análise do poema “hijo del alma” de josé martí e as dificuldades
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análise do poema “hijo del alma” de josé martí e as dificuldades
PROFT em Revista ISBN 978-85-65097-00-0 Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Vol. 2, Nº 1 Junho de 2012 ANÁLISE DO POEMA “HIJO DEL ALMA” DE JOSÉ MARTÍ E AS DIFICULDADES TRADUTÓRIAS DO ESPANHOL PARA O PORTUGUÊS DO BRASIL RESUMO Jefferson Odair da Silva Santos Professor de Espanhol e Leitura e Produção de Textos (LPT) da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP) Professor com formação em letras Português/Espanhol Universidade de Taubaté (UNITAU) Pós-graduado em tradução Espanhol/Português Universidade Gama Filho São Paulo (UGF) Luzimar Goulart Gouvêa Graduado em Letras pela Universidade de Taubaté, Mestrado em Teoria e História Literária pela Unicamp; Professor Unitau e Fatec-BP Jefferson Odair da Silva Santos Contato: [email protected] Este trabalho tem por tema o cotejamento e a análise da tradução de textos literários. Toda língua estrangeira, ao ser introduzida num outro contexto sociocultural, leva certo tempo para ser assimilada devido às diferenças, nos aprendentes, dos registros gramaticais, quer nos âmbitos sintático, morfológico, fonológico-fonéticos, quer no âmbito semântico, tanto em manifestações escritas quanto em manifestações orais. Como é possível traduzir textos, e mais ainda textos literários, para nossa língua materna sem perder os elementos poéticos, como, por exemplo, na poesia, a sonoridade das rimas ou a métrica das sílabas? É possível conservar a riqueza de um poema e manter a mesma emoção e sentido que o poeta tenta passar para seus leitores? Eis algumas perguntas que se nos apresentam em nossa pesquisa. Visando responder a alguns dos problemas da tradução de textos poemáticos, selecionamos e traduzimos, para o português do Brasil, um texto do poeta cubano José Martí, especificamente o poema “Hijo del alma”, de sua obra Ismaelillo, (1ª ed. – 1969), em duas modalidades: uma tradução literal e uma tradução transcriada. Para dar cabo deste trabalho, tivemos por objetivo, inicialmente, apresentar alguns aspectos teóricos da tradução. A seguir, nosso objetivo foi o de apresentar a poesia de José Martí. Finalmente, em face do texto original e dos textos por nós traduzidos, procedemos a um cotejamento deles em que foram observadas as fidelidades e as infidelidades em relação aos elementos poéticos do texto original, as soluções semânticas, as soluções gramaticais e as aproximações e os diálogos multiculturais. A realização deste trabalho de cotejamento justifica-se pela tentativa de discussão acerca do ato tradutório, pelo desvelamento do trabalho de tradução como um trabalho de transcriação e de diálogos culturais, na perspectiva presente dos estudos multiculturalistas. Este trabalho também se justifica pela contribuição que pode dar a estudantes do Ensino Médio e a estudantes universitários, bem como a professores universitários, recolocando em circulação, no fluxo dos estudos literários, textos do poeta cubano, um autor de importância capital para a literatura cubana e latinoamericana. A fundamentação teórica desta pesquisa encontra ancoradouro em autores como Arrojo (1998, 2002 e 2003), Otoni (1998), Candido (2004), Norma Goldstein (2004), Campos (1992), Rodrigues (2011), entre outros. A metodologia empregada foi a da pesquisa bibliográfica. Como resultados de nossa pesquisa, vimos que, pelo fato de o poema de José Martí não apresentar uma marcação de forma (métrica e rímica, principalmente), os impasses maiores no ato da tradução são os de natureza semântica, o que leva ao recurso da transcriação e para o qual se pode lançar mão de um aproveitamento da cultura para a qual se traduz o texto, configurando-se aquilo que preconizam os estudos multiculturais. Palavras-Chave: José Martí; tradução; multiculturais, cotejamento de obras. Proft em Revista transcriação; estudos Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Análise do Poema “Hijo Del Alma” de José Martí e as Dificuldades Tradutórias do Espanhol para o Português do Brasil CONSIDERAÇÕES INICIAIS Toda língua estrangeira, ao ser introduzida num outro contexto sociocultural, leva certo tempo para ser assimilada devido às diferenças, nos aprendentes, dos registros gramaticais, quer nos âmbitos sintático, morfológico, fonológico-fonéticos, quer no âmbito semântico, tanto em manifestações escritas quanto em manifestações orais. Este trabalho