trabalho – educação – saúde
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trabalho – educação – saúde
TRABALHO – EDUCAÇÃO – SAÚDE UM MOSAICO EM MÚLTIPLOS TONS Organizadoras: Célia Kiefer Iracema Fagá Maria do Rosário Sampaio TRABALHO – EDUCAÇÃO – SAÚDE: UM MOSAICO EM MÚLTIPLOS TONS SUMÁRIO 1 A teoria dos conteúdos críticos e sociais e o psicodrama: uma articulação possível para a educação em saúde do trabalhador 11 CÉLIA KIEFER LUIZ HENRIQUE BORGES 2 As intervenções educativas da FUNDACENTRO - ERMS no campo da segurança e saúde do trabalhor 33 AIDAR VAGNER DALL’OCA MARIA DO ROSÁRIO SAMPAIO 3 Viagem ao “desconhecido” mundo da saúde do trabalhador 55 AMARILIS ARAÚJO PINTO 4 “Cuidado, veneno!” - empurrando a responsabilidade para o trabalhador 93 EDUARDO GARCIA GARCIA 5 Educação e saúde: o trabalhador enquanto sujeito de sua saúde 119 ANA JOAQUINA OLIVEIRA TEREZINHA DE LISIEUX QUESADO FAGUNDES 6 A formação em Ergonomia: reflexões sobre algumas experiências de ensino da metodologia de análise ergonômica do trabalho 133 FRANCISCO DE PAULA ANTUNES LIMA 7 Ações de Segurança e Saúde do Trabalhador nas escolas municipais rurais: contribuição da educação formal na prevenção de intoxicações por agrotóxicos 149 TEREZINHA DE JESUS CAMPOS MARIA DO ROSÁRIO SAMPAIO 8 Relato de experiência - Programa trabalhadores de rua: estudo e intervenção 173 TEREZA LUIZA FERREIRA DOS SANTOS 9 A educação como determinante na inversão do modelo de assistência aos trabalhadores CLÉA DALVA JORGE GODINHO IVONE GARCIA DA SILVA MEIRE CRISTINA DA FONSECA VIEIRA VALÉRIA MARIA SANTOS ROCHA 189 10 Quatro seminários de Ergonomia para sindicalistas 207 LEDA LEAL FERREIRA 11 No meio do caminho havia uma pedra - organização do trabalho e saúde no processo de extração e beneficiamento de mármore 221 MARIA DAS GRAÇAS BARBOSA MOULIN CLEILSON TEOBALDO DOS REIS GRACE HITOMI WEINICHI 12 A Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES, relatando suas experiências educativas em saúde e segurança do trabalhador 239 EUSTAQUIO XAVIER SILVEIRA JOELINA DA C. ALVES DE ALMEIDA MARIA IVANILDE PEREIRA 13 Educação para o trabalhador - uma abordagem psicopedagógica 255 VERA LÚCIA ABRIL TELES DE SOUZA 14 A educação como fator de prevenção: o programa de capacitação contínua em saúde do trabalhador de Ipatinga 275 BEATRIZ MORELLI FARIA ANA MARIA M. DE ALMEIDA RÔMULO RONALDO MOREIRA MARIA DO ROSÁRIO SAMPAIO 15 Uma proposta de atuação nas condições de trabalho da pesca e mergulho profissionais 291 ANTONIO LINCOLN COLUCCI VERA LÚCIA ABRIL TELES DE SOUZA 16 O exercício da medicina do trabalho: uma nova visão 309 JOSÉ JÚLIO DE ANDRADE FONSECA MARIA CRISTINA PALHARES MACHADO 17 Disseminação de conhecimentos sobre segurança e saúde no trabalho no Estado do Tocantins FLORIANO RODRIGUES ALVES NATAL COSTA FILHO CARLOS MARTINS FERREIRA 335 PREFÁCIO A iniciativa de publicar este livro se reveste de alta significância para a FUNDACENTRO. Aqui estão reunidos trabalhos demonstrando a riqueza, a pluralidade das idéias e vivências que vêm sendo criadas no País, de modo a fazer das ações educativas instrumentos poderosos para se chegar a novas descobertas. Descobertas individuais e coletivas que vêm exercendo, já de longa data, profundo efeito transformador no mundo do trabalho. São teorizações, relatos de experiências, propostas concretas de ação que representam farto material para reflexão sobre a realidade atual na área da saúde do trabalhador. Mas não somente isso. A publicação deste livro representa a possibilidade de multiplicação de preciosas idéias e experiências já desenvolvidas no Brasil, com alto poder de impacto não só em todo o território nacional, mas também no exterior. Brevemente, a FUNDACENTRO estará lançando este livro também em inglês e espanhol, fazendo emergir no cenário internacional uma grande contribuição brasileira para preencher o vácuo hoje existente no campo da divul gação do que já se fez e ainda se poderá fazer para que a educação compareça como fonte de recursos acessíveis ao ser humano na superação de seus eternos desafios diante do trabalho. A Direção da FUNDACENTRO 7 8 APRESENTAÇAO D iversas teorias e práticas educativas na área de segurança e saúde do trabalhador vêm sendo desenvolvidas no Brasil há bastante tempo, contribuindo inegavelmente de forma positiva para a promoção e preservação da saúde de homens e mulheres inseridos nos mais variados ramos de atividade produtiva. Novas reflexões e experiências proveitosas têm-se acumulado, representando valiosas aquisições pela empatia que provocam e expectativas que produzem entre os que delas participam, diante das possibilidades libertadoras que criam ao removerem obstáculos e dificuldades identificadas. Daí decorre a idéia de publicar este livro. O que se pretende é multiplicar os efeitos daquilo que se vem pensando e fazendo em educação que possa resultar em melhorias das condições de trabalho e de vida dos trabalhadores, sem deixar de rever os erros já cometidos para evitar a sua reincidência. Apesar de todas as limitações já apontadas repetidamente sobre os dados estatísticos oficiais referentes a doenças e acidentes do trabalho, é incontestável que eles representam apenas uma fração da realidade acidentária brasileira. A alteração do quadro atual em que o País se encontra nesse campo suscita interrogações que se movem dos “por quês?” ao “que fazer?” e “como?”. As questões que se colocam são de uma complexidade tal que, para abordá-las, exige-se de todos os envolvidos a permanente alternância em suas posições de educadores e educandos. Espera-se do intelectual, do professor, do humanista, do pesquisador, do técnico especializado, do empresário, do sindicalista, do trabalhador a predisposição para sempre aprender e ensinar. Trata-se de unir esforços para resolver problemas graves, fazer escolhas que exigem reflexão ou, como requer a semântica dessa palavra de origem latina, um “voltar atrás”, com entendimento, com reciprocidade. Os processos de produção-trabalho estão se transformando em velocidade vertiginosa. E quanto aos processos educativos, que transformações podem ser salientadas? Este livro resultou de um convite feito ao corpo técnico da FUNDACENTRO e seus parceiros que atuam diretamente na área saúde-trabalho para que eles repensassem e revelassem o seu fazer pedagógico. Quais têm sido suas ações? 9 Quais fundamentos teóricos as sustentam? Sob quais orientações metodológicas elas têm se processado? Com quais intencionalidades? O convite foi movido pelo desejo de dar maior visibilidade ao poder transformador da educação em saúde do trabalhador. Uma lacuna importante é preenchida com este livro. São raras as publicações existentes, focalizando a educação voltada para a segurança e saúde do trabalhador, e que possam indicar alternativas de caminhos no rumo da inserção das pessoas no mundo, de modo mais harmonioso e equilibrado. Pensamos que um livro é um livro é um livro, tanto quanto "uma rosa é uma rosa é uma rosa". Valem intrinsecamente pelo que são. Às rosas cabe embelezar o olhar de quem as vê. Aos livros cabe embelezar a sabedoria e a in teligência de quem os lê. Ademais, entendemos que nem toda criação humana precisa necessariamente ter uma utilidade, ou que esta seja imediatamente apreensível ou tenha o mesmo impacto em todos. Acresce a isso que muitos aspectos das transformações decorrentes de práticas educacionais não se deixam captar por tentativas de mensuração, sejam elas de qual natureza forem. Embora se tente por todos os meios colher seus rebentos, os resultados dos processos educativos estão sempre a surpreender, nos locais e momentos mais inesperados. Mesmo assim, ousamos colocar no final deste livro um questionário que procura avaliar: modo como ele está sendo recebido pelos leitores; sua capacidade de estimular não so a replicação, mas também o aperfeiçoamento e a adaptação a diversas realidades das experiências e idéias que relata; e ainda seu poder de incentivar a produção de novos textos, que possam originar outros volumes como este, reunindo autores de várias organizações. Sabemos que há muitas experiências educativas já feitas em saúde do trabalhador ainda não reveladas ao público que poderia aplicá-las. Conhecemos as dificuldades naturais para construir questionários e os seus limites próprios como instrumentos para empreender tais tipos de avaliação. Por isso apreciaríamos imensamente receber do público leitor comentários e sugestões que pudessem contribuir para aprimorar este trabalho e para acompanhar suas repercussões. Não podemos deixar de agradecer e cumprimentar a todos aqueles que corajosamente expuseram aqui as suas concepções, seus modos de agir pedagogicamente, arriscando-se a julgamentos. Acreditamos que sua intenção com esse gesto seja compartilhada com a nossa na organização do livro: provocar e estimular o debate, despertar maior interesse pela área da saúde do trabalhador, buscando aumentar a diversidade e o número de agentes sociais que nela queiram se engajar. As Organizadoras 10 A TEORIA DOS CONTEÚDOS CRÍTICOS E SOCIAIS E O PSICODRAMA: UMA ARTICULAÇÃO POSSÍVEL PARA A EDUCAÇÃO EM SAÚDE DO TRABALHADOR Célia Kiefer1 Luiz Henrique Borges2 Para início de conversa: uma introdução à história de educar, educando A FUNDACENTRO - CEES vinha de uma tradição de realização de atividades educativas dirigidas a trabalhadores, sindicalistas e profissionais da área de saúde e segurança do trabalho, coordenadas por um dos autores deste artigo, concebidas a partir de uma perspectiva crítica sobre os fatos sociais, aí incluídos o trabalho e a saúde. O outro autor vinha desenvolvendo a aplicação da abordagem sociopsicodramática à temática da Saúde Mental e Trabalho, no Centro Técnico Nacional da FUNDACENTRO, por meio de cursos dirigidos a cipeiros3 e pro fissionais da área de saúde e segurança do trabalho. No foral de 1992, coordenou a realização do vídeo “Aconteceu comigo! LER: uma lição vivida”, em que foram filmadas cenas de um sociopsicodrama realizado com doentes portadores de Lesão por Esforço Repetitivo (LER), atendidos no ambulatório do Programa de Saúde do Trabalhador da Zona Norte de São Paulo. Esse vídeo tinha por objetivo sensibilizar os trabalhadores que a ele assistissem, desencadeando discussões sobre as formas de organização do trabalho em que estavam inseridos e as relações com suas condições de saúde. Em 1993, os autores propuseram e coordenaram algumas edições do curso “Capacitação de Coordenadores de Grupo no uso do vídeo: ‘Aconteceu comigo! LER: uma lição vivida’”, dirigido a sindicalistas e profissionais da área de saúde e segurança do trabalho de empresas privadas e de instituições públicas de saúde, em Vitória e no Rio de Janeiro. Consideravam importante que a perspectiva de construção coletiva do conhecimento sobre a LER, que inspirara a realização do vídeo, deveria ter continuidade quando as pessoas assistissem ao vídeo. Dessa forma, a metodologia do curso proposto integra 1 Pedagoga, Mestre em Educação, Especialista em Saúde Pública, Pesquisadora da FUNDACENTRO - CEES. Médico, Doutorem Ciências da Saúde, Psicodramatista. 2 3 Trabalhadores integrantes da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA). 11 va atividades expressivas e de interação grupal (colagens, uso de sucatas, dramatizações, etc.) com exposição dialogada com experts nos conteúdos discutidos e realização de mesas-redondas. Outras atividades educativas foram desenvolvidas pelos autores nos vários projetos do CEES (Indústria da construção; Setor de extração, transporte e beneficiamento de mármore e granito; Trabalho portuário; Perícia do INSS; Trabalho bancário; etc.), dirigidas ora a categorias específicas, ora a várias categorias de trabalhadores, de profissionais (técnicos de segurança do trabalho, engenheiros de segurança, médicos-peritos, médicos de serviços de saúde, psicólogos, assistentes sociais, etc.) e sindicatos. Algumas idéias que nos norteavam na proposição e planejamento dessas atividades educativas foram: l. a valorização da vivência dos trabalhadores no seu cotidiano de vida e trabalho; 2. a construção coletiva do conhecimento, com interação entre o saber técnico e o saber dos trabalhadores sobre o trabalho e a saúde; 3. a utilização de diferentes aportes técnicos para a construção de conhecimento: exposição por parte de um expert em um tema específico, a utilização de múltiplas formas expressivas, a proposição de debates e mesas-redondas, etc.; 4. o estímulo à espontaneidade-criatividade e à interação grupal na construção do conhecimento; 5. a construção, do ponto de vista dos conteúdos, de conhecimentos críticos sobre a realidade social e as práticas desenvolvidas no campo de atuação profissional, desconstruindo conceitos naturalizados; 6. o entendimento de que a metodologia do curso (seus fundamentos e técnicas) está diretamente relacionada com os conteúdos veiculados e com os objetivos de aquisição de conhecimentos desejados; 7. esse entendimento deve estar presente desde o início do planejamento do curso, sua proposição à comunidade, a inscrição de alunos, durante seu desenvolvimento, avaliação e elaboração de relatório. Em suma, tomar os processos de ensino-aprendizagem e de produção de conhecimentos como intrinsecamente relacionados com as particularidades dos processos de produção mais gerais da sociedade (mercadorias e cultura), como também de saúde e de trabalho. Dessa forma, atentar para os efeitos da fragmentação dos processos que cria oposição e poder onde existe diferenciação e complementaridade, criando um clima sereno e de respeito, no qual possa aflorar e desenvolver-se a pluralidade das idéias acerca do campo de conhecimento em discussão. A intenção é vivenciar o “direito de expressar”, o “di- 12 reito de trocar idéias, informações, sensações” para adquirir o verdadeiro direito de trilhar com autonomia o seu próprio caminho e, assim, fazendo novas descobertas, expandindo as oportunidades de se tornar mais livre, mais atuante, assumindo, de forma responsável e ética, este “ser social transformador”. Nessa perspectiva, foi organizado o curso “Psicodrama aplicado à Educação em Segurança e Saúde do Trabalhador”, realizado no período de 3 a 7 de abril de 2000, em Vitória, com vinte horas, contando com quarenta participantes de diversas formações, entre elas: a Pedagogia, a Psicologia, a Engenharia, o Serviço Social, a Enfermagem, a Segurança do Trabalho, a Comunicação Social e a Medicina - que atuavam em órgãos públicos, empresas e sindicatos, o que mostra seu caráter multidisciplinar e plural. Este artigo tem por objetivo discutir as articulações possibilitadas pela abordagem conjunta da Teoria dos Conteúdos Críticos e Sociais e o Psicodrama nesse curso. Para isso, iniciaremos a apresentação com a avaliação dos participantes, pela clareza com que manifestam os aspectos mais importantes dessa articulação. Em seguida, apresentaremos os fundamentos teóricos das abordagens e os procedimentos técnicos desenvolvidos. É terno o olhar: dos participantes e sua avaliação sobre o curso Psicodrama Aplicado à Educação em Saúde do Trabalhador. Nesse curso, foi apresentado a cada participante um formulário de avaliação, previamente elaborado pelos assessores, o qual foi respondido por todo o grupo. Essas respostas foram tabuladas e analisadas e serão relatadas objetivando extrair as impressões, sentimentos e as repercussões dessa ação educativa em cada indivíduo e coletivamente. Os participantes se posicionaram a respeito das atividades que vivenciaram e a totalidade inferiu que as suas expectativas com relação ao curso foram atendidas. Das justificativas dadas, podemos extrair: “os conteúdos foram enriquecedores” e proporcionaram a descoberta “de como é instigante a vivência do psicodrama na prática profissional”; “obtive uma nova forma de leitura da situação real”; “trouxe outro sentido de ver os operários da construção civil”; apresentou “uma nova perspectiva e dinâmica de trabalho em minha função”; “o contato comas pessoas de diversas áreas e ainda a forma de realização do curso me motivou a estudar mais e mais sobre o assunto”. Apontou-se ainda que esse curso proporcionou o “entendimento entre teoria e prática pela possibilidade de experienciar as vivências”; “trabalhou mais minha percepção, empatia e visão crítica”; “aguçou minha curiosidade”; e “me deu condição de questionar e poder mudar a realidade”. 13 Essas expressões revelam que a prática pedagógica experimentada permitiu que a abordagem dos conteúdos sistematizados, somada às dinâmicas vividas, motivasse o grupo a refletir sobre suas possibilidades individuais, sociais e de intervenção num mundo real. Encontramos uma exaltação que vai além do imediato, em direção ao futuro, associando análise crítica como base para se enredar no caminho de novas possibilidades humanas. Reconhece-se o valor dessa afirmativa também por estes posicionamentos dos participantes: “o grupo evoluiu deforma positiva”; “fiquei muito à vontade e pretendo utilizar no meu trabalho as técnicas aprendidas”; “com o psicodrama, podemos atingir uma vida mais feliz, considerando que ele nos permite compartilhar uns com os outros as nossas dificuldades e alegrias”; “abriu um leque sobre o contexto da dramatização em um ambiente de trabalho”. A significância dos conteúdos apresentados e discutidos durante todo o desenrolar do curso, com relação ao trabalho cotidiano, foi também apontada por 100% dos participantes. Um número significativo de participantes trabalha com grupos e eles apontam a importância do uso das técnicas psicodramáticas como facilitadoras para “conhecer e trabalhar com a realidade problemática que estão vivenciando os membros dos grupos”; “na formação e capacitação profissional de grupos, a significância do conteúdo apreendido é marcante”; “estes conteúdos completaram uma lacuna que existia em meu trabalho”, “através dos conteúdos apresentados poderei dar início a novos tipos de abordagem que possibilitem uma integração maior entre as pessoas”. O caráter socializante das atividades desenvolvidas nesse curso, objeto de destaque nas afirmativas acima, indica a valorização também dada ao aspecto lúdico nas descobertas e nas análises das realidades, superando a visão de que só se empreendem análises apuradas a partir do que é sério e sobre os aspectos duros e criticáveis. Incluímos no desenvolvimento formas suficientemente prazerosas, agradáveis, divertidas, introduzindo diversos meios de expressão, possibilitando a leitura de um poder fazer para mudar, ampliando o campo das possibilidades de escolha e diversificando o campo de ação. Mas o conteúdo abordado teve um destaque relevante' no julgamento de valores dado pelos participantes. A preocupação dos assessores em aliar pontos objetivos e claros acerca das teorias em questão, seja a dos “conteúdos críticos e sociais”, seja a do “psicodrama”, e fundamentados nessas teorias desenvolver todas as atividades, desde a construção das relações interpessoais, passando pela abordagem técnico-científica dessas teorias e, paralelamente, propondo e vivendo as experiências grupais, determinou uma prática pedagó- 14 gica facilitadora na compreensão, assimilação e apreensão das técnicas, dos métodos e das teorias consistentes no objeto do curso. É observável ainda, pelos dados coletados com os participantes, que os conteúdos tratados podem também ser aplicados em diversificadas situações, tais como: “posso trabalhá-los tanto em sala de aula, como no acompanhamento de pacientes”; “no meu ambiente de trabalho, o qual o percebo com vários bloqueios”; “deu para fazer uma relação com o dia-a-dia da empresa”; “o conteúdo adquirido será muito útil nos treinamentos aos funcionários que trabalham na empresa”; “como profissionais de segurança, estamos vivendo no nosso dia-a-dia inúmeras situações, como as que aqui foram abordadas”; “trabalho com comunicação e o psicodrama me abriu um excelente canal de aplicabilidade dentro do processo de comunicação social”; “trabalho com excluídos, idosos e crianças carentes”; “vou aplicar no meu cotidiano as atividades que aprendi aqui no curso”; “porque poderei aplicar estas técnicas junto às turmas de produção; visando à prevenção”; “acredito que a introdução do psicodrama na discussão da relação entre saúde e trabalho traz uma novidade para a saúde do trabalhador, que muito contribuirá tanto no trabalho no âmbito da empresa, quanto na pesquisa”; “o curso tratou de cenas do dia-a-dia da sociedade”. O interessante na apuração desses dados é perceber a consistência do agir na relação entre médico/paciente, em pequenos grupos ou em grupos mais ampliados, em atividades cotidianas, assistemáticas, sistemáticas e em temáticas as mais diversas possíveis. A possibilidade da realização das atividades educativas com o outro sugere o compromisso de formar alianças, de construir redes, de buscar, a partir de suas próprias perspectivas teóricas e sociais, elementos novos (novas pessoas; novos saberes e conhecimentos, olhares múltiplos acerca da realidade) e, dessa diversidade, emergir momentos privilegiados para se pensar, planejar e decidir as formas concretas de intervenção coletiva para a emancipação do processo educativo e do social. De forma quantitativa, foi levantada com os participantes sua opinião acerca de itens que dizem respeito à estrutura do curso, como local, carga horária, material didático, sua organização, assuntos abordados, atividades em grupo e aproveitamento dos temas. Obtivemos percentuais significativos que apontam o atendimento pleno em todos os itens, à exceção da insatisfação com relação à carga horária. Quando da análise referente aos pontos negativos ocorridos no curso, foi observável o indicativo de “pequena carga horária”; “atraso no início do curso”; “pessoas chegando atrasadas”; “horário ultrapassado ao final do curso” o que vem corroborar o item já citado. É comum o estabelecimento de regras no início do curso, na busca de consenso para real cumprimento de todos, mas esse grupo teve um envolvimento tão 15 forte com o curso e entre si que os participantes tentavam retardar o seu início até que todos chegassem, assim comprometendo o seu término, com relação ao horário previamente estabelecido. A satisfação e a competência com que se comprometiam com as atividades e tarefas prescritas pelos assessores do curso, transformando-as em cenas rebuscadas de beleza, de emoção, de prazer, de alegria, de brincadeiras, de “viagens ao túnel do tempo” de sonhos, mas também de forte dose da realidade com a qual cotidianamente nos defrontamos no meio ambiente do trabalho, com certeza, determinaram que o tempo necessário para uma “satisfação coletiva” com o que denominamos carga horária seria difícil de ser atingido. As informações apresentadas, discutidas e vivenciadas no curso “Psicodrama aplicado à Educação”, de acordo com os seus participantes, poderão ser reaplicadas nas atividades laborais em Segurança e Saúde por meio de sua realização em oficinas, cursos, palestras, reuniões de CIPA, comissões de saúde, SIPATs, datas comemorativas e também nos grupos de trabalho, tais como grupos multidisciplinares, usuários de drogas, os lesionados por uma doença específica, e ainda no trabalho com as comunidades. Informações qualitativas foram descritas pelos participantes, das quais extraímos alguns relatos para que se possa verificar a extensão das possibilidades do trabalho sociopsicodramático em atividades coletivas e educativas: “Através de conversas com os operários, visualizo a possibilidade de se realizar estas atividades relacionadas com a segurança”. “... tentarei aplicar as vivências com grupo de servidores com DORF.” “... irei compartilhar todo este conteúdo com meus colegas de trabalho, no sentido do enriquecimento profissional”. “... as informações adquiridas me possibilitarão reavaliar os treinamentos de um modo geral; seja no entrosamento interpessoal, na metodologia, nos recursos”. “Colocando em prática as técnicas do psicodrama nos cursos que eu ministrar, para melhor aproveitamento, individual e grupal”. “Poderei aplicar utilizando os recursos como o aquecimento para ‘aflorar’ os sentimentos dos trabalhadores e proporcionar oportunidades para tomada deposições mais críticas”. “Usando as técnicas para dramatização em sala de aula e no consultório”. “Poderá ser desenvolvido um teatro espontâneo com temas prevencionistas, voltados à realidade do trabalhador”.”Para descontrair, ‘quebrar gelo’ em início de cursos ou em grupos de movimento, trabalhando temas como LER, AIDS, Drogas, Adolescência”. “... na vivência do meu cotidiano, principalmente por trabalhar com dinâmicas". 16 "Tudo será aproveitado, seja como gancho para iniciar, como mote, como complemento ou para encerrar conteúdos”. “Oportunizando a criatividade e espontaneidade”. “É um moto-contínuo: mais eu aprendi, mais tenho que aprender”. “Contribuir no desenvolvimento de pesquisas, seja na abordagem para coleta de dados e nas entrevistas”. “Analisando os eventos ocorridos, para localizar fatos que ficam um tanto escondidos”. “Eu tenho como método de trabalho me aproximar das pessoas e saber o que lhes aflige. Agora tenho mais campo para atuação e novas dinâmicas para explorar”. “Estou no dilema de como transformar a teoria em prática”. As possibilidades de escrita refletem o largo campo de ação, uns valorizando a reaplicabilidade em microestruturas, convergindo para seus locais de trabalho, seja de forma intrínseca, seja compartilhada; outros desvelando, por meio da realização de pesquisa, novos nortes do saber. No entanto, a identificação comum nessas transcrições obtidas pode ser interpretada como uma vontade insaciável de fazer, tendo como fontes o aguçamento de estímulos, sensações e percepções, o comungar das idéias a modificação dos significados e dos conteúdos, apropriando-se do impulso crítico para distinguir entre a revelação e a ocultação das realidades sociais. Quanto aos pontos positivos do curso apontados pelos participantes, evidencia-se claramente o envolvimento dos cursistas e a “nossa práxis” (dos assessores e participantes do curso) que determinou atitudes de respeito mútuo, de criação de um ambiente que tornou possível conviver com a pluralidade das concepções. As vivências permitiram dar um colorido às ações. Antes de tudo, foi permitido, pelas teorias e métodos expostos, pelas dramatizações experimentadas, pelas relações interpessoais construídas, o tratamento dualistico entre ação humana x estrutura, conteúdo x experiência, dominação x resistência. A participação ativa na criação e recriação de atos espontâneos, individuais e coletivos e a consonância com as teorias em discussão inspiraram a todos (participantes e assessores) a enxergar para além do imediato, em direção ao futuro. As descrições feitas falam das pessoas, do conhecimento, das dinâmicas, do convívio, do próprio objeto do curso “A saúde do trabalhador” e de suas impressões. Buscamos alguns relatos para exemplificar a relação vivida: “Integração, amizade, espontaneidade, criatividade foram experiências compartilhadas”. “Interação, convivência, possibilidade de crescimento”. 17 “A possibilidade de expressão física, emocional e a capacidade de integração do grupo”. “Amizade, assiduidade, aceitação do outro, alegria, multiplicação de experiências”. “Integração entre participantes e assessores, troca de experiências vividas pelo grupo”. “Diálogo permanente, não me senti intimidado”. “A oportunidade de adquirir novos conhecimentos, deforma socializada com o objetivo de promover a Saúde e Segurança do Trabalhador”. “A iniciativa em realizá-lo, contemplando uma perspectiva de trabalho tão significativa para o processo de desenvolvimento humano”. ”A aproximação de uns com os outros, a amizade que aproximou toda a turma”. ”Conhecer o sociodrama, vivenciando situações cotidianas com outros profissionais”. ”As dramatizações foram ótimas”. “Conhecimento de técnicas do psicodrama”. “A troca de experiências”. “Uma ótima dinâmica do grupo entre si e dos assessores”. ”O conhecimento de pessoas novas. A possibilidade de aplicar as informações aqui obtidas na minha prática profissional”. ”Me ajudou a conhecer melhor a mim mesma, refletir sobre a minha atuação no trabalho e saber usar criatividade para trabalhar”. “A integração propiciada na forma de desenvolver os temas”. “Os facilitadores têm muita segurança”. “O curso apresentou-se dinâmico, não se restringindo apenas em oratória”. “Um grupo coeso e interessado facilitou o desenvolvimento do curso”. “O entrosamento dos participantes, a sensibilidade dos coordenadores, a programação intercalando teoria com vivências”. “Enriquecimento no sentido de trabalhar e estudar em grupo”. “Sociabilidade, coesão, momentos de descontração”. A teoria dos conteúdos críticos e sociais como instrumento de unidade do conhecimento e ação para uma prática transformadora A teoria dos conteúdos crítico-sociais está situada no quadro das concepções progressistas por entender a educação como um processo que ajuda os indivíduos a pôr em questão as condições presentes de sua vida cotidiana gradas pelo modo de organização da produção em nossa sociedade. 18 Saviani (1983) afirma que a importância política da educação reside na sua função de socialização do conhecimento. É, pois, realizando-se na especificidade que lhe é própria que a educação cumpre sua função política. É do trabalho educativo, proveniente do conhecimento muito sensível, intelectual e artístico, prático e teórico, que os indivíduos da espécie humana tornam-se humanos, pois a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos. Assim, o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Nessa teoria, dimensiona-se “conteúdo” como um conjunto de bens culturais elaborados, reelaborados e sistematizados no processo da prática histórico-social dos homens. Engloba conceitos, idéias, leis, generalizações, bem como processos e habilidades cognitivas e de linguagem. Recomenda-se o uso de critérios para a seleção dos conteúdos no trabalho pedagógico, distinguindo-se entre o essencial e o acidental, o principal e o secundário, o fundamental e o acessório. A sistematização dos conteúdos pressupõe determinadas habilidades e, nesse sentido, é mister a identificação das formas mais desenvolvidas em que se expressa o saber objetivo produzido historicamente, reconhecendo as condições de sua produção e compreendendo as suas principais manifestações, bem como as tendências atuais de transformação. Esse saber elaborado só se transforma em saber educativo se, ao serem selecionados do conjunto do saber sistematizado, forem elencados os elementos relevantes para o crescimento intelectual dos sujeitos participantes e se or ganizarem esses elementos numa forma, numa seqüência tal que possibilite a sua assimilação, viabilizando assim o seu domínio. Espera-se que os trabalhadores, ao dominarem os instrumentos de elaboração do saber, aproximemse de uma forma elaborada de consciência, que pode emergir no sentido de consciência de classe. A matéria-prima da atividade educativa é o saber objetivo produzido historicamente. Sendo a produção do saber histórica, então é dinâmica, está em permanente construção, não é obra de cada geração independente, pois a herança cultural é permanentemente transformada, uma vez que é produzida socialmente. Essa dimensão social significa que os conteúdos se fundam no fato de que os homens se formam e se transformam no processo da atividade histórica e social, e a educação está diretamente associada às contradições e lutas concretas que se travam no seio das relações sociais. Saviani esclarece que “o fato de falar na socialização de um saber supõe um saber existente, mas isso não significa que o saber existente seja estático, acabado. É um saber suscetível de transformação, mas sua própria transformação depende de algu- 19 ma forma do domínio deste saber pelos agentes sociais. Portanto, o acesso a ele se impõe” (1997, p. 93). A dimensão “crítica” faz ver que os conteúdos têm sua fonte no desenvolvimento da prática social na qual se manifestam contradições e, nelas, a prevalência de interesses dos grupos e classes hegemônicas. Apesar da ênfase dada aos conteúdos (conhecimentos sistematizados) e sua significância como indicador de mudança para aquisição de novos valores para uma dada classe social, uma leitura cuidadosa dessa teoria aponta a importância dada ao processo didático. Esse prevê a aproximação dos conteúdos da experiência vivida aos dos conhecimentos sistematizados, determinando a seleção e ordenação de fundamentais conhecimentos, os quais deverão ser enriquecidos por novas observações, por meio de atividades de reflexão, compreensão, análise e relações que permitam apreender a historicidade e a relevância social dos conteúdos, para, então, chegar, finalmente, às leis que explicam a realidade física e humana, integrando os conhecimentos em sínteses ampliadoras, consolidando o processo de aprendizagem. A relação pedagógica construída é uma relação com o grupo e o clima do grupo é essencial na pedagogia dos conteúdos crítico-sociais. O grupo participante deve ser encarado como uma coletividade, na qual podem ser trabalhados os modelos de interação, como a ajuda mútua, o respeito aos outros, os esforços coletivos, a autonomia nas decisões, a partir da análise de modelos sociais que vão lhe fornecer instrumentos para lutar por seus direitos, para gerar o sentimento da riqueza da vida em comum e vir ampliando progressivamente essa noção de coletividade, do grupo em formação para o seu grupo de origem, deste para com a cidade, e daí para com a sociedade como um todo. No contexto de se empreender uma prática pedagógica que garanta a aquisição de conhecimentos sistematizados e socialmente construídos numa perspectiva historicizadora para a crítica do existente, vai-se determinar o uso de um processo pedagógico-didático que assegure a interligação entre as práticas socioculturais dos participantes e a cultura já elaborada. A unidade vai se concretizar pela junção do conhecimento + ação. A pretensão é que o domínio dos instrumentos culturais e científicos, consubstanciados no saber elaborado, auxilie no conhecimento e compreensão das realidades sociais, favorecendo a atuação dos indivíduos no seio das práticas de vida e das lutas pela transformação social. O quadro a seguir apresenta uma síntese desta teoria acerca do papel da escola, conteúdos, métodos, pressupostos da aprendizagem e da relação entre professor/aluno. 20 21 O Psicodrama como instrumento para o desenvolvimento de cidadãos críticos que intervêm na sua vida e na sociedade Muitos daqueles que se aproximam do Psicodrama (professores, pedagogos, psicoterapeutas, coordenadores de atividades grupais em geral, etc.) sentem-se tocados pela vida é obra de seu criador e principal líder, Jacob Levy Moreno. Esse cidadão do mundo - do velho e do novo Continente, do final do século XIX até o amadurecimento do século XX, na década de 70 - ensinou ousadia e garra na afirmação de nossa humanidade. Sua “idéia fixa” (contextualizando na ciência algo que a religião denomina “fé”): é possível construir uma sociedade de gênios, ao invés de medíocres. Aceitou, não sem dor e luta, a exclusão que suas idéias e atitudes geravam, principalmente nos espaços e instituições que vivem da mitificação para a manutenção do poder sobre as pessoas, desacreditando-as. Para tanto, assumiu sua megalomania de pensar-se “ser Deus” e poder criar o mundo. “Brincadeira” para a qual convidou a todos, para que ocupem esse lugar. Nas sociedades que primam pela repetição - em que valor e reconhecimento são alocados à tecnologia, à automação, aos robôs - o humano e sua falibilidade aparecem como características menores, que deverão ser supera das e substituídas pelo previsível. O não previsível assusta, amedronta, incapacita a ação, deixando-nos paralisados, passivos, à mercê das ações que vêm de fora. A fragilidade que essa condição nos coloca, muitas vezes, faz com que desejemos e aceitemos alguém de fora, que possa nos dar qualquer referência sobre este mundo a enfrentar. E, com freqüência, não percebemos que o mundo que nos é mostrado “repetidamente” é aquele onde nossas ações também são previsíveis, portanto, controláveis. O que é oferecido como uma ajuda instaura controles. Quando imaginamos “ser Deus” diante do caótico não nomeado do momento da criação, somos movidos pela necessidade de ação, de fazer. Designar coisas por nomes (que também se repetem) serve para nos comunicarmos com os outros seres (que também são “Deus”) acerca das necessidades e desejos, motores da ação. Para Moreno, o problema surge quando esses nomes tornam-se as coisas em si, e não um instrumento de comunicação sobre as coisas. Aquilo que criamos para “entrar na vida” e interagirmos nela torna-se uma propriedade, uma posse concreta. Assim, valoriza-se mais a forma concreta foral, o produto da criação, do que o processo de criação. Essa valorização, que chamamos de “conserva cultural” (produto dos processos para a satisfação das necessidades de uma sociedade), cristaliza as alternativas, impedindo a inovação. Para Moreno, essa equação deve ser invertida: o valor es- 22 tá no processo de criação, sendo a conserva cultural apenas uma das possibilidades satisfatórias do processo. Dessa maneira, influenciado principalmente por intelectuais existencialistas e pragmáticos do começo do século, Moreno desenvolveu uma abordagem que tem por objetivo estimular-ensinar-tratar os homens e seus contextos sociais, para se tornarem agentes do mundo em que vivem. Aqueles que já tiveram uma aproximação com essa abordagem certamente a associam às questões da espontaneidade, da dramatização e do grupo, que abrem para o chamado “tripé conceitua) fundamental”: a teoria da espontaneidade-criatividade, a teoria de papéis e a sociometria. A espontaneidade-criatividade é um dos atributos mais caros aos seres humanos que, no entanto, tem sido esquecida em prol de conhecimentos conservados, na ilusão de atingir um mundo em que tudo seja conhecido e não ameace. O ato do nascimento pode ser considerado o paradigma do ato espontâneo, pois nele a mulher e o feto em seu útero agem em sintonia para que transformações necessárias ocorram. Ambos os organismos se preparam (ou, como dizemos no Psicodrama, se “aquecem”) para a tarefa que se anuncia, que é necessária para que cada um atravesse um estágio de desconforto e desenvolvamse novos seres e possibilidades de vida a mãe e o recém-nascido. A espontaneidade é um catalisador de todo o processo, constituído de mobilização fisiológica, psíquica e relacional (ou social), que acontece apenas naquele momento em que se faz necessário, colocando em ação os recursos disponíveis (culturais, sociais e da constituição da pessoa). Não pode ser conservada e guardada, mas apenas estimulada e utilizada. A falta de espontaneidade no ato de nascimento consiste na falta de sintonia entre os seres que dele participam, tendo como resultado respostas inadequadas que se apresentam como disfunções durante o parto. Nesse sentido, a falta de espontaneidade é que se torna uma ameaça à sobrevivência das pessoas. Por isso, o método psicodramático propõe técnicas para um melhor aquecimento da espontaneidade-criatividade, visando a obter ações mais adequadas àquilo que a realidade em construção necessita. A noção de “realidade em construção” pretende destacar os aspectos de movimento e ação, decorrentes da interação espontânea de diferentes elementos presentes no momento único do surgimento do ato, os quais representam seus condicionantes históricos e de expectativas futuras. Portanto, mais do que na ação (presente nas concepções causalistas em que algo “causa” uma outra coisa), a espontaneidade-criatividade ocorre na interação, pois toda ação tem (no mínimo) dois pólos que se transformam mutuamente. Esses aspectos da espontaneidade-criatividade é que nos remetem 23 aos dois outros eixos conceituais do Psicodrama: a teoria de papéis e a sociometria. Por meio deles, inserimos as dimensões da cultura e das redes sociais concretas em que os seres humanos participam. Para Moreno, a menor unidade de cultura é o papel. Nele se articulam as expectativas do coletivo em relação ao indivíduo e à tradução desse coletivo pelo indivíduo. Aos primeiros aspectos, que dão generalidade ao papel (uma mãe; um filho, um patrão, um professor, etc), denominou de “papéis sociais”, enquanto os aspectos que lhe dão singularidade (eu mãe, eu filho, eu patrão, eu professor, etc.) denominou “papéis psicodramáticos”. Além disso, como unidade relacional, o papel está referido indissoluvelmente a um “contrapapel”, por exemplo: pai/filho, professora/aluno, empregado/patrão, esposa/esposo, amiga/amigo, etc. Pelo repertório de papéis e da espontaneidade-criatividade com que são desempenhados, pode-se avaliar o desenvolvimento das pessoas e de cada cultura. Eles indicam a possibilidade de lidar mais adequadamente com novas si tuações que se apresentam, no sentido do crescimento. O melhor desempenho de papéis ocorre quando o indivíduo pode transitar mais facilmente entre seu imaginário e a realidade compartilhada. Além disso, mais do que um desempenho individual de papéis, importa avaliar como se desenrola a interespontaneidade nas várias situações concretas de vida que requerem uma participação de mais do que uma pessoa. Para que uma ação compartilhada ocorra, não basta a espontaneidade-criatividade de apenas um dos integrantes, mas a “sintonia” em que o conjunto desempenha o grau de conhecimento mútuo desenvolvido na experiência de vida compartilhada, de maneira a se complementarem e potencializarem. A estratégia de aquecimento para a espontaneidade-criatividade no desempenho de papéis implica considerar a experiência que se realiza no momento atual, no local de sua ocorrência. No jargão do Psicodrama, dizemos no “aqui-eagora”. Isso significa que o melhor aquecimento para uma resposta espontâneocriativa ocorre quando se levam em conta todas as forças - internas e externas; psíquicas, fisiológicas e genéticas; individuais e relacionais: coletivas, históricas e ambientais; etc. - que estão em jogo na interação entre as pessoas. Atento a isso, Moreno desenvolveu alguns conceitos e métodos para a investigação profunda dos grupos, que foram inovadores para a compreensão do funcionamento dos chamados pequenos grupos. Apesar de ser um desen volvimento posterior de sua obra; Moreno reconheceu estarem neles as principais contribuições científicas que fundamentam todo o Psicodrama, denominando de Socionomia “a ciência das leis sociais” (Moreno, 1959). Essa 24 ciência tem como um dos sustentáculos a Sociometria, que, pela mensuração das escolhas internas realizadas num determinado grupo para um determinado propósito, pesquisa o desenvolvimento e organização dos grupos e da situação dos indivíduos neles. Com isso, completa-se o tripé conceitual do Psicodrama, que, em síntese, contribui para pensarmos sobre como podem os seres humanos interagir de maneira espontâneo-criativa na construção de valores e da produção material da cultura, num mundo em que todos têm oportunidade de se agrupar, segundo suas características, necessidades e desejos, e que essas diferenciações grupais signifiquem possibilidades para a sociedade e os indivíduos, mais do que ameaças. A dramatização como técnica para o trabalho com grupos O Teatro Espontâneo ainda é considerado um método central, entre os vários que o Psicodrama propôs para a compreensão e desenvolvimento dos grupos. Todo o desenvolvimento teórico-conceitual realizado por Moreno teve por objetivo explicar e compreender fenômenos que ocorriam no espaço de uma prática teatral, onde não havia uma peça escrita anteriormente e, pelo estímulo à participação grupal, era proposta uma encenação improvisada, freqüentemente tendo os próprios integrantes da platéia como atores. Interessava inicialmente compreender como se efetivava a interpretação espontânea de papéis e, mais ainda, como ocorria a interespontaneidade dos atores no drama que se desenrolava. Maior espontaneidade correspondia a uma maior fluência na encenação. Como em todo o Psicodrama, a teoria veio em seguida à prática, para explicar a experiência de uma modalidade teatral que alcançava intensos níveis de liberação emocional no ator e alta empatia com a platéia. Isso se tornou possível com a proposição de um espaço (o palco, ou “espaço psicodramático”) onde quem ali adentrasse pudesse viver “como se” estivessem acontecendo suas fantasias, temores, desejos, conflitos, não como uma ilha da fantasia, mas onde a verdade (da “fantasia” e da “realidade”) pode ser testada no aqui-e-agora. Assim Moreno descreve a arquitetura de um teatro que estimulasse a espontaneidade: Face à dissolução do contraste entre atores e espectadores, porém, espaço total torna-se um campo para a produção. Cada parte do mesmo deve refletir o princípio da espontaneidade e nenhuma de suas partes pode permanecer excluída. No centro do espaço é construído um palco para os atores espontâneos. Não se o 25 constrói na parte de trás de uma das extremidades do espaço, oculto como se fora o palco de um show de pequenas gravuras vistas através de um orifício; ao contrário, é erigido de tal forma que todas as suas partes possam ser vistas de todos os lugares da platéia. Não é construído no fundo ou deixado lá embaixo no chão, mas sim é erguido na dimensão vertical. É elevado. Seu fundo não é resguardado por cortinas, não procura ajuda ou defesas às suas costas, não conta com nada sobre o que se possa apoiar. Partindo do palco central, há degraus para subir e descer, numa forma de anfiteatro. Conduzem aos palcos especiais, construídos em meio ao próprio auditório, em cada nível do anfiteatro, prontos para serem utilizados pelos espectadores-atores que talvez entrem na ação dramática. Toda a comunidade está presente no teatro da espontaneidade. É o teatro da comunidade. Trata-se de um novo tipo de instituição, instituição que celebra a criatividade. Esse é o lugar onde a própria vida é testada, o forte e o fraco, pela peça teatral. É o lugar da verdade sem poder. As pessoas possuem tanto poder quanto o que conseguem demonstrar. É o teatro de todos, o luscofusco do ser e da realidade, no qual a própria realidade é testada quanto à sua ‘realidade’. Não é um criador que se cerca por uma multidão inativa e auditivamente atenta; não é o teatro de um homem; é o teatro de todos por todos” (1984, p. 45). As diferentes aplicações do Psicodrama - a psicoterapia, o trabalho de desenvolvimento grupal em instituições e organizações, a educação, o trabalho comunitário, etc. - mostram a amplitude de possibilidades de utilização de dramatizações espontâneas com grupos. De maneira geral, os métodos principais colocam em cena três tipos de situações: a) a história pessoal de um protagonista que emergiu do grupo, que contracena com atores-espontâneos (chamados de “egos-auxiliares”) profissionais ou oriundos da própria platéia; b) uma história construída pelo grupo todo a partir de sua imaginação, desde o enredo até os personagens que cada um irá representar; e c) um momento de importância para o grupo, quando cada um representa a si mesmo, da maneira em que se sente mais verdadeiro, na interação com os demais. Apesar de não haver uma distinção absoluta sobre os usos desses métodos nas diferentes aplicações, de maneira geral correspondem, respectivamente, às aplicações em Psicoterapia Psicodramática, Psicodrama Pedagógico e Sociodrama. Mas todos os métodos baseados na dramatização têm em comum uma concepção da técnica que articula e seqüência três etapas: o aquecimento, a 26 dramatização propriamente dita e o compartilhamento. Na etapa de aquecimento, são propostas atividades que visam a tirar o grupo de uma situação passiva, tensa, de repetição e estereotipia, próprias das situações novas. Essas atividades mobilizam os corpos, as sensações, os sentimentos, as lembranças, de maneira que cada um possa entrar em contato consigo e com os demais, ajudando a configurar a “rede sociométrica” que dará sustentação para a tarefa proposta. Só assim é possível efetivar a dramatização propriamente dita, com o jogo espontâneo dos papéis. À dramatização segue-se o compartilhamento, etapa fundamental, principalmente quando houve uma platéia que assistiu e teve pouca oportunidade de participação direta depois do aquecimento. Nessa etapa, cada um compartilha seus próprios sentimentos e histórias, despertados pela dramatização ocorrida, aproximando-se do protagonista que sofreu mais intensamente ao viver sua história no palco. O envolvimento durante todas as etapas é a medida da revelação, da terapêutica ou do aprendizado. Num caminhar: refletindo os MÉTODOS E TÉCNICAS utilizados no Curso Psicodrama Aplicado À Educação em Saúde do Trabalhador Apresentaremos, a seguir, como o curso se desenrolou, destacando as técnicas propostas. 1a aula: Abertura oficial pelo Diretor do CEES da FUNDACENTRO. Apresentação do curso pelos assessores: regras de funcionamento e metodologia das aulas. Apresentação dos participantes, por meio de um jogo dramático que consistiu do seguinte: cada participante recebeu uma folha branca, devendo expressar nela, da maneira que quisesse, a questão “quem sou eu?”. Foram disponibilizados canetas e lápis de cor, para aqueles que desejassem utilizá-los na sua expressão. Após um tempo para essa etapa, os participantes foram instruídos a andar pela sala para mostrar sua produção, conhecer as dos demais participantes e procurar agrupar-se em quatro pessoas, para se apresentarem. A partir das semelhanças e diferenças que observaram, deveriam encontrar uma forma de expressão que integrasse as diferentes produções individuais (poderia ser um cartaz, uma maquete, uma dramatização, etc.). Em seguida, deveriam apresentar para o restante do grupo. Após um intervalo, cada participante recebeu outra folha em branco, onde deveriam descrever uma situação considerada marcante vivida durante o período de sua formação escolar. Depois, subdividiram-se em quatro gru- 27 pos e compartilharam a situação que cada um descreveu. Pediu-se para que cada grupo escolhesse a situação que tocou mais ao grupo, para que fosse dramatizada por eles. Após a apresentação das dramatizações, abriram-se em círculo, para um compartilhamento de todos acerca do vivenciado como ator e espectador das dramatizações. Ao final, foi solicitado que trouxessem para o dia seguinte alguma notícia do jornal diário, sobre o tema “ser trabalhador”, a partir da perspectiva de cada um. Ficou acordado com os participantes que, a cada dia, alguém faria uma proposta de atividade de encerramento, com duração de alguns minutos, como despedida do grupo. Nesse dia, a atividade envolveu danças. 2a aula: Iniciou-se com uma exposição dialogada sobre “Educação libertadora”, ministrada por um dos assessores. O conteúdo teórico foi trabalhado, a partir de um resgate das questões que emergiram nas dramatizações do dia anterior. Para a atividade seguinte foram distribuídas “senhas”, pelas quais se buscou formar seis grupos de pessoas. As senhas correspondiam a nomes de cores, frutas, planetas do sistema solar, flores, cidades e animais. Em cada grupo formado, os membros apresentaram as notícias de jornal trazidas de casa e escolheram apenas uma. Um representante de cada grupo foi chamado para relatar a notícia escolhida e, em seguida, o grupo selecionou aquela que seria dramatizada. A dramatização foi inicialmente montada pelo grupo que apresentou a notícia, buscando-se, na seqüência, estimular o grupo todo (que em grande parte participava como platéia) a propor desdobramentos, a partir de novos personagens que poderiam entrarem cena. Após a dramatização, abriu-se para o compartilhamento. Essa técnica é denominada de Jornal Vivo, uma das formas de teatro espontâneo. Para o dia seguinte, foi solicitada a leitura do texto “Educação em saúde do trabalhador, educação ambiental e psicodrama”, que integrava a apostila. Como atividade de despedida, alguns participantes do grupo propuseram uma atividade que envolvia poesia. 3a aula: Iniciou-se com uma discussão sobre as atividades vivenciais dos dias anteriores, procurando se destacar aspectos técnicos e conceituais, bem como seu efeito sobre as pessoas e o grupo. Essa discussão foi coordenada por um dos assessores, que deu continuidade com uma exposição dialogada sobre “Métodos e técnicas do Psicodrama”. 28 A atividade seguinte consistiu em dividir os participantes em quatro subgrupos, para debaterem os principais pontos do texto de referência lido anteriormente. Após um período de discussão, destacou-se cada subgrupo para preparar uma dramatização que enfocasse o conteúdo de uma parte do texto, já subdividido pelos assessores. Seguiram-se as dramatizações e compartilhamento final. A atividade proposta por alguns participantes, para o encerramento do dia, foi com experimentação de expressões faciais: 4a aula: Iniciou-se com uma exposição dialogada sobre “Principais conceitos da teoria psicodramática”, ministrada por um dos assessores. A atividade seguinte consistiu de um jogo sociométrico. Foi mostrada uma placa onde se lia: “Quem, entre os colegas de curso, eu escolheria para, em conjunto, fazer uma abordagem sobre um tema da ‘Segurança e Saúde do Trabalhador’, utilizando o Psicodrama como recurso?”. Solicitou-se a todos que se dispusessem em um círculo e, em silêncio, pensassem na resposta e pensassem também na questão: “Qual o motivo de minha escolha?”. Em seguida, colocassem a mão direita sobre o ombro da pessoa escolhida. Desse modo, formou-se uma rede, verificando-se as pessoas mais escolhidas (chamadas no Psicodrama de “estrelas sociométricas”) e outras configurações em cadeia linear, pares, trios, etc., além da ocorrência ou não de mutualidades de escolha. Prosseguindo, foram ouvidos os motivos para as escolhas feitas. Na segunda parte dessa atividade, foi distribuída uma ficha para cada participante, onde constava: “(nome da pessoa) procura parceiro para abordagem do tema [...] para a clientela [...], utilizando o Psicodrama”. Após preencherem as fichas, solicitou-se que andassem pela sala, interagindo, mostrando sua ficha e observando as dos demais participantes. Em seguida, voltaram a se dispor em círculo. Solicitou-se que, diante do que viram nas fichas e conversaram, pensassem em quem escolheriam para ser seu parceiro. Após escolha em silêncio, foram instruídos a colocar a mão esquerda no ombro de quem escolheram. Por fim, procedeu-se a uma análise comparativa das redes formadas e das escolhas feitas pelos participantes. Verificaram as situações nas quais a escolha se manteve e aquelas em que um maior conhecimento das escolhas dos demais e sobre a proposta de cada um resultaram em maior adequação das escolhas. A despedida do dia envolveu expressão corporal. 5a aula: A psicodramatista e pesquisadora Amarilis Araújo Pinto, da Coordenação de Educação do Centro Técnico Nacional da FUNDACENTRO, de São Paulo 29 - convidada do curso - expôs sua experiência com essa abordagem em projetos educativos. Em seguida, coordenou uma vivência com teatro espontâneo. A técnica inicial de aquecimento consistiu em fecharem os olhos, imaginando-se como se estivessem num sonho, numa situação envolvendo o processo ensinoapredizagem, desempenhando o papel de educador. Nesse contexto imaginativo, deveriam perceber algo que lhes tocasse profundamente pelo fato de não conseguirem fazer. Ao abrirem os olhos, agruparam-se em turmas de seis pessoas e cada um contou seu “sonho”. Em seguida procedeu-se à escolha de um dos sonhos por parte do grupo e posterior dramatização e compartilhamento. Ao final, nesse dia, o grupo apresentava-se um tanto inquieto, com as pessoas entrando e saindo da sala. Soube-se que estavam empenhadas em preparar o encerramento do curso, momento em que foram bastante expressivas e ca rinhosas na manifestação dos sentimentos em relação ao curso e aos assessores. Nosso jeito de concluir: preparando campo para novos devaneios O conhecimento acerca do Psicodrama e da Teoria Crítico-Histórica dos Conteúdos e sua intervenção na construção de práticas pedagógicas dentro da área progressista da educação move-nos como educadores que somos e nos desafia no campo da produção de conhecimentos, instigando nossa veia de pesquisadores que tanto almejamos ser. Na busca do “refletir para fazer” (o planejamento e a estrutura do curso), no “fazer refletindo” (na realização propriamente dita do curso) e no “refletir o fazer para refazer” (na avaliação do curso), foram consumidas longas horas de prazerosas conversas, na troca de informações e saberes, nos debates acerca de pontos de vista já firmados, na criação de técnicas a serem aplicadas, no processo de sedução a ser lançado, o que, muitas vezes, remeteu-nos à necessidade de buscar mais conhecimentos para dar a sustentação necessária às posições tomadas até então, ou à procura de novas descobertas no esforço de adquirir mais e melhor conhecimento, na busca inacabável da aquisição do conhecimento. Soma-se a isso o nosso tempo solitário, nunca de solidão, às vezes dedicado à contemplação do inusitado, quando descobrimos as saídas para nossas anteriores interrogações. Nessa busca para construção do plano de curso não está dissociada a preocupação constante “com quem” será realizada a atividade educativa. É pelo respeito e pelo comprometimento com o outro, que propomos um planejamento técnico-político, estético-ético, solidário-amigo, com o aporte do saber e da emoção, do conhecimento e do afeto. Como nos ensina Carlos Brandão, a proposta é desenvolver um trabalho de criação partilhada de conhecimento, com o diálogo com o outro, esta- 30 belecendo relações com as pessoas fraternalmente para conseguir conviver em e entre redes de criadores, abertos às novas compreensões e novas sensibilidades. Temos a humildade de reconhecer que este é um espaço limitado, no que tange ao aspecto físico, ao tempo, ao número de pessoas, pois o convívio que se estabelece em um determinado curso é determinado por esses fatores. No entanto, foram semeadas esperanças, brotaram novos conhecimentos, compartilhadas foram as experiências, frutos enriquecedores de novos saberes e de novas práticas, a partir das desveladoras realidades com que nos defrontamos; foram colhidas, espalharam-se e ampliaram-se as consciências críticas e criativas do lugar de cada um de nós no trabalho de construção do mundo em que vivemos agora e dos tipos de sociedades com que sonhamos e que poderemos criar. Essa experiência só pôde ser realizada graças ao esforço e à sistematização dos conhecimentos gerados pelos diversos estudiosos dedicados ao Psicodrama e à Teoria dos Conteúdos Crítico-Sociais. O saber elaborado e sistematizado, histórico e socialmente construído em comunhão com a espontaniedade despertada pelas cenas criativas é que vai permitir... Referências l. 2. 3. 4. 5. 6. 7. GADOTTI, Moacir. História das idéias pedagógicas. 3. ed. São Paulo: Ática, 1995. MORENO, J.L. O teatro da espontaneidade. São Paulo: Summus, 1984. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1978. NOAL, Fernando Oliveira et al. Tendências da educação ambiental brasileira. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1998. ROMANA, Maria Alicia. Construção coletiva do conhecimento através do psicodrama. Campinas: Papirus, 1992. SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica - primeiras apro ximações. 6. ed. Campinas: Autores Associados, 1997. Escola e democracia. São Paulo: Autores Associados. 31 32 AS INTERVENÇÕES EDUCATIVAS DA FUNDACENTRO - ERMS NO CAMPO DA SEGURANÇA E SAÚDE DO TRABALHADOR Aidar Vagner Dall'Oca1 Maria do Rosdrio Sampaio2 Apresentação O Escritório de Representação da FUNDACENTRO de Mato Grosso do Sul vem desenvolvendo ações educativas em Segurança e Saúde do Trabalhador desde 1993, pelo projeto “Educação em Segurança e Saúde do Trabalhador do ERMS”. Já há algum tempo sentíamos necessidade de melhor compreender o seu alcance, realizando uma avaliação sistemática, que nos indicasse as suas limitações, seus acertos e pontos críticos. A iniciativa da FUNDACENTRO - CEES nos pareceu oportuna e estimulante para que passássemos da intenção à ação. Portanto, o presente estudo focaliza as ações educativas em Segurança e Saúde do Trabalhador desenvolvidas pelo ERMS, ocasião em que apresentamos o seu objetivo, concepção, metodologia, para depois nos concentrarmos em sua avaliação. Para avaliar o projeto em questão, apoiamo-nos em 487 alunos que responderam ao questionário semi-estruturado, sendo as suas respostas o material principal de nossa análise. Introdução O quadro de segurança e saúde do trabalhador em Mato Grosso do Sul O Estado de Mato Grosso do Sul, um dos mais novos do País (1979), localiza-se na região Centro-Oeste do Brasil, ocupando uma área de 358.000 km2, nos quais se distribuem os seus 2.209.000 habitantes, sendo 80% residentes na zona urbana e 20% na zona rural. Os seus dados econômicos indicam que 66% da população é economicamente ativa, estando 30% inseridos no setor primário, 15% no setor secundário e 55% no setor terciário (SEPLANCT, 1999). 1 Engenheiro Agrônomo, Engenheiro de Segurança, Chefe do ERMS. Jornalista/Pedagoga, Especialização em Sociologia e Saúde do Trabalhador, Mestra em Engenharia de Produção. Coordenadora de Educação da FUNDACENTRO - CRMG. 2 33 O Estado revela-se basicamente por possuir grande potencial agrícola, pecuário, turístico, de pescados, além de possuir grandes reservas minerais, algumas ocupando lugar de destaque no ranking nacional, tendo a maior re serva de calcário e a 3a maior reserva de ferro do País, com 1 bilhão de toneladas, e 50% das reservas de manganês existentes em solo brasileiro, com 185 milhões de toneladas. Devem-se ressaltar, ainda, os seus recursos hídricos, que permitem a exploração pesqueira profissional, bem como suas hidrovias compostas por 10 eclusas, 22 postos e 4 terminais de transbordo, movimentando um total de 1.968.000 toneladas de produtos diversos por ano. As suas indústrias se voltam, principalmente, para a atividade de beneficiamento e transformação de produtos primários, extração de minerais metálicos e não metálicos e construção civil. O Estado possui ainda oito usinas de álcool e açúcar que juntas produzem anualmente quinze milhões de sacos de açúcar e 1.310.000 m3 de álcool, nas quais se envolvem cerca de 10.000 trabalhadores, em 100.000 ha de cana plantada. Dentre as suas atividades econômicas, merece registro a sua rede armazenadora de grãos, sob administração estatal e privada, na qual vigora tanto o sistema convencional (sacos de 60 quilos) como o sistema de silos ou graneleiro; sete indústrias moageiras de soja; e um número expressivo de agroindústrias caseiras. Cônscios da existência de uma estreita relação entre a saúde e o trabalho, principalmente nos moldes em que este último se organiza na sociedade atual, e tendo em vista a estruturação econômica apresentada pelo Estado, surge, inevitavelmente, uma indagação muito usual entre os profissionais da área de saúde do trabalhador: considerando o leque produtivo de Mato Grosso do Sul, que repercussões poderiam ser indicadas para a segurança e a saúde de seus trabalhadores? Buscando responder a tal indagação, recorremos ao Anuário Estatístico da Previdência Social, do qual extraímos os seguintes dados: 34 A análise do gráfico acima revela que, ao longo de dez anos, foram registrados 25.857 acidentes de trabalho em Mato Grosso do Sul, com uma média anual de 2.586 para os acidentes típicos, 245 para os acidentes de trajeto, 88 para as doenças do trabalho e 64 para os acidentes fatais. Consideramos que os números são expressivos, ainda que não revelem com fidedignidade o quadro acidentário do Estado, uma vez que é impossível ignorar a existência de subnotificação nessa área (como explicar o registro de 5 doenças profissionais em 1992, contra 286 em 1993 e apenas 10 em 1994?). Visando a explicitar qualitativamente a realidade acidentária sul-matogrossense, tomamos por referência o relatório 1998-1999, do Centro de Informações Toxicológicas (CIT MS), no qual se encontram destacados os 1.066 casos de acidentes de trabalho por animais peçonhentos/cobras e 228 casos de intoxicação por agrotóxicos, fato explicável pelo elevado consumo dessas substâncias venenosas em todo o Estado. Corroborando as informações acima e numa demonstração do peso do setor agropecuário nas estatísticas de acidente de trabalho em Mato Grosso do Sul, o Núcleo de Saúde do Trabalhador da SES/MS apresenta dados semelhantes aos encontrados pelo CIT. 35 Em 1999, o Núcleo de Saúde do Trabalhador - SES recebeu 2.313 CAT, cuja análise indicou que 42% dessas comunicações se referem a trabalhadores do setor agropecuário, perfazendo um total de 969 casos oficialmente comunicados. Merecem destaque também as 212 ocorrências da construção civil, os 166 acidentes nas atividades metalúrgicas e as 87 CAT oriundas de estabelecimentos hospitalares, todas em 1999, como indicado no gráfico acima. Desse modo, o quadro de acidentes/doenças do trabalho apresentado por Mato Grosso do Sul se aproxima daquele relevado para o País como um todo, embora se reconheça que, dadas as particularidades do Estado, o índice de acidentes com animais peçonhentos/cobras se revele - proporcionalmente - mais alto do que o da média nacional. Afora isso, as notificações se referem a cortes, perfurações, escoriações, choques elétricos, luxações, intoxicações, dermatites, DORT, conforme se lê no gráfico a seguir: 36 Os dados acima referem a 26 óbitos registrado em 1999. Não foram registrados ocorrências apenas nos meses de março e abril do ano em referência. Interessante constatar que, somente nos meses de janeiro e fevereiro/1999, foram notificados 15 acidentes fatais. 37 Consideramos inevitável que o profissional da área de segurança e saúde do trabalhador se sensibilize em frente ao quadro assim instalado e, num processo auto-reflexivo, perguntávamos como poderíamos contribuir para a redução dos acidentes de trabalho no Estado. Dentro dos nossos limites, a resposta encontrada era sempre o processo educativo, ainda que ele ocorra em um sistema caracteristicamente predatório. Assim, longe está a idéia de recomendar a educação como uma panacéia para todos os males, embora haja unanimidade quanto ao seu potencial ora acomodativo, ora transformador, sendo este último que nos incita a participar do desenvolvimento de ações educativas, na expectativa de que essas ações possam estimular a discussão sobre os reflexos do trabalho na saúde de quem trabalha, ao mesmo tempo em que se espera que atitudes pró-ativas possam ser implementadas. Vale lembrar Paulo Freire: A esperança não consiste em cruzar os braços e esperar. Na medida em que luto, estou amadurecido para a esperança-se combato com a esperança tenho o direito de confiar. O diálogo, como encontro de homens que pretendem ser mais lucidamente humanos, não pode praticar-se num clima carregado de desesperança. Se os que dialogam não esperam nada de seus esforços, seu encontro é vazio, estéril, burocrático e cansativo (1980). Sob esse ângulo, a educação é um processo marcadamente dialogal, em que a qualidade de permanente poderá ser um forte diferencial na obtenção dos resultados pretendidos. Coordenando o Projeto Educação em Segurança e Saúde do Trabalhador, na FUNDACENTRO - ERMS, temos zelado, por essas duas propriedades: manter o diálogo aberto com a comunidade que nos procura, de modo a descobrir e atender às suas demandas e tentar assegurar, tanto quanto possível, a continuidade das ações educativas, na perspectiva de uma educação de caráter permanente. O projeto “Educação em Segurança e Saúde do Trabalhador do ERMS” Refletir sobre as relações entre educação e segurança/saúde do trabalhador é percorrer um caminho ostentado primordialmente por sérias e profundas contradições, em que as soluções para os problemas de uma esbarram, comumente, em particularidades orgânicas de outra, num círculo vicioso que parece difícil de ser rompido. Sentimo-nos em campo minado, mas a esperança recomendada por Fréire ainda tremula... 38 Em resposta à necessidade de intervenção na realidade acidentária anteriormente relatada e em atendimento às solicitações de cursos sobre temas inerentes à relação saúde x trabalho, desenvolvemos as primeiras ações edu cativas no âmbito de MS, ano de 1993, porém, essas se constituíam em eventos esporádicos, dada a falta de infra-estrutura básica do ERMS, à época funcionando em uma sala do INSS local. Em 1993, com a instalação do ERMS em sede própria e a conseqüente melhoria das nossas condições de trabalho, as ações educativas tornaram-se mais sistemáticas, quando o ERMS passou a oferecer cursos, seminários e palestras ao conjunto de interessados na discussão sobre os problemas de saúde no trabalho. Estes se constituíam num universo heterogêneo, composto por trabalhadores, engenheiros de segurança, técnicos de segurança, médicos do trabalho, profissionais das Ciências Sociais, os quais se vinculam tanto à rede pública como à privada, além de sindicalistas e estudantes. Consideramos que a abrangência do projeto é razoavelmente satisfatória, uma vez que atendeu, de 1993 a 2000, a 25 cidades de Mato Grosso do Sul, como Campo Grande, Dourados, Corumbá, Rio Brilhante, Nova Andradina, Três Lagoas, Coxim, Sidrolândia, Aquidauana, Rio Verde, Taquaruçu, Cassilândia, Ponta Porá, dentre outras. Em 1996, tivemos acesso ao Programa Nacional de Educação em Segurança e Saúde do Trabalhador, documento elaborado por componentes da Coordenação de Educação da FUNDACENTRO, no qual se encontram dispostos os pressupostos filosóficos e linhas de atuação recomendadas aos profissionais da FUNDACENTRO que desenvolvessem ações educativas. A análise do documento revelou uma sintonia entre ele e as ações educativas desenvolvidas pelo ERMS, pois que temos buscado desenvolver as nossas ações baseados nos mesmos princípios e objetivos estabelecidos pela Coordenação de Educação da FUNDACENTRO. A intencionalidade de nossas ações assenta-se, pois, em um objetivo primordial que é o de promover a disseminação dos conhecimentos e experiências relativas à área de saúde x trabalho, de modo a contribuir para o melhor desem penho dos profissionais que têm como atribuição a promoção e a preservação da segurança e saúde dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que se enfatiza a necessidade de atuação desses participantes como agentes multiplicadores. Para o alcance de tal objetivo, torna-se necessário que se busque “encarar as situações da organização do ambiente de trabalho e de saúde dos trabalhadores como problemas sociais deforma crítica, buscando determinar as causas reais, definindo medidas adequadas, na perspectiva de que pe- 39 lo esforço coletivo possam ser construídas soluções criativas” (FUNDACENTRO - Coordenação de Educação, 1996). Desde então, as ações educativas se tornaram mais sistemáticas, exigindonos procedimentos apropriados sobre os quais discorreremos no tópico seguinte. Metodologia de trabalho Dada a composição da FUNDACENTRO - ERMS, em que se ressalta o número reduzidíssimo de profissionais,3 pode-se dizer que o desenvolvimento de nossos projetos só tem se viabilizado pela construção da interinstitucionalidade. Assim, vimos formando parcerias com várias instituições, sem as quais seria impensável a nossa atuação. Para a operacionalização das ações previstas no projeto Educação em Segurança e Saúde do Trabalhador, tem sido de extrema importância o apoio da FUNDACENTRO-CTN-SP, não só pela aprovação das nossas propostas, como também pela liberação de vários de seus técnicos para atuarem como docentes dos eventos educativos promovidos no Estado de Mato Grosso do Sul. Salientamos ainda o apoio das Unidades Descentralizadoras da FUNDACENTRO de Minas Gerais, Pernambuco, Santa Catarina, Bahia, Rio Grande do Sul, Pará, Rio de Janeiro, Campinas, as quais se mostram sempre solidárias perante nossas solicitações (liberação de técnicos). O atendimento à demanda que constantemente nos é colocada começa a se delinear a partir da garantia do custeio das despesas relativas ao evento, da aceitação do especialista convidado e da certeza do apoio de instituições locais, tais como, Ministério Público do Trabalho, Universidades, Sindicatos patronais e de trabalhadores, Secretarias Estaduais (da Saúde, do Trabalho, da Agricultura, do Meio Ambiente), dentre outras. Os temas a serem trabalhados nos cursos, palestras ou seminários são selecionados a partir de consultas sobre o quadro epidemiológico em saúde do trabalhador no Estado, fornecido pelo Núcleo de Saúde do Trabalhador - SUS, CIT MS, INSS - ou pelos próprios usuários, em conversas informais, e pela análise de questionários de avaliação dos cursos, quando os participantes indicam os assuntos de seu interesse. A par dessas informações, os eventos educativos são planejados, cabendo ao docente convidado as definições quanto à carga horária, formas de abordagem dos conteúdos programáticos (maior/menor profundidade), procedimentos, recursos didáticos, etc. 3 O quadro de funcionários do ERMS possui um técnico (Eng. de Segurança), dois auxiliares administrativos e um motorista. 40 Desse modo, no programa de Educação em Segurança e Saúde do Trabalhador do ERMS incluem-se palestras, seminários e cursos de doze, vinte, quarenta horas, variando a carga horária em função da temática e da forma de abordagem adotada pelo especialista responsável. Em nosso entendimento, os cursos de curta duração facilitam a participação de todos, dadas as dificuldades colocadas pelas empresas ou órgãos públicos na liberação de seus trabalhadores, além de possibilitar a participação daqueles que se interessam por um processo de educação permanente em saúde do trabalhador, visto que o ERMS promove mensalmente pelo menos um evento nessa área. A nossa pretensão de promover a educação permanente se deve a que esta nos parece ser a que ... melhor responde à necessidade sentida por todos de uma educação para a mudança. Tomando por base o fato inconteste de que todos teremos que mudar muitas vezes no curso de nossas vidas, uma educação que esteja atenta para fornecer os elementos que permitam enfrentar essas mutações é altamente alentadora. E estas mudanças na sociedade tecnológica e industrial não significam sempre acomodação e conformismo. Exigese cada vez mais que as pessoas se integrem ativa e criadoramente, para melhor responderem aos desafios que nem sempre podem ser razoavelmente equacionados (Garcia,1986). Como são vários os docentes convidados, varia também a carga horária, formas de abordagem, os procedimentos e recursos didáticos utilizados. De certo modo, podemos afirmar que há preponderância de aulas expositivas com apoio de transparências, slides, filmes, trabalhos de grupo, podendo-se notar uma tendência crescente em associar aulas teóricas às aulas práticas, como a aplicação de exercícios práticos, o manuseio de instrumentos próprios da área, debate sobre filmes de situações reais, visitas às empresas, atendendo, assim, a uma solicitação freqüentemente registrada pelos participantes em avaliações orais ou escritas. É perceptível ainda a importância que os professores convidados têm dado à elaboração do material didático, comumente farto e atualizado, garantindo que o aluno possa recorrer a consultas posteriores sempre que lhe parecer necessário. A clientela de tais eventos é propositadamente heterogênea, de modo que sejam facilitadas as trocas de experiências, a socialização dos conhecimentos e a integração de ações entre profissionais de universos tão distintos 41 quanto o são as instituições do Estado e as empresas privadas ou ainda as organizações sindicais, mas que guardam objetivos comuns quando se trata de saúde do trabalhador. Resultados A palavra “resultados”, para um profissional que transita, há muito tempo, na área de Ciências Exatas (Engenharia) remete sempre às questões quantitativas, uma espécie de estorvo advindo de uma formação de cunho positivista, assentada principalmente no dogma de que apenas têm valor científico os fenômenos que se submetem à quantificação. Portanto, assim que se efetivou o nosso envolvimento com o Projeto Educação em Segurança e Saúde do Trabalhador, emergiu também o nosso anseio por identificar mudanças na realidade com a qual lidávamos. Porém, gradualmente, fomos nos dando conta de que ... há uma série de fenômenos de grande importância que não podem ser registrados através de perguntas, ou em documentos quantitativos, mas devem ser observados em sua reali dade. Denominemo-los de os imponderáveis da vida real. Entre eles se incluem coisas como a rotina de um dia de trabalho, os detalhes do cuidado com o corpo, da maneira de comer e preparar as refeições, o tom das conversas e da vida social... (Malinowski, citado por Minayo, 1993). Freqüentemente, o nosso trabalho nos faz confrontar com “os imponderáveis da vida real”, pois que o processo educativo se dirige aos grupos humanos, nos quais a subjetividade, a singularidade e a diversidade de concepções e valores devem ser consideradas no momento de análises de resultados, quer sejam quantitativas, quer sejam qualitativas. Desencadeando o processo reflexivo sobre os resultados obtidos pelo projeto “Educação em Segurança e Saúde do Trabalhador”, do ERMS, opta mos por apresentá-lo sob dois enfoques: o primeiro, o quantitativo, demove trado nos gráficos que se seguem; e o segundo, o qualitativo, extraído dos depoimentos dos participantes. Ressaltamos, porém, que não se trata de ... estabelecer entre quantidade e qualidade uma polarização radical e estanque, como se uma fosse a perversão da outra. Cada termo tem a sua razão própria de ser e age, na realidade, como uma unidade de contrários, ainda que se possam repelir, também se necessitam. Quantidade não é uma dimensão 42 inferior ou menos nobre da realidade, ms simplesmente uma face dela, nem qualidade precisa inevitavelmente significar enlevo, espiritualidade, divindade (Demo, 1986). Relacionamos, a seguir, os eventos educativos promovidos pelo ERMS, no período 1993 a 2000.4 43 44 • Relembramos que o projeto Educação em Segurança e Saúde do Trabalhador sofreu interrupção nos anos 1995/1996, em função de mudança na direção da Fundacentro-ERMS. 45 Os gráficos indicam um acentuado crescimento do Programa de Educação em Segurança e Saúde do Trabalhador em Mato Grosso do Sul, representado pelo significativo aumento da oferta de eventos educativos na área (cursos, palestras, encontros, seminários), o mesmo ocorrendo com o número de usuários atendidos, os quais, nos últimos três anos, representaram 78% do número total capacitado. Eles registram sempre em suas sugestões “a realização de mais cursos” ou “oferecimento de mais treinamento na área, que nos permita a capacitação e conseqüente melhoria de nossa atuação” (alunos de cursos). Dos 3.440 participantes dos 52 eventos realizados no período analisado, tomamos por referência 487 questionários compostos por questões abertas e fechadas. Da análise das questões fechadas, extraímos as seguintes informações: 46 47 As informações obtidas a partir dos gráficos sugerem uma expressiva aprovação dos participantes quanto a importantes aspectos dos eventos. No entanto, os dados referentes a recursos didáticos, à escolha da carga horária à participação dos alunos são preocupantes, indicando que necessitam de uma revisão, o que deve implicar a adoção de novas escolhas para os itens mencio nados. Avaliação qualitativa dos resultados Com a intenção de obter maior detalhamento sobre o alcance de objetivos propostos para o “Programa de Educação em Segurança e Saúde do trabalhador”, analisamos 457 questionários, quando os participantes responderam a questões abertas, registrando as suas opiniões sobre as ações educativas vivenciadas. Para analisá-las, escolhemos três indicadores: a aplicabilidade do co nhecimento, os pontos negativos e os positivos dos eventos, de modo a identificar a extensão da contribuição dada pelo “Programa Educação em Segurança e Saúde do Trabalhador” e, ao mesmo tempo, conhecer os aspectos que devem ser mantidos e aqueles passíveis de aprimoramento. As respostas encontradas para a indagação “Dos assuntos abordados quais terão maior aplicabilidade no seu trabalho?” indicam que a contribuição dos eventos educativos pode ocorrer em três esferas: a do conhecimento a da instrumentalização e a da mudança de concepções sobre a saúde e segurança do trabalhador. Como esperado, um número expressivo de respondentes destaca a ampliação do conhecimento como a grande contribuição dessas ações educativas, como ilustram os registros a seguir: 48 “Diminuiu o meu nível de ignorância em relação ao conceito de proteção respiratória” (aluno do curso sobre “Programa de Proteção Respiratória”). “Aprendi coisas que não tinha aprendido em curso nenhum” (aluno do 2° curso “Programa de Educação Respiratória”). “Eu já possuía algum conhecimento que, somado com as informações prestadas pelo professor, aumentaram a minha capacidade profissional” (aluno do curso sobre “Radiações Ionizantes”). Na esfera da instrumentalização, vista como consolidação da aprendizagem, percebe-se, pelos depoimentos, que os participantes tendem a aplicar, na prática, as orientações dos professores, pois, segundo esses alunos: “Os assuntos abordados contribuirão bastante no meu trabalho de fiscalização nas empresas, principalmente na verificação do mapeamento de risco” (aluno do curso “Mapeamento de Risco”). “Hoje, tenho condições de entender a freqüência do ruído, o nível depressão sonora do ambiente e como monitorá-lo” (aluno do curso sobre “Práticas de Monitoramento do Ruído Industrial”). "Posso, agora, com menor margem de erro, escolher e aplicar os Equipamentos de Proteção mais adequados” (aluno do 2° curso sobre “Programa de Proteção Respiratória”). Nota-se, assim, que os cursos podem contribuir para o desenvolvimento de atitudes pró-ativas à segurança e saúde do trabalhador, à medida que os profissionais da área, no espaço de discussão em que se transformam tais mo mentos pedagógicos, troquem as suas experiências e, a partir de novos conhecimentos, possam construir soluções criativas diante dos problemas da produção. Necessário salientar que não se desconhecem os limites para a emergência dessas soluções, as quais devem se efetivar no contexto de sistemas produtivos, cujas complexidades são ainda mais ampliadas pelo peso de uma organização de trabalho pouco saudável, tendo como finalidade assegurar as altas taxas de lucro pretendidas pela empresa. 49 Percebemos ainda que algumas “certezas” já clássicas na área de Segurança e Saúde do Trabalhador passam a ser questionadas, quando se identifica a adesão a novas concepções: “Além do conhecimento adquirido sobre a manipulação de vários produtos químicos, o que me pareceu de mais utilidade foi a valorização, o enfoque qualitativo, ou seja, ficou mais claro como e por que fazer uma avaliação qualitativa” (aluno do curso sobre “Riscos Químicos”). “... destacando-se as informações sobre limites de tolerância, sua origem na ACGIH e sua evolução. Isto devido aos novos enfoques de limites de tolerância serem diferentes do comumente utilizado, ou seja, o simples limite entre o salubre e o insalubre” (aluno do curso sobre “Poeira de Sílica e Asbestos”). "... conhecimento de riscos, palestras para alertar os trabalhadores quanto a esses riscos e principalmente colher opiniões de quem está operando” (aluno do curso “Riscos Ambientais e suas Formas de Controle”). Como se sabe, por muito tempo, e ainda hoje, o monitoramento quantitativo, baseado em limites de tolerância, consolidou-se como a única estratégia adequada à avaliação dos ambientes de trabalho, época em que “colhe, opiniões de quem está operando” nem sequer era cogitado. Os depoimento acima indicam que há, entre os consultados, receptividade para novas concepções e, conseqüentemente, novas formas de atuação, que e, afinal, o que se espera dos processos educativos. Os questionários trazem também as falhas e os pontos de estrangulamentos observados pelos participantes, sobre os quais nos deteremos a seguir. Palavras questões relativas aos acertos e falhas do projeto, os respondentes se fixaram nos aspectos metodológicos e operacionais, indicando alternativas para o aperfeiçoamento didático das ações educativas. Os aspectos metodológicos foram, quase sempre, dados como adequados. Um grande número de participantes ressaltou que os professores acertam quando buscam associar, simultaneamente, a teoria à prática, o mesmo ocorrendo quando há diversificação das estratégias de ensino, o que, segundos alunos, tornam as “aulas mais dinâmicas”. Em suas avaliações, os alunos valorizam também o domínio do conteúdo e a sua atualidade, bem como a estética dos recursos utilizados pelos pro- 50 fessores, creditando grande importância ao material didático distribuído, ao qual, quando necessário, recorrem como fonte de pesquisa. Sugerem, ainda, com bastante recorrência, que os exercícios, estudos de casos, demonstrações ou exemplos formulados pelos docentes devem, preferencialmente, levar em conta “a nossa realidade”. Alguns registros dos alunos sobre as escolhas metodológicas são tão significativos para o melhor desempenho dos professores que merecem citação integral. Sobre a junção teoria/prática, um dos consultados revelou: “A prática gera o repensar e a adotar medidas antes não observadas, além de ajudar a superar as limitações de cada um ou do grupo” (aluno do curso “Programa de Proteção Respiratória”). Já um outro afirma que “... trabalhar o coletivo é muito rico e a prática de chegar ao consenso e à não-delegação não é fácil, mas o professor fez uso desse recurso com muita sabedoria” (aluno do curso “Riscos Ambientais e suas Formas de Controle”). Um terceiro declarou: “... o professor, com grande conhecimento na área, com variação didática, sanou muitas dúvidas que eu tinha” (aluno do curso “Radiações lonizantes”). Os pontos de estrangulamento detectados pelos participantes, durante todo o desenrolar do processo; estão relacionados principalmente com a carga horária e infra-estrutura do evento. Tantas opiniões diferentes sobre carga horária de um determinado curso (e isso ocorre com muita freqüência) dificultam o consenso sobre que carga horária deveria ser destinada aos temas com os quais o ERMS vem trabalhando. Assim, temos que, para um mesmo curso, há alunos que indicam como falha “a extensa carga horária”, ao passo que outros tantos afirmam que “a carga horária deveria ser maior”. Dentro ainda das deficiências dos eventos apontadas pelos respondentes, encontram-se: “a falta de lanche”, “local distante do centro”, “a falta de pontualidade”, “as conversas paralelas”, “a falta de interesse e de respeito aos professores por parte de alguns alunos”, além de algumas indicações para “maior dinamismo do professor”, “faltou mais trabalho de grupo”, “número insuficiente de aparelhos de medição”, “faltou um 51 pouco de material didático”, “o curso fugiu um pouco à realidade do nosso Estado"”. Embora sejam sucintas e esparsas, as declarações dos alunos sobre possíveis falhas, sejam organizacionais ou didático-pedagógicas, requerem reflexão por parte de todos os envolvidos, para que o processo avaliativo cumpra a finalidade a que se destina: o aperfeiçoamento do programa “Educação em Segurança e Saúde do Trabalhador do ERMS”. Conclusões Este estudo avaliativo nos permitiu conhecer e delimitar algumas questões importantes relacionadas com as ações educativas que vêm sendo desenvolvidas pela FUNDACENTRO-ERMS. Iniciamos este estudo discutindo o quadro de segurança e saúde do trabalhador de Mato Grosso do Sul porque, em nosso ponto de vista, é ele justifica e explica as razões de ser do projeto aqui em análise. Examinamos, então, alguns dados estatísticos sobre acidentes de trabalho no Estado, assinalando o seu sub-registro, ao mesmo tempo em que frisávamos a necessidade de alterações positivas na realidade acidentária do estado. Em nosso caso, uma intervenção possível foi a oferta de eventos educativos na área, vistos como mecanismos de aprimoramento das práticas profissionais que atuam nesse campo. A seguir, apresentamos o projeto indicando o seu objetivo, concepção metodologia. Como a nossa intenção era avaliar o desenvolvimento do projeto, concentramo-nos um pouco mais nos tópicos referentes a resultados. Esse momento de análise nos revelou que os alunos vêem as ações cativas em segurança e saúde do trabalhador como estratégicas para a ação do conhecimento e aprimoramento de seu trabalho, o que reforça necessidade de continuidade do programa no Estado. Conforme indicado pelas análises quantitativa e qualitativa, os a se referem à própria iniciativa de desenvolver o programa educativo, a escolha dos temários, a seleção dos professores, os quais, em sua maioria, o ram inteira aprovação dos alunos. Por outro lado, as falhas se relacionam com a carga horária, procedimentos e recursos didáticos, material bibliográfico e outras particularidades algumas das aulas ministradas. Ao término desta análise, pode-se afirmar que, no campo da Educação x Saúde x Trabalho, o “Programa de Educação em Segurança e Saúde do trabalhador do ERMS” vem ocupando um importante espaço no universo espe- 52 cífico das relações entre a saúde e o trabalho, razão maior para que busquemos o seu aperfeiçoamento. Agradecimentos Somos absolutamente agradecidos a todos os docentes que tornaram possível a efetivação deste projeto. Agradecemos, ainda, aos funcionários Iraci Moura de Souza, Severino Josias Pessoa, Kátia Regina Nunes Barbosa, do ERMS, e à Wiliane Eliara, estagiária da FUNDACENTRO - CRMG. Realçamos a nossa gratidão à Dra. Sonia Maria José Bombardi, Diretora Técnica da FUNDACENTRO - CTN/SP, pelo seu apoio hábil e preciso às nossas atividades. Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. DEMO, Pedro. Avaliação qualitativa: um ensaio introdutório: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, INEP, v.67, n.157, p.571-585, set./dez. 1986. FREIRE, Paulo. Conscientização - teoria e prática da libertação - uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Morais, 1980. FUNDACENTRO-ERMS - Relatórios de Avaliação de Curso, 1993-2000. _____. Programa Nacional de Educação e Saúde do Trabalhador, 1998. GARCIA, WALTER E. Educação. São Paulo, 1986. MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento - pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec/ABRASOO, 1993. SEPLANCT. Informações básicas de Mato Grosso do Sul. Campo Grande, 1999. SESMS/Saúde do Trabalhador. Demonstrativo das CATs. Campo Grande, 1999. 53 54 VIAGEM AO “DESCONHECIDO” MUNDO DA SAÚDE DO TRABALHADOR Amarilis Araújo Pinto1 “Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos, que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.” (Fernando Pessoa) O desafio está lançado! E laborar este capítulo foi muito, muito mais que apenas produzir um texto para um livro. Significou rever meu comprometimento de mais de vinte anos com a causa dos trabalhadores e, nesse trajeto, resgatar a emoção do fazer apaixonado de que sempre fui “vítima” na minha vida profissional, nesses anos todos, na FUNDACENTRO. Não é possível, para mim, dissociar do personagem-escritor a “alma atormentada” que vive aqui dentro. Parodiando Perazzo (1999), “tocar a veia do sentimento e da emoção me trouxe de volta muito mais do que, nestes anos todos de profissão; eu pude oferecer em troca “. Ocorre-me agora que, certa vez, ao iniciar uma aula, fui apresentada pela amiga Célia a um grupo de alunos seus, dentre outras menções honrosas, também como uma grande “contadora de histórias”. De início me espantei. Mas, como boa psicodramatista de carteirinha, resolvi refazer a cena... O que é um contador de histórias? Afinal, contar histórias não é o que todos fazemos, o tempo inteiro, até quando estamos sós?! Ou pensam que não passamos o tempo todo ensaiando histórias na nossa cabeça?... Então, por que alguém, em particular, é chamado “contador de histórias”? Por que as suas histórias têm algo mágico, encantador, ou monumental? Talvez fascinante ou, quem sabe, inovador, arrebatador... Certamente convidando o ouvinte a voar, a experimentar, a viver!... Bem, descobri minha identificação com o Psicodrama há alguns anos: minhas ousadias experimentais em sala de aula tinham tudo a ver com as bases da teoria de Moreno, pai do Psicodrama. Descoberto o vínculo, passei, a partir de então, a imprimir a todas as minhas atividades realizadas na FUNDACENTRO, seja no âmbito da pesquisa, seja no da educação, a marca da filosofia moreraiana. Até porque os novos métodos educacionais com abordagem psico1 Mestre em Psicologia Social; Tecnologista Sênior da FUNDACENTRO. 55 dramática, criados para o campo da segurança e saúde do trabalhador, mostraram-se densamente plenos de possibilidades e me levaram, cada vez mais; à compreensão da necessidade imperiosa de articular ações educativas que nos sacudissem desta inércia contemplativa da degradação humana e que nos impulsionassem ao resgate da cidadania e da dignidade do ser humano trabalhador. O nosso mundo possui um sistema estruturado de funções sociais quer cumprem sua obrigação de preservação da ordem social instituída. Os discursos justificam racionalmente as ações que se inscrevem nessa ordem e, ao fazê-lo, criam um mascaramento das contradições entre interesses coletivos e individuais, provocando um imobilismo social adequado aos interesses daqueles que detêm o poder, fazendo com que os menos contemplados se tornem alienados dos verdadeiros interesses sociais e coletivos e dos valores éticos que de veriam ser o norte de nossa sociedade. Não é casualmente que vemos muitos desses atores sociais agindo como marionetes inconscientes, envoltos por uma trama que desconhecem - e não desejam conhecer. Os papéis sociais nos quais a alienação se inscreve - sejam estes os do trabalhador, cipeiro, supervisor, gerente, técnico da área ou profissional da saúde - são os pontos tangíveis, responsáveis pela reprodução da ideologia, do mascaramento; pela continuidade da trama desconhecida. Este foi o nosso desafio: no lugar honroso de investigador social e educador, lançar mão do Psicodrama como instrumento de ação para desmarcar a trama desconhecida que enreda as relações sociais existentes no campo da segurança e saúde do trabalhador. Afinal, vamos contar as histórias... O arcabouço que dá sentido a tudo Antes de seguir, é minimamente necessário delinear, para o leitor nãopsicodramatista, os fundamentos teóricos e pressupostos básicos do Psicodrama sob pena de nossos relatos ulteriores perderem o sentido. A filosofia que fundamenta o Psicodrama, como é popularmente conhecida essa ciência socionômica, parte da concepção de que o Homem só ser compreendido “em sua relação com o outro”. Desconhecer isso é negar a filosofia que dá sustentação a toda a rede conceitual que, por sua vez, alimenta as modalidades operacionais, os métodos, procedimentos e as técnicas existentes no Psicodrama. Para que não me estenda pelas sendas dos termos sofisticados - que, por um lado, trazem rigor científico, por outro, dificultam o entendimento leitor, tentarei utilizar uma linguagem objetiva e simples, que, aliás, é a que mais me traduz. O Psicodrama, na sua acepção mais genérica, é o procedimento 56 dramático, conduzido sob uma ordem técnica específica, que serve à compreensão das relações de vincularidade existentes entre os homens. Visto sob um outro ângulo, quer investigar e tratar as dificuldades dos sujeitos-protagonistas em relação a determinados papéis - papéis estes sempre desempenhados na relação com o outro - que, por motivos diversos, não são experimentados de forma espontânea. O sociodrama, modalidade amplamente utilizada nos meus trabalhos, foca, particularmente, o grupo e os respectivos papéis sociais que estão em interação em sua atividade comum. Fazem parte, assim, desse rol, por exemplo, os papéis de cipeiro, trabalhador, sindicalista, empresário, gerente, engenheiro de segurança do trabalho, fiscal do trabalho, etc. Os conflitos existentes entre esses papéis podem ser amplamente investigados e transformados pela modalidade sociodramática. Em termos mais amplos, podemos dizer, segundo Kellermann (1998), que o foco do sociodrama é o comportamento social humano e que sua meta é desvelar os segredos do coletivo inconsciente, produzindo, assim, novos sentidos. O indivíduo como um universo aberto As noções de espontaneidade e criatividade formam a base da rede conceitual do Psicodrama. Segundo Gonçalves (1988), a espontaneidade é a “capacidade de agir de modo adequado diante de situações novas, criando uma resposta inédita ou renovadora, ou ainda, transformadora de situações preestabelecidas”. O homem vem ao mundo com um cabedal de liberdade e espontaneidade, capacidade inata, que é a fonte de suas possibilidades criadoras. Portanto, o acionamento da criatividade só ocorre mediante a liberação desta “energia espontânea”. Entretanto, quando esta energia - espontaneidade - paralisa, termina por se transformar em uma conserva, algo congelado, algo fechado e sem possibilidade de transformação. É natural que o homem vá criando conservas a cada término de um processo criador. Porém, é a estagnação destas “conservas culturais” que sufoca o surgimento de novos atos humanos espontâneos e criadores. São, enfim; tais conservas que nos fazem agir como robôs previamente programados, que nada mais fazem que executar programas de soluções preconcebidas. E como falar de soluções preconcebidas, se o que caracteriza o Homem é justamente sua possibilidade de mudança e de transformação do meio ambiente e de si próprio? A espontaneidade está fundamentalmente ligada ao desempenho de papéis. Porém, ser espontâneo não é desempenhar um papel de modo instintivo e irracional, mas ter uma atuação adequada - controlada e liberta - para cada situação emergentes Quando isso ocorre, temos o que Moreno chama de “catarse 57 de integração”: um momento intelectual, em que o protagonista pode reesclarecer o funcionamento obscuro de certos papéis, um momento emocional, em que reatualiza os estados afetivos contidos nesses papéis, e um momento axiológico, quando incorpora um valor novo ao seu repertório de papéis. Entretanto, a simples descarga emocional não deve retirar do indivíduo sua capacidade de indignar-se, de reagir, de defrontar-se com os opressores, de mobilizar energias para remover obstáculos à plena realização de seus desejos e aos seus direitos naturais. Para ser legítima, a descarga emocional deve encontrar sua concretização não em um espaço artificial, mas em situações da vida real. O conceito de papel neste universo aberto O conceito de papel, que pressupõe sempre uma inter-relação e uma ação, é central no conjunto de teorias psicodramáticas, pois é transferido a todas as dimensões da vida, e imprescindível para que o leitor venha a compreender a prática psicodramática relatada adiante. De acordo com Menegazzo (1995), “papel é a forma de funcionamento que um indivíduo assume no exato momento em que reage a uma situação específica em que estão envolvidas pessoas e objetos que atuam como contrapapéis”. Para Moreno, o papel é, desde o nascimento, levado a toda e qualquer situação vital, sendo, inclusive, o precursor do “eu”. É a soma dos aspectos tangíveis do “eu”, configurando-se, portanto, como uma cristalização final de experiências do indivíduo para aquela situação e contexto. O processo de desenvolvimento de um novo papel passa sempre por três fases: primeiro, o indivíduo imita um modelo de papel; a seguir, explora esse papel em suas múltiplas possibilidades; e, por fim, desempenha o papel de forma espontânea e criativa. É justamente a percepção de um papel no cenário psicodramático que promove atos cognitivos que permitem reestruturar respostas, por meio de “insights” a respeito da valoração dos papéis assumidos. O papel é algo que repetimos, conscientemente; durante nossa existência cotidiana. Ao se repetirem, esses mesmos papéis se percebem restritos e procuram suas possibilidades de ampliação, fazendo emergir as fantasias inconscientes é (re)situando o drama no seu contexto atual. E isso só ocorre no espaço do “como se” do cenário psicodramático, onde podemos ser espontâneos e agir “como se” estivéssemos em determinada situação experimental e nova. Qual o papel do diretor de Psicodrama nesse contexto? Segundo Naffah (1988), cabe ao Psicodrama, sobretudo, pontuar cenicamente os deslizes dos papéis no processo de produção dramática, visto que são estes que nos acessam 58 à obscuridade do drama. O diretor deve tentar catalisar, deixar eclodir e tomar forma a verdade de cada um, que jaz mascarada nos papéis inscritos no drama coletivo, do qual todos são atores inconscientes. Como assinalei, o conceito de papel implica sempre uma ação, tornandoa, em última instância; a força motriz do Psicodrama: a ação livre. A ação deverá permitir ao sujeito, por meio do desempenho de papéis imaginários, e sempre ocorrida no plano da interação de papéis, encontrar-se com seu ser e recuperar a capacidade de realizar transformações autênticas na sua vida. Quando falo em ação, refiro-me substancialmente ao “corpo”, fundamento existencial do Psicodrama. O corpo costuma trazer a marca da mecanicidade, circunscrito que está pelas limitações impostas cultural e socialmente: é um corpo-conserva, símbolo também da alienação. Em geral, esquiva-se, mascara-se e se fecha ao sinal da revelação da verdade coletiva. Torna-se tenso e imobilizado, já que teme essa revelação. Mas pode irromper de sua imobilidade, quando entra na ação psicodramática, quando permite que o drama emerja e se faça presente no tempo e no espaço. O corpo, na acepção de Massaro (1996), é o “núcleo em torno, do qual organizamos nossos horizontes temporais de passado, presente e futuro, o instrumento por meio do qual sentimos nossa existência e nos apropriamos e manipulamos esse mundo que nos cerca”. Enquanto agente de conhecimento e de ação, é o corpo que nos coloca em contato com sensações e percepções, transformando-as em algo cenicamente concreto. O corpo é o fundamento da cena. A base da arquitetura psicodramática O Psicodrama, na sua prática, que inclui uma série de modalidades operativas, lança mão de cinco instrumentos básicos para acontecer. São eles: a) o cenário, espaço multidimensional onde a ação é levada a cabo; b) o protagonista, sujeito que emerge para a ação dramática e que simboliza os anseios e necessidades do grupo; c) o diretor, elemento que coordena a sessão, devendo, para tanto, estar atento a todas as necessidades dos protagonistas bem como à análise do que ocorre durante a sessão; d) o ego-auxiliar, elemento que interage em cena com o(s) protagonista(s), colaborando para que a cena possa eclodir; e) o público, conjunto dos demais.participantes da sessão e que funciona como caixa de ressonância do protagonista. Em geral, a sessão apresenta uma dinâmica clássica, obedecendo às seguintes etapas seqüenciais: o aquecimento, preparação do(s) protagonista(s); 59 a dramatização, momento de presentificação do conflito no cenário; o compartilhar, resgate das emoções vividas; e a elaboração, processo de compreensão do ocorrido durante a sessão. As técnicas psicodramáticas constituem o arsenal utilizado pelo diretor. De acordo com Gonçalves, o “duplo”, o “espelho” e a “inversão de papéis” são, via de regra, considerados as três técnicas básicas das quais todas as demais derivam. Nos relatos deste capítulo, menciono também o uso de “solilóquio” e “concretização”. Dentro de suas competências e de suas finalidades particulares, visam, em última instância, a permitir ao protagonista alcançar e/ou expressar determinado grau de conhecimento de seu próprio mundo interior, seja em níveis superficiais ou mais profundos. Em síntese, as técnicas operacionais utilizadas propiciam ao protagonista o encontro com os papéis que ele pode ou os que não consegue desempenhar de maneira “espontânea”. Antes de encerrar esta parte do capítulo, é preciso esclarecer que o método de trabalho desenvolvido por nós em todas as atividades teve seu eixo centrado na vivência de situações concretas de trabalho. Criamos um movimento constante de ação/reflexão, visando a pesquisar e explicitar os conteúdos presentes no grupo, sua elaboração por meio de processamentos que buscassem a racionalidade dos conteúdos surgidos, bem como a sistematização do conhecimento produzido. Os temas abordados foram escolhidos pela expressividade, intensidade e constância com que apareceram nas situações referenciadas durante as atividades. Explicitado o aporte teórico, que deve servir como referência conceitual para a viagem liberta do leitor, distribuo a vocês as nossas asas, para que também possam voar, experimentar e viver... Afinal, “contando as histórias”! Quem, então, são os “doentes”? Era 1993. Os cabelos ainda não eram tão brancos... Para a programação de sua SIPAT anual, uma escola de ensino profissionalizante de São Paulo nos solicitara que ministrássemos uma palestra para quatro turmas de aproximada mente 25 funcionários cada uma, cujo tema seria “Saúde mental e trabalho”. A queixa era de que havia intensa rotatividade de alunos, os adolescentes eram rebeldes, havia uma linguagem conflituosa entre professores e alunos, e os professores viviam hipertensos e irritados, além de cobrarem em demasia da instituição. Bem, fui para a primeira palestra. Cheguei e assustei: um grupo de professores ansiosos, com má vontade, desconfiados e muito apegados a velhos hábitos. O grau de agressividade tam- 60 bém era bastante alto. Quando solicitei que andassem pela sala, uma participante se recusou, a menos que conseguisse entender o porquê daquilo. Não é preciso contar: um clima ruim instalou-se na sala após essa recusa. Finda essa primeira experiência negativa; resolvi mudar um pouco o plano de ação para a segunda turma. Uma das características marcantes do segundo grupo era o grau de “pilhéria” com que encaravam qualquer coisa falada na sala. Davam altas gargalhadas, o que me incomodava demais! Em determinado momento, quando perguntei o que faltava naquela escola, lembro-me de que alguém respondeu: “Avião”. Fez-se, em seguida, um silêncio fúnebre acompanhado pelos olhares furtivos e coniventes de todos. Não conseguiam expressar sentimentos, mostravam muita dificuldade nas atividades corporais e assumiam comportamentos totalmente estereotipados. Nos aquecimentos específicos, a imagem apresentada por eles era a de um grupo de profissionais unidos, mas não havia confiança entre eles. Recebi, inclusive, a recomendação da assistente social da escola de que, ao invés de reunir o grupo, talvez eu os estivesse desestabilizando. Dá segunda para a terceira palestra, resolvi mudar toda a estrutura da atividade, pois sabia que não havia conseguido criar o clima de espontaneidade necessário para a realização da ação dramática. Aliás, ela não fora realizada, porque o grupo se recusara terminantemente a aceitá-la. Havia levado três temas que considerava importantes para serem dramatizados, mas aquilo ficara só no papel. E na minha cabeça... Foi quando aprendi que os temas vêm deles, e não de mim... A cena embrionária, aquela que dispara o processo de criação, é oferecida pela platéia! Foi na terceira palestra, quando já havia preparado várias modificações, que surgiu a primeira e impressionante cena dramática! Havia feito um aquecimento anterior, pedindo a eles que escrevessem num papel, em uma só palavra, a resposta às seguintes questões: a) O que a escola exige de você; b) O que você exige da escola? A partir da escolha de duas palavras, pedi que se dividissem em dois subgrupos, “bolando”, cada um, uma cena que girasse em torno da palavra-chave escolhida. Foi aí que me deparei com uma das cenas mais “pesadas” que já vivi! O tema era “a escola me exige trabalho”. A cena mostrava uma sala de aula com alunos “bagunceiros”, que não prestavam atenção em nadai não deixavam o professor falar, desrespeitavam qualquer regra. O professor tentava desesperadamente controlar os alunos, que brincavam o tempo inteiro, quando o diretor entrou e pediu que o professor tivesse pulso. Fiz algumas intervenções, sugerindo que um dos alunos fizesse o papel de professor, quando também se irritou com os alunos. Um dos alunos passou afazer o papel do diretor, muito autoritário, que, com rédeas curtas, 61 conseguiu que os alunos silenciassem. Com o solilóquio de cada parte, o cenário ficou claro. Dos alunos: “Minha mãe me mandou para cá. Não estamos nem aí, queremos bagunçar!”. Do diretor: “Isto aqui é um circo. Ajo assim, mas não acredito no que faço”. Do professor: “Eu quero me matar. Não tenho outra solução “. A fala do professor, a última, calou a sala. Calou também meu coração! É na ação dramática que o protagonista tem a oportunidade de encontrar os papéis que não consegue desempenhar. Lá, liberto das ansiedades da realidade cotidiana, encontra essa abertura, as condições para que ocorra a liberação das formas aprisionadas do papel de professor. No silêncio geral, fez-se presente a catarse do grupo. Estavam vivendo a contradição de emoções opostas, viver e morrer. Isso significou uma experiência profunda de integração com a realidade, a desalienação. A catarse, como se vê, não é propriedade apenas do protagonista, mas de todo o grupo que o elegeu e nele depositou seus conflitos, seus medos, temores, sonhos e fantasias. Ao final, as vozes aflitas dos participantes mostravam que a elaboração estava por chegar. A superfície estourou quando um dos participantes discordou abertamente do grupo, dizendo que lá ninguém era unido. Foi suficiente para a fase do compartilhamento trazer o processamento de que a escola era um pai autoritário com o qual tinham uma relação de amor e ódio. Começavam a vislumbrar que eles tinham uma relação racional com a escola como defesa para o enlouquecimento. As relações institucionais eram autoritárias, como defesa do medo, trazendo um alto grau de submissão. Lá encontravam desconfiança, persecução, onipotência e impotência! Mas a escola ainda era o útero que abrigava ilusões individualistas e imperava, trazendo um ambiente competitivo e destruidor. Quantas vezes tinham parado uma tarde ou um intervalo para discutir aqueles sentimentos coletivos? Ou continuariam fazendo o papel da vítima de uma escola autoritária, penalizadora mas ao mesmo tempo, paternalista? Determinando o nosso rim Uma SIPAT novamente. Um Banco situado em São Paulo me chamava para dar diversas palestras em vários de seus departamentos. O tema deveria ser algo relacionado com a saúde mental no trabalho, e nos foi dada liberdade para criar! A proposta que apresentei foi a de realizar uma “oficina” com total e livre participação dos funcionários. Eles teriam que construir uma história em quadrinhos, coletivamente, cujo título seria “Um dia no Banco X”. A história deveria relatar um dia cotidiano de trabalho e teria exatamente dez quadrinhos. 62 Dez pessoas, escolhidas previamente entre o próprio grupo presente, seriam as responsáveis, respectivamente, pela determinação dos dez quadrinhos. Esses quadros seriam desenhados, cada um, em uma folha grande situada à frente do grupo, para que todos fossem acompanhando o desenrolar da história. Como a oficina se realizava na própria sala de trabalho de cada departamento (sempre grandes salões com muitas mesas), algumas pessoas que não queriam participar continuavam às suas mesas realizando suas tarefas. Dando início à oficina, ninguém queria ser escolhido para ser um dos “responsáveis” pela história. Mas, com o desenvolvimento da atividade, palpites começaram a surgir - ou claramente ou pelas expressões corporais denunciadoras. A verdade é que todos ansiavam por ver que novo rumo o próximo colega daria à história. E, ao final, os palpites saltavam espontaneamente! As histórias traziam todas alguns pontos comuns, por exemplo, excesso de controles de chefias, pouco reconhecimento por parte da empresa, muitos mecanismos de defesa dos funcionários. Mas variavam também segundo o departamento trabalhado. No departamento financeiro, por exemplo, era flagrante o medo do personagem de errar e sua vontade imensa de escapar dali (o próprio departamento situava-se no subsolo, sem janelas e trancado por duas grades pesadas, vigiadas permanentemente por guardas armados). Mas o que nos chamou a atenção, de imediato, foi constatar o dinamismo dialético de que eram imbuídas as histórias, embora contivessem apenas dez seqüências fotografadas. A história poderia vir caminhando em determinado ritmo e, inesperadamente, ter seu enredo modificado por completo, pelo próximo “contador”. Lembro-me de que, em um dos departamentos, quando houve a mudança radical do enredo - de submisso o empregado passava a irreverente -, a reação do grupo foi notória: primeiro, um silêncio questionador (inclusive meu). Depois,algumas gargalhadas, de ironia ou de “lavo a alma”! Seguiram-se grandes mexidas dos quadris nas cadeiras e muitos cochichos prolongados... “Meu Deus, nós podemos mudar os rumos da história”! Que vontade de mudar! Seja para encobrir o que não se agüenta mais, seja para romper os limites, seja para “detonar”, seja para “escapar”... A transformação da consciência ocorre na ação psicodramática. O ser se descobre na dramatização, ainda que por meio de um psicodrama interno, no formato de uma história projetada, que nada mais é que a história do próprio grupo. As suas possibilidades vêm do conhecimento que adquire de si, que não é ciência, mas consciência. Assim o grupo reinterpretava e reconstruía a realidade junto aos outros. 63 Os participantes sabiam que o décimo quadrinho seria o último, o que equivale a dizer que, de certa forma, era o que “selaria” o futuro deles. Como em tudo, aqui também havia um limite, a ser experienciado como quisessem. Aquele momento era livre e protegido pela moldura da atividade psicodramática. E podemos dizer que nenhuma história terminou do mesmo modo. Muito pelo contrário, tiveram finais totalmente diferentes e supreendentes! Estávamos no departamento de cadastro. No oitavo quadro, aparecera o nosso protagonista questionando quem, afinal, era ele e por que trabalhava lá, formado que era em Geografia! Criou-se aquele clima de final de caso! Faltavam apenas duas seqüências... Em seguida, no nono quadro, decidiram colocar o protagonista só, com um pensamento: sair daquele lugar o mais rápido possível. E agora? Faltava apenas mais um quadrinho... o que encerraria a história... Decidir o final do protagonista é decidir o que acontecerá comigo. Ninguém se mexeu. Todos olharam ansiosos para o colega que decidiria. Palpites foram dados e... para surpresa de alguns, o colega solicitou que desenhasse nosso protagonista aliviado, sabendo que cumprira as obrigações do dia. O nó na garganta de todos foi suficiente para o início de um longo debate. Quais são nossos medos, nossas ansiedades? Quem é, afinal, esse geógrafo bancário? Início da descoberta de si mesmos... Mas, como já mencionamos, a história recebeu outros finais em outros setores do Banco. Cada grupo de trabalho tinha sua marca, seu ritmo, seus medos, seus anseios. Estávamos no departamento financeiro, o da “grana” e das “grades”. No penúltimo quadrinho, alguém sugeriu que o protagonista fosse internado em um hospital psiquiátrico, considerado “louco” pela empresa. Ouvimos, no mesmo instante, uma enxurrada de gargalhadas! Mas a visão de si mesmos, internados em um hospital para “loucos”, não foi das melhores... Atrás das risadas, altas doses de ansiedade! Chegaram a levantar-se das cadeiras para ouvir o fechamento do último quadro! Alguém marcou o final: no último lance, o protagonista pede demissão e, deixando atrás a porta do Banco, alcança a rua cantando. Ouvimos as palmas que ecoaram por aquelas grades imensas! No momento de elaboração da história, as palavras que marcaram a experiência psicodramática de cada um: “O personagem está entre o terror e o êxtase”. Precisamos construir saídas que levem da loucura à libertação final. Todas as histórias foram revistas pelo grupo ao final da “oficina”. Muitos porquês apareceram e foram sendo, pouco a pouco, respondidos pelo próprio grupo. Era a constatação de que o processo de transformação se inicia pela tomada de consciência dos problemas que “me” afligem, seguido de um momento de reflexão profunda sobre o que “eu” posso fazer paca mudar, em sintonia com os outros. 64 O dinamismo das histórias refletiu o movimento do grupo e espelhou a dinâmica intrínseca à própria vida, dialética por natureza. Enquanto um “contador” determinava um quadrinho, os dois próximos “contadores”, é claro, já planejavam mentalmente as respectivas continuidades. Entretanto, muitas vezes tiveram que modificar completamente o que já haviam elaborado mentalmente, pois a continuidade da história dependia sempre do último quadrinho descrito e até da reação da platéia. O preconcebido tem seus próprios limites. De repente, esbarra nas características de mutabilidade da própria vida. Quantas vezes ouvimos eles dizerem: “Puxa, já tinha pensado uma coisa! Agora vou ter que mudar!” Mas isso não é a própria vida? Um jorrar incessante de sangue que nunca é o mesmo de antes? Aprenderam a lidar com mudanças, coisa difícil! Para alguns, quase impossível! Aqueles foram os momentos de resgate da espontaneidade e da criatividade maximizado. O que é pensado é dito? O que é dito é feito? Uma das coisas que mais me prendeu à metodologia psicodramática foi a constatação de que o que era discutido pelos alunos em um exercício de debate oral, quando posteriormente passado à ação dramática, tomava uma feição completamente diferente. As discussões eram riquíssimas, plenas de argumentações bem engendradas, até bastante polemizadas por alguns alunos da classe mais propensos a esse tipo de atividade! O que importa é que, levadas ao palco, essas questões perdiam suas feições anteriores. O exercício oral, tão bem formulado e encaminhado; era “outro” após a ação dramática. O que estaria ocorrendo? A cena psicodramática de agora não tinha nada a ver com a bem justificada engrenagem verbal de antes? Estávamos ministrando um curso aberto para cipeiros, na FUNDACENTRO em São Paulo. Após discutirem a problemática das CIPAs, quanto à sua atuação; um dos subgrupos decidira finalmente que a grande dificuldade era o não atendimento das solicitações da CIPA pela empresa. Não restava dúvida, era aquele o grande ponto nevrálgico. Aliás, outro ponto recorrente nos debates: as dificuldades estão sempre nos outros. A culpa é “o outro”... A cena previamente roteirizada pelo grupo foi levada ao palco com todos os ingredientes básicos: um gerente que “gentilmente” não escutava os pedidos da CIPA e estava sempre pronto a negá-los e, de outro lado, cipeiros de consolados, com as palmas das mãos erguidas para o ar. Intervim com algumas técnicas psicodramáticas. A cena começou a mudar. ainda de pé em frente à mesa do gerente, a timidez dos dois cipeiros começou a transformar-se de desconsolo a estupefação, enquanto a postura do gerente passou a ter feições 65 mais “escrachadas” e autoritárias. Ainda sob intervenções minhas, que provocariam a eclosão do drama, o gerente decidiu pedir uma pizza por telefone, assistido pelo cipeiro que o aguardava em pé, há vários minutos. Sentado confortavelmente à mesa, começou a degustá-la, sem fazer caso dos cipeiros que lá estavam trazendo suas reivindicações. A platéia, boquiaberta! Os cipeiros observavam aquilo, estupefatos, mas como se não fizessem parte daquela cena. “Não é comigo”! Só após o solilóquio dos personagens, começaram a se dar conta do que estavam sentindo. Começaram a reagir. A cena foi se alterando, a platéia, tornando-se irriquieta, os personagens, se transformando... tudo em um ritmo crescente... até que, de repente, para susto de todos, ouvimos um baque: os cipeiros, firmes e decididos, caminharam até a mesa do gerente e, com um soco na mesa, fizeram voar de sua mesa pizza, garfo, faca, celular, papéis, tudo que lá se encontrava. Diante das gargalhadas da platéia, o gerente, assustado, levanta-se e tenta fugir: “Meu Deus, que massacre! Agora percebi que aqui tem uma CIPA!” No fundo da platéia, ouve-se o comentário que traz a questão à tona em outras vestes: “Falta de verba é igual a falta depressão da CIPA sobre a empresa, camaradas!”. A ação dramática transforma personagens, situação, condições e sensações: as culpas jogadas no “outro” se dissipam e dão lugar a uma infinidade de desejos não revelados dos protagonistas e de seus papéis complementares, que culminam com uma reorganização da cena e dos próprios protagonistas. O Psicodrama cria o texto, mas trabalha sempre com a articulação texto/subtexto, procurando integrar este último ao texto. Ao fazer esse trajeto dialético, o Psicodrama vai, ainda que sob diferentes ênfases metodológicas, explorar conflitos íntimos ou relacionais, tanto quanto provocar uma revisão de conteúdos ideológicos, com abertura de ampliação de sentidos. O Psicodrama almeja alcançar em profundidade o conflito a ser trabalhado, indo até suas entranhas. As dificuldades da CIPA, colocadas em uma falha por parte da empresa ou do trabalhador, são transformadas em novos cenários, totalmente diversos dos primeiros, onde se vislumbram melhor as condições forjadoras do posicionamento das CIPAs. Enxergar apenas aquele primeiro é o que traz certa imobilidade de ação, uma sensação de falta de saída, de impossibilidades de solução. Se a culpa está sempre no “outro”, nada há que “eu” possa fazer. Aí reside o conformismo, o caminho fácil para a estagnação, a via da conserva cultural. O discurso levava, na verdade, apenas à primeira cena, a que se mostra facilmente, a que se congelou. Tínhamos que alcançar os bastidores das dimensões excluídas pelo discurso oral... A esse respeito, lembro um exercício escrito que fiz com um grupo de cipeiros de Osasco. Pedia aos alunos que situassem, graficamente, em uma fo- 66 lha branca, a localização da CIFA na empresa em relação às gerências, ao SESMT e aos trabalhadores, simbolizando cada instância, na folha, por um círculo de cor diferente. Após alguns minutos de discussão, todos concordaram em colocar a CIPA eqüidistante de cada uma das partes e situar o SESMT um pouco mais próximo às gerências, e em oposição aos trabalhadores. Bem, resolvi dar vida àquela planta. Ao dar vida à imagem estática, colocando pessoas nos lugares simbolizados pelas partes e fazendo o diálogo vivo criar as aproximações ou distanciamentos, vimos uma outra representação dar lugar à forma inicial. Os cipeiros tentaram se aproximar dos trabalhadores. Sentindo-se rejeitados, foram se aproximar das gerências, que os acolheram cordialmente, mas com alguma desconfiança. Decidiram aproximar-se, então, do SESMT, lá permanecendo. Abrigo perfeito. Congelamos as posições e redesenhamos no quadro branco a nova representação gráfica das posições: a CIPA ao lado do SESMT, um pouco mais distante das gerências e bem distante dos trabalhadores. Continuamos a dar vida ao texto. Mais ação e... eis que surge nova configuração para a representação gráfica. A CIPA quer aproximar-se dos trabalhadores, deixa o conforto do SESMT e não se importa de ser observada, de longe, pela empresa... O primeiro esquema, resultado de intenso debate, diferia diametralmente do último, após a vivência da ação espontânea. Nesse momento, ainda surpresos com a transformação do “dito”, traziam aqueles comentários (que se tornaram uma constante durante os nossos cursos) de que talvez aquilo fosse apenas um teatro, não a realidade. Realidade é o que eu quero que seja real, ou o que aparece involuntariamente na dramatização? Real é, enfim, o que eu controlo pela minha fala, o meu pensamento, minha ação ou também o que eu não controlo e que aparece através da minha fala, meu pensamento e minha ação? Meu imaginário é tão impregnado do real quanto o meu real do imaginário. Outrossim, a verossimilhança não é importante: a cena é humana, pois é singular, traz a marca de cada um e de cada momento. Aponta para alguns aspectos que precisam ser ressignificados e reintegrados na totalidade da existência. A construção da cena é a construção do ritual, dos costumes. Na dramatização, não repetimos os fatos ipsis, mas os recriamos. Em nossa experiência com os cursos para cipeiros, cujo objetivo era destrinchar os possíveis problemas das CIPAs durante seus mandatos, o que vimos desfilar diante de nossos olhos, sem exceção, foi sempre uma passagem espetacular do plano do debate ao plano da ação. Podemos quase dizer que, em menos de duas horas, a classe produzia, coletivamente, um novo debate, a partir da realização dos sociodramas. Como se tudo que houvesse sido falado - 67 com tanta convicção, há menos de duas horas - estivesse, agora, sob o foco da dúvida existencial. Tínhamos, assim, duas visões distintas, ou seja, aquilo que era “apenas falado” e aquilo que era “falado e vivido”. Se uma primeira visão trazia a queixa “ipsis literis” de que “os trabalhadores não utilizam os EPIs necessários” ou que “a empresa, desinteressada, não apóia a CIPA”, um último enfoque, entretanto, revelava que “as CIPs não enxergam o lado do trabalhador” ou mesmo que “não se cobra responsabilidade das médias chefias quanto a uma política de segurança da empresa”. Os estados psíquicos se manifestam na atuação psicodramática sem os habituais mecanismos de defesa do eu, fazendo com que o Psicodrama seja um método investigativo ilimitado, que nos permite desenterrar as “outras” visões. Investiga por trás do discurso, colocando em evidência, pelo drama, a repetição a que somos sujeitos das cenas internalizadas de nossas vidas, que não foram revistas e atualizadas. Tirando os “segredos” do cofre Em São Paulo, uma grande empresa estatal me solicitara que realizasse, em suas dependências, um curso de CIPA, nos moldes em que era dado na FUNDACENTRO. O objetivo seria levar os cipeiros a refletir sobre o papel da CIPA na empresa, tornando-a mais atuante. O curso foi levado à empresa, para ser realizado em cinco manhãs. Para tanto, foram convocados todos os cipeiros daquela gestão. Quem eram os alunos? Um grupo de funcionários com valores tradicionais, com grande dificuldade de admitir os próprios fracassos, com muito medo de abrir os “segredos” e se comprometer com a verdade. Percebi que minha presença nos debates do grupão os incomodava. Tentei trabalhar com subgrupos, oferecendo a eles a oportunidade de debaterem seus problemas sem a minha interferência. Por meio de um roteiro de questões, pretendia, em última análise, desvelar as representações internas dos cipeiros sobre a atuação da CIPA, bem como clarear alguns níveis explícitos e implícitos das relações que mantinham com a empresa e trabalhadores. Mas nem os subgrupos consegui montar, pois não admitiram quebrar as panelinhas ou nelas incluir forasteiros. Toda vez que se tentava tocar em qualquer problema da empresa, desmanchavam-se em risadas e criticavam sempre qualquer tentativa de esclarecer ou solucionar os problemas. Estávamos já na terceira aula. Alguém colocou um problema interno da CIPA, quando a classe explodiu em gargalhadas. Fiquei desnorteada! Perguntei se sabiam por que riam tanto! Respostas vieram de todos os lados. De ime- 68 diato, escutei: “É normal rir”. Deixei virem mais respostas. Mais e mais. Deixei. Deixei que abundassem, que a sala ficasse impregnada e embebida com aquelas justificativas vazias. Como em um espaço pronto a ser ocupado, o vazio acabou cedendo lugar à necessidade de ser preenchido. Houve tímidas tentativas de se recuperar a “verdade”. Não avancei muito, achei que os limites já estavam próximos. Mas, naquele mesmo instante, olhando para eles, um insight iluminou meu caminho!!! A idéia permitiu continuar o trabalho, ao menos com melhor êxito, naquela empresa, nos dias seguintes. Um minuto antes de encerrar a aula daquela manhã, pedi que anotassem, em um papel avulso, uma questão à qual deve riam trazer a resposta no dia seguinte: “O que os trabalhadores da empresa X pensam a respeito da CIPA?” Apoiada no pressuposto de que a natureza humana é caracterizada pela incompletude, ou seja, não temos total domínio consciente sobre nossas ações, emerge daí a importância do inconsciente, como movimento não visível, mas tremendamente atuante e interveniente. A idéia era trazer à tona, por outros meios, esse movimento inconsciente do grupo, que não permitia que a verdade fosse dita. No dia seguinte, bem cedo, pedi autorização à empresa para percorrer sua área e entrevistar doze trabalhadores escolhidos por mim, aleatoriamente, dentre os empregados operacionais e administrativos. Diria que esse foi um dos melhores aquecimentos já produzidos em um momento de tensão e constrangimento durante uma aula. E para um grupo tão fechado como aquele!!!! Em tempos de crise, aparecem as melhores criações. Recuperei meu fôlego e fui enfrentar as “feras”. Iniciei a aula com as respostas que havia solicitado no dia anterior. Como legítimos “donos da verdade”, mostravam-se satisfeitos com suas respostas. Quando anunciei que também havia feito aquele trabalho, recolhendo dos próprios trabalhadores seus depoimentos, emudeceram. Perguntei se gostariam de saber o que havia sido dito pelos colegas. Esperei que a classe legitimasse a idéia de lhes mostrar “o outro lado”. Estupefatos, com os olhos esbugalhados e o sorriso já desfeito, ouviram cada depoimento crítico como se tivesse sido desferido por um golpe mortal. Entreolharam-se. Então, a CIPA tinha aquela imagem? Mas em que departamento eu havia feito a pesquisa? Quem tinha escolhido os entrevistados? Alguém ficou olhando? Não faltaram perguntas! De repente, um dos alunos levantou-se e perguntou à classe se eles não achavam que estavam lavando roupa suja na minha frente! Um murmúrio geral na arquibancada... Até que um colega se armou de coragem e indagou: Roupa suja na frente dela? Ou na nossa? Por que nenhum destes aspectos que está sendo levantando foi discutido pelo nosso eficiente Grupo da Qualidade? 69 Os valores estavam a caminho de uma mudança. O teatro espontâneo trazia implícito um viés axiodramático. Era impossível construir coletivamente uma história que não trouxesse implícito um conflito coletivo presente da empresa e sua respectiva sociodinâmica. As gargalhadas, as críticas, as ironias que impediam a transformação foram removidas e, finalmente, os cipeiros conseguiram se posicionar em frente ao espelho e mirá-lo sem intermediários. Havíamos localizado onde se situava o drama, espacial e temporalmente. Foi um trabalho de pesquisa, de revelar verdades, descobrir o que jaz por trás das máscaras que insistentemente se reproduzem. A catarse do momento trazia, finalmente, uma sensação de relaxamento, equilíbrio, integração, poder ou domínio sobre seus conflitos. Demos início, então, às novas leituras, abertos para o que desse e viesse... A lei, ora a lei! Em 1995, adotei em minhas aulas um questionário-guia, que nada mais era que um roteiro de dez questões que levava o cipeiro a refletir sobre os vários aspectos que envolvem a atuação de uma CIPA, e que também servia de aquecimento para as atividades do dia. Resolvi trazer aqui uma experiência interessante que poderá mostrar o vínculo irônico entre esse questionário-guia e a ação dramática, que é objeto particular deste capítulo. Era um curso aberto, de cinco dias, para cipeiros de diversas empresas. No segundo dia de aula, pedi aos alunos que respondessem ao referido questionário, que iniciava perguntando o que o cipeiro “achava” das reuniões de sua CIPA. Bem, a essa questão uma aluna dera a seguinte resposta: “As reuniões de CIPA são muito importantes porque nós aprendemos muito as coisas da lei”. Ou seja, atribuía-se às reuniões de CIPA um caráter informativo. De obrigações legais. Até o momento, outras funções não estavam sendo admitidas. Registrem. No dia seguinte, o grupo em que se inseria aquela aluna, após um tempo de debate, concluiu que uma das grandes dificuldades da CIPA seria a falta de dos trabalhadores em relação às questões da segurança e saúde no trabalho. A lei... a falta de consciência...? Onde se encontravam? O grupo começou a encenar o que havia ensaiado: um trabalhador não usava os EPIs necessários. O cipeiro, ao passar pelo trabalhador, fez um discurso estimulador, no qual os aspectos legais estavam presentes, mas o trabalhador não o ouviu. O Técnico de Segurança repetiu esse discurso formal, detalhando tecnicamente a questão, mas também o trabalhador não o atendeu. Obedeceu apenas à ordem do chefe, quando este surgiu em cena. Lançando mão de algumas técnicas psicodramáticas, trouxemos à superfície a sintoma- 70 tologia que o teatro clássico, ensaiado, não mostrara, mas que o teatro espontâneo faria emergir. Assim, o trabalhador passou de uma escuta “dopada” a um discurso ativo, explicando por que detestava usar o equipamento e confessando que odiava ver o cipeiro aproximar-se para chamar sua atenção. O cipeiro, por seu turno, admitiu sentir-se um “zero à esquerda” perante um trabalhador que não o escutava. Enquanto isso, o Técnico de Segurança preocupava-se em apresentar ao trabalhador seu conhecimento técnico-legal, e a chefia, cá entre nós, admitia só atender aos preceitos da segurança na presença do técnico da área. Os discursos do cipeiro e do técnico repetiram-se com tal veemência que chegaram a cansar a platéia. O drama se repetiu exatamente por ser inconsciente. Insistia como uma verdade negada que reclamava revelação. A situação parece sem saída enquanto o drama rodopia no escuro. O “aqui e agora” da cena, repetido mecanicamente, supostamente esconde um outro momento original, que situa o drama no seu locus original. Quando reconhece esse locus, o protagonista pode se reposicionar em relação à forma doentia com que se relaciona com o mundo. É o momento em que o cipeiro pode enxergar as relações doentias que a CIPA costuma ter com trabalhadores, chefias, técnico. É o momento de se reposicionar. O Psicodrama não busca causas remotas para a cena, mas o vínculo com sua história pregressa, a fim de interromper o ritmo cadenciado de sua repetição robotizada e doentia. Para tanto, é preciso penetrar nas raízes da cena atual, para que esta deixe de ser realizada repetidamente como um mito banalizado e endossado pelos grupos sociais existentes. Fica claro que, na questão da “não conscientização do trabalhador” (terminologia repetida aqui, conforme trazida pelo grupo), pode estar oculta uma série de relações de poder conflituosas entre as partes envolvidas, relações es tas não explicitadas e que ocultavam convenientemente o verdadeiro problema sentido pelas CIPAs. Pode o leitor, aqui, perguntar: e o que a resposta dada pela aluna ao questionário-guia tem a ver com a cena dramatizada? A função informativa-legalista da reunião da CIPA se cruza com a descoberta de que os preceitos legais, embora conhecidos de todos, não são respeitados por ninguém. Ambas se encontram e se entrelaçam espetacularmente na enorme teia de relações de trabalho da qual a CIPA, aqui, é a protagonista. De uma reunião de CIPA que, no início do curso, servia para se “aprender a lei”, chegamos ao outro lado: uma reunião de CIPA que não discute o fundamental - as relações de poder entre trabalhador, cipeiro, técnico de segurança e chefias! Uma reunião que talvez oculte aquilo que só a ação dramática pôde colocar à mostra: o aprendizado da legislação, afinal, du- 71 rante a reunião, parece não resolver os verdadeiros e escondidos obstáculos enfrentados pela CIPA. Transformemos as reuniões da CIPA! O outro é escuro! Este foi um daqueles cursos que não imaginei que fosse conseguir levar a cabo. Um Sindicato de Trabalhadores de São Paulo, pertencente a uma categoria extremamente combativa, sabendo dos resultados promissores já alcançados por essa atividade educativa, havia solicitado o curso de CIPA para seus cipeiros. Já havíamos sido alertados, pelos próprios solicitantes, de que esses cipeiros eram bravos guerreiros e que, no momento, encontravam-se muito desestimulados e estressados. Politicamente mobilizados, esses cipeiros constituíam um grupo extremamente extrovertido, falador e sempre muito crítico em relação às inúmeras condições irregulares de seus postos de trabalho. Conheciam a fundo os direitos das CIPAs constantes da legislação, podendo até citar a numeração dos itens que constam na Norma Regulamentadora n° 5. A atividade inicial que propus - um jogo em que duas equipes, sentadas frente a frente, devem promover um debate sobre a validade ou não da existência das CIPAs nas empresas - quase destruiu a sala de aula. Recebi queixas dos colegas que trabalhavam no mesmo andar. Aula do que era aquela???? Bem, não é preciso dizer que todos queriam falar! E todos tinham razão!!! As cadeiras, que não paravam quietas nos lugares, gritavam em sintonia com eles! No momento do compartilhamento e elaboração do jogo, todos eram os donos da verdade e ficaram melindradíssimos quando não foram ouvidos ou “respeitados em seus direitos de expressão”. Assustei. Não teria força suficiente para administrar aquilo. Os direitos de expressão haviam ferido outros direitos: o de expressão, porém, do outro. Resgatar Moreno era preciso. Em que pese as minhas dificuldades, resolvi propor-lhes a atividade dramática. Não tiveram o menor re ceio de executar a tarefa. Muito pelo contrário, planejaram os roteiros, ensaiaram as peças a serem encenadas e lançaram-se às dramatizações, com os peitos estufados. No momento da dramatização, o primeiro grupo apresentou-se com o desembaraço de atores profissionais. Entretanto, apesar da desenvoltura de cada um, quando tentei realizar a primeira intervenção técnica, percebi que não havia alcançado meus objetivos como diretora de cena. Simplesmente não se sujeitavam às regras do contrato feito anteriormente, não se sujeitavam à direção, não se sujeitavam às opiniões alheias, não se sujeitavam ao olhar do 72 OUTRO. Não se sujeitavam, ponto final! Não precisou muito esforço para perceber que o programa do curso teria que ser refeito, pois o meu “cuidadoso” plano de aula tinha acabado de entrar em colapso! Deixei que todos os grupos se apresentassem sem minhas intervenções. Em seguida, sentei-me à frente da roda e iniciei uma longa conversa: como poderia propor jogos sem que todos aceitassem as suas regras? Foi o início de um debate acirrado não só comigo, mas principalmente entre eles. A liberdade dada por mim para que discutissem, expressassem o que sentiam e subissem ao palco, sem dúvida, preparara-os para os jogos dramáticos, mas o clima de espontaneidade, tal como descrito por Moreno, não havia se instalado, ainda. O grupo não apresentava um nível de aquecimento adequado para iniciar a ação dramática. Lembrei-me da fala de Moreno: o aquecimento de uma sessão psicodramática tem função vital para a ocorrência das condições de liberação do fator “espontaneidade” nos sujeitos. Esse foi o momento em que percebi claramente que a “espontaneidade” psicodramática não diz respeito a fazer o que se quer, quando se quer e do modo como se quer”. Para mim, esse foi o melhor exemplo que tive em minha vida profissional de que um grupo extrovertido e desembaraçado não é necessariamente um grupo “espontâneo”, no sentido moreniano. No dia seguinte, resolvi mexer nesse nó. A conversa do dia anterior os deixara inquietos. Propus-lhes um exercício planejado, especificamente, para aquele grupo e para aquele momento, e que não voltei a utilizar para outras atividades educativas dentro da FUNDACENTRO. Como eles já haviam realizado vários debates em grupo, “a forma de participação em trabalhos de grupo” seria o tema a ser discutido por eles, agora, mas por meio de um exercício escrito. Todos receberiam uma folha com cinco afirmativas, qualitativamente diferentes, relativas à “forma de participação em trabalhos de grupo”. Nessa folha, deveriam fazer sua autoavaliação, assinalando o grau em que cada uma das afirmativas correspondesse à sua pessoa. Terminada essa tarefa, receberiam novas folhas iguais, nas quais deveriam proceder da mesma forma, em relação aos quatro colegas do seu subgrupo. Encerradas essas duas etapas, cada aluno, reunindo as quatro avaliações feitas pelos colegas, calcularia o escore médio referente a cada afirmativa, confrontando-o, posteriormente, como escore dado por ele mesmo na sua autoavaliação. À frente, desenhamos um quadro grande, com o nome de todos os alunos e os indicadores avaliados, no qual cruzávamos o escore médio atribuído por colegas a uma determinada pessoa e o escore que a própria pessoa se atribuíra. Assim, pudemos, em um exercício aberto, realizado coletivamente, mas que preservou as autorias das avaliações, confrontar, para cada aluno, sua auto- 73 imagem com a imagem do OUTRO. Todos estavam em xeque, sem que pudessem desfechar acusações pessoais. Esse foi um momento pesado. Um participante iniciou. Torceu a boca e ensaiou uma crítica, discordando do parecer dos colegas. Permaneci quieta. O próprio grupo não permitiu que o debate fosse adiante. Afinal, não estava em jogo a decepção ou a ansiedade de fulano ou sicrano, mas a de todos. O quadro à frente não era feito de papel, mas de vidro: refletia cada um e todos ao mesmo tempo! E esse espelho não trazia, pela primeira vez, as vítimas de acusação, mas simplesmente os próprios rostos. As expressões faciais se contorceram. Experimentaram movimentos há muito não vividos. Esperei que se acalmassem. Que deglutissem o que viam à frente. Após o compartilhar, o momento de elaboração psicodramática, realizado por eles: aqueles minutos haviam trazido a verdadeira liberdade de expressão e pensamento para o grupo. Se desejávamos tanto a liberdade de opinião, que aquele instante fosse consagrado para nos permitirmos ouvir a opinião do OUTRO, que “às vezes” é contrária à nossa. Um silêncio significativo selou aquele momento. Deixei que o silêncio nos transformasse. Em seguida, pedi que todos saíssem da sala - inclusive eu , depositassem suas “armas” lá fora e retornassem à sala de aula sem elas, pois não precisaríamos delas até o final do curso. Foram os segundos mais bonitos desse curso! A partir de então, e só após esse ponto, conseguimos trabalhar as queixas do grupo em relação à CIPA. O grupo se “aquecera”: o “outro” fora admitido. E, para minha surpresa, ao final do curso, um cartão assinado por todos e entregue pela cipeira que mais se ressentira com o exercício, dizia: “Amarilis, obrigado por fazer-nos enxergar claro o que tanto víamos escuro”. Que mais pode querer um educador nessas horas? Orgasmo total! A platéia vai à luta Foi durante um curso aberto para cipeiros de diversas empresas, que atribuí a devida importância ao significado da platéia no movimento do sociodrama, mostrando que a platéia é autora e beneficiária do drama tanto quanto o protagonista que está no palco. Um grupo havia planejado uma cena em que um trabalhador, que jamais fazia uso do EPI durante seu ofício, em determinado momento, era rapidamente “convencido” pelo cipeiro a utilizá-lo durante sua atividade. A cena pretendia mostrar as dificuldades do cipeiro em relação à questão mencionada, mas o que acabávamos de ver era um cipeiro sem nenhuma “dificuldade”. Entendendo que a solução havia chegado rápido demais para a qualidade do problema, tentei intervir para trazer o problema cru e nu, sem os adereços colocados pelo teatro ensaiado!... Entretanto, os solilóquios obtidos 74 expressavam que, após a fala do cipeiro, o trabalhador tornara-se “consciente” a respeito da obrigatoriedade de uso do equipamento. É óbvio que o grupo não estava disposto a aprofundar o problema, razão pela qual a solução viera num piscar de olhos. Era claro, para mim, que aquela solução mágica e rápida encobria a resistência dos protagonistas a enxergar o conflito. O salto proporcionado pelo Psicodrama não ocorrera! Estávamos ainda repetindo a cena ensaiada, que, para alivio dos resistentes, tinha um bonito happy end. Como a cena já havia sido encaminhada por eles até o ponto de sua resolução, não queria "voltar atrás", temendo o desinteresse de todos, protagonistas e platéia. Atônita, sabendo que, no fundo da panela, sob o caldo fervente, a sujeira ainda estava colada, congelei a cena no ponto em que o trabalhador assentia com a cabeça, sorridente, o discurso do cipeiro. Pedi que trabalhador e cipeiro dissessem uma palavra a respeito de como se sentiam após aquele discurso. O trabalhador estava “bem” e o cipeiro, “resolvido”. Caminhei até a platéia e pedi que observassem a cena congelada em silêncio, por um minuto. Um minuto! A seguir, pedi que a platéia pensasse alto tudo que vinha à mente, naquele momento, sobre a cena observada. Não tardou a virem os comentários de que aquilo era irreal, “não era verdade”, estranho! Sem que eu solicitasse, alguém da platéia pediu para entrar no papel do trabalhador. Esse novo participante, no papel do trabalhador, estimulou a nova história: descrente, resistiu ao máximo ao discurso do cipeiro, que, não preparado para aquela resposta, começou a gaguejar, gaguejar, gaguejar. “Mas aquilo não estava ensaiado! Aquele colega não era do grupo“. Entretanto, fazia parte da cena de tal modo que foi o elemento desencadeador da verdade psicodramática. O diálogo entre trabalhador e cipeiro adquiriu, a partir de então, uma tonalidade mais autêntica, quando todos puderam vislumbrar quantos sentimentos ocultos aquela imagem guardava e quais eram, de fato, as dificuldades do cipeiro! A platéia, co-autora do drama, dava, início ao verdadeiro teatro espontâneo, fazendo do palco também seu espaço! Um outro momento inusitado em que eu, como diretora, tive que apurar os ouvidos para a ressonância da platéia foi em Campo Grande, com um grupo grande de cipeiros. Durante uma dramatização, um dos atores - um aluno que sempre colocava dificuldades em tudo - me pediu para sair da cena. Nunca havia ocorrido aquilo comigo na direção. Senti que a platéia emudecera e o clima ficara tenso. Não sabia o que fazer, pois temia que, após aquela desistência” em meio à dramatização, ninguém mais ousasse ir ao palco. O que fazer com os demais atores, com a cena, com o clima da aula, enfim, com a proposta? Gelei! Perguntei a ele, se antes de sair do palco, gostaria de sugerir uma solução para o problema que o grupo apresentava - falta de interesse dos cipeiros. “A única solução aqui é dar dinheiro para o cipeiro!!! “, disse ele. 75 “Tem que comprar o cipeiro.”Ouvi a platéia, ainda muda, fazer um ligeiro movimento nas cadeiras. Nesse momento, tive um insight: a platéia daria a continuidade adequada. Pedi que repetisse sua sugestão, de modo enfático, olhando para a platéia. “A única solução aqui é dar dinheiro para o cipeiro. Tem que comprar o cipeiro!” A platéia o escutou em silêncio mais uma vez. Mas, dessa feita, ouvi o rumor das suas manifestações corporais. Solicitei que, ainda mais uma vez, repetisse, de olhos fechados, sua sugestão. Ao término dessa última fala, intenso rumor da platéia! Surpresa do protagonista! Fazia-se claro o diálogo protagonista-público! Para surpresa de alguns, alguém se levantou e perguntou: Posso entrar no lugar dele? A cena continuou... Os elementos que estimulam o processo de aquecimento para a espontaneidade e criação são oferecidos pela platéia, ou seja, pelo próprio grupo. Nos sociodramas, o protagonista é parte do grupo, é seu porta-voz, e a intervenção da platéia, apesar de não participar diretamente da cena construída, vem mostrar a verdadeira sintoma entre protagonista e público no trabalho de construção da perspectiva psicodramática. Desembaraçando os novelos de lã Qual o sentido do uso das técnicas psicodramáticas senão o de fazer desvelar o conflito latente? Em todos os relatos aqui apresentados, elas certamente estão presentes. Entretanto, com o intuito de enfocar um pouco o alcance de uso desses mecanismos operacionais, julgamos oportuno apertar o botão de pause do nosso filme em alguns momentos do nosso trabalho. Há duas técnicas que são fartamente aproveitadas por mim - sempre com algumas variações na sua utilização, nessas práticas sociodramáticas: a do “solilóquio” e a do “duplo”. Vejamos como e onde entram no caso relatado a seguir! Era um grupo de Presidentes de CIPA de uma grande empresa estatal (a empresa possuía, na época, 16 CIPAs espalhadas em vários municípios do Estado), que se reunia para avaliar o trabalho de suas respectivas CIPAs. Os participantes queixavam-se de tudo - inclusive daquela reunião! - e, sobretudo, dos gerentes de forma geral, que pouco se interessavam pelas Comissões. Lembramos que a maioria daqueles Presidentes eram também gerentes em alguma posição dentro da empresa. Bem, a essa altura, um dos subgrupos havia planejado um quadro em que se assistia a um diálogo do Superintendente da instituição com um dos Presidentes de CIPA, durante o qual se subentendia o “pouco caso” do Superintendente para com as referidas comissões. Quando a cena se encerrou, ouvimos gargalhadas de escárnio. Era exatamente aquilo que ocorria na vida real! Bela vítima era o Presidente da CIPA! 76 Foi quando intervim, pedindo que ambos os personagens falassem alto o que pensavam (solilóquio). O Presidente da Comissão tinha receio de avançar o sinal e o Superintendente, ciente disso, não “estava nem aí”! Pedi que continuassem a dramatização. Em determinado momento, vendo que o conflito ainda não emergia, pedi novo solilóquio dos personagens, dessa feita seguido de “duplo”, quando falei pelo personagem aquilo que ele pensava. Os “duplos”mostraram que o Presidente estava morrendo de medo do Superintendente e que este, por sua vez, desprezava seu oponente. A platéia reagiu. Perguntei a ambos o que tinham vontade de fazer, sabendo das intenções clarificadas em cena. O Superintendente desejava simplesmente virar as costas para seu oponente que, ressentido, desejava jogar-lhe na cara aquele relatório da Comissão. Pedi que concretizassem, pois, seus desejos. E foi com grande interesse que o grupo e eu acompanhamos, boquiabertos, as três tentativas suadas do Presidente da CIPA de concretizar seu desejo. Seu braço simplesmente não se levantava. Na primeira tentativa, o papel não alcançou o alvo, detendo-se a um metro dele. Na segunda, conseguiu chegar às pernas do alvo. Na terceira, finalmente, atingiu o rosto do Superintendente, fazendo com que a cena tomasse inesperadamente um rumo ainda não experimentado. Sem risadas, e suando junto com o protagonista, a platéia estancou ao ouvi-lo confessar que não podia agredir o Superintendente, pois tinha laços de amizade... Continuaram mudos... até que alguém lembrou que “talvez” os Presidentes ali presentes não se ;empenhassem muito porque precisavam garantir seus empregos e a confiança do patrão! Sem palavras... A função precípua do diretor, que não é pequena, é estar atento a todos;os subtextos, para que possa, utilizando as técnicas apropriadas para cada situação, fazer aflorarem as contradições, os rituais, as maneiras de pensar, enfim, desvelar o que está por trás do ritual, criar alternativas de comportamento não imaginadas, esclarecer o que o personagem quer concretamente. A “concretização” - técnica que especialmente me atrai muito - foi utilizada de forma inesperada, em um curso aberto dado no Rio de Janeiro. O tema da representação era o total descaso e desinteresse dos cipeiros em torno da segurança dos trabalhadores. No cenário, os cipeiros encontravam-se sentados, sem reunião, largados em suas cadeiras, acompanhando as anotações feitas na ata da reunião. O ponto focal daquela reunião era a realização daquela ata. Tranqüilizava a todos saber que estava sendo redigida e que, estando concluída, nada mais haveria a se fazer. Introduzi, então, um ego-auxiliar que, fazendo o papel de outro cipeiro, cobrou do Presidente da CIPA maior empenho. Nesse momento, ouvimos, não sem algum espanto, a confissão do Presidente da Comissão de que CIPA "era só no papel"! "Não se preocupem!" Ninguém 77 mexeu um dedo. Continuaram ali, passivos, imóveis, como se nada tivessem ouvido. Continuavam a fixar os olhos na ata, calmamente redigida por um dos cipeiros. Nesse instante, entrei em cena e tomei a ata nas mãos. Levantei-a para o alto e perguntei à platéia o que valia mais: “um pedaço de papel ou o interesse real da CIPA”?As respostas foram unânimes, o papel não valia nada. Repetindo, então, as palavras do Superintendente, comecei a rasgar a ata, demoradamente, para desespero dos protagonistas. Ficaram perturbados. O ponto focal estava sendo destruído. Um deles afastou sua cadeira. Outro se levantou. Um outro, ainda, perguntou porque eu fazia aquilo! Vagarosamente, em movimentos muito lentos, continuei a picar o papel em vários pedaços pequeninos, jogando-os pelos ares. Um pesado silêncio tomou conta da classe. Alguns cipeiros fizeram menção de recolher os resquícios da ata espalhados pelo chão. Pedi que deixassem e olhassem para aqueles pedaços deles mesmos sobre o assoalho e contassem como estavam se sentindo. Foi um momento de grande tensão, mas que transformou por completo as discussões que se seguiram. O uso da concretização permitiu à dramatização funcionar, no Psicodrama, como um tiro pela culatra: tentamos, por meio do desenvolvimento das fantasias, achar o que está oculto sob a parte automatizada dos papéis. A destruição lenta daquela ata, expressão manifesta e símbolo do comportamento automatizado daqueles cipeiros, foi o iniciador da desrobotização de todos. Duas técnicas das quais não lanço mão regularmente, mas que ajudaram muito em certa ocasião, foram a “interpolação de resistência” e o “espelho”. Era um curso para Técnicos de Segurança do Trabalho, ministrado em São Carlos, no qual trabalhávamos uma queixa desses profissionais em relação à não cooperação dos cipeiros. Essa queixa fora mostrada em uma reunião de CIFA. Nessa versão, o Técnico praticamente conduzia a reunião, esclarecendo ao Presidente da CIFA os problemas e respectivas soluções referentes à segurança dos trabalhadores. Este assentia, enquanto os cipeiros, inertes, pouco participavam ou opinavam sobre os esclarecimentos dados. Para nosso espanto, a cena continuou nesse ritmo por minutos a fio. A impressão que tínhamos era de que a queixa não partia do Técnico, pois, naquela reunião, o único elemento “feliz” parecia ser ele mesmo. Aquilo pedia uma intervenção técnica da direção: interpolação de resistências. Em “off”, pedi aos cipeiros que modificassem suas atitudes, comportando-se deforma arredia e questionadora. Ao Presidente da CIPA solicitei que não desse ouvidos ao Técnico. Ou seja, fiz com que os demais personagens deixas sem de assumir os papéis complementares. O Técnico assustou-se sobremaneira com a mudança de rumo! Não sabia o que fazer. O uso da interpolação de resistências contrariava de tal modo as disposições conscientes e rígidas do protagonista, que este chegou a alterar seu ritmo respiratório. Perguntei o que o as- 78 sustava agora, mas ele não conseguiu expressar. Deixei a cena continuar. O Técnico, de assustado passou a ficar acuado e, de repente, encolhido na cadeira, permaneceu imóvel, sem ação. Nesse momento, até para poupar o ator, que estava visivelmente alterado, fiz um “espelho”, entrando em seu lugar na dramatização e permitindo que ele pudesse, ao observar-se, tomar consciência de seu comportamento perante uma situação que lhe trazia posições relacionais novas e inesperadas. Representei, deforma exagerada, o momento em que ele ia se encolhendo na cadeira, escorregando, lentamente, cadeira abaixo, até ir parar no chão. Foi o momento crucial: o grupo explodiu em uma grande gargalhada, o que fez o próprio ator cair em si e começar também a rir, ao perceber o que acontecera: quando a CIPA mostrou-se ativa, o Técnico acuou, assustado. Seria conveniente ter um grupo de cipeiros mudos e um Presidente de CIPA que concordasse com tudo? Foi a “deixa” para começar a repensar a questão colocada pelos Técnicos de Segurança do curso. Quando dizemos que um personagem é... estamos falando somente de emoção. Quando dizemos o que quer, falamos de ação e, portanto, de conflito. As técnicas vieram mostrar a que veio o Técnico, o que “queria”. O conflito obviamente representava as necessidades sociais antagônicas: quero uma CIPA atuante, mas, ao mesmo tempo, não quero. O caminho foi traçado: era descobrir a vontade e a contravontade. Fazer encenar os contrapapéis, os papéis complementares, aquilo que dá ao protagonista a chance de rever suas contravontades! Para finalizar, gostaria de mencionar o quanto a “inversão de papéis” foi uma das técnicas mais eficazes para se trabalhar um dos temas preferidos pelos alunos dos cursos de CIPA,, qual seja, “os trabalhadores não utilizam os EPIs”. Não cabe aqui a discussão sociológica sobre a natureza dessa concepção. O Psicodrama, nesse ponto, é magnífico quando permite às pessoas trazerem livremente suas concepções anteriores, para que possam ser por elas mesmas analisadas, mastigadas e talvez substituídas por outras novas. Uma dessas tantas cenas que dirigi na minha experiência de educadora foi trazida por um grupo de trabalhadores metalúrgicos, em um curso que realizei em parceria com o Sindicato da categoria. No cenário já ensaiado, dois trabalhadores recebiam uma “bronca” do cipeiro, que insistia que eles deveriam usar os protetores nos ouvidos, e não em volta do pescoço. Em seu discurso, o cipeiro, ranheta, mencionava que ele pertencia à CIPA e que estava ali para fiscalizar e orientar. Os trabalhadores ouviam em silêncio. O cipeiro continuava a bronca. Os operários continuavam em silêncio. Em dado momento, fiz a inversão de papéis, colocando o cipeiro como trabalhador e um trabalhador como cipeiro. Deixei que continuassem. Mais bronca. Silêncio do trabalhador. Nova bronca, reação do trabalhador. Mais bronca 79 ainda! Mais reação do trabalhador. Mais bronca... e a explosão do trabalhador: “Eu não vou usar esta porcaria, não! Quem você pensa que é, para vir me dar lição de moral? Você é um igual eu, entendeu?” A “inversão de papéis” levara o cipeiro, antes tão concentrado em seu próprio mundo, a enxergar o outro de uma forma diferente e entender o que sentia aquele trabalhador de vinte anos de casa quando um colega seu, da CIFA, resolvia lhe dar bronca e “lição de moral”. Apenas a tomada de papel, a possibilidade de viver as “sensações” e “indignação” do outro poderia fazê-lo ampliar a visão de seu próprio discurso. Agora, o cipeiro, no lugar do trabalhador, escutava seu próprio discurso e percebia o quanto lhe fazia mal. As técnicas, nessa perspectiva, constituem o instrumental que está a serviço de revelar novas dimensões da mente, levando o protagonista a poder enxergar como o fenômeno cotidiano é construído, as leis que o geram, levando-o a experimentar possibilidades que lhe trazem conexões de sentido, imprescindíveis para a ampliação de seu conhecimento. Nem tudo é cena, embora tudo seja drama Nem sempre os conhecimentos de Psicodrama serviram para colocar em prática apenas sociodramas, marca indelével dos nossos cursos na FUNDACENTRO. Na realidade, totalmente embuída do espírito moreniano, sempre coloquei em prática, nos jogos inventados, a concepção básica do Psicodrama que é entender o homem em suas relações e recriá-lo espontâneo e criativo, a partir de suas próprias potencialidades. Sabendo que o conceito de papel é fundamental para desenhar esse caminho, esse conceito foi sempre apropriado por nós na reinvenção das atividades a serem trabalhadas pelos participantes no espaço educativo. Assim foi com o exercício das “Expectativas sobre a CIPA”. Essa atividade foi criada a partir da minha constatação de que os alunos-cipeiros não se davam conta da complexidade de expectativas que eram depositadas sobre eles. Por mais que explicasse ser esse um ponto nevrálgico, não admitiam que a questão fosse assim tão complexa. Surgiu a idéia, então, de desenvolver esse jogo. Pedi à classe que se dividisse em subgrupos e sintetizasse, após um debate, cinco expectativas do grupo em relação à CIPA. Porém, um detalhe: na folha do exercício distribuída a cada subgrupo, pedi que, ao responderem à questão, se colocassem no lugar, respectivamente, de gerente, de cipeiro e de trabalhador. Assim, por exemplo, o subgrupo dos “gerentes” não sabia que os demais subgrupos responderiam à questão assumindo os lugares de “cipeiros” ou “trabalhadores”. Portanto, os três subgrupos estavam respondendo à mesma questão, porém, situados em papéis diversos. Abertas e compartilhadas as respostas, a princípio, ficavam desconfiados com as diferenças manifestadas pelos grupos. 80 Mas, pouco a pouco, incentivando-os a ler nas entrelinhas as respostas de cada subgrupo e estimulando-os a desvendarem por eles próprios os focos de atenção, descobriam, estupefatos, que as expectativas sobre o objeto podem ser completamente diversas, dependendo do papel social do sujeito que as coloca. Apesar de sempre ter sido esse um momento de tensão e desequilíbrio, foi sempre o momento que abriu as portas para o efetivo trabalho psicodramático. Foi a partir das constatações feitas nesse exercício que os cipeiros conseguiram aceitar a existência de três expectativas completamente diversas em relação à CEPA: dos trabalhadores, a esperança de que a CIPA produzisse finalmente algo de satisfatório para eles; do empregador, o objetivo de que a comissão cumprisse sua finalidade legal sem trazer despesas; e dos próprios cipeiros, a expectativa de que houvesse algum reconhecimento da sua atuação por parte da empresa e dos trabalhadores. Se o Psicodrama parte da concepção de que o drama emerge do constante movimento contraditório é conflitante em que se dão as relações humanas, movimento este que toma forma pelo desempenho de papéis dos seus atores, a mesma concepção serviu de base para o exercício acima descrito. Os múltiplos papéis evidenciaram as expectativas diferentes que se cruzam de modo conflitante em torno do objetivo definido da CIPA de zelar pela segurança dos trabalhadores nas empresas e que, por serem contraditórias, fazem emergir o drama da CIPA. Sem cena, mas com drama, sim! Portando na testa nosso próprio nome Há menos de dois anos, deixei de trabalhar diretamente com os cipeiros, para realizar um curso voltado para profissionais que assessoram ou supervisionam as CIPAs - em sua grande maioria, Técnicos de Segurança do Trabalho. O objetivo era fazê-los refletir sobre alguns problemas relacionados com sua atuação nessas comissões, bem como possíveis soluções alternativas que levassem ao melhor desempenho. Como o tema focal ainda fosse “CIPA”, à primeira vista, poderia parecer que não houvesse mudado grande coisa. Alguns até diriam - jargão conhecido entre nós - , “o curso foi adaptado à nova clientela”! Bem, pasmem: na realidade, mudou tudo! A educação, quando investida de uma proposta metodológica moreniana, objetiva, mais que tudo, investigar, no aqui e agora, o contexto situacional das relações entre indivíduos ou entre diferentes atores sociais. Mudaram os atores, transformaram-se por completo o discurso “consciente” do grupo, o co-inconsciente subjacente que sustentou esse discurso, as vivências e fantasias trazidas para a classe, enfim; as expectativas lançadas. O curso virou outro, com outras preocupações, outros modos de olhar. A CIPA estava lá, mas com outras singularidades... 81 Voltando aos Técnicos de Segurança do Trabalho, qual a queixa básica desta nova clientela? Dentre outras, a de que a CIPA era desmotivada e dependia dos técnicos até para respirar! Bem, esta característica de “dependência da CIPA” foi trabalhada em um sociodrama espetacular, realizado com um grupo de profissionais novos de Araraquara, que traziam a queixa de que “o Técnico é obrigado a fazer as funções da CIPA”. Tínhamos uma cena demorada na qual o técnico da empresa conduzia, esforçada e solitariamente, uma reunião da CIPA. Foram cinco exaustivos minutos, também, para todos que assistiam! Até que, interrompendo a encenação planejada por eles, e me fazendo valer do recurso da interpolação de resistências, pedi aos cipeiros que fosse fazer uma investigação de acidente pela empresa, mas sem a presença do Técnico de Segurança. Ao Técnico pedi apenas que os observasse. Decorridos dois minutos, solicitei um solilóquio do Técnico que, embora amuado, dissera estar “tudo bem“. Os cipeiros continuaram sua investigação. Em novo solilóquio, o Técnico, agora, manifestava alguma perturbação. Deixei que conduzisse a investigação junto com os cipeiros. Voltou visivelmente mais satisfeito. Deixei que a cena continuasse, porém, com uma mudança; em “off”, instruí os cipeiros a, literalmente, “grudarem” no Técnico, segurando seus braços; apoiando-se em suas costas, ou prendendo-se à sua cintura em nítida situação de dependência. O personagem mal conseguia se movimentar Fazia um grande esforço para dar qualquer passo! A platéia, ansiosa, desejava interromper aquilo, permitindo ao Técnico livrar-se daqueles inconvenientes e cerceadores cipeiros! Entretanto, ficou boquiaberta, quando, na entrevista do personagem, o ouviu declarar: “Sabe que até foi gostoso!” Esse foi o momento culminante da aula, o grande “insight” do dia: era gostoso fazer as funções da CIPA! Era gostoso ser o bom. Era gostoso ser o conhecedor da técnica. Era gostoso, enfim, mantê-los dependentes! A cena psicodramática ajudou o grupo a representar adequadamente dimensões vividas e não vividas de seu mundo interno coletivo, partindo-se da suposição de que as pessoas não buscam superar a realidade, mas o poder reexperimentá-la Reexperimentaram uma CIPA dependente e descobriram que, no fundo, a desejavam assim. A elaboração final obtida nessa aula chocou de tal forma os alunos que resolvi, a partir desse curso, começar a trabalhar um outro aspecto que entendi ser importante: a auto-imagem profissional do Técnico de Segurança do Trabalho. Experimentamos esse jogo pela primeira vez em São Carlos, com os alunos do curso de formação de Técnicos de Segurança do Trabalho. Trabalhávamos contemporaneamente duas imagens: aquela idealizada de si mesmo e a imagem percebida pelos outros. 82 De repente, um dos alunos, investido do papel do Técnico de Segurança da empresa, indignado, desabafou: “Não quero mais continuar na cena, pois os outros não deixam eu fazer o meu papel. Não planejamos isto, pó! Como é que eu posso ser competente com esta bagunça?” Fizemos ecoar sua queixa... O outro não deixa?! O outro não deixa! O outro não deixa... Ou eu não sei “ser com o outro”? A dramatização permitiu o contato com as várias intersubjetividades, com o outro, com a intersubjetividade que habita dentro de si. É nesse contato com o outro que traz também dentro de si que ò sujeito redimensiona seu próprio eu, estabelece as diferenças entre ele e o outro, segue seus desejos, marca e reconquista um novo lugar. Afinal, as duas imagens, a idealizada e a percebida, eram reais e vivas e brigavam entre si no jogo de sobrevivência do papel e na luta pela reconquista do espaço. Esse jogo psicodramático e as palavras ditas pelo nosso protagonista nos indicavam um novo caminho a seguir, uma nova verdade a ser descoberta, um importante passo a ser dado: reelaborar o significado de “competência” profissional. Esse passo foi dado em Bebedouro. Um grupo havia colocado como dificuldade para esse profissional o “conseguir ser competente”. Muito bem! Só que; na encenação, para minha surpresa, todas as dúvidas e situações.problemáticas apresentadas pelos cipeiros eram competentemente respondidas pelo Técnico, fluentemente. E aí, qual era então a dificuldade? O grupo não levara a dificuldade para o palco, provavelmente porque era muito difícil mostrar-se não competente! Os demais alunos que assistiam à apresentação pareciam anestesiados. Não haviam “engolido” aquilo, mas também não protestavam. Afinal, era o calcanhar-de-aquiles do grupo! Dei continuidade à história, fazendo com que os cipeiros colocassem, realmente, o Técnico em situação difícil. As intervenções práticas objetivavam descobrir aquele “iceberg”, trazer à tona a sensação de incompetência profissional. A reação do protagonista, que representava o Técnico de Segurança, foi flagrante: sem reação. Mudo. Continuei a estimulá-lo, até que ele explodiu e fez aflorar o “iceberg” das suas dificuldades, uma enorme barreira de gelo que agora surgia à superfície: “O que é que estes cipeiros querem? Quero mais que eles se...!” Finalmente; a cena dramatizada mostrava, em todas as suas cores, a dificuldade que o grupo desejou expressar desde o início: o técnico que se sentia cobrado pela CIPA e que deveria mostrar-se competente perante essa Comissão. Sem deslizes! Óbvio que aquilo mexera em profundidade com cada um. O mote para a seqüência da próxima aula. À noite, no quarto do hotel, “esquentei os miolos” para criar algo que os fizesse recuperar as vivências do dia e transformá-las em novas possibilidades para suas vidas profissionais. No dia 83 seguinte, iniciei a aula, colocando duas cadeiras à frente da classe, com uma faixa no encosto de cada uma, na qual se lia, respectivamente, “perdedor” e “vencedor”. Entretanto, o grupo, localizado atrás, só conseguiria ler as faixas, caso fosse à frente da sala, onde eu me posicionara. Iniciei o jogo. Perguntei quem gostaria de ir à frente e escolher uma das cadeiras para sentar-se, após saber o que significavam... O grupo relutou... Entreolharam-se... Fizeram perguntas, até que um primeiro se arriscou. Para cada voluntário, solicitava escolher a cadeira, sentar-se e dizer o que sentia quando lá estava. Os cinco primeiros vieram, tomaram ciência das faixas e elegeram, todos, a cadeira do “vencedor”, dizendo sentir-se muito bem lá. Após a escolha, deixava-os ao lado da cadeira escolhida. Quando o sexto aluno levantou-se, antes que chegasse, à frente, perguntei qual cadeira escolheria, antes de “ler” seu rótulo. Titubeou, olhou para os cinco colegas anteriores já à frente e mencionou que gostaria de experimentar o as sento da esquerda (perdedor), pois todos a preferiram e queria saber o porquê. Quando leu o rótulo, parou! Suspense. A classe, sem respirar, acompanhou seus olhos. A expectativa era tão grande que até eu estanquei!!! Dando a ele as mesmas chances dos demais, perguntei-lhe se gostaria de mudar sua escolha, agora que havia lido as faixas. Parado em frente à cadeira escolhida, respondeu negativamente e sentou-se. Seu solilóquio, vindo lá de dentro, foi ouvido em silêncio por todos: “É difícil sentarse aqui...”. Veio o próximo aluno, que, lendo as faixas previamente, também escolheu o lugar do “perdedor”! Estavam ousando experimentar! Os solilóquios iam se transformando a cada passagem por aquele assento: “É esquisito sentar aqui, mas....”. Nova passagem pelo “perdedor”: “Quer saber de uma coisa? Adorei experimentar esta sensação!“. Até que resolvi chamar o aluno que protagonizara a cena do dia anterior, perguntando se gostaria de participar do jogo. Levantou-se, mostrando coragem. Os que não conheciam os rótulos, ardiam de curiosidade. Os que já os conheciam, temiam pela ousadia e risco daquele momento. Após ler as faixas, escolheu, determinado, a cadeira da esquerda, a do “perdedor”. Seu solilóquio, dito em tom “casual” e ansioso, foro último: “Qual o problema de sentar-se aqui?”