difel, 1978 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 286 O ordenamento do espaço urbano na corte imperial O caso dos “inconvenientes” quiosques frequentados por “gente grosseira” (décadas de 1870-1880) Juliana Teixeira Souza 1 1 Resumo: O tema principal desse artigo são as polêmicas sobre os quiosques instalados nas freguesias urbanas do Rio de Janeiro, entre as décadas de 1870 e 1880. A proposta é abordar os conflitos entre a câmara municipal, o governo central, empresas privadas e pequenos comerciantes sobre os locais de instalação desses quiosques. O tema também permite discutir questões relacionadas aos comportamentos dos trabalhadores pobres nos espaços públicos, objetos de preocupação, vigilância e controle por parte dos governantes. O objetivo central é debater as questões relacionadas ao ordenamento do espaço urbano, de modo a evidenciar que a Câmara Municipal do Rio de Janeiro manteve sua vitalidade política, preservando o poder de tomar decisões sobre variados aspectos da vida cotidiana da cidade. Palavras-chave: Câmara Municipal, ordenamento do espaço urbano, quiosque Abstract: The main theme of this article is the discussions on the kiosks installed in urban parishes of Rio de Janeiro, between the 1870s and 1880s. The proposal is to approach the conflict between the municipal chamber, the central government, private companies and small traders about the locations of installing these kiosks. The theme also allows discussing issues related to the conduct of the working poor in public spaces, objects of concern, surveillance and control by governments. The central objective is to discuss issues related to spatial urban, to evidence that the Municipality of Rio de Janeiro maintained its political vitality, preserving the power to make decisions on various aspects of everyday city life. Keywords: municipal chamber, ordering urban space, kiosk Doutora em História Social pela UNICAMP, Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Campus Natal – RN). 1 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 287 Introdução2 A administração imperial é um dos temas mais tradicionais da historiografia brasileira, mas percorrendo as páginas de estudos clássicos e trabalhos mais recentes dedicados ao tema se percebe que as discussões relativas às câmaras municipais no período imperial pouco aparecem. E quando essa instância é mencionada, no geral, os estudiosos se limitam a reforçar a ideia de que as municipalidades estavam subordinadas a outras esferas do governo, difundindo a imagem dos governos locais sendo esvaziados de poder e autoridade. Esse enfoque aparece em Os donos do poder (1958), em que Raymundo Faoro analisa o Regresso Conservador enfatizando a anulação das autoridades locais, afirmando que “a liberdade – isto é, a autonomia das influências locais – estava morta”.3 Em 1962, Sérgio Buarque de Holanda, escreveu que a “nulificação dos corpos municipais” inseria-se no quadro mais amplo de desagregação da herança colonial. 4 E a exclusão das municipalidades do jogo político nacional é reforçada em estudos mais recentes, como o empreendido por Miriam Dolhnikoff em O pacto imperial (2005), no qual afirma que a subordinação das municipalidades ao governo provincial seria mantida até o regime republicano.5 Há estudos em que a ideia dos governos locais submetidos às autoridades provinciais ou ligadas ao poder central é questionada, ou abordada de maneira a não desqualificar os grupos que atuam nessa instância como sujeitos políticos. Mas quando esses estudos tratam do município da Corte, a ênfase é na sua subordinação ao Paço. Em Teatro de sombras, resultado da tese de doutoramento de 1975, José Murilo de Carvalho considera que a imagem de um Estado centralizador, excessivo e opressor atribuída ao regime monárquico fosse em parte ilusória, pois a Este artigo baseia-se em minha tese de doutorado em história, A autoridade municipal na Corte imperial: enfrentamentos e negociações na regulação do comércio de gêneros (1840-1889), apresentada à Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em 2007, e financiada pelo CNPq e FAPESP. 3 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. São Paulo: Globo, 1993, p. 334. 4 HOLANDA, Sergio Buarque de. A herança colonial – sua desagregação. In: HOLANDA, S. B. O Brasil monárquico. 1. O processo de emancipação. História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1976, p. 24-26. 5 DOLHNIKOFF, M. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Ed. Globo, 2005, p. 205. 2 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 288 burocracia imperial “não alcançava as municipalidades e mal atingia as províncias”. Mas a respeito daquilo da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, o cientista político avalia que a burocracia do Estado “agigantavase” na Corte, onde a centralização política do poder se fazia mais efetiva. 6 Nesse sentido, a atuação da Câmara Municipal do Rio de Janeiro poderia ser deduzida em função de sua localização, na cidade sede do governo central. Esse aspecto é reforçado por Ilmar de Mattos em O Tempo Saquarema (1986), ao considerar que nas freguesias urbanas da Corte “se localizavam as instituições e instalações que tornavam possível a reprodução dos interesses dominantes: o Paço, o Senado, a câmara dos Deputados e a Câmara Municipal”. 7 A Câmara Municipal do Rio de Janeiro perderia, assim, qualquer perspectiva de autonomia, sendo definida como mera extensão do governo central. Nos estudos aqui mencionados se verifica que a história política do Brasil Império foi e continua pautada, sobretudo, na perspectiva dos dominantes, elegendo o poder central e/ou o governo provincial como ponto de referência privilegiado para a investigação histórica. Ainda que a documentação produzida nessas esferas possam trazer pistas sobre o modo de pensar e as formas de agir dos homens que atuavam nas câmaras, é preciso confrontar esses dados com outras fontes, especialmente a documentação produzida na esfera municipal. Então, para acrescentar novos elementos a esse debate, consideramos necessário alargar o campo de análise, colocando o governo local e a documentação produzida pela administração municipal em primeiro plano, para focar na rotina administrativa da instituição camarária, acompanhando os debates em torno da delimitação de suas atribuições e capacidade de intervenção governativa. 8 Considerando especificamente o caso da Câmara Municipal do Rio de Janeiro durante o Segundo Reinado, pretendemos discutir os conflitos instaurados entre a vereança, o governo central, empresas privadas e pequenos comerciantes sobre questões relacionadas ao ordenamento do espaço urbano. O Regimento das Câmaras publicado em 1828 mostra que CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: elite política imperial; Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 418. 7 MATTOS, Ilmar de. O tempo saquarema: a formação do Estado imperial. Rio de Janeiro: HUCITEC, 2004, p. 90. 8 A referência para a formulação desse segundo problema foi o artigo de Maria de Fátima Gouvêa, em que se analisa os conflitos jurisdicionais entre a municipalidade e outras instituições administrativas. Ver: GOUVÊA, Maria de Fátima. Poder, autoridade e o senado da câmara do Rio de Janeiro, ca.1780-1820. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, pp. 111-155. 2002. 6 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 289 as competências exercidas pelas municipalidades durante o regime monárquico se concentravam fundamentalmente em três eixos: regulamentação da economia local, implantação de políticas de saúde pública e ordenamento do espaço urbano. Não por acaso, essas três dimensões correspondem ao que Magnus Roberto de Mello Pereira (PEREIRA, 2001) identificou como as atribuições tradicionais do direito de almotaçaria, exercido pelas câmaras municipais portuguesas desde o final do período medieval, que no seu dizer se definem como o controle do mercado, do sanitário e do edificatório. De acordo com o Regimento das Câmaras de 1828, competia às câmaras municipais deliberar sobre “os meios de promover e manter a tranquilidade, segurança saúde, e comodidade dos habitantes; o asseio, segurança, elegância, e regularidade externa dos edifícios, e ruas das povoações, e sobre estes objetos formarão as suas posturas”. No caso do município da Corte, essa confirmação era atribuição do Ministério dos Negócios do Império. No artigo que ora apresentamos, o ordenamento do espaço urbano será abordado por meio dos conflitos envolvendo a instalação de quiosques nas freguesias urbanas da Corte. Os quiosques eram pequenos pavilhões instalados nas principais ruas, praças e largos das freguesias do município, e que durante décadas fizeram parte da paisagem urbana. Com essas construções abriu-se uma nova frente de investimento, a baixo custo, para os pequenos comerciantes que não tinham recursos suficientes para comprar ou alugar um estabelecimento comercial. Mas os quiosqueiros e sua clientela foram alvos de muitas críticas, como as que aparecem em O Rio de Janeiro do meu tempo (1938), do memorialista Luiz Edmundo. Para ele: “O quiosque, excrescência do passado, de veria desaparecer, de qualquer forma, bem como todos os processos vexatórios de que lançavam mão alguns interessados na exploração dos mesmos”. 9 Por disponibilizavam seus produtos por preços mais baratos, assim como as tavernas e botequins, os quiosques eram frequentados por trabalhadores pobres que, antes de ir ao trabalho ou em suas horas de lazer e descanso, gostavam de beber café ou alguma “bebida espirituosa”, faziam batucadas, falavam e gargalhavam alto, cantavam modinhas e dançavam lundus. Divertiam-se, enfim, sem guardar os modos recomendados pela chamada “boa sociedade”. 10 O problema era que, no meio da rua, expostos aos olhares EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado federal, Conselho Editorial, 2003, p. 318. 10 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema, p. 122-141. 9 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 290 públicos, a clientela dos quiosques atraia a atenção dos passantes, fosse pela sua maneira de se vestir, pelo barulho das conversas, pelo comportamento tido como inadequado e ou pelas eventuais confusões que pudessem protagonizar, gerando conflitos que se arrastaram por décadas.11 Por conta disso, além das questões referentes ao ordenamento do espaço urbano, relacionadas às decisões sobre onde instalar os quiosques, o tema também gerava discussões sobre os comportamentos dos trabalhadores pobres nos espaços públicos e suas formas de ocupar o tempo ocioso, objetos de preocupação, vigilância e controle por parte dos governantes. Por meio da abordagem desses conflitos, o objetivo é evidenciar que a Câmara Municipal do Rio de Janeiro manteve sua vitalidade política, preservando o poder de tomar decisões sobre variados aspectos da vida cotidiana da cidade. Das conveniências e inconveniências dos quiosques Em maio de 1874, o ministro do Império encomendou à Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro um “plano geral para o alargamento e retificação de várias ruas desta capital e para a abertura de novas praças e ruas, com o fim de melhorar suas condições higiênicas e facilitar a circulação entre seus diversos pontos, dando ao mesmo tempo beleza e harmonia às suas construções”. 12 A Comissão era formada por engenheiros notáveis, mas seu projeto de reforma urbana não foi executado, como tantos outros surgidos ainda naqueles tempos em que a cidade ainda guardava muitos traços dos tempos coloniais. De todo modo, interessa-os notar que um dos membros da Comissão de Melhoramentos foi o engenheiro Francisco Pereira Passos, figura bastante conhecida da história do Rio de Janeiro justamente pelo “bota-abaixo” que promoveu na época em que foi prefeito do Distrito Federal, entre 1902 e 1906. 13 Pouco tempo depois de participar da Comissão, Pereira Passos foi nomeado diretor da Estrada de Ferro D. Pedro II, cargo que ocupou entre 1876 e 1880. Durante sua gestão, por mais de uma vez ele entrou em conflito com CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 172-175. Relatório do Ministério dos Negócios do Império Apresentado em Maio de 1875. Primeiro Relatório da Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro. Documento disponível na página: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1702/000697.html. 13 BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussman tropical. A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1990; e ROCHA, Oswaldo Porto. A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro. 1870-1920. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995. 11 12 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 291 a vereança, discordando dos critérios utilizados pela instituição camarária na definição dos locais em que seriam assentados os quiosques. Alguns pavilhões foram colocados no entorno da ferrovia, contrariando seu ponto de vista, aliás compartilhado com outros funcionários da Estrada de Ferro, como o engenheiro James W. Wells, responsável pelas obras que foram realizadas na Estação Marítima. Em 22 de julho de 1879, Pereira Passos recebeu um comunicado expedido pelo engenheiro James W. Wells informando sobre a colocação de novos quiosques na região, que no seu ver impediam o trânsito livre nas ruas. James W. Wells afirmou: “Está fora dos limites desta Estação e eu não podia proibir o assentamento do referido quiosque. [...] peço pois a Vossa Excelência para tomar providências, a fim de evitar quanto for possível a colocação inconveniente destes quiosques nas imediações desta Estação”. 14 Além dos quiosques estarem sendo colocados fora dos limites da Estrada de Ferro, Pereira Passos e James W. Wells não tinham competência para suspender o assentamento ou ordenar a remoção dos pavilhões. Essas eram atribuições da Câmara Municipal, também responsável por cuidar do trânsito das ruas, mantendo-as livre de qualquer embaraço, problema com os qual eles se mostravam igualmente preocupados, ainda que também estivesse fora da alçada dos engenheiros. Na verdade, há indícios de que eles já haviam tentado demover os vereadores de sua decisão de assentar aqueles quiosques nas proximidades da Estrada de Ferro, mas sem sucesso. Ao menos foi isso que Pereira Passos deu a entender em ofício encaminhado ao Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, a quem apelou na expectativa de angariar algum apoio mais consistente na queda de braço que vinha travando com a instituição camarária. Muito embora Francisco Pereira Passos fosse um profissional de grande prestígio junto ao governo imperial, os vereadores se mostraram vigorosamente dispostos a não ceder em favor de sua empreitada contra os quiosques. No ofício encaminhado ao ministro, Pereira Passos afirmou: Resultando da colocação de tais quiosques muitos e graves inconvenientes para o serviço desta Estrada, como por vezes representei com relação aos que, apesar do compromisso da Ilustríssima Câmara para removê-los, continuam em frente à Estação Central, dei ordem para que se procurasse evitar o assentamento ali dos ditos quiosques, mas a 14 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-20, 22 de julho de 1879. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 292 Ilustríssima Câmara tem autorizado esse assentamento, impondo-o até por meio dos seus agentes. Venho, portanto, rogar a Vossa Excelência se digne providenciar para que se não continue a colocar quiosques junto às estações da Estrada, e sejam removidos os que já existem, os quais, além de oferecerem muitos outros inconvenientes, dificultam o trânsito de veículos e pessoas a pé, que é sempre muito grande em certas horas do dia nas proximidades das estações. 15 Parece evidente que, para os engenheiros Pereira Passos e James W. Wells, a instalação de quiosques não convinha ao bom o ordenamento do espaço público, como parece claro que essa opinião não era compartilhada pelos engenheiros da Diretoria das Obras Municipais, encarregada de determinar os locais onde os quiosques seriam colocados. Cada qual se mostrava comprometido com os interesses da instituição à qual estava vinculado, mas naquela disputa a situação estava mais favorável aos agentes da municipalidade, que ao fim das contas tinham a prerrogativa de decidir sobre o ordenamento do espaço público e à regulação das atividades econômicas locais. Em 1879, quando a queixa de Pereira Passos foi feita, havia três quiosques assentados nas imediações da Estrada de Ferro D. Pedro II. Quando ele deixou o cargo, os quiosques ainda estavam no mesmo lugar, 16 atestando a autoridade da Câmara. Mas é importante destacar que mesmo contando com algum apoio da Câmara e da companhia responsável pela construção dos quiosques, a posição dos locatários não era das mais confortáveis. Além de enfrentar os ataques de seus concorrentes e a desaprovação dos agentes de outras instâncias do poder, os locatários ainda tinham que driblar as reclamações da vizinhança, muitas vezes incomodada com as cenas que se passavam no entorno dos pavilhões. Como o diretor da Estrada de Ferro D. Pedro II, havia muita gente insatisfeita em ter um quiosque próximo a sua moradia ou local de trabalho, fosse pela intensificação da concorrência local ou pelos transtornos causados pela clientela atendida nos balcões dos pavilhões. A concorrência era composta por donos de “frege-moscas”, tavernas e botequins também frequentados por trabalhadores pobres, cujo AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-20, 24 de julho de 1879. ALMANAK administrativo, mercantil e industrial da Corte e província do Rio de Janeiro inclusive a cidade de Santos, da província de São Paulo para o ano de 1882. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1880, p. 908-910. 15 16 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 293 comportamento não primava pela moderação. Mas a clientela dos quiosques estava mais exposta aos olhares e à censura dos passantes e das autoridades do governo, responsáveis por fazer os diversos setores da sociedade guardarem os bons modos recomendados pela “boa sociedade”. Era uma tarefa difícil de ser executada, pois quando a freguesia dos quiosques incomodava a vizinhança, as reclamações costumavam se referir ao alarido das conversas, pelo vocabulário por demais espontâneo, pelas perturbações causadas pelos ébrios e pela falta de pudor em sua conduta, conforme observamos neste requerimento enviado para o presidente da Câmara Municipal em 23 de abril de 1881. Diz D. Felicia Isabel do Amaral Cardoso, inventariante dos bens do seu casal por falecimento do seu marido Francisco Gomes Cardoso que achando-se um quiosque no Largo do Depósito, em frente ao seu prédio na Rua Senador Pompeu n. 80 que faz esquina, com o dito Largo, e tendo sido o quiosque colocado tão junto à calçada e tão em frente a uma das portas, a ponto de muitas vezes o ajuntamento impedir a entrada, para o armazém, e as cenas imorais que praticam seus frequentadores, proíbem as famílias que ocupam os sobrados a chegarem às janelas, o que faz, com que o dito sobrado esteja sempre desalugado. 17 A referência a “ajuntamento” de pessoas protagonizando “cenas imorais” era frequente nas acusações dirigidas contra os clientes dos quiosques. Em muitos dos pedidos remetidos à instituição camarária, a moral e os bons costumes foram invocados com o propósito de reforçar a legitimidade e a procedência dos requerimentos, até porque a Câmara procurava assegurar a aprovação dos munícipes ao seu governo evocando esses valores. Mas na medida em que a colocação dos quiosques na cidade fora uma iniciativa da Câmara, os vereadores não poderiam endossar esse discurso sem comprometer seu próprio governo. E como desimpedir a entrada do armazém de D. Felicia Isabel do Amaral Cardoso não constava entre as preocupações prioritárias da Câmara, o quiosque do Largo do Depósito também permaneceu onde estava. 18 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-20, 23 de abril de 1881. ALMANAK administrativo, mercantil e industrial da Corte e província do Rio de Janeiro e do município de Santos, da província de São Paulo para o ano de 1882. Rio de Janeiro: H. Laemmert & C., 1882, p. 400. 17 18 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 294 Por outro lado, em decisões como esta também pesavam interesses financeiros O estabelecimento dos quiosques gerou uma nova fonte de rendimentos para a câmara, que autorizou seu assentamento nos pontos mais concorridos da cidade, sem que o governo local precisasse assumir despesa com esse empreendimento, encargo que ficou sob responsabilidade de uma companhia privada. A Câmara atribuiu a uma empresa privada o direito de executar e explorar comercialmente uma construção que posteriormente deveria ser entregue à administração municipal, estando de acordo que a realização dessa operação exigiria a utilização do espaço público, num contrato que não trazia nenhum risco de perda para os cofres municipais. É importante destacar que a despeito das queixas serem apresentadas pelo diretor da Estrada de Ferro D. Pedro II ou por uma viúva de comerciante, a vereança não prescindiu da manutenção dos quiosques, que representavam uma fonte segura de receita para a instituição. Ademais, os vereadores poderiam alegar que vinham prestando um relevante serviço à população, proporcionando oportunidade de trabalho aos pequenos comerciantes e oferecendo gêneros a preços acessíveis para os trabalhadores. No entanto, não havia dúvidas de que os maiores lucros auferidos por essa operação ficassem com a Freitas Guimarães & Cia., posteriormente substituída pela Companhia Industrial Fluminense, responsáveis pela construção e exploração dos quiosques, e à Câmara Municipal, que somente recebia o aluguel pago pela companhia e os impostos devidos pelos locatários. Como tantos outros, o pavilhão localizado em frente à Câmara do Senado, próximo ao portão do jardim do Campo da Aclamação, também gerou protestos. Em 30 de março de 1882, eles recorreram à Câmara solicitando sua remoção, alegando que seu entorno se tornara “foco de vagabundos e desordeiros quer de dia, quer de noite proferindo-se as palavras mais obscenas que pudera haver a ponto das famílias não poderem chegar as suas janelas [...] como melhor poderá informar o Comandante da Estação do 1o Distrito da Freguesia de Santana, e o Administrador do Jardim”. 19 Como se vê, o repertório de acusações era o mesmo, recorrendo-se sempre aos valores da moral e dos bons costumes, que ganhavam maior ênfase na medida em que a má conduta da clientela atendida pelo quiosque era atestada e condenada por dois distintos funcionários públicos, que assinaram a petição junto com outros sete 19 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 30 de março de 1882. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 295 moradores daquela vizinhança. O peso que os comerciantes conferiram ao testemunho desses funcionários, que no seu ver representavam o olhar do poder, também evidencia que entre a população se estendia uma rede de vigilância e disciplina, visando tanto o exame cuidadoso do espaço quanto a normatização e o controle do conjunto social, o que demonstra que não eram apenas os agentes repressores do governo, como a polícia e os fiscais da municipalidade, que procuravam impor normas aos hábitos e costumes da população. 20 Entretanto, como a opinião daqueles funcionários públicos não tinha o mesmo valor que os pareceres emitidos pelas autoridades efetivamente encarregadas de vigiar a população e corrigir sua conduta, antes de deliberar sobre o assunto, a Comissão de Praças pediu informações sobre o caso ao fiscal Thomaz Joaquim Francisco, que relatou: Em virtude do respeitável despacho exarado pela Excelentíssima Comissão de Praças relativamente ao quiosque que se acha em frente a Câmara do Senado cumpre-me informar a Vossas Excelências que passando amiudadas vezes por este lugar, nunca observei grupos de vagabundos e desordeiros reunidos junto a este quiosque, que muito menos proferindo palavras obscenas, e informando-me do guarda municipal do distrito a respeito tive deste a mesma resposta, mandando o mesmo guarda ao Porteiro da Câmara dos Senadores a fim de informarme do que soubesse a respeito, obtive em resposta ser verdade que junto a este quiosque tem havido algumas vezes aglomeração de pessoas, porém são estas os cocheiros dos carros dos Senadores, que aí vão fazer algumas despesas, e que destes mesmos nunca ouvia proferir palavras obscenas. A vista pois do que passo a estender e achando-se este quiosque colocado em lugar marcado e licenciado pela Ilustríssima Câmara em nada embaraçando aos transeuntes, me parece que nenhuma vantagem trará a sua remoção porem a Ilustríssima Câmara em sua alta sabedoria resolverá como melhor entender. 21 Então, aqueles indivíduos que os comerciantes chamavam de Sobre o olhar vigilante do poder, ver: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977; e FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 209-227. 21 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 30 de Março de 1882. 20 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 296 vagabundos, de acordo com a averiguação feita pelo fiscal, eram trabalhadores a serviço de alguns dos mais destacados políticos do Império. Logo, se aqueles homens se reuniam em torno do quiosque, não era para provocar desordem, mas sim para passar o tempo, beber alguma coisa ou comprar um cigarro, enquanto os senadores prosseguissem em suas sessões. Sob essa perspectiva, o locatário do quiosque e seu estabelecimento não traziam prejuízo algum à ordem pública, nem tampouco à moral e aos bons costumes. Corroborando a opinião emitida pelo fiscal, junto aos papéis relativos ao caso havia um documento informando: “Nós abaixo assinados atestamos que o Senhor Gonçalo Barreiro Marques, dono do quiosque da Rua do Areal esquina do Campo de Santana tem merecido nossa estima como bom vizinho e negociante capaz”. Então se seguiam quatorze assinaturas de pessoas que moravam próximo ao quiosque e que, possivelmente, deveriam fazer parte da clientela atendida pelo locatário Gonçalo Barreiro Marques. Evidentemente, nem toda cidade estava empenhada na cruzada lançada pelos donos dos estabelecimentos comerciais da cidade contra os quiosques. Sua clientela poderia não dispor de muitos recursos, mas era fiel e numerosa, assegurando algum apoio aos locatários nas ocasiões em que se dispusessem contra a vizinhança ou a concorrência local, assim como o retorno financeiro de seu modesto investimento. Garantido também era o lucro da Companhia Industrial Fluminense, que numa cidade dividida em lotes exploráveis, pareceu decidida a arrendar todos os espaços ainda disponíveis do perímetro urbano. Para tanto contavam com a colaboração da Câmara e seus funcionários, empenhados em salvaguardar essa importante fonte de receita para os cofres municipais. Mas para isso era preciso resistir à pressão imposta pelo corpo de comerciantes e pela vizinhança, que não se conformavam com os prejuízos e o incômodo causados pelos quiosques e sua animada freguesia. Os pareceres técnicos como fator de governabilidade Nas ocasiões em que as críticas à instalação dos quiosques foram mais intensas e as pressões para a retirada dos pavilhões dividiram os vereadores, eles procuraram resolver suas diferenças recorrendo aos pareceres emitidos pelos bacharéis de Engenharia, que ocupavam os cargos técnicos na administração municipal. Havia casos de, num primeiro momento, nem todos os homens de governo se conformarem com as decisões propostas por esses profissionais. Mas em geral prevaleceu o REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 297 consenso de que objetar as críticas dirigidas à instituição camarária, assim como persuadir a opinião pública da validade dos seus juízos, exigiria menor esforço se a vereança assegurasse que as resoluções sobre os locais de assentamento dos quiosques eram tomadas a partir de critérios técnicocientíficos. Desta forma, os vereadores procuravam conferir um caráter neutro às suas deliberações, legitimando seu governo de maneira mais adequada às exigências da nova ordem econômica que se instaurara naquele mercado. Mas as reiteradas negativas aos pedidos de remoção de quiosque não impediam que outros queixosos recorressem aos antigos valores morais para justificar suas solicitações. Em 15 de novembro de 1881, o presidente e mais vereadores da cidade receberam um pedido assinado por oito proprietários de estabelecimentos comerciais localizados no início da Rua da Misericórdia, onde estes exigiam da municipalidade uma ação mais dura contra os frequentadores dos quiosques, que eles classificavam como bêbados e desocupados. Aqui também é interessante perceber que, desde que lhes parecessem convenientes e se restringissem aos seus adversários, os comerciantes não viam qualquer inconveniente em requisitar o olhar vigilante e a intervenção repressiva das autoridades governamentais na regulação das atividades do setor varejista. Confirmando essa disposição, o requerimento dizia: Os abaixo assinados, proprietários, negociantes, e moradores da Rua da Misericórdia, entre a Rua da Assembléia, e o Arco do Paço Imperial, vêm com o devido respeito representar a Vossas Senhorias contra a colocação que hoje se está procedendo de um quiosque para esse lugar. Os Suplicantes chamam a atenção de Vossas Senhorias para as contínuas e repetidas cenas que constantemente se reproduzem nos quiosques colocados em outros pontos, que quase sempre tornase necessária a intervenção policial, pela aglomeração de ébrios e vagabundos que nesses pontos fazem reuniões, deixando-se ouvir os vocabulários dignos deles, e indecente para as pessoas que se considera, e muito mais para serem ouvidas pelas famílias. Sendo esse lugar junto ao Paço Imperial e quase em frente da entrada da parte que hoje é ocupada pelo Ministério da Agricultura, um dos pontos mais concorridos pela alta sociedade, não só nos dias de cortejos no Paço Imperial, como nas reuniões do Instituto Histórico, Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 298 que por ali é sua entrada. Pedem respeitosamente os Suplicantes com suas famílias nesse lugar, vêm-se na difícil posição de obrigá-las a não gozarem das janelas de suas casas, pela colocação que se está efetuando do dito quiosque debaixo das mesmas. Confiando os Suplicantes nos nobres procedimentos de Vossas Senhorias e nas qualidades que os caracterizam, esperam o melhor êxito desta representação, fazendo assim inteira justiça. 