tem por tema a tradução, o cotejamento e a análise da tradução de texto literário. É possível traduzir textos, e mais ainda textos literários, para nossa língua materna sem perder os elementos poéticos, como, por exemplo, na poesia, a sonoridade das rimas ou a métrica das sílabas? É possível conservar a riqueza de um poema e manter a mesma emoção e sentido do poema original? Eis algumas perguntas que se nos apresentam no início de nossa pesquisa. É visando a essa problemática que iremos trabalhar com uma análise minuciosa e tentaremos mostrar, no poema do poeta cubano José Martí, assim como em um trabalho de tradução feito por nós, para o português do Brasil, a fidelidade de tom, o universo vocabular, ou seja, a conservação de elementos intrínsecos do texto original. Fica, assim, estabelecido nosso corpus: o poema “Hijo del alma”. Finalmente, em face do texto original e do texto traduzido, procederemos a um cotejamento dos textos em que serão observadas as fidelidades e as infidelidades em relação aos elementos poéticos do texto original, as soluções semânticas, as soluções gramaticais e as aproximações e os diálogos multiculturais. A realização deste trabalho de cotejamento justifica-se pela tentativa de discussão acerca do ato tradutório, pelo desvelamento do trabalho de tradução como um trabalho de transcriação e de diálogos culturais, na perspectiva presente dos estudos multiculturalistas. Este trabalho também se justifica pela contribuição que pode dar a estudantes do Ensino Médio e a estudantes universitários, bem como a professores universitários, recolocando em circulação, no fluxo dos estudos literários, textos do poeta cubano, um autor de importância capital para a literatura cubana e latinoamericana. A fundamentação teórica desta pesquisa encontra ancoradouro em autores como Arrojo (1998, 2002 e 2003), Ottoni (1998), Candido (2004), Norma Goldstein (2004), Campos (1992), Rodrigues (2011), entre outros. A metodologia empregada é a da pesquisa bibliográfica. PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Jefferson Odair da Silva Santos / Luzimar Goulart Gouvêa 1 A tradução e suas principais teorias Para Rosemary Arrojo (2002, p.10), “a tradução é uma das mais complexas de todas as atividades realizadas pelo homem que implica necessariamente uma definição dos limites e do poder dessa capacidade tão ‘humana’, que é a produção de significados”. Arrojo (Idem, 2002, pp. 11-12) cita J. C. Catford, um dos teóricos mais conhecidos e divulgados no Brasil. Para ele, “a tradução é a substituição do material textual de uma língua pelo material textual equivalente em outra língua”. Em outra obra, a autora (2002, p. 12) cita também Eugene Nida, outro teórico importante, que expande essa imagem pela comparação das palavras de uma sentença a uma fileira de vagões de carga. Ele sugere que, assim como os vagões podem variar em quantidades de carga, para mais ou para menos, semelhantemente algumas palavras “carregam” vários conceitos e outras têm de se juntar para conter apenas um, de maneira que o que importa nesse processo de tradução é que todos os componentes significativos do original alcancem a línguaalvo e que possam ser usados pelos receptores. Para Arrojo (2002, p. 12), Se pensarmos o processo de tradução como transporte de significados entre língua A e língua B, acreditamos ser o texto original um objeto estável, “transportável”, de contornos absolutamente claros, cujo conteúdo podemos classificar completa e objetivamente. Afinal se as palavras de uma sentença são como carga contida em vagões, é perfeitamente possível determinarmos e controlarmos todo o seu conteúdo e até garantirmos que seja transposto na íntegra para outro conjunto de vagões. Arrojo (2002, pp. 12-13) conclui, dizendo que, se compararmos o tradutor ao encarregado do transporte dessa carga, será como uma função mecânica que se restringe a garantir que essa carga chegue intacta a seu destino, ou seja, o papel do tradutor será o de transportar a carga de significados, mas não poderá interferir nela, ou seja, “interpretá-las”. Segundo ela, essa visão tradicional pressupõe uma determinada teoria de linguagem que reflete também nas diretrizes estabelecidas para o trabalho do tradutor. Arrojo cita também Alexander Frase Tytler, outro teórico, um dos pioneiros a definir os três princípios básicos para a boa tradução (2002, p. 13): A tradução deve reproduzir em sua totalidade a idéia do texto original; O estilo da tradução deve ser o mesmo do original; e a