... A esse grande e intenso momento catártico, seguiu-se o compartilhamento de todos, quando puderam, em espaço aberto e livre de censura social de empregados e empregadores, confessar o que sentiam no lugar de “perdedor”. Questões puderam ser lançadas e respondidas sem temor: qual o vínculo dessas cadeiras com a responsabilidade profissional de ser competente? Pode-se ser competente e sentar na cadeira de “perdedor”? O que significa ser competente? Temos que sentar sempre na cadeira do “vencedor”? De um aluno, um arremate que levou o grupo a recolher-se dentro de si e reposicionar-se: “A cadeira do perdedor é a 84 única que me deu vontade de querer vencer e de mudar”. Saímos da ordem determinada pelo cultural e, por meio do outro e junto a ele, entramos no espaço aberto às possibilidades. E, só então, ainda que sentados na “outra” cadeira, pudemos portar na testa nosso próprio nome, orgulhosamente!... As pedras do caminho Falemos de outras histórias! Histórias que arranham... Em uma ocasião, quando, em meio a uma dramatização, solicitava a alguém que fizesse um solilóquio, ouvi, perplexa, seu comentário: “Eu não vou entrar no seu jogo. Eu sei que eu sou inteligente!” Com essas palavras, um dos alunos de um dos cursos dados em Campo Grande, investido no papel de Engenheiro de Segurança, recusou-se a fazer um solilóquio. E, de fato, sem sombra de dúvida, não insisti. Sabia que ele não estava preparado para sair “do seu próprio jogo”! Não era aquele o momento e o modo de quebrar suas resistências. Continuei o trabalho introduzindo, mais adiante; um “espelho” que o ajudasse, bem como ao grupo, a vislumbrar o que a cena trazia em seu bojo naquele instante. Similares a essa, ocorreram outras situações, em que algum participante, de uma ou de outra forma, recusava-se a “entrar” no jogo dramático, ou sutilmente, ou declaradamente. As soluções, naturalmente, foram adaptadas a cada situação e, com certeza, condicionadas ao diálogo intersubjetivo que ali se produzia. Se, a princípio, assustava-me muito com esses sinais de resistência, pouco a pouco fui aprendendo a lidar com eles e inseri-los como manifestações legítimas do contexto grupal e social ali presentes. Os exemplos abundam e, certamente, pela sua intensidade, não os esqueço facilmente. Estava em uma palestra em Osasco, com 180 pessoas, sentadas em um grande salão. Pedi que o grupo rearranjasse as cadeiras, dispondo-as em forma de três meias-luas, quando alguém, lá do fundo, contestou, dizendo que não sairia do lugar. Não é preciso dizer que a sua conduta congelou o movimento da multidão, que, estupefata, iniciou um cochicho frenético, aguardando a minha reação. Juntei-me à platéia e, pedindo que continuassem, pois o salão já estava ficando com outra cara, mostrei como reagrupar as cadeiras, enquanto fui esclarecendo o objetivo de se proceder àquele rearranjo: “Aqui vamos nos movimentar, vamos agir, vamos mostrar que podemos sair dos nossos lugares, etc.” Era o início da segunda aula de um dos cursos ministrados por mim e perguntava aos alunos se se lembravam de algum momento das atividades do dia anterior. A princípio, um silêncio embaraçador que, paulatinamente, foi sendo substituído pelos relatos dos participantes sobre suas lembranças do dia anterior. Contente em realizar esse compartilhamento, tomei um susto quando alguém res- 85 pondeu, seca e agressivamente: “Não me lembro de nada que aconteceu ontem. E mais: não me lembro, não porque sou esquecido, mas porque não quero lembrar!!!” Sem me apressar ou esconder o susto, assenti com a cabeça sua recusa e continuei a ouvir outros depoimentos. Ao final; falei sobre a importância e significado que tem, para nós mesmos, o resgate daquilo que sentimos... Risadas no meio do exercício foi algo com que demorei a aprender a lidar. Sempre me incomodaram muito. Embora ciente de que representavam claramente uma resistência ao exercício ou atividade proposta, não conseguia lidar com o problema. Aprendi cedo que as atividades com música, de olhos fechados, em determinados grupos, sempre arrancavam risadas de dois ou três. Foi assim com empregados de uma oficina mecânica, em. São Paulo. No meio do exercício, dois empregados começaram a rir, sem parar, absorvendo a atenção dos demais e prejudicando o desenvolvimento do exercício lúdico. Afinei meus sentidos de diretora de Psicodrama: coloquei-me no lugar deles. Eles jamais haviam feito esse tipo de atividade em suas vidas. Sentiam-se ridículos. Era realmente engraçado. Interrompi a música. Deixei que rissem à vontade e, em seguida, pedi que escutassem a música de olhos abertos. As risadas foram se perdendo, pouco a pouco, até que conseguiram, de olhos fechados, permitir-se ouvir a música e “entrar” nela, sem medos. Esses exemplos ainda não falam diretamente do “corpo”. Sentir e tocar o próprio corpo, sentir e tocar o corpo alheio. Quantas experiências fantásticas tivemos com atividades que ousaram “trabalhar” o corpo!Apenas uma, para enriquecer o capítulo. Era um seminário para duzentas pessoas, em Campo Grande. Havia feito um sociodrama no palco com oito participantes, em que se trabalhara o “desinteresse dos cipeiros”. O quadro terminava assim: os cipeiros sentados em suas cadeiras, amorfos, sem o menor interesse pela fala do presidente da CIFA. Resolvi congelar a cena e pedi sugestões da platéia para modificá-la, sem usar o recurso verbal, apenas mexendo fisicamente nos personagens, que deveriam se deixar moldar pelas mudanças experimentadas pela platéia. Desceu o primeiro participante e deu alguns tapas na cadeira do cipeiro, que nem sequer se mexeu. Pedi novas sugestões. Desceu um segundo participante, que “varreu” da cadeira os papéis e objetos que ali estavam. O cipeiro continuou imóvel. A platéia começava a se agitar. Um terceiro veio ao palco, fez menção de tocar nos cipeiros, mas não sabia como. A platéia gargalhou. Veio o quarto e, sem encostar nos cipeiros, balançou as cadeiras com grande esforço, tentando mudá-las deposição. Os cipeiros, embora perturbados, continuaram largados em suas cadeiras. A platéia, de agitada passou ao silêncio impaciente. O silêncio da resistência. Ninguém mais queria experimentar! Pedi uma última sugestão. “Gente, quem quer mudar isto aqui? Vocês querem ou não mudar isco 86 aqui? Podem mexer nos personagens à vontade! “. Até que gritou uma moça lá do fundo. Todos se viraram para trás. Acompanharam sua descida ao palco, degrau por degrau. Chegando lá, com firmeza, tomou os cipeiros, um a um, levantando-os pelos braços e costas e fê-los ficarem de frente uns para os outros, tocando-se pelas mãos, braços ou ombros. Ao toque mágico dos corpos, os cipeiros, sem que pudéssemos interromper, começaram a se abraçar. Não estava no script. A platéia delirou. Explodiu em palmas e levantou-se, deixandome com os olhos cheios d’água! A produção do ato espontâneo alcançava a sua plenitude. A resistência dos corpos havia sido quebrada e ganhava lugar o espaço da solidariedade, da autonomia, da vontade de realização pessoal. Não havia mais minhas consignas e nem poderia havê-las. A transformação dos corpos e das mentes não admite aprisionamento das emoções, mas a sua liberdade. A criatividade psicodramática plasmava no indivíduo novos modos de ser, de desempenhar papéis e de se vincular. Foi a catarse do auditório. Tais resistências, sabemos, são mecanismos de defesa, individuais e coletivos, que respondem a diferentes formas de constrangimento a que as pessoas são submetidas no seu cotidiano de trabalho. Embora acompanhadas sempre de muita tensão por parte do grupo e da direção, essas situações culminaram sempre, após a sua elaboração, com avaliações escritas, por parte dos alunos, que só nos fizeram acreditar mais ainda no trabalho psicodramático como possibilidade real de transformação das questões difíceis que não sabemos ou conseguimos resolver. Ninguém será mais o mesmo Levando em consideração as resistências de “educandos” e de “educador”, ambos protagonistas do cenário político para as questões da segurança e saúde do trabalhador, a avaliação do processo mostra que alguns caminhos foram abertos e que as “resistências” não podem ser vistas como obstáculos para o processo educativo, mas como desafio para a conquista da liberdade por parte dos educandos. É o momento de trazer as avaliações dos alunos para as nossas histórias. Ao indagar a finalidade de tudo isso, ou a proposta pedagógica maior que embasa todos esses relatos, deparamo-nos com este depoimento de um dos alunos: “Este curso despertou a importância das coisas simples na vida. Os princípios e objetivos não podem se afastar dos homens.” (São Paulo, 1999) Outros parecem saber ou quase adivinhar que o que mais queremos é levá-los a compreender o mundo, as possibilidades e limitações do homem! 87 “O curso mexeu com o meu eu preso, que agora brotou novamente.” (Bebedouro, 2000) “Levo deste curso uma experiência não só para a CIPA, mas para a vida toda: enfrentar desafios.” (Salvador, 1997) “A maneira como as emoções são despertadas e a conscientização de fatos corriqueiros acontecem de maneira quase mágica.” (Ribeirão Preto, 2000) A premissa básica é estimular o “aluno” a reconhecer essa sua realidade imediata e concreta, que às vezes parece tão distante! Estas falas nos dão conta disso: “Vivenciando situações adversas que passaremos na realidade, dando-nos a oportunidade de vencer o medo.” (Barueri, 1997) “Apresenta problemas e soluções através dos próprios alunos.” (Florianópolis, 1998) “Emocionante ver o outro lado da coisa.” (Campo Grande, 1997) Outrossim, mais que instigar o “aluno” a desenvolver a sua compreensão crítica e ativa, precisamos, mais que nunca, desenvolver sua vontade transformadora! “Nos livros não aprendemos como ser mais ousados.” (Feira de Santana,1999) “Despertou a possibilidade de mudar situações estabelecidas.” (São Paulo, 1997) Nada mais conveniente que lembrar que só há educação na medida em que existem ações adequadas, criativas e autônomas, organizadas por meio da aplicação de conhecimentos adquiridos pela interação com os outros e como ambiente. “Tecnicismo por si só não é o caminho para a solução de situações.” (Araraquara, 2000) “As aulas são construídas. O conhecimento é meio para o crescimento.” (Rio de Janeiro, 1999) “O método democrático e livre nos deu liberdade para ser.” (Aracaju, 1999) Utilizando o Psicodrama, nada mais fizemos que ajudar o educando a realizar a difícil integração entre conhecimento adquirido e experiência vivida. “Foi como testar um colete à prova de balas: primeiro alguém lhe entrega um, diz que funciona e vai embora. Mas aqui no curso nós vestimos o colete e o testamos.” (São Paulo, 1998) “A experiência sentida, aprendida e formada na própria pele: uma experiência singular que só eu posso descrevê-la aos demais.” (Osasco, 1997) “Os métodos são ótimos, pois trabalhamos com idéias,símbolos com o corpo e a voz; criando espaços e situações encontradas na realidade. Métodos 88 muito arcaicos não propiciam o aparecimento de uma coisa tão viva quanto estas experiências.” (São Paulo, 1999) O método e teoria psicodramáticos, aplicados no campo da segurança e saúde do trabalhador, dentro de propostas educativas, fizeram conhecer a realidade por um outro ângulo, entender o que os papéis que representamos o tempo todo escondem, criar alternativas, experimentar novas formas de agir e, enfim, libertar trabalhadores, cipeiros, sindicalistas, profissionais da área, gerentes, todos, de sua passividade. Constatamos que os depoimentos avaliativos dizem respeito à aquisição de atitudes de “questionamento” e “reflexão”, por parte dos alunos, não só do contexto de trabalho em que estão inseridos, mas do próprio comportamento de vida cotidiano. O papel do educador não pode ser outro, senão o de estimular a reflexão e questionamento da própria vida, na qual os valores do trabalho se inserem de maneira simbiótica. A partir do momento em que os participantes declaram refletir sobre suas próprias ações, quer no âmbito da empresa, quer na esfera pessoal, constatando que grande parte das mudanças se inicia a partir deles mesmos, pelo seu comportamento -participativo e contributivo dentro do grupo social, podemos dizer que se cumpriu o objetivo maior da educação: transformação de valores. Em que pesem as situações tensas ou angustiantes de alguns momentos vividos durante essas atividades educativas, sem dúvida esta é a tônica da metodologia psicodramática, que não concebe postura didática sem envolvimento emocional, uma vez que não há, em hipótese nenhuma, ocorrência de situação de aprendizagem sem a interveniência de aspectos afetivos. Cada vez que observo esses resultados nos trabalhos que venho realizando sob responsabilidade da FUNDACENTRO, mais me asseguro da importância de criar propostas didáticas adequadamente contextualizadas, ancoradas nas intersubjetividades dos educandos, e que fortaleçam o processo de conscientização e comprometimento deles em relação aos conflitos existentes no campo da segurança e saúde do trabalhador. “Tenho certeza que depois deste curso, ninguém será mais o mesmo.” (São Carlos, 2000) O futuro, onde está? O que vai para o futuro? Certamente, a flexibilidade e criatividade que o método moreniano exige de um educador que se proponha a trabalhar com o Psicodrama. O futuro está a nos exigir tanto uma como outra, sob pena de assistirmos, impotentes, ao seu desabamento bem diante dos nossos olhos. Foi um curso dado no Paraná, para trabalhadores da Construção Civil, que me trouxe 89 essa sensação. Enquanto tentava, a todo custo, aquecê-los com alguns jogos do repertório psicodramático, os trabalhadores tentavam entender o que era aquilo tudo, sem ânimo para enfrentar o que fosse, sem vontade de perceber o que lhes quisesse mostrar, entediados até o fundo da alma... Murcha, fui para o hotel, exercitando algo que na realidade poucos educadores tentam ou conseguem fazer: trocar de lugar com o educando. Para trocar de lugar de fato, é necessário mais que raciocínio, é necessário estar “disponível”. Disponibilidade para o novo, para o estranhamento, para a angústia. No dia seguinte, passei por uma obra da cidade, recolhi alguns tijolos e leveios para a sala de aula. Colocados os tijolos no meio da sala, senti que já se mexeram nas cadeiras... Dividi a classe em dois subgrupos e pedi que criassem o maior número de usos diferentes para um tijolo, que não o usual. Eles foram se aquecendo... Ao final da competição, a elaboração: “Puxa, um tijolo serve para tanta coisa. Nem sabíamos! “Mais tarde, divididos em subgrupos de três, pedi que bolassem uma campanha publicitária para vender tijolo. Cada equipe bolaria sua campanha e tentaria vendê-la da melhor forma possível. Uma construção coletiva, que animou todos, sem exceção! Após o jogo, o compartilhamento: é difícil vender tijolo? Por quê? O que é preciso para conseguir que alguém o compre? E a CIPA? Como se relaciona com os tijolos? Quem saberia vender a imagem da CIPA? Imersão total! Era preciso ser flexível e abrir mão do planejado. Era preciso criar os tijolos. Para aquela situação, almofadas não serviam. Parece óbvio, mas não é. Aliás, em geral, são as obviedades que não são percebidas, embaladas que estão por um discurso lógico facilitador. Às vezes, é preciso parar tudo. Parar para refletir de verdade não, simplesmente, retomar a mesmice vestida de liberal, pós-moderno, progressista, ou seja lá que rótulo for. Ser educador é fazer isso em tempo integral: despojar-se de uma visão unilateral, deixar entrar outras perspectivas, saboreá-las todas e... reconstruir, em conjunto com os educandos, uma nova visão que dê conta dos desafios! Vem à mente agora aquele turma de Florianópolis. Tratava-se de um grupo rígido, exigente, questionador e pouco afeito a brincadeiras. Em determinado momento em que desenvolvíamos um jogo, ouvi um aluno dizer. “Isto é simplesmente ridículo! “Aquilo me atingiu como um raio. Foi o instante mágico em que me despi de minhas vestes e resolvi, em conjunto com a turma, experimentar novas roupagens: Ridículo... o que e isto? O que é sentir-se ridículo? O que seria ridículo em uma sala de aula? Por que é ridículo para alguns e não para outros? O ridículo poderia ser uma nova possibilidade? Sim, o ridículo se configurava como uma alternativa. Não porque quisés- 90 semos ser irreverentes, mas porque a irreverência já está entre nós, neste mundo de exclusões e preconceitos, de enormes abismos sociais, de flagrantes injustiças e tantas desigualdades! Educar é tentar achar respostas. Encontrá-las, porém, implica desmistificarmos os rituais a que somos submetidos cotidianamente. Significa retirar as máscaras determinadas pelas necessidades sociais impostas e não pelo desejo social, o que é muito diverso, ou melhor, o oposto. Ações educativas só têm sentido quando passam a atender ao desejo social expresso livremente e quando articuladas à noção de preservação da qualidade de vida. Temos, sim, um compromisso fundamental no plano ético e político, diante do sofrimento humano. O futuro é já. A ação demolidora da degradação humana é agora e o nosso papel como educadores é estar com e do lado do nosso semelhante, como semelhante, com nossas próprias dúvidas, contradições e esperanças, contribuindo para construir o arcabouço complexo de tudo aquilo que possamos chamar de sentimento e exercício de cidadania; em cuja base se encontra a proximidade, a perspectiva e a percepção do outro. Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. AGUIAR, Moysés. Teatro espontâneo e psicodrama. São Paulo: Ágora, 1998. GONÇALVES, Camila Salles et al. Lições de psicodrama - Introdução ao pensamento de J.L. Moreno. São Paulo: Agora, 1988. KELLERMANN, Peter Felix. Sociodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, v. 6, n. 2, p. 51-68, 1998. MASSARO, Geraldo. Esboço para uma teoria da cena. São Paulo: Agora, 1996. MENEGAZZO, Carlos Maria et al. Dicionário de psicodrama e sociodrama. São Paulo: Ágora, 1995. MORENO, Jacob Levy. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1997. NAFFAH NETO, Alfredo. Psicodramatizar. São Paulo: Ágora, 1988. PERAZZO, Sergio. Fragmentos de um olhar psicodramático. São Paulo: Ágora, 1999. ROMANA, Maria Alicia. Psicodrama pedagógico. Campinas: Papirus Editora, 1987. 91 92 “CUIDADO, VENENO!” EMPURRANDO A RESPONSABILIDADE PARA O TRABALHADOR Eduardo Garcia Garcia1 O enfoque simplista A contaminação ambiental e de alimentos e as intoxicações de trabalhadores por agrotóxicos são hoje objeto de preocupação generalizada. Considerando-se somente as intoxicações, estima-se que, no Brasil, entre os mais de 15 milhões de trabalhadores rurais expostos, ocorram cerca de 200.000 intoxicações agudas14 com 3.000 óbitos anuais. Geralmente, a principal causa atribuída a esses problemas é o chamado uso inadequado dos agrotóxicos: argumenta-se que a origem dos problemas está na não observação dos cuidados necessários para o manuseio e aplicação do produto, por parte do aplicador; no não uso dos equipamentos de proteção individual necessários para o trabalho com os agrotóxicos; e no fato de ele não seguir as orientações e instruções transmitidas pelo seu empregador, ou aquelas contidas nos rótulos e bulas dos produtos e em cartilhas e folhetos de orientação distribuídos pelos fabricantes e órgãos públicos que atuam no setor. Em frente a essa situação, a “educação” dos trabalhadores é freqüentemente preconizada como a solução para o problema. Essa é a análise usual e a opinião dominante entre os profissionais e as instituições que atuam na área, freqüentemente expressas através da mídia (TV e jornais), de boletins oficiais de órgãos públicos e privados, de revistas especializadas, e até mesmo de eventos e artigos técnicos e científicos. São diversos os exemplos em que se conclui que os problemas decorrentes do mau uso dos agrotóxicos são conseqüência de uma deficiência de “educação”, cuja solução principal seria a realização de “treinamentos” para os aplicadores e o uso de equipamentos de proteção individual. Esse enfoque simplista e maniqueísta reduz a complexa questão que envolve os agrotóxicos a uma dicotomia: o problema é o “uso inadequado” e a solução é a “educação”, no caso, entendida como “treinamentos”. Ao caracterizar essa complexa questão que envolve o uso de agrotóxicos e suas conseqüências danosas como sendo basicamente um “problema de educação”, reduzindo-a a não observação dos “cuidados” recomendados, transfe1 Engenheiro Agrônomo; Engenheiro de Segurança do Trabalho; Mestre e Doutorando em Saúde Pública; Pesquisador da FUNDACENTRO. 93 re-se ao aplicador, seja ele o próprio produtor rural ou o trabalhador, praticamente toda a responsabilidade pela contaminação ambiental e dos alimentos e por sua própria intoxicação provocada pelos agrotóxicos. Essa linha de argumentação começou a ganhar maior destaque a partir da segunda metade da década de 70, quando, coincidindo com a rápida expansão da utilização de agrotóxicos em nossa agricultura, os casos de intoxicação aguda provocados por esses produtos começaram a ser divulgados. Em conseqüência disso, ampliaram-se as discussões, em revistas especializadas e em outros meios de divulgação, sobre as causas dessas intoxicações e as ações necessárias para combatê-las. O foco principal dessas discussões acabou se concentrando na questão do chamado “uso adequado dos defensivos agrícolas”. Segundo a edição extra do periódico “Defesa Vegetal”, intitulada “Uso Adequado dos Defensivos Agrícolas”,36 o uso adequado “deve objetivar primordialmente os melhores resultados agronômicos no aumento da produtividade, melhoria e proteção das colheitas e, ao mesmo tempo, evitar os possíveis problemas de intoxicação, a poluição ambiental e a contaminação dos alimentos com resíduos não permitidos”. Sem dúvida, são objetivos que, se atingidos, trariam enormes benefícios. Porém, esses objetivos deveriam ser entendidos muito mais como um balizador para indicar linhas de atuação a serem seguidas do que propriamente como metas concretas a serem atingidas. Principalmente porque, para atingi-los em sua plenitude, seriam necessárias ações que vão muito além daquelas relacionadas com a aplicação dos agrotóxicos na agricultura. Nesse sentido, centralizar as discussões sobre o “treinamento” do aplicador como sendo o único ou o principal caminho para atingir esses objetivos ou se trata realmente de uma visão estreita do problema, ou é uma forma de evitar discussões sobre outras medidas complementares que deveriam estar também sendo discutidas, pois, em que pesem todos os esforços que possam ser empreendidos para a “educação” do usuário dos agrotóxicos, atacar apenas esse aspecto do problema nunca será suficiente para chegar aos objetivos propostos. No entanto, como comentamos essa é a visão que prevalece, conforme mostram alguns exemplos a segue. Em matéria intitulada “Acidentes no Brasil vêm da falta de cuidado”, publicada na revista “Agricultura de Hoje”,2 em 1981, o então Secretário de Defesa Vegetal, do Ministério da Agricultura, sugeria que “acidentes com defensivos são normais, embora não sejam uma coisa desejável, porque eles acontecem em qualquer setor da atividade humana”. A afirmativa, primeiramente apresenta um total desconhecimento sobre o significado da prevenção de acidentes e da segurança no trabalho, ao dizer que “acidentes são normais” se, e segundo lugar, mostra o descaso com que o assunto era tratado por aquele ó. 94 gão. Ainda segundo o Secretário, “a percentagem de acidentes em construção civil ou no trânsito é muito maior do que a que ocorre com os defensivos agrícolas”, outra afirmativa sem fundamento, pois não havia dados sobre acidentes com agrotóxicos que permitissem qualquer comparação. E segue em sua análise dizendo que, no registro dos produtos, “já é prevista uma série de precauções para a utilização de defensivos agrícolas, visando a eliminar a possibilidade de acidentes ou diminuí-los”, como se a existência, por si mesmas, de determinadas informações sobre “precauções para a utilização” pudesse garantir o seu uso seguro. Conclui afirmando que “grande parte dos acidentes não é devido aos defensivos agrícolas, mas a outros fatores, como e principalmente à sua má aplicação, à não observância do uso devido do equipamento e à falta de cuidado ao se manusear diretamente com o produto, entre outros itens”. Essas opiniões mostram a pouca importância e a falta de conhecimento com que a questão dos acidentes com agrotóxicos era tratada pelo principal órgão disciplinador do uso desses produtos e exemplifica claramente a transferência aos usuários dos agrotóxicos de toda a responsabilidade pelos problemas que essas substâncias pudessem provocar. Dez anos depois, em 1991, o então diretor do mesmo órgão continua centralizando a discussão sob a ótica do mau uso. Segundo artigo comentando reunião de representantes das indústrias de agrotóxicos instaladas na América Latina, ocorrida em Brasília, DF, disse o diretor: “O Ministério da Agricultura, órgão que tem poderes para registrar ou não os produtos agroquímicos, participa dessa reunião trazendo sua visão sobre a matéria [...]. Nossa maior preocupação é com a educação básica quanto ao uso desses produtos, de modo a garantir maior produtividade e menor risco de intoxicação na zona rural”. A nosso ver, como órgão responsável pelo registro dos agrotóxicos, sua maior preocupação deveria ser com o rigor técnico e a eficiência do processo de registro, para garantir a necessária disciplina sobre a disponibilidade e o controle do uso dos agrotóxicos. O mesmo enfoque pode ser observado pelos órgãos oficiais de Assistência Técnica e Extensão Rural, conforme é manifestado em artigo intitulado “A EMATER-DF faz campanha pelo uso adequado”,1 pelo então presidente daquele órgão (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Distrito Federal EMATERDF): “Os defensivos agrícolas não podem ser responsabilizados pela contaminação de alimentos e poluição do meio ambiente. Quando ocorrem problemas desse tipo, a culpa é do manuseio inadequado do produto [...]. A solução para os problemas eventuais provocados pelo uso dos defensivos é uma só [o grifo é nosso]: esclarecimento e orientação quanto ao uso adequado”. Em 1979, Régis Nei Rahal, presidente da então Associação Nacional de Defensivos Agrícolas (ANDEF), que reúne os maiores fabricantes desses produtos, 95 dizia que24 “a grande preocupação do agricultor, do governo, das escolas superiores voltadas para agricultura e da indústria de defensivos deve ser com o melhor uso desses produtos. Isso significa usá-los com vistas à obtenção dos resultados econômicos esperados, sem esquecer os cuidados com a segurança do trabalho”. Essas declarações mostram bem a tendência em considerar a questão do uso adequado como o fundamental da discussão e para a qual, segundo a indústria, os principais segmentos envolvidos deveriam estar dirigindo suas atividades e recursos. A declaração também exemplifica bem a visão restrita da segurança do trabalho: “os cuidados” que não podem ser esquecidos. Dizia ainda o presidente da ANDEF que “o uso adequado dos defensivos agrícolas é uma tarefa do governo. Mas, hoje, no Brasil, estamos vivendo uma situação muito interessante. A situação do proíba-se. Nunca do evite-se. Precisamos passar para a situação do eduque-se, levar uma mensagem educativa e o governo deve assumir esse papel”. A mesma posição foi também defendida por ele em debate entre técnicos, empresários e jornalistas promovido pela revista “Agricultura de Hoje” A referência à “situação do proíba-se” devia-se a que, naquele período, respondendo às pressões de alguns segmentos sociais, o governo começava a restringir e proibir o uso de alguns agrotóxicos organoclorados considerados mais problemáticos. A proposta apresentada pela ANDEF sugeria que o governo, abrindo mão do seu papel de regulamentador, deveria apenas cumprir o papel de garantir a difusão de informações sobre “o uso adequado” desses produtos tóxicos ou, quando muito, utilizar o seu poder de governo e a sua estrutura apenas para viabilizar as campanhas de uso adequado. Procedendo como sugeria a indústria, o governo arcaria com o maior custo para o esclarecimento quanto ao uso do produto, enquanto, provavelmente, bastaria à indústria apenas ser mais um dos participantes das campanhas de “uso adequado”, dispondo eventualmente de alguns recursos humanos, materiais e financeiros, mas continuando a distribuir e vender os produtos sem qualquer restrição. Não se questionavam algumas causas evidentes dos problema, como o acesso fácil a qualquer tipo de agrotóxicos pelos usuários e a farta oferta de produtos altamente tóxicos, por exemplo. É evidente que o governo tem os dois papéis a cumprir, o de garantir as condições de acesso à informação pelo agricultor e o de legislar sobre as questões relacionadas com os agrotóxicos porém não se pode admitir que o poder público deixe de cumprir o seu dever de regulamentar sobre a disponibilidade e condições de uso de substâncias tóxicas para utilização na agricultura, restringindo suas ações apenas a “ensinar” ao usuário a maneira “segura” de empregá-las, como sugeria a ANDEF. Algum tempo depois, em 1985, a posição oficial da indústria, apresentada pelo então presidente da ANDEF,25 continuava colocando o “uso adequar 96 do” como o principal caminho para a solução dos problemas decorrentes dos agrotóxicos, apesar de apresentar uma ótica um pouco menos determinista: “Evidentemente, o uso adequado desses produtos não é a solução para todos os problemas, mas é a condição básica para a proteção do homem, das lavouras, dos animais e do meio ambiente como um todo”. Na mesma época, a indústria começava a incorporar o Manejo Integrado de Pragas ao seu discurso, mas sempre enfatizando o mau uso como o problema, como dizia o vice-presidente da entidade:4 “É necessário termos o bom senso de utilizar as diversas práticas do manejo integrado e não descartar o uso de agroquímicos, culpando-os por acidentes que nada têm a haver com o produto, mas tão-somente com o seu uso inadequado. Não é o agroquímico que deve ser combatido, é o seu mau uso que deve ser colocado em discussão”. Na década de 1990, a mesma visão ainda prevalece, conforme pode ser notado pela opinião do diretor técnico da ANDEF, manifestada em artigo intitulado “Evolução na história dos agrotóxicos”, publicado no jornal “O Estado de São Paulo” e reproduzido pelo informativo da entidade:12 “Sabemos que os riscos com os defensivos agrícolas começam realmente no momento em que o agricultor abre a embalagem e passa a usar o produto”. O fundamental nas visões apresentadas é que a idéia central permanece limitando o problema ao mau uso e a solução ao uso adequado dos produtos, ficando as questões estruturais sobre os determinantes dos problemas sem qualquer análise. Esse enfoque restrito sobre a questão da segurança e saúde no trabalho com agrotóxicos também é comum entre técnicos especializados em defesa agropecuária e professores universitários, entre outros profissionais.8,19, 29, 31 Tra balhos científicos publicados ou apresentados em congressos técnicos, sobre ocorrências de intoxicações ou com o objetivo de investigar aspectos relacionados com os riscos de exposição aos agrotóxicos, avaliam as possíveis causas dos problemas de saúde e das exposições excessivas quase sempre analisando apenas os aspectos estritamente relacionados com o uso de equipamentos de proteção individual, hábitos de higiene e imperícia ou negligência do aplicador, o que está correto, do ponto de vista de quem pretende avaliar apenas as causas e conseqüências diretas da exposição. Mas as conclusões, freqüentemente, extrapolam a análise sobre a influência do mau uso na exposição dos aplicadores e, sem haver estudado o assunto no trabalho relatado, acabam sugerindo que o problema é de “educação” e que o aplicador precisava ser treinado.7,17 Porém, raramente há trabalhos que se proponham também a estudar outros fatores que possam estar influenciando as condições que determinam os riscos de contaminação a que estão sujeitos esses aplicadores, como responsabilidades sobre fornecimento, manutenção e uso dos EPIs, locais e/ou condições adequadas 97 para a alimentação e higiene dos trabalhadores, condições de e para a manutenção de máquinas, substituição dos produtos mais tóxicos por outros menos tóxicos, emprego de tecnologia e de técnicas de aplicação adequadas e seguras, emprego de técnicas agronômicas de produção que busquem evitar desequilíbrios e condições propícias para o estabelecimento de pragas e doenças nas culturas permitindo reduzir ou eliminar o uso de agrotóxicos, existência de orientação técnica em todas as fases da produção, entre outros elementos que poderiam ser citados. Isso considerando apenas aqueles elementos que podem afetar diretamente a exposição aos agrotóxicos nas atividades de trabalho, pois algumas linhas de pesquisa deveriam procurar considerar também os determinantes socioeconômicos presentes e que interferem decisivamente sobre o contexto. Em debate28 promovido pelo jornal “O Estado de São Paulo”, o depoimento de um produtor rural, representante do setor de soja e trigo, ilustra bem o contexto a que nos referimos: Na minha propriedade, a gente dá o mínimo de orientação de que dispomos. O problema é mesmo de educação e isso vai mais longe. Eu mantenho na fazenda uma escola até o 4°ano, gratuita. A gente dá merenda porque a prefeitura não tem condições nem de pagar a professora. E, mesmo assim, os pais, quando chega a idade do filho poder trabalhar, tiram a criança da escola, porque é mais uma enxada na família. Não adianta. Cansei de dar máscaras ao operário (se der aquela roupa de astronauta o empregado não quer; ele pede as contas) e óculos protetores também. Equipamentos simples tudo jogado no chão. Luvas, nem se fala. Com todo cuidado que a gente toma, tive casos de intoxicação constantemente. Não adianta! O camarada vai, passa o dia no hospital, toma soro. Na outra safra, o que ele vai fazer? A mesma coisa. Estamos muito longe do que seja educar. Se temos dificuldades na cidade, imagine no campo. É um trabalho a longuíssimo prazo, começando pelo primário. Não adianta muito, agora, dar treinamento para um camarada que tem condições subumanas de vida, come comida fria. Dizer para ele: ‘põe essa máscara, essa luva’. Ele não tem nem talher para comer, às vezes nem o que comer. Apesar de diversos problemas e sugestões terem sido discutidos, segundo o jornal que promoveu o debate, a essência da conclusão para a resolução dos problemas relacionados com os agrotóxicos a que chegaram os participantes do evento (jornalistas, deputados, professores universitários, produtores ru- 98 rais, representantes da indústria e do governo) foi limitada a um aspecto: a necessidade de se investir maciçamente em educação. A aceitação generalizada do enfoque simplista Geralmente, quando se faz referência à “educação”, no que diz respeito ao uso de agrotóxicos, a conotação que se dá é que o uso inadequado ocorre porque o usuário não sabe a forma correta de manuseio e aplicação dos produtos, daí justificar-se a necessidade de um trabalho educativo para os que lidam com esses produtos. A nosso ver, essa idéia encontra boa receptividade entre os diversos segmentos envolvidos, por quatro motivos principais: • há uma falta generalizada de informação sobre os agrotóxicos; • a atividade educativa é a base dos programas de extensão rural e assistência técnica; • esse tipo de atividade não gera conflito de interesses entre os diversos segmentos envolvidos; • serve como base de argumentação e justificativa para fabricantes de agrotóxicos, empregadores e até para o poder público tentarem se eximir da responsabilidade sobre os problemas decorrentes do uso dos agrotóxicos. Com relação ao primeiro motivo citado, na verdade, a falta de informações sobre agrotóxicos pode ser observada entre todos os setores e segmentos envolvidos. Nos setores técnicos, a falta de informações inicia-se na formação escolar. Os cursos de 2° e 3° graus relacionados com a agricultura normalmente abordam de forma superficial as questões referentes ao uso de agrotóxicos e geralmente apenas propiciando receitas de controle químico para combater principais pragas e doenças das grandes culturas, sem abordar de forma mais consistente as questões gerais do manejo fitossanitário nem os possíveis problemas decorrentes do uso desses produtos. Nos cursos da área de saúde, poucas informações sobre toxicologia e tratamento de intoxicações são oferecidas. A essas deficiências de formação somam-se as deficiências estruturais dos serviços públicos atuantes nesses setores, o que acaba definindo um quadro geral de carência de informações, incluindo o usuário dos agrotóxicos, cujo acesso à orientação técnica é bastante limitado. Apesar da carência geral de informações, as ações se concentram, principalmente, sobre o usuário de agrotóxicos porque é o segmento que justifica a ação de todos os demais. No que se refere ao segundo motivo observado, a organização de atividades e programas educativos para o setor rural é bastante difundida e comumente utilizada como base da extensão rural e assistência técnica, visando, 99 principalmente, ao aumento da produtividade agrícola, por meio da introdução ou aperfeiçoamento de técnicas de produção. Essa prática baseia-se, principalmente, no extensionismo rural. Segundo Queda & Szmrecsányi,30 o chamado movimento extensionista teve suas origens nos Estados Unidos da América que, com base na sua política de ajuda econômica aos países latino-americanos e sob os auspícios da International Association for Economic and Social Development (A.I.A), colaborou com a sua introdução no Brasil, depois da Segunda Guerra Mundial. Seu ponto de partida é a noção de comunidade rural, vista como uma organização social homogênea e não estratificada, sem conflitos internos de interesses. Sob este rótulo são agrupados os grandes fazendeiros, os minifundiários e os trabalhadores agrícolas (...]. Para esse público são elaborados programas que visam à melhoria do seu padrão de vida, de saúde e de educação. Esse objetivo deve ser atingido através da elevação do nível de renda da comunidade rural, mediante o aumento da produção e da produtividade agropecuária [...] De acordo com esse movimento o necessário é educar o público [o grifo é dos autores]. Com base nisso, foi montado todo um aparato estatal para o desenvolvimento da assistência técnica pela extensão rural. Mas, como as estratégias de ação do extensionismo não conseguiram atingir seus propósitos no sentido do desenvolvimento de toda a “comunidade rural”, a partir do final da década de 60, os programas foram dirigidos para as propriedades com exploração comercial, favorecendo os grandes proprietários e os pequenos e médios com capacidade de absorção de novas técnicas de produção, principalmente nas regiões de maior desenvolvimento econômico da agricultura, como no Estado de São Paulo e no Norte do Paraná. Essa tendência e o progressivo esvaziamento e desestruturação dos serviços públicos de extensão rural abriram espaço para a consolidação de uma nova modalidade: a assistência técnica oferecida por empresas privadas. Assim, organizações comerciais e industriais, como as cooperativas e os fabricantes de insumos, passaram a organizar departamentos especializados em assistência técnica, com um caráter bem mais comercial do que educativo, principalmente no caso destes últimos.30 De qualquer forma, do ponto de vista de nossa análise, fica evidente que a organização de atividades educativas como estratégia de ação, na verdade, atende tanto às atribuições dos setores estatais responsáveis pela assistência técnica e extensão rural, quanto aos interesses dos setores privados que atuam diretamente com o usuário do agrotóxico. Afinal, difundir o uso adequado tam- 100 bém significa divulgar o uso dos agrotóxicos propriamente dito. Dinham9 comenta: “Na verdade, as companhias têm pouco a perder com as iniciativas de uso seguro de pesticidas”. O autor diz que a Groupment International des Associations Nationales de Fabricants de Produits Agrochimiques (GIFAP) iniciou programas piloto de segurança no uso de agrotóxicos no Kenya, Guatemala e Tailândia; também as principais empresas multinacionais produtoras estão organizando programas envolvendo agricultores, distribuidores, serviços de extensão e outras agências governamentais em diversos países, incluindo o Brasil. Disse uma das empresas que mais investe em treinamentos, entre as pesquisadas pelo autor:9 “Não há dúvida que a integração de técnicas de educação em massa com métodos práticos de treinamentos em programas apropriadamente conduzidos, talhados para servir às circunstâncias locais e direcionados às necessidades locais, é a melhor estratégia para desenvolvimento, inclusive para a própria empresa”. Diz o autor:9 “Um perigo das campanhas realizadas pela indústria é que a exposição à informação sobre a boa prática, também evidenciará os pesticidas, e estimulará o seu uso”. Da forma como são realizadas, essas atividades implicam relativo baixo custo operacional, o que é importante para o Estado e interessante para os fabricantes de insumos, pois, para a sua execução, basta a elaboração de materiais gráficos e, às vezes, de audiovisuais, que são utilizados e distribuídos por técnicos, em atividades como palestras e treinamentos ao público-fim. Não há necessidade de grandes investimentos em recursos humanos e estrutura, porque os técnicos já pertencem aos quadros das instituições que participam dessas atividades. O público, por sua vez, embora não seja homogêneo em seus interesses, pois são pequenos proprietários rurais, arrendatários, trabalhadores assalariados e temporários de médias e grandes propriedades, representantes sindicais e comunitários e, em alguns casos, também técnicos, devido ao primeiro motivo discutido, ou seja, à falta generalizada de informação, demonstra interesse em participar das atividades educativas, desde que não atrapalhem suas atividades produtivas. O interesse pode ser ainda maior se forem oferecidos brindes para adultos e crianças, como bonés, e promovidas festas de confraternização, com sorteios de prêmios, como litros de agrotóxicos, por exemplo, o que é comum ocorrer em eventos promovidos pelos representantes das indústrias fabricantes desses produtos. O terceiro motivo referido, pelo qual a idéia da “educação” como solução para os problemas decorrentes do mau uso dos agrotóxicos tem boa aceitabilidade entre os diversos segmentos envolvidos, é que outras medidas que não as educativas, invariavelmente, determinam o estabelecimento de conflitos entre os diferentes setores que atuam no assunto, que nem sempre têm in- 101 teresse em enfrentá-los, ou geram demandas para as quais não estão técnica e estruturalmente preparados. Por exemplo: o aumento no rigor das exigências para o registro dos produtos estabelece conflitos entre as empresas registrantes e o Estado, além de serem necessárias estruturas mais bem preparadas tanto para gerar quanto para analisar essa informação mais rigorosa; a intensificação das atividades de fiscalização da fabricação, comercialização e qualidade dos insumos, gera conflitos entre o Estado, os fabricantes e os comerciantes e também exige uma estrutura melhor para sua prática; o mesmo ocorre para o estabelecimento de ações de fiscalização trabalhista e, mais especificamente, de segurança do trabalho, que cria conflitos entre o Estado, as empresas rurais, as entidades sindicais e os trabalhadores; o controle dos resíduos nos alimentos representa conflito entre o Estado, os produtores rurais, os comerciantes e os consumidores dos alimentos e exige uma estrutura laboratorial e de técnicos especializados que representa grandes investimentos para o Estado e prejuízos para os produtores de alimentos; a restrição de uso de alguns produtos propicia conflitos entre o Estado, os fabricantes, os comerciantes e os setores de produção agrícola afetados; a divulgação de informações sobre os problemas toxicológicos potenciais dos produtos químicos gera conflitos entre o Estado, o fabricante, o usuário do agrotóxico e os consumidores; e outros exemplos que poderiam ser citados. Como sempre, prevalecem os interesses dos setores mais organizados e que geralmente também são os menos afetados pelos problemas. Não se fazem muitos esforços no sentido de desencadear essas ações exemplificadas e outras que também são, no mínimo, tão importantes quanto as ações educativas realizadas para a diminuição dos problemas relacionados com o uso dos agrotóxicos. O quarto motivo baseia-se na tentativa de os setores diretamente envolvidos com a questão do uso dos agrotóxicos buscarem se eximir das suas responsabilidades pelas conseqüências negativas desse uso, limitando-as ao “problema de educação”. Assim, procura-se justificar a carência de informação, principalmente, como sendo decorrente da baixa escolaridade ou, pior, busca-se circunscrever e limitar a questão no sentido da ignorância “cultural” do usuário do produto. Um exemplo comum desse tipo de argumentação pode ser observado no debate promovido pelo jornal “O Estado de São Paulo”, no qual disse o representante da Federação da Agricultura do Estado de São Paulo (FAESP), quando indagado sobre a existência de equipamentos de proteção individual nas propriedades agrícolas:28 Existe. E o problema mais sério é a responsabilidade do fazendeiro. O trabalhador rural, geralmente, tem uma cultura de 102 analfabetos. Tudo que a gente diz, tudo que a gente explica tem de ser feito quatro, cinco ou seis vezes. E tem de ser fiscalizado vinte vezes. Eu não conheço nenhum que faça com eficiência. Evidentemente, você não tem um fiscal 24 horas por dia. Muitas vezes eu os surpreendi tomando café com a mesma mão que mexeu o veneno. Por que tomam o café na roça, sem lavar? Porque a água está meio longe, porque têm preguiça de levar a água ao eito.2 O problema básico é de educação. Esse depoimento, por si, daria uma boa análise sociológica sobre relações sociais, culturais e de trabalho. Paulo Freire,13 analisando justificativas dessa natureza, diz: “quando, em seu desconhecimento do homem como um ser cultural, não tendo conseguido os resultados que esperava de sua ação unilateralmente técnica, busca uma explicação para o fracasso, aponta sempre ‘a natural incapacidade dos camponeses’ como razão do mesmo”. A relação entre analfabetismo e ignorância é manifestada com freqüência. Vejamos o que diz o sociólogo João Bosco Pinto27 a respeito: A palavra analfabeto está quase sempre acompanhada de conotações pejorativas, tais como ignorante, rude ou infantil [...]. É um fato sabido que, em uma sociedade letrada, ser analfabeto traz inúmeras conseqüências. Na área econômica, contribui para a marginalização e a sobre exploração do analfabeto; na política, para a negação ou, pelo menos, a redução de seus direitos políticos; na psico-social produz efeitos negativos em sua auto-estima. O analfabetismo, em síntese, acarreta conseqüências negativas. Estas, porém, não devem ser confundidas com o próprio conceito de analfabetismo. Analfabeto quer dizer pessoa que não sabe ler e escrever. Pelos papéis que ocupa na sociedade em que se origina, pela experiência existencial que acumulou, o analfabeto não pode ser considerado como ignorante. Acrescente-se a isso que, hoje, a falta ou a pouca escolaridade não pode ser confundida com alienação, porque os meios de comunicação, incluindo a televisão, têm grande penetração junto à população rural. Mas, como não é nosso objetivo proceder a uma análise sociológica da questão, vamos nos ater apenas ao aspecto específico de segurança no trabalho levantado pelo empregador: a falta de higiene do trabalhador que, segundo ele, não lavaria as mãos antes de tomar café por preguiça de levar água ao local de trabalho. Na ver2 Eito: roça onde trabalhavam escravos (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa; Ferreira, 1986). 103 dade cabe ao empregador oferecer boas condições de trabalho, entre elas, garantir a disponibilidade de água limpa (e também água potável) para os trabalhadores, até mesmo pela eventual ocorrência de um derrame do produto químico sobre o trabalhador, ou mesmo respingos na pele ou nos olhos, por exemplo. E isso não representa necessariamente medidas sofisticadas como a construção de uma rede de água encanada, embora isto muitas vezes seja feito para fins de irrigação, mas medidas simples como tonéis de água limpa, com torneiras e tampas, espalhados por locais sombreados próximos das áreas de trabalho já seriam suficientes. Há também as argumentações que sustentam que as recomendações de uso para a utilização segura de agrotóxicos se encontram entre as informações apresentadas nos rótulos dos produtos e que, se forem respeitadas e seguidas à risca, os problemas não ocorrerão. Nessa linha de argumentação, como os aplicadores não leriam os rótulos, não conseguiriam entender ou não seguiriam as recomendações que lhes são passadas, o problema, então, seria da ignorância dos aplicadores, e a forma de saná-lo seria treiná-los. Em um artigo publicado em uma revista especializada em agricultura, o presidente da ANDEF sintetiza bem essa linha de argumentação:3 “O problema não reside no produto e sim no usuário. Se o defensivo for manipulado sem os cuidados exigidos pelo fabricante, pelos órgãos de divulgação e pelos próprios técnicos, vão ocorrer acidentes”. Em outra oportunidade,26 diz ainda o representante da indústria: “Acho que a posição correta de quem quer efetivamente solucionar problema de tal ordem é aquela de buscar as causas. E tais causas podem ser resumidas numa só palavra: educação”. Em seguida, dá a sua interpretação sobre a maneira como a questão deveria ser tratada: “não é a indústria, não é o defensivo que devem ser focalizados; é o como utilizar o agroquímico no campo. E esse como só pode ser resolvido com um esforço de educação”. Assim, desconsidera-se que, na verdade, o mau uso é decorrência da estratégia de introdução e divulgação dessa tecnologia na agricultura, que sempre privilegiou a ampla e livre disponibilidade dos produtos, enfatizando apenas suas propriedades “benéficas” para o aumento da produtividade (na verdade o benefício seria a diminuição das perdas), sem abordar os problemas que os produtos poderiam acarretar. Essa estratégia foi justamente organizada e realizada pelos setores que não se preocuparam antes em promover séria e corretamente a difusão dessa tecnologia, e que propõem um “esforço” para sanar o “problema” que, segundo eles, seria a ignorância do aplicador, que, por sua limitação de “educação”, não aprendeu a usar bem o produto. O fato é que, até o finai da década de 70, o que se fez foi apenas a difusão massificante do uso dessa tecnologia, justificada por seus propositores pela necessidade do aumento da produção agrícola e garantida por uma política de 104 incentivo, com o apoio do crédito rural. Praticamente, só a partir do momento em que as denúncias sobre os problemas decorrentes do uso indiscriminado dos agrotóxicos ganharam a opinião pública, é que se começou a falar de “uso adequando”. No entanto, nunca se criaram condições reais para uma efetiva implantação de um programa nesse sentido, com a mesma ênfase e estrutura que garantiu a introdução do uso e a expansão do mercado desses produtos. O próprio Programa Nacional de Defensivos Agrícolas (PNDA), lançado em 1975 pelo Governo Federal, que propiciou a instalação do parque industrial de agrotóxicos e a grande expansão da utilização desses insumos no País e que dispunha de amplos recursos financeiros, com total apoio político e governamental, com participação dos ministérios da Agricultura, Fazenda, Comércio e Indústria e da então Secretaria de Planejamento (SEPLAN) e que previa, entre outras coisas, a ampliação de estudos toxicológicos, o controle de resíduos nos alimentos, a implantação de medidas de proteção ao meio ambiente e a realização de trabalhos educativos, visando à proteção do trabalhador, concentrou-se apenas nas questões que garantiram a difusão do uso dos agrotóxicos.6 De lá para cá, não foi diferente e, ao invés de praticar uma política visando ao controle do uso dessas substâncias, com investimentos e estrutura de apoio, realizaram-se, esporadicamente, algumas campanhas de uso adequado. Ou seja, nem mesmo a proposta de realização de um amplo trabalho de difusão de informação e de orientação geral aos usuários dos agrotóxicos; que poderia,ter sido de grande valia aos segmentos envolvidos, parece haver sido objetivamente considerada por eles, em termos de viabilizar as condições, metas e estratégias para sua concretização. Isso nos leva a concluir que a questão do uso indiscriminado e inadequado dos agrotóxicos nunca foi tratada, por esses mesmos segmentos, com a seriedade que eles mesmos enfatizam. Nesse sentido, as campanhas de uso adequado ganham mais um caráter de estratégia de marketing para divulgação dos “esforços” realizados pelos segmentos responsáveis pelo setor, na "tentativa de resolução dos problemas causados pelos usuários”, do que, propriamente, uma intenção real de enfrentar a questão. As limitações do enfoque simplista Além dos questionamentos pontuais anteriormente apresentados para contrapor os argumentos comumente manifestados na defesa do enfoque simplista, podemos analisar suas limitações de ordem conceitual, no que se refere aos aspectos relacionados com o controle de riscos. O enfoque simplista baseia sua análise na idéia de que o risco no trabalho com agrotóxicos estaria associado basicamente ao seu manuseio e aplicação e não à própria substância. No 105 entanto, “o risco associado com uma substância é uma função de dois fatores: suas propriedades tóxicas e as condições de exposição do homem a essa substância”,” ou seja, o risco não é determinado apenas pela exposição a essa substância: a sua toxicidade também é de fundamental importância. Fernícola & Jauge10 definem risco como sendo “a probabilidade de que uma substância produza um dano em condições específicas de uso”. Definem, também, segurança como sendo o contrário de risco: “é a probabilidade de que não se produza um dano pelo uso de uma substância em condições específicas”. As “condições específicas de uso” determinam a exposição, mas a noção de “dano” está relacionada com a toxicidade da substância, que é definida, pelos autores, como a “capacidade inerente a um agente químico de produzir um efeito nocivo sobre os organismos vivos”. Assim, nas argumentações e justificativas utilizadas pelo enfoque simplista, duas limitações principais podem ser observadas: A primeira limitação é que essa idéia procura se respaldar na alegação de que todo agrotóxico, antes de chegar ao usuário, já passou por avaliações toxicológicas, cujas informações serviram para definir sua classificação toxicológica e estabelecer as recomendações de uso constantes no rótulo do produto,2 assim um dos elementos que influenciam o risco já estaria controlado: a toxicidade. A ANDEF diz:5 Dos custos de desenvolvimento, 50% são gastos com estudos sobre toxicologia, metabolismo e meio ambiente. Assim, no sistema integrado de produção agrícola, a proteção química é um fator que merece total confiança, não se devendo acalentar qualquer tipo de dúvida a seu respeito. [o grifo é nosso] mas, isto sim, intervir para a correção de problemas que ainda persistem no âmbito de manuseio, aplicação e descarte de embalagens. No entanto, segundo Fernícola,” “um dos primeiros princípios na avaliação da segurança de substâncias, é que elas não podem ser classificadas simplesmente como seguras ou inseguras”. Analisando o conceito de segurança aplicado a substâncias químicas, diz a autora: “enquanto certos riscos são mensuráveis, as limitações da ciência tornam impossível identificar com absoluta exatidão as condições segundo as quais o risco se torna nulo”. O mesmo raciocínio pode ser aplicado em relação às dificuldades para definir e identificar riscos que poderiam ser considerados aceitáveis. Sabe-se que, apesar dos avanços científicos, há limites técnicos para as avaliações toxicológicas e ambientais, que implicam diversos graus de incertezas e de insuficiência de informações que não permitem uma análise de risco perfeitamente conclusiva. 106 Mesmo nos países onde se buscam estabelecer critérios rigorosos para avaliação das substâncias, ainda são levantadas dúvidas. Nos E.U.A., em 1983, um estudo realizado entre os agrotóxicos registrados pela federação indicava que as informações disponíveis eram insuficientes para avaliar a capacidade de provocar tumores em 48% dos produtos, os danos reprodutivos em outros 48%, e as mutações genéticas em 90% deles.32 A Organização Mundial da Saúde38 diz que somente para alguns poucos grupos de compostos os mecanismos da toxicidade para mamíferos foram bem caracterizados e que ... idealmente, as relações dose-efeito e dose-resposta em humanos deveriam ser conhecidas para cada agrotóxico para poder estabelecer padrões de segurança e classificá-los de acordo com o grau de risco para a saúde. Para a maioria dos agrotóxicos essas relações não são conhecidas e, por isso, as medidas preventivas têm sido desenvolvidas em bases de DL50 e outras medidas grosseiras de relações dose-resposta em animais? Além disso, sem aprofundar mais a discussão quanto às limitações das avaliações toxicológicas, e da complexa discussão que envolve os conceitos relacionados com os efeitos toxicológicos, cabe observar que existem fatores pre sentes nos ambientes de trabalho, ou inerentes ao próprio indivíduo exposto, que podem influenciar a toxicidade de uma substância. Entre os fatores ambientais, estão a temperatura e a umidade, que podem interferir em determinadas propriedades físico-químicas da substância, como a solubilidade, estabilidade, pressão de vapor e reatividade química, entre outros. Por exemplo, aumento da temperatura ambiente freqüentemente torna piores os efeitos tóxicos dos agrotóxicos.38 Entre os fatores biológicos, relacionados com o próprio indivíduo, podemos citar a idade, o sexo, o peso, características genéticas, estado de saúde e desnutrição e as condições metabólicas (esforço físico).10 Deficiências nutricionais, como as protéicas, por exemplo, potencializam os efeitos tóxicos de vários agrotóxicos, e a desidratação pode aumentar a susceptibilidade à intoxicação por inibidores de colinesterase.38 Com base nisso, além de analisar as condições de trabalho e dos ambientes de trabalho que interferem na exposição dos trabalhadores, um dos caminhos para discutir o controle dos riscos em atividades de trabalho com substâncias quí3 Os termos “efeito” e “resposta” são utilizados para indicar alterações biológicas relacionadas com uma dose ou exposição de um indivíduo ou de uma população a uma substância química: “dose-efeito” relaciona dose a uma alteração biológica e “dose-resposta” indica a proporção de uma população que manifesta a alteração biológica definida. A DL50 (dose letal 50%) é a dose que previsivelmente causará uma resposta de 50% em uma população na qual se ensaia o efeito letal de uma substância química.10 107 micas é avaliar as condições que exercem influência sobre a toxicidade dessas mesmas substâncias. Portanto, a toxicidade não deve ser desprezada para efeito de proposições de formas de controle de riscos Mesmo porque, se a toxicidade das substâncias não oferecesse qualquer risco após a avaliação toxicológica, por que elas seriam classificadas toxicologicamente segundo classes de risco? Há também que se considerar que uma outra forma de exercer controle sobre esse fator, dentro das possibilidades técnicas e econômicas e considerando que o usuário tenha poder de decisão e reconheça a segurança e a saúde como elementos importantes a serem considerados, é eliminar o uso do produto ou substituí-lo por outro, classificado toxicologicamente em categoria de menor toxicidade. Knaak et al.,18 em um trabalho de avaliação da efetividade da segurança de equipamentos de mistura, carregamento e aplicação de agrotóxicos usados na Califórnia, E.U.A., comparando diferentes equipamentos, condições ambientais e atividades de trabalho na exposição dos trabalhadores, concluíram que “a toxicidade dos agrotóxicos usados pode ser mais importante que as condições ambientais ou a quantidade utilizada”. Por sua vez, Nigg e Stamper,22 ao discutirem estratégias preventivas, em trabalho sobre avaliação de exposição de aplicadores de agrotóxicos, também chegam a esta conclusão: A formulação pode afetar a dose, mas não a toxicidade intrínseca da substância. Uma boa regra geral é quanto maior a toxicidade aguda da substância, mais casos de intoxicação ela produzirá [...] O argumento de que o nível de uso também contribui para os casos de envenenamento é lógico, mas é um argumento enganoso e perigoso. Quem pode predizer o real nível de uso de uma substância? A toxicidade em si é o fator mais importante. A segunda limitação do raciocínio apresentado pelo enfoque simplista que centraliza sua proposta de controle dos riscos em ações comportamentais do indivíduo que utiliza o produto, é que essa linha entende “uso”, basicamente, como a aplicação e a manipulação direta do produto pelo usuário e não como as condições de uso determinadas pelo estado do ambiente e de trabalho pois, mesmo considerando apenas a manipulação e aplicação dos agrotóxicos, há condições interferindo na exposição que extrapolam a ação direta e, às vezes, fogem à vontade e ao controle do aplicador. O vento, por exemplo, é considerado a mais importante condição ambiental em estudos que visam a avaliar os efeitos de exposição?37 Por isso, é fator sempre considerado nas recomendações de segurança, em que se recomenda que se evite a pulverização contra o vento. Pois bem, mesmo que o aplicador procure 108 seguir essa recomendação, esse é um fator fora de seu controle. Mudanças de direção e velocidade do vento são imprevisíveis e são os fatores que mais afetam “a distribuição de áreas borrifadas sobre o macacão, independente do tempo de Exposição. As mudanças de velocidade e direção do vento provocam derivas indesejáveis sobre o aplicados”. “Se a pulverização da cultura obrigar a um giro de 360° do aplicados ao redor da planta, não há como evitar o vento contra. Assim, também o porte e a arquitetura das plantas e da plantação determinam condições muitas vezes desfavoráveis para o controle da exposição do trabalhador que pulveriza a cultura utilizando os métodos e equipamentos convencionais. É o caso da cultura do tomate estaqueado, por exemplo, no qual o sistema convencional de aplicação, utilizando mangueiras carregadas pelo aplicados, expõe de tal forma o aplicados que não há equipamento de proteção individual que resolva de forma satisfatória, cabendo, para um controle mais eficaz, propostas de modificação no sistema de aplicação (adaptação de equipamento de pulverização) para diminuir a exposição do aplicador.21,33 Sznelwar,34 em um trabalho de análise ergonômica, ao avaliar a exposição em função das atividades envolvidas no processo de utilização dos agrotóxicos, também identificou alguns desses aspectos de difícil controle para o trabalhador. Durante a aplicação, por exemplo, constatou que a exposição é extremamente complexa e variável em função da duração, clima, tipo de pulverizador, características do terreno, características do ambiente (fechado ou ao ar livre), tipos de vegetação e distâncias percorridas; há também fatores relacionados com a dinâmica do trabalho, como o deslocamento do trabalhador (direção e ritmo) e os movimentos da lança de pulverização. Há ainda características de desenvolvimento de determinadas culturas e exigências do mercado que também dificultam a adoção e aplicação de algumas recomendações usuais. No caso do tomate e do morango, por exemplo, o crescimento e a maturação dos frutos não é uniforme na cultura, o que determina a simultaneidade de frutos em desenvolvimento com frutos prontos para a colheita. Nesses casos, a exigência de aguardar o período de carência fica comprometida, pois o produtor não tem como fazer uma aplicação seletiva, evitando atingir os frutos prontos para colheita, que acabam seguindo para o mercado consumidor sem que tenha havido o devido respeito ao prazo de carência. Nesses casos, há necessidade de se estudar o manejo fitossanitário dessas culturas de modo a evitar essas situações. Também há o comportamento do consumidor, que tende a privilegiar o sen so estético em sua escolha de frutas, legumes, verduras e flores, o que acaba pressionando o produtor a utilizar mais agrotóxicos do que o necessário. No caso das flores e plantas ornamentais, o controle de qualidade estético é muito rigoroso e 109 determina um grande emprego de agrotóxicos, especialmente inseticidas e fungicidas. O mercado também exige produtos alimentícios bem formados e sem marcas de ataques de doenças e insetos. Nesses casos, campanhas de esclarecimento dirigidas ao consumidor poderiam tentar modificar essas demandas. Outro fator que foge ao controle do aplicador são as condições inseguras de equipamentos de aplicação, como ocorre, por exemplo, com alguns pulverizadores costais, que vazam por não possuírem uma tampa bem planejada e construída, expondo as costas do aplicador. As recomendações normalmente oferecidas nesse caso são que o aplicador use um protetor impermeável nas costas e encha o pulverizador até 2/3 da sua capacidade para evitar o vazamento pela tampa. As duas recomendações buscam chamar a atenção do aplicador para “cuidados” a serem observados no trabalho, quando o correto, do ponto de vista da segurança do trabalho, seria que esses equipamentos de pulverização não vazassem e fossem mais seguros. Afinal, as duas recomendações não resolvem a origem do problema e punem o aplicador, que é obrigado a usar mais um equipamento de proteção individual (capa) e necessita abastecer mais vezes o pulverizador, acabando por se expor mais a uma tarefa de grande risco, que é o manuseio de produto concentrado para o preparo da calda de pulverização e abastecimento do pulverizador. Pequenos produtores, proprietários ou não, por sua condição socioeconômica e modo de produção familiar, muitas vezes enfrentam situações que inviabilizam algumas das recomendações de uso mais comuns. Entre elas, podemos citar, a título de exemplo, a de não pulverizar nos horários mais quentes do dia, a de não permitir a presença de “estranhos” durante o trabalho de pulverização especialmente crianças, e a de não aplicar agrotóxicos próximo a moradias cursos d'água. Devido ao tamanho de sua área de produção e contando apenas com a sua própria mão-de-obra ou, às vezes, com a ajuda de seus familiares, inclusive crianças, pressionado pelas condições fitossanitárias de sua cultura e não podendo arriscar seu investimento, muitas vezes o agricultor é obrigado a aplicar o agrotóxico no menor prazo possível. Para isso, utiliza extensas jornadas de trabalho, incluindo os horários mais quentes não recomendados, expondo demasiadamente a si e aos seus familiares, incluindo crianças, que são muito empregadas para “puxar” mangueiras de pulverização (mantê-las esticadas e evitar que elas enrosquem). Ainda em pequenas propriedades, visando ao máximo aproveitamento da área disponível para produção, é comum que as plantações cheguem muito próximas de moradias e cursos d'água, inclusive fontes de água para abastecimento das pessoas e animais, além de margearem os caminhos utilizados pelos moradores locais. Os agricultores não deixam de pulverizar essas áreas, sob pena de perder boa parte da sua pequena produção. No 110 meio rural, principalmente nas pequenas propriedades, os fatores ocupacionais e ambientais que provocam agravos à saúde se confundem. Trabalho, moradia e até lazer ocorrem no mesmo ambiente. Apesar dessas limitações, há pelo menos quatro décadas, a estratégia que vem sendo adotada para enfrentar o problema dos agrotóxicos tem sido basicamente a mesma: apenas divulgar os “cuidados” necessários no seu uso. Em 1962, a revista “O Dirigente Rural” já trazia matéria sobre as práticas de trabalho que deveriam ser seguidas na aplicação de inseticidas. As recomendações eram: ... misturar e carregar os inseticidas apenas em áreas abertas; trocar e lavar imediatamente a roupa, se o inseticida caiu sobre ela; igualmente, lavar a parte do corpo que tenha entrado em contato com ele; usar botas laváveis, pois sapatos contaminados são grande perigo; calçar luvas de borracha sintética ou natural, enquanto estiver manuseando produtos tóxicos; munir-se de óculos apropriados, para qualquer aplicação; conservar os inseticidas sempre afastados dos alimentos; lavar as partes expostas do corpo, antes de comer ou beber; não fumar, antes de ter-se lavado, pois há perigo de contaminação da área bucal; usar máscaras respiratórias aprovadas, ao trabalhar com compostos fosforados tóxicos ou outros inseticidas de alta concentração; limpar a parte da máscara que permite a respiração, lavando-a cuidadosamente antes de repor os filtros ou cartuchos que a compõem; enterrar o excesso de pó ou líquido inseticida não usado; queimar os invólucros vazios, em área aberta, tão logo possível; destruir e enterrar os recipientes metálicos vendidos com inseticidas, para evitar novo uso; armazenar os produtos tóxicos usados em seus recipientes originais, em lugares inacessíveis, principalmente a crianças e animais; cuidar da direção do vento, durante a aplicação, para reduzir a precipitação dos inseticidas em construções, criação e no próprio operador. Passados quase quarenta anos, a matéria poderia ser novamente publicada sem causar estranheza. Isso pode indicar que ou os riscos e as condições de uso desses produtos não mudaram, ou as ações centradas apenas em recomendações dessa natureza não foram suficientes para modificá-los. De certo modo, ambas as suposições são válidas. Em nosso entender, as condições para a utilização desses produtos pouco mudaram. De modo geral, com a saída do mercado de alguns agrotóxicos, 111 como os organoclorados, houve uma certa evolução em relação aos produtos disponíveis. Mas, mesmo assim, apesar de novas moléculas e formulações de menor persistência ambiental e toxicidade aguda terem sido produzidas, ainda são empregadas algumas substâncias muito tóxicas, sintetizadas há mais de quarenta anos e que, por seu largo espectro e relativo baixo custo, acabam sendo preferidas pelos agricultores, como o parathion. Os sistemas de aplicação desses produtos nas lavouras pouco evoluíram também. Além disso, apesar de uma legislação considerada moderna, as condições de distribuição e de acesso aos agrotóxicos, a carência generalizada de informações e assistência técnica e a ausência de controle das condições de uso desses produtos ainda persistem. Dessa forma, as práticas de trabalho e o uso de EPIs realmente ganham fundamental importância. Pode-se considerar que as práticas de trabalho geralmente recomendadas estão corretas, mas a sua capacidade para controlar a exposição dos usuários dos agrotóxicos é limitada, porque só podem trazer resultados efetivos se forem adotadas sob condições mínimas de segurança e higiene do trabalho, que normalmente não estão presentes nos ambientes do trabalho rural. Considerando-se que, quanto mais precárias as condições e o ambiente de trabalho, maior será o peso dessas práticas de trabalho para o controle de riscos e menor será a sua eficácia, e que algumas precauções necessariamente devem ser observadas diretamente pelos usuários dos agrotóxicos, em especial aquelas que dependem basicamente do seu papel como sujeito da ação que está sendo desenvolvida, duas questões se colocam: as recomendações são factíveis para todos os usuários de agrotóxicos? A simples transmissão dessas regras aos usuários garante sua aplicação? Quanto à primeira questão, vários aspectos podem ser apontados para evidenciar a dificuldade na aplicação de medidas de controle centradas no indivíduo sujeito aos riscos. Entre eles, destacam-se as circunstâncias de trabalho em ambientes abertos, características próprias de determinados cultivos e condições peculiares a pequenas propriedades. Sznelwar34 entende que as medidas de higiene e proteção representam tarefas adicionais e que não são vistas como necessariamente produtivas para realização do trabalho: “respeitar as prescrições representa uma sobrecarga de trabalho”. Mas o autor identificou que os trabalhadores estão dispostos a adotar precauções, desde que não sejam experienciadas como sobrecarga de trabalho, Bull & Hathaway6 entendem que as condições que deveriam predominar entre os usuários de agrotóxicos, para a adoção das medidas preconizadas são: alfabetização, para aproveitamento de informações escritas; disponibilidade equipamentos de proteção individual; disponibilidade de dinheiro ou crédito; der de negociação e segurança no emprego; acesso à água limpa (não contamina- 112 da por agrotóxicos). Suas conclusões são que, “para a maioria dos usuários de pesticidas do Terceiro Mundo, especialmente para os pequenos agricultores e trabalhadores sem terra, estas condições não existem e, com toda probabilidade, não existirão num futuro previsível. São condições sociais e econômicas que só serão alcançadas no processo de desenvolvimento a longo prazo”. No caso da maioria dos pequenos produtores, a adoção desses procedimentos depende não só da existência de condições para sua aplicação, mas também da compreensão da sua importância pelos próprios usuários dos produtos. Nesse caso, depara-se com a segunda questão colocada para discussão: a simples transmissão dessas regras aos usuários garante que eles as apliquem? Em geral, o “treinamento” é apontado como a principal estratégia para garantir a aplicação dessas recomendações pelos usuários. A informação é ferramenta imprescindível para a ação e a difusão, de informação é um meio de tornar o conhecimento disponível. Por isso, não temos dúvida quanto à necessidade de disponibilizar informação. Contudo questionamos a suficiência dos “treinamentos”; se considerados como a principal medida para o controle dos riscos no trabalho com agrotóxicos. Não temos a pretensão de discutir o caráter pedagógico ou metodológico dos “treinamentos”, mas procuraremos abordar, rápida e superficialmente, alguns pontos que, em nosso entender, interferem no aproveitamento dos conteúdos tratados nessas atividades. Um aspecto a ser observado é a heterogeneidade do público dos “treinamentos”. Muitas vezes, as recomendações são genericamente empregadas para qualquer público, sem considerar os diferentes interesses que existem na organização social e do trabalho no meio rural, prejudicando os resultados. Guivant15 questiona a forma como as informações são transmitidas. Ela observou em seu trabalho que várias recomendações não seguidas são conhecidas pelos agricultores e que isso ocorre justamente porque eles não acreditam que os agrotóxicos possam oferecer riscos. Assim, considera que “a limitada informação que os agricultores recebem não é suficiente para transformar suas percepções de risco nem suas práticas”. Ocorre que, em geral, as informações tornadas disponíveis ao usuário dos agrotóxicos restringem-se apenas ao que deve e ao que não deve ser feito, justificadas como as medidas necessárias para que não ocorram problemas indesejáveis durante o trabalho com o produto. No entanto, em geral, não se informamos motivos pelos quais as regras devem ser seguidas, ou seja, quais são os riscos de fato para a saúde do trabalhador, para o consumidor e para o meio ambiente, que devem ser evitados. Além disso, os agricultores manifestam desconfiança em relação às fontes dessas informações (“o técnico não tem nada a perder”), são refratários às informações que já possuem (“sentem-se tratados co- 113 mo ignorantes”) e adaptam-se aos riscos e às informações recebidas de acordo com suas percepções e situações.15 Às vezes, as recomendações dão a entender que podem acontecer intoxicações ou contaminações ambientais, mas raramente alertam para os efeitos adversos que podem advir do contato com o produto; além disso, nunca informam que danos à saúde, temporários ou permanentes, podem ser provocados. Enfim, evita-se chamar a atenção para os efeitos tóxicos dos produtos, o que ajuda a reforçar a idéia, entre os agricultores, de que o agrotóxico em si não traz riscos sérios. Hayes16 diz que “o primeiro requisito para treinamento em segurança é o reconhecimento do risco”. O autor comenta o quanto pode ser perigoso descaracterizar riscos em trabalhos com substâncias tóxicas. Superestimá-los pode trazer desconforto desnecessário no início e, depois, descrédito pelas recomendações infundadas. Por outro lado, subestimá-los pode levar à indiferença, desatenção, imprudência e negligência. Hayes argumenta que o trabalhador deve ser clara e honestamente informado, sem depreciação ou exagero, dos riscos a que está exposto: “a omissão disso é provavelmente o erro mais comum feito nas tentativas de treinamento de trabalhadores em questões de segurança”. E complementa: “A oraissão provavelmente ocorre pela noção errônea de que não aceitarão o trabalho se estiverem cientes de algum risco em particular, ou que demandarão pagamento extra ou outras considerações pelo risco”. Diz ainda que, no caso das substâncias químicas, o risco não é óbvio como em atividades que implicam perigos evidentes de injúrias por acidentes. Daí, “somente estando ciente dos riscos é que o trabalhador compreenderá a razão da necessidade das precauções e de procurar caminhos mais seguros para desenvolver cada operação”. A falta de razões que justifiquem as recomendações dificulta a compreensão e não motiva. Paulo Freire13 diz: Conhecer [...] não é o ato através do qual um sujeito, transformado em objeto, recebe, dócil e passivamente, os conteúdos que outro lhe dá ou impõe. O conhecimento, pelo contrário, exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo [...] É necessário que ele (o sujeito) reflita sobre o porquê do fato, sobre suas conexões com outros fatos no contexto global em que se deu. Afirma também o educador: “desafiados a refletir sobre como e por c/ue estão sendo de uma certa forma, à qual corresponde seu procedimento técnico, e desafiados a refletir sobre por que e como podem substituir este ou aquele procedimento técnico, estarão sendo verdadeiramente capacitados”. Dia ainda Freire: “Não é possível ensinar técnicas sem problematizar toda-a estrutura em que se darão essas técnicas”. Somente a compreensão da relação 114 entre as suas práticas de trabalho (como sujeito da ação), o processo produtivo e suas implicações para a saúde e o ambiente pode propiciar uma mudança de atitude do sujeito em relação ao trabalho e, até mesmo, ao uso de agrotóxicos. A necessidade de uma abordagem mais abrangente Embora o uso inadequado, de fato, possa ser considerado a principal causa imediata dos problemas decorrentes da utilização dos agrotóxicos, na verdade, ele é conseqüência de diversos outros fatores, como a forma de introdução dos agrotóxicos e o modelo de produção adotados pelo setor rural, a instabilidade da política agrícola e da estrutura agrária, a grande disponibilidade de produtos, o difícil acesso à informação técnica, as características ambientais, as condições sociais e econômicas da população rural e as condições e relações de trabalho no meio rural, entre outros. Assim sendo, intervir nessa realidade na busca de uma real modificação da relação entre o usuário e o produto não pode centrar-se somente sobre o aspecto de “ensinar” ao usuário como lidar com o produto. Além disso, pelos princípios da segurança e saúde no trabalho, as ações de controle de riscos não devem ser prioritariamente exercidas sobre os sujeitos expostos a esses riscos, mas sim sobre o ambiente e as condições de trabalho, incluindo, quando necessário, a intervenção sobre o próprio processo de produção. No caso da aplicação de agrotóxicos, há uma particularidade que é muito importante: é provavelmente a única atividade na qual a contaminação do ambiente de trabalho é intencional, e mais do que isso, é o propósito da atividade. Provavelmente, não há nenhuma outra atividade produtiva em que isso ocorra. Normalmente, as contaminações de ambientes de trabalho são indesejáveis e devem ser controladas, mas como proceder quando a contaminação é a finalidade da atividade? É claro que sob essas condições (impossibilidade de exercer controle direto sobre o ambiente de trabalho e contaminação proposital desse mesmo ambiente), as medidas individuais de proteção, como as práticas de trabalho e o uso de equipamentos de proteção individual, ganham particular importância. Porém, justamente pelas dificuldades que a aplicação dessas medidas encerram, as medidas coletivas de controle não podem ser colocadas em segundo plano, ou ser desconsideradas, como vem ocorrendo na atividade agrícola, cujas características sociais, culturais e de relações e organização do trabalho favorecem ainda menos a implantação das medidas individuais; os mesmos princípios e métodos da segurança e saúde no trabalho que justificam prioritariamente a aplicação de medidas de caráter coletivo devem ser considerados para o meio 115 rural. Além disso, nesse contexto, é fundamental discutir medidas que extrapolam o âmbito do usuário, incluindo a regulamentação e o controle da disponibilidade das substâncias mais tóxicas. Indo mais além, é essencial ampliar a discussão não só no sentido do enfoque do controle de riscos no uso de agrotóxicos, mas também no que diz respeito à adoção de sistemas de produção agrícola que impliquem menor necessidade desses produtos e até eliminar o seu uso, o que representa, de fato, o controle total do risco. Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 116 A EMATER-DF faz campanha pelo uso adequado. Defesa Vegetal, v.4, n. 7, 1984. ACIDENTES no Brasil vêm da falta de cuidado. Agricultura de Hoje, v.6, n. 67: p. 36-7, 1981. AGROTÓXICOS - quando tudo depende da racionalidade. Balde Branco, p. 10-14, fev. 1986. ANDEF no 1 Encontro de Empresários Rurais. Defesa Vegetal, v.3, n. 16, 1986. AVANÇO tecnológico contribui para o manejo integrado. A Granja, p. 34-35, jun. 1992. 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Mas eu luto aqui embaixo; e ninguém nem vê esses tormentos que me queimam nas noites do meu silêncio Arpád Tóth (poeta húngaro) Introdução E ste artigo analisa as bases teóricas do processo educativo que permeiam as práticas da prevenção e do diagnóstico, implementadas pelo Grupo de Educação do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador Salvador Allende (CESAT).3 A proposta deste trabalho se originou em 1996, buscando construir uma nova abordagem, enquanto alternativa para a atenção à saúde do trabalhador com suspeita de doença ou com doença do trabalho. Por essa ocasião, esse serviço era prestado pela Unidade de Atenção à Saúde do Trabalhador (UAST), por meio do Ambulatório de Doenças do Trabalho. Esse Ambulatório funcionava como o núcleo de atividades principais de apoio às demandas referidas, cujo objetivo prioritário consistia na busca de um diagnóstico preciso e na orientação do trabalhador em face da sua problemática. A partir de 1999, o CESAT4 passa a contar com uma nova estrutura organizacional composta de duas coordenações: a Coordenação de Vigilância de Am 1 Terapeuta Ocupacional do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador -CESAT); Profa do Curso de Terapia Ocupacional da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública; Especialista em Saúde do Trabalhador. 2 Professora Adjunta do Instituto de Saúde Coletiva - (ISC) da Universidade Federal da Bahia; Socióloga; Mestre e m Educação; Ph.D. em Sociologia. 3 O CESAT - Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador Salvador Allende está vinculado à SESAB Secretaria de Saúde do Estado da Bahia e desenvolve atividades conjuntas com o ISC / UFBA na área de formação através do Curso de Especialização da Saúde do Trabalhador (acordo ISC / UFBA / PISAT CESAT / SESAB). 4 O CESAT é um órgão da SUVISA - Superintendência de Vigilância e Proteção à Saúde (SUVISA), da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia e, desde 1988, responde pelas ações de Vigilância e Assistência à Saúde do Trabalhador. 119 bientes e Processos de Trabalho (COVAP) e a Coordenação de Atenção à Saúde do Trabalhador (COAST). Esta última substituiu a UAST e, atualmente, é responsável pela implementação do programa de Educação e Formação em Saúde do Trabalhador. Essas mudanças ocorridas nesse final da década de 90, na área da assistência à saúde do trabalhador, não foram por acaso. Tratava-se, por um lado, de um esforço conjunto no sentido de se ajustar institucionalmente, interna e externamente, os serviços prestados a essa clientela ao modelo da assistência da Vigilância à Saúde, preconizado pelo Sistema único de Saúde. Por outro lado, percebia-se que havia, simultaneamente, um aumento considerável do registro da demanda de pessoas apresentando doenças ocupacionais. Tal fato pode ter sido devido, provavelmente, aos diversificados fatores, desde aqueles relacionados com as dificuldades que os trabalhadores passam a experimentar no quadro de insegurança empregatícia e de direito da seguridade social, até aqueles que dizem respeito ao aumento da conscientização da importância de proteção à saúde, ou até mesmo ao fato de o setor saúde apresentar provável melhoria da oferta nos seus serviços específicos de atendimento às necessidades do trabalhador. O fato é que o aumento da demanda de serviços especializados para os trabalhadores provoca, no âmbito do CESAT, maiores esforços na elaboração de diagnósticos cada vez mais complexos, bem como a oferta aos usuários de uma atenção integral e multidisciplinar. Nesse sentido, a resposta se configurou nesta experiência de educação em saúde aqui ora exposta em análise. Por que uma educação em saúde para os trabalhadores - à guisa de justificativa de uma teorização para uma prática ambulatorial As propostas de práticas educativas em saúde para os trabalhadores que buscavam os serviços de assistência do CESAT, ora aqui apresentadas, dispõem de algumas características que as fazem diferentes, tornando-se uma alternativa às práticas até então vigentes no âmbito dos serviços de saúde. De uma educação higiênico-sanitária, que considerava os trabalhadores como meros receptáculos de receitas e conselhos sobre os tipos de comportamentos que deveriam observar, para que cuidassem do seu corpo doente, houve uma mudança a partir do período em foco. Fez-se necessário que se introduzissem elementos de uma prática pedagógica que viessem a resgatar o trabalhador como sujeito consciente das ações de sua saúde. Isso porque se sabe que a referência à Educação em Saúde, na década de 80, estava preponderantemente associada e vinculada à emissão de mensagens 120 (propagandas, cartilhas, filmes, palestras e cursos) sobre as recomendações com os cuidados pessoais que se devem ter para evitar doenças (Fagundes, 2000). Tratava-se de veicular informações que refletiam as visões de como se cuidar das doenças, enquanto problema exclusivamente individual, de origem biológica. Nesse sentido, a educação era um processo de aquisição e acúmulo de informações para serem usadas pelos detentores do saber, enquanto instrumento de convencimento, manipulação e normatização das populações pobres, no intuito de “educá-las” para terem hábitos higiênicos saudáveis. Essas abordagens de educação em saúde, hegemônicas até os anos 80, são ideologicamente comprometidas com um modelo assistencial “privativista” e buscavam introjetar valores de uma prática preventiva baseada no individualismo, bem como na adequação às normas e comportamentos considerados condizentes com o modelo de saúde dominante. Eram propostas que utilizavam também o modelo comunicacional de “emissor-receptor”. Ou seja, usava-se a informação para estimular uma resposta ao receptor, tendo na persuasão a condição necessária para despertar no indivíduo uma potencial “consciência sanitária” (Cyrino & Cyrino, 1997). Nessa perspectiva, os indivíduos doentes são focalizados como um receptáculo vazio e responsável por “sua doença”, ignorando os conhecimentos que, há mais de um século, vêem nas condições de vida e trabalho da população as origens dos adoecimentos (Valla e Stotz, 1994). Porém, o conceito de educação, segundo o dicionário mais importante da língua portuguesa divulgado no Brasil, é um “processo de desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral... do homem em geral, visando à sua melhor integração individual e social” (Aurélio, 1986, p. 619) e de saúde como sendo o “estado do indivíduo cujas funções orgânicas, físicas e mentais se acham em situação normal” .