A morada – Reflexões sobre o ser e a clínica
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A morada – Reflexões sobre o ser e a clínica
27 o Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIV, n 148, 27-39 A morada – Reflexões sobre o ser e a clínica Izabel de Madureira Marques O artigo versa sobre a prática clínica e visa compreender os atributos do analista, do paciente e da sessão como encontro. Introduz os temas do apropriar-se de si e de alojar-se na existência. Considera as noções de normalidade, estilo de self, cura e condição humana, segundo referenciais teóricos, clínicos e pessoais. Palavras-chave: Prática clínica, psicanálise, condição humana, estilo de self T his article discusses clinical practice with a view to understanding the attributes of the analyst, the patient, and the session as an encounter. The author introduces the topics of taking hold of oneself, and settling into existence. The article also discusses the concepts of normality, self-style, cure, and human condition, based on theoretical, clinical and personal references. Key words: Clinical practice, psychoanalysis, human condition, self-style INTRODUÇÃO O luto pela unidade e posse absoluta de si mesmo, o estar-se em si equivocadamente, é o selo do homem psicanalítico ... Herrmann (1991, p. 28) arece mesmo que a dor é inerente ao ser humano. Por mais que se questio- P ne, explore e compreenda, o homem não é exatamente igual a si mesmo. Há um hiato, um espaço inexplorado, um tempo onde o tempo não passa, um “nada”: é o lugar do mistério. Fonte de inspiração dos poetas – de onde vem o verso? –, da oração e da fé; ponto da loucura; lugar do infinito e da solidão eterna, ou Pulsional Revista de Psicanálise 28 uma minúscula partícula de esperança. Terreno sem nome, ponto cego ou insondável: será isto a que chamamos inconsciente? Afinal, pode o homem livrar-se da dor que é existir? O que faz a análise? O que, enfim, ocorre em um consultório com analista, paciente e tudo que há entre eles? Alguém faz o processo ou é o processo que acontece? Neste trabalho pensaremos um pouco sobre algumas questões humanas e analíticas. Sem esconder-se em teorias alheias – e sem grandes pretensões – exploraremos fenômenos como o estilo, o existir no mundo e o que chamei de “auto-estranhamento” ou o desencontro de si. Utilizaremos, para tal, a experiência pessoal – como paciente, terapeuta, sujeito –, obras clínicas e teóricas e a eterna ajuda da poesia. AUTO-ESTRANHAMENTO E “NORMALIDADE” ... quem perde a si mesmo, que buscará?... Herrmann (1991, p. 27) O sentimento ou a sensação de estranharse é conhecida de todos, ainda que em diferentes níveis, intensidade ou registro. Seria o momento – que pode contemplar desde um período de vida até sutis microsegundos – em que o eu experienciado não coincide com o eu conhecido. Não se trata de uma idéia ou conjectura, mas de uma vivência real de distanciamento de si mesmo no tempo e no espaço. Tal experiência pode ter as mais diversas características, desde a sensação de não habitar o próprio corpo (quando soma e psique desconectam-se) até a surpresa ligeiramente perplexa ao ver-se agindo ou falando de um modo em que não se reconhece. Este fenômeno de ruptura, onde o eu e o eu rompem-se, partem-se em dois – ou mais –, esfacelam-se, desmancham-se ou parecem cair no nada da irrealidade, pode ser encarado segundo basicamente dois pontos de vista. O primeiro, calcado no positivismo causalista da psiquiatria, enxerga o auto-estranhamento como um dos sinais da “loucura”, da “anomalia” ou do “distúrbio” psicopatológico. O fenômeno estaria como que desconectado do âmbito do sadio, normal ou equilibrado. A grosso modo, haveria a divisão precisa e segura entre “normal” e “anormal”, como dois tipos estáticos e incomunicáveis de indivíduos. A “sanidade” de um lado, o auto-estranhamento de outro. E se o sujeito estranha-se, o psiquiatra estranha o sujeito que estranha-se; e com tanto distanciamento o sujeito vai sendo sutilmente expulso da humanidade. Já sob um segundo ponto de vista – o psicanalítico –, não se propõe normatizações. Não há opostos, mas um contínuo. O ser humano existe no tempo. E se está sozinho em sua experiência, tem a humanidade