O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova
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O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES JENNIFER MONTEIRO O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova religiosidade – Estudo de caso do grupo do Facebook “Conversando sobre Religião” SÃO PAULO 2014 JENNIFER MONTEIRO O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova religiosidade – Estudo de caso do grupo do Facebook “Conversando sobre Religião” Monografia apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, no curso de pósgraduação lato sensu de Gestão Integrada da Comunicação Digital (Digicorp), para obtenção do título de Especialista em Gestão da Comunicação Integrada Digital, sob orientação da Profª. Elizabeth Saad Corrêa. SÃO PAULO 2014 Autorizo a reprodução total ou parcial deste trabalho por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Monteiro, Jennifer O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova religiosidade – estudo de caso do Grupo do Facebook “Conversando sobre Religião”. Jennifer Monteiro: orientadora Elizabeth Saad Corrêa. São Paulo – 2014. 65 fls. Monografia (Especialização Lato Sensu) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade da São Paulo, 2014. 1. Religião. 2. Religiosidade. 3. Comunicação. 4. Cibercultura. 5. Mídias Sociais Nome: MONTEIRO, Jennifer Título: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova religiosidade – Estudo de caso do grupo do Facebook “Conversando sobre religião” Monografia apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, no curso de pós-graduação lato sensu de Gestão Integrada da Comunicação Digital (Digicorp), para obtenção do título de Especialista em Gestão da Comunicação Integrada Digital, sob orientação da Profª. Elizabeth Saad Corrêa. Aprovado em: Banca Examinadora: Prof.____________________________ Instituição:____________________________ Julgamento:______________________ Assinatura:____________________________ Prof.____________________________ Instituição:____________________________ Julgamento:______________________ Assinatura:____________________________ Prof.____________________________ Instituição:____________________________ Julgamento:______________________ Assinatura:____________________________ DEDICATÓRIA A meus pais, Marlene e Agostinho (in memorian), razão e inspiração para tudo o que sou. Saudades. AGRADECIMENTOS Ao meu eterno namorado, Fernando Brengel, por estar sempre ao meu lado e me dar forças para seguir, mesmo quando eu mesma não acreditava ser possível. À minha orientadora, Elizabeth Saad Corrêa, por me abrir as portas desse maravilhoso mundo da Comunicação Digital, e por confiar em mim, não uma, mas duas vezes! À Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, por ter me proporcionado alguns dos melhores momentos de minha vida e por sempre fazer com que eu me sinta em casa. RESUMO O advento da Internet abriu um arsenal de novas possibilidades para a comunicação, inclusive a das instituições religiosas com seus fiéis. Tudo o que antes era feito offline passa a ser feito online, e com algumas diferenças: a oferta de informação passa a ser muito maior, e o acesso a ela independe do tempo ou do espaço. Face a essa transformação, as religiões estão se movendo na direção do digital, mas o fazem com o mesmo tipo de abordagem que vinham tendo antes, como se o digital fosse uma extensão das mídias tradicionais, mais uma ferramenta à disposição do evangelizador, do porta-voz da “boa nova”. Mais um canal, e não um novo ambiente social. Acontece que o digital obedece a uma outra lógica. Se antes o fiel recebia a “Palavra” filtrada e formatada, seja nos espaços territorializados dos templos e igrejas, seja através das mídias tradicionais, agora é ele quem chega a ela por meio de “busca” e “navegação”. E, assim, como se apropria de conteúdos de outras áreas (cultura, política), os absorve, filtra, transforma e ressignifica, começa a fazer o mesmo com o conteúdo religioso. O objetivo desse estudo é entender que tipo de religião – ou religiosidade – brota nesse novo ambiente social que é a Internet, como ela se manifesta. E como o digital está se tornando o espaço para o exercício dessa religião – ou religiosidade. Palavras-chave: religião, religiosidade, comunicação, cibercultura, redes sociais. ABSTRACT The advent of Internet has opened up an arsenal of new possibilities for communication, including to the religious institutions and their followers. Everything that was previously done offline, now is made online, and with some differences: the provision of information becomes much larger, and have access to it independs of time or space. Given this transformation, religions are moving toward digital. But they do it with the same kind of approach they used before, as if digital were an extension of traditional media, another tool available to the evangelist, the spokesman for the "good news". Another channel, not a new social environment. It turns out that the digital obeys a different logic. If the religious community received the "word", filtered and formatted, whether in the territorialized spaces of temples and churches, whether through traditional media, now it is the community who comes to her using "search" and "navigation". And, as it appropriates content from other areas (culture, politics), absorbs, filters, transforms and reframes, begins to do the same with the religious content. The aim of this study is to understand what kind of religion - or religiosity – arises in the new social environment that is the Internet, how it manifests itself. And how the digital is becoming a space for the exercise of that religion - or religiosity. Keywords: religion, religiosity, communication, cyberculture, social networks. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO...................................................................................................................13 1.1. Da escolha do tema...........................................................................................................13 1.2. Do objeto de estudo..........................................................................................................14 1.3. Do problema e dos objetivos...........................................................................................15 1.4. Dos procedimentos metodológicos..................................................................................15 1.5. Dos capítulos deste trabalho............................................................................................16 2. CONTEXTUALIZANDO – RELIGIÃO E COMUNICAÇÃO.....................................18 2.1. Um pouco de História......................................................................................................18 2.2. Diferença entre religião e religiosidade..........................................................................20 2.3. Pertencimento...................................................................................................................21 2.4. Diferença entre mídia da religião e religião na mídia...................................................22 2.5. Autoridade........................................................................................................................23 3. O AMBIENTE DIGITAL E A NOVA RELIGIOSIDADE............................................25 3.1. Declínio da autoridade religiosa.....................................................................................26 3.2. Autonomia do indivíduo reforçada................................................................................29 3.3. Religião digital como terceiro espaço.............................................................................31 4. OBSERVAÇÃO DO GRUPO DO FACEBOOK “CONVERSANDO SOBRE RELIGIÃO”.............................................33 4.1. Critérios para seleção do ambiente “macro” a ser estudado.......................................33 4.2. A escolha do ambiente específico para o estudo de caso..............................................39 4.3. O grupo “Conversando sobre Religião” .......................................................................41 4.4. Definição dos critérios de análise do Grupo “Conversando sobre Religião” ............45 4.5. Análise do Grupo “Conversando sobre Religião” .......................................................46 4.5.1. Publicação de 28 de agosto de 2014 – A busca da informação religiosa..................46 4.5.2. Publicação de 29 de agosto de 2014 – A busca da intercessão religiosa...................50 4.5.3. Publicação de 30 de agosto de 2014 – Questionando os fundamentos ....................53 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................60 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................63 LISTA DE FIGURAS Figura 1 Meme da Internet: Blasphemy - A ticket to Hell has never been funnier................................27 Figura 2 Impressão de tela da página do perfil do Twitter de Deus, @Ocriador...................................27 Figura 3 Impressão de tela dos resultados de busca pela expressão “menos religião” no Facebook.....29 Figura 4 Ranking Hitwise da participação de visitas às redes sociais em fevereiro de 2014.................33 Figura 5 Ranking Comscore do número de visitantes únicos das redes sociais em fevereiro de 2014. ........................................................................................34 Figura 6 Impressão de tela dos resultados de busca pelo termo “religião” no Facebook.......................35 Figura 7 Tabela comparativa dos tipos de Grupos admitidos pelo Facebook (público, fechado ou secreto), disponível na Central de Ajuda da rede social......................................................38 Figura 8 Impressão de tela dos resultados de busca por Grupos no Facebook contendo o termo “religião”.....................................................................................................40 Figura 9 Impressão de tela do cabeçalho da página do Grupo “Conversando sobre Religião” ............41 Figura 10 Impressão de tela do quadro “Sobre o Grupo”, do “Conversando sobre Religião”. ...............42 Figura 11 Impressão de tela da publicação fixada no início da página do Gupo “Conversando sobre Religião”, com as boas-vindas aos novos membros e as regras da comunidade, publicada pelo seu moderador, P.T.A. ............................................44 Figura 12 Impressão de tela da publicação da integrante A.M. no Grupo “Conversando sobre Religião”, de 28 de agosto de 2014, às 19h56........................................47 Figura 13 Impressão de tela da publicação da integrante R.L.no Grupo “Conversando sobre Religião”, de 29 de agosto de 2014, às 20h21........................................50 Figura 14 Impressão de tela da publicação do integrante I.J. no Grupo “Conversando sobre Religião”, de 30 de agosto de 2014, às 22h12........................................55 13 1. INTRODUÇÃO 1.1. Da escolha do tema Onze anos de colégio de freiras católicas. Onze anos de orações nas filas que antecediam a entrada em classe, aulas de religião, leituras do Velho e do Novo Testamento, preparação para a Primeira Comunhão, preparação para a Crisma, comemorações da Semana Santa, Mês de Maio, Festa das Mães com missa, Festa dos Pais com missa, Formaturas com missa. Em todas as situações, algumas constantes: a autoridade estabelecida de quem conduzia esses processos – fosse a madre superiora, o padre, a professora de religião, a catequista; a inquestionabilidade daquilo que estava sendo dito; o efeito erga omnes1 daquilo que estava sendo dito; a obrigatoriedade da participação presencial nos ritos, obedecendo a tempos e modos determinados; a definição de espaços específicos para a prática religiosa – o pequeno altar, a capela, o confessionário, a igreja. Corriam os anos 1970 e início dos anos 1980, os papas eram Paulo VI (até sua morte, em 1978), João Paulo I (com seu curtíssimo pontificado de 33 dias em 1978), e João Paulo II (entronizado em outubro de 1978). O cenário descrito, que acontecia no âmbito da escola católica e dos relacionamentos interpessoais, se repetia no âmbito mais amplo das mídias. Ao longo da evolução da sociedade ocidental a Igreja Católica sempre teve um papel de destaque e soube se apropriar das tecnologias para alcançar seus objetivos de evangelização “de cima para baixo”. Salto de quase 30 anos e um novo componente vem romper o equilíbrio desse quadro: a Internet, esse novo ambiente, no qual as pessoas buscam informações, relacionam-se com os amigos e com o mundo, compram, vendem. Ou seja, fazem online tudo que faziam offline, e de uma forma amplificada. E isso vale também para a experiência religiosa. 