tradução deve ter toda a fluência e a naturalidade do texto original. PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Análise do Poema “Hijo Del Alma” de José Martí e as Dificuldades Tradutórias do Espanhol para o Português do Brasil Arrojo (2002, p. 40) diz que um texto/poema não mantém sua fidelidade cada vez que é reescrito, uma vez que, ao ser reescrito, sofre a interpretação de cada escritor, de sua época e de sua cultura e também da época em que foi criado, dando lugar a uma nova escrita do mesmo texto, sendo, dessa forma, impossível resgatar na íntegra as intenções do autor do texto original. Afirma também que não existem (2002, p. 76) fórmulas mágicas nem atalhos fáceis para se aprender a traduzir, já que a tradução é, para a autora, uma atividade essencialmente produtora de significados e um trabalho tão complexo quanto o do escritor de textos “originais”. Para Arrojo (2002), faz-se necessário ao tradutor praticar a leitura de poemas, ter conhecimento sobre sua comunidade cultural e sobre a obra do poeta que pretende ler, para que se obtenha sucesso em suas leituras e, consequentemente, em suas traduções, escrevendo com o mesmo cuidado e atenção daquele que pretende tornar-se um escritor. Também faz-se necessária uma constante busca de estudos de teorias a respeito da tradução. Dessa forma, haverá uma maior compreensão e uma reflexão crítica sobre a essência do trabalho do tradutor. Portanto, para a autora, traduzir não pode ser meramente o transporte, ou a transferência, de significados estáveis de uma língua para outra língua, porque o próprio significado de uma palavra, ou de um texto, na língua de partida, somente poderá ser determinado, provisoriamente, por meio de uma leitura. Arrojo diz que os tradutores em geral aspiram a atingir uma fidelidade que é, na verdade, relativa, visto que as circunstâncias, o momento histórico, a visão de mundo e o próprio inconsciente do leitor/tradutor o conduzem a uma interpretação particular e provisória. Isso porque o significado não se encontra armazenado no texto à espera de uma interpretação correta, nem tampouco é um objeto permanente e invariável, protetor das intenções do autor. Partindo desse pressuposto, Arrojo afirma que, muitas vezes, as opiniões de críticos e tradutores não coincidem, pois cada um constrói seus próprios significados a respeito do texto original. A autora (2002, p. 73) não concorda com os que acreditam ser o tradutor alguém capaz de colocar-se na pele, no lugar e no tempo do autor que traduz, sem deixar de ser ele mesmo e sem violentar a sintaxe e a fluidez de sua língua, de seu tempo e de sua cultura. A respeito da desconstrução, Arrojo (2002, p. 77) cita Sherry Simon: PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Jefferson Odair da Silva Santos / Luzimar Goulart Gouvêa A partir da desconstrução, a tradução se torna “objeto de um tipo de reformulação conceitual, localizado no centro do debate contemporâneo acerca de processos de transmissão cultural e de suas relações com a linguagem”. “Mais do que uma técnica de simples “transferência lingüística”, a tradução passa a ser reconhecida como “ um processo que gera novas formas textuais, que cria novas formas de conhecimento e introduz novos paradigmas culturais”. Para a autora, a grande maioria dos escritores e poetas que abordam a questão da tradução de textos literários considera que traduzir é destruir, é descaracterizar, é trivializar. Nesse contexto, a autora diz que tal alegação desses escritores que dão a ideia de intraduzibilidade aos textos/poemas é, muitas vezes, uma maneira de manifestar a necessidade de controlar e de proteger o texto do olhar alheio, ou seja, a concepção de que o texto deve permanecer intocado para que possa preservar suas próprias características. Como uma “idolatria pelo texto”, uma busca de tentar controlar o que é incontrolável. Para Arrojo (2002, pp. 126-27), o escritor ou leitor que escolhe “depositar” ou “encontrar” um significado especial num determinado texto se encontra dividido entre a convicção inconsciente de que esse significado é seu, e não do texto, e a necessidade de negar e esquecer essa convicção. Arrojo (2002, pp. 44-45) afirma ainda que, tanto nos textos literários ou poéticos, assim como nos não-literários e não-poéticos, é importante haver a ligação entre forma e conteúdo para que não sejam vistos como “textos pacificamente traduzíveis”, levando em consideração o conceito de tradução como de “transformação”, em que há uma interferência