como companhia. Na clínica, é extremamente integrador para o sujeito que estranha-se o não-estranhamento por parte do Outro-analista. Diríamos que o terapeuta não se “assusta” ou “estranha” – no sentido de distanciamento higienista – o que quer que esteja sendo expresso pelo paciente. Tudo aquilo, afinal, que puder ser dito e A morada – Reflexões sobre o ser e a clínica experimentado “caberia” no âmbito do humano e logo seria, ao psicanalista, de algum modo familiar. Winnicott (1965) nos fala sobre a experiência de loucura como comum e inerente ao ser humano: ... deve-se deixar aberta a porta para a formulação de uma teoria em que uma certa experiência de loucura, seja o que for que isto possa significar, é universal... (p. 96) É, pois, imprescindível que haja espaço no setting para a vivência da loucura, do auto-estranhamento; um lugar onde o paciente possa assustar-se com sua própria pessoa. Já o olhar do psicanalista não é assustado. É o olhar atento de quem escuta o sentido – ou a falta de sentido –, sem o distanciamento ou frieza de um modelo asséptico sujeito-objeto. É uma escuta de uma atenção distraída, com um tranqüilo abandonar-se aos movimentos do invisível. Mas não se deve confundir a proximidade humana com a falta de rigor na escuta ou à anulação da abstinência e neutralidade. Lembremo-nos da importância destas regras na prática analítica, definidas por Laplanche e Pontalis (1982). Quanto à abstinência: Implica para o analista o preceito de se recusar a satisfazer os pedidos do paciente e a preencher efetivamente os papéis que este tende a lhe impor. (p. 3) Quanto à neutralidade: O analista deve ser neutro quanto aos valores religiosos, morais e sociais, isto é, não dirigir o tratamento em função de um ideal 29 qualquer e abster-se de qualquer conselho; neutro quanto às manifestações transferenciais, o que se exprime habitualmente pela fórmula “não entrar no jogo do paciente”; por fim, neutro quanto ao discurso do analisando, isto é, não privilegiar a priori, em função de preconceitos teóricos, um determinado fragmento ou um determinado tipo de significações. (p. 318) Tais qualidades, que definem a atitude do analista no tratamento, não devem nunca ser esquecidas. O lugar do analista é mesmo bastante exigente: sem “entrar no jogo do paciente”, não exclui-lo da humanidade. Manter a escuta livre de preconceitos, mas não assustar-se com o que se fala. Atentar, mas na penumbra. Ao analista cabe ainda a difícil tarefa de oferecer sua própria pessoa como um dos instrumentos de trabalho, ao mesmo tempo em que não contamina sua escuta com os próprios movimentos de atribuição de sentido. O analista estranha o estilo, mas não estranha a angústia. Em outras palavras, permite ao outro ser, mas permanece sensível, em meio a diferenças de estilo, àquilo que é, em algum nível, correspondente. Expliquemo-nos. Em Winnicott, bem como em Lacan, temos que a individualidade surge, inicialmente, a partir do Outro. E é a presença deste Outro-analista que permite ao sujeito atualizar, conhecer e vivenciar seu verdadeiro estilo, quando do self brotam as questões mais fundamentais de sua existência. A função analítica “estranha” – no sentido de diferenciação – este idioma próprio que o paciente fala, e é 30 deste “estranhamento”, deste choque quase que entre “países subjetivos”, que pode nascer a tradução. Estrangeiro de si mesmo e estrangeiro para o analista, o sujeito aprimora a própria voz. Nos diz Eça de Queiroz (1845-1900) que “Um verso traduzido é um raio de lua... empalhado” (p. 95). No entanto, em meio a tráfegos mais ou menos desimpedidos, revelações, reflexos e fluxos, eis que, entre analista e paciente, cada um em seu idioma, a comunicação acontece. Não o encontro ou aproximação de “versões” forjadas ou induzidas, mas a comunicação verdadeira, dada pela similitude de condição – a humana. Como uma mãe e seu bebê. As melodias e os instrumentos são diversos, mas a música ainda é universal. Todos nós nos ecoamos. Vejamos um exemplo clínico, exposto em uma aula de psicologia (V. S. Telles, aula de graduação, 11 de abril de 2000): M. é um homem de aproximadamente 40 anos, médico-cirurgião. Certo dia chega ao consultório bastante ansioso e descreve a