Lucy de Jamaica Kincaid
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Lucy de Jamaica Kincaid
A LITERATURA MIGRANTE DE LÍNGUA INGLESA NAS AMÉRICAS: LUCY, DE JAMAICA KINCAID Adriano Roberto Langa1 A imigração existe desde os tempos mais remotos, podendo ocorrer em razão de catástrofes naturais, guerras, e outros fatores externos que contribuem para dificultar as condições sócio-econômicas, fazendo com que certas comunidades se desloquem e se reorganizem socialmente em outras terras. No século XIX, quando, com a constituição e consolidação dos estados-nação, cresce em importância a demarcação de fronteiras e nasce a chamada “segurança nacional”, a imigração passa a ser tratada como um problema, e o controle do fluxo migratório é alvo de mais cuidado e preocupação. No último quarto do século XX, o sociólogo Emmanuel Wallerstein profetizava, em sua obra The Modern World System (1974), que os cinqüenta anos vindouros testemunhariam grandes fluxos migratórios que mudariam drasticamente a demografia mundial. A predição de Wallestein mostrou-se tão acurada que a intensidade dos movimentos migratórios atuais acabou por subverter a tradicional distinção entre imigração, termo que apontava para o deslocamento de alguns indivíduos, e migração, que designava o deslocamento o movimento de uma população inteira de um território para outro. No primeiro caso, como distingue Humberto Eco, “os povos podem pensar em manter os imigrantes em um gueto para que não se misturem com os nativos”; nos segundo, “não há mais guetos e a mestiçagem é incontrolável” Na contemporaneidade, contudo, quando “todo planeta está se tornando território de deslocamentos cruzados é muito difícil dizer se certos fenômenos são de imigração ou migração (ECO, apud PORTO, 2005, p. 227). Atualmente, os estudos sobre (i) migração e etnicidade nas sociedades industriais avançadas são de relevância crescente, porque nos ajudam a buscar compreender as inter-relações entre fluxos migratórios internos e externos, visto que, muitas vezes, o êxodo do campo para a cidade, em determinados países, freqüentemente leva ao cruzamento de fronteiras internacionais. Nas Américas a expressão “literaturas migrantes” designa a produção literária construída a partir da perspectiva do (i)migrante, constituindo-se como uma prática concreta e crítica da desterritorialização (cf. Nepveu, 1989, p. 21; Deleuze & Guattari, 1975; Garcia-Canclini, 1995). Situados em entre-lugares marcados pela articulação de diferenças culturais, tais escritores encontram, nestes interstícios, a oportunidade de rever o conceito fronteira, encarada como o “lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente” (PORTO. In: 1 Licenciatura em Letras – URI (em progresso). Bolsista PIIC/URI. FIGUEIREDO, 2005, p. 228). No âmbito da produção migrante, o jogo de mão dupla, estabelecido pelos dois lados em contato, torna evidente que nenhuma cultura pode absorver totalmente uma outra, nem se furtar às transformações decorrentes de tal confronto. Daí decorre, em particular, o caráter transitório da cultura (i)migrada que, pela impossibilidade de se manter inalterada no espaço Outro, pode fecundá-lo através de trocas criativas, tão comuns em contextos diaspóricos. Foi precisamente em situação diaspórica que tanto o termo “Literatura das Índias Ocidentais” ou “Literatura Caribenha” como a produção literária originada nessa região começou a atingir grande força na década de 1950, quando escritores caribenhos começaram a deixar seus territórios em busca de maior visibilidade. A intelectualidade caribenha ainda hoje é caracterizada por intensa mobilidade; ontudo, tais escritores costumam manter elos afetivos e imaginativos com seu território de origem. No Caribe, cujas nações se formaram através da junção, em solo americano, de povos advindos da Europa, África e Ásia, a produção literária a partir da ótica migrante tem sido uma constante. Freqüentemente relacionados a essa literatura estão a tematização da velhice, infância, história étnica e/ou nacional, relação com a (ex)metrópole muitas vezes, abordados sob o olhar saudosista ou inquiridor do migrante (MERAZ, 2007; DONNEL; WELSH, 1996). Lucy, romance de Jamaica Kincaid escrito sob a ótica migrante, aborda os três últimos temas. Percebe-se em Lucy que a protagonista homônima busca construir um espaço em seu território de adoção, a América, o que é feito sob o ângulo estranhado da adolescente que compara sua nova ambiência com a da terra de origem. Assim, o romance pode ser pensado como um romance de migração. Como costuma acontecer nesse