22 Para descrever as cenas que se passavam nos quiosques, os comerciantes recorriam a um repertório de acusações que há muito era empregado pela polícia para justificar suas incursões em lugares ditos suspeitos, como lupanares, casas de jogos, estabelecimentos que vendiam bebidas alcoólicas e outros locais de divertimento e socialização, onde os trabalhadores pobres se reuniam em seu tempo de folga. Os balcões dos quiosques espalhados pela cidade também serviam como ponto de encontro das pessoas que desejavam beber um trago antes de ir para casa, jogar conversa com algum estranho ou pessoa de seu convívio, sem se preocupar com a conveniência de seus modos ou suas palavras. Por isso, o discurso em defesa da moral e dos bons costumes encontrava na freguesia dos quiosques um dos seus alvos preferenciais. De acordo com o requerimento, os comerciantes da Rua da Misericórdia não desejavam que as janelas de suas residências dessem vistas às reuniões dessas pessoas, que a seu ver mantinham um comportamento absolutamente reprovável. Não se pode descartar a possibilidade desses homens estarem genuinamente preocupados em resguardar suas casas e suas famílias da desordem das ruas, mas é importante observarmos que, ao fim das contas, eles não pedem qualquer reforço da ação policial naquele local. Isso significa que eles não desejavam que aquelas pessoas fossem corrigidas, que fossem trazidas à ordem e obrigadas a se comportarem decentemente. Eles queriam que o quiosque fosse sumariamente retirado do local, quer por considerar que aquelas pessoas eram incorrigíveis, quer por considerar essa medida mais conveniente ao bom andamento dos seus negócios. Isto no caso da permanência do quiosque no local também estar desvalorizando seu ponto de venda. Por outro lado, é interessante notar o cuidado que os comerciantes tiveram em chamar a atenção dos vereadores para a inconveniência das 22 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 15 de novembro de 1881. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 299 cenas passadas nos quiosques se repetirem num espaço em que a “boa sociedade” e o poder constituído se faziam tão presentes. De fato, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro era frequentado por políticos e letrados intimamente comprometidos com a consolidação do poder do Estado, destacando-se pelo apoio ao regime e pela fidelidade ao Imperador, seu principal mecenas. O Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas cuidava das principais atividades econômicas do país, de vital interesse para a elite dirigente nacional. Já o Paço Imperial era a principal sede administrativa do governo, o centro do poder, muito embora o imperador tivesse transferido para a Real Quinta da Boa Vista as audiências públicas e outras cerimônias oficiais. Tendo isso em conta, era mesmo de se esperar que os governantes demonstrassem maior empenho na execução de políticas públicas de controle social naquele trecho da cidade, onde circulavam figuras eminentes da alta sociedade fluminense. Como Ilmar de Mattos afirmou: “onde o Governo do Estado se apresentava com o máximo de sua força, a desordem não podia ser representada”, 23 o que significava, que nas freguesias mais concorridas da cidade sede do poder central era imperativo manter uma vigilância cerrada sobre os vadios e os desordeiros, a fim de evitar qualquer possibilidade de insurreição da malta urbana. E era precisamente neste ponto que os comerciantes da Rua da Misericórdia fundavam a expectativa de ter seu requerimento deferido. Como afirmou E. P. Thompson, se o Estado sempre tenta impor valores ao conjunto social, seu êxito depende de certa congruência entre as regras e visão-de-mundo impostas pelos governantes e as necessidades materiais dos indivíduos sobre os quais incide. 24 O pedido dos comerciantes foi enviado para a Diretoria de Obras “com urgência”, conforme assinalado em nota marginal ao documento. 25 Em princípio, parece que os vereadores estiveram inclinados a deferir o requerimento, pois antes mesmo da Diretoria de Obras se pronunciar a respeito, a Secretaria da Câmara já havia emitido um despacho solicitando que fossem tomadas as devidas providências para que o quiosque fosse transferido para outro local. No entanto, essa decisão não foi executada pelo Engenheiro do 3º Distrito, Tito Barreto Galvão, cujo parecer sobre o MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema, p. 217. THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 194. 25 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 17 de novembro de 1881. 23 24 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 300 problema foi apresentado numa outra sessão da Câmara Municipal, realizada alguns meses depois, em 17 de fevereiro de 1882. Ele justificou sua decisão da seguinte forma: Parece-me que não é atendível a reclamação junta contra a existência de um quiosque da Rua da Misericórdia, por diversas circunstâncias. Em primeiro lugar o quiosque de que se trata é um dos que estão mais bem colocados, não só porque não embaraça de modo algum o trânsito público, como também porque acha-se situado entre o arvoredo aí plantado de modo a não prejudicar como os outros quiosques, justamente pela sua colocação, a beleza da cidade. Em segundo lugar se a posição em que se acha o quiosque, em frente a casas de negócio, não é própria para a existência deles, ainda menos outro qualquer local em frente a moradias de famílias. Quanto ao mau procedimento de pessoas que freqüentam o mesmo quiosque, julgo que o recurso mais natural a que deveriam ter recorrido os reclamantes era a policia. Faço estas considerações porque, tendo a representação um despacho do Secretário mandando que se providenciasse sobre a mudança do quiosque citado, não encontrei, a vista do que disse acima, melhor posição do que aquela em que atualmente se acha, todavia aguardo a decisão da Ilustríssima Câmara como a mais acertada. 26 As considerações feitas pelo engenheiro Tito Barreto Galvão não se harmonizavam com os valores evocados pelos comerciantes no requerimento enviado à Câmara Municipal. A preocupação do engenheiro era de que os quiosques fossem assentados em locais onde houvesse grande concorrência de pessoas e também pudessem ornar a via pública, mas de forma a não prejudicar o fluxo das pessoas e nem o tráfego de carroças, seges, tílburis e bondes. Sendo assim, na visão do engenheiro, as únicas questões a serem levadas em consideração eram, no dizer da época, o melhoramento e o embelezamento da cidade. Quanto ao mau procedimento dos frequentadores dos quiosques, como o engenheiro fez questão de assinalar, o procedimento mais adequado seria encaminhar o caso à polícia, instituição responsável pela manutenção da ordem pública. 26 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 17 de fevereiro de 1882. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 301 Ao fim das contas, o que ele desejava era convencer os vereadores que sua decisão fora a mais acertada, precisamente por ser ele o profissional habilitado a emitir juízos sobre o ordenamento do espaço público. O decreto n. 3001 de 9 de outubro de 1880 determinou que os cargos técnicos na administração pública só poderiam ser preenchidos por profissionais que apresentassem título acadêmico, ainda que há muito esse critério já fosse utilizado em várias repartições públicas. A Câmara Municipal do Rio de Janeiro, vinte anos antes já vinha privilegiando a contratação de bacharéis de engenharia na Diretoria das Obras Municipais, sendo esses os funcionários encarregados pela emissão dos pareceres referentes ao assentamento dos pavilhões. Tendo em vista seu lugar de fala, para o engenheiro Tito Barreto Galvão os comerciantes não seriam capazes de avaliar melhor do que ele quais os locais mais apropriados para a colocação dos quiosques, pois os leigos não tinham acesso aos saberes que lhe capacitavam a emitir tais juízos. Apesar de inicialmente ter tomado outra resolução, a instituição camarária aprovou a proposta engenheiro Tito Barreto Galvão, 27 mantendo o quiosque que incomodava os negociantes da Rua da Misericórdia. Vale esclarecer que os engenheiros da Diretoria de Obras atuavam apenas como um corpo consultor, cabendo exclusivamente aos vereadores decidir sobre a conveniência de conservar ou remover os quiosques que se tornavam objetos de discórdia. Concorrendo com as opiniões dos engenheiros da municipalidade, nas decisões da vereança pesavam ainda os interesses de outros grupos de agentes e a pressão de outras instâncias normativas, como a exercida pela clientela e vizinhança dos quiosques, os munícipes que a câmara deveria representar. No entanto, justamente nas ocasiões em que era mais difícil preservar a autoridade da Câmara e conciliar os interesses em jogo, os pareceres técnicos se consagravam como um importante fator de governabilidade, orientando o ordenamento do espaço público. Mais importante que garantir o apoio dos grupos insatisfeitos com o assentamento dos pavilhões nas proximidades de suas propriedades, era resguardar as atribuições da municipalidade, defendendo a todo custo seu direito de decidir, ordenar e se fazer obedecer na regulação das atividades econômicas locais e no ordenamento do espaço urbano. Era preciso ter cuidado para que o encaminhamento dado aos pedidos de remoção dos quiosques não comprometesse a autoridade e a capacidade de intervenção 27 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 2 de março de 1882. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 302 governativa da Câmara Municipal, não obstante também fosse preciso certificar-se que os pedidos indeferidos não prejudicassem certos grupos de interesse, com os quais a vereança mantinha laços mais estreitos. Com tantos elementos a serem tomados em consideração, a situação poderia ficar ainda mais complicada quando os próprios vereadores encontravam dificuldades para chegar a um consenso sobre qual a maneira mais apropriada de encaminhar os requerimentos analisados em suas sessões. Verificamos isso num caso que teve início em 15 de dezembro de 1884, quando o presidente e mais vereadores receberam um requerimento da firma Vianna & Cia., localizada no Largo da Sé, solicitando a remoção do quiosque que fora instalado em frente ao seu estabelecimento dias antes. Eles alegaram que a medida “muito lhes prejudica”, já que os quiosques eram publicamente conhecidos como ponto de reunião de “indivíduos nem sempre bem intencionados, que afugenta a freguesia, e intercepta completamente a vista do estabelecimento”. 28 No mesmo dia os vereadores receberam um outro requerimento, desta vez assinado por doze comerciantes, pedindo a retirada do mesmo quiosque que importunava Vianna & Cia. As razões enumeradas pelos donos destas casas comerciais foram as seguintes: 1a. O quiosque está de tal forma colocado tão próximo aos trilhos da Companhia de São Cristóvão e aos da Carris Urbanos, que é de prever a facilidade de desastres para os transeuntes. 2a. É sabido que as pessoas que se reúnem em volta de quase todos os quiosques, são na maior parte gente grosseira, que usando uma linguagem na altura de sua educação, obsta as famílias de chegarem a janela, sendo também notório que muitas pessoas se afastam de tais grupos, isto é, do lugar onde se ajuntam esses grupos, com o receio muito natural de ser por eles ofendidos, e esse afastamento muito prejudica os interesses comerciais dos abaixo assinados. 3a. Esse quiosque foi colocado tão rapidamente e tão cedo, que é uma prova de que não tinha licença para colocar em tal lugar, como ficou provado com a intimação que o Senhor Fiscal da Freguesia do Santíssimo Sacramento fez ao locatário do referido quiosque, mas, este indivíduo desrespeitando a Autoridade, faz garbo do seu procedimento. 29 28 29 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 15 de dezembro de 1884. AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 15 de dezembro de 1884. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 303 Chama atenção a tática utilizada pelos comerciantes, que optaram por indicar a proximidade do quiosque com os trilhos da Companhia de São Cristóvão e da Companhia Carris Urbanos como a primeira de suas justificativas para a retirada do quiosque. Possivelmente, na opinião dos comerciantes, eles teriam mais chances de ter seu pedido atendido caso conseguissem convencer a instituição camarária que de alguma forma aquela remoção também beneficiaria as concessionárias. Isso evidencia que, ao menos para a população, não havia dúvidas de que os interesses dessas empresas fossem tomados em consideração pela vereança, exercendo grande influência na definição da sua política de regulação das atividades econômicas locais e ordenamento do espaço urbano. Por outro lado, ao mencionarem os riscos causados pela proximidade entre o quiosque e os trilhos dos bondes, os comerciantes procuravam sugerir que a retirada do pavilhão também contribuiria para o bem-estar de toda comunidade e que, portanto, aquela ação não fora movida apenas por interesses financeiros. Seus interesses particulares aparecem no segundo item do requerimento, que repete o argumento que já havia sido apresentado por Viana & Cia. sobre os prejuízos acumulados em consequência da conduta dos frequentadores dos quiosques, que espantaria sua freguesia. Numa referência marcada por atributos pejorativos, não é difícil perceber a origem social daquelas pessoas, nem tampouco os motivos que levaram os comerciantes a considerar que sua clientela procuraria manter distância dos locais de convívio daquela “gente grosseira”. Como há muito o discurso produzido pelas elites dirigentes vinha sendo objeto de grande difusão e consumo, a lógica que orientou a avaliação feita por eles parece ter sido a mesma que induzia as autoridades governamentais a identificar as “classes pobres” como “classes perigosas”, 30 como se estas fossem invariavelmente sujeitas a todo tipo de vício, o que as tornava temidas e indesejadas. Para reforçar a legitimidade do seu pedido, os comerciantes informaram à vereança que o quiosque não possuía a competente licença para funcionar naquele local. E isso, diziam eles, era asseverado pelo fiscal daquela freguesia. Se esse dado fosse confirmado, o pedido de remoção do pavilhão estaria amparado pelo direito legal, reforçando a expectativa que tinham de ver a administração da justiça sendo-lhes favorável. Em sua A adoção desses conceitos no Brasil foi analisada em: CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 20-29. 30 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 304 opinião, era dever dos governantes se postar ao lado daqueles que cumpriam com suas obrigações perante o Estado e a justiça, mantendo seu negócio funcionando mediante a concessão das respectivas licenças e pagando os tributos exigidos pelos governantes. Como cumpridores de seus deveres, eles esperavam contar com a proteção da Câmara Municipal, que não deveria permitir que a porta de seus estabelecimentos fosse embaraçada pelo funcionamento de um comércio irregular. O pedido foi analisado pela Comissão de Saúde e Praças, cujas ponderações em princípio giraram em torno da primeira razão apontada pelos comerciantes, relativa à proximidade do quiosque com os trilhos dos bondes. O Dr. João Pereira Lopes, afirmou: O quiosque estabelecido no Largo da Sé esquina da dos Andradas torna-se ali impossível, visto como colocado ser o canto de uma rua estreita e de muito trânsito a toda a hora do dia e da noite, e onde cruzam-se duas linhas de bonde – a da Companhia de São Cristóvão e a de Carris Urbanos –, embaraça o trânsito público, além de que pode dar lugar a constantes e reiterados desastres, pelo povo que se ajunta e aglomera sempre em volta dos quiosques, que deve por todas as formas evitar-se. Acresce ainda mais que removido do lugar onde se achava e que muitos menos transtornos e inconvenientes causava, não pode nem deve por fortes razões ficar no lugar em que hoje se acha, tanto mais porque se acha no Largo da Sé lugar mais apropriado e onde o proprietário do quiosque pode como aqui auferir grandes vantagens. Assim pensando somos de opinião que esse quiosque deve ser quanto antes mudado para o Largo da Sé, entre as ruas de Uruguaiana e Andrada no ponto que o fiscal acha e julga mais apropriado. Sala das Sessões da Câmara Municipal em 17 de Dezembro de 1884. 31 Das razões expostas pelos comerciantes, a única explicitamente tomada em consideração foi a primeira, que habilmente jogava com os interesses das concessionárias dos serviços de transportes urbanos, a quem interessava impedir aglomerações perto dos trilhos. Isso não significa que o Dr. João Pereira Lopes não estivesse genuinamente preocupado com a possibilidade de ocorrerem desastres naquele local, mas confirma a importância conferida pela municipalidade aos interesses dessas empresas 31 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 17 de dezembro de 1884. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 305 nas decisões sobre o ordenamento do espaço urbano, e evidencia o quão foi acertada a estratégia escolhida pelos comerciantes. Entretanto, ao propor o deferimento do pedido, o Dr. João Pereira Lopes abriu margem para outro problema, que era definir um novo local para a instalação do quiosque. Sobre isso, ele recomendou apenas que fosse ouvida a sugestão do fiscal da freguesia. Mas antes de verificar a sugestão do fiscal, vejamos o segundo parecer assinado pelo Dr. João Pereira Lopes, desta vez em parceria com o Dr. Alexandrino Freire do Amaral, outro membro da Comissão de Saúde e Praças. Este também foi proferido no dia 17 de dezembro de 1884, referente ao requerimento impetrado por Vianna & Cia. Na opinião desses vereadores Já havendo dado nosso parecer em uma outra petição sobre o mesmo assunto, o que bastaria para dispensar-nos de o fazer nesta, contudo devemos dizer que deve ser deferida esta por ser de inteira justiça: o quiosque em questão não pode nem deve continuar no lugar em que se acha visto como impede o trânsito público, embaraça a vista e o negócio dos Suplicantes, que onerados de impostos devem ter toda ou mais garantia que o proprietário do quiosque, e finalmente porque a Câmara não poderá ter dado licença para colocar-se aquele quiosque na esquina de uma rua estreita, como a dos Andradas. Assim, pois, somos de parecer que esse quiosque deve ser mudado para outro lugar dessa Praça, onde menor incômodo cause ao público. 32 Neste ofício os vereadores endossam uma ideia difundida entre os comerciantes, que julgavam mais merecedores da proteção da Câmara aqueles que pagavam maiores tributos, o que lhes garantiria grande vantagem em caso de litígio com seus concorrentes diretos mais frágeis. Portanto, a instituição camarária reconhecia que os comerciantes tinham todo direito de reclamar da desvalorização de seu pondo de venda e dos prejuízos acumulados pela instalação irregular de um quiosque nas imediações de seus negócios, e se prontificava a atender sua solicitação. Tomada essa decisão, restava decidir onde colocar o pavilhão. Não haveria qualquer dúvida em se conferir esta tarefa aos fiscais 32 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 17 de dezembro de 1884. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 306 da municipalidade, como sugeriu o Dr. João Pereira Lopes, desde que a proposta tivesse sido apresentada algumas décadas antes, quando eles eram os principais encarregados de informar à vereança sobre a vida cotidiana da cidade, sugerindo soluções para os diversos problemas enfrentados pela administração municipal. No entanto, muita coisa mudou ao longo da segunda metade do século XIX, principalmente na organização e funcionamento do governo municipal. Para dimensionarmos melhor esta mudança, vale informarmos que em 1845 a Câmara Municipal era composta por 9 vereadores, dos quais 6 possuíam título nobiliário e 3 eram médicos. Além dos fiscais de freguesia, havia cerca de 35 funcionários, distribuídos entre a Contadoria, Comissão de Obras, Comissão de Marinas, Instituição Vacínica, Secretaria e Tesouraria. Em 1884, ocasião em que o Dr. João Pereira Lopes emitiu seu parecer, a Câmara era composta por 21 vereadores, que atuavam nas Comissões de Fazenda, Justiça, Obras, Saúde e Praças, Instrução, Matadouro e Redação. Dentre eles apenas três possuíam título nobiliário, enquanto 13 eram médicos. Nesse tempo, a municipalidade contava com mais de 60 funcionários, que trabalhavam na Aferição, Conservação de Jardins e Praças, Contadoria, Diretoria de Obras Municipais, Necrotério, Secretaria, Tesouraria e Tombamento. E isto sem contar com os fiscais de freguesia, os médicos do partido, e os funcionários da agência de gado e do matadouro de Santa Cruz. 33 O pessoal dobrou, a máquina burocrática se tornou mais complexa e surgiram novas funções que passaram a responder às mais recentes necessidades da administração municipal. Isto pode ser observado pelo número significativo de médicos e engenheiros ocupando cargos técnicos, para serem consultados pela vereança antes da tomada de qualquer decisão em matérias específicas, particularmente no que dizia respeito à saúde pública e ao ordenamento do espaço urbano. Por conta disso, os outros membros da Comissão de Saúde e Praça, Dr. Alexandrino Freire do Amaral e Dr. Joaquim José da Silva Pinto, fizeram uma ressalva ao parecer expedido pelo Dr. João Pereira Lopes, afirmando que “compete à Diretoria de Obras indicar o local mais conveniente onde deve ficar colocado o quiosque”. Ou seja, na opinião deles, competia aos engenheiros da municipalidade decidir sobre essa questão, e não ao fiscal, pois este não dispunha dos conhecimentos técnico-científicos exigidos para resolver o impasse. Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro [Almanak Laemmert], anos de 1845 e 1884. Material digitalizado por Brazilian Government Document Digitization Project do Center for Research Libraries. Disponível em: http://www.crl.edu/content.asp?l1=5&l2=24&l3=45. 33 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 307 Tendo sido consultado, o Engenheiro do 4º Distrito sugeriu “que o melhor ponto para colocar o quiosque é no Largo da Sé, entre a Rua Uruguaiana e o Beco do Rosário, próximo à Igreja [Nossa Senhora do Rosário]”. 34 Mas diferentemente de seus colegas da Comissão da Saúde e Praças, o Dr. Joaquim José da Silva Pinto não concordou com essa proposta, alegando que “a Irmandade do Rosário representou ou vai representar contra a conservação de quiosques junto à Igreja”. 35 Com isso ele trouxe à baila, ainda que indiretamente, a segunda razão apontada pelos comerciantes da Rua dos Andradas para justificar a retirada do pavilhão da proximidade de seus estabelecimentos, que até então não havia sido discutida pelos vereadores: as denúncias de ofensas à moral e aos bons costumes praticadas pelos frequentadores dos quiosques. Para que a decisão da instituição camarária não significasse simplesmente mudar o problema de endereço, o engenheiro do 4º Distrito foi novamente consultado sobre o caso. No entanto, a despeito da ressalva feita pelo Dr. Joaquim José da Silva Pinto, ele manteve sua opinião, se limitando a informar o seguinte: “sou de parecer que pode o quiosque ser removido para o lado oposto da Igreja, em ponto correspondente ao já designado anteriormente”. 36 Diferentemente dos vereadores, que procuravam pesar os interesses dos diversos grupos de agentes que tomavam ou poderiam tomar parte na disputa, o engenheiro da municipalidade examinou apenas as questões estritamente peculiares ao seu conhecimento como perito, não considerando os outros elementos em jogo. Sua decisão chegou a ser aprovada pelos vereadores, mas antes de ser executada, conforme previsto pelo Dr. Joaquim José da Silva Pinto, a Irmandade do Rosário requereu junto à Câmara Municipal a retirada dos quiosques instalados na proximidade da Igreja. O documento, emitido em 30 de Abril de 1885, dizia: Os abaixo assinados Irmãos de cargo da Venerável Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, da Corte, tendo reorganizado o frontispício da sua Igreja vêm respeitosamente, de novo pedir a Vossas Excelências para que se dignem mandar retirar da frente da Igreja, os quiosques, que ali existem, porquanto no ponto em que se acham colocados, AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 2 de fevereiro de 1885. AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 31 de março de 1885. 36 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 9 de abril de 1885. 34 35 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 308 dificultam a entrada dos devotos, e é origem de reunião de pessoas cujos vocabulários são pouco decentes à moral. 37 Ora, assim como os comerciantes zelavam pelo acesso de sua clientela aos seus estabelecimentos, a Irmandade cuidava para que os devotos não tivessem qualquer embaraço no caminho às dependências da igreja. E se o corpo de comerciantes da cidade se incomodava com o vocabulário dos indivíduos atendidos pelos pavilhões, o incômodo dos beatos em seu lugar de devoção não poderia ser menor. Para persuadir os vereadores a atenderem sua solicitação, os irmãos do Rosário tiveram o cuidado de formular seu discurso utilizando os pressupostos paternalistas, como se a remoção do quiosque não atendesse a uma exigência, mas resultasse da concessão de um favor, proporcionado pela generosidade dos vereadores. Na margem do documento remetido pela Irmandade havia dois pareceres. Um deles foi emitido em 19 de maio de 1885 pelo Dr. Manoel Luiz de Moura, que ponderou: “Sendo justo o que requerem os Irmãos da Venerável Irmandade de N. S. do Rosário, queira o Dr. Engenheiro designar o lugar para onde devem ser mudados os quiosques”. Portanto, ele concordava com as razões expostas pelos irmãos do Rosário. O outro parecer foi do Dr. Alfredo Piragibe em 22 de maio de 1885, e afirmava: “Penso do mesmo modo que sobre a petição de Vianna & Cia e outros juntos a esta”. Ele se expressou mais claramente num outro documento, em que dizia: Respeitando, como a minha própria, a probidade administrativa dos colegas que [sic] que me basta para ter a certeza de que o fizeram com ciência e consciência, penso, contudo, que as reclamações do gênero desta devem sempre ir a informar o Fiscal da Freguesia e a Autoridade Policial, como os que mais de perto e constantemente velam sobre o serviço a que ela se refere, e que, se, como é muito provável, os despachos supra forem dados depois de ouvidos aqueles funcionários, mais sabida base, entretanto, terá qualquer deliberação da Câmara a esse respeito, tendo-se sobretudo em vista futuras recriminações, se as informações dos referidos funcionários fossem dadas por escrito para ficarem arquivadas. 38 37 38 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 30 de abril de 1885. AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 22 de maio de 1885. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 309 A despeito do belo intróito em que faz larga deferência aos seus colegas, o Dr. Alfredo Piragibe não hesitou em discordar dos mesmos. Na sua opinião, deveria ser posto em execução um dos procedimentos mais antigos da rotina administrativa municipal, qual fosse, o de consultar os fiscais de freguesia. Ainda que tivessem deixado de exercer muitas de suas antigas atribuições, para o Dr. Piragibe, os fiscais dispunham de um capital que não poderia ser tão facilmente descartado. Este capital fora acumulado pelo fato de serem eles, junto com os policiais, as autoridades que durante décadas vinham se responsabilizando diretamente pela vigilância e regulação da vida dos trabalhadores. No exercício cotidiano de suas funções, eles se tornaram os agentes do governo municipal mais bem informados sobre o que se passava nas ruas da cidade, conhecendo como poucos os seus habitantes e o que se passava nos locais de encontro e convívio do contingente crescente de homens pobres que ocupava as freguesias urbanas da Corte. Na sessão seguinte da Câmara Municipal, o pedido de Vianna & Cia e dos outros comerciantes que haviam solicitado a remoção do quiosque localizado na Rua dos Andradas foi declarado “prejudicado por reclamação do Dr. Piragibe”. 39 Quase um mês depois, o fiscal da freguesia do Sacramento foi comunicado pela Secretaria da Câmara que em sua última sessão a vereança “conformou-se com a localidade designada pelo respectivo Engenheiro de Distrito para ter assento o quiosque que deve ser transferido do canto da Rua dos Andradas cuja localidade é no „Largo da Sé‟, entre a Rua Uruguaiana e dos Andradas em frente à Igreja e do lado oposto”. 40 Em outras palavras, os vereadores atenderam o pedido dos comerciantes e ignoraram o pedido da Irmandade do Rosário, que teria que assistir à colocação de mais um quiosque nas imediações de sua Igreja. Prevaleceu, portanto, a avaliação do perito, que retirando os quiosques de perto dos trilhos dos bondes comprovou a proximidade dos interesses da instituição camarária e das concessionárias de transportes urbanos. A decisão levou ainda alguns meses para ser implementada, e nesse intervalo de tempo os integrantes da Irmandade desistiram de recorrer à Câmara Municipal, e resolveram apelar para a intervenção do governo central, mais precisamente ao Ministério dos Negócios do Império, ao qual a instituição camarária estava subordinada. Eles escreveram ao 39 40 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 20 de junho de 1885. AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 16 de Julho de 1885. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 310 Barão de Mamoré: Tendo esta Irmandade de reabrir o seu Templo por todo este mês, e existindo na frente do referido templo diversos quiosques onde se reúnem indivíduos cuja linguagem indecorosa, repudia e afugenta os irmãos e devotos, que, dirigindo-se ao templo, tem forçosamente de suportá-la, rogamos, por isso a Vossa Excelência, se digne de mandar dar as necessárias providências a fim de que sejam removidos daquele local os aludidos quiosques, que tanto prejuízo tem causado a esta Irmandade. Excelentíssimo Senhor esta Irmandade tendo recorrido à Ilustríssima Câmara Municipal por três vezes e até o presente não tendo tido solução alguma, por isso é que, firmados no caráter justiceiro de Vossa Excelência, como todos o sabem, ousamos acreditar que Vossa Excelência nos atenderá e satisfará nesse pedido, que temos a súbita honra de merecer de Vossa Excelência, a quem Deus Guarde.41 A intenção da Irmandade era estimular a disputa entre o governo central e a municipalidade, com o fim de tirar algum proveito desse embate. O Barão de Mamoré atendeu ao apelo e, poucos dias depois, em 28 de outubro de 1885, os vereadores recebem um ofício do ministro, informando que “Sua Majestade o Imperador manda remeter à Ilustríssima Câmara Municipal, para tomar na consideração que merecer a inclusa representação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito ”. 42 No entanto, se o objetivo da Irmandade era angariar um aliado mais forte para sua causa, a iniciativa tomada pelo ministro não serviu exatamente aos seus propósitos, já que seu ofício se limitara a recomendar aos vereadores que não ignorassem os reiterados pedidos da Irmandade, sem indicar explicitamente se era favorável ou contrário ao seu deferimento. A decisão, portanto, retornava às mãos dos vereadores. A Comissão de Saúde e Praças voltou a se manifestar sobre o caso, afirmando que já havia despachado favoravelmente à representação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, mas que “o parecer, porém, ainda não foi aprovado pela Ilustríssima Câmara, o que certamente se fará em breve”, 43 dando a entender que tudo se encaminharia em favor dos AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 24 de outubro de 1885. AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 28 de outubro de 1885. 43 AGCRJ, Quiosques, cód. 45-4-21, 4 de novembro de 1885. 41 42 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 311 requerentes. No entanto, em 5 de dezembro de 1885, a instituição camarária acrescentou uma nota marginal ao ofício remetido pelo ministério, informando apenas que fora “Prejudicado” o pedido de remoção dos quiosques localizados nas imediações da Igreja do Rosário. Portanto, ainda que alguns vereadores tenham concordado que o comportamento da clientela atendida pelos pavilhões não se adequava às práticas religiosas realizadas no Largo da Sé, causando constrangimento e embaraço aos membros da Irmandade, prevaleceu a decisão do engenheiro do distrito, que havia apontado aquela localidade como o lugar mais apropriado para a colocação dos quiosques. Considerações finais Apesar das reclamações apresentadas pelos comerciantes prejudicados com o aumento da concorrência no setor varejista, apesar das queixas apresentadas por outras instâncias do poder quanto aos embaraços causados pela instalação daquelas construções nos pontos mais movimentados das freguesias urbanas, e apesar do descontentamento da vizinhança com o comportamento da clientela atendida pelos locatários, os quiosques continuaram integrando a paisagem urbana. Além de garantir postos de trabalho aos homens livres e atender as necessidades diárias dos trabalhadores pobres da cidade, pesou o interesse da Câmara Municipal em manter essa fonte segura de rendimentos, proporcionada pelo aluguel anual dos pavilhões, pago pela Companhia Industrial Fluminense, e pelas licenças cobradas aos locatários, sem nenhum ônus para a municipalidade. Face às dificuldades enfrentadas para conciliar as demandas dos diversos grupos de agentes envolvidos na regulação do comércio varejista, procurando sempre evitar o antagonismo aberto com qualquer segmento do conjunto social ou outros setores do governo, a introdução de bacharéis de engenharia no quadro de funcionários da Câmara Municipal proporcionou novas saídas para antigos dilemas. A cada requerimento atendido ou indeferido com base nos pareceres enunciados por esses profissionais, mais do que reconhecer a competência dos engenheiros, a vereança lutava para garantir a preservação dos interesses da instituição camarária. Associando-se a firmas particulares e pautando suas decisões em pareceres técnico-científicos, a Câmara Municipal preservou sua força política e agregou novos elementos ao exercício de sua autoridade, mostrando determinação em continuar emitindo a última palavra sobre a Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 312 organização das atividades econômicas locais. Referências Bibliográficas BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussman tropical. A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1990. CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: elite política imperial; Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. 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Assim, refletindo sobre as questões que perpassaram as reflexões sobre as relações generadas em diversas sociedades, pretende-se demonstrar as intersecções existentes entre ambos os estudos, que historicamente passaram a compartilhar questões comuns com o surgimento dos estudos sobre sexualidade. Além disso, pretende-se delinear as transformações históricas de perspectivas sobre a temática da prostituição ocorridas nesses estudos – que se iniciaram com um discurso sanitarista sobre a prática e atualmente concentram-se em análises sobre os agenciamentos da profissão pelos profissionais do sexo. Palavras-chave: Prostituição. Gênero. Sexualidade. Agenciamento. Abstract: This article aims at tracing a brief historical background of studies of prostitution from the analysis of some relevant and that are references in production on the subject at different times. Thus, it aims to present as gender studies influenced the studies of prostitution and how researchers undertook this theme fruitful dialogues from the incorporation of critical analytical categories of gender. Therefore, reflecting on the issues that Doutoranda em Ciências Sociais no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/ PPCIS pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ UERJ. 1 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 314 permeated the debates on the gendered relations in diverse societies, it is intended to demonstrate the existing intersections between both studies, which historically have come to share common issues with the emergence of studies on sexuality. Furthermore, it is intended to outline the historical transformations of perspectives on the issue of prostitution occurred in these studies - which began with a discourse on the practice sanitarian and currently focus on analyzes of the assemblages of the profession by sex workers. Keywords: Prostitution. Gender. Sexuality. Agency. D esde os estudos “foucaultianos”, se tornou central nas Ciências Sociais a discussão sobre o caráter histórico, contextual e construtivista das relações sociais, fomentada pelos questionamentos vinculados às relações de gênero, tanto no meio científico – social e médico – como nas discussões de senso comum. Os diversos valores que transcorrem as relações humanas não são naturais e nem possuem uma essência, mas se definem historicamente em diferentes contextos sociais. Dessa maneira, as noções sobre sexualidade são multifacetadas dentro de uma mesma cultura quando inserimos variáveis de análise como classe social, faixa etária, etc. Isso sem falarmos da gama de particularidades encontradas quando comparamos culturas diferentes. Os estudos feministas influenciaram fortemente os estudos sobre sexualidade. Mesmo quando no desenvolvimento de ambos havia um descompasso conclusivo das análises, eles empreendiam um diálogo profícuo dentro das Ciências Humanas. Historicamente, os estudos feministas iniciaram-se com os woman’s studies. Esses estudos2 se esforçaram em destacar a presença da mulher na história do Ocidente. Com um forte propósito de contar a história do subordinado, eles se propuseram também a descobrir a origem da dominação masculina e da subordinação feminina. Os estudiosos acreditavam que ao conhecerem as origens e as causas do processo de dominação poderiam quebrá-lo e, dessa forma, por fim a desigualdade que perdurava há milênios. A coletânea de textos presentes no livro “A mulher, a cultura e a sociedade” é um exemplar dessas primeiras análises. Nela, as autoras partem do pressuposto de que em todas as sociedades humanas conhecidas a mulher é subordinada ao homem. O argumento é que, mesmo quando os estudos etnográficos descrevem sociedades em que há uma relação mais Conforme SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, In. Educação e Realidade, v. 20, jul./dez. 1995, Porto Alegre. 2 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 315 igualitária entre homens e mulheres, em nenhuma delas a mulher possui poder publicamente reconhecido e autoridade superior a do homem3. Desse modo, neste livro, as autoras buscam a origem histórica da subordinação feminina e os pressupostos que a fazem compreensível e factual. A conclusão que as autoras chegam, cada uma a seu modo, é que: [...] enquanto a mulher for definida universalmente em termos de um papel amplamente maternal e doméstico, seremos responsáveis por sua subordinação universal. Elaborações de suas funções reprodutoras configuram seu papel social e sua psicologia: elas colorem sua definição cultural e nos permitem compreender a perpetuação do status feminino sem olhar sua subordinação como inteiramente determinada por sua tendência biológica ou sua herança evolutiva4. Entretanto, a despeito das contribuições incontestes desses estudos, ainda possuíam uma “essencialização” do ser mulher e homem, arraigada nos pressupostos biológicos e na universalização da dicotomia público/ privado, cara ao Ocidente. As categorias que constituem as sociedades ocidentais são disseminadas como padrões de análise dos mais diversos povos e sociedades. Não há um apelo à contextualização histórica, social e cultural e nem uma compreensão crítica dos próprios conceitos ocidentais. A separação entre público e privado de abstrata se torna concreta, naturalizada por esses estudos. Dicotomias como natureza e cultura, família e sociedade também são naturalizadas por essas autoras. Assim, a mulher é subordinada ao homem por estar mais próxima da natureza uma vez que gera as crianças, amamentando-as e cuidando-as por um período longo de suas vidas, ausentando-se das esferas publicamente reconhecidas de poder. A categoria gênero foi introduzida buscando tanto um aprofundamento teórico-metodológico de temas e objetos sobre a história e as relações entre homens e mulheres – que até então era narrada dentro da história magistralmente masculina dos grandes eventos –, quanto para indicar o caráter social das relações de gênero, até então essencialmente atreladas à biologia. Desse modo, a troca do termo “mulher” por “gênero” demonstra a intenção de minimizar o termo político para o uso de uma ROSALDO, Michelle & LAMPHERE, Louise. A mulher, a cultura, a sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 190. 4 ROSALDO, Michelle & LAMPHERE, Louise. Op. cit., p. 25. 3 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 316 categoria analítica e conceitual, ao demarcar o caráter socialmente construído das relações entre homem e mulher, desvinculando as análises de termos biológicos. O surgimento da categoria permitiu o refinamento metodológico, capaz de evidenciar novas formas de existência para além do binário homem/ mulher. As feministas norte-americanas foram as primeiras a utilizarem o termo para enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo5. A categoria gênero traz consigo aspectos relevantes comparados ao termo “mulher”: a perspectiva relacional entre as histórias dos homens e das mulheres, visto que pensar a história de maneira generificada é dimensionar as ações de ambos no transcurso histórico e, por isso, estudálos em separado perpetua o mito de que uma esfera, a experiência de um sexo, tenha muito pouco ou nada a ver com o outro sexo 6. Assim, as relações entre os sexos deixam de estar necessariamente vinculadas aos aspectos biológicos. A partir das reflexões das pesquisadoras norte-americanas, surge uma nova conceituação do termo gênero – que será amplamente utilizada por pesquisadores em diversas partes do mundo – e o define como uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado 7. Os estudos sobre sexo e sexualidade utilizam a categoria para desvencilhar a prática sexual dos papéis sexuais atribuídos às mulheres e aos homens8. Os estudos históricos, a partir da utilização desse conceito, seguiram algumas correntes. Os estudos influenciados pelas teorias marxistas que, assim como Engels, relacionavam os meios de produção aos meios de reprodução nas sociedades capitalistas, cuja suposta interdependência entre estes dois sistemas era forjada a partir das explicações sobre as formas produção e reprodução das desigualdades sociais. As relações de produção estariam intimamente ligadas às formas de reprodução da espécie humana no interior das famílias. Dessa maneira, a mulher era subordinada ao homem, da mesma forma que o trabalhador ao capital. Além disso, a diferenciação dos papéis sexuais era colocada na própria origem da sociedade humana. Para as feministas marxistas: família, lares e sexualidades são, no fim das contas, todos, produtos cambiantes das relações de produção9. SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, In. Educação e Realidade, v. 20, jul./dez. 1995, Porto Alegre, p. 72. 6 SCOTT, Joan. . Op. cit., p. 75. 7 SCOTT, Joan. . Op. cit., p. 75. 8 SCOTT, Joan. Op. cit., p. 75. 9 SCOTT, Joan. Op. cit., p. 78. 5 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 317 A teoria psicanalítica também influenciou fortemente vertentes dos estudos feministas. A escola anglo-americana das relações e as pósestruturalistas francesas se empenharam em compreender os processos pelo qual a identidade do sujeito é criada, e centram suas análises nas primeiras etapas do desenvolvimento da criança10. Cada escola, a seu modo, procurava encontrar, no universo infantil, os rastros em que se formavam a identidade de gênero. Enquanto a escola anglo-americana compreendia o processo a partir das experiências concretas das crianças e as relações que elas estabeleciam com seus pais, os pós-estruturalistas enfatizavam a importância da linguagem na construção da representação do gênero. Para a teoria lacaniana, com quem as feministas pós-estruturalistas dialogam, a identidade generificada se constitui através da linguagem. Se o gênero enquanto categoria analítica representou um grande amadurecimento da produção feminista, foram as diversas vertentes de estudos que se seguiram, inspirados nessa categoria, que, por discutirem questões referentes à sexualidade, abriram caminhos tanto para a discussão política de identidades plurais de gênero, como inseriram uma pauta pouco amadurecida: a discussão sobre prazer. Assim, enquanto que os estudos sobre mulher e gênero alargaram espaços de reconhecimento temáticos, políticos e de direitos humanos, são os estudos sobre os grupos GLBTs que mais diretamente hoje discutem sexualidade e prazer. Os diálogos entre os estudos feministas e os estudos de sexualidade se interceptam a partir da influência da teoria psicanalítica, presente em ambos os estudos. A militância das minorias que não se sentiam reconhecidas nas discussões anteriores traz para o debate novas abordagens e discussões acerca do corpo, da sexualidade e do próprio conceito de gênero. Esse conceito – visto pela teoria lacaniana como uma construção ficcional ancorada na linguagem e nos processos de constante construção simbólica do sujeito – é apropriado pelos discursos das minorias como modo de compreensão sistemática do desejo consciente e inconsciente. Os estudos recentes sobre sexualidade nas Ciências Sociais, em particular nas Ciências Sociais no Brasil, têm buscado olhares sobre a temática que extrapolam os discursos biológicos e que dimensionam nas práticas as perspectivas “empoderadas” do prazer e como esse está ligado 10 SCOTT, Joan. . Op. cit., p. 81. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 318 aos diversos aspectos da vida humana. Todavia, para se afirmar isso, é preciso um: [...] esforço de aproximação e compreensão teórica das diferentes possibilidades de construção (e por vezes também de reificação) das trajetórias sexuais, individuais ou partilhadas por determinados grupos de pares que nos conduz a distintos cenários culturais. Estes são permeados por formas de afeto (em suas variantes, incluindo o ideal de amor romântico), pela violência, por diferentes redes de sociabilidade, pelo lugar que a reprodução e a família ocupam no imaginário social e, fundamentalmente, pelo potencial de valorização ou censura que o mundo social exerce sobre cada sujeito11. Por acreditar nesse esforço como válido e fundamental para a compreensão da forma como diferentes pessoas, em diferentes contextos, agenciam sua sexualidade, usam de seus corpos, seduzem, constroem suas fantasias e seus desejos, praticam sexo e estabelecem relações conjugais, que acredito ser necessária a realização de pesquisas sobre o universo da prostituição. Se a escolha do objeto parece óbvia, as relações que essas pessoas estabelecem não são. Como lembra Loyola, na sociedade humana, o sexo constitui, ainda, um instrumento poderoso de criação de vínculos sociais 12. Em um ambiente de prostituição, essa afirmação é amplamente atestada. Contudo, longe de serem similares aos outros vínculos criados pelo sexo em outras esferas da sociedade, em um ambiente de prostituição, múltiplas são as formas de vínculo criadas através e por essa prática. A mesma prática, o ato sexual, cria vínculos diferentes entre garotas de programa e clientes, entre garotas de programas e seus respectivos namorados/ as, cônjuges. O lucro que se obtém a partir dela também não é o mesmo e, dentro de um local de prostituição, se estabelece uma economia da sedução em que as principais moedas de troca são sexo, afeto e dinheiro13. HEILBORN & BRANDÃO, Maria Luiza e Elaine Reis. “Introdução: Ciências Sociais e sexualidade.” In. Sexualidade: o olhar das ciências sociais / organizadora Maria Luiza Heilborn. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 11. 12 LOYOLA, Maria Andréa. “A sexualidade como objeto de estudos das ciências humanas.” In. Sexualidade: o olhar das ciências sociais / organizadora Maria Luiza Heilborn. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar: 1999. p. 34. 13 PEREIRA, Amanda Gomes. “Um bonde chamado afeto”: descrevendo as conexões numa casa de prostituição feminina. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2010. 11 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 319 Nos estudos de sexualidade, um forte pressuposto é de que o prazer está intimamente ligado à história de vida das pessoas como um todo e que, em diversos casos, representa um meio de aquisição de poder. Por isso, acredito ser extremamente válido narrar a forma como os sujeitos agem para consegui-lo e como descrevem as diversas formas de obtenção dele em suas vidas. Negligenciar essa dimensão da vida das pessoas é silenciar uma parte essencial da experiência humana, fonte de alegria e prazer, assim como de sofrimento e dor14. Os estudos de prostituição, produzidos até hoje, são de fundamental importância para atermo-nos aos discursos sobre sexo presentes no cotidiano das pessoas. A perspectiva que tenho é que esses têm apontado, mesmo que não diretamente, para as dimensões da afetividade. Elisiane Pasini15, ao demonstrar que as garotas de programa da Rua Augusta – localizada na cidade de São Paulo, estado de São Paulo – vinculam ao uso do preservativo masculino um demarcador diferencial entre seus relacionamentos afetivos e com os clientes, constatou uma tônica que aparece também em estudos sobre o comportamento sexual de outros grupos sociais: a de que o preservativo representa um “valor” e como tal qualifica as inúmeras relações sociais que as pessoas estabelecem16. Assim, não usando preservativos, elas manifestam uma diferença de sentimentos, em que formam uma hierarquia dos seus afetos (entre os clientes e os não clientes) e, ainda, estabelecem uma prova da sua fidelidade17. ______________. Relações afetivas e laborais em uma casa de prostituição de mulheres. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção. v. 12, n. 35, pp. 566-592, Agosto de 2013. 14 CORNWALL & JOLLY. Andrea e Susie. “Introdução: A sexualidade é importante”. In. Questões de Sexualidade: ensaios transculturais / organizadoras, Andréa Cornwall e Susie Jolly. – Rio de Janeiro: ABIA, 2008, p.30. 15 PASINI, Elisiane. “Corpos em Evidência”, pontos em ruas, mundos em pontos: a prostituição na região da Rua Augusta em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000. 16 Ver PASINI, 2000; HEILBORN, 1999. Maria Luiz Heilborn (1999) realizou uma pesquisa que teve como principal recurso metodológico entrevistas ao estilo “histórias de vida”. Segundo a autora, foram realizadas oitenta entrevistas no decorrer de três anos “entre sujeitos de diferentes inserções sociais, buscando analisar qual é o lugar da sexualidade na construção da pessoa em distintos contextos culturais de uma sociedade complexa e heterogênea.” (HEILBORN, 1999: 40). Comum a todas as mulheres que ela teve contato durante o período da pesquisa foi o paradoxo de que ao mesmo tempo em que elas se mostraram conscientes com relação a Aids, elas também afirmavam não usarem preservativos com seus parceiros íntimos. 17 PASINI, Elisiane. “Corpos em Evidência”, pontos em ruas, mundos em pontos: a prostituição na região da Rua Augusta em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 320 O texto de Elizabeth Bernstein, sobre o significado da compra, trata sobre o comércio sexual pela ótica dos clientes, colocando em evidência questões interessantes sobre a vivência contemporânea da sexualidade por homens das classes média/ média alta residentes nos Estados Unidos. Em seu texto, a autora, a partir dos conceitos de Laumann de sexualidades recreativa e relacional, apresenta estudos sobre as transformações históricas da intimidade. Ao descrever as condutas dos clientes no mercado sexual – tanto frequentadores de casa de entretenimento, como os consumidores de pornografia online –, Bernstein18 classifica essas práticas como definidoras da sexualidade recreativa. Desse modo, seus estudos extrapolam a lógica do consumo sexual e das percepções vinculadas a esse mercado, englobandoos nas análises sobre as mudanças atuais da esfera privada. As transformações demográficas durante esse período, como o declínio das taxas de matrimônio, a duplicação da taxa de divórcio e um aumento de 60% no número de núcleos domésticos unipessoais, vêm gerando um novo conjunto de disposições eróticas, as quais o mercado está bem preparado para satisfazer19. Outro aspecto interessante do texto da autora é a forma como ela descreve os clientes. Eles não representam os otários que devem ser explorados, nem tarados que não conseguem controlar os próprios impulsos sexuais, mas homens com características físicas e sociais “padrões” – profissionais liberais bem-sucedidos, brancos ou amarelos – que estão a procura de entretenimento nos mercados sexuais. A relação entre eles e as profissionais do sexo aparece como um agenciamento de ambas as partes, em que os interesses são negociados, com ambos obtendo ganhos e proveitos. No entanto, ao demonstrar esse aspecto, a autora não descarta a dimensão do poder nessas relações, só não hipervaloriza esse aspecto, que antes de ser qualidade da prostituição perpassa todas as relações sociais. No Brasil, os estudos sobre prostituição podem ser divididos em três eixos de análises: os estudos higienistas ou sanitaristas – produzidos por saberes fora das Ciências Sociais –, os estudos dos anos 80 de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000, p.140. 18 BERNSTEIN, Elizabeth. “O significado da compra: desejo, demanda e comércio”. In. Cadernos Pagu, n° 31: Campinas, 2008. 19 BERNSTEIN, Elizabeth. Op. cit., p. 334 e 335. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 321 influenciados pela Escola de Chicago e seus conceitos sobre desvio, divergência, estigma, e os estudos atuais que preconizam a descrição das práticas e agenciamento delas por parte das garotas de programa. Abaixo traço um percurso histórico sobre os temas trabalhados e a discussão empreendida em cada um desses três eixos. Sobre os estudos sanitaristas há uma profícua produção sobre eles – significativamente produzida pelos historiadores –, bem como uma crítica, da qual me utilizo neste trabalho. Os estudos sobre prostituição no final do século XIX (a partir dos anos de 1840) e no início do século XX (até 1930) são impregnados pelo discurso de médicos sanitaristas que viam na prática um grande mal a ser extirpado do seio social20. Com suas análises moralizantes, esses estudos relatavam os perigos concernentes a essa atividade que colocava em risco valores caros a organização social, como a família e, em particular, o modelo de mãe e esposa. Pela inapetência das autoridades em combatê-la, a prática era vista como um mal necessário. A despeito dos estudos que descrevem a prática como uma profissão – em que mulheres e clientes agenciam seus anseios, desejos, construindo relações de sociabilidade –, as políticas públicas atuais continuam impregnadas dessa visão de “mal necessário”. A própria legislação brasileira sobre prostituição contribui para essa visão da atividade. Nos primeiros estudos etnográficos sobre prostituição, a prostituta era narrada como vítima, mulheres desafortunadas que escolhem a profissão à miséria. Sem recursos para se sustentarem, essas mulheres, após desistirem de um casamento mal-sucedido, encaram a prostituição como o único meio de provê o sustento de seus filhos. Há um discurso padrão que reforça o papel delas enquanto vítimas que elas utilizam em determinadas situações para sensibilizarem os clientes, principalmente nos primeiros contatos. Entretanto, negligenciar as dificuldades por elas vivenciadas é incorrer nos mesmos erros cometidos por outros pesquisadores que aceitaram, sem críticas, seus discursos de vítimas. Claudia Fonseca, ao estudar mulheres de cerca de quarenta anos que se prostituíam em uma praça de Porto Alegre, relata que para elas a vergonha, não era na idade, nem na atividade profissional, mas da pobreza em que, Estudos como os de Soares, 1986, Engel 1989, Rago 1991 conforme apresentados por MAZZARIOL, Regina. Mal necessário: ensaio sobre o confinamento da prostituição na cidade de Campinas. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 1976. 20 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 322 por causa da idade e situação de classe, eram obrigadas a viver 21. No caso dessas mulheres, a pobreza atesta que elas não souberam administrar sua renda de forma a garantir um descanso na “velhice”22. Em uma sociedade profundamente desigual como a brasileira, em que há inúmeras desigualdades de gênero quanto ao acesso a postos de trabalho, bem como aos valores pagos pelo mesmo serviço, a prostituição pode representar uma das poucas opções de se obter dinheiro de maneira imediata, utilizada para o auxílio em momentos difíceis, como no caso do adoecimento de familiares ou na falta de recursos para o pagamento de contas. Segundo Adriana Piscitelli, existem quatro modelos de estatutos legais: proibicionista, abolicionista, regulamentarista e um modelo que ora é denominado trabalhista, laboral, “des-penalização”23. Segundo essa autora, o Brasil adota o modelo abolicionista 24. A adoção desse modelo pelo Brasil é extremamente paradoxal visto que, no país, o exercício da prostituição na rua, de todas as modalidades, é a que elas agenciam de modo mais livre, sem “exploradores diretos”, como os donos de casas de “shows”. Ironicamente, é a prática mais combatida. Diversas cidades brasileiras, na década de 40 sobretudo, foram alvos de legislações que, por medida sanitarista, retiravam as prostitutas das ruas centrais da cidade, obrigando-as a se destinarem a prostituição praticada em cabarés, casas de shows, boites25. Regina Mazzariol demonstrou em sua pesquisa a retirada de prostitutas em Campinas, estado de São Paulo, do local onde trabalhavam e o posterior confinamento delas em bairros afastados da cidade. A autora mesclou a etnografia detalhada à pesquisa com fontes históricas sobre o caso. O objetivo do trabalho era demonstrar a constatação do fenômeno como FONSECA, Claudia. “A Dupla Carreira da Mulher Prostituta”. In: Revista Estudos Feministas, Rio de Janeiro, IFCS / UFRJ – PPCIS / UFRJ, vol. 4, nº 1, 1996, p. 32. 22 FONSECA, Claudia. Op. cit., p. 30. 23 PISCITELLI, Adriana. “Prostituição e Trabalho.” In. Transformando as relações trabalho e cidadania: produção, reprodução e sexualidade / organizadoras Maria Ednalva Bezerra de Lima, Ana Alice Alcântara Costa, Albertina Costa, Maria Bethânia Ávila e Vera Lúcia Soares. – São Paulo: CUT/ BR, 2007, p. 184. 24 Para mais informações sobre o modelo abolicionista, adotado pelo Brasil, ver PISCITELLI, Adriana. “Prostituição e Trabalho.” In. Transformando as relações trabalho e cidadania: produção, reprodução e sexualidade / organizadoras Maria Ednalva Bezerra de Lima, Ana Alice Alcântara Costa, Albertina Costa, Maria Bethânia Ávila e Vera Lúcia Soares. – São Paulo: CUT/ BR, 2007. 25 São vários os nomes dados aos prostíbulos: casa de “striper”, casa de “shows”, casa de massagens, etc. 21 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 323 forma de comportamento e os limites impostos pela sociedade para a continuidade de sua existência26. Assim, segundo a autora, alijadas em um determinado bairro, o fator geográfico serviu para reforçar o “papel social” que elas desempenhavam, delimitando as práticas por elas estabelecidas a um espaço. A expectativa que clientes e frequentadores têm ao caminharem por esse bairro é de estabelecer intercursos sexuais. De uma forma ou de outra, se os estudos de prostituição se atêm ao local em que a prática ocorre é porque nos centros urbanos brasileiros a prática é demarcada e delimitada espacialmente. 