seguinte situação: “Ontem aconteceu uma coisa muito estranha. Eu estava no meio de uma cirurgia, quando de repente eu olhei para o meu braço e fiquei apavorado. O braço me pareceu monstruoso, monstruoso. Era grande demais e muito peludo”. Frente a esta fala, o analista pergunta a M. — Em que situação um braço grande e peludo é monstruoso? — Num corpo de criança, é claro – responde M. — Distoa num corpo de criança. A partir das associações feitas no decor- Pulsional Revista de Psicanálise rer da sessão, observou-se que sentir-se, perceber-se como uma criança trazia um sentido para M. no momento, e que o estranhamento do próprio braço poderia ser encarado tão-somente como uma memória vivenciada no corpo. M., naquele instante, literalmente recordou corporalmente ser uma criança. A percepção de um braço grande e com pêlos parecia, logo, assustadora. Nem é preciso dizer que M. acalmou-se ao longo da sessão, e provavelmente fantasias de “estar ficando louco” cederam lugar a outras interpretações. O olhar e a escuta não-assustados do analista permitiram, neste caso, recuperar o sentido da vivência para o sujeito, bem como promover o retorno a um estado de não-estranhamento. É como se, podendo estranhar-se sem susto, não houvesse mais por que estranhar-se. Winnicott (1965) também nos fala a respeito do medo do distanciamento de si e nos lembra da importância de vivenciar a “loucura” como que para caminhar para a “sanidade”: ... um número significativamente grande de pessoas, algumas das quais entram em análise ou colocam-se sob cuidados psiquiátricos, vivem em um estado de medo que pode ser remontado a um medo da loucura. Ele pode assumir a forma de medo da incontinência ou medo de gritar em público, pode ser pânico ou medo do pânico, que é ainda pior, e pode ser uma sensação de calamidade impendente, bem como variados outros medos muito graves, e cada um deles contém um elemento que se acha fora do funcionamento da lógica. (...) Num A morada – Reflexões sobre o ser e a clínica caso como este, qualquer tentativa por parte do analista, de ser são ou lógico, destrói o único caminho que o paciente pode forjar de volta à loucura que necessita ser recuperada na experiência, por não poder ser recuperada na lembrança. Desta maneira, o analista tem de ser capaz de tolerar sessões inteiras ou até mesmo períodos de análise em que a lógica não é aplicável em qualquer descrição da transferência. O paciente acha-se então sob uma compulsão – surgida de alguma premência básica que os pacientes têm no sentido de tornarem-se normais – de chegar à loucura e essa compulsão é ligeiramente mais poderosa do que a necessidade de afastar-se dela. (...) Em alguns casos, é um alívio quando o trágico acontece e o paciente fica louco, porque, ao admitir-se uma recuperação natural, o paciente, até certo ponto, “recordou” a loucura original. (...) Pode-se ver que se, em tal caso, o colapso é atendido por uma premência psiquiátrica à cura, todo o sentido do colapso é perdido, pois, ao entrar em colapso, o paciente tinha um objetivo definido e o colapso não é tanto uma enfermidade quanto um primeiro passo no sentido da saúde. (p. 98-99) Winnicott (1965) continua, alertando sobre os riscos de um olhar “assustado” ou “psiquiátrico” do analista sobre a vivência do colapso: Constantemente o analista fica perplexo por descobrir que o paciente é capaz de ficar cada vez mais louco durante alguns minutos ou por uma hora no setting do tratamento e, às vezes, a loucura se espalha por sobre os limites da sessão. Exige considerável experiência e coragem saber onde se está, nas circunstâncias, e perceber o valor que tem, para o paciente, chegar cada vez 31 mais perto do X que pertence a esse paciente individual. Entretanto, se o analista não for capaz de olhar para isso dessa maneira – mas por medo, por ignorância ou pela inconveniência de ter em suas mãos um paciente tão enfermo, tende a desperdiçar estas coisas que acontecem no tratamento –, ele não poderá curar o paciente. Ele constantemente se descobre corrigindo a transferência delirante ou, por uma maneira ou outra, trazendo o paciente de volta à sanidade, ao invés de permitir que a loucura se torne uma experiência administrável, da