(Aurélio, 1986, p. 1556). O que se percebia nos serviços para a saúde dos trabalhadores e que as praticas que propunham educar para a saúde passavam distantes dos significados descritos acima, exercendo a chamada “educação bancária”, como apontava Paulo Freire (1999). Tratava-se de se “encher” os trabalhadores/educandos de conteúdos, de narrativas ou “palavras ocas”. Para se enfrentar a doença, seria suficiente a aquisição de informações sobre hábitos higiênicos e alimentares. É com as teorias de Paulo Freire, do seu método de educação popular e sua concepção de educação para a transformação, que, nos anos 70, ocorre a primeira aproximação de diálogo entre segmentos do setor saúde e as classes populares. Nessa perspectiva, no processo educacional, há diálogo que ocorre por meio de trocas e comunicação, cujo conteúdo programático da educação “não é uma doação ou uma imposição - um conjunto de informes a ser depositado nos educandos -, mas a devolução organizada, sistematizada e acrescenta- 121 da ao povo daqueles elementos que este lhe entregou deforma desestruturada” (Freire, 1999, p. 84). A Educação em Saúde é vista, então, como o campo de práticas e conhecimentos do setor saúde que se ocupa com a criação de vínculos entre a ação médica e o pensar e fazer popular (Vasconcelos, 1999). A discussão do campo da educação em saúde também é parte das preocupações da construção da Reforma Sanitária e seu desdobramento no âmbito do Sistema único de Saúde. Ou seja, as questões relacionadas com a educação são postas ao setor Saúde no bojo do processo de redemocratização política do Brasil, nos anos 80. A problemática da Educação em Saúde ocorre pelo processo de conscientização das causas e inter-relacionamentos das condições de vida e trabalho (educação, moradia, transporte, alimentação, lazer) como questão central no processo saúde/doença. Compete também à área da Educação em Saúde dar subsídios teóricos e metodológicos à participação da comunidade no controle do social. Ademais, o entendimento dos modos de vida dos vários e diferentes grupos sociais como fatores associados à qualidade de vida, especialmente no âmbito de específicas áreas geográficas, demanda uma maior integração e rearticulação entre a educação e saúde e as estratégias da promoção da saúde com esforços multidiciplinares e multisetorias (Fagundes, 2000). Por fim, duas outras áreas do conhecimento se tornam sobremaneira importantes: buscar entender não somente a ideologia implícita nos movimentos e processos pedagógicos, mas também os significados e representações simbólicas e culturais dos distintos grupos sociais. Ademais, se as várias disciplinas que compõem o elenco da saúde coletiva são básicas na Educação em Saúde dos trabalhadores, esta se torna efetiva através também do processo de “desmortização” do corpo do trabalhador. Ou seja, educar o trabalhador para a saúde implica não se alienar do seu corpo, revelando-o e sentindoo no processo de adoecimento e de reabilitação e cura. Em suma, perseguir processos pedagógicos de conscientização crítica e corporal, participação e democratização implica que os atores do processo sejam /se tornem sujeitos diferentes com saberes e conhecimentos diferenciados, porém com direitos eqüitativos de ser saudável e de receber assistência e atenção do Estado. A Educação em Saúde que ressurge nos anos 90 oferece possibilidade aos servidores da saúde, usuários e comunidade de se integrar à sociedade em construção, com um campo de conhecimento partilhado sobre as condições de vida e trabalho e de saúde e doença, permitindo que os problemas, ao serem compreendidos melhor, possam ser controlados, no exercício pleno da cidadania. Nesse sentido, a Educação em Saúde possibilita também a participação social pelo monitoramento e gerência dos recursos e meios de ação, na construção de propostas de desenvolvimento da comunidade e promoção da saúde (Valla. 1995). Ademais, segundo Vasconcelos (1999), a Educação em Saúde busca o diá- 122 logo entre servidor e usuário na valorização das trocas interpessoais, procurando dar ecos ao saber do interlocutor popular. As experiências educativas em saúde do CESAT ancoram-se na busca dessas trocas de saberes, resgatando a voz do trabalhador no seu sofrimento. Esse é um campo pouco explorado, pois pouco se tem dito sobre as “vivências e conhecimentos” do homem e da mulher trabalhadores, sobre a sua “lida” com as doenças, sobre seus sentimentos, percepções e representações, particularmente, quando eles perdem a sua saúde devido ao seu próprio labor. Pouco tem sido registrado e revelado sobre como são desconstruídos seus vínculos com a vida, com sua ocupação, sobre seu sofrimento e enfrentamento dos pareceres técnicos, que lhes conferem um novo estatuto, uma nova identidade. Por fim, pouco também foi dito sobre a condição de ser doente e/ou inválido, que paralisa uma trajetória de vida e imobiliza seres humanos produtivos, que ficam ao largo das discussões sobre sua nova condição, seu tratamento e seus direitos. As reflexões realizadas sobre a atenção à Saúde do Trabalhador mostram o quão incompleta e desarticulada é essa rede de atenção que lida com a patologia do trabalho, num contexto dominado pela lógica do “ser saudável” como sendo aquela do “ser produtivo”. A complexidade da relação dos homens e das mulheres trabalhadores com as faces do seu próprio que fazer de seres socialmente úteis e produtivos é “tratada” quase sempre no âmbito das patologias físicas e/ou mentais, quase nunca como uma questão social ou mesmo um dilema existencial, foro das significações que requereriam outros “tratamentos” e procedimentos educativos diferenciados. Em função dessa complexidade, a Educação no âmbito da Saúde do Trabalhador pode diminuir as distâncias entre os saberes técnicos dos servidores e o popular dos trabalhadores, de sorte que estes não sejam meros receptáculos de informação sobre seu estado de saúde e possíveis intervenções. Visa-se, também, a estimular e criar situações e processos de conscientização, de desalienação, de maneira dialógica e participativa quanto aos saberes, crenças e soluções a respeito de sua problemática na proteção e promoção da saúde e melhoria da qualidade de suas vidas. A experiência: objetivos, metodologia e atividades O Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador Salvador Allende, após consolidar-se como centro de diagnóstico de doenças do trabalho pelo Ambulatório de Doenças do Trabalho, implantou o Sistema de Vigilância de Saúde do Trabalho (VISAT), buscando o desvelamento do perfil de morbimortalidade ocupacional da população trabalhadora e o reordenamento das ações de controle e prevenção dos agravos relacionados com o trabalho, quer sejam levantados pelos trabalhadores, quer por outros mecanismos (Bahia, 1996). 123 Em 1996, espaços específicos de discussões coletivas entre os trabalhadores e servidores do CESAT eram buscados, sendo o primeiro deles o Grupo de Usuários Portadores de LER, seguido da Consulta Coletiva. É nesse espaço/contexto que se constrói o Grupo/Oficina de Terapia Ocupacional, planejado para ser um trabalho grupal aberto a todos os usuários do CESAT/ Ambulatório que tivessem interesse em refletir sobre sua trajetória ocupacional: seu trabalho, lazer; atividades domésticas, relacionando-os com o processo saúde/doença, na perspectiva da Educação em Saúde. Grupo de Terapia Ocupacional Esse trabalho se origina em 1996, buscando construir uma nova abordagem, outra alternativa na atenção ao trabalhador que procura o CESAT com suspeita de doença ou com doença do trabalho. Sair do espaço específico da assistência, da clínica, foi em princípio, um esforço gerado pela percepção do quanto a relação terapeuta/paciente e o espaço de um serviço de saúde servem para referendar o lugar de doente (e da doença). Essas práticas não ofereciam alternativas ao trabalhador de repensar suas relações de trabalho e modos de adoecer. Dessa maneira, contribuía-se para aumentar a identificação com as representações/construções científicas sobre o doente, distanciando-o do seu saber e da busca de uma vida com qualidade. O Grupo de Terapia Ocupacional, proposto no âmbito do CESAT como Oficinas do Fazer - um espaço de reflexão/construção sobre o fazer humano enfoca o cotidiano (atividades de trabalho, lazer e auto-cuidados) em sua relação com o processo saúde/doença do trabalho. A Terapia Ocupacional para Maximino. (1995, p. 29) “é iminentemente social, pois o fazer é sempre um ato social. Os homens se juntam para fazer coisas e o fazer junto cria um tipo especial de relação, um identificar-se pela ação ou por seus objetivos em comum. Aquilo que é feito, o é em um mundo compartilhado”. O Grupo de Terapia Ocupacional, como grupo de atividades, é desenvolvido em grupos de trabalhadores, com doenças do trabalho (asma ocupacional, LER, hérnia de disco, PAIR), interessados em fazer uma reflexão sobre a reação entre as suas condições de vida e trabalho e a saúde e doença. A Educação em Saúde foi pensada, nesse contexto do Grupo de Terapia Ocupacional, para oferecer oportunidades de construção de um campo de conhecimento partilhado entre profissionais da saúde, usuários e comunidade, sobre as condições de vida e de trabalho e a saúde e doença. A Educação em Saúde traz a possibilidade de reduzir as distâncias entre os diversos saberes, bem como entre terapeutas e usuários do serviço de saúde. Nesse sentido, busca-se oferecer 124 ao trabalhador não apenas informação sobre seu estado de saúde e possíveis intervenções, como também criar situações dialógicas, que possibilitem a convergência de saberes, crenças e soluções a respeito dos problemas. A educação pode permitir a desocultação das práticas pelo diálogo “... a educação ou ação cultural em vista duma libertação é uma práxis social; faz-se e refaz-se ela própria no processo autêntico da sua própria existência” (Freire, 1974, p. 54). Nessa perspectiva, a Educação em Saúde do Trabalhador é entendida como a construção partilhada de saberes e práticas, pela comunicação/interação entre usuários e servidores acerca do processo saúde/doença do trabalhador, objetivando “preparar pessoas, em diferentes contextos sócio-culturais, para serem capazes de maneira consciente de decidir as suas ações, em direção a uma melhor saúde pessoal, familiar e coletiva” (Pereira, 1995, p. 488). As Oficinas do Fazer buscam promover a reflexão e ressignificação do fazer humano em sua relação com o processo saúde/doença no trabalho. Isso implica a valorização do fazer como uma forma de expressão não verbal do mo do de estar e perceber o mundo. Implica, também, que o próprio fazer deve ser a referência do trabalho nas oficinas. A dinâmica desse trabalho, pensada para ser desenvolvida com grupos de trabalhadores interessados em refletir sobre o seu que fazer, foi montada em torno de uma programação temática, que enfoca o sujeito em sua relação com seus fazeres cotidianos (atividades de trabalho, autocuidado e lazer). A perspectiva utilizada foi a de construir um campo propício ao surgimento das lembranças e histórias desses fazeres, relacionando-os com os modos de viver e de adoecer, tendo os seguintes objetivos; • possibilitar ao trabalhador construir uma melhor compreensão sobre a relação entre as condições de vida e de trabalho e a saúde/doença do trabalho; • estabelecer maior aproximação entre usuários e profissionais de saúde em busca de uma relação horizontal, com trocas de informações. O trabalho grupar “Oficinas do Fazer” foi planejado, então, para ser desenvolvido em três meses, com um encontro semanal, de uma hora e trinta minutos de duração, em torno de temas que abordam o sujeito na sua relação com o fazer, tais como: Vocação e Trabalho, Lazer e Prazer, O Corpo e os Sentidos, Criatividade nos Espaços Cotidianos, Criação de um Novo Fazer. As atividades laborativas (construção de textos), de lazer (brincadeiras, mímicas) e autocuidados (cuidar dos cabelos, banho, atividades domésticas, entre outros) construídas durante os encontros, possibilitam que, na ação, apareçam os vários modos de fazer essas atividades, suas escolhas, opções, imposições e automatismos, permitindo ao corpo despertar e falar dos desejos e dos maus-tratos que ocorrem no contexto do processo/mundo do trabalho. 125 Ao analisarmos a lista dos participantes inscritos para o grupo, que já ultrapassava cem pessoas, constatamos que a maioria era de portadores de Lesões por Esforços Repetitivos (L.E.R.), do sexo feminino, abrangendo uma variedade de categorias profissionais como: comerciárias, bancárias, cozinheiras da rede hoteleira, caixas de supermercados, escriturárias, auxiliares de enfermagem. Por que só portadores de L.E.R. se interessaram por essa oficina? O que tal fato significava? O que essas pessoas estavam pedindo? Não e nosso escopo responder aqui a essas questões, mas sugerir que elas permearam as nossas práticas e decisões. Após algumas alterações na programação; que incluía a discussão sobre a dupla jornada de trabalho da mulher, iniciamos o trabalho, sabendo que era preciso escutar essas pessoas, as histórias de suas vidas e inseri-las, como parceiras, na construção da abordagem. As apresentações iniciais dos membros do grupo mostravam a necessidade que elas tinham de falar dos sofrimentos, das humilhações, dos projetos de vida e da nova identidade social, decorrente do adoecimento: “eu sou Maria, tendinite é o meu caso; eu sou Antônia, sindrome do túnel...” falavam até num planeta L.E.R., onde viviam. Diante da desestruturação das atividades profissionais, sociais, domésticas e familiares, o refúgio no mundo da patologia permitia um certo reconhecimento social, ainda que de “incapaz”, mas não de “lerdo” ou inútil, como habitualmente são tratadas nos ambientes profissionais e até familiares. Uma nova prática se construía no contexto do CESAT: essas mulheres ganhavam um espaço próprio para falar de si mesmas. Ao falarem, percebiam o quanto suas falas eram as falas dos especialistas, eram falas referentes a um corpo doente, fraco, “máquina quebrada”, fornecidas pelos diagnósticos, mas também falas que faziam pedidos outros, de outras explicações: “... meu lado direito está morto.” “... meu marido diz que eu estou morta, só falta enterrar.” “... é tanta dor que já perdi o coração.” Dores que falam dos desamores e desencantos pelas explorações no trabalho e que recorrem ao poeta para gritar e pedir socorro: "... eu fico com essa dor ou essa dor tem que morrer\ a dor que nos ensina e dá vontade de não ter [...] eu curo este rasgo ou ignoro qualquer ser\ sigo enganado ou enganando meu viver...” (Melodia, 1999). As atividades laborativas, de lazer e autocuidados, implementadas durante os encontros, possibilitavam que na ação aparecessem os seus modos fazer, as escolhas, opções, imposições e autornatismos. A comunicação do fazer pelas atividades lúdicas (mímicas, dança), pelas atividades expressivas (colagens, pinturas) despertava o corpo e elas falavam dos desejos reprimidos e maus-tratos freqüentes no dia-a-dia de um trabalho mecânico, reiterativo. A ex- 126 periência em grupo permitia que o sofrimento ao ser espelhado (refletido) fosse percebido como coletivo. O grupo, então, foi tomando forma, corpo, uma identidade grupal, um corpo social que exigia e que foi em busca de mudanças com vontade de ressignificar o viver, de aprender a conviver com as limitações, de planejar uma nova forma de fazer as atividades cotidianas. “... reencontrei a leitura, tenho outros sentidos para viver.” "... busco hoje um novo estilo de vida, de trabalho.” "... me arrumo pra vir pro CESAT como se fosse para uma festa.” "... posso trazer música. "... quero conhecer este Melodia... quero aprender esta música.” Essas experiências possibilitaram que novas ações passassem a ser implementadas, tais como: • Sala de Espera • Triagem Coletiva • Grupo de Qualidade de Vida As atividades em questão se caracterizam por apresentarem três princípios: 1. são ações que se desenvolvem sempre com um coletivo de trabalhadores; 2. são ações multiprofissionais; os profissionais que as conduzem estão sempre em duplas de categorias profissionais diferentes; 3. são buscadas sempre as relações de troca, de interação de saberes e de conhecimentos sobre as condições de saúde e doença no trabalho. O trabalho grupal aqui também foi o recurso escolhido para operacionalizar essas propostas, pelas vantagens que essa forma de prática oferece às construções coletivas, uma vez que funciona como um intermediário e uma mediação entre o sujeito e a sociedade. O grupo pode oferecer um espaço potencial, campo de proteção às experimentações, funcionando como espaço por excelência de apreensão de novas experiências, vivências e ressignificações. A atividade grupal possibilita que as questões individuais avancem para uma perspectiva coletiva quando se estabelece uma identidade grupal. Sala de Espera A sala de espera de um serviço de saúde é o espaço que a clientela habitualmente tem usado para trocar informações entre si sobre seus problemas. Espaço do primeiro contato do trabalhador com a instituição, das primeiras impressões, dos receios, dos primeiros temores não ditos, desconhecimentos e desconfiança que uma demanda de ajuda suscita. Esse espaço tem sido pouco utilizado pelos serviços de saúde para iniciar a interação com o cliente. O trabalhador 127 que procura o CESAT vem referenciado pelo sindicato da categoria, pelo médico assistente, por outros trabalhadores e por empresas, buscando “uma clínica que cuida de doença ocupacional”, “os colegas falavam que vinham pra cá [CESAT] e se encostavam”, “protege o trabalhador, só sei disso, é a primeira vez que venho. Fui encaminhado pela firma”. É por essas características que a sala de espera torna-se, por excelência, um espaço de acolhimento do usuário e de interação com os profissionais de saúde. Nesse sentido, busca-se facilitar a troca de informações e o diálogo entre técnicos e usuários. A sua operacionalização ocorre pela discussão no grupo das questões trazidas pelos trabalhadores, referentes à instituição, aos demais órgãos e a outros temas relacionados com a problemática da Saúde do Trabalhador, tais como: notificação das doenças e preenchimento da Comunicação de Acidente e Doença do Trabalho (CAT), conceitos de doença e de acidente do trabalho; entre outros. Essa atividade é desenvolvida pelos estagiários, servidores e usuários, no Ambulatório, diariamente, durante uma hora no primeiro momento do turno de atendimento ao público. São utilizados, como recursos de educação e comunicação em saúde, a apresentação/discussão de cartazes, da Cartilha de Saúde á Trabalhador (SESAB/CESAT,1997) e outros. Triagem Coletiva Trata-se de uma atividade grupal, oferecida a todo trabalhador que procura o CESAT pela primeira vez, como resposta à necessidade de redefinição fluxo no atendimento prestado à clientela. A triagem tem como característica principal o atendimento imediato a todos os trabalhadores quando de sua chegada ao serviço; envolvendo a equipe multidisciplinar. São objetivos da Triagem Coletiva: a) triar os trabalhadores a serem atendidos pelo serviço; b) situar o trabalhador acerca da função do CESAT, esclarecendo sobre as demandas passíveis de atendimento; c) oferecer informações previdenciárias e outras referentes a questões, de Saúde do Trabalhador; d) orientá-los a buscar outros serviços quando necessário. A Triagem Coletiva é realizada nos dois turnos de funcionamento do ambulatório, por um profissional médico e um dos profissionais das áreas de serviço social, enfermagem, fisioterapia ou terapia ocupacional. São utilizados recursos visuais (transparências), contendo informações acerca da doença e do acidente de trabalho, da legislação previdenciária, trabalhista e do campo da saúde do Trabalhador. 128 Durante a triagem coletiva, são feitos encaminhamentos de três ordens: 1. marcação de consultas (médicas, nutrição, serviço social, enfermagem, terapia ocupacional, fisioterapia) para usuários com suspeita de doença ocupacional; 2. preenchimento de Laudo de Exame Médico/Comunicação de Acidente de Trabalho (LEM/CAT), para empresas que não dispõem de serviço médico; notificação de doença ocupacional; 3. orientação para procura de outros serviços, quando da ausência de exposição ocupacional. Grupo de Qualidade de Vida Os Grupos de Qualidade de Vida, que se caracterizam por serem grupos de discussão e reflexão com portadores L.E.R., foram criados em 1992, no Programa de Saúde dos Trabalhadores da Zona Norte (PST/ZN) do município de São Paulo (Lima e Oliveira, 1997) e vêm se consolidando como uma das possibilidades de atenção aos portadores das Lesões por Esforços Repetitivos (LER). No CESAT, esses grupos estão sendo desenvolvidos desde 1998 e buscam levar informações aos trabalhadores portadores de patologias osteomusculares, para ampliar a sua compreensão sobre o processo que envolve a relação saúde e doença no trabalho. Os temas abordados foram identificados a partir das sugestões dos trabalhadores durante a Triagem Coletiva e incluem discussões sobre fisiologia da dor, fisioterapia, nutrição, cirurgia, legislação, entre outros. Os grupos são fechados (não são permitidas entradas de novos membros após o seu início) e contam com oito a dez trabalhadores, de diversas categorias profissionais que, durante dois meses, realizam oito encontros. O trabalho é coordenado por três profissionais fixos (terapeuta ocupacional, fisioterapeuta e assistente social) que convidam outros, de diversas áreas, a depender do que a temática exigir. São usadas como facilitadoras do processo diversas técnicas de relaxamento e correção postural. Resultados e discussão Quando da chegada dos trabalhadores aos diferentes espaços e nas diversas atividades, eles nos trazem duas grandes marcas: um corpo sujeitado e sentimentos de exploração, características das lutas no mundo do trabalho. Os sofrimentos decorrentes das explorações explodem, jorram quando as oportunidades para expressão são dadas: 129 “Me pisaram, era tímida, só queria trabalhar; dei tudo de mim, cheguei a desmaiar de fome para não abandonar o posto.” “Já fui para os empresários uma secretária insubstituível, hoje sou imprestável.” “Fui tudo enquanto tinha tudo para dar:” “Meus vinte anos de trabalho, minha vida, estão em uma caixa de papelão, enviada pela empresa com todos os pertences que ficavam na minha escrivaninha.” Nos desenhos de auto-retrato, realizados nos grupos, são encontradas, com freqüência, as dificuldades na representação da própria imagem corporal: armaduras em lugar do corpo, modelos/manequins com mãos escondidas substituindo corpos sem vida. Outras vezes são corpos transparentes, cabeças enormes corpos quadrados que surgem: "Meu corpo não pode falar, apanhei muito de minha avó... fui obedecendo até hoje.” “Eu levo tudo que sinto, que me fazem, para o corpo... fico pequenininha encolho toda.” “Não me olho mais no espelho, me sinto feia, culpada, não sou mais útil. As relações/interações estabelecidas no contexto dos grupos permitir uma coconstrução do trabalho, refletida no surgimento de novos temas e mudanças de papéis; o terapeuta/educador se tornou aprendiz; o paciente/aluno mestre. Novos pedidos são formulados, novas possibilidades são vislumbradas: “A diferença básica, entre este trabalho (tarefas do grupo) e os outro; é a realização, a criação, a liberdade, o respeito às diferenças.” “Não via porta, a gaiola era minha dor, o grupo conseguiu me libertar da L.E.R.” “Vamos discutir formas saudáveis de trabalhar?” “O que podemos fazer deforma diferente?” Novos temas foram sugeridos: “... estou perdendo o marido; é tanta dor que não consigo ter prazer “... como enfrentar esta situação? Como ser mulher nesta situação?” Nas “aulas”, os grupos denominavam assim os encontros grupais, for sendo desconstruídas representações de saúde e doença, de benefícios sobre doença, permitindo que o setting institucional e os problemas de saúde recebe sem uma nova conotação. A experiência em questão está sendo desenvolvida há quatro anos. Ao todo foram realizados quinze grupos, tendo em média seis trabalhadoras em cada um. Nos quinze grupos, apenas um contou com a presença de um trabalhador com L.E.R. Das trabalhadoras, que participaram dos grupos, apenas quatro 130 tinham outras doenças do trabalho, porém todas apresentavam muito sofrimento psíquico. Ao término de cada grupo, o trabalho era avaliado, buscando a validação consensual das trabalhadoras. Utilizamos, nesse processo, os trabalhos construídos ao longo das “aulas” (pinturas, desenhos, cartas, etc.) e as falas dos membros do grupo durante as tarefas e sobre elas. As avaliações demonstraram, até aqui, que esse trabalho trouxe benefícios, com repercussão em várias instâncias da vida dessas trabalhadoras. Como desdobramentos, tivemos, entre outros, o envolvimento das trabalhadoras em organizações de cunho social, voltadas para os interesses desse coletivo. Conclusão e recomendações Nesses quatro anos de construção desta proposta de trabalho, algumas conquistas, tanto no âmbito do trabalho institucional quanto entre os trabalhadores usuários do serviço, foram percebidas. Ocorreram mudanças no olhar dos profissionais de saúde sobre o enfoque coletivo da abordagem ao trabalhador. Tal fato está permitindo uma interlocução/aproximação entre trabalhadores e usuários, que, partilhando das trocas de saberes e conhecimentos, autorizam-se a questionar o setting institucional e suas práticas fragmentadas, provocando a necessidade de mudanças. Observamos o quanto a mudança de “lugar e de papel do educador”, em sua relação com o “educando”, pode produzir transformação no modo de o trabalhador sentir seu corpo, perceber sua doença e se tornar sujeito de sua própria vida. Freire, já há tempos, com a Pedagogia da Libertação, chamava a atenção para a importância do diálogo nos processo educativos, como formador de sujeitos, cujos princípios a nossa equipe persegue na aplicação do setor saúde do trabalhador. Referências 1. 2. BAHIA-SESAB-CEAST: Manual de normas e procedimentos técnicos para a vigilância da saúde do trabalhador. Salvador: SSA, 1996. . ____.Cartilha da Saúde do Trabalhador, SSA, 1997. CYRINO, A.; CYRINO E. Integrando comunicação, saúde e educação: experiência do UNI - Botucatu. Interface, v. 1, n. 1, p. 157-168, 1997. 131 3. FAGUNDES, Terezinha de Lisieux Q. Os sujeitos da educação na promoção da saúde. Adade: Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, 2000. Mimeogr. 4. FERREIRA, Aurélio Buarque. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 5. FREIRE, P. Uma educação para a libertação. Porto: Gráfica Firmeza, 1974. ______.Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 6. LIMA, A.; OLIVEIRA, F. Abordagem psicossocial da LER: ideologia da culpabilização e grupos de qualidade de vida. In: CODO, W; ALMEIDA, C. (Orgs.) L.E.R. Lesões por Esforços Repetitivos, Petrópolis: Vozes, 1997. 7. MAXIMINO, V S. A constituição de grupos de atividades com pacientes graves. Rev. C.E.T.O., São Paulo, v. 1, 1995. 8. MELODIA, L. Dores e amores, CD-ROM, Luis Melodia Acústico, ao vivo. 1999. 9. PEREIRA, M. Epidemiologia teoria e prática. Rio de Janeiro: Kogan, 1995. 10. VALLA, V.; STOTZ, E. (Orgs.). Educação, saúde e cidadania. Petró polis: Vozes, 1994. 11. VASCONCELOS, E. Educação popular nos serviços de saúde. São Paulo: Hucitec, 1999. 132 A FORMAÇÃO EM ERGONOMIA: REFLEXÔES SOBRE ALGUMAS EXPERIÊNCIAS DE ENSINO DA METODOLOGIA DE ANÁLISE ERGONÔMICA DO TRABALHO Francisco de Paula Antunes Lima1 “L'art de l'observation consiste a découvrir le grand dans le petit.” (Goethe) “... ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas a raiz para o homem é o próprio homem.” (Marx) Introdução E m um evento recente, os ergonomistas brasileiros foram convocados a refletir sobre o seguinte tema: “Como a noção de ‘atividade de trabalho’ é bastante complexa, a sua compreensão (apreensão) por parte dos ‘formandos’ exige um difícil processo de ‘transformação de suas representações’ (Jackson e Abrahão, 2000). Nessa proposição, há pelo menos dois termos que nos conduzem ao cerne do debate sobre a formação em análise ergonômica do trabalho: a) a complexidade da atividade que deve ser apreendida e compreendida; e b) a transformação das representações do formando ou de quem analisa o trabalho de outrem. Todo processo de aprendizagem implica de forma inseparável: a) aquisição de atitudes, levando a certas mudanças de comportamento; e b) aquisição de conteúdos, mudando conhecimentos sobre certos fenômenos e modificando a prática do formando. Isso vale para as aprendizagens voltadas quer para objetos técnicos quer para realidades sociais, como é o caso do trabalho. Toda aprendizagem é, portanto, simultaneamente aquisição de conhecimentos, desenvolvimento de habilidades práticas e formação pessoal.2 Ora, um dos temas centrais da Ergonomia é precisamente a questão da natureza das diversas competências manifestadas durante a atividade de trabalho e 1 Engenheiro Mecânico/Produção; Doutor em Ergonomia UFMG - DEP - Laboratório de Ergonomia ANTHROPOS. 2 A separação instituída pelo movimento escolanovista entre conteúdos e capacidades cognitivas ou atitudes é inadequada para retratar o processo de formação que necessariamente envolve esses dois aspectos de forma inseparável. Sobre isso, ver Duarte, 2000. , 133 o processo de sua aquisição. O que vemos no trabalho de outros pode nos ajudar a analisar o nosso próprio trabalho: o de analisar a atividade. Saberes e competências Hoje, com as mudanças que ocorrem na forma de organizar a produção e o trabalho, reconhecem-se três formas de saber colocadas em prática no trabalho: ... o <<saber fazer>>, que recobre dimensões práticas, técnicas e científicas, adquirido formalmente (cursos/treinamento) e/ou por meio da experiência profissional; o <<saber ser>>, incluindo traços de personalidade e caráter, que ditam os comportamentos nas relações sociais de trabalho; o <<saber agir>>, subjacente à exigência de intervenção ou decisão diante dos eventos (Leite, 1996. Ver também Zarifian, 1991). No campo da Sociologia, essas formas de saber ainda são consideradas de modo relativamente separado. No interior da Ergonomia ou próximo dela, essas competências sociais e relacionais já foram colocadas em evidência em muitos estudos que mostram uma interpenetração entre saberes técnicos e sociais. Du raffourg, Francescon, Martin e Savereux (1993) identificam quatro níveis de competências na atividade de trabalho (cf. Figura 1). Os autores se servem desse modelo para explicar a aquisição de competências por trabalhadores da construção civil: 134 Ao contrário de uma idéia corrente, a construção de competências não se realiza através de ampliações sucessivas do centro para a periferia. No entanto, os programas deformação o deixam entender, como se o oficio resultasse unicamente da aplicação de competências técnicas (saber fazer a massa, usar o prumo...). Em verdade, a aprendizagem começa antes mesmo de chegar ao canteiro. Ela prossegue, no momento da entrada, através da aquisição de referências espaciais e temporais necessárias aos atos de cooperação, de colaboração, e de trocas de experiências (de trabalho e de vida), elas mesmas indispensáveis para a eficácia das ações técnicas (Duraffourg et al., 1993). A circulação entre esses diferentes níveis de competências no interior da atividade foi analisada com mais detalhes por Y. Schwartz (1998), que identifica seis níveis ou ingredientes da competência. I) Conhecimento dos protocolos: é constituído pelas regras que integram a atividade de trabalho, cuja principal propriedade é o poder de prefigurar as arquiteturas do trabalho futuro. Trata-se, aqui, do “prodigioso poder do conceito, o privilégio da ‘concepção’ (como oposta à ‘execução’), de representar in absentia efeitos, circuitos, procedimentos” (Schwartz, 1998). É o caso dos regulamentos jurídicos, dos conhecimentos de Matemática ou dos parâmetros de um processo de produção. Em contrapartida, essas regras anulam o que, nas situações de trabalho, é histórico e singular. II) Conhecimento da historicidade das situações: nesse nível, consideram-se as singularidades das situações que não são tratadas de maneira uniforme. Reconhecem-se as variabilidades e microvariabilidades presentes mesmo nas situ ações mais autorizadas. “Não existe situação de atividade que não seja afetada pela infiltração do histórico no protocolo. Isso requer, portanto, uma forma de competência ajustada ao tratamento dessa infiltração, tratamento por definição jamais padronizado e que, por isso mesmo, reforça a contingência da situação” (Schwartz, 1998). Em conseqüência, os trabalhadores devem recompor as suas tarefas, manifestando-se a distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real. Aqui, estabelece-se uma relação diferente com o tempo, que é propriamente histórico, o que é negado pelo ingrediente I. III) Nas situações reais, nenhuma atividade está desprovida de um ou de outro desses dois ingredientes, que aparecem como pólos extremos entre os quais cabem as mais variadas nuanças. Assim, o terceiro ingrediente da competência “pode ser definido como capacidade e propensão variáveis para ‘estabelecer uma dialética’ ou uma consonância entre os dois primeiros” (Schwartz, 1998). A competência se mostra como facilidade em lidar com os dois ingredientes an- 135 teriores, quer confrontando a regra aos casos particulares, quer tomando decisões no momento oportuno. Para isso, é necessária uma certa implicação pessoal e do corpo próprio no trabalho, ou um “uso de si por si mesmo”. IV) Um quarto ingrediente decorre dessa implicação necessária no trabalho, que nunca é algo determinado apenas pela coerção exterior. Refere-se à atribuição de valores nas situações de trabalho ou à relação entre atividade e valor. Esse ingrediente implica uma “modulação” entre a pessoa e suas próprias normas e o meio e as normas externas, em situações sempre particulares, pelas quais o trabalhador busca imprimir uma imagem própria ao trabalho. Isso torna questionável qualquer julgamento externo absoluto (ou científico) sobre a atividade de outrem. V) A força da motivação para o saber constitui um quinto ingrediente: desejo da qualidade e de aquisição de conhecimentos pelos assalariados, o que favorece o esforço de aprendizagem necessário para efetivar os ingredientes anteriores. Essa é a base da cooperação entre colegas, que ultrapassa a definição formal da tarefa e do cargo. VI) Finalmente, não há atividade sem uma certa qualidade sinérgica entre individualidades sociais: este ingrediente está sempre presente em trabalhos coletivos, sendo necessário para assegurar a complementaridade dos diversos ingredientes da competência. Implica avaliar a si mesmo, suas competências e as dos colegas, a fim de ajustar as estratégias coletivas de ação. De nossa parte, já tentamos mostrar que toda atividade de trabalho é intrinsecamente ordenada e orientada por certos valores éticos, relacionados tanto com os critérios de eficiência (quantidade e qualidade, economia) quanto com os sociais (relação com colegas e chefias) e pessoais (senso de profissionalismo, autoimagem) (ver Lima, 1993, 1994 e 1995). O que se passa na atividade de trabalho analisada pelo ergonomista também deve ocorrer na própria atividade de análise do trabalho de outrem. Assim, o que orienta a nossa reflexão é a seguinte questão: há algo no objeto da ergonomia a atividade e sua complexidade - que determine necessariamente a transformação de representações do formando no processo de formação? Algo sem o que não se poderia falar em aprendizagem efetiva da análise ergonômica do trabalho? Sabemos que responder a essa questão requer resolver várias outras, como a noção de representação, objeto de outras disciplinas, ou mesmo o que se entende por “análise ergonômica do trabalho”, em relação à qual não há consenso no interior da própria disciplina. Sem pretender resolver essas questões subjacentes, limitamo-nos, aqui, a estabelecer algumas referências que assinalem a perspectiva que adotamos. Destarte, tratar da questão da formação em Ergonomia implica, antes, definir a própria Ergonomia e o que lhe é essencial. Noutros; 136 termos, o que diferencia a Ergonomia e o ergonomista de disciplinas e práticas vizinhas (Medicina e Higiene do Trabalho, Segurança do Trabalho, Engenharia de Produção e Administração), com as quais, por vezes, disputamos o mesmo campo de ação? De que Ergonomia se trata? Dependendo de como se defina a Ergonomia, a questão da formação pode receber respostas distintas. Se Ergonomia for compreendida como biomecânica, a formação deve privilegiar conteúdos da fisiologia humana, a prática do ergonomista não se distinguindo fundamentalmente daquela da terapia ocupacional ou mesmo do fisioterapeuta. Nesse caso, a metodologia deve se apoiar fortemente em habilidades de medição, usos de instrumentos, elaboração de protocolos de experimentação e seu controle. Se se entende a Ergonomia como psicologia cognitiva aplicada, os processos psicológicos, em especial os processos cognitivos, constituirão o principal conteúdo da formação, acompanhados de seus respectivos (e similares) aparatos metodológicos. Em geral, a Ergonomia é definida como a soma de tudo isso, como um conjunto de conhecimentos aplicados ao trabalho? É essa a definição que predomina se tomamos como referência as publicações, o que se discute nos congressos e a maioria das intervenções práticas nas empresas. Basta folhear os anais de qualquer congresso nacional ou internacional para verificar essa multiplicidade de orientações, o que torna quase impossível identificar uma base conceitual e prática comum ao campo da Ergonomia. É também evidente, por outro lado, que a Ergonomia, caracterizada de forma multidisciplinar, implica seu desdobramento em subespecialidades, abarcando da fisiologia humana à teoria das organizações (Macroergonomia), passando pela Psicologia Cognitiva. Apesar de se reconhecer essa diversidade de posições, há tentativas de delimitar de forma mais rigorosa qual é a especificidade da Ergonomia, partindo, inicialmente, da definição geral - uma disciplina voltada ao estudo e à transformação do trabalho. Nessa tentativa de explicitar a identidade da abordagem ergonô- 1 Wisner adota esta definição que se popularizou entre os ergonomistas brasileiros: a ergonomia “é o conjunto de conhecimentos científicos relativos ao homem e necessários para a concepção de ferramentas, máquinas e dispositivos que possam ser utilizados com o máximo de conforto, segurança e eficácia. A prática ergonômica é uma arte (como se diz da arte médica e da arte do engenheiro) que utiliza técnicas e se baseia em conhecimentos científicos. Esta prática é caracterizada por uma metodologia” (Wisner, 1987, p. 12). Essa definição assume como pressuposto o quadro institucionalizado de separação entre ciências fundamentais e ciências aplicadas. O essencial da Ergonomia passa a ser a metodologia: “Talvez devamos decidir-nos a aceitar que a ergonomia não seja uma ciência, e sim uma arte alimentada por métodos e conhecimentos originários da pesquisa científica, e a nos comparar, com toda a modéstia, aos médicos e aos engenheiros” (Wisner, 1994, p. 105). 137 mica, duas formas de reducionismo, a biomecânica e a cognitivista, são facilmente identificáveis e já foram amplamente criticadas (ver Daniellou, 1985; Theureau, 1992; Wisner, 1994a e b, e o número especial de Le Travail Humain, 1991). Um outro desvio igualmente perverso é quando se adota uma definição pragmática, tentando caracterizar a Ergonomia pela especificidade do método ou pelo objetivo de transformação prática das situações de trabalho. Ao atribuir a prioridade à metodologia de análise do trabalho, a questão de delimitação de um objeto passa a ser secundária assim como os conhecimentos que sustentam a prática. Dessa forma, a disciplina adquire feições de ciência aplicada, deixando de ser um campo relativamente autônomo de produção de conhecimento, que seria fornecido por outras disciplinas fundamentais.4 Temos, então, de um lado, uma definição abrangente, mas eclética, que leva à reposição dos reducionismos na prática cotidiana dos ergonomistas. O ecletismo não responde à questão da identidade da Ergonomia. Basta constatar que nenhuma base comum se estabelece entre as diversas especialidades. Posto isso, temos como abordar o problema da prática da formação do ergonomista, problema que está diretamente relacionado com a definição prévia da disciplina: dependendo de como se entende a especificidade da ergonomia, há respostas diversas sobre como se devem formar os ergonomistas. O campo específico da Ergonomia Toda ciência ou campo relativamente autônomo de produção de conhecimento se caracteriza por um objeto, um método e uma prática (ou tecnologia) específicos. No caso da Ergonomia, uma definição possível, abrangendo esses três aspectos, poderia ser a seguinte: seu objeto de estudo (e da prática) é a atividade em situações de trabalho, um campo mais circunscrito do que o pretendido pela definição genérica de estudo do trabalho. Nesse ponto, a Ergonomia produz conhecimentos e conceitos relacionados com a ação e com a cognição situadas, compartilhados com outras disciplinas que também se interessam em desenvolver uma praxeologia empírica (Pinsky & Theureau, 1987), isto é, uma reflexão sobre a prática construída a partir de situações reais, que caminhe pari passu com a metodologia de observação e de análise. Em relação ao método, que está organicamente vinculado à produção de conhecimentos específicos, a análise ergonômica da atividade compartilha os princípios gerais das metodologias de observação participante e etnográficas 4 Hoje, esta separação entre ciência fundamental (ou “pura”) e ciência aplicada é questionada mesmo no campo da tecnologia. 138 com a particularidade de ter desenvolvido as técnicas de entrevista em autoconfrontação. Entendemos por autoconfrontação não apenas as verbalizações a posteriori sobre o próprio comportamento, mas toda e qualquer técnica de explicitarão que coloque traços objetivos do comportamento entre o observador que interroga e o observado que responde. Nesse princípio metodológico geral, cabem tanto as verbalizações interruptivas e consecutivas, quanto as entrevistas de explicitarão (Vermersch, 1990) ou as entrevistas guiadas pelos fatos (Langa, 1998). O sentido fundamental desse princípio é, que não se interpela diretamente a consciência do sujeito (como nas pesquisas de opinião), mas se chega a esta através de traços da atividade e do comportamento. Mais que a consciência imediata manifesta na fala espontânea dos trabalhadores, a Ergonomia procura explicitar os processos subconscientes que sustentara á regulação individual e coletiva da atividade de trabalho. Como a atividade é sempre situada e depende de elementos contextuais, não cabe o recurso aos experimentos de laboratório comuns às ciências “fundamentais”, nem aos “experimentos sociais”, formas de aproximação que acabam influenciando e modificando os processos de regulação que se quer descrever e entender. Como tecnologia, por força da metodologia e da produção de conhecimento em situações reais de trabalho, é a metodologia participativa de concepção de situações de trabalho que dá coerência ao conjunto, diferentemente da figura do consultor externo, que propõe ou chega com soluções já prontas. Enquanto o consultor externo substitui uma prática deficiente, ocupando o lugar dos agentes sociais, o ergonomista complementa e agrega novos conhecimentos às práticas insuficientes de outros profissionais com os quais deve interagir no processo de transformação das situações de trabalho (engenheiros, informáticos, médicos, engenheiros de segurança, etc.). O Quadro 1 resume essas proposições referentes ao objeto, teoria, métodos e prática da ergonomia. 139 Nada disto - teoria da ação, etnografia, participação - é novo no campo das ciências humanas e sociais, mas a Ergonomia as desenvolve de uma forma original e articulada em um todo coerente, que já está sistematizado em conceitos, metodologia, tecnologia e, também, em uma certa prática pedagógica. O que é comum a este campo (denominado em geral de metodologias qualitativas) é o princípio de que os fenômenos humanos (e isso vale tanto para um acidente catastrófico quanto para os problemas posturais) comportam um sentido, que organiza a ação, o qual deve ser explicitado pela análise. Em termos de formação, o objetivo é fazer com que os futuros ergonomistas consigam perceber, nas situações de trabalho, os sentidos latentes e mesmo a pluralidade de sentidos; ver o mundo dos trabalhadores por seus próprios olhos, parafraseando o lema fundamental da moderna etnografia.6 Aqui, a formação esbarra, inicialmente, na necessidade de desconstruir a ideologia espontânea na qual fomos conformados; que se caracteriza por um olhar externo, o modelo do consultor, do especialista que detém todo o saber, ou do moralista que julga o comportamento do outro. Essa ideologia perpassa todas as esferas da vida humana, manifestando-se também no cientificismo que orienta a maior paite das análises do trabalho. A ideologia cientificista A visão externa e objetiva do trabalho (cientificismo ou positivismo) é a perspectiva natural que acompanha as representações de vários grupos sociais (gerentes, organizadores, engenheiros) e mesmo da classe média em geral, de onde são retirados os profissionais responsáveis pela gestão dos negócios e os técnicos encarregados de pensar e de conceber o trabalho que será realizado por outros. Na aprendizagem, isso se manifesta na necessidade de muletas metodológicas, dada a falta de experiência prática e de convívio com as situações reais de 5 A autoconfrontação foi sistematizada nos últimos quinze anos por Theureau & Pinsky que “entendem por autoconfrontação uma verbalização produzida pelo trabalhador quando se confronta com os dados coletados sobre o seu comportamento e quando responde a perguntas que incidem diretamente sobre esses dados, como “o que você está fazendo ali?”, “o que você quer dizer aí?”, “Por quê, com que motivo?”. “Para conseguir o quê?” (Wisner, 1994, p. 102). Wisner assinala a originalidade da metodologia desenvolvida por esse autores: “O método de estudo do curso de ação também comporta verbalizações sistemáticas, coletadas junto aos trabalhadores de acordo com regras definidas. O recurso às verbalizações não é uma especificidade do método proposto. A originalidade provém do caráter sistemático de sua aplicação e de seu processamento. Essas verbalizações devem estar relacionadas diretamente com a dinâmica do curso de ação a cada instante, o que exclui as formas habituais de entrevista. Conforme as situações de trabalho, essas verbalizações são simultâneas, interruptivas ou unicamente de autoconfrontação. Es sa última é nescessária em todos os casos” (idem; p. 101-102). 6 O objetivo final da etnografia é, segundo Malinowski (1978), apreender o ponto de vista dos nativos seu relacionamento com a vida, sua visão de seu mundo [grifos do original] (p. 33-34). 140 trabalho e de produção. A trajetória devida dos especialistas oriundos da classe média os predispõe a pensar o mundo por meio de conceitos, reproduzindo o descolamento entre a teoria e a prática presente na separação entre escola e vida profissional. Mais ainda, como esses profissionais e técnicos estão colocados em posição objetivamente oposta à dos trabalhadores, surge espontaneamente a tendência aos julgamentos a priori dos comportamentos observados, já que o distanciamento social torna ainda mais obscuro o sentido dos atos de trabalho. Em termos subjetivos, tudo isso se manifesta em uma angústia diante de uma situação que não seja dominada a priori, na qual não se sabe onde chegar e como chegar e na qual se devem estabelecer relações com trabalhadores, mas fomos treinados para não dar ouvidos a eles.7 Querem uma metodologia passo a passo, mas não algo que se aprenda caminhando, e sim roteiros, check lists e planilhas definidas desde o início do processo de observação e análise. Dessa forma, reificando o método, eliminando o seu caráter dialógico, de interação social, podem-se tratar os trabalhadores observados como um mero “objeto” de conhecimento. Se a ciência do trabalho é um saber de especialistas, se os sentidos dos atos não fazem parte da análise do comportamento, não há por que tratar o trabalhador como sujeito. A formação implica uma mudança de perspectiva Aprender a ver o mundo do trabalho pelos olhos dos trabalhadores não é uma atitude espontânea, sobretudo quando se trata de adultos já plenamente imbuídos de preconceitos ideológicos, com formações e experiências profissionais que tendem a afastá-los do trabalho e a contrapô-los socialmente aos trabalhadores, como os engenheiros de segurança e os médicos do trabalho. Essa mudança de perspectiva deve ser construída superando obstáculos arraigados no senso comum e nas visões de mundo hegemônicas. Toda formação, no sentido forte do termo, implica mudanças na forma de ver e perceber o mundo e na própria personalidade do educando. No caso da Ergonomia, além das atitudes necessárias a qualquer investigador social, essa mudança de personalidade está relacionada com a mudança de perspectiva que consiste em compreender o comportamento no trabalho por meio dos olhos do próprio trabalhador. Associar essa formação à mudança de personalidade pode parecer exagerado, dependendo de como se entenda o que é personalidade. Se se pensa em 7 Durante os anos de formação na escola de Engenharia, éramos sempre instruídos por nossos experientes professores, quase todos empresários bem-sucedidos ou engenheiros com larga experiência profissional, a tomar cuidado com “peão”: “peão é burro”; “se você der a mão, eles querem o braço”... 141 uma estrutura dada, de natureza subjetiva (ou interior) e pessoal (ou idiossincrática), não seria possível falar em alterações significativas da própria personalidade em um processo de formação, mas apenas em aquisição de conhecimentos que reforçariam certos traços da personalidade e desenvolveriam outras tantas atitudes. Contudo, é possível entender o essencial da personalidade como sendo constituído na interação entre o indivíduo e o mundo social, não apenas em seus conteúdos, disposições e atitudes, mas também em sua estrutura.8 Dada a complexidade da questão e sua natureza polêmica, assinalemos apenas um aspecto essencial no processo de formação em Ergonomia: a mudança de perspectiva. Já assinalamos que a etnografia moderna nasce também dessa mudança de perspectiva, quando deixa de enquadrar outros povos e culturas nos padrões eurocêntricos. Da mesma forma, constitui princípio de sabedoria colocar-se no lugar do outro antes de julgá-lo. Nos meios acadêmicos, todos nós já passamos pela experiência (infelizmente ainda predominante) de vermos nossos próprios trabalhos e os de nossos orientandos serem sempre julgados pela perspectiva do outro, que projeta na tese sob avaliação sua vontade, identificando, a partir daí, as “insuficiências” do trabalho em relação àquele que ele gostaria de ter realizado. Dificilmente se faz uma análise e crítica imanentes, tomando como fio condutor a proposta do próprio autor, identificando, então, as deficiências reais na efetivação do que ele se propôs fazer. Essas situações não são diferentes da mudança que se quer operar na formação em Ergonomia. O princípio geral é de uma análise imanente, colada ao comportamento do trabalhador, de suas razões, objetivos e motivações. Trata-se de compreender a atividade por dentro, reconstituir a sua lógica em seu curso próprio de ação. Procurar pelos motivos do outro, compreender suas razões e possibilidades de ação, critérios de decisão e compromissos entre objetivos conflitantes implica estabelecer formas de inter-relação social (e profissional, quando se pensa nos especialistas que prescrevem comportamentos - médicos, engenheiros de segurança, etc), que reconfiguram a personalidade dos indivíduos. Reconhecer que cada um é, em última instância, seu próprio juiz (Y Schwartz, 1992), superar os preconceitos e pré-julgamentos (até mesmo os julgamentos) é estabelecer formas de interatividade que afetam as instâncias relacionais da personalidade, na medida em que esta tem uma decisiva dimensão social. 8 Como disse Marx, o homem é um ser social, no sentido em que só pode individualizar-se em sociedade. Não é difícil concluir que, se a personalidade é atributo do indivíduo, e este é propriamente uma “individualidade social”, a personalidade humana se estrutura na relação bipolar entre indivíduo e ser social. Esta concepção do ser social como uma bipolaridade entre individualidade e sociedade é desenvolvida na Ontologia do ser social de Lukács e serviu de base para nossa tese de Doutorado (Lima, 1994). 142 Uma experiência de formação Nossa experiência mais sistemática de formação em Ergonomia vem sendo desenvolvida no interior do Mestrado em Engenharia de Produção da UFMG, onde consideramos ser necessário capacitar mestrandos de diversas áreas pela apresentação da metodologia de AET e pelo contato direto com o campo, reproduzindo o aparato do ensino de metodologia usado pelos ergonomistas do CNAM.9 Além disso, ministramos, com menor sucesso, a disciplina de Ergonomia para graduandos de Engenharia, em cursos de especialização de Engenharia de Segurança do Trabalho e de Psicopatologia do Trabalho, para sindicalistas e trabalhadores, e para profissionais diversos em cursos de curta duração. Essas experiências, com graus diferentes de sucesso, levaram-nos a privilegiar a formação tipo TPB, de longa duração (mínimo de 4 meses), orientada essencialmente para a prática de análise ergonômica do trabalho. Nos outros cursos, associamos a transmissão de conceitos fundamentais e procuramos meios de “sensibilização”10 que permitissem sua apreensão, já que a mudança de perspectiva proposta pela Ergonomia sempre entra em choque com os preconceitos do senso comum e ideológicos (de classe). Nesta formação prática estão pressupostos alguns princípios que fazem parte do quadro conceituar de explicação de qualquer atividade de trabalho, já consolidados pelos resultados das análises ergonômicas e de outras disciplinas: a) a prática precede a consciência da prática; b) a aprendizagem de uma habilidade prática só pode ocorrer por meio da prática, e de forma progressiva durante a prática; c) assim como qualquer outra prática, o processo de aprendizagem 9 Entre os ergonomistas brasileiros que se formaram no CNAM, essa disciplina é conhecida por TPB (Trabalhos Práticos B). Esse ensinamento prático constitui uma das principais contribuições da Ergonomia francesa, incorporando na formação certos princípios resultantes da análise do trabalho. Ele está organizado em uma série de reuniões, alternando exposições da metodologia pelos professores e apresentações periódicas das observações e análises realizadas pelos alunos, que trabalham em duplas. O curso é assumido por três ou quatro professores, o que alivia a carga de trabalho gerada pelo envolvimento com as diversas situações que são analisadas e permite confrontações de pontos de vista e experiências que ampliam as possibilidades de compreensão das situações, a formulação de hipóteses e a sistematização das observações. 10 Temos tentado os mais diversos meios de provocar essa mudança de perspectiva, dependendo do grupo social e grau de escolaridade. Em geral, observações orientadas surtem efeitos que, se não caracterizam uma nova forma de ver o mundo, ao menos “desestruturam” e derrubam certos preconceitos. Sugerimos, por exemplo, que os alunos analisem um mal-entendido com um colega de trabalho ou subordinado, no qual eles também estiveram pessoalmente envolvidos, buscando esclarecer a sua origem enquanto processo dialógico de atribuição de sentido. Solicitamos também que observem as invenções dos trabalhadores para lidar com as dificuldades no trabalho (macetes, jeitinhos, gambiarras...). Neste último caso nos deparamos com um forte preconceito que envolve o termo “jeitinho (brasileiro)”, que, no Brasil, ganhou status de símbolo nacional, reforçado pelos estudos antropológicos (Barbosa, 1992) e organizacionais (Mota & Alcadipani, 1999). Mostrar e convencer que o “jeitinho” não é brasileiro, mas uma prática universal, tem se revelado um trabalho árduo... 143 não pode ser antevisto, não se reduz ao treinamento ou à instrução necessários para a execução de um roteiro. É uma experiência psicológica usual procedermos, após termos passado por uma experiência significativa, a uma avaliação retrospectiva, sem a devida consideração do processo efetivo dos acontecimentos, em especial das circunstâncias de cada situação. Nesse processo de racionalização, certos acontecimentos são relevados enquanto outros nos parecem sem importância, a partir do estado atual. Eis alguns exemplos que ilustram essa visão retrospectiva da aprendizagem pela qual passaram alguns de nossos alunos: “Eu pensei que estava certo: fiz o que vocês pediram” (aluno após apresentação parcial). “Por que vocês não falaram tudo isto [o que devia ser feito] antes?” (aluno ao final do curso). “Depois que eu reli os textos (de apoio), estou entendendo melhor o que tenho que fazer” (aluno após término do curso). Percebe-se nessas falas que os alunos não vêem a análise como aproximações sucessivas, reelaboração contínua e refinamento das hipóteses iniciais interessante aqui é que tudo o que foi apreendido na prática já havia sido falado exaustivamente e já estava disponível aos participantes nos textos de apoio ao curso. A metodologia e conceitos fundamentais eram conhecidos apenas coe informação, mas não incorporados efetivamente a uma nova visão de mundo a uma nova prática de observação e de análise do trabalho. Até mesmo os inevitáveis choques e formas mais intensas de manifestação dos professores para de bloquear certas situações foram, a posteriori, avaliados como sendo excessivo “Não precisavam ser tão rudes” (aluno ao final das apresentações sucessiva Mas, como obter uma mudança pessoal sem sofrer, às vezes, um forte impa afetivo? Não se encontra aqui um indicador de uma resistência afetiva que mente um outro afeto maior pode desbloquear? Por outro lado, se uma pessoa tem uma personalidade frágil, incapaz de suportar críticas duras, estará captada a assumir uma postura não autocentrada? O componente afetivo no processo de formação deve ser tão mais forte quanto mais arraigada for a ideologia cientificista, cartesiana, ou os pressupostos e vieses que interferem no processo de análise do trabalho. Há alguns exemplos de transformações operadas em mestrandos que, bastante significativos. Um deles refere-se a um aluno que iniciou o Mestrado na área de Qualidade, impregnado de todos os conceitos de visão de mundo própria aos administradores, que tentam submeter a realidade aos princípios universais da racionalidade administrativa. Em sucessivos seminários de pesquisa, recebeu duras críticas de um professor da área de Ergonomia, mudando, após es- 144 ses embates, de área, de metodologia de pesquisa e de quadro conceitual. Outros alunos nos procuram, inicialmente instigados pelo choque que sofrem quando se defrontam com um “modo tão diferente de pensar”, ainda que não compreedam muito o que “estamos querendo dizer”. Quando o senso comum se distancia do bom senso Uma última questão que nos intriga: por que vivemos em um mundo idealizado, irreal, determinado por normas e regras, quando a realidade cotidiana nos mostra que a vida é uma negociação permanente, com as situações, com os outros e conosco mesmos? No cotidiano, mesmo para os ergonomistas, é quase impossível não julgar o motoboy que costura o trânsito como sendo mal-educado e irresponsável ou considerar o caixa de banco como ineficiente e vagaroso.” Quantas promessas de mudanças de hábitos que fazemos a nós mesmos não fracassam precisamente porque não se muda a forma de vida? De onde vem a força que nos empurra em direção a julgamentos morais rígidos (moralismo): o problema do Brasil é a corrupção, o “jeitinho brasileiro” mostra isso em cada um de nós, do mais rico ao mais pobre, “coisa de terceiro mundo”. Ora, a vida não é possível sem “jeitinhos”, e estes não constituem privilégio dos brasileiros, apenas conseguimos identificá-los com mais facilidade porque estamos mergulhados em uma cultura comum. A explicação fundamental para esse paradoxo é a cisão entre pensamento e vida prática, situação geral de nossa época. O intrigante é que isso demonstra a sua força mesmo quando o cotidiano se mostra rebelde a esses formalismos abstratos, ao comportamento rigidificado. O maior exemplo é a postura assumida por engenheiros e administradores diante da greve do zelo. Quando lembramos esses exemplos, refugiam-se na alternativa de dizer que os padrões não foram bem definidos, ou que os padrões devem ser melhorados continuamente. Perdem os anéis, mas salvam os dedos do formalismo. A AET, ao buscar o sentido do comportamento dos trabalhadores, permite o descentramento de perspectiva: colocar-se no lugar do outro, não mais como um princípio moral, mas baseado em observações objetivas do sentido subjetivo e de explicitação de razões razoáveis e intercomunicáveis. Explicitar o sentido não implica objetivação da subjetividade, mas reconhecer que cada indiví11 Uma das melhores lembranças que tenho de meu período de formação no CNAM foi de uma professora que entrou na sala dizendo que teve que se conter para não brigar com o motorista do ônibus, quando ele deu uma freada brusca. Como ergonomista já não se permitia esse arroubos espontâneos de julgamentos a priori dos atos de outros. 145 duo é, em última instância, o juiz de si mesmo (Schwartz, 1992).12 Por isso, a formação em Ergonomia (em seus princípios fundamentais, conceitos, metodologia e prática de intervenção) comporta também uma certa experiência de vida, uma mudança pessoal e de visão de mundo, incompatível com as perspectivas autoritárias, com o olhar externo do juiz. Na Ergonomia, não há lugar para a categoria de culpa, isso é próprio ao olhar exterior do direito, que tenta regular o comportamento e os atos sem chegar à sua base objetiva, em última instância, às contradições e conflitos sociais diante dos quais todos somos obrigados a nos posicionar quando estamos diante de alguém que trabalha. Por isso não há análise ergonômica do trabalho sem autoconfrontação, que ocorra em três níveis: operatório (o que você faz?), cognitivo (com que finalidade?, para quê?) e ético (por quê?). Não se pode analisar nenhum desses aspectos e, sobretudo, não se pode compreender a atividade, separando-os em objetos analíticos distintos. Outros autores já associaram formação e mudança de personalidade.13 Na análise ergonômica do trabalho, também o conteúdo que se aprende e os procedimentos de observação e de análise implicam mudanças de visão de mundo e da relação com o outro. Pode-se olhar para um trabalhador e ver em seus gestos apenas atos maquinais, sem criatividade e impessoais; descrevê-los como se descreve um procedimento operacional, um algoritmo de computador, em suma, nada ver no trabalho a não ser uma tarefa. A ocorrência de eventos imprevistos pode ser considerada como “dispersão” pelo engenheiro ou pelo estatístico, induzindo uma forma tradicional de ação ou, ao contrário, como espaço de manifestação da variabilidade ineliminável, que exige novas formas de regulação (Schwartz, 1997). A maior parte dos trabalhos em Ergonomia não passa disso: descrições minuciosas, mas sem vida, de procedimentos operacionais, mesmo quando o analista é sensível à causa dos trabalhadores. Em geral, os aprendizes de Ergonomia concluem cedo demais. Acham, com as primeiras descrições, que já “entenderam” o que é o trabalho e como o trabalhador observado o realiza. No entanto, para entrever a atividade, é necessário ir além, perceber em cada gesto uma arte, uma implicação pessoal e uma experiência acumulada. Ver o trabalho como um enigma, deixar transparecer, como fez Faverge, sua ignorância diante da maestria dos torneiros mecânicos. Nunca dar por acabada a análise de uma realidade tão complexa como é o engajamento dos homens no trabalho... 12 De, passagem, encontramo-nos aqui diante da possibilidade de efetivação de um princípio radical de uma sociabilidade efetivamente humano-social. 13” Toda aprendizagem bem realizada e toda educação é sempre, implicitamente, terapêutica” (Bleger, 1980, p. 63). “Todos os procedimentos pedagógicos tenderam sempre a formar e modificar adequadamente a personalidade do estudante” (idem, p. 64). 146 Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. BARBOSA, L. O jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: Campus. 1992. BLEGER, J. Grupos operativos no ensino. In:____. Temas de psicologia: entrevistas e grupos. São Paulo: Martins Fontes, 1980. DANIELLOU, E La modélisation ergonomique de l'activité de travail dans Ia conception industrielle. 1985. Thèse de Doctorat. Paris: CNAM. _____. 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O estímulo (ou a pressão) à adoção de novas técnicas de plantio, viabilizadas pelo incremento do processo de mecanização, e a introdução maciça de fertilizantes químicos e agrotóxicos vieram substituir práticas agrícolas centenárias, herdadas das gerações antepassadas. Como é sabido, o mundo rural também se beneficiou da evolução tecnocientífica, cujos efeitos podem ser apontados nos próprios meios de trabalho, na comunicação ou transporte. No entanto, nem tudo é positividade, quando se examinam as repercussões da aplicação da ciência à produção rural. Dentre as inovações da Revolução Verde, uma das questões mais polêmicas refere-se à utilização de agrotóxicos, os quais, quando de sua introdução, foram associados à maior produtividade das plantações e à redução da fome nos países periféricos. Nesta experiência que relatamos, a tentativa é de desmistificar a indispensabilidade dos agrotóxicos, bem como sua alardeada inocuidade, se usado “de modo seguro”: Para tanto, buscamos agregar a força da educação formal para o debate e instituição de novas concepções e hábitos a respeito de venenos que passam, eufemisticamente, por “defensivos”. C 1 Bacharel em Administração de Empresa, Especialista em Administração Rural - UFLA, Técnica em Segurança do Trabalho - FUNDACENTRO – CRMG 2 Pesquisadora da Coordenação de Educação da FUNDACENTRO - CRMG. 149 Narramos aqui como o esforço conjunto de instituições pode contribuir, ainda que seja no microespaço social, para que surjam posturas, práticas e valores que favoreçam a vida dos grupos humanos e do seu habitat. Introdução Os agrotóxicos: a solução transformada em problema O débito dos grupos humanos para com a natureza vem sendo sistematicamente inflacionado. No Brasil, não bastassem o desmatamento histórico de agros (sem o que o homem não sobreviveria) e as queimadas, deve-se incluir, ainda, a chamada “Modernização da Agricultura”, à qual se credita a responsabilidade pelo atual perfil agrícola do País. Tal como o processo de industrialização que lhe tangencia, “a modernização” da agricultura brasileira, além da expansão de suas fronteiras, introduz, nesse segmento, outras concepções sobre a relação dos proprietários com a terra. Quando a sua distribuição se torna ainda mais concentrada, inaugura novas formas tecnificadas de cultivo, estimula a gradual e persistente proletarização do trabalhador rural e apresenta os agrotóxicos, sendo estes últimos o veio condutor da experiência que propusemos relatar. O ritual de entronização dos agrotóxicos no Brasil se sustentou em apelos eficientes, os quais asseguravam aos mais crédulos a extinção da fome no País, como se lê no slogan da Associação Nacional de Defensivos Agrícolas (ANDEF), veiculado na revista “Veja” (3-4-1985).3 150 Hoje, ano 2000, já com o distanciamento histórico que certamente facilita as análises sobre os fenômenos sociais, pode-se afirmar que a indústria de agrotóxicos não conseguiu atingir o seu nobre objetivo de ajudar a combater a fome dos países em desenvolvimento. A esse respeito, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) publicou, em 1993, relatório afirmando que, “no Brasil, mais de 40 milhões de habitantes estão hoje abaixo da linha de pobreza” (Salama, 1997). Vale lembrar que esse contingente populacional, à época dos anúncios da ANDEF (1985), correspondia aproximadamente a um terço dos “brasileiros” e “brasileiras”. Assim, as indústrias de agrotóxicos não cumpriram o anunciado: não ajudaram a extinguir a fome e não há consenso quanto ao aumento real de produtividade do setor agrícola. Mas, tais fatos não devem causar estranhamento. Afinal, as propagandas comerciais têm o firme propósito de comunicar aos consumidores as vantagens e imprescindibilidade dos produtos que vendem. No entanto, é surpreendentemente desagradável constatar que aqueles que anunciavam apoio ao combate à fome e, portanto, pregavam a defesa da vida, semeavam, muitas vezes, as doenças e a morte, como denunciou Rachel Carson, em seu antológico “Silent spring” (1962), no qual a autora alerta sobre os riscos dos agrotóxicos para a sobrevivência das espécies. 151 Ecos do livro de Carson ressoaram também no Brasil e vozes dissonantes se fizeram ouvir. Em sua pesquisa sobre o tema, Cagliari (1986) demonstra a correlação entre os agrotóxicos e anomalias congênitas em recém-nascidos, filhos de agricultores expostos. Também Araújo (1988) realizou estudos evidenciando conexões entre os agrotóxicos e as neoplasias malignas em pacientes originários desse mesmo setor. Pinheiro (1989) transporta para o seu livro um diálogo travado entre dois médicos e colonos do Norte do Brasil, que exemplifica uma das muitas dimensões da utilização de agrotóxicos e correlatos: - Tu não ias com ela nadar no igarapé? - Não, depois que ela ficou grávida, nós paramos de sair. Quando ela perdeu o primeiro, ficou mais recolhida ainda. - Tu viste os homens que aplicaram os venenos na Juquira? - Vi sim, até falei com eles. - O que é que tu falaste com eles? - Fui lá pedi a eles uma lata vazia, elas eram tão bonitas. Mas, antes eu perguntei se não era perigoso usar as latas. Eles me deram duas e disseram só que era para lavar bem elas, que eu podia usar sem medo, que eu podia até queimar ela no fogo se tivesse medo. Que podia usar sem medo que o produto só matava a Juquira. Trouxe as latas para casa, numa eu punha farinha e na outra carregava água. Na que eu punha farinha, eu queimei. Quando o entrevistado mostrou as latas com a marca registrada TORDON 155BR, os pesquisadores obtiveram a explicação para os repetidos abortos sofridos pela mulher do depoente. O TORDON 155BR, também conhecido como “agente laranja”, era o responsável por uma intoxicação crônica. Deve-se realçar que, ainda hoje, no Brasil, o reaproveitamento desses recipientes é muito comum entre as famílias dos pequenos produtores e/ou trabalhadores rurais. Até aqui nos detivemos nos efeitos dos agrotóxicos no organismo humano, porém eles em muito extrapolaram esse âmbito, já que são variados os relatos de contaminação do solo e das águas (Pinheiro, 1993). O quadro se torna ainda mais grave quando se considera que, embora o fluxo migratório do campo para a cidade tenha sido intenso desde a década de 50, ... estima-se que o Brasil possuía, em 1985, 135.564.396 habitantes, com, pelo menos, 35.938.615 deles residindo em estabelecimentos agropecuários, ou em povoados e aglomerados 152 rurais, ou seja, na zona rural. De certo modo, a maioria dessa população rural está exposta aos agrotóxicos, seja diretamente, porque trabalha com eles, seja indiretamente porque trabalha ou reside em áreas onde são utilizados (Garcia, 1991). Ou seja, são muitos os trabalhadores rurais submetidos a condições precárias de trabalho. Em 1989, a FUNDACENTRO realizou uma ampla pesquisa, em âmbito nacional, que desvela muito da obscuridade relativa às condições de trabalho e de saúde dos trabalhadores rurais. Foram processadas 32.499 CAT oriundas de 705 municípios de oito Estados da Federação.4 Das muitas informações obtidas pelo estudo em referência, chamou-nos a atenção que 82,2% dos acidentes registrados ocorreram com trabalhadores na faixa etária de 13 a 45 anos, e foram notificados 37 acidentes com menores de até 12 anos, ao mesmo tempo em que se revela a subnotificação das intoxicações, dado o reduzido número dessas ocorrências registradas em CAT, conforme Tabela l. No entanto, Garcia (1991) nos apresenta uma Tabela que revela que o Estado de Minas Gerais consome quantidades consideráveis dessas substâncias. Participando de trabalhos cuja estratégia incluía a dosagem de colinesterase sangüínea em trabalhadores rurais de Minas Gerais, foi possível detectar que o índice de trabalhadores rurais intoxicados por agrotóxicos é muito mais elevado do que aqueles revelados por CAT. Assim, pode-se dizer que a experiência educativa que ora relatamos é produto de nossa inconformidade perante o quadro de saúde do trabalhador rural e esperamos que com ela possamos dar a nossa modesta contribuição rumo à Agricultura e Desenvolvimento Rural Sustentável. O espaço trabalhado: aspectos estruturais do município de Barbacena Barbacena situa-se na margem da rodovia federal BR-040. Dista 173 km de Belo Horizonte. A cidade faz parte da Bacia Hidrográfica do Rio Grande, possuindo uma população total de 113.106 habitantes (IBGE, 1996), sendo 18,1% deles distribuídos entre os seus 13 distritos. No que tange à educação, tema específico deste relato, o município se apresenta com 2 escolas Federais, 19 estaduais 22 particulares e 37 municipais. Nove dessas foram selecionadas para composição do projeto piloto, por concentrarem um número maior de produtores rurais. 4 SC, PR, SP, DF/GO, MG, ES, BA, PE. 153 154 155 Em termos de estrutura agrária , espaço do desenvolvimento de nossa experiência, Barbacena apresenta os seguintes dados: O município se destaca como um dos maiores produtores de frutas e hortículas do Estado, com destaque para o pêssego, caqui, nectarina, morango, laranja, goiaba, bergamotas, ameixas, abacate, pêra, uva, etc. Quanto as hortículas, merece registro a produção de repolho, tomate, batata-inglesa, couve-flor, cenoura, pimentão, mandioquinha, beterraba, inhame, jiló, alface, pepino, dentre outras. Deve-se sublinhar a, produção de flores, em especial, a rosa, que, em passado não muito remoto, colocou a cidade como uma das maiores exportadoras para o mercado europeu. O conjunto de produtores envolvidos na produção total de hortículas é constituído por 94% de proprietários, 5% de parceiros, 3% de arrendatários e 1 % de ocupantes. Quanto ao pessoal ocupado, o censo agropecuário (IBGE: 1996) informa a existência de 2.000 famílias rurais, 6.000 trabalhadores sazonais. Do total de pessoas ocupadas, 30% alocam-se nas atividades relacionadas com a pecuária; 29% nas lavouras temporárias; 23% na horticultura; 8% nas lavouras permanentes; 9% em atividades e produção de carvão vegetal. A maior participação de menores de quatorze anos encontra-se nas atividades relacionadas com a horticultura, atingindo em torno de 9% do pessoal ocupado, seguida pelas atividades em lavouras temporárias e mistas, am- 156 bas com 8%, ficando a pecuária com 7% e as lavouras permanentes com 4% do pessoal ocupado nessa faixa etária. A produção rural do município se assenta, pois, em economia predominantemente familiar e, pode-se afirmar que, nessas localidades, o uso dos agrotóxicos incorporou-se como pratica rotineira no cultivo da terra, fato condizente com os efeitos da “Revolução Verde” no Brasil. A realidade anteriormente relatada, associada a constatação dos altos índices de intoxicação entre esses agricultores, foi determinante na seleção das diretrizes do nosso trabalho, quando elegemos a educação como principal vetor de nossas ações. Reativando velhas/novas praticas: as ações de segurança e saúde do trabalhador nas escolas municipais rurais Paulo Freire (1977), quando de sua análise sobre o extensionismo, prática tomada indispensável efetividade da “Revolução Verde”, afirmava que a ação do extensionista envolve, qualquer que seja o setor em que se realize, a necessidade que sentem aqueles que a jazem, de ir até a outra parte do mundo”, considerada inferior, para, a sua maneira, “normalizá-la”. Para fazê-la mais ou menos semelhante- a seu mundo. Dai, em seu campo associativo, o termo extensão se encontra em relação significativa com transmissão, entrega, doação, messianismo, mecanicismo, invasão cultural, manipulação. O autor recomenda, portanto, a educação/comunicação como o viés mais adequado em trabalhos que envolvam as comunidades rurais. Também devem ser reconhecidos os direitos dos homens e mulheres do campo a acessarem os benefícios da evolução científica e tecnológica. Porém, imiscuir-se em seu meio e “persuadi-los” a adotarem novas praticas ou técnicas, sem que sejam informados das reais conseqüências de tais escolhas, sem respeitar o seu universo, configura-se, certamente, num processo de violação e culturas milenarmente construídas ou, nas palavras de Paulo Freire (1977), trata-se de “invasão cultural”. Não se desconhece o efeito devastador dos pressupostos e praticas da “Revolução Verde” sobre os antigos costumes, crenças e valores do mundo rural dissolvidos pelo defensores da tecnificação e da maior produtividade agrícola, voltados unicamente para os dividendos econômicos. Essas particularidades, existentes entre o agente social externo e os grupos sociais rurais, tornaram-nos precavidos, recomendando7nos a busca por referencias teóricas e filosóficas que orientassem as concepções subjacentes nossa pratica, quando acolhemos os fundamentos de uma ação educativa 157 pautada pelo respeito à realidade e à cultura locais; na perspectiva da dialogicidade, por acreditarmos que a construção do saber se faz necessariamente pelas trocas entre os envolvidos. A nossa tentativa e fazer algo próximo do que nos ensina o mestre Paulo Freire (1,997): Na dialogicidade, na problematização educador-educando e educado-educador, vão ambos desenvolvendo uma postura critica da qual resulta a percepção de que este conjunto de saber se encontra na interação. Saber que reflete o mundo e os homens, no mundo e com ele, explicando o mundo, mas sobretudo, tendo de justificar-se na sua transformação [...] Rejeitar, em qualquer nível, a problematização dialógica e insistir num injustificável pessimismo em relação aos homens e à vida. E cair na prática depositante de um falso saber que, anestesiando o espírito crítico, serve à domesticação dos homens e instrumentaliza a invasão cultural. Como mencionado, trabalhos anteriores indicaram graus elevados de intoxicações entre trabalhadores rurais desse município, sendo esse o campo específico de nossa intervenção, que visava, primordialmente, a contribuir para novos e melhores padrões de segurança e saúde nesse setor, mas, segundo a nossa crença, não iria adiante e nem terra êxito sem o respaldo da educação problematizadora, que se tornou a mola propulsora de nossas ações, cuja metodologia relatamos abaixo. A intencionalidade vivenciada: metodologia e objetivos do projeto Elegendo como propósito fundamental o desencadeamento de processos reflexivos sobre as práticas agrícolas existentes, de modo a sensibilizar a comunidade para a introdução do cultivo da terra baseado em métodos mais saudáveis, promotores de melhores condições de trabalho e, conseqüentemente, da saúde dos trabalhadores rurais, o projeto “Ações de segurança e saúde do trabalhador nas escolas municipais rurais” de Barbacena teve por principal ancora os resultados de um levantamento epidemiologico realizado pela FUNDACENTRO, em 1984, cujos dados revelaram que havia 61,5% de intoxicados por regido. Ciente de que esse quadro de saúde se perpetuava, em frente ao aumento do consumo de agrotóxicos no município, conforme informações da EMATER local e em razão da inexistêntica de trabalhos de orientação quanto aos riscos da utilização dos agrotóxicos para a saúde humana e para-o meio ambiente, procuramos a Secretaria 158 Municipal de Educação para apresentação de proposta de trabalho e possível articulação de parceria. Com o aval daquele órgão, buscou-se então a incorporação de outros segmentos, tais como, EMATER, Secretaria da Agricultura, Escola Agrotécnica Federal, Sindicato dos Trabalhadores Rurais e de Agricultores, Ambulat6rio de Doenças Profissionais, Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA). Em reuniões, as instituições parceiras definiram a abrangência do projeto e o papel de cada órgão, dentro de suas atribuições específicas, ficando acertado que a nossa atuação ocorreria em distritos que concentrassem maior numero de produtores e/ou trabalhadores rurais. A partir de então, buscou-se contatar as escolas rurais selecionadas para, em visitas e reuniões, sensibilizar o corpo docente dessas localidades, já que esses educadores atuariam como agentes multiplicadores do propósito principal de nossa ação. Ainda, como atividade preliminar do projeto, e buscando tragar o perfil da comunidade com a qual se trabalharia, combinou-se com os docentes incluídos no projeto que seriam aplicados questionários semi-estruturados aos alunos de suas escolas. Os resultados revelaram que 90% dos educados ajudam os pais no processo de trabalho e 85% deles não utilizam qualquer tipo de proteção, quando nas lidas rurais. O passo seguinte foi a promoção de cursos para os educadores rurais, por serem tais cursos essenciais a capacitação técnica desses profissionais nas questões relativas a saúde e segurança do trabalhador rural, para que eles, posteriormente, incluíssem tais temas como transversais em outras disciplinas. Nesse ínterim, os pequenos produtores e trabalhadores rurais estavam as voltas com a preparação da terra para o plantio, o que não favorecia o trabalho de dosagem de colinesterase sanguínea. Tão logo ocorreu a fase de pulverização das lavouras, iniciamos a dosagem de colinesterase sanguínea e, como já se esperava, os resultados mostraram que a situação detectada em 1984 permanecia inalterada, pois, das 364 amostras de sangue coletado, 66,8% revelaram índices de contaminação, incluindo nesse percentual crianças e adolescentes com idade entre nove e dezoito anos. Observou-se ainda que é crescente a intoxicação em mulheres, fato que realça a complexidade do problema de que se ocupa este projeto. Munidos das informações obtidas, retornamos aos cursos, dando continuidade a capacitação dos professores, emergindo daí os seus projetos de ação, nos quais se contemplava a inclusão transversalmente da temática Saúde e Segurança do Trabalhador Rural em suas aulas. Nessa mesma ocasião, os professores combinaram que fariam um evento que envolvesse todas as es- 159 colas partícipes, definindo-se ainda pelo concurso para a criação de um slogan sobre agrotóxicos e meio ambiente que retratasse as ações realizadas. O desenho acima representa as repercussões deste projeto nas concepções dos alunos envolvidos no trabalho. Para esclarecer como ocorreram algumas dessas praticas, apresentamos os exemplos a seguir: A) Escola Municipal Joaquim Augusto da Silva Os educadores dessa Escola optaram pela elaboração de um projeto a ser executado durante cinco semanas, constando de atividades individuais e coletivas, quando se realçavam as propriedades dos agrotóxicos, seus riscos, formas de aplicação, eficácia e limites dos equipamentos de proteção individual, os efeitos, dos produtos tóxicos no meio ambiente. Durante essas aulas, os alunos elaboraram cartazes, textos, frases e desenhos, mostrando os riscos e quais as formas consideradas adequadas para se lidar com agrotóxicos. Merece destaque a plantação de morangos sem agrotóxicos, feita pelos alunos, como alternativa de produzir a fruta sem o uso dos chamados “defensivos agrícolas”. Além disso, os professores levaram os alunos a uma plantação de morangos para que eles entrevistassem o agricultor sobre o uso e conseqüentes riscos dos agrotóxicos para a saúde e para o meio ambiente. 160 Realizou-se ainda visita ao hospital-escola, em Barbacena, no setor de intoxicados, onde os alunos assistiram à palestra sobre os perigos para a saúde causados por produtos tóxicos, estendendo a visita ate o ambulatório. B) Escola Municipal Jose Benedito Câmpara Nessa escola, os professores desenvolveram atividades de pesquisa interdisciplinar, utilizando apostilas, livros e vídeos, entrevistas com familiares, elaboração de “minilivros” sobre agrotóxico, formação de agentes mirins na observação da ação de familiares e amigos, elaboração de cartazes, relatórios, poesias, mapas, gráficos, maquetes, fotografias da região, etc. Também houve aula demonstrativa, quando os alunos visitaram plantações da redondeza. C) Escola Municipal Monsenhor Lopes Os alunos dessa escola. participaram de atividades interdisciplinares em Língua Portuguesa, Ciências e Geografia, tendo como enfoque o uso dos agrotóxicos. Além de aulas teóricas sobre agrotóxicos, os alunos construíram maquetes representativas da realidade local (as plantações da zona rural e o distrito industrial, as favelas, os lixões, a reciclagem do lixo dos centros urbanos). Também dramatizaram a pega “Os defensores da natureza”. D) Escola Municipal Coronel Jose Maximo Projeto proposto com o objetivo de esclarecer e amadurecer o aluno e, indiretamente, a comunidade sobre o perigo do manuseio de agrotóxicos. As atividades desenvolvidas referem-se ao plantio de horta na escola, elaboração de textos e desenhos sobre agrotóxicos, construção do jornal mural “Aconteceu na roça”, elaboração de revista em quadrinhos, criação e produção de um vídeo, formulação de paródia contemplando o tema “Viva bem sem agrotóxicos”, apresentação de danças ilustrando as paródias. E) Jornada “Ecológica” Um ano após a implantação do projeto, realizou-se a l° Jornada Ecológica, evento aberto ao publico em geral, visando ao esclarecimento e conscientização sobre os problemas oriundos dos agrotóxicos, com programação baseada na apresentação das atividades desenvolvidas nas oito escolas e um ci- 161 clo de palestras, cujos temas versaram sobre agricultura, cidadania e agrotóxicos, abordados por especialistas da área. O evento contou com a presença de trezentos alunos que participaram de atividades, como dramatização, teatro musical, mímica, videodocumentário, além da montagem de um Stand com os trabalhos desenvolvidos pelos alunos. Necessário realçar que todas as atividades apresentadas foram planejadas e executadas pelas oito escolas participantes do projeto, ao longo do ano 2000. Comentários Neste século XX, o Brasil tem assistido a mudanças de longo alcance nas práticas agrícolas. Inovaram-se os instrumentos de trabalho e, conseqüentemente, os modos de arar, semear e colher; aumentou-se a área cultivada; alterou-se o escoamento dos produtos; e, por fim, mas não menos, importante, transformaram-se as relações sociais e de produção no campo. Tais transformações, resultaram em incremento e diversificação dos produtos agrícolas, tanto quanto em novas formas de organização do trabalho e das relações que lhe são subjacentes, quando se observa maior concentração fundiária, enquanto,o trabalho precarizado torna-se experiência comum entre os trabalhadores rurais, cujas condições de trabalho e de saúde se tornam ainda mais ameaçadas pela introdução dos agrotóxicos em seus materiais de trabalho. As condições assim relatadas podem ser encontradas no Brasil como um todo e particularmente em Barbacena, município em que desenvolvemos o nosso projeto piloto, escolhido em função do seu recorrente quadro de produtores e trabalhadores rurais intoxicados por agrotóxicos. Por ser a agricultura familiar predominante nesse município, percebeu-se que a intoxicação por agrotóxicos atingia também alguns de seus familiares, na maioria das vezes, crianças e adolescentes que ajudam os pais nos tratos culturais. Dessa forma, buscamos integrar sindicatos dos produtores, dos trabalhadores e organismos das três esferas do governo (Federal, Estadual, Municipal), notadamente, a Secretaria Municipal de Educação e oito de suas escolas rurais, cujos professores, após participarem de varias reuniões e processo de capacitação em temáticas apropriadas a Segurança e Saúde do Trabalhador Rural, elaboraram projetos de trabalho, nos quais os “agrotóxicos” foram incluídos como tema transversal a ser discutido com os seus alunos. 