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ISSN 1517-2422 (versão impressa) ISSN 2236-9996 (versão on-line) cadernos metrópole políticas públicas e formas de provisão da moradia Cadernos Metrópole v. 18, n. 35, pp. 1-312 abr 2016 hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3500 Book 35.indb 1 06/03/2016 17:30:25 Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999–, Semestral ISSN 1517-2422 (versão impressa) ISSN 2236-9996 (versão on-line) A partir do segundo semestre de 2009, a revista passará a ter volume e iniciará com v. 11, n. 22 1. Regiões Metropolitanas – Aspectos sociais – Periódicos. 2. Sociologia urbana – Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. Observatório das Metrópoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles CDD 300.5 Indexadores: SciELO, Redalyc, Latindex, Library of Congress – Washington Cadernos Metrópole Profa. Dra. Lucia Bógus Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - Observatório das Metrópoles Rua Ministro de Godói, 969 – 4° andar – sala 4E20 – Perdizes 05015-001 – São Paulo – SP – Brasil Prof. Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - Observatório das Metrópoles Av. Pedro Calmon, 550 – sala 537 – Ilha do Fundão 21941-901 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 São Paulo – SP – Brasil Telefone: (55-11) 94148.9100 [email protected] http://web.observatoriodasmetropoles.net Secretária Raquel Cerqueira Book 35.indb 2 06/03/2016 17:30:25 políticas p o líí t i c a s p públicas ú b l i c ass e fformas ormas de d e provisão p ro v i s ã o d da am moradia oradia Book 35.indb 3 06/03/2016 17:30:25 PUC-SP Reitora Anna Maria Marques Cintra EDUC – Editora da PUC-SP Direção Miguel Wady Chaia Conselho Editorial Anna Maria Marques Cintra (Presidente), José Rodolpho Perazzolo, Karen Ambra, Ladislau Dowbor, Lucia Maria Machado Bógus, Mary Jane Paris Spink, Miguel Wady Chaia, Norval Baitello Junior, Oswaldo Henrique Duek Marques, Rosa Maria B. B. de Andrade Nery Coordenação Editorial Sonia Montone Revisão de português Eveline Bouteiller Revisão de inglês Carolina Siqueira M. Ventura Revisão de espanhol Vivian Motta Pires Projeto gráfico, editoração Raquel Cerqueira Capa Waldir Alves Rua Monte Alegre, 984, sala S-16 05014-901 São Paulo - SP - Brasil Tel/Fax: (55) (11) 3670.8085 [email protected] www.pucsp.br/educ Book 35.indb 4 06/03/2016 17:30:26 cadernos metrópole EDITORES Lucia Bógus (PUC-SP) Luiz César de Q. Ribeiro (UFRJ) COMISSÃO EDITORIAL Eustógio Wanderley Correia Dantas (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza/Ceará/Brasil) Luciana Teixeira Andrade (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Orlando Alves dos Santos Júnior (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Sérgio de Azevedo (Universidade Estadual do Norte Fluminense, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/ Brasil) Suzana Pasternak (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) CONSELHO EDITORIAL Adauto Lucio Cardoso (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Aldo Paviani (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito Federal/ Brasil) Alfonso Xavier Iracheta (El Colegio Mexiquense, Toluca/Estado del México/México) Ana Cristina Fernandes (Universidade Federal de Pernambuco, Recife/ Pernambuco/Brasil) Ana Fani Alessandri Carlos (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ana Lucia Nogueira de P. Britto (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Ana Maria Fernandes (Universidade Federal da Bahia, Salvador/Bahia/Brasil) Andrea Claudia Catenazzi (Universidad Nacional de General Sarmiento, Los Polvorines/Provincia de Buenos Aires/Argentina) Angélica Tanus Benatti Alvim (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Arlete Moyses Rodrigues (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil) Brasilmar Ferreira Nunes (Universidade Federal Fluminense, Niterói/Rio de Janeiro, Brasil) Carlos Antonio de Mattos (Pontificia Universidad Católica de Chile, Santiago/Chile) Carlos José Cândido G. Fortuna (Universidade de Coimbra, Coimbra/Portugal) Claudino Ferreira (Universidade de Coimbra, Coimbra/Portugal) Cristina López Villanueva (Universitat de Barcelona, Barcelona/Espanha) Edna Maria Ramos de Castro (Universidade Federal do Pará, Belém/Pará/Brasil) Eleanor Gomes da Silva Palhano (Universidade Federal do Pará, Belém/Pará/Brasil) Erminia Teresinha M. Maricato (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Félix Ramon Ruiz Sánchez (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Fernando Nunes da Silva (Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa/Portugal) Frederico Rosa Borges de Holanda (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Geraldo Magela Costa (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/ Brasil) Gilda Collet Bruna (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heliana Comin Vargas (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heloísa Soares de Moura Costa (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Jesus Leal (Universidad Complutense de Madrid, Madri/Espanha) José Alberto Vieira Rio Fernandes (Universidade do Porto, Porto/Portugal) José Antônio F. Alonso (Fundação de Economia e Estatística, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) José Machado Pais (Universidade de Lisboa, Lisboa/Portugal) José Marcos Pinto da Cunha (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil) José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa/Portugal) José Tavares Correia Lira (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Leila Christina Duarte Dias (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/Santa Catarina/Brasil) Luciana Corrêa do Lago (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luís Antonio Machado da Silva (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/ Brasil) Luis Renato Bezerra Pequeno (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza/Ceará/Brasil) Márcio Moraes Valença (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Marco Aurélio A. de F. Gomes (Universidade Federal da Bahia, Salvador/Bahia/Brasil) Maria Cristina da Silva Leme (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Maria do Livramento M. Clementino (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Marília Steinberger (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Marta Dominguéz Pérez (Universidad Complutense de Madrid, Madri/ Espanha) Nadia Somekh (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Nelson Baltrusis (Universidade Católica do Salvador, Salvador/Bahia/ Brasil) Norma Lacerda (Universidade Federal de Pernambuco, Recife/Pernambuco/Brasil) Ralfo Edmundo da Silva Matos (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Raquel Rolnik (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ricardo Toledo Silva (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Roberto Luís de Melo Monte-Mór (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Rosa Maria Moura da Silva (Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social, Curitiba/Paraná/Brasil) Rosana Baeninger (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil) Sarah Feldman (Universidade de São Paulo, São Carlos/São Paulo/Brasil) Vera Lucia Michalany Chaia (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Wrana Maria Panizzi (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) Book 35.indb 5 06/03/2016 17:30:26 Book 35.indb 6 06/03/2016 17:30:26 sumário 9 Apresentação dossiê: políticas públicas e formas de provisão da moradia The Brazilian land issue in the design of the na onal housing policies: considera ons from the beginning of the 21st century onwards 15 A questão fundiária brasileira no desenho das polí cas nacionais de habitação: considerações a par r do início do século XXI Tomás Antonio Moreira Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro FGTS and the market of real estate-backed securi es: rela onships and trends 33 O FGTS e o mercado de tulos de base imobiliária: relações e tendências Luciana de Oliveira Royer Links between the policy of incen ve to the demand for land and housing and urban integra on in areas of extensive urban growth. The case of PRO.CRE.AR in La Plata 53 Vínculos entre la polí ca de incen vo a la demanda de erra y vivienda e integración urbana en áreas de crecimiento urbano extensivo. El caso del PRO.CRE.AR en La Plata María Eugenia Rodríguez Daneri Squa er se lements in Brazil and in São Paulo: improvements in the analyzes from the 2010 Census Territorial Reading 75 Favelas no Brasil e em São Paulo: avanços nas análises a par r da Leitura Territorial do Censo de 2010 Suzana Pasternak Camila D’O aviano Slum upgrading in the ABC Region in the context of Programa de Aceleração do Crescimento-Urbanização de Assentamentos Precários 101 Urbanização de favelas na Região do ABC no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento-Urbanização de Assentamentos Precários Rosana Denaldi Ricardo More Claudia Paiva Fernando Nogueira Juliana Petrarolli Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 1-312, abr 2016 Book 35.indb 7 7 06/03/2016 17:30:26 8 Book 35.indb 8 Wai ng for the deeds. The regulariza on process of the Virgen Misionera Neighbourhood 119 Housing policies and urban occupa ons: dissent in the city 145 As polí cas habitacionais e as ocupações urbanas: dissenso na cidade Denise Morado Nascimento Why could the Minha Casa Minha Vida Program only have happened in a government headed by the Labor Party? 165 Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer em um governo pe sta? Danielle Klintowitz Minha Casa Minha Vida Program in the Metropolitan Region of Fortaleza: an analysis of ins tu onal arrangements 191 O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE: análise dos arranjos ins tucionais Renato Pequeno Sara Vieira Rosa Transforma on of the urban periphery and new forms of inequality in Brazilian ci es: a view on the recent changes in housing produc on 217 Transformações da periferia e novas formas de desigualdades nas metrópoles brasileiras: um olhar sobre as mudanças na produção habitacional Maria Beatriz Cruz Rufino Between sta s cs and the city: enrolment and produc on of social demand for apartments in the Minha Casa Minha Vida housing program 237 Entre as esta s cas e a cidade: o cadastramento e a produção da demanda social por apartamentos no Programa Minha Casa Minha Vida Marcella Carvalho de Araújo Silva Family arrangements of beneficiaries of the Minha Casa Minha Vida Program: benefit’s trajectories and percep ons of social welfare 257 Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida: trajetórias de bene cio e percepções de bem-estar social Vitor Matheus Oliveira de Menezes Social effec veness of the Minha Casa Minha Vida Program: conceptual discussion and reflec ons based on an empirical case 283 Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida: discussão conceitual e reflexões a par r de um caso empírico Aline Werneck Barbosa Carvalho Italo Itamar Caixeiro Stephan 309 Instruções aos autores ¿Y el tulo para cuándo? El processo de regularización del barrio Virgen Misionera Tomás Alejandro Guevara Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 1-312, abr 2016 06/03/2016 17:30:26 Apresentação Após um longo período na obscuridade, o tema da habitação voltou a ganhar centralidade na agenda política a partir de meados da década de 2000, não apenas no Brasil como em outros países da América Latina. A expressão mais contundente dessa centralidade se deu, sem dúvida, através de programas de construção de conjuntos habitacionais contando com subsídios públicos, que se desenvolveu mais recentemente no Brasil e na Venezuela, seguindo em grande medida o modelo adotado pelo Chile desde os anos 1980. Mas também é importante ressaltar a multiplicação de ações de urbanização de favelas, das quais as mais conhecidas são as experiências brasileira e colombiana, assim como os programas de regularização fundiária e urbanística. A expansão das políticas habitacionais não se fez, todavia, sem ambiguidades. Nesse sentido, o objetivo central do presente número da revista Cadernos Metrópole é construir uma perspectiva crítica sobre a experiência recente, tentando identificar seus avanços, limites e possibilidades. Um aspecto central das políticas habitacionais, como apontado pela literatura já clássica sobre o tema, diz respeito à relevância da questão fundiária. Ermínia Maricato, em estudos recorrentes, tem apontado o papel da propriedade privada da terra, ao longo da história do país, como o principal obstáculo para a democratização do acesso à cidade. Neste número dos Cadernos, o texto de Tomás Antonio Moreira e Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro, A questão fundiária na Política Nacional de Habitação Brasileira, procura mostrar como as mudanças recentes na política habitacional, que apontavam na direção da utilização de mecanismos e instrumentos de controle da valorização e da especulação imobiliária, foram desconsideradas, a partir da criação do programa Minha Casa Minha Vida. Nesse sentido, ao priorizar um programa que buscava incentivar o crescimento econômico e cujo desenho dava ampla autonomia à ação do capital imobiliário, sem cuidar de mecanismos regulatórios efetivos na direção dos avanços realizados no âmbito da Política Nacional de Habitação, o programa acabou por gerar uma forte demanda por terra que influenciou uma progressiva elevação de preços fundiários e imobiliários, atingindo todas as cidades brasileiras e revertendo os avanços legislativos e institucionais anteriormente alcançados. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 9-13, abr 2016 hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3500 Book 35.indb 9 9 06/03/2016 17:30:26 Apresentação Uma outra ambiguidade da política habitacional brasileira recente diz respeito ao financiamento público e, particularmente, ao papel do FGTS como instrumento de captura de poupanças e de financiamento de programas habitacionais voltados para camadas de menor renda. O texto de Luciana de Oliveira Royer, O FGTS e o mercado de títulos de base imobiliária: relações e tendências, mostra como os recursos do FGTS vêm sendo crescentemente utilizados para sustentar o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), particularmente através da aquisição de títulos de crédito de base imobiliária. O texto apresenta evidências significativas de que é a atuação do FGTS que vem garantindo liquidez a esse mercado, sem que se tivesse estabelecido a necessária vinculação com investimentos habitacionais, particularmente para a Habitação de Interesse Social, desviando o Fundo de seus objetivos específicos e mostrando indícios de que o Sistema de Financiamento Imobiliário, criado com objetivo de substituir o SFH, permanece sem sustentabilidade econômica. A periferização aparece como tema recorrente nas análises do Programa Minha Casa Minha Vida, como será visto nos textos presentes nesta edição, e em outras experiências latino-americanas, como mostra o estudo de Maria Eugenia Rodrigues Daneri, intitulado Vínculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivenda e integración urbana en áreas de crecimiento urbano extensivo. El caso del PRO.CRE.AR en La Plata. Analisando o caso da Província de La Plata, na Argentina, a autora mostra as contradições de um programa de provisão de moradias que, além de reforçar os processos de periferização, coloca a população em situações de precariedade de infraestrutura, através de uma política de habitação que, de forma similar ao que acontece com o Programa brasileiro, não dialoga com as políticas urbanas e com o planejamento do uso do solo urbano. A problemática habitacional tem como um de seus pontos centrais a questão dos assentamentos informais, favelas ou assemelhados, um problema recorrente nas cidades latino-americanas e presente nas cidades brasileiras já há mais de um século e que tem sido objeto de programas de urbanização e de regularização, como já apontado acima. O texto de Suzana Pasternak e Camila D'Ottaviano, Favelas no Brasil e em São Paulo: avanços nas análises a partir da Leitura Territorial do Censo de 2010, faz um balanço das mudanças recentes no Brasil, apresentando uma importante inovação por utilizar, pela primeira vez, os dados disponibilizados pelo Censo 2010 referentes à “Leitura Territorial”, para os setores de aglomerados subnormais. O texto mostra o grande crescimento desses assentamentos na primeira década do século XXI, passando de 6,5 milhões para 11,4 milhões, e 88% desses domicílios estão concentrados em 20 grandes cidades. Mostra ainda que as favelas passaram por um processo de intenso crescimento na última década e que, não obstante as melhorias decorrentes dos programas de urbanização, ainda se identifica forte precariedade, seja pelas condições geológicas do terreno, seja pelas altas densidades, seja pelas condições de acesso à infraestrutura. Essa precariedade se revela mais forte, particularmente, nas cidades do Norte e do Nordeste. O tema das favelas traz à baila o princípio do direito à moradia e da função social da propriedade na concepção e na implementação das políticas de habitação. Essa importância se manifestava particularmente pela centralidade dos programas de urbanização de favelas e de 10 Book 35.indb 10 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 9-13, abr 2016 06/03/2016 17:30:26 Apresentação regularização fundiária. A regularização fundiária e a urbanização de assentamentos precários vinham ganhando importância crescente nas políticas públicas, em todos os níveis de governo, todavia, nos anos recentes pudemos identificar uma reversão dessa tendência, como aponta o texto de Rosana Denaldi et al., como ressaltaremos mais adiante. Esses programas passaram a conviver, nos últimos anos, com ações de renovação urbana e de realização de grandes obras que implicam despejos forçados e deslocamentos de parcelas importantes da população para periferias distantes. O estudo de Rosana Denaldi et al., Urbanização de favelas na Região do ABC no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento-Urbanização de Assentamentos Precários, detém-se em uma avaliação daquele que foi o mais importante programa de urbanização de assentamentos precários no Brasil – o PAC-UAP – com foco na região do ABC paulista. O texto mostra que, por um lado, os recursos do PAC permitiram ampliar largamente os investimentos municipais em urbanização de favelas, ampliando fortemente a escala de intervenção. Por outro, identificam-se dificuldades na viabilização do Programa, seja em nível nacional, seja no caso analisado (Região do ABC paulista) com baixo nível de contratação e atraso significativo na execução das obras. As conclusões apontam que os problemas identificados referem-se (a) à maior complexidade de obras em assentamentos precários, seja pelas condições de terreno, seja pelo fato de se tratar de um assentamento consolidado, seja, ainda, pela necessidade de uma articulação forte entre as políticas de reassentamento e a realização de obras estruturais; (b) à baixa qualidade e nível incompleto dos projetos de arquitetura e de engenharia, indicando inclusive a falta de experiência técnica acumulada nesse campo; (c) aos procedimentos de gestão financeira e de andamento das obras pelas equipes da Caixa, que também não se adequam à realidade das obras em favelas, ressaltando-se a rigidez das normas de contratação e de acompanhamento. O texto ressalta a importância que o programa não seja relegado a segundo plano por conta das dificuldades encontradas, mas que se busque seu aprimoramento no sentido de melhorar as condições técnicas da intervenção e da gestão. O enfrentamento do problema das ocupações informais passa por dois tipos de políticas que podem ou não ser combinadas: a urbanização, que significa a provisão de infraestrutura, melhoria da acessibilidade e tratamento de situações de risco, e a regularização fundiária, que visa resolver os problemas da titularidade da terra, assim como a situação de regularidade em relação à legislação urbanística e edilícia. Como têm mostrado estudos históricos e recentes sobre a regularização fundiária no Brasil, a legislação, embora tenha avançado, ainda não permitiu que se acelerem os ritos jurídicos, e, portanto, permanecem obstáculos à regularização plena. Tal é também o caso na Argentina, como mostra o trabalho de Tomás Alejandro Guevara, ¿Y el título para cuándo? El proceso de regularización del barrio Virgen Misionera, que identifica claramente os obstáculos ao processo de regularização nos casos analisados, mostrando que são necessárias ainda muitas mudanças na legislação, uma vez que o campo jurídico permanece ainda fortemente condicionado à proteção ao direito de propriedade. O autor aponta ainda que alguns dos instrumentos presentes na legislação brasileira, como a usucapião especial urbana e as Zeis, poderiam ser úteis para resolver problemas Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 9-13, abr 2016 Book 35.indb 11 11 06/03/2016 17:30:26 Apresentação identificados nos casos analisados, ressaltando a importância de avanços na legislação em geral para os países latino-americanos. O conjunto de textos que se segue versa, em linhas gerais, sobre o Programa Minha Casa Minha Vida. Denise Morado Nascimento, em As políticas habitacionais e as ocupações urbanas: dissenso na cidade , faz um interessante contraponto entre a ação do Programa, que leva à periferização, e a experiência das ocupações em áreas centrais, a partir do caso de Belo Horizonte. Danielle Klintowitz, com o texto Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer em um governo petista?, apresenta um enfoque mais abrangente de análise, olhando o Programa a partir de uma perspectiva nacional. Na primeira parte do texto, mostra como o programa se afasta das diretrizes da PNH, ao enfatizar o papel do setor privado e também como essa primazia acaba por gerar efeitos não desejados, já que a distribuição de recursos não segue a lógica da distribuição do déficit habitacional. Na segunda parte, adotando um enfoque da ciência política, a autora busca identificar a lógica da formação das coalizões que dão suporte aos diferentes aspectos da política habitacional. Ressalta que, desde o início, o governo pautou duas agendas paralelas, uma voltada para os movimentos sociais e outra para o setor imobiliário, tentando costurar as duas agendas sob a égide (legitimadora) do SNHIS. O tema dos problemas distributivos acima apontados é retomado em artigo de Renato Pequeno e Sara Vieira Rosa, O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE: análise dos arranjos institucionais, que buscarão explicá-los a partir dos arranjos institucionais e do papel dos diferentes atores, no contexto da Região Metropolitana de Fortaleza. Retomando o tema do acesso à terra em condições econômicas adequadas como fator explicativo dos processos de distribuição de recursos, o texto aponta que esse fator não deve ser dissociado de um olhar mais agudo sobre a natureza e o porte dos agentes privado envolvidos, já que esses desenvolvem estratégias – inclusive fundiárias – diferenciadas. Ressalta ainda a importância de um fortalecimento da gestão pública e do planejamento e de um redesenho do Programa com revisão do arranjo institucional adotado. Maria Beatriz Cruz Rufino retoma o tema da periferia em Transformações da periferia e novas formas de desigualdades nas metrópoles brasileiras: um olhar sobre as mudanças na produção habitacional, agora a partir do olhar da produção de conjuntos habitacionais e não mais apenas dos loteamentos populares como era a tradição na literatura especializada. Partindo da análise dos resultados de pesquisas sobre a expansão periférica recente capitaneada pelo Programa Minha Casa Minha Vida, a autora desenvolve um interessante ensaio teórico em que postula “o deslocamento da primazia da contradição entre capital-trabalho, sob o domínio do capital industrial, para a primazia de uma contradição urbana, sob domínio do capital financeiro, responsável pela produção de novas desigualdades”. Marcella Carvalho de Araújo Silva, no texto Entre as estatísticas e a cidade: o cadastramento e a produção da demanda social por apartamento no Minha Casa Minha Vida, em que discute o processo de cadastramento das famílias que participam do Programa Minha Casa Minha Vida, problematiza de forma particular a relação entre o cálculo do déficit habitacional, que é fonte 12 Book 35.indb 12 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 9-13, abr 2016 06/03/2016 17:30:26 Apresentação de referência para o Programa e a constituição da demanda específica, a partir do processo de cadastro. Tomando como estudo de caso o processo de cadastro operacionalizado pela equipe do trabalho técnico social da Prefeitura do Rio de Janeiro em uma favela da Zona Norte da cidade, a autora aponta para a complexidade das relações sociais que se configuram na esteira do processo de reassentamento, sugerindo a existência de um conjunto de injustiças, assim representadas pela população, tanto na classificação do risco e de quem é obrigado a sair, quanto na designação de novas unidades no conjunto habitacional. Já Vitor Matheus Oliveira de Menezes, em Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida: trajetórias de benefício e percepções de bem-estar social, trata de uma avaliação das percepções dos beneficiários do Programa a partir de um estudo de caso de um empreendimento situado em Salvador-BA, introduzindo como elementos analíticos a trajetória e a inserção da população em redes familiares e sociais. O texto mostra que a percepção dos atores é complexa e contraditória e que a importância dos vínculos familiares como elemento de sustentação da reprodução social deve ser levada em conta nas análises sobre a efetividade das políticas públicas. No texto Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida: discussão conceitual e reflexões a partir de um caso empírico, Aline Werneck Barbosa Carvalho e Italo Itamar Caixeira Stephan buscam refletir sobre a efetividade do Programa em municípios de pequeno porte, a partir da análise dos empreendimentos realizados em Viçosa-MG. Partindo de um survey realizado em todos os empreendimentos do município e tomando como base a comparação com a moradia anterior, o texto conclui pela problematização dos resultados tendo em vista aspectos de acesso a infraestrutura e a mobilidade espacial. O presente número da revista Cadernos Metrópoles apresenta um balanço bastante completo das tendências recentes na Política Habitacional, mostrando que, se os anos recentes mostraram que essa política ganha maior centralidade na agenda pública, há ainda um longo caminho a avançar para que o direito à moradia possa ser efetivamente assegurado para todas as camadas da população. Adauto Lucio Cardoso* Organizador (*) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Rio de Janeiro/RJ, Brasil. [email protected] Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 9-13, abr 2016 Book 35.indb 13 13 06/03/2016 17:30:26 Book 35.indb 14 06/03/2016 17:30:26 A questão fundiária brasileira no desenho das políticas nacionais de habitação: considerações a partir do início do século XXI The Brazilian land issue in the design of the national housing policies: considerations from the beginning of the 21st century onwards Tomás Antonio Moreira Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro Resumo O Brasil evidenciou nas últimas décadas importantes transformações no campo da política urbana e habitacional. O contexto institucional criado sinalizou uma perspectiva promissora para articular a questão fundiária à política habitacional. Apesar de haver um consenso de que a terra urbana é componente e condição essencial para o êxito das ações que efetivam tal política, as práticas habitacionais empreendidas raramente trataram desse componente de maneira adequada. Este artigo analisa como a questão fundiária é colocada no desenho das políticas nacionais de habitação. Analisa-se a abordagem da questão fundiária na Política Nacional de Habitação, seus pressupostos e as contradições geradas ao tentar compatibilizar seu protagonismo com a aceleração do crescimento econômico do país. Abstract Brazil has experienced significant changes in recent decades in the fi eld of urban and housing policy. The institutional context created signaled a promising perspective to articulate the land issue to housing policy. Although there is a consensus that urban land is component and an essential condition for the success of the actions that concretize such a policy, housing practices undertaken rarely deal with this component in the proper way. This paper examine how the land issue is inser ted in the design of national housing policies. The work analyzes the approach of land issue in National Housing Policy, its purposes and the contradictions generated to match its role with the acceleration of economic growth. Palavras-chave: política fundiária; política nacional de habitação; Programa Minha Casa Minha Vida. Keywords: land policy, national housing policy, Program Minha Casa Minha Vida. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3501 Book 35.indb 15 06/03/2016 17:30:26 Tomás Antonio Moreira, Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro Introdução e estabeleceu o Plano Diretor municipal como instrumento básico dos conteúdos da política urbana (ibid., 2011). Nas últimas décadas, o Brasil assistiu a impor- A criação do Ministério das Cidades e a tantes transformações jurídico-institucionais composição de secretarias nacionais, a partir no campo das políticas urbana e habitacional, de 2003, permitiram institucionalizar novas po- cujo discurso intencionava reverter os graves líticas, voltadas à construção de um pacto para problemas da polarização e segregação so- enfrentamento do quadro urbano e habitacio- cioespacial intrínsecas ao padrão de desen- nal no Brasil. Nesse contexto, a aprovação da volvimento urbano do país. Tais problemas Política Nacional de Habitação (PNH) em 2004, estiveram intimamente relacionados à questão com um conjunto de instrumentos que busca- fundiária, uma vez que a limitação do acesso ram integrar os diferentes níveis de governo e ao solo para a população de baixa renda cons- concentrar recursos expressivos para sua con- tituiu uma das principais formas de exclusão cretização, estabeleceu as “novas” bases insti- social e de consolidação da precariedade urba- tucionais e conceituais que passaram a orientar na e habitacional nas cidades (Bonduki, 2011; o Estado e demais agentes envolvidos no setor, Moreira, 2012). ao equacionamento das necessidades habita- A Constituição Federal de 1988 e o Estatu- cionais do país. to da Cidade de 2001 (Lei Federal 10.257/2001) A partir de 2005, a valorização da te- instituíram um importante marco para a políti- mática habitacional pelo governo federal, pa- ca urbana, ao reconhecer o direito à cidade e à ralelamente à melhoria da conjuntura macro- moradia como princípios sociais fundamentais. econômica, permitiu impulsionar a elevação Estabeleceram novos mecanismos e instru- dos investimentos em programas e projetos mentos urbanísticos para planejar o desenvol- habitacionais, conformando um cenário favo- vimento das cidades, objetivando viabilizar os rável que realçou um otimismo para o equa- direitos referidos e criar canais de participação cionamento das necessidades habitacionais do que pudessem mediar as relações e decisões país, sobretudo com a instituição do Progra- estabelecidas entre o Estado e os agentes en- ma de Aceleração do Crescimento (PAC) e do volvidos no processo de produção do espaço Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) urbano (Santos Jr. e Montandon, 2011). (Bonduki, 2008). A Constituição Federal, de 1988, buscou Apesar da priorização da temática ha- alavancar um processo de descentralização bitacional, estudos recentes evidenciam que, das competências governamentais, a partir do embora os avanços no campo das políticas ur- qual os municípios passaram a assumir auto- bana e habitacional acenem uma perspectiva nomia na definição, condução e execução de positiva, seus resultados qualitativos indicam suas políticas públicas. Ela também reafirmou uma face paradoxal. A expressiva disponibili- o princípio da função social da propriedade, zação de recursos como dimensão estratégica sob o qual o Estatuto da Cidade passou a se para financiamento, subsídio e otimização da apoiar, definiu diretrizes para seu cumprimento cadeia produtiva da construção civil em nível 16 Book 35.indb 16 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 06/03/2016 17:30:26 A questão fundiária brasileira no desenho das políticas nacionais de habitação federal, ao mesmo tempo em que permite al- a terra e à moradia por meio do mercado for- cançar parcelas populacionais de menor renda, mal, para a população de baixa renda (MCida- antes não atendidas, tem como foco ampliar a des, 2006). participação da iniciativa privada nos proces- Preconizando a gestão participativa e sos de produção. Ao inserir o protagonismo democrática, adotando-se o direito à moradia da política de habitação em um viés de ace- como direito fundamental e a moradia digna leração do crescimento econômico, passa-se como vetor de inclusão social, a articulação a reproduzir um padrão de segregação socio- com a política urbana e a integração às ações territorial e precariedade urbana e ambiental das demais políticas sociais e ambientais foram que retoma os erros e contradições recorrentes estabelecidas como princípios fundamentais na trajetória histórica da política habitacional da PNH (MCidades, 2006). A partir desses prin- brasileira (Bonduki, 2008; Rolnik e Klink, 2011; cípios, a gestão e o controle social, o projeto Shimbo, 2010). financeiro e a política fundiária urbana ficaram Esse novo contexto sinalizou uma perspectiva promissora para articular a questão conceitualmente definidos como eixos centrais de sua implantação (Bonduki, 2008). fundiária à política habitacional. Apesar de ha- Para o eixo da política fundiária, a PNH ver um consenso de que a terra urbana é com- estabeleceu como princípios a implementação ponente e condição essencial para o êxito das dos instrumentos e das diretrizes gerais da po- ações que efetivam tal política, acredita-se que lítica urbana dispostos pelo Estatuto da Cidade, as práticas habitacionais empreendidas rara- visando garantir o cumprimento da função so- mente trataram desse componente de maneira cial da cidade e da propriedade, bem como o adequada e pouco se questionaram sobre qual melhor ordenamento e controle do uso do solo, premissa se estruturariam. Busca-se, portanto, de forma a combater a retenção especulativa analisar como a questão fundiária para a pro- da terra e viabilizar o seu acesso pela popula- dução de moradias é tratada e embasada no ção de baixa renda (MCidades, 2006). desenho das políticas nacionais de habitação. Para o projeto financeiro, concebeu-se a estruturação do Sistema Nacional de Habitação (SNHAB), que passou a definir as formas Política Nacional de Habitação: pressupostos e contradições de articulação entre os diferentes níveis de governo e os demais agentes públicos e privados envolvidos no setor habitacional, bem como as regras, os componentes e as linhas de atuação A formulação da Política Nacional de Habita- que direcionariam recursos para a implementa- ção (PNH) partiu da concepção de uma dívida ção da PNH. social acumulada no país, fruto das desigual- O SNHAB se organizou em dois subsis- dades sociais e da concentração de renda ca- temas: o Sistema Nacional de Habitação de racterísticas da sociedade brasileira, expressa Interesse Social (SNHIS) e o Sistema Nacional na segregação socioespacial vivida no espaço de Habitação de Mercado (SNHM). O SNHM das cidades e na restrição histórica do acesso teve como objetivo garantir e sustentar a Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 Book 35.indb 17 17 06/03/2016 17:30:26 Tomás Antonio Moreira, Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro participação do setor privado na produção habitacional, visando ampliar a oferta e facilitar o acesso ao financiamento da habitação pelos setores populares não atendidos anteriormente pelo mercado. Por sua vez, o SNHIS, instituído pela Lei Federal 11.124/2005, teve como objetivos integrar os entes federativos e ampliar os recursos federais, estaduais e municipais, visando incrementar os subsídios destinados ao atendimento habitacional das faixas populacionais de baixa renda, concentradoras da maior parcela do deficit habitacional brasileiro (Bonduki, 2009; MCidades, 2006). A regulamentação do SNHIS se articulou à criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), que passou a ser gerido por um conselho correlato – o Conselho Gestor do FNHIS. Para a implantação do Sistema e para acesso aos recursos do FNHIS, Estados, municípios e Distrito Federal foram impelidos à sua adesão mediante três requisitos: constituir fundo municipal de Habitação de Interesse Social (HIS); instituir respectivo conselho gestor paritário e com representatividade de movimentos sociais ligados à moradia; e elaborar plano de habitação em seu nível de gestão (Brasil, 2005). Para Cardoso e Aragão (2013, p. 32), a lógica da criação do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social seria fortalecer os órgãos públicos municipais e estaduais para a implantação de políticas habitacionais. Os Fundos de HIS seriam os mecanismos que permitiriam aos Municípios alavancar recursos próprios e potencializar os recursos federais ou estaduais que lhes fossem repassados. Ao mesmo tempo os Conselhos Gestores dos Fundos locais promoveriam uma maior participação da sociedade civil em relação 18 Book 35.indb 18 à definição sobre a alocação e ao uso dos recursos aportados para HIS. A efetivação do SNHIS tocaria, nesse sentido, o eixo da gestão e do controle social da PNH, uma vez que permitiria um novo modelo de gestão de recursos – democrático, participativo e descentralizado – bem como a definição de estratégias de enfrentamento da problemática da habitação direcionadas às realidades locais (MCidades, 2006). A definição de estratégias específicas estaria expressa nos planos de habitação, documentos que passariam a representar as políticas habitacionais de cada nível de governo. Os planos estariam alinhados à PNH a partir das diretrizes estabelecidas pelo Plano Nacional de Habitação (PLANHAB), formulado pela Secretaria Nacional de Habitação (SNH) em 2008. O PLANHAB procurou estabelecer propostas que considerassem a diversidade da problemática habitacional no país, as especificidades regionais e municipais, bem como as diferentes visões dos segmentos ligados ao setor da habitação (Bonduki, 2009). Como um instrumento da PNH, o PLANHAB teve como objetivo desenhar estratégias, tanto públicas quanto privadas, para o equacionamento das necessidades habitacionais brasileiras, inseridas em um horizonte temporal de quinze anos (20082023). Para que fosse possível alterar substancialmente o quadro habitacional, essas estratégias deveriam incorporar ações simultâneas de longo, médio e curto prazo, ponderando quatro eixos principais: (1) financiamento e subsídios; (2) arranjos e desenvolvimento institucional; (3) cadeira produtiva da construção civil; e (4) política fundiária urbana (MCidades, 2010). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 06/03/2016 17:30:26 A questão fundiária brasileira no desenho das políticas nacionais de habitação Para o primeiro eixo do PLANHAB, as urbanizada, legalizada e bem localizada para ações estabelecidas caminharam para a insti- a provisão de HIS (unidades prontas ou lotes) tuição de um novo modelo de financiamento e na escala exigida pelas metas do PLANHAB”; subsídios, pautado na criação de um fundo ga- e (2) “regularizar os assentamentos informais, rantidor de financiamentos habitacionais, que garantindo a permanência dos moradores de buscasse reunir diferentes fontes de recursos baixa renda” (MCidades, 2010, p. 120). para equacionar a solvabilidade das demandas Os eixos estratégicos do PLANHAB deve- populacionais com alto risco de crédito – pro- riam ser seguidos pelas demais esferas de go- blemática considerada como um dos grandes verno, sobretudo pelos níveis municipais, consi- obstáculos para enfrentamento da questão ha- derando a descentralização das competências bitacional do país. federativas, estabelecida pela Constituição de As ações relacionadas ao segundo eixo 1988, a partir da qual os municípios passaram do PLANHAB – os arranjos e desenvolvimen- a ter autonomia sobre suas políticas de desen- to institucional – caminharam para iniciativas volvimento urbano. de fomento à elaboração dos instrumentos de Os governos de Estado, por meio de seus planejamento habitacional pelas diferentes planos estaduais e metropolitanos, teriam o esferas de governo, em especial os planos de papel de articular propostas de ação voltadas habitação, buscando concretizar a dimensão da à questão habitacional de seu território, de participação e do controle social das políticas promover a integração entre os planos muni- públicas urbanas preconizada pela PNH. cipais de habitação e os planos de desenvolvi- Para o eixo da cadeia produtiva da cons- mento regional, bem como de apoiar os gover- trução civil, o Plano Nacional procurou esta- nos locais na implantação de seus programas belecer diretrizes para estimular a ampliação habitacionais com políticas de subsídio. Os da produção habitacional e a modernização municípios, por meio de seus Planos Locais de das técnicas construtivas, tendo como meta Habitação de Interesse Social (PLHIS), teriam dinamizar processos e reduzir o custo final a responsabilidade de levar adiante a efetiva- do produto casa. Foram também definidas ção dos pressupostos da PNH, considerando a diretrizes no sentido de orientar os governos moradia como um direito fundamental e como locais e estaduais para a instituição de medi- um vetor de inclusão social e, portanto, como das que buscassem agilizar os procedimentos um componente da política urbana (MCidades, de aprovação e registro de empreendimentos 2010; Cardoso e Romeiro, 2008). habitacionais, bem como simplificar os processos de licenciamento. tratégicas do PLANHAB para o eixo da política Em relação ao eixo da política fundiária, fundiária, embora devessem ser levadas a cabo as propostas do PLANHAB foram ao sentido de nos PLHIS(s), estariam ainda associadas e de- elencar diretrizes estratégicas que pudessem pendentes de outros instrumentos de política ser consideradas pelos governos municipais urbana municipal, em especial dos Planos Di- em suas políticas e ações, tendo-se dois ob- retores e legislações a ele complementares. As jetivos principais: (1) “garantir acesso a terra diretrizes do PLANHAB apenas orientaram os Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 Book 35.indb 19 Cabe problematizar que as diretrizes es- 19 06/03/2016 17:30:26 Tomás Antonio Moreira, Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro municípios a instituir ou regulamentar instru- estratificadas em: famílias com renda de até mentos previstos no Estatuto da Cidade, visan- três salários mínimos; famílias com renda entre do o cumprimento do princípio da função social três e seis salários mínimos; e famílias com ren- referenciado na Constituição – o que extrapola da entre seis a dez salários mínimos. o âmbito do PLHIS. Como diretriz independen- Mesmo incluído no discurso de defesa da te e restrita apenas à formulação do PLHIS, o moradia digna, o PMCMV teve claros objetivos PLANHAB recomendou a tarefa de “dimensio- de impactar a economia por meio dos efeitos nar a terra necessária para a produção de HIS” multiplicadores da indústria da construção civil (MCidades, 2010, p. 120), procedimento técni- e de ampliar o mercado habitacional para famí- co que se articula ao entendimento do concei- lias com renda mensal de até dez salários mí- to de necessidades habitacionais incorporado nimos, mantendo o desenvolvimento do setor pela PNH. imobiliário – que vinha experimentando uma A viabilização das ações do PLANHAB profunda reestruturação desde 2006 – mas se agrupou em linhas programáticas de aten- que começava a sentir impactos adiante da cri- dimento que buscaram estruturar programas e se econômica internacional, ocorrida em 2008 subprogramas voltados a: (1) integração urba- (Cardoso e Aragão, 2013). na de assentamentos precários informais; (2) O PMCMV permitiu um quadro favorável apoio à melhoria da unidade habitacional; (3) ao desenvolvimento da política habitacional produção de habitação; e (4) desenvolvimen- inserida no SNHM, bem como à ampliação do to institucional. Cada linha concentrou fontes financiamento, passando a viabilizar linhas de orçamentárias, estipulou demandas e regras crédito ao consumidor e ao produtor da habi- de atendimento específicas. Em relação à linha tação. Seu lançamento, no entanto, suscitou de produção de habitação, o Programa Minha críticas diferenciadas. Por parte dos defensores Casa Minha Vida (PMCMV) ganhou prioridade e movimentos sociais envolvidos no processo e destaque na temática habitacional, represen- de formulação da PNH, as avaliações iniciais tando um forte mecanismo de implementação vieram em sentido relativamente positivo, que e alcance das metas da PNH. apontavam como inédito o volume de subsídios Lançado pelo governo federal e regula- a ser alocado na política, o que poderia gerar mentado pela Lei Federal 11.977, em 2009, o um atendimento efetivo à população de mais PMCMV buscou como meta a construção de baixa renda e a diminuição do deficit habita- um milhão de casas em um ano, tendo conti- cional (ibid., 2013). As medidas previstas no nuidade no período 2011-2014, com o objetivo PLANHAB para o eixo da cadeia produtiva da expressivo de mais dois milhões de unidades construção civil, sobretudo a redução do custo habitacionais. Em sua primeira fase, os recursos da habitação, também foram salientadas por para sua concretização foram distribuídos seus impactos positivos no acesso à habitação pelas unidades federativas de forma propor- de interesse social e de mercado por terem sido cional ao deficit habitacional estimado pela incorporadas ao Programa (Bonduki, 2009). Fundação João Pinheiro (FJP) para os estados Simultaneamente a tais avaliações, crí- brasileiros, e de acordo com as faixas salariais, ticas mais negativas surgiram no sentido de 20 Book 35.indb 20 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 06/03/2016 17:30:26 A questão fundiária brasileira no desenho das políticas nacionais de habitação evidenciar a ausência das demais estratégias instrumentos do Estatuto da Cidade poderia que o PLANHAB considerou centrais no equa- auxiliar a reverter algumas contradições e, so- cionamento dos problemas habitacionais, tais bretudo, garantir a “boa localização” da mora- como os arranjos institucionais e as estratégias dia no território (Rolnik, 2010). Contudo, a es- urbano-fundiárias. Cardoso e Aragão (2013, fera federal teria possibilidades limitadas para p. 44) reforçaram ainda oito dimensões mal interferir em tal postura, uma vez que a política equacionadas pelo PMCMV, identificadas pos- urbana se tornou competência do município teriormente na literatura crítica: com a Constituição. Nesse sentido, o desfecho (1) a falta de articulação do programa com a política urbana; (2) a ausência de instrumentos para enfrentar a questão fundiária; (3) os problemas de localização dos novos empreendimentos; (4) excessivo privilégio concedido aos setor privado; (5) a grande escala dos empreendimentos (6) a baixa qualidade arquitetônica e construtiva dos empreendimentos; (7) a descontinuidade do programa em relação ao SNHIS e a perda do controle social sobre a sua implementação; [...] (8) as desigualdades na distribuição dos recursos como fruto do modelo institucional adotado. efetivo do controle sobre os impactos da localização dos empreendimentos e da elevação do preço da terra recairia sobre as decisões e capacidades institucionais locais e sobre a aplicabilidade dos instrumentos de política urbana e dos Planos Diretores municipais. Com efeito, nos últimos anos, evidenciam-se grandes conjuntos homogêneos viabilizados pelo PMCMV, em áreas periféricas e sem infraestrutura (Ferreira, 2012). A ausência de instrumentos de controle do uso e ocupação do solo e de uma estratégia territorial integrada entre os diferentes níveis de governo, além de comprometer a viabilização de empreendi- Para Bonduki (2009), os impactos do mentos em áreas centrais e de impulsionar a PMCMV também recairiam na elevação do pre- elevação do custo da terra urbanizada, tende a ço da terra, visto que o tratamento incompleto comprometer o equacionamento da problemá- de algumas das propostas do PLANHAB – em tica habitacional, contrariando as próprias dire- muito decorrente das competências dos entes trizes e pressupostos da PNH (Rolnik e Nakano, federados – poderia gerar efeitos de grande 2009; Shimbo, 2010; Cardoso e Aragão, 2013). risco no que se refere à localização dos empre- Nesse panorama, tornou-se perceptí- endimentos, levando à repetição dos mesmos vel a contraposição entre o PMCMV e a PNH, erros evidenciados no período de atuação do que preconizara como pontos centrais de sua Banco Nacional de Habitação (BNH), quando implementação, além do projeto financeiro, a a implantação de conjuntos habitacionais nas gestão e o controle social e a aplicação de uma bordas urbanas aprofundou a problemática política fundiária urbana. A opção adotada pe- dos preços de terra, bem como a segregação lo PMCMV – dadas suas metas – esteve bem socioespacial presente nas cidades (Silva, 1997; mais orientada ao projeto financeiro e quan- Rolnik, Cymbalista e Nakano, 2008). titativo da política habitacional, sobretudo à A articulação do PMCMV a uma política ampliação do consumo do produto habitação fundiária por meio da aplicação de alguns dos a partir do alargamento do financiamento, do Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 Book 35.indb 21 21 06/03/2016 17:30:26 Tomás Antonio Moreira, Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro que ao enfrentamento das demais dimensões os níveis de emprego no país – o que poderia estratégicas da PNH. repercutir no “erro de equiparar crescimento Tal orientação economicista teve impac- econômico a desenvolvimento social” (ibid., tos imediatos no SNHAB, tanto em relação à p. 150), deixando de lado os resultados nega- adesão dos entes federados, quanto na elimi- tivos desse crescimento no espaço das cidades nação dos repasses dos recursos do FNHIS para (Rolnik e Nakano, 2009). ações de provisão habitacional e na limitação Os aspectos desses três eixos do de sua atuação nas ações de urbanização de PLANHAB acabariam por divergir das suas assentamentos precários e de desenvolvimento próprias estratégias traçadas para a política institucional (MCidades, 2013; Cardoso e Ara- fundiá ria. O objetivo da estratégia urbano- gão, 2013). -fundiária de garantir acesso a terra urbaniza- O exposto evidencia desequilíbrios entre da, legalizada e bem localizada para a provi- as ações programáticas e os pressupostos con- são de HIS, propõe diretrizes que consideram a ceituais e estratégicos estabelecidos pela PNH. aplicação de instrumentos urbanísticos para o Contudo, no que diz respeito à produção de HIS cumprimento do princípio da função social. Em e sua relação com a questão fundiária urbana, sua relação com a política habitacional, a apli- observa-se que os próprios eixos estratégicos cação desses instrumentos parte da premissa do PLANHAB poderiam também incorrer em de se reservar e destinar áreas para o interes- contradições. se social, retirando-as da disputa de capitais, o Para Peixoto (2011), o eixo de financia- que contraria os pressupostos dos demais eixos mento e subsídio, o eixo dos arranjos institu- que se pautam na estruturação capitalista da cionais e o eixo da cadeia produtiva da cons- produção da moradia, na qual a terra é tida co- trução civil, que se propõem, respectivamente, mo componente essencial dos lucros (Peixoto, a resolver o problema da solvabilidade da 2011; Silva, 1997). demanda, ampliar a participação da iniciativa Como salienta Peixoto (2011, p. 150), a privada e reduzir os custos do produto casa, não superação das divergências e contradições poderiam ser vistos como “metas que apostam suscitará ainda “o risco de se incorrer num au- no equacionamento da questão habitacional toaniquilamento das proposições e de que as por intermédio de estruturas de produção capi- iniciativas que começam a ser esboçadas caiam talistas tradicionais” (Peixoto, 2011, p. 150). A no limbo dos planos que não saem do papel”. otimização e o alargamento da produtividade A superação dessas divergências e contradições com base na construção civil e na dinamiza- tem relação intrínseca com a dimensão fundiá- ção do mercado imobiliário colocam-se como ria da política habitacional e, portanto, com as uma medida política estratégica, inclusive já propostas de articulação aos instrumentos de praticada na trajetória da política habitacional política urbana a serem estruturadas nos con- do BNH nas décadas de 1960 e 1970, que traz teúdos estratégicos dos planos de habitação, no como premissa elevar a atividade econômica e âmbito das diferentes esferas de governo. 22 Book 35.indb 22 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 06/03/2016 17:30:27 A questão fundiária brasileira no desenho das políticas nacionais de habitação Planos de habitação: conteúdos estratégicos e limitações o que seria enfrentado com a sua formulação e implementação, apresentando para tanto uma leitura crítica da realidade municipal ou regional, tendo em vista: a inserção territorial No intuito de implementar a PNH e incentivar e dinâmica socioeconômica; as capacidades a adesão de estados e municípios ao SNHIS, a institucionais e administrativas para política de partir de 2007, o Ministério das Cidades pas- HIS; os recursos disponíveis e potenciais para sou a investir no apoio à elaboração dos pla- a habitação; os atores sociais e suas capacida- nos de habitação e em ações de capacitação, des de participação e controle da política ur- buscando orientar equipes públicas e consulto- bana; a oferta habitacional; a necessidade de rias no desenvolvimento desses instrumentos solo urbanizado; os marcos legais e regulató- de planejamento. rios; e as necessidades presentes e futuras por As orientações quanto aos conteúdos dos planos e as datas para adesão ao Sistema A etapa das Estratégias de Ação deveria, foram organizadas pela Secretaria Nacional de com base no Diagnóstico Habitacional, definir Habitação (SNH) e pelo Conselho Gestor do os princípios, diretrizes e objetivos do plano ha- FNHIS em resoluções e cartilhas normativas, bitacional; as formas de sua implementação – em especial no Guia de Adesão ao SNHIS (MCi- seus programas e linhas de ação; as metas físi- dades, 2008a), no Manual do FNHIS de Apoio cas, financeiras, institucionais e normativas para à Elaboração de Planos Locais de Habitação sua aplicação; bem como seu prazo de vigência de Interesse Social (ibid., 2008b) e no material e os mecanismos para monitoramento, avalia- do curso à distância oferecido pela SNH para ção e revisão de suas propostas. elaboração de PLHIS – EAD PLHIS (ibid., 2009). Assim como na PNH, a política fundiária Pelas diretrizes aí estabelecidas, o processo de teria uma dimensão estratégica na formulação formulação dos planos deveria ocorrer de for- e implementação dos planos de habitação, ca- ma participativa e em três etapas: uma etapa bendo a ela estabelecer as bases para a rea- de Proposta Metodológica; uma etapa para lização dos programas habitacionais no nível realização do Diagnóstico do Setor Habitacio- local, sobretudo aqueles direcionados à pro- nal; e uma etapa para formulação das Estraté- dução de novas moradias (MCidades, 2006). gias de Ação a serem implementadas no hori- Nesse sentido, considerando as necessidades zonte temporal do planejamento habitacional. habitacionais presentes e futuras identificadas A Proposta Metodológica deveria decla- na etapa de Diagnóstico – e tendo em vista a rar como se daria a formulação desse planeja- diretriz estratégica do PLANHAB, os planos de- mento: as etapas; o cronograma; os prazos e veriam incluir informações conclusivas sobre a as responsabilidades das equipes de trabalho quantidade de terras necessárias e disponíveis (do governo e da consultoria); as formas de no território, contemplando medidas práticas, participação e publicização do processo; bem legislativas e administrativas para sua viabili- como os atores sociais a serem envolvidos. Já zação. Tais medidas deveriam levar em conta o Diagnóstico Habitacional deveria explicitar o marco legal urbanístico, sobretudo o Plano Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 Book 35.indb 23 novas moradias. 23 06/03/2016 17:30:27 Tomás Antonio Moreira, Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro Diretor, uma vez que esse passou a ser o ins- de novas moradias exigidas pelo crescimento trumento básico da política fundiária após a demográfico; e (3) a inadequação, representa- promulgação do Estatuto da Cidade (Cardoso tiva da necessidade de melhoria de unidades e Romeiro, 2008). habitacionais. No âmbito da inadequação habi- Para que fosse possível a inclusão de tacional, colocam-se ainda como componentes: informações e medidas conclusivas para en- a carência de infraestrutura, o adensamento frentamento da questão fundiária, a formu- excessivo, a irregularidade da posse e da pro- lação dos planos de habitação, como parte priedade fundiária, e os domicílios com alto do processo de implantação da PNH, exigiu a grau de depreciação ou sem unidade sanitária explicitação de alguns conceitos e a definição domiciliar exclusiva (MCidades, 2009). de terminologias relativas às necessidades ha- As conceituações foram tratadas como bitacionais e à precariedade da moradia, por questões essenciais a serem levantadas no parte da SNH. Como princípio, buscou-se uma âmbito da elaboração dos planos de habita- uniformização de conteúdos que permitisse a ção, em suas diversas escalas. O conhecimento construção gradual de um sistema de informa- das diversas precariedades e necessidades ha- ções e avaliação sobre a questão habitacional bitacionais, tanto as acumuladas ao longo do em nível nacional (MCidades, 2009). tempo como as previstas para o futuro, seria Em relação à precariedade da moradia, o conteúdo estratégico e fundamental para a for- conceito adotado pela SNH – referenciado no mulação de políticas alinhadas à PNH. Contu- PLANHAB – procurou delimitar quatro catego- do, o próprio PLANHAB salientou para a carên- rias representativas do fenômeno nas áreas ur- cia de sistemas consistentes de informação e banas: (1) cortiços, (2) conjuntos habitacionais monitoramento da problemática da habitação produzidos pelo poder público em situação de nas diversas instâncias, as quais, em muitos irregularidade ou de degradação, (3) loteamen- casos, assumiam parâmetros desarticulados e tos irregulares de moradores de baixa renda e desordenados de quantificação e qualificação (4) favelas. Essa delimitação serviria para apro- das necessidades habitacionais, tornando mais fundar a caracterização da problemática da complexo o desafio de enfrentá-las (ibid., 2010; moradia, o que poderia levar à formulação de Pulhez, 2012). diretrizes e estratégias de ação e intervenção Com isso, como parte das iniciativas de mais adequadas às características das necessi- apoio e capacitação ao desenvolvimento dos dades habitacionais. planos, a SNH indicou uma série de fontes de Em relação às necessidades habitacio- dados e informações, bem como métodos es- nais, a SNH procurou incorporar os três tipos pecíficos que auxiliassem a abordagem das de necessidades conceituadas pela Fundação necessidades habitacionais, uma vez que a in- João Pinheiro (FJP): (1) o deficit – representa- consistência dos referenciais para dimensioná- tivo da necessidade de reposição total do es- -las poderia se colocar como fator complicador toque de moradias precárias e do atendimento para a definição de programas e estratégias de da demanda reprimida; (2) a demanda futura – ação. A recomendação de diversas fontes de entendida como a necessidade de construção dados – tais como a FJP, o Instituto Brasileiro 24 Book 35.indb 24 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 06/03/2016 17:30:27 A questão fundiária brasileira no desenho das políticas nacionais de habitação de Geografia e Estatísticas (IBGE), o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), para quantificação de uma mesma problemática, levaria, contudo, à tarefa de sua compatibilização, impelindo os entes federados a tomar decisões técnicas ainda não muito experimentadas para identificar as necessidades habitacionais (Pulhez, 2012; Denaldi, Leitão e Akaishi, 2011). Em relação aos entes estaduais, cabe registrar que outros conteúdos estratégicos foram ainda sugeridos pela SNH. Com base no papel dos Estados na política habitacional, entendido como ente articulador e integrador das ações municipais e regionais em seu território, caberia aos planos estaduais de habitação, no que diz respeito à questão fundiária: (1) o dimensionamento das necessidades fundiárias - Revisão do zoneamento a fim de reservar parte do território para HIS; - Planos de Expansão com percentual de cotas para HIS; - Plano de reparcelamento para implementação de HIS em áreas vazias consolidadas; - Revisão da Planta Genérica de Valores com cobrança eficiente do IPTU; - Aplicação de edificação compulsória e IPTU Progressivo no Tempo sobre áreas urbanizadas vazias; - Identificação e demarcação das áreas ocupadas por populações de baixa renda ou comunidade tradicionais, como Zonas Especiais de Interesse Social, ou ainda interesses culturais, para a promoção de ações de regularização fundiária de interesse social; - Ações e medidas para o desenvolvimento de uma política municipal de prevenção e mediação dos conflitos fundiários urbanos e rurais. para produção de HIS; (2) a formulação de diretrizes, metas de ação, medidas e instrumentos Os conteúdos estaduais expostos tam- para a regularização fundiária de assentamen- bém poderiam ser detalhados no âmbito dos tos enquadrados no conceito de precariedade planos de caráter metropolitano – sobretu- habitacional; e (3) a definição de mecanismos do de regiões onde se constata a ausência de que pudessem estimular a aplicação de uma terras disponíveis em quantidade e condições política fundiária pelos municípios para efeti- adequadas para atendimento das necessidades vação de políticas habitacionais alinhadas aos habitacionais de interesse social – e por meio princípios da função social e da PNH (Cardoso dos quais poderia se definir propostas de ação e Romeiro, 2008). Sobre esses mecanismos de mais abrangentes para o território regional. estímulo à aplicação de uma política fundiária, Além disso, assim como o PLANHAB, os planos Cardoso e Romeiro (2008, p. 36) destacam co- metropolitanos e estaduais deveriam estabele- mo exemplo a cer regras específicas para distribuição regional de recursos, determinando parâmetros para os [...] definição de indicadores para serem considerados na pontuação como estímulo para recebimento de recursos do Fundo Estadual de Habitação de Interesse Social ou de Desenvolvimento Urbano pelos Municípios, tais como: Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 Book 35.indb 25 municípios, no que diz respeito ao financiamento e subsídio de recursos para HIS (ibid.). Ressalta-se, contudo, que o PLANHAB apenas recomenda tais aspectos se a insuficiência de cada município em atender suas necessidades 25 06/03/2016 17:30:27 Tomás Antonio Moreira, Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro isoladamente for constatada, mesmo reconhe- sucessivamente os prazos para adesão ao cendo a ausência de instâncias que integrem e SNHIS e para a finalização dos planos. Nes- articulem a ação de estados e municípios em sas adaptações, o Conselho do FNHIS passou regiões metropolitanas (MCidades, 2010). a incluir a possibilidade de elaboração da for- Com relação aos entes municipais, os ma simplificada do Plano (PLHIS Simplificado), mesmos conteúdos estratégicos estabelecidos pensada para municípios com população de para os governos estaduais poderiam ser con- até 50 mil habitantes. siderados na formulação dos planos de habita- Para Denaldi, Leitão e Akaishi (2011), as ção, destacando-se, no entanto, a competência alterações em relação às exigências de adesão municipal de se legislar sobre a política urbana. ao SNHIS estariam relacionadas tanto a fragi- Por essa competência, os planos locais de HIS lidades institucionais locais, quanto à falta de teriam um papel mais efetivo no que se refere uma cultura de planejamento habitacional, o ao alcance dos princípios e objetivos da PNH. que revela ainda a permanente necessidade Esse alcance estaria vinculado à sua articula- de capacitação técnica das instâncias adminis- ção ou às propostas de análise e revisão da trativas locais. Para Cardoso e Aragão (2013), legislação urbana municipal, em especial os de todo modo a lógica de implementação do Planos Diretores, haja vista as limitações co- SNHIS exigiria o fortalecimento da esfera pú- nhecidas desses Planos e o curto alcance dos blica local e a “necessidade da construção de instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cida- uma nova cultura política e de novos mecanis- de, evidenciados nos levantamentos organiza- mos institucionais para as ações de política dos por Santos Jr. e Montandon (2011). Nesse urbana e habitacional” (Cardoso e Aragão, sentido, a depender do grau de abrangência do 2013, p. 32). Plano Diretor, a forma como se daria o alinha- Acrescenta-se também nesse debate o mento da habitação com a questão fundiária fato de muitos municípios terem encontrado poderia repercutir na inviabilização da terra pa- dificuldades nos processos participativos de ra os programas de produção de novas mora- formulação dos PLHIS e na composição dos dias por meio de estratégias urbano-fundiárias, Conselhos de Habitação (MCidades, 2013). como preconizado pela PNH e pelo PLANHAB. Os Conselhos teriam papel fundamental na Cabe destacar que o conteúdo dos pla- continuidade das propostas dos planos habi- nos habitacionais foi apresentado nas cartilhas tacionais e em sua articulação com a política e resoluções do Ministério das Cidades para urbana, em razão de suas funções estruturais todos os entes federados, indiferentemente de na gestão dos recursos dos fundos municipais e seu porte populacional ou estágio de desenvol- na participação e controle social. vimento institucional. Contudo, as constantes A partir do lançamento do PMCMV, necessidades de adaptação do governo federal houve ainda uma relativa retração do SNHIS, às dificuldades encontradas principalmente pe- o que reduziu fortemente os ritmos de adesão los gestores municipais, em especial dificulda- e conclusão dos planos pelos entes fede- des técnicas na elaboração dos PLHIS, leva- rados. Com exceção dos estados e Distri- ram o Conselho Gestor do FNHIS a prorrogar to Federal – que cumpriram inteiramente as 26 Book 35.indb 26 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 06/03/2016 17:30:27 A questão fundiária brasileira no desenho das políticas nacionais de habitação exigências estabelecidas, a maioria dos muni- passam pela formulação dos Planos Diretores e cípios acabou efetivando sua adesão na fase dos Planos Locais de Habitação – permitindo a inicial de funciona mento do Sistema, entre adoção dos instrumentos urbanísticos do Esta- 2006 e 2008. Já a elaboração dos PLHIS(s), a tuto da Cidade, bem como a compatibilização conclusão média do Brasil, entre 2007 e 2013 de estratégias de acesso e gestão social da ter- havia abrangido mais de 2.900 cidades, o cor- ra –, as ações de produção habitacional priori- respondente a 52,6% do total de municípios zadas em nível federal com o PMCMV passam do país (MCidades, 2013). pela elevação dos financiamentos e subsídios Mesmo diante do contexto paralelo do sem qualquer vinculação aos instrumentos de PMCMV e das dificuldades na formulação dos planejamento municipal (Buonfiglio e Bastos, PLHIS(s) e na implementação do SNHIS, a es- 2011). Há, nesse sentido, uma sobreposição fera federal apostava que a elaboração dos conflitante entre as atuações das diferentes planos de habitação serviria não apenas para esferas de governo diante das diretrizes e pres- a viabilização da adesão ao Sistema Nacional, supostos da PNH, bem como as metas do refe- como também para tornar as demais esferas rido Programa e, no que tange, em especial, a de governo conscientes de suas problemá- questão fundiária. ticas habitacionais e das capacidades institucionais existentes para seu enfrentamento (ibid., 2009). Considerações finais Embora a dimensão fundiária da PNH e o marco regulatório urbanístico, representa- Com base na caracterização do marco de do pela Constituição Federal e pelo Estatuto fundamentação da PNH, evidenciam-se dese- da Cidade, não garantissem a efetividade no quilíbrios entre suas dimensões estratégicas equacionamento das problemáticas habitacio- e ações programáticas, no que diz respeito à nais – uma vez que os resultados efetivos de- relação entre a questão fundiária e a produ- penderiam de ações conclusivas e de decisões ção habitacional. políticas pautadas no princípio da função social A expressiva disponibilização de recursos da terra –, a esfera federal apostava que, com como dimensão estratégica para financiamen- a adesão ao SNHIS, ficariam estabelecidas, ao to, subsídio e otimização da cadeia produtiva menos em tese, as condições normativas, ins- da construção civil em nível federal, ao mesmo titucionais e os pressupostos conceituais que tempo em que permite alcançar parcelas po- permitiriam avanços na questão habitacional pulacionais de menor renda, antes não atendi- no país nas diferentes escalas territoriais. das, tem como foco ampliar a participação da Diante do desenho das políticas, pro- iniciativa privada nos processos de produção. gramas e planos destaca-se, no entanto, que Com isso, aposta no equacionamento da pro- a problemática fundiária ainda foi pouco en- blemática habitacional por meio de estruturas fatizada ou tratada de forma básica. Isso por- privadas de obtenção da terra para a política que, enquanto as ações dos municípios sobre pública. Nessas estruturas, os lucros e os gastos a questão fundiária da política habitacional fundiários têm peso significativo, o que coloca Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 Book 35.indb 27 27 06/03/2016 17:30:27 Tomás Antonio Moreira, Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro a terra urbana na linha de disputa de capitais, de uma política de aceleração do crescimento contrariando a dimensão estratégica de aplica- econômico, pautada por um programa que se ção de uma política de solo que tenha como desvincula de seu pressuposto gerador. viés o controle social da apropriação da terra Ainda que a estrutura da política nacio- e a garantia de localizações que qualifiquem nal possa ser descentralizada e venha a de- o acesso aos benefícios do processo formal de legar às esferas estadual e municipal o papel urbanização para a população de baixa renda. executor de suas ações, a esfera federal exerce Eis uma tarefa fundamental para novas pesqui- papel fundamental no comando, na coordena- sas sobre a temática fundiária: como fortalecer ção e na regulação de suas políticas territoriais, a questão fundiária como objeto de controle de forma que as prioridades de estados e mu- social ao invés de permanecer como instrumen- nicípios passam a ser profundamente condicio- to de disputa de capitais. Somente sobre essa nadas por suas metas e diretrizes. Sob tal as- premissa conseguir-se-ia pautar, mas profunda- pecto, a ausência de uma estratégia fundiária mente, a questão fundiária e dar luz a políticas integrada entre os diferentes níveis de governo efetivas e inclusivas. para a política habitacional corrobora não ape- Apesar das novas políticas tornarem nas para que os subsídios públicos disponibi- possível conceber um discurso que levaria a lizados sejam transferidos à especulação imo- considerar a inclusão de uma nova política biliária, mas para o agravamento da questão fundiária na política de habitação nacional, a fundiária urbana. PNH cai em erros semelhantes aos praticados Esse olhar sobre o desenho das políticas no passado da política habitacional, nos quais habitacionais, suas engrenagens e incongruên- as ações de produção de moradias não foram cias, indica a urgência de novos aprofunda- acompanhadas de políticas de solo redistribu- mentos sobre o papel fundiário nas políticas tivas, mas, sim, foram fortemente influenciadas habitacionais e sua premissa básica – de con- pela problemática fundiária, tendo contribuído trole social, para não recair no dilema de práti- para aprofundar o quadro de precariedade e cas fundiárias em que a questão da terra urba- segregação socioespacial nas cidades. na se mantém na linha de disputa de capitais. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que Estudos sobre a elaboração e implementação se assiste a estruturação e valorização de um dos PLHIS contribuiriam, por exemplo, para discurso fundamentado de política nacional de desvendar o papel dado a terra urbana, bem habitação, evidencia-se o enfraquecimento pre- como compreender como a questão fundiária coce dessa estrutura institucionalizada em prol foi tratada. 28 Book 35.indb 28 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 06/03/2016 17:30:27 A questão fundiária brasileira no desenho das políticas nacionais de habitação Tomás Antonio Moreira Universidade de São Paulo, Instituto de Arquitetura e Urbanismo. São Carlos/SP, Brasil. [email protected] Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro Universidade Paulista, Instituto de Ciências Exatas e Tecnologia, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Jundiaí/SP, Brasil. [email protected] Referências BONDUKI, N. (2008). 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Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 Book 35.indb 29 29 06/03/2016 17:30:27 Tomás Antonio Moreira, Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro FERREIRA, J. S. W. (2012). Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um novo Brasil urbano. São Paulo, LABHAB/Fupam. MCIDADES, MINISTÉRIO DAS CIDADES (2006). Cadernos MCidades: PolíƟca Nacional de Habitação. Brasília, n. 4. ______ (2008a). Guia de Adesão ao Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS. Brasília, Ministério das Cidades/Secretaria Nacional de Habitação. ______ (2008b). Manual para apresentação de Propostas. Apoio à Elaboração de Planos Habitacionais de Interesse Social. Brasília, Ministério das Cidades/Secretaria Nacional de Habitação/Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. ______ (2009). Curso à distância: Planos Locais de Habitação de Interesse Social. Brasília, Ministério das Cidades/Secretaria Nacional de Habitação. ______ (2010). Plano Nacional de Habitação – versão para debates. 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Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 06/03/2016 17:30:27 A questão fundiária brasileira no desenho das políticas nacionais de habitação SANTOS JR., O. A. dos e MONTANDON, D. T. (orgs.) (2011). Os Planos Diretores municipais Pós-Estatuto da Cidade: balanço críƟco e perspecƟvas. Rio de Janeiro, Letra Capital/Observatório das Metrópoles/ Ippur/UFRJ. SHIMBO, L. Z. (2010). Habitação social, habitação de mercado: a confluência entre Estado, empresas construtoras e capital financeiro. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. SILVA, H. M. B. (1997). Terra e moradia: que papel para o município? Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. Texto recebido em 2/jun/2015 Texto aprovado em 14/set/2015 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016 Book 35.indb 31 31 06/03/2016 17:30:27 Book 35.indb 32 06/03/2016 17:30:27 O FGTS e o mercado de títulos de base imobiliária: relações e tendências FGTS and the market of real estate-backed securities: relationships and trends Luciana de Oliveira Royer Resumo O artigo pesquisa as relações entre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e os títulos creditícios de base imobiliária. As contratações efetuadas com recursos do FGTS a partir de 2008 para compra de títulos de base imobiliária acabaram por alavancar o mercado desses títulos no país, constituindo-se em um mecanismo gerador de uma liquidez mínima para seu funcionamento. A lógica do investimento nesses fundos é a lógica da valorização e do retorno do investimento, sem que exista necessariamente foco em uma política pública de habitação e desenvolvimento urbano voltada à universalização de direitos. É discutida a disputa pelos recursos do fundo e seu papel como um player desse mercado, no contexto da inserção do Brasil no capitalismo financeirizado. Palavras-chave: financiamento habitacional; títulos creditícios de base imobiliária; FGTS; financeirização. Abstract The article describes the relationships between the FGTS and real estate-backed securities. FGTS is the Brazilian government’s Severance Indemnity Fund: the employer deposits 8% of a worker’s salary into the fund and this is managed by the federal government. Since 2008, contracts undertaken with FGTS resources for the acquisition of real estatebacked securities have stimulated the real estate bonds and securities market in Brazil, constituting a mechanism that generates a minimum liquidity for its own operation. The investment logic of real estate funds is the logic of investment return and gain, without necessarily focusing on a housing and urban development public policy geared towards the universalization of rights. The dispute over FGTS resources and its role as a player in this market are discussed in the context of Brazil’s inclusion in financial capitalism. Keywords: housing finance; real estate-backed securities; FGTS; financialization. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3502 Book 35.indb 33 06/03/2016 17:30:27 Luciana de Oliveira Royer Introdução O estudo sobre crédito, funding e arquitetura financeira se mostra fundamental para quem se dedica ao tema das cidades e do urbano em geral. O debate sobre o financiamento do desenvolvimento urbano, sempre sob a perspectiva da universalização dos direitos em um país nesse mercado é o tema da quarta parte do artigo, que trata da relação entre o Fundo e os títulos de base imobiliária. Por fim, nas considerações finais, procura-se estabelecer alguns pontos para a reflexão a partir do volume de investimentos recentes do Fundo e as tendências que podem ser observadas a partir desses investimentos. com a desigualdade estrutural como o Brasil, é um dos pontos cruciais para a estruturação e a gestão de políticas públicas urbanas. A utilização dos recursos dos chamados Crédito e crédito imobiliário no Brasil fundos parafiscais, o SBPE e o FGTS, Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo e Fun- O crédito imobiliário vem aumentando sua do de Garantia do Tempo de Serviço, deve ser participação no PIB de forma consistente e assim um ponto importante do debate sobre o vem respondendo por uma parcela crescente assunto. Em especial o investimento do FGTS, do desempenho das operações de crédito no fundo que historicamente tem conseguido atin- país, de acordo com o Relatório do Banco Cen- gir parte da renda média e parte da baixa ren- tral de 2013: “O crédito com recursos direcio- da no crédito habitacional e é responsável por nados continuou a expandir em seus principais importantes investimentos em infraestrutura segmentos, com destaque para a aceleração urbana, deve ocupar um papel central na análi- do crédito rural e para a manutenção do ritmo se e pesquisas sobre o tema do financiamento de crescimento dos financiamentos imobiliá- público da infraestrutura urbana. rios e dos investimentos com recursos do Ban- O artigo está desenvolvido em quatro tópicos, além da introdução. Na primeira parte, co Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)”.1 será apresentado brevemente o contexto atual A participação do crédito imobiliá- do crédito imobiliário no Brasil. Na sequência, rio nas operações de crédito e sua crescente discute-se a criação do FGTS, suas mudanças importância podem ser melhor visualizadas recentes, seu desempenho, procurando traçar ao se atentar para o volume de recursos das um breve histórico do Fundo. operações de crédito imobiliário (saldo da car- Para poder discutir a entrada do FGTS no teira de crédito com recursos direcionados – mercado de títulos, a terceira parte do artigo pessoas jurídicas – financiamento imobiliário procura introduzir alguns aspectos da evolução total): de 9,2 bilhões de reais em dezembro de recente de títulos de base imobiliária no Brasil. 2008 para 66,2 bilhões de reais em dezembro Algumas de suas características básicas, bem de 2014. O volume movimentado pelo crédi- como seu desempenho recente, são tratadas to direcionado para pessoas físicas (finan- nesse tópico. O papel relevante que o FGTS tem ciamento imobiliário total) também cresceu 34 Book 35.indb 34 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 06/03/2016 17:30:27 O FGTS e o mercado imobiliário de títulos de base imobiliária Gráfico 1 – Saldo operações de crédito ao setor imobiliário em relação ao PIB 10 9 Percentual do PIB 8 7 6 5 4 3 2 1 set/14 abr/14 nov/13 jun/13 jan/13 ago/12 mar/12 out/11 maio/11 dez/10 jul/10 fev/10 set/09 abr/09 nov/08 jun/08 jan/08 ago/07 mar/07 0 Título do eixo Fonte: Elaboração própria. Sistema Gerenciador de Séries Temporais do Banco Central do Brasil. consideravelmente no período: de um saldo de 59,7 bilhões em dezembro de 2008 foi para 431,7 bilhões de reais em dezembro de 2014. Ao analisar o FGTS, percebe-se que sua consti- O Gráfico 1 ilustra esse crescimento na relação tuição e seu desempenho ao longo dos quase do crédito imobiliário/ PIB. 50 anos de existência o transforma em um pa- A relação entre o crédito imobiliário e trimônio do trabalhador de fato, como é afir- o PIB, apesar do consistente crescimento, ain- mado em muitos dos seus documentos oficiais da é considerada baixa se for comparada com (Brasil, MTE, 2015) e como veremos adiante. outros países. Todo o chamado arcabouço re- A constituição de um fundo que pudesse gulatório permitiu uma expansão desse crédito ser uma alternativa à estabilidade no emprego, de forma a mitigar e minimizar os riscos ine- obrigatória no Brasil até a existência do FGTS2 rentes a uma operação de longo prazo junto e também que pudesse financiar parte da in- aos agentes financeiros (Royer, 2014). E, prin- fraestrutura urbana em um país que começava cipalmente, o que tem garantido a expansão a apresentar persistentes taxas de urbanização sustentada desse crédito e a viabilidade das parecia uma saída quase mágica para resolver operações é o funding de crédito direcionado: dois problemas de uma só vez. O financia- caderneta de poupança (SBPE) e o FGTS (Royer, mento da indústria da construção civil era um 2014; Magalhães Eloy, 2015). problema relevante para a agenda pós-1964, Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 Book 35.indb 35 Breve histórico do FGTS 35 06/03/2016 17:30:27 Luciana de Oliveira Royer e o BNH atuou diretamente nesse setor. O viés dessa forma essas instituições a operar em um existente no BNH de uma política de incentivo sistema integrado de associações de poupan- industrial, constituindo um fundo robusto para ças e empréstimos. dar suporte à indústria da construção civil na- Os recursos iniciais destinados ao SFH e cional, foi estudado por importantes autores previstos na lei de criação do BNH/SFH eram (Maricato, 1987). oriundos de uma contribuição de 1% incidente Em 1965, a presidência do Banco Nacio- sobre salários e também de subscrição compul- nal de Habitação foi substituída por equipes sória de letras imobiliárias emitidas pelo BNH ligadas ao Ministério da Fazenda e do Planeja- por locadores de imóveis com área superior a mento, que aceleraram as medidas necessárias 160m², por institutos de previdência, SESC, Sesi, para a implementação do modelo americano Caixas Econômicas e promotores da construção de crédito imobiliário. A concepção financista de imóveis com valor entre 1.000 e 2.000 salá- se tornou hegemônica, e a orientação a ser se- rios mínimos, além de recursos subscritos pela guida no funcionamento do sistema, cada vez União. No entanto, mesmo depois de um ano mais nítida. A Lei nº 4.864, de novembro de de instituído o SFH, os recursos ainda não ha- 1965, que criou “medidas de estímulo à cons- viam constituído um caixa significativo que pu- 3 trução civil”, é um exemplo do que o gover- desse dar um mínimo de escala na produção de no pretendia com a instituição de um sistema unidades habitacionais e com isso fomentar a financeiro destinado à habitação: incentivos indústria da construção civil, um dos objetivos tributários como a isenção de IPI para “prepa- prioritários do sistema. rações e blocos de concreto”, normatização de Foi de fato a constituição de um fundo índices e outros instrumentos para a correção parafiscal como o FGTS, por meio da Lei no. monetária de prestações e saldos devedores, 5.107, de 13 de setembro de 1966,4 que deu independente se os financiamentos encontra- outro impulso aos recursos antes restritos com vam-se ou não no âmbito do SFH, mudança nos os quais operava o Banco. O FGTS é um fundo limitadores para aplicação dos recursos: 60% financeiro formado pela contribuição mensal dos recursos aplicados em habitações de valor de empregadores aos seus empregados me- unitário inferior a 300 salários mínimos (na Lei diante depósito de 8% das remunerações em nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, que havia conta vinculada,5 de natureza privada e sob instituído o BNH, esse limite era de 100 salá- gestão pública, conformando uma poupança rios); 20% dos recursos aplicados em habita- compulsória do trabalhador que o empregador ções de valor unitário superior a 400 salários recolhe na fonte. A magnitude dos recursos do mínimos (na lei do BNH esse limite era 250 FGTS alçou o BNH à condição de segundo es- salários). A Lei nº 4.864 permitiu também ao tabelecimento bancário do país de sua criação Banco Central autorizar as sociedades de crédi- até o início dos anos 70 por conta da aplicação to e financiamento a se transformar em socie- e liquidez de seus recursos.6 dades de crédito imobiliário ou a manter car- Essa mudança de perfil, portanto, se da- teira especializada nas operações próprias das ria exclusivamente pela origem financeira do sociedades de crédito imobiliário, incentivando dinheiro que comporia a base dos recursos a 36 Book 35.indb 36 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 06/03/2016 17:30:27 O FGTS e o mercado imobiliário de títulos de base imobiliária ser utilizado na execução da política, tal era a Com a extinção do BNH em 1986 e da visão vigente à época do sistema, que preza- migração de sua carteira de financiamentos e va pelo equilíbrio econômico-financeiro e pela do controle e operação do FGTS para a Caixa constituição do sistema como um fim em si Econômica Federal, extinguiu-se também o mesmo. Dessa forma, ao mudar a origem do Conselho Curador do FGTS. A hiperinflação e o recurso que compunha o funding da política, cenário macroeconômico de fato impactaram muda também seu caráter, o que, se por um la- no número de financiamentos feitos pelo fundo do atenta para a necessidade de liquidez e sol- depois de 1986. vabilidade dos recursos do sistema, por outro Um ponto de inflexão importante para demonstra a preocupação em utilizar os fundos compreendermos as escolhas atuais de investi- e seus recursos com quem tivesse capacidade mento do FGTS se deu na era pós-Collor. Ainda financeira para isso, ou seja, financiar quem no governo Sarney, como nos conta Schvasberg podia pagar. Recursos orçamentários não eram (1993), o Conselho Curador foi reestruturado, utilizados para a execução dos programas, nem contando com a presença de representantes a título de subsídio, o que ampliava o caráter dos trabalhadores, empresários e governo. Essa regressivo da política. O BNH responderia a reestruturação levou para o Conselho Curador essa dificuldade desenhando programas que as tensões do período, em especial quanto à continham subsídios internos bem como pro- distribuição territorial dos recursos do Fundo. gramas que tivessem juros mais altos, como os A retomada das operações com recursos programas de cooperativas e mercado de hipo- do FGTS em 1990 e 1991, depois de quase três tecas. Além disso, alguns programas contavam anos sem contratações de porte, caracteriza o também com subsídios cruzados nos quais fa- governo Collor. Cerca de 95% do total de in- mílias de renda um pouco mais alta subsidia- vestimentos em habitação popular nesses dois vam famílias de renda menor. anos foram feitos através do FGTS. No entanto, De fato, o desempenho do FGTS ao longo a maneira como foram efetuadas as liberações do período de funcionamento do BNH assegu- de verba e as contratações acabou objeto de rou excelentes resultados quantitativos, de- uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, monstrando que essa fonte de recursos era de destinada a apurar irregularidades. Foram con- crucial importância tanto do ponto de vista do tratadas 526 mil unidades, 360 mil somente em custo de captação do recurso para a execução 1991, volume que comprometeu o orçamento de política habitacional para renda média e dos anos seguintes, impedindo a realização de média baixa, quanto do fomento à indústria da novas operações. No final de 1996, contabiliza- construção civil. Atualmente podemos verificar vam-se 75 empreendimentos, com 26.553 uni- que esse desempenho voltou a apresentar nú- dades com características de empreendimen- meros muito significativos: em 2014, somente tos-problema (Souza, 1998). Havia uma discre- em habitação, o FGTS contratou 51,8 bilhões pância entre a baixa qualidade das habitações de reais (financiamentos e subsídios) perfa- e a faixa de renda a quem se destinavam; zendo mais de 374,5 mil unidades naquele ano muitas ficaram inacabadas e foram invadidas, (dados Agente Operador FGTS). por exemplo. Outras foram abandonadas ou Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 Book 35.indb 37 37 06/03/2016 17:30:27 Luciana de Oliveira Royer permaneceram muito tempo sem ocupação por Acompanhar criticamente a evolução não terem uma demanda caracterizada, des- dessas medidas de melhoria do ambiente ins- tinada a ocupá-las. Os motivos que levaram a titucional para o crédito imobiliário é relevante isso foram vários, mas destacamos a má quali- para se compreender os desenhos institucio- dade das habitações, a localização inadequada nais que daí advêm. A agenda de mudanças e os preços incompatíveis com a demanda que institucionais preconizadas pelas finanças glo- supostamente seria atendida (Freitas, 2002). bais (WB, 2002) no que concerne ao desenvol- A instituição do financiamento direto vimento do crédito imobiliário se insere nesse à pessoa física e ao produtor dos imóveis ao movimento. Melhoria do ambiente institucio- invés da destinação de recursos para o em- nal, fortalecimento do mercado secundário de preendimento em si, desvinculado do futuro títulos, desburocratização dos processos relati- mutuário, foi uma das diferenças básicas que vos à concessão de crédito (para bons “paga- marcaram o período imediatamente pós-Collor. dores”, diga-se) são parte da agenda de orga- O programa Carta de Crédito Individual, criado nismos como o Banco Mundial. em 1995 nessa lógica é, ainda hoje, o principal Importante ressaltar que o mercado de programa de aplicação de recursos do FGTS, títulos foi viabilizado modernamente no país sendo o veículo formal do Programa Minha Ca- depois das reformas conduzidas a partir do sa Minha Vida. início dos anos 1990, na chamada flexibilização da economia, com a “retirada gradativa dos controles que obstaculizavam o livre fluxo Aspectos da evolução recente de títulos de base imobiliária no Brasil internacional de capitais” (Paulani, 2012). O equacionamento da dívida externa brasileira por meio de sua securitização se insere nesse contexto, por exemplo. O Brasil caminhava para estabelecer sua posição no capitalismo Títulos de base imobiliária podem ser carac- financeirizado, absorvendo poupança externa terizados como papéis que contêm uma pro- e sendo uma opção atraente para o rentismo messa de pagamento em um determinado internacional (ibid.). Veremos adiante como es- prazo e com uma determinada remuneração sa inserção no capitalismo financeirizado pro- cuja valorização e/ou fluxo de recursos se dá a duz efeitos nas políticas de infraestrutura e na partir de empreendimentos imobiliários. Os tí- atuação do Estado. tulos creditícios não são criação recente, visto Não há como ignorar a importância do que são parte integrante do sistema bancário crédito e do fomento de mercados privados e parte fundamental do mercado de capitais. para o financiamento e promoção de políti- Porém suas transformações e metamorfoses e cas de infraestrutura, em especial da política sua entrada na produção do parque imobiliário habitacional. Apesar de parecer óbvio para os urbano nos ajudam a entender as tendências profissionais que atuam no âmbito do espaço recentes da entrada da lógica das finanças no e das ciências sociais aplicadas, a lógica que espaço construído das cidades. tem regido as políticas de crédito habitacional 38 Book 35.indb 38 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 06/03/2016 17:30:27 O FGTS e o mercado imobiliário de títulos de base imobiliária e imobiliário são lógicas economicistas não Um dos instrumentos financeiros centrais apenas no Brasil, mas também nos países ditos na lei do SFI é o Certificado de Recebível Imobi- modelares por operadores do mercado imobi- liário. O CRI é um título de crédito nominativo, liário brasileiro: Espanha, México e Chile, por de livre negociação, lastreado em créditos imo- exemplo (Abecip, 2005). biliários, constituindo promessa de pagamento Como se sabe, o padrão de financiamen- em dinheiro. Apresenta forma escritural, de mo- to da política habitacional brasileira pós-1964 do que seu registro e negociação devem ser fei- esteve centrado no crédito lastreado na cap- tos por sistemas centralizados de custódia e li- tação de poupança, tanto voluntária quanto quidação de títulos financeiros privados, sendo compulsória e muito pouco no repasse de re- controlados pela CETIP (Central de Custodia e cursos orçamentários de origem fiscal. A cons- Liquidação Financeira de Títulos). São de emis- tituição do SFH, nascido de uma conjuntura de são exclusiva das companhias securitizadoras. intervenção do estado na economia, regulação Podem ser lastreados em fluxos de recebíveis de mercados e direcionamento de recursos (pagamentos) de empreendimentos imobiliá- onerosos a partir de critérios políticos é bas- rios específicos ou de um conjunto pulverizado tante distinta da formatação do Sistema Fi- de operações de crédito imobiliário. nanceiro Imobiliário, criado em 1997 em pleno Os CRI também compõem os ativos de período de consecução do ajuste neoliberal no fundos de investimentos, como dos Fundos de Brasil, que pressupõe a livre negociação entre Investimento em Direitos Creditórios (FDIC) e as partes, limitando-se o estado a resolver as dos Fundos de Investimentos Imobiliários (FII). chamadas “falhas de mercado” (WB, 2002). To- Apesar de terem sido criados em 1993, sua re- da a argumentação de que falta um sistema de gulamentação foi feita em 2008 por meio da crédito destinado ao setor imobiliário, de que Instrução CVM (Companhia de Valores Mobiliá- o setor será alavancado caso esse sistema fun- rios) nº 472.7 No caso especialmente dos FII, cione, vem ao encontro da edição da lei do SFI mas também no caso dos FIDC, seus ativos (Royer, 2014). compreendem uma gama relativamente diver- A habitação acabou virando um exce- sificada de instrumentos não necessariamente lente pretexto para o discurso da alocação vinculados a operações de financiamento habi- de recursos do SFH na promoção de produtos tacional. Segundo o Portal do Investidor, imobiliários em geral, por meio do ambiente financeiro do SFI. Na ocasião da criação deste sistema, não faltaram os que criticassem o SFH como ultrapassado, defendendo a sua substituição para que finalmente a questão habitacional fosse resolvida (Abecip, 2005). Mesmo que o SFH continue produzindo seus resultados, ainda resistem os que veem no modelo do SFI a grande oportunidade de combate ao déficit de moradias no Brasil (FGV, 2007). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 Book 35.indb 39 [...] de acordo com a regulação vigente, além de poder adquirir direitos reais sobre bens imóveis, o FII pode também ter outros tipos de aplicações, tais como: letras de crédito imobiliário (LCI); letras hipotecárias (LH); cotas de outros FII; certificados de potencial adicional de construção (Cepac); certificados de recebíveis imobiliários (CRI); cotas de fundos de investimento em direitos creditórios (FIDC) que tenham como política de investimento, 39 06/03/2016 17:30:27 Luciana de Oliveira Royer exclusivamente, atividades permitidas aos FII e desde que sua emissão ou negociação tenha sido registrada na CVM; além de valores mobiliários de emissores cujas atividades preponderantes sejam permitidas aos FII. (Brasil, CVM, 2013) Já as operações com LCI (Letras de Crédito Imobiliário) cresceram, sobretudo, a partir do início de 2010, quando foram extintos os limites de aplicação nesses papéis para efeito de contabilização das exigibilidades do SFH. As LCI contam ainda com a isenção de Impos- A partir das regulamentações desses to de Renda e com cobertura do Fundo Garan- instrumentos, em conjunto com outras medi- tidor de Crédito, ampliando sua atratividade das e o aumento da concessão do crédito ao junto aos investidores “pessoa física”. Apesar setor imobiliário, o estoque de instrumentos do do desempenho positivo desses instrumentos, SFI cresceu sistematicamente depois do início é importante ressaltar que apenas uma par- de 2008, especialmente no caso dos CRI e das cela minoritária das operações concerne ao CCI (Cédulas de Crédito Imobiliário). Um fator setor habitacional. Segundo dados do Anuá- importante na expansão desses mercados foi rio Estatístico da Uqbar, do total das emissões a disseminação das vendas desses títulos no de CRI no ano de 2010 apenas 15% estavam segmento de varejo dos bancos. Inicialmente associadas a financiamentos habitacionais. restritas a clientes de private banking, as apli- Em 2011, essa participação mais do que do- cações em CRI exigiam um valor mínimo de brou, chegando a 36,7%, mas permanecia R$300 mil. Em 2011, o valor da aplicação míni- ainda minoritária. ma foi reduzido como uma forma de ampliar a Os dados do estoque de operações de distribuição desses títulos no varejo. A estraté- mercado de capitais que tem vinculação com gia foi ensejada pela maior demanda de títulos o setor imobiliário mostram um crescimento de renda fixa diante da trajetória de queda das expressivo do volume de recursos operados taxas de juros à época. nesse mercado. Tabela 1 – Estoque de títulos creditícios vinculados ao setor imobiliário Ano Estoque – Vinculados ao setor imobiliário (R$ milhões) CCI CRI Letra hipotecária LCI Total 2006 2.011 2.170 3.283 7.283 14.746 2007 2.636 2.867 1.955 7.844 15.303 2008 8.287 7.208 1.045 10.503 27.043 2009 12.703 10.567 3.727 15.510 42.508 2010 24.295 18.919 1.896 29.260 74.371 2011 43.790 27.795 2.024 46.832 120.441 2012 53.287 33.356 1.542 62.360 150.545 Fonte: Cetip (2013). Valores nominais. 40 Book 35.indb 40 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 06/03/2016 17:30:27 O FGTS e o mercado imobiliário de títulos de base imobiliária Ainda que não seja possível compará-lo Esses são os principais pontos levantados por em nível de grandeza com outros mercados de analistas de mercado ao se depararem com um títulos (como os da dívida pública, por exem- crescimento tão significativo desses títulos de plo), o que chama atenção, em especial para o 2008 a 2012.8 propósito deste estudo, é o crescimento desse Já o volume negociado nos mostra o mercado e o aumento significativo dos recursos crescimento do mercado secundário no Brasil que estão sendo movimentados em uma série com títulos de base imobiliária. Consegue-se aí histórica relativamente recente. identificar a importância crescente desse mer- De fato, de um total de 14,7 bilhões de reais em 2006, o estoque desses títulos foi para mais de 150 bilhões de reais em 2012 (em va- cado secundário e o papel destacado do CRI pela sua natureza jurídica. O anuário da Uqbar, consultoria especializada em securitização imobiliária, apresenta o lores nominais). A análise macroeconômica do aumen- ano de 2012 como o momento to do interesse do investidor por títulos que [...] mais profuso de nossa recente história em oportunidades que vão surgindo ao redor do mercado de títulos de securitização imobiliária e de segmentos correlatos. Dando sustentação a este ambiente construtivo, cresce com vigor o setor imobiliário no Brasil e, de forma paralela, quase todas as suas fontes de financiamento que possibilitam esta expansão. (Uqbar, 2012, p. 2) tenham isenção fiscal, características básicas de um investimento em renda fixa, e retorno condizente com a operação, pode ser aplicada a quase todos os títulos de base imobiliária. A queda da taxa básica de juros, também é apontada como um fator que obriga investidores de todo o tipo e tamanho a buscarem a rentabilidade em outro tipo de papéis e investimentos. Tabela 2 – Volume negociado de títulos creditícios vinculados ao setor imobiliário Ano Volume negociado – Vinculados ao setor imobiliário (R$ milhões) CCI CRI Letra hipotecária LCI Total 2006 11 256 6 2 275 2007 305 238 26 2 570 2008 1.584 516 161 103 2.365 2009 1.502 1.623 224 915 4.264 2010 1.258 4.067 158 1.348 6.831 2011 2.285 10.912 - 1.724 14.921 2012 1.387 14.688 239 3.592 18.695 Fonte: Cetip (2013). Valores nominais. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 Book 35.indb 41 41 06/03/2016 17:30:27 Luciana de Oliveira Royer A estruturação complexa das opera- captura de recursos regulados do fundo pú- ções, como FII adquirindo CRI, ou como CRI blico para esse mercado. Segundo o mesmo lastreados em outros CRI caracterizam esse documento da consultoria especializada em novo ambiente. O que nos interessa destacar securitização imobiliária, é a importância do papel do FGTS na primeira alavancagem de CRIs feita com os recursos do Fundo em 2008, gerando o desempenho esperado por seus operadores. Como veremos, os aportes do FGTS para compra de CRIs ou ainda em FII se dá anualmente, configurando uma certeza de liquidez mínima para esse mercado. Em 2012 o volume de CRI emitido foi de 13,58 bilhões, “maior do que a soma das emissões [...] a estrutura de mercado de capitais, tendo como investidor o FGTS, funcionou como um vaso comunicante entre alguns sistemas de financiamento imobiliário, como o próprio sistema com as regras específicas do FGTS, o Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e o Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI), fazendo com que os recursos de um sistema realimentassem outro sistema. (Uqbar, 2012) de 2010 e 2009”, segundo o Anuário Uqbar (Uqbar, 2012). Pela primeira vez, a maioria das opera- As explicações para esse desempenho ções de CRI foi realizada com lastro em crédito nem sempre são diretas. Estão relaciona- imobiliário em detrimento de locações. O mer- das à necessidade da busca por uma melhor cado existente até então sempre esteve mais performance em ambiente de juros baixos. O focado em operações corporativas, com base discurso da captação de recursos no merca- em contratos de locação atípica na modalidade do para se fazer frente ao déficit habitacional build to suit. Tal mudança se apresenta totalmente em linha com as alterações de mercado existentes e com a revogação da Resolução nº 3347/2006 do CMN que trata das normas sobre direcionamento dos recursos captados em depósitos de poupança pelas entidades integrantes do SBPE e pela Resolução nº 3932/2010 do CMN. A Resolução nº 3932, dentre outras disposições e alterações, determinou que só seriam considerados CRI possíveis de serem incluídos no chamado ”Mapa 4” das instituições financeiras aqueles que tivessem lastro em crédito imobiliário (excluindo expressamente a possibilidade, ate então existente, de inclusão de CRI com lastro em locações). Ademais, a Resolução nº 3932 dispôs que as instituições financeiras que realizassem as operações de cessão de suas carteiras de sempre aparece nas exposições de motivos e analises de conjuntura das possibilidades desses instrumentos financeiros (Abecip, 2005). No entanto, as mudanças regulatórias quanto ao direcionamento da poupança e o papel do FGTS na alavancagem desse mercado, são apontadas por analistas financeiros como fatores preponderantes no desempenho recente da emissão desses títulos, procurando estabelecer real e finalmente um mercado de securitização imobiliária no Brasil. O FGTS, no ano de 2011, adquiriu mais de três bilhões em CRI (aproximadamente 20% das emissões daquele ano) tendo sido fundamental para o desempenho desse mercado naqueles anos. A importância do FGTS na alavancagem de operações ligadas ao circuito financeiro do capital imobiliário vai se tornando clara, mantendo a 42 Book 35.indb 42 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 06/03/2016 17:30:27 O FGTS e o mercado imobiliário de títulos de base imobiliária crédito imobiliário às companhias securitizado- Não é demais insistir ainda que o sucesso ras de créditos imobiliários e que fossem vin- desses instrumentos contou com a legitimação, culadas à emissão de CRI, poderiam utilizá-los ao menos no nível do discurso, do déficit ha- para fins do cumprimento das exigibilidades de bitacional brasileiro. No entanto, a entrada do manutenção de no mínimo 65% do montante que seriam “novas” fontes de recursos para captado em deposito de poupança em opera- um setor “atrasado” ou ainda totalmente de- ções de financiamento imobiliário. pendente da captação da poupança e do FGTS parece contraditória, visto que são justamente esses os recursos que se mostram fundamentais para girar o ciclo dos investimentos e tor- Títulos de base imobiliária e o FGTS nar atrativos os títulos para os investidores. O desempenho do FGTS tem demonstrado o quão relevante é este fundo para a Ao que tudo indica, portanto, um “cliente” fun- produção de habitação de interesse social. De damental para o crescimento do mercado de 2008 a 2014, 231,2 bilhões de reais foram des- títulos de base imobiliária é o FGTS. Uma série tinados para o financiamento à construção e de resoluções do CMN e do CCFGTS, editadas à aquisição de imóveis, conforme Tabela 3. Ou praticamente ano a ano desde 1998, mostram seja, o Fundo tem hoje um papel fundamental que os CRI e outros títulos de mesma natureza na provisão de habitação para renda média e foram ganhando espaço no mercado de capi- baixa no país. Magalhães Eloy demonstra que tais, ampliando sua participação na captação esse papel, no entanto, poderia ser ainda maior de recursos do FGTS que seriam destinados já que o gasto ainda estaria aquém da capa- inicialmente para o atendimento a empreendi- cidade de investimento do FGTS (Magalhães mentos destinados à baixa renda. Eloy, 2015). Tabela 3 – Execução de itens do orçamento do FGTS 2008-2014 Valores em R$ mil Execução do Orçamento FGTS Ano Habitação Descontos/subsídios Saneamento básico Infraestrutura 2008 13.590.867 1.887.114 4.438.847 – 2009 20.205.413 3.971.321 1.948.801 – 2010 33.241.715 6.406.883 553.129 5.300.270 2011 37.842.316 6.444.327 1.251.620 1.782.502 2012 39.583.015 7.511.490 615.517 781.315 2013 42.805.021 8.494.310 4.841.437 3.717.843 2014 43.930.537 7.896.549 6.731.361 6.209.627 Fonte: Agente Operador do FGTS. Valores atualizados para 2014 pelo IPCA. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 Book 35.indb 43 43 06/03/2016 17:30:27 Luciana de Oliveira Royer No entanto o FGTS tem sido usado também e cada vez mais para alavancar pro- a ser construído, a estratégia de negócios e a margem de retorno dos investimentos. gramas e posições de mercado. O argumento As resoluções do CCFGTS nº 578/2008, central contido nos documentos técnicos é de 602/2009, 637/2010, 681/2012, 702/2012, que a gestão do Fundo tem buscado a melhor 725/2013 foram editadas para regulamentar rentabilidade possível para as necessárias apli- esse tipo de investimento, que cresceu signi- cações financeiras, e que dessa forma o Fundo ficativamente durante o período 2008-2012. se mantém saudável e respondendo a todos os Em uma das resoluções, os “considerandos”9 compromissos que tem, especialmente os com- apontavam para a importância da alocação de promissos com seus cotistas. recursos do FGTS nesse mercado: De acordo com entrevistas realizadas junto ao Agente Operador do FGTS e análise de documentos, houve pressão no âmbito do Conselho Curador desde a Resolução CCFGTS nº 578/2008 para que fosse autorizada a utilização dos recursos do FGTS em operações imobiliárias feitas diretamente ou por meio de títulos de base imobiliária. Nessas operações estão incluídas as debêntures para grandes empresas com a condição de executarem unidades habitacionais e também compras de CRIs “performados”, ou seja, CRIs com lastro em empreendimentos habitacionais, fundos de investimento imobiliários e investimentos especiais. Desses investimentos especiais, um dos mais “especiais” é o Fundo Imobiliário Porto Maravilha. O FGTS foi autorizado a investir 3,5 bilhões de reais no fundo, sendo seu único cotista. O FII Porto Maravilha foi criado com o propósito de realizar negócios de natureza imobiliária na operação urbana do porto, segundo seu prospecto. É ainda o maior FII do país e adquiriu todo o estoque de Cepacs da operação, visando utilizá-los para comprar par- Considerando que, além do financiamento tradicional, o FGTS vem incentivando o mercado secundário, que cresce no País, disponibilizando linhas de crédito para aquisição de direitos creditórios vinculados ao desenvolvimento de projetos no setor imobiliário; Considerando que os investimentos do FGTS nesses ativos elevam o nível de liquidez do setor imobiliário; Considerando que os recursos da linha de investimentos criada em 2008 para aquisição de cotas de Fundos de Investimentos Imobiliários – FIIs, de Fundos de Investimento em Direitos Creditórios – FIDCs e de debêntures, com lastro em operações de habitação, no valor de R$3.000.000.000,00 (três bilhões de reais), já estão integralmente comprometidos com operações contratadas e em vias de contratação no âmbito do Agente Operador do FGTS; Considerando que além dessas operações já viabilizadas, existe demanda adicional apresentada ao Agente Operador da ordem de R$ 5.000.000.000,00 (cinco bilhões de reais) (...). (Brasil, MTE, CCFGTS nº 602/2009) (grifo próprio) ticipação nos empreendimentos imobiliários no De fato, existia demanda adicional e, pe- seu perímetro (Pereira e Moschiaro, 2015). Ao la evolução dos números das chamadas ope- adquirir todo o estoque de Cepac e por ser o rações de mercado, essa demanda foi irrigada único controlador do fundo, o FGTS controla com os recursos do FGTS, como se pode verifi- também o tipo de empreendimento imobiliário car pela Tabela 4. 44 Book 35.indb 44 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 06/03/2016 17:30:27 O FGTS e o mercado imobiliário de títulos de base imobiliária Tabela 4 – Estoque de títulos creditícios vinculados ao setor imobiliário Ano Aquisição de CRI + Aplicação de FI-FGTS + Carteira administrada Debêntures/FII/CRI/FIDC (Contratado) 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 9.344.058 7.576.630 7.172.104 8.246.509 7.167.361 2.401.094 2.907.220 Fonte: Agente Operador do FGTS. Valores atualizados para 2014 pelo IPCA. Os dados das operações de mercado Ainda que seja importante acompanhar mostram um grande crescimento até 2012. Em essa trajetória mais recente das chamadas 2008 as operações totalizavam mais de 9,3 bi- operações de mercado, percebe-se que desde a lhões de reais e em 2012, 7,2 bilhões de reais regulamentação do uso do FGTS nesse merca- (valores atualizados para 2014). do de títulos imobiliários, outra forma de ope- De 2008 a 2012 os valores aplicados em racionalizar os recursos está acontecendo. Há operações de mercado foram sistematicamen- uma injeção de recursos em investimentos que te maiores do que os alocados para subsídios se caracterizam como rentáveis para o próprio habitacionais. A partir de 2013 essa curva se Fundo, dinamizando um mercado imobiliário inverte, com o investimento em financiamentos que abriria frentes de expansão em áreas da ci- habitacionais continuando a subir, assim co- dade que não seriam utilizadas sem um aporte mo os subsídios. Uma das possibilidades para de recursos públicos, como a área portuária do compreensão dessa inversão é a trajetória de Rio de Janeiro. Reforça-se o caráter de colchão subida da Selic a partir de 2013, e a chama- de liquidez que tem o Fundo, porém de forma da deterioração do ambiente fiscal do país que diversificada, investindo diretamente também geraria uma crise de confiança. Também as em operações de mercado. A lógica que per- incertezas quanto à continuidade de recursos passa esses investimentos é uma lógica de va- para o programa MCMV e mudanças no am- lorização dos investimentos, como não poderia biente econômico mundial podem ser compor deixar ser. Certamente é realizado com todas a motivação para esse comportamento. Esses as normas prudenciais para um investimento motivos impactariam o mercado imobiliário e desse tipo, mas o que vale observar é a atuação consequentemente o mercado de títulos de ba- do FGTS como um player no mercado imobiliá- se imobiliária. rio e no mercado de títulos imobiliários, sendo Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 Book 35.indb 45 45 06/03/2016 17:30:27 Luciana de Oliveira Royer Gráfico 2 – Evolução da taxa Selic 2008-2014 16 14 12 10 8 6 4 2 1/7/2014 1/10/2014 1/4/2014 1/1/2014 1/7/2013 1/10/2013 1/4/2013 1/1/2013 1/7/2012 1/10/2012 1/4/2012 1/1/2012 1/7/2011 1/10/2011 1/4/2011 1/1/2011 1/7/2010 1/10/2010 1/4/2010 1/1/2010 1/7/2009 1/10/2009 1/4/2009 1/1/2009 1/7/2008 1/10/2008 1/4/2008 1/1/2008 0 Fonte: Banco Central do Brasil. Elaboração própria. Gráfico 3 – Evolução comparativa de recursos do FGTS: Subsídio habitacional (Desconto) x Gastos em operações de mercado (título) 14.000.000 12.000.000 10.000.000 8.000.000 6.000.000 4.000.000 2.000.000 0 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 Fonte: Agente Operador do FGTS. Valores atualizados para 2014 pelo IPCA. Elaboração própria. 46 Book 35.indb 46 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 06/03/2016 17:30:27 O FGTS e o mercado imobiliário de títulos de base imobiliária decisivo na alocação de recursos, na escolha do pelo fomento ao mercado imobiliário no país, tipo de investimento e de sua localização. que geraria empregos, e pela obtenção de rentabilidade para o próprio Fundo, garantindo sua saúde financeira. No entanto, como discuti- Considerações finais do anteriormente, o fomento se dá ao próprio mercado de títulos, ainda que a base imobiliá- Os fundos conhecidos como parafiscais (SBPE ria desses títulos movimente de certa forma a e FGTS) detém uma importância crucial para a indústria da construção. promoção de politicas habitacionais desde sua Nesse mesmo período, 231,2 bilhões de criação ainda na década de 60. O FGTS, espe- reais foram destinados a financiamentos habi- cialmente, tem um papel importante no aces- tacionais, mostrando a importância do FGTS so ao crédito para famílias de media e baixa para uma política publica de habitação, ao renda. A forma de constituição desse fundo, contribuir efetivamente para a construção de uma poupança compulsória, e sua remunera- um parque habitacional. Para atingir faixas de ção a taxas que podem variar abaixo de taxas renda média e baixa, a politica de subsídios inflação, tem se justificado pela importância do fundo destinou, também de 2008 a 2014, da utilização de seus recursos na consecução 42,6 bilhões de reais, o que foi fundamental de uma politica habitacional consistente e di- para a viabilização dos empréstimos. Ainda rigida pelo Estado em um contexto de grande que seja bastante relevante a discussão sobre déficit, inadequação habitacional e de infraes- o spread das operações do Fundo e o tipo de trutura urbana. subsídios concedidos pelo FGTS (Magalhaes Porém, e no contexto da inserção do país Eloy, 2015), não há como negar que a con- na atual etapa do modo de produção mundial cessão de crédito e o subsídio conseguiram centrado nas finanças, o FGTS tem proporcio- atingir um número significativo de famílias nado a criação e, de certo modo, a manutenção, que estaria fora de qualquer possibilidade de de um mercado de títulos de base imobiliária. crédito habitacional. Esse colchão de liquidez e principalmente, a Porém ao viabilizar crescentemente as diminuição das incertezas e riscos pela com- chamadas operações de mercado, o FGTS atua pra antecipada e certa de títulos emitidos por como um importante player nesse mercado, companhias securitizadoras desses créditos, comportando-se como investidor institucional faz do FGTS um player importante nesse mer- em um contexto de valorização dos títulos, bus- cado. Nas operações de mercado do FGTS, cando cada vez mais rentabilizar esses títulos. constituídas pela aquisição de CRI, aplicação Além de constituir-se em uma disputa pe- no Fundo de Investimento do FGTS (infraes- la utilização de seus recursos, os investimentos trutura), debêntures, fundos de investimento nessas operações de mercado de base imobiliá- imobiliário (entre eles o do Porto Maravilha) e ria impacta a produção do espaço construído, fundos de direitos creditórios, o FGTS investiu a escolha e o tipo dos empreendimentos, sua de 2008 a 2014 aproximadamente 55,8 bilhões localização, tendendo a promover e consolidar 10 de reais. O investimento tem sido justificado Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 Book 35.indb 47 frentes de expansão imobiliária nas cidades. 47 06/03/2016 17:30:28 Luciana de Oliveira Royer Ao buscar a valorização e a rentabilidade desses títulos nesse ambiente de negócios, o FGTS acaba por transformar os próprios cotistas do fundo em rentistas, como aponta Paulani: Não é demais lembrar que é também o Estado que patrocina a distribuição de recursos dos trabalhadores para viabilizar a formação do grande capital, com a consequente geração de capital fictício que normalmente a acompanha. (...) transforma a classe trabalhadora como um todo em “rentista”. Ainda que seus ganhos sejam magros, essa posição a obriga a torcer para o capital e, mais ainda, para o capital fictício, que afinal é gerido pelos próprios trabalhadores. (Paulani, 2012, p. 14) O controle social de fato sobre esses recursos e sua utilização parece ser um debate importante a ser feito, no contexto da construção de uma política pública de universalização de direitos. Luciana de Oliveira Royer Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. São Paulo/SP, Brasil. [email protected] Notas (1) Relatório de Economia Bancária e Crédito, publicação anual do Banco Central do Brasil (BCB). Até o conclusão deste ar go, o Relatório de 2013 era o mais recente a ser disponibilizado. (2) Depois da criação do FGTS em 1966, era facultado ao trabalhador escolher entre a poupança voluntária ou o regime de estabilidade obrigatório após 10 anos de contrato de trabalho. Ao empregador era obrigatório, após a opção do empregado, o recolhimento mensal de 8% do salário do empregado. Depois da Cons tuição de 88, o FGTS consolidou-se como um direito social e a estabilidade após de 10 anos de emprego foi ex nta. (3) Lei nº 4.864, de 29 de novembro de 1965, que cria medidas de es mulo à Indústria de Construção Civil. As citações entre aspas a seguir no texto são de excertos da referida lei. (4) Atualmente o FGTS é regido pela Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, e regulamentado pelo Decreto nº 99.684, de 8 de novembro de 1990. Dados ob dos nos relatórios de gestão do FGTS disponíveis em www.caixa.gov.br/fgts. (5) Constituem, ainda, recursos do Fundo: dotações orçamentárias específicas; resultados das aplicações dos recursos do FGTS; multas, correção monetária e juros moratórios devidos; receitas oriundas da Lei Complementar nº 110/01; demais receitas patrimoniais e financeiras. 48 Book 35.indb 48 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 06/03/2016 17:30:28 O FGTS e o mercado imobiliário de títulos de base imobiliária (6) Sobre o FGTS é importante ainda salientar que o objetivo do Fundo, expresso na lei que atualmente o regulamenta é: (1) assegurar ao trabalhador optante a formação de um pecúlio rela vo ao tempo de serviço em uma ou mais empresas, para ampará-lo em caso de demissão e a seus dependentes em caso de falecimento; e (2) fomentar polí cas públicas por meio do financiamento de programas de habitação popular, de saneamento básico e de infraestrutura urbana. As normas e diretrizes do FGTS são estabelecidas por seu Conselho Curador, órgão tripar te, composto atualmente por oito integrantes de órgãos e en dades do Governo Federal, quatro representantes dos trabalhadores e quatro representantes dos empregadores. O agente gestor do FGTS é o Ministério do Trabalho e Emprego, a gestão da aplicação dos recursos do FGTS é efetuada pelo Ministério das Cidades, cabendo à Caixa Econômica Federal o papel de Agente Operador. A Caixa Econômica Federal é também Agente Financeiro do FGTS, par lhando essa função com outras ins tuições (bancos). (7) Definição que consta de publicação da CVM destinada ao público em geral acessível em http://www.portaldoinvestidor.gov.br/portaldoinvestidor/export/sites/portaldoinvestidor/ publicacao/serie_guias/CVM-Guia-01-FII.pdf (8) Entrevista feita com analista da Anbima, em setembro de 2013. (9) Os “considerandos” são conhecidos por ser na técnica legisla va um resumo da exposição de motivos de uma lei. Como se trata de uma resolução e não de uma lei, os “considerandos” adquirem força explica va do mo vo da edição daquela resolução. (10) Em valores de 2014 atualizados pelo IPCA, de acordo com a tabela apresentada. As agregações apresentadas na sequência também são atualizadas para 2014 pelo IPCA. Referências AALBERS, M. (2012). Subprime ciƟes: The poliƟcal economy of mortgage markets. London, John Wiley & Sons. ABECIP (2007). As contribuições dos sistemas imobiliários da Espanha e do México para o aperfeiçoamento do modelo brasileiro. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE CRÉDITO IMOBILIÁRIO. Anais. Rio de Janeiro, Abecip/Publite o. ABECIP; CBIC (2005). Primeira Revisão Trimestral da Proposta Acordada entre a ABECIP – Associação Brasileira das EnƟdades de Crédito Imobiliário e a CBIC – Câmara Brasileira da Indústria da Construção. Disponível em: h p://www.cbic.org.br/arquivos/acordoABECIPCBIC.pdf. ACCENTURE (2007). Crédito Imobiliário: Propostas para torná-lo um efe vo instrumento promotor do desenvolvimento econômico e social do país. In: CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE CRÉDITO IMOBILIÁRIO. Anais. Salvador/Brasília, Banco Central do Brasil. ARAGÃO, J. M. (2005). 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Housing finance in emerging markets: policy and regulatory challenges. Material rela vo a curso promovido pelo Departamento de Operações e Polí cas do Setor Financeiro do Banco Mundial. Washington, The World Bank. Texto recebido em 7/nov/2015 Texto aprovado em 12/dez/2015 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016 Book 35.indb 51 51 06/03/2016 17:30:28 Book 35.indb 52 06/03/2016 17:30:28 Vínculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda e integración urbana en áreas de crecimiento urbano extensivo. El caso del PRO.CRE.AR en La Plata Links between the policy of incentive to the demand for land and housing and urban integration in areas of extensive urban growth. The case of PRO.CRE.AR in La Plata María Eugenia Rodríguez Daneri Resumen La presente investigación tiene como propósito analizar el modo en que la política habitacional de incentivo a la demanda impulsada por PRO.CRE. AR incide en los procesos de expansión urbana, analizando los rasgos principales de la integración urbana: aspectos urbanos, ambientales y normativos. Los avances del trabajo permitieron reconocer que uno de los factores que tiene peso significativo es la localización del Programa en áreas no urbanas, como también en aquellas áreas que siendo urbanas, tienen grandes déficit de servicios y equipamientos públicos. Ello da cuenta de la dificultad que tiene el municipalidad para gestionar el acceso al suelo en condiciones urbanas de calidad, en una ciudad que se expande insustentablemente y donde el problema de la tierra es constante. Palabras clave: política habitacional; integración urbana; expansión urbana; instrumentos; La Plata. Abstract This research aims to analyze the way in which the housing policy of incentive to the demand stimulated by PRO.CRE.AR influences urban expansion processes, examining the main features of urban integration: urban, environmental and regulatory issues. It was possible to notice that one of the most significant factors is the location of the Program in non-urban areas, as well as in urban areas that still have large deficits of public services and facilities. This accounts for the difficulty that the municipal government has in managing access to land in quality urban conditions in a city that expands unsustainably and where the land problem is constant. Keywords: housing policy; urban integration; urban sprawl; instruments; La Plata. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3503 Book 35.indb 53 06/03/2016 17:30:28 María Eugenia Rodríguez Daneri Introducción promueven la expansión física y extensiva de la La presente investigación 1 tiene como áreas periféricas sobrevaluadas, pero al propósito analizar las relaciones de la mismo tiempo carentes de servicios, evidencia creciente política de incentivo a la demanda la desigualdad de acceso a los servicios habitacional (Programa Crédito Argentino del urbanos y equipamientos públicos que, a Bicentenario – PRO.CRE.AR) con el crecimiento su vez, está vinculada a asuntos tales como urbano extensivo en el Partido de La Plata. la seguridad de tenencia, la pobreza, la En particular, se propone reflexionar sobre las exclusión y fragmentación social, el riesgo condiciones de integración urbana emergentes de inundaciones, la expulsión de actividades de dicho programa. agropecuarias periurbanas, entre otros ciudad. (Rocca et al., 2010). La tendencia hacia la expansión en Esta investigación se enmarca en un procesos. En consecuencia, puede deducirse trabajo de investigación mayor que estudia que las políticas públicas resultan insuficientes los procesos de expansión urbana, sus para dar cuenta de las múltiples demandas características diferenciales y la evaluación de que posee la población de espacios para la la incidencia de las políticas de ordenamiento reproducción y producción social. territorial, y de tierra y vivienda implementadas En este contexto, el artículo explora por los gobiernos locales en distintos municipios el modo en que la política habitacional de de la Provincia de Buenos Aires. El mencionado fomento a la demanda, impulsada por el PRO. estudio permitió verificar que en los procesos CRE.AR, incide en los procesos de expansión de expansión urbana los usos dominantes urbana analizando los rasgos principales de la han sido los residenciales, conducidos en gran integración urbana, es decir aspectos urbanos, medida por el sector privado, pero también por ambientales y normativos. una importante acción de las políticas públicas, El estudio se estructura en tres en particular las políticas de tierra y vivienda partes, en la primera se presenta el marco y de producción de infraestructuras (Rocca et teórico- metodológico donde se desarrollan al., 2010). los principales conceptos que vinculan la Si bien la normativa provincial vinculada problemática del crecimiento extensivo con al ordenamiento territorial (Decreto Ley n° las políticas urbanas, instrumentos y objetivos 8912/1977) establece un marco para regular de intervención que permiten identificar los el crecimiento urbano, implantando estándares componentes para el desarrollo del estudio de de toda nueva subdivisión del suelo, y caso. En la segunda se abordan los principales estableciendo las formas de completamiento ejes que hacen a la integración urbana, poniendo urbano de acuerdo a necesidades de a prueba dos tipos de iniciativas emergentes incremento poblacional y dotación de del PRO.CRE.AR. En la última se exponen las infraestructuras, la creciente necesidad de conclusiones del estudio, donde se reflexiona suelo y el desarrollo de mercados inmobiliarios sobre los factores que afectan directamente a la especulativos que encarecen el precio del suelo, integración urbana del caso de estudio. 54 Book 35.indb 54 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 06/03/2016 17:30:28 Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda... Crecimiento extensivo: políticas urbanas, instrumentos y objetivos de integración urbana producción y configuración de las ciudades en el contexto capitalista actual, donde la expansión descontrolada y los cambios en la demanda de suelo, definen gran parte de la problemática urbana actual. Así, el modelo resultante justifica la necesidad del manejo Se partió de un marco teórico general que del crecimiento urbano a partir de políticas permitió interpretar los procesos actuales de públicas planificadas e integrales como un crecimiento urbano extensivo en Latinoamérica desafío en el mundo entero. y sus vínculos con la planificación y gestión Está confirmada la tendencia mundial urbana, y los procesos socio-territoriales hacia la urbanización y la forma insustentable subyacentes. En articulación con el anterior, en que esta viene desarrollándose. A la exploración se basó en un marco teórico nivel global, el modelo dominante es la sustantivo que profundiza en las relaciones metropolización expandida y descontrolada, entre el acceso al suelo urbano y los distintos con configuraciones urbanas difusas y instrumentos de la política urbana. extendidas y agudización de los problemas sociales y ambientales con patrones de segregación y exclusividad del crecimiento Crecimiento urbano extensivo: teoría sobre la realidad latinoamericana (Aguilar, 2006; De Mattos, 2010). La expansión urbana en la mayoría de las regiones metropolitanas latinoamericanas muestra un panorama de pobreza, informalidad e ilegalidad de los patrones de uso del suelo, y La expansión urbana es tanto un producto una ausencia de infraestructura, equipamientos como un proceso que expresa el crecimiento y servicios básicos (Lungo, 2007) como urbano por extensión con modalidades correlato de las dificultades del acceso a la específicas históricamente determinadas por tierra y vivienda urbana. el contexto social, económico y político en que Sobre estos procesos ha tenido una se materializa. Dichas modalidades se expresan gran actuación el crecimiento incontenible territorialmente en la estructura de la ciudad, de la inversión inmobiliaria, con procesos así como en las nuevas relaciones entre la de creciente mercantilización del desarrollo ciudad y su entorno, entre distintas ciudades, y urbano, en los que la plusvalía urbana se el territorio en sus diferentes escalas. ha transformado en el criterio urbanístico Para abordar esta problemática la dominante (De Mattos, 2010). Ello justifica la investigación se enmarcó en las coincidencias necesidad de comprender mejor la expansión teóricas generales que pueden trazarse de las ciudades en países en desarrollo y entre distintos autores que relacionan la asegurar, a través de planes y políticas de tendencia a la urbanización global con las gestión de la expansión urbana, el desarrollo profundas transformaciones en las formas de ordenado de las ciudades para hacerlas más Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 Book 35.indb 55 55 06/03/2016 17:30:28 María Eugenia Rodríguez Daneri eficientes, equitativas y sostenibles (Shlomo y expansión urbana. Esto, sumado a la falta de otros, 2012). En el mismo sentido se necesita proyectos y/o mecanismos de gestión que comprender mejor las políticas urbanas, viabilicen desde una modalidad proactiva, instrumentos y objetivos de intervención sobre disminuye las posibilidades de la regulación las áreas de crecimiento extensivo para evaluar municipal dejando a criterio de las iniciativas su contribución a la integración urbana. privadas u otros organismos sectoriales la En línea con lo anterior, resultan conducción del proceso. fundantes los estudios de Aguilar (2002), De Asimismo, también verifica la Mattos (1999) y Cicolella (1999) porque a través conjugación de factores estructurantes y del análisis del crecimiento de las grandes específicos en la impulsión de la expansión ciudades confirman que los más importantes urbana extensiva. Pueden reconocerse como cambios se dan en los espacios de crecimiento causas estructurales del proceso, no solo las extensivo con patrones de dispersión urbana importantes transformaciones económicas y que incorpora progresivamente pueblos productivas producidas en los centros urbanos, y periferias rurales dentro de un sistema sino también los altos déficits de tierra y metropolitano cada vez más amplio y complejo. vivienda accesibles para las clases medias y Por su parte, el trabajo de Rocca (2013) bajas, las demandas de nuevos estándares es particularmente significativo porque en la habitacionales para las clases medias y altas, exploración comparativa de las características conjugados con políticas públicas nacionales, de los procesos de expansión urbana en provinciales y locales que favorecen los ciudades de distinto tamaño y situación procesos expansivos. territorial dentro de la Provincia de Buenos C a b e p r e c i s a r q u e, l o s f a c t o r e s Aires, analiza sus causas y vínculos con la específicos que articuladamente con los política territorial durante los últimos 35 anteriores, han contribuido a moldear la años. Este trabajo comprueba que existe una situación en cada ciudad, se vinculan con consolidación de áreas de expansión urbana transformaciones en los perfiles productivos, con altos contrastes sociales y espaciales, las pertenencias regionales, la dotación y en términos cuantitativos, se verifica un de recursos naturales, sus condiciones de crecimiento acelerado y extensivo de las accesibilidad, entre otras cuestiones. áreas urbanizadas en relación al incremento poblacional y de la cantidad de viviendas. Para comprender la integralidad de la problemática de crecimiento urbano extendido Otro aspecto interesante en la es necesario entender las dificultades de investigación que desarrolla Rocca (2013) es acceso a la ciudad, porque el mercado legal el análisis de las normativas de zonificación del suelo resulta inaccesible a la población de municipal – instrumento generalizado en bajos ingresos. Sobre este proceso, tiene una el territorio bonaerense – donde se verifica alta incidencia la regulación del suelo porque que al no tener Planes que las enmarquen no implica una intervención significativa en resultan indeterminas en cuanto a principios el mercado que favorezca el acceso a la tierra y lineamientos de las áreas previstas para la de los sectores sociales de menores ingresos 56 Book 35.indb 56 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 06/03/2016 17:30:28 Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda... (Clichevsky, 2003). Las posibilidades que Azuela (2007), donde propone reivindicar el tiene la población de acceder a vivir en una valor social del suelo en las políticas en torno determinada área urbana se relaciona con las al mercado de suelo urbano que reconozcan el condiciones de pobreza y el funcionamiento valor estratégico de la tierra y las características del mercado legal de tierras y vivienda. Según particulares del funcionamiento de sus la autora el mercado legal del suelo resulta mercados, para impulsar un uso sostenible inaccesible a la población de bajos ingresos; del suelo al incorporar objetivos sociales y y las políticas estatales sobre regulación ambientales y beneficiar a los segmentos del mercado privado del suelo han influido más vulnerables de la población urbana. Para decisivamente en el acceso porque no ello es imprescindible que el Estado, tanto en implicaron una intervención significativa en el ámbito municipal como el nacional, tenga el mercado tendiente a favorecer el acceso a un rol activo en la promoción del desarrollo la tierra de los sectores sociales de menores urbano a través de políticas e instrumentos ingresos. integrados que puedan favorecer la integración Por su parte, las políticas de Tierra y como objetivo de cualquier acción territorial. Vivienda, mayormente generadas desde los Morales (2005), por su parte, sostiene niveles de gobierno intermedio y superior, no que dejar la asignación del recurso suelo a los han sido articuladas adecuadamente con los intereses particulares implica una distribución gobiernos locales, considerado su incidencia en desigual de dicho recurso. La definición del la conformación de áreas de expansión urbana, interés público del suelo urbano podría integrar contribuyendo a la dispersión y fragmentación componentes que aseguren que la ciudad espacial y social. Estas políticas, actuando con sea: equitativa, convivida, integrada al medio objetivos sectoriales, impulsaron el crecimiento natural, y productiva. Por ello la importancia hacia áreas no previstas, y presionaron sobre de la regulación del suelo a través de diversos otros usos de la tierra de menor relevancia instrumentos. económica, como pueden ser los espacios Distintos autores (Fernández Wagner, verdes abiertos o los agropecuarios (Lancioni et 2006; Del Río, 2011) coinciden en que en al., 2012). Argentina, durante las últimas décadas, los principales instrumentos implementados por la política habitacional, con las diferencias que Instrumentos de tierra y vivienda en el contexto de las políticas urbanas Morales (2005) realiza entre “las de oferta de vivienda construida”, y “las de fomento de la demanda”, intentaron dar respuesta a esta problemática, pero al no articularse con políticas urbanas también favorecieron el El crecimiento urbano extensivo requiere un abordaje multidimensional acorde a la Fernández Wagner (2006) señala que complejidad de la problemática. En este se ha centrado el foco en la construcción sentido resulta útil la propuesta de Antonio masiva de viviendas, pero al no existir una Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 Book 35.indb 57 crecimiento extensivo de la ciudad. 57 06/03/2016 17:30:28 María Eugenia Rodríguez Daneri correspondencia entre la planificación beneficiar a los segmentos más vulnerables de urbana y la disponibilidad de un conjunto de la población urbana. instrumentos organizados en tal sentido, tiene una serie de consecuencias negativas o al menos contradicciones, entre las que destaca la existencia de escasez de suelo de propiedad pública disponible. Se debe enfrentar la problemática de habitar la ciudad de modo complementario con el desarrollo de una regulación del suelo urbano y la planificación en la esfera local. En la misma línea, Del Río (2011) señala que, en gran medida, este esquema de urbanización es producto de la incapacidad de la gestión urbana para intervenir e introducir mecanismos de regulación de los mercados de suelo urbano; de la connivencia de intereses de actores públicos y privados tendientes a dinamizar el capital inmobiliario; y de la difusión de concepciones urbanísticas excluyentes mediante los estándares normativos o de zonificación, que rara vez asimila las prácticas y procesos populares de producción del hábitat. Es importante destacar que la mayor oferta residencial desarrollada en Argentina desde 2003 no implicó precisamente mejores condiciones de acceso a la vivienda, en tanto la inversión inmobiliaria se hace como reserva de valor y solo para la población de mayor poder adquisitivo (Baer, 2008). Por lo tanto, el gobierno no debería ignorar su responsabilidad de adoptar políticas en torno al mercado de suelo urbano que reconozcan el valor estratégico de la tierra y las características particulares del funcionamiento de sus mercados, para impulsar un uso sustentable del suelo al incorporar objetivos sociales y ambientales y 58 Book 35.indb 58 La integración como objetivo Lo anteriormente escrito afirmó que la expansión urbana en Latinoamérica se caracteriza por procesos imbricados de fragmentación, dispersión, segregación, desintegración y desigualdad, en términos espaciales, sociales, económicos y políticos. Los gobiernos enfrentan cotidianamente la necesidad de integrar las poblaciones vulnerables y marginadas en los territorios urbanos. En relación con esto, Sabatini (2008) explica que la segregación de los grupos populares en la periferia de las ciudades tiene impactos urbanos y sociales. Entre los primeros destacan los problemas de accesibilidad y la carencia de servicios y equipamientos en sus lugares de residencia; y entre los segundos, los problemas de desintegración social. Ello, representan formas de empobrecimiento o de degradación social vinculados a las desventajas que conlleva la falta de integración física. En la misma línea, Vidal Rojas (1997) entiende la fragmentación urbana como un proceso territorial mayor, que se construye a través de tres subprocesos: fragmentación social, fragmentación física y fragmentación simbólica. En cualquiera de los casos supone la independencia de las partes (fragmentos) en relación al todo (sistema urbano). El abordaje de la cuestión de la fragmentación urbana reconoce fundamentalmente dos líneas de análisis aunque con diferentes matices en cada una de ellas, por un lado, aquella que se Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 06/03/2016 17:30:28 Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda... halla ligada a procesos de desigualdad social y barreras materiales y/o inmateriales; por el otro, Metodología la que se relaciona con las discontinuidades en el proceso de expansión urbana a respecto Él marco teórico sirvió para la construcción de de la trama producto de los procesos de la metodología, del mismo modo los distintos metropolización (Valdes, 2001). estudios que analizan y evalúan soluciones En la búsqueda de operativizar estos habitacionales. Esto permitió llegar a la conceptos que definen procesos involucrados conclusión que la integración urbana puede en los procesos de expansión Del Río entenderse a partir de la relación interrelación (2008) señala que la calidad urbana es la de distintos ejes. En función de esto, se cualificación del espacio urbano que expresa construyó una matriz de análisis (Cuadro 1), la articulación compleja entre accesibilidad a de carácter exploratorio, donde se analizaron las infraestructuras, conectividad al trasporte distintos ejes que permitieron reflexionar sobre público y proximidad a la centralidad urbana. los factores que determinan la integración Así que sistematiza una serie de variables que urbana de las localizaciones del PRO.CRE.AR. tiene por objetivo caracterizar las condiciones En la matriz, la primera columna de calidad urbana. Se refiere a la centralidad representa los ejes de análisis, que son aquellas urbana la relación entre accesibilidad/ que a partir de su interrelación definen la conectividad, consolidación urbana de servicios integración urbana. En la segunda columna en la vía pública, conexión a servicios sanitarios se detallan las variables que se evalúan de básicos, calidad de ocupación de la vivienda y cada eje de análisis. La tercera columna calidad constructiva de la vivienda. está compuesta por el tratamiento del dato, También propone analizar variables por ejemplo: distancia en metros hasta la a nivel socioeconómico para determinar la centralidad más cercana, en una escala del 1 posición relativa de las tipologías analizadas al 4 expresando de izquierda a derecha mejor en la estructura socioespacial. Finalmente, se condición a mayor déficit. identifica la distancia al borde de la mancha Para la producción car tográfica y urbana para analizar la inserción de conjuntos tablas síntesis se ensambló un Sistema de habitacionales sobre áreas rurales o de borde Información Geográfica (SIG) y se relacionó urbano. con técnicas de análisis espacial para En términos generales la integración relacionar la localización del Programa con urbana expresa como se relacionan los las variables de análisis, con el fin de analizar distintos componentes físicos, ambientales, y los rasgos principales de la integración socioeconómicos de la ciudad y a su vez actúa urbana que emerge del Programa. En algunos como un indicador que permite aproximar el casos se utilizaron medidas tradicionales de nivel de calidad urbana de una ciudad, siendo distancia generando buffers, en otros casos se la integración social un proceso vinculado y ajustó una medición distinta de acuerdo a las condicionado por la misma. necesidades de cada variable. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 Book 35.indb 59 59 06/03/2016 17:30:28 María Eugenia Rodríguez Daneri Cuadro 1 – Matriz de análisis Tratamiento del dato Eje Variable 1 Ambiental Riesgo hídrico Servicios básicos Muy bajo / bajo 4 Medio Alto Con agua Con cloaca Sin servicios A menos de 300 Entre 300 y 600 Entre 600 y 900 A más de 900 A menos de 600 Entre 600 y 900 Entre 900 y 1.200 A más de 1.200 Subcentralidades A menos de 2.200 Entre 2.000 e 3.000 Entre 3.000 y 4.000 A más de 4.000 Transporte público A menos de 300 Entre 300 y 600 Entre 600 y 900 A más de 900 Urbana Complement. Rural Rural salud Equipamiento educativo Regulatorio 3 Con agua y cloaca Equipamiento Urbano Sin riesgo 2 Zonificación de usos de suelo Fuente: elaboración propia. A continuación se repasan los criterios de • El eje urbano hace referencia a la definición de cada uno de los ejes de análisis distribución de bienes y servicios. En este eje es que componen la matriz: importante evaluar si el Programa está ubicado • El eje ambiental refiere a cuáles son las cercano a centralidades o subcentralidades condiciones ambientales en que se localiza urbanas, a equipamientos públicos, si cuenta con el Programa. Es decir, interesa conocer si el cobertura de servicios básicos, entre otras cosas. Programa está localizado en áreas con riesgo Para ello las variables que se analizan son: de inundaciones. Para ello, la variable que se evalúa es: 2) Servicios básicos agua y cloaca. El análisis de la cobertura se realiza a partir de los datos 1) Riesgo Hídrico. Para analizar la obtenidos de ABSA respecto de los servicios de localización en relación al riesgo hídrico se agua y cloaca e identificando si la localización toma como base la cartografía elaborada por del Programa se encuentra dentro de estas el Centro de Investigaciones en Suelos y Agua áreas servidas. de Uso Agropecuario (CISAUA) en el marco 3 y 4) Equipamientos públicos de Salud2 y de de un estudio de Riesgo Hídrico en el Partido Educación.3 El análisis de los equipamientos de La Plata. Para construir el mapa de Riesgo públicos implica indagar la localización del Natural de Inundación, dicho estudio se basó Programa respecto de la distribución de los en las distintas inundaciones (2002 y 2008) equipamientos públicos. Es decir, cuales son que afectaron al partido y que demuestran las distancias que se deben recorrer para poder el colapso del sistema de desagües tanto del acceder a ellos mediante la generación de casco urbano como de su periferia. buffers que miden la proximidad directa. 60 Book 35.indb 60 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 06/03/2016 17:30:28 Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda... 5) Centralidades Urbanas. El análisis de Este análisis resulta fundamental para centralidad se realiza a partir de comprender poder realizar la evaluación del siguiente que ésta es producto de atracción de flujos, punto: espacios de consumo, concentración de • los sectores urbanos más críticos del actividades comerciales y financieras. Para partido. Se realizara a partir de la evaluación ello se identifican los subcentros urbanos y relación de las distintas variables; para ello y subcentros de servicios establecidos en el se realizará un cruce entre las mismas, que se Código de Ordenamiento Urbano4 vigente; y a encuentren en los últimos dos casilleros de la través de la generación de distintos buffers se matriz, los cuales indican las situaciones más evaluar la proximidad directa. críticas. Es decir, todas aquellas localizaciones 5 6) Transporte público. Las redes de que cuenten con al menos 3 variables en la transporte cumplen un papel fundamental para escala 3 y 4 de la matriz se georreferenciaran facilitar las interrelaciones en la sociedad, y en en GIS para comprobar si el conjunto de particular en este estudio son fundamentales localizaciones define sectores dentro de la para facilitar la conectividad de las otras ciudad. variables. Para ello se calculan cuáles son las distancias que se deben recorrer para poder acceder a ellos mediante la generación de buffers que miden la proximidad directa. • Por último, el eje regulatorio refiere a cuál es la inserción del Programa en relación a las Relaciones entre el PRO.CRE.AR e integración urbana en áreas de crecimiento urbano extensivo áreas y usos normados según el Decreto-Ley 8912/77 y el Código de Ordenamiento Urbano El Partido de La Plata forma parte de la RMBA, del partido de La Plata, en particular con en particular de su litoral sur, es Capital de la aquellas áreas que no son urbanas. La variable Provincia de Buenos Aires, por lo tanto, sede que se analiza es: de gobierno y de la administración de los tres 7) Regulación de usos de suelo. El análisis Desde fines de los 70, el municipio de identificar cuáles son las zonas destinadas La Plata transita un proceso de planificación al uso residencial e identificar qué relación urbana basado en una serie de instrumentos tienen éstas con la localización del Programa. normativos municipales, enmarcados en la Entendiendo que las áreas apropiadas para la legislación provincial, con el propósito ordenar localización del Programa son las urbanas. el crecimiento urbano. Si bien desde esa fecha Como síntesis, del análisis de la localización se identifica: a la actualidad cuatro han sido las ordenanzas municipales, que tomaron la zonificación del • los factores que afectan la integración territorio como instrumento de ordenamiento urbana del caso de estudio. A partir de urbano territorial, ninguna de ellas fue identificar los ejes que tienen mayor incidencia concebida en el marco de un plan que defina el en la configuración de las mayores criticidades. modelo urbano y territorial, ni las estrategias, Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 Book 35.indb 61 poderes provinciales. de la regulación se realiza a partir de 61 06/03/2016 17:30:28 María Eugenia Rodríguez Daneri programas y proyectos que en conjunto urbano para cada una de las periferias del contribuyan a implementar un proyecto de Partido. ciudad consensuado por los distintos actores del Partido de La Plata (Rocca y Ríos, 2010). Las tendencias que definen el perfil de la periferia noroeste están vinculadas con una El trabajo que realizaron Rocca y Ríos revalorización del suelo urbano que genera sobre los procesos de expansión urbana expectativas por parte del sector inmobiliario, en el Partido de La Plata permitió verificar particularmente en las áreas que han tenido que la ciudad creció por extensión en todas mayor desarrollo económico y que verificaron sus direcciones. Inicialmente en las áreas mejoras en las condiciones de accesibilidad de borde y en distintos asentamientos y cualidades ambientales específicas, ubicados sobre las principales vías de acceso, manteniendo en ese sentido su diferenciación posteriormente la mancha urbana se extendió respecto a las restantes periferias. En cambio, sobre corredores viales con bajas densidades las tendencias de dispersión en la periferia uniendo los distintos asentamientos sureste (cercanía a Villa Garibaldi) y en la originados en torno a espacios ferroviarios, sudoeste (inmediaciones de la R36) están y presentando interrupciones básicamente asociadas a sectores de recursos medios que por la presencia de planicies de inundación intentan acceder con menores costos a ámbitos de arroyos, cavas, grandes equipamientos en contacto con la naturaleza. y espacios destinados a la producción, y terrenos vacíos expectantes. Si bien este fenómeno dio respuesta a nuevas demandas sociales de espacio, Por otra parte, la materialización de particularmente de vivienda, tanto el desarrollo infraestructuras viales ejecutadas en la económico sostenido, como la cohesión social y década de los 90, pertenecientes al sistema la sustentabilidad ambiental, parecen constituir de autopistas metropolitanas, dio lugar a condiciones difíciles de alcanzar en el marco de nuevas vinculaciones con la ciudad de Buenos este proceso. Aires, reforzando la inserción urbana de La Fi n a l m e n t e, l a s m o d a l i d a d e s d e Plata en la Región Metropolitana de Buenos apropiación del suelo por parte de sectores de Aires, y generando tensiones en el proceso escasos recursos expresadas en asentamientos de expansión urbana. Nuevos frentes de informales y villas, vinculados a los cursos de urbanización a nivel local en relación a la Auto agua y espacios ferroviarios, en mayor medida vía Ruta 2, la Ruta 36 y la Autopista La Plata – se localizan en las periferias sureste y sudoeste, Buenos Aires. pero a su vez resulta una tendencia que se Se verifica que el crecimiento urbano incorpora al escenario actual de la periferia extensivo ha modificado la configuración noroeste y alerta sobre nuevas condiciones de de gran parte del territorio conformando riesgo hídrico sobre la población. distintos sectores urbanos donde se identifican Esto, pone de manifiesto nuevas claramente tres ejes de crecimiento: noroeste, tendencias de “la periferia dual, fragmentada sudoeste y sureste; presentando características social y espacialmente”, en ámbitos pobres, distintivas desde el punto de vista social y degradada, desestructurada; y con espacios 62 Book 35.indb 62 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 06/03/2016 17:30:28 Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda... Foto 1 – Ejes Noroeste, Sudoeste y Sureste, respectivamente Fuente: Elaboración propia (2014). “en transición”, donde se pronuncian procesos metropolitana repercuten en un aumento de de dispersión urbana, simultáneamente con movimientos residencia-trabajo y en altos avances de la urbanización sobre el área déficit de equipamientos e infraestructuras de complementaria y rural destinada al cinturón servicios y comunicación. hortícolas (Rocca y Ríos, 2010) (Foto 1). En consecuencia con lo anterior, el El programa analizado avance de la urbanización desencadena un retroceso de las actividades productivas. Tierras PRO.CRE.AR Bicentenario es una iniciativa del que se destinaban a explotaciones primarias Gobierno Nacional que proyecta la entrega intensivas presentan ahora otros usos del suelo de 400 mil créditos hipotecarios para la propios de un área urbana. Ello genera nuevos construcción, compra de terreno y construcción, loteos y una gran especulación de los agentes ampliación, terminación y refacción de inmobiliarios con el fin de obtener el máximo viviendas, como así también para adquirir beneficio. Así, la periferia se ve afectada por aquellas que son construidas por el Programa una dinámica de retención – especulación en a través de desarrollos urbanísticos. Tiene como el marco de un proceso de suburbanización objetivos: que progresa principalmente hacia el noroeste • Atender las necesidades habitacionales de tendiendo a conectar la ciudad con Buenos los ciudadanos de todo el territorio nacional, Aires (Frediani, 2010). contemplando las diferentes condiciones Se puede sintetizar, entonces, que la socioeconómicas y la multiplicidad de expansión urbana en La Plata se relaciona situaciones familiares con líneas de crédito con los siguientes problemas: avance de la para la construcción de viviendas particulares y urbanización sobre actividades productivas desarrollos urbanísticos de alta calidad. agropecuarias, y sobre áreas ambientalmente • Impulsar la actividad económica a través degradadas, dispersión con baja densidad del incentivo a la construcción de viviendas y poblacional, incompatibilidad de usos del su efecto dinamizador. suelo, aumento del valor de la tierra urbana y no urbana, entre otros. Fenómeno que a escala Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 Book 35.indb 63 • Generar empleo en todo el país mediante mano de obra directa e indirecta. 63 06/03/2016 17:30:28 María Eugenia Rodríguez Daneri Sus propósitos son generar desarrollo, de la sanción de la Ordenanza n°11094/13 trabajo, consumo, y descomprimir el mercado se autoriza la re-zonificación de tierras. De inmobiliario, mejorando las condiciones de esta manera la Ordenanza contempla la quienes no pueden tener acceso mediante el formación de un registro de oferentes de crédito hipotecario o el ahorro personal con tierras, propietarios de hectáreas actualmente destino a la vivienda propia. Este instrumento indivisibles, por estar zonificadas como rurales se implementa en el marco de una política de o rurales intensivas, y al mismo tiempo se fuerte intervención pública en la política de genera un registro de beneficiarios PRO.CRE. vivienda, desarrollada desde el año 2003 a AR, que son los que podrán comprar estos partir de la implementación de los Programas lotes una vez subdivididos y listos para ser Federales de Vivienda. aceptados por el crédito. Durante muchos años en Argentina, la Simultáneamente, como una segunda vía posibilidad de obtener créditos hipotecarios de acceso a las tierras, la ordenanza brinda la se vio restringida. En el año 2012, la creación posibilidad de que grupos de beneficiarios del de un fondo fiduciario (PRO.CRE.AR), dio la PRO.CRE.AR compren fracciones indivisas de posibilidad de acceder a la vivienda a través tierra con destino a la construcción de vivienda de un crédito con tasas acomodadas en treinta (consorcio), para que, una vez garantizados los o cuarenta años. Esto generó una demanda requisitos que estipula la ordenanza, puedan enorme que luego fue condicionada por ingresar esas tierra al registro de oferentes con una oferta especulativa que reaccionó como el proyecto de subdivisión. acostumbran los mercados, es decir sacando el máximo nivel de ganancia posible. Pese a que el Decreto Ley 8.912/77, que regula las urbanizaciones, indica que Para aplacar este fenómeno cada “las áreas o zonas que se originen como municipio debía aumentar la oferta de suelo consecuencia de la creación, ampliación o urbano, pero en las diferentes estrategias reestructuración de núcleos urbanos y zonas para llevarlo aparecieron las diferencias. de usos específicos, podrán habilitarse total En consecuencia, el Programa ha tenido un o parcialmente sólo después que se haya impacto distinto en cada Partido; y, como completado la infraestructura y la instalación se dijo anteriormente, está directamente de los servicios esenciales fijados para el relacionado a las capacidades con que cada caso, y verificado el normal funcionamiento municipio cuenta para implementar distintos de los mismos”; la Ordenanza 11094/13 solo instrumentos de gestión, regulación, etc., exige tendido eléctrico, alumbrado público y teniendo en cuenta ciertos componentes apertura de calles transitables, apoyándose básicos de la urbanización: suelo, servicios en la Ley de Hábitat 14.449, que cuando se básicos, accesibilidad, condiciones urbano- trata de re-zonificar parcelas rurales, "llama" ambientales. al artículo 83 del Decreto Ley 8.912/77 que En el Partido de La Plata se impulsó el hace referencia a la convalidación por provincia mecanismo que fue denominado “registro de las ordenanzas municipales que intentan de oferentes de terrenos”, donde a través ampliar la zona urbana. 64 Book 35.indb 64 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 06/03/2016 17:30:28 Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda... En este proceso, la tierra aumentó su valor en forma extraordinaria, y el registro Lógicas de localización y análisis de integración urbana del PRO.CRE.AR de oferentes de terrenos solo quedó limitado por la condición de que el precio máximo de a) Eje Ambiental cada lote sea de 150 mil pesos, dejando que 1) Riesgo hídrico esa ganancia excepcional quede en manos Los resultados obtenidos en la del propietario de la tierra, y en muchos de los especialización del riego hídrico y de los registros casos estas tierras no se encuentran dentro de PRO.CRE.AR muestran que, si bien la mayoría de la mancha urbana actual. los registros de los dos cosos se encuentran en Se seleccionaron dos unidades la escala 1 y 2 de la matriz, una considerable de análisis en correspondencia con dos parte de los mismos están ubicados en zonas operatorias llevadas a cabo por el Programa, con riesgo, lo que implica no solo un conflicto y desarrolladas en el mismo recorte temporal: ambiental sino también un importante conflicto primer trimestre del año 2014. Las unidades para las familias asentadas en dichos lugares, de análisis seleccionadas son: por estar expuestas no solo a inundaciones (de La Línea Construcción (Caso 1), destinada a aquellas familias que cuenten con un terreno. En este caso se examinó la información oficial de permisos de obra otorgados en el primer trimestre del año 2014.6 Como primer resultado de ello se obtuvo que de los 1.282 permisos de obra aprobados, 437 pertenecen a la Línea Construcción del PRO.CRE.AR. L a L í n e a C o m p r a d e Te r r e n o y Construcción de Vivienda (Caso 2), destinada a familias que aún no disponen de un terreno. Para este caso se utilizaron las diez re-zonificaciones de fracciones indivisas aprobadas por el municipio platense, en el primer trimestre del año 2014, que prevé una oferta de 890 lotes distribuidas en distintos sectores del partido. acuerdo al grado del riesgo) sino también al Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 Book 35.indb 65 anegamiento de dichos sectores. El análisis demuestra que el Programa ha llevado a la ocupación urbana de zonas no aptas, de esta forma gran parte de las planicies de inundación de los arroyos han sido integradas a las áreas urbanas sin ningún tipo de restricción. Ello evidencia la importancia de evaluar, previamente a la aprobación de futuros registros, cuáles son los sectores más convenientes para la localización del Programa en relación al Riesgo; ya que una vez establecidos los mismos se torna muy compleja su reubicación debido al costo económico que esto representa, y más aún el importante costo social que implica trasladar una población ya consolidada. 65 06/03/2016 17:30:28 María Eugenia Rodríguez Daneri b) Eje urbano 1) Infraestructuras de servicios básicos: Agua y Cloaca Los resultados en materia de cobertura la cobertura educativa); pero, respecto de cada línea, se encuentran mayores déficit en la línea compra de terreno y construcción, que en la línea construcción. distan considerablemente de las condiciones Se entiende que la accesibilidad a que establece el Programa – los lotes deben los equipamientos públicos, medidos por la tener los servicios básicos. La cobertura de distancia física a ellos, debiera ser equitativa infraestructura de servicios en las áreas para todos. Pero los resultados demuestran que donde se localizaron los registros representó, no es así para todos los casos, creándose en en el Caso 1, tener el mayor porcentaje de consecuencia desigualdades física-territoriales localizaciones sin ninguno de los dos servicios. respecto a su distribución. Para el Caso 2, la cobertura de servicios resultó aún más crítica ya que ninguno de los registros de esta línea cuenta con los servicios básicos. 3) Centralidades o subcentralidades urbanas Se observa que hay una gran cantidad de registros localizados cercanos El resultado permite observar la a subcentralidades, en particular el Caso 1 desigualdad socio-espacial que subyace en muestra mejores resultados que el Caso 2. No la expansión de la cobertura. Esto da cuenta obstante, al visualizar la espacialización de no solo de las malas condiciones en que se los mismo, en el eje Sureste se verifica que localizan ambas líneas, en particular el Caso ninguno de los registros, de ambas líneas, 2, y del impacto que genera en las familias, cuenta con un subcentro urbano cercano a tanto en lo económico como en lo ambiental, estas localizaciones. sino también de la falta de articulación entre Lo que implica grandes dificultades en el las distintas políticas sectoriales (en este acceso, medidos por la distancia física a ellos, caso vivienda e infraestructura de servicios). a servicios y actividades de diferentes escalas, La falta de cobertura de ambos servicios entre otras cosas; entendiendo también que los implica además una baja calidad de vida para centros urbanos son un punto de referencia y las familias localizadas en gran parte de la de expresión simbólica de las condiciones de periferia del partido. vida de sus habitantes; y que además ofrecen 2) Equipamientos de Salud y Educación La espacialización de los Casos y de los algunas alternativas de empleo. 4) Transporte público equipamientos muestra que hay una dotación En cuanto a la cobertura del servicio en de equipamientos que sirve a una población el Caso 1 se puede decir que gran parte de la distribuida de forma irregular en una superficie población no encuentran mayores limitaciones más o menos extensa en el territorio. Pero al con la cobertura, a excepción de aquellas analizar la localización y cobertura de ambos familias localizadas en un sector del eje no que equipamientos se verifica que, tanto en las corresponde a la delegación de Arturo Seguí. mejores como en las peores situaciones, hay Donde se encuentran mayores una gran coincidencia (un poco más deficitaria dificultades es en los registros del Caso 2, esto 66 Book 35.indb 66 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 06/03/2016 17:30:28 Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda... conlleva a una gran dificultad en relación a la Zonas Industriales Mixtas; y Rurales Extensivas, conectividad de las variables anteriormente perteneciente al área rural. analizadas, ya que es en definitiva la que De los registros de la otra línea (Caso permite que las familias accedan a servicios y 2), se puede observar que ninguno de ellos equipamientos públicos en general. se encuentra dentro del Área Urbana. Como c) Eje regulatorio anteriormente se explicó esta línea impulsó, El cruce de los registros con la normativa en el P0artido de La Plata, la re-zonificación dio como resultado que en el Caso 1 casi la de tierras, es decir, los cuatro registros que se mitad se encuentra en zonas o sectores no encuentran en zona de reserva urbana (C/RU del destinados al uso residencial. Entre ellos, Área Complementaria), los cinco registros que las mayores tendencias de localización se están en la zona rural intensiva y el único registro encuentran en el Área Urbana, no obstante que se localiza en zona rural extensiva (R/RI y un gran porcentaje de estos (20% del total) se R/RE del Área Rural), mediante la sanción de la encuentran en sectores de arroyos y bañados. Ordenanza n°11094/13 pasarán a renombrarse Si bien se encuentran dentro del área urbana como zonas residenciales de promoción (U/R3 no deja de presentarse como una problemática del Área urbana), solamente por la condición de debido a que se asientan en zonas de máximo rezonificación de dichas zonas. riesgo de inundación. Si bien el código En conclusión, tanto los registros del establece limitaciones al uso, parcelamiento Caso 1 que se localizan en área no urbanas, y volumen edilicio, no impide que se pueda como aquellos registros que a partir de la construir en dichos sectores. rezonificación serán considerados “dentro del Ta m b i é n e x i s t e u n p o r c e n t a j e área urbana”, en su mayoría se encuentran considerado (17%) localizados, dentro del Área desprovistos de buenas condiciones urbanas y Rural, en Zonas Rurales Intensivas, desprovistas ambientales, ello significa registros localizados en muchos casos de infraestructura de servicios en sectores con déficit de infraestructuras de y equipamientos sociales pero, en general, servicios, con escasa conectividad, con déficit cercanas a las principales vías de acceso que de equipamientos y cercanos a los sectores vinculan el partido con la región. productivos, lo que implica contaminación de Por otra parte, el 12% de los registros algunos recursos e incompatibilidad de usos; se localizan, dentro del Área Complementaria, todo ello sólo por condición de no pertenecer en Zonas de Reserva Urbana, que según la al área urbana. normativa esta destinados al ensanche del La Foto 2 muestra el paisaje obtenido Área Urbana: “El uso dominante de esta zona como resultado de la urbanización de suelos es el Rural Intensivo compatible con el uso destinados al uso agropecuario: residencial limitado, estando condicionadas El Cuadro 2 expresa los resultados las intervenciones a la consolidación de obtenidos del análisis de la localización del las zonas del Área Urbana adyacentes”; y Caso 1; por su parte, el Cuadro 3 muestra los en menor medida, dentro de la misma área resultados obtenidos del Caso 2. En ambos complementaria, en Corredores de Servicio y casos, los resultados están expresados en Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 Book 35.indb 67 67 06/03/2016 17:30:28 María Eugenia Rodríguez Daneri Foto 2 – Resultado de la urbanización de suelos destinados al uso agropecuario Cuadro 2 – Matriz de análisis: resultados Caso 1 Tratamiento del dato – % Eje Integración urbana Ambiental Urbano Regulatorio Variable 1 2 3 4 Riesgo hídrico 53,5 32,8 1,2 12,5 Servicios 15,1 19,4 5,8 59,7 Equipamiento salud 22,9 24,3 15,4 37,4 Equipamiento educativo 12,5 23,8 24,9 38,8 Subcentralidade 52,2 18,8 6,7 22,3 Transporte 50,1 31,0 10,1 8,8 Zonificación de usos de suelo 69,6 12,8 17,7 Fuente: elaboración propia. Cuadro 3 – Matriz de análisis: resultados Caso 2 Tratamiento del dato – % Eje Integración urbana Ambiental Urbano Regulatorio Variable 1 2 3 4 Riesgo hídrico 40 40 10 10 Servicios 0 0 0 100 Equipamiento salud 0 10 20 70 Equipamiento educativo 0 0 20 80 Subcentralidade 30 0 40 30 Transporte 10 20 40 30 Zonificación de usos de suelo 0 – 40 60 Fuente: elaboración propia. 68 Book 35.indb 68 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 06/03/2016 17:30:28 Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda... porcentaje de registros según se localizan en relación al tratamiento del dato. 7 los mayores porcentajes de localizaciones en la escala 1, esto significa que a pesar de tener relevancia el hecho de que haya registros Evaluación de la integración urbana localizados en áreas con riesgo ambiental, Una vez analizadas cada una de las variables situación favorable. resulta necesario analizarlas integradamente para poder sintetizar los siguientes puntos: la mayor cantidad de registros están en una Por último, en el mismo cuadro, se puede ver que el eje que muestra el mayor Identificar los factores que afectan porcentaje de registros en la escala 4 de la integración urbana del caso de estudio la matriz es el eje urbano. Es decir que los es necesario para identificar cuáles son principales factores que afectan a la integración los ejes que tienen mayor incidencia en la urbana son aquellos que hacen referencia a la configuración de las mayores criticidades. El distribución de bienes y servicios. siguiente cuadro representa en porcentajes la En cambio, en el Cuadro 5 – Síntesis del Caso 2, el mismo eje que anteriormente era síntesis de los tres ejes: El Cuadro 4 – Síntesis del Caso 1 muestra el que mejores resultados arrojaba, en este que el eje que posee el más alto porcentaje de caso es el que presenta los peores valores en registros está en la escala 1 es el regulatorio, la escala 1; mostrando los valores más altos esto significa que si bien no cumple con las en las escalas 3 y 4. Esto quiere decir que mejores condiciones en general es el que esta operatoria encuentra al eje regulatorio muestra mejores resultados en relación a la como uno de los mayores conflictos integración urbana. emergente del Programa en la operatoria Siguiendo en la observación del cuadro, se puede verificar que el eje ambiental muestra donde la adquisición del suelo es un factor determinante. Cuadro 4 – Síntesis Caso 1 Ambiental 52% 35% 1% 13% Urbano 29% 24% 13% 34% Regulatorio 59% 11% 15% 15% Cuadro 5 – Síntesis Caso 2 Ambiental 40% 40% 10% 10% Urbano 8% 6% 24% 62% Regulatorio 0% 26% 37% 37% Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 Book 35.indb 69 69 06/03/2016 17:30:28 María Eugenia Rodríguez Daneri Casi en la misma línea se encuentran los valores del eje urbano, que muestran sus Para concluir, viendo la síntesis de cada operatoria se puede decir que: porcentajes más bajos de localizaciones en • En el eje ambiental las localizaciones no los niveles 1 y 2, y los más altos en el 3 y 4. presenta grandes conflictos en ninguna de Ello implica que este eje se presenta como el las dos operatorias. Aunque sería importante más crítico en relación a las condiciones de que no hubiera porcentajes en los niveles 3 y integración urbana. 4 por el riesgo que conlleva la localización de Por último, podría decirse que los familias en estos sectores. mejores resultados son aquellos vinculados • En el eje urbano se presenta como uno al eje ambiental, con los porcentajes de de los principales factores que afectan a localizaciones más altos en la escala 1 y 2, que la integración de las localizaciones con su significan casi el total de los registros, teniendo entorno urbano. Si bien en muchos casos se muy poca incidencia las escalas 3 y 4. trata de decisión política para revertir estos Foto 3 – Síntesis de las operatorias del Caso 1 y 2 Fuente: elaboración propia (2014). 70 Book 35.indb 70 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 06/03/2016 17:30:28 Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda... conflictos, hoy en día se presenta como una Por último, el plano síntesis del Caso 2, gran problemática porque el conjunto de estas muestra claramente que, a excepción de un variables hacen a la calidad de vida de la solo registro localizado en la delegación de población. Arturo Seguí, todos los registros restantes (9 de • En el eje regulatorio las localizaciones del 10) tienen al menos 3 variables en la escala 3 y Caso 1 no presenta muchos inconvenientes, 4 de la matriz, por cada registro. Esto significa pero en el Caso 2 sí. El hecho de que haya que para esta operatoria, los sectores críticos tanta diferencia entre las dos líneas evidencia son todos. las dificultades que tiene el estado municipal para abordar la gestión del suelo urbano. La identificación de los sectores Conclusiones más críticos del partido se realizó a partir de la evaluación de las distintas variables Como resultado de la exploración, se pudo i n t e r r e l a c i o n a d a s. C o m o s e e x p l i c ó ver, en primera instancia, que los procesos anteriormente en la metodología, en este de expansión urbana han generado cambios plano síntesis se espacializarán todas aquellas en la configuración territorial, acrecentando localizaciones que cuenten con al menos tres los débiles límites entre lo urbano y lo rural. variables en la escala de 3 y 4 de la matriz para Estos proceso, configuraron dos territorios evaluar si el conjunto de las mismas definen bien diferenciados: por un lado el Casco sectores dentro del partido. Urbano, sumado a algunos sectores acotados El plano síntesis del Caso 1, muestra del eje noroeste y sudoeste, caracterizado por claramente que se definen tres sectores tener un diseño más ordenado y por contar bien críticos, la intensidad del color muestra con los servicios básicos para casi el total de mayor cantidad de variables en la escala de 3 su población; y por otro lado, la periferia en y 4 por cada localización. Estos tres sectores, donde la expansión se desarrolló sin normas diferenciados del resto, corresponden dos a clara que regulen la producción del suelo. En las periferias del ejes noroeste, precisamente este sentido, la normativa como instrumento a las delegaciones de Arturo Seguí/Melchor de la política urbana, resultó insuficiente para Romero, y Ringuelet/Gonnet, y sector restante gestionar el territorio. corresponde al eje sureste ubicado en la delegación de Villa Elvira. ser el claro reflejo del reconocimiento de las Por otra parte, pero en menor medida, tendencias que se observan en el territorio, se identifican conflictivos algunos sectores del dimensionadas y evaluadas integralmente en eje sudoeste, localizado en el los barrios de San cuanto a sus repercusiones territoriales, desde Carlos/Los Hornos, y otro en el eje noroeste, lo social, económico, ambiental, espacial y ubicado en los barrios de Gorina/Hernandez. La funcional. Para reducir las marcadas diferencias gran cantidad de registros en el plano muestra entre la población que puede llegar a acceder y que la mayoría de ellos presentan variables en los que no lo logran. Las desigualdades sociales condiciones problemáticas. que se han profundizado como producto de la Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 Book 35.indb 71 La zonificación como instrumento debería 71 06/03/2016 17:30:29 María Eugenia Rodríguez Daneri falta de integración entre distintas políticas como para el desarrollo urbano y territorial generan sectores diferenciales dentro de las municipal. Y en particular, reforzar la necesidad ciudades. de que la política habitacional sea abordada La implementación del PRO.CRE.AR de manera articulada con otras políticas debería garantizar, paralelamente al acceso para brindar el acceso al suelo urbanizado, a la tierra, una adecuada integración entre y conducir el crecimiento urbano de manera calidad urbana y ambiental. Para ello el sustentable, asegurando la integración física, municipio, en el marco de la Ley, cuenta espacial y social de la población. con mecanismos de gestión que posibilitan Para finalizar, interesa destacar que el al estado asumir el rol de promotor de la desarrollo del estudio permitió reconocer los producción del suelo urbano y redistribuir los factores que afectan a la integración urbana beneficios de la urbanización. de cada una de las operatorias analizadas, que Ahora bien, pareciera necesario reforzar han permitido concluir que uno de los factores la necesidad de que la política para la vivienda de peso significativo es la localización de los se ajuste a la diversidad de territorios. Las mismos en áreas no urbanas, pero también características y problemáticas de las ciudades aquellas áreas que, aun siendo urbanas, tienen metropolitanas requieren un manejo específico grandes déficit de servicios y equipamientos. en cuanto a escala de las demandas, a la Lo mencionado anteriormente evidencia las provisión de suelo y los valores inmobiliarios. dificultades que tiene el Estado municipal para Asimismo, reforzar la necesidad que gestionar el territorio en general, y brindar la política, en general, sea coordinada entre el acceso a suelo en condiciones urbanas los tres niveles del Estado, ya que una mala de calidad, en una ciudad que se expande implementación local puede resultar negativa insustentablemente y donde el problema de la tanto para el buen desarrollo de la iniciativa tierra es constante. María Eugenia Rodríguez Daneri Universidad Nacional de La Plata, Facultad de Arquitectura y Urbanismo, Centro de Investigaciones Urbanas y Territoriales. La Plata, Buenos Aires, Argentina. [email protected] 72 Book 35.indb 72 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 06/03/2016 17:30:29 Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda... Notas (1) Desarrollada en el marco de una Becas Interna de Entrenamiento en Inves gación de la FAUUNLP. Dirigida por la Arq. Licia Ríos y codirigida por el Arq. Alejandro Lancioni. (2) Se toma para el análisis todos los centros públicos de salud. (3) Se considera equipamiento educa vo a todos aquellas ins tuciones de ges ón pública inicial, primaria y secundaria. (4) Ordenanza 10.703 del año 2010 (5) Para el análisis de la cobertura de transporte se ene en cuenta solo el recorrido del colec vo y del ferrocarril, no las paradas y estaciones. (6) Recopilados de documentos obrantes de la Dirección de Obras Par culares. (7) El tratamiento del dato y las escalas se explican en el apartado “Metodología”. Referências AGUILAR, A. G. (2002). 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Argen na. Texto recebido em 31/maio/2015 Texto aprovado em 13/nov/2015 74 Book 35.indb 74 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 53-74, abr 2016 06/03/2016 17:30:29 Favelas no Brasil e em São Paulo: avanços nas análises a partir da Leitura Territorial do Censo de 2010* Squatter settlements in Brazil and in São Paulo: improvements in the analyzes from the 2010 Census Territorial Reading Suzana Pasternak Camila D’Ottaviano Resumo Pensando nas formas de acesso à moradia da população de baixa renda no Brasil, este artigo pretende analisar, especificamente, as condições de moradia da população favelada, procurando, a partir dos dados censitários disponíveis, identificar o que significa morar numa favela no Brasil na primeira década do século XXI, a partir de algumas questões principais: houve aumento da população favelada no Brasil? Onde esse aumento foi mais expressivo? Como se deu esse aumento: a partir do surgimento de novas favelas ou no aumento das favelas existentes? Quais as características dos domicílios favelados? Houve melhora nos indicadores relacionados à infraestrutura? É também um esforço inédito de análise da base de dados “Leitura Territorial” dos domicílios favelados, base única disponibilizada pelo Censo 2010. Abstract In light of the forms of access to housing for lowincome population in Brazil, this paper analyzes, specifically, the living conditions of slum dwellers using available census data. It evaluates the meaning of living in a slum in Brazil during the first decade of the 21st century according to some key issues: was there an increase in the number of slum dwellers in Brazil? Where was this increase most significant? Was this increase produced by new slums or by the increase in slums’ population density? What are the characteristics of slum households? Was there any improvement in infrastructure-related indicators? The paper is also an unprecedented effort to analyze the 2010 Census "Territorial Reading", a single database for slum households. Palavras-chave: favelas; assentamentos precários; habitação popular; pobreza urbana; censo demográfico. Keywords: squatter settlements, shanty towns, popular housing, urban poverty, demographic census Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3504 Book 35.indb 75 06/03/2016 17:30:29 Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano Pensando nas formas de acesso à mo- a realidade das favelas cariocas: o Documen- radia da população de baixa renda no Brasil, to Censitário intitulado “As favelas do Distri- este artigo pretende analisar, especificamen- to Federal” (IBGE, 1953). Nesse momento, no te, as condições de moradia da população entanto, os levantamentos quantitativos eram favelada, procurando, a partir dos dados cen- muito desiguais do ponto de vista geográfico. sitários disponíveis, identificar o que significa Nas publicações para São Paulo, por exemplo, morar numa favela no Brasil na primeira dé- apenas em 1980 dados específicos sobre fave- cada do século XXI. O trabalho insere-se nu- las apareceram. ma linha de estudos que, ao reconhecer o que Num primeiro momento, a conceituação vem sendo chamado de “heterogeneidade de favelas era dada por um grupo de moradias da pobreza urbana”, destaca a importância que tivessem pelo menos duas das característi- da análise e entendimento das característi- cas a seguir: cas demográficas e também físico-territoriais dessa pobreza urbana. Historicamente, o acesso à moradia para a população de baixa renda no Brasil se deu, ● proporções mínimas – agrupamentos pre- diais ou residenciais formados com número geralmente superior a cinquenta; ● tipo de habitação – predominância de ca- em geral, de forma precária e a partir de três sebres ou barracões de aspecto rústico, cons- tipos básicos de moradia: os cortiços, as fave- truídos principalmente com folha de flandres, las e os loteamentos periféricos, com moradia chapas zincadas ou materiais similares; própria e autoconstrução. Falar de favela é fa- ● condição jurídica da ocupação – construções lar das cidades grandes e médias no Brasil no sem licenciamento e sem fiscalização, em terre- final do século XX e início do século XXI. Em- nos de terceiros ou de propriedade desconhecida; bora tenha nascido como uma marca da cidade ● melhoramentos públicos – ausência, no to- do Rio de Janeiro, já no início do século XX, do ou em parte, de rede sanitária, luz, telefone nas últimas décadas do século, as favelas se e água encanada; fizeram presentes na maior parte das grandes ● urbanização – área não urbanizada, com cidades brasileiras e, desde 2000, também nas falta de arruamento, numeração ou emplaca- cidades médias. mento. (Guimarães, 2000, p. 353) Até meados do século passado, as fave- A partir do Censo de 1991, o IBGE pas- las eram um fenômeno quase que exclusivo da sou a adotar o conceito de aglomerado subnor- cidade do Rio de Janeiro. Assim, o primeiro le- mal.1 O conceito, bastante genérico, buscava abarcar a diversidade dos assentamentos irregulares existentes no país. Aglomerado subnormal abarca favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros. Foi nesse Censo Demográfico que os dados relativos às favelas foram levantados de forma homogênea por todo o país. O último censo nacional, de 2010, foi o que vantamento sobre favelas foi realizado apenas em 1948, e somente no Rio de Janeiro, capital federal. Em 1950, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) decidiu, pela primeira vez, incluir a favela na contagem de população, tendo como estudo de caso específico o Distrito Federal. Em 1953, o próprio IBGE publica o primeiro documento de estudo sobre 76 Book 35.indb 76 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 06/03/2016 17:30:29 Favelas no Brasil e em São Paulo trouxe a maior quantidade de avanços em re- inovou também ao criar uma nova categoria de lação à identificação e levantamento de dados levantamento chamada de “Leitura Territorial”, dos aglomerados subnormais, a partir de uma levantamento bastante completo das caracte- pesquisa morfológica específica, com a iden- rísticas do entorno imediato dos domicílios. tificação georeferenciada e visita de campo A questão das favelas assume hoje uma preparatória nos aglomerados. Em função da dimensão histórica sem precedentes na história antiga sub-enumeração e do avanço de 2010, a do Brasil. Dados do Censo de 2010 mostram quantificação das favelas pelo Censo 2010 aca- que o número de brasileiros vivendo nessas bou sendo muito mais confiável, gerando um condições passou de 6,5 milhões no ano 2000 grande crescimento numérico de favelas, em para 11,4 milhões em 2010, distribuídos em especial na região Norte do país. 6.329 aglomerados subnormais situados em De acordo com o Manual de Delimitação dos Setores, o Censo 2010 classifica como concentrados em 20 grandes cidades. aglomerado subnormal “cada conjunto consti- Não há ainda, em 2015, dados oficiais tuído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais que indiquem que o número de favelas tenha carentes, em sua maioria, de serviços públicos aumentado ou diminuído nos últimos anos. essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até Para o município de São Paulo, o último levan- período recente, terreno de propriedade alheia tamento foi o do Censo de 2010, que contou (pública ou particular) e estando dispostas, em 1.643 comunidades. Urbanistas e sociólogos geral, de forma desordenada e densa. A identi- concordam em dizer que o número deve ter ficação atende aos seguintes critérios: aumentado. Reportagem do jornal Folha de a) Ocupação ilegal da terra, ou seja, construção em terrenos de propriedade alheia (pública ou particular) no momento atual ou em período recente (obtenção do título de propriedade do terreno há dez anos ou menos); b) Possuírem urbanização fora dos padrões vigentes (refletido por vias de circulação estreitas e de alinhamento irregular, lotes de tamanhos e formas desiguais e construções não regularizadas por órgãos públicos) ou precariedade na oferta de serviços públicos essenciais (abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta de lixo e fornecimento de energia elétrica). (IBGE, 2011) Além dos avanços relativos às enumeração e características específicas dos domicílios favelados, o Censo Demográfico de 2010 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 Book 35.indb 77 323 municípios; 88% desses domicílios estão S.Paulo (2015b), de 25 de agosto de 2015, mostra terrenos desocupados em maio de 2014, totalmente invadidos por unidades de moradia em agosto de 2015, na zona leste do município. Na Mooca, em menos de um mês, um terreno vazio, entre as pistas da Radial Leste, foi ocupado por cerca de 50 famílias. Na avenida Tiquatira, um terreno da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), vazio em meados de 2014, tem hoje 2.500 casas de alvenaria, com mercadinho, lan house e uma igreja, ocupando uma área de 47 mil m2, a poucos metros da marginal do Tietê. Além disso, segue o processo de adensamento das favelas existentes. Em São Paulo, temos também um outro fenômeno recente para o qual ainda existe classificação: a construção de moradias irregulares dentro do 77 06/03/2016 17:30:29 Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano perímetro de conjuntos habitacionais consoli- deu esse aumento: a partir do surgimento de dados, como é o caso do Cingapura Barão de novas favelas ou no aumento das favelas exis- Antonina, junto à marginal Pinheiros, onde o tentes? Quais as características dos domicílios terreno entre os edifícios existentes foi dividido favelados? Houve melhora nos indicadores re- entre 23 famílias, das quais sete já construíram lacionados à infraestrutura? suas moradias (Folha de S.Paulo, 2015a, 24 de julho de 2015). Em 2010, aproximadamente 6% da população vivia em domicílios localizados em A crise econômica, o preço dos aluguéis, aglomerados subnormais. O dado mostra a a falta de oferta de moradias para a população importância, para programas habitacionais de baixa renda são os principais motivos para o abrangentes, do estudo e entendimento das crescimento sistemático das favelas, seja com condições de moradia e das características es- novas ocupações novas, seja a partir da vertica- pecíficas dos domicílios favelados. lização e adensamentos crescentes. A partir da utilização de dados censitá- Por outro lado, a realidade nas favelas rios de 2000 e 2010, pretende-se caracterizar brasileiras tem mudado muito nos últimos 20 a dinâmica das áreas de favela e da população anos. Além de programas de melhorias urba- favelada na década nas diferentes regiões bra- nísticas e benfeitorias, com grandes obras de sileiras. Como estudo de caso específico será saneamento, de reurbanização ou de constru- analisada a realidade dos espaços favelados da ção de novas unidades habitacionais, alguns metrópole e do município de São Paulo. programas de regularização fundiária, sobretu- Este artigo representa também um es- do após a vigência do Estatuto da Cidade, em forço inédito de análise da base de dados 2001, têm mudado a forma de acesso à mora- relativa à Leitura Territorial dos domicílios dia numa favela. favelados, procurando contribuir na análise Após uma década com vários programas de uma base de dados primários ainda não locais de urbanização de favela, mas, principal- explorada e também no entendimento mais mente, após a implementação do PAC – Pro- abrangente da caracterização dos domicílios grama de Aceleração do Crescimento, 2007, e favelados brasileiros. de seu desdobramento, o PAC-Urbanização de Entende-se que uma análise cuidado- Assentamentos Precários, é importante enten- sa dessas informações inovadoras pode servir der qual o impacto efetivo que esses programas como instrumental para o aprimoramento de tiveram na configuração dos espaços favelados políticas e programas de urbanização de fave- no Brasil, se houve ou não melhoria efetiva na las no Brasil, uma vez que dados antes apenas condição de moradia , e consequentemente na disponíveis a partir de levantamentos de cam- condição de vida, da população favelada ao po específicos estão agora disponíveis para longo da primeira década no século XXI. todos os aglomerados subnormais recenseados A partir dessa preocupação, este trabalho em 2010. Essas análises permitem um esboço procura responder a algumas questões: houve do que seria possível – inclusive custos – em aumento da população favelada no Brasil? On- projetos de urbanização de favelas. Os dados de esse aumento foi mais expressivo? Como se relativos ao relevo, acesso e adensamento dão 78 Book 35.indb 78 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 06/03/2016 17:30:29 Favelas no Brasil e em São Paulo estimativa, em nível nacional e regional, da Assim como os aglomerados, os domicí- quantidade de unidades domiciliares a remover lios e a população favelada também vêm au- e reconstruir e da possibilidade de urbanização mentando desde 1980, a taxas maiores que a (por exemplo, assentamentos não urbanizá- população total. Entre 1980 e 1991, os domi- veis, como situados em áreas de declividade cílios totais para o país cresceram a 3,08% ao acentuada, aterros , solos contaminados, etc.). ano, enquanto os favelados cresceram a 8,18% E, por último, procurará contribuir para o anuais. No período seguinte – entre 1991 e entendimento sobre o que, no Brasil, significa 2000 – os domicílios totais cresceram a 0,88% morar em favela atualmente. anuais, enquanto os favelados tiveram uma taxa de incremento anual de 4,18%. Entre 2000 e 2010, a taxa de crescimento anual do parque domiciliar brasileiro foi 0,57%, enquanto a dos Favelas no Brasil, primeiras análises domicílios favelados atingiu 6,93%. A população favelada em 1980 alcançava 2,25 milhões de pessoas; a de 1991, mais de 5 milhões; a do As favelas estão presentes em todas as regiões ano 2000, cerca de 7,2 milhões; e, a de 2010, brasileiras. Sua distribuição varia pelo território para um total de 3.224.529 domicílios em aglo- brasileiro. Em 1991, os aglomerados favelados, merados subnormais, era estimada em mais de segundo o Censo Demográfico, eram 3.187; 14 milhões. Se a população favelada represen- no ano 2000, atingiram 3.906 assentamentos tava 1,62% da total em 1980, esse percentual e, em 2010, o Censo Demográfico contabilizou sobe para 2,76% em 1991, para 3,04% no ano 6.329 aglomerados. 2000 e alcança 5,61% em 2010. Tabela 1 – Favelas, por grande região Região 1991 2000 2010 59 185 467 Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Brasil 517 674 1.349 2.225 2.621 3.954 327 392 489 59 34 106 3.187 3.906 6.329 Fonte: Censos de 1991, 2000 e 2010. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 Book 35.indb 79 79 06/03/2016 17:30:29 Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano Tabela 2 – Domicílios totais e favelados, por grande região 1991 2000 2010 1980 1991 2000 2010 Norte Região 1.219.496 1980 2.376.607 3.353.764 3.988.832 12.721 97.760 178.326 463.444 Nordeste 8.036.803 10.920.830 13.911.413 14.957.608 69.974 286.130 306.395 926.370 Sudeste 13.761.346 18.839.621 24.699.909 25.227.877 357.330 675.846 1.038.608 1.607.375 Sul 4.826.030 6.598.962 85.092.284 8.904.120 30.077 73.325 110.411 170.054 Centro-Oeste 1.812.176 2.657.621 3.791.248 4.349.562 10.493 11.257 16.808 57.286 29.657.831 41.395.632 54.267.618 57.427.999 480.595 1.141.324 1.650.548 3.224.520 Brasil Fonte: Censos de 1980, 1991, 2000 e 2010. Tabela 3 – Taxa geométrica de crescimento anual dos domicílios totais e favelados, por grande região, em porcentagem Domicílios totais Domicílios favelados Região 1980-1991 1991-2000 2000-2010 1980-1991 1991-2000 2000-2010 Norte 6,25 3,90 1,75 20,37 6,91 10,02 Nordeste 2,83 2,73 0,73 13,66 0,76 11,70 Sudeste 2,90 3,06 0,21 5,96 4,89 4,46 Sul 2,89 2,87 0,45 8,44 4,65 4,41 Centro-Oeste 3,54 4,03 1,38 0,64 4,55 3,05 Brasil 3,08 3,05 0,57 8,18 4,18 6,93 Fonte: Censos de 1980, 1991, 2000 e 2010 (IBGE). Tabela 4 – Alguns aspectos da infraestrutura domiciliar dos domicílios favelados, por grande região, 2010 Algumas características dos domicílios Forma de abastecimento de água – % Tipo de esgotamento sanitário – % Destino do lixo – % Grandes Regiões Existência de energia elétrica – % Coletado Rede geral de distribuição Outra Rede geral de esgoto ou pluvial Fossa séptica Outra Não tinham banheiro ou sanitário Diretamente por serviço de limpeza Em caçamba de serviço de limpeza Outra De companhia distribuidora e com medidor de uso exclusivo do domicílio Outra Não existe energia elétrica Norte 59,91 40,09 18,42 26,96 52,20 2,41 84,85 8,79 6,36 68,09 31,34 0,57 Nordeste 89,81 10,19 49,07 13,57 35,64 1,73 72,63 19,87 7,50 82,99 16,60 0,41 Sudeste 94,59 5,41 72,00 4,15 23,63 0,22 74,21 23,21 2,58 69,21 30,63 0,15 Sul 96,62 3,38 63,36 13,14 22,37 1,13 92,80 5,88 1,31 63,24 36,43 0,33 Centro-Oeste 94,46 5,54 19,79 23,00 56,91 0,30 67,02 22,44 10,54 58,58 41,17 0,24 Brasil 88,34 11,66 56,33 10, 94 31,71 1,02 76,14 19,25 4,61 72,51 27,20 0,30 Fonte: Censo de 2010. 80 Book 35.indb 80 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 06/03/2016 17:30:29 Favelas no Brasil e em São Paulo A Tabela 4 mostra os principais resultados dos aspectos de infraestrutura nos domicí- lagos ou direto no mar. lios favelados, por região brasileira, em 2010. Um indicador que apresenta melhora A situação dos domicílios favelados no Brasil significativa, mostrando resultados dos esfor- como um todo em relação ao abastecimento ços municipais, é o relativo à coleta de lixo. de água não é alarmante, já que apenas 12% Para o Brasil como um todo, existe coleta do- deles não são abastecidos por rede publica. Na miciliar em 76,4% dos domicílios, oscilando região Norte, entretanto, esse indicador é preo- entre 67% no Centro Oeste e 85% no Norte. cupante, já que 40% das unidades domiciliares Para quem conhece e visita as favelas com não estão ligadas à rede pública de abasteci- frequência, esse dado espanta: o que mais mento de água, e 38% se servem de poços e/ chama a atenção nesses assentamentos, em ou nascentes. Para o Brasil como um todo a geral, é a existência de lixo nas ruas e espaços proporção de domicílios em aglomerados sub- livres. Vale a pena lembrar que a afirmação normais que utilizam poços ou nascentes al- censitária de que existe coleta domiciliar não cança quase 10% das unidades habitacionais. indica sua frequência. Além disso, em 20,18% Na região Nordeste, a situação ainda se revela dos domicílios a coleta dá-se por caçambas, crítica, com quase 8% das casas utilizando po- ou seja, o lixo deve ser levado até um recipien- ço ou nascente. te para que a coleta possa acontecer. Coleta Em relação ao destino dos dejetos, a em caçamba, aliada a uma frequência irregu- situação mostra-se ainda mais preocupante: lar de coleta e a altas densidades demográfi- apenas 56% dos domicílios nas favelas bra- cas resultam sempre em acúmulo de detritos sileiras estavam ligados à rede de esgota- sólidos, possibilitando a presença de baratas, mento sanitário em 2010. Ou seja, 352 mil roedores e outros vetores indesejáveis. Mes- unidades declararam-se conectadas a fossas mo no Sudeste, a coleta de lixo em caçambas sépticas, o que em geral costuma dar proble- atinge 24% dos domicílios. mas de manutenção e, consequentemente, de No Brasil como um todo, a densidade de- contaminação do lençol freático, 513 mil uti- mográfica nos assentamentos subnormais atin- lizam fossa rudimentar, 200 mil jogam seus giu 67,5 hab/ha, e no Sudeste essa média é de dejetos diretamente às valas, rios, lagos. Os 99 hab/ha. A média mistura locais com assen- valores são particularmente altos no Norte e tamentos densíssimos, onde a densidade média no Nordeste, onde apenas 18,42% e 49,07% municipal atinge 326 hab/ha como em Itapevi, respectivamente apresentavam ligação à re- na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), de pública de esgoto. Na região Sul só 63% 286 hab/ha em Osasco (RMSP) e 297 hab/ha dos domicílios tinha ligação à rede pública, em São Paulo. Esses valores médios elevados enquanto 20% tinham fossa e 15% jogavam indicam favelas com densidades altíssimas, on- seus efluentes em valas, rios, lagos ou mar. de a coleta de lixo, para ser eficaz, deveria ser Mesmo no Sudeste, onde a situação sanitária diária ou mesmo mais de uma vez ao dia. apresenta indicadores melhores, 4,24% das O aspecto infraestrutural com maior su- casas têm fossa rudimentar, 6,65% jogam cesso nas favelas brasileiras refere-se à energia Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 Book 35.indb 81 seus dejetos em valas e 11% o fazem em rios, 81 06/03/2016 17:30:29 Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano elétrica: 96,16% dos domicílios favelados a unidades em terrenos planos e/ou declives mo- recebem, 72,51% deles com medidor de uso derados. Mas um total de 668 mil moradias em exclusivo. As favelas do Nordeste são as que terrenos de forte declividade fornece um indi- apresentam maior proporção de medidores ex- cador importante para projetos de urbanização: clusivos, com 83% das suas unidades de mora- são 230 mil no Nordeste e 398 mil no Sudeste dia os utilizando. No Sudeste, o uso de medidor que poderão necessitar de remoção ou traba- exclusivo restringia-se a 69% dos domicílios, lhos de contenção de encostas. no Sul a 63% e no Centro Oeste a 58%. Enfatizando outros aspectos do relevo, a O Censo de 2010 permitiu, pela primeira Tabela 5 fornece informações importantes so- vez, uma melhor leitura territorial dos assen- bre a localização dos domicílios: 19,20% dos tamentos subnormais, através de verificação domicílios favelados brasileiros situam-se em da topografia do local, declividade, densidade encosta; 17,63% em colinas suaves; e 40,20% demográfica, ocupação, existência de espaça- em terrenos planos. Tal como informa a Tabela mento entre domicílios, de arruamento, acessi- 6, é no Nordeste e no Sudeste que a locali- bilidade e número de pavimentos de cada uni- zação em encostas aparece mais fortemente. dade de moradia. Embora a proporção seja pequena, de apenas Verifica-se que, para o Brasil como um 0,35%, o número absoluto de domicílios em todo, 21% das favelas têm seus domicílios em terrenos contaminados não é desprezível: são local de declividade acentuada. No Nordeste e mais de 11 mil para o Brasil, sendo mais de o Sudeste, esses domicílios em aclive/declive 4 mil só no Sudeste. Em faixas de domínio de forte são ¼ do total. Em princípio, podem ser rodovias, ferrovias, gasodutos e oleodutos, e unidades sujeitas a deslizamento. Nas regiões transmissão de energia, localizam-se 113.921 Norte e Centro-Oeste, o percentual de moradias unidades domiciliares, que terão seguramente em declives acentuados é baixo, dominando as que enfrentar algum tipo de remoção. Cerca Tabela 5 – Relevo: declividade dos domicílios em aglomerados subnormais, por grande região, 2010 Domicílios em aglomerados subnormais com declividades Grandes Regiões Plano Aclive/declive moderado Aclive/declive acentuado Norte 83,12 14,69 2,19 Nordeste 51,76 23,48 24,76 Sudeste 44,00 31,26 24,74 Sul 54,51 28,09 17,40 Centro-Oeste 48,59 47,50 3,91 Brasil 52,49 26,76 20,75 Fonte: Censo Demográfico de 2010. Leitura territorial. 82 Book 35.indb 82 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 06/03/2016 17:30:29 Favelas no Brasil e em São Paulo Tabela 6 – Localização dos domicílios em aglomerados subnormais, por grande região, 2010 1,10 0,07 Sudeste 0,26 1,68 1,45 Sul 1,97 1,42 Centro-Oeste 0,43 Brasil 0,35 Unidade de conservação 1,47 Manguezal 0,36 Praia/ dunas Nordeste Sobre rios, córregos, lagos ou mar (palafitas) 0,24 Margem de córregos, rios ou lagos/lagoas Faixa de domínio de linhas de transmissão de alta tensão – Outras Faixa de domínio de gasodutos e oleodutos 0,05 Plano Faixa de domínio de ferrovia 0,57 Norte Colina suave Faixa de domínio de rodovias – Grandes Regiões Encosta Aterros sanitários, lixões e outras áreas contaminadas Domicílios em aglomerados sub normais – % 0,53 2,63 76,15 4,29 10,72 4,82 – – – 0,88 23,91 18,42 38,77 2,35 8,81 0,14 2,34 1,10 0,28 0,22 1,04 22,30 22,02 30,53 2,97 14,54 0,90 0,24 0,59 1,24 1,40 – 0,76 20,03 16,25 35,38 7,29 13,54 – 0,28 1,40 0,29 0,85 – – 0,30 7,38 58,27 0,74 26,61 – – – 1,22 1,43 1,12 0,13 0,85 19,20 17,63 40,20 3,17 12,51 1,18 0,81 0,69 0,74 4,19 Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial. de 27,5 mil estão sob linhas de alta tensão, A densidade média dos assentamen- correndo forte perigo. No Sudeste, mais de tos subnormais é relativamente alta, quando 1% dos domicílios encontram-se nessa situa- comparada às densidades demográficas mé- ção, assim como 1,45% em faixas de domínio dias dos municípios como um todo: 67,5 hab/ de ferrovias e 1,68% em faixas de domínio de ha. Esses assentamentos ocupam uma área de rodovias. São espaços onde não deveria haver 169.170,3 hectares, superfície maior que a do qualquer tipo de uso, especialmente residen- município de São Paulo, com 150.900 hecta- cial, e que são aproveitados para ocupações. res e densidade média de quase 75 hab/ha em Mais de 400 mil domicílios favelados locali- 2010. A densidade média das favelas no Sudes- zam-se em margens de rios ou lagos, e 38 mil te ultrapassa a média paulistana. Lembrando são palafitas (1,18% do total). Como seria es- que 64,57% dos domicílios favelados no Brasil perado, as palafitas abundam no Norte (59% têm um só pavimento, esse indicador aponta a do total de domicílios em palafitas estão na pouca área livre existente nesses assentamen- região Norte). No Sudeste, quase 20 mil casas tos e a decorrente dificuldade de implementa- localizam-se em unidades de conservação. ção de projetos de urbanização. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 Book 35.indb 83 83 06/03/2016 17:30:29 Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano Tabela 7 – Domicílios, população, área e densidades nos aglomerados subnormais, por grande região, 2010 Setores censitários em aglomerados subnormais Grandes Regiões Número de domicílios particulares ocupados Total População residente em domicílios particulares Área (ha) Densidade demográfica (hab/ha) Densidade de domicílios particulares ocupados (dom/ha) Norte 1.915 463.444 1.849.604 46.513,8 39,8 10,0 Nordeste 4.005 926.370 3.198.061 45.198,8 70,8 20,5 Sudeste 8.804 1.607.375 5.580.869 56.290,3 99,1 28,6 871 170.054 590.500 15.038,2 39,3 11,3 Sul 273 57.286 206.610 6.129,2 33,7 9,3 15.868 3.224.529 11.425.644 169.170,3 67,5 19,1 Centro-Oeste Brasil Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial. Tabela 8 – Pavimentos dos domicílios em aglomerados subnormais, por grande região, 2010 Domicílios por pavimentos – % Grandes Regiões Um pavimento Dois pavimentos Três pavimentos ou mais Norte 97,04 2,77 0,19 Nordeste 70,87 25,08 4,04 Sudeste 47,38 44,52 8,10 Sul 92,29 7,71 – 100,00 – – 64,57 30,21 Centro-Oeste Brasil 5,23 Fonte: Censo de 2010. Leitura Territorial. Tabela 9 – Ocupação do setor censitário pelos domicílios favelados Domicílios ocupados em setores censitários de aglomerados subnormais – % Grandes Regiões Em todo setor (95% ou mais) Na maior parte Em metade do Na menor parte do setor setor do setor (entre 60 e 94,99%) (entre 40 e 59,99%) (entre 5 e 39,99%) Em nenhuma parte do setor (menos de 5%) 18,25 58,11 10,46 11,17 2,01 Nordeste 9,93 20,24 20,44 41,71 7,69 Sudeste 6,49 21,30 16,53 32,56 23,12 Sul 9,92 25,73 21,91 29,86 12,58 13,02 62,28 11,38 9,95 3,37 9,46 27,25 16,98 31,57 14,74 Norte Centro-Oeste Brasil Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial. 84 Book 35.indb 84 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 06/03/2016 17:30:29 Favelas no Brasil e em São Paulo Embora a maioria das unidades residen- intensamente o espaço disponível, com 18% ciais faveladas ainda seja horizontal, a pro- dos domicílios em setores totalmente ocupa- porção de casas com dois pavimentos é alta: dos e 58% das unidades em setores muito 30,21% das unidades brasileiras. Na região ocupados (entre 60% e 95% de ocupação). Sudeste, essa porcentagem chega a 44,52%, e E, embora a região Sudeste apresente a maior 8,10% têm 3 e mais pavimentos. No Nordeste densidade demográfica, é a que mostra a também, a proporção de domicílios com mais maior proporção de domicílios em setores pou- de um pavimento alcançou 29,12%. Já em lo- co ocupados (com 5% de índice de ocupação). cais com mais área disponível, como no Cen- Assim, no Sudeste, há mais “espaço de respi- tro-Oeste e no Norte, a quase totalidade é de ro”, que permitiria realocação de moradias, se unidades com apenas um pavimento. preciso, assim como no Sul. No Nordeste, isso Observando a ocupação do solo do setor censitário pelo parque domiciliar, para o país também parece possível, mas a ocupação tem menos superfície livre disponível. como um todo ainda há espaço vago nos seto- A Tabela 10 complementa as indicações res censitários dos aglomerados favelados: em acima, evidenciando os espaçamentos entre 32%, a ocupação do solo do setor censitário os domicílios já existentes, sem contar setores situa-se entre 5% e 40%. O índice de ocupa- mais vazios do assentamento. Para o Brasil ção é menor no Centro Oeste, atingindo valor como um todo, em 73% dos domicílios fave- mais alto nas favelas do Nordeste, onde 20% lados não há espaçamento nenhum, ou seja, a dos setores mostravam ocupação entre 60% única possibilidade de expansão seria a verti- e 95%, 20% acusavam índice de ocupação de cal. Só existe espaçamento grande em menos metade do setor e 41% dos domicílios ocupa- de 25 mil casas, 0,76% do total de unidades vam setores com 5% a 40% de ocupação. faveladas. No Nordeste, a proporção de uni- As favelas da região Norte também utilizam dades de moradia sem nenhum espaçamento Tabela 10 – Existência de espaçamento entre unidades habitacionais, aglomerados subnormais, grandes regiões, 2010 Domicílios ocupados em setores censitários de aglomerados sub normais Grandes Regiões Sem espaçamento Espaçamento médio Espaçamento grande Total Norte 298.247 158.721 6.476 463.444 Nordeste 761.193 157.905 7.272 926.370 1.219.434 379.442 8.499 1.607.375 58.778 109.371 1.905 170.054 4.906 52.035 345 57.286 2.342.558 857.474 24.497 3.224.529 Sudeste Sul Centro-Oeste Brasil Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 Book 35.indb 85 85 06/03/2016 17:30:29 Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano atingiu o máximo, com mais de 82% das uni- premente em termos de arruamento é no Su- dades habitacionais sem espaço algum entre deste, onde apenas 14% dos domicílios estão elas. No Sudeste, em 23% dos domicílios há em setores completamente arruados. E 11% em espaçamento médio, o que significa que dá setores sem rua nenhuma. Percebe-se que na para abrir passagens e também garantir ilumi- região Sudeste existe mais de 600 mil domicí- nação e ventilação. lios sem acesso, o que vai se refletir na informa- As três últimas tabelas da Leitura Terri- ção seguinte, nas Tabelas 12 e 13, onde se vê torial procuram mostrar a existência de arrua- que no Sudeste só 40% dos domicílios são ser- mento e a acessibilidade possível nas favelas vidos por rua, enquanto em 53% deles o acesso brasileiras. A Tabela 11 mostra que apenas 21% se dá por beco ou travessa. Isso se reflete nas dos domicílios em aglomerados subnormais si- 611.873 unidades no Sudeste só acessíveis a tuam-se em setores censitários com arruamento pé ou por bicicleta e nas 24 mil que não são completo; 28,9% localizam-se em setores com acessíveis por caminho ou trilha nenhuma. No arruamento na maior parte do setor (entre 60 Nordeste, a presença de escadarias é marcante, a 95% do setor). Quase 7,5% ficam em seto- com 9% dos domicílios acessíveis por escada, e, res sem nenhum arruamento. A situação mais portanto, apenas a pé. Tabela 11 – Existência de arruamento nos setores censitários subnormais, regiões brasileiras, 2010 Domicílios particulares em setores censitários de aglomerados subnormais com arruamento – % Grandes Regiões Em todo setor (95% ou mais) Na maior parte Em metade Na menor parte do do setor do setor setor (entre 60 e 94,99%) (entre 40 e 59,99%) (entre 5 e 39,99%) Em nenhuma parte do setor (menos de 5%) Norte 51,72 32,50 6,51 6,73 2,53 Nordeste 15,25 23,45 22,74 33,45 5,11 Sudeste 14,04 28,00 19,77 27,47 10,73 Sul 25,38 34,95 16,96 17,44 5,27 Centro-Oeste 36,97 55,35 3,80 2,51 1,37 Brasil 20,81 28,19 18,29 25,23 7,48 Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial. 86 Book 35.indb 86 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 06/03/2016 17:30:29 Favelas no Brasil e em São Paulo Tabela 12 – Domicílios em aglomerados subnormais por tipo de via de circulação, regiões brasileiras, 2010 Domicílios em aglomerados sub normais – % Grandes Regiões Rua Beco/ Travessa Escadaria Rampa Passarela/ pinguela Caminho/ trilha Não existe via de circulação interna Norte 81,44 11,70 – 0,06 5,46 1,16 0,17 Nordeste 50,10 36,20 8,78 1,07 0,14 3,32 0,37 Sudeste 40,09 53,09 3,43 0,12 0,25 1,52 1,49 Sul 76,04 21,03 0,13 0,17 0,12 2,12 0,39 Centro-Oeste 96,49 1,96 – – – 1,55 – Brasil 51,81 39,69 4,24 0,39 0,96 2,02 0,89 Fonte: Censo Demográfico de 2010. Leitura territorial. Tabela 13 – Acessibilidade possível para domicílios em aglomerados subnormais, grandes regiões, 2010 Domicílios em aglomerados sub normais – % Grandes Regiões A pé / bicicleta Não existem vias internas Caminhão Carro Motocicleta Norte 34,19 46,58 11,38 7,68 0,17 Nordeste 19,79 30,28 19,12 30,44 0,37 Sudeste 17,96 22,16 20,33 38,07 1,49 Sul 30,46 49,04 9,90 10,20 0,39 Centro-Oeste 18,48 76,18 3,04 2,31 – Brasil 21,49 30,38 17,84 29,40 0,89 Fonte: Censo 2010. Leitura territorial. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 Book 35.indb 87 87 06/03/2016 17:30:29 Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano seguinte, entre 2000 e 2010, a situação se in- A Região Metropolitana de São Paulo verte, mostrando que, apesar do crescimento da proporção de casas faveladas na periferia, a taxa de crescimento na capital foi enorme: A Região Metropolitana de São Paulo apre- 24% do crescimento absoluto das casas no senta a maior concentração de favelas do Bra- Município de São Paulo foi devido ao cresci- sil, com 1.703 aglomerados (27% do total de mento das unidades em favela. Nos municí- favelas brasileiras) e população favelada de pios periféricos, o crescimento de domicílios é mais de 2 milhões de pessoas (19% da popu- integrado pelo crescimento de 52.503 unida- lação favelada brasileira). Apenas as cidades des faveladas, o que representa 11% do cres- de São Paulo, Guarulhos, Osasco e Diadema cimento do parque domiciliar dando-se em tinham, no ano 2000, 938 favelas – cerca de assentamentos favelados. Embora a faveliza- ¼ das favelas do país. Em 2010, esses quatro ção esteja atingindo os municípios da periferia municípios contavam com 1.348 aglomera- metropolitana, na última década a concen- dos, 21% do total de aglomerados no Brasil. tração relativa aumentou na capital. Entre os Conforme mostra a Tabela 14, a proporção 39 municípios metropolitanos, incluindo São de domicílios favelados nos municípios peri- Paulo, 24 apresentam favelas no seu tecido féricos vem aumentando desde 1991. Assim, urbano. Em alguns municípios da metrópole, essa proporção era de 5,71% em 1991, alcan- o percentual de domicílios favelados é grande, ça 8,4% em 2000 e chega a 9,79% em 2010. superior a 10%: Taboão da Serra (11,02%), A taxa de crescimento das casas faveladas São Paulo (11,42%), Osasco (12,06%), Santo nos municípios periféricos foi bem maior que André (12,67%), Embu (13,14%), Guarulhos a dos domicílios favelados na capital entre (15,98%), São Bernardo (20,04%), Mauá 1991 e 2000 (quase o dobro). Já na década (20,24%) e Diadema (20,97%). Tabela 14 – Região Metropolitana de São Paulo. Taxas geométricas de crescimento domiciliar totais e favelados, 1991 a 2010, em porcentagem e proporção de domicílios favelados Proporção de favelados – % Taxas com totais – % Taxas com favelados – % Unidade Geográfica 1991 2000 2010 1991-2000 2000-2010 1991-2000 2000-2010 Município de São Paulo 5,58 7,41 9,95 1,62 1,64 4,86 4,68 Outros municípios 5,95 9,23 9,58 2,88 2,11 8,02 2,49 Região Metropolitana 5,72 8,14 9,79 2,11 1,83 6,18 3,74 Fonte: Censos Demográficos de 1991, 200 e 2010. 88 Book 35.indb 88 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 06/03/2016 17:30:29 Favelas no Brasil e em São Paulo Tabela 15 – RMSP – Densidade demográfica e de domicílios 2010 Setores censitários em aglomerados sub normais Total Nº de domicílios particulares ocupados População residente em domicílios particulares RMSP 3.246 596.479 MSP 1.998 outros 1.248 RMSP Área (ha) Densidade demográfica (hab/ha) Densidade de domicílios particulares ocupados (dom/ha) 2.162.368 8.834,8 244,8 67,5 355.756 1.280.400 4.304,6 297,4 82,6 240.723 881.968 4.530 195,0 53,1 Fonte: Censo 2010. Leitura territorial. Tabela 16 – RMSP: domicílios em aglomerados subnormais, por número de pavimentos, 2010 Domicílios em aglomerados subnormais RMSP Um pavimento Dois pavimentos Três pavimentos ou mais RMSP 37,71 57,97 4,32 MSP 30,48 65,28 4,24 outros 48,40 47,17 4,44 Fonte: Censo Demográfico de 2010, leitura territorial. A densidade demográfica média nas fa- sobretudo em assentamentos favelados, onde velas da metrópole apresenta-se bastante alta, o espaçamento entre unidades, quanto existe, é com 244,8 hab/ha. Para a região Sudeste co- pequeno. Mas chama a atenção que a propor- mo um todo, ela foi de 99,1 hab/ha em 2010. ção de unidades com dois e mais pavimentos Alguns municípios da metrópole têm densida- na metrópole seja superior às construções ho- des especialmente altas, como Diadema (458,9 rizontais: 62,3% têm dois e mais pavimentos, hab/ha), Cotia (355,8 hab/ha), Caieiras (340.5 enquanto 37,7% são horizontais. No município hab/ha), Itapevi (326,8 hab/ha). O município de central, isso é ainda mais evidente: 69,5% das São Paulo também tem densidade demográfica casas têm mais de um pavimento. Nos outros elevada nas favelas, com 297,4 hab/ha. A den- municípios metropolitanos, essa porcentagem sidade para o município como um todo não al- alcança 51,6% dos domicílios. A mudança dos cança 80 habitantes por hectare. materiais de construção, com a introdução de As altas densidades domiciliares são lajes de concreto e alvenaria de bloco, aliada à reflexo, em geral, da verticalização das unida- falta de espaços vagos mesmo nas favelas, re- des, embora, é claro, podem-se verificar altas sultou num tecido verticalizado, distinto das fa- densidades demográficas sem verticalização, velas dos anos 1960, horizontais e de madeira. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 Book 35.indb 89 89 06/03/2016 17:30:29 Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano Tabela 17 – RMSP: presença de espaçamento entre domicílios favelados, 2010 Domicílios em setores censitários de aglomerados subnormais – % RMSP Sem espaçamento Espaçamento médio Espaçamento grande RMSP 85,21 14,61 0,18 MSP 84,26 15,56 0,19 Outros municípios 86,63 13,20 0,17 Fonte: Censo Demográfico de 2010, leitura territorial. Tabela 18 – RMSP: localização dos domicílios nos aglomerados subnormais, 2010 Colina suave Plano (1) 0,33 0,85 0,76 0,38 1,81 20,26 24,78 19,60 3,06 MSP 24,69 1,75 2,43 0,33 0,74 0,94 0,09 1,22 19,06 22,05 23,18 3,50 Outros 25,24 1,21 0,65 0,34 1,01 0,49 0,81 2,69 22,04 28,80 14,31 2,40 Unidade de conservação Outras Faixa de domínio de LT de alta tensão 1,71 Encosta Faixa de domínio de gasodutos e oleodutos 1,53 Faixa de domínio de ferrovia 24,91 Faixa de domínio de rodovias Sobre rios, córregos, lagos ou mar (palafitas) RMSP RMSP Aterros sanitários, lixões e outras áreas contaminadas Margem de córregos, rios ou lagos/lagoas Domicílios em aglomerados subnormais – % Fonte: Censo de 2010, leitura territorial. Tabela 19 – RMSP: existência e tipo de acesso, aglomerados subnormais, 2010 Domicilios em aglomerados sub normais Rua Beco/ Travessa Escadaria Rampa Passarela/ Pinguela Caminho/ trilha Não existe via de circulação interna RMSP 33,80 58,50 3,30 0,13 0,24 1,80 2,23 MSP 26,71 64,53 3,27 0,11 0,34 1,37 3,67 outros municípios 44,29 49,58 3,34 0,17 0,09 2,44 0,09 RMSP Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial. Tabela 20 – RMSP: tipo de acessibilidade ao domicílio, 2010 Domicílios em aglomerados subnormais RMSP Caminhão Carro Motocicleta A pé / bicicleta Não existem vias internas RMSP 11,65 22,15 9,13 54,84 2,23 MSP 8,16 18,56 8,50 61,11 3,67 16,82 27,45 10,06 45,58 0,09 outros municípios Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial. 90 Book 35.indb 90 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 06/03/2016 17:30:29 Favelas no Brasil e em São Paulo A falta de espaçamento entre unidades domicílios favelados só são acessíveis a pé, domiciliares é evidenciada pela Tabela 17: em situação ainda mais drástica na capital, onde 85% dos domicílios, não há nenhum espaça- isso acontece em 61% das unidades domicilia- mento entre eles. Essa proporção praticamente res. Apenas 34% das casas nos aglomerados se mantém tanto no município da capital como são acessíveis por caminhão e/ou carro, propor- nos outros municípios da metrópole. Em me- ção bem maior nos municípios da periferia, on- nos de 1% há espaçamento grande, situação de isso se dá em 44% das unidades. Em proje- equivalente à média brasileira. O tecido dos tos de urbanização, esse é um fator importante aglomerados subnormais é denso, sem espaços a ser levado em conta. vazios, com pouca área livre e pouca superfície para expansão das unidades, que acabam por ter que se verticalizar. O município de São Paulo A maior parte dos domicílios favelados localizam-se em margens de rios, córregos e la- O crescimento da população favelada no mu- gos, tanto no município de São Paulo (24,69%) nicípio de São Paulo na década de 1980 foi como nos outros municípios metropolitanos de 7,07% anuais, quase o dobro da taxa de (25,24%). São um total de 148.808 unidades crescimento populacional da população muni- de moradia em lugar removível, ao menos em cipal no mesmo período (3,66% anuais). Entre princípio. Outros 212 mil estão em encostas, su- 1991 e 2000, a população favelada continuou jeitos a deslizamentos. Quase 2.000 situam-se a crescer mais que a população como um todo: em áreas contaminadas, devendo, com certeza, 2,50% ao ano, enquanto a municipal aumentou serem realocados, sobretudo na capital. Vale a a uma taxa de apenas 0,92% anuais. E, entre pena lembrar que na metrópole paulista locali- 2000 e 2010, as taxas faveladas se mantiveram zam-se 18% dos domicílios favelados em áreas maiores que as municipais, atingindo valores contaminadas no Brasil. Em faixas de domínio superiores à da década de 1990: 3,22% ao ano, diversas, temos quase 23 mil casas faveladas, para uma população municipal com crescimen- a maior parte sob fios de alta tensão, menos to de 0,76% anuais, mais do que quatro vezes na capital que na periferia metropolitana. Per- o crescimento municipal. cebe-se também que não há muita variação no Até o ano 2000, o crescimento da popu- padrão de localização na capital e na periferia. lação paulistana era nitidamente periférico: a O arruamento nos aglomerados metro- Tabela 22 mostra as taxas de crescimento da politanos é deficiente: apenas 33,80% dos do- população por anéis,2 onde se percebe que en- micílios são servidos por ruas. Em quase 60%, tre 1991 e 2000 as taxas dos três anéis centrais o acesso só pode se dar por becos, em 3,5% como negativas, enquanto a do anel periférico por escadas ou rampas. A situação na capital se responsabilizava por praticamente todo o é mais precária: 27% dos domicílios dão para crescimento municipal. Esse panorama muda ruas e 65,5% para becos ou travessas. na primeira década do século XXI, com os anéis O arruamento deficiente leva a uma não acessibilidade: na metrópole, 55% dos Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 Book 35.indb 91 central e interior com taxas positivas e mais altas que a dos anéis exterior e periférico. 91 06/03/2016 17:30:29 Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano Tabela 21 – Município de São Paulo. População total e favelada por anel, 1991 a 2010 População favelada População total Anel 1991 1996 2000 2010 1991 1996 2000 2010 central 211 0 0 0 384.048 334.173 318.599 360.266 interior 6.156 2.920 4.557 621 686.610 609.305 583.956 648.269 74.053 6.329 94.610 80.247 1.413.723 1.319.467 1.316.367 1.426.682 exterior 230.416 27.361 220.365 343.520 3.265.900 3.194.496 3.304.779 3.414.917 periférico 398.223 463.822 611.096 850.422 3.860.378 4.378.382 4.911.845 5.403.336 MSP 711.050 749.318 932.628 1.280.400 9.610.659 9.853.823 10.435.546 11.253.470 intermediário Fonte: Censos de 1991 a 2010; Contagem de População de 1996. Tabela 22 – Município de São Paulo Proporção de favelados na população total, 1991 a 2010, por anéis População favelada Anel 1991 1996 2000 2010 central 0,05 0,05 0,00 0,00 interior 0,90 0,90 0,78 0,10 intermediário 5,24 5,24 7,19 5,62 exterior 7,06 7,06 6,67 10,06 10,32 10,32 12,44 15,74 7,40 7,40 8,94 11,38 periférico MSP Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial. Tabela 23 –- Município de São Paulo. Taxas geométricas anuais de crescimento populacionais, população total e favelada, por anéis, em porcentagem População total População favelada Anel 1991-2000 2000-2010 1991-2000 2000-2010 central -2,05 1,24 -100,00 0,00 interior -1,78 1,05 -2,70 -18,07 intermediário -0,79 0,81 2,25 -1,63 exterior 0,13 0,33 -0,40 4,54 periférico 2,71 0,96 3,97 3,36 MSP 0,92 0,76 2,50 3,22 Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial. 92 Book 35.indb 92 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 06/03/2016 17:30:30 Favelas no Brasil e em São Paulo Tabela 24 – MSP: Densidade demográfica e de domicílios, por anéis, 2010 Setores censitários em aglomerados subnormais Anel Total Número de domicílios particulares ocupados População residente em domicílios particulares Área (ha) Densidade demográfica (hab/ha) Densidade de domicílios particulares ocupados (dom/ha) Pessoa / domicílio – central – – – – – – interior 7 1.725 6.211 7 913,18 253,62 3,60 99 22.903 80.247 158,24 507,12 144,73 3,50 552 94.496 343.520 789,77 434,96 119,65 3,64 periférico 1.340 236.632 850.422 3.349,82 253,87 70,64 3,59 MSP 1.998 355.756 1.280.400 4.304,63 297,45 82,65 3,60 intermediário exterior Fonte: Censo Demográfico de 2010. Leitura Territorial. Tabela 25 – MSP: Topografia dos setores censitários nos aglomerados subnormais, por anéis, 2010 Domicílios em setores censitários de aglomerados subnormais Anéis Plano Aclive/declive moderado Aclive/declive acentuado anel central 0 – 0 – 0 – anel interior 1.725 100% 0 0% 0 0% anel intermediário 20.656 90% 2.020 9% 227 1% anel exterior 40.335 43% 29.874 32% 24.287 26% anel periférico 72.377 31% 98.385 42% 65.870 28% 135.093 38% 130.279 37% 90.384 25% MSP Fonte: Censo Demográfico de 2010. Leitura territorial. Para as favelas, o crescimento na déca- significativas nos anéis exterior e periférico. da de 1990 era grande no anel periférico, com A proporção de população favelada nos três quase 4% anuais. O aumento da população fa- anéis mais centrais diminuiu na última década velada no anel intermediário também não era (Tabela 23). desprezível: 2,25% anuais. Na década seguinte, A área total ocupada pelos assenta- de 2000 a 2010, a situação muda: embora os mentos subnormais em 2010 é de 4.404,63 dois anéis mais periféricos cresçam bastan- hectares, ou seja, menos de 3% da superfí- te, é no anel exterior que a taxa é maior. De cie total municipal. Essa área, entretanto, é qualquer forma, o município se distingue por ocupa da por 11,38% do volume populacio- apresentar uma favelização predominante- nal. Isso vai resultar em densidades altas, co- mente periférica, com proporção de favelados mo atestam os dados da Tabela 25, na qual Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 Book 35.indb 93 93 06/03/2016 17:30:30 Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano se percebe que as densidades das áreas fave- É também no anel intermediário onde as casas ladas nos anéis interior (913 hab/ha) e inter- com apenas um pavimento se apresentam com mediário (507 hab/ha) são altíssimas. Mesmo menor proporção, apenas 9,20% das unidades, no anel exterior (434 hab/ha), a densidade enquanto quase 90% têm dois pavimentos. demográfica nas favelas é elevada. Apenas No anel exterior, tem-se a menor porcen- no anel periférico ela é um pouco menor, de tagem de domicílios sem espaçamento, mas 253 hab/ha. uma proporção de unidades com três e mais As altas densidades se refletem na exis- pavimentos elevada: 6,52%. Talvez a existência tência de espaçamento entre unidades domi- de pouco menos de 20% das casas com algum ciliares e no número de pavimentos das uni- espaçamento e a presença de maior verticali- dades. Para o município como um todo, em zação está se refletindo na alta taxa de cres- 84,26% dos domicílios não há espaçamento, cimento dos domicílios favelados nesse anel proporção semelhante à da Região Metro- entre 2000 e 2010, ainda mais alta que no anel politana de São Paulo, onde em 85,21% das periférico. A topografia do anel exterior é um unidades não havia espaçamento. No anel in- pouco mais adequada que a do anel periférico: termediário é onde existe o maior adensamen- no exterior, 26% dos domicílios situam-se em to, com quase 97% das unidades de moradia terrenos com declive acentuado, enquanto no não apresentando nenhum espaço entre elas. periférico essa proporção sobe para 28%. Tabela 26 – MSP: Existência de espaçamento entre domicílios em aglomerados subnormais, por anéis, 2010 Domicílios em setores censitários de aglomerados subnormais Distritos Sem espaçamento Espaçamento médio Espaçamento grande – – – – 82,0% 311 18,0% 0 0 22.194 96,9% 602 2,6% 107 0,5% 77.229 81,7% 17.179 18,2% 88 0,1% anel periférico 198.907 84,1% 37.260 15,7% 465 0,2% MSP 299.744 84,3% 55.352 15,6% 660 0,2% anel central – anel interior 1.414 anel intermediário anel exterior – Fonte: Censo Demográfico de 2010. Leitura territorial. 94 Book 35.indb 94 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 06/03/2016 17:30:30 Favelas no Brasil e em São Paulo Tabela 27 – MSP: número de pavimentos dos domicílios em aglomerados subnormais, 2010, por anéis Domicílios em setores censitários de aglomerados subnormais Anéis Um pavimento Dois pavimentos – – 1.149 67% 0 0% 9% 20.572 90% 223 1% 26.595 28% 61.740 65% 6.161 7% 79.144 33% 148.794 63% 8.694 4% 108.423 30% 232.255 65% 15.078 4% – – – anel interior 576 33% 2.108 anel exterior anel periférico anel intermediário MSP Três pavimentos ou mais – anel central Fonte: Censo Demográfico de 2010. Leitura territorial. Considerações finais ras a taxa de crescimento favelada tenha Uma primeira leitura dos dados censitários aumentado entre as duas últimas décadas, é mostra o número de assentamentos subnor- na região Nordeste onde esse aumento apare- mais – proxy das favelas – com forte aumento ce de forma mais nítida, com 11,70% de taxa no Brasil, praticamente dobrando em 19 anos. de crescimento dos domicílios favelados, taxa Se a taxa de incremento anual dos domicílios quase nove vezes maior que na década 1991 a totais entre 1991 e 2000 era de 0,89% ao ano, 2000. Acredita-se que grande parte desse au- a mesma taxa para os domicílios favelados foi mento se deva à melhoria de coleta de dados de 4,18% anuais, ou seja, 4,8 vezes maior. No sobre aglomerados subnormais no último Cen- período seguinte, entre 2000 e 2010, essa ra- so Demográfico (2010). Mesmo no Sudeste e zão alcançou mais de 12 vezes (0,57% em con- no Sul as taxas foram altas, de 4,46% e 4,41% traposição a 6,93% ao ano). Em 2010, 5,61% ao ano, respectivamente. da população brasileira, ou 3,2 milhões de Com relação ao acesso à infraestrutura pessoas, vivia em favelas. Apesar da diminuição básica, morar em favela no Brasil já não é o da pobreza e da fome durante a primeira dé- mesmo que no século passado: 88% dos domi- cada do século XXI, as condições de moradia cílios favelados são servidos por rede pública são ainda bastante ruins. O preço elevado da de água, 56% por rede de esgoto, 76% têm terra e da moradia faz com que a alternativa da algum tipo de coleta de lixo e 72% usufruem ocupação seja uma das poucas possíveis para de energia elétrica com medidor domiciliar grande parte da população brasileira. instalado. A situação infraestrutural é pior no Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 Book 35.indb 95 Embora em todas as regiões brasilei- 95 06/03/2016 17:30:30 Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano Norte e no Nordeste. Por outro lado, o grande e em alguns segmentos espaciais do municí- incremento de domicílios favelados observado pio de São Paulo alcança quase 1.000 hab/ha. no últimos anos talvez esteja recriando fave- Densidades altas nesse tipo de tecido urbano las precárias de madeira. Dados preliminares indicam problemas de insolação, ventilação e indicam o aumento desse fenômeno na capi- circulação, ou seja, indicam unidades residen- tal paulista: novos assentamentos ressurgem, ciais com condições precárias de salubridade primeiro com barracas de lona, depois, de ma- e um tecido urbano denso pouco adequado à deira e só posteriormente são substituídos por implantação de redes de infraestrutura urbana, casas de alvenaria. como rede água ou esgotamento sanitário. A análise da leitura territorial, realizada Na Região Metropolitana de São Paulo, pela primeira vez no Censo de 2010, mostra o incremento anual da população favelada é que quase 20% dos assentamentos favelados também superior ao da população total. En- no Brasil situam-se em encostas, e no Nordeste tretanto, na década de 2000, percebe-se uma e no Sudeste, a proporção atinge ¼ dos domi- inversão no crescimento das favelas: elas cres- cílios, 12% alocam-se em margens de cursos cem mais no município da capital que nos ou- d’água, e na Região Sudeste essa porcenta- tros municípios da metrópole, mesmo em uma gem é de 14%. Assim, para se pensar numa década onde podem ser contabilizadas várias estratégia intervenção em áreas de favela, é remoções de favela (como, por exemplo, no preciso levar em conta que 32% dos domicílios perímetro da Operação Urbana Água Espraia- favelados situam-se em locais com topografia da – ver Ferreira, 2014). A densidade demo- complicada. O levantamento aponta que 89 mil gráfica das favelas na metrópole paulista é moradias faveladas estão localizadas em sobre quatro vezes maior que a densidade média no antigos aterros sanitários ou lindeiras a vias país, ou seja, atinge 245 hab/ha, num tecido expressas, rodoviárias ou ferroviárias totalizam. urbano também sem espaçamento e com 62% O dado é relevante, pois, nesses casos, a única dos domicílios com mais de um pavimento. solução possível seria a de remoção. Tanto a população municipal como a fa- Para que se efetue uma remoção dentro velada vinham crescendo mais intensamente dos princípios que têm norteado a política de na periferia da cidade. Entre 2000 e 2010, a intervenção em favelas, seria necessário realo- população total nos anéis centrais volta a cres- car as moradias na mesma favela ou em local cer com taxas significativas, embora essas ta- próximo. Os dados censitários indicam essa xas resultem em números absolutos irrisórios: solução como problemática, já que em 72,6% um total de 216.296 habitantes, 26% do incre- dos casos não há espaçamento entre os do- mento populacional na década. Já a população micílios. A solução que tem sido encontrada favelada perdeu números absolutos nos anéis é o adensamento e a verticalização: 30% dos centrais e ganhou nos anéis exterior (123 mil domicílios favelados no Brasil já contam com pessoas) e periférico (239 mil favelados). Nota- três pavimentos. A densidade demográfica nas -se, por outro lado, que a taxa de crescimento favelas brasileiras ainda não é alta, de 67,5 dos favelados no chamado anel exterior ultra- hab/ha, mas no Sudeste já chega a 99 hab/ha passa a taxa no anel periférico. As densidades 96 Book 35.indb 96 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 06/03/2016 17:30:30 Favelas no Brasil e em São Paulo demográficas municipais são altas: no anel in- mostrando o resultado da política de urbaniza- terior chega a 913 habitantes por hectare. Mes- ção de favelas, tanto municipal como federal. mo no anel periférico, onde ela é menor, alcan- Mas 30% das unidades não apresenta ainda ça 254 hab/ha. Cerca de 90 mil unidades do- destino de dejetos adequado. Quase a totalida- miciliares situam-se em encostas com declive de das casas faveladas do município usufruíam acentuado, sobretudo nos anéis exterior e pe- da rede pública de água, assim como de ener- riférico. E a verticalização das casas nas favelas gia elétrica, e em 67,15% dos domicílios o me- do município é grande: 70% das moradias tem didor era individual. Assim, o espaço favelado mais de um pavimento. Alguns distritos apre- tem certa especificidade urbanística, mas suas sentam grande proporção de favelados. Entre unidades de moradia aproximam-se das unida- os 96 distritos que compõem o município, há 10 des pobres de qualquer loteamento. com mais de 20% da população em favelas. Os Mesmo não sendo objeto deste artigo, dados ilustram o fato de que, entre as 355.756 um rápido passar de olhos em algumas infor- unidades domiciliares em favela no município mações sobre os favelados na capital reitera de São Paulo, em 2010, 24,70% alocam-se às dados importantes: os favelados paulistanos margens de cursos de água, quase 2% são são mais jovens que a população do município palafitas e 2,5% estão em unidades de con- como um todo: apenas 1,48% têm 65 anos e servação. Isso soma cerca de 102 mil domicí- mais, contra 4,57% para o total, em 2010. E lios, estimando-se em mais de 377 mil pessoas 22% do total dos paulistanos têm até 30 anos, sujeitas e constantes riscos de alagamento ou enquanto entre os favelados essa proporção é solapamento. A favela ocupa o espaço de for- de 28%. Os favelados são majoritariamente ma específica: é precariamente arruado e mais pretos ou pardos (61%), enquanto no muni- denso que o espaço formal, dois complicado- cípio como um todo, essa porcentagem era res para serviços urbanos importantes, como 37%. E, reiterando que o favelado paulistano o acesso de ambulância, polícia, bombeiros e não é migrante recente, 75% dos não natu- coleta de lixo. Aliás, a presença de montes de rais de São Paulo moradores nas favelas estão lixo e entulho, atraindo artrópodes, mosquitos no município há 10 anos e mais. O percurso e ratos, é uma constante. Em relação à morfolo- dos favelados distancia-se do imaginário po- gia, a casa favelada paulistana no ano de 2010 pular, que o tinha como sendo direto da zo- era predominantemente de alvenaria (96,31%), na rural nordestina para a favela paulistana. com uma média de 4,10 cômodos por domicílio Não raro, o favelado experimentou situação e 2,24 pessoas por dormitório. Entre as unida- habitacional distinta no município, geralmen- des construídas em alvenaria, 26% estão sem te casa alugada. A impossibilidade do paga- revestimento. A aparência de um eterno can- mento de aluguel ou de permanência em casa teiro de obras domina a favela. A precariedade de parente condicionaram a ida para a favela. do esgotamento sanitário persiste: pelo Censo O favelado tende a ser negro ou pardo, mas de 2000, 51% das casas faveladas paulistanas não é migrante recente nem teve na favela estavam ligadas à rede pública de esgotos, sua primeira residência (ver Meirelles, 2014, proporção que aumenta para 67,4% em 2010, e Valladares, 2005). O favelado é, antes de Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 Book 35.indb 97 97 06/03/2016 17:30:30 Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano tudo, um trabalhador pobre: em 2010 o total A análise dos dados censitários, com dos ocupados com mais de 10 anos somava especial destaque à “Leitura Territorial”, mos- 546.525, 42,25% do total populacional. Entre tram que a intervenção pública em áreas de esses ocupados, mais de 85% eram emprega- favela ainda é uma necessidade premente, se- dos, a maioria (65%) com carteira de traba- ja no que diz respeito à infraestrutura urbana lho. A moradia favelada foi invadida por bens mas também em relação à melhoria das uni- industrializados. Além dos básicos: fogão, dades habitacionais. Por outro, com o intenso rádio e geladeira, a presença maciça da tele- crescimento das favelas durante a primeira visão plana e em cores é praticamente univer- década do século XXI por todo o Brasil, seja sal, assim como a do celular. Em 2010, mais de em números absolutos ou em densidade, faz 26% dos domicílios favelados no município ti- com que o desafio da intervenção em áreas nham microcomputador com acesso à internet faveladas esteja cada vez mais complexo. Em e 23,5% possuíam automóvel, porcentagem algumas áreas a intervenção sem remoção não superior à de 2000, de 17,9%. As favelas não é uma possibilidade. Porém, essa não pode ser são um mundo social à parte. A proximidade a justificativa para processos de remoção indis- com distintos segmentos urbanos faz com que criminada, como temos observado em várias espaços favelados apresentem diversos perfis cidades brasileiras (ver Viana, 2015; Nobre e socioeconômicos. Bassani, 2015). Suzana Pasternak Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Departamento de História. São Paulo/SP, Brasil [email protected] Camila D'Ottaviano Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Departamento de Tecnologia. São Paulo/SP, Brasil [email protected] Notas (*) Versão preliminar deste ar go foi apresentada no XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais, realizado em São Pedro, de 24 a 28 de novembro de 2014. (1) Para efeito deste ar go, aglomerado subnormal é usado como proxy de favela. (2) Divisão por anéis a par r de metodologia desenvolvida por Taschner (1990). 98 Book 35.indb 98 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 06/03/2016 17:30:30 Favelas no Brasil e em São Paulo Referências D’OTTAVIANO, C. e PASTERNAK, S. (2015). Políticas recentes de melhorias urbanas: municípios pequenos e médios e favelas. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 17, pp. 75-88. FERREIRA, P. E. (2014). Urbanização de favelas vs desfavelamento: notas sobre uma operação paulistana. 3º CONGRESSO INTERNACIONAL DE HABITAÇÃO NO ESPAÇO LUSÓFONO. Anais. São Paulo, FAUUSP. FOLHA DE S.PAULO (2015a). CoƟdiano, B4, 24 de julho ______ (2015b). CoƟdiano, B1 e B3, 25 de agosto. GUIMARÃES, B. 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Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016 Book 35.indb 99 99 06/03/2016 17:30:30 Book 35.indb 100 06/03/2016 17:30:30 Urbanização de favelas na Região do ABC no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento-Urbanização de Assentamentos Precários Slum upgrading in the ABC Region in the context of Programa de Aceleração do Crescimento-Urbanização de Assentamentos Precários Rosana Denaldi Ricardo Moretti Claudia Paiva Fernando Nogueira Juliana Petrarolli Resumo Este trabalho trata das intervenções em favelas localizadas na Região do ABC e financiadas no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento – Urbanização de Assentamentos Precários (PAC-UAP).1 Esse programa canaliza recursos para ações de urbanização de 49 assentamentos precários do tipo favela ou loteamentos irregulares nessa região. Observa-se que é baixa a execução dos contratos de financiamento e repasse. A caracterização dos assentamentos e das intervenções fornece um panorama geral da execução do programa e possibilita identificar seus entraves. Conclui-se que, para compreender os baixos índices de execução das obras de urbanização de favelas será importante entender a característica desses territórios, natureza das intervenções, regulamentação e operacionalização do programa e as limitações institucionais dos governos municipais. Abstract This paper analyzes interventions in slums located in the ABC Region (State of São Paulo, Brazil) that have been financed in the context of Programa de Aceleração do Crescimento – Urbanização de Assentamentos Precários (PAC-UAP). Through this program, financial resources aimed at the upgrading of 49 precarious settlements (slums) are allocated to this region. The research shows evidence of low efficiency in the implementation of projects. Our characterization of the settlements and interventions provides a general panorama of the program’s implementation and its bottlenecks. It is concluded that, to understand the lack of efficiency in slum upgrading, it is important to understand the characteristics of these territories, the nature of interventions, the regulation and operationalization of the program, and the institutional limitations of municipal governments. Palavras-chave: favela; assentamentos precários; urbanização de favelas; região do ABC. Keywords: slums; precarious settlements; slum upgrading; ABC Region. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3505 Book 35.indb 101 06/03/2016 17:30:30 Rosana Denaldi et al. Introdução estrutural da política habitacional e das estruturas institucionais. O primeiro programa federal que permitiu a intervenção em favelas foi O lançamento do Programa de Aceleração do o Promorar, instituído no período de existência Crescimento – Urbanização de Assentamentos do Banco Nacional de Habitação (BNH) e que Precários (PAC-UAP) 2 marcou um novo mo- também pode ser considerado como um pro- mento da política de urbanização de favelas grama alternativo. no país: o governo federal, pela primeira vez, A ação governamental restringiu-se à aplica recursos volumosos nesse tipo de inter- produção de novas unidades habitacionais e a venção. Vale ressaltar que, até início da primei- intervenção do tipo “urbanização de favelas” ra década de 2000, o principal protagonista entrou para agenda federal apenas na década nessa área era o município e os valores investi- de 1990. No governo de Itamar Franco (1992 a dos pelo governo federal em programas de ur- 1994) foi formulado o programa “Habitar Bra- banização de favelas até então foram irrisórios sil” que canalizou recursos orçamentários para (Denaldi, 2004). financiar a produção de moradias e a urbaniza- Historicamente, a provisão de moradias ção de favelas. No âmbito do programa “Ha- para população de menor renda não se deu bitar Brasil”, foram atendidas cerca de 15 mil pela via do mercado formal ou do Estado. A fa- famílias em 1993; em 1994, cerca de 35 mil, no vela foi uma das alternativas habitacionais en- âmbito desse e do programa “Morar Pequenas contradas pela população que não conseguiu Comunidades” (Souza, 1997). acessar o mercado formal de moradias. No governo do presidente Fernando Hen- Nos países periféricos, como o Brasil, os rique Cardoso (FHC) foram instituídos e ade- gastos com a moradia não foram incorporados quados vários programas visando a atender aos salários pagos pela indústria e nem assu- a população de favelas. O programa “Habitar midos pelo Estado. Maricato (1996) aponta que Brasil” foi mantido e reestruturado, e foram a “favelização” das cidades está relacionada lançados os Programas de Ação Social e Sanea- com as características excludentes do mercado mento (PASS), “Pró-Moradia” e “Pró-Sanea- imobiliário formal e com a “urbanização com mento”, os dois últimos utilizando recursos baixos salários”. Para a autora, o Estado fez- do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço -se presente no espaço da acumulação, mas se (FGTS). Em 1999, no segundo governo de FHC, ausentou do espaço da miséria. O crescimento foi firmado um contrato de empréstimo com das favelas é, portanto, resultado também da o Banco Interamericano de Desenvolvimento ausência e conivência do Estado. (BID) para desenvolvimento do Programa Ha- A erradicação foi a alternativa mais bitar Brasil/BID (HBB), também voltado para defendida até a década de 1960. A partir da promover a melhoria das condições de habita- década de 1970, quando o Estado interveio, ção em favelas nos moldes do “Habitar Brasil”. admitindo a urbanização das favelas, ele o No entanto, os recursos orçamentários investi- fez valendo-se de “programas alternativos” dos nesse período pós-BNH foram irrisórios. O de pequena abrangência e desligados do eixo volume dos recursos alocados, assim como a 102 Book 35.indb 102 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 06/03/2016 17:30:30 Urbanização de favelas na Região do ABC... regulamentação para sua utilização, não per- Ministério das Cidades, em parceria com o Mi- mitiu ampliar a escala de urbanização de fave- nistério do Planejamento, Orçamento e Ges- 3 las no Brasil. termos de número de obras concluídas, ou em verno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, andamento, não foram alcançados. Segundo os o setor habitacional foi reorganizado institucio- dados do 11° Balanço, até outubro de 2014, nalmente e os investimentos na área de habita- apenas 12% das obras de urbanização da sele- ção foram retomados. O investimento em habi- ção de 2007/2008 foram concluídas e nenhuma tação no país cresceu no período compreendi- obra de urbanização de assentamentos precá- do entre os anos de 2003 e 2010, revertendo a rios da seleção de 2011 foi finalizada. estagnação presente no setor desde a extinção Segundo Caldas e Vale (2014), até 2014, do BNH. Os dois principais programas habita- a média de execução das operações selecio- cionais lançados pelo governo federal foram o nadas no âmbito da carteira do PAC1 (entre PAC-UAP, em 2007 e o Programa Minha Casa 2007 e 2010) era de 65% e do PAC2 (a partir Minha Vida (PMCMV), em 2009. de 2011) de 5%. Os autores também ressaltam O PAC-UAP é voltado para urbanização de favelas e desenvolvido por meio de parceria entre governos estaduais ou municipais, que são os agentes promotores da intervenção, e o governo federal. Financia obras de urbanização (infraestrutura, saneamento, drenagem e contenção geotécnica), equipamentos sociais, produção de novas moradias, requalificação habitacional, trabalho social e regularização fundiária. Desde 2007, foram contratados R$33 bilhões em urbanização de favelas, sendo R$20,8 bilhões na primeira fase do programa (PAC1), distribuídos em 3.113 empreendimentos, e que se deixou de utilizar cerca de 10% dos recursos disponibilizados. Como vimos anteriormente, o PAC, desde 2007, selecionou o total de R$41,5 bilhões em empreendimentos de urbanização de favelas. Desse total, 1.702 operações, no valor de R$4,3 bilhões, não chegaram a ser contratadas, por deficiência técnica ou documental ou por desistência dos proponentes, ou ainda, tiveram seus contratos cancelados por não iniciarem as obras nos prazos acordados e repetidamente prorrogados ou paralisarem as mesmas por períodos acima dos toleráveis. (Caldas e Vale, 2014) R$12,7 bilhões na segunda fase do programa A baixa execução do programa não de- (PAC2), correspondendo a 415 empreendi- veria representar, entretanto, sua extinção ou mentos e 575 mil famílias beneficiadas (Brasil, diminuição de importância, uma tendência 2014, p. 192). que se observa diante da prioridade dada ao Apesar do investimento significativo, há PMCMV, possivelmente em detrimento dos in- indícios de que esse programa vem perden- vestimentos direcionados a outras modalida- do importância na agenda federal. Um dos des de intervenção como a urbanização de fa- motivos seria o baixo índice de execução dos velas. Grande parcela4 da população brasileira projetos em todo território nacional. Os balan- vive em favelas e seus assemelhados, e portan- ços nacionais dos resultados, produzidos pelo to, o tema da urbanização permanece central, e Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 Book 35.indb 103 tão, apontam que os resultados projetados em A partir de 2003, início do primeiro go- 103 06/03/2016 17:30:30 Rosana Denaldi et al. o programa federal a ele destinado precisa ser município como “urbanizadas”, 39% recebe- mantido e aprimorado. ram algum tipo de melhoria (urbanização par- Nesse contexto de aumento do inves- cial) e apenas 7% não receberam intervenções timento federal em projetos de urbanização (Diadema, 2009). Em Santo André, também de de favelas, baixa execução dos contratos e acordo com informações municipais, 32% dos limitado conhecimento das possibilidades e assentamentos são considerados urbanizados dificuldades para ampliar a escala e elevar a (Santo André, 2006) e em São Bernardo do qualidade das intervenções em favela, torna- Campo, 37% (São Bernardo do Campo, 2011). -se necessário implementar uma agenda de A maioria dos assentamentos precários pesquisa sobre o tema que possa contribuir localiza-se em áreas com restrição ambien- para o aprimoramento e valorização dessa po- tal. Observou-se que 56% dos assentamentos lítica pública. encontram-se em Área de Preservação Permanente (APP) e 27,82% em área de proteção e recuperação de mananciais. Estudos revelam, Favelas na Região do ABC: dimensão do problema e intervenção ainda, a existência de um percentual elevado de domicílios em áreas de risco.5 O ABC é uma das regiões pioneiras em matéria de urbanização de favelas. Diadema foi uma das primeiras cidades brasileiras a esta- A Região do ABC localiza-se no estado de São belecer, em 1983, uma política abrangente de Paulo, mais precisamente na Região Metropo- urbanização de favelas e embora as interven- litana de São Paulo. Segundo dados do Censo ções nem sempre tenham alcançado um pata- Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto mar adequado de qualidade, inovou ao tratar Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a questão da urbanização de favelas não mais residem nessa região 2,5 milhões de habitan- como mera intervenção pontual ou programa tes, distribuídos em 865.145 domicílios. Des- alternativo. Os Municípios de São Bernardo do ses domicílios, 115.270 estão localizados em Campo e Santo André também iniciaram a im- “setores subnormais”. plementação de programas de urbanização de Outras fontes de informação, contudo, favelas no final da década de 1980. apresentam números diferentes. Os Planos Lo- Em São Bernardo do Campo, o primeiro cais de Habitação de Interesse Social (PLHIS) programa de urbanização de favelas foi estru- da região apontam a existência de 622 assen- turado em 1989, na primeira gestão do prefeito tamentos do tipo favela, que abrigam em torno Maurício Soares. A intervenção em favelas, no de 138 mil domicílios. âmbito de uma política municipal de habitação Muitas favelas da região foram urbani- em Santo André também foi iniciada no mes- zadas ou parcialmente urbanizadas nos pe- mo período. Em 1989, no primeiro governo do ríodos anteriores, porém, nem sempre com a prefeito Celso Daniel, foi criado um programa qualidade adequada de intervenção. Em Dia- de urbanização de favelas além de terem sido dema, 54% das favelas são consideradas pelo instituídos importantes instrumentos, como 104 Book 35.indb 104 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 06/03/2016 17:30:30 Urbanização de favelas na Região do ABC... a Lei de Áreas de Especial Interesse Social a obtenção de recursos e iniciando a interven- (AEIS) e de Concessão de Direito Real de Uso ção em áreas mais complexas e que demanda- (CDRU). No caso de Diadema, a continuidade vam remoções de moradias, portanto, produção político-administrativa propiciada pela eleição de novas unidades habitacionais. Esse período consecutiva de três governos progressistas do coincidiu com a institucionalização das políti- mesmo partido (Partido dos Trabalhadores), cas de urbanização de favelas também no âm- de 1983 a 1996, garantiu que a política para bito do governo federal.6 favelas fosse consolidada e aprimorada. Já no O aprimoramento da intervenção rela- caso dos municípios de São Bernardo do Cam- ciona-se com a valorização do projeto e com a po e Santo André a alternância política resul- concepção da integração das favelas à cidade. tou na interrupção do programa e sua poste- Essa concepção leva os municípios a construí- rior retomada. rem equipamentos públicos dentro da favela Denaldi (2003) lembra que a concep- ou no seu entorno imediato, como praças, ção das políticas desenvolvidas nesse período centros comunitários, centros esportivos, cre- orientava-se para o reconhecimento legal da ches e postos de saúde. Nesse período, na re- posse da terra e a garantia de “direitos sociais gião, destacou-se o programa de urbanização mínimos”, como o acesso ao saneamento. As de favelas denominado “Santo André Mais intervenções realizadas consistiam na aber- Igual”, lançado em 1997, que se propunha a tura de vias e vielas para execução de obras articular, institucionalmente, diversos progra- de saneamento e pavimentação. Sempre que mas setoriais e concentrá-los espacialmente possível adotava-se um lote mínimo de 45 a nas favelas em processo de urbanização. Vale 50 metros quadrados. As obras eram executa- pontuar que esse programa ganhou visibilida- das com recursos exclusivamente municipais, de nacional e internacional.7 uma vez que eram inexistentes ou irrisórios A partir de 2007, com o lançamento do os recursos destinados pelas esferas estadual PAC-UAP, inaugurou-se um novo período. O e federal para intervenções dessa natureza. aumento do volume de recursos federais para Ações como produção de novas moradias e urbanização permitiu aumentar a escala de in- requalificação de moradias não eram desen- tervenção no âmbito municipal. volvidas. Na década de 1980, a ação municipal A Região do ABC tem 49 assentamentos caracterizou-se pela intervenção “emergen- com algum tipo de intervenção no âmbito do cial”, destinada a promover, em algum grau, a PAC-UAP. Esses assentamentos abrigam cerca melhoria das condições de infraestrutura, com de 49 mil famílias, o que corresponde a 40% projetos quase sempre executados in loco e do total de famílias que habitam assentamen- que se atinham, na grande maioria dos casos, tos precários na região. Desse conjunto de as- aos limites do território ocupado pela favela sentamentos, 25 encontram-se no Município de (Denaldi, 2003, p. 191). Diadema, 13 em São Bernardo do Campo, nove No período seguinte (1993-2006), a in- em Santo André e dois em Mauá. Tais assen- tervenção foi aprimorada, ingressando na fase tamentos abrigam 14.901 famílias residentes de elaboração de projetos de urbanização para no município de Santo André, 15.617 em São Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 Book 35.indb 105 105 06/03/2016 17:30:30 Rosana Denaldi et al. Figura 1 – Assentamentos com intervenção do PAC-UAP na Região do ABC Fonte: IBGE (2010); Moretti et al. (2014). Nota: as manchas em preto representam os assentamentos precários, segundo o IBGE (2010), e as manchas brancas representam os assentamentos precários com intervenção do PAC-UAP em cada município. Bernardo do Campo, 10.020 de Diadema e 8.239 de Mauá. Desse total de investimentos, mais da metade destinou-se ao Município de São Bernardo O investimento total do PAC-UAP na do Campo – aproximadamente R$685 mi- Região do ABC é de 1,3 bilhão de reais e foi lhões – seguido pelo Município de Santo André, viabilizado por meio de 36 operações finan- que conta com o montante de R$277 milhões. ceiras firmadas no âmbito do programa. Esse Diadema e Mauá contam respectivamente com montante não inclui os recursos canalizados R$162 e R$73 milhões em recursos do PAC-UAP.9 para produção habitacional através do Progra- Os percentuais de contrapartida dife- ma Minha Casa Minha Vida (PMCMV), essen- rem muito entre os municípios, variando de cial para viabilizar soluções de remanejamento 5%, no caso de Mauá, a 41%, no caso de São e reassentamento. Desse montante, cerca de Bernardo do Campo, que apresenta valores de R$874 milhões, ou 67% do total, correspondem contrapartida que se aproximam aos de repas- a repasses/financiamento do governo federal e se/financiamento. R$430 milhões (33%) a contrapartidas dos governos municipais e estadual.8 106 Book 35.indb 106 Os recursos do PAC-UAP chegaram à região, até dezembro de 2013, por meio de 36 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 06/03/2016 17:30:30 Urbanização de favelas na Região do ABC... Termos de Compromisso (TC).10 Os TC podem A maioria dos assentamentos que re- canalizar recursos para mais que um assenta- cebem investimentos do PAC-UAP na região mento, da mesma forma que um único assenta- apresenta densidades entre 500-1000 habitan- mento pode receber recursos por meio de dois tes por hectare (hab/ha), existindo uma varia- ou mais TC. Portanto, não necessariamente um ção de densidade muito grande: de 89 hab/ha TC canaliza recursos para promover a urbani- a 1.127 hab/ha (ambos localizados no Municí- zação completa de um único assentamento ou pio de Diadema). O porte dos assentamentos complexo, podem canalizar recursos para um também é muito variado (número de famílias setor do assentamento, tipo de problema ou consideradas nos projetos de urbanização): etapa da obra de urbanização. dois assentamentos abrigam mais que 5.000 Observa-se que a intervenção em favelas famílias, nove assentamentos contam com um na região ganhou escala com o lançamento número de famílias entre 1.001 e 5.000 e 25 do PAC-UAP; entretanto, seguindo a tendência com menos de 500 famílias envolvidas. nacional, é baixa a execução do programa na Observou-se que 45% dos assentamen- região. Na Região do ABC, a exemplo do que se tos da região estão localizados em terrenos observa no cenário nacional, também tem si- com predomínio de relevo acidentado e 17% do baixa a execução do programa. Do total de com presença significativa de relevo acidenta- operações contratadas, até setembro de 2013, do, demandando intervenções de estabilização quase 30% ainda não tinham sido iniciados e geotécnica. Foram também investigados os apenas 6% estavam concluídos, ou seja, ape- gravames ambientais incidentes sobre os as- nas duas das 36 operações contratadas foram sentamentos com intervenção do PAC na Re- finalizadas até aquele momento (período de gião do ABC. No conjunto dos assentamentos sete anos de vigência do PAC-UAP). 11 estudados, existem 16 assentamentos localizados em Área de Proteção e Recuperação de Mananciais (APRM) da Represa Billings. Vinte Características dos assentamentos e investimentos do PAC-UAP e cinco assentamentos (51%) desse conjunto apresentam gravames relacionados a Áreas de Preservação Permanente (APP) de cursos d’água. Quatorze assentamentos, dentre os 49 No âmbito da pesquisa “Urbanização de As- estudados (29%), apresentam gravames rela- sentamentos precários no âmbito do Progra- cionados a APP de nascente. ma de Aceleração do Crescimento na Região No conjunto estudado, somente em do ABC”, financiada pelo Conselho Nacional nove assentamentos não foram identificadas de Desenvolvimento Científico e Tecnológico situações de risco nas condições pré-interven- (CNPq) – Chamada MCTI/CNPq/MCidades nº ção. Risco associado a deslizamentos é o mais 11/2012 –, foram caracterizadas as interven- expressivo, presente em 55% das favelas estu- ções de urbanização de favelas, em execução dadas. Também foram citados riscos de inunda- ou programadas, na Região do ABC e para as ção (em 37% dos assentamentos) e de solapa- quais se destinam recursos do PAC-UAP. mento ou erosão de margens de córregos (em Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 Book 35.indb 107 107 06/03/2016 17:30:30 Rosana Denaldi et al. 39%). Observa-se que, em muitos dos assenta- construção de novas unidades habitacionais mentos, há incidência de mais de um processo tanto no próprio assentamento (remanejamen- geodinâmico gerador de riscos. to) como fora dele (reassentamento) e 22% do Identificou-se que a maioria dos assenta- tipo urbanização com produção de novas mo- mentos beneficiados pelo programa PAC-UAP radias fora do assentamento (reassentamento). já recebeu algum tipo intervenção de urbani- A substituição total das moradias do assen- zação em períodos anteriores. De acordo com tamento por unidades habitacionais13 (UHs) informações municipais, dos 49 assentamentos novas foi registrada em apenas sete assenta- que contam com recursos do PAC-UAP, 39 deles mentos (14%) e a remoção total do núcleo e (80%) receberam intervenções realizadas com reassentamento da população em outro local recursos de outras fontes nas últimas três dé- em apenas quatro assentamentos (8%). cadas. A informação sobre a infraestrutura exis- Segundo informações municipais, muitos tente antes da intervenção do PAC-UAP confir- assentamentos já haviam sido parcialmente ma essa informação. Os municípios declararam “urbanizados”, ou seja, receberam algum ti- que 92% dos assentamentos tinham redes de po de melhoria em períodos anteriores. Desse água, integral ou parcial, antes da intervenção; conjunto de 49 assentamentos precários objeto 12 85% de esgoto e 90% de drenagem. de intervenção no âmbito do PAC-UAP, mais da As intervenções foram classificadas em metade (53%) das intervenções representam seis tipos como mostra a Tabela 1. Conclui-se complementação de urbanização. Quase meta- que 27% das intervenções são do tipo urba- de (43%) tem por objetivo a urbanização com- nização com construção de novas unidades pleta dos assentamentos precários e apenas 4% habitacionais no próprio assentamento (rema- pretendem urbanizar apenas um setor do assen- nejamento), 22% são do tipo urbanização com tamento. Destaca-se que, no caso de Diadema, Tabela 1 – Tipo de intervenção no âmbito do PAC-UAP na Região do ABC Nº de assentamentos % Urbanização com consolidação das famílias na própria área (sem realocação) 3 6 Urbanização com construção de UHs no próprio assentamento 13 27 Urbanização com construção de UHs no próprio assentamento e com reassentamento de parte da população removida em outro local 11 22 Urbanização com reassentamento externo da população 11 22 Substituição total das moradias do assentamento por UHs novas 7 14 Tipo de intervenção Remoção total do núcleo e reassentamento da população em outro local 4 8 Total ABC 49 100 Fonte: Moretti et al. (2014). 108 Book 35.indb 108 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 06/03/2016 17:30:30 Urbanização de favelas na Região do ABC... a intervenção em 18 assentamentos (72% do construção de quatro conjuntos habitacionais total do município) é do tipo complementação por meio do PMCMV vinculado às urbaniza- da urbanização e, nos casos de São Bernardo e ções do PAC-UAP no ABC, totalizando 1.652 Santo André, predomina a intervenção do tipo UH e aproximadamente R$ 107 milhões de in- urbanização completa. A eliminação de riscos é vestimento, de acordo com as informações for- elemento indutor da urbanização. necidas pelos municípios. Comparando o número de unidades ha- Entretanto, a quantidade de novas mo- bitacionais em risco antes e depois de iniciadas radias contratadas no âmbito do PMCMV, até as intervenções, observa-se redução de quase dezembro de 2013, não era suficiente para 75% em São Bernardo do Campo, Mauá e Dia- atender ao universo de famílias que precisa- dema e quase 80% em Santo André. Estima-se vam ser removidas e reassentadas no âmbito que, com a conclusão das obras, se alcance a do PAC-UAP. Os municípios estavam articulan- redução de 100%. do novas propostas no âmbito do PMCMV Além dos recursos captados no âmbi- para concluir o processo de urbanização. Se- to das modalidades do PAC-UAP e vinculados gundo informações municipais, existem cerca aos 36 TC, foram e estão sendo viabilizados de dez projetos de conjuntos habitacionais em recursos no âmbito do Programa Minha Casa elaboração ou processo de aprovação para Minha Vida (PMCMV) para viabilizar soluções captação de recursos no âmbito do PMCMV e de remoção (remanejamento ou reassentamen- que viabilizam a construção de cerca de 2.500 to). Até dezembro de 2013, foi contratada a novas moradias. Tabela 2 – Unidades habitacionais por tipologia de risco nos municípios do ABC antes e depois da intervenção do PAC-UAP Município Nº de UHs Inundação SA Antes da intervenção 30 ABC Diadema Mauá Atual Antes da intervenção Atual Antes da intervenção Atual Antes da intervenção Atual – 1.413 186 972 149 – – Deslizamento 1.900 481 983 426 611 192 1.218 304 Solapamento 1.300 – 334 66 78 21 – – Outros 1.185 420 121 67 – 24 – – Total de UHs em risco 4.415 901 2.851 745 1.661 386 1.218 304 Fonte: Moretti et al. (2014). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 Book 35.indb 109 109 06/03/2016 17:30:30 Rosana Denaldi et al. Tabela 3 – Recursos contratados e previstos para viabilizar a urbanização dos assentamentos no âmbito do PAC-UAP Município PAC-UAP – R$ PAC-UAP + PMCMV contratado PAC-UAP + PMCMV contratado e previsto* Santo André 384.934.543,31 460.404.756,49 460.404.756,49 São Bernardo do Campo 684.740.634,21 716.659.226,37 763.123.226,37 Diadema 161.653.694,61 161.653.694,61 267.733.694,61 72.531.819,27 72.531.819,27 150.483.819,27 1.303.860.691,40 1.411.249.496,74 1.641.745.496,74 Mauá Total * a estimativa prevista de investimento do PMCMV foi calculada a partir do número de UHs necessárias para conclusão da urbanização, informada pelas prefeituras, multiplicada pelo valor do teto do programa na RMSP (R$96mil). Fonte: MCidades e entrevista com técnicos das Prefeituras Municipais. O custo total de investimento por família município, observam-se variações ainda maio- no âmbito das contratações do PAC-UAP não res – de R$4 mil a R$90 mil,15 mas esses dados representa o custo total (realizado ou neces- devem ser lidos com cautela. sário) de investimento para concluir a inter- Em alguns casos, esse valor é baixo de- venção de urbanização, incluindo as ações de vido ao fato de o investimento total do PAC- produção de moradias para reassentamento. -UAP considerado corresponder a interven- Como mencionado anteriormente, o recurso ções em apenas parte da área e o número de captado no âmbito do programa, em muitos famílias corresponder ao total do assentamen- casos, é insuficiente para concluir todas as to. Esse é o caso do Núcleo Nova Conquista, obras de urbanização e viabilizar os reassen- em Diadema, que apresenta o menor valor de tamentos. Além disso, a maioria dessas áreas investimento por família (R$ 4 mil): o núcleo foi urbanizada parcialmente ou recebeu algum abriga 2.300 famílias, mas o setor atendido tipo de melhoria em períodos anteriores. Essas pelo PAC-UAP corresponde apenas a um setor melhorias foram executadas com recursos pró- conhecido como “Setor Krones”. O restante prios do Estado e Municípios ou recursos fede- do assentamento foi urbanizado anteriormen- rais captados no âmbito de programas, dentre te, com recursos provenientes de outras fon- outros, como o “Habitar Brasil/BID”. tes. Caso semelhante pode ser verificado no A média do investimento por família no Núcleo Sacadura Cabral, em Santo André, que âmbito das contratações do PAC-UAP na região conta com investimento de aproximadamente é de R$ 27mil, e essa varia de R$9 mil reais por R$ 4.600 por família, contudo, trata-se de um família, no caso de Mauá, a R$44 mil por fa- pequeno setor da favela que já foi urbaniza- 14 mília, em São Bernardo do Campo. Quando da na década de 2000 com recursos munici- a análise é feita por assentamento, e não por pais, federais e da União Europeia. No caso do 110 Book 35.indb 110 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 06/03/2016 17:30:30 Urbanização de favelas na Região do ABC... núcleo que conta com o maior valor de inves- Observando o panorama geral apresen- timento por família (R$ 90 mil). No caso do tado, o primeiro ponto a ser destacado é que Silvina Oleoduto (localizado em São Bernardo a característica física dos assentamentos loca- do Campo), a presença de um oleoduto impõe lizados na Região do ABC são aquelas descri- a remoção de grande parcela das famílias e tas para as regiões metropolitanas e indicam a eleva o custo de intervenção. complexidade de intervenção nesses territórios. Os referidos valores de investimento A maioria dos assentamentos está localizada por família elevam-se quando somados aos em áreas com presença de gravames ambien- recursos contratados e planejados (previsão) tais, relevo acidentado e situações de risco. no âmbito do PMCMV. Considerando a viabi- Soma-se isso ao fato de os assentamentos en- lização da captação de recursos para constru- contrarem-se consolidados, com alta densidade ção das unidades habitacionais necessárias, o e setores urbanizados em períodos anteriores investimento médio por família na região subi- com qualidade inadequada. Essa característica rá para R$ 33.658, com variação por município indica a complexidade da intervenção física e de R$18.265 por família, no caso de Mauá, e do trabalho social. Apontando, dessa forma, R$ 48.865 por família, no caso de São Bernar- a necessidade de realização de diagnósticos do do Campo. integrados, obtenção de autorização ou licenciamento ambiental e execução de complexas obras de saneamento, drenagem e consoli- O que explicaria o baixo desempenho do programa? dação geotécnica. Isso, muitas vezes, implica intervir na escala do entorno ou microbacia. Além disso, quase sempre requer a remoção de A análise das características dos assentamen- percentual significativo da população residente tos e intervenções realizadas no âmbito do para viabilizar obras de infraestrutura e elimi- PAC-UAP na região permite apontar um con- nação de situações de risco. junto de fatores que explicariam o baixo de- Evidentemente, a intervenção numa área desse tipo é mais complexa do que a sempenho do programa na região. Tabela 4 – Investimento médio por família de acordo com as fontes de financiamento e situação de contratação ou previsão PAC-UAP Total R$ PAC-UAP + MCMV contratado – R$ PAC-UAP + PMCMV (previsão) – R$ Santo André 25.833 30.898 30.898 São Bernardo do Campo 43.846 45.890 48.865 Diadema 16.133 16.133 26.720 Município Mauá 8.805 8.805 18.265 Região 26.732 28.933 33.658 Fonte: Moretti et al. (2014). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 Book 35.indb 111 111 06/03/2016 17:30:30 Rosana Denaldi et al. intervenção que se realiza numa área vazia período, alterem-se as condições de ocupação (desocupada). Ainda que o município contasse e características do sítio. Mesmo contando com com um projeto executivo completo e de bom um projeto de boa qualidade, muitas vezes, é nível, – o que não tem sido observado, – seria necessário produzir revisões e complementa- de difícil execução em curto prazo, tendo em ções que alteram o escopo original. A lógica vista essa complexidade física e social. de projeto, financiamento e controle da exe- Os projetos produzidos nem sempre es- cução das obras de urbanização de favelas se- tão baseados em diagnósticos integrados, qua- gue aquela que é adotada na implantação de se nunca estão completos e têm um grau insu- uma obra nova, em que o território ainda não 16 ficiente de detalhamento. Esse fato aumenta foi ocupado. Porém, tem-se na prática uma in- a imprevisibilidade já existente em projetos tervenção que mais se assemelha a uma obra dessa natureza e provoca a necessidade de pro- de reforma, onde a intervenção ocorre em uma dução ou alteração de projetos e de revisão de situação já existente e em mutação. Considera- planilhas (quantitativos e orçamento) durante -se importante e oportuno o debate sobre no- a execução da obra, levando frequentemente vas formas de projetar, orçar e reembolsar as a sua paralisação temporária. Vários autores17 obras de urbanização de assentamentos precá- apontam que apenas na década de 1990 o pro- rios, considerando essa especificidade. jeto de urbanização de favelas foi valorizado. Soma-se a essa combinação “comple- Nesse período, foram formuladas diretrizes de xidade de intervenção, qualidade do projeto intervenção que consideravam a necessidade e território em transformação”, a rigidez de de integração do assentamento à cidade e fos- contratação e medição das obras de urbani- sem definidos padrões específicos de execução zação de favelas apontadas pelos técnicos e de obras. Ainda há limitado acúmulo no campo gestores municipais.18 A rigidez das normas de da elaboração de projeto e obra para favela. contratação e medição não é compatível com a Outro aspecto a ser considerado é que se trata de um território em permanente trans- característica do projeto, território e complexidade de intervenção. formação pela ação de seus moradores ou do Outro tema a ser explorado relaciona-se meio físico. É comum que uma obra se inicie com a natureza da intervenção, custos de ur- apenas dois anos depois de concluída a elabo- banização e desenho do PAC-UAP. As propostas ração do projeto ou três anos após a conclusão para produção de novas moradias no âmbito de seu diagnóstico integrado. Após a conclusão do PMCMV, atreladas às urbanizações desse da elaboração do projeto, é preciso muitas conjunto de assentamentos estudados, com- vezes obter a autorização ambiental para só provam o fato. Os municípios informaram que então apresentá-lo para avaliação da Caixa estão sendo pleiteados recursos adicionais do Econômica Federal (CEF), ou órgão financiador, PMCMV para concluir a urbanização de 22% para depois formalizar a contratação e iniciar o dos assentamentos analisados, apontando a processo de licitação. Esses procedimentos de necessidade de construção de no mínimo mais licenciamento, avaliação, contratação e licita- 2.500 moradias, envolvendo recursos da ordem ção são morosos. Também é comum que, nesse de R$230 milhões. Em alguns casos, como o 112 Book 35.indb 112 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 06/03/2016 17:30:31 Urbanização de favelas na Região do ABC... Jardim Oratório, em Mauá, faltam recursos tan- relaciona tanto com a inexistência de projetos to para construção de novas moradias, como completos e de boa qualidade, portanto, com a para resolver as situações mais complexas de limitada capacidade administrativa do municí- risco e infraestrutura, como miolos de quadra e pio, como com as regras e limites de financia- topos de morro. mento do programa. Conclui-se que a urbanização de gran- Os custos de urbanização por família e de parcela desses assentamentos foi iniciada limites de investimento por item do programa em períodos anteriores e que o valor desti- também podem dificultar a execução de solu- nado e contratado, embora expressivo, não ções adequadas e tornar ainda mais morosa a será suficiente para concluir a intervenção. execução das obras de urbanização, principal- Esse fato pode corroborar com a morosidade mente nos casos de intervenções executadas da execução dos contratos, uma vez que pa- na primeira fase do programa. As característi- ra realizar alguns tipos de serviços (tais como cas físicas e de ocupação dos assentamentos abertura de viário, canalização e recuperação são muito distintas, e em muitos casos a in- de córrego, recuperação de área de risco) é ne- tervenção é complexa, e pode custar mais que cessária a provisão de moradias para viabilizar os limites de repasse por família estabelecidos a remoção. Portanto, a ausência de projeto e pelo programa. Novamente, nesse caso muitas financiamento integrado para todos os com- vezes o município faz uma conta de chegada e ponentes da intervenção pode comprometer a não contrata a execução de todos os serviços execução das obras contratadas. e obras necessários. A orientação operacional Por fim, a lógica do projeto apresentado, nº 01/2011 do Ministério das Cidades, instituí- o volume de recurso solicitado para o Ministé- do em 22 de fevereiro de 2011, exclui do en- rio das Cidades e os limites de financiamento quadramento itens muito variáveis como obras por componente do programa podem dificultar para eliminação de risco, o que significa que ou impossibilitar a conclusão da urbanização. não são estabelecidos limites de investimento Observa-se, como no caso do Jardim Oratório, para tais itens, além de possibilitar requisi- o estudo de caso da segunda etapa dessa pes- ção de recurso adicional para construção de quisa, que muitas vezes os municípios tentam unidades habitacionais executadas no âmbito encaixar em “determinado valor captado” do PMCMV, entretanto, há indícios que, em alguns serviços e obras necessárias, mas que alguns casos, ainda assim os limites estabele- esse montante é insuficiente para conclusão cidos pelo programa não são suficientes para da obra. Nos casos em que se observa a difi- executar a intervenção como um todo. Para culdade ou impossibilidade de captação de re- “fechar a conta”, o município aumenta sua cursos para produção habitacional, executa-se contrapartida ou exclui serviços. Muitas vezes o que é possível sem a remoção da população a execução das obras fica comprometida por- ou com a remoção parcial. Essa “conta de che- que o município não consegue cumprir a con- gada” acaba comprometendo a qualidade da trapartida ou a exclusão dos serviços compro- intervenção. Observa-se que essa prática se mete a execução de outros. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 Book 35.indb 113 113 06/03/2016 17:30:31 Rosana Denaldi et al. Entretanto, conforme mencionado ante- Conclusão riormente, apenas 6% das obras estão concluídas e a média de execução do PAC1 é de 54% A primeira constatação é que os recursos do e do PAC2 3%. PAC-UAP permitiram ampliar significativa- Conclui-se que, para compreender os bai- mente a escala de intervenção em favelas na xos índices de execução das obras de urbani- Região do ABC. Conclui-se que cerca de 40% zação de favelas nessa região e no Brasil, será dos domicílios em assentamentos precários importante entender a característica desses estão localizados em assentamentos que re- assentamentos, a natureza dessas interven- cebem algum tipo de intervenção no âmbito ções, as limitações institucionais dos governos do PAC-UAP.19 Em que pese o fato de a urba- municipais e da CEF, além de identificar os nização da maioria desses assentamentos ter obstáculos colocados pela regulamentação do sido iniciada em períodos anteriores e os inves- programa e forma de contratação e gestão dos timentos alocados muitas vezes serem ainda projetos por parte do governo federal (MCida- insuficientes para concluir a urbanização e in- des e CEF). tegração do assentamento na cidade, trata-se As informações produzidas no âmbito de uma intervenção de grande abrangência em desse trabalho são insuficientes para tecer con- termos do número de assentamentos benefi- clusões sobre o baixo índice de execução das ciados. Vale ressaltar que as intervenções do obras, mas permitem apontar alguns fatores tipo urbanização de favelas na Região do ABC que podem contribuir para explicar esse de- foram iniciadas na década de 1980 e, mesmo sempenho do programa. Dessa forma, buscou- com as interrupções decorrentes das alternân- -se indicar hipóteses que deverão ser confirma- cias de governo, foram mais de 30 anos de das por outros estudos. práticas de urbanização de favelas antes do O tema do custo de urbanização por fa- lançamento do PAC em 2007 e apenas cerca mília em Regiões Metropolitanas (RM) também de 20% dos domicílios estão localizados em merece ser estudado. O panorama dos investi- assentamentos integralmente urbanizados no mentos realizados mostrou que há uma grande 20 período anterior. Portanto, as intervenções variação de custo de investimento por família realizadas no âmbito do PAC terão um signifi- e por empreendimento. Evidentemente, em ca- cativo impacto na região. da caso, a natureza da intervenção, existência Uma segunda constatação é que, mesmo de gravames ambientais, estágio de urbaniza- antes do término das obras, as intervenções já ção, qualidade e partido do projeto justificam, obtiveram significativo resultado na redução em grande parte, essa variação. Na região do de riscos e recuperação ambiental dos assenta- ABC, onde predominam casos complexos, os mentos, em especial aqueles relacionados aos custos de urbanização tendem a ser superiores aspectos de drenagem e recuperação da mar- aos limites estabelecidos pelo programa. Cabe gem dos cursos d’água. destacar que a urbanização de favelas envolve 114 Book 35.indb 114 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 06/03/2016 17:30:31 Urbanização de favelas na Região do ABC... uma análise de custos mais abrangente do que aumento está associado a um conjunto de fa- a das obras de consolidação urbanística. A rede tores, entre os quais o aumento do percentual de proteção e o capital social constituído em de famílias removidas para atendimento às um núcleo de assentamento informal é difícil exigências de proteção ambiental, e a adoção de ser computado, mas não pode ser ignorado. de estratégias de intervenção que demandam a Porém, é importante reconhecer a tendência incorporação de diferentes componentes além de aumento dos custos de urbanização de as- da execução de obras complexas que extrapo- sentamentos informais nos últimos anos. Esse lam os limites da favela. Rosana Denaldi Universidade Federal do ABC, Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas. Santo André/SP, Brasil. [email protected] Ricardo Moretti Universidade Federal do ABC, Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas. Santo André/SP, Brasil. [email protected] Claudia Paiva Universidade Federal do ABC, Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas. Santo André/SP, Brasil. [email protected] Fernando Nogueira Universidade Federal do ABC, Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas. Santo André/SP, Brasil. [email protected] Juliana Petrarolli Universidade Federal do ABC, Programa de Pós Graduação em Planejamento e Gestão do Território. Santo André/SP, Brasil. [email protected] Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 Book 35.indb 115 115 06/03/2016 17:30:31 Rosana Denaldi et al. Notas (1) Apresenta os resultados da pesquisa “Urbanização de assentamentos precários no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento na Região do ABC”, produzida pelos autores e financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Chamada MCTI/CNPq/MCidades nº 11. (2) U lizaremos a sigla “PAC-UAP” para tratar das operações de financiamento e repasse de recursos do Governo Federal no âmbito do PAC, que tem como finalidade promover obras de urbanização de assentamentos precários. (3) Segundo balanço divulgado pelo governo federal, em 1999, o investimento realizado no período de 1995 a 1999, foi de R$773 milhões no programa Pró-Moradia, de R$2,664 milhões no Pró-Saneamento, de R$695,1 milhões no Habitar Brasil e de R$803 milhões no PASS (Brasil, 1999, apud Denaldi, 2003, p. 24). (4) Segundo IBGE (1996), em 2010 existiam 11,4 milhões de pessoas vivendo em aglomerados subnormais no Brasil. Maricato (1996) estima que de 40% a 50% da população das grandes cidades brasileiras vive na informalidade, sendo 20% em favelas. (5) Em mapeamentos realizados entre 2009 e 2013 em assentamentos precários de seis dos sete municípios da região, foram identificadas mais de 24 mil moradias em situação de risco associados a deslizamentos, solapamento de margens de córregos e inundações, das quais 9.374 estavam em risco alto ou muito alto. (6) Sobre a evolução da polí ca de urbanização de favelas, ver Denaldi (2003) e Cardoso (2006). (7) Principais premiações: “Prêmio Gestão Pública e Cidadania” concedido pelas Fundações Getúlio Vargas e Ford, em 2000; eleita uma das 16 melhores prá cas do mundo, escolhidas para serem relatadas na Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos – Istambul + 5 em 2001; Prêmio Internacional de Dubai de Melhores Prá cas, do Centro das Nações Unidas para Assentamentos Humanos, o Habitat, em 2002. Ver Denaldi (2012). (8) Na Região do ABC, no âmbito do PAC-UAP, o governo federal aporta cerca de R$873 milhões no Programa, os municípios, R$360 milhões, e o governo estadual, R$70 milhões. (9) Após a conclusão da primeira etapa da pesquisa, tomou-se conhecimento que o Núcleo Vila Ferreira, localizado no Município de São Bernardo do Campo, também conta com recursos do PAC-UAP. Esse relatório não incorpora as informações sobre esse assentamento. (10) O PAC-UAP tem Subprogramas e Ações em que se categorizam as intervenções, são elas: Projetos Prioritários de Inves mentos – Intervenções em Favelas (PPI-IF), Projetos Prioritários de Inves mentos – Saneamento Integrado (PPI-SI), Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), ProMoradia e PAC-Risco. Segundo pesquisa feita com os agentes promotores das intervenções,15 TC estavam inseridos na Ação PPI-IF, nove no FNHIS, cinco no PPI-Saneamento Integrado, três no ProMoradia, dois são do PAC-Risco e dois termos não temos informação a esse respeito. (11) Os dos Termos de Compromisso concluídos até setembro de 2013 inserem-se no município e São Bernardo do Campo. São eles TC. 233.651-94/2007, para urbanização do Núcleo Vila Esperança e o TC. 229.052-61/2009, que nha como objeto a construção do Conjunto Habitacional Três Marias e a urbanização dos núcleos Sítio Bom Jesus/Alvarenga Peixoto, Divineia Pantanal e Jardim Ipê. 116 Book 35.indb 116 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 06/03/2016 17:30:31 Urbanização de favelas na Região do ABC... (12) Em alguns casos, essas redes foram ou estão sendo refeitas em razão de haver interferência com outras obras ou para melhorar a qualidade da prestação dos serviços. (13) São muito peculiares as situações de subs tuição total de moradias existentes novas. Esse po de intervenção foi observado apenas nos municípios de São Bernardo do Campo e em Diadema. No caso dos assentamentos denominados Pau do Café em Diadema e Jardim Esmeralda em São Bernardo do Campo, as habitações existentes eram muito precárias. No caso do núcleo Jóquei, em Diadema, tratava-se de uma pequena área de risco localizada em um complexo de favelas, e o recurso do PAC foi des nado apenas para remoção das famílias dessa área que foram levadas para um conjunto habitacional localizado no complexo que teve a maior parte de sua área consolidada. A situação mais singular talvez seja a do assentamento Silvina Oleoduto no município de São Bernardo do Campo. A favela localizava-se entre a rodovia Anchieta e o Oleoduto da Transpetro, configurando-se também como área de risco. A solução encontrada foi remover as famílias para conjunto habitacional localizado no entorno. (14) São aqui considerados o valor total de inves mento dos Termos de Compromisso do PAC-UAP no ABC, dividido pelo número total de moradores dos assentamentos beneficiados pelo programa, fornecidos pelas Prefeituras e CDHU. (15) Valores aproximados. (16) Afirmação baseada nos resultados da pesquisa “Urbanização de Assentamentos precários no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento na Região do ABC”. (17) Ver Bueno (2000); Denaldi (2003); More et al. (2009). (18) Informações fornecidas na oficina realizada em 1º de setembro de 2013, na UFABC – Campus de Santo André, para apresentar e debater os primeiros resultados na visão panorâmica dos empreendimentos do PAC-UAP na Região do ABC. Par ciparam dessa oficina os representantes dos municípios estudados, Caixa Econômica Federal e Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano. (19) De acordo com o IBGE (2010), a Região do ABC tem cerca de 115 mil domicílios em assentamentos precários (setores subnormais) e, de acordo com informações municipais registradas nos PLHIS, 211 mil domicílios, e cerca de 138 mil são assentamentos “irregulares e precários” e 73 mil apenas “irregulares”. (20) A informação produzida tem como fonte os PLHIS elaborados pelos municípios de São Bernardo do Campo (2010), Santo André (2006; 2011), Mauá (2011) e Diadema (2009) elaborados em diferentes períodos. O dado pode estar subes mado. Referências BRASIL. (2014). Comitê Gestor do PAC. 11° Balanço do PAC2 – set/dez. 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Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 101-118, abr 2016 06/03/2016 17:30:31 ¿Y el título para cuándo? El proceso de regularización del barrio Virgen Misionera Waiting for the deeds. The regularization process of the Virgen Misionera Neighbourhood Tomás Alejandro Guevara Resumen Este artículo presenta resultados preliminares de un trabajo de investigación en curso sobre políticas habitacionales y urbanas en San Carlos de Bariloche. Reconstruye el proceso de regularización del barrio popular de origen informal Virgen Misionera. Los habitantes están arraigados en el lugar y el barrio está completamente consolidado, pero todavía persisten problemas y conflictos vinculados a la titularidad de las tierras con los propietarios originales y emergen conflictos vinculados a la consolidación del barrio. En un contexto donde los precios de los terrenos se dispararon en los últimos quince años, el artículo reflexiona sobre los límites de las estrategias de regularización utilizadas en nuestro país y plantea la necesidad de reformular el contenido y el alcance del derecho de propiedad. Palabras clave: regularización; lote abandonado; derecho de propiedad; asentamientos informales; políticas habitacionales. Abstract This paper presents preliminary results of an ongoing research on housing and urban policies in San Carlos de Bariloche, Argentina. It reviews the regularization process of an informal settlement called Virgen Misionera. The neighborhood and its population are fully consolidated, but there are still problems and conflicts related to the ownership of land plots and, thus, conflicts related to the urban consolidation of the settlement emerge. In a context where land prices soared in the last fifteen years, the article reflects on the limits of the regularization strategies used in Argentina and raises the need to reformulate the content and scope of property right. Keywords : regularization; abandoned plot; property right; informal settlements; housing policies. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3506 Book 35.indb 119 06/03/2016 17:30:31 Tomás Alejandro Guevara Introducción Jugó un rol central en la organización de base de los habitantes y en el impulso del Esta ponencia presenta resultados preliminares proceso de regularización el Equipo Pastoral de un trabajo de investigación en curso sobre de Tierras (EPT) ligado a la labor pastoral políticas habitacionales y urbanas y procesos del Cura Juvenal Curulef y posteriormente de producción del hábitat en la ciudad de San incorporado como uno de los ejes de trabajo Carlos de Bariloche. Reconstruye el proceso de la Fundación Gente Nueva, que surgió de regularización protagonizado por un barrio como un desprendimiento de dicho trabajo popular de origen informal en San Carlos pastoral. Para llevar adelante la regularización de Bariloche, denominado Virgen Misionera, del barrio, el EPT apeló a diferentes estrategias, ubicado a la altura del kilómetro 7,5 de la entre otras: compra directa a los propietarios, Avenida Pioneros, en la Delegación Cerro Otto impulso a juicios de prescripción adquisitiva de la zona oeste del ejido urbano de la ciudad. (usucapión), articulación con el Estado para Junto a Barrio Parque Villa Llanquihue en el negociar condonación de deudas de otros km 24,5 de la Avenida Exequiel Bustillo, Don inmuebles a cambio de la propiedad de lotes Bosco en el km 19 de la misma avenida, ambos ocupados, gestión de recursos de programas de la Delegación Lago Moreno, y otros pocos nacionales de regularización de nivel más, son de los escasos barrios populares que nacional y, recientemente, implementación rompen con el profundo patrón de segregación de la operatoria de regularización dominial socioresidencial imperante en la ciudad, que establecida por la Ley Nacional 24.374 de relega a la zona denominada “El Alto” en la 1994 conocida como “Pierri”. Los habitantes Delegación Sur y a la zona del arroyo Ñireco están arraigados en el lugar y el barrio está a los barrios populares y a los conjuntos de completamente consolidado en términos viviendas de interés social. urbanísticos, pero todavía persisten problemas Si bien los habitantes más antiguos del y conflictos vinculados a la titularidad de las barrio, que vivían de una forma semi rural con tierras con los propietarios originales, los cuales un uso extensivo de la tierra, criando animales reclaman sus derechos de propiedad sobre y aves de corral, se localizaron en la zona hace inmuebles que en muchos casos abandonaron más de 60 años, antes de que se loteara gran durante años. parte de la tierra suburbana de la zona oeste, También emergen nuevos conflictos el proceso de regularización se inició recién vinculados a la consolidación y densificación décadas después, durante los años ochenta del barrio, como son: la presión demográfica y aún hoy se encuentra inconcluso. Durante de las segundas y terceras generaciones de estos años, el barrio alternó momentos de alta habitantes que demandan acceso al suelo y baja en la conflictividad vinculada a la tierra, para construir sus viviendas, o lo hacen en el enfrentando periódicamente amenazadas mismo lote que sus padres, sobrecargando la de desalojo y soportando la animosidad infraestructura y el espacio, que se encuentra y estigmatización de una gran parte de la en un entorno natural delicado; la calidad del sociedad barilochense. espacio público y el equipamiento, por los 120 Book 35.indb 120 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 06/03/2016 17:30:31 ¿Y el título para cuándo? conflictos que suscitan intentos de ocupación Social (IMTVHS) de San Carlos de Bariloche para de espacios que cumplen una función la aplicación de la operatoria en la ciudad, que comunitaria, como ocurrió con la cancha se puso en marcha en 2014 en algunos barrios, de fútbol o la plaza; la oposición frente a Virgen Misionera entre ellos. Si bien existe una la posibilidad de nuevas tomas de terrenos, enorme expectativa sobre la capacidad de esta estigmatizando así los viejos ocupantes a los operatoria para saldar una histórica deuda nuevos ocupantes; conflictos con comunidades con miles de habitantes de barrios populares de pueblo originarios que demandan de origen informal de Bariloche, una mirada restitución de tierras que le pertenecerían a sus más desapasionada muestra que existe una comunidades, etc. proporción importante de estos terrenos que La relativa abundancia de tierra de no podrán ser regularizados por esta vía, ya expansión en la ciudad y el abandono por sea por la oposición legal de propietarios o parte de los propietarios permitió durante años herederos, por la fecha de la ocupación de que los procesos de regularización pudieran los mismos, o porque por sus características avanzar de forma más o menos exitosa. No (tamaño, valuación fiscal, etc.) no pueden obstante, en los últimos quince años, en un acogerse al mencionado régimen. Es previsible contexto donde los precios de los terrenos entonces que la problemática persista y se se dispararon, especialmente después de la hace necesario buscar otras alternativas de devaluación de 2002, empezaron a aparecer resolución de conflictos. nuevos conflictos vinculados a la voluntad El presente artículo reflexiona sobre los de propietarios o herederos de recuperar la límites de las estrategias de regularización posesión de sus terrenos, que ahora tienen un dominial utilizadas en nuestro país, a partir extraordinario valor. El desfasaje de los precios del caso del barrio Virgen Misionera de San de los terrenos con el ingreso promedio de Carlos de Bariloche, y plantea la necesidad los sectores populares, incluso medios, vuelve de reformular el contenido y el alcance del prácticamente imposible cualquier arreglo de derecho de propiedad, en vistas a poner de tipo económico que posibilite la regularización relieve su función social, su carácter de bien de de la posesión. uso antes que de cambio y el derecho humano En este marco, en 2000, el Gobierno básico fundamental a su acceso. Provincial adhirió a través de la Ley Provincial 3.396 al régimen de regularización de ocupaciones establecido por la Ley Nacional 24.374. Lo mismo hizo la Municipalidad de San Carlos de Bariloche, a través de la Ordenanza El proceso de urbanización de Bariloche 1.283 de 2003. Pero recién a fines de 2013, la autoridad de aplicación, el Instituto de El proceso de urbanización de la ciudad de San Planeamiento y Promoción de la Vivienda de Río Carlos de Bariloche comparte algunos rasgos Negro (IPPV), firmó un convenio con el Instituto con muchas otras ciudades de perfil turístico Municipal de Tierras y Vivienda para el Hábitat en nuestro país.1 La expansión urbana de la Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 Book 35.indb 121 121 06/03/2016 17:30:31 Tomás Alejandro Guevara ciudad estuvo estrechamente vinculada a la costo de mantener funcionando la sociedad era masificación del turismo, especialmente entre mayor que el beneficio marginal de terminar las décadas de 1940 y 1970. Algunos de los de vender los lotes remanentes (Paolinelli, loteos más viejos incluso datan de la década Guevara y Oglietti, 2014). Por otro lado, la de 1930, cuando la gestión de la Dirección de comercialización se hacía muchas veces en los Parques Nacionales, creada en 1934 por la Ley grandes centros urbanos donde estaban los 12.103, impulsó la creación de villas turísticas potenciales compradores de lotes en ciudades para financiar obras de infraestructura que mo- turísticas, los cuáles ni siquiera viajaban para dernizarían la aldea de montaña. La llegada del conocer la ubicación del mismo, lo cual sólo se ferrocarril en 1934, la inauguración del aero- explica por un contexto donde todavía la tierra puerto en 1966 y la conectividad por ruta as- tenía valores relativamente bajos en relación faltada en 1968 fueron condiciones fundamen- a los ingresos medios de la población y existía tales de esta masificación. Durante esta etapa, la posibilidad de pagar a plazos.2 En muchos se produjo un proceso acelerado de loteo de casos, también, los títulos de propiedad las tierras adjudicadas en el período previo, sin no estaban del todo saneados, existiendo tener en cuenta la dotación de infraestructura, numerosos casos donde se vendieron dos la demanda habitacional local o criterios míni- veces lo mismo por diferentes promotores, mos de planificación urbana. Abaleron (2001) se vendían propiedades con títulos falsos o estima más de 3.900 hectáreas loteadas, prin- imperfectos, etc. Pasaron muchos años antes cipalmente en áreas boscosas. Esta política de de que los propietarios fueran a tomar efectiva laissez faire determinó una expansión acelera- posesión del lote, a veces no lo hicieron nunca, da del ejido urbano, de bajas densidades y bajo o al menos nunca invirtieron en su desarrollo. nivel de consolidación. Como consecuencia de este proceso caótico Así, tempranamente se subdividió una y especulativo, en pocos años se lotearon gran parte de las tierras disponibles para la miles de hectáreas de suelo de expansión, sin expansión urbana. La regulación era muy ningún tipo de correlato con las necesidades laxa en esa época, habilitaba la subdivisión habitacionales de la ciudad, especialmente en sin mayores requisitos que la agrimensura y la zona oeste del ejido urbano. Entre 1960 y la presentación de los planos, favoreciendo la 1980 se produce un crecimiento demográfico subdivisión especulativa de tierras, desligada acelerado de la ciudad, en gran medida de las necesidades de desarrollo local. Este explicado por la migración de población que tipo de loteo significó enormes beneficios era atraída por el desarrollo turístico: en 1980, para los propietarios originales y para las la población alcanzó los 51.268, convirtiéndose sociedades comerciales que fueron surgiendo en la ciudad más poblada de Río Negro. Si para la subdivisión y comercialización de esta bien la tasa de crecimiento demográfico se fue tierra. De hecho, la inversión requerida era reduciendo progresivamente, en 2010 registró tan baja que en muchos casos la sociedad algo más de 112.000 habitantes, lo que implicó comercial se liquidaba antes de terminar de casi multiplicar por cuatro la población al cabo vender la totalidad de los lotes, porque el de cuatro décadas, convirtiéndose en la tercera 122 Book 35.indb 122 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 06/03/2016 17:30:31 ¿Y el título para cuándo? Mapa 1 – Ejido Urbano de San Carlos de Bariloche Fuente: Elaboración propia. ciudad más poblada de la región patagónica. esta expansión. Pese a esto, la existencia No obstante, gran parte de esta población de grandes emprendimientos turísticos a se fue localizando en el eje de expansión sur, lo largo del eje oeste, en la costa del Lago donde se localizaron los barrios populares. Nahuel Huapi -especialmente el Hotel Llao Esta expansión tan acelerada y con un Llao en el km 24,5 de la Avenida Bustillo gran componente especulativo en el mercado construido a fines de la década de 1930- de suelo determinó muchos problemas en determinó que fuera del interés del Estado términos de la consolidación de la trama la expansión de los servicios, favoreciendo urbana. El primero de ellos, la dotación la consolidación progresiva la trama urbana de servicios públicos. Rápidamente, la en espacios intersticiales. Como resultado, extensión del ejido urbano aumento hasta la Municipalidad de San Carlos de Bariloche convertirse en uno de los más grandes del tiene una limitación estructural para atender país, con más de 27 mil hectáreas. Es sabido de forma cabal la totalidad del ejido urbano que el costo de las infraestructuras de red bajo su jurisdicción. En algunas situaciones, lo aumenta exponencialmente con la distancia. propietarios ni siquiera se hicieron cargo de sus Asimismo, cuando la densidad es muy obligaciones fiscales, generando un problema baja, se vuelve económicamente inviable presupuestario importante para el gobierno Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 Book 35.indb 123 123 06/03/2016 17:30:31 Tomás Alejandro Guevara local. La expansión urbana descontrolada “34 hectáreas” producto de la relocalización encarecía la prestación de servicios sin que de al menos 7 barrios que se ubicaban a lo siquiera aumentara de manera correspondiente largo de la costa del Lago (Pérez, 2004). la base fiscal. Esto fue paliado parcialmente por medio de la organización autogestiva de los vecinos de los barrios que fueron generando soluciones para la dotación de agua potable, tanques comunitarios, empresas de potabilización, tendido de cloacas y otras obras Breve reseña histórica del proceso de urbanización del barrio de infraestructura. Estos procesos organizativos fueron el germen de la institucionalización No es objeto de este artículo hacer la histo- a fines de la década de 1980 de las actuales ria del barrio Virgen Misionera. 3 No obstan- Juntas Vecinales, que ya son más de cien en te, es fundamental tener en cuenta algunas toda la ciudad. coordenadas históricas básicas para com- Uno de los principales problemas que generó el proceso de urbanización descripto prender el derrotero del proceso de urbanización en el barrio. tiene que ver con la existencia durante años, Las tierras en las que se asienta eran incluso décadas, de lotes baldíos que no eran parte de la herencia de Francisco Pascasio construidos por sus dueños. Incluso, una parte Moreno, Perito de la parte de Argentina en el no poco significativa de estos lotes estaban conflicto limítrofe entre la Argentina y Chile que en notorio estado de abandono, sin cerco, siguió a la firma del tratado en 1881. Por los sin desmalezar (Paolinelli, Guevara y Oglietti, servicios prestados a la Nación, Moreno recibió 2014). Estos lotes abandonados fueron objeto grandes cantidades de tierras en la región. Una de ocupaciones en muchos casos, antes o parte importante de esa herencia fue donada después de ser loteados, dando origen a barrios para constituir lo que hoy es el Parque Nacional enteros a lo largo del ejido de Bariloche. Nahuel Huapi, el resto quedó como parte de Algunos de estos barrios emprendieron procesos de regularización dominial y su herencia particular, incluyendo estas tierras donde se localiza el barrio. urbanística, en general, por iniciativa de la Los primeros pobladores datan al población local y de sus organizaciones de menos de la década de 1940, es decir, previo base. La municipalidad no tuvo un accionar al proceso de subdivisión de gran parte de la relevante en esta materia durante muchos tierra periférica a Bariloche. La población allí años. En el mejor de los casos, optó por la asentada vivía en condiciones semi-rurales, omisión. En el peor de los casos, cuando los prácticamente sin ningún tipo de delimitación barrios se localizaban en zonas que eran de las propiedades (cercos, alambrados), consideradas “no apropiadas” para la imagen combinando la vivienda con usos productivos de ciudad turística que se quería promover, destinados al autoabastecimiento (ganado se buscó la relocalización compulsiva, como de pastoreo, animales de corral, etc.). Esta ocurrió por ejemplo con el barrio denominado situación de origen tiene implicancias 124 Book 35.indb 124 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 06/03/2016 17:30:31 ¿Y el título para cuándo? Mapa 2 – Plano catastral Barrio Virgen Misionera Fuente: Elaboración propia. importantes para entender los reclamos de como “ocupaciones negativas”, donde “se les la población allí asentada para mantener su superpone una plantilla urbana” a la población residencia en el lugar. Concretamente, una preexistente. 4 Este caso no fue privativo parte de esta población ya vivía en la zona de Virgen Misionera, sino que situaciones antes de que el loteo en cuestión se realizara, similares se vivieron en Villa Don Bosco, Alto es decir, antes de que los lotes urbanos Campanario, Villa Llanquihue e incluso Melipal. existieran legalmente como tales. De hecho, Las características del barrio, vinculadas en muchos casos, ha sido posible reconstruir al origen popular de sus habitantes y la a partir de testimonios que la subdivisión localización del mismo, cuestionaba el patrón y venta de los lotes se hizo obviando que ya vigente de segregación socioeconómica había población radicada en el mismo, cuestión que establecía que la zona oeste estuviera que el propietario adquiriente del lote nunca destinada a sectores medios-altos y a las conoció al momento de comprar la propiedad. actividades vinculadas al turismo, lo que Esto fue caracterizado por un entrevistado generó rápidamente situaciones conflictivas. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 Book 35.indb 125 125 06/03/2016 17:30:31 Tomás Alejandro Guevara La población del barrio era estigmatizada en La organización comunitaria en el barrio los discursos y las referencias de la población, tiene uno de sus hitos en la llegada del cura especialmente por parte de los habitantes Juvenal Curulef a San Carlos de Bariloche en la de barrios lindantes como Pinar del Lago o década de 1980.6 Comenzó su trabajo pastoral Pinar de Festa. Pese a estas representaciones en la Parroquia de Virgen de las Nieves en negativas, son innegables y numerosos los 1981, pero al poco tiempo fue trasladado a vínculos funcionales, especialmente en materia la recientemente creada Parroquia de Virgen de mercado de trabajo para cubrir actividades Misionera, donde concentraría su actividad de servicios, mantenimiento y reparaciones, pastoral hasta su fallecimiento en 2014. En que se fueron estableciendo a través de los torno al cura párroco se comenzó a congregar años entre estos barrios de origen popular un grupo de vecinos de Bariloche, algunos que ubicados en el eje oeste que colindan con vivían por la zona y otros que no, otros que barrios de sectores socioeconómicos medios trabajaban en el Centro Atómico Bariloche, que 5 y altos. Esta interdependencia lo diferencia comenzaron a desarrollar tareas comunitarias situaciones más conflictivas, de menor de base, en línea con las posturas al interior de interrelación, que pueden ser interpretadas más la Iglesia resultantes del Concilio Vaticano II, cabalmente en clave de “resistencia”, como el la Teología de la Liberación, la proliferación de caso del Barrio 10 de Diciembre, analizados en la Comunidades Eclesiales de Base, etc. En el otras oportunidades (Guevara y Núñez, 2014 y caso de Río Negro, gran parte de esta actividad Núñez y Guevara, 2014). Lo cual no quita que está ligada a la figura de Miguel Hesayne, no existiera un conflicto explícito en términos obispo de la diócesis de Viedma desde 1975 de apropiación y uso del espacio urbano en la y con el impulso a la realización del Primer ciudad. La situación de no legitimación de la Sínodo Pastoral de la diócesis de Viedma en permanencia de los ocupantes en ese lugar, los años 1983 y 1984. Este grupo pastoral en un contexto de gobiernos autoritarios, comenzó a desarrollar tareas comunitarias de dictaduras entre 1966-1973 y 1976-1983, diversa índole, donde se destacaron las tareas generaron presiones en pos del desalojo del educativas que dieron origen a varias escuelas barrio en virtud de su condición de ocupantes. de gestión social con el correr de los años y a la Como consecuencia, rápidamente empezó a conformación en 1989 de la Fundación Gente surgir algún tipo de organización barrial que Nueva, una organización no gubernamental buscaba dar respuesta a las demandas de los que trabaja con diferentes problemáticas habitantes del barrio en pos de la seguridad sociales. 