qual o paciente possa efetuar uma recuperação espontânea. Encarada desta maneira, a psiquiatria que se baseia no atendimento da necessidade social e no tratamento de grande número de pacientes acha-se, na atualidade, em uma fase de combater o inimigo errado... (p. 101) Bem sabemos, com Freud, que o ser humano sofre por significados. Adotando, portanto, este simples preceito psicanalítico como verdadeiro, a questão torna-se menos definir a respeito de normalidade ou anormalidade do que buscar os sentidos que acompanham cada palavra, experiência, gesto. Sobre as questões de normalidade/anormalidade, cabe aqui a citação de R., um garoto de 11 anos. Em um trabalho escolar que deveria versar sobre questões de cidadania e respeito aos idosos, R. surpreendeu a sala com o trecho: Acho muito estranho quando falam: “Respeite os idosos” ou “Respeite os deficientes”. Eu não vou respeitar porque é velho ou porque é deficiente. Não precisa de uma razão pra gente respeitar alguém. Tem que respeitar todo mun- 32 do. Isso é porque falam “velho” ou “deficiente” como se fosse anormal. Mas é normal. Todo mundo é normal. (R. Marques, comunicação pessoal, 3 de junho de 2000) Todos, assim, estaríamos no mesmo barco: idosos, deficientes, “loucos”. Todos são, afinal, atribuidores de sentido às suas experiências. Todos têm história e realidade. Todos – mesmo aqueles que “estranham-se” na não-existência – existem. A visão que abarca a todos e não exclui nenhuma parte da humanidade – como a de R. – é extremamente integradora em terapia. Já dizia uma psicoterapeuta: “Nada é ‘louco’. Tudo traz sentido. E é muito terapêutico mostrar para o paciente que não tem sentimentos ‘loucos’. Mesmo as experiências mais desintegradas são acompanhadas de uma história, que pode ser resgatada”. (V. S. Telles, aula de graduação, 11 de abril de 2000) O ser humano é coerente. Se vivencia “incoerências” é apenas porque lhe escapam os sentidos. E é justamente em análise que paciente, terapeuta e tudo que os permeia podem voltar-se para as significações. Tudo aquilo que não pôde desenvolver-se sai da estagnação, e falhas ambientais são como que “transformadas” no presente. Define Winnicott (1968): Tudo o que fazemos na psicanálise bemsucedida é desengatar os obstáculos ao desenvolvimento, e liberar os processos de desenvolvimento e as tendências herdadas do paciente individual. De um modo peculiar, podemos na realidade alterar o seu passado, de modo que um paciente cujo Pulsional Revista de Psicanálise ambiente maternal não tenha sido suficientemente bom pode transformar-se em alguém que tenha tido um ambiente facilitador bastante bom, e cujo crescimento pessoal tenha assim podido ocorrer, ainda que tarde. (p. 50) UMA QUESTÃO DE ESTILO “Feitio, tom. Gênero, feição, espécie, qualidade, jaez. Maneira de tratar, de viver; procedimento, conduta, modos” (p. 276). Assim define o Dicionário Aurélio (1994-1995) o termo “estilo”. Safra (1999) também traz sua definição: O estilo de ser compõe-se das características da manifestação na forma expressiva utilizada pelo indivíduo. O estilo apresenta a singularidade da pessoa. Ele é estabelecido pelo campo sensorial mais importante na constituição do self do indivíduo, da biografia e dos enigmas de vida característicos de seu grupo familiar. (p. 39) Na clínica, podemos pensar o estilo como a manifestação, no ser, de temas profundos que o atravessam. Cada homem seria uma história, um devir, sempre voltado às questões que preenchem seu destino. Há aqueles que funcionem voltados para competir; outros para seduzir. Há os que funcionem por palavras, outros por melodias. Se para um o silêncio é morte, para outro é criação. Se aquele sobe degraus, o outro navega oceanos. Mas falar sobre a diversidade humana implica muito mais que desfilar diferenças. Especialmente para o analista – o profissional que se propõe a estar debruçado sobre o ser – significa conceber A morada – Reflexões sobre o ser e a clínica que cada sujeito fala, age e “funciona” a partir de seu próprio idioma. E é a partir de sua gramática interna, segundo sua história, registros, memória, discurso, escuta, sentidos, aroma, cor, sabor e textura pessoais que irá encarar de maneira absolutamente única