Patrimônios Vivos - Mapa Cultural de Pernambuco
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Patrimônios Vivos - Mapa Cultural de Pernambuco
Patrimônios de Pernambuco 3 Maria Alice Amorim Patrimônios de Pernambuco Fundarpe, 2010 Copyright © Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco Governador de Pernambuco | Eduardo Campos Coordenação editorial: Maria Acselrad Vice-governador | João Lyra Neto Supervisão: Eduardo Sarmento Secretário da Casa Civil | Ricardo Leitão Assistência: Lilian Silva Secretário Estadual de Educação | Nilton Mota Pesquisa e textos: Maria Alice Amorim Secretário Especial de Cultura | Ariano Suassuna Fotografia: Luca Barreto Presidente da Fundarpe | Luciana Azevedo Projeto cartográfico: Luís Bulcão Diretor de Gestão | Alexandre Diniz Projeto gráfico e diagramação: Gilmar Rodrigues Diretora de Preservação Cultural | Célia Campos Revisão: Maria Helena Pôrto Diretor de Políticas Culturais | Carlos Carvalho Editora e gráfica: Liceu Diretor de Difusão Cultural | Adelmo Aragão Diretora de Projetos Especiais | Rosa Santana Diretora de Planejamento e Monitoramento | Fátima Oliveira Diretora de Gestão do Funcultura | Martha Figueiredo Assessor de Comunicação | Rodrigo Coutinho Coordenador Jurídico | Hugo Branco Coordenadora de Cultura Popular e Pesquisa | Teca Carlos Coordenador de Música | Rafael Cortes Coordenadora de Artes Cênicas | Teresa Amaral Coordenadora de Audiovisual | Carla Francine Coordenador de Artes Plásticas e Artes Gráficas | Félix Farfan Coordenadora de Desenvolvimento Institucional | Irani do Carmo Coordenadora de Patrimônio Histórico | Fátima Tigre Chefe da Unidade de Informática | Luciano Magalhães A524p Amorim, Maria Alice. Patrimônios vivos de Pernambuco/ Maria Alice Amorim; apresentação de Luciana Azevedo; organização de Maria Acselrad – Recife: FUNDARPE, 2010. 116p. il. 23cm. ISBN 978-85-7240-089-3 1. Patrimônios vivos – Pernambuco. 2. Patrimônio imaterial. 3. Salvaguarda. I. Azevedo, Luciana. II. Acselrad, Maria. III. Título. CDU 316.7 5 Texto Institucional · 6 Ana das Carrancas · 15 Luciana Azevedo Camarão · 19 Patrimônio Vivo em Contexto · 9 Manuel Eudócio · 23 Maria Acselrad J. Borges · 27 Cartograma de Mestres e Grupos · 12 Nuca · 31 Canhoto da Paraíba · 35 Referências · 112 Maracatu Leão Coroado · 39 Zé do Carmo · 43 Banda Musical Curica · 47 Lia de Itamaracá · 51 Dila · 55 Manuel Salustiano · 59 Índia Morena · 63 Homem da Meia-Noite · 67 José Costa Leite · 71 Zezinho de Tracunhaém · 75 Confraria do Rosário · 79 Fernando Spencer · 83 Teatro Experimental de Arte · 87 Caboclinho Sete Flexas · 91 Selma do Coco · 95 Maestro Nunes · 99 Clube Indígena Canindé · 103 Maracatu Estrela Brilhante de Igarassu · 107 6 Documentar, através deste livro, a trajetória dos “Patrimônios Vivos de Pernambuco” e, consequentemente, seus múltiplos saberes, histórias e memórias, representa para nós, da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco – Fundarpe –, um momento oportuno de reconhecer, salvaguardar e difundir parte da diversidade cultural que constitui Pernambuco. Mais do que isso, reforça o nosso compromisso em promover e proteger o patrimônio cultural imaterial, contido nas tradições, no folclore, nos saberes, nas línguas, nas festas e em diversas outras manifestações, fortalecendo as “referências culturais” dos grupos sociais em sua heterogeneidade e complexidade. Cientes da importância dessa categoria do patrimônio, temos, nos últimos anos, nos esforçado para criar e consolidar instrumentos e mecanismos, de maneira coletiva e compartilhada, que visam garantir o seu reconhecimento, defesa e, acima de tudo, viabilidade. Assim, no ano de 2002, o Governo do Estado de Pernambuco lançou, de maneira pioneira no Brasil, a “Lei do Registro do Patrimônio Vivo”, possibilitando o reconhecimento e o apoio aos mestres e grupos da cultura popular e tradicional, avançando para uma concepção do patrimônio entendido como “o conjunto dos bens culturais, referente às identidades e memórias coletivas”. Nesse contexto, formas de expressão, saberes, ofícios e modos de fazer ganharam um novo espaço, quanto à apreensão dos seus sentidos e significados. Hoje, nosso desafio é asseverar a inserção dos nossos patrimônios vivos na Política Cultural do Estado, o que temos feito através da realização de oficinas de transmissão de saberes, exposições, apresentações culturais, palestras, entre outras ações, que para nós significa a apropriação simbólica e o uso sustentável dos recursos patrimoniais direcionados à preservação e ao desenvolvimento 7 econômico, social e cultural do Estado. Nessa trajetória, articulamos diversas ações institucionais que possibilitaram investir em atividades como pesquisa, documentação, proteção e promoção desses patrimônios vivos. Portanto, ao dar corpo a testemunhos de pernambucanos e pernambucanas, este trabalho ousa servir como um memorial, um “pergaminho identitário” fundamental para a construção do futuro. Um futuro que começa na percepção do que fomos e de quem somos, possibilitados pela “consciência patrimonial”. Sem dúvida, esta valiosa e inédita publicação é mais um fruto desses desafios! Queremos compartilhar com vocês, leitores – e por que não “patrimônios vivos”? –, um pouco das nossas descobertas e redescobertas. Saibam, desde já, que o livro em mãos é resultado de um trabalho de pesquisa e registro, de um olhar atento e sensível, e incompleto, por essência, pois a cada ano serão incorporados novos patrimônios vivos. Mais do que registrar, portanto, estas linhas e imagens que seguem nos possibilitam mergulhar num mosaico de experiências que marcaram e marcam as vidas de grandes mestres e grupos da cultura popular e tradicional, verdadeiros tesouros vivos, guardiões e sacerdotes de memórias e saberes. Em seus testemunhos, são revelados o simbólico, o imaginário e o real, numa dinâmica objetiva e subjetiva que articula um saber fazer, conhecimentos e empreendimentos sociais desafiadores à nossa maneira de pensar e agir. Um rico universo em que as pessoas se expressam e se relacionam com o mundo; que comunica vida, fatos, pensamentos, sonhos, ideias e sentimentos. Boa leitura! Luciana Azevedo Diretora-presidente da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco. 8 9 O Patrimônio Vivo em Contexto Maria Acselrad1 Um dos instrumentos mais relevantes das políticas públicas voltadas para o reconhecimento das culturas populares desenvolvidas no Brasil, nas últimas décadas, tem sido as patrimonializações de bens culturais imateriais. É inegável que para o enriquecimento desse processo a circulação de documentos, como a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Popular e Tradicional, de 1989, e, mais tarde, a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003, ambas promulgadas pela UNESCO, e das quais o Brasil é signatário, foram decisivas para a reverberação de um debate público sobre o assunto. A resposta a esse movimento, por parte dos órgãos gestores de cultura, deu-se através da criação de instrumentos jurídicos apropriados que procuravam atender à demanda que se impunha em relação à lacuna gerada pelas políticas patrimoniais até aquele momento, no que diz respeito à dimensão imaterial do patrimônio Vale ressaltar, de acordo com Barbosa e Couceiro (2008), que algumas experiências, consideradas exemplares, de programas nacionais de salvaguarda – realizadas por países como Japão, Tailândia, Filipinas e Romênia, conhecidas como Tesouros Humanos Vivos – em prática desde o fim da Segunda Guerra Mundial, contribuíram de forma significativa para a ampliação das agendas políticas patrimoniais no mundo, inserindo o tema da salvaguarda através da transmissão de saberes e apoio direto a mestres e grupos, na pauta de diversos debates públicos de âmbito nacional. Num mundo cada vez mais globalizado, em constante e acelerado processo de transformação, a preocupação com as especificidades culturais alçava a um novo patamar a discussão sobre o patrimônio cultural. Nesse contexto, as políticas de patrimonialização de pessoas ou grupos da cultura popular e tradicional, amparadas por leis de registro estaduais, surgem no rastro de uma série de discussões acerca da salvaguarda do patrimônio imaterial que encontram repercussão no âmbito local. Em Pernambuco, a cultural brasileiro. Lei do Patrimônio Vivo3 surge como uma tentativa pioneira, A repercussão dessa discussão, no cenário brasileiro, ganha pública estadual, o instrumento do registro, procurando destaque com a criação do Decreto 3.551 de 4 de agosto de 2000, ápice de um longo processo de debates políticos e intelectuais, que institui o Registro dos Bens Culturais de Natureza Imaterial e cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, abrindo um espaço para o reconhecimento, por parte do Estado, de bens de caráter processual e dinâmico como patrimônio cultural do Brasil, tendo “como referência a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade no contexto brasileiro, de instituir no âmbito da administração fomentar diretamente as atividades de pessoas e grupos culturais representantes da cultura popular e tradicional, contribuindo para a perpetuação de suas atividades. O registro prevê a implantação de ações de formação, difusão, documentação e acompanhamento das atividades desenvolvidas pelos premiados. Nesse conjunto de ações, o processo de transmissão de saberes assume papel de destaque na salvaguarda das expressões, celebrações e ofícios aos quais os mestres e grupos encontram-se brasileira”. 2 vinculados, através do repasse de seus conhecimentos às novas 1 Antropóloga e professora do Depto. de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE. dela. 2 Decreto 3.551 de 4 de agosto de 2000 in: Patrimônio imaterial no Brasil – legislação e políticas estaduais.VIVEIROS DE CASTRO e FONSECA, Maria Laura e Maria Cecília Londres. Brasília: UNESCO, Educarte, 2008. gerações de alunos e aprendizes, em sua comunidade ou fora 3 LEI nº 12.196 de 02 de maio de 2002. Idem. 10 Nos últimos anos, o Governo de Pernambuco, através da Fundação saúde debilitado, para continuar efetivamente trabalhando, já têm do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco – Fundarpe –, em seus filhos um caminho que aponta para o futuro da tradição. vem realizando oficinas, palestras, aulas-espetáculo, apresentações culturais, homenagens, exposições, numa experiência inédita de O universo dos mestres e grupos contemplados abrange inserção dos patrimônios vivos na política de cultura do estado. expressões das diversas linguagens artísticas, dos ofícios artesanais, Essas ações, cujos formatos diferem de acordo com a expressão da religiosidade popular, entre outras manifestações culturais. cultural, idade e disponibilidade do mestre, revelam algumas Dentre os grupos registrados até o momento, podemos encontrar questões importantes para a reflexão sobre a transmissão de de forma predominante manifestações culturais ligadas ao saberes populares e tradicionais, quando fomentada pelas Carnaval: um clube de frevo, dois maracatus de baque virado políticas públicas de cultura, por exemplo: 1) o reconhecimento da e dois caboclinhos. Também foram registrados: uma banda de importância de serem preservadas as singularidades das tradições música, um grupo de teatro e uma irmandade religiosa. Entre culturais representadas pelos mestres e grupos contemplados; os mestres, encontramos uma diversidade de tradições culturais, 2) a valorização da diversidade de técnicas, conteúdos e formas através do registro de representantes da ciranda, do coco, da de repasse praticadas pelos mestres, características de processos xilogravura, da cerâmica, do forró, do cordel, do circo, da pintura, pedagógicos identificados com os princípios da educação não do cinema, entre outras. formal; e 3) o entendimento de que o processo de aprendizado do mestre é fator relevante para compreensão do seu processo Segundo Gonçalves (2003), se relativizarmos a noção moderna de de transmissão de saberes, entre outros aspectos. Todos esses patrimônio – criada no século XVIII, com o surgimento dos estados fatores implicam na concepção de que ações de salvaguarda não nacionais –, podemos encontrar correspondência na experiência devem prescindir dos atores sociais que se encontram em foco e universal do “colecionamento”, prática comum entre muitos povos que isso vem a ser decisivo para que a própria produção de sentido e comunidades, ao longo da história da humanidade. A atribuição das tradições por eles representadas se atualize e se perpetue no de valor, onipresente nos processos de identificação e registro do tempo e no espaço. patrimônio, faz com que essa tendência ao “colecionamento” venha a oferecer um panorama daquilo que de mais representativo Em Pernambuco, entre 2005 e 2010, foram registrados 24 e singular compõe o patrimônio cultural de um povo. São histórias patrimônios vivos. Dentre eles, 16 mestres e oito grupos, através de vida, processos de aprendizado, dinâmicas de trabalho, escolhas da publicação de cinco editais. O lançamento do primeiro edital estéticas, processos criativos e de transmissão de saberes de nossos rendeu excepcionalmente a premiação de 12 mestres4. Nos anos patrimônios vivos, compartilhados com a pesquisadora Maria subsequentes, três patrimônios vivos foram eleitos a cada edital Alice Amorim e com o fotógrafo Luca Barreto que, através desta publicado, através de um processo de inscrições que já soma mais publicação, temos o imenso prazer de apresentar. de 250 candidaturas ao registro. Em 2008, Pernambuco perdeu três mestres – Ana das Carrancas, Canhoto da Paraíba e Manoel Sendo assim, é com muita alegria que oferecemos aos nossos Salustiano –, e hoje conta com 21 patrimônios vivos, a maioria em patrimônios vivos este trabalho, em retribuição a toda uma vida atividade; e mesmo aqueles que se encontram com o estado de dedicada à cultura. 4 A publicação tardia do Decreto nº 27.503, de 27 de dezembro de 2004, que traz a regulamentação da Lei, gerou este acúmulo. 11 Recife, novembro de 2009. 12 13 Legenda Ano da Nome Artístico Tradição cultural Data de nascimento Cidade 1 Ana das Carrancas Artesanato em cerâmica 18.02.1928 Petrolina 2005 2 Banda Musical Curica Banda filarmônica 09.08.1848 Goiana 2005 3 Caboclinho Sete Flexas Caboclinho Fundado em 1973 Recife 2008 4 Camarão Forró 23.06.1940 Recife 2005 5 Canhoto da Paraíba Choro 17.03.1931 Recife 2005 6 Clube Indígena Canindé Caboclinho 05.05.1897 Recife 2009 7 Confraria do Rosário Irmandade religiosa Fundada provavelmente em 1777 Floresta 2007 8 Dila Xilogravura e Cordel 23.09.1937 Caruaru 2005 9 Fernando Spencer Cinema 17.01.1927 Recife 2007 10 Homem da Meia-Noite Clube de frevo 01.01.1960 Olinda 2006 11 Índia Morena Circo 13.07.1943 Jaboatão dos Guararapes 2006 12 J.Borges Xilogravura e Cordel 20.12.1935 Bezerros 2005 13 José Costa Leite Xilogravura e Cordel 27.07.1927 Condado 2006 14 Lia de Itamaracá Ciranda 12.01.1944 Ilha de Itamaracá 2005 15 Maestro Nunes Frevo 22.06.1931 Recife 2009 16 Manuel Eudócio Artesanato em cerâmica 28.01.1931 Caruaru 2005 17 Manuel Salustiano 12.11.1945 Olinda 2005 18 Maracatu Estrela Brilhante Maracatu de baque virado Fundado provavelmente em 1824 Igarassu 2009 19 Maracatu Leão Coroado Maracatu de baque virado 08.12.1863 Olinda 2005 20 Nuca Artesanato em Cerâmica 05.08.1937 Tracunhaém 2005 21 Selma do Coco Coco de roda 10.12.1929 Olinda 2008 22 Teatro Experimental de Arte Teatro Fundado em 1969 Caruaru 2008 23 Zé do Carmo Pintura e escultura 19.11.1933 Goiana 2005 24 Zezinho de Tracunhaém Artesanato em cerâmica 05.07.1939 Tracunhaém 2007 Rabeca, cavalo-marinho e maracatu titulação 14 15 Ana das Carrancas 16 D o extremo oeste pernambucano, espiando as terras do Piauí, saiu a louceira Ana Leopoldina Santos à procura de sobrevivência, e o que conseguiu cavar foi bem mais que isso: inspiração, talento, fama. Nascida em 18 de fevereiro de 1923, no distrito de Santa Filomena, povoação encravada na Serra do Inácio, à época pertencente ao município de Ouricuri, foram as verdes águas do Velho Chico que mais tarde viram nascer a artista. Serviu de mote criador a paisagem exuberante povoada de nego d’água, maus espíritos, vapor, paquete, remeiros. De um lado, Pernambuco. Do outro, a Bahia. No meio, o jorro inspirador. Nas margens, a lama sagrada. Era corriqueiro apreciar esculturas zoomorfas e antropomorfas na proa das embarcações, imagens que se repetiam nos barcos, há mais de um século, e no artesanato do Vale do São Francisco. Delas, um ícone se chamava Guarany, outro atende por Ana, a filha de Joaquim Inácio de Lima e Maria Leopoldina dos Santos. Ainda criança, tinha sete anos e já sabia fazer e vender louça utilitária – pote, moringa, panela, cuscuzeiro, jarro –, uma das tradições ouricurienses, que se mantém com as ceramistas da comunidade do Pradicó. Vendia “panelinha de guisado, boi zebu, cavalinho com vaqueiro amontado, santinho de lapinha”. Ou seja, moldava as peças de louça e mais uns tantos brinquedinhos para ganhar uns trocados e ajudar a mãe louceira, com quem teve os 17 Maria da Cruz dá continuidade ao estilo da mãe, Ana das Carrancas, com quem aprendeu o ofício primeiros ensinamentos na modelagem do barro. Aos 22 anos casou-se, teve duas filhas – Ana Maria e Maria da Cruz – e em seguida ficou viúva. Um ano depois de enviuvar, Ana se casou com o piauiense José Vicente de Barros. Moravam, então, em Picos. A vida não era fácil naquelas terras do sertão do Araripe, em que alternavam bom inverno e longos períodos de estiagem. Por esse motivo, incluiu-se no rol de migrantes que corriam para Petrolina em busca de um oásis. Era 1954. Chegou à cidade e começou vendendo aribé, panela, pote, presépio, burrinho, pato, boi, cabra. Depois da inspiração saída das águas do Velho Chico, nunca mais foi a mesma. As emblemáticas carrancas começaram a ganhar força e, a partir de 1970, tornaram-se disputadíssimas, graças, inclusive, ao trabalho de pesquisa sobre o artesanato pernambucano que os técnicos em turismo Olímpio Bonald Neto e Francisco Bandeira de Melo estavam realizando pelo sertão, a serviço da Fundarpe. Ambos ficaram impressionados com as carrancas da ceramista. A trajetória artística de Ana Leopoldina ficou marcada, daí por diante – e para sempre – pela mitopoética ribeirinha, a ponto de adotar o nome artístico que correu mundo: Ana das Carrancas. 