1 Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, expressão latina cujo significado é “que tem efeito ou vale para todos”. 14 A vivência pessoal num ambiente de formação religiosa tradicional, mais especificamente católica, em contraste com as inovações trazidas pelas tecnologias digitais, despertou nosso interesse em pesquisar os efeitos que o encontro dessas duas realidades produz no fazer e no sentir religioso. Uma busca inicial demonstrou que a bibliografia sobre o assunto ainda é pequena, bastante recente e, quando existente, vinculada à realidade de outros países. Isso nos leva a acreditar na pertinência de levar adiante um estudo sobre o tema, que pode vir a enriquecer o debate sobre os processos comunicacionais no âmbito das religiões, embora não se restrinja somente a ele, podendo ser extrapolado para outras práticas sociais. 1.2. Do objeto de estudo Dentro do tema proposto, pretendemos estudar o ambiente digital como espaço de exercício de uma nova religiosidade. Interessa-nos especificamente entender como o ambiente digital está se tornando um espaço de questionamento cada vez maior da religião institucionalizada (com um crescente declínio da autoridade religiosa tradicional e das suas representações) e para a manifestação cada vez maior de uma religiosidade pessoal, individualizada. Queremos entender como as pessoas se apropriam de fragmentos do fazer religioso tradicional, os manipulam e os resignificam para torná-los algo próprio, novo e único; como deixam de ser exclusivamente receptoras da mensagem religiosa, para delas se tornarem coautoras. Sbardelotto2 (2012, p. 135-136), evocando Rüdiger (2002), escreve: As novas tecnologias da comunicação e informação estariam reduzindo a experiência humana, senão a própria figura do homem – e de Deus – a dados que podem ser armazenados, processados e disponibilizados para manipulação. O homem e o sagrado, por conseguinte, passam, assim, a se projetar em um ambiente em que tendem a ser reduzidos à informação, sujeitando-se, dessa forma, a todo tipo de cálculo, manuseio e reconstrução. Assim, os sujeitos dessa nova realidade (…) poderiam se tornar cada vez mais instáveis, fluidos, múltiplos, difusos e abertos. 2 SBARDELOTTO, M. E o Verbo se Fez Bit – A Comunicação e a Experiência Religiosas na Internet. Aparecida: Editora Santuário, 2012. 15 1.3. Do problema e dos objetivos Definidos nosso tema e nosso objeto de estudo, vamos ao próximo passo. Cumpre agora problematizá-los. Elegemos as seguintes perguntas-problema para serem respondidas no desenrolar deste trabalho: É possível falar em uma nova religiosidade incentivada pelo surgimento do ambiente digital? Em caso positivo, o que é, e como se manifesta essa que optamos por chamar de “nova religiosidade online”? Quais os fatores determinantes do surgimento dessa nova religiosidade? 1.4. Dos procedimentos metodológicos Pretendemos responder às perguntas-problema deste trabalho e alcançar os objetivos para ele delimitados mesclando as técnicas de revisão bibliográfica e de estudo de caso, conforme detalhado a seguir: Revisão bibliográfica – amparada em obras e autores que tenham se dedicado a estudos relacionados à comunicação, cibercultura, sociologia, mídia, religião e redes sociais. [...] a revisão da literatura acompanha o trabalho acadêmico desde a sua concepção até sua conclusão. Da identificação do problema e objetivos do estudo, passando por sua fundamentação teórica e conceitual, pela escolha da metodologia e da análise dos dados, a consulta à literatura pertinente se faz necessária. (STUMPF 3, 2010, p. 54) Estudo de caso – optamos por essa metodologia por acreditar que seja a mais indicada para estudar o fenômeno dessa suposta nova religiosidade que surge na ambiência digital. Nada melhor que investigar “um fenômeno contemporâneo dentro de um contexto da vida real” (YIN, 2001, apud DUARTE4, 2010, p. 216). O contexto estudado será o de um Grupo do Facebook que tem a religião como tema. A escolha do Grupo a ser estudado começou por uma busca no Facebook por grupos e páginas que tivessem “religião” como tema principal, com o cuidado de excluir aqueles eventualmente vinculados a qualquer instituição ou doutrina religiosa específica. Esse corte se justifica pois, 3 4 STUMPF, I. R. C. Pesquisa Bibliográfica. In: DUARTE, J.; BARROS, A. (Orgs). Métodos e Técnicas de Pesquisa em Comunicação. São Paulo: Atlas, 2010. DUARTE, M. Y. M. Estudo de Caso. In: DUARTE, J.; BARROS, A. (Orgs), 2010, op.cit., p. 216. 16 como explicaremos mais à frente, não nos interessa entender como as instituições religiosas se utilizam das mídias digitais, mas, sim, como as mídias digitais são utilizadas pelas pessoas comuns para vivenciar sua religiosidade (ou até justificar a sua não religiosidade). Pretendemos, partindo do caso particular e utilizando o raciocínio indutivo, fazer emergirem princípios e generalizações que possam ser extrapolados para o todo. 1.5. Dos capítulos deste trabalho Esclarecemos agora como pretendemos conduzir este trabalho, de modo a responder as perguntas-problema que propusemos e atingir o objetivo final deste estudo. Trataremos, no Capítulo 1, da contextualização de religião e comunicação do ponto de vista histórico, resgatando sua inter-relação ao longo do tempo. Também procuraremos esclarecer alguns conceitos-chave para esta monografia: as diferenças entre religião e religiosidade, entre mídia da religião e religião na mídia, a noção de pertencimento e os atributos da autoridade. No Capítulo 2, o enfoque será o ambiente digital e a nova religiosidade que acreditamos estar nele se manifestando. Utilizaremos como base as teses de Stewart M. Hoover, professor de Estudos de Mídia e Professor Adjunto de Estudos Religiosos da Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, fundador e diretor do Centro de Mídia, Religião e Cultura. Cabe ressaltar, inclusive, que foi no seminário “Religião Digital como Terceiro Espaço”, por ele proferido em abril de 2013 na Umesp – Universidade Metodista de São Paulo, que começamos a delinear com mais precisão os contornos deste trabalho. O estudo de caso ocupará o Capítulo 3. Apresentaremos, neste ponto, os critérios que nos levaram a escolher como foco de nossa análise uma rede social específica – Facebook, dentro dela um “subambiente” – um Grupo e, entre os grupos, um em particular – “Conversando sobre Religião”. Em seguida, analisaremos o Grupo escolhido e suas publicações, buscando identificar nelas os elementos indicativos do surgimento de uma nova forma de viver o “fazer religioso”. 17 Por fim, no Capítulo 4, responderemos às perguntas-problema por nós definidas, apresentando nossas considerações finais sobre o presente estudo. 18 2. CONTEXTUALIZANDO – RELIGIÃO E COMUNICAÇÃO 2.1. Um pouco de História Se considerarmos que a História só passa a existir com o advento da tecnologia e da estruturação da informação, veremos que a Igreja Católica foi a primeira “máquina” processadora de informação. Era a única que tinha acesso às tecnologias de informação da época e que possuía estrutura e recursos organizacionais suficientes para seu processamento e difusão. Basta lembrar que, na Idade Média, a cópia das obras era feita à mão, por religiosos integralmente dedicados a essa tarefa. Ou seja, a Igreja escolhia o que ia ser reproduzido, quantas cópias seriam feitas e às mãos de quem elas chegariam. A invenção da prensa, em 1440, inicialmente vista como uma ameaça a esse status, logo é absorvida, e a Bíblia passa a ser, não só o primeiro livro impresso, mas também o mais impresso de todos os livros. As Igrejas cristãs em geral, mas a católica em particular, ao darem a conhecer suas verdades sobre o mundo e sendo portadoras do Verbo, independentemente de sua base institucional e doutrinária, apropriaram-se dos dispositivos comunicacionais historicamente a seu alcance, por meio de suas várias possibilidades, para transmitir sua mensagem de fé. A própria história das Igrejas é uma história intimamente relacionada à comunicação. (SBARDELOTTO5, 2012, p. 22, grifo nosso) Na era da cultura de massa, rádio e televisão também passaram a ser utilizados como instrumentos de difusão dos conteúdos da Igreja Católica e de garantir seu espaço na esfera pública – com uma diferença: ela conta agora com a concorrência de novas denominações religiosas, muito mais preparadas para transitar no ambiente midiático. Enquanto as igrejas históricas – catolicismo e protestantismo – usavam os meios de comunicação de massa como instrumentos de sua mensagem, como transportadores de seus conteúdos, as novas religiões nascem fundidas, geneticamente produzidas pela mídia, particularmente a televisão. O que significa que as segundas correspondem ao bios midiático e as primeiras precisam aprender a ser assim para sobreviver. Ou seja, existir supõe dominar a lógica midiática. (BERGE6, 2007, p. 29) Nenhuma tecnologia é neutra. E, assim, as tecnologias que permeiam as mídias tradicionais trouxeram muitas mudanças no fazer religioso. Serviram, principalmente, para mediar e 5 SBARDELOTTO, M. op. cit. BERGE, C. Tensão entre os campos religioso e midiático. In: MELO, J. M. de; GOBBI M. C.; BRAUN, A. C..E. (Orgs.). Mídia e Religião na Sociedade do Espetáculo. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2007. 6 19 amplificar o alcance da comunicação entre Igrejas e seus seguidores. Pouco influenciaram, porém, em aspectos relacionados à autoridade, ao espaço territorializado para o fazer religioso, à necessidade da presença física nos atos religiosos, ao modo de fazer, ao tempo de fazer, aos ritos, entre outros. Ou seja, continuou reservada às igrejas e aos seus representantes devidamente reconhecidos como tal, a tarefa de “levar a Palavra”; as mídias são apenas seus instrumentos. Na contemporaneidade, o advento da Internet abre um arsenal de novas possibilidades para a comunicação, inclusive em relação às instituições religiosas e seus fiéis. Como já mencionamos, tudo o que antes era feito offline, passa a ser feito online, com algumas diferenças: a oferta de informação passa a ser muito maior, e o acesso a ela independe do tempo ou do espaço. A hora é agora e o lugar é onde o indivíduo estiver. Face a essa transformação, as religiões – inclusive a Católica, que usamos como exemplo no início deste texto por conta da familiaridade com suas práticas e tradições – estão se movendo na direção do digital. Entretanto, o fazem com o mesmo tipo de abordagem que vinham tendo antes, como se o digital fosse uma extensão das mídias tradicionais, mais uma ferramenta à disposição do evangelizador, do porta-voz da “boa nova”. Mais um canal, e não um novo ambiente social. Acontece que o digital obedece a outra lógica. Se antes o fiel recebia a “Palavra” filtrada e formatada, seja nos espaços territorializados dos templos e igrejas, seja através das mídias tradicionais, agora é ele quem chega a ela por “busca” e “navegação”. E, assim como se apropria de conteúdos de outras áreas (cultura e política, por exemplo), os quais absorve, filtra, transforma e resignifica, começa a fazer o mesmo com o conteúdo religioso: “a construção do sentido religioso passa cada vez mais pelas mãos dos indivíduos e cada vez menos pelas mãos das instituições” (FAUSTO NETO, 2004 apud SBARDELOTTO7, 2012, p. 91). Assim, o objetivo desse estudo não é esmiuçar como a religião está utilizando a mídia, mas, sim, que tipo de religião – ou religiosidade – brota nesse novo ambiente social que é a Internet e como o digital está se tornando o “terceiro espaço” – ou third space8, segundo Hoover e 7 8 SBARDELOTTO, M. op. cit.. Desenvolveremos adiante esse conceito, mais precisamente no Capítulo 3, item 3. 20 Echchaibi9 (2013) – para o exercício dessa religião – ou religiosidade. Essa mudança é tão representativa que muitos autores se referem a ela como uma “nova Reforma”, com reflexos tão importantes quanto os da Reforma Protestante: a Reforma Digital que é, segundo Drescher (2011, apud SBARDELOTTO10, 2012, p. 49): guiada não tanto por teologias, dogmas e políticas […], mas sim pelas práticas espirituais digitalmente acentuadas de fiéis comuns com acesso global a cada um e a todas as formas de conhecimento religioso previamente disponível apenas a clérigos, estudiosos e outros especialistas religiosos. 