cada faceta da existência – e da não-existência. O ser é um enigma em movimento. Olha o mundo, a si mesmo, o mistério e a morte segundo sua própria solidão. Essa é toda sua sorte – e toda sua dor. É ao mesmo tempo solitário e livre o lugar de sujeito. Se fala ou se cala, é a partir de um lugar. E mesmo o lugar nenhum, o espaço em branco, ou o hiato sem significação existe – e é seu. Arcar com a própria existência – eis a tarefa do existente. Ter a força e a grandeza de morar dentro de si mesmo, e ainda assim não se pertencer. A concepção do inconsciente pela psicanálise já nos dizia que o ser humano é um ser que não se possui. Fernando Pessoa (1930) descreve, com maestria, a vivência da não-coincidência entre o homem e o homem, exprimindo a dor de não se pertencer como uno: Gostara, realmente, De sentir com uma alma só, Não ser eu só tanta gente De muitos, meto-me dó. Não ter lar, vá. Não ter calma ‘Stá bem, nem ter pertencer. Mas eu, de ter tanta alma, Nem minha alma chego a ter. (Poema 665, p. 531) 33 O sujeito, enquanto self, é pura possibilidade. Por um lado o homem não se pertence, mas por outro tudo o que possui é a si próprio. E é a partir do encontro com seu mais genuíno estilo que poderá vira-ser como self integrado e pleno na existência. Se a vida é dada, cabe ao homem desfrutar do presente. SURPRESA E GENEROSIDADE Ao Método da Psicanálise, é sabido, apraz ocultar sua mais que humana generosidade. Herrmann (1991, p. 230) A relação terapêutica é de tal modo estruturada que exige de ambos – analista e paciente – alguns atributos, como os dons da paciência, da surpresa e da generosidade. Paciência porque a análise acontece no tempo. Não só o tempo cronológico mas – principalmente – o “tempo das coisas”. Há o tempo do ser, do desabrochar do estilo, o tempo da queda das “personas”. Há tempo de fechar e de abrir-se, como as flores. Há tempo de voltar atrás. Há tempo em que o tempo não passa; outros em que ultrapassa os limites da compreensão. Há tempo de estar preparado. Há vezes em que o tempo é amigo, outras inimigo. Mas para o bem ou para o mal, sempre passa. Há o tempo, ainda, da formação do analista. Tempo de chocar teorias, questionar-se, apavorar-se. Tempos de violência, tédio ou mudança. Há tempo para tudo. Surpresa porque o ser humano é sempre novo. Não é igual nem a si mesmo, nem 34 há nada de garantido. O paciente surpreende-se consigo mesmo, com as intervenções ou interpretações do analista. Surpreende-se com os sonhos que têm. Assusta-se ao descobrir os próprios desejos. Estranha-se e torna-se, em si, uma surpresa ambulante. O analista, por sua vez, deve estar sempre disposto a surpreender-se. Com os rumos da transferência, com a fala do paciente. Com seus sonhos e contratransferências. A escuta que surpreende-se deve estar liberta de pré-concepções e demandas específicas. Liberta de desejos de cura. De pressa. Não se deve ter qualquer intuito em vista. Há que se permanecer sem expectativas nem inclinações pessoais durante o processo. Não há de haver nenhuma força ou pressão, censura ou seleção. Cada sessão é nova. O analista, assim, nunca “acostuma-se”. “Parece ser próprio da psicanálise haver-se com o desconhecido” (Zlotnic, 1999, p. 58). Como uma criança que descobre o mundo, o analista, mesmo o mais experiente, deve manter sua escuta como se fosse a primeira vez – mas sem ingenuidade. É um eterno iniciante – com memória. Se constrói conjecturas elaboradas sobre quem é, como é ou, afinal, o que tem o paciente, é tempo de começar tudo de novo. Se chegou a certezas, é sinal de que é preciso repensar. Tudo que é construído solidamente será destruído e tudo de inexistente poderá ser construído. É preciso humildade. Erra-se mais do que acerta-se. É preciso abandonar escolhas definitivas, postulados acabados. Não se desconsidera a história, seja a do pa- Pulsional Revista de Psicanálise ciente, a do analista ou a da análise. Mas ela é sempre re-atualizada pelo presente. O analista nada espera do paciente, nada deseja ou projeta como expectativa. Apenas acompanha, devoto. Esperando o tempo das coisas. Generosidade porque é preciso doar-se. Admitir os estranhos movimentos do inconsciente, aceitar que não se conhece. Ao analista, a