18 A carranca mais antiga, da própria produção, data de 1963, quando ainda era conhecida por Ana Louceira ou Ana do Cego. Sobre a primeira peça, a carranca cangula, ela mesma contou: estava na beira do rio e pensou que poderia fazer um barco, colocar um velho, vendedor de jerimum, com um menino ajudante, umas bolinhas para fingir que era o jerimum, uma cobertura de palha e, claro, a carranca na proa do barco. Segundo Ana, essa invenção “deu sorte”. E assim, de tão bem-sucedida, a cangula ganha réplicas ainda hoje. Outras peças, igualmente difundidas, também trouxeram sorte: carranca-cinzeiro, com três caras, jardineira, totem. Aliás, não se pode falar em Ana sem associá-la às figuras totêmicas modeladas no barro, em forma de animal e de gente, alvo de chacota dos feirantes, quando circularam a primeira vez na feira livre de Petrolina. Ana não se intimidou. Ao contrário, valeu-se do imaginário da comunidade ribeirinha para moldar na cerâmica um dos ícones da cultura local. Um casamento bem-sucedido entre temática e talento. Nesse mesmo ano, 1963, inaugura-se a Biblioteca Municipal e as carrancas de Ana fazem sucesso, distribuídas a título de suvenir. Após levar o nome de Petrolina para feiras de artesanato nacionais e internacionais, figurar em galerias de arte e museus, alternar fama e ostracismo, o grande sonho da mulher oleira tornou-se vivo e palpável em setembro de 2000, mesmo ano em que conquistou o título de cidadã petrolinense. É inaugurado o Centro de Arte e Cultura Ana das Carrancas, com loja, ateliê e exposição de antigas carrancas, inclusive a de 1963. Tudo no ambiente ressalta a trajetória da ceramista. O olho vazado homenageia o marido, cego de nascença, Zé Vicente, o amassador do barro. As filhas Ângela Aparecida de Lima – adotiva – e Maria da Cruz Santos modelam esculturas, tal qual a mãe. A filha Ana Maria é casada com o escultor de carrancas em madeira, Domingos Lopes, ou Lopes de Petrolina, um dos seguidores do estilo de Guarany. Mesmo tendo falecido em 1º de outubro de 2008, na cidade de Petrolina, a família vive imersa no rico imaginário da ceramista, que sempre afirmava, orgulhosa: “meu sangue é negro, mas minha alma é de barro”. 19 Camarão 20 Q uando Antonio Ferreira da Silva e Josefa Alves Freire viram nascer o filho, não imaginavam que ali começava a trajetória de um grande sanfoneiro do agreste. Na verdade, o início de tudo tem a influência do pai, exímio tocador de oito baixos, a quem o filho, desde criança, passou a acompanhar nas andanças musicais. Na labuta cotidiana, enquanto o sanfoneiro ia para a roça, o filho de sete anos matreiramente ia experimentando os sons da sanfoninha pé-de-bode, até o dia em que o pai descobriu as artes da criança engenhosa, emocionou-se e passou a cultivar o talento do herdeiro, levando-o para as festas, onde o garoto prestava atenção nos músicos e depois, em casa, tirava os mesmos sons no instrumento. O menino conquistou definitivamente o pai executando, de ouvido, os acordes de Maria Bonita, um dos maiores sucessos àquela época. E o mestre Camarão, ou Reginaldo Alves Ferreira, tem consciência de que foram decisivos esses primeiros momentos da infância dedicados à música. Natural de Brejo da Madre de Deus, é também emblemático o próprio dia do nascimento: 23 de junho de 1940, véspera de São João. Foi em Caruaru – a mais importante cidade do Agreste pernambucano, protagonista de uma das mais tradicionais festas Camarão ministra aula de acordes 21 juninas do Estado e contemplada, ainda na década de 1970, com Inventivo desde o princípio, foi o mestre quem criou, em 1968, a o título de Capital do Forró – que Camarão construiu as bases primeira banda de forró no país, a Bandinha do Camarão; quem da carreira artística. Começou a trabalhar, aos 20 anos, na Rádio introduziu sopros (tuba, clarinete, trombone e piston) em banda Difusora daquela cidade, por onde passaram importantes nomes de forró; quem criou a Orquestra Sanfônica de Caruaru, em que da música brasileira, como Sivuca e Hermeto Pascoal. Foi na mesma diversas sanfonas executam não só variados ritmos juninos, mas rádio que ganhou o apelido, dado por Jacinto Silva. Luiz Gonzaga também frevo e maracatu. Norteando-se pela música desde o conheceu na difusora, tocando como profissional. Tinha 18 anos. a primeira infância, o mestre chegou a acompanhar o rei do Graças à amizade surgida entre ambos, o rei do baião produziu baião, após conhecê-lo num programa da Difusora de Caruaru, dois discos de Camarão, pela RCA Victor, em 1969 e 1970. mesma rádio por onde passaram músicos renomados e onde Gonzaga foi, na verdade, o seu grande mestre, embora nunca surgiu o seu primeiro conjunto musical, ou seja, o primeiro trio esqueça a importância dos ensinamentos paternos. Na discografia, de Camarão, o Trio Nortista, liderado por ele, um dos maiores o artista contabiliza, ao lado dessa feliz parceria com Luiz Gonzaga, sanfoneiros nordestinos, tocador de forró nas latadas das fazendas 28 discos, entre long plays, compactos, 78 rotações e CDs, a e arraiais juninos, experiente forrozeiro de animados grupos maioria fora de catálogo. É de 1998 o CD Camarão Plays forró, pés-de-serra. O trio era formado com os músicos Jacinto Silva e produzido na Inglaterra e com circulação exclusiva na Europa. Ivanildo Leite. Afinadíssimo na sanfona, acompanhou grandes 22 nomes da música nordestina, a exemplo de Sivuca, Dominguinhos, Santanna, Marinês, Jackson do Pandeiro, Arlindo dos Oito Baixos. O repertório de Camarão é, como manda a tradição da sanfona nordestina, generoso nos ritmos regionais – xote, xaxado, forró, baião e arrasta-pé. O nome do Maestro Camarão corre mundo. Em 1961, foi a sanfona dele que representou Pernambuco no primeiro aniversário de Brasília, a convite do presidente Jânio Quadros. Viaja acompanhado do Trio Nortista, que toca, então, em vários eventos comemorativos. Tem participado de encontros de acordeonistas pelo país, graças ao talento e maestria com que empunha a sanfona. Em 2004, participa do projeto O Brasil da Sanfona, de Myriam Taubkin, que produziu dois CDs, um livro de fotografias e um DVD. Fixado no Recife há quase 30 anos, mantém a Escola Acordeon de Ouro, fundada há uma década no bairro de Areias, onde já formou diversos músicos nas artes dessa invenção vienense de 1829, que, no Brasil, ganhou um sotaque bem nordestino e fez fama. Para facilitar a transmissão de conhecimentos, elaborou uma cartilha, em que registra importantes informações acerca dos instrumentos de fole, do manejo do fole, como escolher e manusear o acordeom, além de noções elementares de música. Marcelo de Feira Nova, Julinho do Acordeom, Ellan Ricard, Gleyson Alves, Juquinha, Deivison, Diego Reis e Cezinha do Acordeom são alguns dos reconhecidos sanfoneiros que passaram pela escola do mestre. Em parceria com Salatiel d’Camarão, desenvolve o projeto De pai para filho, com a realização de shows musicais, e, ainda, Sanfona nas escolas, voltado para oficinas em escolas públicas. Certamente inspirado na atitude do próprio pai, Camarão estimula e oferece contribuição decisiva à carreira de iniciantes e, inclusive, à do próprio filho, parceiro e continuador mais que legítimo da obra do mestre. 23 Manuel Eudócio 24 C om voz pausada e dedos firmes na modelagem, é assim que o primeiro galante do reisado vai debulhando os grãos de uma vida dedicada à arte e à agricultura. É pelas mãos e pela oralidade que saem as imagens trazidas da memória de um tempo em que conviviam os amigos Vitalino, Zé Caboclo e Manuel Eudócio Rodrigues. Sentado num banco de madeira, tem sempre diante de si uma mesa, barro molhado e ferramentas para fazer as esculturas, que, começadas no início do dia, por volta das cinco da manhã, precisam ser concluídos ao final da mesma jornada. As mãos não param, enquanto as lembranças emergem. Quase aos 80 anos, o narrador, mestre Eudócio, exibe o vigor mental e as habilidades manuais invejáveis de quem teve sempre uma vida regrada, dedicada à família, ao plantio e, sobretudo, à catarse da atividade artística iniciada ainda na infância, com a avó louceira Tereza Maria da Conceição. De 28 de janeiro de 1931, nascido e criado no Alto do Moura, Caruaru, o filho de Eudocio Rodrigues de Oliveira e Maria Tereza da Conceição desde criança trabalha na agricultura e ocupa as mãos esculpindo o barro. Frequentou apenas seis meses de escola e é com o auxílio das mãos e das experiências que vai descrevendo o que tem vivido esses anos todos no Alto do Moura. São sete décadas de 25 aprimoramento, de adaptação ao gosto da freguesia e de convívio com fregueses alemães, franceses, portugueses, americanos. De viagens ao Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Portugal. Lembra que as primeiras peças foram pintadas a dedo e, onde o dedo não cabia, pintadas com auxílio de uma varinha. Mais adiante, resolveu deixar peças ao natural, depois voltou a pintá-las. Gosta de fazer bonecos grandes, coloridos, embora menos vendáveis. A queima das esculturas sempre foi num forno do quintal, quinzenalmente, exceto quando há encomenda urgente. De preferência, o forno deve estar cheio, pois do contrário fica muito dispendioso. O que não admite, sob hipótese alguma, é a utilização de fôrma para moldar as esculturas. As experiências cotidianas sempre serviram de fio condutor nas criações inspiradas: batizado, enterro, casamento matuto, casamento forçado, casal andando em boi manso, violeiro, sanfoneiro, banda de pífano, cangaceiros, padre Cícero. Mergulhado no universo da cultura tradicional, uma das inspirações recorrentes é o reisado, com os respectivos personagens do folguedo natalino do qual participou: dona Joana, diabo, doutor, padre, mascarado. Em 1948, quando começou a fazer os bonecos, resolveu fazer um reisado. Fez vários personagens e conseguiu vender a uma pessoa do Rio de Janeiro. Ateliê no Alto do Moura, em Caruaru 26 Depois, com a dificuldade de comercializar o conjunto, foi fazendo acreditava na continuidade do ofício. Mostra-se impressionado as figuras individuais. O reisado já não sai no Alto do Moura, o com a permanência da atividade e o aumento quantitativo de mestre sente saudade e tenta recuperar, no barro, as práticas artesãos. culturais da infância e juventude. A família, uma das pioneiras no ramo, tem na nova geração os Eudócio sabe que é um criador, um perfeccionista. Jamais continuadores. Os irmãos Eudócio, Celestina e Josué herdaram o desperdiçou os anos de convivência com Vitalino e Zé Caboclo. ofício da avó e da mãe, e se veem sucedidos pelos filhos. Dos nove Quando Vitalino saiu do Sítio Campos para o Alto, em 1948, filhos de Eudócio, Carlos e José Ademildo, e as respectivas esposas, Eudócio tinha 17 anos. Conheceu os trabalhos do mestre na rua: vivem do barro. Do casal Celestina Rodrigues e Zé Caboclo, as naquela época ninguém vendia escultura em casa, o local de filhas Marliete, Socorro, Carmélia e Helena “puxaram ao pai, que exposição era o buliçoso espaço da feira. Do professor, Vitalino, era um artista de mão cheia”, segundo o tio Eudócio. Lembra, lembra-se de muitas coisas: por exemplo, que passou dois anos, inclusive, das miniaturas que fazia, quando jovem, e guardava com o cunhado Caboclo, trabalhando para o afamado ceramista numa caixa de fósforos, esculturas em tamanho minúsculo que são e nem sequer assinavam as próprias peças. Lembra, ainda, que uma das especialidades das irmãs Rodrigues. A linha de sucessão em 1957 já fazia questão de dizer aos compradores que aqueles também se repete na família Vitalino, na família Rodrigues, na bonecos chamados de “Vitalino” também eram criação de família Galdino. outros artistas. Com o desaparecimento do mestre, Eudócio não 27 J. Borges 28 A rtesão de cestinhas de cipó e brinquedos de madeira, oleiro, pedreiro, carpinteiro, pintor de parede, marceneiro, trabalhador da palha da cana, passador de jogo de bicho. Esses foram alguns dos ofícios que Jota Borges experimentou, antes de se decidir pela venda de cordel nas feiras de Pernambuco, Paraíba, Ceará e, principalmente, na Praça do Mercado de São José, no Recife, o que aconteceu a partir de 1956. Matuto esperto e comunicativo, logo descobriu ser exímio talhador de madeira e criador de histórias em versos. E o tempo de permanência na escola foi de apenas 10 meses. Da experiência com as artes manuais, sobretudo marcenaria e miniatura de móveis, desenvolveu habilidades que não seriam de jeito nenhum desperdiçadas mais adiante, conforme atestam as publicações impressas, as gravuras inconfundíveis, as inúmeras capas de livros e discos, exposições, oficinas. O primeiro folheto é de 1964, com capa do poeta e xilógrafo Dila: O encontro de dois vaqueiros no sertão de Petrolina. A partir de 1965, incentivado pelo amigo cordelista Olegário Fernandes, resolve fazer a capa dos próprios folhetos, e então escreve e faz a capa de O verdadeiro aviso de Frei Damião. Nascido no Sítio Piroca, Prensa alemã, utilizada na impressão dos cordéis 29 Bezerros, agreste pernambucano, a 20 de dezembro de 1935, José Francisco Borges nem avaliava o significado dessas decisões viajou, além dos lugares aonde tem ido a obra do artista: Itália, profissionais, apenas se deixava levar pela intuição criadora. Em Espanha, Holanda, Bélgica, México, Argentina. Para Caracas, foi 1976, faz uma das gravuras mais famosas: A chegada da prostituta em 1995. Visitou Cuba em 1997, num avião russo dos anos 1950, no céu. A vida do sertanejo, o imaginário nordestino, as fabulações onde permaneceu 12 dias, ministrando oficina num festival de dos contos populares, o cenário rural e as narrativas de cordel cultura caribenha. Na década de 1970, uma exposição de Borges declamadas pela boca do pai, tudo foi misturado na cabeça e nas percorreu 20 países. Em 1964, ilustrou a novela Roque Santeiro, memórias afetivas do artista, e o resultado é a plena vitalidade da TV Globo, e fez a primeira viagem de avião. conferida à famosa e premiada obra, que tem sido traduzida em outras línguas e linguagens artísticas, a exemplo de peça de teatro, Daí por diante não mais parou de percorrer o mundo. Há décadas telenovela, filme, coleção de roupa. tem viajado quase que ininterruptamente dentro e fora do país. Em 2005, comemorou os 400 anos do D. Quixote, de Miguel Se o nome dos pais – Joaquim Francisco Borges e Maria Francisca de Cervantes, com uma versão em cordel da referida novela de da Conceição – está inscrito irremediavelmente na vida de J. cavalaria. E foi para a França participar da exposição itinerante Borges, também não podem ser desprezados os nomes do O universo da literatura de cordel, na condição de principal artista plástico Ivan Marchetti, do escritor Ariano Suassuna e homenageado. Graças ao talento e à amizade que cultiva há do pesquisador Roberto Benjamin, que fizeram as primeiras anos com importantes galeristas, artistas plásticos, jornalistas e encomendas de gravuras maiores, escreveram sobre o artista e pesquisadores, Borges tem obras no acervo da Biblioteca Nacional deram-lhe ampla divulgação. Suíça, Estados Unidos, Venezuela, de Washington e no Museu de Arte Popular do Novo México França, Alemanha, Portugal, Cuba foram países para onde (em Santa Fé, EUA); é divulgado no New York Times, participou Familiares de J. Borges auxiliam na impressão das gravuras 30 da revista suíça Xilon em número especial (1980) dedicado aos xilógrafos nordestinos, ilustrou o livro As palavras andantes, do uruguaio Eduardo Galeano (1993), figurou no calendário da ONU de 2002 com a gravura A vida na floresta, tem participado de exposições na Galeria Stahli, Suíça, entre outras notáveis aparições internacionais no circuito artístico mundial. É importante mencionar, ainda, a atuação da Gráfica J. Borges, em plena atividade, que, durante quatro décadas, utilizou tipos móveis e prensa manual na produção de cordéis e xilogravuras, e vem construindo desde então parte da história da literatura de cordel. Borges à frente, claro, contando com a participação dos filhos J. Miguel, Ivan, Manassés, Cícero, Pádua, Jerônimo (falecido); irmãos, cunhada, sobrinhos, como Amaro Francisco (falecido), Severino Borges, Nena, Joel, Lourenço, Givanildo; dos três mais novos, os filhos Pablo e Baccaro e o neto Williams. O filho George vive de serigrafia e Ariano é gráfico. Ao todo, foram gerados 18 filhos. E um grande projeto de vida e arte, de que é testemunha o Memorial J. Borges, em Bezerros, onde o visitante pode apreciar as obras gráficas, plásticas, poéticas do mestre e, ainda, desfrutar de um dedo de prosa com o artista bom de papo. 31 Nuca 32 N uca é apelido de infância: Nuca de Tracunhaém ou Nuca dos Leões. Tracunhaém – topônimo indígena, que quer dizer panela de formiga – é a cidade de adoção do artista, desde os três anos. Leão é o signo de Nuca, ou Manoel Borges da Silva, que nasceu em 5 de agosto de 1937, no engenho Pedra Furada, Nazaré, Mata Norte pernambucana, filho dos agricultores Francisco Costa Mariano e Josefa Borges da Silva. O pai, da roça, criouse nos engenhos de cana-de-açúcar. Vivendo a infância num ambiente de ceramistas descobre-se um admirador do ofício e, desde os 10 anos, um continuador da tradição, modelando em barro elementos do cotidiano. O ano em que foi morar na cidade é o mesmo da estréia de Zé do Carmo na cerâmica. Quando estreou, havia em Tracunhaém o povo de Lídia, fazendo santo. Antônia Leão era referência da geração mais antiga, Maria Amélia já se destacava pela santaria. Zezinho chegou depois, de Vitória. Nilson, de Goiana. Nuca passou a conviver com diversos ceramistas em feiras e salões de arte popular, entre eles, Ana das Carrancas e alguns netos de Vitalino. Foi ao Rio de Janeiro participar de uma exposição e lá conheceu o mestre Vitalino. 