inevitável de todos os envolvidos, direciona a uma afirmação de que todo texto pode ser traduzido de modo que, cada vez que esse conceito for aceito e compreendido, o tradutor terá seu papel “autoral” admitido e valorizado. A autora (2002, p. 44) ainda observa que: A tradução de qualquer texto poético ou não, será fiel não ao texto “original”, mas àquilo que considerarmos ser o texto original, àquilo que consideramos constituí-lo, ou seja, à nossa interpretação do texto de partida, que será, como já sugerimos, sempre produto daquilo que somos, sentimos e pensamos. Além da fidelidade de leitura feita do texto de partida, nossa tradução será fiel a nossa concepção de tradução. Contudo, se concluirmos que toda tradução é fiel às concepções textuais e teóricas da comunidade interpretativa a que pertence o tradutor e também aos objetivos que se propõe, isso não significa que caem por terra quaisquer critérios para avaliação de traduções. PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Análise do Poema “Hijo Del Alma” de José Martí e as Dificuldades Tradutórias do Espanhol para o Português do Brasil E conclui dizendo (2002, p. 162): o tradutor é exatamente aquele leitor que se apropria do texto de outro e o reescreve numa outra língua, deixando nele as marcas dessa apropriação e dessa “traição”; um ato, entretanto, que tem de se manter escondido, escamoteado. Segundo Paulo Ottoni (1998, p. 11), ao praticar a diferença entre as línguas, a tradução inevitavelmente evidencia também as suas semelhanças e (1998, p. 16) entre as línguas envolvidas na tradução e o que ocorre é uma espécie de tradução recíproca. Ainda, Ottoni (1998, p.11) diz que não é mais possível desvincular tradução e desconstrução. O conceito de multiculturalismo também interessa de perto à tradução. Segundo Rodrigues (2011, s/p.) é “o jogo de diferenças, quando diversos elementos culturais se juntam dentro de um mesmo espaço, forjando as características de uma sociedade. Ele é frequentemente pensado como oposto ao etnocentrismo.” Outro conceito que se faz necessário aqui é o de transcriação, que, segundo Campos (1992, p. 35), assim se particulariza: “O significado, o parâmetro semântico, será apenas e tãosomente a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora. Está-se pois, no avesso da chamada tradução literal.” Complementando a teoria sobre a tradução, trataremos agora do estudo da análise do poema e não mais do ato tradutório propriamente dito. Para isso, apresentaremos, a seguir, alguns pressupostos teóricos colhidos em Antonio Candido, em seu O estudo analítico do poema (2004). Para Candido (2004, p. 17), [...] o estudo da poesia apresenta algumas dificuldades especiais, uma vez que no universo prosaico o meio de expressão é mais próximo da linguagem cotidiana, já na linguagem da poesia é mais convencional e impõe uma maior atenção, sobretudo por ela se manifestar em geral nos nossos dias, em peças curtas e concentradas e por isso são menos acessíveis ao primeiro contato. O autor explica a diferença entre poema e poesia, sendo que o poema está relacionado à sua escrita, seu conteúdo e suas manifestações concretas; por outro lado, a poesia é o substrato imaterial do poema. O estudo do poema, no seu todo, deve partir da sua estrutura (versos metrificados ou livres) e da sua sonoridade (ritmo). Esta análise pressupõe a interpretação por meio do leitor com ou sem o recurso do comentário, ou seja, o esclarecimento objetivo dos elementos necessários para o entendimento do poema. PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Jefferson Odair da Silva Santos / Luzimar Goulart Gouvêa A respeito da interpretação, Candido (2004, p. 23) cita que, para os estudiosos de mentalidade positiva, o comentário é base importante e respeitável, porque “está dirigido a aspectos de cunho históricos, linguísticos, bibliográficos entre outros” e que “a interpretação é demasiado pessoal para ser considerado objeto de ensino”. Outros vão além e entendem que a poesia possui uma essência incomunicável quando fora da experiência pessoal e tem uma profunda irracionalidade que a torna significativa apenas na intuição pessoal de cada um. Entretanto, ainda segundo Candido (2004), alguns autores mais modernos tomam posição oposta e afirmam que a poesia só pode ser estudada a partir desta sua natureza íntima e que ela pode ser objeto de estudo sistemático. Outros ainda vão além e afirmam que o comentário, além de desnecessário, pode ser até mesmo prejudicial. Por fim, Candido (2004, p. 25) considera que a investigação sobre o poema deve ser feita em duas etapas virtuais: “Comentário e interpretação ou comentário analítico e análise interpretativa”, que, para ele, estão intimamente ligados, mas que podem se dissociar, e esclarece que “não há comentário válido sem interpretação”, mas que “pode haver interpretação válida sem comentário”. Ele ressalta que tanto um quanto o outro precisam estar focados no poema como ponto comum de interesse, porque é o poema como unidade concreta que limita e concentra a atividade do estudioso. Para o autor, o comentário é uma espécie de tradução feita antes da interpretação, que é inseparável em sua essência, porém teoricamente é possível se tornar uma operação separada. Para Emil Staiger, citado por Candido (2004, p. 28), Interpretar significa reproduzir e determinar com penetração compreensiva e linguagem adequada à matéria, a estrutura íntima, as normas estruturais peculiares, segundo as quais uma obra literária se processa, se divide e se constitui de novo como unidade. Ainda sobre interpretação, Candido (2004, p. 28) aponta os seguintes tópicos: Natureza: “[…] a interpretação é uma tradução do tipo mais difícil que a tradução de uma língua para outra […]” Dificuldades: “um poema não se revela por si mesmo, nem para os que falam a mesma língua. É espantoso o quanto o leitor desprevenido (ou ingênuo) lê mal e não percebe”. Daí a necessidade de ensinar e aprender a interpretação sistemática. Requisitos: - Não se prender exclusivamente à forma nem ao conteúdo (“formalismo” e “ materialismo”); não utilizar padrões alheios ao poema. PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Análise do Poema “Hijo Del Alma” de José Martí e as Dificuldades Tradutórias do Espanhol para o Português do Brasil - Não falar de si mesmo, mas da obra, isto é, não emprestar a ela os sentimentos e idéias pessoais que gritam por sua sugestão; mas procurar extrair os que estão contidos nela. Regras: “[…] aprender a ler, saber ouvir, prestar atenção a todas as particularidades”. Sobre a sonoridade do poema, Candido (2004, p. 37) afirma que “todo poema é uma unidade sonora”. Para ele, antes de qualquer aspecto significativo mais profundo, o poema tem esta realidade, sendo “um dos níveis ou camadas de sua realidade total”. A sonoridade pode ser “altamente regular, muito perceptível, determinando uma melodia própria na ordenação dos sons, ou de maneira discreta que quase não se distingue da prosa”. Em outras palavras, o poeta explora a sonoridade das palavras e dos fonemas e tenta obter os efeitos baseados em seus sentimentos. Candido (2004, p. 49) cita também Maurice Grammont e sua teoria, como exemplo de uma das que afirmam a existência de correspondências entre sonoridade e sentimento. Para Candido (2004, p. 61), dentre os recursos mais usados para obter efeitos de sonoridade do verso, o principal é a rima. Segundo Manuel Bandeira, citado por Candido, rima “é a igualdade ou semelhança de sons na terminação das palavras”. A principal função da rima no poema é a de criar a recorrência do som de modo marcante, estabelecendo uma sonoridade contínua e nitidamente perceptível. Essa liberdade trouxe o uso do verso livre, com ritmos mais pessoais, de modo que os poetas desposavam suas inflexões, o que permitia deixá-la de lado. De um modo geral, a poesia moderna se apóia mais no ritmo que na rima. Em resumo, ritmo é, pois, uma alternância de sonoridades mais fracas e mais fortes, formando uma unidade configurada. E segue, dizendo que “o ritmo é a alma e a razão de ser do movimento sonoro, ou seja, o esqueleto que ampara todo o significado”. Na síntese do autor, podemos afirmar que seu ponto de vista em relação ao ritmo é que o ritmo está ligado à vida como um todo, à existência, aos movimentos, às atividades sociais e à natureza, de tal forma que o homem impõe o ritmo na sua vida, assim como o poeta impõe o ritmo em seu poema, tornando-o a alma do verso que escreve, ultrapassando o limite entre sensibilidade e simples capricho, ligando-o ao mais profundo sentimento que o poeta consegue exprimir. PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Jefferson Odair da Silva Santos / Luzimar Goulart Gouvêa 2 José Martí e sua poesia O autor escolhido para a elaboração deste trabalho de análise tradutória é José Martí. Segundo Salgado (2009), quando o poeta nasceu, em 28 de janeiro de 1853, Cuba era uma das últimas províncias ultramarinas da Espanha. Filho de José Julián Martí y Perez, espanhol