generosidade da dedicação íntima, do voltar-se para a experiência do outro com uma espécie de aceitação calorosa, cuidado atento. Não o cuidar de forma possessiva ou voltado a satisfazer necessidades próprias, mas cuidado enquanto a apreciação do paciente como uma pessoa individualizada, a quem é permitido ter suas próprias experiências e sensações. Como nos diz Rogers (1960), é preciso “Sentir o mundo privado do cliente como se ele fosse o seu, mas sem perder a qualidade ‘como se’” (p. 165). É a generosidade de ver o outro como outro. Cuidar significa, enfim, aprender o idioma que o outro fala. Não “lucrar” com o atendimento. Não imprimir seus sentidos, não macular o tempo e nem o espaço do outro com conteúdos seus. Saber tornar-se dispensável. Colocar-se à disposição para o ressoar do outro em sua própria casa. Criar o próprio estilo. Ter coragem. Aguardar a chegada de um hóspede desconhecido. Dispor-se a estar com o paciente imerso num caldo de mistério. Não julgar. Deixar que surja e tomar em consideração. Acreditar em mágica. Ter compaixão. Ser e não ser ingênuo. Não violentar, mas intervir. Ser suave, mas A morada – Reflexões sobre o ser e a clínica firme. Afetar-se. Não “entrar em jogos”, mas participar. Aceitar, mas não “concordar”. Conhecer do que é humano. Dedicar atenção. Ser equilibrado sem ser homogêneo. Ser sincero. Estar presente. Escutar cada gesto como novo. Começar de novo. Não impressionar-se com o sintoma. Não assustar-se com a destrutividade. Não ser moralista. Não mentir. Dar ao outro a liberdade de ser. Acreditar. Ter esperança. Não ter pressa. Achar que vale a pena. Conhecer os limites. Saber quando fazer concessões. E ser paciente. O paciente, por sua vez, é generoso quando procura análise. É, já, um grande passo. É generoso quando expõe a própria morada; quando abre-se para a novidade. E, principalmente, é generoso quando perdoa as falhas do analista. Quando perdoa os mal-entendidos, os erros de tradução. Quando suporta o desencontro e releva as limitações. Em analogia às falhas da mãe, nos diz Winnicott (1968): O bebê não escuta ou registra a comunicação, apenas os efeitos da confiança, que são registrados em função do desenvolvimento em curso. Ele não tem conhecimento da comunicação, exceto a partir dos efeitos da falha da confiança. É aqui que surge a diferença entre a perfeição mecânica e o amor humano. Os seres humanos falham repetidamente, e, no curso dos cuidados comuns, uma mãe está o tempo todo corrigindo suas falhas. (...) Como analistas, sabemos disto, porque estamos sempre falhando (...) São as inumeráveis falhas, seguidas pelo tipo de cuidado que as corrige, 35 que formam uma comunicação de amor, a partir do fato de haver um ser humano que se preocupa. (p. 46) SOBRE A CURA E O QUEIJO ... somente a partir da não-existência é que a existência pode começar. Winnicott (1965, p. 76) O que significa a “cura” em análise? É desvencilhar-se dos sintomas, atingir maturidade, é assumir-se como sujeito desejante? É dispensar o analista, crescer e criar? É sempre bom lembrar que o sentido de cura no terreno da psicanálise é bem diverso do mesmo conceito na medicina. Talvez a questão toda esteja no fato de que a cura analítica não é um objetivo claramente definido a ser perseguido, mas constitui-se no próprio processo. Nas palavras de Herrmann (1991): É que a cura significa cuidado, antes de mais nada. (...) A cura (...) não é apenas o ponto de destinação da análise; analogamente ao diagnóstico, a cura é uma dimensão que percorre todo o processo analítico e confere-lhe valor terapêutico, tornandoo um tratamento. (p. 195-196) Segundo Rogers (1961), “as pessoas têm fundamentalmente uma orientação positiva” (p. 37). Mesmo os pacientes mais perturbados, os suicidas, aqueles em estado de desespero. Mesmo estes, quando positivamente aceitos, acolhidos em análise, direcionam-se para a construção, para a própria atualização, caminhando para a maturidade e socialização. 