7 La acción de este grupo estaba de tenencia de sus viviendas. Pero la no claramente orientada a la inserción territorial legitimación también persistió en el contexto en un entorno barrial específico como forma de de recuperación democrática y tuvo que ser encarar el trabajo pastoral.8 objeto de disputa y construcción paciente y Rápidamente la labor educativa hizo sistemática por parte de los habitantes del emerger también demandas vinculadas a las barrio y sus organizaciones de base. necesidades habitacionales de las familias 126 Book 35.indb 126 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 06/03/2016 17:30:31 ¿Y el título para cuándo? ahí asentadas y de familias que empezaban a (EPT) que jugó un rol muy relevante en la llegar a la zona buscando donde asentarse. En ocupación concertada del barrio y en el impulso la década de 1970, por ejemplo, fue importante a los procesos de regularización que se iniciaron la migración de origen chilena, especialmente desde la década de 1980. Posteriormente, después del golpe militar que derrocó a cuando se conforma en la década de 1980 la Salvador Allende. También era importante la Fundación Gente Nueva, el EPT pasó a formar llegada de población de comunidades rurales parte de la misma, como uno de sus principales aledañas, expulsadas por la crisis sostenida ejes de acción, si bien mantuvo una relación que atravesaba y sigue atravesando la que era estrecha con la Parroquia de Curulef. la principal actividad económica, la ganadería Desde la creación de la Fundación Gente ovina. Al calor de este proceso de poblamiento Nueva, el proceso de urbanización del barrio se fueron conformando asambleas en las siguió su derrotero habitual de los barrios escuelas como lugar de reunión, donde la populares de: a. expansión, en la medida problemática del acceso al suelo era una que se iban ocupando los lotes vacantes; b. cuestión acuciante. Conceptualizaba su trabajo consolidación, con el mejoramiento progresivo en términos de propiciar el paso de “lo legítimo de las viviendas por parte de las familias, a lo legal”, apostando a las ventajas positivas la concreción de las redes de servicios y de encuadrar legalmente la tenencia de la tierra equipamiento colectivo; y c. densificación, con de los habitantes del barrio. En el documento la temprana aparición de segundas, terceras “La tierra, un bien de todos. Encuadre eclesial” y más viviendas en algunos lotes, tanto para de Curulef (c. 1992), el párroco identifica responder a la demanda habitacional de como una de las causas estructurales de la la propia familia, como estrategia para la pobreza en América Latina la falta de acceso a obtención de una renta a través del alquiler la tierra rural y urbana, heredada del modelo informal de las mismas (Di Virgilio, Arqueros de explotación colonial. De hecho, se plantea y Guevara, 2011). Asimismo, la dotación cabalmente que el acceso a la tierra es de servicios e infraestructura del barrio fue “signo de liberación”. En el mismo sentido, extendiéndose y completándose a lo largo señala el camino a transitar el desarrollo de de los años, con un fuerte componente de intervenciones territoriales concretas por organización comunitaria, como sucedió en parte de los grupos pastorales, a través de las gran parte de la ciudad. En la actualidad el comunidades eclesiales de base, planteando barrio no cuenta todavía con la red de cloacas. una iglesia “al servicio de las organizaciones En 2011, según un relevamiento realizado por populares”, alineándose con las doctrina social el EPT, casi el 37% de los hogares identificaba de la iglesia y con las orientaciones derivadas como la primera necesidad del barrio la del Concilio Vaticano II (1962-1965) y de las extensión de la red de cloacas,9 seguida de las reuniones de Medellín (1968) y Puebla (1979). tareas de mantenimiento y pavimentación de A raíz de esta creciente demanda ligada a la problemática de la tierra terminó En sus comienzos, el rol del EPT se conformándose un Equipo Pastoral de Tierras limitó a organizar y viabilizar las ocupaciones Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 Book 35.indb 127 las arterias viales (30%). 127 06/03/2016 17:30:31 Tomás Alejandro Guevara de lotes baldíos, privilegiando aquellos que irregular sobre la necesidad de regularizar de se encontraran en condiciones de abandono, alguna forma la tenencia de los mismos. Es especialmente aquellos lotes que tenían necesario aclarar que si bien desde que se deuda acumulada de impuestos y tasas con la conforma el EPT el precio de los lotes no cesó Provincia y el Municipio. Para ello, fue central de aumentar, todavía durante la década de el desarrollo de diferentes estrategias para 1980 e incluso durante la década de 1990 los ir “limpiando” los terrenos que podían ser precios del mercado inmobiliario guardaban ocupados o no. No obstante, como siempre cierta proporción con el ingreso medio de los aclaran los entrevistados, la ocupación siempre habitantes de la ciudad, lo que no los volvía fue una decisión individual del ocupante, “por completamente inaccesibles. De hecho, en gran su cuenta y cargo”, según la expresión de medida el problema era de financiamiento, por un miembro del equipo. El EPT se limitaba a lo que el EPT funcionó muchas veces como asesorarlo en esa decisión para tratar de evitar un intermediario que viabilizaba las compras la mayor cantidad de problemas que pudieran por parte de los ocupantes a los propietarios. surgir de esta situación y a servir de mediador Incluso el EPT adquirió lotes que no estaban frente a los propietarios en los casos en que ocupados y los fue adjudicando en procesos estos podían ser encontrados. Pese a esto, toda asamblearios en función de una lista de espera la labor realizada en torno al grupo pastoral que se iba conformando. No obstante, desde liderado por el cura Curulef en el barrio le la devaluación de 2002, la aceleración de los valió la oposición de muchos sectores sociales precios del mercado inmobiliario generó un del barrio y de la ciudad, que lo vinculaban desfasaje por completo en estas variables, que estrechamente a los sectores populares como explica en gran medida el renovado interés de una forma de estigmatizarlo, mientras que el los propietarios en años recientes por recuperar cura hacía de esto una bandera y su principal sus propiedades y la casi total imposibilidad por virtud. Lo que se planteaba era un conflicto parte de los ocupantes de negociar condiciones social en torno de la apropiación y el uso de compraventa accesibles económicamente del espacio urbano por parte de diferentes en función de sus ingresos. sectores sociales y la legitimidad de cada uno El EPT se dio varias estrategias para para localizarse en determinados puntos de la propiciar la regularización dominial de los lotes ciudad (Herzer, Gil y de Anso, 2012). ocupados durante las primeras dos décadas Durante la década de 1980 y 1990 de su funcionamiento. En general, su rol se comenzó el trabajo orientado a regularizar limitó al de intermediadora y organizadora las situaciones de ocupaciones de hecho. En de las demandas. Básicamente, se planteaba primer lugar, porque empezaron a aparecer intermediar en una negociación directa con el propietarios registrales de los lotes ocupados dueño, en pos de habilitar la compra del lote que querían recuperar la posesión de los lotes. por parte de los ocupantes. Es necesario tener En segundo lugar, porque la aparición de estos en cuenta que dado el perfil social del EPT, propietarios comenzó a generar la inquietud con gran cantidad de profesionales, el mismo del resto de familias en situación de ocupación tenía mayor capacidad para movilizar redes 128 Book 35.indb 128 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 06/03/2016 17:30:31 ¿Y el título para cuándo? y recursos (Di Virgilio, 2011) que facilitaran que permitió fortalecer la legitimidad en el tanto la relación con las diferentes instancias barrio. Lo mismo sucedió con muchas otras del poder ejecutivo, pero también del poder organizaciones que fueron naciendo al calor judicial, acceso a escribanos, abogados, etc. del proceso de organización comunitaria que La respuesta por parte de los propietarios tenía como una de sus referencias fuertes a fueron muy variables. En algún caso, el EPT la parroquia, como el Club Social y Deportivo llegó a conseguir la cesión sin cargo del lote Arco Iris o la radio comunitaria. La misma por parte del propietario, cuando este percibía heterogeneidad puede encontrarse entre las que la recuperación era inviable. En otros diferentes generaciones de ocupantes, llegando casos, el EPT compraba lotes que después eran al extremo de que el EPT, según testimonios de revendidos con facilidades a los ocupantes, sus miembros, reciba en la actualidad críticas oficiando de intermediador. A veces, se limitaba de algunos habitantes de larga data por no a servir de mediador en las negociaciones que haber reservado tierra para sus hijos y nietos y se hacían entre privados. haberla cedido a gente de afuera del barrio, con Las respuestas de los mismos vecinos del una mención particular para con los migrantes barrio también fueron variables. Fue marcada chilenos recientes, mostrando algunos de los la crítica y oposición de los vecinos “legales”, clivajes conflictos dentro del grupo social que es decir, aquellos que contaban con los títulos conforma el barrio. de propiedad en regla. Este sector estuvo No obstante este rol de mediador y durante mucho tiempo nucleado alrededor organizador, la labor del EPT nunca descuidó la de la Junta Vecinal Virgen Misionera y fue un interpelación a los diferentes niveles del Estado activo opositor a la política de regularización y en numerosas oportunidades cuestionó impulsada por el EPT. Durante años fue uno la orientación de las políticas públicas que de los principales actores que propició la no daban cuenta de manera cabal de la actuación legal de los propietarios en pos problemática acuciante del acceso al suelo. del desalojo de ocupantes. Incluso llegaba al Tampoco partían de un diagnóstico inocente extremo de ocuparse de contactarlos cuando de la problemática, sino que no dudaban en vivían en otras localidades y ofrecerse a ser señalar el carácter estructural del problema custodio de los mismos en su ausencia, según habitacional en la sociedad barilochense y los testimonios. De hecho, una entrevistada que afectaba de manera predominante a los relató concretamente cómo el Municipio sectores más vulnerables. había impulsado durante la década de En la actualidad, de un total de alrededor 1990 la conformación de la Junta Vecinal de 570 lotes identificados catastralmente en Virgen Misionera en oposición al proceso de el barrio, prácticamente la mitad de los lotes organización de base del barrio, promoviendo (42%) han recibido algún tipo de intervención su estigmatización y desalojo.10 En los últimos por parte del EPT (ver Tabla 1).11 De este total, años, no obstante, ante un cambio en la sólo 25 han sido finalmente escriturados conducción de la entidad, la Junta Vecinal jugó a nombre de sus actuales ocupantes. Este un rol más positivo y favorable al proceso, porcentaje tan reducido de regularización Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 Book 35.indb 129 129 06/03/2016 17:30:31 Tomás Alejandro Guevara dominial definitiva, después de más de 25 años Dentro del universo de lotes ocupados, de intervención por parte de la organización, había un conjunto de alrededor de 50 lotes es un primer indicador que nos muestra de que eran propiedad de la firma El Sol S.A., cuyo la complejidad y los obstáculos jurídico- principal accionista era Vinelli, un conocido institucionales con los que se enfrente este loteador y agente inmobiliario del país, con tipo proceso. gran actuación en la ciudad de Bariloche y en la Existe un total de 125 lotes que han costa atlántica de Buenos Aires. Este conjunto iniciado o podrían iniciar el trámite de de lotes requirió de una negociación especial, regularización previsto por la Ley Pierri por la concentración de la propiedad en un (mientras no se encuentren incompatibilidades sólo propietario, lo cual permitía solucionar el adicionales), lo que representa un universo de problema de decenas de familias de una sola 180 hogares; mientras que 24 están excluidos vez. Esto permitió ordenar la negociación, pero de la misma de entrada porque su ocupación no por ello la hizo más fácil, porque se trataba data de una fecha posterior a 2006, una de de un experimentado agente inmobiliario. La las restricciones que fija la Ley 3.396. Algo Ordenanza 1120-CM-2001 finalmente aprobó más de 50 lotes están en condiciones de ser un convenio de compensación de deudas escriturados, ya sea por tener boleto de compra municipales con la firma El Sol S.A. Por este venta o por estar enmarcado en la operatoria convenio, el Municipio adquirió la propiedad de prevista por la Ordenanza 1120-CM-2001. 51 lotes que fueron posteriormente vendidos Tabla 1 – Universo de actuación del EPT, estado de situación y proyección de trabajo N % Cantidad de lotes en catastro 569 100,0 Cantidad de lotes con intervención EPT 239 42,0 Lotes que podrían iniciar trámite Pierri 87 15,3 Lotes para escriturar Ordenanza 1120-CM-01 39 6,9 Lotes que iniciaron trámite Pierri 38 6,7 Lotes escriturados 25 4,4 Lotes ocupados recientemente (excluidos Pierri) 24 4,2 Lotes en condiciones de escriturar 13 2,3 Lotes para prescripción administrativa 6 1,1 Lotes con reclamos de comunidades originarias 4 0,7 Fuente: Elaboración propia del autor en base a datos del EPT. 130 Book 35.indb 130 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 06/03/2016 17:30:31 ¿Y el título para cuándo? en cuotas a los ocupantes mediante boleto Esta regularización era tanto dominial como de compra-venta aprobado en la misma urbana, pero la falta de presupuesto la dejó ordenanza. Algunos de estos lotes ya fueron limitada a lo dominial. México y Perú son completamente pagados y están pendientes dos de los países pioneros en la materia, ya de escrituración (8 lotes), otros tienen cuotas en la década de 1960 y 1970. Sin embargo, pendientes (18 lotes, otros tienen problemas la dinamización de estas políticas se produce de mensura y/o subdivisión, pero muy pocos durante la década de 1990, impulsadas por han logrado escriturar definitivamente el organismos internacionales que, influidos lote (4 lotes). La operatoria, a su vez, era por la tesis de Hernando de Soto (De Soto, incorporada en la Ley Provincial 3.370 que Ghersi y Ghibellini, 1986), entendieron que la establece una escrituración de bajo costo para regularización dominial tendría por sí misma este tipo de situaciones. efectos beneficiosos en las condiciones de vida de la población, al promover su inserción social, movilizar capitales y facilitar la integración Políticas de regularización de barrios populares de origen informal en Bariloche12 en otras esferas tales como la laboral, educativa, etc. No obstante, los procesos no necesariamente han llegado a buen puerto y tampoco han provocado los efectos previstos. En numerosas situaciones que lograron ser Clichevsky (2003), distingue tres tipos de polí- regularizadas se desarrollaron nuevos procesos ticas de regularización: 1) aquellas que tienen de informalización asociados a problemas de por objetivo sanear la situación dominial; 2) sucesión, de subdivisión, de venta y/o alquiler aquellas que tienen por objetivo sanear la si- en el mercado inmobiliario informal (Ward et tuación urbano-ambiental y 3) las integrales al., 2011). que articulan i. y ii. Según esta investigadora, En la década de 1990 la situación de las experiencias de políticas de regularización la pobreza urbana con respecto al acceso integral han sido escasas. Generalmente, las al suelo se agrava notablemente. En este políticas de regularización se implementaron contex to, los procesos de reforma del de manera desarticulada, siendo mucho más Estado y de reestructuración económica que extendidas las políticas de tipo i. Ello se debió a caracterizaron a esta década impactaron que este tipo de intervenciones es menos cos- fuertemente en el funcionamiento del mercado toso, tiene mayor visibilidad en términos políti- de suelo urbano y generan cambios en las cos y ha recibido una fuerte promoción de par- políticas de regularización implementadas. te de algunos organismos internacionales por Desde entonces, el paradigma de políticas sus supuestos efectos multiplicadores. habitacionales se traslada de las políticas Las políticas de regularización surgieron de vivienda tradicional, a los lotes con en la década de 1960 especialmente en aquellos servicio y posteriormente a la legalización países donde la normativa urbana muy rígida y mejoramiento de barrios. Las políticas de había generado situaciones de informalidad. regularización dominial han avanzado mucho Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 Book 35.indb 131 131 06/03/2016 17:30:31 Tomás Alejandro Guevara más sobre tierras públicas, que sobre tierras nivel nacional, los pocos intentos de articular privadas, donde el Estado debe primero una política integral y universal fracasaron expropiar o ser mediador en una negociación. y se recayó una y otra vez en la sanción En Argentina la regularización es un de normativa específica para cada caso, proceso reciente a nivel nacional, aunque segmentando las soluciones y vulnerando algunos municipios la han implementado el principio de igualdad ante la ley de los desde hace más de 20 años. La reforma habitantes de las diferentes urbanizaciones constitucional de 1994 no significó un avance informales. Esta situación expresa, en parte, en términos de acceso al suelo, a diferencia un cierto consenso del sistema político acerca de las últimas enmiendas en otros países de de no cuestionar las relaciones de propiedad y la región, con excepción de algunos derechos el acceso a la tierra y a la vivienda, poniendo vinculados a las problemáticas de los pueblos a la propiedad privada por encima de los 13 originarios y ambientales. La Constitución derechos sociales, económicos y culturales de la República Argentina (CA) no establece de las familias de menores ingresos y no la función social de la propiedad, sino que en reconociendo que existe una pugna entre dos su artículo 17 establece la inviolabilidad de la derechos legítimos que debe ser procesada por propiedad privada. No obstante, el artículo 14 instituciones adecuadas. bis establece el derecho a una vivienda digna En el marco de la reforma del Estado y de y el artículo 41 establece el derecho a un la aplicación de las medidas de corte neoliberal ambiente sano. Esta conjunción de derechos, durante la década de 1990, se sancionaron que muchas veces colisionan en realidad, debe a l g u n a s n o r m a t i va s q u e h a b i l i t a r o n ser resuelta políticamente por las autoridades mecanismos de transferencia y regularización competentes (tanto el legislativo como el de tierras para el hábitat de sectores populares: ejecutivo) o en última instancia por el poder ● judicial. El Código Civil regula todo lo atinente 23.697 habilitó la posibilidad de que el Estado a la propiedad de la tierra y de la vivienda, Nacional transfiera a privados la propiedad pero lo hace enmarcándose en los principios de tierras fiscales que previamente fueran constitucionales de la inviolabilidad de la declaradas innecesarias para la gestión. propiedad. Esto genera grandes obstáculos ● en materia de regularización dominial, 1990, habilitó la transferencia de las tierras porque en general tiende a primar el derecho fiscales sobre las que se asentaban las villas de propiedad irrestricto, por sobre otras de emergencia de la Ciudad de Buenos Aires. consideraciones, como la función social de El Decreto 2.411 de 1990 extiende este mismo la propiedad, que permitiría problematizar criterio para todas las villas del Gran Buenos En 1989, la Ley de Emergencia Económica nº De manera similar, el Decreto 1.001 de por qué un terreno apto para urbanizar está Aires. siendo retenido por su dueño, por poner sólo ● un ejemplo. tierras en propiedad del Estado Nacional que Asimismo, la Ley 23.967 de 1991 transfiere En este marco, es notoria la ausencia se hallen ocupadas por viviendas permanentes de una política de regularización unívoca a y que sean innecesarias para el cumplimiento 132 Book 35.indb 132 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 06/03/2016 17:30:31 ¿Y el título para cuándo? de su gestión, a las Provincias y Municipios regularización dominial “privada”, liderada para su posterior venta o incorporación a por una organización social de base territorial, planes sociales de vivienda social. y que se valió para ello del marco normativo ● La Ley 24.374 de 1994, conocida como “Ley Pierri” habilitó la transferencia de tierras derechos reales, básicamente el Código Civil. privadas a sus ocupantes reales. El objetivo Sólo a partir del proceso que culminó era acortar los plazos administrativos del con la sanción de la Ley Provincial 3.396 instituto jurídico de la posesión veinteañal o en 2000, se empezó a discutir una política usucapión del Código Civil. Se constituye en de regularización dominial sistemática en una suerte de usucapión pero que cursa en la provincia, independientemente de lo que sede administrativa, que tiene las ventajas pudieran haber hecho algunos gobiernos de reducir los plazos de 20 a 10 años para locales por su cuenta. Uno de los principales el perfeccionamiento de las actas-escrituras interesados en la implementación de esta y reducir notablemente los costos en operatoria era la Municipalidad de San Carlos comparación con juicio de usucapión. Esto de Bariloche (MSCB), donde se calculaban no obsta para que, en caso de que exista que había más de 10 mil lotes en condiciones oposición por parte del propietario, el trámite irregulares que podrían ser regularizados en se suspenda y en todo caso deba resolverse ese marco. 14 No obstante, la Ley Provincial en sede judicial. El único costo que tiene la 3.396 nunca fue reglamentada, por lo que su operatoria es una contribución del 1% del implementación no avanzó durante más de 13 valor fiscal de los inmuebles, con la finalidad de años. dotar de financiamiento a la misma. Ya en 2003 la Municipalidad de San Otra de las normativas relevantes en Carlos de Bariloche había sancionado la términos de regularización es el instituto de Ordenanza 1283 para adherir al régimen la expropiación, que si bien fue originalmente nacional, evidenciando una preocupación por concebida para contar con suelo para la la problemática. La situación habitacional construcción de infraestructura y equipamiento seguía recrudeciendo en la ciudad a lo largo de colectivo, fue adaptándose también para su la década.15 El encarecimiento de los precios implementación en urbanizaciones informales. de los terrenos, su desfasaje con respecto a La expropiación garantiza la ocupación y cualquier nivel de ingreso medios de sectores elimina el riesgo de desalojo, sin contemplar populares y medios, la falta de acceso a necesariamente acciones tendientes a la financiamiento y una por lo menos errática regularización de la urbanización ni a la política de suelo urbano municipal no hacían transferencia del dominio. más que restringir aún más el acceso al suelo ● De esta forma, el caso que analizamos en urbano para las mayorías, planteando en los este trabajo es previo a la masificación de las hechos la ocupación como uno de los únicos políticas de regularización en nuestro país y no canales de acceso efectivo. contó en sus inicios prácticamente con ninguna Si bien todavía en 2013 la implementación intervención estatal, por lo que era una de la regularización no había tenido avances Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 Book 35.indb 133 que regula las relaciones entre privados y los 133 06/03/2016 17:30:31 Tomás Alejandro Guevara sustanciales, la discusión impulsada desde Vecinales (reconocidas legalmente o no) como fines de la década de 1990 sobre la aplicación Villa Llanquihue, Jamaica, Asociación Civil de la Ley Pierri en Río Negro y en Bariloche Norte-Sur, Pastoral Social, Pastoral Carcelaria, sirvió para visibilizar una problemática que Movimiento de Ocupantes e Inquilinos (MOI- estaba completamente invisibilizada. Uno de CTA), la Federación de Tierras y Viviendas, los principales barrios que planteó la discusión etc. Como parte de este proceso de impulso y fue el Barrio Villa Llanquihue, ubicado en el km discusión se originó gran parte de la normativa 23,5 de la Avenida Bustillo. Este barrio popular existente en la materia, entre otras: de origen informal había sido producto de la ● ocupación progresiva de lotes abandonados Viviendas para el Hábitat Social (Ordenanza por sus propietarios, pese a lo cual habían 1815-CM-2008) empezado a emerger amenazas de desalojo ● por las demandas de algunos titulares forma institucionalización de la Mesa de registrales. En 2007, la Ordenanza 1704-CM-07 Organizaciones (Ordenanza 1595-CM-2006) Creación del Instituto Municipal de Tierras y Creación del Consejo Social de Tierras, como Creación del Banco de Tierras (Ordenanza creo el “Programa de Regularización dominial ● Villa Llanquihue”, que constituye un “Paraguas 1594-CM-2006) de seguridad Jurídica” 16 en relación a la ● situación dominial del barrio. Este programa (Ordenanza 1825-CM-2008). Declaración de Emergencia Habitacional contemplaba la declaración de utilidad pública Incluso, en octubre de 2007 se organizó y sujeto a expropiación del conjunto del un Encuentro de Organizaciones de la tierra barrio, como una forma de evitar amenazas en la ciudad de San Carlos de Bariloche de desalojo y garantizar la permanencia de impulsado por organizaciones de este espacio los habitantes, hasta tanto se llevara adelante y se generaron articulaciones e intercambios la efectiva regularización. En septiembre del con organizaciones e instituciones provinciales mismo año fue aprobada la ley Provincial 4237 y nacionales, como el Seminario Instrumentos en la Legislatura de Río Negro, conocida como Jurídicos de Regulación del Suelo en la Ciudad “Ley Villa Llanquihue”. Autónoma de Buenos Aires, realizado en mayo Al calor del trabajo y las demandas de cierto sector de la población y de su expresión del 2007 en el Anexo Cámara de Diputados de la Nación. organizada en organizaciones de base se Pero la puesta en marcha de la fue conformando un espacio que impulsaba operatoria de regularización seguía siendo reivindicaciones en materia habitacional y que una promesa incumplida. Recién el 29 de buscaba incidir en la orientación de las políticas noviembre de 2013 se firmó un convenio con públicas implementadas. Este espacio de el IPPV que habilitaba la implementación carácter informal se conformó en 2006 con la descentralizada de la operatoria por parte de la denominación de “Mesa de Organizaciones”, MSCB, como caso excepcional en la provincia. donde participaban numerosas expresiones La Resolución municipal 743 de 2014 dispuso populares, entre otras: el EPT-FGN, Comisión la implementación de la operatoria en función de Tierras del Barrio 10 de Diciembre, Juntas del convenio firmado, designando como 134 Book 35.indb 134 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 06/03/2016 17:30:32 ¿Y el título para cuándo? autoridad de aplicación al IMTVHS. Asimismo, conformación de las “Casas de Tierras”; el afectó a la operatoria a la Escribanía General Municipio de San Carlos de Bariloche optó de Gobierno Municipal, que se encarga de todo por crear una Escribanía General de Gobierno el trabajo notarial involucrado. La resolución Municipal para llevar adelante todo el trabajo fijó un rango de inmuebles a ser alcanzado por notarial involucrado en la operatoria. la operatoria de hasta $350.000 de valor fiscal 2 y hasta 1.500 m de superficie. Para garantizar otros barrios para iniciar el proceso de el financiamiento de la operatoria, se creaba un regularización (Villa Llanquihue y Nahuel Fondo Específico Afectado a la Regularización Hue ) , pero habilitó a aquellos barrios Dominial “Ley Pierri” y se establecía que para q u e c o n t a r a n c o n o r g a n iz a c i o n e s d e el cómputo de la contribución se tomara un base interesadas a par ticipar en una valor fiscal mínimo de $150.000 para aquellos implementación descentralizada. Este fue el inmuebles con valuaciones menores. caso de Virgen Misionera, donde el EPT junto Lo central para la implementación con la Universidad Nacional de Río Negro, en de la operatoria es lo que se denomina el marco de un proyecto de extensión avalado documentación probatoria. Es decir, es por el IMTVHS, conformó un equipo para la necesario aportar pruebas que certifiquen aplicación descentralizada de la operatoria la ocupación con anterioridad al primero de que está actualmente en ejecución. enero de 2006. Esta documentación puede ser Si bien existe una gran expectativa muy diversa: boleto de compraventa, cesión en términos de que la Ley 24.374 permita de derechos, recibo de compra de lote, cesión saldar de una vez por todas gran parte de la de derechos posesorios, certificados médicos, problemática habitacional del barrio, incluso certificados de registro escolar, certificados de los cálculos más optimistas dan cuenta de vacunación, etc. Lo central es que tiene que que una proporción elevada de los casos no figurar nombre del titular, fecha de emisión podrán acogerse a este régimen, sea porque del documento y domicilio en el lote que se algún propietario o derechohabitente se busca regularizar. oponga, sea porque por algún motivo no En 2014, finalmente se puso en marcha cumpla con los requisitos establecidos por la la operatoria. Al momento de escribir este ley -como la fecha de ocupación, la existencia trabajo se estaban finalizando los primeros de documentación que pruebe de manera expedientes para llevar adelante la confección fehaciente dicha fecha, el tamaño de los lotes, de las primeras ac tas- escrituras a ser su valuación, etc. De ahí que la problemática registradas. A diferencia del caso más conocido habitacional será persistente en este y otros de ejecución de la Ley, la Provincia de Buenos barrios populares en tanto no se rediscuta de Aires, donde requirió de un convenio con el manera profunda el contenido y la función del Colegio de Escribano de la Provincia para la derecho de propiedad. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 Book 35.indb 135 El IMTVHS en un principio privilegió 135 06/03/2016 17:30:32 Tomás Alejandro Guevara Situación actual: conflictos, demandas y posibles respuestas la ciudad. A modo ilustrativo, puede verse que en algunos de los principales canales de oferta del mercado inmobiliario – Revista ABC Sur – se pueden encontrar oferta de terrenos de entre 800 y 1.000 m2 por un valor La situación actual en Virgen Misionera podría de alrededor de 30, 40 o 50 mil dólares en caracterizarse como una “tensa calma”, dado barrios linderos como Rancho Grande, de perfil que la situación en general es de relativa socioeconómico medio y medio-alto, o incluso estabilidad y seguridad en la tenencia de los dentro mismo del barrio, en aquellas porciones terrenos. Esto puede observarse en el bajo regularizadas. Las propiedades edificadas, por nivel de menciones que tiene la regularización su parte, se ofertan a precios de alrededor dominial (papeles de los terrenos) en el de U$S140.000, dependiendo de la cantidad mencionado relevamiento de 2011, en pleno de metros cubiertos y las características de reclamo por la implementación de la operatoria la construcción. En barrios populares como El de regularización. No obstante, empiezan a Frutillar, ubicado a la vera de la Ruta Nacional haber casos de propietarios, o herederos de 40 – a 6 kilómetros – sobre el eje de expansión propietarios, que reclaman los derechos sobre sur de la ciudad, un terreno puede costar los lotes. Incluso, existen casos donde los entre U$S10 y 20 mil, según las características propietarios o herederos pretenden desconocer del mismo, aunque hayan también oferta las negociaciones realizadas en el pasado de terrenos en pesos, que rondan los $100 con intermediación del EPT, amparándose o $150 por metro cuadrado. Es posible que en formalidades legales. En virtud de ello, en el mercado informal lotes de barrios sin empiezan a aparecer causas de desalojo por regularizar como Nahuel Hue, ubicado a la parte de propietarios que quieren recuperar misma altura de El Frutillar pero del otro lado la posesión de los lotes. Existen al menos dos de la RN40, sean un poco más accesibles, pero casos avanzados de conflicto en sede judicial conllevan un riesgo importante en materia de que podrían terminar con la restitución de los seguridad de la tenencia y no cuentan con terrenos a sus titulares registrales, después de tendido de red de gas natural. años de posesión por parte de sus habitantes. Por otro lado, la aplicación de la La puesta en marcha de la operatoria de operatoria de regularización dominial en regularización ha renovado las expectativas de curso no alcanza ni mucho menos a todos dar respuesta definitiva a una vieja demanda, los casos. Existen numerosas ocupaciones pero no termina de estar claro qué nivel de posteriores a 2006 que quedan excluidos de concreción tendrán estas expectativas. la operatoria, además de otras situaciones Dijimos más arriba que desde 2002 que no pueden ser encuadradas dentro de los precios de los terrenos no han cesado de la ley (ocupación de más de un lote, lotes subir. No obstante, no hay datos sistemáticos de superficie elevada, alto valor fiscal del fiables como para realizar un diagnóstico del mismo, casos donde no se puede respaldar mercado de suelo urbano y de inmuebles en la posesión con documentación probatoria, 136 Book 35.indb 136 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 06/03/2016 17:30:32 ¿Y el título para cuándo? etc.). Además, la operatoria de regularización este tipo de situaciones que es denominada no obsta para que en caso de que aparezca usucapión especial urbana. Este instrumento oposición por parte del titular de dominio, la establecido en la Constitución de 1988, fue misma se frene y se deba resolver el conflicto incorporado en la Ley 10.257 conocida como en sede judicial, con altas probabilidades de “Estatuto de la Ciudad”, promulgada en 2001. terminar en favor del propietario si la posesión Esta ley respondió a la incorporación en la no alcanza los veinte años requeridos. La Constitución de 1988 de un capítulo dedicado Ley 24.374 sólo establece un procedimiento a la política urbanística, donde se establecían: abreviado y de carácter administrativo para a) que la política de desarrollo urbanístico la prescripción adquisitiva del dominio, pero tiene por objeto ordenar el pleno desarrollo no elimina el dominio del propietario original de las funciones sociales de la ciudad y en el caso de que este comparezca antes de garantizar el bienestar de sus habitantes; b) los 10 años, plazo en el cual se perfeccionan la obligatoriedad de un Plan Director para las actas-escrituradas labradas en el marco de toda localidad mayor a los 20 mil habitantes; implementación de la Ley. c) la función social de la propiedad urbana; d) En aquellos casos donde los veinte el parcelamiento y edificación obligatoria en años que establece el código civil para la aquellas áreas definidas por el Plan Director; realización de la usucapión ya se cumplieron e) la usucapión especial urbana de parcelas no parece haber mayores inconvenientes y de hasta 250 m2 al cabo de cinco años. Este difícilmente pueda revertirse la tenencia por derecho sólo podía ser otorgado una única parte del ocupante, independientemente de la vez y para aquellos hogares que no poseyeran titularidad del dominio, pero existen muchos otra propiedad. casos donde este plazo no se ha cumplido aún. Este último instrumento fue recogido Incluso pudiera darse la situación paradójica en el Est atuto de la Ciudad entre los de que el movimiento y difusión generado instrumentos de la política urbana (Capítulo por la implementación de la operatoria, que II, Sección V). Se preveía la posibilidad de incluye publicación de edictos y notificaciones realizar incluso una usucapión colectiva al domicilio de los titulares de dominio, genera en aquellos c asos donde no pudieran el efecto indeseado de “avivar” a muchos de ser delimitados con claridad los terrenos los propietarios que estaban completamente ocupados, constituyendo un condominio olvidados de su propiedad. Esto de hecho es especial que es indivisible salvo resolución uno de los temores concretos por parte de favorable de dos tercios de los condóminos. los habitantes, algunos de los cuales se han Las resoluciones relativas a la administración negado a iniciar el trámite de regularización de este condominio especial se tomarán por 17 por ese motivo. Existen otras formas de solución de esta problemática que se han intentado en sumatoria de posesiones con el poseedor anterior mientras éstas fueran continuas. países de la región. En Brasil, por ejemplo, La usucapión especial urbana supera se creó una figura para tratar de resolver la visión civilista del derecho de propiedad, Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 Book 35.indb 137 simple mayoría. Asimismo, se habilitaba la 137 06/03/2016 17:30:32 Tomás Alejandro Guevara que lo consideraba absoluto e ilimitado, popular. El problema no es tanto registral, de perpetuo y exclusivo. Esto implicaba que tenía titularidad de dominio, sino de seguridad de la el derecho de no usar, no gozar y no disponer tenencia. Es una cuestión de entender el suelo de su propiedad, generando una carga sobre el urbano en su faz de bien de uso antes que bien conjunto de la comunidad y el Estado. de cambio o patrimonial. Otro de los instrumentos de la política El centro del problema tiene que ver urbana fijados en el Estatuto de la Ciudad, con la concepción patrimonialista que nutre orientado a la regularización de la tenencia del nuestro ordenamiento jurídico, que interpreta suelo urbano, es la creación de Zonas Especiales al derecho de propiedad como un derecho de Interés Social (ZEIS). Las Zeis fueron creadas inviolable y perpetuo, sin importar la conducta por la Ley Prezeis de 1987, modificada en 1995 del titular del dominio, es decir, sus obligaciones y 1997. Sin embargo, la evidencia en Brasil y no sólo sus derechos. Esta concepción es contradictoria sobre la utilización de este patrimonialista desconoce de manera flagrante instrumento, porque según algunos autores la la renuncia o el descuido por parte de muchos declaración de una ZEIS no modifica la tenencia, propietarios con respeto a su propiedad ni modifica la percepción de la seguridad de la urbana, lo que genera múltiples inconvenientes tenencia (De Souza y Zetter, 2004). Si bien los de tipo urbanístico, económico y social para Zeis fueron importantes para eliminar el riesgo el conjunto de la sociedad. Esto configura un de desalojo de las ocupaciones, la definición de acto de abandono por parte del propietario Zeis sirvió para la introducción de mecanismos que debe ser tomado como causal de extinción del mercado formal en los asentamientos, de dominio, para permitir la recuperación de generando desplazamientos de la población estos terrenos abandonados para el patrimonio más vulnerable, al generarse expectativas de del Estado, como se desarrolla en Paolinelli, una ulterior legalización de la tenencia. Guevara y Oglietti (2014). Pese a la diversidad de instrumentos El abandono puede, o debiera, ser y experiencias, el acceso al suelo urbano y la considerado un uso abusivo del derecho seguridad de la tenencia son cuestiones todavía de propiedad, por lo que es causal de pendientes en los países de nuestra región, lo extinción del dominio, sin requerir mayores que redunda en una permanente – y cada vez operatorias o acciones de regularización para mayor – conflictividad social. Esta situación el saneamiento del dominio. El artículo 2607 pone de manifiesto las limitaciones de las CC18 establece que el dominio se pierde por políticas de regularización implementadas y abandono, aunque otro aún no se la hubiere la necesidad de replantear los alcances y el apropiado. Aunque otras normas del mismo contenido del derecho de propiedad. Pareciera código dan la idea de que el dominio es que no existe política de regularización que perpetuo, independientemente del ejercicio sea suficiente en un contexto general de que se realice de esto, mantener la ficción restricción de acceso al suelo urbano, porque de una “propiedad sin propietario” acarrea la irregularidad vuelve a generarse de manera perjuicios que la hacen incompatible con el permanente, por la misma dinámica del hábitat valor de justicia que debe ordenar y orientar 138 Book 35.indb 138 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 06/03/2016 17:30:32 ¿Y el título para cuándo? la actuación de la realización colectiva de la Tanto la extinción del dominio por comunidad (Paolinelli, Guevara y Oglietti, abandono como la prescripción administrativa 2014 ). Esto se debe a que el abandono son instrumentos que no estuvieron determina el incumplimiento de la función originalmente pensados para la regularización social de la propiedad, incorporado a nuestro de la tenencia en barrios populares de origen ordenamiento jurídico a través de tratados informal, sino que su origen está vinculado a internacionales con rango constitucional desde las obras de infraestructura civil por parte del la reforma de 1994.19 Extinguido el dominio Estado, como caminos, escuelas y otras. La por abandono, queda allanado el camino falta de instrumentos adecuados para atacar la para que el Estado adquiera la propiedad del informalidad urbana, ya que los existentes fijan inmueble en virtud de su dominio eminente plazos demasiado largos y costos superiores sobre todas las cosas que se encuentran a los que puede afrontar en general un hogar situadas dentro de los límites territoriales de de ingresos bajos, hacen que las alternativas la República que carecen de dueño, en nuestro disponibles no sean aplicables en la mayoría caso, en virtud del abandono del propietario. de los casos y los procesos de regularización Posteriormente, se podría proceder a transferir terminen naufragando, como suele ocurrir con los terrenos a nombre de los ocupantes para los juicios de usucapión. regularizar la tenencia de forma definitiva, Creemos que existe evidencia suficiente ceder el uso en comodato individual o por parte de la investigación académica y colectivo, o cualquier otra forma de asegurar de la implementación de políticas públicas la tenencia del suelo para el desarrollo del en materia de regularización de barrios hábitat en condiciones dignas, eliminando populares de origen informal, para reclamar toda la conflictividad y burocracia involucrada una reformulación del alcance y el contenido en las políticas de regularización. Este criterio del derecho de propiedad del suelo urbano y no otro está en la base por ejemplo de la y de los inmuebles, en virtud de garantizar utilización de la prescripción administrativa, el cumplimiento de la función social de la establecida por la Ley 24.320, en la Provincia propiedad y el derecho a la ciudad para los de Buenos Aires para la regularización de sectores populares. asentamientos informales (Scattolini, 2011). Para ello, se procedió a disponer la cesión de los derechos posesorios de los ocupantes en favor del Estado, que posteriormente inscribe Conclusiones los inmuebles y los vuelve a transferir hacia sus ocupantes. No obstante, este mismo Este artículo presentó resultados preliminares instrumento podría utilizarse para anticiparse de un trabajo de investigación en curso sobre a la conformación de los asentamientos, de políticas habitacionales y urbanas en San manera que el Estado pudiera incorporar Carlos de Bariloche. Se caracterizó el proceso tierras para generar una política de acceso al de urbanización de la ciudad, que presenta suelo urbano de forma sostenida. algunos rasgos comunes con otras ciudades de Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 Book 35.indb 139 139 06/03/2016 17:30:32 Tomás Alejandro Guevara perfil turístico, especialmente aquellas donde pueden ser encuadrados en el marco de dicha el atractivo se basa en el medio ambiente ley. También emergieron nuevos conflictos privilegiado, entre otros la fuerte incidencia vinculados a la consolidación y densificación de la especulación inmobiliaria, la excesiva del barrio. expansión suburbana resultante y la presencia La situación actual en Virgen Misionera de un stock importante de propiedades podría caracterizarse como una “tensa calma”, abandonadas por sus propietarios que fueron dado que la situación en general es de relativa progresivamente ocupadas. estabilidad y seguridad en la tenencia de los En este marco, se reconstruyó el proceso terrenos. La relativa abundancia de tierra de de regularización del barrio popular de origen expansión en la ciudad y el abandono por informal Virgen Misionera, ubicado a 7,5 parte de los propietarios permitió durante años kilómetros del centro de la ciudad, sobre la que los procesos de regularización pudieran ladera del cerro Otto. El poblamiento data avanzar de forma más o menos exitosa. No de más de 60 años, por lo que los habitantes obstante, en un contexto donde los precios de están arraigados en el lugar y el barrio está los terrenos se dispararon en los últimos quince completamente consolidado, pero todavía años y se recrudecieron los conflictos por el persisten problemas y conflictos vinculados a acceso a la tierra, el artículo reflexionó sobre la titularidad de las tierras con los propietarios los límites de las estrategias de regularización originales y emergen conflictos vinculados a la utilizadas en nuestro país que parecen ser consolidación del barrio. insuficientes como muestra la experiencia Desde mediados de la década de de Virgen Misionera. Asimismo, se planteó 1980, gracias al trabajo del cura Curulef y la la necesidad de reformular el contenido y el Fundación Gente Nueva se impulsó un proceso alcance del derecho de propiedad para dar de regularización progresiva, pero que todavía respuesta definitiva a las problemáticas del hoy está inconcluso. Recientemente se está acceso y la tenencia segura, poniendo de implementando la Ley 24.374 en la ciudad y en relieve la función social de la propiedad y las el barrio, pero existen numerosos casos que no obligaciones de los propietarios. Tomás Alejandro Guevara Universidad Nacional de Río Negro, Sede Andina, Centro Interdisciplinario de Estudios sobre Territorio Economía y Sociedad. San Carlos de Bariloche/Río Negro, Argentina. [email protected] 140 Book 35.indb 140 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 06/03/2016 17:30:32 ¿Y el título para cuándo? Notas (1) La ciudad de Bariloche es una localidad fuertemente determinada por el sector turís co (Méndez, 2010), independientemente de contar un importante sector de administración pública y un pujante sector de economía popular. En 2006, más de la mitad (51,3%) de su PBG fue generado por el sector turístico y actividades conexas (Monasterio 2006), mientras que el “complejo turís co” representaba en 2005 más del 45% de los empleos totales Abaleron (2007). (2) Se encontraron numerosos tes monios de folletería espuria en estas subastas masivas, donde se comercializaban localizaciones que no se correspondían con la ubicación real de los lotes. (3) Remi mos para una mirada histórica a Agüero (2007). (4) Entrevista con Gustavo Gennuso, miembro original del Equipo Pastoral de Tierras, realizada en febrero de 2013. (5) Una situación similar se puede encontrar con el Barrio Parque Villa Llanquihue o Don Bosco con la Junta Vecinal Llao-Llao, por ejemplo. (6) Al momento de empezar a escribir este ar culo se conoció la no cia del fallecimiento de Curulef, después de una larga enfermedad. (7) En el año 1982 se fundó la Escuela Virgen Misionera, en el año 1985 nace el Taller Mugica y en 1987 se inaugura el Jardín Arco Iris, todo en el barrio. Asimismo, en el año 1989 nace el Secundario Amuyén. La experiencia educa va lleva a la Fundación a trabajar más tarde en el Barrio 2 de Abril (34 Hectáreas), donde en 1994 comienza a funcionar el Taller de Capacitación Angelelli y un año después el Jardín Mundo Nuevo. En el 2000 se crea el secundario para adultos Jaime de Nevares funcionando en dependencias del Colegio Amuyén y se inaugura también la Escuela primaria Nuestra señora de la Vida. Finalmente, en 2008 empezó a funcionar la Escuela Técnica Nehuen Peuman. La Fundación Gente Nueva es una de las organizaciones más grandes del país en materia de ges ón social educa va. (8) Al respecto decía Monseñor Hesayne en su Exhortación Pastoral Postsinodal: (9) “Se trata de evangelizar a todo el hombre rionegrino y a todos los hombres rionegrinos. Vale decir que la acción evangelizadora ha de llegar a la totalidad de cada una de las personas individuales y a la totalidad del pueblo de nuestra provincia: al corazón de cada hombre y mujer, a la cultura de nuestro pueblo y a sus estructuras y ambientes sociales.” “2.2. Tengamos en cuenta, en primer lugar, a los dueños primi vos de nuestro suelo, a la "gente de la erra", los mapuches, dominados, avasallados, despreciados y oprimidos por el "huinca", el blanco cris ano. (…). Digamos lo mismo acerca de sus numerosos descendientes que pueblan los barrios marginados de nuestras ciudades, desarraigados de su terruño y de sus costumbres. “2.3. Una buena parte de la mano de obra en la Patagonia la cons tuyen desde hace empo muchos hermanos chilenos, que siguen cruzando la frontera en número considerable, apremiados por la realidad socio-económico-política del país. Tenemos para con ellos un especial deber de fraternidad y de hospitalidad”. “5.3. En consecuencia, la primera instancia en nuestra acción evangelizadora es reconocer la pobreza-miseria concreta en Río Negro: el hambre y falta de vivienda de muchas familias; la desocupación y marginación de muchos trabajadores; la opresión en que subsisten los aborígenes, primeros dueños de esta tierra patagónica; los peones de chacras y campos desprotegidos socialmente; los trabajadores golondrinas; los migrantes, especialmente chilenos; los pobladores de barrios periféricos, centros suburbanos y zonas rurales. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 Book 35.indb 141 141 06/03/2016 17:30:32 Tomás Alejandro Guevara Los pobres no son una abstracción, tienen nombre y apellido y son víctimas de situaciones y estructuras injustas que debemos superar. Con esos pobres, entonces tendremos que identificamos para ser la Iglesia de Jesucristo, sin olvidar, por supuesto, a los enfermos y moribundos, ancianos y presos, que sufren otra forma de pobreza.” “5.5. En las propuestas de nuestro Sínodo aparece clara y reiteradamente la necesidad de la presencia de la Iglesia en los barrios más pobres, en las zonas marginadas, la necesidad de pensar la evangelización no desde el centro sino desde la periferia, la necesidad de estructurar la Iglesia desde los valores de los pobres, compar endo sus problemas, alegrías y esperanzas, lejos de paternalismos o beneficencias. Para más de uno de nosotros eso significará morir a nosotros mismos, a nuestros esquemas "clasistas", para elevarnos a la dignidad humana de hijos de Dios y capacitarnos, en todos los órdenes de la vida, como miembros ac vos de la Iglesia.” “5.10. "Desde los pobres a todos" no es simplemente una estrategia pastoral. Es la dirección existencial tomada por Jesucristo en su peregrinaje histórico. Para nosotros, es la única forma en que podemos captar el plan de Dios y ser fieles a él. Puestos en oración sincera ante Dios, personal y comunitariamente, decidiremos qué tenemos que hacer como individuos o instituciones, en orden a una vida cristiana auténtica, con relación al uso o renuncia de bienes materiales, y con relación a compromisos polí cos o búsqueda de alterna vas sociales realmente evangélicas. "Desde los pobres a todos" no es nada más ni nada menos que el camino para lograrnos como Iglesia pobre, desprovista de medios de poder humano contando en forma ilimitada con la fuerza de Jesús Resucitado; lugar de comunión visible, mediante verdadera par cipación de bienes y personas; camino de gozo y esperanza de un mundo rionegrino más justo y fraterno, para gloria de Dios bendito.” “6.1. No hay vida cristiana sin comunidad. Sólo en comunidad podemos escuchar, acoger y anunciar a Jesucristo. Ella nos permite lograr concretamente la comunión eclesial y cons tuirnos así en un signo posi vo de que han germinado en el corazón humano los valores del Reino: del Reino que Jesús anuncia luchando contra la opresión, la injus cia, la marginación y discriminación de cualquier tipo, como testimonio de una real "comunión" con Dios y los hombres.” (9) La Junta Vecinal se encuentra recaudando fondos mensualmente para la realización de este proyecto, para lo cual se hizo un presentación para pedir financiamiento a un organismo de nivel nacional. (10) Entrevista con integrante original del grupo pastoral de Curulef y miembro fundador de la Fundación Gente Nueva, realizada en octubre de 2014. (11) Estos datos surgen de la sistematización que se hizo de los archivos y documentos del EPT en el marco de un proyecto de extensión co-financiado por la SPU y la UNRN, que dirige el autor, tulado “Alterna vas de resolución de conflicto vinculado al hábitat: asocia vismo y regularización”. (12) Se recuperan en esta sección elementos de Di Virgilio, Arqueros y Guevara (2012) (13) Ar culos 75 inc. 17, 41 y 43. (14) Este número sale de es maciones informales, no hay datos oficiales, por parte de funcionarios del Instituto Municipal de Tierras y Viviendas para el Hábitat Social en el año 2012, cuando parecía inminente la puesta en marcha de la operatoria. (15) En 2006 se había producido la toma masiva de más de 2.000 lotes que dio origen al actual barrio de Nahuel Hue, en la zona denominada Pampa de Huenuleo. 142 Book 35.indb 142 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016 06/03/2016 17:30:32 ¿Y el título para cuándo? (16) Según la expresión de uno de los técnicos involucrados en su formulación (17) Coherentes con su visión sobre el accionar de la anterior conducción de la Junta Vecinal Virgen Misionera, algunos miembros del EPT achacan a los ex integrante de la comisión, el haberse contactado con dueño an guos en virtud del inicio de la implementación de la operatoria de regularización. (18) Esta numeración se corresponde con el viejo Código Civil, que fue reemplazado recientemente, pero con posterioridad a la elaboración de este ar culo, por un nuevo Código Civil y Comercial, sin mayores novedades rela vas a los derechos reales. Pese al reclamo de diversos sectores, no se incorporó al nuevo código la reglamentación de la función social de la propiedad incorporada por tratados internacionales como el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales. De esta manera, el vacío legal sobre cuáles son los alcances del derecho de propiedad habrá de mantenerse en el empo, alentando la interpretación hegemónica sobre el alcance ilimitada de este derecho y generando una innecesaria conflic vidad social en aras de mantener una ficción jurídica inconducente. (19) En estos días se está por sancionar en el Congreso de la Nación una nueva versión unificada de los Códigos Civil y Comercial. Si bien exis eron numeroso pronunciamientos por parte de organizaciones e ins tuciones por la incorporación explícita de la función social de la propiedad, entre otras cuestiones relevantes relativas al hábitat, el pedido no encontró eco en los legisladores. Referências ABALERON, C. A. (2001). The Pros and Cons of Peri-Urban Management in a Tourist City. In: DPU INTERNATIONAL CONFERENCE: RURAL-URBAN ENCOUNTERS: MANAGING THE ENVIRONMENT OF THE PERI-URBAN INTERFACE. Londres. ______ (2007). Documento de la base territorial de San Carlos de Bariloche. 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Como pano de fundo do debate teórico, têm-se as ocupações urbanas em contraponto aos empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida em Belo Horizonte, diante de uma crise urbana agravada pela: (1) intensificação do padrão periférico das cidades; (2) vinculação do capital imobiliário ao capital financeiro; (3) imobilidade política em se realizar a reforma urbana; (4) imposição da propriedade privada condominial; (5) ineficiência do judiciário; (6) associação Estado-capital; (7) discursos estrategicamente construídos, em nada propositivos. O objetivo é entrelaçar dimensões teóricas (Jacques Rancière, Aristóteles, Marx e Chantal Mouffe) vinculadas às possibilidades de redistribuição dos processos de tomada de decisão em torno da cidade. Abstract The article deals with the daily struggle for access to the right to housing and the city. Aligned with the theoretical debate, we have the urban occupations in contrast with the Minha Casa Minha Vida Program in the city of Belo Horizonte (Southeastern Brazil), within an urban crisis aggravated by: (1) the intensification of the peripheral pattern of cities; (2) the fact that the real estate capital is linked to the financial capital; (3) the political immobility in carrying out the urban reform; (4) the imposition of the private condominium property; (5) the inefficiency of the judiciary; (6) the State-capital association; (7) strategically built discourses, which are not propositional. The goal is to intertwine theoretical dimensions (Jacques Rancière, Aristotle, Marx and Chantal Mouffe) with the possibilities of redistribution of decision-making processes around the city. Palavras-chave: ocupações urbanas; moradia; políticas habitacionais; direito à moradia; Minha Casa Minha Vida. Keywords: urban occupations; housing; housing policies; right to housing; Minha Casa Minha Vida Program. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3507 Book 35.indb 145 06/03/2016 17:30:32 Denise Morado Nascimento Introdução Parece haver um desencantamento generalizado entre os cidadãos diante da incapacidade de construir e de deliberar decisões em instâncias supostamente democráticas, porém, continuamente alimentadas pelos processos brutais de mercantilização das coisas e das relações sociais. No capitalismo contemporâneo, tudo parece estar (ou, de fato, está) reduzido a mercadoria. Por outro lado, é preciso reconhecer os movimentos de resistência que, contrários ao modelo hegemônico neoliberal vigente, vêm construindo outras ações práticas e políticas calçadas, essencialmente, pelo direito à moradia e à cidade. Inegavelmente, não podemos dissociar as razões (objetivas ou subjetivas) dos movimentos de resistência das condições das As ocupações são uma realidade cabal e só não enxerga quem não quer ver. São tão intensas quanto necessárias, pois são a política habitacional mais efetiva no Brasil de hoje e ainda serão até que a reforma urbana seja feita e as cidades deixem de ser planejadas para a minoria rica, passem a privilegiar os outros 99% que a constroem todos os dias. As ocupações são espaços de saberes, de experiências populares, partes componentes do embrião que gerará o novo. (Leonardo Péricles)1 O Poder Público não pode mais negar a existência das ocupações urbanas e a necessidade de elas se verem inseridas à cidade e aos serviços públicos nela oferecidos. As ocupações se apresentam como solução de moradia para os mais pobres e sua consolidação no tempo reforça ainda mais a aquisição do direito à regularização fundiária. (Cleide Aparecida Nepomuceno, in Morado Nascimento, 2015, p.104) 2 cidades, assim como os protestos políticos de junho de 2013, justificadas pelo fato de que é O Tribunal de Justiça de São Paulo levan- nas cidades que se dá a reprodução da força de tou que, somente na capital paulista, foram trabalho (Maricato, 2013). abertas cerca de 100 mil ações de reintegra- Estamos imersos em uma crise urbana ção de posse nos anos de 2007 a 2015, sendo que é cotidianamente agravada pela intensi- 1.659 entre janeiro e maio de 2015 (Shalom, ficação do padrão periférico das cidades, pela 2015). De acordo com reportagem do Jornal vinculação do capital imobiliário ao capital fi- O Tempo, dados da Urbel revelam que existem 461.480 pessoas morando em ocupações irregulares em Belo Horizonte – cerca de 20% da população local – sendo 10.400 nos “novos acampamentos”, isto é, ocupações urbanas (Miranda e Câmara, 2013).3 No horizonte deste artigo, estão as possibilidades de se colocar o direito de se decidir sobre a cidade à frente do direito de se consumir a cidade. Entendemos a cidade que queremos ou a cidade justa para além da cidade que deve democraticamente permitir o acesso aos nanceiro, pela imobilidade política em se realizar a reforma urbana, pela imposição da propriedade privada condominial nas cidades, pela ineficiência do judiciário, pela associação Estado-capital e pelos discursos estrategicamente construídos, em nada propositivos. Nesse cenário da cidade-negócio, as ocupações urbanas em Belo Horizonte, foco desse artigo, mas também no Brasil, se propagam como movimentos de resistência às políticas habitacionais: 146 Book 35.indb 146 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 06/03/2016 17:30:32 As políticas habitacionais e as ocupações urbanas bens e serviços; referimo-nos às possibilidades (Rancière, 1996a, p. 10). Se considerarmos a efetivas de redistribuição dos processos de to- concepção política da ação humana a partir da mada de decisão em torno de uma cidade que prática dos homens, assim colocada por Marx, é de todos. Baseados nessa visão, pressupomos podemos pressupor que há um dissenso entre que os moradores das ocupações urbanas to- como o Estado governa a cidade – políticas mam a cidade como um corpus político coleti- públicas urbanas –, e o que os cidadãos que- vo e estão interessados em viver sob outro modelo de cidade, onde as suas ações no espaço, portanto, ações humanas, prevaleçam sobre as escassas possibilidades de apropriação do espaço e de vida urbana contemporânea impostas pela associação Estado-Capital. O artigo será entremeado por: (1) Jacques Rancière, que diz que o ato de fazer política nasce do dissenso; (2) Aristóteles, que trata a experiência de pensamento na dimensão prática para transformar a realidade insatisfatória; (3) Marx, e os conceitos de comunidade e comum; e (4) Chantal Mouffe, que insiste que a dimensão do político está ligada à dimensão do conflito. O objetivo aqui é entrelaçar e dar sentido a essas dimensões naquilo que nos interessa: as políticas habitacionais e as ocupações urbanas bem como as práticas compartilhadas entre movimentos sociais, moradores e universidade contrários à cidade neoliberal. rem da cidade. O direito à cidade, apresentado como pauta central dos movimentos urbanos de resistência atuais, conforma-se, assim, para além da visita à cidade ou do desejo de acesso. Nomeado por Lefebvre como direito à vida urbana, refere-se ao direito de mudar a cidade ou, em outras palavras, o direito de decidir sobre a cidade que se quer (Harvey, 2013). A cidade ou o espaço urbano é constituído pela relação de forças entre os atores sociais que o alimentam, o preservam ou o transformam de acordo com seus interesses em torno da disputa de seus objetos – incluindo moradia, museus, escolas, hospitais, espaços públicos, parques, transporte, serviços urbanos. Em outras palavras, a sociedade contemporânea está estruturada pela disputa por espaço urbano, por lugares, essencialmente a moradia, mas também estrutura a mesma disputa, a partir do desentendimento que se tem ou não da cidade onde queremos viver ou da cidade que cotidianamente produzimos. Dissenso e conflito Hoje, o dissenso assentado no capitalismo contemporâneo gira para além dessa dis- Diante do capitalismo contemporâneo, basea- puta de lugares, agravada pelo cenário brasilei- do no sistema de mercado neoliberal que tem ro que coloca a casa como ativo financeiro (pe- o Estado como agente interveniente no cam- lo subsídio ou pelo microfinanciamento) para po socioeconômico, ao lado de produtores e entrar no circuito econômico financeiro global, consumidores livres para produzir e consumir, alimentado pela maquinaria da propriedade o trabalho próprio da política parece ser “ape- privada e pela massificação internacionalizada nas o de adaptação pontual às exigências do da casa.4 As ocupações urbanas trazem em si o mercado mundial e de uma distribuição equita- dissenso já que retiram do mercado imobiliário tiva dos lucros e dos custos dessa adaptação” um espaço que seria mais um ativo financeiro. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 Book 35.indb 147 147 06/03/2016 17:30:32 Denise Morado Nascimento O dissenso, explicitado por Rancière expressivas da população. Assim, evitamos que (1996a), não é o conflito entre aquele que diz as leis (más ou boas, mas sempre dúbias) sejam branco e aquele que diz preto. É o conflito en- identificadas como único pressuposto na análi- tre aquele que diz branco e outro que diz bran- se do conflito, isto é, a legalidade da ação. co também, mas não entende a mesma coisa; As ocupações urbanas visibilizam a vi- ou não entende de modo nenhum que o outro da urbana que se quer, sendo a cidade per se diz a mesma coisa com o nome de brancura. e não fragmento socioespacial independente Isto é, o dissenso não diz respeito apenas às da ilegalidade que lhe confere existência. As palavras e não pode ser confundido com des- ocupações urbanas existem em razão do exer- conhecimento. Incide sobre a própria situação cício amplo do direito de moradores de mudar dos que falam. Não é meramente oposição en- a cidade quando decidem ocupar um terreno, tre, por exemplo, governo e pessoas que o con- de forma organizada, e emergirem uma rede testam, mas o “conflito sobre a própria confi- de atores sociais (ativistas, organizações civis guração do sensível” (Rancière, 1996b, p. 373). e grupos de universidades), como ação política Não deve ser antagonismo, como também diz coletiva efetivada por um desvio na forma em Mouffe (2006), mas agonístico na medida em que a cidade se constrói. Ou, tomando as pala- que adversários (e não inimigos) com ideias a vras de Rancière (1996b, p. 370), como ruptura serem combatidas dividem simbolicamente o na “lógica da dominação suposta natural”, ins- espaço (ou a cidade). tituindo-se um mundo comum, tornado comum A análise do conflito que desvela a exis- pela própria divisão – uma comunidade políti- tência das ocupações urbanas, entendido como ca. Nas ocupações urbanas, essa comunidade dissenso, leva-nos ao seguinte pressuposto. Se, política se configura em razão da identificação por um lado, as ocupações urbanas emergem primeira de um todo (a cidade) que rompe com como áreas ilegais diante das premissas jurídi- aquilo ou desvia daquilo que lhe é de direito cas que colocam o direito de propriedade como (políticas habitacionais); por isso, não existem o mais sólido e amplo de todos os direitos sub- apenas em virtude da reunião de um grupo que jetivos patrimoniais, por outro, tornam-se legí- demanda acesso aos bens e serviços urbanos. timas diante do Estatuto da Cidade que ordena Tratando-se das políticas habitacionais, ações de interesse social para a democratiza- referimo-nos ao Programa Minha Casa Minha ção de utilização do espaço urbano, calcadas Vida (PMCMV) – FAR, programa federal de fi- pela função social da propriedade. Sendo a ile- nanciamento de moradias nas áreas urbanas galidade urbana não mais a exceção diante da para famílias de baixa renda de até R$1.600,00 crise urbana, mas a regra, torna-se claro que, (Faixa 1), por meio de uma instituição financei- para além das (enormes) questões jurídicas, ra, CAIXA, em parceria com municípios e em- há que se repensar os modos de intervenção presas privadas.5 Os beneficiados contam com no espaço, o papel e a relevância da norma e subsídio integral e isenção de seguro, garanti- da lei, as relações de poder instituídas; enfim, dos pelo governo federal, e são alocados por uma rede de aparatos que empurram para a sorteio a partir de critérios de prioridade fede- informalidade e para a ilegalidade parcelas rais e municipais. 148 Book 35.indb 148 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 06/03/2016 17:30:32 As políticas habitacionais e as ocupações urbanas Políticas habitacionais em Belo Horizonte6 Extensos estudos avaliativos sobre o PMCMV têm sido publicados em eventos e periódicos acadêmicos, essencialmente, sobre: os agentes resultando em alta inadimplência e conflitos com os síndicos. Na prevalência de relações privadas e de espaços isolados, são favorecidas as mediações do narcotráfico e de milícias, organizações que tomaram a gestão de alguns dos condomínios estudados pelas equipes. (Nota Pública Rede Cidade e Moradia) e operações do Programa; demanda habitacional e a oferta do Programa; desenho, projeto A Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), e produção dos empreendimentos; e a inserção por meio da Urbel em parceria com as cons- urbana e segregação socioespacial dos mes- trutoras, tem implementado majoritariamente mos. Destacamos aqui os trabalhos relacio- tipologias rígidas e homogêneas de aparta- nados à Rede Cidade e Moradia que avaliou mentos de dois quartos com 39 a 44m2 (em empreendimentos em 22 municípios de seis es- atendimento ao padrão médio de família bra- tados: Pará, Ceará, Rio Grande do Norte, Minas sileira – pai, mãe e dois filhos), distribuídos em Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.7 Neste arti- dois por andar e organizados em edifícios de 4 go, referimo-nos, em especial, aos estudos de ou 5 pavimentos em formato “H” ou “em fita”, avaliação do PMCMV na Região Metropolitana dispostos em condomínios privados nas franjas de Belo Horizonte (RMBH); contudo, todos os periféricas urbanas, desagregadas socioespa- trabalhos da rede apontam para problemáticas cialmente das cidades. estruturais do Programa que tem impactado as cidades e a vida das famílias beneficiárias. É particularmente preocupante nos conjuntos analisados, a forma-condomínio que predomina; preocupante, sobretudo, para os setores mais vulneráveis na Faixa 1 – com menor renda, com menor escolaridade, com vínculos de trabalho mais precários, fortemente dependentes de programas sociais e de transferência de renda. Uma situação inexplicável de não aplicação de tarifas sociais para os serviços de água e de energia pelas concessionárias se alia a taxas de condomínio e tem impactado fortemente o aumento das despesas associadas à moradia, já gerando problemas sérios de sustentabilidade econômica e social dos conjuntos. Verificamos, em vários casos estudados, o colapso da gestão condominial por conta dos custos de manutenção de espaços coletivos em relação à renda dos moradores, Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 Book 35.indb 149 Tradicionalmente caracterizado como moradia das classes médias dos grandes centros, o apartamento vem ganhando terreno como moradia de grupos de mais baixa renda, principalmente a partir da expansão da produção imobiliária na década de 2000. Trata-se de uma tipologia que potencializa o uso do solo e, portanto, a apropriação da renda fundiária e, no caso do PMCMV, por meio da propriedade privada condominial. A Urbel explicita que a configuração espacial do apartamento do PMCMV, baseada na tripartição funcional modernista dos setores da casa – social, serviço e íntimo – e no pré-dimensionamento a partir do mobiliário, vem de outros programas de governo como o PAR (Programa de Arrendamento Residencial), tendo sido construído historicamente e nacionalmente inclusive com a participação de técnicos 149 06/03/2016 17:30:32 Denise Morado Nascimento da PBH. Esses programas anteriores subsidia- e da consequente diversidade dos conjuntos. ram o PMCMV, não só em seus arranjos ins- Nesse sentido, há um equívoco conceitual nos titucional e financeiro, mas também em suas pressupostos técnicos-financeiros presente nos diretrizes técnicas para o projeto. Como a Caixa discursos tanto das construtoras quanto da não pode legislar, até mesmo porque as prefei- Urbel. Ao fim, as diretrizes mínimas exigidas turas têm suas legislações municipais próprias, tornam-se máximos a serem cumpridos, con- a referência do mobiliário dada pelas especifi- tribuindo para a padronização dos ambientes cações mínimas do programa, referendadas pe- e das cidades. la Caixa, objetiva limitar minimamente a área O discurso “de fazer o que a lei manda”, da unidade. A Urbel acata essas especificações sob a ótica de todas as construtoras como cum- por entender que é possível conseguir bons ar- pridoras do seu dever, e que converge com o ranjos de projetos trabalhando com o referen- discurso da Caixa, “eles fazem o mínimo que a cial do mobiliário ao invés de definir medidas gente pede”, tem alimentado continuamente a mínimas para os cômodos e defende que a produção do PMCMV. Todas as regras e exigên- melhoria da “arquitetura” e da tipologia em- cias do PMCMV, ainda que estabelecidas pela pregada deve estar vinculada à padronização Caixa e Ministério das Cidades e cumpridas dos processos e dos componentes que agilizam pela iniciativa privada, permitem o protago- projeto e construção. nismo das construtoras na definição espacial, Paradoxalmente, a padronização de construtiva e territorial, gerando-se, ao final, processos e de componentes não obrigatoria- um padrão nacional de moradia social acatado mente atrela-se à padronização de soluções pelos municípios, independentemente das ca- de projeto (tanto das unidades quanto dos racterísticas físicas dos terrenos, das condições espaços públicos), não sendo, portanto, impe- bioclimáticas locais e das necessidades habita- ditivo de flexibilização e variedade tipológica cionais dos moradores. Figura 1 – Apartamentos PMCMV/FAR em Belo Horizonte Residencial Jaqueline, Belo Horizonte Construtora Marka Fonte: Urbel /Portal PBH. 150 Book 35.indb 150 Residencial Hibisco, Jd. Vitória, Belo Horizonte Construtora Emcammp Fonte: Praxis (2014). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 06/03/2016 17:30:32 As políticas habitacionais e as ocupações urbanas Figura 2 – Apartamentos PMCMV/FAR no Brasil Residencial Mangabeira, Uberlândia Construtora Emcammp Fonte: www.emcammp.com.br. Bairro Carioca, Rio de Janeiro, Construtora Direcional Fonte: Jornal Extra Globo (2013). A implantação do padrão nacional de refere à inserção urbana, desenho, projeto e moradia social no formato de condomínio pa- produção, afirmamos que o programa tem tor- rece ter como fim a simplificação burocrática nado secundário a segregação socioespacial de alguns aspectos, especialmente no que tan- e todas as questões que a acompanham visto ge à aprovação de projetos e à responsabilida- que não superam a felicidade dos moradores de pela gerência dos espaços comuns. Entre- em ter finalmente alcançado o “sonho da casa tanto, tal padronização amplia-se nos espaços própria”, imposição historicamente construída coletivos, predominantemente conformados no país, desde o período Vargas: “ficamos livre pela área de estacionamento, por uma área do aluguel”; “o apartamento é bom”; “agora coberta (com pia externa e banheiros, denomi- estou em um lugar sequinho”; “o apartamento nada “centro comunitário”) e, eventualmente é meu”; explicitam os moradores. uma quadra, ou um campinho, ou um parquinho infantil, todos resultantes da implantação genérica e repetitiva dos blocos. Tais espaços PMCMV e déficit habitacional acabam-se tornando objetos de conflito entre os moradores e, por consequência, de uso res- A PBH (Urbel, 2015) entregou até setembro de trito regulamentado pelos síndicos e/ou con- 2015, 2.705 unidades habitacionais PMCMV/ trolado pelo tráfico. FAR; ou seja, 3,45% do déficit habitacional de Paradoxalmente, ao fim de um ciclo de crítica do PMCMV, principalmente no que se Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 Book 35.indb 151 78.340 unidades, segundo a Fundação João Pinheiro (FJP, 2013), sendo: 151 06/03/2016 17:30:32 Denise Morado Nascimento na região Nordeste: 1.470 unidades no Jar- quanto em termos relativos no ano subsequen- dim Vitória II (Bairro Jardim Vitória); 410 uni- te. Essa elevação pode ser atribuída ao aumen- dades no Conjunto Habitacional Parque Real to no componente ônus excessivo com aluguel; (Bairro Conjunto Paulo VI); 2) na produção estimada de unidades PMCMV/ ● ● na região do Barreiro: 80 unidades no Resi- FAR para 2016, incluem-se cerca de 11.000 dencial Parque dos Diamantes (Bairro Diaman- unidades da região Granja Werneck (região te); 150 unidades nos Residenciais Coqueiros I Norte), área-objeto tanto da Operação Urbana e II (Bairro Tirol) Consorciada Izidoro (Ouci) quanto das ocupa- ● na região Norte: 135 unidades no Residen- cial Jaqueline (Bairro Jaqueline); ções urbanas Rosa Leão, Vitória e Esperança com aproximadamente 4.000 famílias, em na região Leste: 240 unidades no Residen- atual processo de reintegração de posse, mas cial Orgulho de Minas II (Bairro Vera Cruz); 220 com despejo suspenso pelo Superior Tribunal unidades no Residencial Amazonas (Bairro Ve- de Justiça de Minas Gerais, ocupações essas ra Cruz); detalhadas mais à frente. ● e, estão em execução mais 1.974 unidades: Os mecanismos que permitem fazer “ro- na região Nordeste: 780 unidades no Con- dar” o PMCMV em Belo Horizonte induzem o junto Habitacional Parque Real – Residenciais processo de planejamento da habitação social Água Marinha e Granada (Bairro Conjunto voltado única e exclusivamente para a produ- Paulo VI) ção quantitativa de unidades, em um processo ● na região do Barreiro: 580 unidades nos alienado da análise macro de dinâmica socio- Residenciais Serras de Minas I e II (Bairro Ja- territorial própria de uma região metropolitana tobá), 300 unidades no Residencial Pinheiros e da realidade social, física e política do municí- (Bairro Diamante), 76 no Residencial Parque do pio. À cidade, são impostas políticas de produ- Jatobá (Bairro Vale do Jatobá) ção massificada de condomínios privados sem ● ● na região Norte: 58 unidades no Residen- cial Colibris (Bairro V. Tabelião Ferraz) ● na região Leste: 180 unidades no Residen- cial Manaus (Bairro Vera Cruz) urbanidade e de higienização de territórios já ocupados. Em razão dessa ineficiência da gestão pública e da intensificação da carestia da vida urbana na RMBH, os movimentos sociais Segundo a Urbel (2015), o PMCMV/FAR passam a se orientar pela maior efetivação e apresenta potencial para construção, até 2016, legitimação das ocupações urbanas, objetivan- de 23.973 unidades (incluindo-se as unidades do promover alternativa à provisão habitacio- em execução), o que representaria cerca de nal para os pobres.8 34% do déficit habitacional de Belo Horizonte Dessa forma, o dissenso diante da luta apontado pela FJP (2013). Destacamos, porém, sociopolítica pela moradia enfrentada pelos duas questões: 1) das nove regiões metropoli- pobres na cidade e das premissas quantita- tanas pesquisadas pela FJP (2014), cinco delas, tivas do PMCMV amplia-se: a posse da terra Fortaleza, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São urbana por meio do parcelamento horizontal Paulo e Curitiba, apresentaram aumento no de lotes individualizados junto com a casa déficit habitacional tanto em termos absolutos autoconstruída passam a compor o único e o 152 Book 35.indb 152 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 06/03/2016 17:30:32 As políticas habitacionais e as ocupações urbanas imediato caminho a ser percorrido. Vale des- fundamentais”, ressalta Leonardo Péricles tacar que, em Belo Horizonte, as ocupações (Morado Nascimento, 2015, pp. 107-108). urbanas de prédios vazios são vistas com grandes reservas, geralmente entendidas pelos moradores como negação do seu modo de viver, mas também impeditivas da posse individualizada do terreno. “Contradições Pensamento prático, comunidade e comum existem, essa aparente liberdade de construir, de conquistar o lote e agora ‘construir minha No atual cenário de crise política, econômica casinha’ tem muito de positivo, mas por ser e urbana, embebida pela produção de mo- mais uma das ‘liberdades’ dentro de um siste- delos habitacionais favoráveis à associação ma altamente desigual, isso [o individualismo] Estado-Capital, como agir? O que fazer diante acaba sendo aparente em muitos casos”, in- das tragédias urbanas cotidianamente vividas forma Leonardo Péricles (Morado Nascimento, pelos pobres nas grandes cidades? Que pos- 2015, pp. 107-108). Tal contradição – o caráter sibilidades os movimentos sociais agregam individualista da autoconstrução – é parte de quando inseridos em uma rede de atores dis- outro conflito interno; as disputas políticas tintos como, por exemplo, grupos de pesquisa entre movimentos sociais, nem sempre re- das universidades? lacionadas ao enfrentamento cotidiano com Em seu livro Metafísica, Aristóteles des- o poder público. A autoconstrução de casas, velou a experiência do pensamento racional essencialmente pela alvenaria de tijolos cerâ- em três dimensões: 1) a teorética, que trata micos, “não é vista como uma ação política de explicar a realidade, a natureza e o mundo; de formação dentro do contexto da ocupação o que é próprio da ciência e da filosofia; 2) a urbana”, lembra Tiago Castelo Branco, mas é poiética, que trata de fazer, de confeccionar símbolo de solidez imediatamente incentivada algo novo, belo ou útil, que é próprio da arte e fomentada pelos movimentos sociais para e da técnica; e 3) a prática, que trata de agir dificultar um eventual despejo (Morado Nas- para transformar uma realidade insatisfatória, cimento, 2015, p. 112).9 próprio da ética e da política (Wolff, 2010). Para além dos conflitos internos, as Acatando o que disse Aristóteles, exer- ocupações urbanas naturalmente são afetadas cer o pensamento prático faz-se necessário pa- também pelos conflitos da cidade: a violência ra agir sobre as coisas e interferir na realidade. doméstica e a presença do tráfico. Contudo, “o Calçado pelos pensamentos ético e político, resultado das ocupações e das forças sociais a prática completa-se por dois pensamentos: que elas conseguem atrair para a disputa vai “de um lado, uma razão para agir: é o pensa- muito além da conquista da casa; impõe na mento que diz que o mundo vai mal. Do outro, sociedade, ou ao menos em uma parte dela, uma finalidade para a ação: é o pensamen- a discussão de um modelo excludente, es- to que sabe o que é preciso fazer para que o cancara a falta de compromisso do Poder Pú- mundo vá bem” (Wolff, 2010, p. 47). A trans- blico com a vida e com os direitos humanos formação da realidade, assim, está assentada Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 Book 35.indb 153 153 06/03/2016 17:30:32 Denise Morado Nascimento nas possibilidades de escolhas e de decisões razão da língua, história, mitos, crenças e sím- livres da dominação tecnológica e científica bolos. Nesse sentido, Gemeinwesen reafirma-se (no sentido da ciência) e da ordem política (no pelo aspecto essencialmente político alinhado sentido do Estado). Se assim é, o homem não à ideia de autonomia que implica autodetermi- se apropria do mundo, mas age no mundo e o nação e autogoverno. ponto de partida da experiência do pensamen- Pogrebinschi (2009), contudo, explicita to prático, então, é o dissenso diante do que que o termo Gemeinwesen tem sido usado co- há no mundo. mo aproximação do termo commonwealth, mas Marx (apud Pogrebinschi, 2009, p. 198) não pode corresponder ao termo commune.10 também vincula o político à experiência huma- A comunidade é identificada à Gemeinwesen na: “só o sentimento próprio dos homens, sua no sentido de fazer oposição ao Estado e subs- liberdade, pode fazer a sociedade novamente tituí-lo. Esse sentido político de Gemeinwesen um dia se tornar uma comunidade em que os sustenta o conceito de comunidade como as- homens possam realizar seus objetivos mais sociação do ser coletivo e do ser individual, do elevados, uma pólis democrática”. Falar em todo e das partes, abrangendo “não apenas liberdade ou liberdade na comunidade, assim indivíduos singular e empiricamente existen- proposto por Marx, significa entender a comu- tes, mas a natureza humana como um todo” nidade como associação dinâmica e constan- (Pogrebinschi, 2009, p. 194). te de indivíduos independentes em torno de No capitalismo contemporâneo, o dis- propósitos comuns (Assoziation), e não como senso sobre a cidade aflora a incapacidade união estável ou isolada (verein). Interessa- de se manter o indivíduo como membro da -nos, aqui, os conceitos de comunidade e de comunidade na medida em que os indivíduos comum vindos de Marx como referências para se encontram separados de sua essência po- experiência do pensamento prático nas ocupa- lítica (viver em um espaço organizado como ções urbanas, explicitado mais à frente. Utiliza- Gemeinwesen) e social (ser constituídos como Gemeinwesen). O conceito de comunidade em Marx permite emergir a “tensão que desde ali já se estabelece entre aquilo que consiste supostamente na esfera das relações econômicas, a sociedade civil, e o campo das relações políticas, o Estado” (Pogrebinschi, 2009, p. 196). Em outras palavras, entendemos que a separação histórica do indivíduo como membro da comunidade, assim colocado por Marx, tem reduzido nossa experiência do pensamento prático, essencialmente na dimensão do pensamento político. Contudo, voltando à Rancière (1996b, p. 371), entendemos que o retorno à comunidade ou ao mundo tornado comum se remos as análises históricas sobre o trabalho de Marx realizadas por Pogrebinschi (2009). Segundo a autora, Marx usa o vocábulo francês commune para referir-se às comunidades arcaicas ( Gemeinschaft ) e o termo Gemeinwesen para referir-se às comunidades germânicas. Enquanto Marx usa o termo Gemeinwesen como uma forma de organização política que se apresenta alternativamente a quaisquer formas particulares que o Estado porventura assuma, Gemeinschaft apresenta-se mais como conceito sociológico na medida em que se refere a um agrupamento de pessoas compartilhando um sentimento comum em 154 Book 35.indb 154 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 06/03/2016 17:30:32 As políticas habitacionais e as ocupações urbanas faz a partir da identificação primeira de um to- moradores, e à vinculação com distintos mo- do pelo dissenso, não antagônico, mas como vimentos sociais, grupos das universidades e “um desvio extraordinário, um acaso ou uma ativistas, apresentam características similares violência em relação ao curso ordinário das coi- quanto ao processo de ocupação, ao padrão sas, ao jogo normal da dominação”. construtivo e à realidade jurídica. Entendemos que as ocupações urbanas No cenário de agravamento do acesso à não são problemas (como uma doença da cida- cidade e à moradia descrito, surge, em fevereiro de) que podem ser observados pelos seus sinto- de 2008, a primeira ocupação organizada pelo mas (diagnóstico de conflitos), em que valores Fórum de Moradia do Barreiro, em um terreno exclusivamente técnico-científico-políticos (da vazio no Barreiro, em Belo Horizonte. Em razão arquitetura, do planejamento urbano, da ciên- da criação do Distrito Industrial do Vale do Jato- cia ou do Estado) determinem soluções (por bá no Barreiro, nos anos 1980, vários terrenos meio de tratamentos ou da eliminação do pro- destinados pelo planejamento urbano munici- blema). Na esteira do pensamento de Rancière, pal para a construção de fábricas e indústrias Marx e Aristóteles (a comunidade política, o permanecem ainda vazios.11 Alguns desses ter- sentido político de Gemeinwesen e o agir po- renos foram repassados do poder público pa- lítico) acatamos a proposta de Mouffe (2006): ra o setor privado por preços irrisórios, com a a dimensão do político deve estar conectada obrigação contratual de se construir indústrias às possibilidades das práticas e dos discursos e de se gerar empregos. Entretanto, inúmeros (formas de participação) de adversários. O con- terrenos não cumpriram sua vocação original e flito deve ser entendido não como uma forma transformaram-se em áreas abandonadas. Essa de protesto ou de provocação, mas como uma primeira ocupação autodenominou-se Camilo prática micropolítica através da qual os envol- Torres e constituiu-se da apropriação por cerca vidos tornam-se agentes ativos no campo de de 140 famílias. forças e de interesses (Mouffe, 2008). Péricles Em abril de 2009, surge a Ocupação (Morado Nascimento, 2015, p. 108) amplia esse Dandara, no bairro Céu Azul, em terreno de entendimento: “nossa aliança com os setores 40 hectares, originando 887 lotes de 128 m², progressistas da arquitetura, do direito e de organizada pelas Brigadas Populares. Essa outras áreas do conhecimento, contribui pa- ocupa ção representa importante marco so- ra potencializar ainda mais essa inserção das ciopolítico na cidade uma vez que contou ocupações na arena política”. com aporte técnico de arquitetos voluntários, trabalhando junto com os moradores na ela- As ocupações urbanas no Barreiro, Belo Horizonte boração de um plano urbanístico interno. A partir desse momento, as ocupações urbanas associam-se a outros atores, em especial a grupos de universidades como, por exemplo, Apesar de as ocupações urbanas se distingui- Praxis (EA/UFMG), Serviço de Assistência rem quanto ao número de famílias, ao local de Judiciária (PUC/Minas), Escritório de Integra- inserção, à organização e à mobilização dos ção (PUC/Minas) e Polos Cidadania (Direito/ Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 Book 35.indb 155 155 06/03/2016 17:30:32 Denise Morado Nascimento UFMG). Trataremos, mais à frente, da parceria 12 dos conflitos ampliados e, por consequência, da associação política de distintos atores so- do MLB/MG com o Praxis. Um ano depois, em fevereiro de 2010, a ciais, conformando o movimento Resiste Izi- Camilo Torres se expande sobre terreno contí- dora, a Cohab (2015) constituiu uma mesa guo e também abandonado, autodenominan- de negociação em torno das quatro ações de do-se Irmã Dorothy, com cerca de 135 famílias. reintegração de posse dessas áreas propos- Na mesma região do Barreiro, a duas quadras tas pela PBH. A proposta acordada diz que a dessas duas ocupações, surge a Eliana Silva, primeira etapa da fase 1 da Ouci prevê a de- em 2012, com 300 famílias mobilizadas pelo socupação da Ocupação Vitória e o remaneja- 2 13 MLB/MG e organizadas por lotes de 63 m . A mento de seus ocupantes atuais para a área da ocupação também teve seu projeto urbanísti- segunda etapa – Ocupação Esperança –, para co elaborado por arquitetos voluntários. Mais que sejam edificadas no local 6.528 unidades à frente, apresentaremos as práticas mediadas habitacionais por meio do PMCMV/FAR, dis- especificamente entre moradores da Ocupação tribuídas em edifícios de oito pavimentos com Eliana Silva e o grupo Praxis que se dão pelo elevadores e apartamentos de 2 e 3 quartos. compartilhamento de informações para a pro- Na segunda etapa, serão construídas, na área dução dos espaços coletivos e da moradia. da Ocupação Esperança, 2.388 unidades, totali- A partir de 2013, ocorre um processo de zando 8.896 residências. A fase 2 da Ouci prevê desencadeamento dessa provisão habitacional, a construção de mais 2.036 unidades por meio a reboque do êxito das ocupações Dandara, do PMCMV/FAR. Camilo Torres, Irmã Dorothy e Eliana Silva. Em Durante o Carnaval de 2014, dezenas maio, antecedendo as manifestações de ju- de famílias ocuparam outro terreno abando- nho de 2013, surge espontaneamente, sem a nado no Barreiro; a Ocupação Nelson Mande- vinculação inicial a qualquer movimento social la surge sem organização prévia por parte de organizado, a Ocupação Rosa Leão, na região algum movimento social, mas, posteriormente, Norte de Belo Horizonte; em junho, ao lado da adquire apoio do MLB/MG, seguindo os mes- Rosa Leão, surge a Ocupação Esperança e, em mos rumos políticos e urbanísticos das outras julho, a Ocupação Vitória. Milhares de famílias ocupações. Hoje conta com 300 famílias auto- começam a autoconstruir suas casas nessa construindo suas casas em alvenaria. região urbana vazia, conhecida como Granja No início de 2015, surge a Ocupação Werneck ou Izidora, com cerca de 3,5 milhões Paulo Freire, organizada pelo MLB/MG, hoje de m2 e investimentos imobiliários projetados com 140 famílias (ainda não referenciada pelo de 15 bilhões de reais, vinculados à Operação Google Earth). Temos nessas cinco ocupações do Barreiro cerca de 1.015 famílias. 14 Urbana Consorciada Izidoro (Ouci). Em razão 156 Book 35.indb 156 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 06/03/2016 17:30:33 As políticas habitacionais e as ocupações urbanas Figura 3 – Região Izidora – Ocupações Vitória e Esperança e proposta de empreendimento Ocupações Esperança e Vitória Fonte: Marcílio Gazzinelli (2015). Proposta Empreendimento Granja Werneck Construtora Direcional Fonte: Cohab (2015). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 Book 35.indb 157 157 06/03/2016 17:30:33 Denise Morado Nascimento Figura 4 – Ocupações Urbanas no Barreiro, Belo Horizonte Fonte: Google Earth (2015). Ocupação Eliana Silva e Praxis Como participante da ocupação desde o primeiro momento, Brígida é moradora e coordenadora da Ocupação Eliana Silva. Na fase inicial, ajudava na cantina e cozinhava para os ocupantes. Morou em uma barraca de camping por seis meses, enquanto o marido, que era pedreiro, construía o muro e a base da casa. Essas primeiras ações foram fundamentais para que eles garantissem seu terreno e o acesso ao bairro situado logo em frente. isso aqui é uma herança. E é o lugar que eu mais me sinto bem é aqui porque eu já morei em tudo que é lugar em Belo Horizonte. [...] Aqui eu tive melhoras grandes e eu morro de rir com as coisas que acontecem. [...] Tenho amizade com todo mundo. (Brígida, moradora da Ocupação Eliana Silva)15 158 Book 35.indb 158 O casal morava anteriormente em Lindéia, bairro de Belo Horizonte, pagando aluguel; aos poucos, juntaram dinheiro para comprar materiais de construção. Fizeram inicialmente a estrutura de concreto armado e, em seguida, dois cômodos e um pequeno banheiro; eles têm intenção de abrir um comércio no futuro, aproveitando a boa localização do lote. Pretendem ainda terminar a cozinha, construir mais um quarto e deixar uma área para a garagem. Assim como Brígida, todos os outros moradores das ocupações urbanas entendem a moradia como casa com quintal, autoconstruída horizontalmente em terrenos urbanos ociosos na cidade, que não cumprem a função social da propriedade, imersa em processos decisórios organizados e coletivos, referenciados pela sobrevivência e pela luta política. Ao contrário dos pressupostos do PMCMV, moradia na Ocupação Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 06/03/2016 17:30:33 As políticas habitacionais e as ocupações urbanas Eliana Silva é casa que se transforma ao longo Por um lado, a comunicação entre todos do tempo em razão das diversas necessidades funciona como a ponte entre todas as partes. habitacionais (tamanho e uso dos espaços) de Por outro lado, acatando a proposta agonísti- grupos distintos (diferenças culturais, econômi- ca de Mouffe (2008), o conflito gira em torno cas e sociais bem como número de moradores), da moradia e da cidade que moradores e pes- inserida na malha urbana que permite a fuga quisadores querem construir e que o Estado do aluguel majorado pela dinâmica imobiliária quer remover. metropolitana e da “fila” dos programas muni- Nesse sentido, o agir cotidiano comum, cipais de habitação. É importante dizer que, ain- que tem o conflito como seu gerador (seja pe- da que as dificuldades de acesso à moradia fo- la presença dos moradores e pesquisadores, mentem o conflito e a disputa pela cidade, am- seja pela ausência do Estado), resgata a expe- pliando e fortalecendo as ocupações urbanas, o riência do pensamento prático na medida em sonho da casa própria está igualmente presente que se insere em uma comunidade política. no imaginário dos moradores das ocupações ur- Considerando que a comunicação efetiva só é banas, muitos deles desejando ser proprietários possível se, e somente se, as experiências e as de apartamentos do PMCMV. vivências são livremente expressas (a liberda- Desde outubro de 2012, pesquisadores do de de criação), o processo produtivo baseado Praxis, coordenadores do MLB/MG e moradores na informação compartilhada permite a elabo- da Ocupação Eliana Silva juntos desenvolvem ração de uma outra lógica da prática – o agir atividades fundamentadas pelo compartilha- não se faz pela reunião de um grupo nem pelo mento de informações e pelo processo coletivo indivíduo, mas a partir da informação que faz de tomada de decisão, nomeado Diálogos, entre sentido a cada um na busca e na criação pela todos os envolvidos nos processos produtivos identificação primeira do todo – a comunida- dos espaços comuns e das moradias.16 de política. Figura 5 – Casas na ocupação Eliana Silva, Belo Horizonte Fonte: Praxis (2014). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 Book 35.indb 159 159 06/03/2016 17:30:33 Denise Morado Nascimento Figura 6 – Esgoto e Creche Tia Carminha na Ocupação Eliana Silva Belo Horizonte Fonte: Praxis (2012-2015). Finalizando... cidades, mas vê-se facilmente o dissenso na A associação Estado-capital impõe à cidade a dia: a cidade realiza o ciclo do capital de pro- moradia financiada como produto massificado dução de mercadoria, bem como é plataforma de apartamentos genéricos nas periferias da para efetivação dos capitais financeiro e imobi- cidade, sem urbanidade e precarizadas pela fal- liário por meio do consumo da casa. prática político-econômica em torno da mora- ta de serviços públicos e urbanos. Ainda que a As contradições em torno da produção PBH demonstre esforços para viabilizar quanti- da cidade – as políticas habitacionais e as tativamente o PMCMV, abarcada pelo discurso ocupações urbanas – são devidas, em gran- da redução do déficit habitacional, interesses de medida, ao desenvolvimento da dinâmica econômicos e argumentos políticos sobressa- especulativa presente no mercado imobiliário em diante das necessidades habitacionais dos da RMBH. Isso posto, colocam-se em cheque moradores de baixa renda. Não há mal-enten- as premissas sociais do PMCMV uma vez que dido ou desconhecimento sobre a complexa sua produção se atrela mais ao mercado imo- realidade da questão habitacional nas grandes biliário. Repete-se a lógica de “pobres no lugar 160 Book 35.indb 160 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 06/03/2016 17:30:33 As políticas habitacionais e as ocupações urbanas de pobres”, determinada pela implantação de procedimentos da associação Capital-Estado grandes parcelas populacionais dos contem- em contraste com a liberdade de criação a par- plados pelo PMCMV/FAR nas áreas menos va- tir da realidade que se quer modificar. lorizadas da cidade. Além disso, o PMCMV tem prevalecido financeiramente e politicamente diante de outras ações historicamente construídas, como regularização fundiária, urbanização de favelas e assentamentos precários, crédito à autoconstrução, assessoria técnica, melhorias habitacionais, locação social, todas necessárias para a construção de uma ampla e democrática política habitacional. Na contramão, as ocupações urbanas emergem como movimento livre de criação de uma outra cidade, ainda que em terrenos precários e condições sociopolíticas vulneráveis e até mesmo violentas. Nesse sentido, não há como não desvelar os conflitos existentes em torno, por exemplo, do compromisso dos movimentos sociais de Belo Horizonte pelas ocupações horizontais de terrenos. Se, por um lado, produzem resistência pelo lote e pelo território compartilhado, por outro, reforçam a propriedade individualizada (a casa) e o sacrifício corpóreo de trabalhadores (a autoconstrução) na medida em que optam tanto por não acessar serviços urbanos (energia, água e esgoto, principalmente) disponíveis em edificações verticais vazias e/ou subutilizadas na cidade quanto por não lutar por outros programas como, por exemplo, a locação social. O envolvimento de profissionais do Direito e da Arquitetura com a temática das ocupações urbanas colocou o conflito com uma nova fisionomia na arena política institucionalizada. É importante destacar que ela sempre esteve lá, até porque as ocupações urbanas sempre caracterizaram a urbanização das cidades brasileiras, porém, o envolvimento desses profissionais, pela importância que eles assumem na fundamentação do sistema capitalista, coloca a questão a partir de instrumentos institucionalizados que neste caso serão aplicados com a intenção de garantir o direito à cidade e à moradia para um setor social que não tem acesso. Tiago Castelo Branco Lourenço (Morado Nascimento, 2015, p. 115) Daí a importância de os movimentos populares estarem conectados com as universidades, entidades e grupos que buscam disseminar novas práticas construtivas e de apropriação espacial no território [...]. Trata-se de um processo pedagógico de mão-dupla, no qual ambas as partes constroem conjuntamente novas práticas que se contraponham aos valores capitalistas calcados sobre o individualismo. O horizonte possível é a construção do bem comum urbano em oposição à “cidade-empresa”. Joviano Mayer (Morado Nascimento, 2015, p. 119) 17 Inegavelmente, porém, o movimento de resistência das ocupações urbanas deve ser Ao nosso ver, as ocupações urbanas tor- reconhecido. Holloway (2013) considera tal nam legítimas as práticas que possibilitam a movimento como fissuras do capitalismo, uma coexistência humana em condições sempre insubordinação aqui-e-agora, um movimento conflituosas porque são sempre afetadas pela de negação-e-criação. Esses movimentos são dimensão do político – práticas e discursos de legítimas forças para reprimir as práticas e adversários. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 Book 35.indb 161 161 06/03/2016 17:30:33 Denise Morado Nascimento Denise Morado Nascimento Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, Escola de Arquitetura, Departamento de Projetos. Belo Horizonte/MG, Brasil. [email protected] Agradecimentos Fapemig, CNPq, Capes, ProEx/UFMG. Notas (1) Leonardo Péricles é coordenador do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB/MG) e morador da Ocupação Eliana Silva; em post no Facebook, 7 de agosto de 2015. (2) Cleide Aparecida Nepomuceno é Defensora Pública de Minas Gerais. (3) A Urbel (Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte) é o órgão da prefeitura responsável pelo planejamento e execução das ações e intervenções de urbanização das vilas, favelas e conjuntos habitacionais de interesse social e também pela produção de novas moradias para famílias de baixa renda. (4) Referenciamo-nos aos instrumentos neoliberais transvestidos em subsídios habitacionais no Brasil, a reboque dos programas do Chile e do México. (5) O FAR (Fundo de Arrendamento Residencial) recebe recursos transferidos do Orçamento Geral da União (OGU) para viabilizar a construção de unidades habitacionais. Novas regras do PMCMV foram anunciadas em 15/9/2015, devendo ainda ser oficialmente homologadas. O valor limite da renda do PMCMV/FAR Faixa 1 deve ser alterado dos atuais R$1.600,00 para R$1.800,00. Para famílias que recebem até R$800,00, a parcela será de R$80,00. Já quem recebe entre R$800,00 e R$1.200,00 pagará 10% da renda. Famílias com renda entre R$1.200,00 a R$1.600,00 terão percentual de 15%; e para renda entre R$1.600,00 a R$1.800,00, será de 20%. (6) Argumentos presentes nessa seção referem-se ao Relatório Final da pesquisa “Programa Minha Casa Minha Vida: estudos avaliativos na Região Metropolitana de Belo Horizonte”, Edital MTCI/CNPq/MCidades n. 11/2012, coordenado pela Profa. Dra. Denise Morado Nascimento. Disponível em: h p://www.arq.ufmg.br/praxis/7_MCMV/index.html. (7) Rede Cidade e Moradia: Adauto Lucio Cardoso – Ippur-UFRJ (Observatório das Metrópoles); Cibele Saliba Rizek – IAU-USP (Leauc) e Peabiru; Denise Morado Nascimento – EA-UFMG (Praxis); José Júlio Ferreira Lima – FAU-UFPA (Labcam); Lúcia Zanin Shimbo – IAU-USP (Habis); Luciana da Silva Andrade – Prourb-UFRJ (CiHabE); Maria Dulce P. Bentes Sobrinha – DARQ-UFRN (Labhabitat); Margareth Uemura – Ins tuto Pólis-SP; Raquel Rolnik – FAU-USP (LabCidade); Renato Pequeno – DAU-UFC (Lehab); Rosangela Dias Oliveira da Paz – PUC-SP (Nmos/Cedepe). (8) Em Belo Horizonte, as ocupações urbanas estão vinculadas principalmente ao Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB/MG), Brigadas Populares, Comissão Pastoral da Terra; mas também Fórum de Moradia do Barreiro e Movimento de Luta Pela Moradia (MLPM). Além disso, as ocupações urbanas inserem-se em uma rede de atores dis ntos, desde a vistas até grupos de pesquisa de universidades. 