de Valencia, e Leonor Pérez Cabrera, das Ilhas Canárias, José Martí é natural de Havana e teve sete irmãs. Aos 16 anos, influenciado pelas idéias separatistas de seu professor, o poeta Rafael Maria de Mendive, publica seu primeiro drama patriótico em versos, o Abdala, no único número do jornal La Pátria Libre. Este período é marcado pelo início da primeira luta pela soberania de Cuba, que ficou conhecida como a Guerra dos Dez Anos (1868-1878), a qual Martí apóia publicamente. Durante essa época, Martí é preso por seus ideais revolucionários e é condenado a seis anos de trabalhos forçados por sua participação política. Por seis meses, fica retido em uma pedreira perto de Havana. Devido a problemas de saúde agravados no cárcere e por conta dos esforços de sua mãe, consegue o indulto e é deportado para a Espanha, em 1871, aos dezoito anos. Publica El presídio político en Cuba, o primeiro de muitos manifestos sobre a independência. Nele, conta os horrores que passou nos presídios da ilha. Passa a articular com outros cubanos que estão fora da ilha e levanta o tema da independência para a imprensa espanhola. Matricula-se na Universidad Central, mas termina seus estudos na Universidad de Zaragoza, onde se licencia em Direito, Literatura, Filosofia e Letras. Muda-se para a França e, em 1875, para o México, onde se casa com Carmen Zayas Bazón. Em 1877, vai para a Guatemala e passa a lecionar na Universidad Nacional. Volta a Cuba, em 1878, com o fim da Guerra dos Dez Anos, mas é novamente deportado, por suas atividades revolucionárias na chamada Guerra Chiquita, que durou até 1880. Em 22 de novembro de 1878, nasce seu filho José Francisco, em Havana. Vai para os Estados Unidos e vive, entre 1881 e 1895, em Nova Iorque. Antes, passa um curto período na Venezuela, mas tem problemas com o governo e retorna a Nova Iorque. Trabalha como jornalista nos jornais The Hour e The Sun. No ano de 1882, trabalha para o La Nación, da Argentina, e publica o poema “Ismaelillo”, considerado o precursor do modernismo hispano-americano. PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Análise do Poema “Hijo Del Alma” de José Martí e as Dificuldades Tradutórias do Espanhol para o Português do Brasil Funda o Partido Revolucionário Cubano, sendo eleito para a organização pela luta da independência. No mesmo ano, funda seu jornal diário separatista contra a dominação espanhola, o Pátria. Dois anos depois, é nomeado cônsul do Uruguai, mas logo após renuncia por causa de sua atividade política. Viaja para diversos países da América Central e estabelece contato com Máximo Gómez e Antonio Maceo, idealistas como ele e revoltosos da guerra dos 10 anos. Neste período – início do imperialismo norte americano – percebe a urgência em formar uma identidade americana e passa a usar o termo Nuestra América. Escreve para dezenas de periódicos sobre literatura, política e artes e trabalha como tradutor. Volta a Cuba para articular a luta. A segunda etapa da guerra, iniciada em 1895, foi liderada por José Martí, Antonio Maceo e Calixto García. A luta ganhou força e fez com que os espanhóis buscassem soluções conciliatórias. Em fevereiro de 1878, foi assinado pelos revoltosos e pelas autoridades coloniais o Pacto de Zangón. As decisões do acordo não foram cumpridas e o processo reformista ganhou força mais uma vez. José Martí encarregou-se de reagrupar os revoltosos. Seu papel é de suma importância, pois é seu mentor intelectual. José Martí morre, lutando, em 19 de maio de 1895, após seu pequeno contingente de revoltosos se deparar com as tropas espanholas no vilarejo de Dos Ríos. É mutilado pelos soldados e exibido à população. É sepultado em Santiago de Cuba. Como escritor, José Martí foi um dos precursores do modernismo iberoamericano. Publicou centenas de poemas, novelas e dramas, além de cartas e artigos de jornal. Entre os mais famosos estão o Ismaelillo (1882), os Versos Sencillos (1891) e os Versos libres (1892). Publicado em 1891, o poema Versos Sencillos é a sua maior realização no campo da literatura. É um grande poema de amor à mulher e à pátria, passando pelos filhos e pela natureza. Também foi marcante a publicação da novela Amistad funesta (1885), além de dezenas de ensaios. Em 1889, fundou e dirigiu a revista infantojuvenil La edad de oro, em que aborda clássicos da literatura em linguagem acessível. Seu estilo é simples e suas obras completas são formadas por 73 volumes. Para que os ideais do poeta não fossem esquecidos, foi construído, entre 1958 