36 Haveria como que uma “tendência para a melhora”. E não se trata de otimismo ingênuo. Mesmo aquele que procura o seu mal, está buscando, no mal, um bem. “A transferência é uma história de amor” (Slavutzky, 1991, p. 9). E então quando o sujeito é aceito, compreendido e quando tem um outro que o escuta com devota atenção, pode enfim desabrochar e comprometer-se consigo mesmo. Amadurecendo, identificando e realizando seus potenciais, o paciente passa a cuidar do que sente. É estar, como um queijo, “no ponto”. Herrmann (1983), em outro texto (O que é psicanálise), faz esta bela analogia: Estar curado significa para nós curar si mesmo, isto é, cuidar de seu desejo, atingir um estado semelhante ao de uma fruta madura ou de um queijo bem curado, no ponto. Os pontos variam, como para os queijos, de uma pessoa para outra, mas ainda assim é possível saber o que é estar curado: uma harmonia realizada das potencialidades características nos queijos, nas pessoas. (p. 97-98) E, curiosamente, curar-se é desenvolver o que há de mais pessoal, sabendo-se muitos. Aceitando a multiplicidade interna e a mobilidade – de fantasias, defesas, desejos –; aceitando e acolhendo, enfim, que sou múltiplo e que não estou de posse total de mim mesmo, posso tornar-me mais unificado. Assumindo minhas mudanças, descubro meu próprio estilo de ser. Quando for flexível em minhas facetas, serei um. Experimentando várias roupas/identificações, percebo Pulsional Revista de Psicanálise melhor como é meu corpo. Passeando pelos diversos lugares, ganho a minha casa. Significativo ainda é perceber que não é apenas o paciente que cura-se. O analista paciente, ao curar seus pacientes, cura a si mesmo. Neste tratamento, um trata o outro, numa ressonância de casas, self, estilos. É a ressonância da cura. O ser humano se estrutura em companhia. A CASA Domus Com seus olhos estáticos na cumeeira a casa olha o homem. A intervalos lhe estremecem os ouvidos, de paredes sensíveis, discernentes: agora é amor, agora é injúria, punhos contra a parede, pânico. Comove Deus a casa que o homem fez para morar, Deus que também tem os olhos na cumeeira do mundo. Pede piedade a casa por seu dono e suas fantasias de felicidade. Sofre a que parece impassível. É viva a casa e fala. (Adélia Prado, 1999, p. 25) Ser é habitar-se. É dominar o próprio idioma; apropriar-se de si mesmo. A menina H., 2 anos, diz: “Eu sou eu”. (H. Marques, comunicação pessoal, maio de 1998). É uma grande descoberta. Talvez a maior de todas. E tomada em seu sen- A morada – Reflexões sobre o ser e a clínica tido profundo, não há nada de individualismo aqui. É o nascimento do sujeito. Quando seus próprios recursos, faltas, quando os diversos objetos e lugares internos lhe são tão familiares como os elementos de sua casa, pode-se dispô-los como quiser e puder. Pode-se desfazer de configurações antigas; pode-se trocar as lâmpadas, lavar o porão. É claro que há bichos assustadores, nojentos, aversivos. Há espaços em branco, paredes ruídas. Há peças quebradas, lugares apavorantes, cheios do “nada”. De um lado doces jardins, de outro secas arestas. Mas se já se passeou pela própria casa o suficiente para conhecer sua expressão mais criativa e criadora, seu estilo e sua feição, o sujeito está “à vontade”. E pode, inclusive, oferecer a própria morada como instrumento analítico. Já que não podemos ser ninguém mais ou ninguém menos que nós mesmos, é somente a partir dos ecos da presença do outro em meu espaço interno que pode dar-se a comunicação. Em análise, é o escutar atento ao que se sente durante a sessão, às imagens evocadas, sentimentos diversos, por vezes ambivalentes, vozes confusas, sutis desconfortos. Rogers (1961) tem uma bela colocação a respeito: ... descobri que sou mais eficaz quando posso me ouvir a mim mesmo aceitando-se, e quando posso ser eu mesmo (...) Por isso é que eu acho que é eficaz permitir-se ser o que sou nas minhas atitudes; conhecer quando me aproximo dos limites da resistência ou da tolerância e aceitar isso como um fato; conhecer quando desejo moldar 37 ou manipular as pessoas e reconhecer isso como um fato em mim. (...) É unicamente quando aceito todas estas atitudes como um fato, como fazendo parte integrante de mim, que as minhas relações com as outras pessoas se tornam no que são e podem crescer e transformar-se com maior facilidade. (p. 29) De fato, quanto mais conectados aos nossos próprios temas de vida, ao nosso estilo de self e modelos de vida, de morte