2.2. Diferença entre religião e religiosidade O estudo ao qual nos propusemos requer que se defina religião e religiosidade, uma vez que são conceitos centrais deste trabalho, e que se confundem muitas vezes. Religião (do latim, religare) é um conjunto de crenças, doutrinas, ritos e práticas estruturados, organizados, reconhecidos e aceitos por um determinado grupo como instrumentos de sua religação com Deus. Religiosidade, por outro lado, é a forma “não institucionalizada” dessa conexão com o sagrado. Ela tem uma forma mais vaga e difusa, não obedece rigorosamente a esta ou aquela tradição, não se encaixa nesta ou naquela comunidade de fiéis. É mais um sentimento, uma afetividade, um reconhecimento do mistério da transcendência. O fato de uma pessoa não seguir - ou pertencer (destacamos esse conceito porque ele virá a ser de grande importância neste trabalho) – a uma religião não significa que ela não tenha religiosidade. Muitos consideram um componente intrínseco à natureza humana essa constante busca por se conectar ao divino, ao sagrado, ao Criador, chegando a defender a ideia de um homo religiosus11. Outros acreditam que essa posição não passa de uma tentativa dos teólogos de, 9 10 11 HOOVER, S.; ECHCHAIBI, N. The Third Spaces of Digital Religion. In: MARANHÃO FILHO, E. M. de A. (Org.). Religiões e Religiosidades no (do) Ciberespaço. São Paulo: Fonte Editorial, 2013 SBARDELOTTO, M. op. cit. ELIADE, M. O Homo Religiosus. Publicado em 23 de agosto de 2011. Disponível em: http://www.saopedromaceio.com.br/index.php/ciencias-da-religiao/185-o-homo-religiosus. Último acesso em setembro de 2014. 21 subrepticiamente, defender a existência de Deus, tratando a religião como algo inato, e não cultural (ou aprendido): Na verdade, o homem é como uma máquina de criar deuses, e se tomarmos isso como verdadeiro, Deus e a religião são criações culturais, são invenções humanas que objetivam responder às suas necessidades, a seus questionamentos; por isso as religiões mudam, por isso as representações de Deus ou dos deuses mudam, porque são adaptadas ao momento histórico vivenciado por um determinado grupo. (SOUSA, B. O. 2012)12 Não é objetivo deste trabalho, no entanto, entrar nessa discussão de fundo. Basta-nos estabelecer a diferença conceitual que adotamos entre os dois termos, que, como já dissemos, serão cruciais no desenrolar deste trabalho. 2.3. Pertencimento Quando falamos da diferença entre religião e religiosidade, mencionamos que o fato de uma pessoa não seguir – ou “pertencer” – a uma religião não significa que ela não tenha religiosidade. Deparamo-nos, então, com um conceito que necessita ser definido com precisão: “pertencimento”: o que faz uma pessoa sentir-se parte de algo? O que é esse sentimento de pertencimento? [...] sonhamos com comunidade [...] com o comum e as realidades partilhadas que estão na base dela. Sonhamos com uma vida com os outros, com a segurança de lugar, familiaridade e cuidado. (SILVERSTONE, 1999, apud SOUSA, M. W. 2010, p. 41)13 Em boa medida, tudo o que nos deu esse sentido de comunidade sempre vem determinado desde o momento em que nascemos. Família, religião, etnia são os primeiros “quadros de referência que dão aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (HALL, 2003, apud DE LIBERAL, 2004)14. Agir conforme esses quadros de referência nos dá segurança e nos faz aceitos, queridos e admirados pelo nosso grupo de origem. 12 13 14 SOUSA, B. O. Homo Religiosus: um Conceito Adequado ou Indemonstrável? A Propósito de seu Uso na História das Religiões, Publicado em 2 de setembro de 2012. Disponível em: http://bertonesousa.wordpress.com/2012/09/02/homo-religiosus-um-conceito-adequado-ou-indemonstravela-proposito-de-seu-uso-na-historia-das-religioes/. Último acesso em setembro de 2014. SOUSA, M. W O Pertencimento ao Comum Mediático: a Identidade em Tempos de Transição. Revista Significação. São Paulo, v. 37, n.34, 2010, p.41. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/significacao/article/view/68112/70670. Último acesso em setembro de 2014. DE LIBERAL, M. M. C. Religião, identidade e sentido de pertencimento. In: VIII Congresso Luso-AfroBrasileiro de Ciências Sociais, Coimbra, 2004, p.13. Disponível em: http://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/MarciadeLiberal.pdf . Último acesso em setembro de 2014. 22 Ao longo de nossa existência, podemos vir a participar de outros diferentes grupos, inclusive vários simultaneamente, de acordo com os papéis que os rumos de nossa vida nos levem a desempenhar e com os interesses que venhamos a desenvolver. Pertencemos porque nos identificamos; reconhecemo-nos mutuamente enquanto membros do grupo. E, nesse intercâmbio, nos sentimos satisfeitos, gratificados, seguros. Ocorre que, na sociedade contemporânea, tudo vem se tornando mais fluido, inclusive esse sentimento de pertencimento. As novas tecnologias, a avalanche de informações, o aumento da interatividade, interconectividade e todo o horizonte de possibilidades que se abrem aos nossos olhos, fazem com que nossas demandas fiquem mais complexas e a sua satisfação, mais difícil. Os grupos aos quais “pertencemos” não dão conta de atendê-las, gerando frustração e revelando uma das principais tendências da contemporaneidade, que é a crise do pertencimento institucional. 2.4. Diferença entre mídia da religião e religião na mídia Outra distinção que julgamos importante para delimitar exatamente nosso objeto de estudo é aquela entre “mídia da religião”15 e “religião na mídia”16. Optamos por adotar a definição de Helland (2000, apud PACE; GIORDAN, 2012)17, segundo a qual mídia da religião seria a apropriação pelas religiões do ambiente da web para se comunicarem com seus fiéis – numa continuidade daquilo que sempre fizeram antes com a imprensa, o rádio, a TV. Ou seja, a mídia da religião é a interface de comunicação oficial da instituição religiosa. São ratificados, nesse modelo, os tradicionais conceitos de emissor-receptor, da comunicação “de um para muitos”18. Alguns exemplos: o site da Santa Sé19, o Portal do Santuário Nacional de Aparecida20, o Portal da Igreja Universal do Reino de Deus21, o site da Congregação Israelita Paulista22 e tantos outros. 15 16 17 18 19 20 21 22 Em inglês, religion online. Em inglês, online religion. PACE, E.; GIORDAN, G. A religião como comunicação na era digital. Revista Civitas (online), Porto Alegre, v. 12, n.3, set-dez 2012, p.423. Disponível em http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/13008/8671. Último acesso em setembro de 2014. Em inglês, one-to-many. Disponível em http://w2.vatican.va/content/vatican/pt.html. Último acesso em setembro de 2014. Disponível em http://www.a12.com/. Último acesso em setembro de 2014. Disponívem em http://www.universal.org/. Último acesso em setembro de 2014. Disponível em http://www.cip.org.br/. Último acesso em setembro de 2014. 23 Por outro lado, a religião na mídia surge do agrupamento espontâneo de pessoas com interesses comuns em redes virtuais. Nesse modelo, a comunicação é de “muitos para muitos”23, sendo que a “definição dos conteúdos e dos significados religiosos ou espirituais é confiada à interação via computador entre os indivíduos” (PACE; GIORDAN, 2012, p. 423). Complementam em seguida esses autores: [...] estamos diante de uma relevante mudança sociocultural, já que um sítio deste tipo oferece um espaço criativo e interativo para uma vasta (mais ou menos anônima) plateia de usuários, os quais, deste modo, dão a ideia de fazer para si uma religião sob medida. (ibidem, grifo nosso) Encaixam-se nesse perfil todo o tipo de fóruns, grupos de discussão e comunidades facilmente encontrados na Internet. E são agrupamentos como esses, nos quais se vivencia a religião na mídia, sobre os quais nos concentramos neste estudo. 2.5. Autoridade Consideramos importante dedicar uma atenção especial ao conceito de autoridade, pois trabalharemos bastante com ele no decorrer deste trabalho. Uma das características dessa “nova religiosidade” que nos propusemos a estudar seria justamente a perda de força das autoridades religiosas tradicionais. Recorremos, para isso, a Max Weber que, em sua obra “Os Três Tipos Puros de Dominação Legítima” (1922)24, estabelece serem estes o legal, o tradicional e o carismático. No primeiro tipo, cuja principal manifestação típica é a burocracia, a autoridade é legitimada graças a um conjunto de normas e estatutos que assim o dizem. É decorrente da regra, e não uma característica intrínseca das pessoas que a detêm. Como tal, ela deve ser exercida dentro dos parâmetros estatuídos e enquanto eles assim o determinarem. A dominação tradicional, por outro lado, origina-se nos usos e costumes da comunidade, na ancestralidade e assenta-se na figura de seu possuidor, em quem se reconhece uma dignidade própria, nata, e a quem se deve fidelidade. A autoridade patriarcal é seu exemplo mais característico. 23 24 Em inglês, many-to-many Obra póstuma de Max Weber, publicada pela primeira vez em 1922. 24 Já a autoridade decorrente do carisma implica em um sentimento de devoção e afeto à pessoa que a detém, em função de seus dons, seus talentos, seu heroísmo. O que esses três tipos de dominação têm em comum é que, para serem exercidos, eles precisam do reconhecimento daqueles que a eles se subordinam25. Sem esse reconhecimento, não há legitimidade; e sem ela, não há autoridade. Autoridade sem legitimidade só se sustenta por coação. Ressaltamos, ainda, que a tipificação apresentada ajuda a entender as origens da autoridade, o que não necessariamente significa que elas se manifestam isoladamente, no “estado puro” descrito por Weber. Uma liderança pode conjugar mais de uma fonte de legitimação. 25 Em inglês. “power of dominance”, conceito segundo o qual o poder que a autoridade tem de dominar e fazer com que se cumpram as suas ordens. 25 3. O AMBIENTE DIGITAL E A NOVA RELIGIOSIDADE As mudanças que o digital trouxe à mídia impactaram de maneira decisiva em diversas instâncias do ambiente social, e não poderia ser diferente com a religião. As instituições religiosas se aperceberam disso e, como dissemos no início do capítulo anterior, estão se movendo – umas, mais timidamente; outras, de forma mais agressiva – em direção ao digital. É uma questão de sobrevivência, já que não é a primeira vez que elas passam por isso – vide sua adaptação à chegada da mídia de massa, por exemplo. As interações entre as instituições religiosas, seus prepostos (pastores, padres e outros, conforme a denominação a que pertençam) e os fiéis passam a acontecer cada vez mais mediadas pela rede. Não é só isso: as interações mediadas pela rede, calcadas em temas e interesses religiosos e que prescindem da condução e da presença (ainda que virtual) das instituições e de seus representantes também se tornam cada vez comuns, favorecidas pela facilidade com que hoje as pessoas podem se encontrar e criar comunidades online. O que está resultando dessa convergência entre o digital e a religião – embora seja uma extensão do que acontecia antes, inclusive considerando as mídias tradicionais –, é revolucionário (no sentido de inovador) e evolucionário (no sentido de trazer um incremento às formas de vivenciar a experiência religiosa). Um dos aspectos determinantes desse cenário é que a mídia digital deu um espaço à expressão individual, que a mídia tradicional nunca pode – ou ousou – dar. Com o barateamento das tecnologias, a redução das limitações de acesso à rede e aos meios de produção, qualquer um hoje pode conectar-se, criar seu perfil numa rede social, produzir conteúdo e publicar. Seja através de um texto, uma foto ou um vídeo filmado com o próprio celular, abriu-se ao indivíduo um campo infinito para a manifestação da diversidade, da dúvida, da discordância – que foram sempre ignorados pelos grandes grupos de mídia, apegados a estereótipos, conceitos enraizados e a patrocinadores. Nesse novo ambiente, instituições – sejam governos, sejam religiões – têm dificuldade para exercer seu poder de controle, pois o digital tem seus próprios patronos. Também contribui para isso a ubiquidade do digital: como manter enquadrado nas convenções aquilo que está presente ao mesmo tempo em todos os lugares, que não conhece os limites espaciais nem 26 temporais? A lógica da formação das redes facilita a expressão de práticas que antes eram periféricas. É nesse contexto que consideramos possível falar de uma “nova religiosidade”, marcada por duas fortes tendências: o declínio da autoridade religiosa e das instituições; e o surgimento de uma maior autonomia do indivíduo nas questões relacionadas à fé e à espiritualidade. 3.1. Declínio da autoridade religiosa Em seu seminário “Religião Digital como Terceiro Espaço”26, Stewart Hoover (2013) citou um pesquisador brasileiro radicado na Inglaterra, Paulo Fernando de Moraes Farias, do Departamento de Estudos Africanos e Antropologia da Universidade de Birmingham, ao dizer que “a religião é aquilo que tem o poder de determinar o significado dos seus signos”27. Fez isso para, em seguida, apresentar um dos sintomas do declínio pelo qual passa a autoridade religiosa: “a perda do controle sobre seus próprios símbolos”28. São inúmeros os exemplos na cultura contemporânea da apropriação dos símbolos religiosos para manipulação, reinterpretação e atribuição de novos significados. De um videoclipe da cantora Madonna ao best-seller “Código da Vinci”29; da enorme profusão de “memes”30 que circulam na Internet (fig. 1)31 aos perfis bem-humorados nas redes sociais (fig. 2)32, as manifestações dessa dificuldade em manter a sacralidade dos símbolos é patente. 