e 1959, o Memorial José Martí, na Plaza de la Revolución, em Havana. PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Jefferson Odair da Silva Santos / Luzimar Goulart Gouvêa 3 O poema “Hijo del alma” Tú flotas sobre todo, Hijo del alma! De la revuelta noche Las oleadas, En mi seno desnudo Déjante el alba; Y del día la espuma Turbia y amarga, De la noche revueltas Te echan las aguas. Guardancillo magnánimo, La no cerrada Puerta de mi hondo espíritu Amante guardas; ¡Y si en la sombra ocultas Búscanme avaras, De mi calma celosas, Mis penas varias, En el umbral oscuro Fiero te alzas, Y les cierran el paso Tus alas blancas! Ondas de luz y flores Trae la mañana, Y tú en las luminosas Ondas cabalgas. No es, no, la luz del día La que me llama, Sino tus manecitas En mi almohada. Me hablan de que estás lejos: ¡Locuras me hablan! Ellos tienen tu sombra; ¡Yo tengo tu alma! Ésas son cosas nuevas, Mías y extrañas. Yo sé que tus dos ojos Allá en lejanas Tierras relampaguean,? Y en las doradas Olas de aire que baten Mi frente pálida, Pudiera con mi mano, Cual si haz segara De estrellas, segar haces De tus miradas! ¡Tú flotas sobre todo, Hijo del alma! PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Análise do Poema “Hijo Del Alma” de José Martí e as Dificuldades Tradutórias do Espanhol para o Português do Brasil Segue nossa tradução literal para o português do Brasil: Tu flutuas sobre tudo, Filho da alma! Da revolta noite As ondas batem, Em meu peito nu Apesar do alvorecer; E do dia a espuma Turva e amarga, Da noite revolta Te lançam as águas. Guardiãozinho magnífico, A não fechada porta De meu fundo espírito Amante guardas; E se na sombra te escondes Procuram-me avaras De minha calma invejas Minhas dores várias, No umbral escuro Feroz te levantas E lhes fecham os passos Tuas asas brancas! Ondas de luz e flores Traz a manhã PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Jefferson Odair da Silva Santos / Luzimar Goulart Gouvêa E tu nas luminosas Ondas cavalgas Não é, não, a luz do dia A que me chama Mas, sim, tuas mãozinhas Em meu travesseiro. Falam-me que estás distante: Loucuras me falam! Eles têm tua sombra, Eu tenho tua alma! Essas são coisas novas Minhas e estranhas. Eu sei que teus olhos Lá nas distantes Terras relampagueiam, E nas douradas Ondas de ar que batem Minha pálida testa. Pudesse com minha mão, Como numa colheita De estrelas, colher Teus olhares: Tu flutuas sobre tudo, Filho da alma! PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Análise do Poema “Hijo Del Alma” de José Martí e as Dificuldades Tradutórias do Espanhol para o Português do Brasil Segue nossa tradução literária para o português do Brasil: “Filho da alma” Tu flutuas no espaço, filho da alma! As ondas da revolta noite batem em meu peito nu, apesar do alvorecer. E as águas da noite revolta te lançam à espuma do dia, turva e amarga. Guardiãozinho magnífico, guardas a porta aberta de meu fundo espírito amante; E, se te escondes nas sombras, minhas várias dores procuram-me avaras e invejosas de minha calma. No umbral escuro te levantas feroz e tuas asas brancas lhe impedem os passos! PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Jefferson Odair da Silva Santos / Luzimar Goulart Gouvêa A manhã traz ondas de luz e de flores E tu cavalgas nas ondas luminosas. Não, não é a luz do dia quem me chama mas, sim, tuas mãozinhas em meu travesseiro. Me falam que estás longe: loucuras me falam! Eles têm tua sombra, E eu tenho tua alma! Essas são coisas novas e estranhas para mim. Eu sei que teus dois olhos relampejam lá nas distantes terras, E nas douradas ondas de ar que batem na minha testa pálida. Pudesse colher, com minha mão, como numa colheita de estrelas, teus olhares: tu flutuas no espaço, filho da alma! PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Análise do Poema “Hijo Del Alma” de José Martí e as Dificuldades Tradutórias do Espanhol para o Português do Brasil Passamos a fazer alguns comentários sobre os impasses tradutórios da tradução literal. Vejamos: POEMA ORIGINAL: Las oleadas TRADUÇÃO LITERAL: As ondas batem COMENTÁRIO: Foi feita a opção pela inclusão do verbo bater, já que oleadas vem no sentido de ondas fortes. O verbo vem acrescentar este sentido na tradução para o português, pois nós usamos ondas fortes ou fortes ondas e, se optássemos por ondas apenas, ficaria sem o sentido completo. POEMA ORIGINAL: Dejante al alba TRADUÇÃO LITERAL: Apesar do alvorecer COMENTÁRIO: A dificuldade aqui é semântica: dejante não é uma