162 Nesta fase do projeto “Ações de segurança e saúde do trabalhador nas escolas municipais rurais”, ainda em desenvolvimento, e possível assinalar que as escolas municipais rurais, incluídas nas atividades, mostraram-se muito receptivas ao trabalho em parceria e sensíveis ao quadro de intoxicação por agrotóxicos, apresentado pelos trabalhadores rurais da região. Em conseqüência dessa parceria, tomou-se possível o conhecimento da realidade dos alunos, sob o que se pautariam as ações do projeto que, desde o início, buscavam o respeito ao homem e a mulher do campo e a sua cultura. Desse modo, tomou-se viável o debate continuo sobre a necessidade de se promover a saúde do trabalhador rural nas escolas; de modo que os alunos, desde cedo, tenham informações sobre os riscos decorrentes do trabalho, notadamente, aqueles advindos do uso de agrotóxicos. O projeto desenvolvido pela FUNDACENTRO - Centro Regional de Minas Gerais, em Barbacena, visava a preparação de alunos e, indiretamente, de suas comunidades, para as questões de segurança e saúde no trabalho rural e, em face da participação e envolvimento das escolas e comunidades seu crescimento foi significativo, possibilitando a sua expansão para os municípios circunvizinhos: Alfredo Vasconcelos e Carandaí. Não obstante os muitos avanços computados pelos, opositores da “Revolução Verde”, inferimos que muito ainda deve ser feito para que haja harmonia entre a produção agrícola e a saúde dos produtores e trabalhadores rurais, consumidores e meio ambiente. Referências 1. 2. 3. 4. 5. CAMPOS, Terezinha de Jesus. Relatório do projeto -Ações de Segurança e Saúde do Trabalhador nas Escolas Municipais Rurais. Belo Horizonte: FUNDACENTRO/CRMG, 1999. FIGUEIREDO, Vilma et al. Questão agrária e saúde no Brasil contemporâneo. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, n.59, p. 7-16, jul./ago./set. 1987. FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. GRUN, Mauro. Ética e educação ambiental: a conexão necessária. Campinas: Papirus Editora, 1996. HOBBELINK, H. (editor). Biotecnologia - muito além da revolução verde: desafios ou desastre? Porto Alegre: Editora Juquira Candiru, 1990. 163 6. 7. 8. 9. 10. PINHEIRO, S. et al. 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César Quintão, da Escola Agrotécnica Federal de Barbacena (Empresa Junior). Aos funcionários do Ambulatório de Doenças Ocupacionais. A EMATER de Barbacena e funcionários, na pessoa do Sr. Adahil Neves dos Reis. Ao Corpo de Bombeiros de Barbacena. 164 Equipe Tecnica • Terezinha de Jesus Campos - FUNDACENTRO - Coordenadora do Projeto • Pedro Sergio Zuchi - Pesquisador - FUNDACENTRO/CRMG • Maria do Rosário Sampaio - Pesquisadora - FUNDACENTRO/ CRMG • Clóvis Eduardo Meireles - Pesquisador - FUNDACENTRO/CTN/SP • Maria Inez Mariula - Técnica em Educação – SME/Barbacena • Iêda G. Dutra Costa - Técnica em Educação – SME/Barbacena • Mario José da Silva - Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Barbacena e Região • Adahil Neves dos Reis – EMATER/Barbacena 165 166 167 168 169 170 171 172 RELATO DE EXPERIÊNCIA PROGRAMA TRABALHADORES DE RUA: ESTUDOS E INTERVENÇÃO Tereza Luiza Ferreira dos Santos 1 Introdução S egundo dados do IBGE, o Brasil gera cerca de 240 mil toneladas de lixo diariamente. A maior parte desse lixo não recebe tratamento ou beneficiamento, indo parar nos aterros sanitários ou nos lixões. Em São Paulo, são produzidas quinze mil toneladas de lixo por dia. Isso equivale a dizer que cada habitante dessa cidade produz em media 1 kg de lixo a cada dia. Esse lixo tem um destino, ou seja, dependendo do bairro de onde e recolhido, pode ser transportado para as Usinas de Compostagem de Vila Leopoldina e de São Mateus, Transbordo e Incinerador Vergueiro, Transbordo de Santo Amaro e Ponte Pequena, Estação de Tratamento de Resíduos de Serviços de Saúde, Centro de Triagem e Reciclagem de Pinheiros, Aterro Bandeirantes e Aterro São João. Nesse circuito do lixo, o qual envolve a produção, coleta, transporte e destino final, estão inseridos os coletores de lixo, como costumo denominar, mas que são chamados pela comunidade de “LIXEIROS”. São mobilizados em torno de dez mil trabalhadores nesta categoria, de Asseio e Conservação e Limpeza Publica da Grande São Paulo, distribuídos entre coletores, varredores, bueiristas; pessoal de manutenção, etc. Segundo dados do SIEMACO (1992), cerca de 2.500 são coletores de lixo, ou seja, coletores são aqueles trabalhadores que recolhem os sacos de lixo deixados pela população nas calçadas. Os coletores de lixo tem baixa escolaridade, sendo a maior parte deles analfabetos, sabendo, apenas, assinar o nome, escrever um pouco com muitas dificuldades (haja vista os desenhos que faziam durante a pesquisa de campo. Os comentários que faziam por escrito continham inúmeros erros, tornando, por vezes, o texto ininteligível). Segundo dados do SIEMACO (1991), 50% dos coletores de lixo encontram-se na faixa etária de 35 anos. 1 Psicóloga, Mestre em Psicologia Social pela PUC/SP, Tecnologista Sênior da Divisão de Sociologia e Psicologia da Coordenação de Saúde e Trabalho da FUNDACENTRO. 173 A problemática da baixa escolaridade aparece na fala dos coletores de lixo quando se referem aos investimentos realizados para os filhos em idade escolar: “O estudo é a primeira coisa da vida ou o estudo e importante porque amanhã ou depois ela não precisa pegar no pesado como nós”. A sua procedência, segundo a representação dos próprios trabalhadores da limpeza urbana, por meio de desenhos, é do Nordeste do País e de Minas Gerais. As condições em que executam a sua atividade de trabalho não são o que poderíamos chamar de adequadas ou favoráveis, que facilitem, ou mesmo que não incorram em risco a sua saúde, de uma forma mais geral. Os coletores de lixo trabalham em três turnos, dependendo da empresa prestadora de serviços. De uma forma geral, estão expostos ao calor e ao frio intensos, a chuva, a garoa, etc. Em função de sua atividade, as roupas, vestimentas adequadas para um dia de frio ou chuva, não podem ser usadas, segundo eles, porque atrapalham o ritmo da coleta, ou seja, diminuem a possibilidade de movimentos do corpo, aumentando, inclusive, o risco de acidentes no trabalho. Durante o inverno, e muito freqüente sofrerem doenças como pneumonias e tuberculoses, principalmente as equipes que trabalham no turno da noite. O contato do lixo com as mãos é constante, pois o uso de luvas é outra problemática nessa atividade. Segundo os trabalhadores, elas não são usadas, porque as empresas não fornecem esse equipamento e quando é fornecido e tentase usar, logo se observa que as luvas dificultam os movimentos, por fazerem os coletores perderem sua sensibilidade (tato). Mas os problemas enfrentados pelos coletores de lixo, além dos aspectos concretos já mencionados, tem também uma conotação psicossocial, o que compile o significado da sua atividade de trabalho. Santos (1996) realizou um estudo de estilo etnológico, o qual teve como objetivo central conhecer a multiplicidade dos significados do trabalho com o lixo realizado no espaço publico da rua, pelo coletor de lixo, com ênfase na dialética sofrimento e prazer. Trabalhar na rua envolve outros elementos e significados: a rua propriamente dita, espaço de liberdade e cerceamento; espaço de contemplação e de encontros com a população, com o bandido e também com a namorada. Os coletores de lixo têm fama de ter uma mulher em cada rua e têm a cobertura dos colegas para namorar. Trabalhar na rua envolve o significado de liberdade em relação ao espaço restritivo da empresa. E poder fazer ou não fazer uma refeição e na ho- 174 ra em que se pretende; ao mesmo tempo em que, também, e ser vigiado pela população e pelos olhos dos colegas da equipe de trabalho (a população faz queixas, quando os trabalhadores fazem algo que lhe desagrada). Trabalhar na rua envolve outros significados, como o de arriscar-se e ao mesmo tempo, divertir-se. Arriscar-se por estar entre os carros, por ter que lidar com uma diversidade de situações presentes num espaço público; é divertido por poder brincar com o próprio corpo (pular e esbarrar no corpo do colega, em plena Av. Paulista, as 18 horas). Também é cansativo e monótono por ter que fazer a mesma atividade todos os dias, por ter de obrigar o corpo a correr sempre. Também é perigoso, pois, na rua, estão os bandidos, os malandros que fazem outros códigos, leis que precisam ser respeitadas. Na rua há gente de toda espécie, desde a dona-de-casa que da água quando a sede aperta, até o motorista que passa com o carro por cima do seu pé. Para esses trabalhadores, o lixo não é apenas um resíduo sólido. Eles dividem o lixo em lixo rico, lixo pobre, lixo triste e o lixo como esconderijo. A partir de 1982, com a crise do País, o lixo rico passou a lixo pobre e ficou mais difícil criar os filhos do lixo. Eles aproveitam o seu conteúdo, levam para as suas casas e seus filhos usam, cadernos, por exemplo, bem como sua esposa aproveita alicates de cutícula; o coletor se perfuma com um perfume da Avon que foi encontrado nos sacos de lixo. Cada saco de lixo que é pego se constitui em uma surpresa, constitui-se da qualidade da imprevisibilidade; do risco, do medo de cortar-se, de contaminar-se com uma agulha usada por um portador do vírus da AIDS. Esses trabalhadores correm em media trinta a quarenta quilômetros por dia carregam, estes que foram observados, uma media de seis a sete toneladas de lixo por coletor, durante uma jornada de sete horas e vinte minutos. Para eles, existe só um pensamento, “correr mais para voar mais cedo”, o que significa terminar o trabalho e ir para sua casa. Para cumprir a sua jornada e coletor o lixo do setor para o qual foi designado e sem riscos de acidentes, e necessário que o trabalho seja desenvolvido em uma equipe boa. A equipe boa de trabalho é a equipe unida, seja em termos de pegar um lixo pesado, seja em termos de dividir uma caixinha. Essa equipe boa possibilita o desenvolvimento da confiança, da responsabilidade, da solidariedade e também da criação de macetes e de jeitos de fazer o trabalho para garantir a vida dos coletores e a produção. Alias, uma coisa da qual se vangloriam e que determinam seu ritmo de trabalho, segundo suas necessidades. Isso é uma contradição da qual os coletores não tem consciência pois há queixas dos próprios coletores quanto a esse 175 ritmo, bem como outras formas de expressar a insatisfação em frente aquele esquema de trabalho, como e o caso do nó cego ou chupinha. O nó cego ou chupinha é aquele coletor que não se encaixa no ritmo da equipe. E não é só no ritmo, ele não coopera com os colegas, gosta de trabalhar sozinho, faz corpo mole e sempre sobrecarrega os colegas. Quando isso acontece, os coletores queimam o nó cego do carro, tirando-o da equipe ou dando-lhe um gelo. O nó cego é um desmancha-prazeres. Outro tipo de coletor de lixo é o “cabaço”. O cabaço é um gari novo na coleta e, já que é novo, os coletores consideram que ele tem de ser iniciado. Dase, então, o ritual de iniciação e, ao mesmo tempo, um treinamento para o coletor. Os coletores saem da garagem para coletor dentro da cabina do motorista e, em função de ela não comportar todos eles, em geral cinco pessoas, alguns vão sentados no colo dos colegas. Isso é uma situação que gera muita vergonha entre os trabalhadores. Quando o coletor é cabaço, é ele quem vai sentado no colo de alguém para que seja “desvirginado”. Por falar em ritual, existe um outro que e realizado pelos coletores de lixo e se constitui em fonte de prazer, de alegria, bem como de vergonha: a caixinha do Natal, das festas de final de ano. Algumas equipes preparam santinhos e distribuem para a população, pedindo uma caixinha para o coletor de lixo. Essa preparação da população dura o ano inteiro e vai, desde devolver a lata na mão da dona-de-casa, até deixar a lata de lixo jogada em algum lugar. De uma certa forma, esses trabalhadores estabelecem relações de troca com a comunidade do setor em que atuam. Trocam favores, quando recolhem entulhos ou objetos que são jogados no lixo pela população, quando batem os tambores de donos de bares e padarias. Em geral, a população da um “agrado”, em forma de caixinha, e os donos de bares, principalmente, dão em troca uma pinga, um rabo-de-galo, um café, etc. A pinga, a branquinha, a 516 um problema para essa categoria, pois, segundo os próprios trabalhadores, o coletor de lixo e movido a álcool e é difícil um cara que não beba trabalhar nesse serviço. O que surge de interessante e que tanto os donos de bares como a empresa estimulam esse tipo de conduta. Afinal, e uma forma de manter os trabalhadores calados, submissos. E sem duvida um calaboca. A pinga para esses trabalhadores é um reconhecimento por parte da população, mas também é o remédio de garrafa que cura e queima todos os males. A pinga é o complemento vitamínico que faz falta na sua dieta alimentar; e o desinfetante para a sua pele; ajuda a não sentir o cheiro do lixo pelo cheiro que fica na boca; e o estimulante para correr; e um anestésico para não sentir as dores no seu corpo já cansado; é a vacina antitetânica e anti-rábi- 176 a; é remédio pra tudo. A cachaça é reconhecimento e exploração. A pinga e usada para manter o ritmo no trabalho a fim de cobrir a produção prescrita pela empresa e serve, numa perspectiva subjetiva, para proteger o trabalhador do olhar do outro, para mascarar seu sofrimento, sua vergonha de estar sujo, de ser coletor de lixo na frente da namorada, da moça bonita que o espera passar. Ao beber uma pinga, o coletor de lixo “lava a alma” da sujeira que envolve a sua vida, da impossibilidade do consumo, reconhece-se como cidadão, como gente. A pinga lava o corpo e a alma maculados pela exclusão social. E, pois, uma metáfora do processo de inclusão social pela exclusão. Quando esses trabalhadores recebem um pinga em troca da realização de seu trabalho, são desvalorizados. Se a população fosse pagar a alguém para pegar um colchão velho do qual querem se desfazer, com certeza não pagariam esse serviço com uma pinga e também não pagariam o valor de uma. pinga. Esse mecanismo também está presente nas caixinhas, nos agrados e se mostra perverso, pois, ao dar uma caixinha, transmite-se a mensagem de que o trabalhador é importante, mas, desde que ele esteja sempre ao seu dispor para prestar aqueles favores especiais, para, assim, poder receber um dinheirinho a mais e complementar o seu salário tão pequeno. Um outro estudo, realizado em parceria com o Ministério Publico do Estado de São Paulo, aponta altos índices de acidentes de trabalho nessa categoria, em função das péssimas condições de trabalho as quais estão expostos. A partir da análise de 3.231 Comunicações de Acidentes de Trabalho ocorridos no período de 1990 a 1994, das empresas prestadoras de serviços de limpeza publica, 3.004 acidentes de trabalho ocorreram durante a jornada de trabalho. As causas mais freqüentes foram: perda de equilíbrio-escorregão (16,3%), deslocar peso (13,8%), choque contra objetos/pessoas (12,6%) e objeto cortante/vidro (10,0%). Essa ultima causa deve ser ressaltada, pois a forma de acondicionamento do lixo em sacos plásticos contribui com quase 30% dos acidentes, principalmente devido a presença de material perfurocortante e excesso de peso. Esses dados indicam que, enquanto o sistema de coleta atual estiver em vigor, a segurança do coletor de lixo também é responsabilidade do cidadão produtor do lixo, quando o acondiciona. Dessa forma, entendemos que uma categoria profissional que é tão excluída socialmente, como a autora do estudo demonstrou, por trabalhar com o lixo, por estar sujo, deve por meio de algumas intervenções ter a sua dignidade e condição de cidadãos resgatadas. Esse resgate passa por uma série de intervenções, desde a política do sistema de coleta de lixo, até a necessidade de se repensar a nossa produção 177 de lixo, incluindo o desperdício, bem como o tratamento que damos ao nosso lixo em nossas próprias casas. Uma das alternativas de um programa de resgate de cidadania, em nosso entender, e a sensibilização da comunidade para o problema, por meio de campanhas e de intervenções com fins educativos. As transformações pelas quais passa a sociedade hoje colocam desafios e dificuldades [...] e exigem um novo papel frente a elas. Exigem que se arranquem as raízes das árvores cujos galhos só oferecem sombra à classe trabalhadora. Em seu lugar, deve-se plantar uma árvore com raízes profundas, cujos galhos podem oferecer sombra não só aqueles que vivem do trabalho, ou a procura dele, mas a todo ser humano que necessite de condições básicas para viver com dignidade, igualdade e justiça social (Fenascon, 1999). Imbuída dessa idéia e de posse de informações adquiridas por meio de estudos por anos a fio, e que desenvolvi a proposta de trabalho que apresentarei a seguir, na qual o pesquisador, o estudioso, vai para a universidade ou para cursos de pós-graduação a fim de melhorar o seu método de estudo e de buscar respostas para as suas inquietações, sem esquecer que, após obter a1gumas dessas respostas, deve repassá-las para quem de direito, os trabalhadores e a comunidade. Assim, sou uma psicóloga que buscou um mestrado em Psicologia Social para responder a perguntas e, após, voltar com algumas reflexões e esclarecimentos para devolver a população, intervindo para prevenir, educando para prevenir contra acidentes e doenças ocupacionais ou com elas relacionadas. Quando me refiro a educar para prevenir, neste contexto do coletor de lixo e sua relação com a comunidade, refiro-me a mudanças profundas na concepção de trabalho que foi construída e pela qual essas pessoas se encontram contaminadas. Trata-se de uma mudança de concepção de mundo, em que se pretendem resgatar valores, tais como o próprio trabalho, saúde e prazer neste universo tão complexo. Dessa forma, o Programa trabalhadores de rua: estudo e intervenção foi estruturado com duas idéias fundamentais: a) realizar estudos sobre os coletores, varredores, trabalhadores da limpeza urbana e outros profissionais que realizem suas atividades no espaço publico da rua, prestar assessorias a empresas e órgãos públicos; e b) realizar intervenções educativas na comunidade, a fim de sensibilizá-la para a sua problemática. Nessa vertente, todas as oportunidades devem ser aproveitadas: apresentação da exposição fo- 178 tográfica em eventos científicos, em feiras de saúde e segurança, em locais públicos (metrô, calçadões, etc.) em parcerias com o sindicato da categoria, com abrangência estadual e nacional, e nas escolas da rede pública de ensino da cidade de São Paulo. Aqui estarei privilegiando o relato de experiência da exposição fotográfica intitulada COLETORES DE LIXO: ARRISCANDO, BRINCANDO E LIMPANDO, em uma escola de primeiro grau da rede pública da cidade de São Paulo. Histórico: como surgiu este projeto Após a conclusão do Mestrado, de posse de informações e de outros materiais igualmente ricos, como material fotográfico levantado a partir da pesquisa de campo, o qual retratava as condições de trabalho dos coletores de lixo, surgiu a necessidade desta pesquisadora de retornar à comunidade, de uma forma geral, os resultados da pesquisa. Desse modo, busquei o apoio do sindicato da categoria e de sua federação nacional, afim de, juntos, estruturarmos uma exposição fotográfica sobre esses trabalhadores, tendo a mostra um caráter itinerante e devendo ser levada a diversos locais públicos, eventos científicos, feiras de saúde e segurança, etc. Assim, foram confeccionados quarenta painéis fotográficos com legendas, sendo estas falas dos coletores de lixo e também análises realizadas pela autora do projeto, mais um folder (a ser distribuído com informações sobre os coletores de lixo e orientações para o correto acondicionamento do lixo). Seguindo a proposta, a exposição foi realizada em diversos locais e para públicos diferenciados, mas foi a partir da exposição fotográfica realizada no Mezanino do Metrô Tatuapé, em outubro/1999, que, efetivamente, estruturei uma estratégia. Essa estratégia seria a de levar a exposição para as escolas e esse indicador foi apontado pelos visitantes da exposição quando do evento supracitado, por meio do livro de registro de assinaturas, no qual solicitava também comentários de uma forma geral sobre o trabalho. “É um alerta importante e uma campanha bonita.” “Educar o ser humano, educar o povo para não jogar mais lixo na rua.” “Levar essa conscientização para as escolas públicas, particulares e empresa.” 179 “Meus parabéns!!! Bela amostra. É disto que o Brasil precisa: educação ao povo.” “A exposição poderia ser feita nas escolas.” “O trabalho é ótimo, mas deveria ser levado até as escolas, não ficando somente como função do professor levar os garis para dar palestra nas escolas e mostrar a importância do gari para a sociedade. Parabéns.” “Vocês deveriam fazer uma campanha mais ampla principalmente nas escolas.” Vale ressaltar que, de um público de 580 pessoas que assinaram o livro de registro no Metrô Tatuapé, 137 pertenciam à área de educação (coordenadores escolares, coordenadores pedagógicos, educadores em saúde, diretores escolares, oficiais de escola, monitores, professores, estudantes, pedagogos, etc.). A própria comunidade apontou um norte para o desenvolvimento do meu trabalho, resultando disso a elaboração de uma miniproposta intitulada PROGRAMA COLETORES DE LIXO NAS ESCOLAS DA REDE PÚBLICA, EXPOSIÇÃO FOTOGRÁFICA: COLETORES DE LIXO - ARRISCANDO, BRINCANDO E LIMPANDO. Objetivos: • desvelar, tirar o véu que encobre os coletores de lixo, por meio de imagens, levando a população, de uma forma geral, a refletir sobre essa ocupação; • resgatar o sentimento e o direito de cidadania Limpeza Pública; • sensibilizar sindicalistas, autoridades, empresários, educadores, estudantes, enfim, os diversos atores sociais para as condições de trabalho, visando a melhorias para a categoria; • mostrar as condições e a organização do trabalho dos trabalhadores da limpeza pública e seus múltiplos significados para o trabalhador da coleta; • contribuir para uma discussão acercado processo de coleta, transporte e destinação final do lixo; • criar um espaço de reflexão acerca da legislação sobre segurança e saúde dos trabalhadores que exercem suas atividades profissionais nos espaços públicos (ruas, praças, logradouros públicos, etc.); 180 • contribuir para uma definição de prioridades no âmbito da prevenção e promoção da saúde e segurança do trabalhador da limpeza pública. Metodologia • CONTATO COMA DIREÇÃO DA ESCOLA A escola escolhida foi a E.E. Prof. José de Campos Camargo e essa escolha não ocorreu por acaso, pois a escola localiza-se no mesmo bairro e bem próximo à minha residência. Munida do projeto, do folder e da publicação intitulada “Coletores de lixo: a ambigüidade do trabalho na rua”, dirigi-me à escola e me apresentei como funcionária pública federal da FUNDACENTRO, explicando que desenvolvia estudos e intervenções educativas na comunidade com o tema coletores de lixo. Nesse primeiro contato, em abril de 2000, apresentei-me, deixei o material supracitado e combinei com a direção da escola uma reunião para uma semana após, quando expus a idéia do trabalho, objetivos e dei encaminhamento a uma solicitação formal à FUNDACENTRO para efetivar os trabalhos. • ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE E PROCEDIMENTOS Toda a organização do evento, seu planejamento, foi realizada em conjunto com a Diretora e a Coordenadora Escolar. Suas informações, boa vontade, agilidade, experiência no trato com as crianças/alunos foram de fundamental importância para viabilizar a proposta. No segundo contato, já definimos a estrutura geral do evento e foi decidido que a Escola chamaria os pais dos alunos e a comunidade do bairro para visitar a exposição, bem como para a palestra a ser ministrada. Na terceira visita à E.E. Prof. José de Campos Camargo, em maio/2000, participei do Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC), quando tive um tempo de cinqüenta minutos com todos os professores (26 professores) para expor a proposta da exposição, bem como o trabalho dos coletores de lixo, seus problemas com doenças, o sistema de coleta de lixo atual e as alternativas possíveis, relacionando tais questões com o meio ambiente. Por ocasião dessa exposição, distribuí aos professores a proposta de trabalho e um texto resumo intitulado “Coletores de lixo: a ambigüidade do trabalho na rua” a fim de que pudessem apreciar a abrangência do estudo realizado e da problemática da categoria. Tendo submetido à apreciação da Administração da FUNDACENTRO a proposta em questão, bem como o ofício encaminhado à Diretora da Escola, tendo a aprovação da Casa, dei prosseguimento aos encaminhamentos e 181 providências necessárias para a realização do evento, tais como, solicitação de impressão do folder na Gráfica da FUNDACENTRO; solicitação do apoio da Divisão de Eventos que agilizou veículos, transporte, montagem e desmontagem dos painéis; confecção de transparências para palestras aos alunos e pais; preparação das palestras. É imprescindível registrar o apoio da Assessoria de Comunicação da FUNDACENTRO, a qual elaborou release do evento e distribuiu a rádios, jornais e canais de TV. Resultados- o trabalho propriamente dito 1° dia - 17-5-2000 (quarta-feira) - Montagem dos painéis, arrumação dos painéis, definição dos últimos detalhes em conjunto com a coordenação e a diretoria da escola. Foram retiradas do conjunto de painéis as fotografias que exibiam legendas relacionadas com o consumo alcoólico, em função da faixa etária do público a ser atingido. 2° dia - 18-5-2000 (quinta-feira) - Visita dos alunos à exposição, tendo sido feita uma distribuição por série e por horário. Antes da visita dos alunos, era feita a apresentação do trabalho pela coordenadora do projeto e também eram dadas algumas orientações sobre o trabalho do coletor de lixo. Era ainda solicitado às crianças que procurassem conhecer os seus coletores de lixo, bem como os seus nomes para informar, no próximo dia, durante as palestras. Outra orientação foi dada com relação à denominação usual, “lixeiro”, tentando-se mudá-la para “coletor de lixo”. 182 Toda a programação foi realizada nos tempos previstos, com a presença das professoras responsáveis pelos alunos naqueles horários, bem como respeitando os seus horários de intervalo escolar. Nesse dia, foi enviado aos pais dos alunos folder e convite com o texto abaixo, para palestra no sábado: Senhores Pais A Direção da E.E. “Prof. José de Campos Camargo” convida-os para a a 1 EXPOSIÇÃO FOTOGRÁFICA E PALESTRA sobre a importância dos Coletores de Lixo na preservação do Meio Ambiente. Realização: dia 25-5-2000 , sábado às 10h. Sua presença será muito importante. Durante os dias 17 e 18-5-2000, foram desenvolvidas, pelos professores, tarefas em sala de aula com os alunos, em torno do tema em questão: coletores de lixo, meio ambiente, problemas de saúde, além de efetuarem uma preparação dos alunos para as palestras que realizei no último dia da exposição. 3o dia -19-5-2000 (sexta-feira) - Ministrei palestras para os 583 alunos da escola, bem como para os professores, pessoal da escola, serventes, merendeiras, etc. Os horários foram definidos em conjunto com a Coordenadora e Diretora Escolar. As palestras foram realizadas na sala de projeção de vídeos da escola. 183 Apesar dessa programação para o período da tarde, houve um atraso na primeira turma, o que ocasionou a palestra da última turma acontecer apenas após o intervalo escolar, iniciando-se às 16 horas e terminando às 17 horas. Essa turma teve uma vantagem de meia hora a mais que as outras. Como forma de levantar dados sobre a imagem do coletor de lixo para as crianças, foi solicitado que fizessem uma redação sobre o assunto (3a e 4a séries) e um desenho (1a, 2a, Classes Especiais e Projeto). O livro de assinaturas para registro dos visitantes da exposição percorreu todas as salas de aula. Nele foi solicitado que respondessem aos seguintes pontos: nome, idade, série e à pergunta “O que você achou?”. 4° dia - 20-5-2000 - sábado - A escola abriu suas portas à comunidade e pais de alunos às 10 horas como informado em convite enviado pelos alunos. As visitas foram realizadas até às 12 horas. Iniciamos uma palestra para os pais dos alunos e corpo docente da escola às 10h30min, finalizando uma hora após. As informações passadas foram sobre coletores de lixo, acidentes e doenças ocupacionais, modos de pensar, sentir e agir no trabalho; o lixo e o sistema de coleta atual, dicas para o acondicionamento do lixo, alternativas, coleta seletiva de lixo. A diretoria da escola foi muito enfática nessa ocasião, registrando uma parceria entre esta pesquisadora e a escola, no sentido de implantar um núcleo de coleta seletiva no bairro. Para tal, já estamos com reunião agendada. As atividades foram encerradas às 12h30min do sábado, 20-5-200, sendo a exposição desmontada em 22-5-2000 (segunda-feira) pelo pessoal da FUNDACENTRO e transportada até o CTN. 184 Avaliação • O retorno através da afetividade/subjetividade - A TIA Em função de a escola de Ensino Prof. José de Campos Camargo estar localizada bem próxima à minha residência, é muito comum encontrar os alunos que, além de ali estudarem, muitos deles também residem nas imediações. Nesses encontros, são diversas as demonstrações de afeto quando nos encontramos: querem saber como estou, se estou fazendo a exposição em outras escolas, contam as histórias de suas residências, do lixo mal acondicionado. Falam também que ensinam aos seus pais como fazer para embalar cacos de vidros, etc. • O retorno por meio das redações. Uma das formas de avaliar se a atividade foi bem recebida pelos alunos foi por meio de redações sobre o coletor de lixo, que foi solicitada a cada aluno que estivesse apto a redigir um texto. Demonstraremos a seguir trechos de algumas redações: Redação 1: “Você chama o coletor de lixo de lixeiro? Pois você está errado. Lixeiro sou eu, é você. Os coletores só coletam o lixo da cidade suja, seja o lixo que for, eles limpam. Você já pensou se não existissem coletores, o que seria de nossa cidade de São Paulo? Nós seríamos soterrados vivos, catástrofe para nós, festas para os ratos e baratas. Mas Graças a Deus, existem os coletores. Eles são gente como nós. Colabore com a limpeza de nossos bairro e cidade. Você também pode ajudar na limpeza. COLETORES DE LIXO, OBRIGADO.” (Thiago, 4aD) Redação 2: “Existem muitas pessoas que chamam os coletores de lixo de lixeiros e isto é desagradável. Eles falam que lixeiros é quem produz o lixo que somos nós. Os coletores de lixo gostam de crianças, tem umas que até ajudam eles a porem os sacos no caminhão. Eu não sabia que se chamava coletores de lixo, eu sempre chamei de lixeiros, eu fui saber com a Dona Tereza.” (Larissa, 4aD) 185 Redação 3: “Na minha escola aprendi um pouco sobre os coletores de lixo. Uma moça chamada Tereza ensinou a importância deles. Os coletores procuram estar sempre contentes. Também tem problemas, como se cortarem com os vidros porque dizem que é ruim usar luvas; na estrada porque correm e não conseguem ver os carros e com a discriminação. Bom, o trabalho deles é muito cansativo e por isso onde eles sentarem eles dormem. Para ganhar mais dinheiro tudo que eles acharem e der para aproveite; eles levam para casa.” (Gisela, 4aD) Redação 4: “Os coletores de lixo são pessoas muito importantes para a população, eles recolhem o lixo de vários bairros por isso eles correm tanto. O governo manda um caminhão para a Penha inteira, eles com tanta pressa correm de 40 a 60 km. Nós devemos dar graças a Deus que eles existem. NÃO DISFAÇA DOS COLETORES DE LIXO, SEM ELES NOSSA CIDADE SERIA TOTALMENTE IMUNDA:” (Ricardo, 3a B) Redação5“Os coletores de lixo são muito bons porque eles passam pegando o nosso lixo na nossa rua. Eu gosto deles porque eles estão fazendo tudo o que podem por isso muitos coletores já morreram atropelados pela noite porque eles usavam uniforme escuro, só que o mais importante é que eles continuam recolhendo o nosso lixo.” (Oswaldo, 4a C) Considerações gerais e propostas Considero esta atividade, a exposição fotográfica nas escolas da rede pública de ensino, uma intervenção fundamental a ser continuada em outras escolas, pois já demonstrou ser de grande importância na criação e desenvolvimento de uma nova concepção de mundo, de trabalho e de cidadania, tanto no que diz respeito aos coletores de lixo, como também aos alunos das escolas. Considero ainda que outras atividades educativas poderiam ser levadas adiante, tais como uma campanha séria pela qual se resgatasse a dignidade desse trabalhador tão encoberto de lixo, campanha desenvolvida pelas próprias crianças ou usando suas falas. Diria que não é uma tarefa fácil ir de escola a escola, bater de porta em porta, conversar e convencer cada diretor de escola, cada coordenador esco- 186 lar, expor a proposta, retornar, fazer novos contatos, expor as fotos... Tudo isso não é tarefa fácil... Mas é gratificante quando realizo a atividade e sou, posteriormente, reconhecida pelos alunos da escola que me procuram para falar dos seu progressos com relação ao lixo dentro de suas casas... Assim, continuo indo de escola a escola, de porta a porta apresentar o projeto, acreditando que devemos começar de qualquer maneira e não permanecer de braços cruzados diante de tanto sofrimento, de tantos acidentes de trabalho, de tamanha exclusão social. Referências 1. FENASCON. Projeto Cidadania. São Paulo, 1999. 2. FUNDACENTRO. Análise dos acidentes de trabalho e doenças profissionais dos trabalhadores das empresas prestadoras de serviços de limpeza pública da cidade de São Paulo no período de 1990-1994. São Paulo: FUNDACENTRO, 1999. 3. MIRANDA, Luciana L. O que é lixo. São Paulo: Brasiliense, 1995 (Coleção Primeiros Passos: 299). 4. SANTOS, Tereza Luiza F. Coletores de lixo: a ambigüidade do trabalho na rua. São Paulo: FUNDACENTRO, 1999. 187 188 A EDUCAÇÃO COMO DETERMINANTE NA INVERSÃO DO MODELO DE ASSISTÊNCIA AOS TRABALHADORES Cléa Dalva Jorge Godinho 1 Ivone Garcia da Silva 2 Meire Cristina da Fonseca Vieira 3 Valéria Maria Santos Rocha 4 Introdução N o momento atual brasileiro, em que as questões de saúde dos trabalhadores se subordinam à lógica dos interesses do capital na sua forma mais excludente, buscamos reafirmar os princípios do Sistema único de Saúde como conquista do direito de saúde, pela integração e participação efetiva dos cidadãos nessa nova ordem. No que se refere especificamente à saúde do trabalhador, a Lei Orgânica da Saúde, n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, em seu artigo sexto, estabelece, dentre outras ações, como dever do Estado a “informação a trabalhadores e empregadores sobre os riscos presentes neste processo, incluindo a divulgação dos resultados, avaliação e fiscalização realizada, nos locais de trabalho”. O novo modelo de saúde pública sedimentou-se em Juiz de Fora, nos primeiros anos da década de 90, e possibilitou, em 1996, a criação do Instituto de Saúde do Trabalhador (ISAT), sob a ótica da superação das ações reducionistas assistenciais vigentes na época. Além da proposta de vigilância nos ambientes de trabalho, o ISAT emerge com a preocupação de desenvolver ações de prevenção como prioridade naquele momento. Pensar em inversão do modelo assistencial hegemônico, para um modelo de prevenção que privilegiasse a promoção e proteção da saúde e a redução dos danos provocados pelo trabalho, entretanto, só seria possível com o próprio trabalhador como sujeito na construção dessa transição. 1 Médica, Especialista em Clínica Geral e Medicina do Trabalho. Técnica de Segurança, Socióloga com Licenciatura Plena em Sociologia. 3 Enfermeira, Especialista em Administração Hospitalar, Saúde Pública e Enfermagem do Trabalho com Licenciatura Plena em Enfermagem. 4 Assistente Social, Especialista em Gerência e Administração de Sistemas de Saúde. 5 Todas as autoras fazem parte do quadro de servidores públicos da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de Juiz de Fora. 2 189 Como entendimento de que a informação e o conhecimento constituem instrumentos básicos para a garantia das transformações necessárias, traçamos, como perspectiva principal, uma proposta de educação ampliada, voltada para a reflexão e a sensibilização dos profissionais, visando a contribuir para a prática baseada na liberdade e solidariedade. Cumprindo determinações legais, ao longo dos últimos quatro anos, investimos em ações educativas, tendo como população-alvo trabalhadores, técnicos da área de saúde e segurança no trabalho de empresas públicas e priva das, sindicalistas, empregadores, representantes de instituições públicas, como Ministério do Trabalho e Emprego, Universidade Federal de Juiz de Fora, Instituto Nacional de Seguridade Social (Perícia Médica e Centro de Reabilitação Profissional), além de profissionais de saúde da rede básica do SUS. Necessária seria a legitimação das políticas implantadas, o que seria buscado pelos próprios atores sociais envolvidos que, embora com objetivos divergentes, tinham em comum a necessidade de instrumentalizar-se do saber para dar conta da realidade que se apresentava. Para estudiosos do assunto, a criação de uma cultura em que o professor se torne um aprendiz e cada aprendiz, um professor permite a construção não somente do conhecimento individual mas também do conhecimento coletivo. Recorrendo às teses de Stuart Mill, economista e filósofo inglês, entendemos que o despertar de conhecimentos por meios educativos, no sentido de formar cidadãos ativos, participantes, capazes de pensar, julgar e escolher, é a única alternativa à passividade e à indiferença preferida pela classe economicamente dominante. Não nos referimos à educação puramente intelectual ou à educação moral que se vincula a uma didática de valores nem sempre defensáveis, mas à educação que apela para á consciência ética, ética racional, como em Max Weber, que propõe decisões caso a caso e não aquela baseada em valores puramente morais, educação do comportamento que deve desenvolver práticas justas e humanas, de solidariedade ativa que contraria a apatia para despertar interesses positivos no sentido do bem comum. A educação, como reflexão e exercício desses valores, possibilita tanto aos especialistas quanto aos trabalhadores que dependem das suas decisões maior consciência da sua dignidade e de seu real papel no meio em que estão inseridos. Nessa perspectiva, não está imprimida em nossa proposta a intenção de criar métodos, técnicas ou novas formas de conhecimento, mas atemo-nos ao escopo legal em vigor e procuramos fazer, numa dimensão ética, a reflexão sobre o modelo de saúde que temos e o que queremos para os trabalhadores. 190 A capacitação para esta abordagem deveria estar incorporada nos processos de formação e especialização dos profissionais de saúde do trabalhador, reciclada e desenvolvida ao longo de todo o seu exercício profissional. Fundamentos teórica As atividades profissionais no campo da prática devem ser entendidas como eixo integrador para onde convergem os conteúdos teóricos e se concretizam nas situações reais, havendo uma retroalimentação dinâmica para garantir a continuidade. Os desafios do cotidiano geram tensões, as quais impulsionam para a busca, criatividade e tomada de decisão em direção ao alcance de soluções, em que as experiências anteriores servem de respaldo teórico/prático. Esse processo remete à reflexão-ação-reflexão que constitui a práxis profissional, pela interligação do pensar e do fazer. Freqüentemente, a literatura afirma que há espaços a serem preenchidos entre a teoria e a prática, indicando um descompasso entre o ensino e o cotidiano profissional, transformando-os em mundos distintos. Torna-se presente, então, a necessidade da construção de ligações a fim de que um mundo possa informar e ser informado pelo outro, como possibilidade da relação saudável no mundo do trabalho. Para Oliveira (1996), a formação profissional é extremamente importante para oferecer conhecimentos técnico-científicos que possibilitem a adaptação do trabalhador às mudanças tecnológicas que vêm ocorrendo no mundo e, em particular, no Brasil. Nesse contexto, é necessário colocar a educação como uma questão fundamental para a formação do trabalhador diante do desenvolvimento humano, a partir de uma proposta educacional do trabalhador que, além de lhe proporcionar conhecimento geral, procure desenvolver sua autonomia perante o trabalho, com repercussão na sua tomada de decisões e no pensamento crítico. Deparamos com contradições e situações extremamente complexas a serem enfrentadas no dia-a-dia, as quais exigem a busca de respostas que impõem a necessidade de reflexão, de domínio do saber, do cultivo da persistência, da capacidade de aprofundamento e de discernimento para a dinâmica da práxis renovadora. Paulo Freire, em sua visão pedagógica, entende que, para o homem, o mundo é uma realidade objetiva, independente dele, possível de ser conhecida. Ressalta, porém, que o homem é um ser aberto à realidade, o que o faz ser o ente de relações que é, e não só de contatos. Com características distintas dos outros seres, o homem é dotado de uma pluralidade de relações com 191 o mundo quando, entre outros comportamentos, organiza-se, testa-se, age e discerne. Em discernindo, o homem descobre sua temporalidade e, com a consciência desta, descobre sua historicidade. Como conseqüência disso, o homem acaba sendo ativo e eminentemente interferidor em sua própria realidade, sendo por isso capaz de modificá-la. Para se integrar ao seu contexto, porém, para criá-lo e recriá-lo, é preciso haver uma crítica de sua consciência que possibilite sua interação com o mundo. Essa consciência crítica, entretanto, deve ter como base o conhecimento, ao mesmo tempo em que é despertada por ele. O conhecimento que considera o ponto de partida individual, o mundo vivido de cada um, com toda a carga de experiência que representa esta realidade. Nesse sentido, não existe transmissão como mão única de viabilizar informações, mas elas só são apreendidas na medida em que se estabelecem relações dialógicas, apoiadas na responsabilidade social e política. A consciência crítica, formada sobre os pilares da interação, da reciprocidade e da liberdade, é que permite ao homem inserir-se no contexto social e criar nele a sua realidade. Para o grande mestre da educação, no processo de aprendizagem, o aprendiz cresce e se desenvolve. Aí, estão implícitas as mudanças. O que é assimilado é compartilhado e assim se concretiza o comprometimento social com o apreendido e, conseqüentemente, a sua legitimação. Assim, a educação conscientizadora tem como objetivo a transformação social, a troca de experiências, o questionamento, a individualização e a humanização. Seu conteúdo são os problemas existentes nas experiências cotidianas do aprendiz que, sistematizadas e teorizadas, por meio da relação dialógica e participativa, conduzem-no à reflexão e ação-transformadora e legitimadora da realidade. Para o antropólogo Roque Laraia, tornar-se humano é tornar-se individual. Nós nos tornamos indivíduos sobre a direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados historicamente, em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas. Somente a partir do conhecimento é possível a construção de indivíduo, condição de participar, de forma ativa, da própria cultura em que se está inserido. Retornando a Paulo Freire, educação é toda influência que o ser humano recebe do ambiente social, durante toda a sua existência, no sentido de adaptar-se às normas e valores sociais vigentes e aceitos. O ser humano, todavia, recebe essas influências, assimila-as de acordo com suas inclinações e predisposições e enriquece ou modifica seu comportamento dentro dos seus próprios padrões pessoais. Clifford Geertz, em A Interpretação das Culturas, afirma que o pensamento humano é, basicamente, tanto social como público. Seu ambiente natu- 192 ral é o pátio familiar, o mercado e a praça da cidade. Pensar consiste não nos “acontecimentos na cabeça”, mas num tráfego entre símbolos significantes. Nessa perspectiva, o homem dá significado às coisas, ao mundo, portanto. Aí está o que o diferencia fundamentalmente dos animais que agem exclusivamente pelo instinto, jamais assimilando comportamentos de outros animais. Como homens, produzimos significados durante toda a vida, além daqueles que já encontramos prontos e que nos são impostos. Portanto, os significados não são pessoais, mas sociais, e têm como função o controle do comportamento em sociedade, na medida em que agimos de acordo com eles. Aí se situa o paradoxo da noção de liberdade. Liberdade como condição humana estudada em profundidade pelos grandes clássicos da política, significação que deve ser resgatada e discutida, aqui, pelos profissionais que têm como missão decidir sobre a vida de outros. Liberdade como descrita em Stuart Mill, que parece adequada à nossa atualidade. Mill, apesar de, como utilitarista, recusar a teoria dos direitos naturais, afirma que a liberdade não é um luxo que interesse apenas a uma minoria esclarecida. É, antes de mais nada, o substrato necessário para o desenvolvimento de toda a humanidade. E o é principalmente, “porque ela torna possível a manifestação da diversidade, a qual, por sua vez, é o ingrediente necessário para alcançar a verdade”. Metodologia A metodologia utilizada para o desenvolvimento das ações educativas executadas pelo ISAT obedeceu, basicamente, aos mesmos critérios. A partir da realidade empírica vivenciada nos diferentes momentos, passamos a traçar um diagnóstico situacional, baseado na incidência e prevalência dos casos registrados, de forma a priorizar os problemas de maior relevância. Identificado e dimensionado o problema, foram traçadas, na FUNDACENTRO-MG - Instituição ligada ao Ministério do Trabalho e Emprego e principal parceira nas atividades educativas - as formas de intervir, sob a ótica da educação. Algumas atividades desenvolvidas em conjunto com outras instituições tiveram maiores entraves no sentido da aprovação de projeto prévio e da subordinação ao aspecto do interesse mútuo de seus fins. A parceria com a FUNDACENTRO, entretanto, devido à convergência desses interesses, constituiu-se como referência para a viabilização dos trabalhos propostos, assegurando especialistas no gênero para desenvolvê-los. 193 De acordo com a disponibilidade de técnicos do próprio quadro, ou contratando profissionais especializados na questão procedente, foram agendados os cursos, seminários, palestras ou outros eventos que marcaram o processo. O critério de escolha da população a ser atingida ocorreu de forma estratégica, segundo as especificidades da questão a ser abordada em cada momento, privilegiando a pluralidade dos participantes, a fim de estimular o debate entre os diversos segmentos sociais. A organização administrativa das atividades, em sua totalidade, foi executada pela equipe de profissionais do ISAT, e a divulgação de cada evento foi por meio da imprensa, de convites individuais, folders e cartazes, definidos e elaborados pela equipe de acordo com a população-alvo e amplitude da atividade. A abordagem metodológica aqui adotada requer que se faça um estudo pregresso de todo o processo educativo desenvolvido, mencionando cada atividade, bem como a necessidade da sua realização, seu conteúdo e a forma de articulação com a instituição colaboradora. Quanto aos resultados, são dados pela práxis dos trabalhadores e profissionais de saúde do trabalhador. Confirmam o efeito do saber nas atitudes cotidianas do fazer. No período de 1995-2000, foram realizadas diversas atividades educativas, como demonstra o Quadro l. Descrição das experiências mais significativas Curso de Atualização em Saúde do Trabalhador No processo de construção do projeto que geraria a implantação do Instituto de Saúde do Trabalhador no organograma da Secretaria Municipal de Saúde, fomos procurados por técnicos da PUNDACENTRO-MG, com a proposta de parceria para a realização de um Programa de Capacitação em Saúde do Trabalhador. Era fundamental, naquele momento, que se propiciassem as bases para a difusão das ações que seriam emanadas, ao mesmo tempo em que as lacunas a serem preenchidas por essas ações deveriam ser explicitadas na própria dinâmica de interação que se estabelecia. Além disso, para se construir o reconhecimento como uma instância geradora de políticas e representativa dos direitos dos trabalhadores, no tocante à saúde, era necessário que o ISAT se apresentasse efetivamente com designação clara do seu papel, numa estratégia de objetivação do subjetivo que desestimulasse a concepção da idéia simplista corrente de que nascia apenas uni setor a mais na esfera pública. 194 195 De grande importância ainda era que essa objetividade se identificasse como fonte, como lugar de onde emanariam as políticas de saúde do trabalhador e, ao mesmo tempo, para onde se convergiriam tanto as demandas do município, quanto o conhecimento oriundo de grandes especialistas, estudiosos e profissionais com experiência em centros mais avançados. Dessa forma se construiria a significação da idéia de referência e, ao mesmo tempo, da constituição de um canal aberto para demandas e reivindicações, condição de legitimidade do serviço. Entendemos que a alternativa de instrumentalizar o maior número possível de profissionais, com conhecimento e informação, possibilitaria a troca e a confiança, elementos essenciais para a projeção de expectativas e a sustentação do trabalho imanente. Tendo sido identificado pela FUNDACENTRO-MG como um serviço que se projetava numa direção que se afinava com os seus objetivos, estabeleceu-se a parceria pela qual desenvolvemos o primeiro de tantos outros trabalhos, denominado Programa de Capacitação em Saúde do Trabalhador. O objetivo prático dessa proposta foi contribuir para o aprimoramento da competência técnica, política e humana dos profissionais da área de saúde e segurança no trabalho dos setores público e privado, bem como dos profissionais da rede básica de saúde do SUS, representantes sindicais das diversas categorias, instituições como Ministério do Trabalho e Emprego, INSS, por meio da Perícia Médica e Centro de Reabilitação Profissional e Universidade Federal representada pelos técnicos especializados, no sentido de elevar o nível qualitativo de atendimento aos trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho e/ou doenças ocupacionais e de orientar para um modelo de ação sob a lógica da prevenção. Para tanto, o programa foi amplamente abrangente, distribuído em módulos teórico, metodológico e prático, com aprofundamento nos aspectos históricos, psicológicos, filosóficos e sociológicos do mundo do trabalho, passando pelos métodos e propostas legais e racionais como tentativas de respostas aos problemas vigentes e culminando com a observação prática no interior das empresas, como forma de objetivar as discussões anteriores. Durante as atividades praticadas, foram identificados alguns servidores públicos com afinidade com a temática, demonstrando muito interesse e com perfil ideológico compatível com a atividade. Mais tarde, eles foram inseridos no quadro de profissionais do ISAT. Considerando a importância e a significativa demanda de profissionais interessados na ampliação desses conhecimentos, foram realizados, em 1997, dois outros cursos de igual teor e com as mesmas características, com carga, horária de 120 horas cada um distribuídas em três módulos. 196 Esse trabalho teve grande importância, não só por significar o marco inicial nas ações educativas que desencadearia, mas, principalmente, por constituir um momento de sensibilização dos profissionais das diversas áreas, proporcionando uma reflexão inicial que incomodou e despertou consciências fundamentais para o processo que começava. Semana Municipal de Orientação sobre Acidentes de Trabalho A Semana Municipal de Orientação sobre Acidentes de Trabalho ocorreu a partir da iniciativa conjunta de várias instituições vinculadas à Saúde do Trabalhador, sob a coordenação do ISAT. O evento foi amplamente divulgado por meio de folders com a programação, cartazes e faixas, além dos sindicatos e da imprensa local. Durante o período, promovemos debates e esclarecimentos aos trabalhadores e empregadores, ressaltando a importância e necessidade da prevenção e notificação dos acidentes de trabalho, pelo preenchimento das CATs. Pretendíamos, assim, reduzir a subnotificação, garantindo a caracterização dos acidentes de trabalho, a fim de produzirmos um diagnóstico epidemiológico mais confiável e a indicação de atividades de prevenção mais efetivas, por meio do contato direto com a realidade dos trabalhadores. Para tanto, foram habilitados 33 profissionais voluntários, originados de diversas instituições, e autônomos, com a incumbência de ministrar palestras em ambientes de trabalho. As empresas a serem visitadas foram escolhidas segundo critérios estatísticos de freqüência e gravidade de acidentes, tendo como base o ano anterior. Como resultado, foram relacionadas 45 empresas, entre públicas e privadas, que aderiram à campanha e propiciaram ambiente para a atividade do voluntário com os trabalhadores. Além do trabalho nas empresas, foram realizadas várias outras atividades, incluindo debates em todos os meios de comunicação locais, na expectativa de mobilizar a sociedade e despertar o interesse pelo tema. Embora a expectativa tenha sido a de alcançar um maior número de trabalhadores e empregadores, consideramos que a população abordada, 1.538 pessoas, foi significativa diante da conjuntura política de desmobilização social que vivemos. Destacamos a relevância deste trabalho por ter proporcionado o intercâmbio institucional que permanece até a atualidade. Após o evento, registrou-se um crescente aumento da demanda, o que aponta o reconhecimento institucional e a afirmação do ISAT como referência em saúde do trabalhador no município. 197 Dentre os trabalhadores acompanhados por este instituto, observa-se um expressivo número de atendimentos a portadores de DORT Diante dessa realidade, foi desenvolvida uma proposta de trabalho de cunho educativo, com grupos de pacientes com essa patologia, como uma opção metodológica de intervenção. Esse trabalho teve como objetivo promover discussões acerca das causas da DORT e suas repercussões, perspectivas de vida e formas de tratamento, visando à minimização do sofrimento e ao conhecimento da dimensão psicossocial da doença. No período compreendido entre o mês de abril de 1995 e dezembro de 1999, foram realizados 12 grupos informativos, com 8 encontros semanais cada grupo, totalizando 96 reuniões e 132 participantes. A principal característica desse trabalho consistiu em termos contado com a atuação de outras instituições diretamente envolvidas com o trabalhador, tais como: INSS, por meio da Perícia Médica e Centro de Reabilitação Profissional; Ministério do Trabalho e Emprego, pela Subdelegacia Regional do Trabalho; Sindicatos; Universidade Federal, pelo Departamento de Fisioterapia, e SUS. 198 Os representantes dessas instituições abordaram nas reuniões temas pertinentes à sua respectiva área de atuação, o que propiciou aos interlocutores uma visão geral do aparato institucional e sua finalidade, além de ter possibilitado momentos de crítica e reflexão, no debate de questões individuais. O resultado das avaliações, tanto de cada grupo quanto no comportamento individual dos participantes, após esse trabalho, demonstrou que o portador de doença ocupacional, na medida em que desenvolve consciência sobre sua situação social, de saúde e perspectiva de vida, passa a ser sujeito na construção da sua trajetória e a ter autonomia no processo saúde/doença, resgatando, dessa forma, a direção da sua própria história. A técnica e os conteúdos programados para as discussões possibilitam a elaboração da situação vivida, a construção de estratégias individuais e coletivas e a adoção de uma postura ativa diante da situação problema, o que reflete na melhoria da qualidade de vida de cada um. Além disso, proporcionam também aos profissionais envolvidos uma melhor compreensão da doença, seus determinantes e sua repercussão psicossocial. Percebemos que o trabalho em grupo possibilitou a formação de multiplicadores de informação no ambiente social e profissional, garantindo a sensibilização de um maior número de trabalhadores e, por conseqüência, o alcance dos objetivos propostos pelo projeto. Como fruto principal, esse projeto despertou nos participantes a necessidade da formação de um movimento organizado, originando, assim, a Associação dos Portadores de LER de Juiz de Fora, no ano de 1996. Em atividade, essa associação tem a proposta de discutir e desenvolver um trabalho educativo/conscientizador a respeito das situações vivenciadas pelos trabalhadores, bem como levá-los a lutar pelos próprios direitos como portadores de doença ocupacional. Curso de Proteção Respiratória e Doenças Ocupacionais Pulmonares Essa atividade teve como elemento motivador a escassez da notificação de doenças respiratórias, considerando as características econômicas da região, com destaque para os setores têxtil, moveleiro, metalúrgico, de extração e transformação de minerais não metálicos, indústria de papel e papelão, entre outros, cujos processos de produção são potencialmente geradores de riscos de doenças pulmonares. Diante dessa realidade, o Instituto de Saúde do Trabalhador, em parceria com a FUNDACENTRO-MG, promoveu, para os médicos pneumologistas e representantes de empresas, por meio dos setores de Segurança e Medi- 199 cina do Trabalho, bem como de clínicas particulares da mesma área e representantes do INSS, por meio da Perícia Médica, curso sobre Doenças Ocupacionais Pulmonares e Proteção Respiratória. Esse trabalho teve como objetivo principal despertar os profissionais envolvidos para a necessidade do reconhecimento e controle dos riscos respiratórios, assim como promover o diagnóstico precoce e o nexo com o trabalho. Tal preocupação se fundamenta no fato de que essas doenças podem se manifestar rapidamente, em casos agudos, ou após longos anos de exposição, causando, em ambos os casos, intoxicações crônicas que são, em sua maioria, irreversíveis. Nessa perspectiva, foram capacitados 77 profissionais que demonstraram grande interesse e comprometimento em relação ao tema. Como conseqüência, houve um crescimento acentuado da demanda ao ISAT de trabalha dores com suspeita de Pneumopatias Ocupacionais, cujos encaminhamentos foram feitos por aqueles profissionais, possibilitando o diagnóstico, caracterização do nexo causal e acompanhamento dos casos. Seminário de Prevenção e Conduta nos Casos de Exposição Ocupacional a Risco Biológico Diante da gravidade dos riscos de acidentes de trabalho representados pelo contato com sangue e outros fluidos potencialmente contaminados na cadeia de infecção e considerando a importância dessa prevenção e a incidência de acidentes dessa natureza entre os profissionais de saúde e trabalhadores da área de apoio (faxineiros, lavadeiras e coletores de lixo) de Juiz de Fora, o ISAT, contando com o apoio do Serviço de Assistência Especializada em DST - SAE e outros colaboradores, realizou o I Seminário de Prevenção e Conduta nos Casos de Exposição Ocupacional a Risco Biológico. A proposta de realização desse evento surgiu após análise dos conteúdos das Comunicações de Acidente de Trabalho de trabalhadores atendidos pelo ISAT, mais especificamente do campo “Descrição do Acidente”, cujo resultado demonstrou grande incidência de acidentes com causas comuns e formas de ocorrência semelhantes, denunciando a falta de uma política de prevenção por parte das empresas e a não-observância de normas de proteção que poderiam minimizar o quadro apresentado. .“A funcionária, ao retirar a roupa suja do elevador e levá-la para a separação na área contaminada, veio a perfurar a sola do pé esquerdo com uma agulha de sutura que se encontrava no chão da área.” .“Ao preparar o material para esterilização, perfurou o dedo com uma agulha.” 200 . “Estava aspirando o paciente, quando o mesmo reagiu tossindo, vindo atingir seu olho direito.” . “A funcionária, ao recolher o lixo, teve o 2° dedo da mão direita perfurado por uma agulha que se encontrava no chão.” . “Ao desprezar um papel-toalha que se encontrava sobre a mesa de cabeceira do paciente, teve o 3° dedo da mão esquerda perfurado por uma agulha que se encontrava no mesmo.” . “Ao apoiar-se numa caixa de material contaminado para ser esterilizado, escorregou para o interior da mesma, ocasionando um ferimento perfurocortante no 2° dedo da mão direita.” . “A funcionária, ao retirar o scalp do paciente para desprezar o mesmo no descartex, teve o 3° dedo da mão direita perfurado.” . “Estava recolhendo um saco de lixo, quando teve o 2° dedo da mão direita atingido por um abocate.” . “Ao tentar apanhar um scalp no chão, teve seu indicador direito perfurado pelo mesmo.” . “Ao amarrar o saco de lixo, perfurou a perna direita com uma agulha que estava no mesmo.” A partir dessa realidade, optamos por priorizar a capacitação de funcionários estratégicos das empresas como agentes multiplicadores desse conhecimento, para assegurar o estabelecimento de ações preventivas e a agilização de medidas profiláticas e de controle para a conseqüente redução dos dano à saúde do trabalhador. Para a realização dessa atividade, foram envolvidos os Sindicatos da área de saúde, representantes das Unidades Básicas de Saúde, Técnicos de Segurança dos estabelecimentos de saúde, Conselhos Regionais de Trabalhadores de Saúde, Departamento de Pessoal de Empresas, Diretores Clínicos dos Hospitais e representantes de Laboratórios de Análise Patológica. Além do aspecto educativo e de integração com setores importantes na atenção às patologias geradas por esses acidentes, o Seminário marcou o início da normatização dos procedimentos e do fluxo de atendimento a ser adotado, além de estabelecer, como referência de apoio um serviço especializado funcionando durante 24 horas, no Hospital Universitário. Durante o evento, os participantes receberam o Manual de Condutas Exposição Ocupacional a Material Biológico: Hepatite e HIV do Ministério da Saúde, que foi apresentado e discutido, além de cartazes elaborados pela equipe organizadora. Paralelamente, para garantir informação a todos os trabalhadores expostos a riscos biológicos, convidamos os Conselhos Regionais dos Profissionais 201 de Saúde a participarem de uma campanha de orientação que constava do encaminhamento de folders com a relação dos endereços de serviços disponíveis para acompanhamento e esclarecimento sobre medidas profiláticas a serem adotadas em casos de acidentes, através de mala direta de cada um dos serviços. Destacamos aqui o Conselho Regional de Enfermagem com alta receptividade ao convite; fazendo chegar 2.341 folders informativos às mãos de trabalhadores. Temos consciência de que muitas outras ações deverão ser desenvolvidas nessa área até que nossos objetivos sejam atingidos, pois, ainda hoje, recebemos a Comunicação de Acidente de Trabalho com as mesmas características. Curso de Segurança e Saúde na Indústria da Construção Civil A exemplo das estatísticas nacionais, o número de acidentes de trabalho chamados "típicos" no município, 1entre a população trabalhadora em.caráter formal (com carteira assinada), e devidamente registrados pela CAT, cujas vítimas são atendidas e acompanhadas pelo ISAT, representa grande parcela dos nossos atendimentos. Desses, grande parte é proveniente da Indústria da Construção Civil, na qual a elevada incidência é acompanhada, em igual proporção, pela gravidade dos casos. Não obstante a preocupação com os dados oficiais que produzimos, já suficientemente alarmantes, situamo-nos na trajetória obrigatoriamente percorrida por essa população, onde os acidentados são efetivamente acompanhados durante o período de tratamento. Desse ponto, podemos testemunhar a real dimensão do acidente de trabalho que nem sempre tem como conseqüência "apenas" o sofrimento físicos mas,` muitas vezes, marca o início de uma longa caminhada que culmina em agravos à saúde psíquica, econômica e social dos trabalhadores. Na perspectiva de dar início a um processo de conscientização dos trabalhadores quanto à gravidade dessa situação, promovemos, em parceria com a FUNDACENTRO-MG, o Curso de Segurança e Saúde na Construção Ci vil, dirigido a trabalhadores em funções estratégicas de vinte empresas do ramo, visando a formar consciências críticas que se constituíssem em multiplicadores de conhecimento em seus ambientes de origem. Além das discussões promovidas em ambiente pedagógico, momento em que foram privilegiadas as experiências vividas individualmente, destacou-se como estratégia fundamental a inserção do educador no canteiro de obras, vi sando a estabelecer o confronto das informações recebidas com o ambiente real e, nesse contexto, a elaboração de críticas e observações objetivas. 202 Programa de Capacitação Voltado à Perda Auditiva Induzida pelo Ruído – PAIR Evidenciamos, por meio de levantamento epidemiológico, um crescente número de casos notificados e atendidos pelo ISAT de trabalhadores com diagnóstico definitivo de PAIR (Tabela 1). Nos atendimentos, caso a caso, percebemos o baixo nível de informação sobre a patologia, suas causas e, com grande freqüência, o não-reconhecimento, a negação da perda auditiva acusada objetivamente pelo exame utilizado como auxílio diagnóstico e confirmada pela clínica especializada. A demanda desses pacientes ao ISAT, entretanto, era originada, em sua maioria, pelos serviços de Medicina do Trabalho das empresas, no momento dos exames médicos admissionais, periódicos ou demissionais, cujo resulta do, muitas vezes, era decisivo para a conquista daquele emprego, no caso dos exames admissionais, ou serviria de “passaporte” para um emprego futuro, no caso dos exames demissionais. A realidade vivida por aqueles trabalhadores era de grande sofrimento e frustração, dada a irreversibilidade da perda auditiva e tendo, de um lado, a possibilidade de trabalho sendo minada por uma doença “sem significado” e, de outro, a negação da incapacidade laborativa pela Previdência Social. O resultado era a desesperança e a marginalidade de uma grande porção de trabalhadores que, ironicamente, eram excluídos do mercado de trabalho, justamente por haverem sido submetidos, durante muitos anos, à exposição ao ruído intenso presente no próprio ambiente de trabalho, responsável, portanto, pelo seu adoecimento. O contraponto dessa questão era a argumentação, legalmente correta, dos profissionais médicos que, contratados para atender e assim representar exclusivamente as políticas e a lógica das empresas, relegavam o trabalhador à condição de força de trabalho sucateada no mercado. 203 A partir dessa realidade, desenvolvemos, na FUNDACENTRO-MG, uma proposta de trabalho que, além de proporcionar conhecimentos específicos, propiciasse a visibilidade do problema social implícito e as discussões decorrentes dele e, sobretudo, objetivasse a conscientização dos trabalhadores para entenderem e situarem-se no contexto e, assim, reivindicar mudanças. Nessa perspectiva, foram desenvolvidas várias atividades, visando a atingir o maior número possível de profissionais que mostravam afinidade com a questão e, ao mesmo tempo, estabelecer o papel do ISAT como interventor, mediante formulação de políticas e fonte de referência para as ações nesse campo: • Seminário de PAIR: realizado em dois dias, destinado a trabalhadores da área de saúde e segurança, sindicalistas, empregadores e outros profissionais interessados na área. • Curso de PAIR: direcionado a médicos do trabalho, otorrinolaringologistas, fonoaudiólogos. Teve carga horária de oito horas. • Palestras educativas em empresas: teve como população-alvo os trabalhadores em seus ambientes de trabalho, utilizando como palestristas os profissionais que haviam sido capacitados previamente no curso. Foram sensibilizadas um total de seis empresas, atingindo uma média de duzentos funcionários. Durante os trabalhos, constatamos o comprometimento e interesse por parte do público participante, ao mesmo tempo em que se confirmou a ausência de conhecimento sobre a forma de adoecer, os mecanismos de prevenção e a necessidade de diagnóstico. A sensibilização despertada no sentido da responsabilidade ética possibilitou a busca do senso comum nas situações divergentes que sobrevieram e resultou na valorização do trabalhador portador de PAIR. O ISAT, atualmente, é considerado referência nessa área, participando ativamente da educação continuada em várias empresas, fornecendo orientação a profissionais de Medicina do Trabalho e subsídios à Justiça das áreas Cível e Trabalhista, para questões relativas à PAIR. Considerações finais A dinâmica cruel das relações entre o Estado e a sociedade no setor saúde atinge de forma direta os trabalhadores, na medida em que as forças nesse campo são dadas pelas relações sociais de produção, por sua vez, vinculadas ao princípio da dominação. 204 Nesse momento, o direito à informação e ao conhecimento constitui-se como única via possível de reduzir as diferenças, expandir e valorizar a participação dos cidadãos com a pretensão de elevá-los para além da condição de contribuintes, segurados, consumidores ou pacientes do sistema. O presente trabalho não tem a pretensão de esgotar as possibilidades de intervenção no processo educativo dos trabalhadores e profissionais de afinidade com a saúde do trabalhador, mas tão-somente pretendemos contribuir com a experiência acumulada ao longo dos quatro anos de existência do Instituto de Saúde do Trabalhador do Município de Juiz de Fora, no que tange à promoção do conhecimento, à capacitação e à “oportunização” do saber e aos resultados objetivos que pudemos observar. Essa observação vincula-se à própria dinâmica do Instituto de Saúde do Trabalhador que tem como fonte propulsora uma demanda crescente, emanada tanto de trabalhadores quanto de profissionais especializados, em presas e instituições, para tomada de decisões, aconselhamentos e convites para palestras e discussões sobre a saúde do trabalhador. É nessa dinâmica que podemos avaliar, de forma objetiva, os efeitos produzidos pela socialização do conhecimento. A problemática enfrentada pelo ISAT não se diferencia dos demais serviços de saúde do trabalhador do Estado e tem como desdobramentos questões maiores cuja solução remete à compreensão da conjuntura histórica por que passamos. A parceria com a FUNDACENTRO-MG foi essencial para trabalharmos, ainda que de forma incipiente, no espaço da política de saúde do trabalhador no município. Acreditamos que intervenções capazes de alterar de forma significativa a relação trabalho/saúde só se tornarão possíveis por meio da prática da reflexãoação-reflexão, condição de não afirmar ou legitimar o sistema vigente e que encontra bases na educação, crença sobre a qual pautamos o nosso ideal. Agradecimentos Agradecemos aos vários parceiros e trabalhadores envolvidos nas atividades executadas. De forma muito especial, agradecemos à FUNDACENTROMG, pelo incentivo e envolvimento que foi imprescindível para o êxito das atividades realizadas, refletindo a competência, dedicação e seriedade de seus profissionais. 205 Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 206 BASTOS, Rogério L. Ciências humanas e complexidades: projetos, métodos, técnicas e pesquisa; o caos; a nova ciência. Juiz de Fora: EDUFJF; Londrina: CEFIL, 1999. CHIAVENATO, Idalberto. Recursos humanos. São Paulo: Atlas S.A., 1993. FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação - uma contribuição ao pensamento de Paulo Freire. Trad. De Kátia de Mello e Silva. São Paulo: Ed. Moraes, 1980. ______. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1999. LARAIA, Roque de Barros. Cultura - um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986. WALDOW Vera Regina; LOPES; Maria Júlia; MEYER, Dagmar Estermann. Maneiras de cuidar, maneiras de ensinar: a enfermagem entre a escola e a prática profissional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. WEFFORT, Francisco C. Os clássicos da política. São Paulo: Ática S.A., 1993. QUATRO SEMINÁRIOS DE ERGONOMIA PARA SINDICALISTAS Leda Leal Ferreira 1 Introdução N o início da década de 90, coordenei, na FUNDACENTRO, em São Paulo, quatro Seminários de Ergonomia para dirigentes sindicais e trabalhadores de base. Participaram desses eventos 99 sindicalistas, de 44 sindicatos diferentes, pertencentes a várias centrais sindicais, principalmente de setores da indústria, serviços e transportes, majoritariamente do Estado de São Paulo (ANEXO). Em cada seminário, a presença média foi de vinte trabalhadores. Pelo lado dos docentes, onze pessoas participaram, numa média de cinco docentes em cada evento. Nossa intenção era dupla: apresentar a Ergonomia aos participantes e fornecer-lhes informações sobre a legislação brasileira que trata do assunto, principalmente a Norma Regulamentadora de Ergonomia ou NR-17, de 1990, do Ministério do Trabalho, de modo que eles pudessem utilizá-la nas suas práticas sindicais. Um primeiro balanço destas quatro experiências foi apresentado no Congresso da Associação Internacional de Ergonomia, em 1997, e também deu origem a uma publicação. Aqui pretendo retomar alguns pontos dessas experiências, isto é, os pressupostos que as orientaram e como eles foram concretizados e em seguida, confrontá-los com outras experiências de formação em Ergonomia das quais participei como docente. Os pressupostos Por que um seminário específico para dirigentes sindicais? Uma das coisas mais importantes na minha formação em Ergonomia, durante os idos de 1977 a 1980, na França, foi a convivência que tínhamos, nós, alunos de formação universitária, com colegas do movimento sindical francês. Naquela época, o movimento sindical estava em plena pujança na França e o diretor do Curso de Especialização em Ergonomia, do CNAM, 1 Médica e doutora em Ergonomia, Chefe da divisão de Egonomia da FUNDACENTRO. 207 Professor Wisner, acolheu no seu Laboratório vários dirigentes de diferentes centrais sindicais. A idéia era que eles aprendessem as potencialidades da Ergonomia para aplicá-las nas suas práticas sindicais, o que de fato se efetivou nos anos seguintes. Mas havia mais: as boas relações entre o Laboratório de Ergonomia e o movimento sindical francês deram origem a estudos importantes, que ajudaram a estabelecer as bases teóricas e metodológicas da Escola de Ergonomia que se firmava. Essa presença de dirigentes sindicais em cursos de formação “acadêmica” só foi possível graças a uma série de mecanismos institucionais franceses (entre eles, a existência do próprio Conservatório Nacional de Artes e Ofícios - CNAM) e graças à decisão política da direção de Laboratório de Ergonomia. No Brasil, não só nenhum desses mecanismos institucionais existe como não há uma política de privilegiar a formação de dirigentes sindicais em matérias relacionadas com as condições de trabalho. Por isso, são raríssimas as formações técnicas dirigidas especialmente a sindicalistas nas nossas instituições de ensino. Mesmo os órgãos de pesquisa, como a FUNDACENTRO, que oferecem vários tipos de cursos de curta duração a públicos distintos, raramente oferecem uma formação específica a dirigentes sindicais. Perpetua-se, assim, uma ideologia, segundo a qual a melhoria das condições de trabalho é um assunto exclusivo de técnicos e que é por meio da formação de técnicos nas variadas disciplinas que se alcançará a melhoria das condições de trabalho no nosso país. Esquece-se de que, nesse campo, só há avanços quando os interessados se mobilizam e lutam; de que os verdadeiros protagonistas são os trabalhadores e os empresários e que os técnicos têm apenas uma posição de coadjuvante. Nossa idéia de endereçar uma formação específica de Ergonomia a dirigentes sindicais teve, portanto, como principais motivações, cobrir uma lacuna em formação e valorizar o papel de protagonista dos sindicatos de trabalhadores no movimento por melhores condições de trabalho, oferecendo-lhes informações no campo da Ergonomia, de modo que pudessem apropriar-se delas nas suas práticas sindicais. Que Ergonomia Todos os seminários se basearam em uma “versão” de Ergonomia, que é a que adotei e adoto há vários anos: uma disciplina que tem como objeto o estudo do trabalho realizado concretamente pelos trabalhadores, tendo como objetivo a melhoria de suas condições de trabalho, mediante mudanças no trabalho (e não nos trabalhadores), e como método a Análise Ergo- 208 nômica do Trabalho (AET), desenvolvida nos anos 80 no Laboratório de Ergonomia do CNAM. Essa, porém, não é nem a única nem a versão predominante em Ergonomia. Basta folhear os anais de vários congressos nacionais e internacionais para se deparar com uma enorme amplitude de comunicações, que vão desde os estudos especialíssimos de biomecânica postural até as abordagens generalistas da chamada “macroergonomia”. A própria definição de Ergonomia não está consolidada, o que faz com que o seu campo de atuação tenha limites pouco precisos. Desde as suas origens, a Ergonomia sempre se deparou com problemas de identidade. Conta-se que, quando a Associação Internacional de Ergonomia foi criada, em 1959, na Europa, houve discussões acaloradas para se estabelecer o nome da disciplina. Venceu a neutra “ergonomia” (do grego ergon, trabalho e nomos regras) já adotada pelos ingleses, que tinham a sua Sociedade de Ergonomia desde 1949. Os norte-americanos, porém, continuaram a usar os termos “fatores humanos” e a sua “Human Factors Society”, fundada em 1957, só em 1992 transformou-se em “Human Factors and Ergonomics Society”. Várias escolas de Ergonomia, em diferentes países, estabeleceram-se com ênfase em objetos, métodos e objetivos diferentes, com histórias próprias e devendo fazer face a seus problemas e às suas realidades no campo do trabalho. A convivência entre elas nunca foi muito pacífica e tem se acirrado nos últimos anos. Não poderia ser diferente, uma vez que estão em disputa concepções diferentes sobre o trabalho humano e seu papel na sociedade. Não é objetivo deste texto fazer uma análise do desenvolvimento da Ergonomia. Mas, em nome da clareza, é preciso registrar que houve uma escolha deliberada de minha parte quanto à concepção de Ergonomia adotada nos seminários (como, aliás, acontece em todos os outros tipos de formação, embora ela raramente seja explicitada). Por que discutir a NR-17? O primeiro seminário ocorreu antes da promulgação da nova NR-17 e nele apenas foi mencionada a existência da antiga norma. Mas, a partir do segundo seminário, a nova norma estava em vigor e vinha provocando um grande interesse pelas suas novidades. É que, diferentemente da maioria das normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho, a nova NR-17 praticamente não apresentava parâmetros numéricos a serem observados, mas princípios a serem seguidos, entre eles, alguns relacionados com temas que sempre foram prerrogativa das empresas: ritmos de trabalho, pausas, horá- 209 rios de trabalho, conteúdo do trabalho (consubstanciados no seu item “organização do trabalho”). Essa nova característica permitia, e permite, uma ampla interpretação da norma, que tanto pode ser um guia para se detectar e resolver problemas, como tornar-se um simples instrumento burocrático, vago e inespecífico. Além disso, vários conceitos expressos na NR-17 são complicados e de difícil compreensão. Se acrescentarmos o fato de se tratar de uma norma longa, compreende-supor que poucos a lêem e a conhecem. Ao integrá-la como um dos pontos de nossos seminários, queríamos não só informar que a norma existia como ajudar a compreendê-la, mostrando seus limites e suas potencialidades, de modo que os dirigentes sindicais pudessem ter uma posição crítica em relação aos estudos e avaliações (os famosos “laudos ergonômicos”) que têm sido feitos nas empresas em seu próprio nome. Que formação Uma vez feitas essas opções iniciais, procurei colegas (da FUNDACENTRO e de outras instituições) que, de alguma forma compartilhassem essas idéias, para garantir o mínimo de coerência em nossos trabalhos. O nosso problema passou a ser, então; escolher o tipo de formação que queríamos oferecer. A primeira limitação era a sua curta duração: uma formação de curta duração só tem sentido se for muito específica (por exemplo, apresentar as últimas novidades de uma determinada técnica a especialistas que já a dominam), ou apenas pretender introduzir os participantes num determinado campo do saber. Esse foi o nosso caso, uma vez que só dispúnhamos de poucas horas (16 horas distribuídas em três ou quatro dias), tratávamos com um.público heterogêneo e com uma disciplina bastante ampla como é a Ergonomia: O problema subseqüente era escolher um caminho, um método, uma didática para o seminário. Por uma espécie de consenso implícito, queríamos um modelo que pendesse mais para a discussão do que para a “explanação-ouvição” e, por isso, nossos eventos foram chamados de seminários e não de cursos ou muito menos de “treinamento” (essa infeliz denominação que está se espalhando com a mesma velocidade da deterioração da qualidade de ensino). No primeiro seminário, isso se concretizou na forma de discussão em grupo sobre pequenos textos que tratavam de assuntos relacionados com as condições de trabalho. Mas, a partir do segundo, adotamos um outro caminho e centramos a formação na experiência de trabalho dos próprios parti- 210 cipantes, adotando uma versão modificada do método da Análise Coletiva do Trabalho e testando sua possível adequação a programas de formação. A Análise Coletiva do Trabalho (ACT) é um método de análise do trabalho no qual os próprios trabalhadores, em grupos, descrevem e analisam o seu trabalho. Sua pergunta condutora é “o que você faz no seu trabalho?” e ela vai sendo respondida a partir de diálogos que se estabelecem entre os participantes do grupo, todos eles imbuídos da vontade de compreender o trabalho descrito. As reuniões acontecem fora do local do trabalho, e os participantes são voluntários. A ACT foi desenvolvida para responder a necessidades de pesquisa em matéria de condições de trabalho. Por isso, nos seminários, sofreu várias modificações: a primeira foi a perda do caráter voluntário dos participantes, uma vez que era o método escolhido para o desenvolvimento do seminário; a segunda foi a menor duração das reuniões de descrição da atividade; e a terceira foi que não houve uma sistematização das discussões por meio de textos, diferentemente do que ocorre em situação de estudo. Por outro lado, acrescentamos dois exercícios que não integram a ACT, que se seguiram à fase da descrição da atividade: um exercício de análise do trabalho e um exercício de busca de soluções, ambos exigências da Ergonomia. Em resumo, a ACT foi apenas uma fonte de inspiração e dela só utilizamos a parte de se descrever o trabalho em grupo. A adoção desse caminho exigiu uma postura diferente dos professores: além de dominar o assunto, eles precisavam deixar de lado sua vocação de falar ensinar e adquirir a vocação de ouvir e aprender. Além disso, precisavam garantir um clima de respeito e atenção no grupo e estimular a descrição, o que só pode ser feito quando se está verdadeiramente imbuído de uma sincera curiosidade pelo que está sendo descrito, sabendo colocar questões pertinentes na hora certa. Finalmente, precisavam ajudar a sistematizar o conhecimento adquirido pela proposição de critérios de análise e do estímulo a essa análise. Essa mudança no papel tradicional do professor não é fácil e alguns professores não conseguiram se adaptar ao seu novo papel. Mas também os alunos tiveram dificuldades. A primeira delas foi o estranhamento sobre a inversão de papéis que se estabeleceu: eram eles quem sabiam e não os professores. Num primeiro momento, acharam que não poderiam explicar o que faziam e também achavam que o que faziam não era relevante. Só à medida que o diálogo foi se estabelecendo é que se foi percebendo a importância do que estavam dizendo e a quantidade de conhecimentos que tinham. Outra dificuldade, particularmente encontrada entre dirigentes sindicais, foi que, no exercício de descrição proposto eles precisavam deixar de lado seu papel de dirigente e voltar a seu papel de trabalhador. A maioria aceitou as regras e, 211 no final do processo, mostrou satisfação com tudo que aprendeu. Mas, para alguns, isso pareceu um rebaixamento intolerável, contra o qual reagiram. Como foram os seminários No primeiro seminário, a participação dos sindicalistas ocorreu principalmente na forma de análise e discussão de pequenos textos sobre temas do mundo do trabalho. Reunidos em pequenos grupos, foram discutidos os seguintes assuntos: trabalho em turnos, trabalho repetitivo, informática e automação, acidentes do trabalho e fadiga e carga de trabalho. A partir do segundo, o núcleo da formação passou a se inspirar na experiência de trabalho dos próprios participantes: divididos em grupos de quatro a seis trabalhadores e dois “docentes”, inicialmente cada um se apresentava ao grupo, falando em linhas gerais sobre seu trabalho. Em seguida, um voluntário aceitava descrever detalhadamente toda a sua atividade de trabalho; a partir de perguntas colocadas inicialmente pelos professores, e em seguida, por todo o grupo. A partir dessa descrição, foram propostos exercícios de análise da atividade descrita (sob diferentes critérios) è propostas de modificações para melhorar a situação de trabalho. Quanto à NR-17, também houve diferenças: no primeiro seminário, não se falou dela; no segundo, a norma foi lida em grupos de trabalhadores; e, no terceiro e quarto seminários, ela foi apresentada pelos docentes. Para ilustrar o que, na prática, seria um estudo ergonômico analisamos, no segundo seminário, um “laudo ergonômico” verdadeiro (do qual foram eliminadas as referências que poderiam identificá-lo) e, no terceiro, alguns estudos ergonômicos foram realizados por alguns dos docentes. O Quadro 1 mostra um resumo do conteúdo de cada seminário, em sua ordem de apresentação. Algumas observações O momento dentro do seminário em que se conceitua a Ergonomia foi importante. Em dois casos, a Ergonomia só foi formalmente conceituada após o exercício da descrição e análise da atividade. Essa demora criou um clima de grande expectativa que, ao mesmo tempo, manteve os participantes curiosos e ansiosos. No último seminário, a Ergonomia foi apresentada no primeiro momento, em forma da NR-17; só depois os participantes foram levados a fazer a descrição e análise da atividade; não se criou ansiedade, mas a curiosidade foi menor. 