33 Embora desde a década de 1940 já vendesse esculturinhas símbolo de Pernambuco é o leão, tampouco menosprezar a força de cerâmica nas feiras, principalmente na vizinha Carpina, é do imaginário de ascendentes negros africanos presente na Zona sobretudo a partir de 1968, quando esculpe o primeiro leão, da Mata, nem esquecer que a antiga denominação de Carpina era que se reconhece artista, consagra-se com o efeito visual da juba Floresta dos Leões. leonina e se entrosa com ceramistas renomados. O motivo da consagração veio da ideia de esculpir leões e floristas. A mulher, Se a família de Nuca era de agricultores, e não de louceiros, o Maria Gomes da Silva, ou Maria de Nuca, inventou de botar os mesmo aconteceu com a família de Maria, que também era da cabelos cacheados, também no leão. A moda da juba encaracolada roça, não tinha ninguém no barro. Pode-se dizer que a obra de se difundiu tanto, que artesãos aderiram à onda, substituindo pena Nuca é quase obra de dois artistas, originalidade a quatro mãos. de galinha pelos cachos. Além destes, que consistem nuns rolinhos O leão e as bonecas foram criação dele e da mulher. O talento de de barro aplicados um a um, há o leão de listra, o escamado e o ambos para as esculturas cerâmicas desabrochou no convívio com de tranças. Finas ou grossas, as escamas também são colocadas artistas e artesãos de Tracunhaém, terra das figuras em cerâmica individualmente, em leões e girafas. Sobre a escolha da temática e das panelas de barro. Depois de brinquedos, bonecas e anjos, dos leões, cogita-se que pode estar vinculada à memória recente os leões vieram para imortalizá-los. As esculturas são sempre ao da estatuária de louça portuguesa decorativa dos sobrados ou, natural, nunca pintadas, exceto sob encomenda. O forno, feito ainda, à memória ancestral daquele que é considerado o rei por ele próprio, fica no quintal de casa e testemunha o fato de dos animais. Entretanto, não podemos deixar de lembrar que o que é indispensável ter ciência para saber construí-lo e usá-lo. 34 E Nuca foi exímio nisso: na hora de queimar, sabia precisar a caldeação, a fim de não rachar a escultura, nem cair o cabelo. Outro importante segredo é o da aplicação dos detalhes: como fazer para não ressecar, enquanto vai modelando e colocando simetricamente um a um. Após afastar-se do ofício, por problemas de saúde, dois dos seis filhos dão continuidade às artes dos pais, Nuca e Maria: o primogênito Marcos Borges da Silva, ou Marcos de Nuca, faz os leões e José Guilherme Borges da Silva, o filho mais novo, faz as bonecas. Apesar de não terem sido muitas as viagens – Lima, Peru (1980), São Paulo, Rio, Brasília, Bahia –, Nuca dos Leões criou os filhos com a arte saída das próprias mãos, festejou a alegria de viver fazendo sempre o que gosta e também ofereceu todas as condições necessárias ao aprendizado e exercício artístico dos filhos seguidores. A obra do artista pode ser apreciada em antiquários, galerias de arte, e enfeitando praças do Recife, como a do 1º Jardim de Boa Viagem e a Tiradentes, no Cais do Apolo. Variando de 30 centímetros a um metro, nas esculturas assina “Nuca de Tracunhaém”, desenhando um nome de artista que enche de beleza o mundo. 35 Canhoto da Paraíba 36 O avô tocava clarinete. O pai, violão. O filho, Francisco Soares de Araújo, tinha a certeza de que adorava música, e isto era o que não faltava em casa, reduto dos principais instrumentistas da cidade. Ainda criança, já sabia apreciar um bom repertório, habituado aos saraus e serenatas na própria residência. Com o pai, Antônio Soares de Lima, aprendeu, aos 12 anos, a tocar a tabuinha, que era como apelidava o violão. O avô, o clarinetista Joaquim Soares, também exerceu grande influência sobre ele. Com o maestro Joaquim Leandro, regente da banda local, conheceu as primeiras notas musicais. Mas, outros instrumentistas da infância, a exemplo dos violonistas Zé Micas e Luiz Dantas, do saxofonista Manoel Marra e do acordeonista Zé Costa, foram decisivos, pois, por causa deles, manteve os primeiros contatos com um repertório de choros e valsas que o marcaram para sempre. Alguns chorinhos fizeram-no cultuado por músicos do porte de Radamés Gnatali, Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Paulinho da Viola. Nascido em 17 de março de 1931, em Princesa Isabel, alto sertão paraibano, o filho de Quitéria Lopes de Araújo, lá mesmo, foi o tocador do sino da igreja, fez iniciação musical e partiu amadurecido à procura de outras cidades em que pudesse expandir os dotes artísticos. Ainda adolescente veio ao Recife apresentar-se na Rádio Clube, mas somente aos 25 anos é que conseguiu realmente sair de Princesa Isabel. Foi para João Pessoa, em 1952, onde morou alguns anos e brilhou na Rádio Tabajara. Em seguida, 1958, transfere-se definitivamente para Pernambuco e é imortalizado como Canhoto da Paraíba, um dos mais importantes compositores de choro. O diferencial no uso da tabuinha aconteceu assim: por necessidade de compartilhar com os irmãos destros o mesmo instrumento, desenvolveu uma técnica especial de dedilhar o violão, tocando os acordes com a mão direita e usando a esquerda para o dedilhado das cordas, sem invertê-las. Ou seja, um violão “tocado pelo avesso”, como diz o título de um dos seus discos gravados. Reprodução de ilustração e antigas imagens de Canhoto da Paraíba, fotografadas na residência do artista, em Maranguape 37 Não só a forma de tocar o instrumento, sobretudo o vigor das 1977, é a vez do álbum Com mais de mil, selo Marcus Pereira, composições de Canhoto é que o fizeram chegar ao panteão produzido por Paulinho da Viola e festejado pela crítica musical dos grandes instrumentistas brasileiros. O repertório passa pelos do país. No repertório, as músicas Pisando em brasa e Com mais ritmos regionais – xote, xaxado, baião, frevo – e pela bossa nova, de mil. Além de produzir o primeiro disco de Canhoto, Paulino da predominando o choro e a valsa. Para a grandiosidade com que Viola viajou com o violonista pelo país, no Projeto Pixinguinha, e compunha e tocava o violão, poucos foram os discos gravados por gravou, no seu primeiro trabalho, de 1971, o choro Abraçando Canhoto: Único Amor, de 1968, é gravado pela Fábrica Rozemblit, Chico Soares, seguindo o estilo de composição do paraibano. Em no Recife. Um dos músicos, escolhido à época por Canhoto, foi 1990, Geraldino Magalhães e Lula Queiroga produzem o disco o jovem Henrique Annes, hoje violonista consagrado. O produtor independente Fantasia nordestina: Violão brasileiro tocado pelo do disco foi o maestro Nelson Ferreira. Em 1974, também pela avesso. E, pela Caju Music, lança, em 1993, o último trabalho solo, Rozemblit, sai Um violão direito nas mãos do Canhoto. Em Pisando em brasa, com participação especial de Raphael Rabello 38 e Paulinho da Viola. Ainda em 1993, pelo Tom Brasil, sai o CD Instrumental no CCBB: Canhoto da Paraíba e Zimbo Trio. Em 1999, Canhoto é ladeado por Annes, Rafael Rabello, Baden Powell na coletânea Os bambas do violão, lançada pela Kuarup. Radicado durante meio século em Pernambuco, Canhoto foi agraciado, em 1984, com o título de cidadão pernambucano. Reverenciado por Baden e outros grandes nomes da música popular brasileira, apresentou-se com Luperce Miranda, João Bosco, Sivuca, César Camargo Mariano, para citar apenas alguns. Em 2004, recebeu uma homenagem do presidente Lula, em Brasília. Na Paraíba, foi homenageado com a publicação da Lei Canhoto da Paraíba, que, a partir de 2005, concede a artistas o título de Mestres das Artes (Lei 7694/2004, Registro de Mestres das Artes – Rema) e ele foi um dos primeiros agraciados. Após sofrer isquemia cerebral em 1998, interrompe-se a carreira do artista, que passa os últimos anos de vida em Maranguape, Pernambuco, com uma filha, falecendo em 24 de abril de 2008. A importância musical desse requintado artista inspirou o Trio de Câmara Brasileiro a produzir, em 2009, o disco Saudade de Princesa – Sobre a obra de Canhoto da Paraíba, do selo Crioula Records. O recifense Caio Cezar assina a direção musical do CD e está organizando um livro com as partituras musicais de Canhoto. A genialidade do mestre, de viva memória, perpetuase com ações desse porte, e, ainda, ao ser constantemente revisitada nas gravações originais do instrumentista e em regravações ou releituras de outros virtuoses. 39 Maracatu Leão Coroado 40 D écada de 1950 do século 20. O respeitado oluô (sacerdote culto nagô e padroeira da grande festa do morro, que acontece máximo) Luís de França recebe a incumbência de dirigir uma anualmente na mesma data, em Casa Amarela. brincadeira de carnaval, que havia sido fundada pelo pai, um africano ex-escravo. O brinquedo era o Maracatu Leão Coroado. Luís de França dos Santos é de 1º de agosto de 1901. Nasceu na Morto um dos coordenadores, corria-se o risco de não haver quem rua da Guia, bairro do Recife, filho de Laureano Manoel dos Santos o substituísse. Herança de família e de tradição religiosa, o baque e Philadelpha da Hora. Segundo contava, durante a juventude virado daquela nação nagô precisava continuar. Desafio aceito, a vendeu jornais ao longo da via férrea, até Palmares, o que o levou vigorosa liderança de seu Luís proporcionou aos brincantes manter a conhecer senhores de engenho e chefes políticos da região. a atividade ininterrupta desde 8 de dezembro de 1863, data Ganhou muito dinheiro revendendo produtos importados, trazidos considerada como a de fundação, apesar de a memória oral indicar nos navios, quando trabalhava de estivador, profissão exercida até a possibilidade de o Leão já existir desde 1852. Mesmo mantendo- aposentar-se. Cresceu no bairro de São José, espécie de gueto de se a dúvida quanto ao marco fundador, o contexto político e escravos libertos, local onde aconteciam cultos africanos. Guardava social no qual nasce o grupo é marcado pelo debate em torno da na memória a participação intensa em terreiro de candomblé, o abolição da escravatura e os maracatus eram folguedos de negros Sítio do Pai Adão, em Água Fria, embora a sua iniciação religiosa escravos. Ressalte-se, ainda, que, no Recife, o dia 8 de dezembro é não tenha acontecido lá. Os pais de santo de Luís de França foram dedicado a Iemanjá e a Nossa Senhora da Conceição, esta última, Eustachio Gomes de Almeida e Maria Júlia do Nascimento, a Dona a representação católica, no sincretismo religioso, daquele orixá do Santa do Maracatu Nação Elefante. Apresentação na cidade de Goiana, 2003 41 Bairro de Águas Compridas, visto a partir do terreiro do maracatu O líder começou a participar do maracatu quando a sede ficava no conforme garante o babalorixá Afonso Aguiar, que integra o bairro da Boa Vista, numa rua que hoje se chama Leão Coroado. grupo a partir de 1996 e conduz a agremiação desde a morte de Foi membro da Irmandade de São Benedito da Igreja de São França, em 1997. Gonçalo da Boa Vista e da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos de Santo Antônio. Um dirigente desta última, José Luís, foi Na função de rei e rainha, o Leão Coroado teve Estanislau, João quem passou ao afilhado Luís de França a direção do folguedo. Baiano, José Nunes da Costa, José Luís, Gertrudes Boca-de-Sola, Daí em diante, o decidido líder passou a cuidar da organização Martinha Maria da Conceição e Dona Santa. Esta última, uma das do grupo, das obrigações religiosas e da direção da batucada, mais imponentes rainhas de maracatu, filha e neta de africanos, cujo baque secular aprendera com o pai e com os avós. Passado marcou presença, sobretudo no Maracatu Nação Elefante. As por Luís de França, continua mantido o mesmo baque tradicional, calungas são pretas, de madeira, e existem desde a fundação do grupo: uma delas representa Oxum, é Dona Clara; a outra, que representa Iansã, chama-se Dona Isabel. Durante mais de quatro décadas – provavelmente de 1954 até a morte, em 3 de maio de 1997 – o mestre Luís de França guiou o grupo com dedicação extremada, a ponto de provocar elogios da pesquisadora norteamericana, antropóloga Katarina Real, que, no início dos anos 1960, realizou pesquisa sobre o folclore no carnaval do Recife. À época, Katarina considerava o Leão Coroado a única legítima nação de maracatu ainda existente. São desse período diversos troféus conquistados pela agremiação. Em outubro de 1996, França convida Afonso Gomes de Aguiar Filho para sucedê-lo na liderança do grupo. Após amargar uns anos de isolamento e consequente retração do maracatu, o filho de Xangô acerta em adotar a sugestão do presidente da Comissão Pernambucana de Folclore, pesquisador Roberto Benjamin, quanto à indicação de Afonso Aguiar, que, desde então, tem conseguido realizar importantes viagens e apresentações em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Paraná, Santa Catarina, França, Holanda, Bélgica, Suíça, Espanha, Itália, Timor Leste, Ilhas Canárias. A comemoração dos 140 anos, em 2003, foi marcada pela gravação de CD, ao vivo, com as toadas tradicionais do grupo. Voltando, ainda, a 1997, o mesmo ano da morte de Luís de França, em 22 de dezembro é instituído o Dia Estadual do Maracatu: pela Lei 11.506, fica escolhido o 1º de agosto, em homenagem à data de nascimento Mestre Afonso e o centenário bombo-mestre daquele mestre. 42 Nascido na Campina do Barreto, Recife, em 15 de março de 1948, o mestre Afonso comanda há mais de 20 anos um terreiro em Águas Compridas, Olinda, para onde transferiu a sede do maracatu e todo o acervo do grupo. Ao longo do ano, desenvolve dinâmica de ensaios, aulas de percussão e toque de candomblé, oficinas de feitura e manutenção dos instrumentos musicais, de confecção do vestuário do maracatu, além de outras atividades educativas, como a preparação de um corpo de baile de danças afro. Todas as ações, tanto as preparatórias ao Carnaval quanto as pedagógicas envolvem continuamente a comunidade, sob a coordenação geral de Afonso Aguiar, que, inclusive, tem comandado oficinas de percussão e de confecção de instrumentos no Brasil e no exterior, a exemplo do Festival do Caribe, em 2009, na cidade de Santiago de Cuba. Seguidor fiel do mestre Luís de França, empolgado com a repercussão do primeiro CD e preocupado com a manutenção do grupo, o dedicado Afonso anuncia que o master do segundo disco está pronto e que as comemorações do sesquicentenário já estão sendo planejadas. Na primeira edição do Prêmio Cultura Viva (2005/2006), do Ministério da Cultura, o maracatu foi uma das iniciativas contempladas, na categoria manifestação tradicional. A partir de maio de 2008, o grupo é transformado em Ponto de Cultura. Instalado no mesmo endereço da sede do maracatu, lá funciona um telecentro, com cursos básicos de informática e acesso 24 horas à internet, para atendimento de demandas da comunidade, em todas as faixas etárias. Com firmeza, o mestre mantém rotina semanal de ensaios e de trabalho. A triagem de novos integrantes obedece a exigentes normas de conduta social. Provavelmente, o sucessor das tradições do terreiro e do maracatu será Afonsinho, o neto nascido em 1997, que toca nas obrigações da seita e tem comandado, quando necessário, a batucada do maracatu. Entretanto, como frisa o mestre Afonso, o Leão Coroado é mais religião do que carnaval. Com as bênçãos todas de Olorum, eguns e orixás. Pele de Bode curtindo para posterior montagem das alfaias 43 Zé do Carmo 44 P asseando pelos labirintos da memória do artista e pelos objetos mais recônditos do ateliê de José do Carmo Souza, conhecido internacionalmente pelas estátuas de anjos cangaceiros, descobrese uma encantadora obra poética, uma narrativa visual do barro massapê, que não se sabe exatamente quando e com quem começa em Goiana, mas registra, com certeza, a importância do legado materno de Joana Izabel de Assunção e dos filhos talentosos. A mãe – oleira, artesã, costureira – fazia figuras de barro e de pano, mané-gostoso e rói-rói. O pai, padeiro, fazia máscaras em papel machê para vender aos foliões, o molde era em barro e a modelagem em papel e grude. Manuel de Souza dos Santos e Joana Izabel de Assunção chegam a Goiana no ano de 1930, vindos de Igarassu, onde nasceram. Casados a partir de 1932, é um ano depois, em 19 de dezembro de 1933, que nasce o primogênito, Zé do Carmo. Conhecido desde 1947 no circuito artístico, autor de respeitável conjunto de esculturas cerâmicas tão originais quanto às da mãe, Escultura de anjo cangaceiro seria presenteada ao Papa e a Igreja Católica se recusou a receber 45 foi com apenas sete anos, em 1940, que Zé do Carmo começa a própria mãe, que não queria que o artista modelasse anjos com as fazer figurinhas de barro, pintar com tinta d’água, como faziam vestimentas do cangaço. Daí por diante, ganham asas, espingarda os pais artistas, e vender nas feiras de Goiana. Os dois irmãos, e ares nada angelicais os beatos de movimentos messiânicos, os João Antônio de Souza e Manuel Miguel de Souza, também cangaceiros Lampião e Maria Bonita, entre outros personagens da aprenderam o ofício dos pais. Das peças mais antigas de Zé, cultura regional – o que resultou em polêmicas, sobretudo quando destacam-se figuras de mendigo, agricultor, carregador de açúcar, Zé do Carmo ofereceu ao papa um monumental anjo cangaceiro Preto Velho, anjo cangaceiro, apanhador de papel, apanhador e o presente foi recusado. Medindo cerca de dois metros, a de água, vendedor de couro, jornaleiro, Lampião, Maria Bonita, escultura é mantida no ateliê, além de uma outra, em menor carregador de água, tocador de bandolim, Padre Cícero, Nossa proporção, também rejeitada pela Igreja, e mais um Papai Noel Senhora Artesã, São Pedro Pescador (o padroeiro de Goiana). No nordestino, de gibão, alpercatas e chapéu de couro. Em 1982, acervo pessoal, conta com peças autorais feitas há cerca de 40 e criou o Vovô Natalino, um velho simpático de aspecto messiânico 50 anos. Há uma rendeira que criou entre 1949 e 1950, quando, medindo 1,80 m, que faz Gilberto Freyre escrever artigo no Diario segundo confessa, ainda copiava as figuras da mãe. A iniciação, de Pernambuco, de 2 de janeiro de 1983, louvando “bom e bravo obviamente, foi com ela e o pai, mas o aluno atento, que cursou repúdio ao Papanoelismo que vem descaracterizando os bons apenas o Ensino Fundamental, sempre se valeu da observação e do Natais castiçamente brasileiros...”