26 27 28 29 30 31 32 Evento realizado na Umesp – Universidade Medodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo, SP, nos dias 8, 9, 22, 23 e 24 de abril de 2013. Informação oral fornecida por Hoover, no Seminário Religião Digital como Terceiro Espaço. São Bernardo do Campo, abr. 2013. Ibid, abr. 2013. BROWN, D. O Código da Vinci. São Paulo: Editora Arqueiro, 2004. Segundo a Wikipedia, meme é, para a memória, o equivalente daquilo que os genes são para a genética - a sua menor fração. Uma unidade de informação que se propaga e multiplica facilmente de indivíduo para indivíduo, como um vírus. Ou seja, no ambiente digital, meme é tudo aquilo que é copiado, reproduzido e imitado e que se espalha com rapidez pela rede. Disponível em http://youpix.virgula.uol.com.br/comportamento/os-hereges-da-internet/. Último acesso em setembro de 2014. Disponível em https://twitter.com/ocriador. Último acesso em setembro de 2014. 27 Figura 1 - Meme da Internet: Blasphemy – Um ticket para o inferno nunca foi tão divertido. Figura 2 - Impressão de tela da página do perfil do Twitter de Deus, @OCriador. 28 Outro aspecto a destacar é a impossibilidade de manter circunscritos às próprias denominações assuntos que estas prefeririam tratar privadamente (intento que, até a bem pouco tempo, era facilmente alcançado). Exemplos não faltam: os escândalos de pedofilia envolvendo sacerdotes da Igreja Católica e que acabaram por levar o atual Papa, Francisco, a formular um pedido de desculpas33; o dossiê Vatileaks, vazamento de documentos secretos do Vaticano orquestrado pelo mordomo do Papa Bento XVI, e que teria motivado a sua renúncia ao trono de São Pedro34. Isso apenas para mencionar casos de grande repercussão internacional, sabendo que não podemos ignorar que isso acontece a cada dia, em proporções não tão “espetaculares”, na esfera das inter-relações entre as denominações religiosas e a sociedade. A mídia, com seus poderes amplificados pelo advento da tecnologia digital, tudo vê, tudo sabe e tudo compartilha. Essa nova lógica de como a mídia enquadra a realidade influencia diretamente na forma como são vistos e partilhados, não só a religião, mas todos os outros aspectos de nossa vida social. A autoridade é fragilizada por essa exposição sem a proteção do véu benevolente da tradição; fica difícil fazer declarações como se estas viessem de uma entidade superior depois disso. Talvez seja por essa razão que estejamos vendo um florescer de lideranças religiosas cuja autoridade baseia-se cada vez mais no carisma (do grego khárisma, atos, graça, favor, benefício, através do latim charísma, àtis, dom da natureza, graça divina)35 do que na tradição. Como para as denominações cristãs o carisma é um dom, uma graça concedida por Deus através do Espírito Santo36, o líder carismático conta com um trunfo poderoso diante de eventuais situações desfavoráveis causadas pela superexposição na mídia. 33 34 35 36 PARÓQUIA CRISTO REI (Jequié/BA). Papa Francisco pede perdão por sacerdotes envolvidos em casos de pedofilia. Jequié, Publicado em 11 de abril de 2014. Disponível em http://www.paroquiadecristorei.com.br/noticias/papa-francisco-pede-perdao-por-sacerdotes-envolvidos-emcasos-de-pedofilia-283/. Último acesso em setembro de 2014. FEBBRO, E. A história secreta da renúncia de Bento XVI. Disponível em http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/A-historia-secreta-da-renuncia-de-BentoXVI-/6/27404. Último acesso em setembro de 2014. Conforme a Wikipedia. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Carisma. Último acesso em setembro de 2014. O Deus único das denominações cristãs manifesta-se em três pessoas distintas; o Pai, o Filho e o Espírito Santo – a que se dá o nome de Santíssima Trindade. 29 3.2. Autonomia do indivíduo reforçada No mesmo seminário a que nos referimos anteriormente37, Stewart Hoover apontou uma tendência entre os indivíduos: uma menor preocupação com as exigências da igreja organizada e uma maior atenção com a essência da religiosidade (em suas palavras, referindose às denominações católicas e protestantes, “com o Corpo de Cristo”38). A confirmação dessa ideia, encontramos numa busca rápida na rede social Facebook (fig. 3): a expressão “mais Jesus e menos religião” parece ter virado palavra de ordem entre muitos (além de ser o título de um livro de Jack Felton e Stephen Arterburn39). Figura 3 - Impressão de tela dos resultados de busca pela expressão “menos religião” no Facebook. 37 38 39 Seminário Religião Digital como Terceiro Espaço, realizado na Umesp – Universidade Medodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo, SP, nos dias 8, 9, 22, 23 e 24 de abril de 2013. Informação fornecida por Hoover, S., no Seminário Religião Digital como Terceiro Espaço. São Bernardo do Campo, abr. 2013. Tradução nossa. FELTON, J.; ARTERBURN, S. Mais Jesus, Menos Religião. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 2002. 30 Voltamos aqui à questão já tratada no Capítulo 2, da distinção entre religião e religiosidade, esta no sentido de relação com Deus, com o sagrado. É importante ressaltar que o indivíduo, ao afastar-se da primeira, não está, necessariamente, abdicando da segunda. No Brasil, essa tendência encontra terreno fértil, tanto pela reconhecida religiosidade do brasileiro, como na sua simpatia pelo sincretismo. Como disse Frei Leonardo Boff (2014), “o povo brasileiro é espritual (sic) e místico goste ou não goste a intelectualidade secularizada [...]” 40, para depois citar o antropólogo Roberto da Matta (1984)41: No caminho para Deus posso juntar muita coisa. Nele, posso ser católico e umbandista, devoto de Ogum e de São Jorge. A linguagem religiosa de nosso pais é, pois, uma linguagem de relação e da ligação. Um idioma que busca o meio-termo, o meio caminho, a possibilidade de salvar todo o mundo e de em todos os locais encontrar alguma coisa boa e digna.42 No âmbito do digital, essa “vocação” é exacerbada, pois ele fortalece o questionamento e enfraquece a tradição, assim as instituições vão abrindo espaço para uma religiosidade individual, fluida, interativa, que vai assumindo formas diferentes, criando novas comunidades e redes, numa constante evolução. O indivíduo deixa de ser apenas “consumidor”, para também gerar o conteúdo religioso. Numa mescla desses dois papéis, torna-se prosumer, para usar o termo cunhado por Alvin Toffler em seu livro “A Terceira Onda”43. Apropriando-nos dos conceitos de Publicidade, é possível dizer também que há uma inversão no sentido do consumo religioso – o cenário está mais favorável ao pull (o “consumidor” vai atrás do produto religioso, através da busca e da navegação, e escolhe aquele que melhor lhe convém) do que ao push (pelo qual as instituições “empurram” os seus princípios e dogmas para o “consumidor”). Encerramos esse tema citando novamente o Frei Leonardo Boff (2014)44: 40 41 42 43 44 BOFF, L. O povo brasileiro: um povo místico e religioso. Publicado em 16 de março de 2014. Disponível em http://leonardoboff.wordpress.com/2014/03/16/o-povo-brasileiro-um-povo-mistico-e-religioso/. Último acesso em setembro de 2014. Apud BOFF L., op.cit., mar 2014. Segundo BOFF, o trecho pertence à obra O que faz o brasil Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1984, p. 117. TOFFLER, A. A Terceira Onda. São Paulo: Editora Record, 1980. BOFF, L., opc. cit. mar 2014. 31 O futuro religioso do Brasil não será, provavelmente, o seu passado católico. Será, possivelmente, a criação sincrética original de uma nova espiritualidade ecumênica que conviverá com as diferenças (a tradição evangélica em ascenso, o pentecostalismo, o kardecismo e outras religiões orientais) mas na unidade da mesma percepção do Divino e do Sagrado que impregna o cosmos, a história humana e a vida de cada pessoa. 3.3. Religião digital como terceiro espaço Cabe agora delimitar: o que é essa nova religiosidade? Como definí-la? Hoover e Echchaibi (2013, p. 267) falam da religião digital como terceiro espaço, usando um conceito cunhado por Soja45, em sua área de atuação, o planejamento urbano: ‘Seu terceiro espaço’ [o de Edward Soja] é a esfera onde as noções de espaço físico (o primeiro espaço) e o conceitual (o segundo espaço) são reunidas numa experiência vivida. [...] Talvez a forma mais direta de conectar o nosso trabalho com o de Soja seja a de entender que os nossos 'terceiros espaços' são uma elaboração da categoria de Soja de 'segundo espaço' (o conceitual), onde o registro do segundo espaço contém aspirações para a construção de espaços que se articulam com os espaços reais, materiais; bem como tem iterações do espaço conceitual; mas não está limitado por nenhum deles. Eles quase concebem - e pretendem agir como se - novas estruturações de espaço e prática pudessem emergir desse trabalho conceitual (e – insistimos – interativo).46 (tradução nossa) Para estes autores, a noção de terceiro espaço encerra a ideia de um “meio caminho” 47, na nossa tradução livre, entre vários elementos: entre o público e o privado; entre o institucional e o individual; entre a autoridade e a autonomia do indivíduo, entre os enquadramentos das mídias tradicionais e o prosumo individual. Para eles, os limites da religião digital são fluidos, e estão sempre “em negociação” entre as partes. Há revolução e evolução, mas não disrupção. Longe de ser meros eventos tecnológicos, os terceiros espaços religiosos no mundo digital são diferentes não porque são algo radicalmente novo, mas porque eles constroem, do encontro ambivalente do velho e do novo, formas de sociabilizar e negociar diferentes pólos da identidade cultural. Como zonas de contato (...) esses espaços não são apenas lugares onde indivíduos marginais brincam com sua individualidade periférica, mas sim locais onde as pessoas usam as capacidades 45 46 47 Geógrafo político pós-moderno e urbanista na faculdade na UCLA, onde é Professor de Planejamento Urbano, e da Escola de Economia de Londres. Original em ingles: “His 'third space' [o de Edward Soja] is the realm where purely physical (the first space) and conceptual (the second space) notions of space are brought together in lived experience. (…) Perhaps the most direct way of connecting our work to Soja's would be to suggest that our 'third spaces' are an elaboration of Soja's category of 'second space' (the conceptual) where the register of second space contains aspirations to construct spaces that are articulated to lived, material spaces as well as conceptual iterations of space, but are not constrained by either. They almost conceive of, and intend to act as if, new structuractions of space and practice can emerge from this conceptual (and – we would emphasize – interactive) work.” Em inglês, in-between-ness. HOOVER, S.; ECHCHAIBI, N. op. cit. p. 269. 32 técnicas do digital para imaginar configurações sociais e culturais para além daquelas binárias existentes, do físico contra o virtual , e do real em relação à experiência religiosa proximal.48 (idem, p. 275, tradução nossa). Fechamos este capítulo com essa citação, e reforçando que, nessa nova religiosidade a que nos referimos, as instâncias online e offline se movem com fluidez e convivem, sendo que uma influencia a outra. Não há ruptura. É, como já dissemos, um espaço de negociação. 48 Original em inglês: “Far from being mere technological events, religious third spaces in the digital realm are different not because they are radically new, but because they build from ambivalent encounter of old and new forms of sociality and negotiate differing poles of cultural identity. As a “contact zone” (…) these spaces are not simply places where marginal subjects toy around with their peripheral individuality, but rather are sites where individuals use the technical capacities of the digital to imagine social and cultural configurations beyond existing binaries of the physical versus the virtual and the real versus the proximal religious experience. 33 4. OBSERVAÇÃO DO GRUPO DO FACEBOOK “CONVERSANDO SOBRE RELIGIÃO” Encerrada a etapa de apresentação do referencial teórico que embasa nosso trabalho, passaremos, neste capítulo, ao estudo de caso propriamente dito, detalhando os critérios de nossa escolha e desenvolvendo toda a análise daquilo que obeservamos. 