212 213 • A etapa mais difícil desse método, mas também a mais rica, foi a da análise sob diferentes critérios da atividade descrita. Uma parte das dificuldades dependeu dos critérios propostos pelos docentes e da sua experiência em manipulá-los. Observamos que, quando os critérios foram mais abstratos, como os escolhidos em dois de nossos seminários: “o que é visível e invisível no seu trabalho”, ou “o que afeta o corpo, o pensamento e o sentimento no seu trabalho”, a análise foi mais difícil e demorada; no entanto, seus resultados foram mais ricos. Já quando os critérios foram mais concretos, como os utilizados no último seminário e baseados nos cinco itens da NR-17: levantamento de peso; mobiliários adequados; equipamentos adaptados; ambiente de trabalho e organização do trabalho, a análise se tornou mais fácil, mas seus resultados foram mais pobres. • A apresentação de sugestões de mudanças, feita após a descrição e análise. da atividade, foi uma etapa importante da formação porque concretizou o exercício de análise feito. • A presença, em cada grupo de trabalho, de trabalhadores de diferentes categorias teve seus pontos positivos e negativos. A troca de experiências sobre diferentes situações de trabalho foi um ponto bastante positivo e permitiu comparações, com destaque para semelhanças e diferenças. No entanto, a etapa de apresentações de soluções foi mais rica nos grupos mais homogêneos na sua composição. Comparações com outros tipos de formação em Ergonomia Tenho participado de vários tipos de formação em Ergonomia, endereçados a diferentes públicos, e a comparação entre eles revela diferenças e semelhanças. Começando pela diferenças: a maioria dos cursos de Ergonomia é dirigida a técnicos, médicos, engenheiros, psicólogos etc, que se preparam para analisar o trabalho alheio, pois essa será a sua função. Uma das etapas mais difíceis dessa formação é a análise de uma situação real de trabalho, que se inicia por uma observação detalhada seguida de uma descrição da atividade estudada. Nessa etapa, ficam aparentes os preconceitos teóricos próprios da profissão do analisando e é penoso e difícil, quando não impossível, separar-se deles. Pesam também os modelos ideológicos e a tendência maior é rapidamente encontrar soluções e prescrições, mesmo quando nem se sabe qual é o problema. Situação diferente ocorre quando se analisa o próprio trabalho, como na ACT em situação de pesquisa ou como ocorreu nos seminários para os dirigentes sindicais. Após um primeiro momento de estranhamento com o inu- 214 sitado da situação, a descrição do trabalho se desenvolveu com fluidez, precisão e com uma grande riqueza de detalhes, possível apenas porque feita por quem a executava e conhecia. Considero que a grande diferença está aí: descrever o próprio trabalho é completamente diferente de descrever o trabalho dos outros. Essa diferença é irredutível e foi ela que tornou nossos seminários de Ergonomia para dirigentes sindicais diferentes dos outros cursos de formação em Ergonomia para técnicos. Se houve diferenças, também houve vários pontos em comum. Entre eles, a clara necessidade de se estabelecer uma espécie de dicionário de termos para facilitar o diálogo: a Ergonomia usa muitas palavras do vocabulário comum, com múltiplos significados, e é preciso um trabalho prévio de acerto entre termos usados pelos participantes, em nome de um mínimo de clareza. O principal exemplo diz respeito às palavras tarefa e atividade. Referemse elas aos mesmos conceitos ou a conceitos diferentes? Se há diferenças, quais são elas e o que significam quando estudamos o trabalho? Outro exemplo gritante é o termo “organização do trabalho”: quando, em uma discussão, para um dos participantes “organização do trabalho” é “um local de trabalho limpo e em ordem” e para o outro é a “forma como se distribui o trabalho”, o diálogo entre eles só pode ser incompreensível e confuso. O mesmo acontece com a palavra equipamento: diz a NR-17 que todos os equipamentos devem se adaptar às características dos trabalhadores. Mas a idéia que cada um faz de "equipamento" é muito variada. Outro ponto em comum: a grande dificuldade de usar categorias abstratas de análise para analisar o trabalho descrito. Pensar é difícil e trata-se de uma prática que não é estimulada, até porque exige um tempo do qual não se dispõe. Também aparece a dificuldade de ler: os alunos têm apresentado grandes dificuldades de leitura e de compreensão de textos. Algumas são compreensíveis: sendo a leitura uma prática, é natural que quem não a utiliza freqüentemente tenha dificuldades. Mas como explicar a grande dificuldade de leitura que encontramos também em alunos com formação universitária? Outra constatação comum: a influência da realidade, da “força das coisas” funcionando como uma espécie de freio mental para a capacidade de propor mudanças, melhorias nas condições de trabalho. É como se as dificuldades do dia-adia do trabalho embotassem a capacidade de visualizar alternativas melhores. Considerações finais Considero positivo o balanço final destas experiências de formação em Ergonomia para sindicalistas, no sentido em que os participantes se 215 “sensibilizaram” a respeito de uma disciplina que pouco conheciam. A Análise Coletiva do Trabalho mostrou grandes potencialidades, como método de formação, o que abre novas perspectivas para sua aplicação. Apesar da falta de instrumentos de avaliação abrangentes (um problema que ultrapassa nossas competências e que constitui um grande desafio no campo educacional), tivemos alguns indícios de avaliação positivos dos participantes. Um deles, obtido nos próprios seminários, foi a pertinência das definições de Ergonomia propostas pelos trabalhadores, das quais damos alguns exemplos: - “Melhorar o dia-a-dia do trabalhador, a forma de trabalho, tirando as dificuldades (para os homens e as mulheres).” - “Estudo das atividades realizadas pelos trabalhadores, analisando suas posturas físicas, sentimentais e mentais.” - “Estudo do trabalhador na sua atividade.” - “Ciência que estuda a relação do homem com o trabalho, no sentido de estudar também o conteúdo do trabalho adaptado às características físicas, intelectuais, mentais do trabalhador (estabelecer limites pode ser arriscado).” Outros foram obtidos nas avaliações orais ou escritas feitas no fim dos seminários. Nesse caso, o que predominou como positivo foi a troca de experiência entre várias categorias de trabalhadores e a dinâmica de discussão que se instaurou. Realmente, os seminários foram um ponto de encontro entre trabalhadores que têm poucas ocasiões de trocar e comparar suas experiências em matéria de condições de trabalho. Finalmente, mais em longo prazo, um dos frutos desses seminários foi o interesse despertado pelo tema que originou um pedido de estudo sobre pilotos de avião a FUNDACENTRO, além de uma série de solicitações mais pontuais, feitas por vários sindicatos, sobre questões de Ergonomia. No entanto, vários de seus pontos poderiam ser melhorados, por exemplo, a elaboração de material de suporte para a apresentação da NR-17. Nenhuma das formas que utilizamos nos pareceu satisfatória. Também não temos conclusões definitivas sobre a melhor seqüência de temas a ser proposta. Para terminar, uma consideração de ordem mais geral: como forma de “sensibilização”, os seminários cumpriram seu papel, mas mostraram também que há uma enorme necessidade de prosseguimento. A maioria dos par- 216 ticipantes solicitou que a FUNDACENTRO oferecesse mais eventos desse tipo, sobre temas ligados às condições de trabalho e endereçados particularmente ao movimento sindical. Para responder a essa enorme demanda, será preciso um grande esforço da entidade, que precisará redimensionar as suas prioridades e os seus recursos. Nada, porém, que a desvie de seus objetivos. Pelo contrário, penso que tudo o que se puder oferecer ao movimento sindical ainda será pouco em frente às suas necessidades e ao seu papel de protagonista na luta por melhores condições de trabalho em nosso país. Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. FERREIRA, L.L.; IGUTI, A.M.; DONATELLI, S.; VEZZA, F.; SCHLITHLER, C.R.B.; Abrahão, J. An experience of ergonomics training for union workers. Proceedings of the 13 International Ergonomics Association, Tampere; Finland, 1997. FERREIRA, L.L.; IGUTI, A.M.; DONATELLI, S.; VEZZÀ, F.; SCHLITHLER, C.R.B.; Abrahão, J. 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Julia Issy Abrahão (UnB), Thaís Helena de Carvalho Barreira (FUNDACENTRO), Sandra Donatelli (FUNDACENTRO), Maria Cristina Gonzaga (FUNDACENTRO), Dra. Aparecida Mari Iguti (Unicamp), Dr. José Marçal Jackson Filho (FUNDACENTRO), Dra. Regina Heloisa Maciel (UECE), Célia Regina Schlithler (assistente social), Dr. Laerte Sznelwar (USP), Flora Vezzá (ergonomista). 217 218 219 220 NO MEIO DO CAMINHO HAVIA UMA PEDRA - ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO E SAÚDE NO PROCESSO DE EXTRAÇÃO E BENEFICIAMENTO DE MÁRMORE Maria das Graças Barbosa Moulin 1 Cleilson Teobaldo dos Reis 2 Grace Hitomi Weinichi 3 Introdução E is que surge um interessante desafio - pesquisar os efeitos do trabalho no processo de extração e beneficiamento do mármore do ponto de vista da saúde mental e da produção de subjetividade dos trabalhadores. Trabalho exploratório, e, por que não dizer, hercúleo, uma vez que os estudos no campo da saúde e segurança no setor concentram-se principalmente nas condições do trabalho. Tais estudos revelam que a incidência de doenças ocupacionais e acidentes, muitos envolvendo mutilações e morte, está diretamente relacionada com as péssimas condições de trabalho às quais os trabalhadores do setor estão envolvidos, tais como a exposição a um nível de ruído insuportável e excessivo, poeiras, trepidações, manipulação de explosivos, uso de maquinários obsoletos e técnicas inadequadas, fatores esses que acabam por submeter a população de trabalhadores a um tipo de serviço penoso. Mas, para além das condições de trabalho, estávamos também interessados nos efeitos da organização do trabalho - divisão de tarefas/divisão de homens. Aqui nos interessa o ritmo da produção, a extensão e a intensidade da jornada, a duração das pausas, a qualidade do relacionamento entre chefia e subordinados, o grau de solidariedade entre colegas, o reconhecimento social percebido pelo trabalho executado, enfim, aspectos do trabalho que podem tornar o cotidiano ainda mais penoso ou, ao contrário, aspectos que podem proteger a saúde e a segurança dos trabalhadores. Entendemos também que, para além de um meio de sobrevivência, o trabalho tem o caráter de “operador fundamental na própria construção do 1 Psicóloga, Mestre em Psicossociologia, Professora-assistente do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). 2 Graduando do Curso de Psicologia da UFES. 3 Graduanda do Curso de Psicologia da UFES, bolsista PIBIC. 221 Sujeito” (Dejours, 1994, p. 143) ou de “... um espaço da construção do sentido e, portanto, de conquista da identidade, da continuidade e historicização do sujeito” (Dejours, 1994, p. 143). Temos já aqui várias questões levantadas: as condições de trabalho, reconhecidamente penosas, a organização do trabalho, aqui ainda desconhecida por nós, o fato de que entendemos o trabalho como categoria central na vi da dos sujeitos trabalhadores e, ainda, o fato de a economia na região pesquisada Cachoeiro do Itapemirim (ES) - concentrar-se majoritariamente no setor de mármore e granito, o que deixa pouca margem de possibilidades de escolhas de outros mercados de trabalho para os trabalhadores. A conjuntura econômica e política do País não foi esquecida e não poderia ser mais desfavorável: políticas neoliberais levando a um desemprego estrutural e precarização do mundo do trabalho. A despeito das dificuldades, o desafio foi aceito e, com mais cinco alunos4 em estágio obrigatório, uma aluna de Iniciação Científica e três alunos extensionistas (todos do curso de graduação em Psicologia da UFES), execu tamos, durante um ano, o Projeto Integrado de Ensino, Pesquisa e Extensão, intitulado “No Caminho das Pedras - Organização do Trabalho e Saúde no Processo de Extração, Beneficiamento e Transporte do Mármore e Granito”. Tal projeto teve por objetivo evidenciar os efeitos da organização do trabalho na saúde dos trabalhadores, além de promover um espaço de discussão, entre os trabalhadores, da sua realidade de trabalho, saúde e de suas vidas, visando a possíveis transformações. O projeto foi apoiado pelo Sindicato da Indústria de Rochas Ornamentais, Cal e Calcário do Estado do Espírito Santo (SINDIROCHAS) e pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Mármore, Granito e Calcário do Estado do Espírito Santo (SINDIMARMORE). Vislumbramos a extensão da complexidade do campo quando, ao chegarmos em Cachoeiro, descobrimos que existem empresas legalizadas, empresas ilegais, empresas grandes, empresas literalmente de “fundo de quintal”, trabalhadores com carteira assinada, outros absolutamente precarizados. Descobrimos que existem inúmeros processos de trabalho diferentes no setor: Descobrimos muito mais, por exemplo: que a relação dos trabalhadores com os donos das pedreiras e serrarias podia oscilar. Em muitas empresas nos deparamos com a figura do patrão paternal, da empresa como família; em outras, encontramos forte componente religioso que tornava os companheiros 4 Participaram do processo de pesquisa os seguintes alunos: Alexandre Aranzedo (extensionista); Cleilson T. dos Reis (extensionista); Danieli de C. Oliveira (estágio obrigatório); Grace H. Weinichi (bolsista PIBIC); Helen K. Effgen (estágio obrigatório); Maria Renata Prado (extensionista); Marinete R. P Mascarello (estágio obrigatório); Michelina Toniato (estágio obrigatório) e Pedro R. T. de Sá (estágio obrigatório). 222 de trabalho “irmãos”. Outras empresas operavam com gestão do tipo mais competitivo e, finalmente, encontramos relações quase escravocratas (havia uma pedreira onde os trabalhadores não recebiam salário há três meses, não tinham calçados, nem equipamentos). Ufa! Será que daríamos conta de tais complexidades? Este artigo tem por objetivo contar um pouco dessa pesquisa-aventura e, por se tratar de projeto de ensino, pesquisa e extensão, discutir a ética do ensino de pesquisa no campo da saúde e trabalho para alunos de graduação. Por outro lado, tem ainda por objetivo problematizar a noção de saúde com a qual pesquisadores, técnicos e agentes de saúde e de educação operam em suas práticas. A metodologia É claro que não tínhamos a intenção de abarcar toda a complexidade que o campo oferecia. No entanto, quanto mais nos aproximávamos dos trabalhadores e de sua realidade de trabalho e de vida, a complexidade parecia aumentar, ao invés de diminuir. Vamos contar aos poucos esse processo. A pesquisa se desenvolveu nas empresas ligadas às atividades de extração e beneficiamento de mármore e granito, na cidade de Cachoeiro do Itapemirim. A escolha do local ocorreu devido à grande concentração de empresas nessa localidade, assim como pela possibilidade de se ter acesso a comunidades inteiras que vivem quase exclusivamente em torno dessa atividade econômica. Tratou-se de um estudo exploratório, de caráter inédito, já que estamos considerando, além das condições de trabalho, também a organização do trabalho. As condições de trabalho - aqui entendidas, segundo Dejours (1994), como pressões físicas, mecânicas, químicas e biológicas do posto de trabalho, têm por alvo principal o corpo dos trabalhadores, podendo ocasionar desgaste, envelhecimento e doenças somáticas, evidenciando-se, dessa forma, o meio ambiente como fonte de doenças e agravos à saúde física. A organização do trabalho, de acordo com o mesmo autor, atua observando o funcionamento psíquico e pode ser entendida como a divisão de trabalho: divisão de tarefas entre os trabalhadores, repartição, cadência e, enfim, o modo operatório prescrito; e a divisão de homens: repartição de responsabilidades, hierarquia, comando, controle, etc. Nesse sentido, é possível conhecer não só os efeitos das condições de trabalho sobre a saúde física, mas também investigar e conhecer como as pressões decorrentes da organização do trabalho atuam sobre a saúde mental e a subjetividade dos trabalhadores. 223 Para além dos agravos físicos à saúde, interessou-nos o impacto desse tipo de trabalho na saúde mental e produção de subjetividade dos trabalhadores envolvidos. Procuramos compreender, ainda, o sentido que os trabalhadores atribuem à atividade que realizam cotidianamente. Somente dessa forma poderemos compreender a dominação e também as formas de resistência e luta que os trabalhadores constroem e que podem proteger ou agravar sua saúde. Interessou-nos aqui o dado qualitativo, muito mais do que o quantitativo não há possibilidade de acesso à vida cotidiana, ao sentido que os trabalhadores atribuem às suas atividades, senão por meio da intersubjetividade. Dessa forma, poderíamos nos aprofundar nas questões sobre saúde e trabalho que abordamos com os trabalhadores. Para tanto, embasamo-nos nas referências metodológicas sugeridas pela Ergonomia Situada que nos possibilita conhecer e analisar o trabalho real - em detrimento do trabalho prescrito por empresários - ou seja, a análise do trabalho por meio da observação nos locais onde ele se realiza. Tivemos a oportunidade de observar (e de alguma forma, sentir) in loco as cargas físicas, psíquicas e cognitivas a que os trabalhadores estão submetidos, considerando ainda a variabilidade inter e intra-individuais. Referenciamo-nos ainda na Psicodinâmica do Trabalho, cuja metodologia nos permitiu conhecer, por meio de entrevistas coletivas e individuais, a vivência subjetiva dos trabalhadores em frente às suas atividades cotidianas. Os discursos e comentários suscitados nesses encontros possibilitaram-nos investigar quais os processos psíquicos mobilizados, e coletivamente construídos pelos sujeitos, para manterem-se na “normalidade” diante de uma situação de trabalho insalubre e perigosa. Nas primeiras empresas visitadas, foram realizadas apenas observações participantes que, segundo Becker (1997, p. 47), consiste em observar ... as pessoas que se está estudando para ver as situações com que se deparam normalmente e como se comportam diante delas. Entabula conversação com alguns ou com todos os participantes dessa situação e descobre as interpretações que eles têm sobre os acontecimentos que observou. Reiterando o caráter qualitativo e exploratório de nossa pesquisa, entendíamos esse procedimento como o mais adequado para que os próprios pesquisadores pudessem entrar em contato com uma realidade tão distinta da realidade de vida de alunos e professora. Desde o início de nossas atividades em campo, deparamo-nos com uma realidade cuja complexidade era-nos desconhecida até então. O setor de már- 224 more e granito comporta atividades de extração e beneficiamento da matéria prima (blocos de mármore e/ou granito), moagem de calcário e extração de pedras marruadas (matéria-prima para as empresas de moagem). Essa complexidade do setor obrigou-nos a definir nossos sujeitos e procedimentos em função da possibilidade de contato - pela anuência do empresário, de acordo com o ritmo da produção, com o perigo no local, com o horário de detonação de explosivos, dentro da possibilidade de escuta em locais cujo ruído ultrapassa os limites até de ouvidos menos sensíveis. Importante ressaltar as diversas dificuldades que fomos encontrando no decorrer da abordagem no campo. A possibilidade ou não de superar essas dificuldades é que norteou, de certa maneira, nossa estratégia metodológica em campo. A distância entre as empresas visitadas era um obstáculo, além da própria dificuldade de acesso a algumas delas devido à precariedade das vias de acesso: estradas de chão, estreitas; trabalhadores quebrando pedras (marruadas) no meio dos caminhos; caminhões subindo e descendo com grandes blocos de mármore. Temíamos: e se um caminhão desses despencar? E se o nosso próprio carro despencar? Será que chegamos em horário de “fogo”? E lá íamos correndo, a adrenalina a todo vapor. Será que voltaríamos no próximo mês? “Trabalhadores simpáticos, dando tchau...”. Que nada! Estavam tentando avisar que a aluna estava em local de explosão. “Os trabalhadores faltaram à reunião, será que não foram avisados?”. Não, estão escondidos, porque vão dar fogo agora! Meu Deus! E eu faço o quê? Corro de costas, rezo, me jogo no chão. “Maldita hora em que meti neste projeto maluco”. Deparamo-nos com o perigo de sermos atingidos por pedras no momento de explosões nas empresas de extração e com agravos à saúde dos próprios alunos pesquisadores (rinites alérgicas, insolação, desequilíbrios gastrointestinais, etc.). Para além disso, a cada tarde que voltávamos do campo, o sentimento era generalizado - extremo cansaço: pela dificuldade de ouvir os trabalhadores (devido ao ruído), o cabelo endurecido de tanto pó, o rosto queimado, apesar do protetor solar. Tudo doía: as pernas, a garganta, a cabeça - como esses trabalhadores agüentam? Como e por que eles retornam no dia seguinte? Eram essas as nossas questões no início do projeto. Devido às dificuldades encontradas nas atividades em campo acima descritas, a partir da quinta abordagem no campo, entendemos que, para a finalidade de nossa pesquisa - estudo exploratório de natureza qualitativa - as questões até então suscitadas nos encontros anteriores seriam mais bem aprofundadas se limitássemos nossas visitas a três empresas que contemplariam a diversidade das atividades que compõem o setor, quais sejam: 225 • empresa de extração com 22 trabalhadores; • empresa de beneficiamento com 20 trabalhadores; e • empresa de moagem com 60 trabalhadores. Esse modo de produzir conhecimento fala de uma ética de ensino e pesquisa no campo do trabalho e saúde. A ética aponta a construção de conhecimento que só pode ser realizada a partir do discurso do próprio trabalhador. Essa forma de proceder nos ensina: estar no lugar onde o trabalhador executa seu trabalho, ouvir dele a explicação sobre o processo de trabalho, comparar a vivência do trabalhador com as nossas, as perplexidades em face daquilo que sentíamos e vivíamos ali, pois só eles conhecem suas dificuldades, suas necessidades; só eles vivenciam o desconforto de um EPI, só eles, nas suas vivências, podem apontar a real eficácia de um EPI. Esse é um ponto fundamental no trabalho que realizamos no setor de mármore em Cachoeiro. Sempre deixamos claro aos trabalhadores que não detínhamos o conhecimento de sua realidade de trabalho e, podemos dizer, sem medo de errar, que aprendemos muito com aqueles trabalhadores. Não apenas sobre a realidade de seu trabalho e de suas vidas, como também pudemos repensar nossas vidas. Nosso trabalho consistiu em ouvir, discutir; rediscutir. Ouvíamos os trabalhadores, discutíamos entre nós suas questões e voltávamos ao campo e indagavamos aos trabalhadores: é isso mesmo? E assim foram aparecendo diversas questões enigmáticas, aparentemente sem sentido, estranhas... Trabalho prescrito x trabalho real, ou saber prescrito x saber real Em certa ocasião, nessa mesma região, escutamos, por parte de um médico do trabalho, apoiado por técnicos e empresários do setor, que o grande problema, o que causa acidentes e agravos à saúde, é a falta de educação e de cultura do trabalhador. Então qual a prescrição? Treinamento e cartilhas evidenciando a utilidade, a necessidade de um comportamento adequado por parte do trabalhador, visando à segurança e saúde no trabalho, calcado principalmente na utilização de equipamentos de segurança. Bem, aqui temos um feixe de problemas. O primeiro deles diz respeito à idéia subjacente a esse discurso, qual seja - técnicos e profissionais SABEM o que é bom para a saúde dos trabalhadores, ENSINARAM a eles e, infelizmente, eles não aprenderam. Problemas de aprendizagem?... Outro problema colocado por essa idéia é que, para solucionar questões referentes à saúde e segurança no trabalho, é necessário modificar o comportamento do trabalhador, deixando intocada a organização do trabalho. Ou seja, não se questiona se o ritmo da produção é adequado, se as pausas são suficientes, se a jornada é muito extensa, não se levam 226 conta as condições climáticas para quem trabalha a céu aberto - chuvas ou sol muito quente. Enfim, diante de tantas variáveis, a idéia é que apenas o que está sujeito à modificação é o trabalhador, o resto fica fora de questão. Ora, o que de fato sabem os técnicos e os profissionais? O que aprenderam em suas salas de aula? O quanto se dispuseram a ouvir, compreender e dar estatuto de verdade às palavras dos trabalhadores? Como bem ilustra a fala de um trabalhador, “Vamos vestir um médico com capacete, luvas, máscara, protetor auricular, sob um sol de 40 graus, segurando um martelete em cima de uma pedra, para ver o quanto ele agüenta” (trabalhador de serraria). Em nossa experiência, pudemos constatar a imensa dificuldade em ouvir o trabalhador nesse setor. Nós insistimos e o fizemos porque essa era a nossa proposta metodológica e ética. Mas não foi fácil. Como conversar com um trabalhador pendurado a muitos metros de altura? Como entabular uma conversa, uma entrevista, no meio de ruídos ensurdecedores e sem pausa? Como continuar atento se, ao conversarmos, estamos o tempo todo comendo poeira? Se estamos numa ambiente fechado, o barulho e a trepidação parecem nos levar para outras dimensões; se estamos em ambiente aberto, o sol escaldante parece amolecer nossas cabeças. Então, no setor de mármore e granito, temos uma dificuldade a mais, além da ideológica, para ouvir o trabalhador - o próprio ambiente. No entanto, repetimos, entendemos que nenhuma pesquisa, nenhum treinamento ou outra prática no campo do trabalho e saúde podem ser alavancadas sem a efetiva participação do trabalhador, não somente na execução de uma prática, mas na sua elaboração e (re)planejamento. Foi assim que construímos esta pesquisa. Com todas as dificuldades já apontadas, mas com um saldo bastante positivo: pelo menos nove alunos do curso de graduação aprenderam, na sua experiência com o trabalhador do mármore e granito, a fazer pesquisa respeitando os sujeitos trabalhadores em seu saber, em sua vivência subjetiva. Após a transcrição de todas as fitas de entrevistas gravadas com os trabalhadores, utilizamos a análise do discurso como possibilidade de investigar o sentido que os trabalhadores atribuem à atividade que realizam no cotidiano. Entendendo que a produção de sentidos ocorre pelo discurso, este, antes de ser uma atividade cognitiva intra-individual, constitui-se como uma produção social, um empreendimento coletivo por meio do qual as pessoas compreendem e lidam com as situações e fenômenos à sua volta. Tal como aponta Spink (1999), as práticas discursivas, definidas como linguagem em ação, são a maneira pela qual as pessoas produzem sentidos e se posicionam nas suas relações sociais cotidianas, uma vez que o uso da linguagem sustenta as práticas sociais. 227 Partindo-se desse método de análise, consideramos o contexto sóciohistórico, político e cultural, os interlocutores presentes ou presentificados, o espaço e o tempo como fatores que moldam uma forma de discurso, ou seja, como certas prescrições lingüísticas, regras e valores que orientam as práticas cotidianas das pessoas. Ao mesmo tempo, além de suas regularidades, o discurso também comporta a dimensão da diversidade e da não-regularidade presente em diferentes contextos em que ele é produzido e de acordo com os repertórios interpretativos5 de que se dispõe. Estes produzirão diferentes sentidos que, por sua vez, irão gerar diversas ações, interações e práticas sociais. O primeiro enigma: a noção de saúde Ao iniciarmos nosso trabalho de campo; tínhamos clareza em relação aos efeitos perversos à saúde que tal trabalho provocava nos trabalhadores. Quanto a isso não tínhamos dúvidas. Qual não foi nossa surpresa quando verificamos que essa relação não era evidenciada de maneira tão explícita pelos trabalhadores. Eles tinham a noção de que o trabalho poderia afetar a saúde; mas no futuro, quem sabe um probleminha de ouvido, um probleminha de coluna, alguma coisinha no pulmão... Os alunos ficaram intrigados: “Acho que não sei fazer entrevistas... os trabalhadores que entrevistei não tinham e nem viam problemas de saúde relacionados ao trabalho...”. “Será que não compreendi bem a última supervisão?” A questão se tornou um enigma. Foi necessário rever e evidenciar a nossa concepção de saúde, para que pudéssemos tornar clara a noção que eles estavam nos trazendo. Aproximarmo-nos dos sentidos atribuídos por esses trabalhadores aos termos trabalho e saúde, ao lado das nossas experiências em situações no campo, foi se constituindo como a principal via de acesso na compreensão das vivências subjetivas daqueles sujeitos. Nossa implicação nessa pesquisa não dizia somente de uma relação que se pretende neutra entre sujeito e objeto a ser conhecido. Ao contrário, levávamos a campo nossos próprios valores, conceitos, visão de mundo e de homem que foram sendo confrontados com uma outra realidade. Desse confronto de idéias e de subjetividades, mediado pela linguagem, é que pudemos, junto com os trabalhadores, questionar como e/ou 5 Repertórios interpretativos são as unidades de construção de práticas discursivas ou o conjunto de termos, descrições, lugares-comuns e figuras de linguagem que demarcam o rol de possibilidades de construções discursivas, tendo por parâmetros o contexto em que essas práticas são produzidas e os estilos gramaticais específicos. 228 sobre quais práticas e discursos, socialmente construídos, a realidade do mundo do trabalho atual se sustenta, e tentar nos aproximar de alguns caminhos que nos levariam a compreender os processos subjetivos mobilizados pelos trabalhadores para o enfrentamento daquela realidade. Nesse sentido, a primeira providência foi problematizar a noção de saúde: do que é que estávamos (pesquisadores e trabalhadores) falando, afinal? Nós tínhamos clareza, acompanhando Dejours, de que ... o trabalho é um dado fundamental da saúde. Não somente de maneira negativa (trabalho como causa de doenças, de intoxicações, de acidentes, de desgastes etc.), mas também de forma positiva. O não-trabalho também pode ser perigoso para a saúde, como se vê bem, atualmente, com toda a patologia do desemprego (1993, p. 101). Entendemos o trabalho como fato social determinante no processo saúde/doença. Em nosso entendimento, era por demais evidente a associação entre aquele tipo de trabalho e agravos à saúde. Assim, pudemos compreender que aquela população entende a saúde como a própria condição de trabalho. Saúde é tudo, sem saúde não se trabalha, não se vive. Nas falas dos entrevistados, as noções de saúde e de doença parecem fazer sentido se vinculadas ao trabalho, já que a doença vai se caracterizar como um impedimento ao trabalho. Vejamos as descrições dos próprios trabalhadores: “Saúde é tudo.” “Sem saúde nós não é nada.” “Trabalhar como, doente?” “Quem tem saúde, tem disposição para fazer mais dinheiro.” “Eu penso que quem não tem saúde sente, sente cansaço, sente dor, desânimo, é infeliz.” “Saúde é não ter nada, nenhuma doença, estar bem e trabalhando.” Tal como aponta Minayo: As expressões correntes: a saúde é tudo, é a maior riqueza, saúde é igual afortuna, é o maior tesouro; em oposição a doença como castigo, infelicidade, miséria etc. são representações eloqüentes de uma realidade onde o corpo se tornou, para a maioria, o único gerador de bens (Minayo, apud Nardi, 1998, p. 98). 229 Foi possível observar que, nas atividades desenvolvidas nesse setor, o predomínio do componente físico6 na execução do trabalho produz nos trabalhadores uma noção de saúde em que a “força” e a “disposição” do corpo para o trabalho parecem ser os principais fatores que dizem de um corpo saudável. Ter saúde é “ter força” e “ter disposição”. Sendo assim, o sentido de saúde é concretizado no corpo. Ter ou não ter saúde é um estado visível que se reflete no corpo, tal como ilustra este segmento do discurso de um trabalhador: “[saúde] É tudo sim... que tem até um dizer assim: que a vida é dura para quem é mole. E quem não tem saúde é onde dá moleza; a vida é dura para quem é mole e quem tem saúde não tem nada de moleza, não.” Nesse segmento o entrevistado fala do que é não ter saúde relacionando esse estado com “moleza”. Boltanski, em “As classes sociais e o corpo”, aponta: A valorização da atividade física e da força física, que é correlativa de um uso instrumental do corpo, fazem com que a doença seja sentida primeiro como um entrave à atividade física e ocasione essencialmente um sentimento de fraqueza. [...] A doença é o que tira a força do doente, ou seja, o que o impede de ‘viver normalmente’ e fazer de seu corpo um uso (profissional principalmente) habitual e familiar (1979, p. 161). Uma das condições de trabalho presente em todas as empresas visitadas referese à exposição dos trabalhadores a um alto nível de ruído. Diversos estudos apontam os efeitos nocivos à saúde provocados pela poluição sonora no ambiente de trabalho. Pudemos observar, nas falas dos entrevistados, referências a problemas de saúde já existentes relacionados com a audição. • “O exame, por exemplo, que a gente fez, eu fiz antes de ontem, a doutora disse que tinha um problemazinho assim, mas a gente, assim, não sente diferença alguma.” • “Meu exame de ouvido deu problema... uma coisinha à toa, não é nada, não.” • “Fica aquele barulhinho enjoado um tempo. Às vezes, até no outro dia, quando a gente vem trabalhar de novo, ainda tem o barulhinho. Aí a gente fica nervoso. Mas acostuma, tem que vim trabalhar, né?” 6 De acordo com a Ergonomia, esse componente relaciona-se com os gestos, com as posturas e com os deslocamentos do trabalhador necessários à execução da tarefa. A quantidade de esforço físico dispendido pelos trabalhadores na realização da tarefa expressa a carga física da jornada de trabalho. 230 Pode-se perceber nessas falas, no entanto, que, para esses trabalhadores, embora tenha sido identificada, via exames periódicos, a existência de problemas auditivos, esses parecem não se constituir como uma verdadeira doença ou agravo à saúde, uma vez que o corpo se mantém apto para o trabalho, confirmando, dessa forma, que o sentido de saúde está diretamente relacionado com o impedimento ou não do corpo ao trabalho diário. Muitos trabalhadores demonstraram ter conhecimento de que os efeitos nocivos à saúde que as condições de trabalho produzem sobre o corpo podem se intensificar e que, com o tempo, podem se agravar. Ao vincular o sentido da saúde ao trabalho, porém, esses agravos são minimizados ou se constituem como um mal com o qual, fatalmente, terão que se haver no futuro, pois, no presente, ainda não os impede de executar suas tarefas cotidianas. “... é como um vício, a gente sabe que vai fazer mal mais tarde, mas o vício a gente pode largar, já o trabalho não, é uma obrigação.” “É, isso aí [problemas de saúde decorrentes das condições de trabalho] no futuro a gente pode pensar...” Boltanski, ao apresentar um estudo comparativo entre a necessidade médica nas classes sociais, assinala: Para os membros das classes populares, que não prestam voluntariamente atenção ao seu corpo, que o usam principalmente como um instrumento e que lhe pedem antes de mais nada que funcione, em resumo, que subordinam a utilização do corpo às funções sociais dessa utilização, a doença se manifestará brutalmente porque não se aperceberam dos sinais precursores ou porque se recusaram a percebê-los (1979, p. 163). O caráter insidioso das doenças que os acometem parece ser um dado que não se vincula ao sentido de saúde desses trabalhadores, seja porque, dentro do contexto em que eles se encontram, é suficiente ter um “corpo que funcione para o trabalho” como também, como expressaram esses mesmos trabalhadores, a precariedade de acesso ao serviço público de saúde os impede de realizar um tratamento adequado. Esquece esse negócio de médico, até porque a dificuldade hoje de você conseguir um médico... você tem que pagar tudo, então é melhor, se você sentir alguma coisa, você tomar um chá, tomar alguma coisa. Se você for no hospital, você não agüenta pagar. Se você chegar lá na Santa Casa com dois mil real, três mil real no 231 bolso e fala com o médico: ‘eu quero um check-up de tudo’, o médico vai saber tudo o que eu tenho. Rapidinho eles fazem tudo e te dão o resultado ali ó, perfeito... Do contrário, você não tem nada... todos os hospitais funcionam assim. Não adianta, se tiver dinheiro é bem tratado, se não tiver... (Depoimento de um trabalhador). Como assinala ainda Boltanski, Se ele se recusa ‘cuidar-se’, se espera o último minuto para ir ver o médico, fazer uma operação, ou hospitalizar-se é que as coerções cotidianas, as coerções econômicas, principal mente, proíbem ou pelo menos tornam extremamente difícil o abandono das tarefas cotidianas, do trabalho, do trabalho físico que ele exige continuamente do corpo (1979, p. 153). Essa noção de saúde apontada pelos trabalhadores pôde ser mais bem compreendida quando nos dispusemos a investigar qual é o sentido do trabalho para essa população. Compreendendo o sentido do trabalho Discutir o sentido do termo trabalho é, nos tempos atuais, tarefa das mais importantes e mesmo necessárias. Seja quando atrelado à idéia de “emprego”, seja quando adquirindo caráter de valor, o trabalho tem se consolida do em nossa sociedade como estruturante da vida de cada sujeito, a ponto de ser considerado como natural e imprescindível, fundamental para a constituição da subjetividade vivenciada pelo trabalhador. No entanto, não nos é possível discutir o trabalho sem pensá-lo como um objeto histórico, produto de transformações em função das diversas e diferentes práticas e contextos que propiciaram o seu surgimento. A noção de trabalho se constrói a partir de todo um conjunto de configurações históricas, sociais e políticas específicas que não necessariamente são as mesmas em todo tempo e em todo espaço (Gondar, 1995). Para ilustrar tal fato, podemos lembrar a sociedade grega antiga, onde a categoria trabalho nem sequer existia. As atividades de profissão não possuíam valor social a não ser como expressão de talentos variados. A sociedade política, longe de ser referendada pelo valor da atividade de profissão, tinha como referência a lei e a idéia de igualdade entre os homens livres. A estes estava reservada a dignidade da atividade do pensar, ficando as atividades manuais desvalorizadas destinadas apenas aos escravos. 232 Já durante a Idade Média, principalmente com o advento do Cristianismo e a instauração da ordem monástica, o trabalho se atrela a um valor moral, como uma possibilidade de domínio do espírito sobre o corpo. Era necessário viabilizar um tipo de atividade que pudesse enfraquecer ainda mais a carne, de maneira que ela não pudesse se fazer valer através da memória. Esta atividade é o tra balho, aqui concebido como dispêndio de energia, ou seja, como modo de ocupar o corpo até a exaustão, eliminando nele qualquer indício do desejo e de sua força (Gondar, 1995, p. 28). Com os monastérios, outros valores também começaram a tomar forma junto à idéia de trabalho. A disciplina e a necessidade de se dividir o tempo em horários e intervalos são heranças das ordens monásticas que acabaram por se consolidar nos anos que se seguiram. Pouco a pouco, o trabalho foi perdendo o caráter de sacrifício e ganhando uma dimensão de produção, essencial à condição humana. A ascensão da burguesia e a necessidade de construção das cidades, durante a Idade Moderna, trouxeram uma nova configuração da realidade, baseada na necessidade de acumulação de capital, de ampliação dos mercados, de aperfeiçoamento de técnicas e incremento na produção. Com as fábricas, o até então pequeno artesão de produção doméstica e familiar é expropriado de seu saber/fazer, perdendo o controle do processo de trabalho e vendo-se obrigado a vender sua força sob a forma de mão-de-obra. O fruto do trabalho deixa de ser do trabalhador e o progresso industrial é construído à custa da exploração social e trabalhista. Para atender aos interesses burgueses, o trabalho adquire valor de troca e a mercadoria passa a ter maior importância do que o próprio homem. Forja-se assim a instauração do trabalho como necessidade, dando sentido à própria vida. Tal noção, que coloca o trabalho como entidade absoluta, encontra forte ressonância em nossos tempos atuais. Concebe-se o trabalho como algo “natural” ao homem, componente de sua “essência”, esquecendo-se de problematizar seu valor histórico. Uma das principais conseqüências de tal forma de pensar pode ser verificada quando nos deparamos com o atual quadro de desemprego e da falta de perspectiva de empregos. Por não ser possível mais separar o homem do trabalho, recai sobre o homem sem trabalho, ou melhor, sem emprego, toda a carga de culpa, vergonha e resignação. Se for verdade que o trabalho organiza a vida, uma vida sem o trabalho acaba por ser considerada de pouco valor (ou mesmo sem valor!), aproximando o homem da inutilidade (Forrester, 1997). 233 A partir dos encontros que pudemos ter com os trabalhadores do mármore e do granito, não nos restou dúvida em relação ao lugar privilegiado que o trabalho ocupa em suas vidas. Foi-nos possível ouvir e pensar sobre os diversos sentidos atribuídos por eles ao trabalho. De tudo o que foi enunciado, no entanto, pareceram-nos mais marcante as falas que remetem a três sentidos específicos do trabalho, três apresentações do trabalho em suas vidas: a) Trabalho como sobrevivência: “Trabalhar, a gente tem que trabalhar mesmo. Ou ali, ou aqui, de um jeito ou de outro a gente se não trabalha não tem ‘papá’... pra sobreviver, precisa sustentar a gente, a si mesmo e à família...” “Ninguém gosta de trabalhar não, rapaz. Trabalha porque precisa. Não acredito que o cara trabalhe porque goste...” Uma das enunciações muito presente entre os trabalhadores remete à idéia de trabalho como um modo de sustentar a família, uma garantia de sobrevivência. Trabalhar parece assumir um valor de obrigação, um “fardo pesado” que permite apenas “sobreviver” diante da realidade, uma forma, talvez a única, de se sentir vivo e presente. Seja qual for o trabalho, em quaisquer condições, trabalhar representaria a garantia de vida e de dignidade. Nesse sentido, “é necessário trabalhar”, ainda que a vida e a saúde sejam colocadas em risco pelas condições e pela organização do trabalho. b) Trabalho como atividade natural do homem: ... o trabalho faz parte da vida do homem, não tem pra onde o homem correr. Mesmo se ele tiver dinheiro, ele vai ter que trabalhar, de um jeito ou de outro ele vai ter que trabalhar. Isso aí faz parte, o homem já nasceu pra isso, trabalhar... Em outros momentos, foi possível percebermos também muito presente a idéia de trabalho com uma atividade inerente ao homem, algo que o define e que sem o qual o homem não se faz homem. Mesmo que as condições de sobrevivência já sejam dadas, “trabalhar é necessário” para que se possa se assumir como homem. Tal concepção se, por um lado, reforça a idéia de trabalho como essência humana, que “enobrece o homem”, por outro lado, pode estar remetendo a um discurso que tenta legitimara necessidade de afirmação do lugar social do masculino como provedor, o responsável pelo sustento da família e da pro- 234 le. Essas duas análises possíveis dão uma dimensão do quanto o sentido do trabalho está atravessado por diversos valores morais e subjetivos construídos social e historicamente. É como se do homem fosse exigida a todo tempo a manifestação da masculinidade pela força do trabalho e do fomento financeiro da família, confirmando, assim, o pátrio poder expresso na figura do “chefe da casa”. “A capacidade e as habilidades para o trabalho - em especial, aquele duro e pesado - são elementos constituintes importantes do ‘ethos masculino’ nas classes trabalhadoras” (Duarte, 1986; Guedes, 1992, apud Nardi, 1998, p. 95). Trabalhar pode ser natural ao homem também por estar associado à idéia de atividade, de produtividade e, por conseguinte, de utilidade. Há um desejo grande por ser útil, por fazer algo, por não se caracterizar pelo ócio, ainda que seja um descanso. Até mesmo a aposentadoria é vista com certa desconfiança. “Se aposentar morre...”, “Eu não paro. Nunca tirei férias aqui... Então pra que eu vou parar de trabalhar? Nós, trabalhadores, se parar de trabalhar morre...”, alguns dizem. O trabalho; aqui, adquire importância maior do que qualquer outra dimensão da vida (sem trabalho não há vida) e, por isso, torna-se referência estruturante da própria existência. c) Trabalho como espaço social: “... [o trabalho] distrai também... Eu não consigo ficar em casa...” "... Tem amigos, tem o diálogo, né... Amizade, consideração. Porque o homem não vive só. Um precisa do outro...” “Muitas vezes, a gente aqui em grupo consegue falar coisas que a gente deveria falar com os patrões e a gente não fala. E aqui a gente consegue falar...” Um outro sentido atribuído ao trabalho, enunciado pelos trabalhadores, diz respeito à idéia do trabalho como um lugar onde se constroem e fortalecem-se laços afetivos de companheirismo e amizade. Entendem que o trabalho permite trocas com outras pessoas, permite compartilhar as vivências, os conflitos, as angústias e permite também vislumbrar formas alternativas de solucionar problemas e de lidar com a realidade. Seja por meio das conversas informais nos intervalos da jornada de trabalho, seja na realização de tarefas em grupo, ou mesmo nos momentos de lazer vivenciados em comum (futebol do fim de semana, bate-papo no barzinho ao final do expediente, etc.), percebe-se que os vínculos subjetivos são criados, tornando-se fundamentais para a produção coletiva de sentidos do cotidiano. O trabalho, assim, assume um valor como prática social que faz com 235 que o sujeito se sinta participante e também responsável pela transformação da realidade. Nesse sentido, o trabalho contribui para se conceber o homem como produtor do mundo e de si mesmo. Consideramos essa dimensão do trabalho fundamental por colocar em questão a capacidade do homem de se ver enquanto inserido no processo de construção de novos modos de ser e de viver, baseados na percepção de suas potencialidades e limitações. Nas palavras de Aranha & Martins (1993, p.127) ... pelo trabalho o homem se autoproduz: desenvolve habilidades e imaginação; aprende a conhecer as forças da natureza e a desafiá-las; conhece as próprias forças e limitações; relaciona-se com os companheiros e vive os afetos de toda relação... Trabalho aqui adquire o sentido de produção; não a produção de lucro capitalista, mas a produção coletiva de sentido e de realidade, o que só é possível a partir do envolvimento dos sujeitos em uma rede solidária de afetos produtores de dignidade. A interface trabalho/saúde Aqui podemos tocar a interface trabalho/saúde; o trabalho torna-se um “bem” tão importante, ou mais até do que a própria saúde. Trabalho aqui é meio de sobreviver, faz parte da “natureza” humana, principalmente a do homem, e ainda possibilita um certo tipo de sociabilidade. Como não trabalhar? Como dar uma pausa ao trabalho para cuidar de algum “probleminha” de saúde? De uma só vez se perde o meio de sobrevivência, perde-se até mesmo a dignidade como ser humano e ainda perdem-se as amizades, as brincadeiras, o cotidiano construído junto com colegas de trabalho. “Se estou cansado, se minha jornada terminou, mas ainda temos um bloco para serrar, o que fazer? Parar? E se o patrão achar que estou ‘sendo exigente’? Coloco em risco meu emprego? Minha coluna já está doendo, mas fazer o quê?”. Assim, os trabalhadores extrapolam os limites que o próprio corpo denuncia - a maioria dos trabalhadores conhece e explicita as possibilidades de agravo à saúde, mas o trabalho, com toda a carga de sentido que já discutimos, torna-se moeda muito mais forte do que a saúde. Aqui temos a possibilidade de compreender porque os riscos desse tipo de trabalho são, por vezes, minimizados pelos trabalhadores. Não se trata de descuido ou falta de educação, mas simplesmente “Se a gente ficar pensando muito nisso aí, não dá pra trabalhar” (trabalhador de pedreira). 236 Aqui temos a possibilidade de compreender por que, muitas vezes, os trabalhadores recusam os EPIs - em primeiro lugar, a execução do trabalho está acima de qualquer coisa e muitos dos EPIs causam desconforto aos trabalhado res; aqui o zelo pelo trabalho fala mais alto do que a própria proteção à saúde. Com todos esses equipamentos, tenho que trabalhar mais devagar, não enxergo direito, não respiro direito. Será que o patrão está disposto a diminuir o ritmo de produção? Em segundo lugar, até que ponto os EPIs realmente protegem? Tenho protetor auricular, mas o barulho ainda assim está muito alto; já estou meio surdo mesmo, pra que sentir este calorão, o suor escorrendo pelo pescoço? São questões aparentemente singelas, mas fundamentais. Como planejar uma prática com trabalhadores no campo da saúde e segurança sem levar em conta o sentido que o trabalho e a saúde assumem para esses trabalhadores? Para tentar concluir, repetimos - uma prática no campo Trabalho e Saúde corre o risco de se transformar em conversas de mudos por um lado e surdos por outro, se não for construída conjuntamente com os trabalhadores. Que objetivo atingiríamos se tentassemos “informar” e “formar” trabalhadores sem compreender a sua realidade tanto material quanto simbólica? Nossa pesquisa nos mostrou com muita clareza a importância de se ouvir o discurso do trabalhador como estatuto de verdade, conhecer sua realidade, a partir de sua própria vivência. Esse é, a nosso ver, o viés que deve estar subjacente às práticas de saúde no trabalho, tanto no sentido de formação e informação de trabalhadores quanto na ética de pesquisa ensinada para alunos de graduação na investigação dos problemas aqui levantados. São provocações que partilhamos com os trabalhadores... Referências 1. 2. 3. 4. ABRAHÃO, Júlia. Ergonomia: modelo, métodos e técnicas. Brasília, 1993. Mimeogr. ALBORNOZ, Suzana. O que é o trabalho. São Paulo: Brasiliense,1992. ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, E., GENTILI, P Pós-Neoliberalismo. As políticas sociais e estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 4. ed. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1997a. 237 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 238 ANTUNES, Ricardo. Trabalho, reestruturação produtiva e algumas repercussões no sindicalismo brasileiro. In: ANTUNES, Ricardo (Org.) et al. Neoliberalismo, trabalho e sindicatos: reestruturação produtiva no Brasil e na Inglaterra. São Paulo: Jinkings Editores Associados Ltda., 1997b. p. 71-84. BECKER, Howard S. 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Alves de Almeida2 Maria Ivanilde Pereira3 Introdução A Região Norte do Estado de Minas Gerais, composta por um conjunto de 89 municípios, em sua grande maioria de pequeno porte, apresenta apenas dois municípios com população superior a 50.000 habitantes e apenas um município com população superior a 200.000 habitantes, que é o município de Montes Claros (hoje com cerca de 300.000 habitantes), que funciona como lugar central Norte Mineiro, no que se refere às áreas de educação, saúde, emprego e outras mais. Essa região onde está inserida a Unimontes, por ser reconhecida como palco de baixos indicadores sociais e graves problemas sociais, devido ao histórico empobrecimento regional, é também uma região marcada por evidências epidemiológicas e ecológicas que afetam a saúde da sua população de um modo geral e, em especial, a saúde do trabalhador que, não obstante, apresenta baixos investimentos e empreendimentos, a exemplo do que acontece em todo o País. Apesar dos esforços e interesses de organização de trabalhadores e de governantes nas esferas públicas federal, estadual e municipal, muito pouco tem sido feito no sentido de concretizar programas e ações de saúde e segurança do trabalhador no Brasil e, conseqüentemente, nessa região. Em 1995, a Unimontes, preocupada com essa problemática da saúde e segurança do trabalhador, começa a discutir com a Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho - FUNDACENTRO, numa perspectiva de fazer algo que viesse ao encontro dos anseios da população afeta e que, ao mesmo tempo, fosse coerente com a missão da universidade de promover a integração e o desenvolvimento regional. 1 Professor da Unimonte, Médico do Trabalho, Mestrando em Saúde Pública. 2 Especialista em Administração Pública, Técnicas da Unimonte. 3 Socióloga, Professora a Unimonte, Mestranda em Economia UFMG/Unimontes. 239 Por meio de reunião técnica com profissionais da FUNDACENTRO - sede em São Paulo e Centro Regional de Minas Gerais - e profissionais da Unimontes, bem como representantes de profissionais que lidam com essa temática e representantes de trabalhadores, decidiu-se elaborar um projeto de implantação do programa de Saúde e Segurança do Trabalhador para o Norte de Minas Gerais. Esse projeto, considerado audacioso, mas, ao mesmo tempo, de grande alcance social, previa quatro ações básicas que, se levadas a cabo, não só iriam intervir nessa problemática, mas também contribuir, sobremaneira, para a melhoria da qualidade de vida do trabalhador que vive nessa região. Foram estas as ações: 1. Curso de Especialização em Medicina do Trabalho e atualização em Saúde do Trabalhador, que objetivava qualificar profissionais médicos nessa área e com o mesmo objetivo, atualizar/aperfeiçoar profissionais de nível superior de diversas outras áreas, de forma a permitir a formação de uma equipe multiprofissional para implantar e implementar o Programa de Saúde e Segurança do Trabalhador na região. Esta primeira etapa do projeto, por tratar-se especificamente de formação de recursos humanos, previa também a realização de um curso de Qualificação Profissional para Auxiliar de Enfermagem do Trabalho - em nível médio complementar. Isso foi pensado, sabendo-se que não adiantaria capacitar apenas o nível superior, pois a equipe que se pretendia formar era uma equipe multidisciplinar, composta por ambos os níveis, e a capacitação dessa categoria se fazia extremamente importante para a operacionalização do projeto. 2. Implantação do Centro de Diagnóstico e Monitoramento de Doenças do Trabalho, que visava, em última instância, à implantação de um Laboratório de Higiene do Trabalho e de um Ambulatório de Doenças Ocupacionais, para monitorar e dar respostas aos problemas ligados à Saúde e Segurança do Trabalhador na região. Vale ressaltar que esta etapa foi considerada fundamental no projeto, haja vista que, embora Montes Claros seja considerada como lugar central de referência no Norte Mineiro, que atende a 89 municípios, não existia nenhum equipamento institucional que servisse de referência regional nessa área. 3. Curso de Formação de Multiplicadores em Saúde e Segurança do Trabalhador, que objetivava promover ações de caráter preventivo, de forma a possibilitar ao trabalhador a compreensão da relação saúde/trabalho, asse- 240 gurando-lhe conhecimentos para a participação em transformações no seu ambiente de trabalho. Esta etapa objetivava também realizar um trabalho de sensibilização de empresas públicas e privadas e entidades sindicais nos 89 municípios do Norte de Minas, de forma a garantir uma participação ativa dos municípios no projeto de implantação do Programa de Saúde e Segurança do Trabalhador na região. Vale ressaltar que esta fase do projeto previa uma importante aproximação dos municípios do Norte Mineiro com a Universidade Estadual de Montes Claros, no sentido de unir forças, realizando parcerias que viabilizassem o projeto. 4. Realização de um Diagnóstico Regional de Doenças Ocupacionais, que visava a realizar seu trabalho de aproximação ao perfil produtivo sanitário do Norte de Minas, mapeando a região, levantando áreas de risco, da nos e Doenças Ocupacionais prevalentes numa perspectiva de montar um banco de dados para subsidiar o funcionamento do Ambulatório/Laboratório de Higiene do Trabalho, desenvolvendo, com isso, uma política de promoção, prevenção e recuperação da saúde do trabalhador. Vale dizer que esta fase do projeto que previa a realização de uma pesquisa em nível regional nortearia todas as ações do projeto. O caráter inovador desse projeto da FUNDACENTRO/Unimontes/Fadenor estava no fato de ele apresentar uma possibilidade de articulação entre universidade, sociedade e poder governamental, numa perspectiva de diagnosticar para conhecer, intervir e acima de tudo transformar coletivamente a realidade concernente à saúde e segurança do trabalhador numa região carente, mas de grande importância social e cultural no contexto estadual e nacional. Fundamentação teórica A saúde do trabalhador pode ser considerada a área da saúde pública que tem como objeto de estudo e de ação as relações entre o trabalho e a saúde, ou o processo saúde e doença em sua relação com o trabalho. Seu objetivo maior é a promoção e a proteção da saúde dos trabalhadores, mediante o desenvolvimento de ações de vigilância sobre os riscos existentes no ambiente de trabalho, sobre as condições de trabalho e sobre os agravos à saúde do trabalhador, conforme preconiza o Ministério da Saúde em documento provisório de Política Nacional de Saúde do Trabalhador. Também faz parte dos seus objetivos a organização e a prestação da assistência ao trabalhador em procedimentos diagnósticos, tratamento e reabilitação, de forma integrada ao SUS. 241 Como trabalhadores são considerados todos os homens e mulheres que exercem atividades para o sustento próprio e /ou de seus dependentes, qualquer que seja a sua forma de inserção no mercado de trabalho nos setores for mais ou informais da economia. Logo, podem ser incluídos aqui todos os indivíduos que trabalharam ou trabalham como assalariados (com carteira de trabalho assinada), trabalhadores rurais, trabalhadores autônomos, servidores públicos, trabalhadores avulsos, proprietários de pequenas unidades de produção e também aqueles cuja forma de trabalho é considerada familiar. O setor informal no Brasil tem crescido nos últimos anos. De acordo com o IBGE, cerca de 2/3 da População Economicamente Ativa (PEA) está inserida no mercado informal de trabalho. Também é observada a domiciliação do risco, pela execução do trabalho no espaço domiciliar. As ações de saúde do trabalhador apresentam aspectos sociais, técnicos e políticos associados, promovendo uma interação entre os setores produtivos, a formação da força de trabalho, as questões ambientais e a seguridade social. No plano internacional, existem documentos da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 1970, como a Declaração de Alma Ata. Esses documentos têm enfatizado a necessidade de proteção e promoção da saúde e segurança no trabalho, pela prevenção e controle dos fatores de risco existentes nos ambientes de trabalho. Esse tema tem sido tratado com atenção especial, enfocando a promoção da saúde e construção de ambientes saudáveis (OMS-1995 e Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) - 1995). A Organização Internacional do Trabalho (OIT), pela convenção 155 de 1981, ratificada pelo Brasil em 1992, estabelece que o país signatário deve instituir e implementar uma política nacional em matéria de segurança e do meio ambiente de trabalho. A Constituição Federal de 1988, regulamentada pela lei n° 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde - LOS), em seu art. 16, confere à direção nacional do sistema a responsabilidade de coordenar a política de saúde do trabalhador. O parágrafo 3° do art. 6° define a saúde do trabalhador como "um conjunto de atividades que se destina, através das ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, a promoção e proteção da saúde dos traba lhadores , assim como visa a recuperação e reabilitação dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho". Outros instrumentos e regulamentos federais, estaduais e municipais orientam a implementação dessas ações, como as Portarias MS N° 3.120 de 01-07-1998 e MS N° 3.908 de 30-10-1998 que tratam da definição de procedimentos básicos para a vigilância da saúde do trabalhador e da prestação de serviços nessa área, devendo a operacionalização ocorrer nos planos nacional, estadual e municipal, com diferentes papéis e responsabilidades. 242 Em Montes Claros e na região Norte do Estado de Minas Gerais, as ações de saúde do trabalhador são desenvolvidas aquém do ideal. Mesmo em Montes Claros, que é uma cidade pólo da região, atualmente com cerca de 300.000 habitantes, com um parque industrial considerável e em expansão, não temos as ações de saúde do trabalhador desenvolvidas como previstas e de responsabilidade do governo nas suas diversas instâncias, ou seja, federal, estadual e municipal. Inclusive, com um sistema de informações precário. Pelo menos em nível local, não se conseguem tais informações ou, se elas existem, são de difícil acesso. Esse quadro apresenta proporções muito maiores quando consideramos as demais cidades do Norte de Minas com riscos em ambientes industriais, Pirapora e Várzea da Palma, e também as agroindústrias onde se consomem grandes quantidades de agrotóxicos sem os cuidados adequados e necessários de prevenção. Metodologia A proposta era que todas as ações acontecessem concomitantemente, para que o programa fosse alimentado e realimentado de forma articuladora e democrática. Para tanto, chamou-se cada ação específica do Programa de Projeto 1, 11, 111 e IV Do ponto de vista metodológico, optou-se por realizar cursos de forma descentralizada nas sedes das microrregiões, como intuito de facilitar e propiciar a participação de um maior número de pessoas e municípios, além de promover uma aproximação da Unimontes/FUNDACENTRO/Fadenor com os problemas específicos da região, no que, se refere à saúde do trabalhador. Alguns cursos de natureza mais específica eram realizados em Montes Claros para atender a toda a região Norte de Minas. No que se refere à metodologia dos cursos, práticas problematizadoras eram adotadas no sentido de considerar os participantes dos cursos como sujeitos ativos que, instrumentalizados teórica e metodologicamente, eram agen tes transformadores em potencial da realidade social da qual fazem parte. Os cursos apresentavam componentes teóricos e práticos que permitiam o conhecimento da realidade concreta das fábricas, do meio rural, enfim do ambiente de trabalho que, por um lado, propiciava a manutenção da vida pelo trabalho e, por outro, muitas vezes acarretava danos à saúde do trabalhador, estabelecendo uma relação conflituosa entre duas variáveis igualmente importantes: saúde/trabalho: Com relação à pesquisa, a metodologia adotada foi quanti-qualitativa. No primeiro momento, foram coletados dados de fontes secundárias e, num 243 segundo momento, os dados eram oriundos de fontes primárias. Questionários serão aplicados nos municípios e empresas, no sentido de avaliar o ambiente de trabalho, as doenças do trabalho prevalentes na região e as condições de segurança do trabalhador do Norte Mineiro do ponto de vista dos vários atores sociais envolvidos nessa problemática: dirigentes de empresas, trabalhadores e gestores locais. O cruzamento e análise dos dados coletados consolidarão um Diagnóstico de Saúde Ocupacional na região Norte do Estado de Minas Gerais que norteará as ações do Laboratório/Ambulatório de Saúde e Segurança do Trabalhador instalado por esse programa. Em se tratando do Centro de Diagnóstico e Monitoramento de Doenças do Trabalho, tão logo fez-se possível a sua instalação, realizou-se uma licitação para aquisição dos equipamentos. Uma vez em funcionamento, foi feita ampla divulgação dos serviços por ele prestados nas empresas, instituições públicas e privadas e na sociedade em geral, objetivando realizar parcerias que viabilizassem sua auto-sustentação. São realizados, no Centro de Diagnóstico, atendimentos diretos a trabalhadores e serão elaborados projetos de pesquisa e de intervenção em Saúde e Segurança do Trabalhador, que serão determinantes para a sua manutenção. 244 Um importante trabalho de articulação com o sistema de saúde local está seno realizado no sentido de integrar, por meio de convênio, o Centro de Diagnóstico e Monitoramento de Doenças do Trabalho ao Sistema único de Saúde (SUS), haja vista que o Centro se constituiria em referência regional. 245 A meta era atender toda a região Norte do Estado de Minas Gerais no que se refere a ações dos 4 Projetos Propostos. Dos 89 municípios que compõem a região Norte de Minas Gerais, 86 deles, o que representa 96,63%, foram atingidos/beneficiados pelos trabalhos realizados nesta parceria FUNDACENTRO/Unimontes/Fadenor. O Quadro 1 demonstra os municípios que foram atingidos nas metas de Qualificação de Recursos Humanos, segundo número de Qualificados/Titulados nos diversos cursos ofertados. No que se refere ao Projeto IV foi realizada, em junho de 1998, uma revisão bibliográfica acerca do tema, uma busca ativa de Dados Secundários no IBGE, INSS, RAIS-CAGED, DATA SUS e em outras fontes, o que originou um banco de dados para iniciar os trabalhos. Com relação às outras ações, todos os municípios, direta ou indiretamente, foram e/ou estão sendo atendidos, principalmente pela atuação do Ambulatório e Laboratório de Saúde e Segurança do Trabalhador, instalado em Montes Claros, para atender a toda a região. Discussão de resultados No que se refere à execução do Programa, o Projeto I, que visava à qualificação de Recursos Humanos, realizou o curso de Especialização em Medicina do Trabalho, qualificando 29 profissionais Médicos que foram titula dos pela Unimontes como Médicos do Trabalho, além de três outros profissionais, sendo um Fisioterapeuta, um Economista e um Administrador que participaram do curso a título de atualização e aperfeiçoamento. Dos 29 Médicos Titulados, 15 são do município de Montes Claros, 5 do município de Pirapora, 1 do município de Engenheiro Navarro, 1 do município de Riacho dos Machados, 1 do município de Januária, 2 do município de Brasília de Minas, 1 do município de Janaúba, 1 do município de Bocaiúva, 1 do município de São Francisco e 1 do município de São João da Ponte. Foram qualificados também 37 Auxiliares de Enfermagem do Trabalho, pelo Centro de Ensino Médio e Fundamental/Escola Técnica de Saúde da Unimontes. O objetivo era que esses Médicos se comprometessem com a implantação e/ou implementação do Programa Regional de Saúde e Segurança do Trabalhador em seus municípios de origem. E, juntamente com a equipe de nível médio capacitado, tanto a título de qualificação quanto nos cursos emergenciais de multiplicadores, formariam a equipe que implantaria o Programa de Saúde e Segurança do Trabalhador em seus municípios. 246 247 Com relação a isso, considera-se o sucesso dessa etapa, na medida em que colocou à disposição do Norte de Minas 29 Médicos do Trabalho amplamente conhecedores e aptos a intervir na realidade da região, no que se refere a essa área. Igualmente, os 37 Auxiliares de Enfermagem do Trabalho começaram a atuar nas empresas e nos serviços de saúde locais, começando a fazer a diferença no que se refere ao Tratamento da Saúde e Segurança do Trabalhador na região. Inclusive, cinco dos profissionais Médicos do Trabalho titulados compõem hoje a equipe técnica do Centro de Diagnóstico e Monitoramento de Doenças do Trabalho. Em se tratando do Projeto II, foi implantado o Centro de Diagnóstico e Monitoramento de Doenças do Trabalho, inaugurado em maio/2000, composto de um Ambulatório de Doenças Ocupacionais e um Laboratório de Higiene do Trabalho que funciona como referência regional. O Centro de Diagnóstico e Monitoramento de Doenças do Trabalho está apto a desenvolver as seguintes atividades: Na Área de Segurança do Trabalho: • Elaboração, execução, monitoramento e coordenação de Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA), de acordo com a NR-9 • Realização de Mapa de Riscos • Realização de laudo pericial para avaliação de insalubridade. Na Área de Medicina do Trabalho: • • • • • • • • • • 248 Elaboração, execução e coordenação de Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO) de acordo com a NR-7 Exame médico admissional Exame médico periódico Exame demissional Exame de retorno ao trabalho Exame para mudança de função Análise de absenteísmo de causa médica Promoção e prevenção de saúde dos trabalhadores, mediante controle de alcoolismo, tabagismo e de outras drogas Programa de Controle de Doenças Cardiovasculares Programa de Orientação para Diabetes • • • • • • • • • Programa de Prevenção do Câncer Implantação e acompanhamento de Programa de Conservação Auditiva (PCA) Orientação sobre indicação e utilização adequada de EPI Avaliação da eficácia do EPI Realização, análise e monitoramento de audiometria Orientação quanto ao controle do ruído na fonte - Equipamento de Proteção Coletiva (EPC) Implantação de Programa de Prevenção e Controle de Doenças Respiratórias Realização de espirometria para avaliação de função pulmonar Realização de pesquisas e estudos epidemiológicos sobre as doenças ocupacionais. Portanto, o Centro de Diagnóstico e Monitoramento de Doenças do Trabalho está apto a desenvolver outras atividades que, por sua vez, demandam incentivos orçamentários em nível institucional e governamental. Quanto ao Projeto III, em março de 1998, iniciou-se o processo de mobilização institucional e comunitária, por meio de reuniões técnicas nas sedes das microrregiões do Norte de Minas. Dessas reuniões participaram os Prefeitos Municipais, Secretários de Saúde, representantes da Unimontes, representantes de Conselhos Municipais de Saúde, representantes de Sindicatos de Trabalhadores, Empresas locais e, quando possível, representantes da FUNDACENTRO-MG. A proposta era apresentada e amplamente discutida, no sentido de buscar parcerias locais para a execução do projeto procurando envolver e também responsabilizar os municípios por essa ação transformadora. Esse processo de mobilização perdurou durante os meses de março e abril de 1998. Além da apresentação detalhada da proposta da FUNDACENTRO/Unimontes/Fadenor, era colocado também o papel dessas instituições e dos municípios na operacionalização dó trabalho. Eram apresentadas as relações dos cursos que seriam desenvolvidos, e a estratégia de sua realização em sedes de microrregiões para facilitar a participação de todos os municípios da região. É importante salientar que os municípios consideraram a proposta relevante, comprometendo-se a participar, pois reconheciam a importância de um projeto que iria tratar da problemática da qualidade da saúde e segurança do trabalhador e seus reflexos na qualidade de vida da população do Norte de Minas que coloca a região em evidência nas estatísticas nacionais. 249 Os cursos de Formação de Multiplicadores em Saúde e Segurança do Trabalhador iniciaram-se no mês de abril de 1998. Foram realizados dez cursos de Atenção à Saúde e Segurança do Trabalhador; dois cursos sobre Saúde Mental e Trabalho; três cursos sobre Gestão de Política de Saúde e Segurança do Trabalhador; dezesseis de Saúde e Segurança do Trabalhador Rural e um de Ambiente de Trabalho, Seus Riscos, Efeitos no Organismo e Formas de Controle. Ao todo, foram realizados 32 cursos que atenderam a cerca de 900 pessoas na região. O Quadro 2 demonstra o número de treinados, por cursos e por microrregião. 250 Ao final, foram diretamente atendidos/beneficiados 83 municípios da região Norte de Minas Gerais. O Quadro 3 demonstra o número de municípios participantes dos cursos por microrregião. Com relação à formação de multiplicadores na região Norte de Minas, considera-se inquestionável a importância desta iniciativa, na medida em que se pode constatar hoje, na região, a presença de uma equipe multiprofissional instrumentalizada para implantar e/ou implementar ações de Saúde e Segurança do Trabalhador em todos os municípios. Vale dizer que, a cada município Norte Mineiro que hoje se chega, ali existem, se não ainda capacitadas, considerando que a capacitação é um processo que se legitima também no fazer, pelo menos pessoas conscientizadas e indignadas com os problemas relacionados com a Saúde e Segurança do Trabalhador no mundo, no Brasil e na região, preparadas para intervir, contribuindo com a implantação e/ou implementação desse programa em nível municipal. Inclusive, na ocasião dos cursos, realizaram-se planos de trabalhos para os municípios nessa área. Esses planos serão ou estão sendo o elemento norteador das práticas ligadas à Saúde e Segurança do Trabalhador cada município. 251 É verdade que apenas em poucos municípios esse programa se encontra em fase avançada de implantação, mas, não obstante, vale lembrar que, além de capacitar, recursos humanos, é preciso, acima de tudo, dar condições financeiras e incentivar o município a alavancar esse processo. Conclusões/perspectivas futuras A premente necessidade de promover ações de implementação do Programa de Saúde e Segurança do Trabalhador na região Norte do Estado de Minas Gerais surgiu em 1998. Essa proposta, que foi encampada pela FUNDACENTRO/Unimontes/Fadenor, foi rigorosamente levada a sério, amplamente trabalhada e os resultados apresentados evidenciam a sua relevância. Conclui-se que, como já era previsto, a região é extremamente carente no que se refere a essa área, mas, a partir deste trabalho, a realidade não é mais a mesma, pois a sensibilização e capacitação são os objetos mais eficazes para se iniciar a transformação de um quadro social. A região Norte de Minas foi palco de um projeto de tamanha grandeza que visa, sobretudo, à melhoria da qualidade de vida do trabalhador que constrói este país. A semente foi plantada em cada município Norte Mineiro, mas é evidente que novos investimentos serão necessários para que aqueles que, direta ou indiretamente, participaram do projeto, possam dar prosseguimento, ou mais do que isso, possam ver o programa de Saúde e Segurança do Trabalhador concretamente implantado em seus municípios. Em cada participante dos cursos, ficou a indignação, a responsabilidade de participar e, acima de tudo, a capacidade de intervir, de fazer algo para que o Norte de Minas deixe de ser, no que se refere à ausência de políticas de promoção à Saúde do Trabalhador, uma região que aparece, que se coloca em evidência em nível estadual e nacional. A Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) tem a certeza de que, com esta possibilidade de articular academia, sociedade e poder público e privado, pode-se chegar a efetivos resultados, pois o envolvimento de vários atores sociais que vivenciam o problema dá ao projeto um caráter mais do que democrático, inovador e socialmente factível. A Unimontes reconhece a importância da iniciativa da FUNDACENTRO em apoiar e tornar possível ações dessa natureza e, mais do que isso, reconhece a necessidade de dar prosseguimento a essa empreitada que deu o primeiro passo, mas notifica que ainda há muito o que fazer. 252 Reconhecendo que há muito ainda o que fazer, a Unimontes acredita que, somente por meio de projetos como esse, será possível fazer do trabalho e do trabalhador sujeitos e objetos de interação positiva viabilizando a reconstrução de um mundo do trabalho mais humanizado e menos conflituoso. Nesse sentido, a Unimontes fica com a certeza de que, em parceria com a FUNDACENTRO e com outras instituições, pode e pretende contribuir para que o trabalhador do Norte de Minas tenha condições de trabalho dignas e mais humanizadas. Referências 1. 2. FUNDACENTRO/UNIMONTES/ FADENOR; Relatórios de Execução do Programa Saúde e Segurança do Trabalhador, 1997. MENDES, Renée. Patologia do trabalho. Editora Atheneu, 1997. 253 254 EDUCAÇÃO PARA O TRABALHADOR – UMA ABORDAGEM PSICOPEDAGÓGICA Vera Lúcia Abril Teles de Souza 1 Introdução E ste trabalho foi realizado buscando dar um enfoque, no campo da Psicopedagogia, ao planejamento dos cursos na área da segurança e saúde do trabalhador. Na educação para os trabalhadores, principalmente nos cursos ou os chamados treinamentos com abordagens técnicas, de curta duração, a principal preocupação é a informação, a gama de conteúdos a serem ministrados, no menor espaço de tempo possível. Esses cursos são desenvolvidos, normalmente, dentro de um planejamento minuciosamente elaborado, em função dos objetivos e da clientela a que são destinados. O planejamento rigoroso, porém, justifica-se em virtude da questão da organização do tempo e do conteúdo. Isso não deve impedir, no entanto, a articulação tempo/conteúdo com as necessidades da clientela, neste caso, os trabalhadores; a fim de fazê-los movimentar o saber empírico, adquirido com a prática e a experiência de vida, para um saber refletido e consciente. O modo de vida dos indivíduos está organizado em torno do trabalho, da qualidade do meio ambiente, do acesso à educação e aos serviços de saúde, da visão de mundo e de todos os demais aspectos que envolvem o ato de viver em comunidade/sociedade. Uma sociedade organizada, esclarecida e crítica, deve possuir condições de favorecer aos cidadãos a possibilidade de resgatar sua identidade e cidadania, obtendo, assim, maior capacidade de melhorar a qualidade de vida de seu povo. Dessa forma, um trabalhador consciente, com capacidade de compreender, criticar e argumentar, terá condições de situar-se no espaço e no tempo, com relação ao trabalho que exerce, na comunidade em que vive, na sua cidade, estado e no seu país. Compreenderá também os fatos sociais, políticos e econômicos, reconhecendo suas causas e conseqüências e desenvolvendo uma visão crítica a respeito deles, observando os fatos do meio em que vive, comparando-os e posicionando-se em frente a eles. 1 Licenciatura Plena (Português/Inglês), Especialização em Psicopedagogia, FUNDACENTRO/CRRJ. 255 A Educação terá, então, papel importante nesse contexto. Ela poderá favorecer a formação da consciência crítica, desenvolvendo a capacidade de compreender, criticar e argumentar. Conforme assinala Visca (1991), “... justamente, eu acho que aprendizagem, para uma pessoa, abre o caminho da vida, do mundo, das possibilidades até de ser feliz” (p. 16). Uma participação efetiva e esclarecida dos trabalhadores é fator de peso no surgimento de mudanças, desejadas e necessárias para a sociedade, no que diz respeito à melhoria das condições de vida, no meio ambiente em que vive, e também em relação às condições de trabalho. Justifica-se, pois, buscar construir estratégias voltadas para a organização de atividades educacionais para os adultos/trabalhadores que, na maioria das vezes, possuem vínculo empregatício e passam por algum tipo de treinamento para desempenhar sua função ou por algum estágio na empresa. Nos cursos/treinamentos da área da segurança e saúde do trabalhador, normalmente, a clientela é constituída por grupos heterogêneos, não só no que concerne à escolaridade, como também à diversidade de funções, embora sejam profissionais que devem estar comprometidos com os problemas relacionados com o seu ambiente de trabalho. Dessa forma, procuramos apontar neste trabalho: a) as contribuições da Psicopedagogia nos cursos para os trabalhadores; b) as questões relacionadas com os conteúdos e informações nos cursos de curta duração/treinamento, no que se refere ao trabalho na forma de grupos operativos no ensino, integrando a tarefa grupal, os vínculos, os ECROS (Esquema Conceitual Referencial com o qual o Indivíduo Opera); c) os fundamentos relativos às tendências pedagógicas atuais e que melhor poderiam embasar essas ações educativas. Este trabalho teve como embasamento autores da área da Psicopedagogia, como Pichón-Rivière e José Bleger, que enfocaram a Psicologia Social no trabalho com grupos operativos no ensino - a tarefa grupal, os vínculos, os ECROS, etc.; e como Alícia Fernández que estuda como se produz o conhecimento e seus entraves teóricos do campo da Educação, como Paulo Freire, que lida com a educação libertadora: a educação vista como um fator de transformação da sociedade. Além disso, alguns autores da área da segurança e saúde do trabalhador foram consultados. Educação/treinamento x trabalho Atualmente, as empresas estão, cada vez mais, reconhecendo que é pela Educação que elas poderão atingir mais rapidamente o caminho do desen- 256 volvimento, até porque novas especializações e tecnologias de ponta estão obrigando-as a realizarem uma atuação mais efetiva com seus trabalhadores e, conseqüentemente, investindo mais em treinamentos. Os termos treinamento e trabalho devem ser pontuados para que se explicite o tradicional e a proposta de mudança nas relações de trabalho. Existem muitos fatores que devem ser levados em consideração para uma análise do treinamento nas empresas. Um deles é a formação acadêmica, bastante diversificada dos profissionais responsáveis pelo treinamento, que vai desde o pedagogo, professor, psicólogo até administradores de empresas, economistas, engenheiros, técnicos, supervisores, que, na maioria das vezes, não possuem uma formação pedagógica específica. Nesse aspecto, alguns entraves já acontecem. O tecnicismo (ou economicismo) sempre marcou, até então, as políticas de treinamento das empresas, vendo nas necessidades do mercado o fator determinante das ações de formação e capacitação para o trabalho. Quase sempre, ao Setor de Treinamento, de Recursos Humanos ou de Pessoal da Empresa cabe a responsabilidade pelo crescimento e/ou desenvolvimento das pessoas, sempre dentro de uma visão estritamente empresarial, sem dar ao trabalhador o direito e o poder de decidir ou opinar sobre o seu autodesenvolvimento. Outro fator refere-se ao aspecto da duração dos treinamentos que, comumente, possuem uma carga horária bem reduzida, a fim de não afastar, durante muito tempo, o trabalhador de seu posto de trabalho. Além desses, há ainda as relações conflitantes que surgem entre capital x trabalho: um trabalhador mais consciente e crítico dentro de sua realidade social de trabalho pode constituir uma “ameaça” à estabilidade dos modelos organizacionais altamente autoritários e, portanto, resistentes a mudanças. Assim, os conteúdos de um treinamento, normalmente, tendem a privilegiar a dimensão técnica (o fazer). O objetivo central que norteia os cursos nas empresas é a preparação para a execução da tarefa, o fazer, e nem sempre, o saber e o “porquê” fazer. Dentro dessa ótica, Kuenzer (1986, p. 164), escreveu: Assim a ação pedagógica na fábrica tem por objetivo ensinar exclusivamente o ‘fazer’ destituído de qualquer explicação acerca de seu significado ou de seus princípios, e ainda, não o ‘fazer’ de um processo completo, mas de pequenos fragmentos que não são suficientes para transformar o operário em profissional que domine um oficio que possa ser exercido em outro lugar. 257 Denunciando essa prática, e dentro de uma visão psicopedagógica, Fernández (1990) afirma que, nesse contexto, perpassa a questão do mandato - o que é autorizado saber. O conhecimento, nesse caso, numa empresa, é determinado para quem pode ter acesso ao saber o ao como fazer. Também nessa ótica, Borges (1994, p. 75) questiona sobre quando possibilitar ao indivíduo o acesso à sua construção, como ser/sujeito: “Como e quando se constitui sujeito, podendo ser ativo (na valorização de seus esquemas internos), livre para ser ele mesmo e como e quando se autorizará o poder saber, trocar com os outros e criar?” Sobre a questão do mandato, Fernández (1990) escreve que, quando é atribuído a uma pessoa um papel dentro do grupo, ela é induzida a “desempenhar esse papel”. Refere-se também ao “lugar do que não pode aprender” uma adjudicação de papéis, ou seja, atribuir um papel ao sujeito no qual ele é “destinado” a não saber muito (saber restrito), em que o aprender é limitado, não precisa ser muito estimulado. O aprender muito causa problemas, é o “negar o saber”, que também existe na escola e aí algumas situações podem ocorrer: Pavlovsky, estabelecendo um diálogo com Laing, afirma: ‘A maioria de nós está submerso em um transe que remonta aos primeiros anos. Permanecemos neste estado até que de repente despertamos, e descobrimos que nunca vivemos ou que vivemos induzidos por outros que, por sua vez, foram induzidos por outros. A ideologia é submersa. Tudo é como um profundo mal-entendido. Se despertamos de repente, ficamos loucos. Se despertamos pouco a pouco, nos tornamos inevitavelmente revolucionários em algumas de suas múltiplas formas, e então tentamos modificar destinos. Se não despertamos nunca, somos gente normal e não prejudicamos ninguém.’ Dialogando, nós, com Laing e Pavlovsky, podemos perguntarnos o que acontecerá quando o conteúdo e a forma do mandato coincidirem; por exemplo, ‘não podes pensar’, diferente de ‘não podes ser feliz’. Nesse segundo caso, perguntar por que não posso ser feliz, quem quer que não seja feliz, etc. não transgride por si só a ordem. No primeiro caso se obstrui a pergunta, pois esta implica pensar (Fernández, 1990, p. 110). A questão do mandato acompanha a própria vida, desde a família, a escola, a comunidade, chegando principalmente ao trabalho. O mandato não é questionado, não se reage a ele e, às vezes, não se tem consciência de que ele 258 existe, de que ele atua, impulsionando uma determinada conduta, um determinado papel. Spinoza, um filósofo holandês que viveu de 1632 a 1677, já dizia que uma árvore é livre. Livre no sentido de que possui plena liberdade para desenvolver todas as suas potencialidades, tudo que lhe é inerente. Só que, se essa árvore for uma videira, produzirá uvas, não terá outra opção, como dar maçãs ou laranjas. Da mesma forma acontece com os homens. Segundo o filósofo, circunstâncias exteriores, como as políticas e as sociais, por exemplo, podem obstruir sua evolução e crescimento. Quando se podem desenvolver livremente as possibilidades que lhe são inerentes, é que o ser humano pode viver como uma pessoa livre. Em Marx (1985), encontramos um aprofundamento da questão em relação a trabalho e consciência: o modo como se trabalha marca a consciência, mas a consciência também marca o modo como se trabalha. É uma interação entre “mão” e “cabeça”, entre “corpo” e “mente”. Dessa forma, o conhecimento humano está intimamente relacionado com o seu trabalho. Segundo esse filósofo, o trabalho é um fator positivo e também é inerente à condição humana e, fundamentalmente, seria positivo ser um trabalhador. O trabalho é o que define o modo humano de existir. Mas, dentro da visão capitalista, o trabalhador trabalha para os outros. Seu trabalho é externo a ele mesmo. Em outras palavras, seu trabalho não lhe pertence. Seu vínculo com o trabalho é externo, atrelado à sobrevivência, existindo ainda o trabalho embrutecedor, que constrange, que faz esse trabalhador se alienar em relação a sua atividade e, ao mesmo tempo, em relação a si mesmo. Marx chama isso de alienação, isto é, “a tolerância graduada segundo os trabalhadores de uma organização de trabalho, que vai contra os seus desejos, suas necessidades e sua saúde” (apud Dejours, 1993, p. 137). Alienação também no sentido psicológico, “de substituição da vontade própria do Sujeito pela do Objeto” (apud Dejours, 1993, p. 137). Como resgatar tudo isso? Como dar aos trabalhadores, além dos seus direitos e deveres, dignidade, consciência crítica de sua realidade? Segundo Freire (1980, p. 40): “A realidade não pode ser modificada, senão quando o homem descobre que é modificável e que ele pode fazê-lo". Cada trabalhador que assume um posto de trabalho traz consigo todos os seus papéis sociais, memória, história e sentimentos e, por isso, não deve ser encarado meramente como um executor de um papel estritamente profissional ou cumpridor de uma mera tarefa. A Educação tem aí um papel fundamental. Nos treinamentos (capacitação e formação profissional), deveriam estar incluídos conteúdos que instrumentalizassem os trabalhadores para se orga- 259 nizarem segundo seus interesses, conhecimentos que lhes permitissem entender o significado social do trabalho e que pudessem capacitá-los para o exercício pleno da cidadania. O reconhecimento da importância da Educação de forma eficiente e democrática, que realmente contribua para a construção do sujeito-cidadão e, também, conseqüentemente, para o desenvolvimento de uma Nação, é citado no artigo abaixo: A manutenção e a expansão do emprego, atualmente uma fonte permanente de preocupação de todos os países do mundo, estão associadas à possibilidade de se adquirir e aprimorar o conhecimento e as técnicas que vêm revolucionando as formas tradicionais de produção industrial, de intensificação do comércio, de criação intelectual e do próprio lazer. Sociedades prósperas portanto, não são, necessariamente, apenas sociedades educadas, mas aquelas capazes de se educarem permanentemente (Maciel, 1996, p. 7). Refletindo sobre os problemas que a Educação enfrenta no Brasil e as possibilidades de resolução, Maciel sugere: É necessário pois, um pacto de Estado, para termos uma sociedade mais justa, uma economia mais próspera e um sistema político que reflita as permanentes aspirações nacionais por democracia, desenvolvimento e solidariedade social. Um entendimento dessa natureza tem de inverter a tendência histórica de tratarmos o problema educacional como apenas mais uma das prioridades brasileiras, quando ele é, na realidade, a mais premente e a que não pode ser confrontada com qualquer outro objetivo do nosso país como Nação (1996, p. 7). Dessa forma, apesar do reconhecimento de todos, a formação da cidadania, apesar de ser um dispositivo da Constituição Brasileira - com os direitos e deveres legalmente constituídos, não é a realidade da maioria. Muitos brasileiros têm que lutar por ela; tentando conquistá-la, cotidianamente, lutando pelo simples direito de sobreviver. Em toda parte do mundo, marginalização, desigualdade e exclusão social estão associadas à falha ou precariedade de um sistema educativo justo e universalizado, o mais elementar de todos os requisitos para transformar seres humanos em cidadãos (Maciel, 1996, p. 7). 260 Contribuições da Psicopedagogia no treinamento das empresas A Psicopedagogia, inicialmente, dedicava-se a compreender e solucionar problemas de aprendizagem, levando em conta os aspectos cognitivos, afetivos, sociais e também os psicomotores de desenvolvimento da criança. Atualmente, como assinalam Fagali e Del Rio (1993, p. 9), além do caráter clínico, a Psicopedagogia busca “refletir e desenvolver projetos psicopedagógico-educacionais, enriquecendo os procedimentos em sala-de-aula, as avaliações e planejamentos na educação sistemática e assistemática”. Ela deve estar presente então onde se estiver pensando em Educação; mas Educação no seu sentido amplo, encarada como um processo contínuo que possibilite ao indivíduo dotar-se em e para a transformação do mundo, para mobilizá-lo para o trabalho, para uma participação ativa na sociedade e para exercer o exercício pleno de sua cidadania. A Psicopedagogia tem por definição o trabalho com a aprendizagem, na sua aquisição, desenvolvimento e distorções... Realiza este trabalho através de processos e estratégias que levam em conta a individualidade do aprendente. É uma práxis, portanto, comprometida com a melhoria das condições de aprendizagem (Mendes, 1994, p. 16). O objeto da Psicopedagogia é o sujeito em relação ou em frente ao conhecimento; isto é, a construção e produção do conhecimento. Leva em conta as diversas variáveis que interferem no ato de aprender: orgânicas, cognitivas, afetivas, inconscientes e socioculturais, os conteúdos, os movimentos internos e externos dos indivíduos, valorizando o processo e o produto (a questão do individual para o grupal - para a sociedade - a construção da cidadania). Assim, em todo o processo de aprendizagem estão implicados quatro níveis: organismo, corpo, inteligência e desejo, e não se poderia falar em aprendizagem excluindo algum deles. Também nos problemas que ocorrem na aprendizagem, necessariamente estarão em jogo esses quatro níveis, em diferente grau de compromisso. Desde o princípio até o fim, a aprendizagem passa pelo corpo. Uma nova aprendizagem vai integrar a aprendizagem anterior. O corpo coordena e a coordenação resulta em prazer, prazer de domínio. Como uma pessoa executa uma peça musical, não basta que execute: para que tenha prazer, precisa ouvir-se. Se não se ouvisse, não lhe chegaria internamente o prazer. 261 Ao educador, então, não deve bastar que seu aluno faça bem uma operação matemática, ou responda a uma avaliação. Existe um sinal inconfundível para diferenciar se houve ou não a aprendizagem: o prazer do aluno quando consegue uma resposta. “Somente ao integrar-se ao saber, o conhecimento é apreendido e pode ser utilizado. O saber supõe a originalidade do corpo e o desejo e a universalidade da inteligência” (Fernández, 1991, p. 59). Fernández chama a atenção para a atuação do psicopedagogo, o seu saber e a construção desse saber, em que é necessário “um trabalho de autoanálise das próprias dificuldades e possibilidades no aprender”, como também para a formação desse profissional que “... requer um espaço para a construção de um olhar e uma escuta psicopedagógica a partir de uma análise de seu próprio aprender” (1991, p. 130). Para o psicopedagogo, a construção desse olhar e escuta psicopedagógica torna-se essencial para a compreensão das “mensagens”, “das fraturas do discurso do sujeito”, que podem constituir entraves para que a aprendizagem se efetive. Para que essa construção aconteça, é imprescindível o autoconhecimento: seu saber, suas limitações, seus próprios entraves. Eu faço distinção entre conhecimento e o saber. O conhecimento é objetivável, transmissível deforma indireta ou impessoal; pode ser adquirido através de livros ou máquinas; é factível de ser sistematizado em teorias; enuncia-se através de conceitos. Por outro lado o saber é transmissível só diretamente, de pessoa a pessoa, experiencialmente; não se pode aprender através de um livro, nem de máquinas, não é sistematizável (não existem tratados de saber); pode ser enunciado somente através de metáforas, paradigmas, situações, casos clínicos [...]. O saber dá poder de uso. Os conhecimentos não. Uma grande falha de nossa educação, tem a ver com a desqualificação do saber e o endeusamento do conhecimento. Pode-se entender porque convém a determinados sistemas que circulem os conhecimentos, mas não o poder de uso sobre eles (Fernández, 1990, p.129). Na empresa, sendo a Educação um elemento de contribuição para as transformações sociais, faz-se necessário o desenvolvimento de atividades que possibilitem aos trabalhadores serem ativos, autônomos, críticos e cria- 262 tivos, dando a oportunidade de tornarem-se sujeitos históricos, capazes de promover a construção de seu saber e de sua cidadania. A Psicopedagogia constitui uma importante contribuição, facilitando o processo de construção do conhecimento, a partir da vivência do trabalhador/aluno, respeitando sua história e realidade. O saber que ele possui será o ponto de partida para a aquisição de novos conhecimentos; auxiliando os professores (docentes) no ato de planejar e organizar suas atividades didáticas, tendo como eixo fundamental a questão do prazer de aprender, tanto do aprendente como do ensinante. A sua atuação pressupõe um movimento de integração de profissionais de diversas áreas (inter e multidisciplinar) no sentido de melhor atender à formação do sujeito/trabalhador. Esse integrar de diversos profissionais e áreas de atuação fundamenta-se em teóricos que estudam os vários aspectos que interferem na aprendizagem - quer sejamos afetivos, cognitivos e sociais, e até mesmo os trabalhistas. A visão inter/multidisciplinar supõe uma parceria com outros especialistas, interação, comunicação de idéias, integração de conceitos, de epistemologias, uma multiplicidade de visões, que podem “clarear melhor o processo do conhecimento do Ser Humano na produção do conhecimento” (Borges, 1994, p. 79), levando-se em conta as diversas variáveis que influenciam o ato de aprender. O espaço criado na empresa para o treinamento e/ou desenvolvimento do trabalhador deve ser um espaço de busca, descobertas, trocas, diálogos, convivências e de abertura para a imaginação criadora, como também de sensibilidade, respeito e compreensão para com a linguagem, experiência e o conhecimento dos trabalhadores. O ensinante deve ser um agente provocador e desequilibrador das estruturas mentais rígidas, consciente das diversas idéias acerca do campo do conhecimento em discussão e, ao mesmo tempo, reconhecendo as limitações que os conteúdos específicos podem impor, inerentes às questões de cada campo do conhecimento relacionado com a empresa. O processo educativo deve estar centrado na natureza do objeto do conhecimento, nas concepções dos que aprendem e dos que ensinam e, principalmente, despertar para o princípio da Educação continuada, em que o conhecimento deve ser encarado como uma procura e não como posse. Em todo o universo dessas ações, estão imbricadas as ações psicopedagógicas: reflexões sobre a metodologia de ensino, sobre os conteúdos e ainda sobre a interrelação professor/aluno. Uma proposta de ação psicopedagógica de ensino parte, inicialmente, de uma leitura da realidade, para, então, de acordo com as necessidades sen- 263 tidas, trabalhar as questões do autoconceito, do desenvolvimento emocional, passando pelo conhecimento do mundo das relações interpessoais, integrando o cognitivo na aquisição dos conteúdos, estando atenta também aos entraves na aquisição dos novos conceitos, para as questões de respeito mútuo, das relações de poder, de limites e autoridade, comuns no interior das empresas. Os cursos relacionados com a segurança e saúde do trabalhador também poderão contribuir para a formação das competências políticas, técnicas e humanas dos trabalhadores, promovendo seu bom desempenho nas funções relacionadas com a promoção e preservação de sua saúde e do meio ambiente de trabalho. Nesse sentido, uma atenção maior deve ser dada aos conteúdos que privilegiem o aprender a pensar, integrando teoria e prática do dia-a-dia do trabalho, suas condições e relações, estimulando percepção e capacidade de observação dos profissionais, socializando os conhecimentos e experiências relativos à segurança e saúde ocupacional. Também na formação do trabalhador entende-se que “a aprendizagem é o resultado da complementaridade aluno-professor-conteúdo, fato-contexto, eumundo” (Fagali & Del Rio, 1993, p. 19). Como forma de atuação; levando em conta uma abordagem no campo da Psicopedagogia, tem-se o trabalho em forma de grupo operativo na empresa. Grupo operativo na empresa Vida de grupo dá muito trabalho e muito prazer, porque eu não construo nada sozinho, tropeço a cada instante com os limites do outro e os meus próprios, na construção da vida, do conhecimento, da nossa história (Madalena Freire). A atuação de um grupo, ou como é chamado em uma empresa - equipe constitui um processo de integração, uma forma de se trabalhar com pessoas interdependentes; que necessitam unir esforços nos procedimentos de trabalho e na resolução de problemas. É também uma prática que favorece o diagnóstico institucional e o estabelecimento de metas. O desenvolvimento de um grupo pressupõe mudanças significativas pessoais e interpessoais de conhecimentos, sentimentos, atitudes, valores, motivação, postura, comportamento. É uma atividade de ensino e aprendizagem permanente. Se os grupos operativos, quer visando à produtividade, resolução de problemas, negociações para melhorias de condições de trabalho, etc., multi- 264 plicarem-se na empresa, aumentam as possibilidades de se poder operacionalizar uma convergência equilibrada dos opostos - auto-afirmação e integração, racionalidade e intuição, lógica e emoção, tecnologia e humanismo, trabalho e saúde (sendo compreendida como bem-estar físico e mental), razão e emoção. O grupo operativo está assim definido: O grupo operativo, segundo a definição do iniciador do método, Enrique Pichón-Rivière, e um conjunto de pessoas com um objetivo comum que procuram abordar trabalhando em equipe. A estrutura da equipe só se consegue na medida que se opera. Grande parte do trabalho do grupo operativo consiste, em resumo, no treinamento para trabalhar como equipe (Bleger, 1993, p. 55). Levando-se em consideração, além do trabalhar em grupo, os objetivos do trabalho e a finalidade: A técnica operativa do grupo, sejam quais forem os objetivos propostos no grupo (diagnóstico institucional, aprendizagem, criação artística, planificação, etc.), tem como finalidade que seus integrantes aprendam a pensar em uma co participação do objeto do conhecimento, entendendo-se que pensamento e conhecimento não são fatos individuais, mas produções sociais. O conjunto de integrantes, como totalidade, aborda dificuldades que se apresentam em cada momento da tarefa obtendo situações de esclarecimentos, mobilizando estruturas estereotipadas que operam como obstáculos para a comunicação e a aprendizagem, e que são geradas como técnicas de controle da ansiedade frente à mudança (Pichón-Rivière, 1984, p. 179). Em todos os grupos operativos circulam aspirações, desejos, expectativas que não são reveladas facilmente, e o “oculto” é uma poderosa força desagregadora. É então importante a clarificação de todas as situações, das pressões sofridas (inclusive as de caráter organizacional), das limitações que o grupo possui, dos problemas encontrados, dos conflitos. Outra variável que deve ser levada em conta para um trabalho do grupo operativo na empresa é a de que as pessoas (os membros do grupo) não se “escolheram”, mas devem “produzir” juntas, com ou sem afinidades. 265 Todos os objetivos emergentes do grupo devem ser negociados para o início do trabalho, assim como devem ser negociados a operacionalização, o método de trabalho, o tempo disponível, toda a atuação do grupo em frente à tarefa. GRUPO É... GRUPO A cada encontro: imprevisível. A cada interrupção da rotina: algo inusitado. A cada elemento novo: surpresa. A cada elemento já parecidamente conhecido: aspectos desconhecidos. A cada encontro: novo desafio, mesmo que supostamente já vivido. A cada tempo: novo parto, novo compromisso fazendo história. A cada conflito: rompimento do estabelecido para a construção da mudança. A cada emoção: faceta insuspeitável. A cada encontro: descobrimento de terras ainda não desbravadas... Grupo é grupo. (Madalena Freire, A Paixão de Aprender, p. 64) O grupo operativo no ensino possui todas as características comuns aos grupos, porém trabalhando em torno de um objeto de estudo e no qual o sujeito é o instrumento de todo o processo. O grupo operativo no ensino é também de aprendizagem, porque, como grupo, as duas coisas se confundem. Ensino e aprendizagem estão em interação, em movimento dialético permanente. Pichón-Rivière enfatiza o aspecto social do aprender, já que o homem é um ser social, que só pode ser visto, em sua totalidade, dentro de um contexto social. Nas relações de produção o homem emerge como sujeito, com uma forma de pensamento, sentimento e ação. Numa sociedade capitalista o homem sente, e pensa com esquemas fragmentados, e este sujeito mantém o sistema, a ideologia, adaptando-se passivamente, alienando-se ou podendo, através de uma adaptação ativa, rever esta matriz de ‘estar no mundo’ e reconstruir novos vínculos, novas formas de relação. É nesta proposta de ‘nãoreproduzir’ as matrizes anteriores que impedem a 266 transformação, que Pichón resgata a aprendizagem como transformação... (Fagali & Del Rio, 1993, p. 19). Fundamentalmente, o grupo operativo no ensino objetiva a valorização da experiência e da subjetividade, na não-delegação da produção do conhecimento, no fortalecimento dos grupos, para reflexão, negociações, análises e, sobretudo, transformações. É bastante relevante a técnica do grupo operativo na educação do trabalhador. A estrutura do grupo operativo A estrutura ou as relações grupais, segundo Pichón-Rivière, compõem-se pela dinâmica dos 3D - O DEPOSITADO, O DEPOSITÁRIO E O DEPOSITANTE. O depositado é o que o grupo, ou um de seus indivíduos, não pode assumir e o coloca em alguém; depositário é o que recebe os “depósitos” do grupo; e o depositante somos nós que nos desembaraçamos de conteúdos, colocando-os fora, em alguém. Exemplificando, em um curso para trabalhadores sobre segurança e saúde no trabalho, realizado segundo a metodologia de um grupo operativo: o depositado podem ser os problemas do ambiente de trabalho e até as sugestões para a sua resolução; o depositário - na empresa, podem ser vários indivíduos (chefes, gerentes, supervisores, etc.); e o depositante - o próprio grupo de trabalhadores com suas reivindicações. No grupo, há freqüentes “trocas” entre seus membros (cada um agindo ação; contribuindo - ensinando, informando; e aprendendo - pensando, apreendendo). A interação entre os sujeitos, normalmente, contribui para fomentar respostas mais ricas, permitindo o surgimento de idéias novas e originais. Os indivíduos colocam seus ECROS agindo, buscando informações, pensando, relacionando-se. Todo esse processo, porém, não ocorre sem gerar ansiedades, conflitos, movimentos internos nos indivíduos. Tudo isso bem trabalhado vai atuar como elemento facilitador do processo ensino-aprendizagem. Os ECROS individuais interagindo a fim de formar o ECRO grupal. Na empresa, conforme já foi citado; o grupo normalmente é heterogêneo, no que se refere a idéias, funções, conhecimentos, cultura, etc., o que o enriquece devido às contribuições diversas de cada um. Os participantes poderão trabalhar com tarefas, temas geradores, discussões, estimulando a in- 267 tegração e aprendizagem grupal - a importância do outro no processo, no desenvolvimento e crescimento do grupo, ou seja, as posições contrárias entre os membros do grupo podem alavancar o debate e o surgimento de propostas, de sugestões empreendedoras. A finalidade será sempre de facilitar as trocas (das experiências, do conhecimento, das idéias), as inter-relações. Nessas trocas, são aproveitadas as questões teóricas e práticas do outro. Os trabalhadores envolvidos com de terminadas situações-problema, ao terem a oportunidade de discuti-Ias, podem alcançar um nível de conhecimento coletivo que permitirá identificar com clareza essas situações e encontrar soluções viáveis. O ponto de partida poderá ser: uma situação presente - o ambiente de trabalho e o saber que o trabalhador possui (do "saber de experiência feito", segundo o Prof Paulo Freire); a prática - o conhecimento empírico, per ceptivo dos trabalhadores, a situação é problematizada. Levantando-se os problemas existentes, reelaboramse conteúdos e elucidam-se as questões, a fim de criar novos padrões de ação transformação, mudanças. Os trabalhadores, até pelas relações de trabalho existentes normalmente (capital x trabalho), convivem com pressões, ansiedades, angústias, medos, que serão levados ao convívio do grupo, e que vão gerar outras tensões, já que elas vão entrar em contato com outras responsabilidades, pressões, constantes negociações, relações conflitantes. Essas relações conflitantes vão estabelecer condutas: um trabalhador possui um vínculo com seu trabalho - um vínculo que pode ser bom ou mau, e que se movimenta constantemente, gerando uma conduta que reflete esse conflito (ambivalência). Essa ambivalência (sentimentos opostos vivenciados em determinadas situações) vai aparecer constantemente, já que o "objeto externo" com que se estabelecerão as trocas será o ambiente de trabalho com seus riscos à saúde e suas relações: O tipo de vínculo é identificado quando se começa a reconhecer o objeto externo (o trabalho, o bem-estar físico e mental do trabalhador e de seus companheiros) e o objeto interno - seu ideal. Dentro de um grupo, o trabalhador assume papéis - líder de mudanças, porta-voz (dos problemas, das negociações), o bode expiatório (responsável pelos problemas do grupo - ou pela não-resolução de alguns deles). Há também o líder da resistência; os silenciosos, os pessimistas, etc. Segundo Pichón-Rivière (1992, p. 82), "Todas as nossas relações com os outros estão fundamentadas no interjogo de assumir e adjudicar papéis" (p. 82). Explicitando: 268 . Na vida de relações sempre assumimos e adjudicamos papéis aos outros. Em condições normais, cada um de nós deve poder assumir vários papéis ao mesmo tempo. Por exemplo, uma pessoa tem o papel de aluno na escola, de pai de família em casa, de médico no consultório, de amigo nas relações sociais, etc. Estabelece-se um permanente interjogo entre o assumir e o adjudicar. Todas as relações interpessoais em um grupo social, em uma família, etc., são regidas por um permanente interjogo de papéis assumidos e adjudicados. Isto é, precisamente, o que cria a coerência entre o grupo e os vínculos dentro de tal grupo. Analisando os processos e as situações grupais, Pichón utilizou um esquema chamado "cone invertido", para uma melhor compreensão dos conceitos e da dinâmica que se estabelece nos grupos, olhando o indivíduo e o grupo no seu processo: 269 Na figura da página anterior, existem vetores que favorecerão uma melhor interpretação do coordenador do grupo sobre o processo de circulação de idéias entre os pares. Assim, elucidando os termos, tem-se: PERTENÇA - estar com (é o pertencer ao grupo); COOPERAÇÃO - (cooperar com o grupo) - ações com o grupo; PERTINÊNCIA - (eficácia com que se realizam as ações); COMUNICAÇÃO - processo de intercâmbio de informações; APRENDIZAGEM - apreensão instrumental da realidade; TELÉ - distância afetiva (negativa ou positiva). Na base - os conteúdos manifestados ou explícitos - o conhecimento que possuem - os ECROS INDIVIDUAIS. No vértice - o implícito - as situações universais (latentes) ocultas. Por exemplo: os medos (do ataque, da perda), das mudanças, insegurança, fantasias, etc. Espiral Dialética - o que é trabalhado, ou seja, tornar explicito o implícito os ECROS individuais atuando, trocando, agindo, para superar o implícito. Mudança - ECRO GRUPAL, fazendo, então, a convergência para uma situação de uma atividade educativa voltada para o trabalhador. Na base - os conhecimentos, o saber que o trabalhador possui - cada um com seu conteúdo, enquanto “ser-sujeito”. No vértice - o implícito - o que está oculto nas relações de trabalho e no ambiente de trabalho. Lidar com as inseguranças, os medos que a situação provoca (medo das pressões - do empregador e dos companheiros de trabalho, do confronto, da negociação para a modificação dos problemas existentes, medo da perda do emprego, etc.). A espiral dialética - o processo de tornar explícito o que está implícito, ou seja, trabalhar a pertença, cooperação, pertinência, comunicação, aprendizagem, telé, para se chegar à mudança - sair do conhecimento indiferenciado para o diferenciado, assistemático (a percepção do trabalhador), para o sistemático (a organização do saber do trabalhador). Enfim, o educador ou o coordenador de um grupo é como o maestro que rege uma orquestra. Da coordenação sintonizada com cada diferente instrumento, ele rege a música de todos. O maestro sabe e conhece o conteúdo das partituras de cada instrumento e o que cada um pode oferecer. A sintonia de cada um com o outro, a sintonia de cada um com o maestro, a sintonia do maestro com cada um e com todos, é o que possibilita a execução da peça pedagógica. Esta é a arte de reger as diferenças, 270 socializando os saberes individuais na construção do conhecimento generalizável e para a construção do processo democrático (Madalena Freire, p. 159). Conclusão Neste trabalho, buscou-se mostrar a possibilidade da atuação da Psicopedagogia nas empresas, vinculando-a, principalmente, à educação do trabalhador. Pretendeu-se mostrar que, mesmo nos chamados cursos técnicos, com carga horária reduzida, podem-se articular os princípios psicopedagógicos (instrumentando-os com a dinâmica do grupo operativo no ensino), visando a contribuir para a formação do trabalhador, como ser social, reflexivo, crítico, questionador da realidade e que, sobretudo, busca a melhoria de sua qualidade de vida. Em linhas gerais, apontou-se para a importância da participação da Psicopedagogia nas ações educativas que acontecem nas empresas, refletindo sobre como o psicopedagogo pode colaborar ou atuar efetivamente em outras áreas que envolvem o aprendizado sobre o homem-trabalhador. A vida dos trabalhadores e a melhoria das condições de trabalho são objeto de numerosos estudos e ações. O trabalho em si, o ato de trabalhar, possui, pelo menos, três aspectos envolvidos: o físico, o cognitivo e o psíquico. Todos esses aspectos podem apresentar sobrecarga e, às vezes, a sobrecarga de um deles pode acarretar problemas nos outros dois aspectos. No caso dos aspectos físico e cognitivo, essa sobrecarga é, na maioria da vezes, evidente. O mesmo pode não acontecer com o fator psíquico. Certos fatores, como fadiga física, trabalho repetitivo, em turnos, jornadas prolongadas, sob condições insalubres ou perigosas, sobrecarga de trabalho cognitivo, pressões; tensões, entre vários outros, podem determinar problemas de caráter afetivo, tais como: desmotivação para o trabalho, desprazer no ato de produzir, comprometimento na atenção/concentração, na prontidão das ações, que podem demonstrar um certo grau de sofrimento mental. Esse sofrimento emerge e é atribuído ao choque entre a história do indivíduo, com seus projetos, esperanças e desejos, e uma organização do trabalho que não o leva em conta, então o trabalhador constrói seus sistemas defensivos. 271 O sofrimento físico do trabalhador gera menos ansiedade e normalmente é encaminhado para ser resolvido pelo sistema médico da empresa ou outros. Já o sofrimento mental não é visível, palpável, e só aparece nas “fraturas” do discurso do trabalhador ou na sua conduta. No entanto, por meio do olhar e da escuta psicopedagógica, da percepção dos mecanismos de defesa, de resistência, de fuga, de alienação que o sujeito cria para ter condições de garantir sua sobrevivência, torna-se possível identificar a existência de um sofrimento mental/psíquico. Não seria esse, então, um outro campo de atuação do psicopedagogo nas empresas, ao colaborar nos estudos e ações desenvolvidas para melhorar e resgatar a subjetividade dos trabalhadores? Certamente sim, porém não seria uma intervenção em nível da Psicopedagogia clínica. Uma atuação do psicopedagogo nas pesquisas, juntamente com outros profissionais (interdisciplinaridade), recorrendo à Psi cologia Social, aos estudos da Psicanálise, ao modelo de construção do conhecimento do trabalhador e à necessidade de considerar o trabalho como sendo um lugar privilegiado de investigação das características fundamentais do homem, de seus comportamentos gerais em relação aos estímulos do ambiente, consistirá em possibilidades de caminhos a serem adotados. A intervenção do psicopedagogo supõe observar o escutar, o olhar, perceber o significado do discurso, das ações, compreender mensagens, o oculto e, a partir daí, promover uma intervenção, com vistas à adaptação à realidade. “A atuação do psicopedagogo, num primeiro momento, supõe escutar-olhar e nada mais. Escutar não sendo sinônimo de ficar em silêncio, como olhar não é ter os olhos abertos. Escutar, receber, aceitar, abrir-se, permitir, impregnar-se. Olhar, seguir, procurar, incluir-se, interessar-se, acompanhar” (Fernández, 1991, p. 131). O estudo do discurso do trabalhador (explícito) pode conduzir ao implícito que se manifesta em sua angústia. A atividade do trabalho, pelos gestos nela implicados, pelos instrumentos que ela movimenta, pelo material manipulado, pela atmosfera na qual ela opera, perpassa um certo número de símbolos. A natureza e o encadeamento desses símbolos dependem, ao mesmo tempo, da vida interior do sujeito, ou seja, do que ele traz, do que ele introduz de sentido simbólico no que o rodeia e no que ele faz. Todas essas significações concretas e abstratas organizam-se na dialética com o objeto. Objeto exterior e real por um lado, objeto interiorizado por outro, cujo papel é decisivo na vida desses trabalhadores. 272 Em cada trabalhador, o significado das relações com o objeto - a vida passada e presente do sujeito, sua vida íntima, sua história pessoal, acontece de forma única. Estudar o significado dessas relações é uma tarefa complexa que pode incluir vários profissionais: psicólogos, psiquiatras, ergonomistas, profissionais da área de segurança e saúde do trabalhador, assistentes sociais, educadores e também os psicopedagogos. O objetivo desse estudo tem um duplo movimento: de transformação da organização do trabalho e de dissolução dos sistemas defensivos, podendo fazer nascer a modificação na relação saúde mental/trabalho. Com isso, a Psicopedagogia estará favorecendo, juntamente com as outras disciplinas, a construção de um “novo homem”, ao resgatar as possibilidades que ele possui e ao encontrar soluções que permitam pôr fim à desestruturação de muitos trabalhadores, ocasionada pelas situações conflituosas vividas nas relações de produção. Referência 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. BLEGER, José. Temas de psicologia. Entrevistas e grupos. São Paulo: Martins Fontes, 1981. BORGES, Aglael L. O movimento cognitivo-afetivo social do homem sersujeito na produção do conhecimento - uma proposta de um paradigma em psicopegogia. In: SARGO, Claudette (Orgs.). A práxis psicopedagógica brasileira. São Paulo: ABPp Editora, 1994. FAGALI, E. Quadros; DEL RIO do Vale, Zélia. Psicopedagogia institucional aplicada. Petrópolis: Vozes, 1993. FERNANDEZ, Alícia. A inteligência aprisionada. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. FREIRE, Madalena. O que é um grupo? Escola, grupo e democracia. In: GROSSI, E.P.; BORDIN, J. (Orgs.). A paixão de aprender. 2. ed. Petrópolis: Vozes. FREIRE, Paulo. Conscientização. São Paulo: Editora Moraes, 1980. _____.Política e educação. São Paulo: Cortez Editora, 1993. KUENZER, Acácia. Pedagogia da fábrica. As relações de produção e a educação do trabalhador. São Paulo: Cortez Editora, 1986. MACIEL, Marco. Um pacto pela educação. O Globo, Rio de Janeiro, 19 de jun. 1996. p. 7. MENDES, M.H. A práxis brasileira, seus campos de atuação e sua iden- 273 tidade. In: SARGO, C. (Orgs.). A práxis psicopedagógica brasileira. São Paulo: ABPp, 1994. 11. PICHÓN-RIVIÈRE, Enrique. Teoria do vínculo. São Paulo: Martins Fontes, 1982. 12. _____. O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes, 1982. 13. VISCA, Jorge. Psicopedagogia. Novas contribuições. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. 14. WISNER, Alain. A inteligência no trabalho. São Paulo: Fundacentro, 1993. 274 A EDUCAÇÃO COMO FATOR DE PREVENÇÃO: O PROGRAMA DE CAPACITAÇÃO CONTÍNUA EM SAÚDE DO TRABALHADOR DE IPATINGA Beatriz Morelli Faria 1 Ana Maria M. de Almeida1 Rômulo Ronaldo Moreira 1 Maria do Rosário Sampaio 2 Introdução A região do Vale do Aço engloba vários municípios, sendo Ipatinga, Coronel Fabriciano, Timóteo e Belo Oriente as principais cidades, totalizando aproximadamente 385.000 habitantes. Ipatinga, município com aproximadamente 200.000 habitantes, apresenta uma área de 169 km2 e uma densidade populacional em torno de 1200 habitantes por quilômetro quadrado. A cidade começou a apresentar um grande desenvolvimento a partir da instalação da planta industrial da Usiminas, em 1962. A partir de então, cresce rapidamente tanto do ponto de vista populacional como industrial e, por conseqüência, crescem também os problemas advindos da industrialização, tornando mais explícitas as divergências entre capital x trabalho. Com a implantação da indústria siderúrgica na região de Ipatinga, vieram, como que em seu rastro, outras indústrias de pequeno e médio porte para atuar como apoio à siderúrgica, o que, por outro lado, estimulou a ampliação do setor de serviços. Situada a 30 km de Ipatinga, no sentido de Governador Valadares descendo o Rio Doce, encontra-se a cidade de Belo Oriente, com um parque industrial baseado na produção de celulose, sendo a Celulose Nipo-Brasileira (CENIBRA) a sua principal indústria. Em direção a Belo Horizonte, subindo a calha do Rio Piracicaba, a 2 km de Ipatinga, situa-se a cidade de Timóteo, sede da Aços Especiais Itabira (Acesita), indústria voltada parva produção de aços especiais. 1 2 Engenheiras de Segurança e Médico do Trabalho do Serviço de Saúde do Trabalhador da PMI - IPATINGA/MG. Pesquisadora da Coordenação de Educação da FUNDACENTRO/CRMG. 275 Assim sendo, a região, conhecida como microrregião siderúrgica do Vale do Aço - com a sua população condensada, formada em sua maioria por jovens na faixa etária mais produtiva - vem trabalhando nessas áreas de grande risco para a saúde, como é a indústria siderúrgica e de celulose, tendo o trabalho como carreador de desenvolvimento socioeconômico da região, gerando receitas, obras e serviços públicos. No entanto, não se pode ignorar o outro lado: esse mesmo trabalho formador de riqueza traz consigo males que inspiram cuidados, uma vez que pode ser nocivo à saúde do trabalhador, determinando doenças ou acidentes que podem levar à incapacidade temporária ou permanente ou até mesmo à morte. Reconhecendo que essa realidade é válida para o País como um todo, a Constituição Federal incluiu, no conjunto de atribuições do SUS, a execução de ações em saúde do trabalhador e a proteção ao meio ambiente, nele compreendido o do trabalho. A Lei Federal 8.080/90 detalha competências e responsabilidades atribuídas ao SUS, descentraliza as ações de atuação à saúde para Estados e Municípios e, especialmente, no § 3° do art. 6°, define a saúde do trabalhador como “um conjunto de atividades que se destina, através de ações de vigilância sanitária e epidemiológica, à promoção e proteção da saúde do trabalhador, assim como visa à recuperação e reabilitação dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho”. A estrutura de um serviço de saúde do trabalhador na rede pública de atenção à saúde pressupõe uma postura de compreensão do processo saúde/doença como uma resultante das relações sociais, sendo o trabalho uma categoria organizadora central desse social. Para o senso comum, o trabalho é associado muito mais à manutenção da vida do que à produção de doenças ou ocorrências de acidentes. É necessário “desvelar” cotidianamente essa realidade para enxergar o que está por, trás, por exemplo, das estatísticas acidentárias e das doenças ocupacionais. É responsabilidade das instituições de área (INSS, MTE, SUS) dar-se a esse trabalho e expor os resultados dessa atitude, buscando também responsabilizar a sociedade como um todo e determinados agentes políticos, em especial representação dos trabalhadores, empresariado, dirigentes políticos, técnicos da área de saúde e segurança no trabalho - na solução dos problemas. Portanto, o SUS inaugura as suas ações em saúde do trabalhador ainda na década de 1980, quando surgem os primeiros “Programas de Saúde do Trabalhador”. Em Ipatinga, esse programa teve início em 1989. 276 As ações de saúde do trabalhador em Ipatinga As ações de saúde do trabalhador no âmbito do SUS se iniciam com a instalação da Coordenadoria de Saúde do Trabalhador, na qual atuaram três médicos do trabalho, um engenheiro de segurança, dois técnicos de segurança e um técnico de enfermagem do trabalho, os quais fincaram na região as primeiras sementes de um serviço dirigido exclusivamente à saúde dos trabalhadores. Hoje, passados onze anos desde a sua criação, as ações de saúde do trabalhador do município de Ipatinga são desenvolvidas por um médico do trabalho, duas engenheiras de segurança, uma técnica de enfermagem do trabalho e uma técnica de segurança do trabalho. Considerando as atribuições instituídas em lei e o perfil produtivo do município, o Serviço de Saúde do Trabalhador de Ipatinga organizou-se para o desenvolvimento de ações nas seguintes áreas: Atuação técnica e de apoio Nesse campo, os técnicos de serviço de saúde do trabalhador realizam vistoria em ambientes de trabalho, prestam assessoria técnica às empresas e fazem vigilância dos acidentes de trabalho ocorridas no município. Atuação na rede de saúde Aqui, serviço de saúde do trabalhador presta atendimento a pacientes acometidos por doenças relacionadas com o trabalho ou com suspeita de ser portador desse tipo de patologia, além de estabelecer diagnósticos, fornecer tratamento e acompanhamento dos lesionados pelo trabalho, encaminhando-os a especialistas quando necessário. Coordenação médica do acidente de trabalho Nessa atribuição, o médico do trabalho é responsável pela caracterização administrativa de Comunicação dos Acidentes de Trabalho (CAT), estabelecendo ou não o nexo entre acidente/doença e o trabalho, fazendo ainda o acompanhamento da atenção à saúde do acidentado do trabalho. Por fim, o Serviço de Saúde do Trabalhador de Ipatinga desenvolve programas e atividades de educação em Saúde e Segurança no Meio Ambiente de Trabalho, os quais constituem o eixo de nossa reflexão neste trabalho. 277 O programa de capacitação contínua em saúde do trabalhador A FUNDACENTRO - organismo do Ministério do Trabalho que tem como atribuição estatuária principal desenvolver estudos, pesquisas e ações que visem a promoção e preservação da saúde e segurança dos trabalhadores, por intermédio da Coordenação de Educação da FUNDACENTRO - CRMG, elaborou, em abril/1995, o projeto “Educação em Saúde do Trabalhador”, com a proposta de interiorizar o processo de capacitação e atualização em saúde do trabalhador. A Prefeitura Municipal de Ipatinga, por meio do Serviço de Saúde do Trabalhador, compreendendo a importância da proposta, definiu o estabelecimento da parceria para o desenvolvimento de ações educativas de modo a melhor intrumentalizar os profissionais da área, gerando, para esses, importantes espaços de discussão, nos quais a relação entre saúde x trabalho é a principal temática, quando se realizam cursos, seminários, oficinas e outros eventos de cunho didáticopedagógico, materializando, assim, o “Programa de Capacitação em Saúde do Trabalhador” que acontece com grande sucesso em Ipatinga, desde 1995. Objetivos Como já assinalado, a região do Vale do Aço tem apresentado um grande dinamismo econômico, exigindo, por isso mesmo, a ampliação de seu leque em variadas frentes. Assiste-se, cotidianamente, à abertura de novos negócios, incluindo-se aí aqueles próprios da Educação e da Saúde. Contudo, observou-se que, na área de saúde do trabalhador, havia um grande vácuo, ou seja, as iniciativas para o debate sobre as questões pertinentes à temática saúde x trabalho eram muito restritas. A par disso, o Serviço de Saúde do Trabalhador se propôs a cobrir esse vazio, tomando para si os mesmos objetivos já estabelecidos pela Coordenação de Educação da FUNDACENTRO - CRMG (1995), dentre eles, o de “contribuir para o aprimoramento das competências técnicas, políticas e humanas dos profissionais da área de saúde do trabalhador” que atuam no Vale do Aço, possibilitando-lhes a troca de experiência e a socialização dos conhecimentos, buscando, com isso, assegurar o melhor desempenho desses profissionais no desenvolvimento de suas ações dirigidas à promoção e à preservação da saúde. Desse modo, os profissionais de saúde do trabalhador vinculados à rede pública, privada ou ligados à representação dos trabalhadores e empresarial médicos do trabalho, engenheiros de segurança, técnicos de seguranças, profis- 278 sionais de Ciências Humanas e Sociais - e trabalhadores, que constituem a nossa clientela, passaram a ter, a partir de 1995, espaços sistemáticos e contínuos para a discussão sobre a relação saúde/trabalho, na qual tanto se podem esclarecer dúvidas, como outras novas podem surgir, como é próprio do processo de reflexão sobre a prática. Não se quer dizer, com isso, que foram encontradas as soluções à altura da diversidade e complexidade dos problemas oriundos das repercussões do trabalho sobre a saúde, mas, certamente, dentro de todas as adversidades enfrentadas no dia-a-dia desses profissionais, com uma pequena margem de autonomia dentro da empresa, o processo educativo vivido possibilitou alguns insights, mudanças de rota ou, quem sabe, até mesmo algumas colisões. Metodologia Referendados no perfil epidemiológico do município e por intermédio de informações obtidas a partir de instrumentais de avaliação, o Serviço de Saúde do Trabalhador de Ipatinga e a Coordenação de Educação da FUNDACENTRO CRMG avaliam e planejam anualmente as ações educativas que serão desenvolvidas para aquele determinado ano. É necessário ressaltar que o Programa de Capacitação Contínua em Saúde do Trabalhador sofreu constantes avaliações pelas instituições envolvidas, que o replanejam quando a realidade assim o exige. Nessa linha, o Programa em referência se efetiva pela realização de cursos/seminários, nos quais se discutem as questões próprias do binômio saúde/trabalho, variando a carga horária de acordo com a temática, os objetivos específicos e modos de abordagem escolhidos pelos especialistas convidados. A escolha dos docentes convidados fica, geralmente, a cargo da Coordenação de Educação da FUNDACENTRO-MG, que se responsabiliza pelos contatos com esses especialistas, custeio de seu transporte, diárias, remuneração de horasaulas, laudas, etc. Os profissionais convidados são comumente do próprio quadro técnico da FUNDACENTRO-CTN(SP), CRMG, CRPE. Foram envolvidos também professores da UFMG, USP, técnicos da Secretaria Estadual de Saúde (MG), DRT, INSS. Competem ao Serviço de Saúde do Trabalhador de Ipatinga as resoluções relativas aos aspectos infra-estruturais, ou seja, seleção de local didaticamente apropriado aos eventos, mobilização da clientela, custeio de despesas relativas à divulgação, transporte local, lanches, pastas blocos/canetas; outros recursos didáticos. Quanto aos procedimentos didáticos, pode-se afirmar que os docentes utilizam aulas expositivas com apoio de retroprojetor ou multimídia, debates 279 fundamentados em filmes, slides, resolução de exercícios práticos, visitas a empresas, dinâmicas de grupo, aulas demonstrativas, etc. Por fim, é preciso assinalar que, ao final de cada evento, os alunos são chamados a participar da melhoria das ações, quando solicitamos que eles respondam às questões abertas e fechadas de um instrumental apropriado à análise dos eventos, quando se avalia carga horária, conteúdo programático, modos de abordagem, procedimentos didáticos, pontos positivos, negativos, etc. Foram promovidos, entre 1995-2000, 24 eventos educativos em saúde do trabalhador. Por seu maior impacto, destacamos alguns a seguir. Experiências educativas mais relevantes O curso básico de atualizaçao em saúde do trabalhador Em Ipatinga, a primeira experiência em ação educativa realizada em parceria com a FUNDACENTRO aconteceu em 1995 e foi dirigida a profissionais da rede pública (Programa de Saúde do Trabalhador, DRT, DRS e Perícia Médica do INSS), de empresas privadas (SESMT), assessorias de saúde e organização dos trabalhadores do município e de cidades circunvizinhas (Timóteo, Coronel Fabriciano e Belo Oriente). Esse curso foi estruturado em três módulos, sendo cada módulo desenvolvido em uma semana, perfazendo uma carga horária total de cem horas. No primeiro módulo, foram abordados aspectos conceituais sobre processos de trabalho processo saúde/doença, modelos de assistência à saúde do trabalhador, política nacional de saúde do trabalhador, legislação pertinente. O segundo módulo abordou os riscos presentes nos ambientes de trabalho, suas formas de controle, limites e eficácia. O terceiro módulo discutiu doenças profissionais e/ou relacionadas com o trabalho mais prevalentes na realidade do município e da região. Interessante destacar que, ao final de cada módulo, havia uma avaliação escrita e, ao término do último módulo, os participantes foram convidados a elaborar propostas de trabalho para a continuidade das ações educativas, organizando-se daí o “Programa de Educação Contínua em Saúde do Trabalhador”. O seminário e o curso “LER: responsabilidade da sociedade” Em 1997, a partir de análise de aspectos epidemiológicos das doenças profissionais do município e das propostas elaboradas pelos participantes do 280 curso de Atualização em Segurança e Saúde do Trabalhador, planejou-se o “Programa de Capacitação Contínua em Saúde do Trabalhador”. O programa foi aberto com o seminário “LER: responsabilidade da sociedade”. Esse tema foi escolhido por ser essa a patologia ocupacional mais freqüente de atendimento no ambulatório de doenças profissionais da rede pública. Configurava-se, naquele momento, como a patologia com a mais ampla distribuição entre diferentes categorias profissionais, sendo causa de grande número de afastamentos do trabalho e acometendo trabalhadores jovens, além de estar em crescimento alarmante. A dinâmica do seminário organizou-se em conferências, mesas-redondas e oficinas de trabalho. Nas primeiras, abordou-se a relação entre a organização do trabalho e a LER, o contexto atual, a atuação interinstitucional e a redenominação da patologia (DORT). Os conferencistas convidados representavam diferentes instituições, empresas e entidades. Os debates abertos ao público suscitaram ampla participação e interesse. Nas oficinas de trabalho, em número de quatro, foram discutidos temas referentes à análise ergonômica do trabalho, diagnóstico e tratamento das Lesões por Esforços Repetitivos e as suas questões legais. Curso para lideranças sindicais em saúde do trabalhador Em 1998, o movimento sindical do Vale do Aço, reconhecendo a limitação de seus conhecimentos relativos às questões de Saúde x Trabalho, encaminhou à FUNDACENTRO - CRMG e ao Serviço de Saúde do Trabalha dor de Ipatinga demanda solicitando oportunidades de cursos específicos para os seus diretores de saúde. Reconhecendo a importância desse pleito, as duas instituições parceiras organizaram o curso para líderes sindicais, quando foram discutidas as possíveis intervenções que pudessem minimizar os impactos das mudanças do mundo do trabalho na saúde dos trabalhadores. Para o seu desenvolvimento, foram selecionados conteúdos considerados básicos para subsidiar os participantes com informações que os auxiliassem no cumprimento de suas atribuições como representantes dos trabalha dores na luta por ambientes mais saudáveis. Foram examinados os riscos ambientais, a legislação previdenciária, trabalhista, CIPA, mapa de riscos, etc. Ao término do curso, os participantes definiram pela formação de uma comissão interinstitucional de saúde e segurança do trabalhador do Vale do Aço. Essa comissão foi responsável pelo primeiro seminário do movimento sindical e saúde do trabalhador do Vale do Aço, que contou com a participa- 281 ção tanto do Serviço de Saúde do Trabalhador, como da FUNDACENTRO CRMG. Programa de capacitação em segurança e saúde do trabalhador para técnicos de segurança Em 1999, o Programa de Capacitação Contínua em Saúde do Trabalhador privilegiou os técnicos do trabalho, elegendo-os como clientela exclusiva dos cursos promovidos naquele ano. Foi grande a adesão desses profissionais aos eventos oferecidos e, por se tratar de uma categoria quantitativamente significativa na região, os participantes ficaram com a incumbência de atuar como agentes multiplicadores. O Projeto Mãos-à-Obra: segurança e saúde na indústria da construção civil Em Ipatinga, observam-se, nos últimos anos, alterações no padrão de construção, verificando-se um aumento significativo das obras verticalizadas e, conseqüentemente, uma elevação dos riscos de acidentes de trabalho. Essa nova realidade, aliada às características peculiares da construção civil, justifica a parceria do Serviço de Saúde do Trabalhador com a FUNDACENTRO-MG para a implementação do projeto “Mãos-à-Obra”. Nas ações desse projeto, além da vigilância a ambientes de trabalho da construção civil, incluem-se cursos de segurança e saúde dirigidos a profissionais envolvidos no setor: empregadores, mestre-de-obras, operários e encarregados. Por meio de busca ativa, foram selecionadas 28 empresas do ramo de construção com obras em andamento nos bairros de Cidade Nova e Horto, onde se verificam maiores índices de verticalização. Em 1999, havia 58 obras em desenvolvimento nos bairros mencionados e empregavam 287 trabalhadores. No que tange à educação, foram promovidos cursos voltados para os problemas levantados por ocasião das visitas, visando a obter maior envolvimento e comprometimento dos participantes, para a implementação de medidas preventivas de segurança e saúde no trabalho e, conseqüentemente, minimizar os riscos e os elevados índices de acidentes no setor da indústria da construção. Foram utilizadas metodologias participativas dentro e fora dos canteiros de obra para o desenvolvimento do programa de capacitação. Avaliações positivas desse trabalho subsidiarão a implementação de ações semelhantes em novas áreas de abrangência do município. 282 Campanha educativa para a redução de acidentes de trajeto Dada a topografia da cidade de Ipatinga, com avenidas largas e planas, o intenso movimento do tráfego e a pressão do tempo impregnada ao mundo da produção/trabalho, o perfil epidemiológico do município traz índices expressivos de acidentes de trabalho do tipo trajeto. Visando à redução de tais índices, o Serviço de Saúde do Trabalhador e a FUNDACENTRO - CRMG definiram pelo lançamento de uma campanha educativa. Para tanto, reuniram-se com o Batalhão de Trânsito local, Secretaria Municipal de Educação, Secretaria Municipal de Comunicação e Delegacia Regional do Trabalho, buscando o desenvolvimento de uma ação conjunta. Foram aplicados questionários a trabalhadores das empresas locais, de modo a sondar as informações que eles têm sobre acidentes de trajeto, o que serviria de subsídio para a elaboração de uma cartilha e filme sobre o assunto, recursos que serão utilizados, em 2001, em ações educativas desenvolvidas com os trabalhadores e escolas municipais. As ações educativas sob a perspectiva dos participantes Com o propósito de aperfeiçoar as ações educativas desenvolvidas pelo projeto “Capacitação Contínua em Saúde do Trabalhador”, foi aplicado, ao final de cada curso, um instrumental de avaliação, no qual os alunos indicavam as mudanças necessárias ao projeto, bem como os seus acertos. Analisando 160 desses questionários, obtivemos as informações expostas nos gráficos a seguir: 283 284 285 286 Diante das informações reveladas pelos gráficos, percebe-se uma expressiva aprovação dos participantes para os quesitos relativos às temáticas trabalhadas, seleção de docentes e atuação dos alunos. No entanto, as opiniões se dividem no momento da apreciação da carga horária e dos procedimentos e recursos didáticos. Nesse sentido, o que se observa é que, pelo menos, 30 participantes julgaram inadequados tanto a carga horária como os recursos didáticos, enquanto 39 assinalaram que o distanciamento entre teoria e prática prejudica a qualidade do curso: Compreende-se, assim, que os participantes estão recomendando maiores cuidados na distribuição entre volume dos conteúdos programáticos e o tempo realmente necessário para abordá-los; que a escolha dos recursos didáticos merece maior reflexão, havendo alunos que sugeriram “mais trabalhos em grupos, pois são poucas as oportunidades que temos de trocar experiências”, bem como “não se prender apenas em transparências, o aumento de recursos visuais, como slides e filmes e a utilização de outras técnicas poderiam incrementar ainda mais o tema”. Deve-se ressaltar, ainda, que a maioria dos participantes, em suas respostas às questões abertas, requerem que a carga horária dos cursos privilegie as aulas práticas, notadamente, visitas às empresas. 287 Solicitados a relatar a utilização dos conhecimentos adquiridos na prática cotidiana, alguns alunos registraram interessantes depoimentos que indicam o acerto do programa de “Capacitação Contínua em Saúde do Trabalhador”, em seus aspectos finalísticos: “Os cursos ajudaram a adotar uma nova política de controle ambiental dos agentes ruídos, calor e aerodispersóides, em andamento na nossa empresa e a desenvolver com os funcionários da empresa uma maior conscientização da importância dos Equipamentos de Proteção Individual - EPI, quanto a proteção à saúde na execução de atividades que implicam em tais agentes. Já o curso de Proteção Respiratória será o ponto de partida para que eu possa desenvolver o PPR de nossa empresa.” (Aluno do Programa de Capacitação em Saúde e Segurança do Trabalho para Técnicos de Segurança) “Foram importantes os conhecimentos aqui auferidos, uma vez que esses contribuirão, sobremaneira, para a melhoria da vida dos trabalhadores. A partir dessa premissa, poderemos levar para o Centro de Saúde maneiras eficazes para a proteção da saúde do trabalhador.” (Aluno do Curso Básico de Saúde e Segurança do Trabalhador) “Com esse conhecimento adquirido, no caso da vigilância sanitária, poderemos fazer vistorias mais completas; com mais segurança poderemos passar esses conceitos e tentar uma nova consciência, tanto para os patrões, quanto para os empregados.” (Aluno do Curso Básico de Saúde e Segurança do Trabalhador) “A partir desse curso, vamos reformular o PPRA de nossa empresa.” (Aluno do Curso PPRA) 288 Considerações finais Após a análise dos instrumentais de avaliação, o que se pode concluir é que o Serviço de Saúde do Trabalhador de Ipatinga acertou em firmar parceria com a FUNDACENTRO-MG para a oferta de cursos de reciclagem na área da saúde do trabalhador, pois, segundo a avaliação dos próprios alunos, os objetivos propostos foram alcançados. Ademais, a operacionalização do “Programa de Capacitação Contínua em Saúde do Trabalhador” demonstra que as parcerias interinstitucionais são, além de possíveis, indispensáveis à atuação mais efetiva do Estado, cujos organismos atuam, comumente, de modo desintegrado. Após cinco anos (1995-2000) promovendo cursos na área de saúde x trabalho, o Serviço de Saúde do Trabalhador e FUNDACENTRO-MG consideram que cumpriram uma importante etapa do processo educativo. Porém, as duas instituições, ao planejarem as suas ações para o ano 2001, consideraram pertinente a adoção de novas estratégias, definindo-se pela focalização das ações em apenas um ramo de atividade (marmoraria) e a continuidade da campanha educativa para a redução dos acidentes de trajeto e do Projeto Mãos-à-Obra. Agradecimentos Agradecemos a todos os profissionais da FUNDACENTRO e demais professores que contribuíram para o sucesso do nosso programa. Agradecimentos especiais a Maria das Graças Purificação e a Edilene Caldeira Mendes, técnicas do Serviço de Saúde do Trabalhador de Ipatinga, que também abraçam a causa da saúde do trabalhador. Somos gratos ainda ao Secretário da Saúde e seus auxiliares, a Maria do Carmo Araújo Lage, a Vera Lúcia de Ataíde, a Marilda Otoni Corrêa, da Prefeitura Municipal, por atenderem às nossas solicitações sempre com a maior boa vontade. 289 290 UMA PROPOSTA DE ATUAÇÃO NAS CONDIÇÕES DE TRABALHO DA PESCA E MERGULHO PROFISSIONAIS Antonio Lincoln Colucci1 Vera Lúcia Abril Teles de Souza 2 Apresentação Atividade da pesca A medicina que a todos socorre, como disse Hipôcrates, não deixará de dar atenção menor aos pescadores do que aos agricultores, todas as vezes que se sintam doentes, coisa que não é rara; se algum dia cabe a um médico receber um pescador que confia em seus cuidados, considere ele quão penosa e quão difícil é essa profissão, obrigada que está a tolerar as terríveis rajadas de vento, os violentíssimos frios invernais e os mais pesados calores do verão; que espécie de alimentação usam esses homens, que gênero de vida diferente levam, pois, quando os demais operários cansados do labor diurno metem-se na cama para passarem comodamente a noite, num sono reparador, as noites dos pescadores estão cheias de trabalho e insônias (Ramazzini, 1999, p. 201). E sse texto foi extraído do livro A Doença dos Trabalhadores, escrito por Bernardino Ramazzini, cuja primeira edição data do ano de 1700. A pesca é uma das atividades econômicas mais antigas do homem e, desde tempos remotos (bíblicos mesmo), vilas e cidades, ribeirinhas e litorâneas, puderam basear sua economia na atividade pesqueira, beneficiando-se da presença constante de cardumes relativamente próximos. Já na Antigüidade, regiões inteiras viviam na dependência quase exclusiva da pesca. A história da pesca e de seu desenvolvimento é repleta de lacunas. Há mais informações sobre os meios utilizados para pescar na Antigüidade do 1 Arquiteto, Engenheiro de Segurança do Trabalho e Tecnologista da FUNDACENTRO/Centro Regional do Rio de Janeiro, coordenador Nacional do Programa Acqua Fórum. 2 Educadora (Letras), Especialista em Psicopedagogia em Educação, Consultora Externa do Programa Ácqua Fórum. 291 que os empregados em épocas mais recentes, quando a pesca já obtivera notável desenvolvimento. Só depois da Segunda Grande Guerra é que a indústria da pesca atraiu a atenção mundial e passou a desenvolver-se em maior escala, em muitos países. A pesca de caráter comercial e industrial foi promovida, sobretudo, pela consciência do rápido crescimento demográfico da humanidade, associado à relativa escassez de novas terras férteis nas superfícies continentais. Quando a exploração oceânica colocou-se como alternativa a uma eventual crise de alimentos, dado que as pesquisas sobre vegetais marinhos e agricultura submarina apenas começavam, o incremento e a racionalização da atividade pesqueira foram opções viáveis de imediato. Excetuando-se a pesca na linha na orla litorânea e as redes de arrasto lançadas por pequenos botes e puxadas da praia por comunidade de pescadores, a pesca apresenta-se como uma atividade econômica muito recente no Brasil. Somente em 1947 alguns pesqueiros motorizados começaram a operar fora dos portos. Houve muitas dificuldades para as empresas de pesca, até por causa da legislação obsoleta e poucos incentivos. Em 1962, começou a haver algum interesse mais sério sobre a pesca. Em 1965, declarava-se a pesca como uma indústria de base, permitindo-se aos pescadores a obtenção de financiamentos em estabelecimentos oficiais. Em 1970, de acordo com estatísticas da FAO (Organização de Alimentos e Agricultura da ONU), o Brasil ocupava o vigésimo terceiro lugar na produção mundial, qualificando-se entre os produtores médios. A frota pesqueira no Brasil é bastante heterogênea e sua tardia modernização limita-se a uns poucos centros pesqueiros. A pesca artesanal ainda é responsável por boa parte da produção, empregando barcos tradicionais. Em vários países, como no Brasil, são os pescadores de pequena escala que têm assegurado considerável parcela do abastecimento interno em produtos pesqueiros, geralmente com tecnologias de baixo impacto ambiental e sem muito apoio do poder público. No Norte e Nordeste, eles contribuem com 70% ou mais do total da produção pesqueira. Enfrentam grandes dificuldades para vender seu produto, concorrendo com frotas industriais e tendo precário acesso a direitos previdenciários e trabalhistas. Por outro lado, sofrem a pressão imobiliária, da poluição industrial e doméstica, e da degradação dos ecossistemas litorâneos. Então, os esforços para preservar e fomentar as comunidades de pescadores artesanais são parte inseparável de um projeto de pesca responsável. Sua sobrevivência depende diretamente da conservação dos estoques pesqueiros. Nesse sentido, há todo o interesse em pesquisas científicas que condo- 292 zam ao ordenamento pesqueiro eficaz, à melhoria tecnológica e à obtenção de alternativas de emprego e renda, condições indispensáveis para o uso sustentável dos recursos pesqueiros. E quanto ao homem? Ao pescador? Voltando a citar Ramazzini: “É miseranda a situação de tais trabalhadores, que, às vezes, não têm outra morada senão seus barcos, e, quando adoecem e se vêem obrigados a internarem-se em nosocômios, não podem ser verdadeira e eficazmente curados, caso o médico não esteja inteirado do oficio que eles exercem” (Ramazzini, 1999, p. 202). Dessa época até os dias de hoje, não houve muitas modificações na qualidade de vida e de trabalho desses profissionais. Não há dados oficiais conclusivos sobre o número de pescadores, ou de acidentes e mortes relacionados com essa atividade profissional, sem esquecer a importante participação das mulheres, crianças e idosos das comunidades pesqueiras que, normalmente, não são levados em conta. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), em reunião tripartite realizada no ano passado, reconhece a pesca como uma das profissões mais perigosas, com um informe de que cerca de 24.000 pescadores e pessoas ligadas ao setor pesqueiro morrem a cada ano. Além disso, a atividade da pesca vem experimentando um considerável crescimento, bem como o interesse dos Governos pelo número de trabalhadores que ela agrega, tendo em vista a possibilidade de, nesses tempos de alarmantes índices de desemprego, possibilitar o ingresso de muitos profissionais a essa atividade profissional. Juntamente com incentivos ao crescimento da atividade, torna-se necessário olhar para esse trabalhador, sua condição de trabalho, de vida e saúde. É um setor desassistido: falta formação para esses trabalhadores; acesso aos direitos trabalhistas e previdenciários; estatísticas e dados oficiais da atividade; orientação sobre segurança e saúde para os trabalhadores, além de uma legislação eficiente para o setor. Atividade do mergulho A história do mergulho vem do desejo e da curiosidade do homem em descobrir novas fronteiras e, no início, os mergulhadores não usavam nenhum equipamento. Quando surgiu é difícil saber, porém, há bem mais de vinte séculos, registros em gravuras mostram guerreiros assírios nadando sob o mar e respirando em sacos de couro. 293 Alguns registros sugerem que o próprio Alexandre “O Grande” teria utilizado um equipamento semelhante a um sino aberto. Esses mergulhos de valor comercial, para coletar alimentos, esponjas e pérolas, eram restritos a águas relativamente rasas, com cerca de trinta metros. Um dos primeiros registros é do escritor grego Herodoto, que fala sobre um mergulhador grego que trabalhava para o rei persa Xerxes, a fim de recuperar tesouros em navios persas submersos. Desde os primórdios, o mergulho teve papel ativo nas operações militares. Suas missões incluíam cortar cabos de âncoras, perfurar o fundo dos navios e construir portos defendidos, enquanto se esforçavam para destruir portos inimigos. No Brasil, os primeiros registros de mergulho foram dos nossos índios. Diversos cronistas dão conta do fato, descrevendo os silvícolas como exímios mergulhadores que nadam sob o mar com os olhos muito abertos. Anchieta descreve a destreza dos índios no combate aquático, como episódio em que combatem a nado “como baleias” e com uma fúria que assustava a multidão na praia. Conta ainda que Araribóia, tendo atravessado a nado o braço de mar que separa a ilha de Villegagnon do continente, ateou fogo nos paióis franceses; assegurando a vitória em manobra típica dos atuais mergulhadores de combate. Dos assírios e macedônios, passando por gregos e romanos, até 1500, pouco mudaram as técnicas e não houve basicamente nenhum equipamento para os mergulhadores. No período compreendido entre 1500 e 1800, poucos equipamentos surgiram em termos de alguma praticidade e pouco mudaram as técnicas de mergulho. Em cerca de 1800, é registrado o uso de foles para mandar ar e, a seguir, as primeiras bombas manuais são usadas. Os mergulhadores dessa época eram verdadeiros aventureiros, avançando no desconhecido. Eles não tinham conhecimento de como seus equipamentos funcionavam e a que provas seriam expostos. Em 1819, Augusto Siebe desenvolveu sua “roupa aberta”. Essa roupa era alimentada por uma bomba manual que mandava o ar para um capacete de metal, com o escape do ar dando para baixo da jaqueta, aberta na cintura. Em 1837, Siebe modificou sua roupa para roupa fechada, colocou uma válvula de escape (exaustão) no capacete estava inventado o ESCAFANDRO, usado até nossos dias, com algumas modificações. O “cordão umbilical” do escafandro clássico começou a ser dispensado com a criação do primeiro escafandro auto-suficiente, por Benoit Rouquay- 294 rol e Auguste Denayrouse; a partir do escafandro de Siebe, esses dois engenheiros criaram, em meados do século XIX, uma maneira de o mergulhador poder carregar o ar de que precisasse. Mas a autonomia desse escafandro era pequena, o que limitava seu uso às pequenas profundidades. Em 1878, H. Fleuss, da firma Britânica Siebe Gorman e Co., desenhou um equipamento de circuito fechado com reaproveitamento do oxigênio. O aparelho utilizava uma solução de potássio cáustico para remover o CO, do gás expirado. Em 1902, Fleuss e Robert H. Davis aperfeiçoaram o aparelho. Ermo protótipo dos modernos equipamentos de circuito fechado atuais. Porém, à medida que houve o desenvolvimento da habilidade de manter a respiração sob a água, com o aumento cada vez maior da pressão e da profundidade por um período maior de tempo, começaram a surgir os problemas fisiológicos do mergulho e trabalho sob pressão. O primeiro problema fisiológico encontrado foi a doença descompressiva, chamada “Mal dos Caixões de Bends”, porque atacava com maior freqüência nas juntas (joelhos, cotovelos, etc.). No início, a estranha doença foi confundida com indigestão, reumatismo, etc., sendo inúmeros os casos fatais. Em 1878, o fisiologista francês Paul Bert descreveu clinicamente a doença pela primeira vez. Ele estudou os efeitos da pressão na fisiologia humana e constatou que a doença era resultante da formação de bolhas de gás inerte na corrente sangüínea (doença descompressiva). Paul Bert recomendou a descompressão gradual dos mergulhadores para evitar a doença, o que reduziu os casos graves e os fatais. No entanto, ainda continuaram ocorrendo muitos casos da doença. O fisiologista inglês J.S. Haldame conduziu experiências com mergulhadores da Marinha Britânica, de 1905 a 1907 e propôs uma série de tabelas de descompressão, com métodos de paradas a determinada profundidade por um tempo definido. Essas tabelas foram reestudadas e aperfeiçoadas durante os anos, permanecendo como único método aceito com alguma segurança. Os resultados dos estudos de Haldame foram a extensão e intensificação dos mergulhos a mais de sessenta metros. Agora o limite não era mais imposto por fatores fisiológicos, mas pela capacidade das bombas em suprir a provisão de ar. De 1900 em diante, comas tabelas, câmaras de descompressão e equipamentos um pouco mais seguros, o homem partiu para a descoberta de dois terços do planeta sob as águas. Em 1933, La Prieur desenvolveu o precursor dos aparelhos modernos: um cilindro de ar comprimido dotado de uma válvula manual que controlava 295 o fornecimento do ar. A simplicidade de sua construção dava ao mergulhador grande liberdade de movimentos. A válvula de controle manual tinha funcionamento semelhante ao de uma torneira comum: quando precisava de ar, o mergulhador abria a torneira. Mas, como o ar não vinha em velocidades controladas, sempre havia um desperdício que reduzia a autonomia do mergulho. Mais tarde, ao fim da Segunda Guerra Mundial, o aperfeiçoamento do aqualung (pulmão aquático) pelo oceanógrafo Jacques Cousteau e pelo engenheiro Emile Gagnan revolucionou as atividades do mundo submarino. O aparelho é constituído basicamente como o engenho de La Prieur: um cilindro de ar comprimido de alta pressão com uma torneira acoplada na extremidade. A grande diferença é o sistema de válvulas que lhe foi adicionado. Ao contrário do escafandro de La Prieur, o aqualung não precisa da operação manual para o fornecimento do ar; este é expelido automaticamente por um sistema de molas, buchas e diafragmas - concebido inicialmente para ser usado no sistema de alimentação de um automóvel movido a gasogênio, devido à falta de gasolina na época (1942). A partir desse tipo de válvula, Cousteau e Cagnan criaram o regulador de duplo estágio, que fornece o ar automaticamente. Cousteau usou seu aparelho com sucesso em profundidades de cerca de 55 metros, sem dificuldades significativas. O aqualung recebe outros nomes: scuba (self contained underwater breathing apparatus - aparelho autocontido de respiração subaquática), escafandro autônomo ou garrafa de mergulho. Hoje esse é o aparelho mais amplamente usado e familiar dos equipamentos de mergulho, abrindo o mundo submarino a qualquer pessoa, com o treinamento necessário. No Brasil, a Marinha foi quem iniciou as atividades de mergulho e durante anos foi capaz de realizar trabalhos nesse setor, sendo responsável pela formação de grande parte dos mergulhadores na Escola de Mergulho da Marinha. Na década de 70, na construção da Ponte Costa e Silva, a Rio-Niterói, foram realizados os primeiros mergulhos profundos com a utilização de misturas gasosas heliox, amais de 90 metros de profundidade. O trabalho subaquático era realizado no apoio à construção dos pilares de sustentação da ponte. Paralelamente, nos anos 72/73, realizaram-se mergulhos profundos, com equipes brasileiras, nas bacias petrolíferas de Campos-RJ e da Amazônia-AM. O mergulho profissional surge por volta de 1960, no Brasil. Foi evoluindo, desenvolvendo novos equipamentos e tecnologia, permitindo alcançar maiores profundidades. Esse desenvolvimento acelerado provocou um crescimento no mercado de trabalho e profissionais inexperientes ou não habilitados para es- 296 sa atividade passaram -a exercê-la, o que provocou acidentes com lesões graves e mortes. Diversas são as formas e utilizações do mergulho comercial que vão desde a construção de portos, pontes, plataformas de prospecção de petróleo, serviços em hidrelétricas, garimpos, pesca por mergulho, etc. Com a prospecção de petróleo na plataforma continental, já se realizaram mergulhos a mais de trezentos metros de profundidade e o mergulhador brasileiro é conhecido internacionalmente. “O papel da Petrobrás na formação da categoria, a partir da constituição de um mercado de trabalho estável, foi determinante para o mergulhador, que desde então, refere-se à categoria, tendo sempre em mente aqueles que atuam na prospecção de petróleo no mar” (Barreto, Flávia O., Histórico do Trabalho Subaquático). No ramo amador, são inúmeros os clubes e associações que ministram cursos de mergulho e dão apoio aos mergulhadores em suas incursões ao fundo do mar. Aspectos relacionados com a segurança e a saúde do mergulhador Segundo o texto “O Desgaste no Trabalho em Ambientes Hiperbáricos”, do médico hiperbárico Ricardo Garcia Duarte: “Por tratar-se de atividade em ambiente inóspito, existe a necessidade de atualização constante do conhecimento técnico-científico e de utilização de sistemas operacionais sofisticados, com uma equipe de apoio para que o ser humano possa não somente desenvolver as suas tarefas profissionais mas, sobreviver e preservar a sua integridade física e mental”. Ainda segundo o Dr. Ricardo Garcia, vários são os fatores de risco à saúde e à segurança dos profissionais de mergulho “demonstrando que as atividades podem ser classificadas como penosas, insalubres e perigosas”, considerando: • a exposição a pressões acimada pressão atmosférica, às intempéries, a riscos físicos, biológicos, químicos, ergonômicos e de acidentes e doenças; • o isolamento (dos amigos, da família e da comunidade) e o confinamento (em locais exíguos e%u distantes) para alguns; • a necessidade de viagens constantes, as estadias longas e longe de casa, com duração de 14 e 28 dias (na quase totalidade das vezes); 297 • o ritmo intenso e desgastante das jornadas de trabalho em turnos ininterruptos de 12 horas de trabalho e, a obrigatoriedade de adaptação constante do trabalhador às diversas realidades que lhe são impostas; • a coabitação e o trabalho conjunto com outras pessoas, nem sempre conhecidas e/ou com algum grau de amizade; • a falta de programa/planejamento anterior a chegada no local de trabalho (o que muitas vezes prejudica o desempenho das atividades previstas); • a obrigatoriedade de utilização de tecnologia de ponta e de gases respiratórios (ar comprimido ou mistura gasosa) para permitir o desenvolvimento dos trabalhos e a sobrevivência dos trabalhadores nos mesmos; • as pressões sofridas pelas chefias imediatas e/ou pela contratante para execução de atividades dentro dos prazos preestabelecidos e/ou de interesse da contratante, independente das condições locais ambientais; • a ausência de Programas de Controle Médico de Saúde Ocupacional e Prevenção de Riscos Ambientais (obrigatórios pelas NR's 07 e 09 da Portaria 3214178) e de médicos do trabalho responsáveis pelos exames médicos de saúde ocupacional (admissional; periódico, mudança de função, demissional e de retorno ao trabalho). Só existem médicos hiperbáricos ou clínicos executando os referidos exames; na quase totalidade dos casos sem conhecimento dos riscos inerentes ao meio ambiente, às atividades, aos processos e à organização de trabalho; • a inexistência de plano de emergência para os casos de acidentes de trabalho, que contemple também as evacuações hiperbáricas (resgates seco e molhado de mergulhadores saturados/mergulho profundo). Todas essas considerações demonstram que os mergulhadores têm uma severa disciplina no seu cotidiano de trabalho, longas e exaustivas jornadas de trabalho, privações e riscos iminentes. É exigida deles uma dedicação to tal e os seus limites são constantemente testados. O risco, na maioria das vezes fatal, é presença real e consciente. 298 Um breve histórico do Programa Ácqua Fórum Esse trabalho evoluiu a partir da vocação natural do Estado do Rio de Janeiro (da FUNDACENTRO/ Centro Regional do Rio de Janeiro), para o envolvimento com as atividades ligadas direta ou indiretamente ao elemento água, sobretudo em função da importância estratégica, econômica, social e política do seu litoral, característica que se estende por quase todo o litoral brasileiro, um dos maiores do mundo. Possuímos também o maior potencial hídrico do planeta, oferecendo imensas possibilidades de desenvolvimento nessas áreas para benefício do maior contingente de trabalhadores que, formal ou informalmente, sobrevivem da pesca e do mergulho. O trabalho humano no mar, rios e em todos os demais segmentos aquáticos, naturais e artificiais, é fundamental, já que o acesso às riquezas, tanto dos recursos vivos como dos não vivos, exige o experimento de novas tecnologias e suas conseqüentes técnicas de trabalho, isso a partir de mudanças radicais na forma de pensar o universo aquático e sua relação com o Meio Ambiente. Em função disso, a FUNDACENTRO - Centro Regional do Rio de Janeiro, desde o final dos anos 70, vem realizando e apoiando muitas atividades nessas áreas, como: • Participação na elaboração da NR-15 (3214/78) e revisões. • Projeto Portuário MTE/FUNDACENTRO (que envolveu também os Portos do Rio Grande do Sul, Santos, Rio de Janeiro e Pernambuco). • Projeto Mercadorias Perigosas e Sujeitas a Risco - Modelo Procedimental em Segurança e Medicina do Trabalho para o complexo Portuário do Estado do Rio de Janeiro, juntamente com a Companhia Docas do Rio de Janeiro. A Cia. Docas do Rio de Janeiro necessitava de Normas Procedimentais que atendessem a questões da segurança e saúde do trabalhador nas operações com mercadorias perigosas, prevenindo contra acidentes de trabalho e avarias. Nessa época, o instrumento disciplinador era a resolução n° 183/79 da PORTOBRÁS, que se embasava no Guia Internacional de Mercadorias Perigosas da Organização Marítima Internacional (IMO) que, embora fosse relevante, não atendia à demanda exigida pelos programas de segurança operacional e de trabalho nos portos. Pelas recomendações e procedimentos estabelecidos já no decorrer do Projeto; e em seu relatório conclusivo, a Companhia Docas estabeleceu o 299 sistema de atendimento preventivo às operações portuárias e às avarias com as cargas e, sobretudo, com ênfase na segurança e saúde dos trabalhadores envolvidos na carga/descarga/transportes/manuseio e armazenamento dessas mercadorias. Os princípios estabelecidos no Projeto beneficiaram os trabalhadores Portuários e Avulsos e serviram de base para a elaboração da Norma Regulamentadora Portuária em Segurança e Saúde Ocupacional (NRP), texto que embasou a vigente NR-29. • Realização do 1.° Seminário Nacional de Segurança do Trabalho em Atividades de Prospecção de Petróleo Off-Shore - que abordou vários temas ligados à atividade do mergulho profissional. • Realização de Semanas Específicas de Prevenção contra Acidentes do Trabalho Marítimos (SPATMAR), discutindo temas sobre Direito do Mar, Portos, Trabalhadores Avulsos, Indústria Naval e também de Pesca e Mergulho Profissionais. • Recentemente, foi desenvolvido o projeto/atividade, denominado Ação Mobilizadora em Segurança e Saúde Ocupacional, realizado com Entidades de Classes, objetivando detectar áreas prioritárias, na segurança e saúde do trabalhador. Essa ação foi intensificada com a consultoria em Segurança do Trabalho no Projeto Desenvolvimento Profissional Subaquático – DPS’99, realizado por meio de convênio firmado com o Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Atividades Subaquáticas e Afins (SINTASA), a Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ/COPPE e o MTE/FAT, com a participação da Secretaria Estadual de Trabalho e Ação Social, em que foram enfatizadas as condições heterogêneas e sempre precárias em que ocorre a grande maioria dos trabalhos de Pesca e Mergulho Profissionais no Brasil. A partir daí, iniciou-se a mobilização para o planejamento, elaboração e execução do programa a seguir. PROGRAMA NACIONAL DE SEGURANÇA, SAÚDE E MEIO AMBIENTE DE TRABALHO NAS ATIVIDADES DE PESCA E MERGULHO PROFISSIONAIS - ÁCQUA FÓRUM Justificativa O Brasil, em função de suas dimensões continentais e seu privilegiado litoral, com 9.200 km de extensão e maior potencial hídrico do planeta, possui características que favorecem extraordinariamente o desenvolvimento e 300 exploração das Atividades de Pesca e Mergulho Profissionais, sejam de subsistência, comerciais, industriais ou de pesquisa, atividades que absorvem seguramente o maior contingente de trabalhadores do País. Apesar desse invejável quadro, pouco se fez para o desenvolvimento de forma efetiva e plena desse potencial, seja como meio de produção ou de recursos humanos, dentro de um contexto de Desenvolvimento Sustentável Social e Ecologicamente Correto. Temos no Setor Petrolífero/Off--Shore o que há de mais moderno em tecnologias de exploração, produção e serviços, em contrapartida com um setor pesqueiro nitidamente defasado, o que ressalta o padrão de contrastes que caracteriza a sociedade brasileira. Dispomos, nesses setores exemplificados, de uma interface nada desejável, a desconsideração com o elemento humano. São insípidas as iniciativas para garantir a segurança e a saúde dos trabalhadores nessas áreas. Deve-se hoje a esses profissionais grande parte das tecnologias desenvolvidas, especialmente quanto ao mergulho profundo por saturação e atividades de robótica, nas quais somos recordistas mundiais em permanência, freqüência e profundidade de trabalho, com 320 e 3.000 metros, respectivamente. No extrativismo mineral - Garimpo de Mergulho - atividade que agrega milhares de trabalhadores, em total precariedade e carência de formação básica, condições de trabalho e segurança, os dados estatísticos apontavam, na década passada, um mergulhador morto por dia em acidente de trabalho, somente no Rio Madeira. Essa projeção, que não contempla as doenças ocupacionais, atualmente é ampliada, em função do avanço e pulverização dessa atividade em vários Estados da Federação, sobretudo nas Regiões Norte e Centro-Oeste. Nas Atividades Subaquáticas voltadas ao Setor Técnico-Comercial, estamos vivenciando um momento crítico, semelhante aos já enfrentados pelos países que desenvolveram as melhores legislações sobre segurança e saúde ocupacional nessa área, como a Inglaterra, Noruega e Canadá, que se tornaram referência, por meio de programas que beneficiaram não só a atividade de mergulho comercial, como todos os demais setores. A similaridade temporal com o período anterior a essas legislações é patente, pela freqüência de acidentes graves e fatais. Somente nas atividades de mergulho da Bacia de Campos - área de segurança nacional convivemos com índices cinqüenta vezes maiores que as projeções oficiais anuais de mortalidade em nosso país, onde, resumidamente, os fatores causais são: má-formação profissional, legislação ultrapassada e fiscalização inadequada e, ainda, a necessidade de impor normas e padrões internacionais no exercício dessas atividades. 301 Na atividade lagosteira, um fator relevante, de características trágicas, é a interação mergulho x pesca, em que se dispõe de dados sobre os últimos dez anos, indicando que, apenas nos Estados do Rio Grande do Norte e Ceará, ocorreram mais de duzentas e quarenta mortes e cerca de dez mil vitimados por doenças descompressivas, que produziram um exército de inválidos paraplégicos e tetraplégicos - gerando graves seqüelas sociais. Na Arte da Pesca, especialmente As Artesanais, não se dispõe de dados para a formatação de um processo estatístico sobre doenças ocupacionais e acidentes de trabalho. As informações sobre essa atividade, a organização do trabalho e as fases do processo produtivo, visando a identificar seus fatores nocivos, têm um caráter coloquial, a partir de relatos informais de pescadores. Dispõe-se de conhecimento sobre graves seqüelas de caráter osteoarticular (reumatismo; artrites e outras), intoxicação por gases ou fumos, lesões dermatológicas (câncer, dentre outras) decorrentes de intensas exposições aos diversos agentes presentes. A mesma situação teremos em relação aos acidentes de trabalho, tanto na pesca embarcada, como na costeira, ou mesmo nos processos de desembarque e beneficiamento. Fundamentação legal, No cumprimento de suas atribuições, o Ministério do Trabalho e Emprego regulamentou a Lei 6.514/77, pela Portaria 3.214/78, editando as Normas Regulamentadoras, que estabelecem padrões mínimos de segurança e saúde a serem observados nas diversas atividades de trabalho. As NRs, com suas constantes revisões e atualizações, constituem o melhor instrumento normativo a serviço da segurança e da saúde dos trabalhadores, servindo como parâmetro para as ações da administração pública, bem como para os representantes de empregados e empregadores. Entretanto, apesar dos constantes estudos voltados para a atualização das NRs, elas até hoje não contemplam a atividade da pesca profissional, que permanece carente de uma regulamentação especial. A atividade de mergulho profissional está disciplinada pela Portaria n.