. autodidatismo para aperfeiçoar a técnica e dar vazão às invenções artísticas. Sobre a engenharia das peças gigantescas, o artista explica: constrói um bloco até a cintura e espera secar. Depois que Depois que a mãe morreu, em 1972, Zé do Carmo inaugura uma está enxuto, torna oco esse bloco e levanta o restante. Em nova fase criativa, a que chama de “transfiguração humana”, seguida, modela os detalhes do corpo e do rosto. As peças ficam pois transforma anjos em cangaceiros, a despeito da vontade da alicerçadas numa base de barro e pousam sobre um suporte de 46 madeira com rodízios. Para ele, os primeiros trabalhos eram populares demais. Depois disso, acredita que conseguiu modelar figuras de proporções acadêmicas, como o Padre Cícero que mantém no acervo exposto no ateliê. Tem, ainda, um busto de São Pedro jovem, que fez seguindo o padrão de escultura neoclássica: proporção seguida à risca, com detalhes do rosto bem-delineados. Durante muitos anos, foi professor de modelagem em barro e de proporção. Escultor também em pedra, prova isso com um busto exposto em meio às peças mais antigas. É inegável que, além da observação do artista, o talento sobressai, garantindo a qualidade e a adesão de discípulos. E não foram poucos os ceramistas que passaram pelo ateliê de Zé do Carmo, na condição de aluno: Irene, Mário Pintor, Severino, George, Tog, Luiz Carlos, Luiz Gonzaga, Précio Lira, Dica, Andréa Klimit e Tiner Cunha. O único filho que possui não é discípulo, mas, segundo o próprio pai, tem talento para a arte. Dedicado desde 1980 à pintura, o tema preferido nas telas é o mesmo das esculturas: anjo cangaceiro. 47 Banda Musical Curica 48 C urica, do tupi ku’rika, é pássaro de canto estridente, da família Ricardinho, participou das festas em homenagem a D. Pedro de papagaios e araras, que canta pelas matas e mangues. II, durante visita à cidade, em 6 de dezembro de 1859. Quatro Talvez por isso o nome da centenária sociedade musical goianense, dias depois, ou seja, 10 de dezembro, o Diario de Pernambuco numa alusão ao papagaio trombeteiro. Melhor explicando, noticiava a visita da autoridade máxima do país e dizia que a existem, de fato, duas versões que apontam tal escolha para o Guarda Nacional “esteve reunida com mais de 700 praças e boa nome da banda, fundada em 1848. Segundo uma delas, a senhora música”. A Curica, naquele período, era a banda do batalhão. chamada dona Iria perguntou ao mestre João José, que passava pela rua da Conceição: “Seu João, por que é que a música grita Com um repertório musical cheio de sofisticação e variedade, o tanto, que até parece uma curica?” A outra versão, variante da grupo também marcou presença nas comemorações da Abolição primeira, conta que dona Iria era irmã do padre José Joaquim da Escravatura, da Proclamação da República, ajudou em Camelo de Andrade, e morava à rua Direita, em companhia das campanhas políticas do Partido Conservador e, então militarizada, próprias escravas. Estando, certa vez, na porta de casa, o maestro fez parte da Guarda Nacional. Criada com o objetivo de realizar José Conrado executava uma polca do musicista Francisco Tenório, tocatas em festas religiosas, a banda foi fundada em 1848, e ela teria dito, em voz alta, a uma de suas escravas: “Ô Rosa, por José Conrado de Souza Nunes, primeiro regente do grupo aquela música só parece dizer cu-ri-ca-cá”. A outra respondeu com musical. Do Rio Grande do Norte, era conhecido como o filho do uma gargalhada, e assim ficou o apelido que, supõe-se, era usado marinheiro, Boca de Cravo. Segundo o historiador Álvaro Alvim em tom depreciativo. da Anunciação Guerra, cujo pseudônimo era Mário Santiago – conforme pesquisado e publicado, na ocasião do centenário, em A Sociedade Musical Curica oferece, justamente por ser antiga, um 1948, no livro Elementos para a história da Sociedade Musical repertório de tradições, de histórias contadas pelos mais velhos, Curica – tudo começou com um grupo de 12 a 15 músicos que dentre eles os nonagenários Antônio Secondino de Santana, se reuniu no consistório da igreja de Nossa Senhora do Amparo Meia Noite, e João José da Silva, Calixto, dois dos mais antigos dos Homens Pardos e resolveu criar uma orquestra sacra, participantes da banda – falecidos após a banda conquistar o título apresentando-se pela primeira vez numa tocata, no Amparo, estadual de patrimônio vivo, concedido em 2005. Uma dessas durante as comemorações da natividade de Nossa Senhora, ou histórias diz respeito a uma tocata para o Imperador. Conforme seja, no dia 8 de setembro de 1848. À época da fundação, era consta nos anais de Goiana, a Curica, sob a regência do mestre chamada de corporação musical. Assim começa a história da Panorâmica da rua da sede da banda 49 Curica, a mais antiga banda de música, em atividade ininterrupta, do Brasil e da América Latina. O abolicionista e senador do Império João Alfredo Corrêa de Oliveira dá notícia, na biografia que escreveu sobre o 2º Barão de Goiana – Bernardo José da Gama –, que “cada partido tinha a sua banda de música a estafar-se em ajuntamentos e passeatas”. Deduz-se que a outra banda era a rival Saboeira, de 1855, ainda hoje em atividade, fundada com o objetivo de acompanhar o Partido Liberal, oposicionista do Partido Conservador, ao qual pertencia a Curica. As histórias da inimizade figadal entre as duas bandas foram escritas com sangue. Entre pontapés e lances de capoeira, gritava-se: “Viva a Curica! Morra a Saboeira!” E viceversa. Em 1928, visitou a capital da Paraíba, o que teve enorme repercussão na imprensa local. Entre os sócios honorários, constam os nomes do então presidente Getúlio Vargas e de Flores da Cunha, interventor no Rio Grande do Sul. Durante a 2ª Guerra Mundial, participou de passeata antinazista em agosto de 1942. Vista aérea de Goiana (autor desconhecido) 50 No dia 1º de dezembro de 1944 recebe a visita do famoso A Curica é um dos grandes patrimônios culturais de Goiana musicólogo uruguaio, professor Francisco Curt Lange, que, e sempre marca presença em solenidades cívicas e religiosas, demonstrando grande interesse pelos arquivos de composições inclusive nas viagens pelo Brasil. No Carnaval, subdivide-se em musicais, obteve uma relação das peças escritas no século 19, mais duas orquestras de frevo, para tocar no centro, nos distritos e uma fotografia da corporação. A banda executou, em homenagem vizinhança. Em variados eventos e inaugurações, apresenta-se ao visitante, a Sonata Patética, de Beethoven; a valsa Obstinação, sob a forma de orquestras menores. O acervo musical conta com de Nelson Ferreira, e o dobrado Conselheiro João Alfredo. Na data mais de 800 títulos, de todos os gêneros, entre clássicos, barrocos, do centenário, em 1948, Antonio Correia presenteou a Curica com dobrados, marchas de procissão, músicas religiosas, MPB, para uma sede própria, a mesma onde o grupo desenvolve as atividades execução por cerca de 60 a 70 músicos. A catalogação do arquivo até hoje, à rua do Rosário. Naquele ano, a banda também decidiu histórico e musical foi realizada pelos estudantes da escolinha, em criar estatuto próprio, ainda em vigor, em que se estabelecia a regime de voluntariado. Resultante de um trabalho filantrópico fundação de uma escolinha de música, a fim de gratuitamente de maestros, diretores e instrumentistas, a banda é responsável serem transmitidos os conhecimentos musicais, pelos mais antigos, pela contínua preparação de novos artistas, pela renovação dos para as novas gerações. De meados de 1960 a 1970, a banda próprios integrantes e traz no histórico a passagem de nomes manteve uma formação denominada Curica Jazz, que é retomada consagrados, como o famoso capitão Zuzinha, ou José Lourenço no início de 2009. São 29 componentes, escolhidos entre os mais da Silva, e os maestros Duda e Guedes Peixoto. É inegável que talentosos alunos da escolinha e integrantes da banda. Em meio às a Curica tem colaborado com o despertar de talentos, com a novas realizações, a diretoria está organizando o primeiro registro formação de músicos. E mais: toca a sensibilidade dos goianenses, fonográfico, tanto da banda, quanto da jazz, para a gravação de que a veem passar pelas ruas, despertando-lhes o amor à música e dois CDs a serem lançados ainda em 2010. às vivas tradições da cidade. Edson Júnior, músico e presidente da banda 51 Lia de Itamaracá 52 S oberana, feito uma deusa surgida das águas do mar ou uma rainha plena de realeza, é assim que Lia sempre aparece, levando-nos ao prazer de ouvir e dançar uma ciranda. Sim, porque ninguém fica imune ao ritmo da ciranda, muito menos aos encantos da filha de Iemanjá, que se habituou a cantar desde criança, na praia de Jaguaribe, localidade da Ilha de Itamaracá onde nasceu em 12 de janeiro de 1944 e vive até hoje. Cheia de familiaridade com a música e a dança, Maria Madalena Correia do Nascimento começou a carreira artística muito jovem, cantando ciranda desde os 12 anos. A filha de Severino Correia do Nascimento e Matildes Maria da Conceição é a mesma Maria, ou Lia, da música que se transformou num hino: Essa ciranda / quem me deu foi Lia / que mora na Ilha de Itamaracá. A história dessa deusa de ébano, de um metro e oitenta, não é só feita de glamour. Após permanecer quase duas décadas no ostracismo, lança em 2000 o CD Eu sou Lia, que recebe selo de world music, graças à mescla de instrumentos de percussão e sopro aos ritmos populares, e, por isso, chega a ser comercializado nos Estados Unidos e na Europa. Nessa nova etapa de divulgação do trabalho, Lia passa a viajar constantemente pelo Brasil e pelo Espaço cultural é dedicado a Iemanjá continente europeu, e, ainda assim, não é difícil vê-la nas rodas de ciranda do Recife e Olinda, ou em Jaguaribe, onde funciona, à beira-mar, o Espaço Cultural Estrela de Lia, sob o efeito mágico da envolvente paisagem marinha, com direito a lua, pancada do mar, cheiro de maresia e brisa balançando os coqueiros. Nesse ambiente, Lia tem recebido, aos sábados – e desde novembro de 2004 –, diversos artistas, como Cátia de França, Célia coquista, a Ciranda de Baracho (das filhas do mestre, Dulce e Severina Baracho), Antúlio Madureira. Mas, diferentemente do bem-sucedido ressurgimento, antes a artista havia produzido apenas um LP, A rainha da ciranda, gravado pela Rozemblit em 1977, do qual lembra não ter recebido nada. Quando foi cozinheira de um restaurante na ilha, também cantava no local. O neto Misael 53 Frequentava outras rodas de ciranda, esporadicamente, sem 1998, no Rio de Janeiro, durante participação no projeto Vozes do Mundo, do Centro Cultural Banco do Brasil. Quase uma década depois desse lançamento, sai em 2008 o segundo CD, Ciranda de ritmos, com direção musical de Carlos Zens, e destaque para Bezerra do Sax, as filhas de Baracho e uma composição de Capiba. Conforme indica o título, o disco contempla outros ritmos pernambucanos para além da ciranda: frevo, coco, maracatu. Mas, claro, quem permanece reinando é a majestosa cirandeira. Habituada, há mais de 50 anos, ao convívio com mestres da ciranda, Lia sempre faz questão de lembrar que Baracho era um grande amigo. É dele a ciranda: Morena vem ver / que noite tão linda / a lua vem surgindo / cor de prata. // Faz-me lembrar / da minha Maria / quando pra ela / eu fazia serenata. No embalo da ciranda e das afinidades eletivas, Baracho e Lia compartilhavam três importantes aspectos: boa voz, presença marcante na hora de puxar a roda e habilidade no tratamento dos temas, como o do amor. O convívio artístico, entretanto, não se resumiu aos experientes cirandeiros. Teca Calazans, Edu Lobo, Clara Nunes, Geraldo de Almeida, Ney Matogrosso e Paulinho da Viola, entre outros, são nenhuma projeção fora do restrito circuito de aficcionados da cultura popular. A partir dos anos 1980 passa a ser merendeira da Escola Estadual de Jaguaribe, profissão que seguiu exercendo, paralelamente à carreira artística. A volta triunfal ao mundo da música se deu graças à atuação do produtor Beto Hees, que a levou, em 1998, a participar do festival recifense Abril pro Rock, no qual foi aplaudida por 12 mil pessoas. Daí em diante, sobretudo a partir de 2000, passou a fazer turnês pelo Brasil e exterior, com os shows do primeiro CD, gravado pela Ciranda Records, que contém composições dela própria, de cirandeiros do Recife, de compositores renomados e algumas de domínio público. Cinco músicas foram gravadas ao vivo em alguns dos grandes nomes da música brasileira que já cantaram Lia em versos próprios, em composições da cirandeira ou de outros. Essa ciranda quem me deu foi Lia é a mais antiga, de 1960 para 1961, e foi gravada por Teca Calazans. Paulinho da Viola também ofereceu versos bonitos para a negra mais elegante dentre todos os ilhéus: Eu sou Lia da beira do mar / morena queimada do sal e do sol / da Ilha de Itamaracá (...), música incluída no primeiro CD. O convívio artístico também levou a dama da ciranda por outras veredas, como a de estrela do curta-metragem Recife frio, de 2009, dirigido e realizado por Kleber Mendonça Filho. Com o porte e a realeza da soberana Iemanjá, a artista comanda as atividades do Centro Cultural Estrela de Lia, transformado desde 2008 em Ponto de Cultura, onde são oferecidas oficinas 54 de arte, cerâmica, percussão, fotografia, malabares, rabeca, teatro, cavalo-marinho. Permanecem, ainda, as temporadas de apresentação artística: recitais poéticos, bandas alternativas, duplas de violeiros, filhas de Baracho, e, claro, a tradicional ciranda de Lia. Toda a programação cultural é gratuita e sempre conta com o envolvimento da comunidade local, ou seja, os habitantes da Ilha de Itamaracá e, especificamente, os da praia de Jaguaribe. Em franca ebulição, o Ponto de Cultura foi contemplado, no início de 2009, com o prêmio Interações Estéticas e Residências Artísticas, numa parceira da Fundação Nacional das Artes (Funarte) com o Ministério da Cultura (Minc). Quem mais se beneficiou foram os habitantes da localidade, com as oficinas promovidas pelo mestre rabequeiro Luiz Paixão e pela As filhas de Baracho cantam ciranda com Lia atriz Cinthia Mendonça. na paisagem iluminada da ilha, nos jangadeiros que saem para o alto-mar e vêm trazendo peixes, nas ondas salgadas que quebram Por onde viaja, Lia de Itamaracá vai somando os elogios que na praia, na brisa marinha que tem lhe soprado aos ouvidos umas tem recebido também na própria terra. É chamada de deusa, rimas, sussurrando-lhe quantas estrelas tem o céu e quantos rainha. Na França, um jornal comparou-a à cabo-verdiana Cesária peixes tem o mar. Versos e balanço encadeados pela percussão e Évora. No Brasil, é constantemente relacionada a Clementina sopro realçam a voz rascante de Lia, “uma diva da música negra”, de Jesus, sobretudo no sul e Sudeste. No mesmo local em que conforme noticiou o New York Times. A deusa da ciranda sabe nasceu, frequentou a escola primária e assistiu a muito coco envolver-nos todos, plena de generosidade e magnetismo, até de roda, ciranda, pastoril e bumba meu boi. Não teve iniciação quando empresta a voz ao genial Capiba: “minha ciranda não é musical com ninguém, foi aprendendo sozinha, inspirando-se minha só, é de todos nós, é de todos nós”. 55 Dila 56 C angaço e peripécias diabólicas são os temas predominantes no universo do mestre em fabulações, gravador de capas de folheto e álbuns em policromia, autor de rótulos de bebida e remédios, ilustrador de livros e publicações variadas. O nome de batismo do marechal do cordel do cangaço, conforme se autodenomina, é José Soares da Silva, ou Dila, nome emblemático no mundo da gravura popular. Nascido em 23 de setembro de 1937, em Bom Jardim, e estabelecido em Caruaru, o filho de Domingos Soares da Silva e Josefa Maria da Silva testemunha que, dos anos 1950 em diante, mergulha no mundo do cordel e da xilogravura, quando passa a comercializar folheto nas feiras de Pernambuco, Alagoas, da Paraíba e do Ceará. Municiado de generosa fabulação, Dila compartilha com amigos e visitantes a riqueza do seu mundo imaginário, as invenções e reminiscências de mais de cinco dezenas de anos dedicados às artes gráficas, à poesia de cordel e à xilogravura. No limiar entre realidade e imaginação, tão bem-cultivadas pelo poeta, rememora a chegada em Caruaru, em 1952, e as primeiras xilogravuras, que 57 foram para folhetos dele mesmo, de Francisco Sales Arêda e de outros poetas de meio de feira, tais como Vicente Vitorino, Chico Sales, Jota Borges, Antônio Ferreira de Morais e João José da Silva. E, finalmente, a facilidade para com os desenhos credita ao pai que, segundo ele, foi caricaturista. Em 1974, em plena atividade de poeta, gravador, impressor, aparece no documentário de Tânia Quaresma, Nordeste: cordel, repente, canção, em que figura a profissão registrada em letras garrafais pintadas na fachada do mesmo endereço onde ainda hoje reside, em Caruaru: Art Folheto São José. Romances e folhetos. Do autor e editor: Dila é aqui. A partir da experiência na fabricação de carimbos, substitui as matrizes de madeira pela borracha, obtendo um resultado de impressão que o pesquisador Roberto Benjamin batizou de folk-off-set. Utiliza cores diversas numa mesma matriz, ou faz inúmeras combinações de gravura a partir de detalhes elaborados em matrizes diferentes. As figuras são preparadas separadamente para permitir isso. Irrepreensível no desenho e na invenção, a gravura limpa, bem-talhada, complexa exibe narrativa imagética absolutamente original, sob ângulos inusitados, sem contato sistemático com os cânones do desenho clássico. A partir dos anos 1970, inova em publicações coloridas e no formato cordel. Em 1973, edita o álbum de gravuras em policromia Rasto das histórias, utilizando-se de azul, vermelho e amarelo sobre fundo branco. Em 1974, publica A bagagem do Nordeste, com a capa em preto, vermelho e amarelo sobre fundo branco. Viver do cangaceiro sai em 1975, pela Art folheto São José. O álbum Réstias do cangaceiro é editado em 1981. O fabricante de rótulos de bebida instala na própria casa máquinas de tipos móveis e prelo, a fim de publicar folhetos e imprimir gravuras. Além disso, as ferramentas manuseadas para cavar a matriz são faca, peixeira, canivete, lâmina de barbear, que cortam a borracha, ou neolite, para fazer capas de cordel, rótulos e carimbos. Abre letreiros e desenhos do cordel numa mesma matriz, em borracha ou ainda na madeira, reinventando o tipo 58 fixo, conforme lembra Roberto Benjamin, no texto Aparatos dos em ininterrupto fluxo criador, e também na atual invenção da livros populares – Dila editor popular. E o registro da própria “literatura de cordel em contos”, da “literatura de cordel em editora é tão