162 Book 35.indb 162 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016 06/03/2016 17:30:33 As políticas habitacionais e as ocupações urbanas (9) Tiago Castelo Branco Lourenço é diretor dos Arquitetos Sem Fronteiras. (10) No manuscrito original de CríƟca da Filosofia do Direito de Hegel, Marx usou a palavra Kommune, vindo depois a rasurá-la e subs tuí-la por Gemeinwesen (Pogrebinschi, 2009, p. 195). (11) À época, a grande maioria dos terrenos pertencia à Companhia de Distritos Industriais (CDI), atual Companhia de Desenvolvimento do Estado de Minas Gerais (Codemig). (12) O grupo de pesquisa Praxis (Prá cas sociais no espaço urbano) está sediado pelo Departamento de Projetos e pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU) da Escola de Arquitetura da UFMG, coordenado pela Profa. Dra. Denise Morado Nascimento. Mais informações: h p://www.arq.ufmg.br/praxis. Iniciamos parceria com a Ocupação Irmã Dorothy, em 2009, e com a Ocupação Eliana Silva em outubro de 2012. (13) A primeira Ocupação Eliana Silva se iniciou na madrugada do dia 21/4/2012, quando cerca de 200 famílias, organizadas pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), ocuparam um terreno público na região do Barreiro, em Belo Horizonte. As famílias permaneceram no terreno em barracos de lona por pouco menos de um mês. Nos dias 11 e 12 de maio, as então 300 famílias moradoras da ocupação foram removidas do terreno pela Polícia Militar. No dia 22 de agosto de 2012, com o apoio do MLB, as famílias que se man veram organizadas realizaram uma nova ocupação, também em um terreno vazio, localizado a aproximadamente 1km do local inicialmente ocupado. (14) Segundo informação da Profa. Margarete [Leta] Silva, pesquisadora do Praxis, nos mapas de Belo Horizonte, até pelos menos 1937, o ribeirão que deu nome à área conhecida como Granja Werneck está grafado como Ribeirão da Izidora. Assim como o Ribeirão da Onça, ambos foram masculinizados nos mapas seguintes. Há informações de que Izidora teria sido uma escrava (ou uma mulher escravizada) alforriada que ali cons tuiu sua descendência. É possível que o nome venha dela – Izidora da Costa. Assim, os movimentos sociais referem-se à região como Izidora e a PBH como Izidoro. (15) Em entrevista para o grupo de pesquisa Praxis, 2014. (16) Mais informações: Projeto Diálogos. Disponível em: http://www.arq.ufmg.br/praxis/blog/ dialogos/dialogos.html. (17) Joviano Mayer é militante das Brigadas Populares. Referências COHAB (2015). Empreendimento Granja Werneck. Disponível em: h p://www.cohab.mg.gov.br/ empreendimento-granja-werneck-2. Acesso em: set 2015. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO – FJP (2005). Déficit Habitacional no Brasil. Belo Horizonte, FJP. ______ (2013). Déficit Habitacional no Brasil 2010. Belo Horizonte, FJP. ______ (2014). Nota Técnica 1: Déficit Habitacional no Brasil 2011-2012 – Resultados Preliminares. Belo Horizonte, FJP. 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Danielle Klintowitz Resumo No período de gestão do Partido dos Trabalhadores (PT) no governo federal, configurou-se uma dupla agenda para a política habitacional: a primeira ligada à plataforma de reforma urbana, com previsão de descentralização e gestão participativa, e a segunda consubstanciada na premissa de reestruturação do setor imobiliário, estruturada em uma política exclusiva de provisão habitacional com promoção privada e financiamento público. Esse modelo de governança garantiu a distribuição de benefícios a ambas coalizões que representavam essas agendas, além de ter legitimado a política habitacional na agenda pública. No presente trabalho, analisou-se a trajetória do principal programa habitacional desenvolvido na época (MCMV), discutindo suas implicações para o direito à moradia e o papel dos atores do setor habitacional neste contexto. Abstract Since the Labor Party has been governing Brazil, there has been a double agenda for the housing policy: the first one is linked to the urban reform platform, with a forecast of decentralization and participatory management, and the second is embodied in the premise of restructuring of the real estate sector, structured in an exclusive housing policy with private promotion and public funding. This governance model has ensured the distribution of benefits to both coalitions representing these agendas, and has legitimized the housing policy within the public agenda. In this paper, we analyze the trajectory of the main housing program developed in this period (MCMV), discussing its implications to the right to housing and the role of actors in the housing sector within this context. Palavras-chave: política habitacional; reforma urbana; mercado imobiliário; Programa Minha Casa Minha Vida; coordenação de interesses. Keywords: housing policy; urban reform; real estate market; Minha Casa Minha Vida Program; coordination of interests. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3508 Book 35.indb 165 06/03/2016 17:30:33 Danielle Klintowitz Introdução Ao tornar-se Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva reconhecendo, de maneira inovadora, os movimentos de moradia Historicamente, a política habitacional brasi- como players do setor, conformou uma estra- leira agregou em torno de si muitos interes- tégia de coordenação de interesses ousada, ses públicos e privados. Durante o século XX, colocando na mesa de negociação movimentos assistiu-se a uma forte articulação funcional de moradia e setor produtivo, coalizões com in- no relacionamento entre Estado e setor produ- teresses historicamente opostos. tivo, o que garantiu a priorização de políticas Estruturou-se, apoiado nesse contexto, habitacionais mais voltadas ao crescimento um programa habitacional – o Minha Casa econômico do que ao direito à moradia. Com Minha Vida (MCMV) – que ganhou status de a redemocratização e a desestruturação da política por seu vigor de recursos e apoio mul- política federal de habitação até então estru- tifacetado conquistado. O desenho desse pro- turada no Banco Nacional de Habitação (BNH), grama atendeu à necessidade de sustentação emergiram movimentos sociais urbanos, como da reestruturação do setor produtivo da cons- o Movimento Nacional de Reforma Urbana trução civil e mercado imobiliário, que estava (MNRU) – transformado posteriormente em em curso, com investimentos keynesianos que Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU) –, impactaram a sustentação macroeconômica que conquistaram o estabelecimento de um do país, dialogando pouco com as necessida- progressista arcabouço jurídico para o desen- des habitacionais das cidades brasileiras e com volvimento urbano e praticaram de forma par- o Sistema Nacional de Habitação de Interesse ticipativa, junto com governos locais de esquer- Social (SNHIS) que estava em construção desde da, algumas experiências de implementação no 2005. território, constituindo uma nova matriz rela- No entanto, apesar dos ganhos assimé- cional com o Estado que ficou conhecida como tricos conquistados pelos movimentos de mo- o “modo petista de governar”. radia em relação à coalizão do setor produtivo Com a ascensão ao governo federal do e do enfraquecimento definitivo do SNHIS, a Partido dos Trabalhadores (PT) que teve des- coordenação de interesses que se estabeleceu de sua fundação uma estreita relação com os no MCMV tornou-se extremamente eficiente ideários da reforma urbana, criaram-se amplas e se expandiu para além dos interesses dessas expectativas nos atores ligados a essa platafor- coalizões, sendo capaz de se ramificar em vá- ma de que o novo momento representaria um rias escalas de coordenação: entre o setor pú- marco de ruptura no legado histórico da polí- blico e privado; entre os diferentes ministérios; tica habitacional voltada ao desenvolvimento entre União e municípios. econômico e o início de um ciclo virtuoso de Esse arranjo que se estabeleceu então implementação do “modo petista de governar” foi capaz de garantir que ambas as agendas na escala federal. concorrentes – de reforma urbana e do setor 166 Book 35.indb 166 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 06/03/2016 17:30:33 Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer... produtivo – convivessem de maneira articula- dificuldades financeiras às grandes empresas da, mesmo que preservassem suas contradi- que naquele momento detinham grande soma ções. Criou-se um imbricamento cooperativo de investimentos imobilizados em bancos de que permitiu construir uma política habitacio- terra. nal que se tornou uma das principais forças 1 desse governo. Nesse cenário, a conjuntura econômica foi o pretexto determinante para ampliação Com o arranjo criado nesse ambiente, dos mecanismos e volume de recursos destina- estabeleceu-se um “regime de política” (Couto dos ao setor habitacional. Através do MCMV, e Abrucio, 2003) no qual se alcançou um enten- com o objetivo explícito de socorrer o setor dimento quase hegemônico acerca da política produtivo da construção civil e mercado imo- habitacional com seu lastreamento em inte- biliário e evitar o aprofundamento da crise do resses objetivos dos atores envolvidos. Assim, mercado, o governo federal colocou o proble- neutralizaram-se possíveis conflitos dos ato- ma da habitação definitivamente nos termos res e suas coalizões com Estado, imbricando e propostos pelo setor imobiliário. Segundo engendrando-os na defesa da própria política, dados do Ministério do Planejamento (Brasil, mesmo que apenas parte dessa fosse conve- 2014), entre 2009 e 2014 foram investidos niente para concretização de seus interesses e R$251,8 bilhões no MCMV, considerando os que apenas parte de seus interesses fosse efeti- subsídios diretos e linhas de crédito disponibili- vamente atendida. zadas. Esses recursos foram responsáveis pela Neste artigo, busca-se discutir como se deu essa coordenação de interesses na cons- contratação de 3,75 milhões de unidades habitacionais em todo o Brasil. trução e implementação do Programa Minha O MCMV foi elaborado pela Casa Civil e Casa Minha Vida e quais os rumos que a polí- pelo Ministério da Fazenda, em diálogo direto tica habitacional nacional tomou a partir dessa com os setores imobiliários e da construção, nova configuração. desconsiderando diversos avanços institucionais na área de desenvolvimento urbano, bem como a interlocução com o restante da socie- MCMV: entre o direito à moradia e reestruturação do setor produtivo dade civil. O Ministério das Cidades (MCidades) que tinha na sua origem um forte imbricamento com os atores ligados à plataforma da reforma urbana foi posto de lado na concepção inicial, sendo chamado a contribuir apenas de- No contexto de euforia do mercado imobiliário pois de elaborada a macroestrutura de funcio- com o aumento dos recursos disponíveis e com namento do Programa. a reforma institucional que garantia a seguran- Inicialmente pensava-se em uma estra- ça dos negócios e lançamentos grandiosos, a tégia destinada apenas às famílias de estratos crise internacional do subprime de 2008 amea- médios – com renda acima de três salários çou a possibilidade de venda dos empreendi- mínimos (SM) – com possibilidade de aces- mentos em construção, impondo ainda sérias so a financiamentos e que necessitavam um Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 Book 35.indb 167 167 06/03/2016 17:30:33 Danielle Klintowitz percentual menor de subsídio atrelado a eles. políticas habitacionais, em que o atendimento Como se tratava de um programa destinado não é distribuído de acordo com as necessida- a reduzir as perdas financeiras do setor pro- des reais, mas de acordo com os interesses dos dutivo, os empresários do setor não queriam formuladores e implementadores. correr riscos. No entanto, o MCidades lutou As metas do programa por faixa de aten- pela entrada das famílias de menor renda no dimento pouco dialogam com o déficit habita- programa, o que implicava maiores subsídios cional acumulado por faixa de renda no país. públicos. Os subsídios são fundamentais para Na primeira fase do Programa (MCMV1), en- o acesso das famílias de baixa renda ao mer- quanto 91% do déficit estava concentrado na cado habitacional e, ao mesmo tempo, trazem faixa 1 (renda até três SM), apenas 40% das vantagens também ao setor produtivo que tem unidades produzidas destinaram-se a esse o mercado habitacional ampliado com famílias público. Como consequência, apenas 6% do que de outra maneira estariam fora. déficit habitacional das famílias com menor O Presidente Lula, orientado pela busca renda foi atingindo,3 enquanto 93% e 95% do de soluções de arbitragem que caracterizou seu déficit das faixas de renda mais altas (2 e 3) fo- governo (Singer, 2012), viu aí uma possibilida- ram atendidos, respectivamente. Na segunda de também de ganho de capital político junto etapa (MCMV2), embora a meta para a faixa à base de menor renda, além da ampliação do 1 tenha sido expressivamente ampliada em mercado habitacional fundamental para as em- detrimento das demais faixas, o combate ao presas do setor. Assim, criou-se um programa déficit dessas famílias ainda é percentualmen- com um patamar histórico de subsídios para as te muito inferior ao atendimento às famílias famílias com renda de até três SM. com maior renda. No entanto, o modelo do MCMV im- No modelo institucional desenhado para plementado privilegiou a concessão maciça o MCMV, a análise de projetos, bem como a de subsídios para faixas de renda mais altas contratação de obras e medição de etapas fina- (Faixa 2) que poderiam adquirir financiamen- lizadas é parte dos procedimentos de respon- tos maiores com menores percentuais de sub- sabilidade da Caixa Econômica Federal (CEF), sídio. Ao mesmo tempo, também se elevou a não cabendo aos municípios responsabilidade faixa de renda financiada pelo Fundo de Ga- formal pelos resultados alcançados. Nesse mo- rantia sobre o Trabalho (FGTS), com melhores delo, o promotor do empreendimento passa a condições de juros, e parte dessa demanda ser o setor privado, o poder público assume um poderia ser atendida pelo Sistema Brasileiro papel apenas de financiador e organizador da 2 de Popança e Empréstimo (SBPE), liberando demanda. Cabe ao mercado privado a promo- recursos do FGTS com financiamento mais ba- ção dos empreendimentos habitacionais ela- rato para famílias de menor renda (Bonduki, borados de acordo com as exigências técnicas 2014). Assim, apesar dos expressivos subsí- mínimas do MCMV, principalmente no que se dios concebidos de maneira inédita no país refere ao cálculo do valor da unidade habita- para as faixas de renda mais baixas, o Pro- cional, de forma a se enquadrar no perfil finan- grama ainda reproduz as antigas lógicas das ciado e, ao mesmo tempo, garantir maior taxa 168 Book 35.indb 168 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 06/03/2016 17:30:33 Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer... Tabela 1 – Metas do MCMV e déficit habitacional acumulado por faixas de renda MCMV 1 Déficit acumulado (em %) Metas do MCMV 1 (em %) Déficit acumulado** (em mil) Metas do MCMV1 (em mil) Faixa 1 91 40 6.550 400 6 Faixa 2 6 40 430 400 93 Faixas de renda* Faixa 3 Total % Déficit acumulado atendido 3 20 210 200 95 100 100 7.190 1.000 14 MCMV 2 Déficit acumulado (em %) Metas do MCMV 2 (em %) Déficit acumulado*** (em mil) Metas do MCMV2 (em mil) % Déficit acumulado atendido Faixa 1 72 60 4.698,76 1.440 31 Faixa 2 15 30 941,05 720 77 Faixa 3 13 10 850,19 240 28 100 100 6.490 2.400 37 Faixas de renda Total * As faixas de renda do Programa MCMV não são as mesmas faixas estabelecidas pela metodologia da Fundação João Pinheiro (FJP) para coleta dos dados. Enquanto o MCMV trabalha com a faixa 2 para famílias com rendimento entre 3 e 6 SM, a FJP faz o cálculo do déficit para famílias com rendimento entre 3 e 5 SM. Optou-se por estabelecer esta relação como proxy, já que estas são as únicas informações disponíveis. No entanto, as análises precisam considerar esta pequena distorção. ** com base no déficit habitacional 2000 (FJP, 2004). ***com base no déficit habitacional 2010 (FJP, 2013). Fonte: Elaboração própria. FJP (2004 e 2013) e CEF (2013). de lucro possível em seus projetos. Nesse con- voltado para as empresas que acessam direta- texto, apesar do histórico patamar de recursos mente os recursos do FAR ou do FGTS,4 moda- orçamentários destinados a subsídios para lidades com protagonismo do mercado privado atender a população de mais baixa renda no (Brasil, 2014). MCMV, os empreendimentos para essa faixa de Nestas modalidades do MCMV destina- renda são fortemente marcados por uma lógica das a empresas (FAR – faixa 1, FGTS – faixa de produção do mercado imobiliário privado, o 2 e FGTS – faixa 3), o fluxo de contratação e que nem sempre dialoga com as necessidades produção desenhado garantem o protagonis- relacionadas ao direto à moradia. mo direto das empreendedoras. A operaciona- Apesar de existirem outras modalidades, lização se dá mediante o repasse de recursos como o Programa Nacional de Habitação Ru- do governo federal para construtoras, que, por ral (PNHR), Minha Casa Minha Vida Entidades sua vez, constroem os empreendimentos habi- (MCMV-E), o Sub-50, destinado a municípios tacionais. Mesmo na modalidade faixa 1, que com menos de 50 mil habitantes e uma mo- conta com expressivos subsídios, a produção se dalidade para urbanização, analisando-se os dá por oferta privada ao poder público, isto é, a montantes alocados nos diferentes fundos e as construtora define a cidade onde pretende fa- unidades contratadas, observa-se que o núcleo zer o empreendimento, o terreno, o projeto e o central do MCMV, desde o início, foi aquele número de unidades; aprova junto aos órgãos Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 Book 35.indb 169 169 06/03/2016 17:30:33 Danielle Klintowitz Gráfico 1 – Contratações do MCMV 1 e 2 nas diferentes modalidades (%) Gráfico 2 – Contratações do MCMV nas modalidades destinadas a empresas e outros (%) modalidades empresas – 88% outras modalidades–12% Fonte: Brasil, Balanço PAC 2 – 4 anos de execução. Dez 2014. Fonte: Brasil, Balanço PAC 2 – 4 anos de execução. Dez 2014. competentes e vende integralmente o que pro- Um dos impactos mais imediatos so- duzir para a CEF, sem gastos de incorporação bre os programas desenvolvidos no âmbito imobiliária e comercialização e sem riscos de do Fundo Nacional de Habitação de Interes- inadimplência dos compradores. se Social (FNHIS) diz respeito à eliminação dos repas ses de recursos para as ações de provisão habitacional para municípios e coo- A implementação do MCMV, o enfraquecimento do SNHIS e a desarticulação aos processos de planejamento urbano e habitacional perativas habitacionais, o que implicou a realização inte gral da provisão habitacional nos termos das modalidades previstas pelo MCMV, e o FNHIS não pôde mais ter programas alternativos para essa modalidade. Vale destacar ainda que, a partir de 2010, priorizou-se a alocação de recursos desse fundo Com esse desenho adotado para o programa, em obras complementares a projetos em an- fortemente ancorado na promoção das ha- damento financiados com recursos do PAC, bitações pelo setor privado, o MCMV entrou que inclui o MCMV, o que mostra um caráter em choque com os princípios do SNHIS que subsidiário do FNHIS nas decisões de política era pautado pelo papel estratégico do setor habitacional (Cardoso, Aragão, Araújo, 2011; público e pela descentralização federativa, ig- Relatório de Gestão do Conselho Gestor do norando em larga medida premissas e deba- FNHIS, 2013). tes acumulados em torno do Plano Nacional Outra importante implicação para o de Habitação de Interesse Social (PlanHab) FNHIS foi o esvaziamento de recursos desse (Krause, Balbim e Lima Neto, 2013; Cardoso, fundo. Entre os anos de 2003 e 2010, rever- Aragão e Araujo, 2011). tendo definitivamente a estagnação presente 170 Book 35.indb 170 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 06/03/2016 17:30:33 Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer... Tabela 2 – Recursos orçamentários executados do FNHIS, PAC e PMCMV (2006-2014) FNHIS PAC Favelas MCMV Total Ano % Bilhões de R$ % % Bilhões de R$ 2006 Bilhões de R$ 1 40 1,52 60 Bilhões de R$ - - 3,52 2007 0,3 13 1,97 87 - - 3,27 2008 0,8 23 2,7 77 - - 4,5 2009 1,01 10 3,88 38 5,25 52 10,62 2010 0,17 2 1,88 22 6,68 77 8,96 2011 0,51 4 2,15 16 10,98 80 13,84 2012 0,13 1 3,2 20 12,55 79 16,09 2013 0,21 1 3,65 19 15,63 80 19,68 2014 0,05 0,2 2,7 14 16,8 86 19,69 Fonte: Elaboração própria. SIGA Brasil - Acompanhamento da execução orçamentária da União, entre 2006 e 2014. no setor habitacional desde a extinção do BNH que não integram o modelo desenhado para em 1986, o investimento federal, incluindo os o funcionamento do SNHIS. É importante res- investimentos com recursos onerosos do SBPE saltar, também, que os recursos destinados ao e do FGTS, saltou de R$7,9 bilhões, em 2003, FNHIS não só são menores em termos absolu- para R$101,5 bilhões em 2010 (Brasil, 2014). tos em relação aos outros fundings nesse pe- No PPA de 2012 a 2015, dos 26% dos recursos ríodo, como percentualmente sua participação do Orçamento Geral da União (OGU) alocados nos recursos destinados à habitação perde para infraestrutura, 32,6% foram destinados importância, chegando a menos de 1% dos à habitação, o que equivale ao montante de recursos totais orçamentários no final do pe- R$389,7 bilhões dedicados ao setor em quatro ríodo estudado. anos de planejamento orçamentário. Entretan- Com quase a integralidade dos recursos, to, quando se observam os dados referentes à desenhou-se um programa – o MCMV – que alocação de recursos, percebe-se claramente acabou se transformando de maneira hege- que o FNHIS foi desprivilegiado, apresentando mônica no eixo central da política habitacional um significativo declínio a partir 2010, quando no Brasil, fixando sua atuação apenas na pro- se iniciam as contratações do MCMV. dução de novas moradias, atendendo plena- Os recursos crescentes para o setor habi- mente aos interesses do mercado imobiliário e tacional são alocados em outros fundings a fim da construção civil, mas relegando ao esqueci- de financiar programas habitacionais – PAC mento outras modalidades de enfrentamento Favelas e Minha Casa Minha Vida (MCMV) – às diferentes necessidades habitacionais. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 Book 35.indb 171 171 06/03/2016 17:30:33 Danielle Klintowitz O próprio PAC Favelas,5 que priorizava da disposição do mercado privado em apresen- a modalidade de urbanização, acabou sendo tar projetos nas cidades onde o negócio é mais prejudicado em detrimento do MCMV. O PAC atrativo; e como a meta estabelecida de con- tem um arranjo institucional em que os gover- tratação de unidades era muito alta (3,75 mi- nos locais são promotores das intervenções, lhões somando as fases 1 e 2 do MCMV), não tornando o processo mais lento sem propiciar existiu até o fim da segunda fase do Programa a celeridade no retorno do capital político e fi- espaço para priorizar os municípios que haviam nanceiro empregado pelo mercado imobiliário. cumprido essas disposições legais. As contrata- Como afirma Fix (2011), a temporalidade políti- ções obedeceram apenas a disposição de lucro co-eleitoral do MCMV parece se ajustar melhor do mercado e as análises de viabilidade da CEF. ao ritmo do capital financeiro – que promete atropelar resistências de todos os tipos – do que àquele das lutas urbanas e dos direitos sociais que a urbanização representa. A desarticulação da estrutura do MCMV O impacto MCMV sobre o direito à cidade aos processos municipais de planejamento urbano e habitacional suscitou o abandono des- No entanto, na literatura sobre o tema ainda ses processos de planejamento e desenvolvi- resta a dúvida se os municípios que tinham pro- mento institucional que estavam em curso nas cessos de planejamento estabelecidos tiveram esferas subnacionais. O governo federal retirou vantagens em relação às contrações de uni- a capacidade financeira, e consequentemente dades no MCMV. Para verificar a existência da decisória e de atuação do SNHIS, em detrimen- correlação entre a existência dos instrumentos to da alocação dos recursos em outro modelo, de planejamento que estavam sendo fomenta- e, em consequência, os municípios também se dos pelo MCidades e a contratação do MCMV desmobilizaram no atendimento às regras des- realizou-se uma regressão linear com os dados se Sistema e direcionaram suas energias para a de contratação disponíveis (Klintowitz, 2015).6 obtenção do maior número possível de unida- Além de verificar a correlação entre instrumen- des habitacionais por meio do MCMV (Rolnik, tos de planejamento e o número de unidades Klintowitz e Iacovini, 2014). contratadas no âmbito do MCMV nos municí- A Lei nº 11.977/2009 que dispõe sobre o pios brasileiros, nessa regressão buscava-se in- MCMV, define como um dos critérios de prio- ferir o que explica o “sucesso” da contratação rização dos municípios, além da desoneração do Programa nos diferentes municípios bra- fiscal e doação de terrenos em áreas consolida- sileiros, já que os dados mostram que alguns das, a implementação de instrumentos do Esta- municípios extrapolaram o atendimento de tuto das Cidades. No entanto, essas regras de suas metas, enquanto outros não conseguiram priorização nunca foram cumpridas. Segundo contratar nem a metade da meta estipulada. os entrevistados da CEF (Klintowitz, 2015), as Para verificar o sucesso das contratações contratações do Programa não adotam essas em alguns municípios, coletou-se variáveis que normativas de priorização porque dependem poderiam explicar maiores contratações de 172 Book 35.indb 172 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 06/03/2016 17:30:33 Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer... unidades habitacionais no MCMV em alguns (conselho, fundo e plano) com o número de municípios em detrimento de outros. Para ava- contratações. Da mesma forma, a existência liar a contração em cada município brasileiro de instrumentos urbanísticos de planejamento foi utilizado um banco de dados fornecido pela e gestão do solo, não apresentam correlações CEF. Esse banco de dados continha informações com o sucesso de contratações do MCMV. sobre todas as unidades habitacionais contra- Apenas as variáveis do bloco de análise tadas na primeira fase do MCMV que finalizou relacionado às dimensões territoriais demons- com 1 milhão de unidades em maio de 2011. traram correlações. Essas variáveis apresenta- Como variável dependente elaborou-se um ram uma correlação positiva entre as tipologias “índice de sucesso de contratações” que foi de cidades identificadas como “periferia dos calcula do a partir da divisão do número de polos regionais” e “grandes cidades isoladas” unidades contratadas pela meta estabelecida e o sucesso de contratação de unidades do pelo governo federal – em número de unida- MCMV1 na Faixa 1, demonstrando que nesses des. Como as metas de contratação do MCMV tipos de cidades se realizam percentualmente são estipuladas a partir do déficit habitacional, mais contratações do MCMV em relação a seu essa variável relaciona as necessidades habita- déficit habitacional. Uma explicação para es- cionais representadas pelos déficits dos muni- sa correlação está relacionada ao mercado de cípios com o número de unidades contratadas. terras desses municípios. Essas tipologias de ci- Inicialmente constatou-se que as contra- dades apresentam menor dinâmica imobiliária, tações da modalidade faixa 1 do MCMV não com menor disputa pela terra, em relação a ou- apresentavam relação direta com os números tras tipologias que não mostraram correlações do déficit habitacional de cada município. Exis- com o sucesso de contratação das unidades do te uma grande diversidade de situações nas MCMV. A baixa dinâmica de terras poderia en- relações entre o número de unidades contrata- tão ser uma explicação para o maior número das no âmbito do MCMV1 e o déficit de cada de contratações, pois, os promotores privados município. Uma parte significativa de municí- do MCMV escolhem com total liberdade as pios acima de 20 mil habitantes (29%) não tem cidades onde querem produzir empreendimen- nenhuma unidade contratada apesar de terem tos e, segundo entrevistas (Klintowitz, 2015), o metas estabelecidas pelo Governo Federal; preço dos terrenos tem se apresentado como 40% dos municípios tiveram um range de uni- uma das principais variáveis para esta escolha. dades contratadas entre 10 e 50% em relação Em relação ao porte populacional, obser- ao seu déficit, enquanto 6% dos municípios va-se também uma correlação positiva entre o têm mais unidades contratadas do que o nú- sucesso de contratação e as faixas populacio- mero do déficit habitacional calculado. nais entre 50 mil e 500 mil habitantes, demons- Os resultados em relação ao “índice de trando que o programa tem dificuldades em sucesso”, por sua vez, também indicaram que “rodar” nas cidades maiores, onde novamente não existe nenhuma correlação entre a adesão o mercado de solo é mais dinâmico e a terra dos municípios ao SNHIS, sua regularidade e para produção de habitação de interesse social implementação dos itens exigidos pelo Sistema torna-se mais escassa e cara. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 Book 35.indb 173 173 06/03/2016 17:30:33 Danielle Klintowitz O resultado demonstrou, então, que exis- Como as gerências regionais da CEF tem fortes indícios de que a variável explicativa (Gidur) têm metas de contratação, tem-se as- mais forte para o sucesso de contratação das sistido, ainda, distorções entre as necessida- unidades do MCMV é realmente o preço da des habitacionais existentes nos municípios terra. As variáveis relacionadas à instituciona- e a contratação de unidades residenciais no lização do setor habitacional, que teve grande âmbito do MCVM orquestradas pela própria fomento nos primeiros anos do MCidades, as- CEF e seus gerentes que têm usado diferen- sim como o investimento na implementação de tes artifícios para alcançar as metas exigidas instrumentos de planejamento e gestão do solo (Klintowitz, 2015). Com a anuência da CEF e urbano do Estatuto da Cidade, não tiveram sig- do MCidades, os municípios menores, onde o nificância na contratação desse programa. preço da terra urbanizada é menor, estão con- Fica evidente que o modelo implementa- seguindo obter mais unidades do MCMV. do pelo MCMV dialoga com as lógicas do mer- Em consequência desses fatores, apesar cado imobiliário, mas não com as lógicas da de as capitais dos estados brasileiros concen- política habitacional defendida pela plataforma trarem 37,5% do déficit habitacional, o de- da reforma urbana e pelo próprio MCidades em sempenho proporcional apresentado nesses seus primeiros anos, já que a definição de on- municípios para os imóveis da faixa 1 na fase de haverá maior número de unidades são de- 1 do Programa é muito reduzido (24%) em terminadas pelas facilidades e perspectivas de comparação com os outros recortes territo- maiores ganhos dos produtores privados e não riais (76%). pela existência de necessidades habitacionais, Confirmando os dados obtidos na re- planejamento e priorizações da gestão pública. gressão linear apresentada, Lima Neto, Krause Tabela 3 – Contratações para municípios acima de 50 mil habitantes (MCMV 1, faixa 1) Recorte territorial Déficit urbano – Faixa 1 Unidades contratadas – famílias até R$1.600 (OGU) (área urbana) Unidades contratadas – famílias até R$1.600 (FGTS) (área urbana) Total unidades contratadas Desempenho contratação sobre déficit > 100 mil habitantes 826.963 272.363 56.518 328.881 33 40 50 a 100 mil habitantes 504.594 159.278 21.866 181.144 18 36 1.238.247 204.221 32.364 236.585 24 19 725.090 179.459 78.268 257.727 26 36 Capitais estaduais RM de capitais estaduais (sem a capital) Fonte: Ministério das Cidades (2014). 174 Book 35.indb 174 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 06/03/2016 17:30:34 Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer... e Furtado (2015), em estudo que busca e sua localização, os autores ainda afirmam desvendar as correlações entre a produção que a ênfase do MCMV1 e 2 foi de produção dos empreendimentos do MCMV na faixa 1 e de casas, e o quesito de localização e inserção o déficit habitacional, na dimensão intrame- na cidade resultado das forças e interesses co- tropolitana, revelaram que a maior produção nhecidos e presentes na ordenação típica do habitacional em municípios nas metrópoles es- urbano e não fez parte da formulação progra- tudadas se dá nos municípios mais periféricos mática do MCMV. e com menor participação na atividade econô- A identificação das necessidades habi- mica metropolitana. Os autores demonstram, tacionais representada exclusivamente pelo ainda, que a média da distância dos empreen- déficit habitacional, incorporado ao modelo dimentos ao centro de cada RM aumentou no de política habitacional produzido pelo MCMV, MCMV2, o que nos permite supor que o efeito traz resultados muito diversos dos sentidos do de valorização imobiliária, decorrida do próprio “direito à cidade” defendidos pela plataforma MCMV1, já apresenta impactos para a própria da reforma urbana, como se observa na série produção dos novos empreendimentos do Pro- de estudos de caso que tem sido realizados a grama. A partir de seus estudos sobre as corre- respeito da implementação do MCMV nas cida- lações entre a produção dos empreendimentos des brasileiras. Tabela 4 – Avaliação dos Moradores do MCMV 1, faixa 1, sobre o atendimento por serviços na moradia atual, em comparação com à moradia anterior (em %) Características avaliadas Acesso à infraestrutura básica Acesso à cidade Melhorou Piorou Ficou igual Não respondeu Rede de esgoto 49,7 8,4 41,5 0,4 Pavimentação 47,4 15,2 36,5 1,0 Coleta de lixo 40,2 11,3 47,8 0,6 Iluminação pública 38,0 19,1 42,2 0,8 Fornecimento de energia elétrica 35,4 7,2 57,0 0,4 Fornecimento de água encanada 32,8 20,0 46,9 0,3 Acesso aos veículos 34,8 23,2 39,5 2,5 Calçadas 36,7 28,5 34,0 0,9 Acesso a comércio 21,3 61,2 17,1 0,5 Acesso a equipamentos e serviços públicos 20,1 44,0 33,5 2,4 Policiamento 26,8 39,9 31,5 1,8 Transporte público 30,2 38,7 30,0 1,1 Acesso ao trabalho 20,5 44,7 29,4 5,4 Acesso à escola 26,9 35,9 27,7 9,5 Correios 22,3 33,7 42,9 1,2 Fonte: Elaboração própria. Pesquisa Rede Moradia Cidade (2014). Chamada MCTI/CNPq/MCIDADES n° 11/2012. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 Book 35.indb 175 175 06/03/2016 17:30:34 Danielle Klintowitz A pesquisa realizada pela Rede Moradia 7 Cidade, 2014, por exemplo, revelou que a loca- duas (Estado e setor empresarial) como nos governos anteriores. lização das novas moradias produzidas no âm- As três pontas, no entanto, não são con- bito do MCMV tem importantes impactos nos duzidas na busca de uma agenda comum. Para beneficiários em relação ao acesso a serviços e não contrariar nenhum dos interesses, o gover- equipamentos públicos. Apesar de no Estado de no opta por uma coordenação de interesses São Paulo 43% das famílias pesquisadas terem com a constituição de duas agendas paralelas, vindo de assentamentos precários e 56% de em que cada um dos interesses se vê contem- áreas de risco, enquanto o acesso aos serviços plado (Klintowitz, 2015). A habitação passa a básicos de infraestrutura melhorou em relação ter duas agendas paralelas para que convivam à moradia anterior, as características classifi- no governo em uma estratégia de layering cadas como de acesso à cidade (acesso ao co- (Mahoney, Thelen, 2010), que institui camadas mércio, ao trabalho, a equipamentos e serviços incrementais, tanto sobre os aparatos institu- públicos; policiamento, transporte público, à es- cionais herdados dos governos anteriores como cola e aos correios) apresentaram significativa em um processo de combinação entre essas piora em relação à moradia anterior. duas agendas em disputa. A persistência do SNHIS ao longo do tempo como o modelo de política habitacional A tríplice aliança na coordenação de interesses em torno do MCMV ideal que se busca alcançar e a realpolitik implementada pelo MCMV que utiliza regras que em nada convergem para o modelo idealizado pelo SNHIS, sem contudo eliminá-lo definitivamente, podem ser explicadas pela ideia de No Governo Lula, a necessidade de ampliação das bases e alianças inaugura uma nova estrutura de relacionamento do governo com a sociedade. Enquanto em governos anteriores o relacionamento Estado-sociedade no setor habitacional esteve estritamente vinculado às articulações do Estado com as coalizões do setor produtivo, no governo Lula, desde sua origem, os movimentos sociais ligados à moradia são trazidos à arena de negociação sem que, ao mesmo tempo, o Estado se furte a estruturar uma relação estreita com o setor empresarial. Cria-se o que se pode chamar de uma triple aliança, ou uma matriz de relacionamento que passa a ter três pontas (Estado, setor empresarial e movimentos sociais), e não mais apenas 176 Book 35.indb 176 decoupling, trazida por Meyer e Rowan (1977), na qual há um respeito “ritualístico” às regras originárias, isto é, apesar de não serem as regras que comandam as instituições, esses “mitos geradores” permanecem como uma espécie de direção moral da política. Assim, o modelo proposto pela plataforma da reforma urbana permanece como o modelo utópico – SNHIS – que parece dar a “direção moral” à política, enquanto o modelo que favorece ao setor empresarial – MCMV – é aplicado na prática como a “política real”, inviabilizando a possibilidade do SNHIS concretizar-se. Oliveira (2010) identifica esse modelo descrito para a política habitacional, como a prática geral desenvolvida nos governos petistas, denominando esse processo Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 06/03/2016 17:30:34 Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer... de “Hegemonia às Avessas”. Segundo o autor, governar em que se buscou agradar todos os nesse governo constrói-se uma áurea na qual setores e classes de forma a minimizar os con- parece que os atores e suas coalizões histori- flitos, radicalizações e mobilizações contrárias camente dominados passam a comandar a po- ao governo. lítica, pois fornecem a “direção moral” e estão à testa de organizações do Estado e dispõem, ainda, de poderosas bancadas no Congresso Nacional; no entanto, o conjunto de aparências esconde uma nova dominação na qual “não são mais os dominados que consentem em sua própria exploração; são os dominantes – os capitalistas e o capital, explicite-se – que se consentem em ser politicamente conduzidos pelos dominados, com a condição de que a ‘direção moral’ não questione a forma de exploração capitalista” (Oliveira, 2010, p. 27). A defesa do setor produtivo da indispensável resolução do Assim, enquanto o setor produtivo tem déficit habitacional explica-se muito bem sob importantes ganhos materiais com o MCMV essa abordagem. em detrimento da redução do direito à cidade Com a dupla agenda instalada, por um de milhões de famílias de baixa renda, a po- lado cria-se uma ilusão para os atores ligados lítica habitacional preconizada pelos atores à plataforma da reforma urbana de que um da plataforma da reforma urbana continua dia se construirá um modelo de planejamento persistindo no imaginário e em poucos inves- e gestão habitacional descentralizado com au- timentos institucionais da Secretaria Nacional tonomia dos governos locais e de provisão por de Habitação, como parte dos ganhos dos ato- meio de autogestão e, por outro, atende-se aos res ligados à plataforma da reforma urbana. As interesses do segmento produtivo que deman- atas das reuniões do ConCidades mostram esse da estabilidade de ganhos. As regras e progra- processo de layering (Mahoney e Thelen, 2010) mas vão se somando e se sobrepondo de forma com clareza. Enquanto o MCMV vai tomando a agradar todos, sem excluir nenhum interesse a primazia da política habitacional, na mesma do processo. reunião do Conselho se debatem medidas para As duas agendas – da reforma urbana e melhorar esse programa e discutem-se as preo- do setor produtivo –, que caminham paralela- cupações sobre o conteúdo dos Planos Locais mente como se ambas fossem prioritárias para de Habitação (PLHIS) como se esses ainda fos- o governo, foram claramente uma das base de sem relevantes na condução da política habita- sustentação do “lulismo”. Singer (2012) deno- cional no plano local (Klintowitz, 2015). mina “lulismo” a estrutura de arbitragem para Observa-se, portanto, que o próprio presidir um governo de coalizão desenvolvida layering criado com essa dupla agenda é um importante artifício de manutenção da no Governo Lula. Estruturou-se um modo de Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 Book 35.indb 177 No lulismo, pagam-se altos juros aos donos do dinheiro e ao mesmo tempo aumenta-se a transferência de renda para os mais pobres. (...) Enquanto os meios de pagamento crescem, cada fração de classe pode cultivar o seu lulismo de estimação. (...) Por isso o presidente pode pronunciar, para cada uma delas, um discurso aceitável, usando conteúdos diferentes em lugares distintos e, sobretudo, tomando cuidado para que os conflitos não impliquem em radicalização e mobilização. (Singer, 2012, p. 202) 177 06/03/2016 17:30:34 Danielle Klintowitz arbitragem que busca contentar todos os planos sem mobilizações contrárias da socieda- atores. O layering torna-se mais eficiente, pois de, como preconizava o lulismo (Singer, 2012). as novas sistemáticas esvaziam as anteriores, Por sua vez, os movimentos de moradia, trazendo amplos benefícios tanto ao Estado vislumbrando a possibilidade de vinculação de como ao mercado privado sem, contudo, tra- grande volume de recursos para a política ha- zer o ônus político de desmontar o ideário – o bitacional, também quiseram estabelecer uma SNHIS – construído a partir da luta de um im- aliança com os empresários do setor produtivo portante movimento social aliado do gover- em torno da PEC da Moradia Digna que pre- no – o FNRU. Assim, sem que se desmonte cedeu a instalação do MCMV. E demonstrando os “mitos geradores” (Meyer e Rowan, 1977) que a política tem a capacidade de reconfi- constituídos pelas institucionalidades conquis- gurar os atores e as coalizões, principalmente tadas pelos ativistas da reforma urbana, volta- quando envolvem importantes recursos ca- -se a praticar políticas urbanas e habitacionais pazes de reconfigurar o curso da política pú- semelhantes às realizadas em momentos an- blica como um todo (Couto e Abrucio, 2003; teriores da história brasileira, que favorecem Sabatier e Weible, 2007; March, 2010), os outros interesses, sem ajudar, contudo, na im- movimentos convictos de sua posição no jogo plementação da reforma urbana. político, compuseram essa aliança apesar dos Além da manutenção simbólica do SNHIS, a medida mais importante medida conflitos ocasionados com os aliados históricos, companheiros de FNRU. para a sustentação da hegemonia dessa polí- O governo, por sua vez, ao mesmo tempo tica refere-se às alianças estabelecidas e ga- que reiterava os laços com os movimentos de nhos obtidos pelos movimentos de moradia moradia nas interlocuções no ConCidades, mas com o MCMV. principalmente no atendimento às demandas Em um contexto de arbitragem, os em- nos processos de interlocução estabelecidos presários do setor produtivo da construção nos gabinetes, estabelecia novos laços com o civil e mercado imobiliário que já tinham empresariado do setor, tanto nas arenas públi- interlocução estabelecida com o governo, ao cas criadas, como principalmente nos espaços entender que o governo petista era conforma- de gabinetes. do por um ambiente de coordenação de inte- Assim, o ConCidades se constitui, então, resses em que seriam necessárias a convivência como espaço de encontro e articulação entre entre as diferentes coalizões, e, se possível, a os vários atores. Mas as negociações eram fei- construção de alianças entre elas, usaram o tas em outras arenas que eram não públicas, ConCidades, antes mesmo da ideia da formu- dando mais liberdade e autonomia nas nego- lação do MCMV, para articular sua interlocução ciações aos atores envolvidos. com os movimentos de moradia em busca da No entanto, mesmo com a ampla coa- criação de laços e alianças,8 como parte da es- lizão formada em torno da PEC da Moradia tratégia para construir uma ampla coalizão em Digna, sua negociação não foi bem-sucedida; favor das demandas do setor produtivo, de mo- já o núcleo estratégico do governo (Casa Ci- do que o governo pudesse implementar seus vil, Ministério do Planejamento e Ministério da 178 Book 35.indb 178 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 06/03/2016 17:30:34 Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer... Fazenda) era contra sua aprovação pela cren- com o Governo anteriormente enxergavam no ça de que a vinculação do orçamento engessa Programa a concretização de seus interesses as possibilidades de ação política do governo. (Klintowitz, 2015). Contudo, em 2008, com a crise internacional adotou-se na prática, no MCMV, o cenário de investimento proposto pela PEC da Moradia Digna, alcançando um investimento aproximado de 2% do Orçamento Geral da União (OGU) O MCMV e os movimentos de moradia em subsídios habitacionais. Com os objetivos alcançados, os laços Contudo, para os movimentos sociais de mora- efêmeros entre os empresários da construção dia, mesmo defendendo o programa adiante da civil e movimentos de moradia se afrouxaram plenária do ConCidades, o percurso do projeto (Tarrow, 2009) e cada coalizão passa a cuidar da PEC da Moradia Digna ao Programa MCMV de seu quinhão. Mesmo que de certa forma não foi tão direta quanto para o setor produ- uma congregação de interesses em torno da tivo. Assim como o projeto da PEC, que não manutenção do MCMV permaneça, a atua- havia incorporado a proposta da autogestão, ção destas coalizões demonstra que a alian- ao ser anunciado o MCMV destinava-se ape- ça entre elas se afroxou pela busca de seus nas para a promoção da moradia por empresas próprios interesses. Como descrito por um privadas de construção civil. Um fato simbólico empresário do setor da construção civil: “O que demonstra que inicialmente os movimen- sucesso do programa Minha Casa Minha Vida tos de moradia não estavam contemplados é o fracasso da articulação política do Mora- como atores que fariam parte dos beneficia- dia Digna” (Klintowitz, 2015). No entanto, se dos com o MCMV foi a falta de representação por um lado empresários e movimentos pas- desses movimentos na mesa de lançamento do sam a não ter mais as mesmas sinergias do Programa em 25 de março de 2009. Os movi- momento anterior, por outro, as alianças des- mentos precisaram reivindicar sua participação sas coalizões com o governo se fortaleceram para serem chamados para o cerimonial. enquanto o MCMV vigora com extraordinário fonte de benefícios. sidente da República aos seus apelos, os mo- Essa aliança se manifesta no ConCida- vimentos de moradia solicitaram audiências des no qual apenas os conselheiros dos seg- especiais com o Presidente Lula e com a Mi- mentos acadêmicos e profissionais, ONGs nistra Chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, e poder público municipal e estadual mani- para requerer sua parte no programa. Essas festavam-se com críticas a respeito do des- reuniões privadas resultaram positivas e ape- colamento do MCMV com o SNHIS e sobre a sar da estrutura do Programa já estar definida necessidade de discussão mais profunda do nesse momento, foi criada uma nova modali- MCMV nesse conselho, enquanto os repre- dade especial – o MCMV Entidades – voltada sentantes de movimentos de moradia e do especificamente para promoção de moradia setor empresarial que já haviam negociado por entidades sem fins lucrativos, incluindo as Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 Book 35.indb 179 Contudo, acreditando no apoio do Pre- 179 06/03/2016 17:30:34 Danielle Klintowitz associações e cooperativas habitacionais au- próprios atores que passaram a atuar como togestionárias. Kingdon (2011) argumenta que cooperantes do governo, ao invés de críticos um bom empreendedor de política pública é e formuladores (Gohn, 2010). Contudo, se por capaz de incorporar uma proposta para uma um lado os movimentos de moradia continua- mudança no fluxo na política com a solução ram a não participar efetivamente dos pro- de um problema existente que também precisa cessos decisórios da política habitacional e as ser resolvido, articulando assim os problemas, arenas participativas foram desconsideradas, a política pública e política. Assim, Lula, como por outro, fica claro que esse governo não bom empreendedor de política, aproveitou a deixou mais de levá-los em consideração na oportunidade trazida pelo MCMV para resolver lista de atores contemplados com a distribui- também o problema dos movimentos de mo- ção dos benefícios dos investimentos na área, radia, e ganhar a sua chancela para o MCMV. mesmo que de forma assimétrica se compara- Utilizando-se da mesma lógica de arti- dos aos benefícios obtidos por outros atores. culação do setor produtivo que conseguiu es- Garantiram-se, assim, recursos para financiar a truturar o MCMV em audiências privadas nos produção social da moradia realizada de forma ministérios, sem passar pelos foros públicos organizada, pelos futuros beneficiários e apoio em que estavam inseridos, os movimentos de dos movimentos de moradia ao MCMV (Ferrei- moradia também negociaram sua modalidade ra, 2014; Rodrigues, 2013). com o governo em audiências privadas sem Embora o aporte de recursos na moda- passar por arenas públicas. Apesar disso, parte lidade MCMV-E seja muito reduzido diante do das lideranças, conforme comprovam as atas montante global do programa (apenas 2%) das reuniões do ConCidades que discutiram o (Rodrigues, 2013), não se pode negar que sua 9 MCMV, parecia não se preocupar muito com existência foi uma vitória para essa coalizão e as arenas em que se davam a decisão sobre a que está diretamente relacionada ao fato de política, já que tal programa traria importante que tais movimentos passam a ter um novo benefícios materiais para os movimentos de status de player no âmbito político (Rolnik, Klintowitz e Iacovini, 2014). Esse novo status político trouxe o importante reconhecimento aos movimentos sociais, e não apenas ao setor privado da construção civil, como parceiros do governo no processo de implementação da política de habitação de interesse social (Tatagiba e Texeira, 2014), e, ao mesmo tempo, os reafirmou como apoiadores do governo, e principalmente, do MCMV. Um indicador fundamental da importância dada pelo governo à concertação com os movimentos de moradia foi a criação de uma assessoria da Presidência da Caixa, especialmente para fazer o MCMV-E moradia. Dessa forma, os próprios movimentos sociais de moradia, defensores históricos dos espaços participativos de decisão sobre as políticas urbanas, retiram a negociação da arena pública para a arena privada, conformando-se em não fazer parte do processo decisório das macroestruturas da política habitacional, desde que sejam atendidos por meio de negociação nos gabinetes aos quais conquistaram o acesso. A estratégia de retirada da negociação das arenas públicas para pactuações individuais com cada um dos atores enfraquece os 180 Book 35.indb 180 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 06/03/2016 17:30:34 Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer... “rodar”, e que buscava informar para a má- autogestionária, foi significativa a participa- quina, nas palavras do próprio presidente à ção dos movimentos na formação das listas época da CEF – Jorge Hereda, que as Entida- de beneficiários das unidades produzidas pela des e sua modalidade MCMV-E eram prioritá- promoção privada no âmbito do MCMV pa- rias para o governo. ra a faixa 1 em diferentes municípios onde o O MCMV-E passou a ser a principal for- poder público local, responsável pela indicação ma pela qual os movimentos sociais de mora- da demanda, têm reservado um percentual dia participam da implementação da política das unidades produzidas para o atendimento pública (Ferreira, 2014). Em uma pesquisa (Ta- de famílias indicadas por movimentos sociais. tagiba e Texeira, 2014), realizada no âmbito Em muitos municípios do Brasil, a indicação de da avalição do MCMV-E, todas as lideranças um percentual de unidades pelos movimentos entrevistadas afirmaram de forma categórica de moradia passou a se constituir como uma o interesse em continuar atuando no MCMV-E, política municipal, ampliando muito os ganhos apesar de demonstrarem muita clareza sobre dos movimentos de moradia com o MCMV. Na os problemas e limites do programa. cidade de São Paulo, por exemplo, o Conselho Conquistado em uma lógica estrutural de Habitação decidiu como critério para prio- privatista que já estava assentada e que se des- rização da demanda que 25% das unidades tinava ao protagonismo da promoção privada serão destinadas a benificiários indicados pelos da moradia, o MCMV-E surgiu como uma espé- movimentos de moradia.10 cie de armadilha perversa. As entidades que de- É importante destacar que os ganhos de sejam produzir com recursos do MCMV-E estão unidades com o MCMV, obtidos pelos movi- aprisionadas às lógicas do mercado imobiliário mentos, são importantes para que as lideran- privado e precisam disputar terrenos com as ças possam atender às suas bases, compostas grandes construtoras do país. Apesar de parte principalmente por famílias em busca de uma de os movimentos de moradia que defendem moradia, uma vez que nisso consistirá seu po- historicamente a produção por autogestão, es- der de convocação junto a novos integrantes pecialmente a UNMP, estarem tentando utilizar do movimento. Nessa conjuntura, a distribuição os recursos do MCMV-E para concretizar pro- de serviços e benefícios sociais passa cada vez jetos com esse viés, a inserção da modalidade mais a ocupar o lugar dos direitos e da cida- para os movimentos de moradia em um arca- dania, constrangendo não somente a demanda bouço institucional que já estava estruturado por direitos, como as próprias arenas públicas para a lógica da produção privada, inviabiliza construídas para esse fim (Gohn, 2010), já que de muitas maneiras a boa execução do MCMV- essa distribuição de benefícios depende apenas -E (Rodrigues e Mineiro, 2012). da boa vontade e da competência de articula- Nesse esquema que foi criado, mostrou- ção com os setores envolvidos. Nesse contexto, -se mais lucrativo para muitas entidades indi- apesar de os ganhos serem reais, não potencia- carem beneficiários do que produzir a mora- lizam mudanças estruturais. dia. Assim, além do ganho de uma pequena Em governos de esquerda os movimen- parte dos recursos do MCMV para a produção tos sociais tendem a valorizar a maior oferta Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 Book 35.indb 181 181 06/03/2016 17:30:34 Danielle Klintowitz de participação estatal e a disputar nessas ins- conflito implícito dos cálculos de trade off en- tâncias seus projetos e interesses. Contudo, ao tre as mudanças estruturais e o atendimento mesmo tempo, tendem também a orientar sua imediato às bases. ação por uma disposição menos conflituosa e uma postura de maior conciliação, evitando a pressão sobre os governos e diminuindo o uso do protesto como forma de negociação, seja para garantir suas demandas, seja para garan- A implicações do MCMV para o FNRU tir a governabilidade a partir de uma agenda de esquerda (Dagnino e Tatagiba, 2010). Nesse As diferentes naturezas dos segmentos que cenário, a identidade desses movimentos passa compõem o FNRU sempre ocasionarma ten- a se definir muito mais por sua relação com o sões internas a essa coalizão. No contexto do Estado ou com os partidos do que a partir de MCMV, os movimentos de moradia defenderam sua localização societária (Gohn, 2010) com a existência do MCMV, mesmo que com restri- resultados perversos no que se refere à ques- ções a algumas de suas normativas, e não qui- tão da autonomia. Ao mesmo tempo, ao serem seram cobrar do Governo mudanças internas atendido dessa forma, de alguma maneira es- ao programa pelos canais institucionais ou em tão dando uma chancela de qualidade da polí- mobilizações públicas muito conflituosas, ao tica, como no caso do Programa MCMV. mesmo tempo, os outros segmentos constituin- É importante considerar que os movi- tes do FNRU quiseram fazer críticas mais con- mentos de moradia são um tipo peculiar de tundentes à estrutura do programa e promover movimento social. Por um lado, lutam pela processos de pressão e enfrentamento público mudança das estruturas da sociedade, sendo (Klintowitz, 2015). justamente essa característica que os aliou ao A falta de consenso interno no FNRU fez Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) na com que essa articulação tivesse um posicio- luta pelo direito à cidade. Por outro lado, têm namento mais discreto em relação ao MCMV. uma base a ser atendida com bens materiais Essa contradição, ao mesmo tempo, favoreceu concretos – casas –, sendo justamente o que o Governo que não teve que enfrentar essa os levou a estabelecer alianças com os empre- oposição, no entanto, fragmentou e enfraque- sários do setor produtivo. Essa dupla caracte- ceu a coalizão da reforma urbana que não rística implica, muitas vezes, escolhas prag- conseguiu resolver suas discrepâncias internas. máticas que favorecem alianças que geram Enquanto esse afastamento ideológico entre os ganhos imediatos, mas que podem, ao mesmo segmentos não pareceu afetar os movimentos tempo, implicar o desvio do caminho que leva- de moradia, essa circunstância teve signifi- rá à estagnação das mudanças estruturais que cativa importância para os outros segmentos defendem. Essas características também os que, por não terem numerosas bases como os diferencia de outros segmentos que compõem movimentos, ficam enfraquecidos como atores o FNRU – ONGS, setores profissionais e aca- com poder de pressão, mobilização e negocia- dêmicos – que não estão submergidos pelo o ção junto ao Governo. Os movimentos, por sua 182 Book 35.indb 182 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 06/03/2016 17:30:34 Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer... vez, usaram seus canais diretos de articulação também, uma parcela importante do eleitora- para negociar suas demandas particulares, do que vive em assentamentos irregulares no ligadas aos programas, mas não para bus- país. Assim, de forma surpreendente, por não car articulações mais estruturais em torno da dialogar em nada com o MCMV, a mesma lei plataforma da reforma urbana, o que também que o instituiu foi também responsável por es- fragilizou o FNRU como coalizão e em sua ca- tabelecer uma normatização para a regulariza- pacidade de advocacy. ção fundiária de assentamentos localizados em Apesar de diminuir os canais de articula- áreas urbanas de interesse social, que há muito ção direta e o empenho em busca do apoio ao se tentava, sem sucesso, aprovar no âmbito do governo dos segmentos de ONGs e acadêmi- Congresso Nacional. cos ligados ao FNRU, o Governo não os alijou totalmente do processo de construção da nova política habitacional. Ao elaborar a Medida Provisória (MP 459) que instituiria o MCMV, o presidente Lula concedeu aos defensores da A coordenação federativa do MCMV plataforma da reforma urbana um capítulo inteiro sobre a regularização fundiária, sendo Paralelamente, em um governo que tinha um responsável por levar à concretização de uma projeto de manutenção de poder relacionado à matéria de suma importância para a questão articulação federativa, não se poderia desenhar fundiária no Brasil, e que estava em tramitação uma política de habitação que não garantisse há muitos anos no Congresso Nacional sem si- ganhos para os municípios e para seus pre- nais de que teria um desfecho rápido. feitos. Sob o pressuposto de que a promoção O capítulo sobre regularização fundiária habitacional pelos entes locais impedia que da MP 459/2009 teve sua redação totalmente os programas “rodassem” no ritmo desejado baseada em um texto que já havia sido pro- (Loureiro, Macário e Guerra, 2013; Klintowitz, duzido na Câmara dos Deputados, no âmbito 2015), mas com o intuito de que os governos do processo que discute, desde o ano 2000, a locais aderissem à nova política, o modelo do futura Lei de Responsabilidade Territorial Urba- MCMV foi construído delegando aos municí- na (LRTU) (PL 3 057/2000). O texto da MP foi pios basicamente o papel de organização da retirado do substitutivo produzido pelo último demanda (por meio de cadastros encaminha- relator, o Deputado Renato Amary (PMDB-SP) e dos à CEF para a seleção dos beneficiários) e, que estava pronto para a votação em plenário, de modo facultativo, à criação de condições mas que enfrentava muita oposição. O proces- para facilitar a produção, mediante a flexibili- so já havia passado por três relatores sem su- zação da legislação urbanística e edilícia dos cesso (Silva e Araújo, 2013). municípios e/ou da doação de terrenos. Nesse Com esse ato, Lula vislumbrou a pos- modelo a necessidade de institucionalidade da sibilidade de contentar – com um programa gestão é muito pequena, demandando ape- (MCMV) que a princípio os descontentaria –, nas a existência de um cadastro, sendo esse os outros atores ligados à reforma urbana, e, justamente o instrumento mais presente nos Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 Book 35.indb 183 183 06/03/2016 17:30:34 Danielle Klintowitz municípios brasileiros. Em 2009, ano de início tempo perceberam que os benefícios recebidos do PMCMV, 81% dos municípios já o tinham seriam tantos ou maiores do que se fossem (Arretche, 2012). os promotores dos empreendimentos, com a Indicar a demanda significa, por um lado, vantagem de que não precisariam despender um baixo investimento do ponto de vista finan- muitos esforços para isso. Diante desse quadro, ceiro e institucional e, por outro, um grande é possível afirmar que políticos locais se bene- recurso no sentido de angariar possíveis votos ficiam do programa, o que ajuda a entender em pleitos municipais. A influência dos benefí- por que a maioria dos municípios concentrou cios eleitorais proporcionados pela inaugura- seus esforços unicamente na viabilização de ção de novos empreendimentos habitacionais, empreendimentos do MCMV em seu território, produtos cujo significado vai além das conside- deixando de lado seus processos de planeja- rações sobre o seu impacto econômico e social, mento ou criação de outras alternativas para tem um importante potencial para gerar capital solução das necessidades habitacionais (Rol- político. Os empreendimentos habitacionais nik, Klintowitz e Iacovini, 2014; Polis, 2014). construídos no âmbito do MCMV são, assim, Trata-se de uma postura pragmática, que capta “fatos políticos” de dimensão local, regional e o máximo de benefícios políticos com um míni- nacional, conferindo legitimidade ao exercício mo de esforço institucional e financeiro. Nesse do poder por sua elevada visibilidade no con- contexto, em muitos municípios, como é o caso junto das realizações dos governos (Camargos, de São Paulo, foi retirado do orçamento munici- 1993). Cada unidade produzida vale para duas pal o recurso que antes se destinava à pasta da contagens, ou seja, o capital político gerado habitação sob o argumento de que a política serve tanto para o município quanto para o go- habitacional já tinha o recurso proveniente do verno federal (Klintowitz e Iacovini, 2014; Rol- MCMV (Rolnik, Klintowitz e Iacovini, 2014). nik, Klintowitz e Iacovini, 2014). Com a estrutura criada inicialmente Vendo a possibilidade de ganhos de capi- para o MCMV, os únicos prejudicados seriam tal político com o MCMV, muitos governos es- os municípios menores, que na MP 459 não taduais também estão querendo “participar da estavam contemplados. Originalmente, não festa”. Esses governos têm adicionado recursos parecia fazer sentido expandir a atuação para aos disponibilizados pelo governo federal para esses municípios, já que não eram municípios que se consiga implementar empreendimentos interessantes ao setor produtivo, principal- nas capitais onde a terra é mais cara e, com is- mente na faixa 1, com empreendimentos de so, têm aproveitado também do capital político grande escala para reduzir custos e ampliar os gerado pelos empreendimentos produzidos. As- lucros (Shimbo, 2010). No entanto, ao serem sim, um mesmo programa tem unido diferentes comunicados dos novos rumos da política ha- esferas de governo, de diferentes partidos, em bitacional, esses municípios menores reivindi- suas inaugurações. caram e negociaram no Congresso Nacional a Se, inicialmente, os governos locais se in- inclusão de uma modalidade para municípios comodaram com o formato do Programa que com menos de 50 mil habitantes. Criou-se, tirava deles o protagonismo, com o passar do então, uma nova modalidade para o MCMV 184 Book 35.indb 184 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 06/03/2016 17:30:34 Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer... SUB 50 – a oferta pública – conhecida como geral de formulação do MCMV, foram sendo “SUB-50”. Junto com o MCMV-E e o MCMV- criadas concertações no próprio programa para -Rural, o SUB-50 representa as únicas exce- beneficiar o maior número de atores possíveis. ções ao modelo de provisão habitacional com Esse modelo de concertação só pode- promoção privada. ria ser estabelecido em um governo como o Nessa modalidade, os munícipios têm de Lula, que já começou com o apoio de uma um papel mais protagonista sendo responsá- grande base de movimentos sociais. A inova- veis por acessar o recurso por meio de edital dora articulação da tríplice aliança que uniu disponibilizado pelo MCidades. No entanto, empresários do setor produtivo e movimentos essas três modalidades são marginais dentro de moradia, opositores históricos, em defesa do Programa e representam apenas 11% do de uma política, e de seu governo de maneira total de unidades previstas. Contudo, mesmo geral, não seria possível de ser construída em não sendo pensado pelo executivo federal, a um governo que não chegasse ao poder com inclusão desses municípios menores no bolo do a áurea da defesa dos direitos dos excluídos e MCMV trouxe importantes apoios públicos da ao mesmo tempo com o pacto com o empresa- CNM (Confederação Nacional dos Municípios) riado para a garantia do crescimento da econo- e Frente Nacional do Prefeitos (FNP) para o go- mia do país e dos ganhos do capital nacional. verno federal. As articulações para a coordenação de interesses em torno da política habitacional aqui demonstrada ocorreram no âmbito das Considerações finais gestões do Presidente Lula. Embora o receituário tenha sido seguido na primeira gestão de O que se percebe ao percorrer este caminho Dilma, percebe-se que falta a essa presidente que desvela o arranjo institucional de coorde- o componente carismático de Lula e a vocação nação de interesses em torno do MCMV criada para a coordenação de interesses intrínseca a para sustentação desse programa que se trans- esse ex-presidente conforme constata Singer formou na única política habitacional do Bra- (2012): “O sucesso de soluções intermediárias sil por dois mandatos presidenciais é que esse arbitrais, depende em grande medida, da fi- arranjo foi típico do lulismo, em que todos os gura providencial do líder que dá a cada um atores têm seus interesses atendidos, mesmo o seu quinhão” (Singer, 2012, p. 201). O que que de forma assimétrica, e de modo a garantir garantiu a estabilidade desta política foi jus- a continuidade dos ganhos apoiam a política tamente a força da coordenação de interesses estabelecida e o governo de forma mais ampla. que foi articulada de modo a criar um “regime Enquanto se mantém viva a utopia do ca- de políticas públicas” (Couto e Abrucio, 2003) minho preconizado pela plataforma da reforma urbana que alimenta os atores ligados a essa No governo Dilma, no entanto, a política plataforma; cada um dos atores envolvidos no e os arranjos institucionais e de atores per- setor habitacional, inclusive esses próprios ato- maneceram praticamente os mesmos, porém res, tem ganhos próprios já que, no contexto demonstraram esgarçamentos, mesmo antes Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 Book 35.indb 185 quase hegemônico. 185 06/03/2016 17:30:34 Danielle Klintowitz da importante crise política que se deflagrou atores. Os poucos espaços de decisão acerca já no começo de seu segundo mandato. E do MCMV-E, em que se modificam normati- como esses arranjos, no setor habitacional e vas e se disputam recursos, foram ocupados também em outras políticas públicas, foram pelos movimentos de moradia ligados ao essenciais para as estratégias para a própria FNRU, mas com a possibilidade do lança- manutenção do poder do governo, seu esgar- mento da terceira fase do MCMV, assistiu-se çamento pode inviabilizar o projeto de manu- a uma clara disputa das novas lideranças de tenção mais à frente. moradia que buscavam brechas para que seus Outro fato curioso que surge a partir interesses também fossem atendidos de mo- da instalação do regime da política pública do que passassem a fazer parte da coordena- do MCMV, é a disputa pelo espaço entre os ção de interesses estabelecida. Danielle Klintowitz Instituto Pólis, Urbanismo. São Paulo/SP, Brasil. [email protected] Notas (1) Segundo dirigente da Secretaria Nacional de Habitação, na campanha eleitoral de 2014, as pesquisas apontaram que o programa com maior recall, isto é, o que era mais lembrado pela população quando pensavam nas polí cas federais, era o MCMV (Klintowitz, 2015). (2) O FGTS e o SBPE foram criados e regulamentos em 1966 como para promover o respaldo financeiro necessário à estrutura organizacional do BNH. O FGTS, tendo como fonte de recurso a poupança compulsória de parte dos salários formais captada pelo Governo Federal, é até hoje a principal fonte de recursos de financiamento do desenvolvimento urbano do país com juros mais baixos do que os pra cados no mercado. Já no SBPE, cujo os recursos são provenientes das cadernetas de poupança voluntárias é des nado para o financiamento habitacional dos segmentos de mais alta renda com juros menos subsidiados. (3) É importante notar que, para efeitos metodológicos, este cálculo da focalização do Programa MCMV em relação ao déficit assume que todas as unidades produzidas no âmbito do programa estão atingindo as famílias computadas como déficit e que não há nenhum vazamento. No entanto, sabe-se que parte dos atendimentos não são des nados ao atendimento do déficit calculado pela FJP. Além dos vazamentos pulverizados comuns em programas públicos, parte do atendimento do MCMV está sendo u lizada para permi r o atendimento às famílias que sofreram remoções forçadas para a implementação de novos empreendimentos, como no caso das obras para a Copa do Mundo 2014 e as Olimpíadas 2016. 186 Book 35.indb 186 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 06/03/2016 17:30:34 Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer... (4) O PMCMV, em sua componente urbana, foi operacionalizado para a modalidade da faixa 1 a par r da alocação de recursos orçamentários da União no Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) – inicialmente no montante de 14 bilhões de reais – e, em menor grau, ao Fundo de Desenvolvimento Social (FDS) – inicialmente no montante de 500 milhões de reais –, ambos gerenciados pela CEF. O FAR já vinha sendo u lizado na produção de unidades habitacionais para famílias com renda entre três e seis SM, dentro do Programa de Arredamento Residencial (PAR), recebendo recursos transferidos do Orçamento Geral da União (OGU) e do FGTS, e foi u lizado no MCMV para viabilizar a modalidade que passa recursos orçamentários diretamente para as empresas. Já o FDS é um fundo contábil de natureza financeira que funciona com recursos provenientes do Orçamento Geral da União – OGU, com prazo indeterminado de existência, sendo seus recursos des nados para o financiamento de projetos de inves mento de interesse social, nas áreas de habitação popular exclusivamente para famílias com renda de até R$ 1600, por meio da concessão de financiamentos a beneficiários organizados de forma associa va por uma En dade Organizadora – EO (associações, coopera vas, sindicatos e outros), Organizadora – EO. (5) O PAC Favelas, voltado à urbanização de assentamentos precários, apesar de não dialogar diretamente com o SNHIS e de passar por fora do FNHIS, é defendido por muitos atores ligados à plataforma da reforma urbana à medida que promove uma atuação mais integrada entre as polí cas urbanas (habitação, saneamento, mobilidade) do que a provisão de novas moradias que atua de maneira exclusiva na construção de casas. (6) Optou-se por realizar este exercício esta s co apenas nos dados de contratação da primeira fase do MCMV, pois os dados do MCMV2, disponibilizados pela CEF, apresentavam muitas inconsistências e não foi possível conseguir uma base mais adequada junto ao gestor do programa até o final desta pesquisa. (7) A Rede Moradia Cidade foi uma rede nacional de pesquisadores que se reuniram para realizar uma avaliação no âmbito da chamada MCTI/CNPq/MCidades n° 11/2012 sobre a inserção urbana dos conjuntos produzidos no âmbito do MCMV em seis estados brasileiros. A rede foi formada por pesquisadores de 11 ins tuições (universidades federais do Ceará, Pará, Rio Grande do Norte, Minas Gerais, Rio de Janeiro (Ippur e Prourb), universidades estaduais, USP (IAU e FAU), Pon cia Universidade Católica de São Paulo, Peabiru e Ins tuto Pólis) que construíram uma metodologia em conjunto para iden ficação de similaridades e diferenças da implantação desses conjuntos no território nacional. Essa avaliação realizou uma pesquisa com 3.900 famílias com moradias de unidades habitacionais produzidas no âmbito do MCMV, faixa 1, nas diferentes cidades estudadas. (8) Uma fala de um entrevistado de um conselheiro do ConCidades do setor da construção civil explicita esta estratégia: “Como a distribuição de participação do Conselho [das Cidades], de uma certa forma era um pouco desequilibrada e no fim o governo e os movimentos sociais acabam tendo uma grande maioria, a gente percebeu que a participação nossa [dos empresários] não deveria ser na votação. Não nha como a gente ganhar a votação, a gente sempre perdia. Mas nha a discussão, a discussão não é voto, porque na verdade, eu acho que uma coisa que era legal do Conselho é um trabalho de ar culação para trabalhar um pouco o consenso, eu acho que era uma cultura, uma coisa que foi bom, era trabalhoso, mas foi bom. Então percebemos que a nossa par cipação deveria ser na ar culação polí ca, na proposta de ideias, na elaboração de algumas propostas que pudéssemos de alguma forma vender as nossas ideias (...) Dessa forma nós conseguimos construir uma parceria com os movimentos sociais, que foi uma coisa muito legal, eu acho que a gente começou no embate com os movimentos Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 Book 35.indb 187 187 06/03/2016 17:30:34 Danielle Klintowitz sociais, a gente nha visões muito diferentes em algumas coisas, mas conseguimos construir um consenso” (Klintowitz, 2015). (9) Ata da 20ª Reunião do Conselho Nacional das Cidades (MCidades, 2009, s/p). (10) Valores de imóveis podem inviabilizar projetos habitacionais de São Paulo, Rede Brasil Atual. Disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2014/02/prestes-maia-estano-grupo-dos-que-201ctalvez201d-nao-valham-a-pena-des nar-para-habitacao-social-afirmasecretario-de-habitacao-4272.html>. 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Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016 06/03/2016 17:30:34 O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE: análise dos arranjos institucionais Minha Casa Minha Vida Program in the Metropolitan Region of Fortaleza: an analysis of institutional arrangements Renato Pequeno Sara Vieira Rosa Resumo Considerando o estado do Ceará, os resultados até aqui obtidos revelam a concentração dos conjuntos habitacionais do programa Minha Casa Minha Vida em alguns municípios metropolitanos, assim como a sua baixa disseminação pelos centros regionais habilitados à obtenção de recursos do Fundo de Arrendamento Residencial e do Fundo de Garantia por Tempo de Serviços. Diante desse quadro, buscou-se compreender as razões para a baixa efetividade do programa mediante a análise compreensiva dos arranjos institucionais, considerando o papel dos diferentes agentes envolvidos, notadamente as práticas dos setores empresarial imobiliário e da construção civil, as ações do Estado nas diferentes esferas de governo e os conteúdos dos instrumentos de planejamento e gestão do solo urbano e habitacional. Abstract Considering the State of Ceará (northeastern Brazil), the results obtained so far reveal the concentration of the housing estates of the Minha Casa Minha Vida Program in some metropolitan cities, as well as the low dissemination of the program across the regional centers authorized to obtain funding from Fundo de Arrendamento Residencial and from Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). In light of this panorama, we aimed to understand the reasons for the low effectiveness of the program through a comprehensive analysis of institutional arrangements, considering the role of the various actors involved, in particular the practices of the business, real estate and building sectors, the State's actions in the different spheres of government, and the contents of the instruments for planning and managing urban land and housing. Palavras-chave: política habitacional; arranjos institucionais; construção civil; programa Minha Casa Minha Vida. K e y w o r d s : housing policy; institutional arrangements; building sector; Minha Casa Minha Vida Program. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3509 Book 35.indb 191 06/03/2016 17:30:34 Renato Pequeno, Sara Vieira Rosa Introdução Faz parte deste estudo a abordagem pluriescalar incluindo diferentes dimensões: a região (estado ou metrópole); o município, com Neste artigo, pretende-se apresentar os resulta- destaque para os que que concentraram maior dos obtidos por meio de investigação científica número de unidades habitacionais; o setor reu- realizada ao longo de 2013 e 2014, a qual te- nindo um conjunto de bairros, notadamente ve como objeto de estudos os empreendimen- aqueles que concentram empreendimentos; o tos habitacionais construídos pelo Programa empreendimento, incluindo seu entorno; a uni- Minha Casa Minha Vida (PMCMV) na Região dade habitacional. Metropolitana de Fortaleza (RMF) e entregues No caso deste artigo, pretende-se dar até o final de 2012. Realizada em rede junto foco na análise do eixo que trata dos arranjos a outros 11 núcleos de pesquisa de diferentes institucionais e dos instrumentos da política regiões brasileiras, a mesma teve como obje- urbana e habitacional utilizados para a imple- tivos: – analisar o processo de implementação mentação do PMCMV na RMF. Partindo-se das do PMCMV no nível local, verificando o papel questões norteadoras, adota-se como primei- dos agentes envolvidos em suas diferentes atri- ro procedimento a identificação do quadro de buições e interesses e a compatibilidade entre atores envolvidos com a implementação do as políticas urbana e habitacional; – desenvol- PMCMV na RMF, considerando as diferentes ver uma análise do padrão de inserção urbana esferas de governo, as diversas modalidades dos empreendimentos produzidos no âmbito em que o programa se subdivide e levando em do programa MCMV no território dos muni- conta as distintas escalas em que o mesmo se cípios selecionados, de forma a caracterizar o materializa. No caso, partimos de questões re- impacto urbano dos empreendimentos produzi- lacionadas às dificuldades de implementação dos por meio do programa, notadamente sobre do PMCMV no Ceará, assim como aos motivos os padrões de segregação socioespacial vigen- de sua concentração espacial na RMF. Nesse tes, assim como sobre condições de acesso a sentido, destaca-se que a análise da distribui- oportunidades de desenvolvimento humano e ção espacial dos empreendimentos, assim co- econômico por parte dos moradores; – desen- mo a avaliação do grau de satisfação dos mo- volver estudos de natureza qualitativa, sobre radores poderá ser obtida em outros trabalhos empreendimentos selecionados que expressem dos mesmos autores (Pequeno e Rosa, 2015). diferentes situações de inserção urbana, visan- Para sua realização destacam-se como do identificar os impactos sociais e econômicos procedimentos metodológicos: a análise geo- nas famílias beneficiárias do programa (Santo estatística de bases de dados obtidas junto à Amore, Rufino e Shimbo, 2015). Esses, por sua Caixa Econômica Federal (CEF) consideran- vez, se adequaram a três eixos temáticos: ar- do o quadro de empreendimentos aprovados ranjos institucionais; condições de inserção até o final de dezembro de 2012; a condução urbana e segregação espacial; qualidade do de entrevistas semiestruturadas com os di- projeto arquitetônico e urbanístico e impactos ferentes agentes envolvidos; a leitura crítica junto aos beneficiários. dos documentos obtidos junto às instituições 192 Book 35.indb 192 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 06/03/2016 17:30:34 O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE diretamente envolvidos com a implementação diferenciada pelos municípios da metrópole. do PMCMV; trabalhos de campo visando veri- Primeiro, tem-se a concentração de empreen- ficar in loco as condições de implementação. dimentos nos municípios mais populosos como Conforme proposto no projeto, as pri- Fortaleza, Caucaia e Maracanaú, justamen- meiras visitas serviram para que a pesquisa te onde se concentra a maior parte do déficit fosse apresentada às instituições envolvi- habitacional os quais correspondem ao alvo das, em seus objetivos, procedimentos e re- principal desta pesquisa; segundo, observa-se sultados esperados, deixando claro o papel o conjunto de municípios situados no corredor do grupo envolvido e o caráter exploratório industrial da BR 116, composto por Horizonte, dessa investigação. Da mesma forma, escla- Pacajus e Chorozinho, os quais apresentam recia-se o apoio do Ministério das Cidades, a ampla representatividade das unidades cons- abrangência nacional da pesquisa dada a sua truídas pelo programa em relação ao total de realização em rede e os retornos a serem da- domicílios; em seguida, no litoral leste, tem-se dos ao longo da mesma sob a forma de resul- um agrupamento de quatro municípios onde tados preliminares. as pressões do setor imobiliário e turístico tra- Contudo, já nas primeiras visitas, o diá- zem dificuldades para a produção habitacio- logo e a obtenção de informações foi extrema- nal de interesse social; no extremo sul, onde mente fácil, considerando o conjunto de insti- se encontra um núcleo urbano Maranguape e tuições públicas envolvidas. Com isso, a junção Guaiúba com maior predomínio de atividades dos relatórios técnicos das políticas urbana e rurais, poucos empreendimentos foram contra- habitacional (nem sempre concluídos) com as tados; finalmente, no litoral oeste da RMF tem- informações fornecidas pelo Ministério das -se um conjunto de cinco municípios sob forte Cidades e pela CEF, referentes às localizações, influência do complexo industrial e portuário empresas envolvidas, porte e prazos, facilitou do Pecém e da área de produção de petróleo as idas a campo para análise do conjunto de em Paracuru: São Gonçalo, Paracuru, Paraipa- empreendimentos realizados na RMF. ba, Trairi e São Luis do Curu, os quais apesar Vale aqui mencionar que a RMF reúne da tendência de adensamento e da crescente atualmente 19 municípios estimando-se mais demanda habitacional tiveram poucas unida- de 3,9 milhões de habitantes. Desses destaca- des construídas (Pequeno, 2015). -se um grupo de municípios conurbados a For- Neste artigo, busca-se inicialmente carac- taleza que totalizam quase 85% da população terizar os agentes envolvidos em seus papéis, metropolitana: Aquiraz e Eusébio ao leste; Itai- seus interesses, parcerias e conflitos, visando tinga, Pacatuba e Maracanaú ao sul; e Caucaia apresentar a situação existente do programa ao oeste. Em todos os demais verifica-se um na RMF e no Estado do Ceará. Em seguida, são padrão de urbanização dispersa, reconhecen- discutidos os resultados dessa investigação a do-se diversos núcleos urbanos em meio a um partir da análise de alguns processos elenca- vasto território com características rurais. dos. Por último, apontam-se algumas diretrizes Entretanto, no caso do PMCMV, observa-se que o programa se distribuiu de maneira Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 Book 35.indb 193 com vistas a aprimorar o PMCMV no que se refere aos seus aspectos institucionais. 193 06/03/2016 17:30:34 Renato Pequeno, Sara Vieira Rosa Os arranjos institucionais e os agentes da produção infraestrutura nem serviços; as condições de desenvolvimento institucional nos municípios; a especulação imobiliária. Vale mencionar que esse setor passou A análise do PMCMV no que se refere aos seus por restruturação ao longo da pesquisa, sub- arranjos institucionais, presentes na implemen- dividindo-se em Gihab (Gerência Executiva tação do PMCMV na RMF e no Ceará, requer a de Habitação) e Gigov (Gerência Executiva de prévia compreensão do papel dos agentes so- Governo), em que a primeira se destina a pro- ciais envolvidos, considerando seus interesses jetos envolvendo o setor empresarial e a outra e em especial sua participação no processo de a projetos estritamente associados às deman- produção da cidade. No caso, é importante des- das governamentais. tacar a necessidade de reconhecer três tipos de Da parte do Ministério das Cidades, agentes: – aqueles diretamente associados ao verifica-se localmente que o mesmo se volta Estado, assumindo as diferentes atribuições do para uma atuação específica associada a gran- planejamento e da gestão do programa; – os des projetos, em que os processos decisórios que se incluem no setor empresarial, responsá- requeiram maiores discussões e o montante veis pela incorporação, edificação e comerciali- de recursos envolvido seja maior. Vale desta- zação das unidades habitacionais; – o público- car que ao longo da pesquisa presenciou-se a -alvo, os quais podem ser desdobrados entre realização de seminário que tratou de ações demandas individuais atendidas e demandas voltadas para a construção de grandes conjun- coletivas oriundas de remoções ou de movi- tos periféricos quando técnicos da ex-Gidur se mentos sociais. opuseram à aprovação desses empreendimen- Quanto aos agentes do setor público tos, dada a concentração dos mesmos num diretamente vinculados ao Estado, vale men- setor periférico desprovido de infraestrutura cionar as diferentes atribuições vinculadas às urbana e serviços. Vale destacar que esses em- esferas de governo, indicando diversas res- preendimentos estavam sob o comando dos ponsabilidades e revelando discrepâncias na governos estadual e do município de Fortale- tomada de decisão. Na esfera federal de go- za com o apoio do setor da construção civil, verno, é possível reconhecer o amplo papel da das concessionárias de infraestrutura urbana Caixa Econômica Federal como agente opera- e mesmo algumas entidades dos movimentos dor do PMCMV dada a sua capilaridade em sociais e de seus articuladores. direção aos estados e municípios através da Quanto ao governo estadual observa-se Gidur (Gerência de Desenvolvimento Urbano). que desde a extinção da Cohab as ações do As reuniões realizadas com esse setor indica- governo tornaram-se cada vez mais reduzidas, ram o modo diferenciado como as faixas eram buscando o mesmo se eximir de quaisquer res- atendidas pelo PMCMV bem como as dificulda- ponsabilidades neste setor (Cardoso, 2002). To- des na contratação de empreendimentos da davia, com o aumento progressivo de recursos Faixa I, destacando-se dentre outros motivos: disponibilizados para habitação pelo Ministério as precariedades urbanísticas em setores sem das Cidades foi criada a Secretaria Estadual das 194 Book 35.indb 194 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 06/03/2016 17:30:34 O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE Cidades, em 2007, estruturada em coordenado- após mudança de governo; destaque dado ao rias nos moldes do Ministério, exceção feita ao setor habitacional no orçamento municipal; – de mobilidade urbana. equipe, tanto no porte como na sua capacidade Em sua composição, a Secretaria das administrativa; - bases de dados disponíveis; – Cidades do Ceará explicita o papel que a pro- disponibilidade e aplicabilidade de instrumen- dução habitacional passou a apresentar nos tos da política urbana e habitacional; – interse- últimos anos, indicando duas frentes: – a pre- torialidade (Arretche, 2012). sença de coordenadoria de projetos especiais, No caso de Fortaleza, município com em sua maioria voltados para o enfrentamento mais de 2,5 milhões de pessoas, houve um da questão da moradia mediante o reassen- brusco rompimento na gestão municipal após tamento de famílias removidas de favelas em as eleições de 2012, havendo ampla restrutu- situação de risco ou comunidades próximas a ração, substituindo secretários e promovendo projetos de grande porte realizados pelo go- o retorno de gestores, como no caso do setor verno; – a coordenadoria de habitação direta- habitacional. Na capital cearense o PMCMV mente vinculada às ações do PMCMV, em suas encontra-se concentrado na Secretaria de Ha- diversas modalidades, para a qual as análises bitação Popular de Fortaleza (Habitafor). Com se concentram. equipe bastante reduzida, suas atribuições até Dadas as dificuldades enfrentadas para aqui se restringem à realização do trabalho so- que o PMCMV atingisse a meta pretendida de cial, visitando as famílias selecionadas e contri- UHs no Ceará, a coordenadoria de habitação buindo na apresentação dos empreendimentos assumiu papel fundamental na condução de co- por ocasião da entrega das UHS e na organi- mitê interinstitucional. Um papel preponderan- zação dos condomínios. O papel dos técnicos temente político visando implementar medidas vinculados a projetos e obras mostrou-se ainda que tornem a produção de UHs mais atraente mais restrito. Voltado às ações de planejamen- para o setor da construção, ampliando recursos to e na perspectiva de ampliar o programa em por UH, atendendo às demandas de empreitei- Fortaleza mediante a implantação de grandes ros e articulando junto às concessionárias a im- conjuntos, o setor pouco interfere na qualidade plementação de redes de saneamento. dos projetos arquitetônicos, muito menos na di- Sobre o papel dos governos municipais observa-se que o PMCMV tem no município o e na progressividade da construção. recorte espacial principal tendo em vista a lo- Fortaleza tem promovido a contrata- calização do empreendimento em relação aos ção de terceiros para a realização dos planos instrumentos da política urbana, as atribuições diretor municipal e local habitacional de in- que o mesmo assume em termos de aprovação, teresse social como verdadeiro problema de definição de critérios, formulação de demanda, origem. Na ausência de recursos humanos pa- acompanhamento e gestão do trabalho social. ra a sua implementação e diante do precário A análise do papel dos municípios, enquanto controle social a ser efetuado pelos conselhos, estrutura de poder foi realizada a partir das esses tendem a ser subutilizados desde a sua seguintes variáveis: – continuidade na gestão aprovação, representando por vezes um mero Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 Book 35.indb 195 versidade tipológica, na flexibilidade projetual 195 06/03/2016 17:30:34 Renato Pequeno, Sara Vieira Rosa certificado para acesso aos recursos vinculados do setor industrial e em especial dos setores às políticas específicas. imobiliário e turístico. A intersetorialidade também se mostra Sendo um dos maiores municípios cea- em dificuldades. Por um lado, em função do renses em superfície e possuidor de amplo quadro exíguo de técnicos; por outro, devi- déficit habitacional, Caucaia torna-se desde o do à concentração do PMCMV num mesmo início do PMCMV um dos principais alvos do órgão. Constatou-se que a divisão estanque setor da construção civil. Alguns fatores devem entre as políticas urbana e habitacional, em ser apontados para a expansão do programa que a primeira se encontra sob o comando nesse município nas suas primeiras fases: a da Secretaria de Urbanismo e Meio Ambien- agilidade na formulação de cadastro de de- te e a segunda tendo à frente a Secretaria de mandas, a facilidade na obtenção de terrenos, Habitação, ampliam a dissociação entre as os quais ainda que não fossem dotados de mesmas. Além disso, observa-se que a forma infraestrutura tinham na orientação da políti- como a política urbana vem sendo conduzida ca municipal no sentido de contratar obras e revela alguns aspectos: o foco na regulamen- mostrar resultados, compromisso na sua rea- tação dos instrumentos que dinamizam o mer- lização. Mesmo a intersetorialidade percebida cado imobiliário e induzem o desenvolvimento especialmente com o apoio da secretaria de urbano segundo seus interesses; o engaveta- ação social merece ser destacada dado que mento das zonas especiais de interesse social esse corresponde ao setor mais importante em não havendo qualquer facilitação no acesso à termos de poder municipal para que o progra- terra urbanizada para empreendimentos habi- ma venha a deslanchar. tacionais de interesse social. Todavia, vale mencionar a fragilidade Em Caucaia, onde vivem mais de 353 institucional reconhecida no porte da equipe, mil habitantes, o programa encontra-se numa nas condições de acesso aos dados e na neces- coordenadoria especial vinculada ao gabinete sidade de contratação de serviços técnicos a do vice-prefeito, contando com a participa- terceiros para a realização dos instrumentos da ção de técnicos das secretarias de planeja- política urbana e habitacional, os quais tendem mento urbano e de ação social. Tratando- a ser subutilizados. -se do segundo maior município do Estado, Maracanaú corresponde ao terceiro Caucaia tem seu crescimento demográfico maior município da RMF com mais de 221 mil diretamente associado ao transbordo de de- habitantes, tendo no setor industrial sua prin- mandas oriundas de Fortaleza, as quais se cipal atividade econômica. Sua criação se deu agravam na ausência de uma política urbana nos anos 1980 após a implantação de distrito metropolitana. Alvo de processos de planeja- industrial e a construção de milhares de unida- mento urbano desde o final dos anos 1990, des habitacionais no entorno do mesmo atra- Caucaia remanesce sem uma política urbana vés do sistema BNH e Cohab-CE. Entretanto, só definida, sendo seu plano diretor alvo de mui- em meados dos anos 1990 que o setor indus- tas mudanças e ajustes vinculados a projetos trial se consolida, trazendo consigo serviços e e interesses específicos do governo estadual, refletindo na conurbação junto a Fortaleza e na 196 Book 35.indb 196 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 06/03/2016 17:30:34 O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE melhoria das condições das infraestruturas e melhores condições de implantação para mui- serviços urbanos desse município. tos empreendimentos em curso. Nesse município verifica-se uma situação No caso do setor privado, envolvido com bastante peculiar em termos de gestão munici- a produção habitacional através do PMCMV, pal, evidenciando-se que a continuidade na ad- cabe de início diferenciar os muitos agentes en- ministração faz maior diferença quando se tem volvidos presentes na RMF integrantes do setor um processo de planejamento em curso, assim da construção civil: proprietários fundiários, como quando os processos de planejamento incorporadores, empresas de construção civil. urbano e habitacional ocorrem no âmbito do Esses por sua vez mostram-se bastante hetero- setor público e menos dependentes de consul- gêneos na sua composição. torias externas. rifica-se historicamente na RMF a presença de ponsáveis pelo setor de planejamento urbano, crescente oligopólio, ampliando a concentração foi possível compreender a forma como se dá de terras e promovendo a segregação dos mais a atuação desse município adiante da questão pobres em áreas cada vez mais periféricas. Aos habitacional. Revelou-se a associação entre o proprietários de terras, vinculam-se construto- planejamento e o controle urbano, trazendo res, responsáveis, muitas vezes, não apenas pela além disso o diferencial de formular estudos edificação das unidades, mas também pelo pro- de viabilidade para novos empreendimentos, cesso de incorporação dos terrenos e até pela considerando os limites impostos pela legisla- sua comercialização. Esses construtores tam- ção urbanística. Além disso, a disponibilidade bém atuam como promotores imobiliários me- de bases de dados, o georreferenciamento das diante a aquisição de terrenos e posterior cons- informações e sua aplicação para o controle e trução de UHs voltadas para famílias de renda a gestão do solo urbano trazem ao município média, configurando-se numa linha de atuação um diferencial se comparado aos demais. restritiva quanto ao público-alvo. Considerando o PMCMV, observou-se Contudo, desde as últimas décadas com que o município, no que se refere à faixa de a retomada da produção habitacional, verifica- interesse social, conta com coordenação es- -se a ampliação do espectro de atuação dessas pecífica, atuando na atribuição de critérios, na empresas, as quais passaram a atuar mediante definição das demandas e na realização do tra- os recursos disponibilizados por programas fi- balho social. Também tomam parte dessa coor- nanciados pela CEF. Da mesma forma, a ado- denação, atividades de regularização fundiária, ção de políticas habitacionais multiorientadas deixando clara a compreensão de que o direito levou a que os serviços de urbanização de fave- à moradia requer suporte interdisciplinar, do las e de provisão de moradia de interesse social qual o profissional do setor jurídico é impres- viessem a ser alvos dessas empresas do setor cindível. Por outro lado, no referente aos pro- da construção civil. jetos de habitação popular de mercado (HPM), Vale aqui mencionar que o Programa de verifica-se que o município busca garantir Arrendamento Residencial (PAR) constituiu-se Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 Book 35.indb 197 Referente aos proprietários fundiários, ve- A partir de diálogos com técnicos res- 197 06/03/2016 17:30:34 Renato Pequeno, Sara Vieira Rosa num precursor daquilo que ocorreu nas primei- também como empresas que conseguem con- ras fases do PMCMV. Por meio desse programa, tratar empreendimentos (Cardoso, 2012). No algumas empresas do setor comandadas pelo caso da RMF, observa-se na primeira fase que Sinduscon-CE passaram a produzir UHs com não apenas as pequenas empresas que vinham recursos da CEF, atendendo a um público-alvo atuando com recursos do PAR buscaram apro- com renda entre três e seis salários mínimos, var projetos. Empresas de maior porte, acostu- sob a forma de pequenos condomínios fecha- madas à produção de residências para famílias dos em bairros menos valorizados, em sua de maior poder aquisitivo obtiveram êxito na grande maioria situados em Fortaleza. Todos contratação de empreendimentos nas faixas 2 eles seguindo um mesmo projeto arquitetônico e 3, denominadas habitação popular de merca- previamente aprovado. do (Shimbo, 2012). No caso do PMCMV, verifica-se ao longo Outras empresas foram criadas mediante de sua recente execução, o destaque obtido o estímulo do PMCMV através da transferência pelo Sinduscon-CE, como instituição que pas- de capitais de outros setores produtivos, tendo sou novamente a articular junto à CEF maior em vista o lucro que o programa poderia ga- celeridade na aprovação dos empreendimen- rantir. Em função da oferta de recursos trazida tos do programa. Como impacto dessas ações, pelo programa às grandes capitais do Nordeste, definiu-se um projeto referência que agilizou a grandes empresas do setor da construção civil tramitação dos processos junto ao setor técni- atuantes na produção habitacional passaram co da Caixa, ainda que em detrimento da quali- a expandir suas atividades. Com isso, intensifi- dade urbanística e arquitetônica dos empreen- cou-se processo migratório de empresas vindas dimentos e especialmente na qualidade de vida do centro sul em busca de grandes contratos dos seus moradores. Prevaleceu, no caso, a em função de uma demanda solvável presente, realização do sonho da casa própria, a qual le- a qual, no caso de Fortaleza, superava a capa- vou à delegação de responsabilidades aos con- cidade de resposta do setor da construção local dôminos como o pagamento pela energia para (Rufino, 2012). iluminação dos espaços coletivos e castelos de No entanto, em função das limitações no água, segurança, limpeza dos espaços coleti- porte dos empreendimentos presentes na pri- vos, saneamento básico mediante miniestações meira fase do PMCMV, as empresas locais ain- de tratamento de esgotos. No caso, a estratégia da mostraram capacidade de execução. Mesmo adotada, corresponde ao simples ajuste do pro- assim, algumas delas vieram a decretar falên- jeto referência utilizado no PAR às normativas cia após a entrega das unidades habitacionais do PMCMV, induzindo ainda maior homogenei- (UHs), cujos moradores só não ficaram alijados zação dos projetos, mesmo que o público-alvo de seus direitos por conta das garantias contra- seja outro. tuais, havendo a contratação de empresas res- Vale mencionar que o PMCMV traz um ponsáveis pela manutenção dos mesmos. Nou- novo elemento para as análises sobre a pro- tros casos de falência das construtoras, em que dução habitacional em termos de diversidade os empreendimentos não estavam concluídos, não apenas do público-alvo beneficiário, mas houve a intervenção da CEF, contratando novas 198 Book 35.indb 198 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 06/03/2016 17:30:34 O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE empresas, preferencialmente aquelas com ex- da moradia. Todavia, quando se considera o pa- periência positiva no PMCMV. O caso dos em- pel da população beneficiária, verifica-se que a preendimentos denominados Escritores cons- mesma se restringe à condição de receptora dos truídos em Fortaleza é exemplar, por se tratar resultados, com limitado poder de interferência de um conjunto de condomínios contíguos uns na qualidade em termos sociais, econômicos, aos outros, cuja empresa entrou em processo culturais, arquitetônicos e urbanísticos. falimentar. Após negociações com a CEF, algu- Cadastrados pelos municípios e selecio- mas das primeiras empresas assumiram novos nados segundo critérios compartilhados entre contratos, cada uma delas contemplada com as prefeituras e as normativas do PMCMV, as um condomínio. famílias receberam tratamento individualizado, Todavia, na segunda fase, devido à pos- salvo as situações em que o programa atende sibilidade de aumentar o número de UHs até a demandas fechadas para reassentamentos 5.000, passou a ocorrer um predomínio das por conta de intervenções urbanas. Reuniões grandes empresas do setor. Com isso ocorreu de apresentação do PMCMV conduzidas pelos a chegada de empresas oriundas de outras órgãos municipais responsáveis pelo cadastra- capitais portadoras de procedimentos de ge- mento, assim como as visitas para confirmação renciamento da construção e know-how para de informações e as reuniões iniciais do traba- empreendimentos de maior porte. Ainda nessa lho social se revelam como momentos participa- segunda fase, e seguindo os objetivos de cele- tivos que antecedem a assinatura dos contratos. ridade e volume almejados pelo PMCMV, novos Todavia, mesmo no caso da modalida- grandes conjuntos foram contratados, dessa de entidades do PMCMV passa a ocorrer a feita com a inserção de grandes empresas que interferência direta do setor empresarial. Por vêm a assumir grandes contratos. Mais ainda, um lado, o setor da construção civil incide observa-se a tendência de que as pequenas no fomento à criação de entidades, forjando empresas da fase inicial do PMCMV passem a demandas sociais e tirando proveito de bene- assumir empreendimentos de maior porte rea- fícios que o município possa oferecer dado o lizados no interior, resultado das ações do go- caráter social e participativo do PMCMV-Enti- verno estadual visando disseminar o PMCMV dades. Por outro, apesar da cultura do mutirão junto aos centros regionais. em Fortaleza e da participação dos movimen- Sobre os beneficiários e as entidades vin- tos no processo decisório, há casos em que culadas aos movimentos sociais de moradia é os construtores assumem o empreendimento possível tecer algumas considerações. Tratando- como se esse fosse um outro qualquer, dife- -se de um amplo programa habitacional reco- renciando das demais modalidades apenas nhecidamente de interesse social, dado o obje- com relação à identificação da demanda. Sob tivo de reduzir o déficit, era de se esperar que o o risco de manipulações na criação de entida- programa viesse a promover processos de pla- des, destaca-se a vulnerabilidade do PMCMV nejamento e discussões relacionados à questão às práticas de coronelismo urbano. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 Book 35.indb 199 199 06/03/2016 17:30:34 Renato Pequeno, Sara Vieira Rosa Processos associados aos arranjos institucionais sua realização, foram elaborados quadros que permitiram a totalização dos empreendimentos e a relativização da produção de empresas segundo as variáveis supracitadas. Nesta seção, almeja-se discutir as principais dinâmicas associadas aos arranjos institucionais, elencadas segundo a predominância dos Ações do setor empresarial agentes diretamente envolvidos e em função do uso de instrumentos de planejamento e No que se refere às ações do setor empresa- gestão do solo urbano. Desde já destacamos rial foram identificados como principais pro- que tal classificação corresponde a um recurso cessos: a) diversidade de empresas atuando metodológico para a melhor compreensão dos no PMCMV diferenciadas quanto à origem, processos, reconhecendo-se que para cada um ao produto, à demanda, ao porte; b) continui- deles é possível perceber protagonismos, inte- dade das mesmas empresas construtoras do rações e impactos, cujas intensidades revelam PAR desde o início do PMCMV nas diferentes preponderâncias e submissões daqueles envol- faixas, utilizando tipologias A&U semelhantes; vidos com o PMCMV. c) aumento da produção habitacional por meio Um primeiro grupo de dinâmicas socioes- de contratos de grandes empreendimentos HIS paciais se refere às práticas do setor empresa- faixa 1 conduzidos por empresas de maior por- rial as quais revelam no curto prazo alterações te (local e nacional). na forma de atuação desse setor, bem como o seu poder de força junto ao Estado; em seguida tem-se um segundo agrupamento de dinâmicas que tratam das ações de instituições governamentais atreladas à operação e à imple- Diversidade de empresas atuando no PMCMV diferenciadas quanto à origem, ao produto, à demanda, ao porte mentação do PMCMV; por fim, busca-se reunir alguns processos associados aos instrumentos Considerando o quadro de empresas do setor de planejamento urbano e habitacional e ges- da construção civil envolvidas com o PMCMV tão do solo urbano. no Estado do Ceará, verifica-se que o mesmo As análises aqui realizadas estão em- obteve nos primeiros anos ampla dispersão, to- basadas no estudo de bases de dados obtidas talizando 59 empresas. Responsáveis pela con- junto à CEF correspondentes aos empreen- tratação de 146 empreendimentos, observa-se dimentos aprovados desde o lançamento do que, em sua grande maioria, as empresas são PMCMV até 31/12/2012. Esses dados indicam locais, especialmente concentradas no atendi- por empreendimento, o total de UHs, o valor do mento à faixa 1 voltada para habitação de in- empreendimento, a empresa responsável, sua teresse social (HIS). Todavia, quando se analisa origem, a tipologia utilizada, a faixa e a modali- o número de contratos por empresa, verifica- dade do empreendimento, dentre outros. Para a -se um processo de concentração em torno de 200 Book 35.indb 200 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 06/03/2016 17:30:35 O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE algumas empresas. No caso, as construtoras empresas Damascena, Passaré e Messejana SPE Montenegro, Sumaré, Engeplan. Época, Fuji- contrataram empreendimentos nas faixas 2 e 3. ta e Interpar se destacam com cinco ou mais Entretanto, a presença de empreendi- conjuntos, totalizando 65 contratos, os quais mentos contratados como sociedades de pro- equivalem a 42% do total assinado até o final pósito específico (SPE) corresponde a uma das de 2012. mudanças reveladas nos primeiros anos do Dessas empresas merecem ser desta- PMCMV. No caso, são 22 contratos, grande cadas: primeiro, a Época com 17 empreendi- parte deles aberta pela empresa MRV consor- mentos, totalizando 3.341 UHs. Sob a forma de ciada com a local Magis. Juntas essas empre- pequenos condomínios justapostos e adotando sas tornaram-se responsáveis por mais de 11% como tipologia arquitetônica edifícios com dois do total contratado pelo programa, todos os pavimentos com apartamentos sobrepostos, a empreendimentos nas faixas 2 e 3. No caso, empresa abriu frentes nos municípios de Forta- mais de 38% do que foi realizado na faixa 2 e leza e Caucaia, sendo a única a atuar nas três mais de 52% do que foi produzido para a fai- faixas de renda do PMCMV. Da mesma forma, xa 3. Outras empresas, ainda que venham de chama atenção a atuação da Construtora Fuji- outros estados, como a Rodobens, ao chegar ta, responsável por 5.920 unidades, das quais ao Ceará, abre nova razão social, seguindo a 5.536 apartamentos estão na faixa 1, em um lógica das SPEs. único empreendimento com localização periférica denominado Cidade Jardim, o qual vem a inaugurar a nova fase do programa com a produção de grandes conjuntos de baixa altura e alta densidade. Continuidade das mesmas empresas construtoras do PAR desde o início do PMCMV Desse total de empresas, vale destacar a chegada de empresas oriundas de outros esta- A RMF ao longo da primeira década do dos. De Pernambuco, duas empresas obtiveram século XXI teve no PAR uma das formas de pro- contratos na faixa 1, e uma delas, a Constantini dução habitacional, o qual atendeu à demanda vem de Petrolina, assumindo um empreendi- que não conseguia ter acesso à produção do mento com mais de 700 unidades em Juazei- mercado imobiliário formal e que não se en- ro do Norte. De São Paulo, duas empresas têm quadrava no público-alvo dos programas com contratos nas faixas 2 e 3, a Fibra e a Rossi res- projetos voltados para famílias de baixa renda pectivamente, as quais buscaram encontrar no- realizados pelo Estado tidos como HIS. vos mercados. Além disso, constata-se que do Lançado ao final dos anos 1990, o PAR total de empresas com contratos assinados até ao longo dos anos 2000 foi amplamente utili- o final de 2012, vinte delas atuam apenas na zado por construtoras locais, realizando empre- faixa 1, cinco empresas (Época, Fujita, Suma- endimentos de pequeno porte introduzindo em ré, Abelardo Rocha e Montenegro) atuam nas bairros periféricos e populares a produção imo- faixas 1 e 2 e apenas uma (Época) tinha con- biliária formal mediante a forma condomínio tratos nas três faixas. Destaca-se ainda que as fechado. Dessa forma, o setor contribuiu com Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 Book 35.indb 201 201 06/03/2016 17:30:35 Renato Pequeno, Sara Vieira Rosa a exacerbação da fragmentação espacial, de- PMCMV, trazendo para essas empresas um finindo setores com ampla presença de muros novo tipo social de usuário. justapostos às áreas de ocupação, onde o aces- Na primeira fase do PMCMV, a Época so era dificultado seja pela largura das vias, Engenharia merece destaque com a assinatu- seja pela definição de regras características da ra de 18 contratos (3.341 UHs) em Fortaleza e cidade informal. Caucaia, dos quais 14 voltados para a faixa 1. Neste período que antecede o lançamen- Situados em bairros periféricos e precários em to do PMCMV, foram construídos 91 empreen- termos de infraestrutura, esses empreendimen- dimentos pelo PAR, totalizando 11.266 UHs. tos seguiram a forma adotada pelo PAR, no Em média, cada condomínio tem 124 moradias, caso condomínios com prédios de apartamen- representando o porte de muitos dos conjuntos tos sobrepostos, assim como a justaposição de que viriam a ser produzidos pelo PMCMV na condomínios, cujos muros passam a interferir sua primeira fase. fortemente na paisagem. Observa-se que ape- Quatro empresas se destacaram na sar de o programa, na sua primeira fase, limi- produção habitacional pelo PAR com mais de tar os contratos a 500 unidades, o que inclusi- 1.000 unidades em pelo menos seis empreen- ve permitiria a implantação de conjuntos de dimentos: Época Engenharia; CRD, Engeplan e pequeno porte pelos mais diversos bairros da Montenegro. Somadas à Construtora Sumaré, cidade, a estratégia adotada por essa empresa à ECB Engenharia Comércio Bezerra Ltda. e à finda por reconduzir aos flancos periurbanos Fujita Engenharia, essas correspondem ao gru- os beneficiários do PMCMV, favorecendo com po de construtoras que atuaram tanto no PAR isso o aumento da segregação residencial. Por como no PMCMV. Juntas, essas empresas são sua vez, ao final da segunda fase, a empresa responsáveis por mais de 53% do total de em- Fujita Engenharia, que havia realizado apenas preendimentos, os quais englobam quase dois um empreendimento pelo PAR, passa a predo- terços do total de unidades produzidas pelo minar na produção HIS, com a contratação do programa na RMF. primeiro grande conjunto do PMCMV da RMF Sob o comando do Sinduscon-CE, essas empresas construíram empreendimentos com 5.536 unidades habitacionais agrupadas num mesmo setor da cidade. residenciais, disseminando-se pelo município Essa nova forma de produção por meio de Fortaleza em pequenos recortes de tecido de grandes conjuntos, ao requerer maior expe- urbano, agrupando-se prioritariamente em riência das empresas de modo a evitar os riscos alguns bairros de Fortaleza. Do total de 91 da suspensão dos contratos e da não conclusão empreendimentos, 90 encontram-se na RMF. dos imóveis, tende a promover a oligopolização No caso da RMF, vale mencionar que algumas da produção habitacional, visto que as peque- dessas empresas prosseguiram no atendi- nas empresas locais que vinham se inserindo mento à demanda por habitação popular de nesse ramo tendem a passar por dificuldades mercado (HPM). Entretanto, a maior parte em demonstrar sua viabilidade econômico- dos novos empreendimentos se volta para a -financeira para a realização de conjuntos de habitação de interesse social na faixa 1 do maior porte. 202 Book 35.indb 202 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 06/03/2016 17:30:35 O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE Aumento da produção HIS via contratação de grandes empreendimentos intensa tende a predominar, favorecendo as maiores construtoras. Segundo, observa-se que grandes empreendimentos requerem amplas superfícies, as quais só são obtidas em Passado o seu lançamento em 2009, o PMCMV terrenos periféricos, e que por serem mais ba- no Ceará só veio a ter grandes contratos assi- ratos, ampliam a margem de lucro dos constru- nados em fins de 2012. Num total de 153 em- tores e incorporadores. preendimentos realizados para todo o estado, A opção por grandes empreendimentos viabilizou-se a construção de 37.768 UHs, as leva ainda a que municípios metropolitanos quais ainda se mantiveram abaixo da meta venham a ser priorizados por grandes empre- estadual pretendida na primeira fase do pro- sas, restando os demais centros regionais dis- grama. Desses, cerca de 10.429 UHs correspon- tantes da RMF para as menores que tendem a diam a nove empreendimentos contratados em abrir novas frentes. Além disso, diante do am- 2012, representando mais de 27% do total e plo déficit a ser atendido na RMF, o mercado sinalizando mudanças trazidas na segunda fase torna-se mais favorável às grandes empresas do PMCMV. com maior experiência no setor HIS e com ca- Chama atenção que 5.536 apartamentos tenham sido contratados junto à Construtora No caso da RMF, é possível reconhecer Fujita S/A por meio de cinco empreendimentos disputas entre as duas maiores: a local Fujita justapostos, utilizando a mesma estratégia da S.A. e a mineira Direcional. A primeira, empresa primeira fase por empresas em construir con- cujo empreendimento encontra-se em anda- domínios vizinhos. Da mesma forma, outros mento, qualifica-se para novos contratos, como dois empreendimentos com 2.084 UHs no total um primeiro MCMV na modalidade entidades foram contratados em Sobral, a serem cons- com mais de 3.000 unidades. A segunda, em- truídos pela empresa Direcional num mesmo presa que tem atuado em outros estados do setor da cidade em áreas contíguas. A mesma Brasil, já é considerada a 12ª maior empresa empresa também consegue emplacar um novo do setor com receita bruta de mais de 1.4 bi- contrato na RMF, no caso dos municípios de lhão de reais e mais de 14.500 empregados. Maracanaú, às margens do 4º Anel Viário, onde De acordo com base de dados fornecida pelo outras 2.096 residências entraram em constru- MCidades/CEF, a Direcional ao final de 2013 ção. Um outro empreendimento realizado pela já tinha contratos na Faixa 1 do PMCMV que empresa pernambucana Constantini em Jua- beiravam 40.000 unidades habitacionais dis- zeiro do Norte, 3º maior município do Ceará tribuídos em oito estados brasileiros contrata- completa esse quadro. Esse representa mais de dos majoritariamente em 2012. Dessa mesma 35% do total construído pelo PMCMV faixa 1 empresa, já se encontram em construção em naquele município. Fortaleza e Maracanaú novos grandes conjun- O que esses números revelam? Primeiro, tos os quais apresentam proximidade na sua a mudança no porte dos empreendimentos, localização periférica antevendo-se problemas sinalizando que uma forma de produção mais no acesso às infraestruturas e aos serviços Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 Book 35.indb 203 pacidade de gerenciamento da construção. 203 06/03/2016 17:30:35 Renato Pequeno, Sara Vieira Rosa revelando-se em possíveis casos de negação do No caso do desenvolvimento urbano e da ha- direito à cidade. bitação, houve a extinção da Superintendência de Desenvolvimento Urbano (Sedurb) e da Companhia Estadual de Habitação (Cohab-CE), Ações dos governos estadual e municipais reduzindo-se as ações governamentais em am- Para compreender a atual situação dos arranjos das Cidades, quando foram ampliados os re- institucionais relacionados ao PMCMV na RMF, cursos voltados para a produção habitacional é imprescindível a análise dos mesmos em ou- e o planejamento urbano, o governo estadual tras escalas. No caso desse artigo, o olhar se buscou promover ações, incrementando sua volta para o estado do Ceará sinalizando os capacidade de gestão. Todavia, permaneceu motivos de sua concentração na região me- seguindo a prática de privilegiar o projeto em tropolitana bem como para a região Nordeste detrimento do processo de planejamento e investigando as dificuldades encontradas para desconsiderando a necessária associação das a sua disseminação nos demais municípios en- políticas urbana e habitacional. bas as frentes. Todavia, desde a criação do Ministério quadrados para obras do PMCMV. Fortaleza, por sua vez, detentora de nú- Dentre as dinâmicas identificadas ao lon- meros alarmantes no que se refere à problemá- go desta pesquisa, merecem ser destacadas: a) tica da moradia, passa lentamente a assumir o obras do PAC urbanização de favela associadas seu papel, acelerando o processo com oportu- às áreas de risco e à mobilidade concentram in- nidades trazidas com os recursos de programas teresses dos governos estadual e municipal na criados nos primeiros anos do governo Lula ou primeira fase do PMCMV; b) dificuldades na ex- mesmo de outros como o Programa Habitar pansão do PMCMV junto aos centros regionais Brasil BID que até então não vinha sendo im- levando a que o Governo promova medidas plementado na sua componente de desenvolvi- dinamizadoras; c) contratação de empreendi- mento institucional. mentos de grande porte para municípios/cen- Some-se a isso a aproximação entre as tros regionais na faixa 1, posteriores a outros gestões estadual e municipal nos primeiros contratados das faixas 2 e 3. anos do Ministério da Cidade, integrando seus objetivos e compatibilizando suas ações Obras do PAC assentamentos precários concentram interesses dos governos na 1ª fase do PMCMV no campo da política urbana e habitacional, ambas priorizando projetos de intervenções vinculados à mobilidade e à remoção de áreas de risco. Sem que se tenha um processo de pla- Desde o início do século XXI, o governo esta- nejamento que articulasse as políticas urbana dual do Ceará teve a diminuição de sua má- e habitacional, os projetos e as respectivas quina administrativa, delegando responsabi- obras assumiram caráter pontual, sugerin- lidades de políticas públicas aos municípios. do discrepâncias entre os mesmos quanto ao 204 Book 35.indb 204 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 06/03/2016 17:30:35 O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE porte e à forma de intervenção. Além disso, a Habitafor conduz o cadastro de famílias, atin- vale destacar a presença das gerenciadoras e gindo em poucos dias mais de 120 mil famílias. a terceirização de boa parte dos serviços, le- Tamanho desafio requereria a participação de vando a que as instituições públicas não consi- outros agentes, como o setor da construção gam construir um modus operandi para novos civil, o qual, além de mostrar-se reticente, fez projetos. Atribuições como o trabalho social a rápida leitura de que o PMCMV demandaria ao serem repassadas às consultorias externas sua maior articulação com a CEF. Da parte do agravaram ainda mais a situação, levando por município, aguardavam-se medidas relaciona- vezes a população atingida à situação de inse- das à política fundiária, facilitando a obtenção gurança e desamparo. de terrenos. Entretanto, dada a necessidade da Nesse sentido, desde que o PMCMV foi lançado, os governos estadual e municipal, ape- situação tornou-se mais difícil, quase inviável. sar de apoiarem a sua implementação, tiveram Diante dos movimentos sociais fragiliza- a maior parte de seus esforços concentrada em dos e em processo de reorganização, dado que projetos habitacionais vinculados à urbaniza- algumas antigas lideranças e seus articulado- ção de favelas em situação de risco, assim co- res passaram a compor os quadros do gover- mo de provisão habitacional para famílias re- no municipal, o município remanesce com as movidas por obras de mobilidade urbana. ações já contratadas, reproduzindo o mesmo No caso do governo estadual, seus olhos processo de atuação do governo estadual sem se voltavam para os chamados projetos espe- promover avanços em busca de projetos auto- ciais: Projeto Maranguapinho e Cocó que vi- gestionários. No caso, o projeto Vila do Mar, ini- sam, além da intervenção em áreas de risco e ciado ainda nos anos 1990 como Costa Oeste o reassentamento em grandes conjuntos peri- sob a gestão do governo estadual, considerava féricos, construir obras de drenagem e conten- a remoção de milhares de famílias de ocupa- ção de enchentes; o projeto Dendê, atendendo ções à beira mar, no front oeste de Fortaleza, à comunidade próxima ao Centro de Feiras e e seu reassentamento em áreas distantes, ha- Eventos construído pelo governo estadual, vi- vendo ainda a opção pela indenização. Poste- sando o desadensamento da área e a sua urba- riormente passou para a Prefeitura de Fortaleza nização, mediante o reassentamento de famí- em 2005, quando a mesma redefiniu os cami- lias nas proximidades, de modo a requalificar nhos do mesmo, modificando suas diretrizes o seu entorno cujos terrenos vazios aguardam em termos de reassentamento das famílias. melhorias na área para que possam vir a ser Contando com recursos do PAC Urbanização incorporados pelo mercado imobiliário. Tudo de Favelas, o projeto assume caráter especial, isso faz com que nos primeiros anos o governo tornando-se um dos ícones da gestão. Sem que estadual tenha uma ação mais tímida em rela- estivesse associado a qualquer secretaria, o ção ao PMCMV, visto que dispunha de verbas projeto é exemplar no sentido de que sua ges- garantidas para a execução dessas obras. tora mencionava ter status de secretária. No caso de Fortaleza, a situação é similar. Ao mesmo tempo, muitos projetos de Desde o momento do lançamento do PMCMV, urbanização de favelas foram iniciados pela Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 Book 35.indb 205 presença de infraestrutura nesses terrenos, a 205 06/03/2016 17:30:35 Renato Pequeno, Sara Vieira Rosa Habitafor, os quais trouxeram em seu conteúdo implementado. Somado às condições precárias a provisão habitacional como estratégia de in- de funcionamento do conselho municipal de tervenção, dado que as áreas selecionadas es- habitação, a instituição perde força junto aos tavam em situação de risco. Com isso, verifica- movimentos sociais, especialmente os novos -se um amplo processo de remoção de comuni- oriundos de manifestações contrárias à copa. dades marcado pela dicotomia no processo de Com isso, desde o início da nova gestão, reassentamento: por um lado, para pequenos a Prefeitura de Fortaleza passou a apostar no conjuntos próximos; por outro, para conjuntos PMCMV como fonte de recursos para imple- de maior porte em áreas distantes. mentação de suas metas e promessas de cam- Situações díspares como os projetos panha, mediante a contratação de grandes Maria Tomásia e Papicu podem exemplificar a conjuntos com recursos do FAR, via CEF e Ban- dualidade das ações dessa fundação. No pri- co do Brasil, inclusive contando com o apoio do meiro, teve-se a construção de 1.200 unidades governo estadual, visto que os mesmos reto- habitacionais destinadas ao reassentamento maram as suas parcerias. distante de famílias removidas de áreas de risco em bairros de renda média alta, num setor com sérios problemas de inserção urbana. Por conta disso, o projeto enfrentou queixas dos Problemas na expansão do PMCMV junto aos centros regionais seus moradores desde o início, com muitos casos de desistência e abandono dos imóveis. Desde que o PMCMV foi lançado, o estado do No segundo, optou-se pelo reassentamento nas Ceará tem enfrentado dificuldades na dissemi- proximidades. Próximo a um grande shopping nação do programa, considerando os centros recentemente concluído, as famílias foram par- regionais e os demais municípios enquadrados cialmente reassentadas em conjunto habita- para realizar contratos nas modalidades aten- cional implantado em terreno vizinho median- didas com recursos do FAR, ou mesmo, com te recursos do governo federal e de operação recursos aprovados pelo CCFGTS. Na primeira urbana consorciada. Longe de considerar as fase, apenas 11 dos 42 municípios enquadra- estratégias distintas como resultado de uma dos conseguiram obter êxito na contratação, política multiorientada, essa dicotomia retrata incluindo-se tanto os metropolitanos como a sua indefinição dada a falta de princípios e aqueles com população acima de 50 mil ha- critérios pré-definidos. bitantes. Por outro lado, percebe-se a ampla Apesar da diversidade de programas go- dispersão do programa MCMV na sua compo- vernamentais, dos quais os recursos foram ob- nente Oferta Pública de Recursos atendendo a tidos, observa-se a adoção de um mesmo tipo quase a totalidade dos municípios do Estado habitacional. Ainda que paralelamente tenha com contratos de 30 e 60 UHs operacionaliza- sido conduzido processo de planejamento para dos por bancos privados sem sede no Ceará. elaboração de política habitacional e posterior- Isso levou o governo estadual através mente de plano local de habitação de interes- da Secretaria das Cidades a estabelecer algu- se social, verifica-se que nenhum dos dois foi mas medidas, considerando o déficit estadual, 206 Book 35.indb 206 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 06/03/2016 17:30:35 O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE a disponibilidade de recursos e a representa- eram da RMF. Desses, destaque para o municí- tividade política que as obras trazidas pelo pio de Eusébio, onde o único empreendimento PMCMV poderiam trazer. Vale lembrar que o contratado era para a faixa 2 com recursos do atual governador era secretário das Cidades, CCFGTS, confirmando a tendência de que esse e como candidato ao governo do estado, na município seja opção para investimentos do época, teve todo o interesse na contratação de mercado imobiliário formal. Posteriormente, a novos empreendimentos pelo interior do Ceará. Secretaria das Cidades passou a divulgar que Dentre as fatores causais para as difi- novos empreendimentos estavam em estágio culda des de contratação nos centros regio- avançado com vistas à sua contratação. Os im- nais levantados junto aos agentes envolvidos pedimentos continuavam os mesmos como os podem ser mencionados: as más condições de problemas fundiários dos terrenos escolhidos e infraestrutura urbana nos municípios impe- a falta de infraestrutura urbana. Contudo, se- dindo a aprovação dos contratos junto à CEF; gundo uma nova base de dados fornecida ao o desinteresse do setor da construção civil lo- final de 2013 pelo Ministério das Cidades, es- cal dadas as dificuldades encontradas na rea- ses novos contratos teriam sido realizados para lização dos projetos mesmo na RMF; as con- as faixas 2 e 3 com recursos CCFGTS e de por- dições precárias da mão de obra local; a in- te bem menor, grande parte deles com menos disponibilidade dos municípios na concessão de 10 unidades, o que nos leva a crer que se de terras para HIS, ainda que grande maioria tratem de empreendimentos contratados por tenha revisto seus planos considerando o Es- construtores na condição de Pessoa Física. tatuto da Cidade. Relato do Coordenador de Habitação da Secretaria das Cidades apontou como medidas adotadas: a) a criação de comitê para que Dificuldades na contratação de conjuntos para centros regionais na faixa 1 os agentes envolvidos viessem à concertação de suas demandas quanto às infraestruturas; Em viagens de campo realizadas aos municí- b) a definição por parte das prefeituras de pios do interior, obteve-se a informação da pos- terrenos para os conjuntos; c) a complemen- sível contratação de novos empreendimentos tação de recursos em 8.000,00 reais por UH pela faixa 1 do PMCMV para alguns dos mu- creditado pelo governo do estado como con- nicípios enquadrados. Por meio dessas viagens, trapartida para os novos contratos. Tudo isso alguns relatos são recorrentes como: a realiza- para motivar o setor da construção civil a em- ção de reuniões públicas com o Secretário das preender esforços e abrir frentes de trabalho Cidades divulgando o programa e indicando a nesses municípios. localização e disponibilidade de terreno; a rea- Todavia, ao final da segunda fase, ape- lização de cadastro de famílias para posterior nas 16 municípios, incluídos os da primeira seleção; a definição da empresa e mesmo a fase, conseguiram aprovação de contratos com apresentação do projeto. recursos do FAR e do CCFGTS, apesar dos es- Confirmados por notícias da mídia lo- forços governamentais, e os novos integrantes cal, algumas características comuns a esses Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 Book 35.indb 207 207 06/03/2016 17:30:35 Renato Pequeno, Sara Vieira Rosa municípios e seus respectivos contratos po- e meios de transporte, assim como redes de dem ser apontados: o porte do empreendi- abastecimento de água e de saneamento. mento na ordem de 500 unidades; a localiza- Ao atender às pressões pela construção ção periurbana, via de regra diametralmente de empreendimentos maiores e concentrados oposta às frentes de expansão do mercado num só terreno, ao priorizar o baixo custo do imobiliário e dos empreendimentos das faixas terreno como critério para a sua compra, tem- 2 e 3; a sinalização de uma segunda etapa do -se como consequência o crescimento desor- empreendimento no curto prazo; a realização denado e disperso. Com isso, favorecem-se os por empresa com experiência nesse ramo de proprietários de terras em setores intermediá- serviço, tendo Fortaleza como sede; a proximi- rios entre o centro e a periferia, cujas glebas dade do empreendimento do PMCMV em rela- vazias passam a ser valorizadas em detrimento ção ao setor industrial; a unicidade do projeto da perda de qualidade de vida dos futuros mo- e a adoção de casa térrea unifamiliar como radores e mesmo do abandono dessas unida- tipo habitacional. des pela ausência de cidade no seu entorno. Situação exemplar pode ser obtida em A questão trazida à tona com as difi- Russas onde a localização de conjunto habi- culdades de implantação de empreendimentos tacional com 500 UHs ocorre em terreno vizi- voltados para famílias na faixa de interesse nho à indústria de calçados Dakota, numa das social evidencia problemas associados à dis- saídas da cidade. Apesar de amplos terrenos sociação entre as políticas urbana e habitacio- vazios nos interstícios entre a periferia e os nal, assim como a ineficácia dos instrumentos bairros intermediários e pericentrais, a opção até aqui elaborados como os planos diretores dessa localização evidencia problemas de in- municipais e os planos locais de habitação de serção urbana para o futuro próximo. No mes- interesse social. mo município, tem-se a construção de alguns empreendimentos por meio do PMCMV para as faixas 2 e 3 em terrenos de pequeno porte, atendendo à demanda com maior capacidade de pagamento em terrenos melhor localizados. Aplicabilidade dos instrumentos de planejamento urbano e habitacional Disso observa-se que mesmo para um centro regional com população de 30 mil habitantes No que se refere à aplicabilidade dos instru- na zona urbana, o programa ao desconsiderar mentos de planejamento e gestão do solo ur- os instrumentos da política urbana pode vir a bano associados à implementação do PMCMV, induzir a especulação imobiliária e a segrega- destacam-se as seguintes dinâmicas: a) a baixa ção residencial. efetividade da legislação urbanística municipal Situações como essas indicam a neces- na definição das áreas para os PMCMV, inexis- sidade de uma abordagem intersetorial na tindo casos de utilização do Estatuto da Cida- implementação desse programa, consideran- de; b) a ausência de articulação entre os planos do que o porte dos empreendimentos requer diretores municipais e problemas na implan- equipamentos sociais, condições de circulação tação de conjuntos periféricos evidenciando 208 Book 35.indb 208 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 06/03/2016 17:30:35 O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE a necessidade de planos de expansão urbana momento a pertinência da localização dos e habitacional metropolitano; c) o reconheci- mesmos diante do conteúdo da política urba- mento de problemas recorrentes na realização na e mesmo da lei de uso e ocupação do solo do trabalho social influenciam negativamente é questionada. Sobre a localização do empre- a organização dos grupos atendidos e a apro- endimento, as opções são: inserido na malha priação dos equipamentos de uso coletivos pe- urbana, periferia e área de transição urbano los moradores. rural, onde uma não exclui a outra. No que se refere ao uso predominante: residencial uni ou multifamiliar, comercial, industrial, misto, Baixa efetividade da legislação urbanística na definição das áreas para os PMCMV as opções mostram-se presas a um modelo de zoneamento funcionalista que não retrata a realidade das cidades brasileiras. Quanto à densidade de ocupação, entre alta, normal ou Ao analisarmos as áreas onde os empreendi- baixa, faltam maiores elementos para definir o mentos habitacionais do PMCMV estão sendo que essa classificação significaria, além de di- inseridos, observa-se que as mesmas não le- ferenciar a densidade quanto à região e quan- varam em consideração os conteúdos dos pla- to à localização na cidade. Por fim, no que diz nos diretores municipais, no que se refere aos respeito à disponibilidade de transporte fal- instrumentos do Estatuto da Cidade, os quais tam elementos para justificar o que seria bom, poderiam facilitar a aquisição de terrenos me- regular ou insuficiente. lhor localizados e dotados de infraestrutura e serviços urbanos. mencionado nas entrevistas o uso de qualquer Fortalecendo a hipótese da total disso- instrumento do estatuto da cidade, como as ciação entre as políticas urbana e habitacional, Zeis vazias, que apesar de disponíveis na le- assim como a constatação de que a definição gislação urbana da maior parte dos municípios das áreas decorre da decisão dos construtores não foram utilizadas. Em Fortaleza, o Plano e da aceitação das demais instituições de fi- Diretor Participativo de 2009 reúne mais de 60 nanciamento, os casos estudados ilustram es- áreas consideradas como Zeis vazias, sem que sa situação. Prevalecem critérios como o custo nenhuma tenha sido alvo de projeto (Ancona, do terreno, fundamental para o construtor. 2009; Rolnik, 2010). Mesmo a disponibilidade de infraestrutura e Nos casos analisados para Fortaleza, os serviços, apesar de serem mencionados como empreendimentos aprovados pelo FAR na 1ª disponíveis no entorno, derivam em problemas fase se localizam nas Zonas de Requalificação para os moradores, visto que nem sempre es- Urbana I e II (ZRU), marcadas pela precarieda- tavam em condições de uso. de das infraestruturas, pela presença de áreas Além disso, compreende-se que desde de ocupação e loteamentos irregulares. Fos- o preenchimento da FIT (Ficha de Informa- sem considerados os conteúdos e as recomen- ções sobre o Terreno) e da FRE (Fichas Resu- dações da legislação, esses seriam construídos mo dos Empreendimentos) que em nenhum apenas em setores dotados de infraestrutura Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 Book 35.indb 209 Em nenhum dos casos estudados, foi 209 06/03/2016 17:30:35 Renato Pequeno, Sara Vieira Rosa e serviços urbanos, e, por conseguinte, aptos ocasião dos debates em Fortaleza dizia res- aos novos empreendimentos. peito à ausência da questão metropolitana Com vistas à terceira fase do PMCMV e nos seus conteúdos. Disso decorre uma série buscando cumprir as promessas de campanha, de conflitos de uso do solo e incompatibili- a PMF partiu para a aprovação de grandes dades de ocupação do território. Sem preten- conjuntos num setor da cidade considerado der esgotar a lista de problemas, podem ser como Zona de Ocupação Restrita (ZOR), onde aqui citados: zonas de litígio em que os limi- as recomendações são contrárias ao tipo de tes municipais não são reconhecidos; lotea- empreendimento. Controlar e inibir a ocupa- mentos aprovados em municípios vizinhos, ção dessas áreas devido às condições esparsas às vezes parcialmente, propiciando situações de ocupação e às carências de infraestrutura e de irregularidade fundiária e insegurança serviços, apesar de apontadas no plano diretor, na posse por seus moradores; produção de não conseguem impedir a aprovação desses loteamentos clandestinos, os quais remanes- novos grandes conjuntos. cem sem controle urbano; descontinuidades Mesmo para os casos de Maracanaú e viárias, influenciando negativamente a imple- Caucaia, os problemas se repetem com outros mentação de redes de infraestrutura urbana; elementos. Em Maracanaú, os conjuntos pro- transposição de demandas sociais relaciona- duzidos com recursos do FAR encontram-se em das à maior proximidade das periferias nas áreas descontínuas, distantes da centralidade zonas conurbadas de núcleos e centralidades principal do município, em zonas com maior urbanas de municípios vizinhos; avanço das fragilidade ambiental. Sua localização em ter- áreas de risco no contra-fluxo dos rios urba- renos distantes e próximos ao eixo transversal nos desde Fortaleza em direção aos municí- ao município vindo de Fortaleza em direção pios à montante; degradação dos recursos à Maranguape contribui para o crescimento naturais vinculada à falta de infraestrutura desordenado do município. Por sua vez, em e de serviços urbanos; dificuldades no aces- Caucaia, alguns dos empreendimentos aprova- so aos equipamentos sociais, via de regra dos desconsideram as recomendações do pla- vinculado ao domicílio; custo excessivo dos no, que demonstram seu viés segregacionista, transportes coletivos para um grupo cada vez tornando proibitivo o uso com fins HIS para al- maior de pessoas que comutam de um muni- guns setores, assim como estabelecendo lotes cípio ao outro, na ausência de um processo mínimos de 250 metros quadrados. de planejamento metropolitano. Vale destacar que se entende como processo de planejamento territorial metropoli- Ausência de articulação entre os PDs municipais e necessidade de planos de expansão urbana metropolitano tano não apenas a formulação de um plano, mas a definição de papéis e responsabilidades, assim como da sua institucionalização, implementação e operacionalização, sem os quais, Desde a elaboração dos planos diretores mu- estar-se-ia tão somente produzindo relatórios nicipais, uma das questões levantadas por e normativas fadadas às gavetas e prateleiras. 210 Book 35.indb 210 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 06/03/2016 17:30:35 O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE Na ausência desse processo, desde o subsidiado não tem o seu real valor reconhe- lançamento do PMCMV, os grandes vazios ur- cido; da presença de muitos problemas deri- banos de Maracanaú e Caucaia tornaram-se vados das más condições de inserção urbana alvo de projetos, dado o menor custo da terra induzindo famílias a buscar outras formas de urbana (sem infraestrutura), vindo a contribuir moradia, levando-as ao abandono e à venda com a consolidação da conurbação entre eles dos imóveis. e Fortaleza em duas direções: sudoeste e oeste Disso vem à tona a necessidade de pro- respectivamente. Nessas bordas, inicia-se a im- cesso de planejamento metropolitano voltado plantação de pequenos empreendimentos iso- para estabelecer mecanismos de articulação lados sob a forma de condomínios horizontais, entre os planos municipais quanto às frentes os quais passam a ter seu entorno complemen- de expansão dos municípios, assim como para tado por empreendimentos contíguos, decor- definir em conjunto o uso de instrumentos que rendo num território fragmentado e descontí- garantam de forma consorciada a urbanização nuo, onde os espaços extramuros denunciam a e a posterior disponibilidade de terra urbaniza- necessidade de um plano urbanístico. da para novos empreendimentos, evitando-se o Além disso, o setor sudoeste de Fortaleza, conhecido como Grande Bom Jardim agravamento dos problemas aqui apresentados (Santoro, 2012). torna-se alvo de projetos de reassentamento habitacional de famílias removidas de áreas de risco integrantes do Projeto Maranguapinho com recursos do PAC, os quais contemplam: a Problemas recorrentes na realização do trabalho social urbanização das áreas de risco, recuperadas como espaços livres para a cidade; as obras de Os problemas associados à redução do papel infraestrutura; a provisão habitacional somada do Estado tornam-se mais evidentes quando a pequenos equipamentos coletivos. se investigam os impactos do trabalho social Complementa a problematização em tor- junto aos beneficiários, o qual, em seus obje- no desta dinâmica socioespacial, a compreen- tivos específicos, visa contribuir com a orga- são de que as demandas de Fortaleza tendem nização das famílias beneficiadas. Vale des- a migrar para os municípios vizinhos, especial- tacar que esse corresponde a um dos poucos mente nas faixas 2 e 3 que inclusive podem vir processos em que se pode investigar a forma a pressionar os empreendimentos da faixa 1. como se dá a interação entre o poder local e Isso decorre dentre outros fatores: da pequena a população, evidenciando-se a necessidade oferta adiante da demanda reprimida; da infor- de maior detalhamento do programa no nível malidade na aquisição do imóvel como marca local referente aos procedimentos para defini- de um setor onde não existe controle urbano; ção das famílias beneficiadas. da produção em quantidade nos municípios Considerando a necessária abordagem vizinhos e a oferta atendendo a cadastros mu- intersetorial que o enfrentamento da ques- nicipais, onde na ausência de um efetivo e efi- tão da moradia requer, deve ser mencionado caz trabalho social, o bem imóvel amplamente que o trabalho social tem limitações diante Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 Book 35.indb 211 211 06/03/2016 17:30:35 Renato Pequeno, Sara Vieira Rosa dos problemas a serem enfrentados, os quais Quanto ao tipo de atividade realizada pe- muitas vezes advêm das más condições de lo- lo técnico de trabalho social ocorrido por oca- calização, da forma como se deu a produção sião do contato com os moradores, observa-se habitacional, assim como em decorrência das que o foco esteve concentrado na mudança e disparidades de poder entre os agentes envol- na organização do condomínio, conforme afir- vidos na tomada de decisão. maram mais de 2/3 dos moradores. Questões De qualquer maneira, o trabalho social vinculadas às condições de inserção urbana, no PMCMV acaba por se constituir no único e como a proximidade de equipamentos sociais derradeiro momento de interação entre o mu- e sua apropriação pelos beneficiários foram nicípio e os beneficiados, ganhando com isso mencionadas por menos de 17% do total dos maior importância, no sentido que se coloca entrevistados; da mesma forma, pouco mais de como esclarecedor das condições em que os 20% disseram ter havido encaminhamentos e imóveis são entregues e como facilitador do discussões associadas à realização de cursos processo de organização comunitária. profissionalizantes. Dada a importância desses Tendo em vista a vida em condomínio pontos para a melhoria nas condições de vida que a tipologia urbanística e arquitetônica e para a permanência das famílias nos condo- predominantemente é adotada no PMCMV mínios, recomenda-se que esses pontos sejam na RMF, o trabalho social ganha ainda maior melhor explorados nas atividades do trabalho importância pelo fato de incluir no orçamen- social. to das famílias novas, despesas com taxas de Decorrem da fragilidade da realização condomínio às quais elas não estão habitua- do trabalho social, problemas como a inadim- das, assim como a necessidade de comparti- plência no pagamento das taxas e a desorga- lhar responsabilidades. O problema se agrava, nização afetando diretamente a gestão dos se considerarmos a amplitude do espectro de condomínios associada à participação das renda na faixa 1, variando de famílias com famílias nas reuniões. Além disso, a presença renda inferior a 1 salário mínimo oriundas de recorrente de uso misto, repasse a familiares, áreas de ocupação a famílias com renda de venda, aluguel, invasão e desocupação: situa- 1.600,00 reais provenientes de casas em que ções pontuais que somadas indicam problemas pagavam aluguel. desde a formulação do cadastro até a seleção De acordo com as entrevistas realizadas de beneficiários. com moradores dos conjuntos já habitados, constatou-se que o contato dos moradores com os técnicos de trabalho social é bastante redu- Considerações finais zido e descontínuo. A metade dos entrevistados mencionou ter tido contato antes da mudança, Neste artigo, buscou-se apontar e discutir um um quarto dos moradores apenas após a mu- quadro de dinâmicas vinculadas às condições dança, e o restante informou que nunca teve em que se encontram os arranjos institucio- contato com os técnicos. nais vinculados ao PMCMV na RMF. Essas 212 Book 35.indb 212 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 06/03/2016 17:30:35 O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE foram classificadas quanto às ações dos seto- capital, experiência e pacote tecnológico para res imobiliário e da construção civil; quanto às enfrentar a produção de grandes conjuntos pe- práticas do Estado considerando as diferentes riféricos. Tende a restar às demais a busca por esferas de governo; quanto à associação entre novos empreendimentos em centros regionais os instrumentos de planejamento urbano e ha- do estado, tão logo a terceira fase do PMCMV bitacional. Apesar de terem a RMF como foco, venha a ser dotada de recursos. fez-se necessário a realização de abordagem Cumpre destacar que o PMCMV ao dis- pluri-escalar, incluindo a região Nordeste, sub- ponibilizar amplos recursos para a contratação divida em estados; o estado do Ceará em seus de empreendimentos residenciais, atendendo a municípios diferenciados pelo porte de sua po- diferentes faixas de renda, a serem realizados pulação; a própria RMF da qual foram selecio- pelo setor da construção civil, pôs em cheque nados os municípios com maior produção habi- os instrumentos da política urbana formulados tacional atrelada ao programa. nos últimos anos. Da mesma forma, no nível lo- No caso, Fortaleza como o mais populoso cal colocou numa mesma arena os diferentes revelou dificuldades vinculadas à especulação agentes sociais, em que num cenário otimista imobiliária comandada pelo setor da incorpora- poderiam ser pactuadas medidas que favore- ção e da construção civil. Além disso, percebeu- cessem a todos, ou num cenário pessimista, as -se num primeiro momento, a continuidade das disputas poderiam vir a se acirrar refletindo no empresas de pequeno e médio porte que atua- aumento das disparidades socioespaciais (Ma- vam através do PAR, as quais passaram a ter ricato, 2011). contratos no PMCMV. Ainda que diversificadas, Para tanto, a RMF, historicamente mar- com o passar do tempo denotou-se a concen- cada por suas desigualdades sociais traduzidas tração em torno de poucas empresas em ter- nas condições precárias de moradia para mui- mos de quantidade de unidades habitacionais. tos e no privilégio com que poucos desfrutam Diante destas dificuldades, o PMCMV passa dos benefícios da urbanização, representou um a ser mais efetivo nos municípios vizinhos a recorte espacial exemplar e dos mais férteis. Fortaleza: Caucaia ao oeste e Maracanaú ao A concentração do desenvolvimento ur- sudoeste, onde as facilidades para obtenção bano no município-polo, para onde convergem de terrenos e a disponibilidade de demanda a maior parte dos investimentos, a criação de viabilizaram lucros no curto prazo. Além disso, instituições públicas municipais voltadas para tratando-se de empreendimentos de pequeno o enfrentamento do problema habitacional na porte, as mesmas empresas que vinham atuan- última década, as tentativas do governo esta- do na provisão habitacional pelo PAR sob o dual de retomar ações na produção habitacio- comando do Sinduscon obtiveram êxito na efe- nal, as dificuldades vivenciadas nos processos tivação de contratos. de planejamento urbano na esfera municipal, Todavia, mais recentemente configura- a força dos oligopólios que comandam o setor -se a tendência de oligopolização do progra- imobiliário e as más condições de distribuição ma por meio de grandes empresas dotadas de das redes de infraestrutura, para citar apenas Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 Book 35.indb 213 213 06/03/2016 17:30:35 Renato Pequeno, Sara Vieira Rosa algumas, são características cuja simultanei- instrumentos como os consórcios imobiliários dade e sobreposição na RMF reforçam sua e adotar instrumentos de combate à especula- condição especial como objeto de estudo. ção imobiliária, vincular as demandas prioritá- Diante do quadro de problemas relacio- rias definidas nos planos locais de habitação nados às dinâmicas que retratam a situação a terrenos vazios próximos habilitados ao uso dos arranjos institucionais, pretende-se aqui residencial são algumas das medidas a serem sugerir algumas diretrizes visando contribuir tomadas de modo a facilitar essa interação en- com a melhoria do PMCMV. Primeiramente, tre as políticas urbana, habitacional e outra a recomenda-se o redesenho das atribuições dos elas vinculadas. agentes envolvidos no programa, especialmen- Por fim, acredita-se que a elaboração de te em relação àqueles que fazem parte do qua- planos de estruturação urbana para os setores dro funcional dos municípios, cuja ausência dos em que o PMCMV passa a se concentrar corres- processos decisórios deriva em grande parte ponde a um requisito primordial a ser cumpri- dos problemas detectados. do. Especialmente no caso das periferias, onde Em seguida, tendo em vista a aprovação prevalecem os desmandos do setor imobiliário de conjuntos habitacionais de grande porte, e a informalidade urbana, esses planos corres- torna-se imprescindível a associação entre as ponderiam ao maior detalhamento em relação políticas urbana e habitacional – nas suas di- ao uso do solo, trazendo consigo diretrizes es- retrizes e nos seus instrumentos – bem como pecíficas de desenho urbano destinadas a so- às demais políticas setoriais envolvidas com lucionar problemas vinculados à distribuição a expansão urbana de modo a amenizar os demográfica, à estrutura viária, à mobilidade, impactos sobre os moradores e a mitigar os às necessidades por equipamentos sociais, às impactos decorrentes das más condições de demandas por infraestruturas urbanas, aos es- inserção urbana. Fazer uso das zonas espe- paços livres e à delimitação das áreas de pre- ciais de interesse social do tipo vazios, utilizar servação permanente urbana. Renato Pequeno Universidade Federal do Ceará, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Laboratório de Estudos da Habitação. Fortaleza/CE, Brasil. [email protected] Sara Vieira Rosa Universidade Federal do Ceará, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Laboratório de Estudos da Habitação. Fortaleza/CE, Brasil. [email protected] 214 Book 35.indb 214 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 06/03/2016 17:30:35 O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE Referências ANCONA, A. L. e SANTA ROSA, J. (2009). Como delimitar e regulamentar zonas especiais de interesse social. Brasília, Ministério das Cidades. ARRETCHE, M. (2012). Capacidades Administrativas dos Municípios Brasileiros para a Política Habitacional. Brasília, Ministério das Cidades. CARDOSO, A. (2002). 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Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 191-215, abr 2016 Book 35.indb 215 215 06/03/2016 17:30:35 Book 35.indb 216 06/03/2016 17:30:35 Transformação da periferia e novas formas de desigualdades nas metrópoles brasileiras: um olhar sobre as mudanças na produção habitacional Transformation of the urban periphery and new forms of inequality in Brazilian cities: a view on the recent changes in housing production Maria Beatriz Cruz Rufino Resumo Este artigo tem como objetivo discutir as recentes transformações nas periferias das grandes metrópoles brasileiras, considerando a expansão da produção imobiliária nesses territórios, suportada em grande medida pelo lançamento do Programa Habitacional Minha Casa Minha Vida. Partindo de uma análise histórica e teórica, procuramos mostrar o deslocamento da primazia da contradição entre capital-trabalho, sob o domínio do capital industrial, para a primazia de uma contradição urbana, sob domínio do capital financeiro. Nossa hipótese é que a periferia, cuja formação foi caracterizada “trinômio casa própria-loteamento periférico-autoconstrução”, consolida-se na atualidade como estratégia essencial na ampliação dos ganhos e na expansão da produção imobiliária. Essa estratégia de valorização do capital parece impor novas formas de desigualdades, que procuramos explorar. Abstract This article’s objective is to discuss recent transformations in the periphery of Brazil’s largest cities, considering the expansion of real estate in these territories, strongly supported by the Government’s housing program Minha Casa Minha Vida. Using historical and theoretical analyses, we demonstrate the shift in the primacy of the contradiction between capital and labor, dominated by industrial capital, towards the primacy of an urban contradiction, dominated by financial capital. Our hypothesis is that the appropriation of the periphery has consolidated into an essential strategy in the amplification of gains and in the expansion of real estate. This strategy of capital appreciation seems to impose new forms of inequality, which we have attempted to explore here. Palavras-chave: financeirização; metrópole; periferia; mercado imobiliário. Keywords: financialization; metropolis; periphery; real estate market. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3510 Book 35.indb 217 06/03/2016 17:30:35 Maria Beatriz Cruz Rufino Introdução do estoque de crédito habitacional (Mendonça A primeira década do século XXI é marcada por cursos para a habitação a partir da utilização uma intensificação da produção imobiliária no do FGTS foi multiplicada em cerca de cinco Brasil, manifestada pelo aumento do volume vezes. Esse aumento foi ainda mais expressivo da produção e por forte valorização imobiliá- no caso do SBPE, em que os volumes contrata- ria. Em 2010, a valorização imobiliária alcan- dos em 2010 superam em mais de dez vezes as çada foi de 23%, representando a segunda contrações do ano de 2005. e Sachsida, 2012). Entre 2005 e 2010, a contratação de re- maior taxa mundial (Cf. revista Exame, de 30 Nesse cenário fortemente favorável à ex- de maio de 2012). Um conjunto de trabalhos e pansão do consumo da produção imobiliária, a pesquisas desenvolvidos recentemente (Royer, abertura de capital das grandes incorporadoras 2009; Fix, 2012; Shimbo, 2010; Rufino, 2012) se consolidou como uma nova possibilidade de mostram que esse quadro de intensificação captar recursos do mercado financeiro. Num da produção imobiliária das cidades brasilei- primeiro ciclo de captação, entre 2005 e 2007, ras insere-se no movimento geral de conver- 25 empresas, predominantemente localizadas gência entre capital financeiro e imobiliário e no eixo Rio-São Paulo, conseguiram captar cer- repercute em mudanças estruturais na organi- ca de 12 bilhões de reais, consolidando o setor zação do setor imobiliário e na reconfiguração imobiliário como uma importante área do mer- das cidades brasileiras. cado de capital financeiro e atraindo grande No Brasil, a aproximação do capital fi- atenção de investidores estrangeiros, que che- nanceiro ao setor imobiliário foi suportada, garam a representar “mais de 75% desse vo- em grande medida, pela redefinição do mar- lume dos capitais” (Rocha Lima Jr. e Gregório, co regulatório do setor e pelo crescimento da 2008). Procurando ampliar seus investimentos, oferta de financiamentos, a partir da impor- muitas dessas empresas passaram a se desta- tante recupe ração das principais fontes de car por direcionar sua produção para a popula- financiamento habitacional, organizadas pelo ção de menor renda (Shimbo, 2010). Estado no Sistema Financeiro Habitacional Essa nova estratégia do mercado imo- (SFH) e posteriormente reforçadas na imple- biliário impulsionou um importante movimen- mentação do Programa Habitacional Minha to de transformação e expansão das periferias Casa Minha Vida. das grandes metrópoles, cuja formação ori- Relacionado ao crescimento econômico ginal, esteve particularmente relacionada ao do país, as tradicionais fontes do SFH – o Fun- intenso processo de urbanização da América do de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e Latina a partir dos anos 1960, sendo pautada o Sistema Brasileiro de Poupança e Emprésti- pelo “trinômio casa própria-loteamento perifé- mos (SBPE) – começam a apresentar resulta- rico-autocontrução” (Bonduki, 2004). dos excepcionais, configurando-se como base Tradicionalmente a produção imobiliária fundamental da expansão do setor, sendo res- de mercado, principalmente concentrada nas ponsáveis no ano de 2012 por cerca de 95% áreas centrais, tendeu a reforçar a dicotomia 218 Book 35.indb 218 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 06/03/2016 17:30:35 Transformação da periferia e novas formas de desigualdades... entre centro equipado e territórios precaria- sob domínio do capital financeiro, responsável mente ocupados. Esses territórios precários pela produção de novas desigualdades. contrastavam e valorizavam ainda mais os No desenvolvimento deste artigo, ini- espaços mais bem servidos e mais equipados. cialmente recuperamos e discutimos uma im- Esse duplo movimento explicitava diferenças e portante produção bibliográfica que proble- levava a cidade a um rápido processo de ex- matizou a formação da periferia, interpretada pansão, pautado por baixa densidade e infor- como expediente de rebaixamento do custo de malidade nas construções, que passou a ser reprodução da força de trabalho e importante descrito como sendo “um padrão periférico instrumento de ampliação dos ganhos na in- de crescimento urbano” (Bolaffi, 1979). Nesse dústria, expressando dessa maneira as intensas contexto se fortaleceu uma visão segmentada desigualdades da urbanização brasileira. e dual da urbanização, “onde uma produção Considerando um salto de mais de 30 organizada do espaço – moderna e indus- anos, passamos a investigar as mudanças nas trial – se contrapunha a outro espaço, onde à periferias das grandes metrópoles na atualida- apropriação desorganizada do lote se somava de, manifestadas pela disseminação de grandes a produção precária da casa-própria por traba- condomínios residenciais direcionados para a lhadores” (Pereira, 2005). população de menor renda. A atuação do setor É sobre essas periferias, que na atuali- público, por meio de uma política de financia- dade se evidenciará a expansão da produção mentos e subsídios com meta de construção de imobiliária de mercado, consubstanciando no- três milhões de habitações, o Programa Minha vas relações de produção das periferias. Esse Casa Minha Vida foi decisivo na complexifica- movimento faz com que a forma de produção ção desses territórios. para mercado, dominante nos mecanismos de Essa nova estratégia de produção do valorização, se torne também predominante espaço, compreendida dentro de um proces- no processo de urbanização. Em sua obra, so de financeirização da produção imobiliária, a Produção Social do Espaço, Gottidiener impõe uma nova lógica de produção da perife- (2007) já pontuava que a produção do espaço ria que faz emergir novas formas de desigual- decorria não apenas dos processos econômi- dades. São essas questões que procuramos cos, mas também e, mais especificamente, de discutir na última parte, antecedendo as con- uma articulação conjunta entre Estado e setor siderações finais. imobiliário, que formavam uma coalizão de interesses entorno da valorização imobiliária e representavam a vanguarda das transformações espaciais. Partindo de uma análise histórica e teórica da periferia, procuramos mostrar o desloca- A formação da periferia como expediente de rebaixamento da força de trabalho mento da primazia da contradição entre capital-trabalho, sob o domínio do capital industrial, Em 1970, pela primeira vez a população urba- para a primazia de uma contradição urbana, na havia superado a rural no Brasil.1 O rápido Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 Book 35.indb 219 219 06/03/2016 17:30:35 Maria Beatriz Cruz Rufino crescimento da população urbana representou ilegais em relação à legislação de uso do solo ainda a consolidação de grandes aglomerados e ocupados sem qualquer infraestrutura, asso- metropolitanos. Institucionalizadas em 1973, ciou-se à percepção de um quadro crescente as regiões metropolitanas passam a concentrar de problemáticas urbanas – insuficiência de mais da metade da população urbana (Brito e transporte público, incapacidade do poder pú- Pinho, 2012). O acelerado processo de urbani- blico em prover saneamento, infraestruturas e zação no Brasil, muito superior ao dos países serviços urbanos para toda a cidade. desenvolvidos nesse mesmo período, foi um Ao procurar compreender a lógica de fenômeno até então sem precedentes, direta- produção desse espaço, vários estudos acadê- mente relacionado ao forte crescimento indus- micos contribuirão para o desenvolvimento de trial e seu caráter concentrador. uma importante crítica ao Estado e a visão de Entre 1940 e 1980, o PIB brasileiro cres- planejamento urbano dominante, que se nega- ceu com média de 7% ao ano, correspondendo va a considerar a cidade real (Tanaka, 2007). ao período de maior crescimento econômico in- As periferias metropolitanas brasileiras foram dustrial brasileiro, resultante em grande medi- caracterizadas de uma forma bastante precisa da da maior diversificação do parque industrial, pela literatura sociológica e urbana nos anos com o crescimento das indústrias voltadas a 1970 e 1980. bens de produção como os automóveis, princi- Oliveira (1979) tem um importante papel palmente concentrado no estado de São Paulo na transposição do pensamento crítico brasi- (Singer, 1968). leiro para o urbano, articulando a produção da Conforme desenvolve Maricato (2001), periferia com as condições de super exploração as mudanças na economia brasileira influen- da força de trabalho na industrialização. Para ciaram diretamente o padrão de produção esse autor, o moderno (a industrialização) cres- da cidade, atraindo imenso contingente de ce e se alimenta do atrasado (a super explora- população rural (dada as condições precárias ção do trabalho); disso resulta, “a contradição, de vida no campo e as dificuldades de acesso e não apenas o paradoxo, de como uma enor- aos meios de produção), mas mantendo as me massa de assalariados não chega a consti- intensas desigualdades que impunham à po- tuir-se um mercado para a produção capitalis- pulação mais pobre a moradia em áreas com- ta, seja na residência, seja em melhoramentos pletamente inadequadas ao desenvolvimento urbanos” (Oliveira, 1979). urbano racional. Estando a autoconstrução no cerne da Nas décadas de 1950 e 1960, a cidade produção da periferia, como forma de produ- de São Paulo, por exemplo, registrou taxas de ção predominante, o autor destaca sua relevân- crescimento superiores a 5%, correspondentes, cia como mecanismo de rebaixamento do custo no plano espacial, a um forte espraiamento da de reprodução da força de trabalho: metrópole, associado em grande medida à in- tos populares distantes das áreas urbanizadas, Trata-se, também neste caso, de como se dá a produção de uma riqueza social que não é valor, que não é capital, mas é posta a serviço do capital, na medida em que 220 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 tensa migração da população pobre. Essa expansão, viabilizada pela abertura de loteamen- Book 35.indb 220 06/03/2016 17:30:35 Transformação da periferia e novas formas de desigualdades... contribua para rebaixar seja o custo da reprodução da força de trabalho, no caso da residência, seja o custo da urbanização, no caso das pequenas obras públicas feitas por moradores em seus bairros, em suas ruas. (Oliveira, 1979, p.16) fortalecimento da habitação como problema, assumindo quantitativamente a forma de um gigantesco déficit habitacional. Se durante muitos anos o rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho a partir da precarização da habitação vinha sendo funcional Nesse mesmo debate, Kowarick (1979) ao capital, o enfrentamento da questão habi- também destaca a autoconstrução como meca- tacional revela-se como prioridade, sendo in- nismo essencial para o rebaixamento do custo corporado no discurso político e resultando no de reprodução da força de trabalho. Referen- desenho de políticas de maior vulto. ciando-se nas dinâmicas de São Paulo, o autor afirma que: A solução mais importante do ponto de vista quantitativo na cidade de São Paulo é a autoconstrução, esta magnífica fórmula que o capitalismo dependente deflagrou para rebaixar o custo da reprodução da força de trabalho, compatibilizando uma alta taxa de acumulação com salários crescentemente deteriorados. (Kowarick, 1979) Ao mostrar sensibilidade a um grave problema social, no qual até então a ação do Estado havia sido bastante limitada, o Governo Militar procurava assegurar o apoio da população e garantia à manutenção da ordem social. Ao mesmo tempo, ao incorporar mecanismos financeiros na expansão do crédito, suportava a expansão das empresas de construção. Em 1964, é instituído o Plano Nacional da Habitação e criado o Banco Nacional da Habitação (BNH), órgão gestor do SFH e da A formação da periferia é nesse sentido Para Bolaffi (1979), a ampliação dos in- do por Kowarick (1979) como a sistemática vestimentos do Estado, principalmente a partir exclusão das camadas populares do acesso aos da habitação e de melhorias urbanas, consoli- serviços de consumo coletivo. da-se como uma importante estratégia de en- Os espaços periféricos são assim carac- frentamento da crise. “Tudo indica, portanto terizados como os mais distantes e de menor que o ‘problema da habitação popular’...não renda diferencial, ocupados pela população de passou de um artifício político formulado para mais baixa renda inserida de maneira mais pre- enfrentar um problema econômico conjuntu- cária no mundo do trabalho (Kowarick, 1979; ral” (Bolaffi, 1979). Bonduki e Rolnik, 1979). Representariam terri- A intervenção do Estado, pautada em tórios sem Estado, quase totalmente intocados grandes conjuntos habitacionais periféricos pelas políticas públicas, exceto pelos empreen- impulsionaram novas frentes de desenvolvi- dimentos habitacionais massificados, implanta- mento metropolitano, tornando mais complexa dos a partir de finais dos anos 1960. a organização desses territórios e sinalizando A expansão da periferia nas grandes algumas transformações. cidades e mais claramente o agravamento A partir da década de 1980, o contexto dos processos de favelização sustentaram o de estagnação e inflação mudou a dinâmica de Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 Book 35.indb 221 política habitacional. produto da espoliação urbana, termo defini- 221 06/03/2016 17:30:35 Maria Beatriz Cruz Rufino crescimento urbano que se estruturava desde A consolidação de grandes conjuntos o início dos anos 1940 do século passado. No habitacionais populares e o início da implanta- Brasil, entre 1991 e 2000, houve um aumento ção de condomínios fechados, embora não re- de 22,5% do número de favelas. Enquanto os presentem processos predominantes na expan- domicílios cresceram 1,01% em todo o país, os são da periferia são indicativos da ampliação domicílios em favelas cresceram 4,18%. A fa- da complexidade desses territórios. No contí- vela, no momento de crise, se coloca como um nuo processo de expansão metropolitana, es- espaço privilegiado para reprodução da força sas novas dinâmicas se mesclaram ainda com de trabalho, por garantir acesso mais fácil ao retenção especulativa da terra, tida como im- mercado de trabalho por sua proximidade a re- portante estratégia para ampliação dos ganhos giões centrais (Torres e Oliveira, 2001). dos loteadores. Apesar do grande incremento de favelas, representando o aumento do adensamento e empobrecimento de porções mais centrais (Sempla,1990), as periferias das grandes metrópoles continuaram a crescer em ritmo muito mais acelerado que as áreas já conso- A produção imobiliária na periferia: o Programa Minha Casa Minha Vida lidadas. Essa relação fica evidente quando se examinam as taxas de crescimento dos aglo- O mercado imobiliário brasileiro historicamen- merados metropolitanos ao longo das quatro te foi caracterizado por seu caráter restrito, últimas décadas. Apesar da sensível redução oferecendo apenas produtos de luxo, que das taxas de crescimento populacional, a par- normalmente abrangiam menos de 30% da tir da década de 1980, a periferia dos núcleos população e estavam principalmente localiza- metropolitanos crescerá com taxas mais ele- das nas áreas mais consolidadas e valorizadas. vadas repercutindo em maior incremento po- Nesse contexto a classe média tendia a se pulacional. Essa dinâmica reafirma o padrão apropriar dos recursos subsidiados utilizados de urbanização extensiva – processo de incor- na promoção pública de moradias, deixando poração horizontal de áreas rurais adjacentes a população de baixa renda sem alternativas, aos núcleos urbanos – impondo um caráter que não a ocupação de terras e a construção metropolitano às nossas periferias (Torres e ilegal de suas casas. Tais dinâmicas levaram a Oliveira, 2001). uma massiva concentração do déficit habita- É também a partir da década de 1980 que começa a se discutir a transformação na cional entre as famílias mais pobres (Maricato, 2001). estrutura das cidades a partir da implantação A partir de 2003, com o governo Lula, é pontual de condomínios fechados, gerando possível observar maiores esforços no sentido espaços onde os diferentes grupos sociais es- de construção de uma política habitacional tão muitas vezes próximos, porém separados (Cardoso et al., 2011), garantindo o direciona- por muros e dispositivos de segurança (Cal- mento dos recursos subsidiados para a popula- deira, 2000). ção de menor renda. 222 Book 35.indb 222 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 06/03/2016 17:30:35 Transformação da periferia e novas formas de desigualdades... Figura 1 – FGTS – Unidades financiadas por faixas de renda 100% 75% 50% 25% 0% 2002 2003 2004 2005 2006 2007 0 a 3 SM 2008 3 a 5 SM 2009 mais de 5 SM Fonte: Estatísticas Básicas do Bacen (SFH–FGTS) organizados pelo Observatório das Metrópoles. Nesse sentido, em paralelo ao vertigino- momento, há uma inversão dessa tendên- so incremento dos fundos paraestatais, como cia, com o avanço da importância do finan- Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FG- ciamento para as faixas consideradas de TS), procurou-se garantir seu direcionamen- mercado, mas ainda com rendimentos infe- to para Habitação de Interesse Social (HIS), riores a 10 salários mínimos. 2 conforme os objetivos originais do fundo. A Além do direcionamento de maior parte reformulação na constituição e na forma de dos financiamentos oriundos do FGTS para fa- atuação Conselho Curador do FGTS em 20033 mílias com mais de três salários, constatou-se e as resoluções editadas principalmente a par- nesse período uma expressiva recuperação dos 4 tir de 2004 conseguiram dar maior efetivida- valores absolutos do fundo. Recuperação ain- de ao direcionamento do fundo para a produ- da mais evidente para o caso do FGTS. Entre ção de Habitação de Interesse Social (HIS), 2005 e 2010, a contratação de recursos para viabilizada em vários casos pela concessão de a habitação a partir da utilização do FGTS foi subsídios (Royer, 2009). multiplicado em cerca de cinco vezes, sendo Essa tendência de reforço da HIS é esse aumento ainda mais expressivo no caso bastante evidente até 2007, quando 65% do SBPE, em que os volumes contratados em das unidades financiadas pelo FGTS foram 2010 superam em mais de dez vezes as contra- direcionadas para população de até três ções do ano de 2005, como pode se observar Salários Mínimos ( SM ) . A par tir desse no Gráfico 2. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 Book 35.indb 223 223 06/03/2016 17:30:35 Maria Beatriz Cruz Rufino Figura 2 – Contratação de recursos para habitação SBPE/FGTS (em R$ bilhões) R$90 bi R$60 bi R$30 bi R$0 bi 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 SBPE 2010 FGTS Fonte: Estatísticas Básicas do Bacen (SFH – SBPE/FGTS) organizadas pelo CBIC Dados. Na raiz dessa mudança estariam um am- Shimbo (2010) ilumina com bastante biente macroeconômico favorável e o “apri- clareza os processos que levaram ao cresci- moramento” institucional por meio da lei mento exponencial de uma produção de mer- 10.931/2004, que ampliou a segurança jurídica cado mais direcionada para a população de do crédito imobiliário facilitando a retomada menor renda, mostrando os nítidos vínculos de imóveis através de instrumentos como a com o processo de abertura de capitais de Alienação Fiduciária. grandes empresas de incorporação. Como a Com taxas de juros um pouco mais precificação das empresas no mercado de ação baixas, “tanto o interesse de investidores esteve baseada na projeção de lançamentos pelo mercado da construção civil pareceu imobiliários a partir da propriedade da terra, a aumentar, como o interesse das institui- abertura de capital dessas empresas foi ante- ções financeiras pela concessão de crédito cedida da consolidação de grandes bancos de de longo prazo deu sinais de que essa con- terras, que se tornaram condição central para cessão poderia ser uma atividade lucrativa” uma valorização fictícia das empresas. Segun- (Royer, 2009, p. 72). O crescimento econômi- do Shimbo (2010), no final de 2007 as empre- co evidenciado no período ajuda a explicar o sas de capital aberto dispunham de terrenos aumento da captação de recursos para esses espalhados por todo país num montante total fundos, que retomam um papel essencial no correspondente a cerca de 37 bilhões de reais, financiamento imobiliário e na expansão e di- suficientes para construir mais de 400 mil ha- versificação do mercado imobiliário. bitações (Shimbo, 2010). 224 Book 35.indb 224 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 06/03/2016 17:30:35 Transformação da periferia e novas formas de desigualdades... Fundados no discurso do grande déficit condomínios/bairros imobiliários em periferias habitacional, na ascensão das classes C e D e metropolitanas de várias regiões do Brasil, na disponibilidade de financiamento no âmbito desenvolvendo em grandes glebas empreendi- do SFH, grande parte da produção é direciona- mentos semelhantes que passam a reunir até da para o chamado segmento econômico. Es- mais de 5.000 unidades. sas condições são exacerbadas nos relatórios Nesse momento fica evidente a associa- de grandes consultorias internacionais e nas ção entre a intensificação de uma produção análises dos jornais e revistas, que apontam residencial massificada em áreas periféricas e o importantes mudanças no setor em decorrência processo crescente de centralização do capital desse direcionamento: nas grandes empresas de incorporação – que Esse nicho é o grande filão da indústria, tendo em vista o déficit habitacional do país, estimado em 7,2 milhões de moradias. E como já há um leque de possibilidades de financiamentos bancários a prestações baixas, os investimentos em empreendimentos econômicos não apenas se tornaram viáveis, como assumiram o status de "projetos principais" das empresas, que, agora, precisam ampliar seu portfólio para adentrar em um modelo de negócio com características peculiares e até então pouco explorado.5 do projeto de articulação entre Mercado Imobiliário e Estado, proposto no início da década de 2000, quando fora lançado o Projeto Moradia. Concebido como um dos projetos de desenvolvimento para o país na campanha de Lula, a proposta visava associar o enfrentamento da questão social a crescimento e geração de empregos, considerando para isso a ativação do mercado imobiliário. Como explicita Bonduki (2009) “para concentrar o FGTS na baixa renda, seria indispensável a retomada da produ- Visando assegurar a ampliação dos ga- ção habitacional pelo mercado, para atender a nhos na produção de habitação para esse seg- classe média, reativando o crédito imobiliário, mento, evidencia-se a articulação de três estra- particularmente do SPBE (recursos da poupan- tégias fundamentais: padronização da constru- ça), que não vinha cumprindo os dispositivos ção, geração de economia de escala e procura legais que exigem a aplicação dos seus fundos de terrenos baratos. A busca pela disponibilida- em habitação, pois o governo FHC, baseado no de de grandes glebas e terrenos mais baratos rigor monetarista, enxergava o financiamento irá direcionar investimentos para as periferias, habitacional como inflacionário”. ativando as regiões das metrópoles antes não Na sequência da ativação da produção consideradas pela atuação do mercado formal. imobiliária para setores anteriormente não Paradigmáticos nesse processo são os atendidos pelo mercado, evidencia-se uma empreendimentos da empresa Bairro Novo. forte aliança “entre movimentos de luta pela Originada de uma parceria celebrada em 2007 moradia e setores empresariais representados entre uma grande incorporadora nacional no Conselho Nacional das Cidades” (Santo (Gafisa) e uma empreiteira de atuação inter- Amore, 2015, p. 16). Essa aliança é oficializa- nacional (Odebrecht), essa empresa passa a da com o lançamento da Campanha Nacional ser responsável pelo lançamento de grandes pela Moradia Digna – uma prioridade social,6 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 Book 35.indb 225 se consolidam como as principais beneficiadas 225 06/03/2016 17:30:35 Maria Beatriz Cruz Rufino “cuja meta era a aprovação de uma Proposta produção, reforçando a expansão da produ- de Emenda Constitucional (PEC) que vinculas- ção do segmento econômico dos grandes gru- se 2% dos recursos orçamentários da União e pos imobiliários. 1% dos estados, Distrito Federal e municípios Com o objetivo de criar condições de aos seus respectivos Fundos de Habitação de ampliação do mercado habitacional para Interesse Social, lastreando permanentemente atendimento das famílias com renda de até a política nacional de produção habitacional” 10 SM, o Programa MCMV estabeleceu um (Santo Amore, 2015). conjunto de subsídios proporcionais à renda No contexto de lançamentos grandiosos das famílias. Além dos subsídios, o Programa e de avanço de articulação de setores e grupos garantiu o aumento do volume de crédito para antes vistos como rivais, a crise internacional aquisição e produção de moradias, a redução de 2008 colocou em ameaça a liquidez dos de juros, e segurança ao negócio imobiliário a grandes empreendimentos em construção, im- partir da criação do Fundo Garantidor da Habi- pondo ainda sérias dificuldades financeiras às tação – que aporta recursos para pagamento grandes empresas que naquele momento deti- das prestações em caso de inadimplência por nham grande soma de investimentos imobiliza- desemprego e outras eventualidades (Cardoso dos em bancos de terra. et al., 2011). Nesse momento, a retórica da importân- Segundo dados do Ministério das Cida- cia da atividade da construção imobiliária foi des, nos últimos quatro anos foram investidos reforçada, seja pelo seu papel na provisão de mais 190 bilhões de reais, considerando os novas habitações contribuindo na solução do subsídios diretos e linhas de crédito disponibi- ‘déficit habitacional’, seja como motor de rea- lizadas. Esses recursos foram responsáveis pela tivação da economia nacional, legitimando a contratação 2.980.177 unidades imobiliárias condução de massivos esforços para ampliação em todo o Brasil. O Programa está atualmente dos financiamentos e subsídios ao setor. Esses dividido em três faixas de renda (1, 2, 3). Na esforços ganharam status de Programa habi- faixa 1, que abrange as famílias com renda tacional e de política anticíclica, com o lança- até 1.600 reais, os subsídios podem chegar até mento do Programa Minha Casa Minha Vida 96%, dependendo da renda da família. Nesta (MCMV) em março de 2009 e a promessa de faixa o crédito disponibilizado para as famílias produção de um milhão de casas. Em junho de deve ser pago em 10 anos. Na faixa de 2, os 2011, foi lançada a segunda etapa do Progra- subsídios podem chegar até 25.000 reais e o ma, considerando agora a construção de mais crédito disponibilizado deve ser pago em 30 dois milhões de habitações. anos. Na faixa 3, não existe subsídios diretos, O socorro questionável prestado pelo mas cumpre lembrar que os juros do crédito Governo Federal, por meio do lançamento do disponibilizado são bastante inferiores aos do Programa MCMV, garantiu a solvência do es- mercado, e conta-se ainda com isenção de ta- toque construído, reforçou a valorização das xas e impostos. ações das grandes empresas do setor e deu No desenho do Programa MCMV, as fôlego para a retomada do crescimento da grandes empresas participaram de maneira 226 Book 35.indb 226 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 06/03/2016 17:30:36 Transformação da periferia e novas formas de desigualdades... decisiva, tornando-se protagonistas em sua Como os preços finais estão pré-deter- implementação. A importância dessas gran- minados pelos tetos estabelecidos para as des empresas pode ser também mensurada diferentes faixas, a maximização dos ganhos pela grande concentração da produção por um do setor privado continua a ser garantida pe- número pequeno de grandes empresas. Uma la redução do custo de construção e do preço análise de uma amostra específica dos empre- da terra. A necessidade de redução de custos endimentos contratados até agosto de 2012, de construção reforçou os esforços em curso revelou que apenas dez empresas participaram no sentido de padronização, industrialização e da produção de cerca de 44% das unidades ampliação da escala dos empreendimentos. produzidas. Dessas dez empresas, seis tinham capital aberto na bolsa de valores. definido como limite máximo para cada em- No Programa cabe ao mercado a pro- preendimento a construção de 500 unidades moção dos empreendimentos imobiliários, habitacionais ou condomínios segmentados em elaborados de acordo com as exigências até 250 habitações, o que se verificou foi a con- técnicas mínimas estabelecidas pela Caixa solidação de grandes blocos, acomodando mais Econômica Federal (CEF), responsável pela de mil unidades (Cardoso et al., 2011). A partir gestão e operacionalização do PMCMV. O de 2011, o Programa passa a permitir empreen- papel dos estados e municípios, nesse mo- dimentos de até 1.500 unidades, e em 2012, delo, passou a ser o de organizar a demanda esse máximo é elevado para 5.000 unidades. para a faixa de menor renda (faixa 1) e criar Embora tenham sido constantes alguns esfor- condições complementares para facilitar a ços no sentido de assegurar condições mínimas produção em todas as faixas, através da de- de qualidade dos empreendimentos, a partir da soneração tributária e da flexibilização da le- edição das sucessivas normativas do Programa, gislação urbanística e edilícia dos municípios o que parece prevalecer são as estratégias de (Cardoso et al., 2011). Para as demais faixas, ampliação dos ganhos por parte das empresas. os imóveis são disponibilizados no mercado Quando se analisa a localização da produ- para compradores que se adequem ao perfil ção dos empreendimentos Minha Casa Minha do Programa. Vida nas regiões metropolitanas, verifica-se Mesmo prevalecendo o discurso da fina- a predominância da localização dos empre- lidade social do Programa, a distribuição dos endimentos fora dos municípios-polo, mos- recursos entre as diferentes faixas de renda trando desarticulação do ProgramaPrograma tendeu a privilegiar os produtos direcionados com a concentração dos déficits e políticas a faixas de maior renda nas quais a atuação habitacionais locais. Embora no Brasil pratica- das grandes empresas nacionais de incorpo- mente não exista planejamento na esfera me- ração era mais dominante. Embora o déficit tropolitana, o Programa legitimou a metropoli- para as faixas 2 e 3 juntas correspondesse a zação do déficit, permitindo que os empreendi- 7 23,5% do total do déficit em 2007, 55% das mentos fossem implementados nos municípios unidades contratadas até abril de 2013 foram mais distantes do núcleo, assegurando maiores destinadas para as famílias nessas faixas. ganhos ao setor privado. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 Book 35.indb 227 Apesar de inicialmente o PMCMV ter 227 06/03/2016 17:30:36 Maria Beatriz Cruz Rufino Até agosto de 2011, 8 das cerca de existentes tem, entretanto, caráter seletivo, 440.000 unidades contratadas pelo Programa associando basicamente dois aspectos princi- nas Regiões Metropolitanas, cerca de 57% pais: menor custo da terra e disponibilidade estavam localizadas nos municípios da perife- de alguma infraestrutura de mobilidade. Tal ria metropolitana. Para os empreendimentos seletividade tende a reforçar uma metropoli- da faixa 1, essa tendência é ainda mais forte. zação linear, ao longo dos eixos e infraestru- Nessa faixa, cerca de 65% dos empreendi- turas de mobilidade existentes, tornando mais mentos construídos pelo Programa estão lo- custosa a implementação de infraestruturas e calizados nos municípios mais periféricos das ampliando a distância dos moradores aos lo- Regiões Metropolitanas. Nesses municípios cais de emprego. o recebimento de grandes empreendimentos Com a produção simultânea de empreen- habitacionais é visto como alternativa de di- dimentos para as diferentes faixas, a faixa 1 é namização econômica, substituindo o papel direcionada para as piores localizações na me- outrora desempenhado pela indústria, e fonte trópole. Como o Programa não previu, em sua de imensos ganhos políticos ao possibilitar um primeira etapa, a construção de equipamentos grande número de unidades de HIS, anterior- públicos, essas áreas, mesmo produzidas a par- mente inviabilizadas pela dependência de re- tir de relações capitalistas avançadas, surgem cursos municipais. Nesse sentido, se justificam com carências de equipamentos públicos e per- amplas isenções fiscais, recomendadas nas manecem sem acesso a comércios e serviços, normativas do Programa, e flexibilização dos os quais muitas vezes passam a ser oferecidos instrumentos urbanísticos. por meios informais. Estudos mais recentes, que apresentam Embora existam particularidades regio- com precisão a localização geográfica desses nais, um dos resultados claros do Programa é empreendimentos em regiões metropolitanas o esgarçamento das periferias, consolidando o específicas, como Rio de Janeiro, Fortaleza e alargamento e a metropolização da produção Belém (Cardoso et al., 2011; Pequeno, 2013; imobiliária, disseminando a valorização imobi- Lima et al., 2013), mostram ainda que o fato liária em áreas que até então não haviam sido de parte desses empreendimentos estar loca- objeto de investimentos imobiliários. lizada no município-polo não assegura con- O horizonte desse processo parece ser dições de localização satisfatórias. Nesses a extensão de uma urbanização segregada municípios, prevalece a localização em áreas e privada (Lencioni, 2003) às periferias, mul- precárias e periféricas, onde já se localizavam tiplicando sociabilidades restritas a grandes grandes loteamentos populares, conjuntos condomínios que oferecem como áreas coleti- habitacionais e favelas. Assim, os empreendi- vas espaços precários e pouco apropriados por mentos do Programa, além de abrirem frentes seus moradores. pioneiras de urbanização, têm contribuído pa- Até janeiro de 2014, o Programa Minha ra o adensamento de áreas periféricas, apro- Casa Minha Vida já havia contratado mais de priando-se de grandes lotes remanescentes. 3,2 milhões de moradias, tendo sido entregue A apropriação de novas áreas e dos tecidos 1,51 milhão de unidades. 228 Book 35.indb 228 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 06/03/2016 17:30:36 Transformação da periferia e novas formas de desigualdades... Novas periferias ou novas formas de produção de desigualdades? ambientais. “Áreas de inundação, sujeitas a deslizamentos, localizadas próximas a aterros de lixo e junto a depósitos de resíduos tóxicos caracterizam, muitas vezes, as mais precárias condições residenciais da periferia metropolita- A partir dos anos 1990, um conjunto de novos na, onde diversas situações de desigualdades e estudos passa a revelar o sensível avanço de risco se sobrepõem” (Torres e Oliveira, 2001). investimentos do Estado nas periferias, princi- Esses processos revelam a imposição de cres- palmente nas áreas de saneamento e educa- centes dificuldades de acesso à moradia pe- ção, além dos investimentos pontuais em pa- los mais pobres, reforçando a importância da vimentação das ruas locais (Marques e Bichir, propriedade privada da terra mesmo em áreas 2001). Muitos dos avanços alcançados podem mais periféricas. ser vistos como resultado da crescente organi- O reconhecimento de novas estratégias zação dos movimentos sociais, que emergem de reprodução do capital, manifestada pelo do contexto de precariedade e ausência dos avanço das relações capitalistas na produção bens de consumo coletivo, e passam a reivindi- imobiliária na periferia, indica importantes car pelo direito à cidade. transformações no processo de urbanização, Para Torres e Oliveira (2001), a presença sinalizando novas relações com o processo de desses serviços não significa que as desigual- industrialização. De fato, a produção de uma dades tenham sido eliminadas, manifestando- “nova periferia” não se articula mais a um ace- -se por outras dimensões menos óbvias, como lerado crescimento industrial, pelo contrário, a ausência ou precariedade de emprego, au- pode ser vista como um importante meio de mento dos níveis de violência e maior distância dinamização da economia em si. Para Volochko dos equipamentos de saúde, entre outros as- (2011), já a partir da década de 1980, fica mais pectos (Torres e Oliveira, 2001). Nessa mesma claro um descolamento da questão habitacio- periferia também passam a se reconhecer no- nal e da problemática industrial, dando relevo vas desigualdades, manifestadas pelas “favelas à urbanização como processo autônomo e do- de periferia” e ampliação das moradias em si- minante, não mais diretamente relacionado à tuação de risco ambiental. industrialização (Pereira, 2005). Embora o crescimento das favelas te- Se antes a indústria estava presente co- nha sido interpretado como consequência de mo um forte elemento de atração dos trabalha- um cenário de crise, configurado a partir dos dores, a nova lógica de produção imobiliária fi- anos 1980 e resultando no adensamento e nanceirizada repõe a importância industrial vi- empobrecimento de porções mais centrais, o sando uma verdadeira fabricação habitacional, que passa a se verificar a partir da década de que segue escalas e métodos crescentemente 1990 é a emergência das favelas na periferia, industrializados e se apoia na retórica de um dando origem a um fenômeno da “hiperperife- déficit habitacional como poder de barganha de ria” (Torres e Marques, 2001, apud Torres e Oli- seus interesses e estratégias (Volochko, 2011). veira, 2001), muitas vezes associadas a riscos A partir de uma ação do Estado, manifestada Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 Book 35.indb 229 229 06/03/2016 17:30:36 Maria Beatriz Cruz Rufino pela implementação do Programa MCMV, essa um empresário do setor imobiliário, “Não exis- lógica é estendida e legitimada. te terreno ruim. Tem terreno caro e terreno juri- Nesse Programa, uma ampla conver- dicamente incomprável [sic]. Qualquer terreno gência de interesses entre agentes públicos e você viabiliza um empreendimento, por mais privados, acaba por reforçar o movimento de popular que ele seja”. Impõe-se, assim, uma confluência do capital financeiro à produção grande fluidez ao valor da terra, que assume imobiliária (Fix, 2012). Essa aproximação re- sua condição potencial de ativo financeiro. sultará por vezes em arranjos em que a frágil Pelo desenho do Programa, o conflito correlação de forças entre os agentes envolvi- mais latente, da órbita que envolvia a empresa dos (grandes empresas versus prefeituras mu- de construção e os proprietários fundiários, é nicipais) favorecerá a imposição de um padrão deslocado para o âmbito do Estado, que pe- de produção imobiliária que preconiza amplia- la elevação sucessiva dos valores limites das ção crescente dos ganhos na reprodução do unidades e flexibilização das normas de uso e capital no espaço. Esse padrão se sobreporá ocupação, passa a legitimar o aumento do pre- a condições extremamente desiguais de de- ço da terra e apropriações de áreas cada vez senvolvimento urbano das cidades brasileiras, mais precárias. que, por influír no preço da terra, são determi- A ausência de equipamentos, comércios nantes na definição das estratégias da produ- e serviços e a grande distância a áreas que ção do espaço. concentram empregos são minimizadas pela Aqui cabe lembrar que esse movimen- satisfação da propriedade privada da casa, to, antes de encontrar a propriedade privada modalidade exclusiva de acesso à habitação da terra como obstáculo, a potencializa como no âmbito do Programa MCMV. Essa dissemi- condição à sobrevida do capitalismo, concreti- nação da propriedade privada, associada a sua zando as reflexões de Lefebvre sobre a centra- intensa valorização, permite ao governo fede- lidade da propriedade privada (2008, p. 160): ral contabilizar o aumento do capital residencial como um dos resultados mais positivos do Longe de constituir um obstáculo ao crescimento no quadro do capitalismo, ela foi seu ponto de apoio, e, entretanto, ela destina esta sociedade a um caos espacial sobre o qual peço que lhes reflitam... Programa,9 exaltando e legitimando a valorização imobiliária. Essa valorização imobiliária vem sustentando imensos ganhos às empresas e aos proprietários de terra. De acordo com ranking da A disseminação dessa lógica de produção consultoria Economatica, no terceiro trimestre às periferias faz com que a expansão da produ- de 2009, estavam no Brasil 12 das 20 constru- ção imobiliária capitalista aconteça em muitos toras de capital aberto mais lucrativas da Amé- casos dissociada das condições gerais de urba- rica Latina e Estados Unidos. nização, antes tidas como determinantes para Por outro lado, a capacidade de reali- viabilização de empreendimentos imobiliários. zação do valor desses imóveis para seus pro- Nessa lógica, qualquer terreno adquire poten- prietários é limitada. Primeiro, porque pelas cial para a valorização do capital. Na fala de condições estabelecidas pelo Programa, a 230 Book 35.indb 230 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 06/03/2016 17:30:36 Transformação da periferia e novas formas de desigualdades... população beneficiada com os maiores níveis absoluto de 52.960 domicílios (IBGE-PNAD de subsídios só poderá realizar a venda legal 2007-2012). A redução relativa do déficit nesse desses imóveis após dez anos. Segundo, por- período, de 9% para 8,53%, deve-se, entre- que a baixa qualidade construtiva e rápida tanto, ao contexto de intensificação da produ- obsolescência desses grandes empreendimen- ção imobiliária, com aumento significativo do tos, constatada por pesquisas e reportagens número total de domicílios. em diferentes meios de comunicação, põe em Os resultados do Programa podem ser questão a capacidade de venda desses móveis questionados principalmente quando se exami- pelos preços indicados no mercado. Esses en- na com maior cuidado a distribuição do déficit traves, entretanto, não vêm impedindo a conti- entre as diferentes classes e entre seus com- nuidade de práticas de vendas irregulares, nor- ponentes.10 Em 2008, 70,2% do déficit estava malmente feitas a preços bastante inferiores concentrado entre a população de até três SM. aos praticados no mercado. Além disso, a sele- Essa proporção avançou para 73,6% em 2012. ção dos beneficiários do Programa vem sendo Para essa faixa de renda, o aumento absoluto objeto de alguns questionamentos. do déficit foi 215.492 domicílios. Os impactos da disseminação dessa lógi- Cumpre ressaltar que o déficit brasileiro ca de produção sobre as periferias não se res- é essencialmente urbano. Em 2012, 85% do tringem aos proprietários, tende ainda a pro- déficit estava concentrado nas áreas urbanas. mover novas formas de desigualdades, à medi- Foi justamente nessas áreas que o déficit ha- da que dificulta a produção de habitação mais bitacional apresentou maior aumento absoluto, acessível e entrava o seu acesso por outros com ampliação de cerca de 224.000 domicílios. meios de produção, que permanecem a aconte- Quando se avaliam os componentes des- cer com maior precariedade. Essa contradição, se déficit urbano, é importante reconhecer que levada à periferia, tende a extinguir as condi- houve um importante avanço na resolução das ções de acesso à moradia dos mais empobreci- situações de precariedade, que representavam dos na cidade. Nesse sentido, as desigualdades cerca de 12% do déficit em 2008 e passaram a se impõem com maior força entre os mais em- representar 8% do déficit em 2012 (ver Figura pobrecidos e não beneficiados por essa lógica 3). Por outro lado, houve um importante avan- de disseminação da propriedade imobiliária. ço do déficit relacionado ao ônus excessivo Tal contradição se explicita nas limita- com aluguel, que representava 40% em 2008 ções do Programa MCMV na resolução do pro- e passou a representar cerca de 50% em 2012. blema que se propõe resolver – o déficit ha- Cumpre lembrar que a componente “ônus ex- bitacional. Quando se observa a evolução do cessivo de aluguel”, que corresponde às situa- déficit entre 2008 (ano que antecede a imple- ções em que as despesas com o aluguel são su- mentação do Programa) e 2012, constata-se periores ou igual a 30% do orçamento familiar, que esse avançou de 5.191.565 domicílios para só incluem domicílios com renda total de até 5.244.525, representando um acrescimento três salários mínimos. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 Book 35.indb 231 231 06/03/2016 17:30:36 Maria Beatriz Cruz Rufino % Déficit habitacional Figura 3 – Distribuição do Déficit habitacional por componente (urbano)% Precariedade habitacional Densidade excessiva Coabitação 2008 2009 2011 2012 Ônus excessivo em aluguel Fonte: Estatísticas Básicas do Bacen (SFH–SBPE/FGTS) organizadas pelo CBIC Dados. Esses números iluminam com clareza os aluguéis aumentado, em média, 138% (dados aspectos contraditórios do avanço das relações Fipe-Zap). Esses aumentos foram significativa- capitalistas sobre na produção do espaço. Se mente superiores à inflação, que no referido por um lado, pode-se perceber a superação de período foi de 43,2 % (IGPM). parte das situações de precariedade, caracteri- A disseminação de uma lógica estri- zadas por domicílios produzidos com materiais tamente capitalista vem contraditoriamente precários e normalmente autoconstruídos, o reforçando processos antigos, como as ocupa- avanço do déficit por ônus excessivo de aluguel ções. As mobilizações de junho de 2013, que é muito mais expressivo. trouxeram em suas raízes reivindicações urba- Nesse sentido, a produção imobiliária da nas, fizeram disparar na cidade de São Paulo periferia não pode ser compreendida de manei- as ocupações, em resposta a essa lógica que ra isolada, inserindo-se em todo o movimento impõe o afastamento contínuo dos mais pobres de ampliação da valorização imobiliária da das cidades. metrópole, que por sua vez reforça os deslocamentos para a periferia e influencia também a valorização do estoque já construído, elevando Considerações finais os aluguéis de maneira geral. Essa dinâmica explica o significativo avanço do ônus excessi- Embora a força do termo periferia permaneça vo por aluguel. presente nas leituras da metrópole contempo- Na cidade de São Paulo, entre janeiro de rânea, o que se evidencia na atualidade é um 2008 e janeiro de 2014, os aluguéis tiveram esvaziamento da carga teórica que o constituiu um aumento médio de 96,2%. No Rio de Ja- (Tanaka, 2007). Grande parte das interpre- neiro, esse aumento foi ainda maior, tendo os tações da época partia da análise da relação 232 Book 35.indb 232 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 06/03/2016 17:30:36 Transformação da periferia e novas formas de desigualdades... entre os processos de urbanização e de in- socioespacial que ora aproxima, ora distancia dustrialização, os quais tendiam a promover as atividades urbanas e os grupos sociais. graves desequilíbrios socioespaciais. O reco- De certa maneira, há uma substituição nhecimento de dinâmicas diferenciadas, que da ideia anteriormente preponderante do es- já aparecem desde finais da década de 1980 e paço urbano como condição de reprodução do são reforçadas com o avanço de uma produção capital (industrial em geral) para a de que o ob- imobiliária nesses territórios na atualidade, jetivo é, imediatamente, a produção do espaço, impõe o desafio de uma atualização teórica, passando a ocorrer, então, uma subordinação que considere uma nova lógica de produção direta do espaço ao investimento industrial do espaço e as novas formas de produção de (imobiliário) e à reprodução do capital, como desigualdades. problematizou Lefebvre: A busca contínua de oportunidades para a valorização imobiliária, representada pela incorporação de novos espaços e pela intensificação da ocupação dos espaços existentes, define o atual processo de crescimento da metrópole e reforça o espaço como raridade. A generalização dessa nova lógica de produção do espaço encontrará nas bordas das metrópoles um espaço marcado por grande desigualdade O processo que subordina as forças produtivas ao capitalismo se reproduz aqui, visando à subordinação do espaço que entra no mercado para o investimento dos capitais, isto é, simultaneamente o lucro e a reprodução das relações de produção capitalistas. Os lucros são imensos e a lei (tendencial) de queda da taxa de lucro médio é muito eficazmente bloqueada. (Lefebvre, 1999, p. 164) que se expressa em extremos como a apropriação de espaços públicos por moradias precárias e a forte retenção especulativa da terra. terpretadas como a resultante da contradição A produção imobiliária organizada na entre capital trabalho no curso do processo metrópole por um nível de centralização do de industrialização, sua análise na atualidade capital muito mais elevado tende a tornar a revela a primazia de uma contradição urba- estrutura urbana ainda mais desigual e segre- na que se exprime na totalidade da produção gada. Parte da enorme rentabilidade obtida do espaço. O avanço de uma nova lógica de pelo setor imobiliário é alcançada a partir da produção nesses espaços tende a exacerbar a reprodução da segregação herdada e da his- reprodução do capital em detrimento das ne- tórica valorização imobiliária dessa estrutura cessidades da reprodução social. É nesse sen- desigual, que se dá pela contínua redefinição tido que toma força uma contradição urbana, da segregação e elevação do gradiente de pre- representada pela transição de uma produção ços. As diferenças entre áreas centrais, mais ca- urbana entendida como meio para a reprodu- ras, e as periféricas, mais baratas, continuarão ção das relações sociais para uma hegemonia existindo, mas serão redefinidas e multiplica- da produção imobiliária, representada pela pri- das pela fragmentação, numa hierarquização vatização do espaço e do valor. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 Book 35.indb 233 Se, originalmente, as periferias eram in- 233 06/03/2016 17:30:36 Maria Beatriz Cruz Rufino Maria Beatriz Cruz Rufino Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. São Paulo/SP, Brasil. [email protected] Notas (1) De acordo com dados do Censo/IBGE, 1970. (2) O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço foi criado pela Lei n. 5107/66, como um fundo indenizatório que garantisse uma reserva de recursos para a manutenção do trabalhador durante os períodos de desemprego, que, já se previa, se tornariam mais frequentes com a flexibilização das relações de trabalho decorrentes das mudanças na Consolidação das Leis do Trabalho. O fundo foi formado com a poupança compulsória de 8% dos salários mensais recolhidos pelo empregador sobre as folhas de pagamento, acumulando um montante que foi usado pelo Estado para financiar investimentos nos setores sociais como Habitação e Saneamento, mas também na infraestrutura (Castro, 1999, p. 74). (3) Em 2003, após a criação do Ministério das Cidades, esse passou a ser o responsável pela gestão da aplicação dos recursos do Fundo, tendo, entre outras atribuições, “a de estabelecer metas a serem alcançadas nos Programas de habitação popular, saneamento básico e infraestrutura urbana” (Royer, 2009, p. 87). (4) Com destaque para a Resolução nº 460 do CCFGTS, de 14 de dezembro de 2004, que “garan u 60% dos recursos de aplicação do FGTS para a área de habitação popular, de acordo com a lei 8.036/90, 30% para saneamento básico, 5% para infraestrutura urbana e 5% para operações especiais (percentual progressivamente reduzido até sua ex nção a par r de 2008)” (Royer, 2010, p.87). A resolução 460 também foi responsável pela cons tuição de um novo modelo de subsídios “permi ndo que os recursos do Fundo alcançassem efe vamente a população de mais baixa renda, até um salário mínimo” (Royer, 2009, p. 88). Essa resolução permi u ainda a ampliação das aplicações globais dos recursos, que a ngiram o montante de R$4.447.337 mil, em 2005 (Relatório de Gestão do FGTS do ano de 2006, apud Royer, 2009, p. 88). (5) Reportagem “O assédio das grandes” na revista Construção Mercado n. 79, de fevereiro de 2008. (6) Ver histórico da Campanha na página da internet, disponível em: h p://www.moradiadigna.org. br/moradiadigna/v1/index2.asp?p=11. Acesso em: maio 2015. (7) De acordo com dados do IBGE/PNAD 2007. (8) De acordo com dados do Ministério das Cidades. (9) De acordo com o Sumário Execu vo da Pesquisa “Casa Própria: Capital Residencial e Qualidade de Vida”. Desenvolvida pelo Ipea, 2013. (10) Habitações precárias, coabitação familiar, ônus excessivo com aluguel e adensamento excessivo em domicílios locados. 234 Book 35.indb 234 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 06/03/2016 17:30:36 Transformação da periferia e novas formas de desigualdades... Referências BOLAFFI, G. (1979). “Habitação e urbanismo: o problema e o falso problema”. In: MARICATO, E. A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil Industrial. São Paulo, Alfa-omega. BONDUKI, N. (2004). Origens da habitação social no Brasil Arquitetura Moderna, Lei do inquilinato e Difusão da Casa Própria. 