4.1. Critérios para seleção do ambiente “macro” a ser estudado Considerando que vários institutos de pesquisa – Comscore e Hitwise, por exemplo – concordam que o Facebook é a rede social mais visitada no Brasil, a escolha dessa rede para nosso estudo de caso foi natural. Segundo a Hitwise, ferramenta de inteligência em marketing digital da Serasa Experian, o Facebook atingiu 69% de participação de visitas em fevereiro de 2014 (fig. 4), uma alta de 3,97 pontos percentuais em relação ao mesmo período de 201349. Figura 4 - Ranking Hitwise da participação de visitas às redes sociais em fevereiro de 2014. 49 SERASA EXPERIAN. Facebook é líder há dois anos entre redes sociais no Brasil, de acordo com Hitwise. Publicado em 20 de fevereiro de 2014, disponível em http://noticias.serasaexperian.com.br/facebook-e-lider-ha-dois-anos-entre-redes-sociais-no-brasil-de-acordocom-hitwise/. Último acesso em setembro de 2014. 34 A Comscore, empresa americana líder de análise de Internet, por seu lado, em seu estudo “Brazil Digital Future in Focus 2014”, apresentado em maio de 2014, com as principais tendências do uso da internet no país, aponta o Facebook disparado na frente do segundo colocado, o Linkedin, em número de visitantes únicos (fig. 5)50: são 65,957 milhões de visitantes únicos do primeiro colocado, contra 11,841 do segundo51. Figura 5 - Ranking Comscore do número de visitantes únicos das redes sociais em fevereiro de 2014. Além desses dados, corrobora a escolha do Facebook uma rápida busca pelo termo “religião” nessa rede social. Embora a página não contabilize o número de resultados dessa busca, a simples observação indica que a rede é um terreno fértil para o estudo desse tema (fig. 6). 50 51 Chamamos atenção para um problema na representação do total de visitantes únicos do Facebook na imagem: a barra do gráfico se sobrepôs ao número (65,957), escondendo o algarismo “6” (o que resulta que o número de visitantes únicos parece ser 5,957, dado que obviamente não corresponde à realidade). Preferimos, porém, não editar o gráfico, mantendo a forma como a Comscore publicou a informação, e fazendo essa ressalva aqui. COMSCORE. Estudo da comScore: Brazil Digital Future in Focus 2014 está disponível Publicado em 29 de maio de 2014, disponível em https://www.comscore.com/por/Insights/Press-Releases/2014/5/Estudo-dacomScore-Brazil-Digital-Future-in-Focus-2014-esta-disponivel. Último acesso em setembro de 2014. 35 Figura 6 - Impressão de tela dos resultados de busca pelo termo “religião” no Facebook. 36 Definido o ambiente do Facebook para nosso estudo de caso, foi preciso restringir mais nosso foco. Deparamo-nos, então, com uma outra questão: qual “subambiente” dentro da rede seria objeto de nossa análise? Alguns caminhos se apresentaram: observação de Perfis Pessoais; observação de Páginas (também chamadas Fanpages); ou observação de Grupos. Nossa escolha acabou recaindo sobre a terceira das opções elencadas, e cumpre agora explicitar o porquê disso. Antes de tudo, consideramos importante deixar claro como o próprio Facebook define cada uma dessas opções, para então justificar seu descarte ou seleção. Consultando a “Central de Ajuda” da rede social, é possível encontrar as seguintes definições: O que é o perfil? O perfil é um conjunto de fotos, histórias e experiências que contam a sua história. Seu perfil também abrange a sua Linha do Tempo.”52 O que é uma Página do Facebook? Páginas servem para empresas, marcas e organizações compartilharem suas histórias e se conectarem com as pessoas. Assim como os perfis, você pode personalizar as Páginas publicando histórias, promovendo eventos, adicionando aplicativos e muito mais. As pessoas que curtirem sua página e os amigos delas poderão receber atualizações em seus Feeds de notícias.”53 O que são Grupos do Facebook? Os grupos do Facebook facilitam a conexão com grupos específicos de pessoas, como familiares, colegas de equipe ou de trabalho. Grupos são espaços privados onde você pode compartilhar atualizações, fotos ou documentos, além de enviar mensagens a outros membros do grupo. Você também pode selecionar uma das três opções de privacidade para cada grupo criado.”54 Por definição, o Perfil destina-se a pessoas físicas – embora muitas empresas se apropriem da ferramenta para usufruir da maior liberdade que ela proporciona em relação à Página – esta, sim, destinada às pessoas jurídicas (e seus desdobramentos e variações como é o caso das marcas, grupos de interesse etc.). Enquanto o Perfil permite funcionalidades como adicionar amigos, enviar mensagens privadas, convidar pessoas para eventos, comentar publicações de terceiros, entre outros, a Página tem esses recursos limitados, para evitar a prática de spam. 52 53 54 Disponível em: https://www.facebook.com/help/133986550032744? sr=1&query=PERFIL&sid=0UcXQXOm8uQpxQYvn) . Último acesso em setembro de 2014. Disponível em: https://www.facebook.com/help/174987089221178?sr=3&query=P %C3%81GINA&sid=0X34ld7rI3lRLHWUV. Último acesso em setembro de 2014. Disponível em: https://www.facebook.com/help/284236078342160? sr=1&query=GRUPO&sid=0zj7NL8GOxaCxwIsL . Último acesso em setembro de 2014. 37 Ao invés de adicionar amigos, a Página tem que “convencer” as pessoas a “curti-la”. Com relação à questão das configurações de privacidade também há diferenças – o Perfil permite que o usuário escolha as informações que quer deixar visíveis e para quais tipos de pessoas: todos (conteúdo público), somente amigos, somente um determinado perfil de amigos (“melhores amigos”, “amigos do trabalho” ou “amigos da escola”, por exemplo). Já a Página do Facebook é um espaço público por excelência. Seu conteúdo – publicações (inclusive de terceiros) e comentários – é acessível a qualquer pessoa. Nesse sentido, considerando o escopo deste trabalho, a Página apresentaria uma vantagem como objeto de estudo, por permitir, por padrão, acesso sem restrições ao conteúdo publicado; o que não aconteceria com o Perfil (nossa opção inicial), cujo conteúdo viria filtrado pela existência ou não do vínculo de amizade entre o observador e o titular do Perfil, bem como pelos critérios específicos de cada titular para permitir acesso às suas informações ou conteúdos. Por outro lado, a Página apresenta alguns inconvenientes. Primeiro, seria necessário descartar todas aquelas cuja titularidade pertencesse a qualquer denominação religiosa – o que chegamos a fazer. Porém, o que caracteriza a Página é que a maioria dos temas de discussão propostos parte do seu titular. Embora seja possível, são poucas as publicações de iniciativa de terceiros. Julgamos que a análise ficaria engessada por esse viés. É nesse contexto que passamos a analisar a opção dos Grupos. Esta funcionalidade, ainda que tenha recursos de privacidade que a Página não tem – como configuração pública, secreta ou fechada (fig. 7) – a partir do momento que alguém entra em um Grupo, seja ele de qual tipo for, todas a publicações ficam visíveis. Ou seja, o observador, uma vez que tenha solicitado inscrição num Grupo e tenha sido aceito pelos seus “moderadores” (que podem ser seu criador ou administradores por ele nomeados), teria acesso total a todo o conteúdo publicado, sem nenhum filtro. 38 Figura 7 - Tabela comparativa dos tipos de Grupos admitidos pelo Facebook (público, fechado ou secreto), disponível na Central de Ajuda da rede social. Outro fator interessante é que o Grupo, por se formar em torno de um interesse comum, pressupõe o interesse no debate sobre ele. E mais: a proposição dos temas desse debate é mais “democrátca”, pois isso não somente é facultado a todos os membros, como também é incentivado, servindo até mesmo como um termômetro da atividade e relevância do Grupo. Cria-se, assim, um ambiente de maior participação e interatividade, o que muito contribui para o trabalho do observador. Pesados todos esses fatores, definimos que o foco de nosso estudo de caso seria um Grupo do Facebook. Mas qual? É o que veremos a seguir. 39 4.2. A escolha do ambiente específico para o estudo de caso Como exposto anteriormente, ao escolher o foco de nosso estudo de caso, efetuamos os seguintes recortes: optamos pelo Facebook, por se tratar da rede social líder no Brasil; optamos por analisar um Grupo, por permitir acesso irrestrito aos conteúdos postados, além de ter uma natureza que incentiva maior participação e interatividade entre os membros, já que todos podem publicar e propor temas para discussão. Restava definir o alvo específico de nosso estudo de caso. Novamente, o mecanismo de busca do Facebook nos auxiliou no levantamento das possibilidades (fig. 8) que se mostraram bastante numerosas. Estabelecemos alguns critérios para a seleção, sendo que o grupo: deveria ser “independente”, ou seja, não poderia ser ligado a nenhuma denominação religiosa – nem de forma oficial, nem por desejo espontâneo de fiéis ou simpatizantes – nem a nenhuma linha de pensamento específica (por exemplo, o ateísmo); deveria ter um número relevante de membros; deveria ser ativo, ou seja, ter publicações de conteúdo frequentes e recentes, cujos autores, preferencialmente, fossem, não somente os moderadores, mas todos os perfis de membros; deveria ter um bom nível de participação e interatividade, ou seja, que a cada debate proposto fosse possível perceber o engajamento dos membros com comentários e “curtidas”. 40 Figura 8 - Impressão de tela dos resultados de busca por Grupos no Facebook contendo o termo “religião”. 41 Considerando todos esses quesitos, após solicitarmos inscrição em vários Grupos e neles sermos aceitos, de modo a fazer uma análise prévia de seu conteúdo, a escolha final recaiu sobre o “Conversando sobre Religião”. 4.3. O Grupo “Conversando sobre Religião” Como dissemos, nosso processo de escolha do foco de nosso estudo de caso se deu em etapas: primeiro definimos o ambiente “macro”, o Facebook; depois o “subambiente”, Grupos; e, por fim, entre estes, o grupo “Conversando sobre Religião”, que passamos a descrever agora. O Grupo “Conversando sobre Religião” é do tipo “fechado”, ou seja, ele é visível nos resultados de busca, qualquer pessoa que se interessar pode solicitar inscrição, mas somente os membros podem ver o conteúdo nele publicado pelos integrantes. É importante ressaltar que essas características podem ser alteradas a qualquer momento, a critério dos administradores do Grupo. O que descrevemos aqui é o que verificamos no período de nossa observação. É um dos grupos com maior número de membros entre todos os que pudemos observar nos resultados de busca, sendo mais de 16.000 integrantes em 2 de setembro de 2014, número este que cresce diariamente, comprovando o dinamismo do Grupo. Ao entrar no Grupo, qualquer pessoa (integrante ou não) pode ver no alto um cabeçalho (fig. 9) em que símbolos de diversas vertentes religiosas são colocados lado a lado. São eles (da esquerda para a direita): cristianismo, judaísmo, hinduísmo, agnosticismo/ateísmo, islamismo, wicca, druidismo, kemetismo (reconstrucionismo egípcio) e candomblé. Figura 9 - Impressão de tela do cabeçalho da página do Grupo “Conversando sobre Religião”. 42 Numa publicação datada de 6 de maio de 2014, um dos moderadores do Grupo, J. P. A., informa que a nova apresentação do Grupo trata-se de uma ilustração elaborada por um outro membro, que utiliza o pseudônimo alusivo à deusa grega dos infernos, Hékatus (e que no momento deste estudo já não é integrante do “Conversando sobre Religião”). Em um comentário posterior, quando questionado por outro membro sobre a ausência de determinado símbolo, o moderador desculpa-se: “infelizmente o Hekátos não conseguiu pôr um símbolo de cada religião, N., por pura falta de espaço na imagem, mesmo. Mas acredito que ela aqui nos comentários já valha! (sic)”. Além do cabeçalho, outro elemento padrão da página é o “Sobre o Grupo”, que fica abaixo do cabeçalho, do lado direito da página. Nele, um breve resumo do propósito do Grupo (fig. 10), com destaque para o seguinte trecho: “Nesse grupo conversaremos saudavelmente sobre as tantas religiões que existem no mundo. Tentaremos ser o mais completo (sic) possível. Tudo com muito respeito e bom senso, para não haver problemas de intolerância e afins”. Figura 10 - Impressão de tela do quadro “Sobre o Grupo”, do “Conversando sobre Religião”. 43 Por fim, julgamos importante apresentar também um elemento que, embora não seja padrão obrigatório em todas as páginas de Grupo, é um recurso que os administradores têm para destacar algo e que foi adotado no “Conversando sobre Religião”: a publicação fixada. Tratase de uma publicação como qualquer outra, que os administradores optam por fixar na parte superior do Grupo, ou seja, ela não fica sujeita ao deslocamento pela ordem cronológica: “as publicações fixadas permanecem no início até serem removidas ou desafixadas”55. Esse tipo de recurso é usado para chamar atenção para um evento próximo, para um tema de discussão específico ou, como no caso observado, para dar as boas-vindas e apresentar as “normas da casa” aos novos membros, e as relembrar aos antigos, uma vez que sempre será a primeira publicação a ser visualizada por quem acessar o Grupo. Na publicação fixada no topo da linha do tempo do “Conversando sobre Religião”56, o administrador J. P. A. recepciona os novos integrantes e elenca alguns princípios que regem o Grupo (fig.11), dos quais destacamos: – O nome que o grupo foi batizado não é por acaso (sic): quaisquer postagens de cunho religioso que inspirem reflexão sobre as religiões serão válidas e encorajadas, pois o intuito do grupo é exatamente esse: o de conversarmos sobre pontos que concordamos, ou não, sobre as diversas religiões que existem; – Logicamente não será tolerada qualquer ofensa que seja de forma direta a religião ou indivíduo (sic), seja sua moral, pensamento, ideologia...” 