mutante quanto o caudaloso fluxo narrativo do prosas” que vem engendrando e editando, os motivos passam poeta. A Art folheto São José virou Gráfica São José, ou Gráfica por ciganos e cangaceiros, Chico Heráclio, Lampião, Padre Sabaó, ou Preéllo Santa Bárbara, ou Fhòlhéteria Càra d’Dillas. Cícero, o Pai Eterno, Pessoa e Dantas, Ariano Suassuna, “xylgra Nesse registro, o nome da folheteria aparece na contracapa do e cordel”, Dyylas Sabóia. Se, em vez de cordel e xilogravura, cordel, com um autorretrato de Dila vestido de cangaceiro. produzisse um filme de cangaço, deliberou, de antemão: seria o protagonista, o cangaceiro Relâmpago. Assim, em meio a fantasias E, mais, o registro de autoria do texto e da xilogravura é sempre e criação poética, Dila vai recebendo visitas diárias de estudantes, tão variável quanto o do editor. Dila: o marechal do cordel do pesquisadores, turistas, todos ávidos em conhecer o mundo cangaço. Dila Soares da Silva. Dila Ferreira da Silva. Dyyllas Sabóia. maravilhoso do artista que está sempre a exibir, com o maior Dila Sabaó Sabóia. José Cavalcanti e Ferreira, José Soares da prazer, as mais recentes invenções de poesia e xilogravura. Silva, Dila ou Dillas. Recorrentes num universo poético expresso 59 Mestre Salustiano 60 A inda menino, sete anos, brincava cavalo-marinho pelos engenhos de Aliança. Foi arriliquim, dama, galante, cantador de toada, nove anos de Mateus, depois foi ser mestre. O pai era um tocador de rabeca, aprendeu com ele. Os folguedos e brincadeiras eram vistos e experimentados desde criança: maracatu, ciranda, coco, forró, mamulengo, improviso de viola. Estudou até a 4ª série primária. Trabalhou em casa de família, vendeu sorvete, picolé, foi ambulante. Conforme declarações próprias, considerava-se o maior dançador de cavalo-marinho e, nos versos de maracatu, inspirava-se no mestre Antônio Baracho. Manoel Salustiano Soares, ou mestre Salustiano, artista múltiplo e produtor de espetáculos e folguedos tradicionais organizados e mantidos em família, nasceu a 12 de novembro de 1945, em Aliança, e foi lá, na Zona da Mata Norte, que se iniciou no universo cultural de que é um dos mais afamados representantes. O filho de Maria Tertunila da Conceição aprendeu a ler, escrever e sempre teve inteligência suficiente para tirar o máximo proveito dos dotes artísticos. Começou a morar em Olinda em 1965, mesmo ano em que começou a tocar rabeca profissionalmente, aprendida pelas mãos do pai e professor, João Salustiano, que ensinou o filho a fazer e a usar o instrumento. Passou a ser mais conhecido na década de 1970 e em 1977 participa de um comercial de TV. Foi entrevistado em 1989 no programa televisivo Som Brasil e, nessa época, segundo ele mesmo, só conhecia a Mata Norte, nem sequer outras regiões de Pernambuco. Em 1997, integrou comitiva de artistas locais que foi a Cuba. Durante mais de 10 anos organizou o festival da rabeca e coordenou a Casa da Rabeca do Brasil. Por quase 20 anos participou, na condição de fundador, da Associação de Maracatus de Baque Solto de Pernambuco. Recebeu o título de reconhecido saber em 1990, concedido pelo Conselho Estadual de Cultura, e o título de doutor honoris causa, na UFPE. Foi agraciado com o título de Comendador da Ordem do Mérito Cultural, em 2001, pela Presidência da República. Percorreu todos os estados brasileiros e outros países, como Bolívia, Cuba, França, Estados Maciel Salu e Barachinha 61 Unidos. Com a casa repleta de filhos, o mestre Salustiano sempre manteve a liderança da família e conseguia envolver todos nos projetos culturais que constantemente articulava no entorno da própria residência, no bairro olindense de Cidade Tabajara, reunindo a comunidade, os vizinhos, turistas e pesquisadores de cultura popular. Inicialmente, era no espaço Ilumiara Zumbi que as apresentações aconteciam. Depois, as festas foram transferidas para a Casa da Rabeca do Brasil, espaço inaugurado pela família para oficinas, danças, encontros de maracatu rural e de cavalomarinho, shows de música regional. No Natal, vários grupos de cavalo-marinho se reúnem e brincam a noite toda. Tem também pastoril, ciranda, o cavalo-marinho Boi Matuto, fundado pelo mestre em 1968, e o Mamulengo Alegre, outro brinquedo da família, cujos bonecos eram feitos por Salu mesmo. Dublê de artista e artesão, esculpia no mulungu os bichos do bumba meu boi, cavalo, boi, burra. Fazia em couro de boi e de bode as máscaras do cavalo-marinho. No domingo de carnaval, chegam ao terreiro da família troças, ursos, caboclinhos, boi, burra, além do grande acontecimento da tarde: a trincheira do maracatu rural Piaba de Ouro, que fundou em 1977, e hoje é estruturado com mais de 300 componentes. Na segunda de carnaval, acontece o encontro de todos os maracatus rurais de Pernambuco. 62 Graças à sensibilidade artística e às invenções de homem de ciranda, maracatu, mamulengo, coco, forró, frevo: O sonho inteligente, Salustiano cultivava a memória da infância, povoada da rabeca, As três gerações, Cavalo-marinho, Mestre Salu e a sua de cavalo-marinho, maracatu, mamulengo, pastoril, ciranda, rabeca encantada. Dos 15 filhos, dois fabricam rabeca: Wellington forró de oito baixos, reisado, marujada, fandango, poesia e Cleiton Salu. O bailarino Pedro Salustiano montou o espetáculo improvisada, ao mesmo tempo em que gerenciava os próprios Samba no canavial. O músico, compositor, poeta improvisador folguedos e temática casa de espetáculos. Depois de tentar a e MC Maciel Salu lançou o CD A pisada é assim, entre outras vida como ambulante e empregado doméstico, foi funcionário importantes gravações, e é um dos integrantes da Orquestra da prefeitura de Olinda e professor de arte popular. Por fim, Contemporânea de Olinda. conseguiu certa dignidade financeira com o terreiro enorme para apresentações, serviço de bar, salão para dança e uma loja, onde Salustiano faleceu no Recife, em 31 de agosto de 2008. são comercializados produtos de confecção própria, como rabeca, Entretanto, confortável é saber que o legado se perpetua nas alfaia, mineiro, bagem de taboca, pandeiro, mamulengo e os produções culturais e criações artísticas dos filhos, legítimos discos. Foram quatro CDs gravados, movidos pelas sonoridades herdeiros e continuadores da obra do Mestre Salu. Filhos Maciel, Cleiton e Manuelzinho 63 Índia Morena 64 C ontorcionista, trapezista voadora, acrobata, cantora, ginasta, atriz circense. Eis aí alguns dos atributos da grande dama do circo pernambucano: Margarida Pereira de Alcântara. Ou, Índia Morena, nome artístico deliberadamente escolhido por serem índios o pai e a avó paterna. Destacada pela dedicação profissional exclusiva à vida circense, Margarida convive desde os 10 anos com o magnetismo do mundo dos mágicos, palhaços, humoristas, rola-rola, malabaristas, equilibristas. Na verdade, a estreia na vida artística foi inaugurada, a partir de 1952, em shows de calouros, nas matinês infantis promovidas pelo Circo Democratas, que aconteciam na Vila de São Miguel, bairro de Afogados, Recife, onde àquela época o circo estava montado. Aos 12 anos, a cantora mirim já interpretava, com alma, canções de Vicente Celestino, Ângela Maria, Núbia Lafayete. Filha de Eloy Pereira de Alcântara e Maria das Dores de Alcântara, Margarida nasceu no Recife, em 13 de julho de 1943. Órfã de pai aos nove anos, interrompeu os estudos no terceiro ano primário e não havia grande expectativa de desenvolvimento profissional, sequer de realização artística, para essa criança nascida e criada dentro da maré, pescando crustáceos nos mangues de Afogados para ajudar na sobrevivência da família. Adotada por Severino Ramos de Lisboa – o palhaço Gameloso – e afilhada de crisma de Maria Tenório Cavalcanti – a dona do antigo circo Itaquatiara Real, no qual Índia se engajou a partir de 1º de julho de 1953, contra a vontade materna –, essas confluências resultaram, claro, do talento evidente da jovem circense e contribuíram para o florescimento de singular trajetória artística. E mais: vieram acrescentar novos elementos à história dos circos populares do Brasil. Além de realizar viagens pelos Estados Unidos, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia, trabalhando em diversos circos – dentre os quais o Gran Bartolo, o Garcia, o Itaquatiara, o Edson, o Águia de Prata, o Coliseu Mirim, o New American Circus –, Índia Morena organizou, com a participação de Albemar Araújo, a coletânea Dramas Circenses, em que foram transcritos seis tradicionais 65 Apresentadora do próprio circo, Índia Morena inicia mais um espetáculo, dessa vez no subúrbio de Jaboatão dramas encenados nos circos populares, tais como A louca do jardim e Lágrimas de mãe. As peças teatrais, cedidas por Índia, fazem parte do acervo da Associação dos Proprietários e Artistas Circenses do Estado de Pernambuco (Apacepe), organização fundada em 1993 por Índia Morena e pelo marido, Maviael Ribeiro de Barros. O livro, contendo 161 páginas, foi publicado em 2006, pela Fundação de Cultura Cidade do Recife. Índia Morena considera o circo “o palácio onde vive com alegria” desde os 13 anos, quando decidiu largar totalmente a mãe e entregar-se de vez ao picadeiro: passou no teste de caloura e foi contratada para trabalhar no Itaquatiara. “Ali, eu vi o mundo”: foi assim que nasceu para a vida artística, ao mergulhar desde a primeira vez na lona de um circo e depois sagrar-se como trapezista voadora e melhor contorcionista pernambucana. Depois do Itaquatiara, trabalhou como ginasta e cantora num circo de Olinda, o Circo do Palhaço Violino. Atuou no Circo Águia de Prata, de propriedade de Euclides Águia de Prata que, depois, passou a ser o Circo Edson. Ainda participou do Coliseu Mirim, pertencente a um funcionário da prefeitura do Recife, conhecido 66 por Benigno. Em meio ao talento e à dedicação integral à carreira, irreverentes, com equilibristas, contorcionistas, transformistas, ia consolidando-se um contínuo processo de aprendizagem no engolidores de faca, malabaristas, pernas-de-pau, escada giratória próprio meio circense, a partir do convívio com grandes nomes e mais quatro palhaços. A temporada em cada local é variável, do circo e da ousadia de cada nova experiência. Entretanto, em conforme a aceitação do público. Os espetáculos são geralmente meio aos prazeres e conquistas da biografia artística, um grande noturnos, mas há também matinês nos finais de semana e desgosto na vida de Índia Morena quase a leva à bancarrota: feriados. A folga é sempre na segunda-feira. a traição do ex-marido com uma menina de circo resultou em doença e lesão pulmonar, com prolongado internamento no O Gran Londres, itinerante como deve ser todo circo de hospital Otávio de Freitas. Foi aí onde conheceu o atual marido, tradição, circula, sobretudo, pelos arredores do Recife e Região que nada sabia de circo e, entretanto, aceitou abraçar o ofício, Metropolitana, a exemplo de Jaboatão, Paulista, Abreu e Lima. acompanhando-a ainda hoje. Aonde o circo vai, agrega as bandas de música locais, fisga o público com espetáculo tradicional e ainda oferece uma atração Desde 1977 possui, com Maviael, o Gran Londres Circo, pois o única: um bode pagador de promessa, que sobe uma rampa, antigo proprietário do Circo Edson, falido, e para quem Índia ajoelha-se e beija uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, Morena trabalhava, doou parte do negócio a título de pagamento padroeira do Brasil. “Eu só tenho o terceiro ano primário, mas pelos serviços prestados por ela à companhia circense. Índia nele quem tem o primeiro ginasial não vai comigo, não, porque eu injetou experiência e recursos próprios e é no Gran Londres que, aprendi muita coisa em teatro”, vangloria-se a artista, que também desde essa época, vai exibindo as múltiplas habilidades aprendidas não esquece a dureza da infância mergulhada na lama, catando em todo o percurso artístico, cantando e apresentando os caranguejo. Apesar de todas as mazelas, Índia segue cantando espetáculos. Em meio a uma trupe com mais de 20 integrantes, e louvando a magia do circo, com a elegância e o magnetismo contracena com um palhaço cantor e compositor de músicas próprios de uma grande dama circense. 67 Homem da Meia-noite 68 D e fraque, cartola, gravata borboleta, dente de ouro, lá vem o Homem da Meia- Noite, vem pela rua a passear, enfeitiçando os céus olindenses e arrancando suspiros de amor. Claro, é o mais afamado galante, o grande Don Juan do carnaval de Olinda e não é, de maneira alguma, simplesmente um boneco, é calunga, com todos os atributos e segredos que essa palavra suscita. A figura do sorridente cavalheiro, envolta em mistérios e rituais próprios, é associada ao candomblé, pois foi no dia 2 de fevereiro de 1932, data dedicada a Iemanjá, que o calunga de madeira desfilou pela primeira vez na tradicional folia. O Homem da Meia-Noite, com cerca de quatro metros de altura, é o mais antigo boneco gigante de Olinda. Nascido na categoria “troça” em 1932, passa a clube de alegoria e crítica a partir de 1936. É de muitos anos, Saída do Homem da Meia Noite, Estrada do Bonsucesso, Olinda, 1998 portanto, que o galanteador vem arrancando suspiros de moças e senhoras postadas à janela para ver o amado passar: ele próprio em figura de gentleman anima as ladeiras do sítio histórico desde a madrugadora invenção na longínqua década de 1930. As ruas estreitas, sobretudo a do Amparo, e o Largo do Bonsucesso testemunham a alegria e irreverência dos foliões que gastam pelos menos quatro horas para acompanhar um dos desfiles mais cobiçados da folia olindense. O percurso é praticamente o mesmo desde o princípio, e o boneco vai desfilando trajado de verde e branco, com um relógio na lapela e a chave da cidade nas mãos. A saída acontece pontualmente à meia-noite do sábado de Zé Pereira, partindo da sede, que fica em frente à igreja do Rosário dos Homens Pretos, no Bonsucesso. O local é marcado pela prática de tradições culturais de negros escravos, desde a construção do templo religioso na segunda metade do século 17, e, inclusive, foi essa a primeira igreja em Pernambuco a ter irmandade de homens pretos. Nenhuma estranheza, portanto, quanto à ligação do calunga com o candomblé, mesmo que a aura de misticismo se misture à irreverente balbúrdia momesca, em meio a orações e oferendas com cachaça na troca de roupas do calunga, nos preparativos do sábado à tarde. 69 Carnaval de 2003 A existência do grupo carnavalesco se deveu a uma dissidência daquela troça decidiram criar uma nova agremiação que “desse de integrantes da Troça Carnavalesca Mista Cariri, fundada em uma rasteira no Cariri”, conforme conta o pesquisador Olimpio 1921 e que àquela época era quem abria o carnaval, saindo às Bonald Neto, no livro Os gigantes foliões em Pernambuco. O autor quatro da manhã do domingo. O exímio entalhador Benedito refere, aliás, que esse não foi o primeiro gigantone a aparecer no Bernardino da Silva, ou “Benedito Barbaça”, o encadernador carnaval pernambucano: o mais antigo registro é creditado a Zé Cosmo José dos Santos, o pintor de paredes Luciano Anacleto Pereira e Vitalina, bonecos nativos da cidade sertaneja de Belém de Queiroz, acompanhados de Sebastião Bernardino da Silva, do São Francisco, criados respectivamente em 1919 e 1929. Eliodoro Pereira da Silva e do sapateiro Manoel José dos Santos, Quanto ao surgimento do boneco olindense, pelo menos duas apelidado “Neco Monstro”, ao se sentirem excluídos da diretoria versões explicam a genealogia do fenômeno: uma delas credita 70 ao cinéfilo e fundador Luciano Anacleto de Queiroz a inspiração a partir do filme O ladrão da meia-noite; a outra atribui a Benedito Bernardino, fundador e autor do hino da agremiação, a construção do calunga a partir de alegado flagrante de certo namorador, alto, elegante e sorridente, que andava principalmente na madrugada do sábado para o domingo, sempre de verde e branco, com chapéu preto e dente de ouro. A dissidência do Cariri foi tramada em dezembro de 1931. Para dar forma ao boneco que ganharia as ruas à meia-noite do sábado de Momo, os fundadores Benedito Barbaça e Luciano de Queiroz tomaram todas as providências de marcenaria e pintura, na modelagem daquele que seria o boneco dos primórdios do grupo. Originalmente, o calunga pesava mais de 55 quilos, porque, além da armação em madeira, a cabeça, o busto e as mãos eram feitos em papel gomado; os braços, recheados com palha de colchão; nas mãos, areia para dar peso e equilíbrio às evoluções executadas ao som do frevo. Evidente que o boneco passou por um processo de reengenharia, a fim de perder peso e, assim, aliviar a carga do carregador ou “chapeado”. Um dos mais ilustres carregadores foi Alcides Honório dos Santos, Cidinho, que durante mais de quatro décadas deu vida e alma ao boneco. Bastos “Botão”, Henrique Alabamba, Amaro de Biluca, Paulo 19, Pedro Garrido compõem a galeria dos chapeados do Homem da Meia-Noite. Saída do relógio, 1998 Esses históricos nomes animam, há décadas, a algazarra de foliões inveterados, além dos novatos que são acrescidos às ladeiras estreitas de Olinda, a cada ano. E o mais animador é saber que a alegria repercute durante todos os meses, com o projeto social Gigante Cidadão – Ponto de Cultura nacional desde 2005 – que oferece, de segunda a sábado, na sede do clube, oficinas de música, dança, teatro e vídeo a cerca de 50 crianças da comunidade. Apreciando de dentro ou de fora do boneco, quem haveria de resistir a esse fogoso e ao mesmo tempo sóbrio cidadão olindense, a esse magnético sorriso de manequim, a essas gigantes pernas de pau dançando na multidão? 