contexto, uma primeira dificuldade enfrentada é a decepção, motivada pela diferença entre a pátria imaginada e a realidade de país de acolhida. A protagonista imigra impulsionada pelo desejo de deixar seu pequeno quarto em sua terra natal, e de se mudar para uma América que povoava seus pensamentos, cheia de construções, ruas e lindas pontes. Tais imagens são construídas com base nos livros que estudara na escola; seu país, na qualidade de (ex) colônia britânica, adotava o sistema educacional inglês, e os livros traziam uma visão bem distorcida da metrópole. Quando Lucy chega à América, tudo estava lá: as pontes, as ruas e praças; porém parece-lhe que estas perdem o encanto que lhe despertavam quando apenas imaginadas. Com isso, a repulsa pelo país que havia colonizado sua ilha e sugerido essa imagem da América aumenta ainda mais. Passa, então, a se questionar se era realmente aquilo que desejara ou esperara encontrar, e questiona-se sobre se teria sido realmente bom haver imigrado. Indaga-se também se seria a única pessoa a experimentar a projeção da terra de acolhida como uma fixação fantasiosa (“a fixture of fantasy”). Frente ao desapontamento, sente-se muito infeliz e pensa em retornar à terra natal. Contudo, a distância entre os Estados Unidos e a sua terra natal era enorme, não havendo possibilidade de retorno: “Eu 30 me sentia muito infeliz. Olhei um mapa. Tinha todo um oceano entre eu e o lugar de onde vim, mas faria alguma diferença se tivesse sido só uma xícara de chá de água? Eu não podia voltar mesmo”1 (KINCAID, 1990, p. 10). Contudo, percebe-se que o sentimento da protagonista é profundamente ambíguo, pois deseja retornar e ao mesmo tempo não quer fazê-lo, uma vez que tem receio de voltar a viver com sua mãe. Levando em conta o longo percurso que representaria o retorno à terra natal, o desejo de não mais conviver com sua mãe e a vontade de esquecer seu passado, Lucy conclui que, apesar da intensidade de seu desejo de retornar seria uma ação precipitada e até mesmo impossível de ser realizada. O que agrava a situação de Lucy é que, em contraste com o país natal, que compreendia perfeitamente, desconhece como a América é em realidade, como funcionam seus costumes e modo de vida. Com isso, imagina seu futuro cada vez mais negro, num crescente pessimismo: “Se eu tivesse que traçar um quadro de meu futuro então, teria sido o de uma grande recorte cinza circundado de preto, mais preto, o mais preto possível” (KINCAID, 1990, p. 7). Sente-se deslocada, como se não fosse ela mesma, e parece-lhe que agora o mundo e o clima estavam contra ela, e tudo ao seu redor estava errado, até mesmo o ar, que lhe parece frio mesmo quando o sol é quente. Avalia o clima, evidentemente, em relação à terra natal, Antígua, onde até mesmo a brisa não é fresca. Julga, perplexa: “Estava tudo errado. O sol brilhava, mas o ar estava frio. E era já o meio de Janeiro. Mas eu nao sabia que o sol podia brilhar e o ar continuar fio; ninguém jamais tinha me ditto isso” (KINCAID, 1990, p. 5). Lucy sente-se tão triste com o seu desapontamento que até mesmo Antígua, que a princípio lhe parecia ser um lugar que não mais lhe interessava, passa a parecer melhor do que a fria América. Tem saudade da previsibilidade do conhecido, do calor tropical: Eu não estava mais numa região tropical, e essa compreensão invadiu minha vida como um jato de água, dividindo terreno anteriormente seco e sólido, e criando dois bancos de areia, um dos quais era o meu passado –– tão familiar e previsível que mesmo estando infeliz eu me sentia feliz só de lembrá-lo –– e o outro, meu futuro, um espaço cinza, eu não mais estava numa região tropical, e me sentia fria por fora e por dentro, e era a primeira vez que sentia essa sensação (KINCAID, 1990, p. 5-6). Lucy acaba por voltar atrás em suas convicções e não entende a si própria, pois o que sente é algo profundamente estranho, já que passa a vida inteira querendo deixar sua terra e experimentar novos rumos e, quando finalmente consegue, sente vontade de retornar ao seu antigo lar: Eu tinha lido nos livros – de vez em quando, dependendo do conteúdo – sobre pessoas que sofriam de saudade da pátria. Uma pessoa deixava um lugar que nem era tão bom assim e ia para um outro lugar, um lugar muito melhor, e então tinha muita vontade de voltar para o lugar que nem era tão bom. Como eu ficava impaciente com essas pessoas, pois eu sabia que eu mesma não estava numa situação muito boa, e eu queria ir para outro lugar. Mas agora, eu também sentia que eu queria voltar para o lugar de onde vim (KINCAID, 1990, p. 6). 