27 Isso é comum tanto aos estudos de prostituição feminina como de prostituição masculina.28 Tanto que, em algumas cidades, pontos antigos de prostituição feminina foram ocupados por “travestis” que batalham, é o caso da Lapa no Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro29. Há um confinamento da prática a determinados locais até os dias atuais que reproduz o discurso sanitarista de que tal prática é suja e contamina as relações sociais das outras pessoas tidas como “comuns”. Desse modo, uma das primeiras definições dos trabalhos sobre prostituição no Brasil – na maioria das vezes demarcado no próprio título dos trabalhos –, é onde o trabalho de campo e/ ou estudo da prática ocorre. Nesses trabalhos, as regiões estudadas se caracterizam como desde muitos anos ligadas a essa prática, interligando em suas histórias suas transformações e as mudanças pelas quais passou a prática dessa profissão nesses locais. Assim, como lembra Pasini: As políticas públicas no Brasil, ainda hoje, entendem a prostituição como um “mal necessário” em que o confinamento das mulheres é a principal meta. Ao observar diferentes projetos de leis que transitam no Congresso Nacional sobre esse tema é possível perceber que, apesar das diversidades, a linha mantenedora permanece sendo o entendimento da profissão como um “mal necessário”. Por exemplo, um projeto de lei de um deputado federal (1997) MAZZARIOL, Regina. Mal necessário: ensaio sobre o confinamento da prostituição na cidade de Campinas. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 1976, p. 3. 27 A Rua Augusta, em São Paulo, estado de São Paulo, a Vila Mimosa na cidade do Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro, a rua da Bahia em Belo Horizonte, estado de Minas Gerais, a Lapa dos travestis na cidade do Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro, o bairro Maciel na cidade de Salvador, estado da Bahia, dentre outros. 28 Nestor Perlonger em sua pesquisa sobre michês demonstra o quanto essa prática é demarcada espacialmente na cidade de São Paulo, situando-se no centro da cidade. 29 SILVA, Hélio R. S. Travesti, a Invenção do Feminino. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, ISER, 1993. 26 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 324 propunha, o livre exercício da profissão (proibindo a profissão aos menores de 18 anos), uma inscrição desses profissionais na Previdência Social, na qualidade de autônomos. Mas foi o 3º artigo que gerou maior debate entre as entidades ligadas a temática da prostituição, pois o deputado propôs o cadastramento dos profissionais do sexo em unidades de saúde em que o resultado de exames mensais para a prevenção de DST (Doenças Sexualmente Transmissíveis) – Aids estariam grafados em um cartão de saúde. Ainda o artigo 4° ressalta que seria condenado o incentivo ou a exploração da prostituição (ter uma casa de prostituição permanecerá sendo entendido como crime). A justificação que esse político utilizou para a aprovação do projeto esteve centrada em dois pontos: o primeiro punindo claramente os chamados “exploradores” da prostituição e o segundo na busca de higienização, através do controle e da obrigatoriedade de exames de DST/ Aids para os profissionais do sexo30. Renan Freitas ao estudar diversos ambientes de prostituição demonstrou o quanto a prostituta de rua sofre represálias dos policiais e estão a mercê do uso abusivo do poder desses. As prostitutas de rua, por lidarem diretamente com os clientes e não possuírem vínculos e nem estarem submetidas ao controle do contexto de bordel – como a supervisão estabelecida pelas cafetinas e a segregação espacial – estão mais expostas à inspeção policial e, consequentemente, a “mal-entendidos”31. Freitas demonstra ainda a relação quase harmoniosa entre donos de bordéis, e outros estabelecimentos de prostituição, com a polícia. Justo o agente que, segundo a lei brasileira, deveria ser reprimido – as pessoas que exploram e lucram com a prática da prostituição de outrem, os donos das casas de show, etc. – são os que realizam seus trabalhos livremente. O paradoxo entre o sistema legal brasileiro e práticas vivenciadas pela população no cotidiano já foi amplamente discutido pelos cientistas sociais brasileiros. São essas contradições que propiciaram a influência da Escola de Chicago na produção acadêmica sobre prostituição na década de 80. A partir dos estudos sobre desvio, divergência e estigma, os estudiosos caudatários dessa escola demonstraram que determinada prática, como a PASINI, Elisiane. “Corpos em Evidência”, pontos em ruas, mundos em pontos: a prostituição na região da Rua Augusta em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000, p. 7. 31 FREITAS, Renan S. Bordel, Bordéis: negociando identidades. Petrópolis, Vozes, 1985. 30 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 325 prostituição, depende de vários fatores para ser vista como “desviante”. Segundo Becker32: O desvio é criado pela sociedade, uma vez que os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como marginais e desviantes. Deste ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outras pessoas de regras e sanções a um “transgressor”. Marisa Altomare Ariente relata-nos em seu trabalho a complexa relação entre as profissionais do sexo e os policiais. Ao entrar em contato com os profissionais do sexo dentro de delegacias da cidade de São Paulo, estado de São Paulo, a autora contrasta a realidade dessas mulheres em dois locais: a região do 4° DP (região da “Boca do Luxo) e da 3º DP (região da “Boca do Lixo”). Enquanto os policiais do 4° DP possuem formação superior e possuem outros empregos nos períodos livres, os policiais do 3° DP quase não possuem especialização para os cargos inferiores. A estrutura da corporação reproduz a estrutura desigual da sociedade. Pudemos verificar que o 4° DP (região da “Boca do Luxo”) é valorizado pelos investigadores e delegados enquanto local para se trabalhar. Os motivos se devem ao fato de que nos bairros que pertencem à essa área residem indivíduos de classe média (Consolação, Jardim América, Higienópolis, etc.), e problemas que surgem são considerados mais amenos (roubos de carro, de rádio e toca-fitas, prostituição de luxo e travestis, formam 80% das queixas recebidas). As prostitutas e os travestis da região são considerados de “mais nível”, o que significa que as pessoas são menos violentas por estarem numa situação de vida não tão ruim quanto aquelas das regiões mais pobres da cidade. São também, as que ganham mais para sua manutenção, são mais jovens, mais bonitas que as outras partes da cidade e, justamente por isso, seus preços são os mais caros e seu trabalho melhor recompensado. Seus clientes, consequentemente, são mais educados e nunca querem chamar a atenção33. BECKER, Howard. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977, p.60. ARIENTE, Marisa A. O Cotidiano da Prostituta em São Paulo: estigma e contradição. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, PUC-São Paulo, 1989, p. 102. 32 33 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 326 Na região do 4º DP, as profissionais do sexo não sofrem tanto com as represálias dos policiais, sendo baixo o número das prisões. Segundo a autora, há entre algumas garotas e policias dessa região relações de camaradagem e amizade. Isso faz parte da percepção que a maioria dos policiais compartilha de que a prostituição é uma atividade necessária, com uma funcionalidade na nossa sociedade e que se praticada com dignidade, discrição e respeito na relação cliente/ prostituta pode ocorrer livremente. Contudo, as mulheres que trabalham próximo ao 3º DP são alvos de perseguições por parte dos policiais porque, segundo esses, não sabem se comportar, são escandalosas, atrapalham a vida dos moradores que residem próximo aos locais onde elas trabalham, além de se envolverem em delitos e crimes maiores do que simples roubos e furtos. Dessa maneira, são vistas como mais “sujas” que as profissionais do sexo que trabalham na região do 4° DP: o contato dos indivíduos com a “sujeira” tem uma carga simbólica, isto é, na verdade, lembra um contato entre partes da sociedade que não estão no mesmo plano34. A lógica que opera essa divisão dos dois distritos policiais assemelha-se a lógica disseminada pelos discursos sanitaristas. Fatores como horário em que ocorre a atividade, o local, dentre outros, apontam para a importância do contexto e dos atores presentes em uma dada interação social para que dado ator seja qualificado como desviante ou não. Freitas demonstra em seu trabalho como uma prática, ocorrida no mesmo local, pode, em dado contexto, ser percebida como desviante ou como “normal”. Em seu estudo, o autor demonstra como os discursos e as percepções que perpassam diferentes contextos de prostituição – rua, rendez-vous, bordel – permitem as prostitutas construírem uma identidade a partir de critérios morais que transitam entre os status de “moralmente excluída” e “moralmente integrada” em que elas se veem como “menos expostas” através de uma relação especular que estabelecem com prostitutas que atuam em locais diferentes aos que elas trabalham. Aparecida de Moraes nos seus estudos sobre mulheres que exercem a prática da prostituição na Vila Mimosa na cidade do Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro, relata-nos em sua pesquisa que a prática dessa atividade na “zona” – termo êmico utilizado para definir uma área que concentra um grande número de casas de prostituição, boites, como a Vila Mimosa – é preferível. Segundo elas, as mulheres ao serem indagadas pelas 34 ARIENTE, Marisa A. Op. cit.,, p. 110. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 327 experiências que vivenciaram como profissionais do sexo antes de trabalharem na Vila Mimosa, a maioria delas relata que estavam mais expostas aos perigos que rodeiam a prática, vendo nessas outras modalidades da profissão grandes desvantagens: Na Vila Mimosa encontrei um número significativo de mulheres que já havia trabalhado em outros lugares definidos como locais de “prostituição de alto nível”. Perguntava por que teriam ido para a “zona”, considerada “baixo meretrício”. Na tentativa desta compreensão, fui descobrindo que os valores que são normalmente colocados para definir um tipo de prostituição mais requintada – valores como o nível sócioeconômico da clientela e da localidade, refinamento do ambiente, entre outros – não eram lembrados como elementos fundamentais à satisfação no trabalho. Por outro lado, em resposta à mudança, prevalecia uma perspectiva de busca de melhores condições profissionais, condições estas que teriam ido buscar na Vila Mimosa. Os valores destacados nesse sentido relacionavam-se: à necessidade de uma maior liberdade, à possibilidade de maiores ganhos sem tanta pressão dos gerentes, à ausência ou redução da exploração por parte de agentes internos, ao menor nível de competição, às maiores garantias para a exigência do uso do preservativo, entre outros. Realmente a Vila, mesmo mantendo alguns atributos de zona confinada, já atingiu um status de renovação e modernização da atividade que nos obriga a tratar a sua configuração com certa especialidade. É um exemplo de como um tipo de organização que, de forma superficial, seria classificada de decadente e arcaica, pode revelar componentes mais avançados e compensadores na lógica interna35. O livro “Mulheres da Vila: prostituição, identidade social e movimento associativo” de Aparecida Fonseca Moraes dialoga com duas perspectivas do estudo sobre prostituição. Por se situar historicamente na passagem entre de duas vertentes principais desses estudos, Mulheres da Vila contém análises de ambos os períodos e traz conclusões bastante atuais sobre o universo da prostituição feminina. A investigação pano de fundo do livro é sobre como se constitui a identidade das mulheres que trabalham na prostituição a partir das narrativas das histórias de vida contadas por essas MORAES, Aparecida F. Mulheres da Vila: prostituição, identidade social e movimento associativo. Petrópolis, Vozes, 1996, p. 27. 35 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 328 mulheres e, nesse ponto, esse estudo se aproxima dos estudos dos anos 80 e os diálogos que eles estabeleceram com os conceitos da Escola de Chicago. A partir do conceito de estigma 36, a autora analisa os discursos e as práticas das mulheres com as quais teve contato no período de sua pesquisa de campo. A sua entrada na Vila Mimosa se deu de uma forma muito peculiar, guiando-a em todo período em que esteve ali. A pesquisadora foi apresentada aos frequentadores dessa região como membro da equipe de Gabriela Leite – uma conhecida liderança do movimento de prostitutas que fundou um Programa de Prostituição e Direitos Civis no Instituto de Estudos da Religião (ISER), uma organização não governamental 37. Junto com o trabalho de campo, Aparecida prestava serviço em uma ONG que tinha por objetivo principal a politização das profissionais do sexo e o estímulo à organização, visando a regulamentação profissional, bem como melhores condições de trabalho. Por desenvolver esse trabalho, Moraes esteve durante muito tempo em contato com as “mulheres da vila”, mas também com vários atores que trabalham nesse local. O material que ele coletou é extenso e enriquecedor, contendo várias facetas dessa realidade tão plural. As conclusões desse trabalho sobre a construção da identidade da profissão é a de que as mulheres ora se pautavam nas imagens e signos estigmatizantes que cercam a atividade que desenvolvem – se valendo deles para obtenção de lucros na profissão – ora contrariavam esse estigma, com posturas que tinham por princípio a desconstrução desses signos e imagens: Quanto a esta complexidade, GOFFMAN (1988) demonstra que os estereótipos não são apenas manipulados por parte daqueles considerados normais, mas também pelos indivíduos (ou grupos) estigmatizados38. Mais adiante a autora complementa: [...] como afirma BHABHA (1991, 193), é preciso compreender que o estereótipo não é uma simplificação por ser uma representação falsa de uma realidade específica, mas uma simplificação porque é uma forma de representação fixa e interrompida que, ao negar o jogo da diferença (que a negação através do outro permite), cria um problema para a representação do sujeito em acepções das relações psíquicas e sociais39. Aparecida de Moraes utiliza-se da definição de dois autores sobre o conceito de estigma: Goffman (1988) e Bhabha (1991). 37 MORAES, Aparecida F. Mulheres da Vila: prostituição, identidade social e movimento associativo. Petrópolis, Vozes, 1996, p. 11. 38 MORAES, Aparecida F. Op. cit., p. 34. 39 MORAES, Aparecida F. Op. cit., p. 38. 36 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 329 Desse modo, para Moraes, a politização do campo da prostituição – com suas reivindicações e agendas – convive com a manutenção por parte das mulheres de certos signos e códigos da profissão que contribuem para a percepção estigmatizante delas, mas que, ao mesmo tempo, constrói a identidade e a singularidade dessas representantes de uma determinada ordem sexual. Em uma margem tênue, segundo a autora, essas mulheres constituem um grupo diverso que recria suas representações em constante atrito com as representações dominantes sobre a profissão que exercem. Desses estudos40, muitos se perguntaram sobre quem eram as prostitutas, com quem elas se relacionavam, sobre suas famílias, seus anseios, gostos e sonhos, com o intuito de compará-las a pessoas que se inserem diferentemente nos meios de produção da sociedade para afirmar o quanto aquelas possuem gostos, valores e anseios muito parecidos com os dessas outras pessoas – presentes na cadeia produtiva empregada em outras profissões. Por mais diferentes que sejam as perspectivas, em geral esses estudos avaliam essa prática como uma profissão, sendo que muitos afirmam que as mulheres entram nesse comércio a partir de um cálculo racional, ao analisarem suas condições a partir de uma perspectiva realista, optando por essa profissão ao avaliar as opções de trabalho oferecidas a elas – em muitos casos, empregadas domésticas, vendedoras, ou outro tipo de emprego assalariado. Há também o estudo pioneiro de Maria Dulce Gaspar, cujo perfil das garotas que praticavam a prostituição era de classe média, de escolaridade média ou superior, classificadas posteriormente por estudiosos – e pelas próprias garotas – como universitárias. Em diversos trabalhos, os pesquisadores relatam a lucratividade dos programas e os ganhos obtidos com essa atividade, como a aquisição de eletrodomésticos, da casa própria, de um carro ou, no caso de Gaspar, financiamento de estudos e acessibilidade a bens culturais através do próprio trabalho 41. O preço é um dos conceitos classificatórios dessa prática. É ele que, nas diversas modalidades, cria uma hierarquia no interior da atividade. Da rua ao bordel e do bordel ao apartamento e salas de massagens, os preços são variados. Dentro de uma mesma modalidade, a prostituição de bordel, o preço define os locais e o público deles. Ariente, Marisa, 1989; Bacelar, Jeferson, 1982; Freitas, Renan, 1985; Gaspar, Maria Dulce, 1984; Mazzariol, Regina, 1976; Moraes, Aparecida, 1996. 41 Bacelar, Jeferson, 1982; Freitas, Renan, 1985; Gaspar, Maria Dulce, 1984; Mazzariol, Regina, 1976; Moraes, Aparecida, 1996; Pasini, Elisiane, 2000. 40 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 330 Freitas ao analisar42 diversos locais de prostituição na cidade de Belo Horizonte, na década de 80, demonstrou as diferenças nos preços e nos ganhos obtidos em cada um deles. Assim, segundo o autor, a rua que é onde se cobra menos por um programa e onde se lucra mais, visto que os programas são curtos, não passam de 20 minutos, e a procura pelos serviços é maior. Os estudos recentes sobre prostituição dialogam com alguns aspectos da produção bibliográfica anterior, todavia, há uma maior centralidade nas ações das mulheres que trabalham nessa profissão. O cotidiano dos profissionais do sexo é narrado para além das ações diretamente ligadas a prática da prostituição. Um dos nomes mais fortes dessa vertente é Elisiane Pasini que afirma em seus trabalhos a necessidade de um entendimento mais amplo dos sujeitos que realizam a atividade da prostituição tendo em vista suas outras experiências de vida43. Elisiane Pasini em sua pesquisa com garotas de programa que “batalham” na Rua Augusta, relatou-nos que há uma inconstância delas nas ruas. Algumas não trabalham aos sábados e muitas só aparecem quando precisam de um dinheiro imediato para o pagamento de contas, para a aquisição de bens – como roupas, sapatos, brinquedos para os filhos – ou quando o marido/ esposa, companheiro/a está desempregado ou foi detido. Tanto que há vários casos em que as garotas afirmam que a prática da prostituição não é a principal fonte de renda. Outro elemento comum aos estudos sobre prostituição é a forma como as garotas narram as diferenças que estabelecem entre suas relações com os clientes e com os não clientes. Pasini, nesse trabalho sobre a Rua Augusta, descreve como as garotas definem, por códigos, o que é permitido em uma relação com um e com o outro. A diferenciação é utilizada por elas com o intuito de valorizar os vínculos que elas estabelecem com os não clientes, ou seja, seus maridos, cônjuges, companheiros/ as, namorados/ as, esposas. Ao destacar a diferença, elas realçam quanto são fiéis, caseiras, boas donas de casa, boas mães, valorizando e reforçando valores tradicionais familiares e demonstrando a presença deles em suas relações cotidianas. Por outro lado, a relação com o cliente é caracterizada como efêmera, resumindo-se ao período do FREITAS, Renan S. Bordel, Bordéis: negociando identidades. Petrópolis, Vozes, 1985. PASINI, Elisiane. “Corpos em Evidência”, pontos em ruas, mundos em pontos: a prostituição na região da Rua Augusta em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000, p.15. 42 43 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 331 programa. Com os clientes não há beijo, afeto, carinho e algumas práticas não devem ocorrer como sexo anal – até porque como o tempo de programa na rua é menor, não haveria nem como acontecer algumas dessas práticas. Essas mesmas diferenciações aparecem no trabalho de Renan Freitas. Contudo, o autor demonstra que algumas dessas regras podem ser negligenciadas pelas garotas dependendo do local em que elas trabalham. Pelo tempo do programa dos clientes com prostitutas de rua ser muito curto, como já destacamos anteriormente, a execução de algumas práticas se tornam inviáveis. As relações afetivas das profissionais do sexo com parceiros amorosos e com seus familiares são descritas em diversos trabalhos 44. A relação que elas estabelecem com a família de origem tem por base os vínculos econômicos, as necessidades, as formas de auxílio 45. Como a maioria das garotas trabalha distante dos locais onde residem suas famílias, nas visitas elas sempre levam presentes, além do auxílio que elas dão todos os meses. Quando elas possuem filhos, na maior parte dos casos, eles moram com os pais da garota, com o marido – ou pai das crianças – ou com a sogra e/ou as irmãs do esposo da garota. Segundo Marisa Ariente, quando os filhos moram com elas, as mulheres se desdobram em carinhos e afetos, assumem o papel de excelentes donas de casa e constroem uma rede com outras colegas de profissão no cuidado dos seus filhos. Como lembra Bacelar: De maneira geral, as famílias que se desviam do modelo normativo vigente como é o caso da prostituição, mantém o mesmo sistema terminológico de parentesco e de percepção de valores na sociedade global46. Em seu estudo, Moraes destaca que é bastante reduzido o número de prostitutas que não têm filhos, destacando-se a atenção constante e as referências que fazem a estes nas conversas entre elas47. Claudia Fonseca enfatiza que entre as mulheres de meia idade com as quais teve contato em uma praça de Porto Alegre, os filhos e netos eram temas recorrentes das conversas – fosse para queixar-se de um ou gabar-se de um bem-sucedido48. Assim, segundo a autora: [...] neste Ariente, Marisa, 1989; Bacelar, Renan, 1982; Fonseca, Claudia, 1996; Moraes, Aparecida, 1996; Pasini, Elisiane, 2000 e 2005. 45 ARIENTE, Marisa A. O Cotidiano da Prostituta em São Paulo: estigma e contradição. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, PUC-São Paulo, 1989, p. 49. 46 BACELAR, Jeferson A. A Família da Prostituta. São Paulo: Ática, 1982, p. 29. 47 MORAES, Aparecida F. Mulheres da Vila: prostituição, identidade social e movimento associativo. Petrópolis, Vozes, 1996, p.65. 48 FONSECA, Claudia. “A Dupla Carreira da Mulher Prostituta”. In: Revista Estudos Feministas, Rio de Janeiro, IFCS / UFRJ – PPCIS / UFRJ, vol. 4, nº 1, 1996, p.17. 44 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 332 grupo, apresentar os filhos parece ser um dos ritos de pertencimento49. As relações que elas estabelecem com os familiares são de ajuda e cooperação mútua, de apoio no cuidado e na educação dos filhos por parte deles e de ajuda financeira por parte delas. Segundo Pasini: As garotas de programa afirmam destinarem a renda proveniente de seus trabalhos ao sustento da casa, dos filhos e das despesas econômicas. Ao que tudo indica, a renda feminina vinda da prostituição é aceita pela família e, ao mesmo tempo, indispensável para o sustento da mesma50. As relações amorosas e conjugais estão entrelaçadas no cotidiano das profissionais do sexo e aparecem em diversos estudos. Moraes salienta que conseguia perceber que algum tipo de arranjo conjugal estava sempre presente 51. Como este foi o tema da minha dissertação e de outros trabalhos, não pretendo aqui tecer maiores detalhes. Entretanto, ressalto que, segundo diversos estudos sobre prostituição52, as relações conjugais estabelecidas por garotas de programa e seus cônjuges, parceiros/as, pautam-se em uma relação de colaboração mútua em que os companheiros/as oferecem auxílios vinculados à profissão e elas retribuem com sexo e com a divisão das despesas financeiras do casal. E é a junção nessas relações de dinheiro e afetos que as complexificam53. Conclusão Desse modo, ao delinearmos as transformações históricas pelas quais passaram os estudos sobre prostituição, destacamos como esses FONSECA, Claudia. Op. cit., p. 17. PASINI, Elisiane. “Corpos em Evidência”, pontos em ruas, mundos em pontos: a prostituição na região da Rua Augusta em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000, p. 106 e 107. 51MORAES, Aparecida F. Mulheres da Vila: prostituição, identidade social e movimento associativo. Petrópolis, Vozes, 1996, p. 65. 52 Ariente, Marisa, 1989; Fonseca, Claudia, 1996; Moraes, Aparecida, 1996; Pasini, Elisiane, 2000. 53 PEREIRA, Amanda Gomes. “Um bonde chamado afeto”: descrevendo as conexões numa casa de prostituição feminina. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2010. ______________. Relações afetivas e laborais em uma casa de prostituição de mulheres. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção. v. 12, n. 35, pp. 566-592, Agosto de 2013. 49 50 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 333 olharam para a prática da prostituição de maneiras diferentes, iniciados por um olhar medicalizante, sanitarista e denunciativo da prática – partindo do pressuposto que ela deveria ser banida das relações sociais – para um discurso de legitimação da profissão – a partir da perspectiva do agenciamento da atividade pelos profissionais do sexo, introduzindo elementos como a escolha pela profissão e a percepção desses agentes como seres reflexivos e racionais. No texto, buscamos demonstrar ainda como a introdução da temática da sexualidade no estudo de gênero – principalmente a partir da emergência dos discursos sobre as identidades GLBT‟s –, possibilitou a transformação da ótica da prática da prostituição, uma vez que as práticas sexuais dos seres humanos passaram a ser vistas como pertencentes a uma dimensão importante de suas vidas, ligadas a ao bem-estar e saúde deles, muito mais do que ao adoecimento desses. Por isso, a relevância desses estudos na compreensão das redes e relações que constroem as esferas vinculadas ao campo da sexualidade e, desse modo, ilumina um campo fundamental da experiência humana: o do prazer e da intimidade. Referências Bibliográficas ARIENTE, MarisaA. O Cotidiano da Prostituta em São Paulo: estigma e contradição. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, PUC-São Paulo, 1989. BACELAR, Jeferson A. A Família da Prostituta. São Paulo: Ática, 1982. 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Essa temática aborda as concepções e subjeções de uma cidade interiorana à partir da busca feminina, suas relações com o social, cultural e religioso, e em contrapartida suas “obrigações” com a família, os filhos e o marido. São observações pontuadas e problematizadas na questão do gênero, suas limitações e condições perante esta sociedade interiorana. Palavras – chave: Gênero, transformações, Dom Aquino/MT. Abstract: This article aims to analyze the condition of women in the city of Dom Aquino, State of Mato Grosso, the generality, the transformations and mutations occurred throughout the studied period. This theme addresses the concepts and subjectivities of a provincial town from the female search, the women‟s relations with the social, cultural and religious aspects, counteracting their "obligations" with family, children and husband. This study shows observations concerned specifically in the issue of gender, its limitations and conditions before this countryside society. Key - words: Gender, transformations, Dom Aquino / MT. Lidiane Álvares Mendes, licenciada em História e especialista em Formação Histórica das Políticas Públicas e Sociais no Brasil, atualmente é professora substituta do Instituto Federal de Educação e Tecnologia do Amazonas – IFAM- Manaus Campus Zona Leste. 1 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 336 O presente estudo da condição feminina na cidade de Dom AquinoMT, tem como objetivo dar visibilidade as formas subjetivas dessas figuras femininas: os seus sonhos, ilusões, paixões e amores. Tal temática só foi possível à partir das mutações e transformações políticas, sociais e culturais, provocado pelo feminismo neste período proposto. Em uma análise qualitativa, basearemos este artigo nas condições femininas dentro daquela sociedade, utilizaremos os recursos teóricos metodológicos, bem como as concepções de autores prós – estruturalistas. O mundo feminino do período em questão não se trata somente de um conhecimento prosaico das cousas do dia-a-dia, pois devemos analisar suas angústias, a discriminação em relação a sua condição formatada muitas vezes na própria família com a herança patriarcal, criada e consolidada durante um tempo no qual, não tinham voz. E nem vez! A imposição familiar muitas vezes fez com que elas assumissem casamentos que não desejavam filhos que não queriam, profissões que não puderam exercer, opções sexuais não definidas, maternidade não requerida, religião imposta, enfim uma gama de obrigações exercidas com a cruz da subjeção social interiorana, que muitas vezes fez-se destas mulheres atrizes imparciais de suas próprias histórias. A autora Valéria Fernanda da Silva, 2 em seu artigo História Feminista, uma história possível, mostra-nos com clareza: que a história que não fala das mulheres, que ignora sua participação nos “grandes” e “pequenos” acontecimentos, não é neutra, mas serve para perpetuar papéis de gênero e representações sociais a respeito das relações entre sexos, negando-se a discutir as resistências, a ação criativa das mulheres e como as estruturas patriarcais de poder com suas exclusões e hierarquias foram constituídas. São arranjos sociais forçados, que mostra claramente a face masculina em prol de suas próprias determinações e afirmações do seu cotidiano viril, embora, essa relação fora colocada muitas vezes a força numa demonstração de masculinidade e /ou poder. O papel feminino na sociedade brasileira, sempre foi determinado por essa relação patriarcal, marital, de posse, entocadas em seus profundos sentimentos de ingratidão e muitas vezes de ódio, caracterizados por uma 2 SILVA, Valéria Fernandes da. História Feminista, uma história do possível. 