71 Passistas acompanhando a orquestra, 1998 José Costa Leite 72 A versatilidade tem marcado a trajetória do cordelista, xilógrafo e autor de almanaque popular. Nascido a 27 de julho de 1927, em Sapé, na Paraíba, o filho de Paulino Costa Leite e Maria Rodrigues dos Santos radicou-se em Condado, Pernambuco, a partir de 1955. José Costa Leite estreou na literatura de cordel em 1947, vendendo, declamando e escrevendo folheto de feira. O primeiro almanaque foi feito em 1959, para o ano de 1960, e chamava-se, àquela época, Calendário brasileiro. As primeiras xilogravuras são de 1949, para os folhetos, de própria autoria, O rapaz que virou bode e a Peleja de Costa Leite e a poetisa baiana. Na infância e adolescência, trabalhou na cana, plantou inhame, foi cambiteiro, cambista, mascate, camelô de feira. Xilogravador primeiramente por obra da necessidade, ou seja, a de produzir a capa dos próprios folhetos, Costa Leite conseguiu aprimorar o talento para as artes plásticas nessas seis décadas de familiaridade com a madeira, quicé, goiva e formão. Como acontece a diversos autores de cordel, o talento extrapola o mundo da escrita. É ele quem desenha e talha na madeira e depois imprime no papel as ilustrações de capa dos próprios folhetos. Conforme tradição dos gravadores populares pernambucanos, que se iniciaram a partir do diálogo com a poesia, aprendeu sozinho a arte da gravura, vendo fazer e experimentando. 73 Os primeiros cordéis chamavam-se Eduardo e Alzira – “uma historinha de amor”, conforme classificação do próprio poeta – e Discussão de José Costa Leite com Manuel Vicente, cujos temas eram “se não casar perco a vida” (Costa Leite) e “eu morro e não caso mais” (Manuel Vicente). Essas primeiras publicações não tinham ilustração de capa, apenas os letreiros. Voz imortalizada, na década de 1970, em três LPs gravados no Conservatório Pernambucano de Música, nos quais deixou registradas grandes histórias de cordel, Costa Leite já cantou muito na feira da cidade onde vive e na vizinha Goiana. Atualmente continua indo, sozinho, de madrugadinha e em transporte coletivo, vender folheto em Itambé, cidade pernambucana em que o outro lado da avenida principal é Pedras de Fogo, Paraíba. São duas cidades, dois estados numa mesma geografia, espécie de síntese da vida do poeta. Assim que se encerra a feira, por volta do meio-dia, segue para Itabaiana, Paraíba, dorme lá, e, dia seguinte, passa a manhã cumprindo um ofício que exerce há mais de seis décadas. Cantava e vendia bem nas feiras. Ainda dá voz a uma ou outra estrofe. Às vezes, recita e canta trechos de folheto da própria autoria, como O sanfoneiro que foi tocar no inferno, e mais alguns versos de outros autores, a exemplo de O navio brasileiro, clássico de Manoel José dos Santos. 74 Costa escreve diariamente. Aventura, discussão, exemplo são alguns dos temas preferidos. Criou pelejas fictícias com importantes personagens do mundo da cantoria de viola, como Preto Limão, Severino Borges Silva, Patativa do Assaré, Ivanildo Vila Nova. Publica versos fesceninos sob pseudônimo para, segundo ele próprio, não manchar a reputação do restante da obra. Assina H. Renato, João Parafuso, Seu Mané do Talo Dentro, Nabo Seco nos folhetos de safadeza, cheios de picardia e duplo sentido, como A mulher da coisa grande, A pulga na camisola. Frequentador assíduo da capital, semanalmente vem ao Recife entregar originais ou receber edições produzidas na Editora Coqueiro. Viajava muito a Olinda, entre os anos 1970 e 1990, quando editava os folhetos na Fundação Casa das Crianças. Tem, também, folhetos impressos na editora Tupynanquim (Fortaleza, Ceará), do poeta e artista gráfico Klévisson Viana. Entretanto, independentemente de quem imprime, todas as publicações autorais recebem o selo A voz da poesia nordestina, de José Costa Leite. E recebem, na capa, xilogravuras do próprio autor. No campo da astrologia, continua a escrever o Calendário nordestino, distribuído para todos os estados do Nordeste, Rio de Janeiro e São Paulo. Sobre os cordéis, não tem a menor ideia da quantidade de histórias que fez chegar a leitores e ouvintes, além dos muitos manuscritos inéditos que guarda nas gavetas. Contudo, para além de todas essas rememorações, há muito mais: Costa Leite, andarilho das tradições, é testemunho vivo de mais de 60 anos de peregrinação por feiras e mercados de Pernambuco, da Paraíba, do Ceará. São mais de oito décadas com vigor físico e memória suficientes para comercializar os folhetos que produz e recapitular parte da história das edições populares brasileiras, da qual é um dos protagonistas. Acervo pessoal de JCL contém manuscritos, matrizes, xilogravuras, estoque de cordéis variados 75 Zezinho de Tracunhaém 76 D e cambiteiro, cortador de cana e agricultor chegou a pedreiro e barbeiro, num tempo em que, nos anos 1960, de dia labutava na construção civil e à noite, na cerâmica. Para aumentar o orçamento, também se virava nas artes da barbearia. O estalo que desencadeou toda a carreira artística aconteceu no dia 20 de abril de 1966, conforme registrado no jornal Gazeta de Nazaré, em artigo escrito pela jornalista Marliete Pessoa e publicado a 27 de agosto de 1966: “No cortiço do velho prédio do Acadêmico, nasce mais um artista do povo”. Soldado, boêmio, músico, valentão, vendedor de milho assado e de amendoim, mendigo de braço cotó, marceneiro, pedreiro, ferreiro: essas são as primeiras figuras que reinam na gênese da estatuária do mestre Zezinho. Os primeiros ensaios de modelagem resultam de inquietações e descobertas próprias de artista, a partir da observação do trabalho de Lídia Vieira nas visitas inspiradoras à vizinha Tracunhaém. O artista lembra, entretanto, que a primeira peça foi um par de namorados, encostado na porteira de um engenho de açúcar, com cerca de 20 cm de altura. Nessa época ele vivia em Nazaré, era trabalhador rural e o barro que esculpia vinha de um engenho próximo, o Alcaparra. 77 Filhos se dedicam ao mesmo ofício A estreia no cenário artístico aconteceu na 1ª Exposição de Arte dos principais incentivadores e divulgadores da obra do santeiro Popular em Nazaré da Mata, na biblioteca municipal, organizada foi o colecionador pernambucano Abelardo Rodrigues, que pela jornalista que escreveu o artigo, e inaugurada a 1º de outubro frequentemente visitava o artista e encomendava trabalhos. de 1966, mesmo ano em que o escultor se inicia e é descoberto pela jornalista. Exibe 60 bonecos. Nessa mesma década, dois Há mais de 40 anos radicado naquela cidade da Mata Norte, José anos depois, ou seja, em 1968, decide morar em Tracunhaém Joaquim da Silva não calculava que conquistaria alguma fama e dedicar-se exclusivamente ao trabalho de ceramista. Era a com os gigantescos santos de barro, pois sequer tinha parentes época em que os famosos da região eram José Antônio e Lídia envolvidos com a arte cerâmica, quando optou pelo ofício. Vieira, então viúva do renomado santeiro Severino. O filho de Constituída a fama de homem talentoso, calcada na inventividade Júlia Batista da Cruz, que nasceu em Vitória de Santo Antão, a 5 de peças como José e Maria Grávida, Lampião, Maria Bonita, São de julho de 1939, jamais havia pensado que antes dos 30 anos José de Bota, Pietà, é que os filhos e a esposa também passaram a fosse viver em Tracunhaém e se sustentar do ofício de ceramista. viver do artesanato em barro, cuja matéria-prima vem da Paraíba. Nem mesmo imaginou que receberia o título de cidadão daquele A esposa, Maria Marques, mais quatro dos nove filhos – José município, o que aconteceu em novembro de 2002. Honraria que Carlos, Josenildo, Cláudio e Fernando –, e dois dos13 netos – vem se somar à comenda Troféu Construtores da Cultura Cidade Lucas (filho de Carlinhos) e Bruno (filho de Cláudio) –, todos eles se do Recife, recebida em 1992, e ofertada pelo então prefeito da inspiraram na labuta de Zezinho e passaram a trabalhar as próprias capital pernambucana. Além da jornalista Marliete Pessoa, um peças em regime semicoletivo, envolvendo-se com o conjunto 78 das etapas, que vão desde o preparo do barro até à modelagem, secagem, queima em forno a lenha e coloração das esculturas. Nelas, predominam os motivos sacros, dondocas e namoradeiras. Algumas das obras do mestre recebem dele mesmo uma certificação de autenticidade, como é o caso da peça São Francisco sentado olhando para o céu, registrada como peça única e com data de conclusão em 1º de setembro de 2004. A temática preferida do artista é a sanfranciscana, em que o santo e pássaros são esculpidos em grandes proporções. Especialista em imagens sacras, grandioso é o aspecto visual da obra de Zezinho, que adora modelar peças com dois metros de comprimento e prefere pintálas com tinta terracota. Na Mata Norte, Tracunhaém, topônimo Igreja em Tracunhaém, próxima ao ateliê do mestre indígena que significa panela de formiga, testemunha há décadas o florescimento de diversos artistas do barro, tais como Antônia Leão, Lídia Vieira, Severino Gomes de Freitas, Nuca, Maria Amélia. O mestre Zezinho, um dos mais antigos ceramistas vivos naquela cidade, tem obras espalhadas pelo mundo, em museus, igrejas, coleções particulares. Sua obra tem figurado em inúmeros salões de arte, coroando décadas de habilidades manuais e invenção. 79 Confraria do Rosário 80 A o som de caixa, zabumba e pífanos, o último dia do ano em Álvaro Ferraz, no livro Floresta: Memórias duma cidade sertaneja Floresta é solenemente comemorado: a secular irmandade no seu cinquentenário: Oi Quenda, oi Quenda, / Oi Quenda, denominada Confraria do Rosário reservou, no calendário Maravi’a! / Hoje é dia do Rosário / Do Rosário de Maria. Pequenos religioso, o 31 de dezembro para festejar Nossa Senhora do agricultores e criadores das Fazendas Paus Pretos e Boqueirão, Rosário, a patrona dos confrades. Paralelamente, a cidade empregados de um curtume e funcionários públicos compõem o comemora a festa do padroeiro, o Bom Jesus dos Aflitos. Assim, grupo, formado por habitantes da zona rural e também da sede no início da manhã, os fogos logo denunciam: é chegado o dia do do município. desfile e coroação dos reis, que, em azul e branco, se apresentam ornados com manto, cetro e coroa. Acompanhados de vistoso A comunidade é, sobretudo, formada por quilombolas e, por cortejo, com estandarte, guarda de honra armada de espada e isso mesmo, é símbolo de resistência negra. Nesse contexto séquito de juízes, todos trajados de branco, os componentes da socioeconômico e cultural floresceu a irmandade religiosa, que, confraria cantam, louvando a Senhora do Rosário: Virgem do conforme registros datados de 1792 e depoimento de João Luiz da Rosário, sois uma alta rosa / Que entre as mais flores sois a mais Silva, rei perpétuo desde 2007 e representante legal da instituição, formosa – ou com antigas loas, como a registrada, em 1957, por há mais de 200 anos a confraria existe na cidade de Floresta 81 dos Navios, sertão de Itaparica. Composta por 36 membros, sobretudo antigos guardiões da tradição, a cada ano o ritual se repete sempre no mesmo dia, com a missa matinal e mesa farta à base da culinária regional para todos os que estiverem na festa, e entra pela tarde, quando são coroados os novos reis para o ano seguinte, conforme escolha das juízas (às vezes, a decisão decorre da necessidade de pagamento de promessa). À noite, a irmandade prestigia a missa do padroeiro e sempre faz questão de que o dia dedicado aos negros seja o melhor do novenário. A Igreja do Rosário é o ambiente onde se desenrola parte da festa. Construída em 1777, pelo capitão José Pereira Maciel, em homenagem ao Senhor Bom Jesus dos Aflitos, na localidade denominada Fazenda Grande, de onde se originou a cidade de Floresta, sabe-se que somente em 1792 é que a igreja foi inaugurada, e, segundo tradição oral, desde essa data a confraria existe, embora somente a partir de 1897 o templo passe a ser dedicado a Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, quando o padroeiro da cidade, o Bom Jesus dos Aflitos, ganhou novo templo defronte. Tais irmandades, a exemplo da Confraria do Rosário, incluem-se, conforme defende o pesquisador Veríssimo de Melo, entre as “várias formas de reações contra-aculturativas dos negros no Brasil”. A existência de irmandades religiosas de homens pretos e suas respectivas cerimônias estão sempre intimamente Reprodução de fotografias antigas do acervo do grupo 82 associadas às festividades de coroação de reis e rainhas e é uma morrer, passou o cargo para Manuel Caetano, ou Jubileu, que tem recorrência em folguedos e danças brasileiros, a exemplo de 33 anos. Hoje, os espadachins são todos jovens, menos Seu João, reisados, congadas, maracatus, cambindas, pretinhas do congo. que tem 80 anos. Cabe aos espadachins a proteção do cortejo real, cruzando as espadas a fim de que rei e rainha possam passar A 500m das duas igrejas, está a sede da Confraria do Rosário, por todas as portas que estiverem no caminho até à igreja. Eles de onde sai a rainha para, com o rei, seguirem à igreja. São também realizam movimentos que se assemelham a um imaginário precedidos por oito espadachins e acompanhados de 11 juízes. combate ou luta de espadas. Na procissão, São Benedito abre o Há cinco juízas principais, estas são as mais antigas integrantes cortejo dos santos, acompanhado da imagem histórica de Nossa do grupo, a quem todos devem obediência, inclusive rei e rainha. Senhora do Rosário e do Bom Jesus dos Aflitos. Uma banda de Entre elas, uma é juíza do rei, outra é da rainha. Há, ainda, dois pífanos, composta por quatro músicos – dois pífanos, uma caixa juízes do andor, dois para as espadas e duas juízas são do altar. e uma zabumba –, vai executando músicas religiosas. Apenas na O cortejo, segundo antigos relatos, era composto por quatro volta da missa, alterna repertório variado com a banda de música espadachins, sendo dois velhos e dois jovens. Conforme dá conta da cidade, tocando inclusive frevo, forró, maracatu. João Grande, João Luiz, Manuel Preto foi um grande espadachim que ocupou a que foi rei perpétuo durante cerca de duas décadas, certamente função desde criança e por mais de 70 anos. Entretanto, antes de estaria satisfeito vendo perpetuar-se a festa dos ancestrais. Tesoureiro Quinca Leocádio e Rei Perpétuo João Luiz 83 Rainha Perpétua Lúcia de Amaro, falecida em junho/2010 Juiz das Espadas Manoel Cassiano e Espadachim Fernando Fernando Spencer 84 F ilho de Nicodemes Brasil Hartmann e Maria Serafina Spencer cinéfilo/cineasta, cuja estreia se deu com um curta-metragem Hartmann, o cineasta Fernando José Spencer Hartmann nasceu experimental, a ficção A busca, em 1969. no Recife, em 17 de janeiro de 1927. Aposentado como analista em ciência e tecnologia da Fundação Joaquim Nabuco, o cineasta Jornalista profissional, exerceu a crítica de cinema durante coleciona prêmios e títulos que tem recebido ao longo de mais quatro décadas no Diario de Pernambuco, exatamente de 1958 de cinco décadas dedicadas à sétima arte. Recebeu o título de a 1998. Spencer também foi repórter do Jornal Pequeno, em Memória Viva do Recife, em 1997, quando completou 70 anos. 1951, e revisor do Jornal do Commercio em 1957. Foi produtor e Aos 80, foi o homenageado do Cine PE, quando então apresentou realizador do programa Falando de Cinema, entre os anos de 1963 o novo filme Almery, a estrela. Tanto no Museu da Imagem e do e 1978, na TV Rádio Clube, Rede Tupi. Foi produtor, realizador e Som de Pernambuco (MISPE) quanto no Cinema Rosa e Silva, apresentador de Filmelândia, programa veiculado na Rádio Clube há a Sala Fernando Spencer, franca homenagem ao incansável de Pernambuco e Rádio Tamandaré do Recife. No ano de 1985, 85 Fernando Spencer, com carretéis e latas de filme 16mm coproduziu, com Ivan Soares, o projeto Coisas Nossas: Cinema Massangana, em 1983. Ainda pela Massangana, lançou em 1985 Pernambucano, em oito capítulos de 30 minutos. O cineasta e o catálogo de filmes da Cinemateca da Fundaj. E, pela Bagaço, pesquisador foi diretor da Cinemateca da Fundação Joaquim produziu em 1989 a publicação 20 anos de cinema (1969 – 1989): Nabuco, membro do Centro Brasileiro de Pesquisadores do Cinema Filmografia. No Quase catálogo, organizado por Heloísa Buarque Brasileiro, vice-presidente da Fundação Nordestina de Cinema, de Holanda e publicado em 1991 no Rio de Janeiro, escreveu sócio-fundador da Associação Brasileira de Documentaristas (ABD), verbetes sobre estrelas do cinema mudo de Pernambuco. Em fundador e primeiro presidente do grupo Cinema Super-8 de 1995, publicou textos sobre os 100 anos de cinema. No mesmo Pernambuco. ano, publicou, em parceria com a bibliotecária Lúcia Gaspar, da Fundaj, O Nordeste no cinema: uma contribuição bibliográfica, Acumulando as funções de roteirista, diretor, jurado, palestrante, para a revista Ciência & Trópico. debatedor, presidente de júri, professor, Fernando Spencer tem, ainda, no currículo, diversos livros publicados, a exemplo de Em 1974, recebeu o prêmio de melhor Super-8 na III Jornada Histórias do tio Joca, editado em 1990 pela Bagaço. Esse foi o Brasileira de Curta-Metragem, no estado da Bahia, com o filme primeiro título que lançou no gênero literatura infantil. Sobre Valente é o galo. No mesmo ano, o cineasta fez a estreia no cinema, escreveu o texto Ciclo do Recife: 60 anos, publicado pela gênero documentário com o filme Caboclinhos do Recife. Aliás, 86 a temática dos folguedos tradicionais é recorrente na obra de das três bitolas. Assim conhecido no meio cinematográfico pela Spencer. Em 1999, realizou A arte de ser profano, vídeo sobre produção tanto em Super-8 quanto em 16 e 35mm, a criatividade os pastoris, e em 2004 volta ao tema, dessa vez com Os irmãos e o amor às tradições pernambucanas selam a produção de Valença, em que o pastoril religioso é um tema incontornável. Fernando Spencer, com os documentários acima mencionados No VI Festival Nacional de Cinema, realizado em Aracaju, pela e, ainda, Frei Damião: Um santo no Nordeste? (1977), Santa do Universidade Federal de Sergipe, no ano de 1978, recebeu o Maracatu (1981), Trajetória do frevo no Recife (1987). Sobre prêmio de Melhor Filme de Comunicação para As corocas se literatura de cordel, realiza o documentário O folheto (1971), divertem. Com o filme Estrelas de celulóide, recebeu um troféu na bitola 16mm, em parceria com Liêdo Maranhão, João José e candango no Festival de Cinema de Brasília, em 1987. No III Esman Dias. Festival de Cinema dos Países de Língua Portuguesa, realizado na cidade de Aveiro, Portugal, em 1988, Fernando Spencer ganhou, A produção mais recente, de 2009, é o curta Nossos ursos em parceria com Flávio Rodrigues, o prêmio de melhor curta, camaradas, em que o cineasta compõe uma abordagem na categoria documentário, pelo trabalho Evocações de Nelson antropológica de fogosos ursos e La ursas na cultura Ferreira. pernambucana, a partir de pesquisa encomendada ao amigo folclorista Mário Souto Maior. Com