55 56 CENTRAL DE AJUDA DO FACEBOOK. Disponível em: https://www.facebook.com/help/www/399494523452700. Último acesso em setembro de 2014. Disponível em: https://www.facebook.com/groups/forum.religiao/permalink/132774690226126/. Último acesso em setembro de 2014. 44 Figura 11 - Impressão de tela da publicação fixada no início da página do Gupo “Conversando sobre Religião”, com as boas-vindas aos novos membros e as regras da comunidade, publicada pelo seu moderador, P.T.A. Pudemos observar que os administradores têm uma presença bastante ativa na moderação dos debates, sem cercear a livre manifestação dos membros, mas atuando firmemente quando 45 compreendem que houve excessos por algum membro ou que algum dos princípios do Grupo tenha sido desrespeitado. Com isso conseguem manter um ambiente de discussão e interação bastante saudável e rico, principalmente se compararmos com outros Grupos que analisamos quando da etapa de seleção do foco de nosso estudo de caso. Essa característica também foi determinante na escolha do “Conversando sobre Religião” para o presente trabalho. Assim, com base no que foi descrito, consideramos os critérios que havíamos definido para escolher o Grupo que seria objeto de nosso estudo – “independência” com relação a quaisquer denominações religiosas, número significativo de membros, participação ativa e constante dos membros na proposição de temas, engajamento dos integrantes nas conversas – foram plenamente satisfeitos pelo “Conversando sobre Religião”. 4.4. Definição dos critérios de análise do Grupo “Conversando sobre Religião” Nosso estudo de caso compreendeu um período de três dias – 28, 29 e 30 de agosto de 2014 – no qual acompanhamos as publicações do Grupo “Conversando sobre Religião” e as interações delas decorrentes. Infelizmente, o Facebook não dispõe de uma ferramenta que permita sabermos o número exato de postagens que o Grupo recebe a cada dia, porém, pela nossa observação, é possível afirmar que ela gira em torno de cinco novas postagens/dia. Com base nisso, selecionamos três destas publicações, uma para cada dia, para uma análise mais aprofundada à luz do nosso referencial teórico. O critério para definir a data da publicação foi o da “postagem” original (proposição do tema pelo seu autor), e não das interações que dela decorreram. Por outro lado, o critério para encerramento da coleta de dados é até um dia após o período selecionado (para haver tempo da postagem do dia 30 receber comentários, e considerando que eles acontecem em maior intensidade nas 24 horas subsequentes à publicação), abarcando aí todas as interações havidas até esse momento. Portanto, interações posteriores ao dia 31 de agosto de 2014, ainda que referentes às publicações originais efetuadas no prazo definido, foram desconsideradas. Tomamos o cuidado de selecionar publicações de temas e autorias diferentes, para tentar aproveitar ao máximo a riqueza das discussões que tiveram lugar nesse ambiente digital. Dito isso, passamos ao estudo de caso propriamente dito. 46 4.5. Análise do Grupo “Conversando sobre Religião” Procedemos agora à apresentação das publicações selecionadas para este estudo de caso e sua análise. 4.5.1. Publicação de 28 de agosto de 201457 – A busca da informação religiosa A primeira publicação que analisaremos foi ao ar em 28 de agosto de 2014, às 19h56 (fig.12), e é de autoria da integrante A. M. Ela reporta ter “sentido a presença de alguém” que não estava fisicamente em seu quarto, e pergunta aos membros do Grupo se alguém sabe do que se trata. Esse tipo de publicação, em que o integrante do Grupo expõe suas dúvidas sobre diversos aspectos do tema “religião” e solicita a opinião dos demais membros é uma constante no “Conversando sobre Religião”, sendo bastante popular. Durante o período de observação a publicação teve um bom índice de engajamento, tendo recebido dois “curtir” e trinta comentários, de dezesseis pessoas diferentes (alguns interagiram mais de uma vez). Muitos comentários também, por sua vez, receberam “curtidas” (33 no total) dos membros do Grupo. É importante destacar que a dúvida não é dirigida a alguém em específico, um “especialista” no assunto, mas a todos do Grupo, independentemente da religião que professam, e mesmo àqueles que não professam nenhuma. Também não é dirigida pessoalmente a um padre, um pastor, um rabino, um líder espiritual, uma autoridade religiosa. Nem mesmo é encaminhada através de sites institucionais; Perfis, Páginas ou Grupos do Facebook vinculados a alguma denominação religiosa, que reproduzem os “'discursos validados' pela doutrina, que 'liga os indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes proíbe, consequentemente, todos os outros'” (FOUCAULT, 1970)58. Tampouco é dirigida a uma tradicional comunidade religiosa, composta por “fiéis”, “irmãos” e “irmãs” que pertencem a uma mesma denominação religiosa, compartilham da mesma doutrina e reproduzem “construções discursivas […] moldadas e condicionadas” (SBARDELOTTO, 2012, p. 222) pelo sistema religioso do qual fazem parte. A dúvida foi encaminhada a pessoas comuns, que fazem parte de uma comunidade digital e que não têm, necessariamente, nenhuma relação no ambiente offline. 57 58 Disponível em: https://www.facebook.com/groups/forum.religiao/permalink/156279751208953/ . Último acesso em setembro de 2014. Apud Sbardelotto, M. 2012, op. cit. p. 216. 47 Figura 12 - Impressão de tela da publicação da integrante A.M. no Grupo “Conversando sobre Religião”, de 28 de agosto de 2014, às 19h56. 48 Observando as interações decorrentes da publicação, identificamos várias manifestações de acolhimento da integrante que encaminhou a dúvida: “já senti isso”; “nao precisa ter medo” (sic); “eu tambem tive uma experiencia parecida” (sic); “isso acontece direto comigo, relaxa rs” (sic); “tive a sensacao q estava flutuando no ceu” (sic); “tbm ja tive experiências desse tipo” (sic); “eu sinto a presença de alguém o tempo todo”; “já senti um espírito me abraçando”. As interações consideradas “ofensivas”, como “liga pra policia” e uma que parece ter recomendado um psiquiatra (provavelmente foi apagada por um dos administradores ou pelo autor, que depois se justificou “não, eu não disse para procurar um psiquiatra de maneira sádica, eu disse seriamente. Se sentiu ofendida (sic), desculpe”) – são repreendidas pela moderação do Grupo através de um dos seus representantes, J. P. A., com base nas normas de conduta explicitadas na publicação fixada, que já mencionamos anteriormente (fig. 11): – Logicamente não será tolerada (sic) qualquer ofensa que seja de forma direta a religião ou indivíduo (sic), seja sua moral, pensamento, ideologia... - Pedimos a todos que utilizem o bom senso na hora de suas publicações, o grupo foi criado para que possamos conversar sobre religião e assuntos interligados, postagens exclusivas para piadas ou “zoeiras” não serão aceitas; (sic). Em ambas as situações, reconhecemos segurança, familiaridade e cuidado, elementos que, como já mencionamos, são buscados ao fazer parte, pertencer a uma comunidade. Ou seja, a sensação de pertencimento é reforçada e incentiva os membros a continuar buscando as respostas acerca de questões ligadas às religiões e à religiosidade no Grupo “Conversando sobre Religião”. Sobre a questão levantada, propriamente dita, cada membro que participa da “conversa”, expõe sua visão, de acordo com suas crenças: “provavelmente um espírito que estava lhe visitando” (sic); “manda rezar uma missa .e (o espírito de) um ente muito querido seu” (sic); “pode ter sido um sonho”, “algum espirito que te quer bem olha vc e te protege” (sic); “primeiro tente analisar possibilidades prováveis, e racionais (…) se não houver possibilidades físicas, ai pode pensar que foi um espírito ou algo do tipo (sic)”; “eh alguém que ama muito vc e quer seu bem tente senpre manter bons pessamentos tentar de algum mudo entrar em contato” (sic). Em nenhum momento foi citada nominalmente esta ou aquela religião. A menção à palavra 49 “missa” num dos comentários sugere um rito católico; o que é contraditório, pois o catolicismo não admite que espíritos de pessoas falecidas venham “visitar” os vivos. Isso não chega a se constituir numa novidade, considerando que, como dissemos anteriormente, com o surgimento da Internet as pessoas passam a fazer online tudo que faziam offline; e considerando o sincretismo religioso atribuído ao povo brasileiro. Ou seja, se offline as pessoas já tinham a tendência a absorver influências de outras religiões, a tendência é que isso continue acontecendo online. O que diferencia esse novo momento é que isso tende a ser amplificado. A citação constante do termo “espírito” não permite inferir se os integrantes que o utilizaram estão ligados a alguma linha religiosa específica, pois várias admitem sua existência (Espiritismo, Umbanda, Esoterismo são alguns exemplos, mas não nos alongaremos nessa questão, pois ela foge ao escopo desse trabalho). Assim como a negação de aspectos místicos da experiência (“um sonho”) também não permite concluir se quem emitiu esse tipo de opinião segue alguma linha religiosa que não admite essa possibilidade, ou se simplesmente não segue religião nenhuma. Dito isso, fica a cargo da autora da publicação se apropriar de todos esses conteúdos, analisálos, confrontá-los com outras fontes – “to lendo a respeito de religião e talvez isso esteja mexendo com a minha cabeça” (sic) – e deles tirar a sua própria conclusão. Ou seja, o “fazer religioso” representado pela frequência à catequese dos católicos, à escola dominical dos protestantes, aos aconselhamentos espirituais das mais diversas denominações, desloca-se para o ambiente digital, dentro de uma comunidade independente, formada por leigos. Reconhecemos, portanto, na análise deste caso: o enfraquecimento da autoridade religiosa institucionalizada (padres, catequistas, pastores etc.), em seu papel de “levar a Palavra”; e o fortalecimento da “rede” como fonte das informações e orientações sobre o “fazer religioso”; a substituição da comunidade religiosa tradicional (encontradas nas paróquias, templos etc.), por uma comunidade digital independente, que passa a atender a necessidade de pertencimento de seus membros; e a busca de uma religiosidade única e individual, construída a partir de fragmentos de várias religiões e religiosidades. 50 4.5.2. Publicação de 29 de agosto de 201459 – A busca da intercessão religiosa Passamos agora à análise da publicação que foi ao ar em 29 de agosto de 2014, às 20h21 (fig.13). Foi enviada pela integrante R. A., que diz: “minha tia esta agora em uma cirurgia no coração (…) queria pedir para que todos, independente da religião, mandasse pensamentos positivos” (sic). Figura 13 - Impressão de tela da publicação da integrante R.L.no Grupo “Conversando sobre Religião”, de 29 de agosto de 2014, às 20h21. 59 Disponível em https://www.facebook.com/groups/forum.religiao/permalink/156778381159090/. Último acesso em setembro de 2014. 