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Texto recebido em 25/maio/2015 Texto aprovado em 4/out/2015 236 Book 35.indb 236 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016 06/03/2016 17:30:36 Entre as estatísticas e a cidade: o cadastramento e a produção da demanda social por apartamentos, no Programa Minha Casa Minha Vida Between statistics and the city: enrolment and production of social demand for apartments in the Minha Casa Minha Vida housing program Marcella Carvalho de Araújo Silva Resumo Este trabalho investiga as controvérsias geradas pelo anúncio da remoção dos moradores de uma favela condenada por área de risco para um condomínio popular do Minha Casa Minha Vida. Com o intuito de compreender a contradição entre a produção de moradias e o recente aumento no déficit habitacional, este artigo foca no momento crucial da identificação do problema social no mundo, em que a abstração técnica do “risco” depende de classificações de situações concretas: o cadastramento social. Analisando os desacordos entre moradores que pretendem permanecer na favela e aqueles que pleiteiam a mudança, proponho uma reflexão sobre as dinâmicas do que estou chamando de um mercado imobiliário liminar, uma configuração espaço-temporal específica, entre a favela e o condomínio popular. Abstract This paper analyses the controversies brought out by the announcement of the removal of dwellers of a slum located in a natural disaster risk area to a “popular condominium” of the Minha Casa Minha Vida Program in Rio de Janeiro. It aims primarily to understand the contradiction between the expansion of housing supply and the recent increase in the housing deficit. Thus, the core analysis focuses on the identification of the social problem in the world, in which the technical abstraction of “risk” depends on classifications of concrete situations: the so-called social enrolment. Investigating the disagreements unfolded between dwellers aiming to keep living in the slum and those willing to move to the apartments, this paper proposes a reflection on the dynamics of what I have coined liminal real estate market, a specific space-time configuration between the slum and the popular condominium. Palavras-chave: remoção; Minha Casa Minha Vida; cadastro social; mercados imobiliários informais; mercados imobiliários liminares. Keywords: removal process; Minha Casa Minha Vida; social enrolment; informal real estate markets; liminal real estate markets. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3511 Book 35.indb 237 06/03/2016 17:30:36 Marcella Carvalho de Araújo Silva Introdução bem colocou Desrosières (2002), ela serve para O Programa Minha Casa Minha Vida (doravan- rações econômicas e justificar ações políticas. te PMCMV) foi lançado em 2009 com a maior Em diversos setores e especificamente naquele escala e volume de recursos já oferecidos em que nos interessa aqui, o conflito político passa forma de subsídio à aquisição da casa pró- pela disputa em torno das estatísticas. Elas, po- pria para setores historicamente excluídos do rém, são marcadas por paradoxo constitutivo: denunciar problemas sociais, descrever inte- mercado imobiliário formal. Com recursos do ao mesmo tempo em que o objeto dos conflitos FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Ser- são números que se pretendem confiáveis, a viço), SBPE (Sistema Brasileiro de Poupança confiabilidade é posta em questão a todo mo- e Empréstimo), FAR (Fundo de Arrendamento mento (ibid., p. 12). 1 Residencial), OGU (Orçamento Geral da União) Com o intuito de compreender a contro- e FNHIS (Fundo Nacional de Habitação de Inte- vérsia atual acerca da política habitacional – ou resse Social), em suas fases 1 (2009-2011) e 2 em outras palavras, da necessidade de se pro- (2011-2013), o Programa ofereceu subsídios a duzir casas, como e para quem construí-las – três faixas de renda familiar: subsídios integrais devemos entender o processo de objetivação a famílias acometidas por desastres naturais; de fenômenos sociais em dados estatísticos. subsídios de 95% às famílias cujos rendimen- O IBGE define “família” como: “a) o conjun- tos variam entre 0 a R$1.600, a “faixa de inte- to de pessoas ligadas por laços de parentesco resse social”; e subsídios parciais àquelas cuja ou de dependência doméstica que morem no renda mensal fica entre R$1.600 a R$3.100 e mesmo domicílio; b) pessoa que more sozi- R$3.100,01 a R$5.000, as duas últimas consi- nha num domicílio particular; c) conjunto de, deradas “faixas de mercado”. no máximo, cinco pessoas que morem em um Contudo, a comparação entre estudos de mesmo domicílio particular, embora não es- 2008 e 2013 (mas referente aos dados do Cen- tejam ligadas por laços de parentesco ou de so 2010) da Fundação João Pinheiro sinaliza dependência doméstica” (Alves e Cavenaghi, um aumento no déficit habitacional brasileiro: 2004, p. 4). “Domicílio”, por sua vez, é defi- em 2008, o déficit era de cerca de 5,5 milhões nido pelo IBGE como “o local ou recinto es- de unidades habitacionais; em 2010, esse nú- truturalmente independente, que serve de mero subiu para cerca de 7 milhões de famílias moradia a famílias, formado por um conjunto 2 sem casa, no Brasil. Como é possível que, após de cômodos, ou por um cômodo só, com en- um ano de vigência da política habitacional trada independente, dando para logradouro mais significativa da história do país, o déficit ou terreno de uso público ou para local de uso 3 habitacional tenha aumentado? comum a mais de um domicílio” (ibid.). Para a compreensão dessa aparente Ressalva seja feita que o censo domiciliar contradição, em primeiro lugar, devemos pro- de 2010 mudou a relação entre família e do- blematizar a produção desses números. A esta- micílio, em comparação ao censo de 2000. Se- tística é uma linguagem consolidada e ampla- gundo recomendações da ONU de 2007, exis- mente compartilhada no campo político. Como tem dois enquadramentos possíveis da relação 238 Book 35.indb 238 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 06/03/2016 17:30:36 Entre as estatísticas e a cidade família e domicílio: o de house-keeping, que entre famílias e domicílios à identificação dos privilegia a relação entre a renda e a moradia, segmentos da população sobre os quais o e o de house-dwelling, que enfoca a unidade problema incide. Segundo os estudos da Fun- doméstica construída (Motta, 2014). Cada uma dação João Pinheiro, 70% do déficit quanti- dessas perspectivas implica contabilizações tativo incidem sobre a população cujos rendi- distintas do problema do déficit habitacional e, mentos variam entre 0 e 3 salários mínimos, consequentemente, a proposição de diferentes o equivalente à faixa 1 do PMCMV. Localizar políticas habitacionais. Uma casa que abrigue, essa população se torna um desafio central ao por exemplo, pai e mãe, um filho solteiro e um programa. Na metodologia do Minha Casa Mi- filho casado, cujo cônjuge viva sob o mesmo nha Vida, cabe aos municípios desenvolverem teto, seria considerada um problema de “coa- Planos Locais de Habitação de Interesse Social, bitação”, no primeiro caso. Desse ponto de que diagnostiquem de modo mais esmiuçado vista, qualquer domicílio que abrigue mais de o déficit habitacional local e a relação entre as uma família que divida os custos da moradia situações de moradia e as rendas das famílias. é contabilizado no cálculo do déficit e torna- A localização espacial das famílias de baixa -se, portanto, alvo da política habitacional de renda é então mediada por dois importan- produção de novas unidades habitacionais. tes instrumentos de imaginação urbanística, No segundo caso, a categoria “domicílio” pre- empregados para identificar no espaço as si- pondera sobre a de “família”: o que importa tuações de precariedade: as “áreas de risco”, é o espaço construído, independentemente de conforme definição do Mapeamento de Riscos quem more lá. Esse mesmo caso hipotético se- em Encostas e Margens de Rios, do Ministério ria contabilizado de forma diferente, não como das Cidades (2007), e os “aglomerados sub- duas famílias em situação precária, mas apenas normais”,4 definidos pelo IBGE. uma. Em termos de política habitacional, esse Entre a representação do problema social cálculo pode desconsiderar a coabitação e criar e a projeção de ações de enfrentamento, há, um problema de superlotação de apartamen- portanto, que se compreender as mediações tos em conjuntos habitacionais e condomínios feitas entre o espaço social e o espaço urba- populares. O cálculo do déficit habitacional que no. Essa mediação é feita pelo cadastro social. embasa o programa Minha Casa Minha Vida se Esse é um momento crucial do programa, pois pauta pelo segundo critério, de relação entre é o cadastramento das famílias que cria a “de- famílias e domicílios, mas a administração do manda social”, aquela referente à população programa se dá pela classificação da relação de baixa renda, sobre a qual incide o déficit entre famílias e renda em diferentes “faixas”. habitacional. Esse procedimento é muito mais Essa aparente dissonância pode ser me- complexo do que se supõe. É preciso com- lhor compreendida se levarmos em considera- preender que entre a multiplicidade de casos ção que o segundo desafio da atual política singulares e a generalidade das categorias habitacional (e de qualquer política habita- estatísticas existe um esforço classificatório, cional, necessariamente territorializada) é re- que enfrenta momentos de dúvida e controvér- lacionar a estatística obtida pelas correlações sias. Quem classifica? Quais são os critérios da Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 Book 35.indb 239 239 06/03/2016 17:30:36 Marcella Carvalho de Araújo Silva classificação? Aquele que é classificado pode (BID) e o Programa das Nações Unidas para o questionar a classificação que lhe é atribuída? Desenvolvimento (PNUD), por meio do Progra- Essas são todas perguntas relevantes à com- ma Habitar/Brasil/BID. As prefeituras, responsá- preensão de como as operações classificatórias veis pela implantação do programa, se veem, antecedem e criam as condições de possibilida- então, diante da dificuldade de equacionar de para as intervenções práticas. todos esses critérios e classificar situações in- O cadastramento, para a faixa de interes- definidas, que variam desde famílias com ren- se social, no programa Minha Casa Minha Vida das superiores ao teto de R$1.600 vivendo em consiste na elaboração de um “dossiê”, junto “áreas de risco” a famílias com renda muito às secretarias municipais de habitação. Os/As baixa que não cumprem os critérios de priori- chefes das famílias pleiteantes devem apresen- dade do programa. tar RG, CPF, certidão de casamento (quanto for Com o intuito de compreender como se o caso), comprovante de residência (emitido dá o processo de classificação do mundo den- pela associação de moradores, na ausência de tro das categorias da administração, este artigo logradouro) e declaração de renda (sem a ne- pretende, a partir de uma etnografia prelimi- cessidade de comprovação com contracheque, nar,6 refletir sobre as negociações e os conflitos já que há muitos casos de trabalhos informais). desencadeados ao longo do processo de cadas- Há dois tipos de cadastramento possí- tramento de uma favela localizada em área de veis para a chamada “população de baixa ren- risco.7 Trata-se de uma pequena favela da Zona da”: o “espontâneo”, em que os próprios indi- Norte da cidade do Rio de Janeiro,8 construída víduos pleiteiam o subsídio da compra de um na beira de um rio, que nunca recebeu qualquer apartamento; e o “social”, em que as prefeitu- intervenção pública de urbanização. Ainda que ras devem fazer o mapeamento das “áreas de haja postes da Light, o calçamento é todo fruto risco”, elaborar um PLHIS – Plano Local de Ha- de mutirões. Essa favela está dividida em duas bitação de Interesse Social, cadastrar in loco partes: uma mais larga e mais antiga, onde co- as casas a serem reassentadas e apresentar a meçou a ocupação do terreno nos anos 1960; resultante “demanda social” às empreiteiras, e outra mais recente e estreita, cujas casas são para que aí então sejam construídas as novas as próprias paredes de contenção da água do unidades habitacionais. 5 O procedimento de classificação que dá acesso ao subsídio dos apartamentos é fei- rio. Em período de chuvas, não raro acontecem enchentes, que invadem casas e destroem os pertences das famílias. to pela equipe de trabalho técnico social das prefeituras e leva em consideração: a renda mensal das famílias; os critérios de prioridade Casas marcadas para remoção determinados por cada município; e os cálculos dos déficits habitacionais quantitativos e quali- As ameaças de remoção fazem parte da histó- tativos, desenvolvidos em parceria da Fundação ria dessa favela. Em um esforço de recuperar João Pinheiro com o Ministério das Cidades, o a memória de sua ocupação, em 2010, quando Banco Interamericano de Desenvolvimento ela foi mais uma vez ameaçada de remoção, 240 Book 35.indb 240 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 06/03/2016 17:30:36 Entre as estatísticas e a cidade coletei inúmeros relatos sobre as estratégias afastado do centro, também na Zona Norte. empregadas ao longo dos anos pelos morado- Segundo Dona Catarina, a associação de mo- res para resistência: barricadas de mulheres e radores foi decisiva nesse processo de conven- crianças, enfrentamento da polícia e dos tra- cimento dos moradores de que era melhor não tores, negociações com parlamentares. Nesse resistir e aceitar “trocar a casa”. “Uma expul- mesmo ano de 2010, após intenso rebuliço e são”, disse ela. Foi a associação que interme- abaixo-assinado de moradores do “asfalto” do diou as negociações entre as agentes comuni- bairro, a remoção deixou de ser um assunto. tárias da SMH e os moradores individualmente, Em 2012, ela reapareceu. Dessa vez, com força, “sem reunião, sem discussão com a comuni- por meio de boatos e “casas marcadas”. “Um dade”. Segundo uma das fortes fofocas10 que terrorismo”, segundo Dona Catarina, uma das circulam, ao presidente e ao vice foram dadas primeiras ocupantes da favela. opções de indenização em dinheiro por suas Exatamente por ter feito inúmeras en- casas e as de alguns familiares, opção negada trevistas de história de vida com moradores aos demais moradores, que só poderiam “tro- da favela, fui chamada em 2013 a participar car a casa” por um apartamento. da resistência à remoção que, desde o ano an- A atuação da SMH se deu tanto por terior, vinha finalmente se concretizando. Em meio da marcação de casas com as inscrições outubro, Dona Catarina pediu que eu lhe en- “SMH-número”, como pela presença de agen- tregasse nova cópia do CD com a gravação de tes comunitárias, dotadas de mapas, topogra- suas memórias. Foi graças a esse recurso que fias e censos. Elas explicavam aos moradores fui apresentada à defensora pública, que já en- o problema que as acometia e buscavam con- tão se juntava à luta pela permanência da fave- vencê-los de que os apartamentos do “condo- la. Eu entro nessa história, portanto, como um mínio popular” representavam “ascensão de instrumento de compilação da memória local, vida” – “quem não quer morar em um apar- importante recurso de luta política. As minhas tamento, com a mesma infraestrutura de qual- 9 gravações são uma das tantas provas que os quer condomínio da Barra da Tijuca, guaritas, moradores vão mobilizar para questionar a seguranças privados, portões, áreas de lazer e justeza da medida de remoção: aquelas horas até ‘espaço gourmet’?”. Elas ainda mediavam gravadas recontam o imenso investimento de a organização de visitas agendadas e guiadas tempo, afeto e dinheiro dos moradores da fave- pela prefeitura ao condomínio popular. la, para garantir um teto para si. Não era justo que a prefeitura os quisesse tirar. Em 2012, a ameaça da chegada dos tra- que se autocumpria. As casas marcadas para tores atemorizou alguns moradores, que, receo- remoção viraram casas abandonadas. Alguns sos de perderem suas casas e ficarem sem lu- moradores negociaram a demolição de suas gar para morar, renderam-se à opção dada pela antigas casas diretamente com a SMH, pro- equipe de trabalho técnico-social da prefeitura duzindo ruínas em meio à favela, onde proli- de “trocá-las” por apartamentos em um con- feraram ratos, insetos e lixo. Outras casas domínio popular, construído em bairro mais foram abandonadas e ocupa das por novos Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 Book 35.indb 241 A mudança das primeiras 120 famílias fez da remoção dali em diante uma profecia 241 06/03/2016 17:30:36 Marcella Carvalho de Araújo Silva moradores, gente desconhecida que gerou “comunidade” ou a autoproclamação como desconfiança entre os “antigos”. “condomínio”, na tentativa de, mudando de Em meio a esse processo, os moradores nome, acabar com o problema.12 Mas de todas que queriam permanecer na favela buscaram as estratégias, a mais importante foi a media- se mobilizar. Sr. Alberto, que se formou uma ção da Defensoria Pública. liderança ao longo do processo de resistência, É importante destacar que a oposição entrou em contato com a Pastoral de Favelas, entre moradores que querem permanecer e que sugeriu a formação de uma comissão de moradores que pretendem se mudar para o moradores imediatamente. Por meio da Pasto- condomínio não nasceu imediatamente. Du- ral, eles contataram o Núcleo de Terra e Habi- rante alguns meses, os próprios moradores tação da Defensoria Pública. A essa “luta”, que queriam ficar me levavam para conversar agregou-se ainda um vereador do PT, com ex- com moradores que queriam sair. A despeito pressiva votação na região. Foi por ele que a das fofocas, havia um esforço coletivo de que comissão de moradores conseguiu solicitar à cada família seguisse com sua vida como me- Comlurb a retirada do entulho das demolições lhor lhe aprouvesse. Moradores antigos com já realizadas. Progressivamente, à comissão so- casas amplas e consolidadas entendem como maram-se outros moradores, o que foi gerando perfeitamente justo que moradores de barra- discordâncias internas quanto às estratégias a cos de madeira – que ainda existem na favela – serem empregadas. Marta, funcionária do go- ganhem um apartamento. Em um de nossos verno do Estado, muito mais jovem do que Do- encontros, Sr. Alberto me conduziu por uma na Catarina e Sr. Alberto, em meio às eleições visita guiada por toda a favela e me apontou municipais de 2012, buscou o apoio de militan- as tantas “casas boas”, cujos valores não con- tes do PSOL. dizem a um apartamento, e também diversas Entre as estratégias dispersas emprega- casas precárias, cujas paredes fazem a conten- das por membros da comissão de moradores, ção do rio, estão corroídas e são extremamen- houve um primeiro empenho na construção te insalubres. A comissão não é contra os apar- 11 de uma comunidade imaginada (Anderson, tamentos em si. Como Ingrid, que também luta 2008) para a favela. Sr. Alberto desenhou uma pela permanência, me colocou em uma longa bandeira que os representasse, lançando mão conversa que tivemos em uma das lanchonetes de alguns elementos da história de ocupação. da rua do comércio da favela, a prefeitura de- Seu objetivo era, com a determinação da “so- veria “ajudar que cada um edificasse sua vida berania do povo”, materializada na bandeira, como quisesse”.13 estabelecer o domínio dos moradores sobre De modo a frear a remoção que já então aquela porção de terra. Paralelamente, a comis- se autocumpria, no final de 2013, a Defensoria são de moradores providenciou a instalação de conseguiu que fosse expedida uma liminar que uma placa, sinalizando, na rua principal mais condicionava a mudança para os apartamentos próxima, a entrada da favela, tirando-a assim à elaboração de um plano de urbanização pa- da invisibilidade. Ainda houve uma pontualíssi- ra os que ficassem. Esse seria o melhor acordo: ma discussão sobre a apresentação de si como contemplaria os casos de “risco” e de casas 242 Book 35.indb 242 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 06/03/2016 17:30:36 Entre as estatísticas e a cidade precárias, que a comissão de moradores reco- em risco – uma pilastra ou apenas um cômodo nhecia existirem; e contemplaria os moradores dentro das áreas demarcadas, implicando per- que autoconstruíram suas casas, investindo das de espaço nas casas; c) eram construções tempo, dinheiro, suor e afetos. Contudo, se se geminadas – a demolição de uma implicaria pretendia o mais justa possível, a liminar criou a desestabilização de outra; e d) opunham o um forte impasse e a polarização dos dois gru- vizinho de cima que queria sair e o vizinho de pos de moradores. baixo que queria ficar. Num primeiro momento, no início de Após essa visita técnica, o plano de de- 2014, a Defensoria solicitou a assistência téc- fesa dos moradores foi pleitear uma reorga- 14 nica de urbanistas do Ippur/UFRJ, para a va15 nização do espaço da favela: aqueles mora- lidação da classificação feita pela Geo-Rio da dores da área do rio seriam remanejados pa- intensidade dos pontos de risco e de sua loca- ra as moradias daqueles que já se mudaram lização na topografia da favela. Na visita das para os apartamentos, e a área mais antiga duas técnicas, uma legião de moradores foi se e larga da favela seria urbanizada. Assim, as agregando ao pequeno grupo de técnicos e li- casas desocupadas não seriam reocupadas deranças, ansiosa para saber se suas casas “es- de forma desordenada ou virariam ruínas, tavam em risco mesmo” e se sairiam. acirrando, de forma não desejada, o processo Os dilemas impostos pelo espaço cons- de remoção. truído da favela às duas urbanistas foram inú- Contudo, a espera pela concretização do meros. A elas cabia a tarefa de relacionar a plano de urbanização tem postergado as mu- topografia que a defensora conseguiu junto danças das 120 famílias já cadastradas no Mi- à prefeitura ao espaço vivido da favela. Para nha Casa Minha Vida. Enquanto eles não mu- os moradores, a leitura dos mapas padecia de dam, não é possível reordenar o espaço da fa- certo mistério. Mais do que uma visita técni- vela e começar as obras de urbanização. As fo- ca, foi preciso compreender os usos que eram focas e a tensão só aumentam, as expectativas dados àquelas construções e as relações entre e ambições dos dois grupos são frustradas.16 elas. O que fazer com um centro comunitário antiquíssimo, no qual funcionam alguns projetos sociais, mas que está dentro do limite As injustiças do cadastramento técnico de risco, dada a proximidade com o rio? Como conciliar a técnica e a política? Ainda que as “áreas de risco” procurem repa- Alguns pontos eram consensualmente enten- rar um problema social, elas não podem ser didos como “risco”, por urbanistas, lideranças tomadas como dadas. A “área de risco” é uma e moradores que se somavam àquela cami- categoria da ambientalização das lutas sociais nhada de reconhecimento do espaço. Outros, (Acselrad, 2010), que engloba deslizamentos contudo, eram alvos de controvérsias, pois a) de terra e pedras, e enchentes de rio. Mais do ponto de vista técnico, deveriam sair, em do que isso, ela deve ser entendida como uma virtude da baixa incidência de luz e problemas racionalização administrativa, que procurou de circulação de ar; b) estavam parcialmente criar um instrumento técnico que permitisse a Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 Book 35.indb 243 243 06/03/2016 17:30:36 Marcella Carvalho de Araújo Silva reparação da injustiça social da perda de casas a identificação das áreas de risco esbarra em por catástrofes naturais. dificuldades políticas para sua operaciona- Aqui cabe resgatar a reflexão a posteriori lização. O momento da identificação e seus de Cesar Benjamin sobre sua experiência co- critérios específicos criam inúmeras situações mo secretário de desenvolvimento social da indeterminadas, de dissonância entre a gene- prefeitura do Rio, em 1988, primeiro passo de ralidade da categoria “risco” e a singularidade uma genealogia que venho tentando desen- das situações concretas das famílias. Da aplica- volver da problemática do risco como deriva- ção da categoria da administração no mundo ção da problemática da moradia. Em final de nascem inúmeros conflitos entre os diferen- 1988, ele escreve um artigo sobre o principal tes modos de classificar situações e pessoas problema a ser enfrentado pela urbanização: (Boltanski e Thévenot, 2006). A análise da te- administrar a lógica do “sistema dominante” matização das controvérsias daí geradas como dentro da favela. O “direito à existência” das injustiças permite compreender melhor as com- favelas implicava a consolidação de uma “bur- plexidades envolvidas na política habitacional. guesia favelada” (termo tomado de emprésti- Há ao menos três injustiças no processo mo de Machado da Silva, 1967), proprietária de cadastramento social. Em primeiro lugar, de casas, cômodos e quitinetes, e a conseguin- as famílias residentes em áreas de risco não te privação do “direito à favela” daqueles que necessariamente concordam com essa classifi- viviam de aluguel. O conflito entre esses seg- cação do lugar onde moram. Muitas já enfren- mentos estratificados nas favelas seria, então, taram diversas enchentes, perdas de imóveis e o motor da contínua favelização: a alternativa pertences e se identificam com essa classifica- ao aluguel seria ou a migração para outras e ção técnica. Diversas outras, porém, resistem a novas favelas, ou a expansão das fronteiras essa classificação e alegam a dissociação entre das favelas consolidadas, com a ocupação de a categoria da administração e sua experiência áreas precárias. Como a urbanização implicava vivida. Esses moradores que não identificam a consolidação da lógica da mercantilização suas casas como sujeitas ao risco, porém, po- das casas, consequentemente, como efeito dem muito bem reconhecer a identificação de não previsto, havia a formação de uma “po- outros. O reconhecimento do problema “área pulação mais empobrecida, menos enraizada de risco” aparece muitas vezes combinado ao e mais sujeita a riscos de diversos tipos, espe- recurso de sua atribuição ao outro: o problema cialmente nas áreas de encosta” (Benjamin, existe, entendo que haja situações em que é 1988, p. 37). Ao longo de sua gestão, Benja- justo que os moradores sejam cadastrados no min procurou então compreender esse univer- programa habitacional, mas esse não é o meu so do “risco” e categorizá-lo. caso. E aqui surgem inúmeros esforços de di- Se a problematização e consequente ferenciação entre casos concretos, cujas estra- elaboração de um regime de racionalidade pa- tégias passam pela valoração (simbólica e mo- ra o risco criaram um instrumento técnico da netária) da casa, como Sr. Alberto fez em nossa mais alta valia para arquitetos e urbanistas, visita guiada. 244 Book 35.indb 244 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 06/03/2016 17:30:36 Entre as estatísticas e a cidade Uma segunda injustiça é a dissonância entre situações de moradia e renda familiar. uma injustiça inclusive por membros da comissão de moradores. Há famílias com rendimentos superiores ao Uma terceira injustiça diz respeito aos teto de R$1.600 que se autoidentificam com comércios da favela, pois eles não são indeni- a situação de risco e há também famílias com zados ou trocados por novos espaços nos con- rendimentos inferiores que não se identificam, domínios populares, estritamente residenciais. mas se encontram em situações objetivamen- Em meio à controvérsia da remoção da favela te mais precárias. No primeiro caso, é preciso cujo caso embasa este texto, os comerciantes que, na elaboração do dossiê de cadastramen- da rua de principal atividade econômica pas- to, as famílias declarem rendas inferiores aos saram a encarar dilemas familiares. Um deles seus rendimentos reais. Isso pode se dar de é bastante emblemático: a casa do pai, como forma espontânea, por meio da simples omis- tantas nas favelas, foi fracionada em um co- são, principalmente daqueles auferidos da/na mércio e em duas outras casas, assim que seus informalidade; ou de forma mais impositiva, filhos se casaram. Uma única construção, por- por meio da ameaça de interrupção dos dos- tanto, continha uma loja e três casas indepen- siês, enquanto as famílias não se enquadrarem dentes – ou três domicílios distintos, segundo como “população de baixa renda”. Em um dos os critérios do programa. Apesar de concordar casos que acompanhei, um casal, nascido e com a classificação da sua moradia em área de criado na favela, teve que construir uma barrei- risco, o pai passou a resistir à mudança para o ra de concreto na porta de casa, que impedisse apartamento, pois não seria indenizado por sua o esgoto da vala em frente de entrar na sala. loja de material de construção, sua única fonte Além disso, a casa quase não recebia luz e a de renda. Sua filha e seu filho, por outro lado, umidade estava deixando sua filha pequena queriam se mudar para seus apartamentos no- com sérios problemas respiratórios. Como esta- vos e sair da beira do rio. vam ambos convictos de que deveriam sair da favela, a esposa decidiu pedir demissão de seu emprego formal e o casal declarou apenas o salário do marido. Posteriormente, essa decisão se mostrou problemática, devido à demora na mudança para o apartamento. Eles compõem Entre a favela e o condomínio popular: os mercados imobiliários liminares a segunda leva de moradores, cujas mudanças ficaram embargadas até a apresentação de um Em sua pioneira pesquisa, de caráter plano de urbanização para a favela. Outro ca- compreensivo, sobre as remoções de favelas so crítico era de uma senhora com baixíssimos para o então recém-construído conjunto habi- rendimentos, cuja casa estava mais afastada tacional de Cidade de Deus, Valladares (1978) da beira do rio. Afastada do “risco iminente”, analisa as estratégias dos moradores de fave- ela não teria tanta prioridade na mudança para las, para resistir e para se apropriar da política o condomínio popular, o que era considerado habitacional. Sua etnografia trata as remoções Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 Book 35.indb 245 245 06/03/2016 17:30:36 Marcella Carvalho de Araújo Silva como processos políticos altamente complexos como pela invisibilização dos mercados infor- e chama a atenção para sua dimensão econô- mais da favela. mica, pouco levada em consideração. Naquele A composição e os mecanismos próprios momento, as discussões da sociologia urbana dos mercados imobiliários informais vêm sendo não levavam em conta o valor de troca da au- investigados, desde o reconhecimento, por par- 17 toconstrução. Segundo o argumento inovador te de arquitetos e urbanistas, dos efeitos de va- de Valladares, era exatamente o caráter de bem lorização que políticas de urbanização acabam de capital da moradia popular que explicava a gerando.18 A mercantilização das casas não é contradição que se enfrentava: a política habi- criada pela política habitacional nas favelas. tacional alimentava a favelização que procura- A invisibilidade e a desconsideração dos mer- va combater, pois os moradores “passavam” cados imobiliários informais, em que a auto- as casas e os apartamentos novos, para fazer construção vira bem de capital e circula como poupança, pagar dívidas ou investir em outras mercadoria, não permite compreender a ques- frentes (de moradia e trabalho). tão do patrimônio dos moradores das favelas Partindo da discussão proposta por e contribui para uma oposição reducionista en- Valladares, o primeiro passo da análise dos tre aqueles que querem deixar a favela como efeitos das políticas habitacionais atuais deve “cooptados” e aqueles que querem permane- ser o reconhecimento da existência de merca- cer como “resistentes”. dos imobiliários informais nas favelas. Segun- Os mercados informais de solo são um do moradores que pretendem sair da favela dos principais mecanismos de acesso à terra aqui estudada, alguns militantes de fora, liga- urbana de uma parte considerável da popula- dos a movimentos sociais que se juntaram à ção pobre das cidades latino-americanas, em resistência à remoção, só enxergam a urbani- geral, e brasileiras, em particular. Cerca de 22% zação como uma bandeira legítima, deixando da população do Rio de Janeiro, por exemplo, de lado uma discussão sobre condições de ha- mora em favelas ou loteamentos clandestinos bitabilidade. Uma moradora que paga aluguel (IBGE, 2010). Com a redução expressiva dos por uma quitinete na favela e aguarda a libe- processos de ocupações de terras, em virtude ração de seu apartamento questionou um mi- da diminuição da oferta de espaços ociosos, litante que fazia uma fala combativa em uma os mercados informais de comercialização e reunião, se ele trocaria o apartamento dele locação se tornaram o principal mecanismo de “no asfalto” pela quitinete onde ela está resi- acesso à moradia (Abramo, 2003). dindo na beira do rio. Para os moradores que Ao contrário do que se pensa sobre os querem sair, a situação de precariedade onde mercados informais, existem atividades regu- vivem não é politicamente reconhecida, em lares de compra, venda e locação de imóveis. virtude de uma romantização, alegam eles, so- São mercados pujantes e independentes, que bre as relações entre os moradores de favelas, sofrem os efeitos de políticas de urbanização que passa tanto por uma exaltação acrítica de e de habitação, mas que funcionam a des- supostos vínculos comunitários, com os quais peito delas. Em importante pesquisa sobre os próprios moradores não se reconhecem, o funcionamento desses mercados, Abramo 246 Book 35.indb 246 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 06/03/2016 17:30:36 Entre as estatísticas e a cidade (2009) identifica que as principais ofertas de dos anos. Alguns dos moradores que resistem moradia se dão pelo fracionamento de lotes à remoção gostariam de sair da favela. Não familiares, em favelas consolidadas, e pela querem que a prefeitura lhes dite como e pa- pontual comercialização de lotes novos, em ra onde, mas, para eles também, sair da favela loteamentos clandestinos. significa ascensão social. Ingrid, membro da Especial atenção deve ser dada à locação comissão, vinha, desde antes do anúncio da informal. Em algumas capitais brasileiras, ela remoção, requerendo um empréstimo junto à apresenta peso mais do que expressivo como Caixa Econômica Federal, para financiamento forma de acesso à moradia: em Recife, 58% do da compra de um apartamento em prédio pró- mercado informal são mantidos por aluguéis; ximo à favela. Ela seria mais um ator do merca- no Rio, esse valor chega a 29% (Abramo e Puli- do imobiliário limiar (Cavalcanti, 2010, 2014), ci, 2009). Mais significativo do que os números não fosse a instalação de uma UPP na região e em si é o diagnóstico de crescimento substan- a elevação do preço dos imóveis além do que cioso do peso dos aluguéis nos mercados infor- o seu salário e o do marido poderiam pagar. mais, entre 2002 e 2006, quando os valores no A mudança para um apartamento em um con- Rio dobraram. Em survey recente (Cavalcanti, domínio popular, em bairro mais distante, não no prelo), realizado em quatro favelas da Zo- é, contudo, o meio de realizar sua mobilidade na Oeste da cidade, exatamente na frente de social. Comparando o tamanho, a qualidade expansão imobiliária, os números de aluguéis construtiva e a localização do apartamento à sobem ainda mais: 34% da população alugam sua enorme casa de três andares e quintal mu- o imóvel onde mora. rado, o casal não vê entre eles uma vantagem Além do seu peso cada vez mais expres- de mercado, sequer uma equivalência de valor. sivo, também é preciso compreender melhor as A vizinhança, as redes de solidariedade impor- relações de locação informal em favelas. Pes- tam, mas há uma série de valorações em jogo: quisa qualitativa recente em duas favelas que foram anos trabalhando para (e, às vezes, lite- receberam intervenções do programa Fave- ralmente trabalhando na) construção daquele la Bairro indica que a locação já é a principal patrimônio. A área construída, a localização, porta de entrada de novos moradores a algu- os requintes de arquitetura e decoração e a mas favelas e que o aluguel de quitinetes, por “liberdade urbanística” de que fala Abramo exemplo, é muito mais rentável do que a venda (2003) – de construir “puxadinhos” e lajes, dos imóveis (Magalhães et al., 2013). para uso familiar, comercialização ou locação – Por fim, é preciso analisar os mecanis- valorizam-na muito além dos 60 e poucos me- mos de construção social do valor em mer- tros quadrados dos apartamentos nos blocos cados informais e os efeitos de valorização pré-fabricados dos condomínios populares do 19 de políticas urbanas. O primeiro ponto a ser Minha Casa Minha Vida, que sequer podem levado em consideração diz respeito ao valor ser comercializados por um período de dez de troca das casas e não apenas o seu valor anos. Segundo alguns daqueles que lutam pela de uso, o enorme apego que em geral as pes- permanência me disseram, se a indenização ou soas têm por aquilo que construíram ao longo o tamanho do apartamento fossem maiores, Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 Book 35.indb 247 247 06/03/2016 17:30:36 Marcella Carvalho de Araújo Silva talvez se mudassem, como alguns filhos e vi- chamando de mercados imobiliários limina- zinhos fizeram. res. Sua liminaridade diz respeito à suspensão Do mesmo modo, é possível compreender a do curso regular das dinâmicas dos mercados ação daqueles que se mudam para o aparta- informais e subsequente evidenciação das re- mento. Eles percebem na “troca” um valor gras de seu funcionamento, tal como no senti- justo. Alguns alegam a precariedade de suas do da liminaridade proposta por Turner (1974, casas, como alguns barracos de madeira e 1987). Os mercados imobiliários liminares são muitas casas cuja parede é a única contenção então concebidos como configurações espaço- do rio, pessoas que já “perderam tudo” com -temporais específicas, em que operam 1) os as enchentes e para as quais o apartamen- dispositivos da política habitacional, os múlti- to significa “melhoria de vida”. Outros veem plos critérios de classificação da “população de na futura possibilidade de mercantilização do baixa renda”, o cálculo dos déficits habitacio- apartamento uma alternativa para acumular nais quantitativos e qualitativos, os critérios de capital. Um morador que se mudou na primeira prioridade que hierarquizam os beneficiários, leva, mas que manteve o comércio na favela, em suma os instrumentos do cadastro social, já fez uma pesquisa de mercado, avaliando os que produzem a “demanda social”; 2) os me- valores dos apartamentos em outros empreen- canismos do mercado imobiliário informal, as dimentos subsidiados na mesma região do seu estratégias de multiplicação de casas, a partir condomínio. Ele nutre a esperança de “fazer da máxima divisão de edificações em unidades poupança”, nos próximos anos. Para eles, como domiciliares independentes, das ocupações de Valladares (1978) já havia destacado nos anos terrenos e/ou propriedades ociosos, das mu- 1970, a moradia é também um bem de capital danças temporárias para quitinetes e casas e não exclusivamente de consumo. alugadas, entre outras estratégias de maximi- Como podemos perceber pelo caso da zação do número de apartamentos recebidos, favela aqui analisada, assim como as próprias ao longo cadastramento de beneficiários; e 3) dinâmicas do mercado imobiliário informal se os projetos das famílias, apreendidos a partir alteram com a mudança do horizonte de possi- de suas narrativas sobre "melhorar de vida" e bilidades, criada pelo anúncio do programa Mi- da avaliação comparativa entre o valor da casa nha Casa Minha Vida, as elaborações sobre o e o valor do apartamento, com as devidas espe- que significa "melhorar de vida" passam pela culações e projeções sobre o futuro. valoração comparativa entre a casa e o aparta- Os mercados imobiliários liminares são mento, a partir do emprego de diversos e com- um objeto inspirado nos mercados imobiliá- plexos instrumentos de mensuração e também rios limiares, sugeridos por Cavalcanti (2010, da avaliação da factibilidade da realização de 2014). Segundo a autora, os mercados limia- projetos de vida. res são configurações específicas, que têm a Nesse sentido, de modo a compreen- proximidade física entre a favela e o asfalto der as dinâmicas complexas que perpassam como um fator determinante. Eles são forma- a atual política habitacional, sugiro pensar os dos pela valorização dos preços dos imóveis condomínios populares a partir do que estou no mercado informal, decorrentes de políticas 248 Book 35.indb 248 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 06/03/2016 17:30:36 Entre as estatísticas e a cidade de urbanização, de um lado, e pela desvalo- a possibilidade de mudança e, se ela se efeti- rização dos preços dos imóveis no mercado va mesmo a contragosto, consideram-na uma formal próximo a favelas, devido ao proble- “remoção”; b) aceitam um único apartamento, ma da segurança pública, de outro. A equi- considerando a “troca” justa; ou c) desenvol- valência de valores pecuniários entre casas e vem táticas que burlam a equivalência abstrata apartamentos nos mercados limiares permite entre uma casa e um apartamento, dividem su- a “saída da favela”, entendida como “melho- as casas com baias em inúmeras unidades ha- ria de vida”. A vizinhança com “favelados”, bitacionais derivadas (domicílios independen- contudo, é compreendida como um sinal da tes, para o PMCMV) e, assim, maximizam o nú- decadência de moradores de apartamentos mero de apartamentos recebidos, criando, por- do “asfalto”, cujos preços diminuem substan- tanto, eles mesmo a equivalência “justa”. São tivamente. Uma vez que os valores pecuniários essas dinâmicas que tornam a mudança para se equivalem, as fronteiras entre a favela e o um apartamento positiva ou negativa. Para asfalto devem ser constantemente negociadas. famílias que já perderam suas casas inúmeras Nesse sentido, os mercados limiares são um vezes em desabamentos e/ou enchentes e para objeto da clássica sociologia econômica, que aquelas que vivem de aluguel, o apartamento busca compreender os embasamentos sociais tende a ser visto como uma “melhoria de vi- do mercado e principalmente os valores consti- da”. Para aqueles que tinham “casas grandes” tutivos do cálculo racional. e “casas boas”, com acabamentos requintados, A proposição de mercados imobiliários liminares como um objeto pretende apreender muitos quartos e banheiros, o apartamento é uma “decadência”. as controvérsias geradas pela imposição de uma equivalência de valor entre casas e apartamentos, nos casos de remoções de áreas de risco. Nesses casos, com a impossibilidade de indenizações, as casas devem ser “trocadas” Algumas luzes dos mercados imobiliários liminares (termo nativo) pelos apartamentos. Contudo, como procurei demonstrar com o estudo de Deslocamento no espaço. Minha inserção nas caso apresentado, não há consenso acerca da lutas da comissão de moradores anteriormente justeza da medida de “troca”. Há aqueles que narradas foi pontual e sem pretensões acadê- consideram os apartamentos além do valor micas. Parte do trabalho de campo de minha das casas e outros que os consideram aquém. tese de doutorado foi realizada em Parque São Como nessas trocas, as casas não chegam a ter José, município de Duque de Caxias, Região valor pecuniário, os moradores mobilizam ou- Metropolitana do Rio, onde acompanhei sis- tros critérios para valoração da casa: os anos tematicamente o trabalho da equipe técnico- despendidos na autoconstrução, a estrutura -social da Secretaria Municipal de Planejamen- e os requintes de acabamento, a localização to, Habitação e Urbanismo, relativa à fase de na cidade. Dependendo do valor final que ocupação dos condomínios, posterior ao cadas- atribuam às casas, os moradores a) rejeitam tramento. A experiência de uma moradora de Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 Book 35.indb 249 249 06/03/2016 17:30:36 Marcella Carvalho de Araújo Silva um desses condomínios populares resume bem aqueles contemplados pelo PMCMV. Essa vizi- a complexidade da dinâmica nos mercados nha de Suzy mantém o apartamento fechado, imobiliários liminares. se beneficiando do cartão Minha Casa Melhor, Suzy pagava R$120 por uma “quitinete enquanto busca um locatário. Uma das amigas mofada” na favela Barreira do Pilar, onde vivia próximas de Suzy, por outro lado, ainda não foi com os dois filhos. Conseguia pagar o aluguel sorteada e continua pagando R$150 para viver graças ao incremento de renda do Bolsa Famí- com os cinco filhos em um terraço na Barreira lia. Desde que sua filha mais velha adoeceu, do Pilar. sua vontade de sair da favela aumentou imen- Esse relato contém alguns dos princi- samente. Segundo ela, houve muita “injustiça” pais aspectos da complexidade do Minha Casa nos sorteios precedentes, que beneficiaram Minha Vida. Em primeiro lugar, ele sinaliza as “muita gente que não precisa”. Por isso, ela diferentes narrativas relacionadas à obtenção resolveu mostrar que “precisava mais”. Acam- de um apartamento. Na fala de Suzy, apare- pou com outros moradores do Pilar em frente à cem as narrativas da espera (de sua amiga) e prefeitura de Caxias, levando a filha doente nos as narrativas da melhoria (a sua própria). Há braços. Suzy não participou de uma ocupação ainda a narrativa da frustração que, em geral, de propriedade ociosa realizada por moradores, diz respeito àqueles que “tinham casa boa” e pois considerava sua “necessidade” menor do não concebem a mudança para o apartamento que a dos “invasores” – o Bolsa Família ainda como uma “melhoria de vida”, como é o caso dava conta de arcar com suas despesas. Após de Lucas, um dos vizinhos de Suzy. Cada uma alguns dias acampada, ela conseguiu um “en- dessas narrativas dissonantes – espera, me- caminhamento institucional” direto do gabine- lhoria e frustração – dizem respeito às avalia- te do prefeito e a prioridade no cadastramento. ções retrospectivas que os indivíduos fazem do Em pouco tempo, conseguiu uma “casa digna”, montante de seu patrimônio. São os elementos onde sua filha doente pudesse morar. empregados na construção de uma ou outra Em sua conversa com a equipe de traba- narrativa, que permitem compreender de quê lho social, Suzy mostrou veementemente sua o patrimônio era constituído – quantos imóveis indignação com as “injustiças” do processo de e com quais características, levando em con- ocupação dos condomínios. Segundo ela, são sideração os critérios de formação de preços duas as principais: o sorteio de pessoas “sem próprios dos mercados informais – e como ele necessidade”, que têm “casa boa” (na favela), se encontra atualmente, com a obtenção de e os apartamentos vazios. Em alguns casos,20 um apartamento. esses problemas estão relacionados, acirrando Em segundo lugar, o relato ainda apre- as indignações. Em um dos apartamentos do senta algumas estratégias empregadas pelos seu bloco, a beneficiária “não tinha necessida- moradores, nos mercados imobiliários limi- de” de um apartamento, por ter “casa boa” na nares. O processo de produção da “demanda favela. Mesmo em se tratando de área de ris- social” passa pela classificação a que nos re- co, em virtude dos constantes tiroteios locais, ferimos anteriormente, mas também por táticas a prefeitura não demoliu as casas de todos de autoenquadramento de alguns moradores. 250 Book 35.indb 250 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 06/03/2016 17:30:36 Entre as estatísticas e a cidade Dependendo da situação de moradia do indiví- que garante a reprodução e mesmo agrava- duo, essas estratégias são variadas. Locatários mento do déficit habitacional. Como, no ca- como Suzy podem participar de ocupações de dastro social, são os donos dos imóveis que propriedades ociosas e pleitear um apartamen- ganham apartamentos em condomínios popu- to; outros se endividam e compram os imóveis lares, a política habitacional, de modo não pre- onde moram na favela, de modo a trocá-lo visto, garante acumulação também no mercado por um apartamento. Há famílias que empre- informal. Quem tem mais casas ganha mais gam uma combinação de estratégias: dividem apartamentos. Não raro, inquilinos são despe- a casa onde todos moram juntos em unidades jados, para que membros das famílias dos do- habitacionais menores ou distribuem membros nos de imóveis sejam cadastrados. Nem todos, por ocupações de propriedades, de modo a ou muito poucos, conseguem ou têm a opor- multiplicar o número de apartamentos rece- tunidade de comprar um imóvel no mercado bidos. Mais uma vez, o que está em jogo com imobiliário liminar e garantir sua troca por um essas táticas é a construção ou recuperação de apartamento. Assim, os expressivos números um patrimônio. de locatários em mercados informais não são O relato de Suzy nos permite, portanto, levantar uma hipótese acerca do mecanismo atendidos pelo programa e acabam buscando moradia em ocupações ou outras favelas. Marcella Carvalho de Araújo Silva Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Departamento de Estudos Sociais. Rio de Janeiro/RJ, Brasil. [email protected] Notas (1) Cf. Nota Pública da Rede Cidade e Moradia: h ps://raquelrolnik.wordpress.com/2014/11/10/ programa-minha-casa-minha-vida-precisa-ser-avaliado-nota-publica-da-rede-cidade-emoradia/ (2) Se ainda forem levadas em consideração as condições de habitação, ou o chamado déficit habitacional qualitativo, os números aumentam para 15,5 milhões de famílias. Segundo a Fundação João Pinheiro (2012), que faz os levantamentos de déficit habitacional no Brasil, há cinco critérios para o cálculo de déficit qualita vo: inadequação fundiária urbana, adensamento excessivo dos domicílios, cobertura inadequada, domicílios sem banheiro e carência de infraestrutura. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 Book 35.indb 251 251 06/03/2016 17:30:36 Marcella Carvalho de Araújo Silva (3) h p://www.cartacapital.com.br/poli ca/como-nao-fazer-poli ca-urbana-3066.html (4) Um aglomerado subnormal é, segundo definição desde 1987, “o conjunto cons tuído por 51 ou mais unidades habitacionais caracterizadas por ausência de tulo de propriedade e pelo menos uma das seguintes caracterís cas: irregularidade das vias de circulação e do tamanho e forma dos lotes; e/ou carência de serviços públicos essenciais (como coleta de lixo, rede de esgoto, rede de água, energia elétrica e iluminação pública)” (IBGE, 2010). (5) Ainda que precários, segundo os dados da Secretaria Municipal de Habitação do Rio de Janeiro, ob dos junto ao Observatório das Metrópoles, até julho de 2012 haviam sido contratadas 99.943 unidades habitacionais (doravante UH) para as três faixas de renda, em toda a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, das quais 56.961 localizadas no município do Rio. Para a “faixa de interesse social”, haviam sido contratadas 34.077 UH na RMRJ, das quais 27.077 distribuídas por 82 “condomínios populares” na capital. Desses 82 condomínios populares contratados, 48 estavam prontos até 2012. Segundo a classificação do Observatório das Metrópoles, 32 foram ocupados por famílias “removidas”, 12 por famílias “sorteadas” e quatro ainda aguardavam ocupação. (6) A discussão que se segue é parte da minha pesquisa de doutorado ainda em desenvolvimento. (7) Gostaria de fazer um esclarecimento preliminar sobre o objeto deste ar go. Recorrentemente, as áreas de risco são contabilizadas nas esta s cas que pretendem denunciar a “retomada das remoções” no Rio (Azevedo e Faulhaber, 2014; Faulhaber, 2012; Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, 2014). Como demonstro no meu estudo de caso, há inúmeros fatores arbitrários em jogo também nas remoções de áreas de risco. Contudo, não podemos negligenciar o fato de que a autoconstrução nem sempre garante condições de habitabilidade e que os mercados informais, muitas vezes, deixam moradores vivendo em situações precárias, problemas esses que a urbanização não é capaz de sozinha resolver. Ainda que controverso, já que no Rio ele está sendo usado como instrumento para remoções sem embasamento técnico, além de manter vários paralelos com o an go BNH (Andrade, 2011), o PMCMV deve ser analisado em toda sua complexidade. Por todo o país, inúmeras ocupações de terras e propriedades ociosas são feitas com o objetivo explícito de pressionar prefeituras por cadastramento no PAC ou PMCMV (Cavalcan , Blank e Fontes, 2012; Boulos, 2012), concebendo, pois, ambos os programas como formas de acesso à moradia. Trato neste ar go exclusivamente de um caso de área de risco, a par r do qual pretendo inves gar as complexidades da discussão sobre moradia e especialmente dos mecanismos de administração da habitação de interesse social. Fica em aberto a questão se as dinâmicas por mim analisadas e as hipóteses que levanto são aplicáveis também a casos de “remoções olímpicas”. (8) Tendo em vista garan r o anonimato dos moradores que lutam, de diferentes formas, ou para permanecer em suas atuais moradias, ou para ter acesso à moradia digna, o nome da favela e de seus residentes e sua localização são omi dos. (9) Como estratégia metodológica, enquadro as remoções como momentos crí cos, que mobilizam as capacidades crí cas dos atores de se posicionarem diante de uma controvérsia. Nesse sen do, a tematização da divergência como injustiça, a exigência de provas de justeza das medidas propostas (Boltanski e Thévenot, 2006) e a elaboração de projetos alterna vos que contemplem o “bem de todos” (Werneck, 2012) compõem o regime de jus ficação das posições adotadas. 252 Book 35.indb 252 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 06/03/2016 17:30:37 Entre as estatísticas e a cidade (10) Segundo Elias (2000), as fofocas são um importante objeto da inves gação sociológica, por tornarem evidentes os conflitos intra e intergrupos. No caso aqui analisado, as fofocas são uma forma de estabelecer as fronteiras entre a associação de moradores, endereçando a ela a tudes condenáveis, e, por contraste, construir o grupo da comissão de moradores, que estaria “de fato” interessado no “bem da comunidade”. (11) Em sua reflexão sobre Estados pós-coloniais, Benedict Anderson (2008) aponta os censos, os mapas e os museus como instrumentos fundamentais da produção e reprodução de narra vas nacionais dos novos países independentes. São eles, respec vamente, os responsáveis pela invenção de uma população, de um território, de uma história e patrimônio compar lhados, que embasam a atuação do Estado. É interessante perceber que, na luta pelo acesso à terra urbana, os membros da comissão de moradores mobilizem um recurso como o desenho de uma bandeira, a par r de elementos da história a mim narrada e materializada no CD que entreguei a essas lideranças, como instrumento de luta polí ca. O que subjaz a essa estratégia é o discurso sobre a soberania de um grupo político sobre determinada porção de terra, com base na construção de uma narra va comunitária. (12) Uma das favelas em Curicica, Zona Oeste, onde trabalhei durante o programa Morar Carioca, ameaçada de remoção parcial pelas obras da Transolímpica, também instalou uma placa na sua entrada, declarando- se “condomínio”. (13) O verbo “edificar” é par cularmente significa vo, pois apresenta uma dimensão material – de construção, edificação de casas – e uma dimensão religiosa – entre os evangélicos, a missão de edificação diz respeito a projetos de vida. (14) Ins tuto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (15) Fundação Ins tuto Geotécnica do Estado do Rio de Janeiro. (16) No primeiro semestre de 2015, os apartamentos de alguns desses moradores começaram a ser ocupados por outras famílias, no condomínio popular. Houve muita especulação de que o tráfico local es vesse autorizando as ocupações. De modo a garan r que os apartamentos que vistoriaram não fossem ocupados, alguns moradores da favela se mudaram antes de receber oficialmente as chaves. (17) Sobre isso, cf. coletânea organizada por Maricato (1982). (18) Cf. o número 10 da Coleção Habitare, in tulado Favela e mercado informal: a nova porta de entrada dos pobres nas cidades brasileiras (2009). O livro traz os primeiros resultados da pesquisa da Rede Infosolo, compilando dados sobre importantes capitais brasileiras. (19) Cf. Lacerda e Melo (2009) sobre os mecanismos de formação de preços e dinâmicas de coordenação oferta e procura em mercados informais em Recife. (20) Essa correlação não é necessária. Há muitos apartamentos vazios que aguardam a regularização da situação de sorteados ou suplentes de beneficiários. Eles geram enorme especulação nos condomínios e são uma das principais dúvidas que os moradores levam à equipe de trabalho social. Na percepção amplamente compar lhada, é “injusto” que haja apartamentos vazios tanto por opção pela não mudança por parte de moradores sorteados – que, em alguns casos, se beneficiam do cartão Minha Casa Melhor, para compra de R$5mil em móveis, e alugam os imóveis –, como por demora em sorteio, já que muitos têm parentes ou conhecidos cadastrados e em filas de espera. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 Book 35.indb 253 253 06/03/2016 17:30:37 Marcella Carvalho de Araújo Silva Referências ABRAMO, P. (2003). “A teoria econômica da favela: quatro notas sobre a localização residencial dos pobres e o mercado imobiliário informal”. In: ABRAMO, P. (org.). A cidade da informalidade: o desafio das cidades laƟno-americanas. 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Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016 06/03/2016 17:30:37 Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida: trajetórias de benefício e percepções de bem-estar social* Family arrangements of beneficiaries of the Minha Casa Minha Vida Program: benefit’s trajectories and perceptions of social welfare Vitor Matheus Oliveira de Menezes Resumo Por meio de uma abordagem qualitativa, neste artigo analisam-se as percepções de beneficiários do Residencial Jardim Cajazeiras, conjunto habitacional do Programa Minha Casa Minha Vida destinado à faixa 1 e localizado em Salvador (BA), sobre a efetividade da política pública. Buscamos problematizar, assim, as dinâmicas dos arranjos familiares dos beneficiários, introduzindo a noção de trajetória de benefício, que diz respeito à compreensão do benefício pelo Programa a partir das trajetórias de vida dos moradores do Residencial, levando em conta o benefício como uma situação social que perpassa o acesso a bens materiais e simbólicos e configurações (e reconfigurações) das distintas esferas de sociabilidade dos atores sociais. Como analisado através de entrevistas, a dimensão dos arranjos familiares na situação de benefício, e sua capacidade em prover bem-estar para os beneficiários, se apresentou como elemento fundamental da experiência de acesso à política pública. Abstract This article analyzes, through a qualitative approach, the perceptions of beneficiaries of Residencial Jardim Cajazeiras (a housing estate of the Minha Casa Minha Vida Program located in the city of Salvador, northeastern Brazil) about the effectiveness of the public policy. Thus, we problematize the dynamics of the beneficiaries’ family arrangements, introducing the notion of benefit's trajector y, which concerns the understanding of the benefit as a social situation that pervades the beneficiaries’ access to material and symbolic goods and configurations (and reconfigurations) of their different spheres of sociability. The dimension of family arrangements in the situation of benefi t, and their capacity to provide welfare to the beneficiaries, proved to be a fundamental element of the experience of access to the public policy. Palavras-chave: Programa Minha Casa Minha Vida; arranjos familiares; processos de vulnerabilidade; pobreza; bem-estar social. Keywords: Minha Casa Minha Vida Program; Family Arrangements; Processes of Vulnerability; Poverty; Social Welfare. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3512 Book 35.indb 257 06/03/2016 17:30:37 Vitor Matheus Oliveira de Menezes Introdução distantes da origem dos habitantes “pressupõe o rompimento dos vínculos sociais e daqueles estabelecidos com o território”. Seria importan- O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) te, segundo a autora, que, na impossibilidade foi instituído através da Lei n. 11.977, em 7 de de construção de moradias próximas às habita- julho de 2009, dispondo sobre a “finalidade ções originais dos beneficiários, fossem criadas de criar mecanismos de incentivo à produção “condições para que as famílias se adaptem e aquisição de novas unidades habitacionais o mais rapidamente possível à sua nova posi- ou requalificação de imóveis urbanos e produ- ção dentro do espaço urbano, de forma a gerar ção ou reforma de habitações rurais” (Brasil, substancial redistribuição de renda real para 2009). Dessa forma, o PMCMV foi estruturado essa população” (ibid.). Embora estejamos em em subprogramas (Programa Nacional de Ha- concordância com a crítica da autora sobre a bitação Urbana, Programa Nacional de Habi- construção de habitações distantes dos bairros tação Rural, MCMV-Entidades) e dividido em de origem dos beneficiários, discordamos do estratos diferenciados de renda (0 a 3 salários elemento analítico que subjaz seu argumento. mínimos, 4 a 6 salários mínimos e 7 a 10 salá- Defendemos aqui a necessidade de estudos rios mínimos). que complexifiquem a dimensão dos vínculos Diversos problemas relativos ao Progra- sociais dos beneficiários, para além da “pres- ma foram abordados pela literatura especiali- suposição” do rompimento, levando em conta zada, assim como sistematizados por Cardoso uma compreensão científica da dinâmica social e Aragão (2013, p. 44): dos conjuntos habitacionais. Dessa forma, com- (i) a falta de articulação do programa com a política urbana; (ii) a ausência de instrumentos para enfrentar a questão fundiária; (iii) os problemas de localização dos novos empreendimentos; (iv) excessivo privilégio concedido ao setor privado; (v) grande escala dos empreendimentos; (vi) a baixa qualidade arquitetônica e construtiva dos empreendimentos; (vii) a descontinuidade do programa em relação ao SNHIS e a perda do controle social sobre a sua implementação; (viii) a desigualdade na distribuição de recursos como fruto do modelo institucional adotado. preendemos como de fundamental importância a análise dos arranjos familiares dos beneficiários, problematizando as percepções dos interlocutores sobre o bem-estar social no momento de pós-ocupação do Programa. Busca-se analisar, pois, de que forma os beneficiários vivenciam no cotidiano o acesso a recursos materiais e simbólicos, evidenciando os arranjos familiares como dimensão privilegiada de análise de tal processo social. Argumentamos aqui, em uma perspectiva sociológica, que o benefício deve ser entendido como uma situação social. Para Agier Marguti (2013, p. 250), por sua vez, nos (2011), a situação social tem duas caracte- apresenta a preocupação com a análise da rísticas fundamentais: em primeiro lugar, os dimensão dos vínculos sociais dos beneficiá- atores sociais definem a situação, existe um rios nos conjuntos habitacionais do PMCMV, sentido compartilhado. Em segundo lugar, a levando em conta que a alocação em regiões situação expressa constrangimentos globais 258 Book 35.indb 258 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 06/03/2016 17:30:37 Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida e locais aos atores. Relacionam-se, no nosso políticas públicas e das dimensões de bem- caso de estudo, significados partilhados pelos -estar. Dessa forma, o significado da noção de beneficiários sobre o acesso à política pública bem-estar social está relacionado à satisfação e possibilidades e constrangimentos gerados das necessidades básicas dos indivíduos, a pelo benefício. O acesso à moradia termina por partir do atendimento de expectativas social- servir como novo contexto da vida urbana dos mente construídas e pela participação na vi- beneficiários, pelo qual os padrões de vínculos da em sociedade, tendo em vista o acesso ao sociais produzidos na ordem próxima, ou o não consumo, a possibilidade de participação em atendimento de expectativas sobre os suportes relações associativas, a inserção estável no relacionais, estão relacionados a percepções mercado de trabalho e a cobertura de riscos de efetividade da política pública. O vínculo sociais, o que nos leva a relacionar o bem-es- social se apresenta, então, como uma relação tar à situação de vida de um indivíduo ou de interpessoal inserida em uma rede social mais um grupo social (Cepal, 2013). Para Marques, ampla, sendo definido a partir de distintas Castello e Bichir (2012), o acesso ao bem-estar esferas de sociabilidade. Para este trabalho, social pelas esferas do mercado, da família e concentraremos nossos esforços na dimensão do Estado é condicionado pelas configurações dos arranjos familiares, visto a importância da das redes sociais interpessoais, relacionadas esfera familiar como suporte cotidiano e para aos procedimentos das políticas públicas, ele- a provisão de bem-estar em contextos de po- mentos inter-relacionados no nosso objeto de breza, principalmente ao levarmos em conta a estudo. Levando em conta a dimensão sub- característica familista do regime de bem-estar jetiva do bem-estar expressa em narrativas, brasileiro (Ribeiro, 2010). apontamos a centralidade em nosso trabalho De início, defende-se neste artigo a de elementos associados aos vínculos sociais análise da política pública a partir de seus dos beneficiários, a partir do relato do acesso resultados e impactos, por meio da noção de a recursos materiais e simbólicos em dada tra- efetividade subjetiva (Figueiredo e Figueire- jetória social. do, 1986), pondo em destaque as percepções Recentemente, o Instituto de Pesquisa dos beneficiários sobre transformações em Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o suas condições de vida, inquirindo-se o aten- Ministério das Cidades, desenvolveu a “Pesqui- dimento de expectativas socialmente produ- sa de Satisfação dos Beneficiários do Progra- zidas e compartilhadas. Segundo Figueiredo ma Minha Casa Minha Vida”. O questionário e Figueiredo (1986), tal proposta busca levar proposto, trabalhado através da escala de tipo em conta os desdobramentos materiais, psi- Likert, foi dividido em cinco partes: a funciona- cológicos e culturais da noção de bem-estar lidade da unidade habitacional; o entorno da social. Partindo de uma preocupação seme- moradia; a inserção urbana; as despesas com lhante, a Comissão Econômica para América a moradia; e a percepção de bem-estar do be- Latina e o Caribe – Cepal (2013) argumenta neficiário (Brasil, 2014). Entretanto, mesmo a necessidade de estudos contemporâneos demarcando uma pergunta inicial semelhante que problematizem os aspectos subjetivos das ao nosso estudo (percepções dos beneficiários Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 Book 35.indb 259 259 06/03/2016 17:30:37 Vitor Matheus Oliveira de Menezes sobre o PMCMV), entendemos que este artigo habitacional disponibilizado em 31 de outubro apresenta uma contribuição significativa para de 2011 e destinado à faixa 1 do Programa os estudos sobre o Programa. Isso porque bus- (população com renda entre 0 e 3 salários mí- ca problematizar não somente o atendimento nimos). Os dados apresentados neste artigo de expectativas em relação à política pública, fazem parte de um estudo mais amplo, no qual mas também traçar questionamentos sobre a foram entrevistados 10 beneficiários do con- dimensão relacional do espaço urbano, ao ana- junto habitacional. Para esse trabalho especifi- lisar as dinâmicas dos arranjos familiares dos camente, foram selecionadas as falas de cinco beneficiários (tais como a inclusão/exclusão/ entrevistados, levando em conta a existência reconfiguração dos beneficiários em redes fa- de um padrão unificador do compartilhamento miliares, as trajetórias ocupacionais, a dimen- da situação de benefício. Dessa forma, os en- são socioespacial dos arranjos familiares, etc.) trevistados selecionados para este artigo apre- como fundamentais para a compreensão das sentaram a importância (mesmo que por vezes percepções sobre bem-estar social (em nível não efetivada) de uma ampla rede de parentes- material e simbólico) e efetividade do PMCMV. co para o acesso ao bem-estar social. Os outros A nossa argumentação converge, pois, entrevistados, por sua vez, relataram a centra- para a perspectiva de que as percepções dos lidade da família nuclear para organização do beneficiários sobre os resultados do Programa cotidiano, estruturada com base em uma inser- relacionam-se aos processos de vulnerabilida- ção estável no mercado de trabalho. Optou-se, de experienciados no cotidiano. Dessa forma, pois, através de uma preocupação heurística, introduzimos neste trabalho a noção de traje- pela realização de etapas distintas de análise tória de benefício, que diz respeito à compreen- e divulgação científica dos achados, facilitando são do benefício pela política pública a partir a exposição e problematização dos discursos.1 das trajetórias de vida dos beneficiários, sendo Assim, são problematizadas entrevistas o benefício uma situação social que perpassa o semiestruturadas 2 em quantidades variadas acesso a bens materiais e simbólicos e configu- com cinco moradores do conjunto habitacio- rações (e reconfigurações) das distintas esferas nal. Os entrevistados foram acessados por de sociabilidade dos atores sociais. Assim, o be- meio de mediação do Movimento Sem Teto da nefício pelo Programa deve ser compreendido Bahia (MSTB), presente no Residencial atra- como uma experiência social, na qual são atri- vés de atividades e espaços de sindicância. As buídos significados a partir da vida social que entrevistas, então, foram realizadas nos domi- se desenrola no espaço urbano. cílios ou em espaços comunitários do conjunto habitacional. No que diz respeito à análise dos dados, fez-se uso da análise de conteúdo Metodologia (Bardin, 1977), iniciada através do processo de categorização, no qual foram produzidos dois Partimos de um estudo qualitativo realizado grupos de categorias: as diferentes percepções, entre 2013 e 2014 em Salvador, capital baia- positivas ou negativas, sobre o PMCMV; e a no- na, no Residencial Jardim Cajazeiras, conjunto ção de vínculo social, amplamente trabalhada 260 Book 35.indb 260 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 06/03/2016 17:30:37 Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida pela sociologia, centrando os nossos esforços entende as relações entre os indivíduos e gru- na dimensão do arranjo familiar. Após essa pos relativamente amplos (como famílias, vizi- etapa, realizamos um registro descritivo dos nhança, corporações, etc.), enquanto a ordem discursos enquadrados nas categorias. Poste- distante é “regida por grandes e poderosas riormente, a partir da inferência, foram estabe- instituições”, com destaque para o Estado lecidas algumas premissas entre os dois grupos (Lefebvre, 1991, p. 46). A ordem próxima e a de categorias, partindo de discussões já traba- ordem distante representam a produção do lhadas na sociologia sobre os processos de vul- urbano a partir de diferentes grupos, em nível nerabilidade, a percepção sobre a vida social macro e micro, definindo uma pluralidade de e a inclusão/exclusão dos atores em redes so- agências. Tal relação entre ambas as ordens ciais interpessoais. Por fim, pela interpretação, termina por demarcar a cidade como uma me- buscou-se relacionar a efetividade subjetiva da diação, contendo e mantendo a ordem próxima política pública à dimensão dos arranjos fami- e se sustentando através de uma ordem distan- liares dos atores beneficiários. Buscamos com- te, projetando-a sobre o espaço. No entanto, a preender, assim, as diferentes atribuições de ordem próxima não é pré-definida, ela também significado produzidas pelos interlocutores do toma para si o imediato temporal e espacial estudo (Minayo, 2012). através das ações cotidianas (Lefebvre, 1991). Para dar conta dessa problemática, tra- Levando em conta os processos de se- remos no próximo tópico contribuições que gregação e dispersão dos grupos sociais nas permitam a intersecção entre nossa proposta cidades, a partir do fenômeno da “integração de estudo e a dimensão de bem-estar social desintegrante”, Lefebvre (1991, p. 91) proble- (entendido não como uma aspiração individual, matiza: “diante de quem e para quem é que se mas como um produto histórico e sociopolíti- estabelece a simultaneidade, a reunião dos con- co), a partir da desigual distribuição de bens e teúdos da vida urbana?”. Partindo da perspec- serviços na cidade, a constituição de redes so- tiva de que essas possibilidades estão distribuí- ciais e o regime de bem-estar no caso brasilei- das desigualmente entre os citadinos, Lefebvre ro, argumentando a importância do estudo dos aponta que o direito à cidade seria uma exi- arranjos familiares para compreensão do fenô- gência, um “apelo” pelo direito à vida urbana meno em análise. em sua plenitude, o acesso à cidade a partir de seu valor de uso, que garantiria a virtualidade do agir aos seus habitantes. Ou seja, o acesso Espaço urbano, arranjos familiares e bem-estar social irrestrito à estrutura urbana que traria em si a virtualidade da ação dos atores na ordem próxima (Lefebvre, 1991). Assim, discutindo sobre o contexto parisiense do pós-segunda guerra, Para Lefebvre (1991), a cidade seria uma obra o autor apresenta que a habitação não havia de agentes históricos e sociais, representan- se tornado um serviço público, mas, sim, um do uma mediação entre a ordem próxima e a apêndice dos direitos do homem expressos na ordem distante. Por ordem próxima, o autor cidade pela economia de mercado. Em verdade, Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 Book 35.indb 261 261 06/03/2016 17:30:37 Vitor Matheus Oliveira de Menezes mesmo a atuação estatal na produção de moradias não teria revertido as orientações e concepções adotadas pela economia de mercado (ibid.). Com ressalvas de contextualização, podemos apontar que essa discussão está presente nos estudos atuais sobre o PMCMV. Nos conjuntos habitacionais, nos fala Lefebvre (1991, p. 19), haveria a adoção mais funcional da noção de habitat pela burocracia estatal, a esta vida urbana tenta voltar as mensagens contra elas mesmas, as ordens, as coações vindas do alto. Tenta apropriar-se do tempo e do espaço frustrando as dominações, desviando-se de seus objetivos, usando de astúcia. Ela intervém também, mais ou menos, ao nível da cidade e do modo de habitar. O urbano é assim, mais ou menos, a obra dos citadinos em lugar de se impor a eles como um sistema: como um livro já acabado. (p. 66) partir da soma de coações no cotidiano, não correspondendo à “apropriação pelos grupos e indivíduos das suas condições de existência”. Voltando a Santos (2006), vemos que a rede social deve ser compreendida como social Segundo Santos (2002), o valor do indi- e política, transpondo materialmente uma abs- víduo dependeria do lugar onde se encontra si- tração conceitual e mostrando-se no presente tuado na cidade, tendo em vista o acesso desi- como um suporte corpóreo do cotidiano na re- gual a bens e serviços essenciais. A rede urbana lação dos elementos da rede com a vida social teria significados diferenciados segundo a po- (Santos, 2006). No entanto, o autor argumen- sição financeira e espacial dos grupos sociais, ta que as redes não carregam em si somente demarcando dois extremos: de um lado, exis- a uniformidade, mas também a desigualdade tem os citadinos que dominam os recursos, po- de seu aproveitamento social, no uso diverso dendo desfrutar do trabalho alheio que, trans- que os agentes sociais desempenham através formado em mercadoria, torna-se fluxo. Da da atuação, controle e regulação. As redes de- mesma forma, o próprio habitante transforma- vem ser percebidas como ferramentas de poder -se em fluxo, deslocando-se pela cidade a partir e de disputa por diferentes intencionalidades, da ativação da rede de transporte pública ou apresentando não somente a homogeneidade privada. Em outro extremo, existem os pobres e ordem, mas também o conflito e a desordem de recursos, “prisioneiros do lugar”, inseridos (Santos, 2006). em constrangimentos à apropriação de fluxos Marques (2007), por sua vez, nos convida externos e pela incapacidade de transformar-se a pensar o estudo de redes sociais através de em fluxo através do deslocamento. Como nos sua inserção no espaço urbano, desenvolven- diz Santos (2002, p. 140), “para estes, a rede do a análise de uma ontologia relacional da urbana é uma realidade onírica, pertence ao pobreza, aferindo os efeitos de desagregação domínio do sonho insatisfeito, embora também e pertencimento das relações socioespaciais. seja uma realidade objetiva”. Entendemos, a partir de Marques (2007), a on- Prosseguindo, podemos afirmar com tologia relacional da pobreza como uma ten- Lefebvre (1991) que a cidade termina por envol- tativa de compreender a pobreza urbana para ver o habitar, constituindo-se como a forma de- além dos atributos dos atores (em análises ba- finidora do local de vida privada. Dessa forma, seadas na carência de bens e serviços), levando 262 Book 35.indb 262 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 06/03/2016 17:30:37 Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida em conta os vínculos sociais estabelecidos em designa o sistema de provisão de bem-estar determinadas esferas de sociabilidade pela po- brasileiro como “familístico-mercantil”, e a pulação pobre. característica de crescente vulnerabilidade do As redes sociais, como nos mostra Agier, espaço urbano seria, segundo ele, resultado da são definidas a partir dos critérios de coope- fragilização de tal modelo (Ribeiro, 2010). As- ração, ou seja, segundo a natureza da relação sim, segundo Campos e Teixeira (2010), o mo- social que está na base da existência da rede. delo latino de regime de bem-estar, incluindo- Dessa forma, “a hipótese é que há uma rela- -se aí o Brasil, caracteriza-se pelo elevado grau ção substancial entre o tipo de laço social, a de desempenho atribuído à família, resultado função e o conteúdo moral da rede” (Agier, da presença insuficiente do Estado na esfera do 2011, p. 80). É evidente, pois, que as diferen- bem-estar social. tes dimensões de sociabilidade dotam as redes Levando em conta o marcado familismo de características específicas, tanto na forma da provisão de bem-estar no caso brasileiro, quanto na função dos suportes relacionais. As- argumenta-se que a família se apresenta como sim, trazemos para esse trabalho a noção do elemento fundamental para gestão de recursos arranjo familiar como categoria central, o que em situações de escassez. Mas além disso, a fa- nos remete à discussão sobre o papel das famí- mília é um elemento-chave para a “proteção e lias na provisão de bem-estar e a problemati- socialização de seus componentes, transmissão zação das relações intrafamiliares. do capital cultural, do capital econômico e da Ribeiro (2010), baseado na tipologia de propriedade do grupo, bem como das relações Esping-Andersen, aponta que os ativos capa- de gênero e de solidariedade entre gerações” zes de atribuir condições materiais e sociais de (Carvalho e Almeida, 2003, p. 109). Assim co- reprodução objetiva e subjetiva aos seus por- mo Carvalho e Almeida (2003) apontam, no tadores são acessados através de três esferas contexto brasileiro e latino-americano, devi- distintas: o mercado, o Estado e a família ou do às características do mercado de trabalho comunidade. Para o autor o Brasil, situado em e desigualdade de acesso aos bens e serviços um contexto de capitalismo periférico, realizou públicos, a família e os “entornos sociais ime- um processo inacabado de mercantilização da diatos” ganham importância para o atendi- força de trabalho, de maneira análoga a uma mento de carências de bens materiais, culturais desruralização do país, criando uma massa e simbólicos. urbana marginal excluída ou incluída de for- Tais bens não são fundamentais apenas ma precária nas relações mercantis. Esse pro- para a subsistência, mas também para a cria- cesso seria fundado a partir da “combinação ção da identidade individual e grupal e para das livres forças de mercado e na mobilização a “alimentação de uma interioridade”. Assim, das estruturas familiar-comunitárias” (Ribei- para pessoas e grupos em situação de vulne- ro, 2010, p. 222). Dessa forma, para Ribeiro a rabilidade social, “é a família, sobretudo, que reprodução social esteve historicamente esta- pode transmitir-lhes, entre outros aspectos, um belecida no Brasil através da combinação mer- patrimônio de 'defesas internas'” (Carvalho e cado – família/comunidade. Por isso, o autor Almeida, 2003, p. 118). Martins (2006), por sua Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 Book 35.indb 263 263 06/03/2016 17:30:37 Vitor Matheus Oliveira de Menezes vez, argumenta que a noção de família deve força de trabalho e o papel do vínculo social ser complexificada através do uso da noção de para a compreensão da vulnerabilidade. “arranjos familiares”, expandindo a discussão Marques (2007) aponta, a partir de es- sobre as relações da família para além dos la- tudo de redes sociais no contexto de pobreza ços consanguíneos, integrando redes sociais urbana em São Paulo, a importância da habi- locais e expandindo a noção da família para tação para a estruturação dos vínculos sociais além do domicílio. Segundo Carvalho e Almei- dos pobres. Os diversos suportes relacionais da (2003), por vezes tratada como o núcleo de cunho institucional ou informal (tais como familiar residencial, a família também pode ser associações comunitárias, religiosas e relações compreendida a partir de laços consanguíneos, de vizinhança) assumiam no local de moradia consensuais e jurídicos, constituindo amplas re- a centralidade dos nós da rede social. Em con- des de parentesco. traste, as redes sociais da população de classe Sobre a noção de vulnerabilidade so- média se encontravam mais espalhadas pelo cial, central neste estudo, Castel (1995) cha- espaço urbano, estando centralizadas no con- ma atenção para a possibilidade de o concei- texto das relações de trabalho. Assim, ao es- to de exclusão tratar o fenômeno da pobreza tarmos tratando do benefício da moradia pela como um estado que se realiza em si mesmo. população pobre em Salvador, entendemos a Em contrapartida, o autor propõe a noção de importância de estabelecer a centralidade da vulnerabilidade como um processo social, em habitação para o entendimento dos suportes que estariam relacionadas diferentes zonas relacionais e o processo de vulnerabilidade de inserção dos distintos grupos na sociedade dos moradores. Apresentamos como dimensão (ibid.). A maior parte da classe trabalhado- fundamental a habitação (e as transformações ra estaria inserida, segundo Castel (1995), na decorrentes do benefício), mas destacamos, “zona de vulnerabilidade”, equilibrando-se en- dialogando com Castel (1995), impactos das tre a zona de integração e zona de exclusão. trajetórias ocupacionais nas expectativas dos A precarização do trabalho, a desestruturação suportes relacionais. dos ciclos vitais e a fragilização dos suportes Aproximando-nos das análises sobre o relacionais demarcam o processo de crescente contexto de Salvador, destacamos a argumen- vulnerabilidade e de passagem para a zona de tação de Carvalho e Pereira (2008, p. 110), na exclusão. Enquanto o extremo “ótimo” da rela- qual se apresenta que “a urbanização e o de- ção inclusão versus exclusão apresenta o forta- senvolvimento brasileiros vêm se mostrando, lecimento do vínculo social, a zona de exclusão historicamente, incapazes de assegurar melho- é marcada pela ruptura do vínculo ao trabalho res condições de trabalho e de subsistência pa- e aos suportes relacionais. Dessa forma, em ra o conjunto da população urbana”. A capital outros termos, vemos no pensamento de Cas- baiana foi marcada historicamente por uma tel (ibid.) a busca por compreender a pobreza urbanização extremamente desigual, culminan- como um processo social que objetiva a proble- do na produção de uma cidade demarcada por matização das privações dos indivíduos, espe- “cidades” distintas, tendo em vista a alocação cialmente as características específicas de sua desigual de infraestrutura e serviços (Carvalho 264 Book 35.indb 264 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 06/03/2016 17:30:37 Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida e Pereira, 2008). Acompanhando o padrão Anteriormente ao benefício pelo PMCMV, centro-periferia típico das metrópoles latino- os beneficiários entrevistados residiam em lo- -americanas, a urbanização de Salvador se deu calidades do Miolo e do Subúrbio Ferroviário, a partir do espraiamento urbano, por meio da além de ocupações urbanas como na Avenida expansão horizontal da pobreza com base na Gal Costa. Seguindo a terminologia de Car- autoconstrução de moradias, distanciando-se valho e Pereira (2008), tais localidades estão de centros irradiadores de bens e serviços. representadas em sua maioria, em nível demo- Como nos apresentam Carvalho e Pe- gráfico, pela categorização ocupacional da po- reira (ibid.), as transformações decorrentes do pulação em “popular” e “popular inferior” (a crescimento demográfico entre os anos 1940 e tipologia completa consiste em superior, média 1950 foram seguidas de um projeto de moder- superior, média, média inferior, popular e popu- nização excludente entre os anos 1960 e 1970. lar inferior). A categoria popular é entendida Tal projeto foi marcado pela construção de como “áreas onde predominam trabalhadores grandes obras que acompanharam e antecipa- manuais da indústria e comércio, assim como ram vetores do crescimento urbano, de maneira prestadores de serviços com alguma qualifi- análoga à crescente pobreza urbana manifesta cação” (Carvalho e Pereira, ibid., p. 88). Já as na ocupação de terras e autoconstrução de classificadas como popular inferior represen- moradias por famílias de baixa renda. Nos anos tam uma conjugação dos trabalhadores das 1980, um conjunto de intervenções terminaram áreas populares, como “prestadores de servi- por configurar de maneira decisiva “um novo ços não qualificados, trabalhadores domésti- padrão de produção do espaço urbano, com a cos, ambulantes e biscateiros” (ibid.). Haveria, configuração de três vetores bem diferenciados segundo os autores, uma convergência entre de expansão da cidade: a Orla Marítima norte, estrutura sócio-ocupacional e apropriação do o 'Miolo' e o Subúrbio Ferroviário” (Carvalho e espaço urbano, e tal apontamento pode ser Pereira, 2008, p. 85). O Residencial Jardim Ca- confirmado pela observação do território de jazeiras, objeto de nosso trabalho, encontra-se Salvador, onde existe clara conformação entre no segundo vetor, o Miolo da cidade de Salva- as categorias ocupacionais e a provisão de in- dor, localizado fraestrutura urbana. no centro geográfico do município, [que] começou a ser ocupado pela implantação de conjuntos residenciais para a “classe média baixa” na fase áurea da produção imobiliária através do Sistema Financeiro de Habitação, tendo a sua expansão continuada por loteamentos populares e sucessivas invasões coletivas, com uma disponibilidade de equipamentos e serviços bastante restrita. (Carvalho e Pereira, 2008, p. 86) Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 Book 35.indb 265 Tendo em vista esse panorama, destacamos que os beneficiários do Residencial Jardim Cajazeiras expressam um elemento conflituoso na trajetória do benefício pelo PMCMV. Por um lado, a nova moradia é reconhecida como elemento positivo na melhoria da qualidade de vida dos entrevistados. Todos os entrevistados apresentaram essa percepção, sem exceção. No entanto, outra percepção também foi apresentada sem exceções: a baixa qualidade, 265 06/03/2016 17:30:37 Vitor Matheus Oliveira de Menezes ou inexistência, da infraestrutura urbana na lo- provisão de bem-estar no Residencial Jardim calidade da nova moradia. Apontamos, assim, Cajazeiras, estabeleceremos como primeira que a transformação das condições de mora- aproximação dois beneficiários. Os dois bene- dia, através do benefício pela política pública, ficiários estão em situação de considerável vul- gerou uma expectativa não atendida de trans- nerabilidade financeira e apresentam opinião formações de igual intensidade nos serviços lo- semelhante quanto à melhoria das condições cais, como a proximidade de postos de saúde, de moradia pós-benefício. No entanto, apon- escolas, creches e comércio. tam opiniões completamente distintas no que Tal problemática, nota-se, é recorrente diz respeito à percepção de efetividade da polí- nos conjuntos habitacionais do PMCMV. Como tica pública. O argumento a ser utilizado é que destaca Shimbo (2010), a valorização seletiva a diferenciação da efetividade subjetiva pelos do espaço urbano realizada pelas empreiteiras dois beneficiários diz respeito às características serve como qualificação das áreas da cidade a distintas de configuração\reconfiguração dos partir do público-alvo dos empreendimentos, vínculos sociais e dos suportes relacionais dos destacando-se a manifesta periferização dos beneficiários no momento da pós-ocupação. condomínios destinados à população situada A Interlocutora 1, integrante do Movi- na faixa de 0 a 3 salários mínimos (Cardoso mento Sem Teto da Bahia (MSTB) e atualmente e Aragão, 2013). Soma-se a isso “certo des- desempregada, residia anteriormente no bairro compasso na resposta dos governos locais e de Peri Peri, onde também mantinha laços de estaduais na instalação de postos de saúde, parentesco. Há dois anos se tornou beneficiária pronto atendimento, creches e escolas próxi- do PMCMV e destaca em sua primeira fala a mos às áreas dos empreendimentos” (Brasil, percepção sobre a dificuldade de manutenção 2014, p. 83). Dessa forma, o problema apre- dos laços de parentesco após o benefício: sentado por Carvalho e Pereira (2008), sobre a contiguidade entre categorias ocupacionais e infraestrutura urbana, termina por ser reproduzido na provisão de moradias pelo PMCMV, contexto fundamental para entendermos as entrevistas trabalhadas a seguir. [os locais onde os condomínios do Programa Minha Casa Minha Vida estão] são locais longe, eles [os moradores] ficam distantes dos seus familiares, pessoas que na falta de um café, na falta de um açúcar, podiam ta trocando. Eu mesma sou exemplo disso. (Interlocutora 1) A entrevistada se situa, então, em um Arranjos familiares e trajetórias de benefício no Residencial Jardim Cajazeiras, Salvador-BA contexto de ausência de relações de intercâmbios materiais. Tal ausência é evidenciada como consequência direta do Programa, já que a distância entre o local atual de moradia e a residência dos parentes e dos antigos vizinhos não pode ser transposta. Quando questionada sobre Para iniciarmos a discussão empírica sobre a sua situação financeira atual, a entrevistada a configuração dos arranjos familiares e a optou por nos dar uma resposta performativa: 266 Book 35.indb 266 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 06/03/2016 17:30:37 Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida Vem cá pra eu te mostrar uma coisa [a entrevistada leva o entrevistador para a cozinha]. Eu estou desempregada, estou sem dinheiro. Olhe pra minha geladeira. Só tem água, né? […] Esse feijão aqui foi a colega que me deu. Não tem nada. Essa semana aqui também só tem isso […] porque o lugar que a gente mora, que a gente já tem uma ancestralidade local, onde os familiares da gente moraram e a gente continua vivendo no local, a gente tem aquela troca, né? […] Aquela troca que aqui deixa de existir, porque você não tem parente perto. (Interlocutora 1) Para a entrevistada, a sua alocação no to para além da moradia são inter-relacionadas como as duas grandes desvantagens de morar no conjunto habitacional do Programa: As desvantagens… transporte… o vínculo familiar que você não tem mais, você perde esse vínculo. Os vínculos das amizades antigas… E outra coisa, isso provoca, isso tem provocado, em mim já provocou e provoca muitas vezes até… uma opressão assim… psicológica. A gente se sente oprimido, porque a gente não pode estar perto de quem a gente gosta. (Interlocutora 1) PMCMV resultou na ruptura de vínculos fami- A centralidade das “amizades antigas” liares centrados na antiga localidade de mora- aponta que, para a entrevistada, as amizades dia. As redes sociais de proteção são percebi- estavam presentes em um momento anterior das pela interlocutora como redes de “troca”, ao seu benefício pela política de provisão passíveis de serem ativadas em situações de habitacional. A ruptura do vínculo familiar e insegurança financeira e alimentar. No entanto, das amizades mais próximas, além de impac- a sua experiência dentro do condomínio não se tar nas condições materiais da interlocutora, seguiu a uma reconfiguração de vínculos es- também apresentaram como resultado uma tabelecidos através de outros espaços sociais, “opressão psicológica”. Assim, as redes de tais como a vizinhança e o associativismo local. proteção devem ser entendidas para além Dessa forma, a sua situação de desemprego da troca material, evidenciando a dimensão não pode ser contornada através da ativação simbólica do bem-estar e a possibilidade ou de outras esferas da vida social externas ao não da percepção de pertencimento. Como mercado ou ao Estado. A impossibilidade de destacado por Carvalho e Almeida (2003), manter os laços de parentesco ativos, expres- os entornos sociais imediatos teriam impor- sos na explicação “não tem parente perto”, tância fundamental para o atendimento de evidenciam a dificuldade da entrevistada em carências dos moradores das cidades bra- se deslocar pelo espaço urbano, ampliando as sileiras. Além disso, a família teria a função relações cotidianas para além da localidade da transmissão de um patrimônio de defesas da moradia. Isso se daria, segundo ela, atra- internas, fortalecendo o acesso a bens ma- vés da precariedade do transporte público e da teriais e simbólicos (ibid.). Nessa entrevista dificuldade do pagamento da tarifa de ônibus, podemos perceber o impacto do isolamento como relatado pela fala “pego um cartão de do indivíduo pobre de suportes relacionais, a passe, boto o dedo na frente assim pra não ver, partir da intensificação da percepção de vul- e entro. Se [o cobrador] ver, manda descer”. nerabilidade da beneficiária. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 Book 35.indb 267 A dimensão do vínculo e do deslocamen- 267 06/03/2016 17:30:37 Vitor Matheus Oliveira de Menezes Assim, ao mesmo tempo em que ela relata a dificuldade em participar da vida social do conjunto habitacional, também nos diz que não consegue se deslocar de forma satisfatória no espaço urbano para além da atual moradia. Os vínculos sociais tidos como importantes, presentes na vida da entrevistada antes do benefício, terminaram por ser obstruídos. Vemos aqui o fenômeno da pobreza urbana descrito por Santos (2002), através da impossibilidade da apropriação dos fluxos urbanos, sendo esses mercadorias; e a incapacidade de transformação do citadino em fluxo, a partir do seu deslocamento pela cidade. Isso, aliado à ruptura do vínculo familiar, visto pela beneficiária como esfera central de provisão de bem-estar e segurança financeira, levaram a moradora a entender o benefício pelo Programa como elemento fragilizador em um processo mais amplo de vulnerabilidade social. No entanto, a sua participação no movimento social é vista como uma atenuante da sensação de insegurança, a partir das relações de troca dentro do movimento e o fato de os integrantes do MSTB relatados terem vindo do mesmo local de moradia da interlocutora, se mostrando como um fragmento da rede social que permaneceu ativo no conjunto habitacional. No entanto, para a entrevistada, esse fragmento não é suficiente para estabelecer a proteção social desempenhada pela família durante o período anterior ao benefício: Tinha minha prima, tinha minha outra tia Sueli. Tinha meus primos ali perto, que quando eu precisasse podia recorrer a eles. Aqui já é diferente, né? Eu não tenho mais aquela... quem de vez em quando me dá um suporte é Nêgo, é Mira, que é do movimento, que a gente veio de lá pra 268 Book 35.indb 268 cá também... entendeu? É uma dificuldade. (Interlocutora 1) Vemos, dessa forma, que o benefício através da política pública é percebido e relatado pela entrevistada com arrependimento, mesmo com as melhorias reconhecidas pela interlocutora das condições de moradia. Isso porque as expectativas e necessidades de proteção social da beneficiária não foram atendidas, devido ao rompimento de laços sociais familiares centrados no antigo domicílio. Tendo em vista a sobrecarga da proteção social no arranjo familiar, característico do sistema familista de proteção social, a ausência do vínculo familiar acarreta a percepção de insegurança financeira e vulnerabilização. De maneira contrária, destacamos uma experiência distinta vivenciada pelo Interlocutor 2. Mesmo em situação de instabilidade financeira, apresenta opinião muito diferente da Interlocutora 1. O entrevistado é antigo morador de Itacaranha (bairro de Escada), e após um incêndio, no qual perdeu sua moradia, foi alocado no PMCMV. Atualmente o interlocutor é vendedor autônomo, se utilizando da sua casa, que fica no térreo de um dos blocos do Residencial Jardim Cajazeiras, para vender pequenas mercadorias (bombons, pipoca, refrigerantes, etc.). Além de não ter aposentadoria, por problemas de cadastro não conseguiu ter acesso ao Bolsa Família, embora cumpra os critérios de elegibilidade do Programa. Essa situação se apresenta como um contexto de grande insegurança, somando-se à sua idade elevada (62 anos) e ao fato de atualmente morar sozinho. Questionado se passou ou está passando por situação de insegurança financeira, o entrevistado respondeu: Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 06/03/2016 17:30:37 Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida Sim, porque eu fiz meu Bolsa Família, desde o meu cadastro do Minha Casa Minha Vida e nunca… já recorri na prefeitura, fui no NAD, peguei toda a papelada e inclusive joguei na Coelba e na Embasa, mas o meu Bolsa Família jamais… não sou aposentado e meu trabalho é esse como autônomo, como citei anteriormente. (Interlocutor 2) Certamente o fato de o beneficiário ser atendido pelo Programa após o incêndio em Escada impacta na percepção do beneficiário sobre os resultados da política pública, tendo em vista a resolução de uma situação emergencial e extrema. Como o entrevistado relata, “era muito lá embaixo [sua qualidade de vida], eu não tinha onde morar, não tinha mesmo, e hoje tenho”. No entanto, esse não é o único balizador do discurso do Interlocutor 2. Vejamos alguns elementos que evidenciam como a reconfiguração dos laços sociais do entrevistado impactou na percepção sobre a efetividade da política pública. Como relata, o beneficiário tem três ir- Após o benefício pelo PMCMV, o Interlocutor 2 passou a morar com uma amiga advinda do antigo bairro, já que ela havia ficado sem casa e ele havia sido atendido primeiro na fila do cadastro. Esse fato marcou profundamente a inserção do entrevistado no condomínio. Ao ser questionado sobre a comparação entre sua vida antes e após o benefício pelo Programa, o Interlocutor 2 respondeu: Rapaz eu continuo lutando aí, correndo atrás de uma aposentadoria aí que nunca sai... mas, por enquanto tá ótimo. Tá ótimo. Inclusive essa pessoa que morou aqui me ajudou muito, entendeu? Continuo com esse trabalho aqui porque ela deixou pra mim, tá? Me deu a maior força, e eu tô aqui, e no dia que puder ajudar ela, ajudarei […] é uma pessoa que tem um coração de ouro. Inclusive veio de lá, junto comigo, por isso eu segurei aqui dois anos, sem problemas, sem discussões, sem brigas, e tudo combinado, ótimo […] Faz três semanas que ela se mudou. Tá ótimo. Liga pra mim, eu ligo pra ela, tá beleza. mãs em Itacaranha, que se mantiveram no bairro após sua alocação no conjunto habita- Na primeira parte da fala, o entrevistado cional. No entanto, o entrevistado, ao contrá- leva em conta a sua insegurança financeira, rio da Interlocutora 1, apresentou uma noção levando-o a realizar grande esforço pessoal, mais fluida de centralização de suas redes so- como visto na frase “continuo lutando aí, cor- ciais a partir da localidade do bairro (em detri- rendo atrás de uma aposentadoria que nunca mento da noção de “ancestralidade local” re- sai…”. Logo após, a avaliação positiva sobre latada pela Interlocutora 1). Por muito tempo sua vida atual retoma a sua antiga colega de morou fora de Salvador, a partir de trabalhos moradia, que, além de tornar possível o seu assalariados ou autônomos, se destacando novo trabalho como vendedor ambulante no uma longa estadia no interior do Maranhão. condomínio, esteve presente como uma figura Vê-se que a provisão de recursos assume im- de apoio e ajuda. Além disso, essa pessoa se portância no discurso do entrevistado a partir mostra como uma figura importante de uma de seu trabalho, mesmo que precário e ausen- antiga rede de vizinhança que, assim como ou- te de amparo na legislação trabalhista (como tras pessoas de Itacaranha, se deslocou para o a aposentadoria). condomínio após o incêndio em Escada. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 Book 35.indb 269 269 06/03/2016 17:30:37 Vitor Matheus Oliveira de Menezes A ida de moradores de Itacaranha se estabelecidas no cotidiano do conjunto habi- mostra como um elemento importante de pos- tacional. Os espaços institucionais e informais sibilidade de manutenção dos laços sociais do mostram-se nas falas do entrevistado como a entrevistado. No entanto, a partir de sua par- configuração de uma nova rede social, capaz ticipação na vida cotidiana do condomínio, o de assumir a responsabilidade pela provisão de morador conseguiu reconfigurar seus vínculos, bem-estar em casos de maior vulnerabilidade. tendo como centro o local de moradia, garan- Por vezes, o sistema de provisão familista inte- tindo suporte e apoio social. gra em seus conceitos a noção de comunidade (Ribeiro, 2010), já que o acesso a bens e ser- Muitas [pessoas] vieram de lá de onde eu morava, e através da minha relação com todo mundo fui conhecendo todo mundo. Todos aqui chega, seu Madruga [apelido], pronto é ali. Todos, todos. (Interlocutor 2) viços por vezes é alcançado por interações na dimensão da vizinhança. Além disso, é possível que a própria família se expanda para além da consanguinidade (Martins, 2006), fenômeno que exigiria mais dados para sua afirmação em Sobre a possibilidade de recorrer à ajuda financeira por parte de moradores do condomínio, o Interlocutor 2 afirma: É, por enquanto não precisou de ajuda, mas eu tenho pessoas que já me prometeram que se houver alguma dificuldade recorrer a eles. Inclusive moram no mesmo bloco que eu […] Conhecemos-nos aqui. Em reuniões, palestras, brincar um pouco, um dominozinho que brincamos ali no quiosque. E assim vamos fazendo amizades. (Interlocutor 2) nosso caso. Assim, alguns elementos evidenciam-se ao compararmos os dois atores sociais em análise. Enquanto para a Interlocutora 1 o benefício pelo PMCMV significou desfiliação social e ruptura de laços sociais antigos e importantes, ligados ao parentesco e às relações de vizinhança, para o Interlocutor 2 houve a possibilidade de manutenção dos vínculos sociais existentes anteriormente, garantindo proteção social e pertencimento. Vale lembrar que a Interlocutora 1 salienta a importância da Prosseguindo, o entrevistado aponta que presença de integrantes do movimento social tal situação garante uma maior segurança, no condomínio, um fragmento de rede social “com certeza”, visto a percepção de redes so- que ameniza os efeitos da ruptura de vínculos. ciais que podem ser ativadas em caso de maior No entanto, tal fato se mostra insuficiente vulnerabilidade. Fato esse bastante possível, para garantia de bem-estar para a beneficiá- visto a instabilidade de sua renda a partir do ria. Já para o Interlocutor 2, a manutenção de trabalho autônomo e a ausência de aposenta- vínculos significou uma moradia temporaria- doria e cadastro no Bolsa Família. Vemos a par- mente conjunta e uma possibilidade de traba- tir do Interlocutor 2 que os suportes relacionais lho, que se manteve mesmo após a saída da mais imediatos podem ser compostos pelos la- antiga moradora. ços não-consanguíneos, através da composição Da mesma forma, a possibilidade de re- do domicílio para além das relações de paren- configuração de vínculos aponta dimensões tesco e a proteção social advinda das relações diferenciadas nos dois entrevistados. Como 270 Book 35.indb 270 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 06/03/2016 17:30:37 Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida vimos, a incapacidade de recompor laços sociais sobre a vida em sociedade. Assim, a percepção e a ruptura com amizades antigas e redes de do ator social sobre a política pública não se parentesco provocou na Interlocutora 1 o que mostra como um resultado mecânico e estático ela chama de “opressão psicológica”. Por outro de sua situação enquanto beneficiário. Ambos lado, é recorrente nas falas do Interlocutor 2 a os entrevistados relataram significativa melho- presença de novos vínculos sociais reelaborados ria da qualidade da moradia após a alocação a partir do novo local de moradia, como visto no Residencial Jardim Cajazeiras. No entanto, anteriormente, a partir da possibilidade de ati- de forma conflituosa, se relacionam a essa di- vação de uma rede social de apoio em caso de mensão as expectativas quanto aos vínculos maior insegurança, tendo como centro o bloco sociais mantidos, rompidos e reconfigurados a onde reside o beneficiário, estabelecido a partir partir da alocação no conjunto habitacional. da vida cotidiana no condomínio. Ainda, como A responsabilização das famílias pela segue, é possível perceber nas falas do entrevis- provisão de bem-estar, destacando-se a ex- tado a imagem do condomínio como um local pansão da noção de família para o papel das acolhedor, ao contrário das falas da Interlocuto- redes de vizinhança e os arranjos familiares, ra 1, cuja moradia é vista como inserida em um tem como resultado a centralidade do vínculo local de desagregação social. para a segurança financeira e alimentar de seus membros. Além disso, a participação Aqui todos nós somos uma irmandade. Pelo menos comigo né, não sei os demais […] A relação comigo todo mundo é... você vê as crianças como chega aí ó. “É seu Madruga, é Seu Madruga”. E me adoram essas crianças. E me ajudam muito com esses bombons. Graças a Deus. Não tenho outra renda. O meu Bolsa Família, nunca. E aqui eu tô levando. E é assim que eu vou levando. Meus bombons, minhas pipoquinhas e meus refrigerantes. (Interlocutor 2) na vida social se relaciona a uma situação de conforto, de atendimento de expectativas e interesses, elementos que estarão inseridos na percepção do beneficiário sobre a política pública. Os impactos do Programa não são entendidos pelos atores pela simples existência de uma moradia melhor, mas também a partir do aspecto relacional da vida urbana, podendo levar a situações de insegurança e “opressão psicológica” ou situações de segurança e ideia da vida em comunidade. O que é central para compreendermos Assim, a percepção sobre os impactos essas discussões é que o benefício pelo Progra- efetivos da política de provisão de moradias es- ma, estando inseridos no bojo do benefício o tá intimamente relacionada à percepção sobre deslocamento espacial da moradia e a reconfi- as condições de pobreza e vulnerabilidade dos guração de vínculos sociais, se mostra como um beneficiários. Passando, pois, para a análise de processo social. O espaço, pois, deve ser com- outras entrevistas, vemos a argumentação da preendido a partir de múltiplas situações, onde Interlocutora 3 sobre a maior dificuldade em diferentes trajetórias de vida e relações inter- lidar com as contas mensais após o benefício pessoais configuram percepções diferenciadas pelo Programa: Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 Book 35.indb 271 271 06/03/2016 17:30:37 Vitor Matheus Oliveira de Menezes Rapaz, eu não vou mentir a você não, a situação aqui… A dificuldade aumentou, porque gera-se dívidas que você não tinha antes e que hoje você é obrigado a ter, como por exemplo, há uma prestação que você paga do Minha Casa Minha Vida. É pouco, mas já é uma prestação. Aí vem a luz, aí vem a água, aí vem o condomínio. Aí você quer ter uma vida melhor, aí você contrata uma internet… a situação fica mais complicada, mais difícil. (Interlocutora 3) Quando questionada sobre o repertório utilizado para lidar com a atual dificuldade financeira, a Interlocutora 3 aponta os amigos próximos e familiares como vínculos prioritários de provisão de bem-estar em situações de maior vulnerabilidade. Então, vê-se que as relações informais e interpessoais são colocadas em primeiro plano, ao invés das relações institucionalizadas. Atualmente a beneficiária trabalha como vendedora no próprio condomínio, tendo um ponto de venda em frente ao conjunto habitacional. Seu marido é operário da construção civil e juntos têm dois filhos, e o mais velho trabalha e mora fora do condomínio e a mais nova, com 10 anos, reside junto com o casal. Curiosamente, a Interlocutora 3 aponta que os diferentes vínculos com os familiares residentes fora do conjunto habitacional não foram enfraquecidos, pelo contrário, se fortaleceram após o benefício. Como nos relata a entrevistada, a razão para isso advém do status da moradia atual do PMCMV, em detrimento da antiga moradia sujeita à precariedade e ao estigma da favela: Você era discriminado, né [na antiga moradia], “ah, mora na favela, mora num barraco”, e hoje não, a pessoa que está aqui tem um status de vida melhor do que o que tinha lá no Gal Costa. 