esse filme, Spencer estreia em O percurso de Spencer ganha ainda mais sentido quando ele nova bitola – a digital – e adianta que a obra não encerra a sua recapitula o princípio desse amor antigo: cedo, apaixonou-se pelo carreira (agora, das quatro bitolas!). Maria Bonita e Lampião são cinema, precisamente aos 12 anos, quando o pai lhe oferece um personagens dos novos projetos desse artista que assina uma obra projetor alemão para filmes de 35mm, o suficiente para inaugurar, autoral, prolífica, incansável. de forma decisiva e em grande estilo, a trajetória deste cineasta 87 Teatro Experimental de Arte 88 O que há por trás de um nome? Teatro Experimental de Arte é o nome que resume toda uma vida dedicada às artes cênicas e à formação de jovens e estudantes. Sociedade civil de caráter puramente artístico cultural, é assim que se autodefine a organização fundada em Caruaru, a 16 de julho de 1962, pela pedagoga, atriz e encenadora Arary Marrocos Bezerra Pascoal e pelo contador, ator e autor teatral Argemiro Pascoal, cuja nomenclatura primeira – Movimento Teatral Renovador – foi logo substituída pela atual, na ocasião da assembleia inaugural para aprovação do estatuto. Ao lado de Arary e Argemiro, a lista de fundadores inclui Antonio Paulino de Medeiros, Carlos Fernandes da Silva, José Gustavo Córdula, Fernando Gomes de Oliveira, Edvaldo Pereira de Castro, Antonio Silva, Margarida Miranda, Maria José Bezerra, Abias Amorim, Paulo Roberto e Sá, Maria Ezinete de Melo, Inácio Tavares e Jonas Mendonça. Filiado à Federação de Teatro de Pernambuco (Feteape), o TEA é considerado, por lei municipal, um órgão de utilidade pública. Quando Argemiro se muda de Bezerros para Caruaru, em 1951, de modo intermitente atuava na cidade o Grupo Intermunicipal de Comédia, com a participação dos atores Rui Rosal, Joel Pontes, Pedro Valença. Em 1956, o declarado apreciador da linguagem cênica decide fundar o Teatro de Amadores de Caruaru (TAC), com Cosme Soares, Creuza Soares, Antônio Medeiros e Wilson Feitosa. Entretanto, é em julho de 1962, ocasião em que a cidade recebe o I Festival de Teatro de Estudantes do Nordeste, coordenado por Joel Pontes, caruaruense radicado no Recife, que surge o TEA, justamente a partir da breve, mas instigante, experiência e da constatação de que algo precisava ser feito quanto à cena teatral local. Marcado pela ininterrupta atuação no agreste pernambucano, o grupo é o criador do Festival de Teatro Amador e Estudantil do Agreste (Feteag), promovido desde 1988, e do Festival de Teatro do Estudante de Pernambuco (Festep), que acontece a partir de 2002. Tais eventos contam com a participação de alunos 89 Oficina de expressão corporal e dicção para atores de colégios privados e escolas públicas municipais e estaduais teatral, ministradas por Arary Marrocos, Jô Albuquerque, José Carlos daquela região, visto que um dos principais objetivos do grupo é da Silva e Carlos Alves, sob a coordenação de Argemiro Pascoal. O exatamente contribuir com o desenvolvimento de jovens talentos e TEA é considerado um dos principais responsáveis pela renovação promover intercâmbios artísticos mediante a promoção de festivais da cena teatral do interior do estado. Além de já haver encenado e mostras de artes cênicas. Outro importante projeto é o Teatro na diversos textos de qualidade inquestionável, tais como A bruxinha Comunidade, que consiste em apresentar espetáculos populares que era boa, O Baile do Menino Deus, Cancão de fogo, Morte e vida em palco ou praças públicas da cidade e zona rural, inclusive severina, e os clássicos Antígona, Romeu e Julieta, A metamorfose, promovendo debate acerca de questões de interesse das próprias entre os anos de 1967 e 1979 o grupo registrou participação comunidades. contínua no espetáculo da Paixão de Cristo, em Fazenda Nova. O primeiro seminário do teatro de Caruaru foi promovido pelo TEA. Construída com recursos próprios, a sede fica no bairro de Desde a fundação, mais de 50 espetáculos foram encenados pelo Indianópolis. Chama-se Teatro Lício Neves, em tributo ao poeta grupo que, inclusive, vem acompanhando o despertar de novos pernambucano. Anualmente, são oferecidas oficinas de iniciação talentos, a exemplo do premiado teatrólogo Vital Santos. Sede do TEA, em Caruaru 90 São José do Rio Preto, em São Paulo; Feira de Santana e Salvador, Rubem Rocha Filho, Romildo Moreira, Ivan Brandão, Valdeck de na Bahia; São Cristóvão, em Sergipe; Maceió, em Alagoas; Garanhuns, Roberto Benjamin, José Manoel, Zélia Sales, José João Pessoa e Campina Grande, na Paraíba; Recife, Garanhuns, Francisco Filho, Feliciano Félix, Ivonete Melo, Valdi Coutinho, Serra Talhada, Arcoverde, São José do Egito, Bonito, Limoeiro, Antonio Miranda Cavalcanti, José Soares da Silva (poeta e xilógrafo Pesqueira, Belo Jardim e Gravatá, em Pernambuco, são algumas Dila), ceramista Manoel Galdino, Vavá Paulino, Jorge Clésio, Joel das cidades nas quais o grupo participou de festivais, mostras de Pontes, Luiz Marinho Filho. teatro e com as quais estabeleceu intercâmbio cultural. Ao longo de todas essas décadas, o TEA se ocupa, igualmente, em promover Obstinação: este é o motor que move o casal cheio de amor pelas palestras, debates, seminários, simpósios. Diversos cursos têm artes cênicas. O que resulta daí são as muitas trajetórias artísticas sido ministrados por importantes profissionais da cena teatral que vêm ganhando o mundo, com a decisiva colaboração de Arary e das artes, a exemplo de Clênio Wanderley, Marco Camarotti, e Argemiro. Luiz Maurício Carvalheira, Isaac Gondim Filho, Didha Pereira, Arary Marrocos 91 Argemiro Pascoal Caboclinho Sete Flexas 92 “Q uem são vocês que vêm da jurema?” Esta é pergunta que pode ser feita a um mestre daqui, mais precisamente a José Severino dos Santos Pereira, o Mestre Zé Alfaiate, sócio fundador do Caboclinhos 7 Flexas, desde 7 de setembro de 1971, no bairro de Água Fria, Recife. Com a finalidade, expressa no estatuto, de “promover e desenvolver atividades carnavalescas, recreativas, sociais e culturais”, Alfaiate lembra que criou a brincadeira no ano de 1969, em Alagoas. Nessa época, em que frequentava terreiro de umbanda, certa vez sonhou com o Caboclo Sete Flexas – “cacique, pajé, deus do sol e deus da lua, moreno, alto, foi criado sozinho nas matas e é curandeiro” – a quem fez pedido. Portanto, graças a promessa, e como oferenda, decidiu que criaria o clube, sob a proteção daquele guia, exatamente por considerar unha e carne caboclinho e jurema. Nascido em São Lourenço da Mata, em 25 de julho de 1924, Alfaiate volta para Pernambuco em 1971 e, embora à época mantivesse vínculo com o antigo Caboclinhos Carijós (de 1896), em que começou a brincar aos 10 anos, funda o grupo que se mantém exuberante, graças à dedicação integral que dispensa ao brinquedo, das mais triviais demandas às mais invisíveis, como bordar fantasia e levar comida para o caboclo da mata. Os caboclinhos, da linha da jurema, são uma das belas e tradicionais expressões do carnaval pernambucano. Mais do que somente com pajelança, é à base de muito sacrifício e trabalho que o caboclinho se mantém firme e vigoroso. Paulo Sérgio dos Santos Pereira, ou Paulinho 7 Flexas, é filho e parceiro incansável de Alfaiate, ao lado da mãe, Marlene Francisca Mestre Alfaiate Neponucena. Figura importante na organização do grupo e um dos mais respeitados dançarinos tradicionais do país, Paulinho 7 Flexas dança desde os dois anos. Nascido em Maceió, Alagoas, a 28 de outubro de 1968, a partir dos 14 anos passa a dar aulas no Teatro Brincante, na capital paulista, a convite do multiartista Antônio Carlos Nóbrega. Paulinho e o sobrinho Carlos André Rodrigues Pereira são os guias Jupi e Agaci, puxadores dos 93 cordões dos caboclos. A sobrinha Adriana Rodrigues Pereira e a Guerra, baião, perré, toré de caboclo, guerra: alternam-se as irmã Carla dos Santos Pereira são as guias Taquaraci e Jupiara, dos batidas ou toques executados pelo baque, assim denominados cordões das caboclas. Alfaiate, além de tudo, comanda desenhos os músicos. Ouvidos atentos à execução das loas ou versos e bordados da vestimenta. No caboclinho, o núcleo familiar lidera gritados – os gritos de guerra, e das loas ou versos declamados, todas as atividades: onde há a casa, há a sede do brinquedo, a improvisados ou não, sincronizados com a regular batida das oficina de dança com os ensaios semanais, as sessões de costura preacas (conjunto de arco e flecha em madeira), tarol, atabaque, e bordado, as reuniões, os preparativos de cada carnaval, enfim, caracaxá marcam a melodia executada pelo gaitista. Reginaldo a colorida e melodiosa alegria, a firmeza dos gritos de guerra do Caetano do Nascimento, ou Nadinho da Gaita, é o músico que folguedo, mesmo quando em repouso tocadores e bailarinos. executa as melodias no instrumento também chamado flauta ou Paulinho Sete Flexas Nadinho da gaita 94 inúbia. O tirador de loa pode ser o cacique, o puxante, o guia, o morubixaba. Nesse caso, é Paulinho 7 Flexas quem puxa as loas. Enquanto isso, os olhos se maravilham com as flutuações de penachos e plumas, com o saltitar das coreografias. Cacique, cacica, pajé ou curandeiro, os curumins, os guias Jupi e Agaci, a ala dos caboclos, os contraguias ou substitutos dos guias, as guias Taquaraci e Jupiara, a ala das caboclas são as figuras que enchem de graça as ruas e os olhares, aprendizes ou não. É obedecendo aos sons dos caboclos do baque que os brincantes exibem coreografia aeróbica, plena de leveza e agilidade. Impossível não se encantar com a sonoridade e as coreografias de um caboclinho. Conforme depoimento de Paulinho, o grupo pertence à mesa branca, espírita, aos orixás de caboclo, à mesa da jurema. Entre os ritos, há a saída de caboclo. Uma semana antes do Carnaval, é necessário preparar uma oferenda, ou seja, levar comida para o caboclo da mata. Um prato virgem, sete bifes, sete qualidades de fruta, uma vela e mel. O pedido é sempre pedido de paz: contra brigas e desavenças. O pajé porta um cachimbo e dá fumaçadas para limpar a frente do clube, quando os brincantes estão dançando. A jurema, bebida preparada à base de vinho, champanha, mel, liamba, semente e folha de alfavaca de caboclo, é alcoólica, entretanto tem a função de limpar o corpo dos brincantes – as ervas cortam as dores e os males físicos. Muita lantejoula, semente de ave-maria, cocar de pena de ema, machadinha, cabaça, cipó, lança e preaca são alguns dos elementos que compõem o deslumbrante vigor da cabocaria. Nas manobras e evoluções, as coreografias apontam para a dança do cipó, a dança da rede, a caça do caboclo, o casamento de uma tribo com outra. Os dois puxantes Jupi e Agaci marcam com apito a virada dos ritmos. E o porta-estandarte sai na frente, anunciando a chegada do clube: Caboclinhos 7 Flexas, um nome de respeito. 95 Selma do Coco 96 O s cocos nordestinos, conforme escreveu Mário de Andrade, “São ardentes. São expressivos. São profundamente humanos e sociais”. Assim é que, entre tapiocas e coco, canta a ex-tapioqueira da Sé de Olinda: O coco me adotou, me chamam rainha do coco, o povo é meu amor. Filha de Maria Valentina da Conceição e José Teodósio da Silva, Selma Ferreira da Silva nasceu em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, a 10 de dezembro de 1929. As lembranças mais antigas envolvendo a brincadeira do coco de roda remontam à infância, claro, quando pais e avós levavam aquela criança esperta e de voz melodiosa para dançar e se divertir nos terreiros de chão batido e luz de candeeiro. Frequentemente cantavam coco nas casas dos compadres, sobretudo para comemorar o São João. As memórias e experiências, aliadas ao talento artístico, deram o mote e Selma vem glosando, com classe. E não deixa de ter importância saber que a alegria da tradição familiar foi mantida, no desfiar de todas essas décadas dedicadas ao ritmo. Ainda criança, aos 10 anos, transferiu-se para o Recife, bairro da Mustardinha, onde se casou, teve 14 filhos e, mal saía da juventude, ficou viúva. Há 50 anos, decidiu morar em Olinda, tradicional reduto de samba de coco, e daí por diante cultivou o hábito de promover concorridas rodas para animar os finais de semana da família e ganhar uns trocados. Quando foi tapioqueira no Alto da Sé, jogava charme para os turistas com o feitiço da voz, do temperamento e ritmo envolventes. Cantava coco na Sé, no Carmo e na frente da própria casa, aos domingos. E, bom para Selma, bom para todos, integrantes da geração manguebeat se Selma do Coco em frente à Igreja de Guadalupe, Olinda encantaram com a coquista, o que certamente contribuiu para a consolidação da carreira da cantora. O filho José Ferreira da Silva, pandeirista, foi o produtor, parceiro e diretor musical da mãe famosa. Morena do dente de ouro, qual é o teu feitiço? Cantando e dançando um coco sincopado, matreiro e cheio de duplo sentido, Selma sabe que agrada. E gosta do que faz. Embrenhando-se 97 no meio poético-musical do coco de roda, entramelando-se nas devoções de um coco que sutilmente também batuca, o grito de guerra “a-há” antecede o canto e faz a amarração de uma performance cheia de ginga, simpatia e irreverência. Na malemolência foi expandindo-se, conquistando o mercado. Segundo a própria artista, o “a-há” não tem nenhuma relação com orixás e outras entidades, o grito acontece enquanto o pensamento vai rodando, procurando no repertório o próximo coco a ser executado. Com três coletâneas gravadas na Alemanha e uma na Bélgica, Selma do Coco também já cantou no Lincoln Center Festival, em Nova Iorque, Estados Unidos, no ano de 2003. Tem feito shows Brasil afora: no Rio de Janeiro, em São Paulo, Salvador, Natal, Fortaleza, Limoeiro do Norte, Itamaracá, Garanhuns, citando apenas alguns dos locais por onde tem passado. Os trabalhos se espalham em muitos países, como França, Espanha, Suíça, Portugal. No Recife, em 1990, quando ainda nem tinha um nome consolidado no cenário nacional, participou do I Festival de Cantadores de Praia do Nordeste, na praia de Boa Viagem. Em 1997, o festival recifense Abril pro Rock ajudou-a a deslanchar a fama. Nesse mesmo ano, a Câmara de Vereadores concedeu-lhe 98 o título de cidadã olindense em reconhecimento à artista que mora naquela cidade desde o final da década de 1950. O carnaval pernambucano de 1998 ficou marcado pelo sucesso da música A rolinha, gravada em Berlim, Alemanha, no estúdio Ufa Fabrik, entre agosto e outubro de 1997, para o disco Cultura viva. E o refrão Pega, pega a minha rola reinou quase absoluto naquela folia. Em São Paulo, fez show no Instituto Itaú Cultural, no ano de 1998 e, na casa de espetáculos Tom Brasil, apresentou-se em 1999 com a banda de pífanos de Caruaru e Zeca Baleiro. Em 2006, volta a se apresentar no Itaú Cultural. Recebeu a comenda 2007 “Ordem do Mérito Cultural”, diploma concedido pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. Dos vários CDs produzidos, foi com Minha história, gravado na Alemanha e depois lançado pela Paradoxx em 1998, que conquistou o Prêmio Sharp de 1999, concedido à música de mesmo título do disco. Há, ainda, na discografia, Coco de roda, o elogio da festa, gravado ao vivo em Olinda, em 1996, que, após masterização na Bélgica, ficou pronto em 1999. Em 2000, o filho Zezinho fez a produção geral e direção musical do disco Jangadeiro. Outro trabalho é Raízes da cultura, gravado em Olinda e lançado em 2003. Dona Selma: Bodas de ouro em coco, com faixa multimídia, foi gravado e produzido entre 2008 e 2009. Há, ainda, a registrar, a participação em várias coletâneas. Todos os discos são independentes, e sempre sob a coordenação do Netas fazem backing vocal do grupo 99 incansável Zezinho, à época o único filho vivo, lamentavelmente falecido em abril de 2010. Maestro Nunes 100 O Largo de Santa Cruz é testemunha: os acordes do arranjador, compositor e maestro atiçam ouvidos e olhos em direção ao sobrado de número 438, no bairro da Boa Vista. É ali onde funciona a Escola de Frevos do Nordeste Maestro Nunes e aonde o artista vai diariamente para compor, dar aulas, receber pessoas. Vem da infância o gosto pela música: aos nove anos, tornou-se clarinetista e já sabia orquestrar. Aos 12, compunha dobrados, tocava num pastoril religioso. O pai, que era músico, pedreiro e mestre de obras, não tinha tempo nem paciência para ensinar ao filho e ainda queria enviá-lo para o seminário. Mas a criança, que sonhava ser instrumentista, sempre chorava ao ver passar a banda de música de Angélica, o povoado onde nasceu e viveu a infância. Graças a Sebastião Luís, mestre da banda e amigo da família, o garoto se livrou de ser padre e passou a receber aulas de iniciação musical. Filho do clarinetista e violonista José Francisco Nunes e de Maria Apolônia Nunes, José Nunes de Souza é da cidade de Vicência, Pernambuco, e a data de nascimento é 22 de junho de 1931. Em 1950, por problemas políticos relacionados ao pai – que perdeu o cargo de diretor da Banda 1º de Novembro, do distrito de Angélica –, muda-se com toda a família para o Recife, onde decidiu aprimorar as habilidades musicais. Foi aluno do Conservatório Pernambucano de Música (CPM). Estudou música sacra e regência na Faculdade de Filosofia do Recife, em 1960. Cinco anos depois, são Bach e Beethoven. Com formação política de esquerda, concluiu o curso de licenciatura em Belas Artes, pela UFPE. filiou-se desde jovem ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), Frequentou aulas de canto gregoriano e canto coral, harmonia, engajando-se no Movimento de Cultura Popular (MCP), o que lhe regência, teoria e solfejo, contraponto, fuga e orquestração. O rendeu perseguição política e afastamento da Banda Municipal principal orientador, conforme depoimento do próprio Maestro do Recife (BMR), no início da década de 1960. Havia assumido Nunes, foi o professor Mário Câncio Justo dos Santos, além do em 1958, por meio de concurso, o cargo de primeiro clarinetista padre Jaime Diniz. No rol dos principais mestres, com quem da BMR. Entretanto, continuou na militância apesar da censura aprendeu grandes lições, situa Capiba, Nelson Ferreira e Zumba. e da repressão, e as conquistas artísticas fizeram sobressair o talento do compositor que, a partir dos anos 1970, foi campeão, Quando fala da formação musical, o maestro