51 Estamos, aqui, diante de outro tipo de publicação, onde o autor busca a “intercessão” dos demais integrantes do Grupo para uma causa difícil. Bastante usual e popular no “Conversando sobre Religião”, despertou um bom nível de engajamento dos integrantes, com 37 “curtidas” e dezenove comentários (que envolveram dezessete pessoas diferentes, inclusive a autora), muitos destes também merecedores da chancela “curtir” (31 no total) dos membros do Grupo. A intercessão é “pedir em favor do outro”. Na religião católica, por exemplo, os fiéis solicitam a intercessão dos anjos, santos e beatos de sua devoção junto a Deus – tradicionalmente, a invocação é seguida do pedido “rogai por nós, que recorremos a vós”. Dependendo da intenção da oração, a invocação pode ser feita ao santo “padroeiro” daquela causa – Santa Rita, padroeira das causas impossíveis; Santo Expedito, padroeiro das causas urgentes; São Francisco, protetor dos animais; entre outros (a Igreja Católica possui mais dez mil santos e beatos). Seja numa oração individual, seja num bilhetinho colocado aos pés da estátua de um santo na igreja, para que seu pedido chegue a Deus, o fiel solicita a mediação de um terceiro, mas esse terceiro possui características especiais, como o fato de ter sido oficialmente reconhecido pela Igreja. No caso de um santo, este foi inscrito no cânone dos santos pela Santa Sé (daí a expressão “canonização”) após longo processo de análise dos seus “méritos” pela Congregação para as Causas dos Santos, o que equivale a dizer que aquela pessoa levou uma vida virtuosa, é um modelo a ser seguido, está “no céu”; e a prescrever o seu culto. No caso de um “beato”, trata-se de um reconhecimento, também pela Santa Sé, de que aquela pessoa, por suas qualidades, se encontra no céu, e permitindo seu culto (e não prescrevendo seu culto). A beatificação é considerada um passo anterior à canonização. A intercessão junto a Deus também pode ser pedida ao líder religioso ou aos fiéis da mesma comunidade, em várias situações. Recorrendo mais uma vez ao catolicismo, o pedido de intercessão pode ser feito, por exemplo, informalmente, numa conversa, ou dentro do rito da missa, no “Oremos” – momento em que o celebrante convida os presentes a fazer mentalmente seu pedido a Deus. Após uma pausa, ele eleva as mãos e “profere a oração, oficialmente, em nome de toda a Igreja. Nesse ato de levantar as mãos o celebrante está assumindo e elevando a Deus todas as intenções dos fiéis. Após a oração todos respondem AMÉM, para dizer que aquela oração também é sua”60. 60 SINTONIA DE JESUS'S BLOG. Missa passo a passo – Oremos, Primeira Leitura, Salmo, Segunda Leitura. Publicado em 12 de maio de 2009. Diponível em http://sintoniadejesus.wordpress.com/2009/05/12/missa-passo-a-passo/. Último acesso em setembro de 2014. 52 Nesse caso, o fiel solicita a mediação da comunidade religiosa a que ele pertence, seja na figura de seu líder, seja na de seus membros. No caso do líder religioso – no catolicismo, um padre – estamos diante de alguém que passou por um longo período de preparação e só depois disso foi oficialmente “autorizado” pela Igreja a exercer tal função. Ou seja, a sua autoridade passa pelo reconhecimento da instituição à qual ele está ligado. Já no caso da comunidade formada pelos demais fiés, estão todos unidos pela mesma fé e recebem esse mandato do próprio Evangelho: “Também vos digo que, se dois de vós concordarem na terra acerca de qualquer coisa que pedirem, isso lhes será feito por meu Pai, que está nos céus. Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mateus 18:1920)61. O pedido de intercessão, objeto dessa publicação analisada, feito por R. L. aos integrantes do “Conversando sobre Religião”, abdica de todas essas formalidades. Na verdade, a autora evita até mesmo qualificá-lo como tal, uma vez que se diz “sem religião” – ela pede que mandem “pensamentos positivos”. A solicitação é dirigida a um grupo heterogêneo – “todos, independente da religião” – e que não compartilha, necessariamente, muito mais coisas do que aquele ambiente digital. A exemplo do que vimos ao analisar a publicação anterior (item 4.5.1.), aspectos como “autoridade religiosa”, “reconhecimento institucional”, “discursos validados”, são não são levados em consideração. Quando passamos à análise das interações provocadas pela publicação, chama atenção a diversidade de manifestações de religiosidade que chegam em resposta a esse pedido de “pensamentos positivos” da autora, naturalmente interpretados como um pedido de intercessão: “deus vai passa na frente” (sic); “que os orixás abrace sua tia” (sic); “confie em DEUS ele er fiel” (sic); “que Oxaguiã Te Conforte Minha Querida, Assim como a toda sua família. & Que Obaluayê Dê a Cura a Ela... Muita Luz” (sic); “porque para Deus nada é impossível. Lc 1:37”; “que Deus em toda sua bondade derrame bençãos em forma de luz e que toda esta bondade de Deus seja como um bálsamo curador para sua tia muita paz e luz pra vc e sua familia” (sic); “paz de jah pra ela e pra vc” (sic); “q lucifer tenha piedade da alma dela”; “deus sera seu medico amem” (sic); “que Jah ilumine”. Embora nenhuma religião seja citada nominalmente, é possível distinguir elementos que sugerem ligação com as tradições do catolicismo, do protestantismo, do candomblé, do 61 Edição consultada: https://www.bibliaonline.com.br/acf/mt/18/19-20. Último acesso em setembro de 2014. 53 espiritismo, do satanismo e do rastafári. Todas as manifestações são bem recebidas pela autora R. L., que revela, inclusive, não pertencer a nenhuma religião: Gente, minha tia já está no quarto. Houve problemas na cirurgia mas no final ocorreu tudo bem, o pior já foi! Obrigada a todos pelas mensagens, de verdade, não pertenço a nenhuma religião mas respeito cada uma delas e procuro sempre entendelas.. Pessoas boas e de bom coração existem em qualquer religião e eu vi isso através dos comentários. Obrigada novamente e muita luz a todos! (sic). A observação dessa publicação nos leva a algumas constatações: a mediação entre o indivíduo e Deus adquire uma fluidez maior: liberta-se da rigidez dos ritos e da autoridade estabelecida, desloca-se do âmbito “formal” e “institucional” (offline ou online) para o das relações sem cerimônia e casuais de uma comunidade digital independente; alguém que se diz sem religião pede a pessoas de religiões e religiosidades diferentes que enviem pensamentos positivos, e é atendido com a invocação do divino segundo as diferentes interpretações dos respondentes. É como se peças de quebra-cabeças diferentes fossem misturadas, se encaixassem e ainda resultassem numa nova imagem, perfeita e com sentido próprio. Apropriando-nos de uma terminologia da música, foi feito um mashup62 com esses elementos e o resultado foi algo novo, único e com sentido religioso não só para a autora da publicação como para os demais membros do Grupo; com o engajamento dos membros do Grupo na publicação, o acolhimento do pedido feito pela sua autora e a tolerância à diversidade que permeou as interações, a comunidade digital mais uma vez saiu fortalecida em relação às comunidades religiosas tradicionais. Nas palavras da autora, R.L.: “pessoas boas e de bom coração existem em qualquer religião e eu vi isso através dos comentários”. 4.5.3. Publicação de 30 de agosto de 201463 – Questionando os fundamentos A terceira publicação do Grupo “Conversando sobre Religião” objeto de nossa análise foi ao ar em 30 de agosto de 2014, às 22h12, e foi enviada pelo integrante I.J. (fig. 14). Neste caso, o autor não busca orientação, nem faz um pedido – sua participação tem uma característica questionadora, revelando seu ceticismo com os dogmas religiosos ao propor a seguinte 62 De acordo com Wikipédia, “um mashup é uma canção ou composição criada a partir da mistura de duas ou mais canções pré-existentes, normalmente pela transposição do vocal de uma canção em cima do instrumental de outra, de forma a se combinarem”. 63 Disponível em https://www.facebook.com/groups/forum.religiao/permalink/157288447774750/. Último acesso em setembro de 2014. 54 questão para os demais membros do Grupo: Suponhamos que eu acredite em fadas (e apenas um símbolo), e que faço delas minha base para a minha religião (sic). Crio uma espécie de livro sagrado, que contém as façanhas que elas fizeram, juntamente da maneira de como elas criaram o universo e tudo o que nele contem (sic). […] Com o passar do tempo ganho vários adeptos, e esta minha religião, ganha grandes proporções (sic). […] Você, usando de suas crenças, ou falta dela, teria como, ou pode provar que elas não existam (sic)? […] lembrando que grande parte das religiões seguem somente o que os seus respectivos livros sagrados dizem, logo dizer que seu Deus (seja ele qual for) e o verdadeiro e único, baseado apenas nisso não seria presunção demais (sic)? A publicação recebeu cinco “curtidas” e 29 comentários, postados por 11 integrantes (inclusive o próprio autor). Os comentários, por sua vez, receberam no total cinquenta “curtidas”. 55 Figura 14 - Impressão de tela da publicação do integrante I.J. no Grupo “Conversando sobre Religião”, de 30 de agosto de 2014, às 22h12 56 Ao propor essa discussão, o autor tocou num dos temas mais caros à maioria das religiões: seu livro sagrado – por exemplo, a Bíblia para os cristãos, o Alcorão para os muçulmanos, a Torá para os judeus. Entre eles, um ponto em comum: a ideia de que teriam sido escritos por inspiração divina, e que seus autores seriam santos, profetas, pessoas iluminadas. Um caso recente ocorrido na Justiça brasileira corrobora – de uma maneira infeliz, sem dúvida – a importância desse símbolo: o juiz Eugênio Rosa de Araújo, titular da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro negou provimento a um pedido do Ministério Público Federal de exclusão de vídeos do YouTube com manifestações da denominação evangélica Igreja Universal do Reino de Deus que discriminariam e ofenderiam a Umbanda e o Candomblé 64. Para embasar a sua decisão, uma das alegações do magistrado foi justamente a de que as crenças afro-brasileiras não poderiam ser consideradas religiões, pois não teriam um livro sagrado: “No caso, ambas manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado” (grifo nosso)65. Mais tarde, diante da repercussão negativa junto à mídia e à opinião pública, o juiz reviu os fundamentos de sua decisão – sem voltar atrás, no entanto, no indeferimento da liminar: O forte apoio dado pela mídia e pela sociedade civil, demonstra, por si só, e de forma inquestionável, a crença no culto de tais religiões, daí porque faço a devida adequação argumentativa para registrar a percepção deste Juízo de se tratarem os cultos afro-brasileiros de religiões, eis que suas liturgias, deidade e texto base são elementos que podem se cristalizar, de forma nem sempre homogênea. (grifo nosso)66 Ainda que nem todas as religiões tenham a sua Bíblia, seu Alcorão ou sua Torá, fica clara a força do livro sagrado como símbolo. Na hipótese que o autor desenvolve em sua publicação no Grupo “Conversando sobre Religião”, a desconstrução desse símbolo começa quando ele introduz a questão dizendo “suponhamos que eu acredite em fadas” (grifo nosso) – levando a uma associação imediata com algo fantasioso, ou “contos da carochinha” –, embora logo em seguida tente amenizar a colocação, justificando: “e apenas um símbolo” (sic). A partir daí, são colocados em xeque, de uma vez só, vários aspectos dessas religiões: 64 65 66 Disponível em: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI201113,21048Juiz+diz+que+culto+afrobrasileiro+nao+e+religiao. Último acesso em setembro de 2014. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/arquivos/2014/5/art20140519-06.pdf . Último acesso em setembro de 2014. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI201287,41046Juiz+do+Rio+reconsidera+decisao+e+reconhece+cultos+afrobrasileiros. Último acesso em setembro de 2014. 57 a origem do texto – que seria a inspiração divina; o papel do livro sagrado como revelação de uma verdade que une uma comunidade religiosa; como consequência, a própria existência de algo que possa ser considerado dogma67; por fim, a própria ideia do deus verdadeiro e único. Mais tarde, ao longo das trocas de mensagens que se sucedem, o autor I.J. volta a se manifestar, ao ser questionado por um outro membro: “não possuo nenhuma religião, sou ateu”. Os comentários que a publicação suscitou podem ser subdivididos da seguinte forma: a) Ratificação dos fundamentos da religião (a começar por seu livro sagrado): Seria presunção realmente, mas isso só se não houvesse comprovação de nada do q o livro diz.. o que não ocorre..(sic). […] Mas se vc se interessasse mesmo em saber mais sobre ela (a Bíblia) veria claramente grande parte que se comprova por fatos. Se vc tiver coragem de questionar, a bíblia terá coragem de responder.” (grifo nosso) “[...] porque há fatos sobre a existencia de Deus que não podem ser paupados, comprovados cientificamente e nem todas as coisas da bíblia podem ser comprovadas então temos liberdade pra anular a existencia de Deus e tudos os fatos históricos que compravam diversas histórias da biblia? so pq nossa mente é tao limitada p entender certos fatos? seria tolice […] (sic) A integrante G.S., autora dos comentários cujos trechos reproduzimos acima, embora não se declare seguidora desta ou daquela religião, dá indícios de pertencer a alguma denominação cristã – ela menciona textualmente “a bíblia” (sic) cinco vezes nas suas duas interações e, numa outra vez, refere-se a ela como “o livro”. É interessante notar que, dos 29 comentários que a publicação do membro I.J. gerou, dois foram da integrante G.S. Porém, estes foram os únicos que assumiram a postura de ratificar os dogmas da religião, recebendo três “curtir”. Estes, porém, não significam necessariamente uma concordância irrestrita com as colocações de G.S., pois foram dados por pessoas que assumiram, em seus próprios comentários, posturas diferentes das expressadas por ela. b) Negação dos fundamentos da religião e apoio à tese do autor, alguns usando um tom bem-humorado, e até debochado: 67 Segundo a Wikipedia, dogma é o “ponto fundamental e indiscutível de uma crença”. 