° 24/83, que determinou a redação do item 2 - Anexo VI da NR-15, que não contempla adequadamente as diversas especialidades das atividades de mergulho, como: comercial, científico, recreativas, pesca, dentre outras. Além disso, a norma está muito defasada em relação à tecnologia atualmente empregada no mergulho. Ao tempo da referida Portaria os mergulhos no Brasil não ultrapassavam a profundidade de 180 metros, enquanto hoje são realizados mergulhos de até 320 metros de profundidade, adotando-se uma regula- 302 mentação provisória, estabelecida por meio de negociação entre os sindicatos e sancionada pela Delegacia Regional do Trabalho e Emprego do Estado do Rio de Janeiro - DRT/RJ, pela Portaria 88/90. O Ministério do Trabalho e Emprego, ao cumprir a sua missão de editar normas de segurança e saúde dos trabalhadores, enfrenta um grande desafio imposto pelo fenômeno da globalização da economia mundial, qual seja: estabelecer padrões de segurança e saúde do trabalhador compatíveis com as normas internacionais, levando ainda em consideração os fatores relativos à tecnologia aplicada e aos requisitos de proteção ao meio ambiente. Considerando que o índice de acidentes e de doenças ocupacionais nessas atividades é muito alto, causando a morte de muitos trabalhadores, o custo gerado por esses infortúnios acaba sendo suportado por toda a sociedade. De um lado na forma de benefícios da Previdência Social e, de outro, por meio de atendimentos do Sistema único de Saúde. Além de constituir uma verdadeira tragédia humana, esse fenômeno disfarça os seus custos, distribuindo-os entre os orçamentos dos Ministérios da Saúde e da Previdência Social. Em circunstâncias como essa, o investimento na prevenção de acidentes e doenças ocupacionais torna-se um imperativo de ordem pública, a ser promovido pelo Governo Federal e implantado com a participação da sociedade civil, em caráter de urgência, procurando obter resultados imediatos que façam reduzir os índices alarmantes. Desenvolvimento do Programa Ácqua Fórum O Programa Ácqua Fórum está iniciando o seu desenvolvimento em âmbito nacional, com o objetivo de investigar, diagnosticar e interagir nas condições concretas que interferem na relação processo de trabalho x processo saúde/doença, nas atividades da pesca e do mergulho profissionais. Para a operacionalização do Programa, primeiramente, está sendo constituído um Grupo de Trabalho com Técnicos das diversas Unidades Regionais da FUNDACENTRO, que se reunirão periodicamente para a consolidação do Programa, bem como para definição de estratégias de atuação, acompanhamento e avaliação das ações. Está também embutida, na filosofia do Programa, afigura da PESSOA COMPETENTE, cujo saber profissional é determinado pela formação, treinamento e experiência. O Programa ÁCQUA FÓRUM está iniciando as suas atividades com quatro linhas gerais de ação. 303 O passo inicial será o de levantamento das reais condições de trabalho que envolvem as atividades de pesca e de mergulho profissionais. Esses segmentos concentram o maior contingente de mão-de-obra no País, envolvidos diretamente na geração de riquezas e alimentos, contribuindo com uma parcela significativa do Produto Interno Bruto (PIB) Nacional, além de deter parte do conhecimento fundamental à utilização racional dos recursos sustentáveis no Brasil. Salvo algumas ações isoladas, não existem pesquisas, estudos ou dados estatísticos confiáveis para o conhecimento das condições de trabalho que envolvem os trabalhadores nas atividades de pesca e mergulho profissional, principalmente no tocante à segurança e a saúde desses trabalhadores. A grande defasagem e o descumprimento da legislação, aliados a esse grande contingente de profissionais expostos a riscos em suas atividades laborais, justificam o desenvolvimento de pesquisas para identificação dos vários tipos de atividades, condições de trabalho, o perfil desses trabalhadores e de como eles se organizam socialmente, visando, além do diagnóstico, à intervenção nas condições encontradas. Essa linha de ação tem como objetivos o levantamento do quadro real nas atividades da pesca e mergulho profissional, interferindo nas condições encontradas, por meio de ações que visem, além da segurança e saúde do tra balhador, o resgate de sua cidadania; diagnosticar as condições sobre as quais se desenvolvem essas atividades e promover a reflexão e o aprofundamento das discussão dos problemas vivenciados em relação ao trabalho, saúde e educação, envolvendo o governo, empresários e trabalhadores, possibilitando uma mobilização da sociedade quanto aos problemas encontrados e à busca conjunta de soluções alternativas. Como metodologia, está sendo realizada a pesquisa bibliográfica/documental, recolhendo, analisando e interpretando as contribuições teóricas já existentes; um levantamento das entidades e/ou órgãos com algum envolvimento nessas atividades; contatos, reuniões e algumas palestras com autoridades e lideranças naturais de regiões e colônias de pescadores, para apresentação da proposta do Programa e levantamento de expectativas em torno das propostas de trabalho apresentadas; um banco de imagens com fotografias de situações de trabalho (principalmente na pesca), estando prevista a edição de um vídeo sobre as atividades da pesca e também do mergulho. Além disso, estão previstos reuniões técnicas, oficinas, fórum de debates, etc. Será iniciada também uma pesquisa para traçar o perfil do trabalhador na pesca e mergulho profissionais, visando a contribuir para termos um quadro mais preciso desse trabalhador, como profissional e cidadão. O estudo será realizado pela pesquisa-ação, pela qual os pesquisadores não participarão somente com 304 levantamentos dos problemas, mas procurarão desencadear ações e avaliá-las em conjunto com a população envolvida. Outra linha de ação que já está sendo desenvolvida é a investigação e análise dos acidentes e doenças do trabalho, graves e fatais, ocorridos na pesca e mergulho profissionais, que busca investigar, analisar e tabular os acidentes e doenças ocupacionais ocorridos nessas atividades, com a finalidade de subsidiar pesquisas estatísticas e banco de dados, principalmente levando em conta que quase não existem dados oficiais sobre essas atividades profissionais e, principalmente, embasar ações do próprio Programa Ácqua Fórum. Serão pesquisados, nas entidades de classe, órgãos do governo, empresas, meios de comunicação em geral, dados de acidentes e doenças graves e fatais ocorridos, que serão analisados e investigados, levantando-se as causas e circunstâncias que determinaram a ocorrência desses fatos, propondo medidas que evitem novos acontecimentos, tabulando os dados obtidos, criando uma estatística e um banco de dados sobre o assunto. Com base nessas duas linhas de ações anteriores, serão realizadas Ações Específicas voltadas à Segurança e Saúde do Trabalhador nas Atividades de Pesca e de Mergulho Profissionais. Apesar da proposta inicial de estudos e pesquisas para o conhecimento do universo de situações, dentro do cenário nacional, alguns pontos considerados críticos nas atividades de pesca e de mergulho já são amplamente conhecidos. Além disso, as comunidades e seus agentes sociais envolvidos detêm demandas específicas para as situações já identificadas. Essas condições críticas necessitam de tomada de ações que possibilitem a redução drástica dos acidentes e a minimização dos riscos, sejam estes de insalubridade e/ou penosidade nas situações encontradas. Com base nisso, estão previstas ações que busquem a interação com segmentos envolvidos e responsáveis por essas atividades e atendimento a demandas específicas desses trabalhadores, mediante ações assistenciais, educativas e de conscientização, entre outras (realização de cursos, palestras informativas, etc.). Para o próximo triênio - 2001 a 2003 - estão previstas: campanha para divulgação de informações sobre segurança e saúde do trabalhador, edição e distribuição de vídeos e cartilhas voltados para os trabalhadores da pesca e do mergulho profissionais, entre outras ações). Perpassando os conhecimentos gerados pelas três linhas de ação já mencionadas, haverá, então, a adequação e/ou elaboração de Legislação Específica para a Área de Pesca e Mergulho Profissional. Na realização do Projeto Desenvolvimento Profissional Subaquático - RIO DPS’98 e do Fórum Continuado - RIO DPS’99, os acidentes e doenças 305 ocupacionais foram exaustivamente discutidos, analisados e comparados a situações similares, no exterior. Dentre os dados levantados, a informação mais significativa foi que, em algum momento, vários países enfrentaram as situações atualmente encontradas no Brasil, no que diz respeito aos altos índices de acidentes nas atividades de pesca e de mergulho profissionais. Após vários estudos, constatou-se que as principais causas eram a deficiente formação profissional, aliada a uma legislação e fiscalização ineficientes e/ou inadequadas. Como solução encontrada, foram realizadas revisões e atualização na legislação e na formação desses profissionais, por meio de Grupos de Trabalho, comissões e Comitês Técnicos, formados por pessoal reconhecidamente competente e, em curto espaço de tempo, conseguiram a redução drástica do número de acidentes de trabalho. No Brasil, a Norma do Ministério da Marinha, do Departamento de Portos e Costas - NORMAN 15/DPC-MM, que trata das atividades de mergulho, foi idealizada sem a necessária participação dos profissionais da área. A Norma Regulamentadora n.° 15 do Departamento de Segurança e Saúde do Trabalhador do Ministério do Trabalho e Emprego - NR-15/MTEDSST, em seu anexo 6, encontra-se completamente desatualizada, devido aos avanços da tecnologia e às profundidades de trabalho atingidas. No caso da pesca, a situação é mais grave, não existindo uma legislação específica que contemple esses profissionais. Além disso, no processo atual de globalização da economia internacional, o atendimento a padrões do tipo: ISO, OSHA, HSE, dentre outros, é uma exigência das empresas multinacionais, sendo considerado fator primordial para a garantia de postos de trabalho para os profissionais brasileiros. Diante desse quadro, torna-se imprescindível a revisão/elaboração das legislações específicas, assegurando padrões internacionais, principalmente em Segurança e Saúde do Trabalhador, visando, assim, à redução imediata dos acidentes e doenças ocupacionais nessas atividades. Essa ação objetiva elaborar ou adequar uma legislação específica para as atividades profissionais de pesca e de mergulho, buscando atender a padrões utilizados internacionalmente, na área da segurança e saúde do trabalhador. Como metodologia, estão sendo procedidos: um levantamento e análise de documentação e legislação existente (nacional e internacional); formação de um Grupo de Trabalho envolvendo os diversos segmentos diretamen te interessados no assunto, incluindo consultores especialistas; criação de um banco de dados sobre legislação; elaboração de propostas e discussão da legislação com a coletividade. 306 Essas linhas de ação (ou projetos) são encadeadas, ou seja, complementamse, formando um elo na forma de atuação e objetivos. O grande desafio será o de interferir nesses ramos de atividades, melhorando e/ou eliminando os riscos de acidentes e de doenças ocasionadas pelo trabalho que, conforme reconhecido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), estão entre as profissões mais perigosas, vitimando milhares de trabalhadores por ano. É preciso dedicar às atividades profissionais de pesca e de mergulho a mesma atenção que recebem as demais atividades de trabalho no Brasil. Últimas considerações De acordo com o “Relatório do Grupo de Trabalho - Fiscalização do Trabalho em Atividade Pesqueira”, em reunião realizada em maio de 2000, temos: Num levantamento preliminar feito com base nos dados informados na RAIS de 1997, observamos um total de apenas 4.547 (CNAE - 0511) pescadores registrados em todo o Brasil, o que representa certamente um número irrisório de registros frente ao contingente real de trabalhadores empregados na capturado pescado. Um outro dado chama atenção para o descontrole deste setor frente a suas atribuições sociais e indiretamente reafirma a suspeita de subregistro: informações obtidas no Relatório de Indicadores de Acidentes do Trabalho - 1997 elaborado pelo MTE/SIT/DSST com base nos dados informados pelo INSS, o número de benefícios concedidos por acidentes de trabalho são bastante reduzidos e não condizem com o risco potencial que representa a captura de pescado no mar, o que nos leva a concluir que há fortes indícios de subnotificação também para os acidentes de trabalho na pesca... Da mesma forma, o PNADI98 (IBGE) aponta um índice de informalidade do trabalho de 83,58% nas atividades de pesca, reforçando os indícios de subregistro: Dessa forma, pode-se constatar que, no Brasil, a informalidade dos trabalhadores na área da pesca é quase total, e os pescadores não têm acesso às proteções trabalhistas e previdenciárias, ou mesmo às normas de segurança e 307 saúde no trabalho. Normalmente, são formados grupos de pescadores necessários para determinada tarefa e estes são contratados verbalmente, sem nenhum vínculo ou contrato trabalhista. Assim, todas as propostas de intervenção, de ações necessárias nessa atividade devem passar por uma sensibilização e conscientização desses profissionais para os seus direitos mais elementares, exigindo, quase sempre, so luções tanto mais concretas quanto mais simples e práticas. A sensibilidade deverá ser também um dos requisitos para os profissionais - pesquisadores que estarão atuando com esses trabalhadores em todos os níveis das ações. Apesar de toda a precariedade que envolve essa atividade, ela representa um grande potencial para gerar empregos e também melhorar a balança comercial do País, conforme depoimento do Ministro da Agricultura, Dr. Pratini de Morais, no jornal “O Globo”, de 10 de outubro de 1999: “Os desafios são elevar em 71 % a produção da pesca e da aquicultura, aumentar as exportações em 642% e criar cerca de 900 mil postos de trabalho”. Agradecimentos Ao higienista da FUNDACENTRO, Augusto Antonio Barroso Madruga; ao Grupo Técnico de Trabalho PROJETO DE DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL SUBAQUÁTICO - DPS; em especial aos mergulhadores: Adelson D'Araujo Santos Júnior, Hélio Carneiro Duarte Feliciano e Raul Cerqueira. Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. 308 ÁCQUA FÓRUM - Programa Nacional de Segurança, Saúde e Meio Ambiente de Trabalho nas Atividades de Pesca e Mergulho Profissionais - texto base. BARRETO; Flávia O. Histórico do trabalho subaquático - relatório inicial. Rio de Janeiro. BARROS, Cid. Texto sobre legislação. Rio de Janeiro: SINTASA. DUARTE, Ricardo Garcia. O desgaste no trabalho em ambientes hi perbáricos (a dura luta cotidiana dos trabalhadores em atividades su baquáticas e afins). Rio de Janeiro. RAMAZZINI, Bernardino. As doenças dos trabalhadores. São Paulo: FUNDACENTRO, 1999. Relatório do Grupo de Trabalho “Fiscalização do Trabalho na Atividades Pesqueira” - reunião de maio/2000. O EXERCÍCIO DA MEDICINA DO TRABALHO: UMA NOVA VISÃO José Júlio de Andrade Fonseca 1 Maria Cristina Palhares Machado2 Introdução Alegoria para se comprender o Brasil D eitado eternamente em berço esplêndido, embalado pela doce brisa do Atlântico e envolto no perfume das flores e dos frutos que abundam neste paraíso d’além-mar, terra que em se plantando tudo dá, vê-se, de repente, este doce paraíso obrigado a acordar bruscamente do seu beatífico e inocente sono. Chega-lhe subitamente ao limiar da alcova onde, languidamente, dormia o Velho Mundo com suas naus imponentes, sua cruz, sua espada, sua imensa pobreza de recursos naturais e - paradoxalmente - com sua arrogancia e infinita capacidade de rapina que até hoje nos impressionam. Eram os novos bárbaros que aqui aportavam. Esboroa-se, assim, de vez o suave sono em que dormia Pindorama e um brutal jogo de forças começa entre tribos autóctones, portugueses, franceses, ingleses, holandeses e africanos, gerando esta massa imensa, fantástica, deslumbrante e contraditória chamada Brasil, que acaba ainda agora de comemorar seus quinhentos anos. Essa idade, comparada aos cinco, seis mil anos do Oriente e da velha Europa, dá-lhe o status apenas de uma criança leve, travessa, promissora. No máximo, um pré-adolescente... Como toda criança, todo pré-adolescente, insiste nosso país em esticar suas horas de sono, dormir até tarde e, vez por outra, é atabalhoadamente acordado pelos berros do princípio da realidade que, como uma mãe ou pai bravos, trombeteiam-lhe aos ouvidos: - Acorda, preguiçoso. É hora de trabalhar, estudar. Trate de arrumar seu quarto, sua vida e partir pra luta. Deitado aí, como um autêntico filhinho-depapai da natureza que lhe dá tudo de bom em abundância: flores, frutos, clima ameno, um eterno verão e que afasta de sua vida terremotos, furacões, 1 Médico (UFMG-1974) - Ginecologista, Obstetra, Psicanalista, Escritor e Médico do Trabalho do SESIFIEMG - Belo Horizonte - MG. 2 Médica (UFMG-1974) - Psiquiatra, Médica do Trabalho, Gerente do Saúde do SESI-FIEMG - Belo Horizonte - MG. 309 invernos impiedosos, você acabará por não dar nada na vida. É preciso reagir, levantar, construir seu futuro através da construção do presente. E assim caminha o Brasil: maravilhoso, promissor, mas ainda criança, com muita vontade apenas de brincar e dormir e é acordado, vez por outra, pela gritaria de um mundo em conflito que bate e mesmo esmurra sua porta sonhando em tomar seu quarto, suas riquezas, seu imenso potencial de benesses naturais. A última gritaria que lhe atingiu como trovão os ouvidos, obrigando-o a dizer para consigo mesmo, ainda sonolento, “É... agora vou ter que acordar de vez”, foi a chamada globalização... Esse fenômeno, cada vez mais inexorável de alguns anos para cá, caracterizado pela queda do socialismo, internacionalização do capital, término da guerra fria, progresso rapidíssimo da melhoria dos meios de comunicação (fax, internet, fibra ótica, telecomunicações...) tornou o mundo cada vez menor, colocando países longínquos à distância apenas de um clic de mouse ou à discagem de um número telefônico. E aí o Brasil, que ficava a 45 dias de nau ou caravela, longe, completamente longe do mar Mediterrâneo, onde vem acontecendo tudo de importante nos últimos cinco séculos, vê-se, de repente, próximo de todo o mundo, distâncias minimizadas, ainda meio de tanga, com a cara pintada de urucum, com a ivirapema nas mãos, perplexo ao lado de computadores, satélites, armas a laser e um jogo cruel neocolonialista, neoliberal, que ameaça sugar sua vida, sua paz, sua bucólica existência. Acabou definitivamente seu sossego. Sentese de novo como os membros das tribos primitivas que aqui viviam há dez, quinze mil anos com cultura própria, específica, equilibrada e que são invadidos, de repente, pela cruz, pela espada, pelo facão, pela pólvora e pelo sal. Essas quinquilharias invadiram sua alma, sua vida e, por uma lei cruel do embate entre as culturas, ele nunca mais será o mesmo. Ouve, então, no íntimo de seu ser, a frase que ressoa como um xequemate: Adapte-se ou morra! De novo o Brasil vê-se dividido entre sua natural tendência para o ócio, o bucolismo, o sono e o confronto com as novas caravelas da globalização, capitaneadas pelos velhos europeus com sua velha miséria de recursos naturais, sua velha ganância, sua velha arrogância e sua velha e imensa capacidade de rapina. E - pior - agora apoiados pelos herdeiros de um dos mais extorsivos impérios que a história humana já conheceu, o império britânico, que passou a espada espoliadora da dominação aos seus filhos, os norte-americanos. De novo “adapte-se ou morra” é a frase que entra pelos nossos ouvidos e nossos corações nesta terra de Vera Cruz. 310 Fundamentação teórica Por que todas essas considerações aparentemente esdrúxulas, aparentemente desconectadas do tema específico que nos propusemos discutir e que é a nova visão do exercício da Medicina do Trabalho? A resposta a essa questão é simples: para mudar alguma coisa, é preciso começar primeiro por compreender... E não é possível compreender os meandros das intrincadas questões da saúde e segurança do trabalho no Brasil sem conhecer um pouco da nossa história, sem refletir um tanto sobre capitalismo, socialismo e sobre aspectos da dinâmica do conflito capital/trabalho em nosso meio. Por isso esta parte de fundamentação teórica será um pouco mais extensa para que se compreenda, ao final do texto, o que chamamos de nova visão do exercício da Medicina do Trabalho nas empresa e por quê. Faremos esta fundamentação teórica em forma de abordagens específicas de determinados temas, aparentemente isolados uns dos outros, mas que, ao foral esperamos - formem um harmonioso mosaico esclarecedor do que pretendemos fazer compreender. Os temas serão discutidos a partir de algumas premissas específicas, tentando responder à pergunta: o que seriam empresas inteligentes e competitivas no terceiro milênio? Iniciemos pelas seguintes afirmações: • • • • • O mundo nao é dividido simplesmente entre “bons” e “maus”, ou seda: nós não somos sempre bons e os outros sempre maus, ou vice-versa. O mercado mundial tem lugar para todos. Basta trabalhar com qualidade, competência, vontade sincera de servir bem ao cliente e apurado senso de sociabilidade. Ética faz bem e, por incrível que pareça, traz dividendos no atual mundo globalizado. É preciso conhecer bem como se estrutura e como funciona o ser humano, pois é com ele que se trabalha nas empresas. Sua estruturação é, no mínimo, tríplice: biológica, psicológica e sociocultural. Capital e trabalho são interdependentes. Achar que o capital sozinho multiplica riquezas, ou que o trabalho não precisa do capital é ter uma visão simplista da realidade. As crenças e os valores culturais de um indivíduo, de uma empresa, de uma nação constituem enorme riqueza. Como, no entanto, a cultura é criada por seres humanos e não por anjos, carrega em si erros, li- 311 mitações, equívocos que podem trazer sofrimentos, emperramentos, atrasos. Conhecer as qualidades e os defeitos da cultura em que vivemos possibilitanos tê-la como aliada e não como sufocante e inibidora camisa-de-força. • Empresários não são sempre maus e egoístas e nem empregados são sempre bonzinhos e vítimas. Há anjos e demônios em ambos os lados. A realidade é que estão todos no mesmo barco e precisam todos sobreviver da forma mais digna e justa possível. São todos interdependentes. • Cada ser humano é o principal autor, promotor e gerente de sua saúde e de sua qualidade de vida no mais amplo sentido do termo. Não se deve ficar esperando passivamente que os chefes ou as autoridades façam isso por nós. Aprendendo com Monteiro Lobato: “Assim os diretores, os operários e o consumidor funcionam como sócios da empresa e nessa qualidade têm direito à participação nos lucros.” Pura verdade. Sem consumidores não há razão para a existência nem de empresas, nem de empresários e nem de empregados. Essa é a Força do cliente... Sem o empresário com seu capital, seu dinamismo, sua coragem de investir, de criar, de assumir riscos, as empresas não saem do papel. Sem os operários, os produtos não são fabricados nem os bens e serviços produzidos. O capitalismo exagerou o valor do capital e o endeusou. O socialismo exagerou o valor do trabalho e também o endeusou. Empresas realmente maduras e competitivas já compreendem que não se deve ficar nem tanto ao mar nem tanto à terra: a imensa maioria já percebeu, por exemplo, a força e a importância do cliente. Quanto à valorização de seus funcionários, no entanto, há ainda uma longa trajetória a ser feita por muitas empresas. Fazem parte da lista das maiores e melhores empresas do mundo publicadas pelas revistas Forbes e Fortune, todo ano, somente aquelas que, mesmo sem nunca terem lido Monteiro Lobato, agem conforme o seu pensamento: ninguém é melhor ou pior. Todos são interdependentes, empresários, empregados e clientes. Nenhuma empresa será realmente competitiva sem um processo de valorização e respeito adequado ao consumidor, ao empresário que a dirige e subsidia com seu capital e ao operário que transforma projetos e capital em bens e serviços concretos. “- Ah, mas investir em qualidade e em aprimoramento do pessoal da 312 minha empresa vai atrasar a produção, principalmente se os cursos e treinamentos forem na hora do trabalho. Tudo isto custa dinheiro e o Brasil é um país pobre.” Há controvérsias... Pobre é a Inglaterra, com território minúsculo, onde chove e neva duzentos e oitenta dias por ano. Pobre é o Japão que não tem Floresta Amazônica, minas de ouro, nem Pantanal Mato-grossense. Então, quem é realmente rico e quem é realmente pobre? A riqueza de uma nação é o seu povo. Eduque seu povo, invista nele, e ele será brilhante e encontrará todos os recursos para tirar da natureza, via trabalho, tudo o que precisa para viver bem e dignamente. Se a cultura da empresa ainda beira forte autoritarismo ou a noção equivocada de que ambiente de trabalho é só para trabalhar, trabalhar, produzir, produzir, deve ela se lembrar de que muitas de suas concorrentes já não pensam mais assim. Já entenderam que o tempo investido em aprimoramento e treinamento de seu pessoal é investimento mesmo, com retorno indiscutível de qualidade e produtividade e não investimento a fundo perdido. Faz parte do negócio dessas empresas reservar uma parcela anual significativa do tempo de trabalho de seus funcionários para cursos, treinamentos e melhoria de sua qualidade de vida. Pergunte, por exemplo, a qualquer uma das maiores quinhentas empresas do mundo se tudo o que foi dito acima é verdade ou mentira. Uma série de considerações a se fazer com os empresários seria: - Sua empresa é formada somente por máquinas de ferro e aço ou também por Máquinas Humanas? Sabe como funcionam as Máquinas Humanas também conhecidas como Seres humanos? Seres humanos são seres vivos, animais pluricelulares, pertencentes à espécie Homo sapiens sapiens. Existem no planeta Terra apenas há cem mil anos e de lá para cá não mudaram praticamente nada do ponto de vista físico nem mental. Se são seres vivos, animais, estão submetidos às mesmas leis básicas que na natureza regem a vida dos seres vivos e animais. Que leis são essas? Sobreviver e reproduzir Seres vivos, animais, são programados há milhões de anos pela natureza para sobreviver e reproduzir a qualquer custo, a qualquer preço. Só pensamos o tempo todo nestas duas coisas: sobrevivência e reprodução. A natureza deu para cada espécie animal ferramentas específicas que lhes garantem a sobrevivência e a reprodução. 313 As ferramentas que a natureza deu ao homem para sobreviver e reproduzir foram: evolução da posição de quadrúpede para bípede; liberação das patas dianteiras que se transformaram em hábeis mãos; aumento quantitativo e qualitativo do cérebro com acesso ao pensamento simbólico, à fala, à requintada capacidade de ensino e aprendizagem; surgimento do mundo psíquico e a capacidade para a cultura. Assim equipado, o homem, diferentemente dos outros animais, domina pelo trabalho, pela cultura, pela tecnologia, céus, terras e mares. Nem melhor nem pior que os outros animais. Diferente, apenas diferente. Já que na empresa existem seres humanos, é importante saber que, para se lidar com eles com sucesso, é preciso saber como funcionam do ponto de vista biológico, psicológico e sociocultural. O mundo biológico Seres humanos são profundamente iguais aos outros animais em situações críticas: na hora de defender os filhotes, na hora de praticar sexo, lutar pelos parceiros sexuais, pelo território ou pela defesa da própria vida. São, por outro lado, profundamente diferentes quanto ao mundo psicológico, às emoções, à criatividade artística e quanto à sua maravilhosa capacidade de produção de bens e valores culturais. Outros animais não criam religiões, costumes, crenças, mitos, folclores, valores. Somente o ser humano é capaz disso. A realidade da estruturação animal do ser humano é tão marcante que, na luta pela sobrevivência, fica muitas vezes patente o conflito imenso entre essa realidade e o seu recente acesso à razão. Por isso, pensamos que uma boa forma de se falar sobre este conflito animalidade/razão é escrever a famosa frase de Aristóteles sobre o ser humano da seguinte forma gráfica: “O homem é um A n i m a l racional.” O mundo psicológico Do ponto de vista psicológico, como é o animal humano? Cérebro grande, expandido, com acesso à fala, ao pensamento simbólico, às fantasias, aos desejos conscientes e inconscientes, o animal humano ganhou de presente da natureza o chamado aparelho psíquico, que é uma espécie de segunda natureza do seu ser. Traduzindo numa linguagem bem simples o que é bem comum encontrar nos mais profundos estudos de Psicologia, poderíamos dizer que o cére- 314 bro humano seria mais ou menos como um computador que guarda em seu drive C (o inconsciente) todo o arquivo de suas memórias e estímulos afetivos recebidos do mundo interno e do mundo externo durante toda a vida do indivíduo. E tudo isso aparece no monitor que é a fala, o sonho, os atos falhos e os sintomas bem descritos pela Psicopatologia. Segundo Freud, o maior e mais genial estudioso e decodificador do aparelho psíquico, este é todo impregnado por duas coisas importantíssimas: os primeiros e mais fortes relacionamentos afetivos com nossos pais e nossas mães e com tudo que se refira à sexualidade humana. Projetamos então, inconscientemente, nas pessoas com quem convivemos, sejam elas nossos patrões, empregados, filhos, amigos, autoridades, subalternos, todos os sentimentos básicos bem ou mal vividos na relação com nossos primeiros objetos de amor, que são nossos pais. Por isso, às vezes, nas relações sociais e de trabalho, não toleramos ordens vindas de ninguém, ou somos extremamente submissos, medrosos. Conhecer o mundo maravilhoso e assustador do psiquismo humano é muito importante para lidar com mais paciência e sabedoria com os outros e conosco mesmos. O mundo cultural O que é cultura? Quais suas características? Qual sua força e importância na trajetória do ser humano em sua passagem pela vida? Antes de falarmos em cultura propriamente dita, é preciso entender primeiro o que é capacidade para a cultura. Capacidade para a cultura, existente de forma muito precária em algumas espécies animais e incrivelmente bem desenvolvida apenas na espécie humana, pode ser definida como a capacidade para transmitir hábitos com portamentais aos outros não por via genética, mas por ensino e aprendizagem. É uma capacidade que lhe possibilita ir além das respostas estereotipadas dos instintos. Capacidade para a cultura é, assim, essa enorme facilidade de aprender e ensinar sempre, sempre, continuamente, e é também a capacidade de criar mitos, símbolos, valores, crenças, instituições que organizam, facilitam as chances de sobrevivência e reprodução da nossa espécie. E, então, o que é cultura? Cultura é a forma, a maneira singular, específica com que cada indivíduo, cada família, cada empresa, cada nação utiliza, instrumentaliza a capacidade para a cultura em seu nicho cultural específico. 315 Assim, cada indivíduo, cada povo, cada nação cria suas formas de ensinar e de aprender. Cria seus mitos, normas, leis, símbolos, valores que coordenam, facilitam sua forma de estar no mundo, sempre com vistas a otimizar suas chances de sobrevivência e reprodução. Cultura é uma ferramenta admirável dada apenas aos seres humanos para facilitar suas chances de sobrevivência e reprodução. É feita para ajudar, mas, às vezes, atrapalha, faz sofrer. Por que cultura às vezes atrapalha, ao invés de ajudar? Porque ela é criada por seres humanos. E seres humanos são humanos, não são anjos. Cometem erros, equívocos, contra-sensos. E aí vêm os sofrimentos e as bobagens de alguns aspectos da cultura: - Como não passei no vestibular, acho que vou cometer suicídio... (Estudante secundário no Japão). - Vou matar aquele estrangeiro que não quis dormir com minha mulher... (Chefe de tribo esquimó) - Fulano rouba, mas faz... (Zé-povinho brasileiro) E mais... Os valores e normas culturais são profundamente inconscientes, arraigados no mais profundo da mente humana, fazendo com que as pessoas ajam automaticamente, por vezes até como robôs. Cultura é forte, inconsciente. Seus aspectos positivos e negativos precisam ser bem conhecidos. Só assim ela será extremamente útil na vida das pessoas e das instituições e não uma sufocante e limitadora camisa-de-força... Cultura brasileira Se a cultura é assim tão forte, tão marcante, vale perguntar: como é a cultura brasileira, quais suas qualidades e suas limitações? A cultura brasileira é uma das mais ricas e fascinantes do mundo. É absolutamente singular e, apesar do nosso crônico e doentio complexo de inferioridade diante dos povos do Primeiro Mundo, somos uma das culturas mais queridas e valorizadas por esses mesmos povos. Só nós é que não sabemos disso. São qualidades da nossa cultura: alegria de viver, afetividade, amor pelas crianças, criatividade, facilidade de adaptação a situações novas, bom humor, sensibilidade, gosto pelo trabalho. São limitações do nosso modo cultural de ser: 316 • As cinzas ainda quentes da recém-extinta escravidão: “Ele é um negro de alma branca...” • Imediatismo : “Eu invisto hoje, mas quero começar a ganhar ontem...” • Falta de hábito de planejamento: "Ah, pode deixar para a última hora. No final é tudo mais emocionante...” • Ausência de hábito de assumir responsabilidades: “No Brasil quem fala não escreve. Quem fala e escreve não assina. Quem fala, escreve e assina entrega o cargo para o substituto...” • Falta de hábito de cumprir leis: “Deixa primeiro o fiscal chegar...” • Satisfação com o “mais ou menos”, falta de costume em procurar a excelência máxima: “Se o banquinho fica em pé em três pernas, pra que colocar a quarta? (Jeca Tatu, o sumo sacerdote da lei do menor esforço) • Desconhecimento ingênuo dos reais processos dos bastidores de nossa história: “A princesa Isabel foi tão boazinha com os escravos...” Se tivermos uma visão crítica de nossas limitações culturais, chegaremos rapidamente a ser a grande nação de sucesso que sempre merecemos ser. Cultura brasileira e gestão empresarial Compreendendo bem o que é cultura, sua força, características e que cada indivíduo, cada família, cada empresa, cada nação tem sua cultura própria, cabe perguntar: como é, em linhas gerais, o modo cultural de ser de empresários e empregados na lida diária dentro das empresas brasileiras? É muito interessante, rico, dramático e às vezes tragicômico. É preciso, antes, lembrar algumas realidades históricas que fizeram o arcabouço, o leito onde repousa a identidade da nação brasileira. O Brasil, como bem sabemos e como bem nos mostram grandes escritores e pensadores, tais como, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Darcy Ribeiro e outros, é uma nação ainda em plena efervescência e formação. O Brasil, do ponto de vista de relações e estratificações sociais, não mudou muito de 1500 para cá. Ainda estamos bem dentro de uma espécie de Casa-grande & senzala. Há ainda um certo encantamento e respeito exagerados pelo braço forte dos senhores. A grande massa de brasileiros, com cidadania ainda embrionária, fica muitas vezes satisfeita apenas com as migalhas que caem das fartas mesas dos ricos. Verdadeira democracria entre nós é ainda uma espécie de utopia apenas sonhada. Nosso país é, em certos aspectos, uma espécie de país do faroeste, onde 317 impera a lei para o que saca o revólver primeiro. Para os ricos e bem-nascidos tudo, inclusive posição acima da lei; para os pobres e remediados, na melhor das hipóteses, a lei. Isso, em parte, deve-se também às marcas ainda difíceis de eliminar os trezentos e cinqüenta anos de escravidão nos quinhentos anos de nossa história. Pois bem, com tudo isso, um autoritarismo crônico, a lei do mais forte imperando, o brasileiro, para sobreviver, tem que assumir externamente uma fachada de “Sim, senhor. Sim, senhor”, o tempo todo, mas, nos bastidores, escamoteia a lei, vocifera contra os senhores que o domina e boicota sistematicamente a força do dominador. Fica, então, uma guerra surda entre governo e povo, entre cobrança escorchante de impostos e empresários, entre estes e os empregados e assim por diante. É uma espécie de lamentável forma de opressão em cascata. E, assim, como ficam então as coisas dentro da empresa brasileira? Há sempre honrosas e admiráveis exceções, mas, do ponto de vista dé muitos empresários brasileiros, encontramos as seguintes idiossincrasias. Comportamento centralizador e visão estreita do processo corno um todo, - Quem manda aqui sou eu... - Olha'í e compra o mais barato... - Só faço o que for estritamente obrigatório por lei e mesmo assim se não tiver outra forma... -Ah, se eu pudesse trabalhar só com máquinas... -Treinamento no horário de trabalho? Nunca! Vai atrasar a produção... - O Brasil é bagunçado assim mesmo... - Se elogiar, eles pioram e vão pedir aumento... Desconhecimento do potencial de inteligência dos funcionários e de capacidade de dar brilhantes sugestões ao aprimoramento do processo pr tivo da empresa: - Empregado não pensa. Faz... -Ao entrar na empresa, deixe ó cérebro e a família,lá fora.. Essa é a fala secular, tonitruante, dos senhores de engenho vinda da Casagrande. E as idiossincrasias dos empregados também existem? Sem dúu e como... 318 Vítimas de todo um processo brasileiro ainda injusto, confuso, muitos empregados transitam pelos seguintes equívocos e ressentimentos: - Vida boa é a do patrão. É só mandar... - Não tenho nada a ver com isto. A empresa não é minha. Está fora da minha área de atuação... - Mais treinamento? O que que eu ganho com isto?... Essa é a fala ressentida, revoltada, dos que vivem ainda numa espécie de senzala. E assim ficam, muitas vezes, patrões e empregados brigando, brigando, num processo meio autofágico que pode comprometer o bem-estar e mesmo a sobrevivência da empresa. Os conflitos básicos da relação capital/trabalho Nos últimos séculos, com as mudanças cada vez mais rápidas dos meios de produção e com nossa atávica herança animal de bruta dominação destes meios e controle egoísta de tudo, a humanidade tem passado por dificuldades quase intransponíveis. Os grandes contendores da arena em que a humanidade vem se debatendo, à procura se sua própria sobrevivência e de sua paz, são o capitalismo e o socialismo. O socialismo propõe uma socialização dos meios de produção e um controle desses meios pelos operários que fazem realmente o trabalho de produção de bens e serviços. Propõe ainda uma justa divisão das riquezas, socializando tudo. O capitalismo tem como máxima principal o lucro pelo lucro e o mais rapidamente possível. Ao contrário do socialismo, propõe o aumento cada vez maior do capital, sua concentração nas mãos de apenas alguns e um controle e apropriação da força de trabalho dos operários. Ambos trouxeram avanços inegáveis para a humanidade: o socialismo na defesa de uma eqüidade e equilíbrio social cada vez maiores; o capitalismo na sua capacidade imensa de gerar riquezas, tecnologia, conforto. Geridos, contudo, pelos seres humanos, ambos os sistemas trazem em si também suas contradições e seus sofrimentos: o socialismo descambou para processos terrivelmente totalitários, com seus Gulags, seus campos de con centração, culto à personalidade, perseguição implacável aos dissidentes, massacres sem fim; o capitalismo, visando apenas ao lucro pelo lucro, criou toda uma teia antiética e amoral para conseguir seus objetivos. Seu poder 319 imenso de gerar riquezas é alcançado, por exemplo, com total desprezo pela natureza, pelo meio ambiente e pelo ser humano. Apoiou em sua história; ditaduras de todos os tipos e qualidades para defender o interesse econômico de suas grandes empresas multinacionais. Exímio manipulador da opinião pública, consegue vender, como se fossem ouro, os piores e mais nocivos produtos e valores. Até quando será preciso continuar a engolir, sem senso crítico e sem respeito e cuidados para conosco mesmos, todas as balelas da esquerda e da direita, do socialismo e do capitalismo? Por isso, seria interessante tentar compreender com mais clareza este sistema socioeconômico no qual estamos inseridos e que, aparentemente, não tem mais oposição nem crítica oficial - o capitalismo. Capitalismo selvagem x social-democracia O capitalismo, sobretudo em nosso país, tem sido exercido de uma forma extremamente cruel, predadora e até pouco inteligente, pois põe em risco sua própria sobrevivência. Não se trata aqui de ser bonzinho e nem de coro; pactuar com deficiências de processo de qualidade, ou de achar que mesmo, os preguiçosos e comodistas devem ter as mesmas oportunidades dos que realmente têm como meta um aperfeiçoamento cada vez mais contínuo de seus bens e serviços. Não. Estamos falando de uma inteligência de processo, ou seja, rever as distorções que colocaram os donos do capital com todo o poder e o trabalho como vaca leiteira de quem se deve tirar tudo sem dar nada pratica, mente de volta. Aliás, nem com as vacas leiteiras de qualidade se faz isso. Elas são tratadas, pelos fazendeiros inteligentes, com o máximo de insumos, investimentos e cuidados. A pão-de-ló, como se diz na linguagem popular. O Brasil, que ficou muitos anos isolado do redemoinho do comercio mundial, com seus atavismos escravistas, fica surpreso ao ver, no atual processo de globalização, que a cultura e a mentalidade existentes em empresas multinacionais que aqui aportam é bem diferente das existentes em nosso meio. Elas tratam melhor, e de forma mais inteligente, seus empregados.Investem em cursos, aprimoramentos, aperfeiçoamentos. Colocam à sua disposição assistência de saúde, alimentação adequada, apoio psicológico, estímulo à qualidade de vida e ao convívio social. Não são perfeitas nem boazinhas, no mínimo, são inteligentes e, assim como ocorre na social-democracia sobretudo do Norte da Europa, já chegaram à conclusão, na prática, de que, se se fizer um meio-termo entre o capitalismo selvagem e o socialismo selvagem, as coisas andarão melhor para todo mundo. 320 O poder do conhecimento Hoje, a humanidade vem, felizmente, compreendendo que uma das mais admiráveis características humanas é sua capacidade refinada de contínua aprendizagem. Essa capacidade foi a grande ferramenta que a natureza deu somente ao ser humano, para ajudá-lo na sua complexa trajetória da luta pela sobrevivência. E mais do que nunca, nas últimas décadas, isso tem ficado cada vez mais patente: quem detém o conhecimento detém o poder. Outro conceito que está mudando vivamente é o de espaço escolar. Escola não é apenas aquele prédio público ou privado onde se vai para fazer tais e tais cursos, de dia ou de noite. Não. O próprio espaço familiar ou de convívio social é considerado escola. E aí entra inclusive o conceito cada vez mais presente de empresas como escolas. Isso mesmo. Toda a tendência no moderno mundo competitivo é ver a empresa como um espaço privilegiado para ser uma verdadeira escola para seus funcionários. Nos EUA e na Europa, há, literalmente, centenas e centenas de empresas que já criaram suas universidades próprias. Se formos pesquisar, ficaremos assustados ao ver como as maiores e mais bemsucedidas empresas do mundo colocam em seu planejamento, e o cumprem com fidelidade espartana, todo um projeto para propiciar a seus funcionários algumas horas por mês para cursos e treinamentos sobre os mais diversos temas, inclusive sobre cultura geral, política, além dos aprimoramentos técnicos específicos. Entenderam já que isso, ao invés de diminuir a produção, vai é tornar seu pessoal infinitamente mais capaz de ampliar sua capacidade mental e humana de criar e produzir. Aí, então, ficamos perplexos quando ouvimos vários empresários brasileiros que ainda têm coragem de dizer: “Retirar meus funcionários duas a três horas por mês da linha de produção para treinamentos e estudos? Nunca, isto só vai atrasar a produção...” A empresa como escola Local onde as pessoas passam em média oito horas por dia, extraindo dali o seu sustento diário e construindo o sonho de seus patrões, a empresa configura-se cada vez mais como um espaço privilegiado onde a aprendizagem pode e deve acontecer. Por isso, então, e sabendo que o trabalho humano é diferente do trabalho dos outros animais, extremamente mais rico, variado e complexo, e que, para ser bem exercido, exige contínuos processos de aprendizagem, é que a empresa pode e deve ser um espaço de verdadeira aprendizagem. 321 Além do mais, sabemos que hoje, mais do que “manter a qualidade”, é preciso “melhorar a cada dia a qualidade” dos bens e serviços produzidos. O Brasil muito lentamente vem compreendendo que o fator educação é extremamente importante na obtenção de maior produtividade e qualidade de vida de seus funcionários. Temos visto, já em nossos contatos com várias empresas, que os empresários começam a achar bem mais vantajoso ter pessoas mais estudadas para fazer trabalhos até muito simples. No entanto, por incrível que pareça, ouvem-se, ainda, por parte de muitos empresários, perguntas feitas em tom de surpresa: Mas o que a empresa tem a ver com educação, com escola? Empresa não é para produzir? Por que trabalhar com treinamentos, promoção e prevenção à saúde nas empresas? Isto não deveria ser feito em outros locais e pelo Estado? O que os empresários têm a ver com promoção e prevenção à saúde e segurança de seus funcionários? A função da empresa não é apenas de otimização da produção? Não seria perda de tempo, inadequação, tratar, dentro da empresa, com os funcionários, de temas, tais como: qualidade de vida, saúde e segurança no trabalho, prevenção de câncer, saúde mental, questões psicológicas do trabalho, sexualidade e saúde do ser humano, tabagismo, alcoolismo, e assim por diante? Ambiente de trabalho não é para trabalhar? Não seria um desvio de atividade e um gasto desnecessário de dinheiro usar o tempo da produção para discutir com os funcionários estes temas que não têm nada a ver diretamente com o trabalho? O que a empresa tem a ganhar com tudo isto? Na formação muitas vezes limitada de muitos de nossos empresários, até que essas perguntas fariam algum sentido. Não é de estranhar que eles levantem tais questões. Basta, no entanto, refletir com eles, com paciência e respeito, que estudos bem documentados no mundo inteiro mostram que, naquelas comunidades empresariais; onde se discutem continuadamente todas estas questões de qualidade de vida, saúde e segurança no trabalho, cidadania, etc., certos “milagres” acontecem: • a produção aumenta; • o absenteísmo diminui; • a empresa tem garantido o retorno dos investimentos em educação e treinamento de seu pessoal; 322 • os gastos com medicamentos e afastamentos por motivos de doença caem sensivelmente; • o ambiente de trabalho melhora: há menos tensão, menos estresse. Reina maior tranqüilidade na empresa; • o número de acidentes de trabalho e de suas naturais conseqüências é reduzido, tais como dias perdidos de trabalho e ressentimentos contra a empresa; • as ações jurídicas de funcionários contra a instituição empresarial diminuem, evitando muitos contratempos e agressão à imagem da empresa. Bastaria a constatação desses fatos (e contra fatos não há argumentos...) para nos convencermos de vez de que vale a pena compreender o mais rapidamente possível que a empresa é, sim, um espaço importantíssimo de contínuo ensino e aprendizagem. A realidade da globalização Longe, bem longe de onde acontece tudo de importante no mundo econômico, acordou o Brasil, de repente, assustado, de seu alienado e mortífero sono, com as pauladas da globalização. Esse processo de mundialização do capitalismo foi uma verdadeira porretada em nossa economia tupiniquim, acostumada com o “mais ou menos”, desconhecedora dos processos de qualidade, vendendo para um mercado exclusivamente interno e pouco exigente. Com a quebra de todas essas barreiras, a empresa brasileira não tem mais que competir somente com aquela do outro bairro ou da outra cidade, mas com as melhores do mundo, pois hoje já é possível comprar com bastante facilidade de uma fábrica da Suécia, do México ou do Japão. O empresariado brasileiro, por bem ou por mal, está tendo que aprender rapidinho todos os artifícios do mercado mundial. Assim, por mais criticas que a globalização possa merecer por se tratar, em certos aspectos, de uma nova manobra para as velhas táticas colonialistas do Primeiro Mundo, não há como negar que ela está sendo um verdadeiro vendaval que está soprando para o esquecimento e o fechamento todas aquelas empresas que não tiverem um nível adequado de qualidade, criatividade e produtividade para concorrerem na arena não do Brasil, mas do mundo inteiro. Ou se persegue o ideal de ser a melhor do mundo, ou haverá sérios riscos de se ter que fecharas portas. 323 E ser a melhor empresa do mundo passa por etapas inexoráveis: agilidade, criatividade, flexibilidade, gestão integrada (qualidade, saúde e segurança no trabalho, meio ambiente) incorporação das normas ISO internacionais. Passa, como já dissemos, também por saúde e segurança no trabalho. Empresas que não conseguirem adequados processos de garantia da saúde de seu pessoal e das normas internacionais de segurança no trabalho terão, cada vez mais, dificuldade para exportar seus produtos. Especificamente em relação à saúde e segurança no trabalho, as leis brasileiras são muito claras e fazem as seguintes exigências: • Todo empregado deverá sair do trabalho com saúde igual ou melhor do que quando entrou. • O empresário e as gerências são, em última análise, os responsáveis pela garantia de implementação das normas de saúde e segurança do trabalho em suas empresas e deverão responder juridicamente por isso. • Os empregados têm até vinte anos, depois que saíram da empresa, para entrar com alguma ação cível ou penal contra ela, se acharem que lhes adveio do trabalho algum prejuízo para sua saúde. Diante de tudo isso, fica cada dia mais patente: prevenir é melhor do que indenizar. O lado bom (?) da globalização Quando um povo tecnologicamente mais evoluído entra em contato com povos de grande riqueza cultural, mas de tecnologia ainda precária, vence sempre aquele que tem tecnologia melhor. Foi o que ocorreu na história mundial: espanhóis x incas e malas; portugueses x índios brasileiros e assim por diante. Atualmente, com a continuação do império britânico, via império norteamericano, os valores culturais desses povos, infelizmente, vão sendo impostos a todos os povos que dominam, pelo neocolonialismo. Se isso é bom ou ruim, talvez não se tenha ainda condição de dizer. É apenas tristemente inevitável. No entanto, se assim pudermos dizer, há talvez alguns benefícios nesse amalgamento das nações e dos mercados consumidores e produtores. Há, por exemplo, uma tendência à melhoria e à racionalização das formas de produção. Exige-se mais qualidade, mais progresso científico, mais conhecimentos técnicos. Começam a ser jogadas para escanteio certas coisas 324 absurdas, como retrabalho, desperdícios, colocação de seres humanos em tarefas que máquinas podem perfeitamente fazer. A par de tudo isso, outras coisas muito interessantes começam a ficar claras: já que são os donos do mercado mundial que estão impondo as normas e os valores, a única maneira de se contrapor aos naturais descalabros dessa diferença é tentarmos acompanhar, da melhor forma possível, esses movimentos e nos prepararamos, sobretudo culturalmente, até para argumentar melhor, na tentativa de fazer valer nossos direitos. E aí constatamos, assustados, o baixo nível cultural de nosso povo. A conseqüência disso é a incapacidade de uma melhor visão crítica e reflexiva. Então, perdemos de longe para os povos do Mediterrâneo altamente influenciados pela riquíssima cultura grega. Os gregos, já há cerca de três mil anos, domaram a capacidade reflexiva do ser humano, pela sua filosofia, tornando a razão humana extremamente requintada. Não dá mais para viver sem conhecer alguma coisa da filosofia grega e européia. Requinte cultural melhora até a capacidade competitiva de cada um de nós, amplia nossa capacidade de gerenciar nossa vida e nossos negócios. Desde o século X, os europeus já tinham universidades admiráveis e bibliotecas abarrotadas de obras culturais e artísticas respeitáveis. Quer queiramos ou não, temos também de aprimorar nossa capacidade cultural. De novo, à nossa frente, o imenso poder do conhecimento. Cultura geral faz bem e liberta. Diante de tudo isso, qual seria a saída? Tem ficado cada vez mais claro que, nos tempos atuais, uma empresa só continuará a existir se estiver bem apoiada sobre quatro pilares fundamentais: respeito ao cliente, ao empresário, ao funcionário e ao meio ambi ente. Partimos do princípio de que o cliente e o meio ambiente vêm, cada vez mais; fazendo valer sua força e ganhando o justo respeito a que têm direito. O empresário sempre teve seu poder, por ser o dono do capital e dos maiores lucros. O pilar, contudo, do respeito e valorização aos funcionários tem sido um dos menos cuidados em nosso país, devido a conflitos históricos e circunstanciais intensos entre capital e trabalho. Por isso propomos ampla revisão do jogo de forças e das dinâmicas de interação entre esses quatro setores da vida empresarial, possibilitando uma espécie de balé mais harmônico que permita aos clientes, aos empresários, ao meio ambiente e aos funcionários o lugar de respeito que merecem e a real recompensa que a cada um cabe. 325 E por que o corpo de funcionários tem sido o mais sacrificado em nossa história? Porque o poder de decisões ficou por demais nas mãos do dono do capital, o empresário, que, praticamente, controla sozinho todo o processo produtivo que em geral ocorre na empresa em departamentos estanques, isolados, repetitivos. Isso acabou criando um universo de funcionários com atitudes estereotipadas, mecânicas e repetitivas de trabalho, podados em sua criatividade, não participativos, executores de programações vindas de cima, dos escalões superiores, sem “tugir e nem mugir”. Foi um período longo de uma espécie de infantilização e mecanização do corpo de funcionários aos quais se impôs a tarefa de repetir mecanicamente trabalhos produtivos e atitudes de subserviência aos ditames vindos da cultura empresarial que assim pontifica: - Funcionário não pensa. Faz... - Entrou na empresa? Deixe o cérebro, a família, os problemas e os sentimentos lá fora... De repente, chega, então, a globalização e as novas e duras formas de concorrência mundial e aí a empresa vê-se nua, despreparada com a cultura de ter um grupo de funcionários infantilizados, desmotivados, “com o cérebro lá fora”, malcuidados do ponto de vista de sua saúde física, psicológica, econômica e cultural, tendo que competir com empresas com funcionários mais cultos, bem nutridos, submetidos a um processo de educação continuada dentro de suas empresas, premiados com salários indiretos, assistência médica, psicológica, motivados por uma mais justa distribuição de renda e chances de crescer em todos os sentidos dentro da empresa, inclusive como seus acionistas. É o que já está ocorrendo na social-democracia européia e mesmo em diversas empresas de nosso país. Tendo em vista tudo isso e partindo do princípio de que daqui para a frente, dentro da empresa, ou sobreviverão todos juntos ou ninguém mais sobreviverá, é que, como profissionais de saúde, mais especificamente como médicos do trabalho, propomos contribuir de uma forma singular para que o exercício da Medicina do Trabalho, dentro da empresa, e que já é obrigatório por lei, possa colaborar para a ampliação da promoção e prevenção da saúde dos indivíduos e da instituição no mais amplo sentido do termo. Após vários anos de atividade em diversas empresas como médicos do trabalho, temos constatado que a forma como geralmente é a Medicina do Trabalho exercida em nosso país não é seguramente a mais adequada. E por quê? 326 Porque ela tem sido exercida com uma presença esporádica, rara, do médico do trabalho dentro da empresa. Muitas vezes, o profissional só vai à empresa para um primeiro contato logo após o fechamento do contrato e só volta lá seis a oito meses depois e, em geral, quando há alguma situação de crise, gerada normalmente por alguma fiscalização do Ministério do Trabalho. Afora isso, o médico coordenador acaba sendo um mero “médico examinador” que olha em seu consultório, fora da empresa, os funcionários que precisam do “Atestado de Saúde Ocupacional” (ASO) em situações admissionais, demissionais, periódicas, de retorno ao trabalho ou de mudança de função. Só isso, mais nada. O papel então de médico coordenador dos programas de promoção da saúde dos indivíduos e da instituição fica mesmo apenas no papel. O médico coordenador do PCMSO não está ali dentro da empresa mais freqüentemente, de mãos dadas com o empresário, com os gerentes, com os membros da CIPA, com todos os funcionários, fazendo o papel de catalisador, de facilitador de tudo aquilo que propicie a saúde e a sobrevivência dos trabalhadores e a saúde da instituição como tal. Ele não está ali mais freqüentemente para exercer seu papel de educador. A nova visão do exercício da Medicina do Trabalho Numa compreensão ampliada do papel do médico do trabalho dentro da empresa, que se baseia em todas as considerações feitas nas páginas anteriores, vemos que esse profissional deverá estar dentro da empresa ministrando e coordenando cursos, palestras, treinamentos para gerentes, empresários, funcionários sobre o que é realmente saúde do indivíduo e da empresa nos tempos atuais. Ele deverá ser capaz de criar e implementar, juntamente com todo o corpo de funcionários e gerentes da instituição (nunca sozinho), aquilo que chamamos de PROGRAMA DE QUALIDADE DE VIDA, PROMOÇÃO E PREVENÇÃO À SAÚDE E SEGURANÇA DENTRO DA EMPRESA. Esse programa irá transitar durante todo o ano por um processo de educação continuada e reflexão sobre os mais diversos e importantes temas, tais como: a tríplice estruturação humana (biológica, psicológica, sociocultural); saúde e segurança no trabalho; cidadania e saúde; gestão pela qualidade total na empresa; empresas competitivas do terceiro milênio; saúde do homem; saúde da mulher; o ser humano como o principal promotor de sua saúde; sexualidade e saúde do ser humano; qualidade de vida; cultura brasileira; qualidades e limitações; acidentes de trabalho e seu impacto na vida econômica 327 das empresas; a globalização e seus reflexos na sobrevivência das empresas; cultura geral; processos históricos e econômicos do Brasil, etc. Em termos mais específicos, propomos: Para empresas com uma média de cem a cento e trinta funcionários, presença do médico do trabalho dentro da empresa durante toda uma manhã, ou toda uma tarde, quinzenalmente, tanto para realização dos exames médicos ocupacionais quanto para implementação do PCMSO e de todo o programa de qualidade de vida, promoção e prevenção à saúde e segurança no trabalho, sempre em sintonia com as gerências, o corpo de funcionários e o serviço de engenharia de segurança. Para uma empresa que recebia a visita do médico de oito em oito meses, a sua presença ali, de quinze em quinze dias, fará uma diferença enorme. O médico do trabalho, dentro dessa nova visão, deverá trabalhar sempre com um olho na saúde dos funcionários e outro na saúde da instituição. Deverá, para isso, ajudar a todos ali dentro (empresários; gerentes, funcionários) a ter visão contínua do bem maior da instituição e que é a necessidade de sua sobrevivência, como uma orquestra bem dirigida, harmônica e afinada. O médico do trabalho deverá ser capaz de trabalhar dentro daquilo que modernamente se denomina “Gestão Integrada” de saúde e segurança no trabalho, meio ambiente e qualidade. Para isso, deverá saber: a) Apoiar toda iniciativa no sentido de atender bem ao cliente (não abrir mão da mentalidade de gestão pela qualidade total, lembrando-se sempre também da noção do chamado “cliente interno”). b) Refletir com os funcionários que o mundo mudou e que é preciso ser, cada vez mais, um funcionário de real qualidade. Ajudá-los a perceber que a tendência do mundo moderno é mesmo enxugar as instituições. Serão inexo ravelmente eliminados funcionários preguiçosos, pouco criativos, comodistas, os que não querem aprender sempre e cada vez mais. É preciso ter consciência da necessidade de capacitação técnica, boa em sua área específica. Ter também cultura geral, visão histórica e política dos processos em que se vive; Ser uma pessoa ética, solidária, social. Conhecer as maravilhas e os defeitos do modo cultural brasileiro e ter consciência de que nós todos temos uma contribuição imensa a dar em nosso trabalho e em nossa vida pessoal para conduzirmos o Brasil ao sucesso que ele merece. Construir o sucesso dentro de nosso ambiente de trabalho vai nos ajudar a fazer a tarefa maior de construir o sucesso de nossa pátria: c) Refletir com o empresário sobre a necessidade de ter uma visão moderna, correta do mundo atual. O mundo mudou. Não dá mais para ter mar- 328 gens de lucro absurdas que absorviam as conseqüências de erros astronômicos. As margens de lucro agora são pequenas, devido ao aumento enorme da concorrência. Não é mais possível dar-se o luxo de desperdícios, (re)trabalho, processos de produção confusos, obsoletos e sem qualidade. Isso seria como ir ao Rio de Janeiro passando pelo Japão. Fazer as economias certas no lugar certo. Nada de eliminar o pára-quedas com o argumento de que é preciso diminuir o peso do avião. Certas economias podem ser fatais. Lembrar que, no Brasil, a escravidão foi abolida em 1888 e que, para competir no mundo atual, é preciso fechar de vez, na alma brasileira, as senzalas onde se dava comida no cocho para os escravos. Os funcionários não são escravos. São o capital mais precioso, mais fantástico que se tem nas empresas. Eles, que estão o dia inteiro ali no chão da fábrica, têm uma visão da empresa que muitas vezes não se tem de dentro das salas refrigeradas da gerência. Eles querem ajudar, opinar. Pedem apenas para serem ouvidos, respeitados, valorizados e tratados com justiça. Como empresário moderno, ter a visão de que, se seus colaboradores não têm condições físicas, psicológicas, afetivas e econômicas de viver bem, vão acabar executando suas tarefas com menor qualidade e lá na frente o cliente “vai chiar”. Como empresário, ter uma visão histórica e política do mundo, ter cultura geral. Saber onde está pisando. Ler mais. Deixar de lado a mentalidade errônea de que possibilitar cursos e treinamentos a seus funcionários vai torná-los melhores, eles vão sair da sua empresa e isso seria jogar dinheiro fora, pois pode haver necessidade de “comprá-los” de volta. Sua empresa não sabe que é preciso ser a melhor do mundo? E é possível chegar a isso com um bando de funcionários despreparados, mecanizados, nada criativos? Ter, ao contrário, a visão de que é preciso sim contaminar o mercado brasileiro com mão-de-obra boa. Isso vai melhorar o caldo de cultura da qualidade dos profissionais em nosso país. E se você perdeu hoje um bom funcionário no qual investiu muito, amanhã você vai encontrar outro também bem preparado por outra empresa e que estará à procura de uma instituição boa, inteligente e competitiva como a sua que será capaz de segurar pessoas de real valor e não se contentar com um quadro de pessoal apenas medíocre, espoliado, vilipendiado, baratinho, mas nunca competitivo. Essa visão mais ampla é que transformará os empresários brasileiros em verdadeiros empresários, acabando de vez com a imagem estereotipada muitas vezes caricaturada em novelas do coronel jeca, mandão, de abdômen proeirminente, barbaça, charuto à boca, dando ordens via capataz a um bando de agregados. A empresa não é uma fazenda grande e os funcionários não são agregados. 329 Partir, como empresário moderno, para uma revisão da antiquada forma de interação capital/trabalho em nosso país. Isso ajudará a empresa a ser mais lucrativa e cheia de êxito. Além do mais, tudo isso vai tirar das costas do empresário uma carga imensa que ele vem carregando há décadas. Fica tudo nas costas dele. O empresário é o dono de tudo, mas é também o responsável por tudo. Já é clássica a figura do empresário que é o primeiro a chegar à empresa e o último a sair. Estressado, tenso, afobado, tendo que dar conta de tudo a tempo e hora, numa solidão enorme, caminhando a passos largos para uma ponte de safena e uma estada dolorosa no CTI. A isso se pode chamar qualidade de vida? Ser rico, poderoso assim para quê? Para não ter tranqüilidade nem para si, nem para sua família que pede mais um convívio com ele? Isso não é ser empresário e sim “empresidiário”, preso à imensa carga de responsabilidades que o torna prisioneiro da própria glória. O empresário moderno compreende que, numa empresa, ninguém dá conta de fazer ou de controlar tudo sozinho. É só acordar aliviado para a certeza de que é possível delegar, obter colaboração de todos. Basta ser justo, ético, crítico em relação às loucuras do sistema escravista em que vivemos, saber dividir lucros. Fazendo isso, não haverá erro: aumento de produtividade, lucro, diminuição do estresse e uma experiência existencial e ética de vida que será um legado de honra deixado para seus filhos e netos. Essa trajetória da truculência para a sociabilidade, para a cooperação mútua é o que podemos chamar de trajetória da “jecocracia” para a “democracia”. A forma antiga é jeca, cara, estressante. A forma nova é democrática, lúdica, lucrativa. Essa, então, é a visão que o médico do trabalho em sua tarefa, de promoção e prevenção à saúde poderá ajudar a implementar na empresa. Requisitos fundamentais para se trabalhar dessa forma nas empresas • Consciência da interdependência dos membros de todos os setores da empresa - empresários, gerentes, funcionários. • Amplo apoio da cúpula diretora, inclusive com um compromisso escrito de uma política clara de saúde, segurança e qualidade de vida em sua empresa. • Condições materiais e humanas para implementação de contínua melhoria das condições de qualidade de vida, saúde e segurança do trabalho dentro da empresa. • Remuneração justa do médico do trabalho que não estará apenas esporadicamente na empresa, mas sim quinzenalmente, fazendo, além 330 do trabalho rotineiro de exames ocupacionais, todo um trabalho realmente de médico coordenador e acumulando tarefas de educador, palestrante e diretor de oficinas internas e seminários. • Por se tratar de um trabalho que visa à qualidade e não à quantidade, fica naturalmente implícito que o médico do trabalho que abraçar esse novo modo de trabalhar deverá fazê-lo com um número significativamente menor de empresas. Estruturação geral dessa nova forma de trabalhar Naturalmente, não serão todos os médicos do trabalho que se sentirão motivados ou preparados para trabalhar dessa nova maneira. Mas, para os que assim o desejarem, há várias jeitos de se implantar e implementar essa nova forma de trabalhar nas comunidade empresariais. Do que não se pode nunca esquecer é que, conforme normas científicas preconizadas pela Organização Mundial da Saúde, todo trabalho nesse sentido deve valorizar processos de educação continuada e não pontuada. Além do mais e assim como em todo processo educativo, a promoção e prevenção à saúde deverá caminhar no sentido de condução da comunidade em direção à autogestão, com monitores e multiplicadores bem formados que conheçam bem a linguagem e a cultura do local onde trabalham. Isso é conduzir a comunidade no sentido de adquirir ou construir sua vara de pescar e não dar-lhe, paternalisticamente, um peixe todo dia. Um exemplo de esquema desse trabalho nas empresas pode ser o que se segue abaixo: - SEMINÁRIO de oito horas de duração para cúpula diretora, gerentes, chefes de seção, com vistas à sensibilização, informação e motivação sobre a importância da implementação do projeto QUALIDADE DE VIDA, PROMOÇÃO E PREVENÇÃO À SAÚDE NA EMPRESA. - PALESTRAS de uma hora e trinta minutos de duração para grupos de cerca de oitenta a cem funcionários de cada vez, também com vistas a informálos e sensibilizá-los para a importância do projeto em seu ambiente de trabalho e para detectar possíveis candidatos voluntários a monitores e multiplicadores de promoção e prevenção à saúde e qualidade de vida. - OFICINAS PERIÓDICAS de duas a quatro horas de duração para grupos de, no máximo, vinte monitores/multiplicadores voluntários que serão adequadamente preparados para conduzir, junto a seus colegas de trabalho, todo um processo de reflexão, ação e educação continuadas para a qualidade de vida, promoção e prevenção à saúde e segurança no ambiente de trabalho. 331 - TRABALHO COM AS FAMÍLIAS para funcionários que assim o quiserem ou necessitarem, um seminário de oito horas de duração sobre a família como um espaço de amor, conflitos e crescimento, quando serão trabalhadas diversas questões da dinâmica familiar e que possam estar interferindo de forma indesejada na felicidade e equilíbrio das pessoas. Isso ampliará a atuação da empresa na comunidade, como se espera modernamente de uma empresa realmente cidadã. Metodologia Exposições teóricas, dinâmicas de grupo, discussões em subgrupos, dramatização, análise e discussão de textos, filmes. Considerações finais Quando não pensamos, alguém pensa por nós e impõe suas normas. Qualidade de vida e saúde do ser humano significam presença dessas realidades em nível biológico, psicológico, econômico e sociocultural. Qualidade de vida e saúde no ambiente de trabalho não são luxo nem caridade. São apenas sinal de inteligência, cidadania, fonte de mais lucro, produtividade. Fazem, com toda certeza, parte do negócio. Investimento em promoção e prevenção à saúde é mesmo investimento e não gasto a fundo perdido. Essa nova visão da forma de exercer a Medicina do Trabalho dentro da empresa dará aos médicos do trabalho o privilégio de colaborar de forma mais rica para a obtenção de todos os objetivos descritos, beneficiando também todos os empresários que - bem ou mal - têm a respeitável coragem de abrir suas empresas em situações burocráticas, culturais e competitivas ainda tão complexas em nosso país. Referências 1. 2. 3. 332 BATAGLIA, Felice. Filosofia do trabalho. São Paulo: Saraiva, 1958. BAREMBLITT, G.F. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos, 1992. BONNER, J.T. A evolução da cultura nos animais. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. BOOG, Gustavo G. O desafio da competência: como enfrentar as dificuldades do presente e preparar sua empresa para o futuro. São Paulo: Best Seller, 1991. BOURGUIGNON, A. A história natural do homem: o homem imprevisto. 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A população se espalha por todo o Estado, havendo uma concentração maior nas cidades localizadas no eixo da rodovia Belém-Brasília, sem caracterizar, no entanto, áreas superpovoadas ou inchadas, como é comum no Brasil. Palmas, a capital do Estado, planejada dentro da mais moderna concepção arquitetônica e ecológica, abriga uma população de aproximadamente 140.000 habitantes e já se encontra devidamente aparelhada para abrigar a estrutura administrativa do Estado. O Tocantins tem despertado atenção em função das pontencialidades de que dispõe e de sua privilegiada localização no centro dos grandes ecossistemas brasileiros, ou seja: a Mata Amazônica, os cerrados, o semi-árido ou caatinga e o pantanal. Esses ecossistemas, em seu conjunto, guardam uma das mais variadas e ricas biodiversidades do mundo. O desenvolvimento do Tocantins está acontecendo de forma planejada, dotando os 139 municípios de infra-estrutura necessária à viabilização do progresso. A construção de estradas é prioridade absoluta. Até 1996, foram pavimentados 1.118 km e restaurados 125 km, completando uma malha viária de 2.800 km asfaltada. No ano de 1999, foram asfaltados mais 2.000 km, ficando todos os municípios interligados, entre si e com os estados das regiões Norte, Nordeste e Sudeste do País. 1 Diretor de Relações do Trabalho - SETAS, Curso Superior em Letras. de Segurança e Saúde no Trabalho - SETAS, Técnico de Segurança do Trabalho. Engenheiro de Segurança - SETAS, Engenheiro Civil. 2 Coordenador 3 335 Além da ampliação da malha viária, o Estado tem aprovado, com instituições internacionais, financiamentos para projetos de conservação ambiental, patrulhas mecanizadas e saneamento básico. Para completar o sistema de transporte intermodal, o Governo do Estado, em parceria com o Ministério dos Transportes, está concluindo estudos para implantação definitiva da Hidrovia Araguaia-Tocantins e da Ferrovia Norte-Sul. A conclusão dessas obras permitirá a ligação das rodovias e hidrovias à ferrovia, levando a produção até o Porto de Itaqui, no Maranhão, o mais próximo da Europa e da América do Norte. 336 O potencial energético do Tocantins está estimado em 6.244 Mw. Contudo, o principal empreendimento do setor energético será a Usina Hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães, iniciada em maio/1998, e com potencial para geração de mais de um milhão de quilowatts, suficientes para alavancar o desenvolvimento do Tocantins e de toda a Região Central do Brasil, além de viabilizar a eletrificação de 18.000 propriedades rurais. Esses grandes projetos, denominados “Projetos Estruturantes”, comporão o primeiro passo para promoção de mudanças na estrutura produtiva do Estado. Atualmente, o Estado do Tocantins é um dos maiores indutores da indústria da construção civil e da indústria da construção pesada, em função da construção da Capital e obras de grande vulto, tais como: Usina Hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães, Programa de Eletrificação Rural (PERTINS), Rodovias, Hidrovia Araguaia-Tocantins, Ferrovia Norte-Sul, Aeroporto de Palmas, Estádio Nilton Santos e Linhão de Transmissão Norte-Sul, que requerem atenção especial da área de prevenção de acidentes e doenças ocupacionais, devido aos riscos inerentes a essas atividades, como queda de altura, cortes diversos, atropelamentos por máquinas pesadas, doenças causadas por produtos químicos, queda de materiais, perfuração de membros, risco de incêndio, posturas inadequadas, soterramento, choque elétrico, dermatoses ocupacionais, doenças causadas por agentes biológicos, perda da audição ou da visão, doenças osteomusculares relacionadas com o trabalho (DORT), dentre outros. Em 21-9-1999, quando da visita do Ministro do Trabalho e Emprego a Palmas, Excelentíssimo Senhor Francisco Dornelles, o Governador José Wilson Siqueira Campos, acompanhado da Senadora Thelma Siqueira Campos e do Secretário do Trabalho e Ação Social Homero Silva Barreto, solicitou a efetivação de convênio com o MTE por intermédio da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (FUNDACENTRO), com o propósito de intensificar as ações que, desde o ano de 1997, vinham sendo desenvolvidas com recursos próprios do Estado, no que foi prontamente atendido. A liberação dos recursos foi viabilizada com a apresentação do Projeto denominado PROGRAMA DE DISSEMINAÇÃO DE CONHECIMENTOS SOBRE SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO NO ESTADO DO TOCAN TINS, elaborado conjuntamente pelos técnicos da Secretaria e da FUNDACENTRO, tendo sido assinado o Termo de Convênio em 23-11-1999, com a proposta de realizar dois seminários, dez cursos e vinte palestras, na Capital e no interior do Estado. 337 Convênios SETAS/FUNDACENTRO Objetivos • dotar a Secretaria do Trabalho e Ação Social (SETAS) de meios e recursos viabilizadores da orientação e divulgação de conhecimentos sobre segurança e saúde no trabalho que promovam a melhoria dos ambientes laborais, a proteção ambiental e a valorização do ser humano; • socializar e difundir conhecimentos sobre segurança e saúde no trabalho na comunidade tocantinense, com a implementação de ações itinerantes que possibilitem o envolvimento dos partícipes e sua inserção social para consolidação da cidadania. Metas • dotar a Secretaria do Trabalho e Ação Social de recursos e pessoal para viabilizar o atendimento das ações do projeto; • desenvolver cartilhas, cartazes e folderes com orientações sobre segurança e saúde no trabalho; • realizar palestras nas vinte cidades definidas no plano de trabalho, dez cursos e dois seminários regionais, com distribuição de material didático; • proporcionar treinamento e orientação para 2.000 pessoas: 1.000 em seminários e 1.000 em cursos e palestras; (O período de realização será de janeiro a dezembro/2000.) Abrangência Palestras Foram selecionados oito temas, distribuídos em quatro palestras, quais sejam: Segurança no Trabalho; Doenças Sexualmente Transmissíveis - DST/ AIDS; Alcoolismo e Drogas; Combate a Incêndio; Higiene e Saúde; Segurança no Lar; Segurança no Trânsito; Uso de Agrotóxicos. As palestras foram ministradas por dois palestrantes da Equipe de Segurança e Saúde da Secretaria e dois da empresa Terceiro Milênio, sediada em Goiânia/GO, no período de 17-04 a 26-5-2000, atingindo um público de 3.603 participantes, superando em 260% a meta prevista. 338 Para realização dos dois seminários, foram escolhidas as cidades de Araguaína e Gurupi, por serem as mais populosas do interior e com maior atividade industrial, uma vez que a Capital já havia sido contemplada com esse tipo de evento nos anos anteriores. Temas selecionados • Gestão de Qualidade de Vida Aplicável à Segurança e Saúde no Trabalho; • Responsabilidade Civil e Criminal na Segurança e Saúde no Trabalho; • Importância da CIPA no reconhecimento das Causas dos Acidentes do Trabalho; • Programa de Condições e Meio Ambiente do Trabalho na Indústria da Construção. 339 Cursos Para realização dos cursos, nas cidades de Palmas, Araguaína e Gurupi, foi utilizado o critério de licitação, com a participação de várias empresas especializadas do País, tendo como vencedora a Associação Brasileira para Prevenção de Acidentes (ABPA), São Paulo. Foram selecionados oito temas, conforme quadro a seguir, atingindo um público de 273 participantes, sendo 155 em Palmas, 43 em Gurupi e 75 em Araguaína. 340 341 Materiais produzidos • Cartilhas: Foram produzidas 10.000 unidades, contendo informações e orientações sobre Acidente do Trabalho e suas causas, Higiene e Saúde, Segurança na Construção Civil, Segurança no Lar, Segurança no Trânsito, Segurança no Meio Rural e Noções sobre Ergonomia. As cartilhas foram distribuídas nas palestras. • Folderes: Foram produzidos 4.600 folderes para divulgação dos serviços prestados pela Secretaria do Trabalho e Ação Social e sobre os Seminários previstos no Programa. • Cartazes: Foram produzidos 6.000 cartazes contendo orientações sobre Prevenção de Acidentes e Doenças Osteomusculares Relacionadas com o Trabalho (DORT), distribuídos nos eventos e nas empresas visitadas pela equipe. Corpo técnico O Programa foi elaborado e conduzido pela Equipe da Coordenadoria de Segurança e Saúde no Trabalho da Secretaria do Trabalho e Ação Social do Estado do Tocantins - SETAS, composta por Floriano Rodrigues Alves (Diretor de Relações do Trabalho), Natal Costa Filho (Técnico de Segurança do Trabalho), Carlos Martins Ferreira (Engenheiro Civil/Segurança do Trabalho), pela Palestrante Magna Dias Leite (Técnica de Enfermagem do Trabalho) e pelos auxiliares administrativos: Edivaldo Marques de Sousa, Ijonel Pereira de Macedo, Milton Luis Tellés dos Santos Júnior, Dimas Magalhães Neto e Susana Ferreira Gomides Maciel. Para execução das palestras, foi contratada a empresa Terceiro Milênio, de Goiânia (GO). Os oito temas selecionados foram agrupados em quatro palestras, ministradas por três técnicos de Segurança do Trabalho da em presa sob referência - Patrícia Policeno de Resende, Margarida Maria de Souza Varjão e Adercides Belo Honório - e dois da SETAS - Carlos Martins Ferreira e Magna Dias Leite. Os cursos previstos no Programa foram realizados pela Associação Brasileira para Prevenção de Acidentes (ABPA/SP), vencedora da licitação, contando com uma equipe multidisciplinar composta pelos profissionais: Armando Augusto Campos, Jair Francisco Luzia, Osvaldo Alcantara Jurado, Juan Miguel Hodar Munoz e Maria de Fátima F. Queiróz. Nos Seminários desenvolvidos nas cidades de Araguaína e Gurupi, participaram, como palestrante convidado, Luis Augusto Damasceno Brasil - 342 FUNDACENTRO/CRDF e, como palestrantes contratados, Jorge Maurício de Castro - JMC, Osvaldo Alcantara Jurado - ABPA/SP, Aparecida Eleuza Espíndola - SINDUSCON/GO e Francisco Borges Dias - Sindicato dos Trabalhadores da Construção de São Paulo. Metodologia A Equipe da Coordenadoria de Segurança e Saúde no Trabalho promoveu reuniões com representantes das Prefeituras, Órgãos Públicos, Sindicatos, Colégios, Empresários, Hospitais e Associações nas cidades da área de abrangência do Programa, informando sobre os objetivos e verificando os temas de maior interesse da comunidade, o local adequado, necessidades para realização do evento, o público-alvo e buscando a parceria dos representantes na divulgação e organização das palestras, cursos e seminários. Os temas das palestras foram selecionados pela Equipe de Técnicos da Secretaria, considerando as características da região e a carência de informações. Nas reuniões, foram apresentados diversos temas aos participantes, despertando total interesse e, ao foral, selecionados oito temas e agrupados em quatro palestras. Nas palestras e seminários, foram utilizadas exposições dialogadas, exibição de filmes, procurando despertar o interesse pelos temas e a participação do público. Nos cursos, foram utilizados exercícios e trabalhos em grupo com a apresentação das soluções, exposições dialogadas, trabalhos individuais e exibição de filmes. As inscrições para os eventos foram feitas em formulário próprio, de forma antecipada e/ou no local, com o objetivo de formalizar a participação e facilitar a emissão dos certificados aos participantes. Todos os eventos foram filmados e fotografados para ilustração dos resultados e confecção dos relatórios. Recursos utilizados Em todos os eventos (palestras, seminários e cursos), foram fornecidos aos participantes: pastas, cartilhas, cartazes, folderes, material didático e certificados. Nas aulas expositivas e palestras, foram utilizados: retroprojetor, datashow e fitas de vídeo. 343 Equipamentos adquiridos Os equipamentos foram adquiridos com o objetivo de estruturar a Coordenadoria de Segurança e Saúde no Trabalho e proporcionar o bom desenvolvimento das atividades do Programa, tais como: aparelho de som digital com caixas acústicas e CD, aparelhos de televisão colorida de 29 polegadas, videocassete estéreo com 6 cabeças, microcomputadores Pentium torre/monitor completo, reguladores de voltagem (no-break), impressoras jato de tinta colorida, notebook com processador Pentium e 32MbRAM, projetor multimídia, máquina fotográfica digital, filmadora Panasonic Profissional, retroprojetores 3M, microfones sem fio profissionais SHURE, veículos, luxímetros digitais com interface para microcomputador, medidores de pressão sonora digitais, medidores de temperatura digitais e telão, entre outros. Avaliação O Programa atendeu a um público bem diversificado, composto por professores, profissionais da área de saúde, alunos, profissionais especializados em segurança e saúde no trabalho, empresários, prefeitos, trabalhadores da iniciativa privada, membros da Polícia Militar, representantes de diversas associações classistas, funcionários públicos, membros de sindicatos, bancários, agricultores, comerciários, diretores de escolas e populares. A participação de todos foi intensa, demonstrando a carência de informações nesta área e a vontade de disseminar os conhecimentos adquiridos. 344 Opiniões dos participantes dos eventos “Me deparei com um trabalho consistente, planejado, bemfeito e ambicioso, realizado pelos técnicos da SETAS. “Trata-se de um exemplo a ser seguido por outros Estados da Federação, em primeiro lugar, porque os eventos acontecem no Estado inteiro e não só na Capital Palmas e, por outro lado, a motivação das pessoas é grande. “Os comentários das avaliações dos eventos têm sido positivos e este é um bom exemplo do Brasil que está dando certo e em sintonia com o Programa Brasileiro de Qualidade e Pro dutividade – PBQP” (Armando Augusto Martins Campos - Eng.° de Segurança do Trabalho) “Trata-se de um trabalho de relevante importância social, levando conhecimentos técnicos ao alcance de profissionais da área de segurança do trabalho, das empresas públicas e priva das, contando com o trabalho e presença de excelentes profissionais.” (Nilson Teixeira da Silva - Técnico de Segurança do Trabalho - Araguaína) “Vimos o seminário como ponto positivo para ampliação dos nossos conhecimentos, onde tivemos a oportunidade de assistir a palestrantes de alto nível de conhecimento e amplo do mínio do conteúdo, contando ainda com recursos materiais e eletrônicos dos mais modernos existentes na atualidade que muito nos veio enriquecer em termos de conhecimentos na área de segurança e saúde do trabalho.” (Raimundo Américo da Silva Aluno do Curso de Técnico de Segurança do Trabalho) Perspectivas futuras O Estado do Tocantins, criado em 1989, com um desenvolvimento planejado e dinâmico em diversas áreas, busca com esse Programa desenvolver a Cultura Prevencionista e colaborar com as metas de redução de acidentes do Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade (PBQP). 345 Agradecimentos Importante registrar os agradecimentos da equipe executora ao Ministro do Trabalho e Emprego, Francisco Osvaldo Neves Domelles; ao Governador do Estado do Tocantins, José Wilson Siqueira Campos; ao Secretário do Trabalho e Ação Social, Homero Silva Barreto; ao Presidente da FUNDACENTRO, Humberto Carlos Parro; ao Diretor de Administração e Finanças da FUNDACENTRO/SP, Antonio Sérgio Torquato; ao Chefe da FUNDACENTRO/CRDF, Joaquim Arantes Neto; e ao Educador e Tecnologista da FUNDACENTRO/CRDF, Luis Augusto Damasceno Brasil, pelo apoio técnicofinanceiro que tornou possível o desenvolvimento dos trabalhos. 346 QUESTIONÁRIO: AVALIAÇÃO DO LIVRO “TRABALHO-EDUCAÇÃO-SAÚDE: UM MOSAICO EM MÚLTIPLOS TONS” Caro leitor, Colabore conosco fornecendo-nos as informações abaixo, que permitirão verificar o alcance dos objetivos e as repercussões desta publicação. De preferência, tire uma cópia do questionário para então respondê-lo. Assim você o preservará no livro, tornando possível que outro leitor venha a respondê-lo. Se julgar conveniente, destaque-o e responda-o. Em seguida, envie-o para a FUNDACENTRO - Centro Estadual do Espírito Santo, aos cuidados de Célia Kiefer, no seguinte endereço: Rua Cândido Ramos, 30 - Ed. Chamonix Jardim da Penha - Vitória/ES CEP: 29065 - 160 Fax: (OXX27) 3315 0045 E-mail: [email protected] Receba os sinceros agradecimentos das ORGANIZADORAS. 1. O que mais lhe interessou neste livro? ( ) as teorias apresentadas. ( ) as propostas de ação apresentadas. ( ) as práticas educativas apresentadas. ( ) a variedade das teorias, propostas de ação e práticas educativas apresentadas. Comentários:____________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ 347 2. Qual é o tipo de contribuição que a leitura deste livro ofereceu a sua atividade profissional? ( ) aumentou a minha capacidade de reconhecer a importância das ferramentas da educação para melhorar as condições e os ambientes de trabalho. ( ) pretendo modificar minha atividade profissional, adotando novas idéias, propostas ou experiências que se encontram no livro. ( ) passei a incorporar práticas educativas à minha atividade profissional. ( ) estou reproduzindo pelo menos uma das atividades relatadas no livro. ( ) adaptei à minha realidade de trabalho pelo menos uma das experiências educativas relatadas no livro. ( )outra resposta:___________________________________________________ __________________________________________________________ _____Se possível, comente sua resposta ou relate sua experiência:_________ ______________________________________________________________ ______________________________________________________________ ______________________________________________________________ ______________________________________________________________ 3. Você pode dar alguma sugestão de estratégia a ser adotada pela FUNDACENTRO para distribuição deste livro de modo que favireça a replicação, adaptada ou aperfeiçoamento das experiências educativas nele relatadas? ( ) Sim ( ) Não Comentário:____________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ 348 4. Você interessaria em publicar trabalho num próximo livro sobre a relação trabalho-educação-saúde? ( ) Sim ( ) Não 5. Se você deseja manter contato conosco, por favor, forneça as seguintes informações a seu respeito: Nome:________________________________________________________ Profissão:______________________________________________________ Instituição:_____________________________________________________ Cargo:________________________________________________________ Endereço: Rua/Av.:______________________________________________ _______________________________________________ n ° _______________ CEP:_______________ __Cidade:________________ Estado:_______________ Telefone: (0XX__)__________________Fax: (0XX__) ____________________ E-mail:___________________________________________________________ 349 350 351