2008.p.04 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 337 subordinação, trancafiados em seu mundo de sonhos e pressupondo que pudessem ter efetiva participativa na sociedade em que viviam. Neste âmbito não podemos deixar de esclarecer que esse universo feminino, servia para todas as mulheres, solteiras, casadas, mães-solteira, negras, brancas, prostitutas ou freiras, velhas ou feias, bonitas, ou magras. Essa condição era simplesmente imposta à elas e que assim o fosse! O ter sua visão de mundo não lhes dava o direito de opinar, de interagir, tão pouco de ocupar seu espaço nas esferas sociais. Sob a contextualização da autora Cristiane Manique Barreto: 3 Quando falo em gênero, estou falando de relações. Não de mulheres, nem de homens, mas de como historicamente e socialmente foram construídas as relações entre homens e mulheres. Portanto, a categoria de análise – gênero – remete à cultura e não ao biológico. Apesar de todos esses preceitos dessa relação de gêneros, e principalmente da história escrita somente com o olhar do historiador (macho), ocultando a visão feminina mesmo que panorâmica e o poder central exercido pelas mulheres, que muitas vezes fora explicitado somente no leito (ou de seus maridos ou de seus amantes), deve ser pesquisado, analisado, esmiuçado, para que a compreensão da história destas mulheres “sociais” dom-aquinenses, seja entendida dentro de um contexto neutro e que a destruição da barreira criada sob o âmbito dessas sociedades possa perpetuar em estudos das condições de gênero. Segundo Margareth Rago,4 em se considerando os: “estudos da mulher” esta não deveria ser pensada como essência biológica pré-determinada, anterior a História, mas como uma identidade construída social e culturalmente no jogo das relações sociais e sexuais, pelas práticas disciplinares e pelos discursos/saberes intituintes. BARRETTO, Cristiane Manique. História e Relações de Gênero. In MORGA, Antônio Emílio (org). Gênero, e Sociabilidade Afetiva. Itajaí: Casa Aberta, 2009.p.146. 4RAGO, Luzia Margareth. Do Cabaré ao Lar: a Utopia da Cidade Disciplinas – Brasil 1890-1930. 2º ed. Coleção Estudos Brasileiros v.90. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1985.p.37 3 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 338 A contextualização da divisão homem/mulher, quem oprime e quem é oprimido, instituído e definido, por homens, cujo papel feminino tinha unicamente a constituição da formação da prole, da elaboração dos trabalhos domésticos, da educação e conservação desta família, que embora não se entendessem haveriam de estar bem perante a sociedade, na qual cobrava-se da mulher dentro das instituições sociais sua obediência ao mando de seu pai/tutor/irmão/marido. Sobretudo ao levantarmos as condições femininas no espaço em questão devemos nos orientar nas afirmações de Maria Izilda Matos, 5 que: Os estudos de gêneros, porém não representa opção para o pesquisador preocupado com um método que pressuponha equilíbrio, estabilidade e funcionalidade. Tal temática é extremamente abrangente e impõe dificuldades para definições precisas. São muitos os obstáculos para os pesquisadores que se atrevem a enveredar pelos estudos de gênero- campo minado de incertezas, repleto de controvérsias e de ambigüidade, caminho inóspito para quem procura métodos teóricos fixos e muito definidos. Seguindo a afirmação de Matos, de um universo de controvérsias e ambíguo, analisar uma sociedade interiorana com discursos de moralidade arraigados, se faz necessário em um período que procuramos construir e desconstruir as afirmações existentes sobre a mulher e seus “ofícios” 6, fomentando discussões sobre a identidade feminina brasileira. Rago,7 esclarece que: Para escrever a história, são necessárias fontes, documentos, vestígios. E isso é uma dificuldade quando se trata da história das mulheres. Sua presença é frequentemente apagada, seus vestígios, desfeitos, seus arquivos, destruídos. Há um déficit, uma falta de vestígios. MATOS, Maria Izilda S. de. Outras Histórias: as mulheres e estudos de gêneros – percursos e possibilidades. In SAMARA, Eni de Mesquita, SOIHET, Rachel e MATOS, Maria Izilda S. Gênero em debate trajetória e perspectivas na historiografia contemporânea. São Paulo: educ, 1997. p. 144. 6 Aqui ofícios vêm caracterizar a mulher como dona de casa, beata, “da vida”. 7 RAGO, Luzia Margareth. Do Cabaré ao Lar: a Utopia da Cidade Disciplinas – Brasil 1890-1930. 2º ed. Coleção Estudos Brasileiros v.90. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1985. p.21 5 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 339 Sob este olhar lançado ao passado buscaremos reconstruir detalhes da identidade dessas mulheres, que logo buscaram em seus direitos oportunidades de serem independentes em sua forma de pensar, desconsiderando as opiniões masculinas, e demonstrando que são tão, ou mais, capazes que eles. Nesta teia que envolve seus valores, posições, cultura, religião, enfim toda a sociedade ou a imposição da sociedade, que vão trazendo à tona “seus arquivos”, agora para serem relembrados e reescritos. A origem das famílias dom aquinenses e sua relação de poder sobre as mulheres A proposta deste trabalho, portanto, vem salientar a necessidade da desmistificação dessa relação de gêneros, em uma cidade estruturada primeiramente na migração de famílias oriundas de lugares específicos do território brasileiro, como Minas Gerais, Bahia, Ceará, Sergipe e Pernambuco, que em busca de vidas melhores e do sonho do Eldorado 8, vieram em lombo de burros, marchando às vezes seis meses, passando por diversas formas de precariedades, buscando dias melhores. Contudo, os chefes dessas viagens eram geralmente os homens, eles comandavam e administravam tudo: o tempo de duração da viagem, o alimento, as condições de seguir ou parar - parar um período ou estação até que juntassem mantimentos em hortas organizadas nas margens da estrada, ou até que uma parturiente ganhasse nenê e se restabelecesse para continuarem a viagem. E assim, muitos filhos (as) nasciam nessas estradas, muitas filhas casavam nessas paradas, muitas mães morriam nessa travessia, e partindo deste ponto que construiremos as bases dessa sociedade masculina, da imposição subjetiva composta por mulheres que simplesmente cumpriam suas obrigações. O período aqui estudado tem como particularidade ser passado em uma cidade interiorana, esquecida, apagada no cenário cultural, intelectual, que antes da única televisão instalada na praça central, na década de 80, eram nas calçadas que as pessoas sentavam-se para comunicar casamentos, mortes, notícias dos parentes de longe, compra e venda de bens, falências, enriquecimentos, vindas e idas de conhecidos e forasteiros e, claro Sonho do Eldorado: termo utilizado para aqueles que deixavam suas terras de origem, para buscar em outras regiões o “sonho” do enriquecimento rápido, ora em busca do ouro, do diamante, ora em busca de látex, e/ou outros. 8 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 340 “peculiaridades” da vida alheia, era em frente a essas calçadas que as crianças brincavam, adolescentes enamoravam, valores eram repassados, e tudo o mais acontecia. Com o advento televisivo na praça central a vida social passa a ter um novo contexto, sendo que pouquíssimas famílias tinham televisão ou rádio em casa, as rodas de familiares e amigos agora não se firmavam nas calçadas das residências e sim em frente da Televisão na praça central, ali reuniam-se pessoas de todas as classes sociais, onde seus habitantes viviam sob o cotidiano medíocre, agarrados a tabus, valores e sentenças enraizados em comportamentos um tanto quanto retrógrados. Não era um lugar que vivia sob um turbilhão de acontecimentos como nos grandes centros: televisão, cinema, rádio, pílulas anticoncepcionais, camisinha, início e fim da ditadura militar, jovens com caras pintadas pedindo eleições diretas, juros, inflação, topless, homossexuais saindo literalmente do armário, o divórcio sendo encarados de forma normal, nas artes o tom de protesto é geral, a população agora tinha liberdade para expressar-se e, dentre, tantas outras coisas que aconteciam, e que faziam o Brasil fervilhar. Neste cenário interiorano o que vigorava ainda para as mulheres era o mesmo ritmo de vida cantada na voz de Ataulfo Alves 9 [...] Ai que saudades da Amélia/ Amélia não tinha a menor vaidade/Amélia é que era mulher de verdade. Numa alusão a mulher que tudo aceita e que tudo se sucumbe. Alguns moradores na cidade de Dom Aquino assistiam a tudo estupefatos, outros ignoravam, alguns poucos liberais gostavam das transformações que estavam acontecendo, da evolução na sociedade brasileira e esperava que isso logo fosse aceito no interior do país. Portanto, é de se admirar que com o mundo em constante ebulição, ainda ocorria à falta de informação sobre sexo, menstruação, escolhas profissionais e sentimentais, política feminista. Ali mulheres ainda se casavam com homens que seu pai escolhia, não terminavam sequer o ensino fundamental, por que “do lar”, não precisava saber ler, escrever, isso faria com que essas mulheres tivessem informações, formariam suas opiniões, deveriam tão somente cuidar de seus lares e serem subordinadas aos seus maridos. Essas relações entre mulheres e conversas que eram consideradas tabus deixam de existir somente nos meados da década de 1980, antes 9 Ataulfo Alves escreveu a letra e música. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 341 disso, eram assuntos extremamente proibidos, o homem da casa, o provedor, proibira muitas vezes que esse tipo de instrução fosse passada, uma vez que, ao saber que suas filhas ou enteadas menstruara o risco de uma gravidez indesejada aumentava, sabia que a partir daquele momento o corpo feminino daria sinais de desejo - a descoberta - o novo - portanto proibiam, e o novo sempre vem acompanhando de perguntas, argumentos, críticas e crises de gerações. Partindo das reflexões e leitura da epistemologia feminista percebese que com o passar do tempo pesquisas e fontes orais das mulheres que vivenciaram em determinado período fatores que podemos pontuar e conceituar a formação da sociedade em questão, e que agora longe das amarras que as calavam, essas mulheres ajudam a história não só das mulheres dom aquinenses a ser contada, mas também a história de gêneros. Percebemos que com o passar do tempo, elas deixam de ser “silêncio das fontes”, como nos coloca Perrot10, para mostrarem seus pontos de vistas, suas opiniões sobre a forma na qual foram educadas, seu lugar na vida pública e/ou privada, seu espaço no cotidiano daquela sociedade. Nesta busca, fez-se necessário a compreensão da formação dessa nova identidade, dessa nova mulher que resolve falar, quebrando o silêncio que as colocavam em inferioridade, agora podemos ouvi-las diretamente, abertamente ou ainda falarem e simplesmente falarem... O lazer: para os homens o gozo. Para as mulheres a reza. As instituições sociais família, igreja, escola, criadas por uma sociedade de controle que busca intervir nas relações interpessoais dos indivíduos, analisando-os criticando-os, e subordinando-os a comportamentos tido certo, a valores conservadores, a condições de vida pré-determinadas, diante de uma sociedade pouco evoluída em seus conceitos de modernização do ser, como nos relata Navarro-Swain,11 “levantar questões e pesquisar incansavelmente a diversidade, para escapar à tirania do unívoco.” PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Trad. Angêla M.S. Corrêa. São Paulo: Contexto,2007. p.17. 10 NAVARRO-SWAIN, Tânia. 1993/94 De deusa a bruxa: uma história de silêncio. Revista Humanidades, UnB/EdunB, 2006, vol.9, n.1/.31. (web) 11 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 342 Dentro do conceito citado acima é que não poderíamos deixar de citar aqui, o lazer, tão importante, principalmente em cidades do interior onde geralmente não era fornecido com grande frequência, os bailes, circos, parques, atrações culturais, eventos esportivos eram esporádicos, no entanto, a igreja, e a zona de baixo meretrício, principalmente a segunda funcionava a semana inteira inclusive dia santo. Vejamos o papel da Igreja, pois convenhamos que é lá, que as pessoas das mais humildes as mais abastadas estão. Tiram em dias de missa, suas melhores roupas e sapatos, arrumam sua prole, e partem, casais entrelaçam-se os braços e lá se vão a família feliz, perfeita aos olhos de toda a sociedade. E é justamente na família, aqui intitulada feliz, que será nosso ponto de partida, pois enquanto o padre fala seu sermão, o marido está a olhar por cima de sua esposa, a procura do desejo, de uma escapadela, de uma viúva, ou quem sabe uma por assim dizer “biscate” 12 para satisfazê-lo nas coisas da cama. Esse é o típico papel do macho que subordina sua esposa, suas filhas, ou qualquer mulher que esteja sobre sua guarda, é esse que a deixa submissa, não a deixa estudar, ter contato com mundo lá fora, somente nos afazeres domésticos, esta mulher que vive sob o domínio desse homem, no qual a história foi escrita sob a luz de seus olhos. Nas missas, folia de santo rei, procissões, velórios, casamentos, aniversários as famílias ou estavam lá completas, ou sendo sempre representadas pela figura masculina, as mulheres da casa, quando não estavam presentes, ficavam redimidas a seus lares, cuidando da casa, dos filhos ou de algum enfermo, idosos, era esse o papel estabelecido a elas, e isso lhe foi passado pela sua mãe/madrasta, submissão ao seu homem. Era ele quem determinava se poderia sair, ir as compras, visitar um ente querido, receber visitas, dentre outras coisas. Assim, corriam-se os dias, passavam-se os anos, e essa educação patriarcal era repassada as suas filhas, claro que algumas dessas mulheres, soltaram suas amarras valorais ultrapassados e educaram suas filhas de outra forma, mesmo que as escondidas. Contudo, muitas das mulheres desse período transferiram a cruz que carregava a suas meninas/mulheres. Como toda cidade, seja ela do interior, ou não, há sempre um determinado lugar, uma rua, uma casa, onde somente era permitida a entrada de homens, casados ou não, maiores de idade ou não. Ali se podia Biscate: aqui referem-se a mulheres de vida fácil, prostituta, ou aquela que sai com todo mundo. 12 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 343 beber, cuspir no chão, falar palavrão, ali sim era o recanto masculino, a prova de sua virilidade e poder. Ali se iniciava os adolescentes, a provação que os pais esperavam que seu filho fosse macho. Dentre muitas outras denominações usadas era o prostíbulo, a zona de baixo meretrício, a casa da luz vermelha, a rua de baixo, ou simplesmente “lá”. Até a década de 1990, ainda existia em Dom Aquino a rua em formato de “U”, onde dos dois lados havia casas de mulheres “fáceis”, que vendiam seus corpos como forma de sobrevivência, onde os frequentadores deleitavam-se a vontade, onde podiam realizar as suas fantasias, suas necessidades sexuais, como queriam, pois, além de estarem pagando para isso, eles não sentiam suas consciências pesarem, afinal, suas esposas/noivas/irmãs/filhas estavam em casa, resguardadas em seu lar, protegidas daquele mundo infame. Em relatos reais, uma das entrevistadas nos conta que “depois que o noivo, fazia a sala”, ou seja, passava uma ou duas horas em sua casa, ladeado por toda sua família, despedia-se e ela da calçada, ficava a olhar ele se dirigindo a zona. Percebe-se através desse depoimento, a submissão imposta e aceita pelas mulheres, pois ao noivar com toda a família reunida, a noiva ainda via seu noivo ir se deleitar nos braços de outra. No imaginário de todas as mulheres, e na contemporaneidade ainda existe, e habita a mistificação desse ambiente peculiar, que faz com que seus homens saiam de casa e vão amanhecer em lugares considerados promíscuos, vulgares, com mulheres transfiguradas pela bebida, pelo fumo, e nos tempos atuais pelas drogas, seus corpos muitas vezes nu ou seminu sendo oferecido com palavras de cunho sexuais. Os cabarés, zona de baixo meretrícios, e tantas outras designações usadas para colocar as mulheres de qualquer tempo em lados opostos, sempre mexeu com o imaginário masculino, caracterizadas por mulheres para casar, e mulheres para transar, esses lugares sempre se esconderam da sociedade, sabiam todos onde ficavam, mas que ficassem lá, mudas. Mary Del Priore,13 em seu livro, Histórias Íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil pontua que: DEL PRIORE, Mary. Histórias Íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta, 2011.p.87 13 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 344 A prostituição ameaçava as mulheres “de famílias puras”, trabalhadoras e preocupadas com a saúde dos filhos e dos maridos. Tal ameaça à rainha do lar era feita de duas maneiras – todo desvio de ação, pensamento ou movimento poderia aproximar e confundir o espaço privado da casa com o espaço público da rua. (...) a outra ameaça, tão séria quanto a anterior, era a de ser substituída pela mulher pública e não desempenhar a contento as tarefas e funções impostas. Existindo como o negativo atraente e ameaçador da família, as mulheres públicas foram descritas com todos os vícios, pecados e excessos que se atribui a uma profissão exercida e até explorada por algumas chefes de famílias. Por ser considerada a profissão mais antiga do mundo, a prostituição, não colocava as mulheres em pé de igualdade, uma vez que as tidas para casar, na maioria das vezes não trabalhavam fora e as prostitutas, além de venderem o corpo, muitas delas, eram as donas do bordel, ou seja, mantedoras da casa, da família. Os homens casados, e solteiros como já descrevemos aqui, frequentadores dos bordéis, muitas das vezes o faziam, para saciar seus desejos mais íntimos aqueles que não podiam ser realizados com a mãe de seus filhos, pois o sexo era restrito à procriação. Enfim, o sexo, palavra estritamente proibida durante um vasto período, a sexualidade, o gozo, os prazeres da carne, são neste período prioridade masculina a eles era dado o direito de sentir as luxúrias da cama, mesmo que essa cama seja de outra, prostituta ou teúda e manteúda.14 É sob esse contexto cultural que as mulheres foram criadas, ao homem enfim o gozo, a mulher a reza, é para elas que voltaremos o nosso olhar, para as liturgias cristãs, os terços, as promessas, as rezas infindáveis que muitas vezes foram não a paz de espírito, mais sim a diversão. Percebemos o poder da religião perante as mulheres, citada inúmeras vezes na Bíblia, ora como pecadoras, ora como conciliadoras, muitas vezes julgadas, outras aclamadas, esta relação da mulher no mundo cristão esta clara em diversas passagens, principalmente no que se refere às mulheres do lar, em Provérbios 14.1 que diz: toda mulher sábia edifica a sua Teúda e manteúda, termo usado para caracterizar amantes de homens casados aquelas nas quais eram sustentadas por eles, não moravam em bordeis, cabarés e afins, habitavam em residências bancadas por esses homens e eram elas de “uso” exclusivo. 14 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 345 casa, mas a tola derruba com as suas próprias mãos. Ao lermos essa citação bíblica, nota-se claramente como a mulher é além de ser submissa ainda tem que sustentar os pilares domésticos. Era nas Igrejas que elas estabeleciam algum poder, o de rezar, ou de organizar festas. As casadas observavam através dos atos litúrgicos, as outras famílias e seus comportamentos, as solteiras, escapavam em piscadelas em busca de um marido. Ali organizavam-se as quermesses, as procissões, folias de Santo Reis, casamentos, batizados e velórios. A religião e o seu poder sobre o indivíduo provêm da cultura de cada sociedade, algumas vezes sobre pretextos autoritários, espalhando-se pelo mundo como verdades universais. Outras como a única forma de pedir pelas mazelas da alma, do carma, da vida. Dentro da complexidade das religiões ela oferecia um abrigo às misérias das mulheres, pregando sobretudo, a submissão. Perrot,15 sobre as mulheres e a alma, diz que: De tudo isso, as mulheres fizeram a base de um contra-poder e de uma sociabilidade. A piedade, a devoção, era para elas, um dever, mas também compensação e prazer. Elas podiam ser encontradas nas igrejas paroquiais, na suavidade dos reposteiros e do canto coral, sentir. [...] Sobre as mulheres e a religião, podemos verificar que se para o homem o lazer era bem mais “divertido”, em lugares de música alta, danças sensuais, bebidas e fumaça de cigarro, para as mulheres o que restava era vestir-se com suas “roupas de ver Deus”16, e aclamar a Deus e a seus Santos de devoção. As relações entre homens e mulheres sempre foram ambíguas, e continua sendo em algumas regiões do país, no que rege as regras de cidades interioranas, não tão severamente como antes, nos dias atuais, mais brandos, devido às conquistas femininas, mas essa relação ainda se faz presente, intrínseca nos valores morais. Ao homem tudo pode, a mulher... PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Trad. Angêla M.S. Corrêa. São Paulo: Contexto,2007. p.84. 16 Ditado popular: “Fulano passou aqui com roupa de ver Deus”, ou seja, roupa nova que nuca é usada a não ser para ir a Igreja. 15 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 346 Enquanto isso nos grandes centros urbanos... Recuarmos na história brasileira, se faz necessário para entendermos as transformações ocorridas, essas mudanças sociais, políticas, culturais que influenciaram diretamente na concepção feminina. Tais mudanças atuaram diretamente no comportamento tanto das mulheres quanto dos homens, o que antes era objeto de desejo, como luvas, espartilhos, pés cobertos com sapatos finos, e cabelos encobertos por chapéus, agora com as transformações sócio-culturais, isso cai por terra. Os homens não desejam mais esse tipo de mulher, e as mulheres por sua vez não se vêem mais assim. No início do século XX multiplicam-se as escolas, a medicina evolui, inicia-se o culto ao corpo, as ginásticas, os esportes, as cidades, sofrem uma ebulição ágil e anônima. Nas afirmações de Del Priore 17 “o esporte, o cinema, e a dança, foram primordiais no nascimento da sociedade do espetáculo, diretamente articuladas com o imaginário da modernidade por estarem plenamente adequadas aos significados de um novo modus vivendi”. Neste novo espaço cultural e social não cabe mais antigos modelos de vida, de valores, de vestimentas, e quando falamos sobre as mulheres, não podemos deixar de pontuar que ela sempre foi podada, por ter sido considerada o símbolo do diabo, a que vira a cabeça dos homens, muitas fazem-nos cair em desgraça, a mulher deveria sempre andar coberta para não aflorar desejos libidinosos, sexuais, e seu corpo serve somente para procriar, de preferência filhos belos e sadios. Nos grandes centros urbanos as condições femininas estavam em constantes transformações influenciadas pelo comportamento europeu, nascem nesse período novos conceitos sobre todos os aspectos: na medicina, nos direitos femininos, na sexualidade, no comportamento feminino x masculino, as artes cênicas que contribuem para quedas de alguns tabus, o sagrado e o profano se misturam, o afrouxamento das condições femininas as faz repensar suas condições na sociedade. Não foi uma luta de gêneros fácil de ser aceita, se neste período ainda existisse a Inquisição, muitas queimariam na fogueira por terem quebrado regras e padrões sociais estabelecidos há tempos. DEL PRIORE, Mary. Histórias Íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta, 2011.p.105 17 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 347 Surgia uma nova era feminina, sobe o cumprimento das saias, abaixo a “dona do lar”, entra-se na época do rock and roll, dos filmes norteamericanos, dos galãs de cinema, das modas afrancesadas, da lingerie, despem-se os corpos, aumenta o interesse da mulher por diversos segmentos sociais, além de irem a Igreja, as mulheres agora também defendem bandeiras políticas, lutam por igualdade social e profissional, e em contrapartida decidem se querem ou não formar famílias ou terem filhos. Percebemos enfim, que no início do século passado as coisas começam a mudar, as lutas femininas ganham força, ganham voz, Michelle Perrot, 18 em Minha História das Mulheres, descreve bem essas mudanças: A história das mulheres mudou. Em seus objetos, em seus pontos de vista. Partiu de uma história do corpo e dos papéis desempenhados na vida privada para chegar a uma história das mulheres no espaço público da cidade, do trabalho, da política, da guerra, da criação. Partiu de uma história das mulheres vítimas para chegar a uma história das mulheres ativas, nas múltiplas interações que provocam a mudança. Partiu de uma história das mulheres para tornar-se mais especificamente uma história de gênero, que insiste nas relações entre os sexos e integra a masculinidade. Alargou suas perspectivas espaciais, religiosas e culturais. Ecoam por todo mundo as novas perspectivas em relação à mulher, deixam de serem pensadas como “minoria”. Sob o argumento de Rago,19 podemos perceber que: [...] se considerarmos que as mulheres trazem uma experiência histórica e cultural diferenciada da masculina, ao menos até o presente, uma experiência que várias já classificaram como das margens, da classificação miúda, da gestão do detalhe, que se PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Trad. Angêla M.S. Corrêa. São Paulo: Contexto,2007.p.15 19 RAGO, Luzia Margareth. Do Cabaré ao Lar: a Utopia da Cidade Disciplinas – Brasil 1890-1930. 2º ed. Coleção Estudos Brasileiros v.90. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1985.p 40. 18 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 348 expressa na busca da nova linguagem, ou na produção de um contradiscurso. Essa nova linguagem, verificada em um primeiro momento nos grandes centros urbanos, não foi escancarada, afinal, estamos falando das mulheres, que por séculos foram consideradas, volúveis, frágeis, submissas, delicadas. Não seria assim tão fácil quebrarem as algemas e saírem por ai ditando regras. Essas mudanças foram ocorrendo paulatinamente, confrontando-se ali, argumentando acolá, e assim construindo suas identidades. O desenvolvimento tecnológico tem muito haver com a libertação feminina, tanto dos afazeres domésticos (novos utensílios que facilitaram a vida das mulheres), a imprensa escrita agora acessível, as novas formas de se vestir, o lazer, tudo isso vem com as novas tecnologias, rádio, cinema, teatro, livros, fornecendo informações de todos os tipos, métodos modernos de interação e libertação neste caso de ambos os sexos, claro que as novas tecnologias principalmente as de uso domésticos, facilitam a vida dessas mulheres, deixando-as com tempo livre para deliberarem sobre outros assuntos. Devemos perceber que não foram mudanças rápidas, o comodismo, o medo de enfrentar padrões estabelecidos, ainda fez e faz com que muitas mulheres vivam sob as garras de valores patriarcais antigos, e ultrapassados. Dentro disso o século XX, foi com certeza o século das grandes transformações mundiais, em todos os aspectos. Tudo contribuiu para o avanço da liberdade de gêneros, desde as Guerras que colocaram as mulheres no mercado de trabalho, passando pela era das informações, onde elas conseguem o direito de irem a escolas, detém agora a leitura, que instiga a opinar e questionar, influenciadas por todas essas transformações as mulheres buscam na revolução sexual o direito do prazer. Agora, elas podem votar! Profissionalizam-se, levantam-se em passeatas por melhores condições salariais, argumentam como vão criar seus filhos, divergem sobre questões sociais, ocupam cargos políticos, de associações, sindicatos. Não mais precisam espernear para serem ouvidas. São conscientes de suas condições, mas não são mais consideradas o sexo frágil, são ainda perseguidas, mas não se deixam calar. No amor, sensualizam, desmistificam, produzem, são mulheres, amantes, são polêmicas – homoafetivas – são discretas, indiretas, objetivas. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 349 As mudanças no comportamento feminino refletem no interior do país Com todas as novas perspectivas no mundo feminino nos grandes centros urbanos, não tardaria e elas chegariam ao interior do país, a televisão, o rádio, o acesso a educação, as informações através das leituras de jornais, revistas e livros, enfim uma gama de transformações, econômicas, sociais, culturais, religiosas, tecnológicas, que as tiram do ambiente doméstico, e as colocam em “pé de igualdade” com o universo masculino. Os saberes femininos neste período ultrapassam os portões de suas casas, vão para as ruas, para as escolas e chegam às esferas administrativas e política finalmente, elas passam a ocupar seus lugares perante a sociedade, as grandes inovações tecnológicas, as mudanças ocorridas ao longo do século XX, ajudaram gradativamente a consolidar a mulher não mais como dona de casa, a rainha do lar, mas sim como empreendedora – dona de seus desejos, de seus sonhos e buscando seus ideais. Neste contexto, Valéria Fernandes da Silva, (2008, p.16) afirma que “o diálogo com outros saberes proporciona meios de reflexão e estimula uma ação que possibilite romper com as amarras que inferiorizam e limitam as escolhas das mulheres, que possibilitam um controle sobre nossos corpos e escolhas.” Olharemos agora para as mulheres em Dom Aquino, em seu espaço e há seu tempo, aqui esboçado nos anos 1970, na época que jovens gritavam pelo mundo “paz e amor” o milagre econômico brasileiro, trazia um crescimento surpreendente ao país, o futebol nacional erguia no México a Taça de Campeão do Mundo no Futebol, a censura através da Ditadura Militar, cortava tudo o que achava impróprio. Mesmo, assim grandes espetáculos e músicas de protestos foram gravadas e vinculadas nas mídias. Neste mesmo período de Ditadura Militar, faculdades são lacradas, impedindo que tanto homens quanto mulheres produzissem, e opinassem contra a forma de governo. Muitas pessoas pediram asilo político em outros países, eram considerados subversivos e precisavam fugir dos porões da ditadura. Na moda as blusas tomara que caia, sandálias plataformas, mini saias, e colares extravagantes seguiam a onda hippie e faziam o delírio das mulheres. Na televisão, as famílias brasileiras assistiam a programas estipulados pela Censura: Chico City, Vila Sésamo, Sítio do Pica-PauDossiê CÂMARA MUNICIPAL 350 Amarelo, A Grande Família, e novelas como O Cafona, O homem que deve morrer, Irmãos Coragem, Gabriela, Dancin Days faziam o deleite das pessoas, e em contrapartida abriam a visão delas para um mundo novo. Em Dom Aquino, por toda a década de 70, as transformações foram lentas, imperceptíveis, tanto que, o que temos notícia em relação às mulheres e suas condições são somente as freiras da Escola Estadual São Lourenço, que ocupavam a direção da mesma, o restante estavam ainda acostumadas a vida pacata e a submissão. Entraremos nos anos 1980, com outro olhar, é neste período que as informações chegam com maior freqüência nas residências, surgia nos país uma consciência mais ampla sobre a discriminação e a importância do papel das mulheres na sociedade. Em todos os cantos, surgem organizações de mulheres que se identificam como mulheres e que buscam ampliar os horizontes de sua participação social. Nos grandes centros, onde a atuação do movimento feminista era maior, as organizações de mulheres desenvolvem-se com mais facilidade e se expressam em discussões sobre a sexualidade: denunciam e combatem a violência contra a mulher, enfrentam de forma mais aberta as contradições de seu papel familiar, evidenciam a sua capacidade intelectual e formalizam as suas competências em diversas profissões, discutem a reação trabalho, mulher, família e demais segmentos sociais. Essas organizações refletem no interior onde as mulheres organizam-se lançando-se candidatas a cargos políticos, enfrentando as condições impostas pela família e estudando, transformando suas vidas, pois agora não mais ocupam somente o papel de mães e dona de casa, buscam outros ramos profissionais, buscam a realização pessoal. As reorganizações familiares da década de 1990, a contribuição feminina tanto social quanto econômico, a reavaliação de seu papel perante a sociedade, e as condições de igualdade que nesta década colocam as mulheres em pé de igualdade com homens, embora saibamos que no cotidiano essa igualdade ainda não é recebida de bom grado, mulheres de classes sociais distintas buscam sua inserção nas áreas que antes eram restritas ao mundo masculino. Dentro dessas novas perspectivas da condição feminina quem assume a Prefeitura Municipal de Dom Aquino uma professora, Maria José Borges, seguindo seus passos, mulheres candidatam-se a cargos de vereadora, e são eleitas. Ainda neste contexto, elas ocupam cargos de diretoras e coordenadoras de escola, secretárias municipais, e profissionalizam-se nas mais diversas áreas. No comércio elas abrem as REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 351 portas de seus negócios, e na economia informal são elas as vendedoras de utensílios domésticos e produtos de beleza, paralelo a isso, estão ligadas emocionalmente ao andamento da casa e a educação dos filhos, ou seja, a mulher passa agora a ter jornada dupla de trabalho. Apesar da evolução da mulher dentro de atividades que era antes exclusivamente masculina, e apesar de ter adquirido mais instrução, os salários não acompanharam este crescimento. As mulheres ganham cerca de 30% a menos que os homens exercendo a mesma função. Conforme o salário cresce, cai a participação feminina. Entre aqueles que recebem mais de vinte salários, apenas 19,3% são mulheres. O período estudado encerra-se tendo sido positivo para a condição da mulher, oriundas de valores tradicionais, e que diante das transformações ocorridas conseguiram estabelecer a importância do trabalho, da qualificação e das possibilidades que surgem com o desenvolvimento tanto intelectual quanto emocional, conseguiram diante da quebra de paradigmas, constituir suas profissões, seu lugar na sociedade e sobretudo sua posição diante da família, dos estigmas religiosos. Diante da vida. Finalizando... A reflexão constituída neste trabalho é a incorporação da mulher no debate historiográfico, a construção do papel atribuído a ela ao longo do tempo, e as transformações ocorridas. Neste contexto a afirmação de Martín Paradelo Núñez,20 , nos mostra que: Simplesmente a incorporação da crítica desde o feminino a qualquer processo gerador de conhecimento e a integração de toda a prática desde a mulher como objeto de estudo. [...]. Trata-se em último termo de avançar para uma história que seja capaz de perceber a complexidade dos processos sociais desde uma ótica que tenha em conta a diversidade de sujeitos que participem deles. É evidente que o esquecimento, abandono, NUÑEZ, Martín Paradelo. Mulher, trabalho e anarquismo. In RAGO, Luzia Margareth. Compostela: CNT, 2012.Gênero e História. PERROT, Michelle. As Mulheres e os Silêncios da História. Bauru: EDUSC, 2007.p.15. 20 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 352 dissimulação, ou como queiramos dizer, da mulher como sujeito ativo em tão grande parte da historiografia não contribuiu de nenhuma maneira a proporcionar uma escrita histórica satisfatória, senão que ao contrário contribuiu a assentar a história como discurso ideológico das classes dominantes. A contextualização acima nos remete a indagações referentes ao esquecimento na escrita da história sob o olhar feminino, suas condições, verdades e mentiras, sentimentos, problematizações do cotidiano, seus questionamentos mais obscuros, e suas vontades mais impróprias, para um tempo singular, característico – masculino. Acerca do debate na introdução do papel da mulher na história, suas concepções e contradições do que já foi escrito são fatores de relevância no diálogo historiográfico onde o micro torna-se parte do macro. Silva 21 pondera em sua afirmação que o: Exercício e o diálogo com outros saberes proporciona meios de reflexão e estimula uma ação que possibilite romper com as amarras que inferiorizam e limitam as escolhas das mulheres, que possibilitam um controle sobre nossos corpos e escolhas. A partir destes diálogos que então, escreve-se a história das mulheres de Dom Aquino, numa teia que envolve seus saberes, saberes aqui colocado de forma generalizada, pois são delas o “poder” de soltar as amarras estabelecidas num tempo de antigamente, e que através das mudanças sociais ocorridas ao longo do tempo, elas puderam enfim se estabelecer e ascender social, profissional e pessoalmente. Os fragmentos narrados nas concepções históricas sob a pele e o olhar daquelas que foram sujeitos históricos cabem nas palavras de Bloch22 que a história para ser escrita deve ser estritamente nuançadas. SILVA, Valéria Fernandes da. História Feminista, uma história do possível. 2008. p.16 BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da História ou o ofício de historiador. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.p 07 21 22 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 353 Referências bibliográficas BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da História ou o ofício de historiador. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. DEL PRIORE, Mary. Histórias Íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta, 2011. MATOS, Maria Izilda S. de. Outras Histórias: as mulheres e estudos de gêneros – percursos e possibilidades. In SAMARA, Eni de Mesquita, SOIHET, Rachel e MATOS, Maria Izilda S. Genero em debate trajetória e perspectivas na historiografia contemporânea. São Paulo: educ, 1997.p 99-100. BARRETTO, Cristiane Manique. História e e Relações de Gênero. In MORGA, Antônio Emílio (org). Gênero, e Sociabilidade Afetiva. Itajaí: Casa Aberta, 2009. NAVARRO-SWAIN, Tânia. 1993/94 De deusa a bruxa: uma história de silêncio. Revista Humanidades, UnB/EdunB, vol.9, n.1/.31. NUÑEZ, Martín Paradelo. Mulher, trabalho e anarquismo. In RAGO, Luzia Margareth. Compostela: CNT, 2012.Gênero e História. PERROT, Michelle. As Mulheres e os Silêncios da História. Bauru: EDUSC, 2007 PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Trad. Angêla M.S. Corrêa. São Paulo: Contexto,2007. RAGO, Luzia Margareth. Do Cabaré ao Lar: a Utopia da Cidade Disciplinas – Brasil 1890-1930. 2º ed. Coleção Estudos Brasileiros v.90. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1985 SILVA, Valéria Fernandes da. História Feminista, uma história do possível. 2008. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 354 Luís Xavier de Jesus, de escravo a retornado O “lugar” social dos africanos na Bahia do século XIX Elaine Santos Falheiros1 1 Resumo: O presente trabalho tenta retratar parte da história de vida do africano Luís Xavier de Jesus que viveu e trabalhou na Bahia na primeira metade do século XIX até ter sido preso e deportado para a Costa da África, por supostamente ter se envolvido no levante escravo de 1835.2 Tentou regressar à Bahia a fim de liquidar seus bens e prometia voltar para a costa africana assim que o fizesse, mas por diversos motivos, seu regresso à província não foi autorizado. Palavras-chave: Cidadania; Africanos; Deportação. Abstract: This work tries to portray part of the life history of the African Luís Xavier de Jesus that lived and worked in Bahia in the first half of 19th century until he had been arrested and deported to Africa Coast, for supposing have been involved in the slavery insurrection of 1835. He tries to return to Bahia in order to liquidate his escheats and promised to go back to African coast as soon as he had done it, but because of various reasons, his regress to the state was not authorized. Keywords: Citizenship; Africans; Deportation. L uís Xavier de Jesus foi identificado na Bahia, em 1835, como sendo de nação jeje. Segundo Luis Nicolau Parés, os povos desta nação “tem sido usualmente identificados, ao menos a partir do século XIX [...], como daomeanos, isto é, grupos provenientes do antigo reino do Daomé. Segundo o autor, haveria na historiografia contemporânea, especulações Mestranda em História Social pelo PPGH-UFBA. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). Contato: [email protected]. 2 Sobre o levante escravo na Bahia, suas consequências e repercussões, ver REIS, João José, Rebelião escrava no Brasil, São Paulo: Cia das Letras, 2003, pp. 485-491. Outros autores também trazem algumas informações sobre a personagem deste projeto: OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto: seu mundo e os outros. Salvador: Corrupio, 1988, p. 39; VERGER, Pierre. Os libertos: sete caminhos na liberdade de escravos da Bahia no século XIX. Salvador: Corrupio, 1992, pp. 55-65 e BRITO, Luciana da Cruz, Sob o rigor da lei: africanos e africanas na legislação baiana (1830-1841), dissertação de mestrado, Unicamp, 2009, pp. 127-133. 1 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 355 acerca da formação deste reino, relacionadas às constantes ondas migratória “realizadas pelos grupos proto-iorubás que, chegados do leste, se estabeleceram no Golfo do Benim a partir do século XVII”. Na primeira metade do século XVII, um grupo dos agassuvi, saindo do reino de Allada – que havia sido conquistada por eles no século XVI -, foram em direção ao norte da costa ocidental da África, subjugando as populações locais, “como os guedevis e os fons”, assim fundando o reino do Daomé, e “estabelecendo Abomey (Agbomé) como sua capital” e ficaram conhecidos “pela denominação étnica „fon‟”. Na primeira metade do século XVIII, os “fons ou daomeanos” conquistaram o reino de Allada, e a família real deste fugiu para a parte leste, vindo a fundar “o reino de Adjaché ou Adjasé, conhecido entre os europeus como Porto Novo”. Ainda segundo Parés, inicialmente Allada devia tributos ao reino do Benim, entretanto o poderio na região era exercido pelo reino de Oyo. No final do século XVII, Oyo invadiu Allada “em consequência do massacre dos mensageiros do rei de Oyo enviados para Allada”. No século XVIII essas invasões continuaram, e por isso o reino do Daomé manteve-se subjugado pelo de Oyo por aproximadamente um século, quando no início do século XIX, “o rei Glele conseguiu libertar o seu povo desse domínio”. 3 Nesse sentido, pode-se inferir que Luís Xavier tenha sido capturado nesse contexto de submissão do reino de Daomé ao de Oyo, tendo ele sido capturado no final do século XVIII, e sua chegada à Bahia ocorrida entre o final deste e o início do século XIX. Em 1810, o africano comprou a sua liberdade por 200 mil réis, tendo demorado mais ou menos 10 anos para levantar a quantia, visto ser este o tempo que um escravo de ganho, caso ele fosse um, levava para conseguir comprar sua carta de liberdade na Bahia daquela época. 4 Acredita-se, entretanto, que era muito difícil para um escravo ainda jovem, imaturo no trato do comércio na Praça da Bahia, dominado por ricos e importantes negociantes, muitos deles ligados ao tráfico de escravos da África, conseguir juntar a quantia necessária para a compra de uma PARÉS, Luís Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, pp. 30-42. 4 O tempo para adquirir a alforria era estimado em 10 anos, segundo o viajante Henry Koster, citado por Manuela Carneiro da Cunha: CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros estrangeiros. Os escravos libertos e sua volta à África. Brasiliense, 1985, p. 34. Inventário de Luís Xavier de Jesus: APEBA, Judiciária, Inventários, 09/3814/10. 3 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 356 carta de liberdade. É possível que ele tenha obtido contribuição para a aquisição da mesma, ou que tenha, de acordo com certos padrões vigentes à época, se beneficiado de uma relação paternalista com seu ex-senhor, o que pode ter favorecido na forma como trabalhou e conquistou a alforria. Durante o tempo da escravidão, as relações paternalistas entre senhores e escravos eram uma chave para mecanismos para a conquista da carta de alforria e quiçá de ascensão social para alguns libertos. Segundo Luís Xavier ele havia sido escravo de Francisco Xavier de Jesus, de quem afirmou ter adotado o nome de família. Apesar de não ter conseguido reunir documentos capazes de atestar quem de fato havia sido o exproprietário do africano, foi possível localizar alguns que vale a pena expor na tentativa de compreender um pouco mais do universo desse africano. Em novembro de 1813, um Francisco Xavier de Jesus, proprietário de um estanque de tabaco, estava “doente de cama” e à beira da morte quando resolveu ditar seu testamento a Jorge Marques. Francisco disse ser católico romano, membro da “Irmandade de Nossa Senhora de Guadalupe e Santíssimo Coração de Jesus colocado na capela de Guadalupe”, sendo nela remido, e das irmandades do Senhor da Redenção, na capela do Corpo Santo, na freguesia da Conceição da Praia, e de São Benedito, no convento de São Francisco e a de Guadalupe, todas irmandades tradicionais dos “homens de cor”, sendo esta última, de homens pardos. 5 Morador na Rua da Poeira, freguesia de Santana do Sacramento, Francisco Xavier era natural da vila de Camamu, localizada ao sul da província da Bahia, e filho legítimo de Micaela Rodrigues, uma crioula forra. Membro de irmandade de homens de cor e filho de uma mulher que “que nunca havia sido casada”, Francisco Xavier havia sido escravo (“pardo forro”), e em 1798, quando era “oficial de sapateiro”, quando tinha 29 anos, casou-se com a filha de uma mulher parda (Ana Arcângela), Maria, também parda e forra, que tinha na época 19 anos. 6 No que se refere a suas posses, Francisco Xavier declarou possuir poucos bens, apenas alguns escravos – os quais ele não listou - e objetos de ouro e prata, além de um “estanque de tabaco na cidade de baixo, com pedra pilar, e duas mãos de ferro, e folhas usadas e tabaco que se achar no mesmo estanque”; isso pode sugerir algum envolvimento dele, ou de sua OLIVEIRA, O liberto, pp. 79-86. REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 54. 6 Testamento de Francisco Xavier de Jesus, 29/09/1813: APEBA, Judiciária, Livro de Registro de Testamentos nº 4 (Capital), fl. 46. ACMS, Casamentos, Conceição da Praia, 1776-1806. Agradeço a Lisa Castillo pela indicação deste registro de casamento. 5 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 357 mercadoria, no tráfico de escravos, uma vez que o tabaco, como é sabido, era um produto extremamente valorizado na Costa ocidental da África, sendo a principal moeda de troca por escravos daquela parte do continente africano. 7 Francisco Xavier faleceu pouco tempo depois e seu testamento foi aberto em 22 de janeiro de 1814, com o aceite de sua mulher, Maria Duo, para ser sua testamenteira. Se esse Francisco não era o senhor de Luís Xavier de Jesus, pode-se pressupor outro homônimo, sobre o qual encontrei apenas um registro de batismo de março de 1814. Neste, Francisca, jeje, adulta, escrava de Francisco Xavier de Jesus, “preto e solteiro”, foi batizada por Raimundo Maciel de Souza, também preto e solteiro. É possível que o vigário da igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, Antônio Carlos de Alvarenga, tenha, por um deslize, anotado erroneamente o nome do proprietário de Francisca (talvez numa confusão com o nome da escrava). Isso porque na mesma folha, no próximo registro de batismo posterior ao de Francisca, Luís Xavier de Jesus apareceu como senhor de Maria, também jeje e adulta, a qual foi batizada por Simião Pinheiro, homem pardo e solteiro. 8 Em março de 1814, Luís Xavier de Jesus batizou a crioulinha Joana, com apenas 1 mês de nascida, filha do casal de libertos jeje, José Marques de Oliveira e Joaquina Maria da Conceição. José Marques de Oliveira e Joaquina Maria da Conceição eram africanos libertos que, assim como Luís Xavier de Jesus conseguiram adquirir bens em Salvador, e por isso também se destacam no universo social dos libertos africanos da cidade na primeira metade do século XIX. Em 1827, por exemplo, José Marques e Joaquina Maria compraram por 60 mil réis um terreno com “uma casa de adobes”, localizado no Rio Vermelho. 9 Em 1828, o casal compadre de Luís Xavier de Jesus vendeu a Maria Joaquina do Sacramento uma casa pequena na Rua de Santo Antônio da Mouraria, foreira ao Mosteiro de São Bento por 300 mil réis. Em 1830, compraram de Felisberto Caldeira e sua mulher, Augusta Caldeira, uma casa na Rua de baixo de São Bento por 2 contos de réis e em 1835, José PARÉS, A formação do candomblé..., pp. 46 e 206. VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII ao XIX. 4ª ed. rev. Salvador: Corrupio, 1987, pp. 44-45. 8 ACMS, Batismos, Paróquia da Nossa Senhora da Conceição da Praia, 1809-1815, fl. 364 v. 9 Ibidem. APEBA, Judiciária, LNT 220, fl. 181 v. 7 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 358 Marques e Joaquina venderam a Joana Maria da Conceição uma casa sita na “Rua direita do Rosário de João Pereira” por 800 mil réis. 10 Assim como seus compadres e parentes de nação, Luís Xavier de Jesus também adquiriu bens e ascendeu socialmente durante a primeira metade do século XIX na Bahia. Em 1810, o liberto já havia conquistado sua liberdade, pela qual pagou 200 mil réis, como já disse. Capítulo à parte, um ano depois, Luís Xavier disse ter recebido da Coroa de Portugal - a patente de “capitão-de-entradas e assaltos”, pessoa responsável por capturar escravos fugidos e aquilombados. A lógica de ocupação deste tipo de cargo por libertos decerto levava em conta o conhecimento das estratégias de fuga empreendidas pelos cativos, bem como dos lugares onde se acoitavam os negros fugidos. 11 Figura 1: Capitão-do-mato. Gravura de Johann Moritz Rugendas, publicada em 1835. Fonte: FBN, Iconografia ARM. 23, 3, 12. 12 APEBA, Judiciária, LNT 223, fl. 118 v. APEBA, Judiciária, LNT 231, fl. 45. APEBA, Judiciária, LNT 257, fl. 35 v. 11APEBA, Legislativa, Abaixo-Assinados, 1836; NISHIDA, Mieko. “As alforrias e o Papel da Etnia na Escravidão Urbana: Salvador, Brasil, 1808-1888”. In: Revista de Estudos Econômicos. São Paulo. V.23, nº. 2, pp. 227-265, Maio- Agosto - 1993. MOTT, Luiz. “Santo Antônio, o divino capitão-do-mato”. In: GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José (orgs.). In: Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 110-138. REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. “Uma história da liberdade”. In: Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 15-17. 12 Disponível em http://consorcio.bn.br/slave_trade/iconografia/icon92944d2i11.jpg. 10 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 359 É possível que a partir da década de 1810, Luís Xavier já estivesse de posse de alguns bens, principalmente escravos. Haveria um “padrão” de aquisição de bens por parte dos africanos libertos que viviam em Salvador, a começar com a compra de escravos, e o posterior investimento dos lucros auferidos com a exploração da mão de obra desses cativos em bens imóveis. 13 Destaque-se, ainda, nesse sentido, a importância da freguesia da Conceição da Praia, localizada nas proximidades do porto de Salvador. Naquela época, Luís Xavier era morador na paróquia o que certamente o ajudou a vivenciar o dia-a-dia do comércio de negros na região, pois era lá que se localizava o mercado de escravos, além certamente ter facilitado um relativo fluxo de informações e trocas comerciais com os portos da África, o que justificaria já naquela época a aquisição de escravos. Segundo Anna Amélia Nascimento, “a presença obrigatória dos negros [na Conceição da Praia] foi objeto de observação de vários viajantes estrangeiros”: Sabemos que os africanos, escravos ou libertos, mantinham um contato permanente com a África através dos navios que constantemente atracavam na Bahia. É evidente que os ganhadores que atuavam na região portuária da Cidade Baixa em geral eram os que mais possibilidades tinham de fazer os contatos e transmitir as notícias aos demais. 14 Na análise da documentação, observou-se primeiramente a aquisição de imóveis por parte de Luís Xavier de Jesus, o que não impede que o liberto tenha antes disso a posse de escravos. Em agosto de 1824, o “Capitão Luís” comprou uma casa térrea na “Rua direita de Nossa Senhora da Saúde, com quintal cercado e o fundo murado”, a ele vendida pelo Capitão Francisco Durões Sampaio pela quantia de 400 mil réis, valor equivalente a, pelo menos, dois escravos adultos na época, quando o preço REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CASTILLO, Lisa Earl; PARÉS, Luis Nicolau. “Marcelina da Silva e seu mundo: Novos dados para uma historiografia do Candomblé Ketu”. Revista Afro-Ásia, nº 36 (2007), pp. 111-50. 14 OLIVEIRA, O liberto, p. 19 e 32. Lisa Castillo e Nicolau Parés, “Marcelina da Silva e seu mundo”. NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Dez freguesias da Cidade do Salvador; Aspectos Sociais e Urbanos do Século XIX. Salvador, FCEBa. /EGBa., 1986, p. 76. 13 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 360 médio de um cativo adulto, gozando de bom estado de saúde, girava em torno de 150 mil réis. 15 Quase três meses depois, em novembro de 1824, Luís Xavier de Jesus comprou de Joaquim Santana de Almeida e seu irmão, Alexandre de Almeida, outra propriedade, talvez uma casa mais modesta, situada na “Rua direita do Alvo para a Igreja da Saúde” por 150 mil réis. Menos de um ano depois, em setembro de 1825, o liberto comprou de Manoel Luís do Sacramento, “uma morada de casa térrea”, feita de taipa e madeira, sita à Rua da Poeira, pela quantia de 200 mil réis. Em um ano, o liberto Jesus adquiriu três imóveis, algo incomum para a época, quando viviam com antigos senhores ou em quartos e casas alugadas com outros libertos. O próprio Luís Xavier tinha inquilinos pretos egressos da escravidão. 16 Figura 2: “Sinal” de Luís Xavier de Jesus, 1824. Mas a ascensão social de Luís Xavier não se dava apenas com a compra de propriedades. Por exemplo, em março de 1826, Francisca do Sacramento tomou emprestada à ele a quantia de 64 mil réis, momento em que registrou uma escritura de débito e obrigação do pagamento. Em julho de 1827, Francisca tomou mais dinheiro emprestado a Luís Xavier e deveria pagar no total, 120 mil réis num prazo de dois anos. Como garantia para o pagamento da dívida, Francisca hipotecou uma casa térrea na Rua Direita da Saúde. Como não sabia escrever, o documento foi assinado a seu rogo por Militão Joaquim Urtiga, o que pode ser um indício de ter sido ela africana. Se assim o fosse, Luís Xavier de Jesus, além de investir em imóveis, deveria realizar empréstimos a juros para membros da comunidade africana de Salvador. Menos de um mês depois, em agosto de 15APEBA, Judiciária, LNT 213, fl. 81. João Reis, Rebelião escrava, p. 486. Judiciária, LNT 219, folha 119. APEBA, Judiciária, LNT 215, folha 32. APEBA, Judiciária, Inventários, 09/3814/10. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006. CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 16APEBA, REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 361 1827, o liberto comprou de Pedro Lopes dos Santos outra “morada de casa térrea” na Rua do Jenipapeiro, por 300 mil réis. Agora são quatro casas. 17 Após pelo menos 40 anos de residência na Bahia, Luís Xavier de Jesus desfrutava dos bens e rendimentos que acumulara, quando explodiu a Revolta dos Malês, em janeiro de 1835, em Salvador. As ocorrências daquele mês foram decisivas e diretamente relacionadas com o que o liberto viria a enfrentar futuramente. Luís Xavier foi acusado, segundo ele, injustamente, de ter participado da revolta escrava. De fato, Luís Xavier não foi acusado formalmente. Seu nome não contava dos autos da devassa, e nenhum inquérito policial foi instaurado para a apuração de seu envolvimento no levante. Apesar de não ter sido denunciado formalmente, ele acabou sendo deportado para a Costa da África, sem que as autoridades da Bahia lhe dessem tempo, como pediu, para encerrar seus negócios na província antes de partir. Ele foi enquadrado na Lei nº 9 de 13 de maio de 1835. A lei nº 9 de 13 de maio de 1835 autorizava o governo provincial a expulsar do Brasil quaisquer africanos forros de qualquer sexo, suspeitos, mas sem provas cabais de promover a revolta de escravos. Além disso, regulamentava o projeto de deportação dos africanos libertos residentes na Bahia, e estabelecia que eles, “suspeitos ou não, deveriam deixar o país, assim que o governo negociasse um lugar na África para recebê-los”. Além disso, estabelecia o pagamento de um “imposto anual de 10 mil réis”, com algumas exceções. Também foram proibidos aos africanos a aquisição de novos bens, apesar de poderem continuar na posse daqueles já existentes. Além disso, foram proibidos os aluguéis de “quartos e lojas a escravos”. 18 Ainda em 1835, o nome de Luís Xavier de Jesus liberto apareceu numa lista de africanos presos que aguardavam a deportação para a Costa da África, vindos da Quinta dos Lázaros, do Arsenal de Guerra e do Arsenal da Marinha– locais que não eram propriamente prisões, o que sugere que eram africanos livres, resgatados do tráfico ilegal, os quais também estavam prestes a ser deportados. 19 17APEBA, Judiciária, LNT 220, fls. 118-118-v. APEBA, Judiciária, LNT 219, fls. 193-194. REIS, Rebelião escrava, p. 498-503. Brito, “Sob o rigor da lei”, pp. 36-48. 19 Ibidem, p. 597. APEBA, Chefes de polícia, maço 2949 (1835- 1841). Inventário de Luís Xavier de Jesus: APEBA, Judiciária, Inventários, 09/3814/10. 18 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 362 Figura 3: Nome de Luís Xavier de Jesus numa lista de escravos que aguardavam deportação para a Costa da África, em 1835. Fonte: APEBA, Colonial, Chefes de polícia, maço 2949, 1835. A deportação de Luís Xavier de Jesus, ocorreu em 8 de novembro de 1835, quando o governo brasileiro fretou o patacho Maria Damiana, de propriedade de Manoel Roberto Pereira, por 8 contos de réis, para que de 150 a 200 africanos fossem desembarcados no porto de Ajudá (ou Uidá), porto negreiro do Golfo do Benim. Para comprovar o desembarque dos africanos, Manoel Pereira comprometeu-se a levar de volta para a Bahia algum documento assinado por Francisco Félix de Souza (o Xaxá de Uidá) e do comandante da fortaleza de Uidá ou o de qualquer outra autoridade competente de qualquer outro porto, a fim de comprovar o desembarque de todos os africanos deportados naquela ocasião. 20 Francisco Félix de Souza foi um dos mais ricos e opulentos comerciantes de escravos de toda a Costa da África durante a primeira APEBA, Colonial, Governo da província, Correspondências expedidas para o governo imperial, maço 682 (1835-1836). Ver também Reis, Rebelião escrava, pp. 479-485. Segundo Lisa Castillo, o Maria Damiana deixou Salvador em 12 de Novembro de 1835, levando 148 passageiros a bordo, Castillo, “The exodus”, p 11. 20 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 363 metade do século XIX, até 1849, ano em que morreu. Existe uma tradição oral segundo a qual os africanos deportados depois da rebelião escrava em Salvador, quando chegaram em Uidá, receberam do Xaxá “pedaços de terra numa área da cidade que é ainda associada aos retornados”. Lá estabelecidos, passaram a desenvolver atividades relacionadas com as oportunidades de negócio existentes na região. 21 A partir de 1830, Uidá transformou-se no principal porto da costa do reino do Daomé, tendo se tornado o centro do tráfico ilegal na região, sendo este período “marcado pelo crescimento de uma comunidade brasileira residente em Uidá”, com origens ligadas ao traficante brasileiro Francisco Félix de Souza. Robin Law fala de um bairro “brasileiro” em Uidá, reforçado pelo estabelecimento de libertos de origem africana que retornaram do Brasil e fixaram-se em Uidá a partir de 1835. Esta comunidade “brasileira” estava assim “definida pelo uso da língua portuguesa e pela fidelidade a Igreja Católica Romana”. De Uidá, Luís Xavier enviava escravos para correspondentes estabelecidos na Bahia, o que demonstra o grau de complexidade do tráfico de escravos, como já salientado por Jaime Rodrigues, que compreendia uma gama de sujeitos e interesses, os quais obstavam o término de fato da atividade, já considerada ilegal desde a década de 1830. 