31 Porém, apesar das repentinas mudanças e da sua decepção inicial com os Estados Unidos, ao escrever para sua família e os amigos, Lucy mascara o que está sentindo. Usa até de certo cinismo e fingimento, ao afirmar que tudo em sua nova terra era maravilhoso, como se estivesse vivendo um conto de fadas. Era necessário que pensassem que estava feliz e totalmente acostumada a seu novo mundo, para que não se curvasse aos desejos da mãe, que várias vezes havia lhe solicitado voltar para casa. Ao chegar à América, já tinha construído uma história vital, uma teia de relações sociais que tinham contribuído para formar sua identidade. A partir do momento em que migra, enfrentando o desconhecido, necessita criar um entre-lugar, ou seja, buscar uma nova rede de relacionamentos que lhe dêem a possibilidade de se recriar como pessoa, um processo que muitas vezes se configura doloroso. Lucy apegase às memórias do passado a tal ponto que acaba dificultando a construção de seu espaço na América: mesmo desejando abandonar as lembranças de sua terra, é incapaz de deixar de pensar nela, em sua família e especialmente em sua mãe. Tanto a América como sua patroa, Mariah, fazem-na lembrar de seu passado, e tecer comparações entre a nova terra e Antígua. Lucy passa a viver um paralelo entre a sua vida no presente e sua vida no passado. Tudo é comparado e, conseqüentemente, taxado como bom ou como ruim. O primeiro fator que se constitui em foco comparativo é a família para qual trabalha, que compara com a sua, observando as diferenças entre sua família de origem e a de Mariah. Um exemplo disto ocorre ao estarem sentados à mesa para o jantar. Estavam todos felizes e até mesmo falando palavras nada apropriadas para esta hora, e tudo era motivo para risos: “Eles diziam coisas tão bonitas um para o outro, e as crianças eram tão felizes. Eles podiam deixar cair a comida do prato, ou nem mesmo comer, ou fazer rimas sobre o alimento terminando com ‘cheira mal`. ( KINCAID, 1990, p.13). Em seu lar em Antígua, caso Lucy se comportasse daquela maneira seria punida severamente, uma vez que sua cultura era muito diferente da americana e não permitia esse comportamento. O fator ambiental é um outro elemento que faz com que a protagonista sinta-se deslocada em sua nova terra. Percebendo as mudanças que ocorrem durante as estações, compara os Estados Unidos com Antígua. A diferenciação é feita principalmente com relação ao fato de que em sua terra natal não havia as quatro estações do ano bem definidas, como havia na terra de adoção. Na ilha de onde viera, o tempo todo era verão e dificilmente chovia; a primavera era uma estação totalmente desconhecida, em contraste com a América, onde essa estação é muito apreciada. Lucy chega mesmo a afirmar que estações bem definidas exercem influência sobre a população: nesses lugares, as pessoas são mais felizes. Devido ao fato de ter nascido em um lugar que possuía somente ma estação durante o ano, Lucy percebe a si mesmo como uma pessoa sem disposição: 32 Como a terra se inclina, se afastando do sol, e como isso causa as diferentes estações; embora eu fosse bem pequena quando aprendi isso, notei que todas as pessoas prósperas (e, portanto, certamente, felizes) moravam nas partes do mundo onde o ano-- todos os trezentos e sessenta e cinco dias-- eram divididos em quatro estações distintas. Eu nasci e cresci em um lugar que não parecia ser influenciado pela inclinação da Terra; tinha apenas uma estação –– ensolarada, sempre sujeita à seca. E que efeito teve sobre mim crescer em tal lugar? Eu não tenho uma disposição ensolarada, e, no que tange à felicidade real, venho sofrendo de longa seca (1990, p. 85). No decorrer do romance, Lucy faz a transição de sua adolescência para a idade adulta, e acredita que, deixando para trás de uma vez todas as lembranças de seu antigo lar, poderia se sentir melhor em seu novo mundo. Pensa também que esta é uma necessidade, um pré-requisito para se tornar madura. Começa, assim, sua dolorosa e quase solitária busca por uma nova identidade; deseja que esse período de transição logo esteja concluído, que seu passado seja deixado para trás rapidamente, e que uma nova página comece em sua vida. Contudo, não percebe que, apesar de sua vida ter tomado novos rumos, tudo segue seu curso normal e a modificação será progressiva. É exatamente por ser uma adolescente que sua permanência neste novo local torna-se ainda mais complexa, pois além de estar longe de casa tem de buscar alguém que a ajude a aprender como lidar com dificuldades e com os sentimentos novos que surgem nessa