e de homem, com tanto mais segurança e disponibilidade conseguimos estar receptivos e abertos para acolher e aceitar, com devoção, as mensagens provenientes de um outro “território” simbólico, desejante, destrutivo, criativo. Quanto mais soubermos falar nosso próprio – e único, intransferível – idioma, maior será nossa poliglotia. Um ser humano que ainda não encontrou a si mesmo, que ainda não tem como morada querida e constante a sua própria casa, pode não conseguir identificar com clareza os ecos (ou as “projeções na tela branca”, em Freud) que vêm do outro. Se não conheço a minha própria casa, fica difícil receber visitas. Novamente Rogers (1961): ... aquilo que é mais pessoal é o que há de mais geral.(...) Acabei por chegar à conclusão de que aquilo que há de mais único e de mais pessoal em cada um de nós é o mesmo sentimento que, se fosse partilhado ou expresso, falaria mais profundamente aos outros. (p. 37) Quando o sujeito estranha os próprios “buracos” e pontos cegos e afasta-os 38 com alheamento, acaba por desenvolver um eu artificial. Na imagem da casa, quando o sujeito enfurna-se em um cômodo congelado e não conhece ou circula pelos vários lugares da própria existência, acaba por aferrar-se, com uma fidelidade de vida-ou-morte, a um modelo de funcionamento típico. Sua fala, seu gesto, todo seu estar-no-mundo partem não de um estilo, mas de uma persona. A pessoa é reduzida a ser apenas uma possibilidade dentre muitas; os inúmeros campos do real restringem-se a uma realidade única. Mas quando se está tão cheio de si a ponto de temer o não-eu, o restante da casa soa amedrontador. O falso-self divinizado e onipotente teme ser quebrado. Cola-se a noção de si ao aposento construído e conhecido, os sons que vêm da cozinha, os bichos nojentos do banheiro e o “nada” sentado na sala apavoram e de tempos em tempos batem à porta do cômodo. Com terror, o sujeito desapropriado de si e alheio à própria morada recusa as “visitas” e evita o novo – ou tudo aquilo que represente, em todos os sentidos, o in-cômodo. A análise propõe um convite: que tal dar uma olhada no imóvel? O eu é maior do que eu. De onde eu falo é um lugar possível. O homem existe em expansão. Bion nos fala a respeito de sermos continentes do pensamento sem pensador. O que dói no homem é ser pequeno demais para se conter. O caldeirão insondável do inconsciente e do mistério me visitam e, temeroso, perco-me e me estra- Pulsional Revista de Psicanálise nho. O que é isto? De onde me veio? Tudo parece cair por terra. Padrões estereotipados de funcionamento ameaçam a trincar – porque a vida urge. Mas parece que os grandes questionamentos de vida não são nunca solucionados. Talvez por não tratar-se de respostas, mas de criação. São como eternos enigmas, questões insolúveis da existência. Mas se voltarmos nossa atenção a elas, algo poderá vir-a-ser. O que acontece, pois, após um processo de análise? Podemos dizer que o sujeito que encerra sua análise introjetou a função analítica e pode, a partir de então, ser analista de si mesmo. Apropriado do seu estilo de ser, atravessa a sua vida o espaço potencial. O sujeito em análise conhece melhor a sua casa. Cessa, em muitos níveis, o auto-estranhamento. Acolhendo seu próprio idioma, seu grande enigma de vida pode agora ser utilizado, atualizado, experimentado. O que era fixo torna-se móvel e o que era impedimento torna-se possibilidade. Quando, a partir da própria subjetividade, se atravessou os temas do destino humano, a criatividade, reconhecida, permeia cada respiração. Passeie, com liberdade e coragem, pela sua casa. Tudo que encontrar será do humano, não é preciso assustar-se. Você está cheio de surpresas. Entre, e fique à vontade. A casa é sua. O sujeito, assim, habita-se. * * * A morada – Reflexões sobre o ser e a clínica Direitos Humanos Sei que Deus mora em mim como sua melhor casa. Sou sua paisagem, sua retorta alquímica e para sua alegria seus dois olhos. Mas esta letra é minha. (Adélia Prado, 1999, p. 73) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira/Folha de S. Paulo, 1994-1995. HERRMANN, F. O que é psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1983. ____ . 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