22 Além do Xaxá, Domingos José Martins é exemplo de importante comerciante brasileiro de escravos que operou em Ajudá, Cotonou e PortoNovo. Segundo Luiz Henrique Dias Tavares, este negociante conseguiu manter-se no comércio até 1860, fazendo o “duplo jogo de produtorexportador de azeite de palma em Porto-Novo e fornecedor de escravos para o Brasil e Cuba, além de ter sido líder em Ajudá e Porto-Novo de exescravos, vindos do Brasil”. 23 Pierre Verger também discorre sobre a vida de Domingos José Martins e suas ligações comerciais na costa africana, tratos com importantes negociantes de escravos e suas relações com o rei do Daomé. Entretanto, quem faz um relato mais completo de Domingos José Martins é David Ross, em artigo publicado na década de 1960. Segundo este autor, Castillo, “The exodus”, p 12. LAW, Robin. “A comunidade brasileira de Uidá e os últimos anos do tráfico atlântico de escravos, 1850-66”. Afro-Ásia, nº 27 (2002), pp. 41-42.ROSS, David. “The career of Domingo Martinez in the Bight of Benin, 1832-1864”.The Journal of African History, vol.6, nº1, 1965, p.7990. RODRIGUES, Jaime. De Costa a Costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola para o Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Cia. das Letras, 2005, p. 96 e 114. 23 TAVARES, Luís H. Dias. Comércio proibido de escravos. São Paulo: Ática/CNPq. 1988, p. 62. 21 22 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 364 Domingos teve importante participação no desenvolvimento do comércio de escravos na costa africana, tendo chegado à Baía do Benin em 1830, como tripulante do navio consignado a Francisco Félix de Souza, o famoso Xaxá. Para Ross, Domingos José Martins tornou-se o mais importante comerciante da costa Africana, após o declínio da fortuna da família de Francisco Félix de Souza, com a morte deste, como dito, em 1849. Domingos fez fortuna e fama nos portos da região de Lagos, tendo sido “líder de uma sociedade de ex-escravos brasileiros os quais obtiveram a liberdade e retornaram à baía para se transformar em negociantes de escravos”. Em Lagos conseguiu trabalho com um escravo chamado “Dos Amigos”, a partir do qual estabeleceu contatos com os importadores brasileiros. Após o falecimento de Francisco Félix de Souza, Domingos José Martins tornou-se um “mensageiro de todos os assuntos relacionados ao comércio com os europeus, base econômica do reino daomeano”. 24 É provável que Luís Xavier de Jesus tenha circulado por esses locais antes de estabelecer-se definitivamente em Uidá. Não obstante o seu envolvimento com a comunidade de retornados na baía do Benim, e o envio de escravos da África para o Brasil, o liberto tentou por diversas ocasiões obter licença do governo brasileiro para retornar à Bahia para tratar de seus negócios (decerto liquidá-los) e voltar para a costa africana. Em 1836, Luís Xavier escreveu uma petição à Assembleia Legislativa da Província da Bahia, quando solicitou permissão para regressar ao Brasil e condenou a forma como fora “violentamente impelido a embarcar para os Portos da África, como aventureiro suspeito e como perigoso”. 25 O liberto afirmou que de africano só possuía o nascimento, pois a “educação, as relações, os bens, a honra, tudo enfim eram baianos”. Ele tentou convencer os deputados provinciais de que, apesar de nascido na África, já estava bem adaptado aos valores e costumes apreciados pela elite baiana. Luís disse ter “sentido vivamente que um precipitado juízo levou o magistrado [que ordenara sua deportação] a dar ouvidos” a algum “ambicioso” de olho nos seus bens. Por isso, depois da sentença foram lançados sobre ele a “dor, o desterro, a miséria e o opróbrio”, e por fim, questionou: “Quais foram os motivos de tanta suspeita?”. VERGER, Fluxo e refluxo, pp. 496-503. LAW, Robin; MANN, Kristin. “West Africa in the Atlantic Community: The case of the Slave Coast”. The William and Mary Quarterly, 3rd Ser., vol. 56, nº 2, African and American Atlantic Worlds. (Apr., 1999), p. 324. Ross, “The Career of Domingo Martinez in the Bight of Benin”, p. 79. 25ANRJ, GIFI, Cx. 5 B 207. Petição de Luís Xavier de Jesus: APEBA, Legislativa, Abaixoassinados, maço 979 (1835-1836). 24 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 365 Indignado, Luís Xavier expôs que o executor de sua sentença nada lhe deixou de seus muitos bens e tentou em vão convencer os deputados provinciais de que, sendo senhor de uma considerável fortuna, preferia, em vez da África, viver em um país “civilizado”, que “amava a indústria” e os industriosos, como o Brasil. Na época, Luís Xavier disse ser detentor de uma fortuna avaliada em mais de 60 contos de réis, certamente um exagero, artifício para convencer os parlamentares, uma justificativa para embasar o argumento de que qualquer país civilizado se apressaria em acolhê-lo. Por fim, o liberto solicitou que fosse “restituído à sua casa, seus amores e relações, aos seus bens e à sua indústria”, e disse ser capaz de apresentar “cidadãos abastados” para atestar sua probidade. 26 Esse pedido de Luís Xavier feito à Assembleia provincial da Bahia foi enviado à Comissão de Justiça Civil e Criminal e a da Polícia, em fevereiro de 1836, e poucos dias depois encaminhado ao presidente da província. Não foi encontrado nenhum parecer a esse pedido, apenas um ofício de Antônio Simões da Silva, juiz de direito e chefe de polícia na época da Revolta dos Malês, datado de novembro de 1836, portanto 9 meses após aquela petição, dirigida ao presidente da província e demais membros da Assembleia provincial. Segundo o parecer assinado por Simões, pouco antes da insurreição de janeiro de 1835, ele foi “comunicado por pessoas sérias e de conceito” que afirmaram que o liberto era “suspeito de saber” e de ser conivente com a revolta dos escravos, além de permitir em sua casa reuniões de africanos. O chefe de polícia apresentou também “outras razões” para a deportação do africano, como a “má conduta deste em algumas pequenas revoluções aparecidas anteriormente” em Salvador, referindo-se, provavelmente, às revoltas escravas ocorridas na província desde pelo menos 1807, mas nada provou, inclusive nenhum documento, ao que parece, foi anexado ao parecer. Segundo Simões, essas razões foram suficientes para enquadrar Luís Xavier no artigo 1º da lei nº 9, e serviram para demonstrar o ódio que, segundo ele, o liberto nutria “a certas classes de pessoas deste país”. Mas o que parecia era o contrário, que certas classes de pessoas do Brasil é que pareciam odiar o africano. Enfim, o pedido de retorno de Luís Xavier foi negado, e conforme será visto, esta decisão seria 26 REIS, Rebelião escrava, p. 486. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 366 constantemente reiterada nas respostas aos sucessivos pedidos que foram feitos a partir de 1835 pelo liberto exilado. 27 Antônio Simões da Silva empreendia todos os esforços para ver deportados da Bahia tantos africanos quanto fosse possível após a rebelião de 1835. Em Junho de 1835, ordenou ao administrador da “Mesa das Diversas Rendas” para lhe avisar assim que alguma embarcação começasse a carregar gêneros para a Costa da África, “a fim de serem transportados para ali os africanos suspeitos”. Em Novembro de 1836, Antônio Simões informou ao presidente da província a deportação de 11 africanos libertos, a bordo de dois navios, Aníbal e Triunfo, “em conformidade com a lei provincial”, que existia, mas que só era invocada em determinados momentos. Há registros de embarcações com esses nomes que faziam o tráfico clandestino de escravos. 28 Essa é uma questão importante. Como foram muitos os africanos enquadrados na lei nº 9, o governo da província não dispunha de embarcações próprias que pudessem ser destinadas ao transporte deles de volta à África. Por isso, essas viagens de retorno se transformaram num rentável negócio, realizado por negociantes ligados ao tráfico de escravos clandestino, proibido desde 1831. João da Costa Júnior, um rico traficante de escravos, em 1838, levou 5 africanos a bordo do seu navio, a embarcação Heroína, para a costa africana. 29 A deportação de Luís Xavier de Jesus fazia parte de um projeto de exclusão da população africana da cidade de Salvador, colocado em prática pelas autoridades da província, após a revolta escrava de janeiro de 1835, e que logicamente não atingiu somente a ele. Na documentação do ano de 1835, disponível no Arquivo Público do Estado da Bahia, pipocam relatos de autoridades baianas que informavam sobre a prisão de africanos que seriam deportados depois de janeiro daquele ano. Um exemplo foi o ofício Ibidem, pp. 68-121; Brito, “Sob o rigor da lei...”, pp. 131-132. VIANA, Padre A. da Rocha. Compilação em índice alfabético de todas as leis provinciais da Bahia, regulamentos e atos do governo para execução das mesmas. Bahia: Typ. e livraria de E. Pedrosa, 1858, p. 136. Disponível em: < http://books.google.com.br/books?id=ioswAAAAIAAJ&printsec=frontcover&hl=ptBR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false >. Acessado em: 18/04/2013. 28 No sítio www.slavevoyages.org.consta 17 viagens de embarcações com o nome Aníbal e 15 com o Triunfo. 29 REIS, Rebelião escrava, pp. 481-482. BETHELL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos: A Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do comércio de escravos, 1807-1869. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002, pp. 85-111. “Presidentes e vice-presidentes que administraram a província da Bahia durante o período imperial”. Disponível em http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/fontes_escritas/2_Pombalino/presidentes _provincia_bahia_periodo_imperial.htm. Acessado em 19/11/2012. 27 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 367 enviado por Antônio Simões da Silva para o vice-presidente da província, Visconde do Rio Vermelho: Informando a V. Exa. sobre o requerimento incluso, cumpre-me dizer, que os suplicantes foram presos em consequência da busca dada pelo juiz municipal por suspeitas de serem coniventes na insurreição da noite do dia 24 para 25 de Janeiro do corrente ano, tendo se formado um processo pelo juízo de paz do respectivo distrito; e porque em conformidade das ordens a tal respeito devem ser deportados para fora do Império, por isso ainda se conservam na prisão da Cadeia do Aljube. À vista, pois do que tenho expendido V. Exa. deliberará como julgar conveniente. Deus guarde a V.Exa. Bahia, 2 de Setembro de 1835.30 Como bem salientou Lisa Castillo, a proibição de permanecer no Brasil não se aplicava somente aos africanos tidos como suspeitos de participação na revolta escrava. Tal negação era estendida aos libertos que viajavam voluntariamente para a Costa da África depois de 1835. Por exemplo, em março de 1837, o africano, Filipe Francisco Serra enviou à Assembleia Legislativa da província um pedido de entrada na Bahia. Mesmo demonstrando que já tinha uma vida pacificamente constituída, com família e trabalho na província, lhe obstaram o retorno. Para as autoridades da província, não deveria haver exceção. Filipe era de nação jeje, maior de 50 anos e havia ido para a Costa da África em Fevereiro de 1835, para se “encarregar da feitoria” do negociante Joaquim José Duarte. Em sua petição, alegou que era barbeiro e que morava na Bahia havia 40 anos, mas estava “ausente de sua casa e filhos, sem poder dar cumprimento às suas obrigações como chefe de família”, em função da publicação da lei nº 9, de 13 de Maio de 1835. Esta, dentre outras coisas, preconizava que os africanos forros que estivessem fora do país e que tentassem retornar à Bahia, “mesmo não tendo sido expulsos, [...] seriam levados a julgamento por crime de insurreição e, se absolvidos, [deveriam ser] expulsos do país”.31 Vê-se, portanto, a dificuldade que tinha um africano para regressar à Bahia. É muito provável que Filipe não tenha conseguido retornar à APEBA, Colonial, Chefes de polícia, maço 2949 (1835- 1841). REIS, Rebelião escrava, p. 498. ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 48-9. 30 31 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 368 Bahia, a contar com a demora e o jogo de empurra que as autoridades faziam quando precisavam decidir sobre os pedidos de retorno elaborados pelos africanos. No caso de Filipe, mais de um ano depois, sua solicitação foi descartada, em abril de 1838, “por pertencer às Autoridades Executoras das Leis”. Ou seja, quem deveria julgar se o africano regressaria ou não para a província seriam as autoridades policiais, e não os legisladores. 32 Esses pedidos de retorno podem ser considerados como fontes preciosas para o entendimento de “diferentes meios sociais e grupos etários”, além de serem importantes para a compreensão das atitudes diante das autoridades locais e imperiais dos sujeitos envolvidos. Através da análise dessas fontes, pode-se perceber também as normas sociais e culturais vigentes na época. No caso desses africanos – tanto Luís quanto Filipe – percebe-se que das experiências de vida de cada um em particular, foram selecionados os fatos considerados por eles como mais importantes e elucidativos, razões que embasaram seus discursos e que fizeram com que ganhassem coerência. Sendo iletrados – no sentido de não alfabetizados -, obviamente ambos tiveram de lançar mão de procuradores que podem ter sido atraídos pela história em si desses sujeitos e não apenas pelo problema legal que enfrentavam. Os africanos, eles próprios, eram os primeiros autores de suas histórias, e de certa forma, eram dotados nesse sentido. Escrevendo sobre as cartas de remissão na França do século XVI, Natalie Davis conclui: “[...] Contudo, mesmo sendo produto de uma colaboração, a carta de remissão ainda pode ser analisada nos termos da vida e dos valores da pessoa que quer salvar a própria vida por meio de uma história”. 33 Voltando ao caso de Luís Xavier de Jesus, em agosto de 1837, ele enviou mais um pedido de retorno à Assembleia Legislativa da Bahia. No documento, o liberto retomou o argumento de que fora “violentamente preso e mandado para a Costa da África”, afirmando ter requerido do governo provincial a licença para “poder regressar a cidade a fim de pessoalmente tratar de dispor de seus bens, ajustar suas contas no Comércio e mudar de domicílio para qualquer outra província do Império e mesmo para fora do Brasil”, se comprometendo a arcar com todos os custos de sua viagem. 34 Nascimento, Dez freguesias, p. 196. Reis, Rebelião escrava, pp. 498-503. Petição de Filipe Francisco Serra. APEBA, Assembleia Legislativa Provincial, Petições (1837). 33 DAVIS, Natalie Zemon. Histórias de perdão e seus narradores na França do século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 23-61. 34 Petição de Luís Xavier de Jesus: APEBA, Assembleia Legislativa provincial, Petições (1837). 32 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 369 Segundo Luís, essas autoridades consideraram inadequadamente quaisquer africanos forros, como “suspeitos de promover de algum modo a insurreição de escravos.” E, finalmente, concluiu que a Lei de 13 de maio de 1835 autorizava somente a expulsão do suspeito da província, sendo que ele fora “levado para fora do Império à força e diretamente para a Costa da África”, mesmo tendo se oferecido para sair da Bahia às suas próprias custas, fretando até uma embarcação, se fosse necessário, “dando fiança do seu procedimento até que brevemente saísse, e de sair com efeito no prazo que lhe fosse prescrito”. 35 Foi-lhe também negado esse pedido de retorno feito em 1837, pois mais tarde o liberto solicitaria outros. Não obstante o liberto lançava mão de solidariedades com autoridades locais, como o chefe de polícia na Bahia, André Pereira Lima, que em ofício dirigido ao presidente da província, em 7 de julho de 1841, esforçou-se para transmitir uma opinião favorável de Luís Xavier: Quando se promulgou a Lei Provincial nº 9, ocasionada pela insurreição de janeiro de 1835, o então chefe de polícia Antônio Simões da Silva mandou deportar a todos os africanos libertos que estavam presos e contra os quais não se tinha formado processo. Nesse número creio que iria o suplicante Luís Xavier de Jesus, a respeito do qual nenhum termo, assunto ou parte oficial existe quer nesta Secretaria de polícia, quer no cartório do Escrivão das Execuções. Daqui se vê que quando mesmo o dito Luís voltasse a esta cidade independente de concessão que ora requer, difícil seria impor-lhe pena pela falta de documento que provasse a deportação. E por isso acho deferível o requerimento, tanto mais por que de alguma maneira já foi punido, e certo no resultado, se por ventura concorrer para insurreições, ele disso se absterá. É o que se me aferi informar a V. Exa. 36 Conhecendo a história de Luís Xavier, o chefe de polícia tratou de dizer que o africano já havia sido punido pelo fato de já estar a dois anos distante de seus bens, negócios e relações sociais que constituiu na Bahia. Entretanto, seu parecer não contribuiu para que outras autoridades Ibidem. Grifos originais. Ofício de André P. Lima ao presidente da província em 7 de Julho de 1841. APEBA, Colonial, Chefes de Polícia, maço 2949 (1835-1841). Também publicado por Verger, Os libertos, p. 137. 35 36 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 370 provinciais modificassem suas opiniões e decisões. Elas não permitiram o retorno de Luís Xavier à província. Entretanto, André Lima, uma autoridade legal, se esforçava para ajudar os africanos que, injustificadamente, eram deportados para a Costa da África. É o que se depreende também da história de Anastácio Pereira Galo. Em 1841, Anastácio estava preso sem motivo aparente e seria deportado, enquadrado no artigo 1º da lei provincial nº 9. Segundo André Lima, o africano estava preso havia seis meses por ordem de seu antecessor, em função de uma “trama urdida por um devedor poderoso, para se ver livre do miserável credor”. Ao tomar conhecimento do real motivo da prisão de Anastácio, André Lima imediatamente mandou relaxar sua prisão, mas acabou surpreendido por uma decisão do juiz de paz da freguesia da Sé, José Joaquim dos Santos, “amigo íntimo do interessado na deportação” de Anastácio. De fato, é possível que pedidos de retorno tenham sido negados e que algumas deportações tenham sido declaradas em razão de querelas que pudessem envolver africanos e brasileiros, como no caso de Anastácio. Conforme veremos, uma demanda como esta também permeou a história de Luís Xavier de Jesus. De todo modo, André Lima solicitou ao juiz que, em duas horas, esclarecesse os reais motivos para se opor à liberdade de Anastácio, fundamentando suas razões no Código de Processo Crime do Império, que determinava Habeas Corpus para “todo o cidadão que entender que, ele ou outrem sofreu uma prisão ou constrangimento ilegal, em sua liberdade”. 37 Em resposta, José Joaquim dos Santos acusou o recebimento do “despropositado ofício” do chefe de polícia às “6 horas da tarde”, sendo que lhe parecia absurdo o fato de receber um documento àquela hora, provavelmente final de expediente. Segundo ele, haveria prazo legal para fundamentar a prisão de Anastácio, e avisou ao chefe de polícia que, se mandasse soltar o africano ele seria obrigado a levar ao conhecimento das autoridades competentes que André Lima “inutilizava as medidas que ele empregava para descobrir os introdutores de moedas-papel falsas que existiam em circulação”. Por fim, em tom de ameaça, lembrou ao chefe de polícia que a pena aplicada a quem “tirasse o que estivesse legalmente preso, da mão e do poder do oficial de justiça”, era de prisão com trabalho por um período entre dois e oito anos. 38 37APEBA, Colonial, Chefes de Polícia, maço 2949 (1835-1841). Código de Processo Criminal de primeira instância. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-29-11-1832.htm. Acessado em 16/10/2012. 38 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 371 Não foi possível descobrir qual o desfecho dessa história, entretanto, ficou a suspeita de que os reais motivos que levaram ao pedido de deportação de Anastácio seriam os mais escusos e contraditórios possíveis. Ao que parece, no caso de Anastácio, ele ficaria preso em razão do cometimento de um suposto crime 39 – introdução de moeda-papel falsa -, mas fica evidente que a razão da prisão era outra, um credor que não desejava pagar a dívida que tinha com o africano. No caso de Luís Xavier ele teria sido deportado por causa de denúncia infundada de participação na Rebelião Malê, feita por alguém interessado em sua fortuna, segundo alegou. Em julho de 1841, André Lima informou ao presidente da província mais uma deportação: Em cumprimento do despacho de V. Exa. exarado na petição que devolvo, tenho a informar que é verdade ter sido deportado para a Costa da África no iate Xisto, o africano liberto João, nação Moçambique, e é costume pagar-se de frete 30$000. Deus guarde a V. Exa. André Pereira Lima. 40 Se alguns africanos podiam contar com uma relativa simpatia do chefe de polícia o mesmo não se pode afirmar com relação à conduta de outras autoridades locais, como o juiz Antônio Simões da Silva, que também foi chefe de polícia, e que fazia questão de mandar deportar africanos libertos que residissem na Bahia. Em 1839, após quatro anos da Revolta Malê, o medo da rebelião ainda atemorizava os dirigentes e era pretexto utilizado para incriminar africanos libertos, que eram suspeitos de estar sempre conspirando. Em outro pedido de retorno, sem data, escrito por um procurador, José Joaquim de Magalhães, Luís Xavier dizia estar “reduzido ao mais triste estado de miséria nos últimos dias de sua vida, sem poder lançar mão daquilo que adquirira com seu trabalho e indústria”. Por isso, rogava que, “por caridade se concedesse licença para que pudesse regressar ao Império”, pelo prazo de um ano, quando ficaria sob as “vistas das Código Criminal do Império do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm. Acessado em 16/10/2012. 40 Ofício de André P. Lima ao presidente da província em 12 de Julho de 1841. APEBA, Colonial, Chefes de Polícia, maço 2949 (1835-1841). 39 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 372 autoridades policiais”, se assim fosse julgado necessário, até que concluísse seus negócios e por fim prometia regressar à Costa da África. 41 Em ofício de agosto de 1843, o chefe de polícia, que não foi possível identificar, encaminhou o pedido ao presidente da província, Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos, e logo o informou que, em 1835, tinham sido colhidas “informações exatas” sobre a conduta de Luís Xavier pelo então chefe de polícia, Antônio Simões da Silva, que constatara serem “frequentes as reuniões de africanos” na casa dele, e por isso fora deportado em 8 de novembro de 1835. João Reis sugere que não se tratava de reuniões conspiratórias. Segundo ele, o fato do liberto possuir 17 escravos tornava as “reuniões” entre eles inevitáveis, “e, quando festivas, deviam enquadrar-se na cultura de ostentação de poder, riqueza e prestígio demonstrados através da distribuição de comida e divertimento a dependentes e amigos, algo comum entre africanos afluentes de ambos os lados do Atlântico”. Por isso, alegando “justos receios de nova insurreição”, Antônio Simões negou o pedido de licença para retornar, e em seu parecer alertou para o mau exemplo que Luís Xavier poderia dar aos outros africanos que residiam na Bahia, em razão de certo “predomínio que tinha sobre os africanos, o que dentre eles mais abastado [é]”. 42 Fica explícito, portanto, que não era apena a conduta “conspiratória” de Luís Xavier – que “reunia africanos em sua residência” o que motivava as decisões das autoridades locais sobre os seus pedidos para regressar à Bahia. A ascensão social experimentada pelo africano incomodava os servidores do Estado, muitos dos quais não tinham sequer, metade da quantidade de escravos que Luís tinha. Como exemplo, pode-se citar o curador geral dos órfãos, Domingos José Cardoso que, em 1849, tinha apenas 3 escravos. A prosperidade do liberto numa conjuntura marcada pela quase total exclusão da população negra/ mestiça da posse de bens do país incomodava. 43 Em 1846, o pedido de Luís Xavier foi feito ao Imperador, que através do ministro da justiça enviou ofício ao presidente da província da Bahia, Francisco José de Souza Soares d‟Andrea. Este solicitou informações ao chefe de polícia – que não identifiquei -. Segundo este, a polícia não tinha obtido qualquer informação acerca da decisão sobre os pedidos de retorno de Luís Xavier à Bahia. E aproveitou para reforçar junto ao 41ANRJ, GIFI, Cx. 5 B 207. GIFI, Cx. 5 B 207. Reis, Rebelião escrava, p. 488. 43 “Relação dos escravos existentes na freguesia de Santana”: APEBA, Colonial, Escravos, maço 2898 (1830-1889). 42ANRJ, REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 373 presidente da província que o juízo que ele tinha acerca do liberto era o mesmo em 1846. No outro dia, 6 de novembro, este parecer foi anexado pelo presidente da província, em resposta ao ministro da justiça, limitandose a “oferecer como própria a informação que a tal respeito [havia exigido] do chefe de polícia”, a fim de que o ministro, diante dela, deliberasse como entendesse. 44 Da análise desse documento fica evidente que em setembro de 1842 e fevereiro de 1844 foram expedidos “avisos” que deveriam permitir o retorno de Luís Xavier à Bahia. Entretanto, ou esses avisos não foram cumpridos, ou o liberto tomou conhecimento deles tardiamente, e por isso não tinha ainda conseguido regressar. Por fim, como resposta ao ofício do ministro da justiça, escreveu o presidente da província, em novembro de 1846: Restituo a V. Exa. o incluso requerimento, em que Luis Xavier de Jesus, africano liberto, residente em Ajudá na Costa da África, pede se declarem em vigor os Avisos expedidos a esta presidência em 28 de Setembro de 1842 e 8 de Fevereiro de 1844, pelos quais lhe foi permitido vir a esta cidade, e nela residir por espaço de oito meses, sob a vigilância da polícia, a fim de poder dispor dos bens que aqui possue; e cumprindo quanto S.M.O.I. [Sua Majestade o Imperador] exige no aviso de V. Exa. de 20 de Outubro último, que acompanhou o requerimento do suplicante, ofereço como própria a informação que a tal respeito exigi do chefe de polícia, e vai junta, para que o mesmo Augusto Senhor, à vista dela delibere como houver por bem[...]. 45 Parece que Luís Xavier passou a adotar outra estratégia. Agora os pedidos eram dirigidos ao Imperador, pois certamente ele já havia percebido através de sua própria experiência que as autoridades baianas não lhe permitiriam o regresso à província. Destaque-se, nesse sentido a importância da figura do rei como referência para um parecer mais “imparcial” nessa história, e o papel dela para o reforço da soberania real. Entretanto, esses pedidos agora dirigidos às autoridades imperiais “Fala dirigida a Assembleia Legislativa Provincial da Bahia, na abertura da sessão ordinária do ano de 1846, pelo presidente da província, Francisco José de Souza Soares d‟Andrea”. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/109/. Acessado em 21/11/2012. 45 Ofício do presidente da província ao ministro da Justiça (06/11/1846): ANRJ, GIFI, Cx. 5 B 207. 44 Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 374 continuariam a ser negados, haja vista que, uma vez recebidos, eram encaminhados às autoridades baianas, a fim de que fossem repassadas informações precisas recolhidas pelas autoridades locais acerca do peticionário. Ao serem submetidos ao crivo das autoridades baianas, esses pedidos dirigidos ao Imperador, seriam reiteradamente negados. 46 Em julho de 1847, outro procurador nomeado por Luís Xavier, Manoel Francisco de Castro, redigiu para ele uma petição dirigida novamente ao Imperador. Nela, o africano pedia “licença para poder voltar” à Bahia, onde havia deixado bens, e alegou que nenhum crime havia cometido, “antes vivia pacificamente tratando de seus negócios, tendo sido injustamente qualificado como criminoso”. Alegando ser adepto aos valores da sociedade escravista brasileira, Luís Xavier disse que não era de crer que tendo “bens, vivendo do seu negócio, e com relações comerciais com diversos negociantes”, tanto na Bahia como em outras Praças, “se quisesse envolver em um partido selvagem, de gente com quem jamais pôde o suplicante fazer união”. 47 A petição repetia aquela feita dez anos antes. Luís Xavier de Jesus tentou convencer as autoridades imperiais de que, ao contrário dos malês, ele era “civilizado”, bem adaptado aos valores de uma sociedade mercantil que desejava ser civilizada, mas não logrou êxito. A sociedade baiana da época, hierarquicamente racializada não consentiria a presença de um africano rico circulando pelas ruas da cidade de Salvador, após a Rebelião Malê, quando ficou comprovado, segundo suas próprias versões do fato, a “incivilidade e a barbaridade” dos povos oriundos da África. Um africano liberto rico residindo em Salvador após 1835 seria uma afronta, “jogar-lhesia na cara” uma ascensão social proporcionada a poucos nacionais. Era preciso que Luís Xavier soubesse qual era “o seu lugar”. 48 A ideia de ascender da posição de escravo pobre à condição de rico liberto não era bem recepcionada na Bahia daqueles tempos. E foi contraditoriamente, através do sistema escravista brasileiro que Luís Xavier enriqueceu, acumulou bens, apesar de (e pelo) tráfico transatlântico de escravos, inclusive durante o período de ilegalidade do comércio. Resta investigar futuramente sua parcela de contribuição para a continuidade das atividades negreiras, operadas entre a Bahia e a Costa da África após 1831. DAVIS, Histórias de perdão, p. 19. GIFI, Cx. 5 B 207. 48 ALBUQUERQUE, O jogo da dissimulação, p. 33. CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 45-108. Rodrigues, De Costa a Costa, pp. 76-104. 