palavra usual em todos os países de língua espanhola. Segundo a RAE (2012), é prep.: Aparte de, además de. ~ que. e loc. conjunt. No obstante, además de que, e não há termo correspondente em português, para “dejante" por isso optamos por “Apesar do (alvorecer)”. POEMA ORIGINAL: La no cerrada/ Puerta TRADUÇÃO LITERAL: A não fechada/ Porta COMENTÁRIO: Opção pela manutenção da correspondência linguística, para conservação do ritmo. POEMA ORIGINAL: ¡Y si en la sombra ocultas/ Búscanme avaras… TRADUÇÃO LITERAL: E se na sombra te escondes/ Procuram-me avaras COMENTÁRIO: uso de um verbo equivalente, diferente do correspondente em português. POEMA ORIGINAL: En el umbral obscuro TRADUÇÃO LITERAL: No umbral escuro COMENTÁRIO: Permanência do vocábulo, embora de pouco uso cotidiano, pela sua força expressiva (Umbra, no latim, sombra). POEMA ORIGINAL: Y les cierran el paso TRADUÇÃO LITERAL: E lhes fecham os passos COMENTÁRIO: Opção por um equivalente em português, porque o verbo cerrar (fechar) não é muito usual nesta acepção. POEMA ORIGINAL: Me hablan de que estás lejos TRADUÇÃO LITERAL: Falam-me que estás distante COMENTÁRIO: lejos: longe, distante. A opção pelo termo distante implica mais a dor da separação do que o estar longe, simplesmente. POEMA ORIGINAL: Yo sé que tus dos ojos/ Allá en lejanas/ Tierras relampaguean TRADUÇÃO LITERAL: Eu sei que teus olhos/ Lá nas distantes/ Terras relampagueiam COMENTÁRIO: lejanas/distantes . Relampaguear: para fugir do popular no português do Brasil relampejar. Mantém-se, com isso, um certo traço de erudição. PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Jefferson Odair da Silva Santos / Luzimar Goulart Gouvêa 4 Considerações finais O poema de José Martí não apresenta uma marcação de forma (métrica e rímica, principalmente) que exija, tanto na tradução literal quanto naquela que se aproveita das possibilidades da transcriação, uma preocupação com o ato tradutório no sentido da conservação da cadência e da sonoridade dos versos. A tradução literal conseguiu manter a erudição do texto original e lidou, quase tãosomente, com os impasses de natureza semântica, conforme comentamos acima. A tradução literal manteve os hipérbatos (inversão frasal) do original. A tradução que se aproveita do recurso da transcriação teve de desfazer os hipérbatos e, com isso, o texto parece ter ganhado leveza. A aproximação sintática do português do Brasil ajudou a dar fluência e ritmo novos ao texto, perdendo sua erudição, mas enriquecendo-o de uma facilidade de comunicação poética, que o faz aproximar-se e dizer o sentimento poético da morte mais próximo dos brasileiros e da língua por nós falada na contemporaneidade, cumprindo aquilo que se tem pensado nos estudos multiculturalistas, ou seja, o aproveitamento da cultura para a qual o texto é traduzido. Como citar: SANTOS, Jefferson S. ; GOUVEA, L. G. . "Analise do poema 'Hijo del Alma' de José Martí e as dificuldades tradutórias do espanhol para o português do Brasil". PROFT em Revista: Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011, v. 2, n. 2, p. 22-39. jun. 2012. PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011 Análise do Poema “Hijo Del Alma” de José Martí e as Dificuldades Tradutórias do Espanhol para o Português do Brasil 5. Referências ALONSO, Damaso. Poesía española. Ensayo de método y límites de la estilística. Madrid: Gredos, 1950. ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução: a teoria na prática. 4. ed. São Paulo: Ática, 2002. CAMPOS, H. Metalinguagem e outras metas. 4. ed. Sao Paulo: Perspectiva, 1992. CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004. GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. São Paulo: Ática, 2004 MIRANDA, Antonio. Poesía de Iberoamérica: José Martí. Disponível http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/cuba/jose_marti.html. Acesso 25.10.2010. ________,http://www.guantanamera.org.br/marti.htm em: em OTTONI, Paulo. Tradução: a prática da diferença. Campinas, SP: Unicamp, FAPESP, 1998. RAE. Disponível em: http://buscon.rae.es/draeI/SrvltConsulta?TIPO_BUS=3&LEMA=dejante, acessado em 03.02.12 SALGADO, Wellington Luiz. “Con todos y para el bien de todos”: José Martí e a independência de Cuba. (monografia de graduação) Universidade de Taubaté, Departamento de Ciências Sociais e Letras. Taubaté, 2009. RODRIGUES, A. G. Multiculturalismo. http://www.tcdesign.uemg.br/en/pdf/antonio_greco.pdf , acessado em 21.10.2011. . PROFT em Revista Anais do Simpósio Profissão Tradutor 2011