ressalta a consecutivas vezes, na categoria “frevo de rua”, dos concursos importância de ter estudado os períodos barroco, clássico e Leda de Carvalho, Frevança, Recifrevo. Entre as músicas premiadas romântico da música ocidental, dos quais os artistas preferidos estão: Formigueiro, uma homenagem ao maestro Formiga, ou 101 Ademir Araújo; É de perder o sapato, relembrando o fato de Outras composições importantes, independentemente da um músico ter perdido o sapato enquanto tocava na banda do conquista de prêmios, há décadas têm-lhe rendido fama de “rei maestro, durante o desfile da troça carnavalesca mista O cachorro do frevo de rua”, sobretudo o clássico Cabelo de fogo, feito para do homem do miúdo; Mosquetão, em alusão a um colega que foi um amigo, apelidado de Birino, que pintava os cabelos. Coquinho baleado durante a ditadura; É de rasgar a camisa, dedicado à troça no frevo, Fubica, Folhas que não caem, Santa, Ecos do Carnaval, Camisa Velha; Bomba-relógio, em parceria com Mário Orlando, Balançando a pança, Segurando a peteca, entre tantos outros após a explosão de uma bomba, no Recife, durante a ditadura célebres frevos, corroboram o talento do artista e enriquecem militar. Interessante notar que o próprio maestro faz questão de o repertório de diversas agremiações carnavalescas, a exemplo sempre registrar a gênese de cada criação musical. de Cachorro do Homem do Miúdo, Vassourinhas, Lenhadores, 102 Girassol da Boa Vista, Lavadeiras de Areias, Amantes das Flores, volumes, um com frevo de rua e o outro com frevo-canção e frevo Pás Douradas, Beija-flor em Folia, Pão Duro, Seu Malaquias. de bloco. Em 2009, sai o CD Homenagem ao criador: Maestro Compôs e gravou para os tradicionais clubes Leão e Camelo, do Nunes, o mestre do Cabelo de Fogo, em que todas as músicas carnaval de Vitória de Santo Antão. gravadas – frevos de rua – são de autoria dele. Possui valioso acervo de mais de duas mil partituras musicais e, exatamente com Em 1972, na condição de assessor musical da Federação a proposta de preservar tais preciosidades, conquistou o Prêmio Carnavalesca de Pernambuco, abriu a Escola Musical do Frevo, Culturas Populares 2007 – Maestro Duda, 100 anos de frevo, destinada a crianças de baixa renda e aos filhos dos presidentes concedido pelo Ministério da Cultura (Minc). Nesse mesmo ano, foi das agremiações; e foi a partir desse ano que passou a ser o o homenageado do carnaval do Recife. principal e mais prolífico criador de frevo para os grupos foliões pernambucanos. Em 1984, criou a Banda de Frevos do Nordeste. Além da prolífica produção de frevos, o maestro compõe, ainda, Foi fundador do Centro de Educação Musical de Olinda (CEMO) diversos outros gêneros: samba, bolero, rumba, forró. Mantém, e regente da banda de música 10 de Agosto, da cidade de São inclusive, a Banda Junina do Maestro Nunes, que interpreta Lourenço da Mata. Integrou a banda de música do Liceu de Artes e repertório próprio e dos mestres Luiz Gonzaga, Jackson do Ofícios, da Universidade Católica de Pernambuco; a Banda Manoel Pandeiro, Zé Dantas, Humberto Teixeira. A coordenação da do Óleo, da União Operária da Macaxeira; a Orquestra Cassino agenda e das produções do maestro compete à compositora e Americano, da concorrida boate do Recife, à época. Antes de musicista Fátima Lapenda. Em meio ao processo criativo, entre transferir-se para a capital, Nunes foi músico da Euterpina Juvenil shows, gravações e aulas, o maestro Nunes faz questão de estar Nazarena, a Capa Bode, de Nazaré da Mata. sempre engajado em trabalhos comunitários, ministrando oficinas a crianças e jovens, de comunidades dos bairros dos Coelhos e Na discografia, os trabalhos mais recentes são os CDs Locomotiva Ilha do Leite, entre outros. Professor de maestros celebrados, a do frevo 1 e 2, de 2002, em que oferece a remasterização de exemplo de Spok e Forró, Nunes continua incansável na missão repertório dos vinis lançados desde 1975. O CD Maestro Nunes: de descobrir e incentivar novos talentos. Vida longa ao centenário 60 anos de frevo, feito em 2008, apresenta-se também em dois frevo, assim seja! Reprodução de fotografia antiga do acervo do maestro 103 Canindé 104 M onumental, com quase dois metros, a escultura guarda a casa, imperturbável e acolhedora. É o Rei Canindé, o encantado que livra de todos os embaraços e semeia o ânimo. É ele quem comanda “a famosa Tribo Canindé do Recife, a campeonísssima do Carnaval” e razão de viver de Juracy Simões, a se desmanchar em alegria e lágrimas sempre que convidada a discorrer sobre o grupo de caboclinhos, do qual é presidente e herdeira por tradição de família. Praticamente desde os primórdios, pai e tios de Juracy comandaram a agremiação carnavalesca, vinculada ao culto da jurema. Sabe-se pela história oral que, na antiga Rua das Jangadas, no Reprodução de fotografia do aniversário de 106 anos do Canindé: na imagem, Juracy Simões, sentada, de blusa branca e óculos, comemora com o grupo bairro de Afogados, alguém conhecido por Elesbão ou “Libão”, com a ajuda de um amigo, identificado apenas como Eduardo, decidiu criar um grupo de caboclinhos. Ambos eram estivadores. A data de fundação é 5 de março de 1897, e uma característica do grupo, inicialmente denominado “Príncipe do Rio do Rei Canindé”, era a participação exclusiva de curumins ou crianças. Em 1909, quando passa a ser conduzido por Manuel Batista da Silva, ou Manuel Rufino, a agremiação começa a aceitar a presença de adultos (apenas homens), transfere-se para a Bomba do Hemetério, bairro onde está ainda hoje, e a denominação muda para Canindé do Recife. Em 20 de fevereiro de 1957, sob a direção de José Silva Araújo, o estatuto é registrado com o nome Club Indígena Canindé, embora a brincadeira fosse conhecida por Tribo Canindé do Recife. Poucos anos depois, dois irmãos de Rufino – Miguel e Severino Batista da Silva – tomam a frente do grupo e é Severino quem passa a comandá-lo. Tratado entre os colegas por “Criança” e em família como “Bibiano”, Severino assume a missão de conduzir o brinquedo, sem perder de vista a íntima relação com a jurema sagrada. O símbolo do grupo é um índio com arco e flecha. As cores oficiais são o vermelho e o branco. Desde essa época, década de 1950, registros orais dão conta da participação feminina, o que terminou se transformando num diferencial em favor do sucesso conquistado nas décadas seguintes. 105 Encontro de Caboclinhos, semana pré-carnavalesca, Recife 2010 É o que testemunha e comprova a bisneta, neta e filha de que, na infância e adolescência, via e ouvia muito mais do que se juremeiros Juracy Simões da Silva que, pela vida devotada aos oferece hoje nas performances da tribo. Executado pelos caboclos cabocolinhos, honra a filiação. Nascida no Recife, em 15 de julho homens e por algumas caboclas, o característico e rápido bater de de 1945, o pai era o mestre carpinteiro Bibiano, ou Severino flechas do grupo – a exemplo da guerra de uma, de duas e de três Batista da Silva, e a mãe, Lucila Simões da Silva. Guardiã das –, declara Juracy que só o Canindé faz. Ao som do terno ou dos tradições religiosas da família e do caboclinho, Juracy vive imersa caboclos do baque – gaita, tarol e maracaxá, aliados à batida seca no grupo desde que nasceu, e coordena, de fato, todas as das preacas (arco e flecha) dos caboclos –, os toques ou gêneros atividades desde 1985, quando o pai, por problemas de saúde, musicais executados são guerra, perré, baião, toré ou macumba, fica impossibilitado de atuar no comando da agremiação. Em sob os quais se apresentam bandeirista, casal de caciques, os 1994, com o falecimento de Bibiano, funcionário da Prefeitura do puxantes Jupi e Agaci, dois perós, dois cordões de curumins, dois Recife, a única filha assume oficialmente a presidência, tornando- cordões de caboclos e caboclas, o rei e a rainha. São eles que se a primeira mulher a presidir um caboclinho, alçando, portanto, exibem a beleza das fantasias, a cadência do ritmo frenético da à condição de destaque na história do carnaval do Recife, em percussão e sopro, a leveza dos corpos ágeis a exibir aeróbico decorrência tanto desse pioneirismo quanto da marcante liderança. bailado. A mãe, Lucila, devotada à jurema, enquanto tem saúde segue colaborando na empreitada da filha. Falece em 2006. Preocupada com a transmissão da memória do Canindé, sobretudo direcionada aos jovens, Juracy tem promovido oficinas de Totalmente familiarizada com o cotidiano da Tribo Canindé, confecção de figurinos, de dança e de música, auxiliada por Dado, Juracy conhece não apenas histórias da formação do grupo, mas, ou Ednaldo Manuel dos Santos, um dos brincantes mais antigos e sobretudo, a maneira como se desenvolviam as apresentações. uma espécie de show-man, que ocupa a função do puxante Jupi. Para cada toque, ela sabe cantar e recitar as linhas, os pontos de Zelosa quanto às características do Canindé, Juracy cuida para que caboclo, as loas que vêm sendo excluídas do repertório devido as fantasias tenham bordados primorosos, tenham vistosas plumas à exiguidade de tempo nas exibições públicas. Relembra, ainda, e penas de ave, e que as manobras ou danças sejam executadas 106 com vivacidade, exuberância. Os ensaios ou treinos, momentos um dos grupos carnavalescos já existentes à época de fundação da preciosos de interação e aprendizagem, acontecem sempre Federação Carnavalesca de Pernambuco (1935) –, a Prefeitura do defronte da sede, e sempre na noite dos domingos, a partir do Recife promoveu a exposição comemorativa Canindé: 110 anos de mês de julho, estendendo-se à semana pré-carnavalesca. Há, resistência, realizada entre 13 de abril e 1º de maio de 2007, na tradicionalmente, em todos os eventos e reuniões da agremiação, Casa do Carnaval, Pátio de São Pedro. principalmente nas semanas anteriores ao Carnaval, uma mesa de frutas, oferenda aos encantados, das quais se servem os Concorrendo a edital público do Ministério da Cultura, Canindé brincantes, ao final. conquista, no ano seguinte, o Prêmio Culturas Populares 2008 – Mestre Humberto de Maracanã. Em 2009, sai o Batuque Book Certamente esse rito propiciatório abre caminhos. O Canindé Cabocolinho, de Climério Santos e Tarcísio Resende, com textos, esmera-se em todos os quesitos, sempre atraindo olhares fotos, partituras, mais a gravação de sete faixas de áudio e faixa admirados. Em 1960, Bibiano levou o grupo a se apresentar em multimídia dedicadas ao Canindé. Sem perder de vista a cidade tão Brasília, durante a inauguração do Sesi. Sem jamais perder a linda e os caminhos distantes de um reino encantado, em fevereiro realeza, foi campeão nove vezes consecutivas, de 1996 a 2004, de 2010 o caboclinho foi homenageado na abertura do carnaval no concurso de agremiações do carnaval do Recife. Em 2003, do Recife, juntamente ao centenário maracatu Estrela Brilhante a TV Viva produziu o documentário Três rainhas e um reinado de Igarassu. Com a firmeza própria do temperamento de Juracy, de Momo, em que são apresentadas mulheres no comando de sete caboclos flechando e a devida proteção do rei, as demandas agremiações, entre elas a carismática Juracy. O primeiro registro vão se desmanchando e a tribo resplandece. Salve o Rei Canindé fonográfico do secular caboclinho – No traçado do guerreiro – é de na Jurema, mestre que garante essa Nação. Quem for Canindé, 2005, realizado pelo músico e produtor cultural Adriano Araújo. sustente o penacho: este é um rio que não deixará de correr, o rio Graças à importância do tradicional caboclinho – inclusive este era do Rei Canindé. 107 Estrela Brilhante de Igarassu 108 U ma estrela para nos guiar, canta a loa. Uma Nação muita antiga, vinda da África para morar em Igarassu. É o que pronuncia a voz firme de Olga e Gilmar, encantando nossos ouvidos com as toadas herdadas dos antepassados. Pela voz deles remontamos aos avós e pais da centenária dona Mariu, chegamos ao tempo presente, aos seguidores de um baque triunfante a iluminar toda a família. Se fosse para seguir uma das versões da história oral relacionada ao grupo, 1730 poderia ter sido o início. Entretanto, a data oficializada é 8 de dezembro de 1824. O local era Vila Velha, em Itamaracá, à época pertencente a Igarassu. De lá, os antepassados do maracatu migraram para o Alto do Rosário. Mas da cidade de Igarassu o grupo não saiu e é a antiga Rua do Rosário, no sítio histórico, quem testemunha, há décadas, o canto, a dança e o batuque de descendentes de escravos. Às mulheres cabe a dança, os homens ficam com a percussão. Olga de Santana Batista, filha de dona Mariu, agora é a matriarca, guardiã da tradição, desde que a mãe, centenária, faleceu em 2003. Olga, nascida em Igarassu a 28 de fevereiro de 1939, começou a brincar aos 10 anos, como rainha, e com o pai também brincava cavalo-marinho e fandango. Auxiliada pelo filho caçula, mestre Gilmar, é com firmeza que os dois lideram rei, rainha, vassalos, ministros, princesas, dama-regente, dama do paço, portaestandarte, porta-candeeiros, porta-símbolo, baianas, batuqueiros. Gilmar de Santana Batista é o mestre dos batuqueiros. Rogério Raimundo de Sousa, o contramestre. Gilberto de Santana Batista é o porta-estandarte. Dona Rita, a dama-regente, é herdeira de uma função – a de conduzir a calunga – que coube a dona Mariu durante os anos todos em que participou da Nação. Mariu, ou Maria Sérgia da Anunciação, nasceu no dia 8 de dezembro de 1898 e morreu no dia 8 de outubro de 2003, na mesma cidade – Igarassu. Sempre na função de dama-regente, começou a participar do maracatu aos 12 anos. O apego a “dona Emília”, a calunga de madeira feita pelo carpinteiro Minervino do Ó, era tanto, que a boneca dormia com ela. Afinal, dona Emília é 109 quem manda, cantam as toadas do grupo fincado nas tradições uma baqueta (ao invés de duas) e uma vareta ou galho de árvore, do candomblé, para quem a calunga – a evocar ancestrais e chamado bacalhau, o que confere um toque diferenciado ao orixás – desempenha primordial função de protetora do folguedo: baque do Estrela, “um suingue muito mais gostoso”, conforme trata-se de um objeto ritual. O pai, João Francisco da Silva, passou demonstra, orgulhoso, o mestre Gilmar, que puxa, entre a liderança do maracatu para o marido de Mariu, Manoel Próximo outras toadas, a seguinte: Toque o gonguê / toque o tambor de Santana. O seu Neusa, como era conhecido Manoel, ficou / vem mineiro e caixa / foi o mestre que mandou. Os ensaios incumbido das funções de rei do maracatu e mestre do batuque. tradicionalmente ocorrem a partir de setembro e se prolongam A mãe de Maria Sérgia, dona Mariassu, morreu aos 115 anos. até a semana pré-carnavalesca. E no período junino, os brincantes Com o marido, era quem comandava o maracatu e costurava também se divertem, mas é com o centenário samba de coco e o manualmente as roupas do grupo. A filha Mariu, que chegou a banho ou “batismo” de São João pela madrugada do dia 24 de quase 105 anos, ganhou a festa “100 anos de uma rainha negra”, junho. organizada em dezembro de 1998 pela prefeitura de Igarassu. No centenário, Sérgia relembrou, em entrevista concedida ao Jornal Entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, o maracatu do Commercio, em 6 de dezembro de 1998, que, no cortejo real, passou quatro anos sem se apresentar, conforme registrado havia antigamente os lanceiros, ou duas crianças que iam à frente numa reportagem do Diario de Pernambuco, em 11 de fevereiro da corte fazendo a ordenança do rei e da rainha. Outra ausência, de 1982, intitulada: “Maracatu volta a desfilar”. Adiante, após lamentada ainda hoje por dona Olga, é a da calunga Joventina, mais alguns anos desativado em decorrência do falecimento que não mais se encontra no acervo do grupo. de seu Neusa e da impossibilidade de locomoção de dona Mariu, um grupo de estudiosos da Comissão Pernambucana de Os instrumentos utilizados no batuque tradicional do Estrela Folclore, presidida pelo pesquisador Roberto Benjamin, realizou, Brilhante são zabumba (o mesmo que tambor ou alfaia), tarol durante 1993, um levantamento das toadas e da história do (ou caixa de guerra), mineiro (ou ganzá) e gonguê. Os tambores, grupo e, assim, foi responsável pela retomada do grupo, em que antigamente eram feitos com barrica de transportar o peixe janeiro de 1994. A seguir, o grupo não mais parou. Em 1997, bacalhau, agora talhados no tronco de macaíba, são tocados com foi o homenageado do carnaval de Igarassu. No mesmo ano, 110 Roberto Berliner dirigiu um documentário de três minutos, em 16mm, colorido, no projeto Som da Rua, intitulado Maracatu Estrela Brilhante. Em 1998, dona Mariu ganhou destaque com o aniversário de 100 anos, conforme mencionado acima. O primeiro registro fonográfico aconteceu em 2003, com gravação ao vivo e ao ar livre, resultando no CD Maracatu Estrela Brilhante de Igarassu – 180 anos. No início de setembro de 2008, o grupo viaja a Portugal, para participação no XII Festival Folclore Internacional Alto Minho, em Viana do Castelo, cidade-irmã de Igarassu, por esta ter sido fundada pelo capitão Afonso Gonçalves, natural daquela cidade portuguesa. Ponto de Cultura Estrela Para Todos desde 2008, o grupo passou a promover oficinas de percussão e dança e colocou no ar uma home page, em três línguas. Conquistou o Prêmio Culturas Populares 2008 – Mestre Humberto de Maracanã, do Ministério da Cultura (Minc), com o qual realizou a remasterização e reedição do CD comemorativo aos 180 anos. Foi contemplado com o projeto Cine Mais Cultura (Minc), edição 2008. O tradicional Coco de Olga também foi contemplado com o Prêmio Culturas Populares 2009 – Edição Mestra Dona Isabel. Em fevereiro de 2010, juntamente à centenária Tribo Canindé do Recife, ganhou homenagem na abertura do carnaval do Recife, no Marco Zero. Com tantas ações importantes, com tantas vozes e loas bonitas, sustente o baque, dona Emília, que o Estrela vai continuar! 111 112 Referências AMORIM, Maria Alice e BENJAMIN, Roberto. Carnaval: cortejos e improvisos. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2002. 124 p. BORBA FILHO, Hermilo; RODRIGUES, Abelardo. Cerâmica popular do Nordeste. Rio de Janeiro: MEC/Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1969. 214 p. AMORIM, Maria Alice. 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