46 47ANRJ, REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 375 Referências documentais ACMS, Casamentos, Conceição da Praia, 1776-1806. ACMS, Batismos, Paróquia da Nossa Senhora da Conceição da Praia, 1809-1815. Inventário de Luís Xavier de Jesus: APEBA, Judiciária, Inventários, 09/3814/10. Testamento de Francisco Xavier de Jesus, 29/09/1813: APEBA, Judiciária, Livro de Registro de Testamentos nº 4 (Capital), fl. 46. APEBA, Chefes de polícia, maço 2949 (1835-1841). APEBA, Colonial, Escravos, maço 2898 (1830-1889). APEBA, Colonial, Governo da província, Correspondências expedidas para o governo imperial, maço 682 (1835 -1836). APEBA, Judiciária, LNT 213, fl. 81. APEBA, Judiciária, LNT 215, folha 32. APEBA, Judiciária, LNT 219, folha 119. APEBA, Judiciária, LNT 219, fls. 193-194. APEBA, Judiciária, LNT 220, fls. 118-118-v; fl. 181-v. APEBA, Judiciária, LNT 223, fl. 118 v. APEBA, Judiciária, LNT 231, fl. 45. APEBA, Judiciária, LNT 257, fl. 35 v. ANRJ, GIFI, Cx. 5 B 207. Petição de Luís Xavier de Jesus: APEBA, Legislativa, Abaixo-assinados, maço 979 (1835-1836). APEBA, Assembleia Legislativa Provincial, Petições (1837). APEBA, Legislativa, Abaixo-Assinados, 1836. Referências bibliográficas ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. BETHELL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos: A Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do comércio de escravos, 1807-1869. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. BRITO, Luciana da Cruz. “A legalidade como estratégia: africanos que questionaram a repressão das leis baianas na primeira metade do século XIX”, disponível em: www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/download/231/217. Acessado em: 19/11/2012. ____________________. “Sob o rigor da lei: africanos e africanas na legislação baiana (1830-1841)”, dissertação de mestrado, Unicamp, 2009. 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Tenta-se, por meio deste, traduzir, a partir do vestuário, o modo de vida no Brasil-colônia, bem como intenta a criação de um retrato dessa sociedade baseando-se em suas regras e costumes relativos ao modo de se vestir. Palavras-chave: Indumentária, sociedade colonial, moda. Abstract: This article aims at a deeper understanding of the current social model in the historical period Brazilian colonial analyzing the clothing used at the time. Attempts is through this, translate, from the clothing, the way of life in colonial Brazil, as well as attempts to create a portrait of this society based on their rules and customs relating to mode of dress. Keywords: Outfit, colonial society, fashion. Antes, porém, de nos determos à explanação do vestuário, se faz necessária uma breve contextualização sobre o período historicamente conhecido como Brasil colonial, período este que tem seu início em 1530, quando, devido à ameaça francesa, a colônia passará a ser povoada, e se estende até sua elevação a reino unido de Portugal, que se dá com emancipação política do território brasileiro em 1815. O período colonial brasileiro está economicamente alicerçado no tripé monocultura, latifúndio e mão de obra escrava, introduzido por Portugal, visando proteger a nova colônia da invasão francesa na forma de capitanias hereditárias, faixas de terra doadas a donatários, que ficariam responsáveis pela proteção, povoamento e por estabelecer o cultivo de cana de açúcar. É nesse cenário que a sociedade colonial brasileira começa a dar os primeiros passos. Primeiramente, a ocupação portuguesa se deu por degredados, os indesejáveis que Portugal exilava na colônia. A fixação de REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 379 famílias portuguesas no Brasil se torna significativa apenas na segunda metade do século XVI. São esses primeiros grupos familiares que começam a introduzir na colônia costumes e hábitos europeus, pautados e limitados pela moral católica. O modo de vestir europeu chega à colônia como sinal de status e poder. Apesar do clima tropical, o vestuário colonial ainda é diretamente influenciado pela moda da metrópole, exibida pelas cortes e nobreza europeia. Artigos de vestuário se faziam caros e escassos, e eram tratados como bens hereditários. Seda, brocados, tafetá e veludo fazem parte da indumentária, indicativos de poder econômico. Os menos abastados exibiam, quando muito, saias e casacos de chita, raxa de algodão, baeta negra ou camisas de cassa grossa, à exceção das escravas de senhoras ricas, que, por ostentação, vestiam-nas com grande opulência. Não só as roupas, como também penteados e acessórios extravagantes são utilizados pela classe nobre brasileira como forma de distinção e distanciamento de outras classes sociais. No relato do padre Nuno Marques Pereira, conta como aparentavam tais adornos, incômodos e extravagantes. quando era ainda "bem rapaz" (ele nasceu em 1652), a moda "pata" impunha o cabelo armado com arames; segundo ele, essas armações foram crescendo tanto, “que para poder entrar uma mulher com este enfeite nas igreja necessário que estivessem as portas desimpedidas de gente"1. 1 O clima quente da colônia se faz impor e, alguns acessórios, anteriormente tidos como indispensáveis, como espartilhos e corsets, são negligenciados. O calor e a distância da metrópole faz necessária a adoção de peças menos elaboradas no cotidiano, frente a inexistência de uma indústria têxtil no Brasil. Com o desenvolvimento da colônia e a criação de um conceito que define a sociedade colonial, alguns dos hábitos de se vestir europeus são abandonados enquanto outros são reforçados, principalmente no curto período que compreende a chegada da Família Real Portuguesa e o início do Brasil Império. 1 (História das Mulheres no Brasil; pg. 54) Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 380 O destoante figurino europeu na colônia Se se considerar a influencia da corte portuguesa na maneira de vestir europeia, faltarão exemplos a se apresentar. Ao contrário, estava Portugal sujeito a influencias francesas e inglesas no que diz respeito à indumentária. Assim, o vestuário na colônia é antes o espelho das cortes da França e Inglaterra em detrimento de uma influencia totalmente portuguesa. A segunda metade de século XVI apresenta na indumentária vigente influencias da Inglaterra, então reinava a Rainha Elizabeth; empregando tecidos pesados, os trajes femininos apresentavam saias volumosas, geralmente precedidas pela anágua (saia usada por baixo do vestido) com pregas largas e generosas e o corpete justo com decote quadrado ou circular. A roupa masculina era composta por casaco, podendo ser longo, até o joelho, ou bem curto, gibão, uma espécie de colete, becas, calções até os joelhos, chapéus achatados e largos, sapatos de couro de sola baixa, e por vezes capas curtas presas ao ombro. As roupas infantis eram, por vezes, cópias das adultas, quando não consistiam em batas, aventais ou pinafores, geralmente brancos, adequados à idade. Se nas ruas o contraste entre classes sociais era notável, dentro de casa, diminuía a distância entre a roupa dos senhores e servos. Desleixo e desmazelo se faziam presente entre as senhoras de famílias ricas no interior de suas moradias. Muitas vezes descalças, ou de chinelos, trajando camisas de finíssima cambraia, por vezes transparente, com as golas tão largas que chegavam a resvalar pelos ombros, deixando, frequentemente o busto à mostra. Esse desleixo era constantemente visto com maus olhos por viajantes e exemplo s da comunidade europeia. A escritora Mary Graham, em passagem pelo Brasil, deixa claro sua desaprovação, quando, ao chegar às casas, se deparava com suas senhoras vestidas de tal maneira. Dificilmente, poder-se-ia acreditar que a maioria delas eram senhoras da sociedade. Como não usam nem coletes, nem espartilhos, o corpo torna-se quase indecentemente desalinhado logo após a primeira juventude; isto é tanto mais repugnante quando elas se vestem de modo muito ligeiro, não usam lenços ao pescoço e raramente os vestidos têm qualquer manga. Depois, neste clima quente, é desagradável REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 381 ver escuros algodões e outros tecidos, sem roupa branca, diretamente sobre a pele, o cabelo preto mal penteado e desgrenhado, amarrado inconvenientemente, ou, ainda pior, em papelotes e a pessoa toda com aparência de não ter tomado banho.2 Assim também se vestiam os homens dentro de casa, trajando camisolas longas, de tecido leve e, por vezes as ceroulas. Andavam frequentemente descalços, calçando-se apenas para os afazeres que exigiam sua saída às ruas. Apesar do aparente desleixo desses relatos, a sociedade colonial brasileira não estava livre da moral puritana tão intrinsecamente arraigada na sociedade portuguesa pela Igreja Católica; era, ao contrário muito rígida com as normas de vestimenta, principalmente no que atenta a moral das moças de „boa família‟. Sendo a pressão da Igreja nos hábitos de vestir, um mecanismo para assegurar a manutenção do sistema de casamento, que envolvia, a um só tempo, aliança política e econômica, o que tornava a virgindade feminina um elemento fundamental. Funcionando como um dispositivo que manteria o status da noiva, a indumentária feminina deveria ser casta, sem muitos adornos e sem deixar a pele muito à mostra, seguindo um dos escritos de São Paulo, muito difundidos pela Igreja no Brasil colonial “Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes, se enfeitem com pudor e modéstia; nem tranças, nem objetos de ouro, pérolas ou vestuário suntuoso; [...]” (História das mulheres no Brasil; pg. 46). As senhoras e filhas saiam às ruas muito raramente, cobrindo os belos vestidos sempre por uma mantilha pesada de tecido negro, que remetem às burcas árabes, não somente em aparência com também, e principalmente na função de guardar, proteger e esconder quem as vestia. Assim, a rotina de reclusão feminina variava apenas quando o calendário religioso exigia sua companhia ao marido ou pai às missas. Se, quando em casa, o vestuário caracterizava-se por desídia ou negligência, para sair às ruas, o figurino antes confortável era coberto pela vestimenta régia e austera da pesada mantilha. Assim cobertas e protegidas do olhar alheio, vislumbravam as cores e vivacidade das ruas, território, por excelência, das escravas negras. 2 A História das mulheres no Brasil, 2006, pg. 56. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 382 Uma das imagens da Expedição Langsdorff, apesar de realizada no período do Primeiro Reinado, retrata bem a moda das mantilhas adotada pelas mulheres do período colonial. Figura 1: "Vestimentas de São Paulo"3 O exagero na vigilância das moças era tamanho, que no ano de 1751, o arcebispo de Salvador queixava-se das proibições paternas. Conseguir que os pais e parentes consintam que suas filhas e mais obrigações saiam de casa à missa nem a outra função, o que se pratica não só com as donzelas brancas, mas ainda com as pardas e pretas chamadas crioulas, e quaisquer outras que se confessam de portas adentro.4 Livres das regras morais da igreja, os homens estavam limitados às normas da indumentária apenas no que diz respeito à distinção social. Não muito diferente das mulheres, no entanto, quando relacionamos os tecidos à falta de adaptação das roupas ao clima quente da colônia. 3 Figura 1 - CCBB – Expedição Langsdorff. Adrien Aimée Taunay (1825 – São Paulo) Vestimentas de São Paulo aquarela e nanquim. Arquivo da Academia de Ciências – São Petersburgo, 2010. 4 História das mulheres no Brasil, 2006, pg. 49. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 383 Um casaco comprido, usado sobre o colete e uma camisa, o gibão era uma das peças mais comuns do vestuário masculino. Sob a roupa, o chemise, uma camisa fina de linho, era usada diretamente sobre a pele. O banho não fazia parte do cotidiano europeu, assim, o chemise, trocado constantemente, indicava higiene. Ao redor do pescoço, o rufo, uma espécie de gola, de tecido engomado e plissado, inicialmente grandes, foram gradativamente diminuindo até cederem lugar ao jabô, um babado de renda ou lenço, mais confortável e flexível. A bengala surge com um acessório importante no vestuário masculino, usado também como forma de distinção social. Inicialmente apenas hastes de madeira, as bengalas desenvolveram aspectos distintos, apresentando pontas envolvidas por metal, marfim, pedras preciosas ou qualquer outro tipo de material luxuoso e durável. Vestuário de escravos e trabalhadores livres na colônia A ostentação entre senhores da sociedade não consistia apenas no hábito de vestir-se luxuosamente; muitas famílias tinham o costume de apresentar-se socialmente com um cortejo de escravos ricamente vestidos como forma de competição do poder econômico. Nem todos os escravos partilhavam dessa posição; os mais belos negros (sob a ótica europeia) eram escolhidos, e estes, serviriam junto à família, dentro de casa. Eram amas-de-leite, cozinheiras, pajens e alguns escravos que prestavam serviços ao senhor nas zonas urbanas, como a venda de alimentos e bens produzidos na fazenda. Dessa forma, não são de todo incomuns as representações de escravos bem vestidos ao lado de seus senhores, como a cenas retratadas por Debret. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 384 Figura 2: "Viagem Pitoresca ao Brasil"5 Algumas escravas, usadas por senhores para prostituição, se vestiam de tal forma, que o fato chegou a preocupar o próprio rei, que, sabendo da “soltura com que as escravas costumavam viver e trajar nas conquistas ultramarinas, andando de noite e incitando com trajes lascivos aos homens” proibiu de todo o uso de sedas, ouro e outros trajes finos para que assim parem de “incitar para os pecados com os adornos custosos de que se vestem”. A opulência das escravas era tanto, que, no século XVII, o Frei Manuel Calado pregava que a perda de Pernambuco para os holandeses era castigo divino pela dissolução dos costumes e um dos sinais mais evidentes disso, era que “as mulheres andavam tão louçãs e tão custosas que não se contentavam com os tafetás, chamalotes, veludos e outras sedas, senão que arrojavam as finas telas e ricos brocados”. Castigo de Deus ou, não o fato é que o luxo aumentou tanto entre as senhoras quanto entre as escravas. De acordo com Luís dos Santos Vilhena, as mulheres exibiam-se Com as suas mulatas e pretas vestidas com ricas saias de cetim, becas de lemiste finíssimo e camisas de Figura 2 - Debret, J. B. – Viagem Pitoresca ao Brasil (Milliet S. trad. 2ed.). São Paulo: Martins Fontes (Biblioteca Histórica Brasileira 4-3 vol em 2 tomos. Prancha 2/5) 5 REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 385 cambraia ou cassa, bordadas de forma tal que vale o lavor três ou quatro vezes mais que a peça; e tanto é o ouro que cada uma leva em fivelas, pulseiras, colares ou braceletes e bentinhos que, se hipérbole, basta para comprar duas ou três negras ou mulatas como a que a leva;6 Apesar do luxo que exibiam em seu vestuário, os escravos num geral, eram proibidos de usar sapatos. Proibido por leis suntuárias, o costume de usar sapatos era uma forma de distinção de classe na sociedade colonial brasileira. Porém, não raro era deparar-se com descumpridores dessa norma; mucamas e acompanhantes das senhoras, comumente saiam às ruas usando chinelinhas e sapatos com ou sem fivela. Muito diferente dos escravos domésticos, os escravos comuns usavam a mesma roupa, geralmente, até apodrecer. Tamanho descaso dos senhores com o vestuário de seus servos, que alguns padres da época chegaram a basear seus sermões no assunto. Poucas são as fontes de relatos ou registros escritos de escravos comuns em relação aos bens que possuíam e vestuário. Entre essas fontes, estão alguns relatos e testemunhos, como o do padre jesuíta André João Antonil: "Se o negar esmola a quem com grave necessidade a pede, é negá-la a Cristo Senhor nosso como ele diz no Evangelho, que será negar o sustento e o vestido ao seu escravo? E que razão dará de si quem dá serafina e seda e outras galas às que são ocasião da sua perdição, e depois nega quatro ou cinco varas de algodão e outras poucas de pano da Serra a quem se derrete em suor para o servir, e apenas tem tempo para buscar uma raiz e um caranguejo para comer?" 7 Deste trecho, podemos extrair algumas informações, como o tipo de tecido, algodão ou „pano da Serra‟ e a quantidade fornecida. Neste mesmo trecho, podemos identificar um cenário colonial, no qual os senhores de engenho “mantém as aparências” com os escravos que são apresentados a sociedade e, tratando desdenhosamente aqueles encarregados do serviço braçal. Interessados em menos gastos possíveis, as roupas fornecidas aos 6 7 A História das Mulheres no Brasil, 2006, pg. 58. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas, 1711, pg.. 26 e 27. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 386 escravos por seus senhores tinham a finalidade cristã de, apenas “cobrir as vergonhas”. Nesse caso, a roupa tem a finalidade de introduzir os povos americanos e aqueles trazidos como escravos num universo cristão e europeu, e ainda, tornar claro a esses indivíduos seu lugar nesse universo. A roupa menos elaborada é explicada também pelo tipo de serviço realizado pelos escravos. Trabalhos esses como extração mineral e agricultura, o contato com o sol, suor e grande movimentação deterioravam rapidamente as vestes; ainda assim, os senhores julgavam que dois anos seriam intervalo suficiente para adquirir novas tecidos para as vestes, conforme documentos do século XVII, tanto para os homens quanto para as mulheres. Na região das minas, podemos avaliar que as vestes eram poucas e insuficientes pelas palavras de D. Lourenço de Almeida, que em carta ao rei, afirma que os senhores trazem seus escravos nus e os sustentam mal, mas que os negros procuram por si só o que comer e vestir. Ainda na região das minas, não estranho era o hábito dos senhores ofereceram roupas como prêmio a escravos que encontravam algum ouro ou um bom veio para exploração. Entre os prêmios estavam geralmente as véstias, casacos e jaquetas curtas de chita ou baeta, camisas de linho, calções e coletes também de linho, camisas e calções de cetim, e por vezes, fala-se na oferta de roupas de gala. Negros, livres ou cativos, procuravam exibir esse tipo de vestimenta como forma de distinção social, sempre que fosse possível. A utilização de trajes considerados nobres por negros, porém, provocou reações adversas em nobres, que se queixavam continuamente às autoridades em busca de alguma proibição ou limitação no traje a escravos e negros libertos, que até então, poderiam indicar símbolos de distinta posição social. Qualquer peça de roupa que se caracteriza tal distinção era encarado como proibido a determinados grupos e, ao mesmo tempo imensamente desejado por esses grupos. A contínua reiteração de leis proibitivas, porém evidencia que, apesar dos castigos e proibições prometidos no caso de desobediência dessas leis, elas não eram postas em prática. A chegada da Família Real e sua influencia na indumentária colonial A chegada da Família Real no Rio de Janeiro foi, possivelmente, o maior evento presenciado pela sociedade carioca da época. O desembarque do rei e das damas da corte representava um luxo inacessível, não só em REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 387 termos de poder aquisitivo, como também pelo fato de não existirem fabricações têxteis na colônia e pelos rígidos códigos sociais que impediam o uso de certas peças de roupas por pessoas comuns, como os brocados de ouro e prata e também tecidos de seda. O desembarque das mulheres da realeza causou estranheza e, logo em seguida assimilação: Por causa de uma infestação de piolhos nos navios, D. Carlota Joaquina e suas filhas usavam turbantes que escondiam os cabelos cortados curtos. Apesar da situação delicada entre França e Portugal, a França, consolidada como potência da moda no reinado de Luís XV (1638 – 1715), continua a influenciar a indumentária de toda Europa, Portugal, inclusive. No período de governo de Napoleão (1799 – 1815), se instaura um orientalismo, consequência das incursões napoleônicas ao Egito. Turbantes e xales são incorporados as estilo conhecido como Império. Assim, seguindo a moda francesa, os vestidos perdem a forte estruturação dos espartilhos e armações de metal das saias, apresentando certa simplicidade quando comparadas à moda extravagante do Antigo Regime. Inspirados pelas túnicas gregas e romanas, os vestidos apresentavam fluidez e leveza. Tinham a cintura alta, marcada abaixo dos seios (posteriormente denominada “cintura Império”), exibiam pequenas magas bufantes, decotes quadrados, caimento leve e, comumente cores claras e tons pastéis (a exceção eram as peças que compunham o vestuário de D. Carlota, na maior parte das vezes vestida em tons escuros de carmim e bordô). O cabelo também perdeu volume; dispensadas as armações e penteados extravagantes, tinha comprimento mediano, alguns cachos e aparência natural. Nas vestes masculinas, a inspiração militar, também em concordância com a moda francesa, pintavam grandes chapéus achatados, ao estilo napoleônico, com plumas e bordados. Casacos e jaquetas, que aparentavam fardas militares de elevada patente em tons escuros de vermelho, azul ou verde, com bordados em ouro ou prata, com grandes botões, apresentavam faixas, mantas, medalhas e insígnias das ordens militares (Ordem de Cristo, de São Bento de Aviz e de Santiago) e das ordens criadas por D. João VI, como a Ordem de Torre e Espada e a de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa; os calções, curtos e justos, à altura dos joelhos, apresentavam tons claros, terminavam nas botas ou meias de seda, comumente coloridas em tons de azul, vermelho ou branco. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 388 Um dos mais importantes fatores que influenciou na diversificação e popularização de trajes luxuosos foi a abertura dos portos brasileiros para comércio com as nações amigas. Por ter idealizado e auxiliado na fuga da Família Real, a Inglaterra recebeu tarifas reduzidas na exportação de seus produtos para o Brasil, inundando o comércio brasileiro com peças do vestuário inglês como chapéus, plumas, xales, relógios de bolso, luvas, vestidos e calçados. Praticamente inexistente antes do desembarque da Família Real, a vida social, antes limitada a idas à igreja, começa a esboçar-se sutilmente. Não de maneira radical, mas a partir de tomada de políticas públicas, como a abertura dos portos e criação da imprensa nacional, que permitiu que as informações circulassem mais rapidamente. A presença da corte gera a demanda por eventos sociais e espaços públicos destinados aos divertimentos. A compleição da realeza e a abolição de normas de restrição no vestuário encorajam as colonas a abandonarem os hábitos relativos às restrições femininas, como o uso das mantilhas negras. A presença da corte gerou diversas alterações na cidade e hábitos brasileiros, transformações essas pautadas nas solenidades oferecidas à nobreza fluminense pela Coroa. As festividades eram, num geral, calcadas no calendário cristão, e tinham a finalidade simbólica de criar laços, no imaginário do povo, entre o rei e o divino. Serviam de afirmação do poder do soberano, bem como reforçar um caráter paternalista e admiração exercida por ele para o povo. Comemorações e formalidades da corte passaram a figurar entre os eventos mais importantes da vida social da colônia. Esse foi um fator que influenciou diretamente na indumentária, servindo como estimulante para que as pessoas se vestissem de maneira mais luxuosa e exuberante, como fica evidente no relato do viajante alemão Theodor von Leithold (1777 – 1826). Jamais encontrei reunidas tantas pedras preciosas e pérolas de extraordinária beleza quanto nos beijamãos de gala e no teatro (...). Seguem o gosto francês, ousadamente decotadas. Os vestidos são bordados a ouro e prata. Sobre a cabeça colocam quatro ou cinco plumas francesas, de dois pés de comprimento (...) e sobre a fronte, como em torno do pescoço e nos braços, diademas incrustados de brilhantes e pérolas de excepcional valor. REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 389 As mudanças na lei que restringia o vestuário e abertura dos portos a produtos estrangeiros permitiu maior liberdade no ato de vestir-se e ocasionou uma maior velocidade nas mudanças nas maneiras de se vestir. Com a enorme quantidade de produtos que passou a circular dentro do território nacional, podemos observar a instalação de um modismo oriental, com especial atenção a tecidos provindos da Índia, trazidos por navios ingleses e posteriormente, nas naus indianas. Analisando inventários, guardados no Arquivo Nacional, pode-se observar um crescente consumo de produtos de origem chinesa e indiana, como é, por exemplo, o inventário do comendador Elias Antonio Lopes (? – 1815), que lista entre outros, roupas feitas com tecidos de sedas chinesas, tafetás e finos linhos indianos, baixelas de prata e porcelana da China. Entre seus pertences, encontra-se uma exótica bengala de abada, como é chamado o chifre de rinoceronte indiano e castão de ouro esmaltado. Poucos são os indivíduos moradores da colônia que podem exibir bengalas tão luxuosas quanto essa. Obras, como as do artista Debret, já aqui citado e Henry Chamberlain, representam esse período de invasão cultural do Oriente, mostrando as influencias nas janelas com treliças, também conhecidas por muxarabiês, e na indumentária feminina, que emprega finas sedas orientais quase transparentes e bordados com motivos indianos. Além das roupas, também os móveis e louças orientais ganharam status de produtos nobres, e possuí-los era forma de mostrar reconhecimento social. Na falta de títulos, exibiam, ao menos, influencias na vida econômica. Assim, torna-se desejado possuir móveis lacados e com embutidos de marfim Índico, como as mesinhas com formato de meia-lua, cômodas e bancas de cabeceira. As louças passam a conviver com novos artigos europeus, que copiavam os motivos orientais e padrões decorativos. Com a fundação da impressa no Brasil, não raro encontram-se anúncios que indicam lojas e armazéns especializados no comércio de produtos asiáticos. O chá entre em voga, junto com outras plantas exóticas do Oriente que foram introduzidas no, atualmente Jardim Botânico, Real Horto. Nesse cenário, testemunhamos uma oposição entre o ocidental, aqui representado por costumes e produtos europeus, e orientais, tão presentes nesse curioso período pelo qual passou o Brasil antes de ceder totalmente ao lado Ocidental. Dossiê CÂMARA MUNICIPAL 390 Conclusão A partir do estudo da indumentária no período colonial brasileiro, pode-se concluir que, inicialmente mantido, o costume europeu onde as roupas distinguem e impõe barreiras sociais permanece na colônia sem qualquer alteração dos trajes. Interessante notar que, apesar do clima tropical, esses mecanismos de distinção associados ao vestuário não adquirem as mudanças necessárias, permanecendo os padrões já aclamados na metrópole, indiferente ao desconforto e inadaptação climática. Ao passo que a indumentária permanece pautada na nobreza e restrição religiosa, surge e desenvolve-se, paralelamente, uma nova maneira de vestir-se dentro do ambiente doméstico; diametralmente contrária à primeira, esta, por sua vez adaptada à região segue a contramão da moral religiosa e europeia, sendo amplamente criticada aqueles que, inseridos temporariamente no contexto colonial a Europa regressavam. Este fenômeno pode ser observado principalmente nas vestes femininas, onde a exigência era a ocultação do corpo, tido como fonte infindável de desvios à moral cristã. Importante ressaltar que, a ocultação não se fazia necessária no ambiente domiciliar, local este que era permitido a falta de vestuário exageradamente encobridor, e tido como indecente se considerarmos o modelo social português da época. Seguindo a oposição do modelo ideal de indumentária europeia, o vestuário de escravos é pautado apenas no que diz respeito a não ferir totalmente a noção cristã de decência. Interessados apenas em cobrir „as vergonhas‟ de seus negros, senhores gastavam somente o quanto fosse necessário para não deixa-los nus. Diferente dos escravos que trabalhavam nas minas e lavouras, os escravos que serviam juntamente a casa senhorial eram utilizados como forma de competição do poder econômico. Ricamente vestidos, seguiam suas senhoras em verdadeiros cortejos nas idas à igreja ou quando a serviço de seus senhores vendendo produtos ou prostituindo-se. Nota-se aqui, porém, a proibição do uso de calçados por escravos, e posteriormente a restrição no vestuário destes, leis estas frequentemente descumpridas. Com a chegada da Família Real, o vestuário tinha agora um modelo próximo a ser seguido. A indumentária utilizada pela coroa era rapidamente associada e adotada pela população abastada. Isso incentivou REVISTA HISTÓRIA - Ano 5, Volume 1, Número 1, Ano 2014. 391 no abandono de certos hábitos, como o uso de mantilhas negras que mantinham as senhoras de boa família „escondidas‟ da sociedade. A abertura dos portos aumentou o fluxo de produtos e ocasionou uma queda nos preços do vestuário disponível na colônia. A diversidade transformou a maneira colonial de vestir-se acarretando ainda, uma liberdade maior e velocidade nas mudanças da moda. A sociedade colonial brasileira foi indubitavelmente influenciada pela metrópole portuguesa na maior parte de sua existência, tendo apenas ao final, alguma influencia de outros países que traziam produtos diversos para o comércio. Continua e amplamente influenciada na moral cristã e apresentando como modelo a nobreza europeia, a indumentária no Brasil só tardiamente rendeu-se ao clima tropical, sofrendo apenas uma pequena influencia por produtos de origem indiana. O modo de vestir brasileiro manteve o modelo europeu e, até hoje apresenta influencias francesa e inglesa. Referências Bibliográficas ANTUNES, L. F. DIAS; “Entre o Oriente e o Atlântico: «interdependências» no Império Português, no final da Idade Moderna” Instituto de Investigação Científica Tropical, fev. 2008. Disponível em: <http://www2.iict.pt/?idc=102&idi=12905> Acesso em 18 OUT. 2013 SCARANO, Julita; “Roupas de Escravos e de Forros” Revista Resgate, CENTRO DE MEMÓRIA DA UNICAMP nº 4, 1992 SILVA, C. 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