272 Book 35.indb 272 Normalmente, quando você passa por algum problema financeiro, a quem você recorre? Só meus amigos e familiares Seus familiares atualmente moram aqui ou em outro bairro? Não, a maioria mora em outros bairros. Eu só tenho uma filha que também faz parte desse projeto. O restante de minha família mora tudo por aí por Salvador espalhado. E você continua mantendo contato com eles? Continuo. Agora é que eles vêm me visitar. Muitos quando eu morava na favela nem lá iam. (Interlocutora 3) O benefício é relatado, dessa forma, através da melhoria da qualidade de vida pelo reconhecimento de status da moradia atual. Utilizando-se de vínculos não institucionalizados para a provisão de bem-estar, a entrevistada relata, para além da melhoria da moradia, a aproximação de familiares após o benefício, movimento inverso ao relatado pela Interlocutora 1. Os suportes relacionais centrados na dimensão da família terminaram por se fortalecer após a alocação da Interlocutora 3 no conjunto habitacional, fenômeno que nos leva a argumentar que o benefício não somente gera constrangimentos para a manutenção dos vínculos sociais (devido à distância), mas também virtualidades geradas pela nova condição social da moradia. O PMCMV é apontado pela entrevistada como “um projeto bom. Muito bom, muito bem pensado”. No entanto, a beneficiária relata a dificuldade encontrada por alguns moradores no que diz respeito às despesas pessoais após o benefício: Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 06/03/2016 17:30:37 Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida Quando o governo tira aquelas famílias de determinado lugar que eles já estão habituados a morar, é a mesma coisa desse pessoal que mora na orla do subúrbio, pega esse pessoal de lá do subúrbio e joga lá em Simões Filho, eles não vão ficar lá, eles não vão. Muitos deram, porque você pegar uma unidade dessa e dar por 15, 20 mil, pra mim isso não é dinheiro, é dar. Muitos deram porque não tiveram condições de pagar. (Interlocutora 3) Além disso, a Interlocutora relata a sua percepção de dificuldade do estabelecimento de novos vínculos centrados no conjunto habitacional. Em comparação à sua antiga moradia, na ocupação da Av. Gal Costa, ela relata: A ocupação que a gente tinha lá na ocupa ção era mais fraternal, era mais amigo mesmo, 'fulano tá passando dificuldade', e aqui não tem isso não, é cada um por si. Aquela amizade, aquela preocupação que tinha, um morador da ocupação com outro, aqui não existe isso não. Aqui é cada um na sua e a vida continua. (Interlocutora 3) Assim, a sua permanência no conjunto habitacional representa o sucesso em manter uma fonte de renda, através do ponto de venda no condomínio, e da manutenção dos vínculos sociais anteriores ao benefício. Mesmo com a incapacidade em ativar uma rede social local vínculos para além da moradia, sendo esses importantes para a provisão de bem-estar. De maneira semelhante, a Interlocutora 4 realiza uma distinção sobre a possibilidade de ativação da rede de vizinhança pós-benefício e a rede familiar. Quando questionada sobre o repertório utilizado para lidar com situações de insegurança financeira, a beneficiária relata: Eu busco, assim… ao meu redor eu não posso buscar muito, porque é vizinho, pra já não tá aquela coisa de ficar chato pedindo, não busco muito. Mas assim, tem as tias, que moram em Paripe, tem outras tias que moram no Lobato, avó… sempre eu to buscando ajuda deles, para que não venha a faltar as coisas para meus filhos. E você consegue manter o contato com eles? Consigo. […] Como é que você acha que é a relação dos moradores aqui dentro? Não são unidos. Você acha que era mais unido na antiga moradia ou aqui? Era mais unido na antiga. Lá cada qual defendia seu cada qual, e ainda eles defendiam a gente. Era um ajudando o outro. (Interlocutora 4) capaz de suprir com o bem-estar, visto que a A possibilidade de ajuda dos familiares esfera familiar e de amizades próximas são se mostra bastante útil no contexto de vida prioritariamente procuradas em situações de da beneficiária, onde existe “muita [insegu- insegurança financeira, a beneficiária relata rança financeira], muita mesmo”. Mesmo não o fortalecimento das relações intrafamiliares, mantendo contato de proximidade com os mo- tendo em vista a existência da moradia atual radores da sua atual localidade, aponta para como elemento valorativamente positivo. a utilização da família como uma rede social Na percepção da beneficiária, o enfraqueci- para o provimento de bem-estar para os filhos. mento dos laços comunitários locais se deu Atualmente a entrevistada está sem emprego Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 Book 35.indb 273 de maneira análoga ao fortalecimento dos 273 06/03/2016 17:30:37 Vitor Matheus Oliveira de Menezes fixo, sendo a única provedora de uma casa Analisando mais a fundo a questão en- com duas crianças, sobrevivendo atualmente tendemos, a partir das falas da entrevistada, através do cadastro no Bolsa Família e traba- que a localidade atual da moradia não tem cre- lhando como diarista e catadora de camarão che próxima ou escola com turno integral, sen- no Mercado do Peixe. A Interlocutora 4 nos fa- do o cuidado com os filhos uma das principais la que vive uma situação de grande vulnerabili- dificuldades para a beneficiária. dade e incerteza, tendo como objetivo atual de vida comprar uma guia para trabalhar de ambulante. No entanto, o aumento das despesas com o benefício e a dificuldade de encontrar emprego a impossibilitam de atingir, por ora, seu objetivo. Quando questionamos o principal ponto positivo do PMCMV, obtemos como resposta a transformação das condições de moradia. Antes residente em Peri Peri, a moradora também já vivenciou com os dois filhos a situação de rua. A casa para ela, por motivos óbvios, representa um elemento constituidor de segu- O colégio aqui também não tem muita escolha. É lá em Pau da Lima. É você que leva eles? Eu levo, às vezes quando eu vou fazer uma faxina, que é 70, 80 reais, eu peço uma pessoa pra levar pra mim, dando o cartão de passagem pra ela e divido aquele dinheiro que eu ganho na diária com a pessoa. Quando eu acho um emprego lá na Pituba, eu não posso, já perdi vários, por falta de uma creche, de um colégio que entre de manhã e pega de tarde, como tem vários, eu não consigo. Então já perdi vários empregos. (Interlocutora 4) rança, qualidade de vida e autoestima. O fato de “só estar aqui, nessa casa maravilhosa” já Prosseguindo com a análise, segundo a estabelece o apontamento da entrevistada de entrevistada a situação seria muito mais fácil que o benefício teve um saldo positivo. se na atual moradia habitassem familiares que No entanto, ao ser questionada sobre o pudessem ajudar no cuidado com os filhos, re- principal ponto negativo do Programa, a be- tirando uma parte da sobrecarga advinda com neficiária nos responde que é a existência do a ausência de serviços estatais adequados. O desemprego. Vemos que na primeira respos- desemprego, principal ponto negativo do Pro- ta, sobre o elemento positivo, a entrevistada grama, é uma consequência de dois fenôme- se utiliza de um elemento condizente com as nos: a) a ausência de serviços de cuidado ins- consequências diretas do Programa, estando titucionalizados, que retirem a sobrecarga da a moradia incluída como principal objetivo da família, e principalmente da mulher, no cuida- política pública. No entanto, como vemos, pa- do e provisão de bem-estar para os membros ra a evidência sobre a negatividade da política da família; b) e a ausência de redes familiares pública, a beneficiária nos traz um elemento no atual local de moradia, que conseguissem, central para sua vida social e para a percepção na ausência do serviço estatal, arcar com uma de vulnerabilidade, mas que não está direta- parte das responsabilidades com o cuidado, mente relacionado às consequências mais cor- tornando possível para a entrevistada obter riqueiramente relacionadas ao Programa. emprego com maior estabilidade. A existência 274 Book 35.indb 274 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 06/03/2016 17:30:37 Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida do trabalho não remunerado do cuidado, e sua sobrecarga advinda com a ausência de serviços estatais (Campos e Teixeira, 2010), termina por impactar negativamente na inclusão da Interlocutora 4 (uma mulher em situação de pobreza constituindo família monoparental) no mercado de trabalho pago, fundamental para o aumento da renda familiar. É por isso que a Interlocutora 4 ressalta o desemprego como principal ponto negativo do Programa. A baixa presença do Estado no sistema familista de provisão de bem-estar acaba gerando uma sobrecarga nos suportes relacionais da família e da comunidade local. Quando esses falham (uma falha já prevista, por impossibilidades objetivas), a entrada na esfera do mercado como espaço de provisão também é obstruída. O benefício pela política pública acaba gerando uma percepção bastante conflituosa da entrevistada, onde de um lado vemos melhorias das condições materiais da moradia e o consequente aumento do bem-estar; e de outro o deslocamento de suportes relacionais concomitante à insuficiência dos serviços estatais, impossibilitando o aumento da renda pela esfera do trabalho remunerado. A partir de dados provenientes da Interlocutora 5, podemos confrontar novos elementos para análise. Segundo a entrevistada, o benefício se deu de maneira análoga ao enfraquecimento da renda familiar: Tinha tudo no barraco, mas não tinha segurança. Só que lá era um meio de eu ganhar dinheiro, tinha um bar, muito grande, bem feito, eu ganhava dinheiro durante o mês que dava para minha despesa. Aqui eu não tenho condição de ganhar nem 50 centavos, porque o condomínio também não ajuda, o governo era pra fazer uns Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 Book 35.indb 275 box aí na frente, pra entregar pra quem tinha já o comércio, e isso não foi feito pela prefeitura. (Interlocutora 5) São colocados em análise pela interlocutora, assim, dois fenômenos. O benefício, por um lado, representou a mudança da moradia, vista como uma transformação positiva. No entanto, a fonte de renda estava alicerçada na antiga localidade de habitação, e o benefício não trouxe consigo a provisão pelo Estado de novas condições de trabalho. E pelo menos eu tô aqui só problema porque eu sou uma pessoa doente, em tratamento […] Então, pra você ver, lá em Sussuarana era todo mundo amigo, quem tivesse, quem não tivesse comia do mesmo jeito. Aqui não é assim. Aqui o ritmo mudou, vamos ver quem pode mais […] Na Sussuarana era o contrário, eu dava para os outros. Não tinha pena de dar uma cesta básica, não tinha pena de dar um dinheiro nem de emprestar. E aqui tá tão difícil, porque eu procuro onde conseguir trabalho e não consigo. (Interlocutora 5) Chama a atenção o fato de que, na entrevista, a beneficiária se reporta ao benefício pela palavra “tragédia”. Como evidenciado acima, tal tragédia se daria a partir de alguns elementos articulados, semelhante ao apontado por Castel (1995) sobre o processo de vulnerabilidade social. O benefício terminou por enfraquecer, visto a ausência da atuação estatal no que diz respeito à provisão de condições adequadas de trabalho, a fonte de renda da beneficiária. Somado a isso, o seu marido também se encontra desempregado, fato que inviabiliza a provisão domiciliar. O antigo local de habitação da beneficiária é apontado como um local, a despeito das 275 06/03/2016 17:30:37 Vitor Matheus Oliveira de Menezes condições precárias da moradia, de forte inte- tão frequente. A percepção de efetividade da ração entre as pessoas. Tais interações serviam política pública pela entrevistada, então, reto- como a provisão de bem-estar em situações ma dois fenômenos simultâneos relacionados extremas (“quem tivesse comia, quem não ti- ao processo de vulnerabilidade. Em primeiro vesse comia do mesmo jeito”). Já a moradia lugar, o benefício significou a perda da fonte de atual é apontada como um local de individua- renda da entrevistada, sendo esse o conteúdo lização (“vamos ver quem pode mais”), onde a mais presente na entrevista. Em segundo lugar, entrevistada não está inserida em relações de a Interlocutora 5 foi deslocada de uma rede de intercâmbios materiais. Além disso, através da vizinhança que poderia, em condições mais ad- existência de uma fonte de renda com relativa versas, servir como fonte de intercâmbios ma- estabilidade, na moradia anterior a Interlocuto- teriais em situações de maior insegurança. O ra 5 assumia uma posição importante como um seu entendimento sobre a individualização dos nó da rede social, sendo provedora de bem- seus vizinhos no momento pós-benefício, alia- -estar para outros membros da localidade. Na do à insuficiência da ativação da família para situação atual de benefício, a entrevistada, sem além das situações de extrema vulnerabilidade, fonte de renda e sem inserção em redes asso- articula-se com a ineficácia do Estado em pro- ciativas, encontra dificuldades evocadas como ver condições de trabalho, conformando uma uma “tragédia”. percepção extremamente negativa sobre os im- Mas além disso, a entrevistada relatou pactos da política pública em sua vida. certa capacidade de ativar a família como rede Vimos, com base nesse conjunto de en- social em situações de extrema vulnerabilidade. trevistas, que a inclusão ou exclusão do benefi- Eu, meu filho, quem me ajuda foi uma família que me criou. São uma família de empresários da Comercial Ramos, então eles praticamente, a maior ajuda, a maior força é deles. Quando eu to precisando de alguma coisa eu ligo, aí 'venha que a gente vai no mercado', se alguém tá doente e eu não tenho um centavo, 'venha que eu vou te arrumar'. (Interlocutora 5) ciário de redes sociais interpessoais resulta em novas configurações da percepção de efetividade do Programa. A existência de redes sociais familiares e/ou de vizinhança se mostrou importante veículo de provisão de bem-estar na existência de insegurança financeira. Devemos, dessa forma, conceber a capacidade ou incapacidade de ativar os nós dessas redes como elementos fundamentais para o entendimento do Vemos aqui o reforço da argumentação processo de vulnerabilidade dos atores sociais. de Martins (2006) sobre a necessidade de ex- O benefício, através da reconfiguração territo- pandir a família para além dos laços consan- rial e das novas condições de moradia, se mos- guíneos. No entanto, a ativação da rede fami- tra como um novo elemento em tal processo. liar não resulta em uma situação de segurança Defendemos aqui que, na produção de subjeti- para a entrevistada, mas somente a possibili- vidades sobre a efetividade da política pública, dade de lidar com situações mais adversas. ou seja, a percepção do beneficiário sobre os Com base nas falas da beneficiária, a utilização resultados do Programa, o benefício se rela- referida do suporte relacional da família não é ciona com outros elementos da vida social do 276 Book 35.indb 276 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 06/03/2016 17:30:37 Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida morador. Tal relação, como vimos, é conflituosa, partir do benefício, mas sim trajetórias distintas demarcando tal fenômeno como inserido na dos beneficiários que configuram percepções configuração da pobreza urbana. A percepção diferenciadas sobre a política pública. da efetividade da política pública também é, de É necessário destacar também que o certa forma, a percepção do ator sobre o seu benefício pelo Programa pode apresentar co- processo de vulnerabilidade. mo resultado a produção de novas formas Destacamos que, como apresentado por de configuração das redes sociais. Tais redes Marques (2007), as redes sociais em situação podem ser distintas do padrão observado por de pobreza encontram centralidade na loca- Marques (2007), baseado na centralidade da lidade de moradia. Sejam redes interpessoais localidade da moradia para o estabelecimen- informais, ou redes associativas, religiosas e to dos vínculos sociais da população pobre. políticas, os atores sociais em situação de po- Como vimos, alguns entrevistados relataram breza tendem a se relacionar através da dimen- que, de maneira análoga ao enfraquecimento são do habitar. O benefício pelo PMCMV se das redes locais, foi possível perceber o forta- mostra, então, como um dado extremamente lecimento ou manutenção de redes sociais de importante. O acesso à política pública termi- proteção para além do conjunto habitacional. A na por gerar uma reconfiguração territorial do família como uma rede, centrada não somente beneficiário, a partir do distanciamento espa- a partir do critério da moradia, pode ser ativa- cial entre os vínculos anteriores ao benefício, da em situações de adversidade para além do centrados na antiga moradia, e a atual locali- espaço urbano mais imediato. No entanto, tal dade de habitação. A manutenção desses vín- possibilidade deve ser contextualizada a partir culos e o surgimento de padrões satisfatórios das virtualidades e constrangimento dos ato- dos suportes relacionais, ou o oposto baseado res, e não ao simples desejo de utilização dos na incapacidade de manter ou gerar tais redes suportes relacionais. Merece destaque também de suporte, terminam por constituir elementos que, mesmo para os entrevistados que relata- fundamentais para a compreensão da pobreza ram a centralidade dos vínculos para além do e vulnerabilidade do beneficiário. conjunto habitacional, o benefício representou Como vimos a partir das entrevistas, a o fortalecimento da moradia como espaço de vida em sociedade no conjunto habitacional é organização da vida social e investimento de referida diversas vezes a partir da baixa coesão recursos materiais. dos moradores. Essa baixa coesão é apontada Sintetizando esse ponto, vemos que dife- a partir de uma comparação com os padrões de rentes trajetórias de benefício, sendo esse en- relações sociais da antiga moradia. No entanto, tendido como um processo social, configuram como também é possível destacar, a ativação distintas percepções sobre as consequências de novos vínculos sociais a partir das relações da política pública na vida dos beneficiários. interpessoais é percebida por alguns beneficiá- Tentamos aqui escapar de visões deterministas, rios como o fortalecimento da vida em socieda- que estabelecem uma relação direta e apriorís- de. O que queremos apresentar aqui é que visi- tica entre a existência de redes sociais e a ava- velmente não existe um padrão generalizante a liação positiva ou negativa da política pública. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 Book 35.indb 277 277 06/03/2016 17:30:37 Vitor Matheus Oliveira de Menezes O nosso foco, como destacamos, é problemati- por si, incluiria tais indivíduos em nível produti- zar como diferentes trajetórias de benefício no vo e simbólico. Mesmo defendendo que a inter- momento pós-ocupação terminam por repre- -relação entre os atores se mostra de extrema sentar tendências de percepção do beneficiário importância para o entendimento do processo sobre a vida social. de vulnerabilidade, para nós os resultados for- Vale destacar, por fim, que não consideramos profícuo o imaginário neoliberal de talecem a necessidade de responsabilização do Estado, e não das famílias. centralidade da dimensão da família e/ou comunidade para provisão de bem-estar. Sob o amparo do Banco Mundial, a desresponsabi- Considerações finais lização do Estado e a instituição da dimensão do mercado como dimensão “justa” de distri- Neste artigo buscamos problematizar as per- buição de bens e serviços, aliado à mobilização cepções dos moradores do Residencial Jardim das redes comunitárias locais, potencializaram Cajazeiras, destinado à faixa de 0 a 3 salá- um quadro marcado por “baixos níveis de rios mínimos, sobre o benefício pela política crescimento econômico; deterioração das con- pública. Para isso, negamos a existência de dições de trabalho e renda da população; per- uma relação direta e sem mediações entre as sistência das desigualdades sociais e espaciais; diretrizes da política (e a forma como foram e uma reorientação profunda das políticas so- implementadas) e o público-alvo. Como apre- ciais” (Carvalho e Almeida, 2003). Mesmo com sentamos detalhadamente através da fala dos mudanças importantes no que diz respeito ao entrevistados, a percepção dos beneficiários fortalecimento do papel do Estado no Brasil, sobre os resultados da política pública se dá Carvalho (2008) nos aponta que o quadro so- através da relação conflituosa entre diversos cial das grandes cidades ainda é considerado elementos constituidores da vida social. Assim, grave. Assim como defendido por Campos e utilizando a noção de efetividade subjetiva e Teixeira (2010) e Ribeiro (2010), a problemati- trabalhando a noção de que os beneficiários zação do viés familista da interação entre Esta- são atores inseridos em diversas dimensões de do/mercado/família mantém-se como elemento sociabilidade das redes sociais, questionamos fundamental para compreensão da provisão de os impactos dos vínculos sociais para a percep- bem-estar no caso brasileiro. ção de efetividade do PMCMV pelos moradores Quando trazemos para análise a relação do Residencial Jardim Cajazeiras. Como dimen- entre os vínculos sociais, os processos de vulne- são específica de sociabilidade, trouxemos para rabilidade e a percepção de efetividade da po- a discussão a categoria de arranjos familiares. lítica pública é porque tais elementos, de fato, A moradia por si é reconhecida como ele- se relacionam na produção de uma urbanidade. mento positivo gerador de maior estabilidade No entanto, a solução dos conflitos percebidos na vida dos beneficiários, tendo em vista a me- nas falas dos entrevistados não se dará pelo lhoria das condições estruturais e a valoração fortalecimento do associativismo local, e nem simbólica diferenciada entre habitação anterior pela defesa de que o crescimento econômico, ao benefício e a moradia pelo Programa. Vale 278 Book 35.indb 278 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 06/03/2016 17:30:38 Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida destacar que essa avaliação também é situa- centrados na família constituem dimensão cional, observada na realidade desse conjunto fundamental da provisão de bem-estar para habitacional, sendo possíveis outras avaliações a população pobre, fenômeno potencializado por parte de beneficiários que passaram por pela tipificação familista característica do con- processos diferenciados de benefício e pós- texto brasileiro. -ocupação. Para os fins deste trabalho, ganha Assim, de maneira extremamente sintéti- realce que a moradia pelo PMCMV trouxe ca, a associação do benefício à exclusão do be- consigo o fortalecimento de expectativas dos neficiário em redes sociais de apoio e suporte beneficiários de acesso a bens e serviços, e o constituiu uma série plural e diversa de avalia- não atendimento de expectativas relacionadas ções negativas sobre a política pública, sendo às condições de infraestrutura urbana do bairro essa vista como um processo contraditório de onde se localiza o conjunto habitacional mos- melhorias materiais da moradia e fragilização tra-se como elemento negativo na avaliação do dos suportes relacionais centrados na família. Programa. No entanto, tais problematizações Do contrário, quando o benefício pelo Progra- poderiam se limitar a tratar o beneficiário co- ma está associado à inclusão dos beneficiários mo atomizado da vida em sociedade, produzin- em redes de suporte (algumas centradas nas do percepções sobre a política pública basea- relações institucionais e/ou informais no con- do em cálculos utilitaristas de custo-benefício. junto habitacional), ou à manutenção de redes Como contraponto, apresentamos como eixo existentes anteriores ao benefício, vemos uma fundamental do trabalho a visão de que os be- tendência a avaliações positivas dos beneficiá- neficiários representam trajetórias distintas de rios sobre os resultados da política pública. Pa- benefício, através de características das condi- ra nós, isso se fez presente porque a percepção ções materiais (de renda e de habitação pós- sobre os resultados da política relaciona-se à -benefício) e de aspectos relacionais da vida percepção dos beneficiários sobre o processo urbana. Entender a percepção de efetividade de vulnerabilidade que eles, de maneiras dis- da política pública pelos beneficiários significa, tintas, vivenciam no cotidiano. Argumentamos, para nós, problematizar tais trajetórias. pois, que os arranjos familiares constituem di- Como demonstrado no corpo do traba- mensão central de produção de percepções dos lho, analisamos em nossa pesquisa dados que beneficiários sobre os resultados da política estabelecem a importância dos vínculos so- pública, a partir das características das redes e ciais para a produção de subjetividades sobre das trajetórias dos atores (em relação ao mer- a política pública. Em verdade, a percepção de cado de trabalho, ao espaço urbano, etc.). efetividade da política pública está inter-rela- Argumentamos aqui que os nossos es- cionada à produção de percepções sobre di- forços convergiram em uma direção comum. versas dimensões da vida em sociedade, e tais Discutir sobre a percepção dos beneficiários dimensões conformam distintos processos de em relação aos resultados de uma política vulnerabilidade dos beneficiários. Assumindo pública de provisão de moradias significa, em a centralidade da categoria dos arranjos fami- nível mais geral, compreender a produção do liares, apontamos que os suportes relacionais espaço urbano que vivenciamos em nossas Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 Book 35.indb 279 279 06/03/2016 17:30:38 Vitor Matheus Oliveira de Menezes cidades. Da mesma forma que o benefício pelo Programa representa a melhoria de condições materiais de moradia, também está associado ao fortalecimento das expectativas dos benefi- “sujeito da experiência” já plenamente constituído a quem as “experiências acontecem”, a experiência é o lugar da formação do sujeito. ciários em relação aos serviços e infraestrutura A produção de subjetividades sobre a po- urbana. Além disso, o benefício constitui um lítica pública e, assim, sobre a vida em socieda- novo contexto social onde vão se desenrolar de desenrola-se como uma experiência inserida as diferentes dimensões de sociabilidade dos no processo de vulnerabilidade dos beneficiá- atores beneficiários. Compreender a pobreza rios. A prática de atribuição de sentidos sobre urbana perpassa, pois, a tentativa de trazer pa- o benefício, tendo em vista as disputas por con- ra a discussão a inter-relação entre condições dições materiais e de significado referidas por materiais e dimensões relacionais da vida nas Brah (2006), se dá como constituição do bene- cidades. A trajetória de benefício, contribuição ficiário como ator social. As distintas configura- analítica de nosso esforço, se mostra como ções dos arranjos familiares após o benefício, uma experiência social situacional, provocan- e sua capacidade em prover bem-estar para os do transformações na dimensão do habitar dos beneficiários, se apresentaram como elemento beneficiários e servindo de contexto (com suas fundamental da experiência de acesso à polí- possibilidades e constrangimentos específicos) tica pública. para as relações sociais dos moradores. Dessa forma, entendemos que a aná- Mas o que significa dizer que o benefício lise das trajetórias de benefício mostrou-se é uma experiência? Como apontado por Brah, uma possibilidade profícua de estudo sobre o 2006, p. 360), PMCMV, levando em conta a dimensão mate- “experiência” é um processo de significação que é a condição mesma para a constituição daquilo a que chamamos “realidade”. Donde a necessidade de re-enfatizar uma noção de experiência não como diretriz imediata para a “verdade”, mas como uma prática de atribuir sentido, tanto simbólica como narrativamente: como uma luta sobre condições materiais e significado […] Contra a ideia de um rial e simbólica da sociabilidade urbana e suas interfaces, a partir dos arranjos familiares, com a provisão de bem-estar. A nossa contribuição se apresenta, então, como um estudo sobre a política pública a partir da análise sociológica dos arranjos familiares dos beneficiários, problematizando os distintos processos de vulnerabilidade vivenciados a partir da situação social de benefício. Vitor Matheus Oliveira de Menezes Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Gradua ção em Ciências Sociais. Salvador/ BA, Brasil [email protected] 280 Book 35.indb 280 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 06/03/2016 17:30:38 Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida Nota (*) Parte dos dados trabalhados no artigo foi publicada nos Anais do VI Encontro Nacional de Sociologia e Polí ca. Referências AGIER, M. (2011). Antropologia da Cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo, Terceiro Nome. BARDIN, L. (1977). Análise de Conteúdo. São Paulo, Edições 70. BRAH, A. (2006). Diferença, Diversidade, Diferenciação. Cadernos Pagu, n. 26, pp. 329-376. BRASIL (2009). Lei n. 9.887, de 7 de julho. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas; altera o DecretoLei no 3.365, de 21 de junho de 1941, as Leis nos 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 10.257, de 10 de julho de 2001, e a Medida Provisória no 2.197-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Presidência da Casa Civil, Brasília, DF. Disponível em: h p://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNH/ ArquivosPDF/Leis/L11977compilado_2009_07_07.pdf. ______ (2014). Ministério das Cidades/Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Pesquisa de sa sfação dos beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida. Brasília, DF: MCIDADES; SNH; SAE-PR; IPEA. CAMPOS, M. S. e TEIXEIRA, S. M. (2010). Gênero, família e proteção social: as desigualdades fomentadas pela polí ca social. Rev. 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Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016 06/03/2016 17:30:38 Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida: discussão conceitual e reflexões a partir de um caso empírico* Social effectiveness of the Minha Casa Minha Vida Program: conceptual discussion and reflections based on an empirical case Aline Werneck Barbosa Carvalho Italo Itamar Caixeiro Stephan Resumo Este artigo visa contribuir para o debate sobre a eficácia social de empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida em cidades de pequena dimensão populacional e territorial, mediante análise dos conjuntos habitacionais implantados na cidade de Viçosa-MG. Os procedimentos metodológicos compreenderam levantamento de dados primários na Secretaria Municipal de Políticas Sociais, aplicação de questionários e observação direta nos conjuntos habitacionais estudados, além de dados secundários disponibilizados por órgãos governamentais e de pesquisa. Esses dados foram analisados com base nos indicadores de eficácia social elencados a partir da revisão de literatura. Concluiu-se pela ineficácia social dos empreendimentos, sobretudo devido às condições de infraestrutura, mobilidade urbana e acesso aos equipamentos de saúde, educação e lazer, fatores responsáveis pela segregação socioespacial dos residentes. Abstract This article aims to contribute to the debate on the social effectiveness of developments of the Minha Casa Minha Vida Program in small cities by analyzing housing estates built in the city of Viçosa (southeastern Brazil). The methodological procedures included primary data collection in the Municipal Department of Social Policies, administration of questionnaires and direct observation in the housing estates that were studied, as well as the analysis of secondary data provided by governmental and research agencies. These data were analyzed based on social effectiveness indicators listed from the literature review. It was concluded that the developments lack social effectiveness, mainly due to conditions related to infrastructure, urban mobility and access to health, education and leisure facilities, factors that are responsible for the socio-spatial segregation of residents. Palavras-chave: política habitacional; política habitacional brasileira; política habitacional em pequenas cidades; habitação de interesse social; Programa Minha Casa Minha Vida. Keywords: housing policy; Brazilian housing policy; housing policy in small cities; social housing; Minha Casa Minha Vida Program. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3513 Book 35.indb 283 06/03/2016 17:30:38 Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan Introdução A coleta de dados primários compreendeu o levantamento das fichas de cadastramento dos beneficiários do PMCMV arquivadas no Depar- Este artigo tem como objetivo contribuir tamento de Habitação da Secretaria de Políti- para o debate sobre a eficácia social dos cas Sociais do município de Viçosa, a aplicação empreendimentos habitacionais construídos de questionários e a observação direta do com- por meio do Programa Minha Casa Minha Vi- portamento dos moradores nos conjuntos ha- da (PMCMV) em núcleos urbanos de pequena bitacionais estudados, registrados por meio de dimensão populacional e territorial, cujas dinâ- levantamento fotográfico e anotações de cam- micas urbanas – fundiárias e imobiliárias – são po. A observação direta e o levantamento fo- distintas daquelas próprias das grandes cidades tográfico dos conjuntos foram feitos concomi- e metrópoles. tantemente à visita destinada à aplicação dos Os processos decorrentes da implanta- questionários. As visitas ocorreram nos meses ção de conjuntos habitacionais do PMCMV de junho a dezembro de 2014. Foram aplica- nas grandes cidades têm sido objeto de estudo dos 110 questionários abrangendo os três em- na área das Ciências Sociais e, mais especifi- preendimentos, o que correspondeu a um erro camente, da Arquitetura e Urbanismo (Cardo- amostral de 7,8% com 95% de nível de con- so, 2013; Mendonça e Costa, 2011; Maricato, fiança. Já os dados secundários se originaram 2011; Hirata, 2011; Valença e Bonates, 2010, de pesquisa em documentos e dados oficiais entre outros, além de numerosas teses e dis- disponibilizados publicamente por órgãos go- sertações sobre o tema). Entretanto, ainda falta vernamentais e de pesquisa, como o Ministé- uma visão abrangente dos resultados do Pro- rio das Cidades, IBGE e Prefeitura Municipal de grama nas demais unidades locais, que confor- Viçosa. A coleta desses dados compreendeu o mam o maior número e a maior extensão do levantamento dos projetos arquitetônicos dos território brasileiro. Referindo-se aos efeitos empreendimentos no Instituto de Planejamen- territoriais do PMCMV, Cardoso (2013, p. 15) to Municipal – Iplam e consulta a relatórios e assinala que “(...) há ainda muitos pontos a outros documentos na Secretaria Municipal de serem aprofundados e que certamente exigirão Políticas Sociais. Por fim, os dados coletados fo- maiores esforços de pesquisa e de reflexão”. ram tabulados e analisados com base nos indi- Com esse foco, procurou-se descrever os empreendimentos do PMCMV implantados na cadores de eficácia social elencados a partir da revisão de literatura. cidade de Viçosa-MG e o perfil da população Com a finalidade de realizar uma refle- neles residente, com a finalidade de estabele- xão acerca dos resultados encontrados, este cer relações entre as características físicas e a artigo foi estruturado em duas grandes partes. satisfação dos moradores, e compreender a efi- Na primeira, empreendeu-se uma discussão cácia social desse Programa no município. conceitual sobre os dois principais temas que Para tanto, foi realizada pesquisa descri- fundamentam a posterior análise empírica: os tiva, com abordagem qualitativa e quantitati- impactos do Programa Minha Casa Minha Vi- va, apoiada em dados primários e secundários. da apontados pela literatura e o conceito de 284 Book 35.indb 284 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 06/03/2016 17:30:38 Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida eficácia social, importante indicador utilizado Assim, no final do governo Fernando na avaliação de políticas públicas. Na segunda Henrique Cardoso (1995-2002) e no primei- parte, realizou-se uma reflexão acerca da efi- ro governo do ex-presidente Luís Inácio Lula cácia social do Programa nos três empreendi- da Silva (2003-2006), foi se configurando um mentos que constituem o objeto empírico deste contexto favorável à participação do setor pri- artigo: os conjuntos Benjamin José Cardoso, vado na promoção habitacional. A estabilidade César Santana Filho e Floresta. macroeconômica do país a partir do final da década de 1990, com o Plano Real, e as novas orientações na política econômica a partir do Discussão conceitual governo Lula, devido especialmente à redução das taxas de juros, alteraram o interesse dos investidores e de agentes financeiros em relação O PMCMV no contexto da política habitacional brasileira à construção civil e ao mercado imobiliário. No âmbito da habitação de interesse social, em 2003, já no governo do ex-presidente O Programa Minha Casa Minha Vida deve ser Lula, começaram a ser implementadas mu- compreendido num contexto mais amplo, eco- danças no quadro geral que caracterizava a nômico e político, que caracteriza a política ha- situação institucional da política habitacional. bitacional brasileira e o cenário internacional a Criou-se o Ministério das Cidades, que passou partir da década de 1990. a ser o órgão responsável pela Política de De- Do ponto de vista da habitação de senvolvimento Urbano e pela Política de Ha- interesse social, o período que se estende de bitação, ampliando-se os investimentos nos 1988 – quando entra em vigor a atual Cons- setores da habitação e adequando-se os pro- tituição Federal – até 2003, quando se cria o gramas existentes às características do déficit Ministério das Cidades, é marcado pelo vazio habitacional e de infraestrutura urbana. deixado pela extinção do Banco Nacional de O período que se seguiu à criação do Mi- Habitação – BNH e pela ausência de uma es- nistério das Cidades foi marcado pela retomada trutura de âmbito federal organizada para a do planejamento estatal no setor habitacional e condução das políticas urbana e habitacional. urbano, bem como pelo aumento do volume de Em meados da década de 1990, sob forte recursos e subsídios para a habitação de inte- influência das políticas de recorte neoliberal, resse social (Denaldi, 2012; Buonfiglio e Bastos, inicia-se um processo de estímulo ao merca- 2011). Em 2004 aprovou-se a Política Nacional do imobiliário para a produção de moradias de Habitação e o Sistema Nacional de Habitação voltadas para as classes média e média-alta, (SNH) e, em 2005, o Sistema Nacional de Habi- mediante a aprovação de importantes marcos tação de Interesse Social (SNHIS) e o Fundo Na- institucionais e de instrumentos financeiros, ca- cional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), pazes de garantir a segurança de investidores com o objetivo de garantir que os recursos públi- no setor habitacional (Shimbo, 2011; Cardoso e cos sejam destinados exclusivamente a subsidiar Aragão, 2011). a população de mais baixa renda (Brasil, 2005). Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 Book 35.indb 285 285 06/03/2016 17:30:38 Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan Concomitantemente, a partir de 2004, Apesar de ser criado como medida an- foram criadas várias medidas com o objetivo ticíclica para fazer frente à crise econômica, de dar segurança jurídica e econômica ao mer- o PMCMV representou uma política social de cado privado de imóveis e estimular o setor grande escala, que estimulou a criação de em- da construção civil. Nessa época teve origem pregos e de investimentos no setor da constru- um processo de financeirização imobiliária, ção civil, atendendo à demanda habitacional mediante a abertura do capital de empresas de baixa renda que o mercado por si só não de construção civil na Bolsa de Valores. Essas alcançava até então (Arantes e Fix, 2009; Hira- empresas lastrearam seus papéis em estoque ta, 2011; Klintowitz, 2011). de terras e lançamentos imobiliários, obtendo vultosos lucros. Amplamente implementado a partir do ano de 2010, a meta inicial do PMCMV era Entretanto, esse contexto é alterado a construção de 1 milhão de moradias na pela crise econômica mundial que se inicia área urbana, sendo 400 mil destinadas a be- nos Estados Unidos em 2008. Diante do no- neficiários com renda familiar até 3 salários vo quadro, o governo brasileiro decide adotar mínimos, para a qual está previsto subsídio medidas de expansão de crédito e apoio aos integral, e o restante para famílias inseridas setores que se encontravam em dificuldades, em duas faixas de renda (3 a 6 e 6 a 10 sa- dentre eles o setor imobiliário. Para continuar lários mínimos), correspondendo a cada uma expandindo o mercado habitacional, lança o delas um tipo de modalidade de financia- Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV mento de produção da habitação. Lançada (Cardoso e Aragão, 2011). a segunda versão do Programa, pela Lei n. Instituído pela Lei n. 11.977, de 7 de ju- 12.1214/2011, estabeleceu-se como nova me- lho de 2009, o PMCMV constitui, atualmente, ta a construção de 2 milhões de moradias na o principal programa habitacional do governo área urbana, até 2014. federal, cujo objetivo consiste na construção Na primeira fase do Programa, que cor- maciça de moradias visando à melhoria do sis- responde aos anos de 2009 e 2010, foram tema habitacional para a população de baixa e contratadas 1,005 milhão de moradias. Já na média renda. No âmbito do PMCMV estão pre- segunda fase, que começou em 2011, foram vistos dois subprogramas: o PNHU – Programa contratadas 2,385 milhões de unidades. Os Nacional de Habitação Urbana e o PNHR – Pro- dados referentes ao programa em julho de grama Nacional de Habitação Rural. O PNHU 2013 eram da ordem de 3.012.848 unidades “tem por objetivo promover a produção ou contratadas e, até julho de 2014, o Governo aquisição de novas unidades habitacionais ou Federal havia entregue 1,7 milhão de mora- a requalificação de imóveis urbanos” (Art. 4º, dias, beneficiando 6,4 milhões de pessoas Lei n. 12.124/2011), enquanto cabe ao PNHR e totalizando um investimento de R$361,6 “subsidiar a produção ou reforma de imóveis bilhões,1 dos quais 60% voltaram-se para a aos agricultores familiares e trabalhadores ru- menor faixa de renda, o que indica o direcio- rais (...)” (Art. 11, Lei n. 12.124/2011), nas pro- namento do programa para a população de priedades rurais, posses e agrovilas. menor poder aquisitivo. 286 Book 35.indb 286 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 06/03/2016 17:30:38 Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida A despeito desses vultosos resultados quantitativos, vários pesquisadores têm O conceito de eficácia social de uma política urbana apontado a má qualidade da produção habitacional do Programa, bem como a localização A implantação da habitação de interesse social periférica dos empreendimentos, ditada na sem a devida preocupação com o meio é uma maioria das vezes por interesses especulativos tendência no cenário das cidades brasileiras, do mercado de terras (Maricato, 2012; Rolnik cujo resultado é a exclusão da camada de baixa e Klink, 2011; Penalva e Duarte, 2010; Hirata, renda dos locais privilegiados na cidade, devido 2009; Bonduki, 2009). ao interesse privado. A literatura na área de Ar- Autores como Shimbo (2011), Cardoso quitetura, Urbanismo e Planejamento Urbano e Aragão (2011) e Valença e Bonates (2010) mostram que se torna cada vez mais comum a apontam que a política habitacional no Brasil, construção de conjuntos habitacionais afasta- a partir dos anos 1990, tem procurado conso- dos desses locais e, em muitos casos, distantes lidar instrumentos financeiros alinhados com de equipamentos e serviços coletivos e de uso os mercados globais, reestruturando a maneira social, o que gera desperdícios. de os interesses privados operarem no sistema, Os efeitos sociais e territoriais das políti- entretanto têm fracassado em relação aos re- cas habitacionais podem ser medidos a partir sultados sociais. de metodologias de avaliação de políticas so- Ao mesmo tempo em que se assiste a um ciais. A avaliação é um instrumento central e salto qualitativo na forma de gerir o tema mo- indispensável para a compreensão do sucesso radia a partir da criação do Ministério das Ci- e do fracasso das políticas públicas, constituin- dades e de instrumentos como a Política Nacio- do-se como importante ferramenta de gestão nal de Habitação, o SNHIS e o FNHIS, do ponto (Marinho e Façanha, 2001, p. 1). de vista da produção de cidade, vários estudos Referindo-se à avaliação de políticas e têm demonstrado a permanência dos mesmos programas sociais, Cotta (1998, p. 107) res- cenários urbanos e efeitos socioespaciais, onde salta que “(…) a avaliação desempenha um a periferia absorve a moradia popular advinda papel central no esforço de racionalização do PMCMV, em regiões desprovidas de infraes- dos programas e projetos sociais. A ausência trutura e serviços urbanos adequados (Silva e de controles e de metodologias de avaliação Silva, 2013; Maricato, 2009). geralmente leva a um gasto social ineficien- Entretanto, a maioria desses estudos volta-se para as metrópoles e cidades médias, recursos disponíveis”. enquanto pouco tem sido investigado sobre a A avaliação pode ocorrer em todas as eficácia social do PMCMV nas pequenas cida- fases do ciclo de desenvolvimento de uma po- des, que constituem a grande maioria das uni- lítica (policy cicle): fase de formulação, imple- dades locais no Brasil.2 mentação e controle dos impactos. Essa última Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 Book 35.indb 287 te e, consequentemente, ao desperdício dos 287 06/03/2016 17:30:38 Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan fase “(...) é imprescindível para o desenvolvi- Para os autores acima citados, os progra- mento e a adaptação contínua das formas e mas sociais devem ser avaliados por critérios instrumentos de ação pública”. Nela se “(...) de eficácia, “uma vez que, esperadamente, os apreciam os programas já implementados no investimentos que mobilizam devem produzir que diz respeito aos seus impactos efetivos. In- os efeitos desejados” (ibid., p. 7). vestigam-se os déficits de impacto e os efeitos Essa posição é corroborada por outros colaterais indesejados para poder extrair con- autores. Jannuzzi (2002) considera que na sequências para ações e programas futuros” avaliação dos programas implementados, os (Trevisan e Van Bellen, 2008, p. 531). Nela se resultados devem ser aferidos através de “in- apreciam os impactos efetivos dos programas dicadores-produto” de diferentes tipos, “para já implementados, investigando-se “(...) os medir a eficácia no cumprimento das metas déficits de impacto e os efeitos colaterais inde- específicas e a efetividade social das soluções sejados para poder extrair consequências para sugeridas” (p. 61). Trevisan e Van Bellen (2008) ações e programas futuros” (ibid, p. 531). também sugerem o uso do indicador de eficá- Conforme Carvalho (2003, p. 186), a ava- cia nas avaliações posteriores à implementação liação de impacto “é aquela que focaliza os de programas (avaliação ex-post ou somativa), efeitos ou impactos produzidos sobre a socie- que visam trabalhar com impactos e processos. dade e, portanto, para além dos beneficiários De modo geral, a eficácia é utilizada como cri- diretos da intervenção pública, avaliando-se tério para avaliar o alcance dos objetivos e me- sua efetividade social”. tas das políticas ou programas, representando, Embora não haja consenso quanto aos como ressalta Chiechelski (2005, p. 4), “uma aspectos metodológicos e conceituais da ava- medida de aproximação ou distanciamento en- liação de políticas, a literatura especializada tre os objetivos/metas previstos e os resultados costuma propor a avaliação de políticas e pro- efetivamente praticados”. gramas em termos de sua eficácia, eficiência e 3 Para Fagundes e Moura (2009, p. 99), a efetividade (Trevisan e Van Bellen, 2008; Mon- avaliação de eficácia é entendida como “uma teiro, 2002; Jannuzzi, 2002; Marinho e Façanha, avaliação da relação entre os objetivos e ins- 2001; Aguillar e Ander-Egg, 1994). trumentos explícitos de um dado programa”, Segundo Marinho e Façanha (2001, p. 2), porém, isso “não significa apenas aferir o al- “(...) a efetividade diz respeito à capacidade cance das metas propostas por um programa de se promover resultados pretendidos; a efi- ou política”, mas também avaliar os efeitos in- ciência denotaria competência para se produzir diretos resultantes da intervenção, sejam eles resultados com dispêndio mínimo de recursos relacionados ou contrários à intencionalidade e esforços; e a eficácia, por sua vez, remete da ação. a condições controladas e a resultados dese- Nessa mesma linha, Monteiro (2002, p. 2) jados de experimentos (...)”. A escolha desses aponta que “(...) a análise de impacto vai se critérios depende do que se deseja privilegiar interessar pelas consequências, previstas ou na avaliação. imprevistas, que um determinado programa de 288 Book 35.indb 288 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 06/03/2016 17:30:38 Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida governo poderá ter sobre um grupo social”. O acompanhamento dos projetos da política de foco no impacto da ação governamental leva o habitação popular; o padrão das casas do con- avaliador ao contato da realidade social “para junto habitacional em relação ao padrão das investigar em que medida aquela realidade so- residências ocupadas anteriormente pelas fa- freu alguma efetiva mudança” (p. 2). Citando mílias; o padrão das residências circunvizinhas Mohr (1995, p. 4), o autor completa dizendo e das residências das demais localidades/bair- que “o impacto de um programa pode ser en- ros do município; a distância entre o conjunto tendido como o resultado de uma comparação habitacional e os locais de trabalho dos seus entre aquilo que ocorreu após a implementa- moradores; o padrão de infraestrutura (água, ção do programa e aquilo que teria acontecido esgoto, luz, drenagem, pavimentação e arbo- se o programa não tivesse sido implementa- rização) do conjunto habitacional em relação do”. Dessa forma, seria possível identificar “se ao padrão de infraestrutura na localidade de os indivíduos estão em melhor situação por residência anterior das famílias; a existên- causa desta atividade governamental do que cia de equipamentos e serviços coletivos, no estariam sem ela” (Monteiro, 2002, p. 2). espaço do conjunto habitacional ou nas suas Essa perspectiva de comparação entre imediações, comparado com o que existia nos uma situação anterior e posterior à implan- bairros onde sua população residia anterior- tação de uma política é também considerada mente; as condições socioeconômicas dos mo- por Marinho e Façanha (2001) e Ramos e Sá radores antes e depois da ocupação do con- (2002). Referindo-se especificamente à ava- junto habitacional; e, por fim, a satisfação dos liação de políticas urbanas e habitacionais, moradores quanto às condições da moradia Ramos e Sá (2002) consideram que a mensu- em seu conjunto, em relação às quais estavam ração do grau de eficácia social associa-se a anteriormente submetidos (Ramos e Sá, 2002, “variáveis que caracterizam a estrutura pro- pp. 164-167). Portanto, a medida da eficácia dutiva do território municipal, em particular social vai indicar se a condição existente no à localidade onde o conjunto está situado, e conjunto habitacional é melhor, pior ou seme- à sua posição em comparação com as demais lhante àquela vivenciada pelo beneficiário no áreas do município e com a área onde sua po- seu bairro de origem. pulação anteriormente se fixara” (p. 164). A Por sua afinidade com os critérios de partir desse conceito, a avaliação do grau de avaliação anteriormente expostos e por sua eficácia social deve abranger um amplo con- aderência à questão específica da habitação de junto de variáveis, dentre elas: a classe-alvo interesse social, optou-se por adotar o critério da política (população atendida, segundo os comparativo proposto por Ramos e Sá (2002) níveis de renda, escolaridade, emprego e pro- para a avaliação da eficácia social da implanta- cedência); o conteúdo, grau de formalização e ção do PMCMV em Viçosa. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 Book 35.indb 289 289 06/03/2016 17:30:38 Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan acelerado de verticalização no Centro da cida- Reflexões a partir de um caso empírico de (Paula, 2013). Embora o município disponha de Plano Diretor e legislação urbanística atualizada de controle do uso e ocupação do O Programa Minha Casa Minha Vida em Viçosa solo,5 a falta de atuação mais decisiva do poder público municipal sobre o mercado imobiliário tem resultado num padrão de ocupação O município de Viçosa localiza-se na Zona da 2 que concentra a população mais abastada nas Mata mineira. Ocupa área de 300,15 km e tem áreas centrais e servidas por infraestrutura, en- 72.220 habitantes, sendo 56.445 residentes na quanto os bairros destinados à população de área urbana, o que representava 78,17% da menor renda crescem em direção às encostas, população, em 2010 (IBGE, 2010). Entretanto, ocupando áreas de relevo muito acidentado ou 4 a população flutuante, constituída principal- em direção às porções mais distantes da man- mente por estudantes, imprime à cidade uma cha urbana. dinâmica imobiliária que a distingue das demais cidades de mesmo porte populacional. Dados da Fundação João Pinheiro, referentes ao ano 2010, indicaram um déficit A economia local gira em torno das ati- habitacional básico de 2.023 unidades, cor- vidades da Universidade Federal de Viçosa e respondendo a 8,9% do total de domicílios de outras universidades e faculdades implan- do município, dos quais 1.339 conformam o tadas no município, e, consequentemente, das déficit habitacional na faixa de renda até três demandas, necessidades, padrão financeiro, salários mínimos, ou seja, 66,18% do déficit to- hábitos e gostos dos estudantes, professores e tal. A maior porcentagem do déficit (46,05%) funcionários universitários. Impulsionada prin- corresponde a domicílios com ônus excessivo cipalmente pelo mercado imobiliário e pelo de aluguel, 43,51% à situação de coabitação setor de serviços, a cidade enfrenta uma série familiar e apenas 5,54% corresponde a domi- de problemas, como a especulação imobiliária, cílios precários. Um montante de 2.339 domi- que reorganiza a distribuição da população e cílios urbanos tem algum tipo de inadequação reconfigura a paisagem urbana, e a desigual- habitacional: 1.347 (57,6%) não têm rede de dade social, expressa nas características morfo- esgotamento sanitário, 817 (34,9%) não têm lógicas dos bairros periféricos e de suas tipolo- rede de abastecimento de água e 317 (13,5%) gias habitacionais. não descartam o lixo corretamente (Fundação A partir da década de 1970, a cidade João Pinheiro, 2013). passou por um processo de rápida urbanização, Apesar desse quadro, pode-se dizer que motivado principalmente pela expansão das a produção de moradia para a população de atividades da Universidade Federal de Viçosa. baixa renda foi inserida na agenda das políti- A elevada demanda por moradia estudantil e cas públicas em Viçosa apenas a partir de 2010, a oferta limitada de terrenos na zona central com a contratação de unidades habitacionais têm estimulado a especulação imobiliária, que pelo PMCMV. Antes disso, houve algumas eleva os preços dos lotes e produz um processo ações esporádicas, provenientes de iniciativas 290 Book 35.indb 290 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 06/03/2016 17:30:38 Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida isoladas da administração municipal ou de en- Benjamin José Cardoso e conta com 123 ca- tidades da sociedade civil organizada. sas, localizadas em lotes de 10m x 15m (Figu- A partir da aprovação do Plano Diretor, Como se pode observar, são empreendi- tação em Viçosa ficou a cargo de três órgãos mentos de reduzidas dimensões, com um pe- municipais: a Secretaria de Assistência Social, queno número de unidades habitacionais. As cujo Departamento de Habitação e Urbanismo casas e apartamentos têm em média 39 m2 e é responsável por gerenciar o PMCMV ou ou- têm sala, dois quartos, banheiro, área de ser- tros programas habitacionais; o Conselho Ges- viço e cozinha. O padrão construtivo e de aca- tor do Fundo de Habitação de Interesse Social bamento segue rigorosamente o prescrito pelas (CGHIS), a quem cabe o estabelecimento de di- especificações do Programa, sendo construídos retrizes e critérios para a priorização de linhas em alvenaria estrutural. de ação e alocação de recursos do Fundo de Os conjuntos Benjamin José Cardoso e Habitação de Interesse Social (FHIS); e o Insti- César Santana Filho localizam-se a cerca de 1,5 tuto de Planejamento Municipal (Iplam), encar- km do centro da cidade, porém o relevo muito regado da elaboração e execução da política acidentado e as más condições de infraestru- urbana do município e de sua articulação com tura da via de acesso (calçamento em pé de a política habitacional. moleque e falta de calçadas) dificultam a aces- No período compreendido entre 2011 e sibilidade dos pedestres e do transporte cole- 2014, foram implantados três conjuntos ha- tivo. O acesso principal é feito, então, por um bitacionais do PMCMV para atender a popu- caminho alternativo, que amplia a distância e lação com renda inferior a três salários míni- o tempo de percurso, além das condições pre- mos: Benjamim José Cardoso, César Santana cárias de um trecho da via principal próxima Filho e Floresta. aos empreendimentos, que não tem calçamen- O conjunto Benjamim José Cardoso (co- to, calçadas, nem iluminação pública. A falta nhecido como “Coelha”) foi o primeiro em- desses recursos é grave, principalmente em preendimento do PCMV construído na cidade. períodos de chuva, pois impossibilita o tráfe- Entregue em setembro de 2011, localiza-se go do ônibus escolar, que é responsável pelo próximo ao Bairro Santa Clara e tem 132 uni- transporte de crianças e adolescentes até as dades habitacionais unifamiliares implantadas instituições de ensino. Nas suas proximidades em lotes de 10m x 13m. Os outros dois con- não há equipamentos urbanos como escolas, juntos foram concluídos e entregues em 2012. creches e estabelecimentos de atendimento O conjunto habitacional Floresta é um condo- básico à saúde (Unidade Básica de Saúde), e mínio vertical, constituído por 80 unidades o comércio restringe-se a um bar. O serviço habitacionais reunidas em cinco edifícios de de Correio foi recentemente instalado, mas os quatro pavimentos.O conjunto César Santana moradores reclamam que não há telefone pú- Filho (também chamado de Sol Nascente) foi blico nem telefonia fixa, o sinal de telefone ce- o terceiro empreendimento entregue à popu- lular é fraco e irregular, os horários de ônibus lação; está localizado a 500m do Conjunto são insuficientes e a principal via de acesso aos Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 Book 35.indb 291 ras 1 e 2). em 2000, o gerenciamento do setor de habi- 291 06/03/2016 17:30:38 Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan Figura 1 – Localização dos habitacionais Benjamin José Cardoso (Coelha), César Santana Filho (Sol Nascente) e Floresta Viçosa, MG, 2011 Legenda 1) Conjunto Habitacional Floresta (1) 2) Conjunto Habitacional Sol Nascente 3) Conjunto Habitacional Benjamim José Cardoso Logradouros (2) (3) Fonte: Acervo dos pesquisadores. Figura 2 – Vista dos conjuntos habitacionais: a) Benjamin José Cardoso; b) Floresta. Viçosa; c) César Santana Filho Viçosa, MG, 2011 Fonte: Acervo dos pesquisadores. 292 Book 35.indb 292 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 06/03/2016 17:30:38 Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida conjuntos residenciais ainda não foi pavimen- município deixou de exercer um importante pa- tada. A mesma situação de relevo acidentado pel na localização dos conjuntos habitacionais, repete-se no Condomínio Floresta, embora as que foram construídos em áreas mal servidas condições de acessibilidade sejam melhores e por equipamentos urbanos comunitários, so- haja equipamentos sociais e estabelecimentos bretudo nos conjuntos Benjamin José Cardoso comerciais nas suas proximidades. e César Santana Filho. Os três conjuntos foram produzidos por empresas locais, de pequeno porte, que se encarregaram de todo o processo de provisão habitacional, desde a escolha e compra do terre- A eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida em Viçosa no até a incorporação e construção das unidades, cabendo ainda às empresas a correção de Adotando como referência o método de avalia- eventuais problemas construtivos, pelo prazo ção da eficácia social proposto por Ramos e Sá de cinco anos. (2002), foram analisadas variáveis que caracte- Ao poder público municipal couberam rizam a localidade onde o conjunto habitacio- a realização do cadastro dos interessados e a nal está situado em comparação com a área organização dos documentos para serem en- onde sua população anteriormente se fixara. viados à Caixa Econômica Federal, visando à Os resultados da avaliação foram obtidos a seleção final dos beneficiários, o que foi feito partir de dados obtidos na Secretaria Municipal no âmbito do Departamento de Habitação da de Políticas Sociais, dos questionários aplicados Secretaria Municipal de Políticas Sociais. Tam- aos moradores e da observação direta realiza- bém ficaram a cargo do município a aprovação da nos três conjuntos habitacionais. dos projetos e a contrapartida exigida pelo Pro- As variáveis utilizadas para a avalia- grama, que se deu sob a forma de implantação ção do Programa foram agrupadas em cinco da infraestrutura de serviços urbanos nas vias dimensões, quais sejam: focalização do em- de acesso aos empreendimentos, já que o mu- preendimento, interação social, segregação nicípio não tem banco de terras. social, segregação espacial e satisfação com A construção dos empreendimentos ocor- a moradia. reu durante o processo de elaboração do Plano Local de Interesse Social (PLHIS), deslocando o a) Focalização do Programa foco das discussões em torno da implantação Essa dimensão refere-se ao público-alvo da de um processo permanente de planejamento política e visa avaliar se os empreendimentos habitacional no município. O Conselho Muni- atendem à classe social para o qual o Progra- cipal de Habitação de Interesse Social (CGHIS) ma foi implantado. As principais características teve papel secundário no processo, responsabi- sociais e econômicas das famílias residentes lizando-se apenas pela elaboração de critérios nos três conjuntos habitacionais foram sinteti- para seleção dos beneficiários. Assim sendo, o zadas na Tabela 1. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 Book 35.indb 293 293 06/03/2016 17:30:38 Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan Tabela 1 – Perfil socioeconômico das famílias residentes nos conjuntos habitacionais Benjamin José Cardoso (BJC), César Santana Filho (CSF) e Floresta Viçosa-MG (2014) Caracterização das famílias BJC % CSF % Floresta % Sexo do proprietário Feminino 91,3 78,9 81,3 Faixa etária dos proprietários 17 (emancipado) 18 a 20 anos 20 a 45 anos > 45 anos 0 1,6 72,4 26,0 0,8 4,1 71,5 23,6 0 3,8 72,5 23,7 Estado civil dos proprietários Casado + união estável Solteiro 33,4 46,8 25,2 41,4 42,5 30,0 Número de filhos Até 3 filhos 4 e 5 filhos 6 filhos ou mais 76,5 18,5 5,0 75,7 17,4 6,9 76,0 17,7 6,3 Família com pessoas com deficiência Geral Usuário de cadeira de rodas 2,4 0,8 9,8 0,8 10,0 0,0 Renda familiar Até 3 SM Até 1 SM 100,0 66,9 100,0 63,4 100,0 63,8 Benefício do governo Sim 62,7 59,4 63,8 Condições de propriedade da moradia anterior* Imóvel alugado Imóvel cedido/coabitação Barraco/cortiço Próprio Imóvel em área de risco pela Defesa Civil 66,9 32,3 0 0,8 0,8 56,9 37,4 3,3 0 2,4 66,2 28,8 3,7 0 1,3 * Obs.: Existem imóveis alugados e/ou em coabitação que estão em área de risco. Fonte: Resultados da pesquisa. Os beneficiários dos três conjuntos habi- conjuntos habitacionais Benjamin José Cardoso tacionais têm características sociais bastante e César Santana Filho. A maior parte tem no semelhantes. A maioria dos proprietários são máximo tem filhos, o que é um indicativo de mulheres, conforme recomendado pelas diretri- predominância de famílias pequenas ou mé- zes do PMCMV, e constituem-se como famílias dias. Esse resultado poderia justificar, de certa jovens (cujos chefes têm entre 20 e 45 anos), forma, a existência de apenas dois quartos nas o que sugere que ainda podem ter um longo residências, porém a construção de mais um tempo de moradia no conjunto, podendo vir a quarto sobressaiu nas entrevistas como um dos constituir futuros laços de solidariedade com principais desejos de reforma dos moradores os vizinhos e sentimentos de pertencimento ao nos conjuntos Benjamin José Cardoso e César lugar. Também chama atenção o significativo Santana Filho. Outro resultado importante, em- percentual de famílias cujos chefes são soltei- bora o percentual seja pequeno, é a existência ros, superando o percentual de formatos fami- de famílias com seis filhos ou mais, pois isso liares nucleares (casados + união estável) nos representa mais de três pessoas por dormitório, 294 Book 35.indb 294 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 06/03/2016 17:30:38 Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida caracterizando inadequação habitacional por conjuntos habitacionais investigados. Mais do adensamento, dado importante diante da ava- que isso, chama a atenção o elevado percentual liação da eficácia social do programa. Embora de beneficiários cuja renda familiar não excede também seja pequeno o número de pessoas 1 salário mínimo e que recebem benefício do com deficiência, deveria ter sido previsto um governo, na maioria das vezes na forma do Pro- percentual de unidades adaptadas a pessoas grama Bolsa Família. com necessidades especiais. Esses resultados indicam a clara focaliza- Antes de se mudar para os conjuntos ha- ção do Programa no município. bitacionais, a maioria das famílias residia em imóveis alugados, sobressaindo também o per- b) Interação social centual de moradores do conjunto César Santa- A interação social foi avaliada a partir dos se- na Filho que viviam anteriormente em condição guintes indicadores: relação com os vizinhos de coabitação. do conjunto habitacional e do entorno, espaço Por fim, todos os beneficiários perce- de convívio e espaços de lazer para as crianças bem no máximo 3 salários mínimos, nos três (Tabela 2). Tabela 2 – Percepção dos moradores dos conjuntos habitacionais Benjamin José Cardoso (BJC), César Santana Filho (CSF) e Floresta quanto à interação social no conjunto e no bairro anterior Viçosa, MG, 2014 BJC – % Interação social CSF – % Floresta – % Conjunto Bairro anterior Conjunto Bairro anterior Conjunto Bairro anterior Bom / ótimo 40 72 50 63 67 80 Regular 45 18 43 30 27 13 Péssimo / não tem 15 10 7 7 6 7 Bom / ótimo 68 60 42 52 67 67 Regular 20 23 28 23 10 6 Péssimo / não tem 12 17 30 25 23 27 Bom 17 62 26 62 45 30 Ruim / não tem 83 38 74 38 55 70 Espaços de lazer Bom 15 52 40 35 31 38 para as crianças Ruim / não tem 85 48 60 65 69 62 Relação com os vizinhos Relação com os moradores dos bairros vizinhos Espaços de convívio Fonte: Resultados da pesquisa. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 Book 35.indb 295 295 06/03/2016 17:30:38 Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan As relações dos moradores com vizinhos várias regiões e bairros de Viçosa, o que de- nos próprios conjuntos foram bem avaliadas mandará maior tempo para a constituição de pela maioria dos entrevistados, o que não sig- laços afetivos e de relações de pertencimento nifica que não existam conflitos entre eles. Por ao lugar. outro lado, as relações entre vizinhos eram me- As relações de sociabilidade entre os mo- lhores nos bairros anteriores do que as estabe- radores podem ser construídas ou fortalecidas lecidas no conjunto. Para isso podem concorrer pelos encontros em locais de lazer das crianças vários fatores, dentre eles o pequeno tempo de ou de convívio dos adultos. Entretanto, esses moradia no local. Os moradores do conjunto espaços foram considerados como “ruins” ou Benjamin José Cardoso são os que estão me- “inexistentes” pela maioria dos entrevistados, nos satisfeitos com a interação com os vizinhos nos três conjuntos habitacionais. A situação no próprio conjunto e que apontam maior dis- dos espaços de convívio nos bairros de origem crepância com as interações estabelecidas nos é um pouco melhor do que nos conjuntos, ex- bairros de origem. ceto no caso do Conjunto Floresta, provavel- Por sua vez, as relações com os mora- mente devido à existência de dois salões para dores dos bairros vizinhos ao conjunto habi- festas ou reuniões no condomínio. Já os espa- tacional foram consideradas como “boas” ou ços de lazer para crianças são tão ruins nos “ótimas” tanto na atual situação de moradia bairros de origem quanto nos conjuntos, exceto quanto na anterior, com exceção dos morado- no caso do conjunto Benjamin José Cardoso, res do conjunto César Santana Filho. O bom onde sobressai a precariedade desse tipo de es- relacionamento apontado pelos moradores paço. Estes resultados apontam para a falta de talvez possa ser atribuído ao fato de muitos espaços que propiciem maior interação social serem oriundos de bairros não muito distantes dos moradores. do conjunto habitacional. Esses resultados apontam para a fragili- c) Segregação social dade dos laços sociais estabelecidos nos con- Nessa dimensão analisaram-se três variáveis juntos habitacionais até o momento, mas não que interferem na inserção social das famílias permitem outras inferências, já que o tempo residentes nos conjuntos habitacionais: bairro de moradia nos conjuntos é muito pequeno de origem, profissão do chefe da família e es- e as pessoas residentes são originárias de colaridade (Tabela 3). 296 Book 35.indb 296 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 06/03/2016 17:30:38 Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida Tabela 3 – Síntese de indicadores sociais das famílias residentes nos conjuntos habitacionais Benjamin José Cardoso (BJC), César Santana Filho (CSF) e Floresta Viçosa, MG, 2014 Segregação social Bairro de origem* Escolaridade** CSF – % Floresta – % Nova Viçosa 15,1 – Santa Clara 11,1 19,5 – – 10,8 13,8 Santo Antônio Zona rural Profissão do chefe de família* BJC – % – 1,6 4,9 – Diarista + Doméstica 55,3 36,9 45,3 Do lar 11,4 15,6 16,9 Outras profissões 33,3 47,5 37,8 Ensino Fundamental 64,1 65,6 60,8 Obs.: * Foram incluídos os bairros e as profissões com percentual maior ou igual a 10%. ** Foi incluído o item de maior ocorrência. Fonte: Resultados da pesquisa. Os indicadores de endereço (local de mo- vindas do Bairro Santa Clara – o restante dos radia), profissão e escolaridade são represen- moradores dos “Predinhos dos Araújos” – e tativos da vulnerabilidade social das famílias do Bairro Santo Antônio, considerado bairro de residentes nos conjuntos habitacionais. O en- renda média-baixa. No condomínio Floresta, dereço carrega consigo o estigma da localiza- grande parte das famílias também veio do Bair- ção no espaço urbano, na medida em que o es- ro Santo Antônio. paço físico expressa a realidade social dos seus Conclui-se, inicialmente, que as pessoas moradores. Os dados referentes aos bairros de que residem nos conjuntos habitacionais têm origem dos moradores dos conjuntos habita- origens diferentes e, portanto, podem ser cionais indicaram uma grande gama de locali- depositários de costumes, crenças e valores zações, inclusive na área rural, mas na maioria culturais distintos, o que os caracterizaria co- são bairros ocupados por população de renda mo um grupo social não homogêneo (embora baixa ou média-baixa. seja homogêneo em termos de renda), fato No conjunto Benjamin José Cardoso que pode interferir nas relações sociais desen- predominaram famílias vindas do Bairro Nova volvidas no espaço de morar. Apesar disso, a Viçosa, também considerado bairro periférico maioria dos moradores indicou boas relações e de baixa renda, e dos "Predinhos dos Araú- de convivência com os vizinhos. Conclui-se, jos", conjunto de edifícios que foram invadi- também, pela grande mobilidade intraurba- dos no Bairro Santa Clara e cujas condições na gerada pela construção dos conjuntos do de moradia eram muito precárias. No conjunto PMCMV, já que os beneficiários são oriundos César Santana Filho, predominaram famílias de várias partes do município. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 Book 35.indb 297 297 06/03/2016 17:30:38 Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan A baixa qualificação e a baixa escolari- As condições de acesso aos conjuntos dade dos residentes nos três conjuntos habi- habitacionais e aos equipamentos urbanos de tacionais contribuem para o perfil profissional saúde, educação e lazer são consideradas pio- dos chefes de família, constituído na maioria res na situação atual de moradia do que no ca- por diaristas, domésticas, trabalhadoras do so dos bairros de origem. Apenas no conjunto lar e prestadores de serviços em geral, cuja Floresta o acesso ao local de trabalho foi consi- baixa remuneração contribui para perpetuar a derado melhor do que era anteriormente. condição de baixos salários e de vulnerabili- As más condições de acesso e, portanto, dade social. de mobilidade urbana, potencializam a segregação social e espacial dos moradores. d) Segregação espacial Da mesma forma que ocorre com as con- A segregação espacial foi avaliada a partir das dições de acesso, a maioria dos serviços de in- condições de infraestrutura urbana e de aces- fraestrutura urbana foi considerada como em so ao trabalho e aos equipamentos urbanos de piores condições nos conjuntos habitacionais saúde, educação e lazer (Tabelas 4 e 5). do que nos bairros de origem (Tabela 5). Tabela 4 – Percepção dos moradores dos conjuntos habitacionais Benjamin José Cardoso (BJC), César Santana Filho (CSF) e Floresta quanto às condições de acesso aos equipamentos urbanos e ao local de trabalho no conjunto e no bairro anterior Viçosa, MG, 2014 BJC – % Condições de acesso a equipamentos urbanos e ao trabalho Acesso ao local de moradia Acesso ao trabalho Acesso à escola Acesso à creche Conjunto Bom 22,5 Ruim 77,5 Bom Acesso aos espaços de lazer Floresta – % Conjunto Bairro anterior Conjunto Bairro anterior 87,2 28,2 92,3 60,0 76,7 12,8 72,4 7,7 40,0 23,3 35,3 93,6 38,9 94,4 51,5 35,2 Ruim 64,5 6,4 61,1 5,6 48,5 64,8 Bom 53,0 97,0 60,0 85,0 48,0 96,0 Ruim 47,0 3,0 40,0 15,0 52,0 4,0 Bom 35,0 93,0 39,0 68,0 43,0 93,0 Ruim 65,0 0,0 52,0 16,0 57,0 7,0 0,0 7,0 9,0 16,0 0,0 0,0 Bom 43,2 92,3 30,8 92,5 56,7 90,0 Ruim 56,8 7,7 69,2 7,5 43,3 10,0 Bom 28,2 94,9 37,5 97,5 46,4 92,9 Ruim 71,8 5,1 62,5 2,5 53,6 7,1 Não tem Acesso à Unidade Básica de Saúde CSF – % Bairro anterior Fonte: Resultados da pesquisa. 298 Book 35.indb 298 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 06/03/2016 17:30:38 Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida Tabela 5 – Percepção dos moradores dos conjuntos habitacionais Benjamin José Cardoso (BJC), César Santana Filho (CSF) e Floresta quanto à infraestrutura urbana no conjunto e no bairro anterior Viçosa, MG, 2014 BJC – % Infraestrutura urbana Conjunto Calçamento das vias internas Drenagem pluvial Esgotamento sanitário Iluminação pública Serviço de Correio Telefonia móvel Telefonia fixa* Conjunto Bairro anterior 90,0 92,5 75,0 90,0 63,3 10,0 7,5 25,0 10,0 36,7 7,0 Bom 72,5 90,0 49,0 87,0 73,0 83,0 Ruim 27,5 10,0 46,0 10,0 27,0 17,0 0,0 0,0 5,0 3,0 0,0 Bom 80,0 80,0 100,0 80,0 100,0 100,0 Ruim 20,0 20,0 0,0 20,0 0,0 0,0 Bom 85,0 87,5 80,0 77,5 100,0 93,3 Ruim 15,0 12,5 20,0 22,5 0,0 6,7 Bom 55,0 95,0 50,0 92,0 77,0 97,0 Ruim 45,0 5,0 48,0 8,0 23,0 3,0 0,0 0,0 2,0 0,0 0,0 0,0 Bom 55,0 92,5 64,0 97,0 50,0 Ruim 45,0 7,5 36,0 3,0 50,0 10,0 Bom 92,5 95,0 52,0 97,0 50,0 90,0 Ruim 7,5 5,0 40,0 0,0 50,0 10,0 Não tem 0,0 0,0 8,0 3,0 0,0 0,0 Bom 13,0 97,0 10,0 90,0 73,0 87,0 Ruim 93,0 0,0 90,0 87,0 3,0 83,0 3,0 17,0 3,0 Não tem 0,0 0,0 7,0 7,0 10,0 10,0 Bom 0,0 – 0,0 – 27,6 13,8 Ruim 0,0 – 0,0 – 72,4 86,2 100,0 – 100,0 – 0,0 Bom 28,2 95,0 47,5 89,7 63,0 83,0 Ruim 71,8 5,0 52,5 10,3 37,0 10,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 7,0 Não tem Acesso ao transporte coletivo Conjunto Ruim Não tem Coleta de lixo Floresta – % Bairro anterior Bom Não tem Abastecimento de água CSF – % Bairro anterior Não tem 0,0 Fonte: Resultados da pesquisa. Os serviços de drenagem pluvial, ilumi- pior situação é encontrada no conjunto César nação pública, coleta de lixo, correio, telefonia Santana Filho, por causa de uma canaleta pa- móvel e transporte coletivo foram considera- ra escoamento de água das chuvas que passa dos piores nos três conjuntos habitacionais. nos fundos das residências e que costuma fi- Os problemas de drenagem pluvial ocorrem no car sem limpeza, gerando mau cheiro. Não foi espaço interno dos empreendimentos, embora implantada rede de telefonia fixa nos conjun- haja rede de drenagem com bocas de lobo; a tos Benjamin José Cardoso e César Santana Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 Book 35.indb 299 299 06/03/2016 17:30:38 Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan Filho, e a ineficácia do sinal de celular é uma quanto nos bairros de origem; de fato, a cober- grande reclamação dos moradores. No caso tura da autarquia responsável pela prestação da iluminação pública, a insatisfação se deve do serviço (SAAE – Serviço Autônomo de Água às vias principais de acesso e não à iluminação e Esgoto) é muito ampla no município. no interior dos conjuntos. O serviço de lixo é considerado pior devido à menor frequência da coleta durante a semana. De modo semelhante, e) Percepção dos moradores quanto à moradia há poucos horários de ônibus durante o dia, o Por fim, analisou-se a percepção dos morado- que é motivo de reclamação por parte de mui- res quanto às condições de moradia no con- tos moradores. junto comparativamente aos bairros de origem Alguns serviços de infraestrutura foram (Tabela 6). considerados melhores do que nos bairros an- A percepção dos moradores quanto à teriores. Isso foi observado especialmente no nova moradia é melhor do que quanto às con- conjunto Floresta, em relação aos itens: acesso dições de infraestrutura e de acesso aos equi- ao trabalho e aos espaços de convívio, infraes- pamentos urbanos e, também, melhor quando trutura de esgoto, telefonia móvel e fixa, embo- comparado às condições de moradia anterio- ra essa última seja muito pouco utilizada, tanto res. Isso pode ser interpretado como satisfação no conjunto quanto nos bairros de origem. No em relação ao produto (casa ou apartamento) conjunto César Santana Filho, o único serviço entregue pelo PMCMV ou pode significar que considerado de melhor qualidade do que nos os beneficiários moravam em condições pre- bairros de moradia anterior é o abastecimen- cárias. O banheiro e o número de quartos, por to de água. Os serviços de água e esgoto fo- exemplo, foram considerados como mais ade- ram avaliados como bons tanto nos conjuntos quados no caso dos conjuntos habitacionais do Tabela 6 – Percepção dos moradores dos conjuntos habitacionais Benjamin José Cardoso (BJC), César Santana Filho (CSF) e Floresta quanto às características da moradia no conjunto e no bairro anterior Viçosa, MG, 2014 BJC – % Condição da moradia Adequado Inadequado CSF – % Floresta – % Conjunto Bairro anterior Conjunto Bairro anterior Número de quartos 52,5 70,0 87,5 Banheiro 77,5 75,0 85,0 Tamanho da cozinha 10,0 90,0 Tamanho da área de serviço 20,0 22,8 Espaço para refeições no conjunto habitacional Conjunto Bairro anterior 45,0 80,0 56,7 50,0 100,0 82,1 20,0 62,5 30,0 82,8 30,0 57,9 71,4 17,2 82,8 – 31,6 – 21,1 – Fonte: Resultados da pesquisa. 300 Book 35.indb 300 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 06/03/2016 17:30:39 Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida Tabela 7 – Satisfação dos moradores dos conjuntos habitacionais Benjamin José Cardoso (BJC), César Santana Filho (CSF) e Floresta com a moradia e com o bairro anterior Viçosa, MG, 2014 Relação com o bairro e com a moradia Relação com o bairro anterior Relação com a moradia BJC – % Muito bom / Bom Razoável Não gostava CSF – % Floresta – % 82,5 7,5 10,0 87,5 12,5 0 83,3 13,3 3,3 Gostava mais da moradia anterior do que da atual por causa dos vizinhos 4,5 7,14 6,3 Gostava mais da moradia anterior do que da atual por causa do bairro 6,8 8,93 3,1 Gostava mais da moradia anterior do que da atual porque não gosta de morar em condomínio – – 3,1 A moradia anterior era muito adequada às necessidades da família 29,5 17,9 34,4 Gosta mais da moradia atual 54,5 57,1 46,9 4,7 8,9 6,2 Não se manifestou Fonte: Resultados da pesquisa. que nas moradias anteriores, sobretudo para política, apresenta-se no Quadro 1 a síntese os entrevistados dos conjuntos César Santana comparativa das condições de moradia exis- Filho e Floresta. Uma queixa constante é a pe- tentes nos bairros de origem versus a condição quena dimensão da cozinha e da área de servi- vivenciada nos conjuntos habitacionais. ço e a falta de espaço para refeições. A satisfação com a moradia anterior, à interação social no conjunto e no bairro de manifestada por 40,8% dos entrevistados no origem é bastante variável, como se observa conjunto Benjamin José Cardoso, 33,9% no no Quadro 1. Mesmo assim, foi avaliada como conjunto César Santana Filho e 46,9% no con- “boa” ou “regular” pela maioria dos entrevis- junto Floresta, deve-se menos às características tados, com mostrado anteriormente. da casa e mais às condições do bairro, nelas Apenas no conjunto Floresta o acesso incluindo-se não só as próprias características ao local de trabalho foi considerado melhor do local, mas também as relações de solidarie- do que era anteriormente. Todos os demais dade entre vizinhos (Tabela 7). indicadores (acesso aos próprios empreendi- De posse dos dados tabulados e reto- mentos, às Unidades Básicas de Saúde, esco- mando o método proposto por Ramos e Sá las, creches e espaços de convívio/lazer) foram (2002) para medir a eficácia social de uma muito mal avaliados pelos entrevistados. As Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 Book 35.indb 301 A percepção dos moradores em relação 301 06/03/2016 17:30:39 Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan Quadro 1 – Comparação das condições de acesso, infraestrutura e moradia nos conjuntos habitacionais Benjamin José Cardoso (BJC), César Santana Filho (CSF) e Floresta em relação ao bairro de origem dos moradores, segundo a percepção dos entrevistados Viçosa, MG, 2014 Condição do conjunto habitacional em relação ao local de moradia anterior BJC – % CSF – % Floresta – % Interação social Relação com os vizinhos Relação com os moradores dos bairros vizinhos Espaços de convívio Espaços de lazer para as crianças Pior Melhor Pior Pior Pior Pior Pior Semelhante Pior Semelhante Melhor Semelhante Pior Pior Pior Pior Pior Pior Pior Pior Pior Pior Pior Pior Pior Melhor Pior Pior Pior Pior Semelhante Pior Igual Semelhante Pior Pior Semelhante Muito pior Não tem Pior Pior Pior Melhor Semelhante Pior Pior Pior Muito pior Não tem Pior Pior Pior Igual Melhor Pior Pior Pior Melhor Melhor Pior Pior Semelhante Muito pior Semelhante Não tem Melhor Melhor Melhor Pior Pior Não tem Melhor Melhor Melhor Pior Pior Não tem Melhor Condições de acesso Condições de acesso ao conjunto Acesso ao trabalho Acesso à escola Acesso à creche Acesso à Unidade Básica de Saúde Acesso aos espaços de lazer Infraestrutura urbana Calçamento das vias no interior do conjunto Drenagem pluvial Serviço de abastecimento de água Esgotamento sanitário Iluminação pública Coleta de lixo Correio Telefonia móvel Telefonia fixa Acesso ao transporte coletivo Condições da moradia atual Número de quartos Banheiro Tamanho da cozinha Tamanho da área de serviço Espaço para refeições Adequação da moradia atual em relação à anterior Fonte: Resultados da pesquisa. más condições de acesso e, portanto, de mo- Quanto à infraestrutura, as condições bilidade urbana potencializam a segregação de drenagem das águas pluviais, iluminação social e espacial dos moradores desses conjun- pública, coleta de lixo e acesso ao transporte tos habitacionais e, portanto, denotam pouca coletivo foram consideradas de pior qualida- eficácia social. de em todos os três conjuntos habitacionais. 302 Book 35.indb 302 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 06/03/2016 17:30:39 Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida A telefonia móvel e a telefonia fixa só foram Os resultados encontrados indicam melhor avaliadas no conjunto habitacional Flo- que nenhum dos empreendimentos pode resta. A telefonia fixa inexiste nos conjuntos ser considerado eficaz do ponto de vista so- Benjamin José Cardoso e César Santana Filho cial. Praticamente todas condições foram e, embora no conjunto Floresta tenha sido consideradas piores do que aquelas vivencia- avaliada como melhor do que nos bairros de das pelos entrevistados nos seus bairros de origem, trata-se de um serviço pouco utilizado moradia anterior. A situação é mais grave no pelos moradores, que preferem utilizar o telefo- caso da infraestrutura urbana e das condições ne celular. Por outro lado, a ineficácia do sinal de acesso aos próprios empreendimentos, de celular nos conjuntos César Santana Filho e aos locais de trabalho e aos equipamentos ur- Benjamin José Cardoso agrava as condições de banos de saúde, educação (escolas e creches) segregação espacial impostas pela localização e lazer. periférica dos moradores e os torna ainda mais isolados do restante da cidade. A precariedade dos acessos aos conjuntos (condições das vias principais de acesso, Os serviços de abastecimento de água dificuldade de acesso ao transporte coletivo, e esgotamento sanitário foram os únicos aos locais de trabalho e aos equipamentos bem avaliados pelos entrevistados, tanto nos de educação, saúde e lazer) constituem fa- conjuntos habitacionais quanto nos bairros tores que segregam espacialmente a popula- anteriores. ção moradora nos conjuntos habitacionais e, No caso da unidade habitacional pro- portanto, também são indicativos de falta de priamente dita, os resultados se invertem, já eficácia social. Da mesma forma, a má qua- que, na percepção dos entrevistados, a mo- lidade da infraestrutura urbana, sobretudo radia anterior era pior do que a atual. São nos acessos aos conjuntos habitacionais (co- três os aspectos considerados negativos na mo falta de calçadas, pavimentação inade- moradia atual: o tamanho da cozinha, a falta quada, falta de pavimentação e de ilumina- de um espaço para refeições e o tamanho da ção pública) isolam os moradores do restante área de serviço. da cidade e também reforçam a segregação social e espacial. Tais carências relativas à má localização Conclusões dos empreendimentos não são distintas das apontadas pelos estudos sobre o PMCMV nas Este artigo teve como objetivo empreender uma reflexão sobre a eficácia social dos con- Por sua vez, as más condições dos ser- juntos habitacionais Benjamim José Cardoso, viços urbanos no interior dos conjuntos (dre- César Santana Filho e Floresta implantados nagem pluvial, falta de sinal de celular, falta em Viçosa-MG, por meio do Programa Minha de telefonia fixa, calçamento, etc.) denotam Casa Minha Vida (PMCMV) para a população um desrespeito do poder público pelos mo- com renda familiar igual ou inferior a três sa- radores, que são tratados como cidadãos de lários mínimos. “segunda categoria”. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 Book 35.indb 303 cidades médias ou nas metrópoles. 303 06/03/2016 17:30:39 Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan O provimento da habitação de inte- Conclui-se, portanto, pela ineficácia so- resse social pelo poder público municipal cial dos conjuntos habitacionais do PMCMV limita-se à provisão da unidade habitacional, em Viçosa, sobretudo devido à concentração desvinculada de uma política urbana que vise de uma população socialmente homogênea e à localização adequada das moradias desti- numa área desprovida de condições adequa- nadas à população de baixa renda. Essa visão das de infraestrutura urbana e de acesso aos torna-se a principal responsável pela falta de equipamentos de saúde, educação e lazer, fa- eficácia social dos empreendimentos cons- tores que estão associados à localização des- truídos em Viçosa. Ainda que os moradores ses empreendimentos. estejam mais satisfeitos com as casas atuais Cientes de que os resultados desse es- do que com as anteriores, entende-se que a tudo não podem ser generalizados, longe de habitação – que abrange todos os elementos esgotar o tema, espera-se com essas reflexões que circunscrevem a vida cotidiana dos mora- ter lançado luz sobre algumas questões que dores e, portanto, extrapola a mera unidade também conformam o debate sobre as novas habitacional – não atende aos critérios de efi- formas de produção habitacional nas peque- cácia social. nas cidades brasileiras. Aline Werneck Barbosa Carvalho Universidade Federal de Viçosa, Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Viçosa/MG, Brasil. [email protected] Italo Itamar Caixeiro Stephan Universidade Federal de Viçosa, Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Viçosa/MG, Brasil. [email protected] Notas (*) Os resultados apresentados neste artigo são frutos da pesquisa denominada “Eficácia Social do Programa Minha Casa Minha Vida em Viçosa-MG”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – Fapemig. (1) Dados ob dos no site da Caixa Econômica Federal (Caixa). Disponível em: h p://www20.caixa. gov.br/Paginas/No cias/No cia/Default.aspx?newsID=1011. Acesso em: 22 jan 2015. (2) Se considerarmos como pequenas cidades aquelas cujos municípios têm população inferior a 100.000 habitantes, isso equivale a 94,6% dos municípios brasileiros, segundo dados Ins tuto Brasileiro de Geografia e Esta s ca (IBGE), em es ma va de 2014. (3) Costa e Castanhar (2003) enumeram vários critérios de avaliação: eficiência, eficácia, impacto (efe vidade), sustentabilidade, análise custo-efe vidade, sa sfação do usuário e equidade. 304 Book 35.indb 304 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 06/03/2016 17:30:39 Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida (4) Segundo dados da publicação "Retrato Social de Viçosa IV", em 2010 a população flutuante de Viçosa girava em torno de 15.000 pessoas e era formada basicamente por estudantes (Cruz, 2012). (5) Lei n. 1383/2000 e Lei n. 1420/2000, respec vamente. REFERÊNCIAS AGUILLAR, M. J. e ANDER-EGG, E. (1994). Avaliação de serviços e programas sociais.Petrópolis/RJ, Vozes. ARANTES, P. F. e FIX, M. (2009). Como o governo Lula pretende resolver o problema da habitação. Alguns comentários sobre o pacote habitacional Minha Casa, Minha Vida. Correio da Cidadania. Disponível em: h p://www.correiocidadania.com.br/index.php?op on=com_content&view=ca tegory&layout=blog&id=66&Itemid=171. Acesso em: 20 jun 2012. BONDUKI, N. (2009). Do Projeto Moradia ao Programa Minha Casa Minha Vida. Teoria e Debate. São Paulo, n. 82, pp. 8-14. BRASIL (2005). Polí ca Nacional de Habitação. 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Agradecimentos Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, pelo apoio. Marina Galatro Menta Guedes, estudante de Arquitetura e Urbanismo do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Viçosa e bolsista Fapemig, que colaborou com os autores na elaboração do ar go. Texto recebido em 31/maio/2015 Texto aprovado em 11/set/2015 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016 Book 35.indb 307 307 06/03/2016 17:30:39 Book 35.indb 308 06/03/2016 17:30:39 Instruções aos autores ESCOPO E POLÍTICA EDITORIAL Trata-se de periódico dirigido à comunidade acadêmica em geral, especialmente, às áreas de Ciências Sociais, Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional e Demografia. Os artigos recebidos para publicação deverão ser inéditos e serão submetidos à apreciação dos membros do Conselho Editorial e de consultores ad hoc para emissão de pareceres. Os artigos receberão duas avaliações e, se necessário, uma terceira. Será respeitado o anonimato tanto dos autores quanto dos pareceristas. Caberá aos Editores Científicos e à Comissão Editorial a seleção final dos textos recomendados para publicação pelos pareceristas, levando-se em conta sua consistência acadêmico-científica, clareza de ideias, relevância, originalidade e oportunidade do tema. A revista está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional. Esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem a partir do seu trabalho para fins não comerciais, e embora os novos trabalhos tenham de lhe atribuir o devido crédito e não possam ser usados para fins comerciais, os usuários não têm de licenciar esses trabalhos derivados sob os mesmos termos. A revista oferece acesso livre imediato ao seu conteúdo, seguindo o princípio de que disponibilizar gratuitamente o conhecimento científico ao público proporciona maior democratização mundial do conhecimento. A revista não aplica taxas de submissão, publicação ou de qualquer outra natureza em seus processos, sendo um veículo científico voltado à comunidade científica brasileira. CHAMADA DE TRABALHOS A revista Cadernos Metrópole é composta de um núcleo temático, com chamada de trabalho específica, e um de temas livres relacionados às áreas citadas. Os textos temáticos deverão ser encaminhados dentro do prazo estabelecido e deverão atender aos requisitos exigidos na chamada; os textos livres terão fluxo contínuo de recebimento. Os artigos podem ser redigidos em língua portuguesa ou espanhola. Os artigos apresentados em outros idiomas serão traduzidos para o português. AVALIAÇÃO DOS ARTIGOS Os artigos recebidos para publicação deverão ser inéditos e serão submetidos à apreciação dos membros do Conselho Editorial e de consultores ad hoc para emissão de pareceres. Os artigos receberão duas avaliações e, se necessário, uma terceira. Será respeitado o anonimato tanto dos autores quanto dos pareceristas. hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3514 Book 35.indb 309 06/03/2016 17:30:39 Caberá aos Editores Científicos e à Comissão Editorial a seleção final dos textos recomendados para publicação pelos pareceristas, levando-se em conta sua consistência acadêmico-científica, clareza de ideias, relevância, originalidade e oportunidade do tema. COMUNICAÇÃO COM OS AUTORES Os autores serão comunicados por e-mail da decisão final, e a revista não se compromete a devolver os originais não publicados. OS DIREITOS DO AUTOR A revista não tem condições de pagar direitos autorais nem de distribuir separatas. Cada autor receberá dois exemplares do número em que for publicado seu trabalho. NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS ARTIGOS Os trabalhos devem conter: • título, em português, ou na língua em que o artigo foi escrito, e em inglês; • texto, digitado em Word, espaço 1,5, fonte arial tamanho 11, margem 2,5, tendo no máximo 25 (vinte e cinco) páginas, incluindo tabelas, gráficos, figuras, referências bibliográficas; as imagens devem ser em formato TIF, com resolução mínima de 300 dpi e largura máxima de 13 cm; • resumo/abstract de, no máximo, 120 (cento e vinte) palavras em português, ou na língua em que o artigo foi escrito, e outro em inglês, com indicação de 5 (cinco) palavras-chave em português, ou na língua em que o artigo foi escrito, e em inglês; • referências bibliográficas, conforme instruções solicitadas pelo periódico. Os trabalhos submetidos à Cadernos Metrópole devem ser enviados pelo sistema, da seguinte maneira: (1) se o/s autor/es não possuir/em cadastro ainda, favor clicar aqui; (2) no cadastro, preencher principalmente os seguintes campos: nome, e-mail, instituição (vínculo), e no campo “Resumo da Biografia” definir sua titulação mais alta, lugar de trabalho e função de cada um; (3) depois de cadastrado, o autor deve acessar o sistema clicando aqui. Importante: • A autoria NÃO DEVE constar no documento. As informações a seguir devem ser preenchidas no passo 3 da submissão (Inclusão de Metadados): nome do autor, formação básica, instituição de formação, titulação acadêmica, atividade que exerce, instituição em que trabalha, unidade e departamento, cidade, estado, país, e-mail, telefone e endereço para correspondência. • É imprescindível o envio do Instrumento Particular de Autorização e Cessão de Direitos Autorais, datado e assinado pelo(s) autor(es). O documento deve ser transferido no passo 4 da submissão (Transferência de Documentos Suplementares). Em caso de dúvida, consulte o Manual de Submissão pelo Autor. Book 35.indb 310 06/03/2016 17:30:39 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS As referências bibliográficas, que seguem as normas da ABNT adaptadas pela Educ, deverão ser colocadas no final do artigo, seguindo rigorosamente as seguintes instruções: Livros AUTOR ou ORGANIZADOR (org.) (ano de publicação). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra. Capítulos de livros AUTOR DO CAPÍTULO (ano de publicação). “Título do capítulo”. In: AUTOR DO LIVRO ou ORGANIZADOR (org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em Salvador”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar. Artigos de periódicos AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do periódico, número do periódico, páginas inicial e final do artigo. Exemplo: TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos Sociais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28. Trabalhos apresentados em eventos científicos AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, local de realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e final. Exemplo: SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle social, monitoramento e execução, parceiras e financiamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília, MPAS/ SAS, pp. 193-207. Teses, dissertações e monografias AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição. Exemplo: FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo. Textos retirados de Internet AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso. Exemplo: FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Disponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em: 8 set 2005. Book 35.indb 311 06/03/2016 17:30:39 Rede Observatório das Metrópoles Estado Instituição Coordenador Baixada Santista Universidade Federal de São Paulo Marinez Villela Macedo Brandão Belém Universidade Federal do Pará Juliano Ximenes Pamplona Belo Horizonte Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Alexandre Magno Alves Diniz Brasília Universidade de Brasília Rômulo José da C. Ribeiro Curitiba Universidade Federal do Paraná Olga Lucia C. de Freitas Firkowski Fortaleza Universidade Federal do Ceará Maria Clélia Lustosa Costa Goiânia Universidade Federal de Goiás Celene Cunha Monteiro A. Barreira Maringá Universidade Estadual de Maringá Ana Lucia Rodrigues Natal Universidade Federal do Rio Grande do Norte Maria do Livramento M. Clementino Porto Alegre Universidade Federal do Rio Grande do Sul Paulo Roberto Rodrigues Soares Recife Universidade Federal de Pernambuco Maria Angela de Almeida Souza Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Marcelo Gomes Ribeiro Salvador Universidade Federal da Bahia Inaiá Maria Moreira Carvalho São Paulo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Lucia Maria Machado Bógus Vitória Instituto Jones dos Santos Neves Pablo Silva Lira Book 35.indb 312 06/03/2016 17:30:39 Cadernos Metrópole vendas e assinaturas Exemplar avulso: R$20,00 Assinatura anual (dois números): R$36,00 Enviar a ficha abaixo, juntamente com o comprovante de depósito bancário realizado no Banco do Brasil, agência 3326-x, conta corrente 10547-3, para o email: [email protected] Exemplares nºs _________ Assinatura referente aos números _____ e _____ Nome ___________________________________________ Endereço ________________________________________ Cidade ____________________ UF _____ CEP _________ Telefone ( Fax ( ) _______________ ) _____________ E-mail __________________________________________ Data ________ Book 35.indb 313 Assinatura __________________________ 06/03/2016 17:30:39 Book 35.indb 314 06/03/2016 17:30:39