58 você não teria religião alguma, ou divindade nenhuma se não lhe fosse incutido essa ideia, na forma de um livro ou em forma de cultura; escreva o livro e comece a sua religião!; sempre pensei assim tbm, a respeito da bíblia cristã por exemplo. Escreve o livro, eu compro e ainda te sigo (sic); (sic). já tem uma seguidora; não existiria religião se alguém não a inventasse, escrevendo bíblias e tal c) Conciliação de diferentes conceitos de religiosidade, sem necessariamente apegar-se a esta ou aquela religião: você tem que se lembrar que é muito mais do que apenas escrever algumas histórias, você tem que contar (…) todos os valores morais e ensinamentos que você queira passar para as pessoas; eu tbm cheguei a ser assim, sem crença nenhuma, dúvidei de tudo e de todas as religiões (sic). Mas ‘toda religião tem seu lado bom’. Não podemos saber quem está além de nós, mas acredito que há algo além de nós. Por isso adotei a bruxaria (grifo nosso); seguir ou não um livro sagrado, ou desde livro formular uma religião (sic), não faz diferença, é um direito de cada um, ser Ateu ou Religioso são direitos individuais, ninguém precisaria provar nada para ninguém. O ponto é querer que os outros sigam as suas ideias na força, ou simplesmente ficar se metendo na vida alheia por isso […] Detalhe não tenho religião, mas tenho religiosidade (sic) (grifo nosso); As religiões em si não são más (grifo nosso), o problema sempre foi e sempre será o homem! Crer num deus e numa punição eterna, caso seja mal (sic), é necessário para algumas pessoas! E todos nós temos a necessidade de nos apegar à algo (sic)! Até o ateu tem essa necessidade, ele se apega à não existência de Deus e quer provar à todo custo q ele não existe (sic). Assim somos nós! Alguns pontos chamam a atenção nesse último grupo de comentários, já que eles: não atribuem às religiões um conceito negativo (“toda religião tem seu lado bom”); demonstram tolerância com as diferentes formas de viver a religião e a religiosidade (“seguir – ou não um livro sagrado, ou desde livro (sic) formular uma religião, não faz diferença”); colocam o indivíduo no centro dos problemas de cunho religioso (“o ponto é querer que os outros sigam as suas ideias na força”; “o problema sempre foi e sempre será o homem!”). Ao longo dos debates resultantes da publicação outro aspecto que acaba vindo à tona e sendo questionado é o da autoridade religiosa, sempre vista negativamente quando citada. Isso 59 ocorreu no contexto dos comentários que tipificamos como de “negação” ou de “conciliação”. Não houve menção a esse aspecto nos comentários de “ratificação”. isso, meu amigo, já não é pelos fieis (ao menos, espero que não) e sim os líderes. A tão famosa jihad por exemplo, era para ser interpretada como uma guerra espiritual, que aconteceria apenas dentro de cada individuo, mas veja aí o que aconteceu (sic). (grifo nosso) Vemos muito na Tv aberta, pastores, padres, e outros que utilizam da palavra de uma divindade para "controlar" de alguma forma os seguidores. As pessoas realmente necessitam daquilo? Ou e somente uma má utilização da religiosidade? (sic) existe o uso da má fé dos sacerdotes para com os adeptos das crenças, pois se acredita que os sacerdotes, por dominarem a doutrina com excelencia estejam 'em mais sintonia' com o divino, e ainda utilizam de manipulação para agregar mais a religião, e claro, ao $eu E$pírito (sic)”(grifo nosso). E podem ver que a maioria desses pastores e padres utilizam do antigo testamento para conseguirem manipular seu povo! (sic) Ao cabo da análise dessa publicação, reconhecemos, portanto: mais uma vez foi a comunidade digital independente – e não as comunidades religiosas tradicionais – o fórum que as pessoas buscaram para debater as questões relativas à sua própria religiosidade (ou “não religiosidade”); a maioria dos participantes da “conversa” têm ideias próprias sobre religião e religiosidade, que passam longe da aceitação incondicional de dogmas; percebe-se em todo o desenrolar do debate, desde sua proposição e passando por todos os seus desdobramentos, um movimento de busca das respostas que as religiões tradicionais não estão conseguindo dar. Em outras palavras, uma busca de algo a que valha a pena pertencer; a autoridade religiosa é muito mal avaliada e sai bem enfraquecida da discussão. Merece destaque a predominância de conceitos (utilizados de forma explícita ou não) como “má-fé”, “controle” e “manipulação” para descrevê-la. “Estou me sentindo em casa aqui nesse grupo”, diz um dos integrantes no andamento dos debates da publicação que acabamos de analisar. Ao que uma outra integrante responde: “tbm gostei do grupo”. Para eles, o “Conversando sobre Religião” já é uma comunidade da qual vale a pena pertencer. 60 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Cumpre agora apresentar nossas conclusões a respeito do estudo que nos propusemos a fazer. Para tanto, gostaríamos de retomar aquele cenário descrito no início deste trabalho, quando nos referimos à nossa experiência numa instituição de ensino de tradição católica. Mencionamos, então, algumas constantes e passaremos a cotejá-las com aquilo que observamos ao longo de desenvolvimento desta monografia. 1) A autoridade estabelecida de quem conduzia esses processos – fosse a madre superiora, o padre, a professora de religião, a catequista. Como vimos, essa autoridade (seja das instituições religiosas, seja de seus prepostos) perdeu muito de sua força, e já não é mais exercida sem sofrer muitos questionamentos. Deixou, inclusive, de ser a única referência que os indivíduos buscam para tratar de temas relacionados à religião e à religiosidade. Vimos a demonstração disso na análise das publicações e nas interações dos membros do Grupo “Conversando sobre Religião” em várias situações, desde aquela em que a integrante procura orientação religiosa no Grupo, até nos comentários mais duros, associando à liderança religiosa conceitos como manipulação e máfé. 2) A inquestionabilidade daquilo que estava sendo dito. Nada mais é intocável. Nem os dogmas, nem os símbolos religiosos. A religião perdeu o controle sobre seus próprios símbolos, que passaram a ser não só questionados, mas manipulados, reinterpretados e resignificados. Também tivemos amostras disso, mais fortemente na publicação do dia 30 de agosto, que colocou em pauta a credibilidade dos livros base das religiões, entre outros fundamentos. 3) O efeito erga omnes daquilo que estava sendo dito. Hoje, nada vale para tudo e para todos. As pessoas estão cada vez mais em busca de uma religiosidade própria, individual, desatrelada dos fundamentos desta ou daquela religião. Elas ainda buscam o transcendente, mas ele assume diferentes contornos de acordo com as conveniências e preferências de cada um. Essa tendência, que já era forte no offline, adquiriu uma amplitude muito maior no online. Os conteúdos estão ao alcance de um clique; formar comunidades em rede é simples e rápido; e é fácil encontrar dentro dessas comunidades pessoas que pensem como você, por mais “fora da caixa” que você pense. Gostos e interesses 61 são partilhados, gerando pertencimento, novos discursos e ação. Como dito num dos comentários do “Conversando sobre Religião”: “ser Ateu ou Religioso são direitos individuais, ninguém precisaria provar nada para ninguém. O ponto é querer que os outros sigam as suas ideias na força”68. 4) A obrigatoriedade da participação presencial nos ritos, obedecendo a tempos e modos determinados. Assim como os dogmas e os símbolos são questionados e transformados, o mesmo acontece com os ritos. Eles tornam-se abertos, perdem formalidade, incorporam fragmentos de outras religiões e religiosidades e são cada vez mais midiatizados. O ambiente digital do “Conversando sobre Religião” serviu para que alguém pedisse a intercessão da comunidade para uma causa; e para que os demais membros a dessem. Um rito, um “fazer religioso” aconteceu, e não foi necessária a presença física de ninguém. 5) Definição de espaços específicos para a prática religiosa – o pequeno altar, a capela, o confessionário, a Igreja. Como dissemos antes, o digital acabou com os limites impostos pelo tempo e o espaço. Assistir a uma cerimônia celta, por exemplo, que acontece a milhares de quilômetros de distância não é problema. Basta ter um computador ou um celular ao alcance. Para pedir a intercessão da comunidade por uma causa importante o indivíduo tampouco necessita se deslocar até a Igreja onde essas pessoas se reúnem – a sua comunidade está ali, do outro lado das telas, mas muito mais próxima que qualquer outra. Diante destas constatações, voltamos às nossas perguntas-problema: É possível falar em uma nova religiosidade incentivada pelo surgimento do ambiente digital? Em caso positivo, o que é, e como se manifesta essa que optamos por chamar de “nova religiosidade online”? Quais os fatores determinantes do surgimento dessa nova religiosidade? Considerando o referencial teórico no qual mergulhamos e a observação do estudo de caso do Grupo do Facebook “Conversando sobre Religião”, concluímos que sim, é possível pensar no surgimento de uma nova religiosidade no ambiente digital. Acreditamos que se trata de um processo em andamento, mas que não pode ser ignorado. Não representa uma disrupção, mas 68 Comentário feito à postagem de 30/08/2014, a terceira do corpus de análise. 62 uma revolução e uma evolução, como dito anteriormente. A procura pelo transcendente continua acontecendo, mas agora pode se fazer pelo mecanismo de busca do Facebook, do Google e de outras ferramentas online. As informações que a rede devolve a cada busca, as comunidades a que ela nos apresenta são absorvidas, filtradas, interpretadas e reenquadradas de modo a atender nossas demandas individuais. Um ponto muito importante é que a mediação digital favorece o florescimento de uma grande diversidade religiosa, na contramão da tendência conservadora que observamos na sociedade. Especificamente no “Conversando sobre Religião” isso é perceptível, mas é preciso ressaltar que muito disso se deve à atuação firme e presente dos moderadores do Grupo. Essa não é uma realidade que possa ser extrapolada para fora desse contexto, principalmente se levarmos em conta as manifestações de intolerância (não só a religiosa, mas também a religiosa), que presenciamos ou que chegam ao nosso conhecimento diariamente. Interessante também é como o digital pode atender à necessidade de pertencimento que as pessoas originalmente buscavam nas comunidades religiosas tradicionais. O acolhimento e o reconhecimento disso por parte dos integrantes do “Conversando sobre Religião” são exemplos, a ponto das pessoas apresentarem aos demais membros do Grupo suas dúvidas, seus questionamentos, e até declararem que “se sentem em casa” no Grupo. De um lado temos: mais acesso à informação, facilidade para criar comunidades e gerar conteúdos novos e próprios. De outro, um vácuo deixado pela crise da autoridade das instituições engessadas, que não souberam responder às novas demandas dos fiéis, nem lidar com a fluidez da sociedade contemporânea. Concluímos serem esses os principais fatores desencadeadores dessa nova religiosidade que as pessoas estão construindo para si no ambiente digital. Até onde isso chegará, ainda é cedo para dizer. As pessoas continuarão a se mover nesse “terceiro espaço”; o offline e o online continuarão a se influenciar mutuamente. De qualquer forma, desde já é possível sentir uma migração do conceito de ter uma religião para o de ser religioso, o que, sem dúvida é positivo, na medida em que o ter pode significar apenas um rótulo, enquanto o ser conduz à prática. 63 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Nestas referências bibliográficas limitamo-nos a elencar as obras relacionadas ao tema da comunicação, da religião e da cibercultura. As demais fontes de informação e pesquisa não diretamente relacionadas a esses temas foram incluídas nas notas de rodapé ao longo do trabalho. As URLs (endereços eletrônicos) informadas foram acessados por diversas vezes ao longo do desenvolvimento dessa monografia, sendo que os últimos acessos aconteceram em setembro de 2014. BERNARDO, K. Os Hereges da Internet. Publicado em 24 de novembro de 2011. Disponível em: http://youpix.virgula.uol.com.br/comportamento/os-hereges-da-internet/. Último acesso em setembro de 2014. BOFF, L. O povo brasileiro: um povo místico e religioso. 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