fase, quando muitas descobertas e pensamentos, muitas vezes incompreensíveis e estranhos, afloram. Além disso, passa a viver num cruzamento de culturas: sua própria herança cultural conflita com a de milhares de pessoas, especialmente com a da família para quem trabalha, o que muitas vezes a deixa bastante perplexa e sem saber que rumo de ação tomar. Passa, então, a viver em um lugar intermediário entre o passado e o presente. Vive no presente, mas age pensando no passado. Lucy vivencia dois mundos: um que ela conhece muito bem e do qual não gosta nem mesmo de ouvir falar, mas que insiste em acompanhá-la, e outro do qual ela pouco sabe, mas que necessita conhecer para que possa nele sobreviver. Quem a ajuda a enfrentar este período é sua patroa, Mariah, que, com a experiência que possui, sabe exatamente pelo que Lucy esta passando. O que todo imigrante sonha é ser valorizado em sua terra de acolhida. Lucy encontra mais do que isto em sua patroa, encontra um sentimento mútuo de amizade. Contudo, ainda assim a relação entre as duas é bem complexa, e passa por algumas fases. Inicialmente, o sentimento é extremamente confuso, pois como ela própria conclui, quando gostava de Mariah, era pelo fato de que ela lhe relembra sua mãe; quando não gosta de Mariah, é também porque ela lhe lembra traços que não aprecia em sua mãe: “Quando eu amava Mariah era por que ela me lembrava da minha mãe. Quando u não amava Mariah era por que ela me lembrava da minha mãe” (1990, p. 58). Cabe aqui lembrar que Lucy julga que esquecer sua mãe é condição indispensável para esquecer sua terra. Contudo, com a progressiva aproximação entre Lucy e Mariah, esta última, cada vez mais, faz com que relembre sua mãe. Mariah torna-se tão importante na vida de Lucy que passa a desenvolver o papel materno, ajudando-a muito mais do que uma simples patroa, tratando-a como se fosse sua própria filha. Longe de 33 casa, Lucy está iniciando sua vida sexual, e precisa de alguém com experiência que lhe ajude, dando-lhe indicações de como deve prosseguir durante este novo conhecimento de si mesma. Mariah acaba sendo a base do seu aprendizado e a fonte de conselhos para sua vida também nesta área. Esse bom relacionamento entre elas reflete-se também no trabalho, pois apesar de ser uma empregada, Lucy pode agora controlar sua própria vida, uma vez que Mariah lhe dá autonomia para fazer o que quiser, desde que não atrapalhe seu rendimento no serviço ou venha a prejudicar suas filhas. Daí o sentimento especial que Lucy veio a sentir por sua patroa, chegando a afirmar que: “Mariah era superior à minha mãe, porque minha mãe nunca viria a ver que talvez minhas necessidades eram mais importantes que os desejos dela” (1990, p.63). Mariah deseja mostrar um novo mundo para Lucy, um lugar bonito que ela conhecia muito bem e do qual ela gostaria que todas as pessoas passassem a gostar também, e com o mesmo entusiasmo. Isto se dá no momento em que vai com as filhas para sua casa nos grandes lagos, levando Lucy com elas. Uma vez lá, tenta transportar Lucy para lugares, esperanças e sonhos da sua própria infância: “Uma caminhada ao cair da tarde no ar da primavera—aquilo era algo que ela realmente queria fazer comigo, para me mostrar a magia do céu da primavera” (1990, p. 19). Esse cenário constitui-se em lugar de memória para Mariah, já que a partir do momento em que se depara novamente lá, passam a aflorar em sua mente várias lembranças de sua infância. Lugares de memória, segundo Pierre Nora (1993), são os lugares em que a memória se depositou. Nascem da percepção de que não há lembrança espontânea, e de que, portanto, há a necessidade de criar “arquivos”, lugares materiais, funcionais ou simbólicos que ajudem a manter vivas as lembranças. Lucy é incapaz de sentir-se comovida, de partilhar o sentimento entusiasmado de sua patroa, pois não havia em sua mente um cruzamento de memória que a levasse a desfrutar esse compartilhamento, ou seja, a região dos lagos não era um lugar de memória para ela. Percebe os grandes lagos como “her world” (“o mundo dela”), e precisa esforçar-se para não parecer rude: “...sentada à beira do Grande Lago com uma mulher que queria me mostrar seu mundo e esperava que eu gostasse dele também. Às vezes não há fuga, mas muitas vezes o esforço de tentar dá bom resultado por um certo tempo” (1990, p.149). Durante o tempo que passou na América Lucy experimentou muitas mudanças, tanto físicas como psicológicas. Ao fim do romance, percebe que nada do que antecipara acaba se confirmando. Sua carreira de enfermeira, que era seu grande sonho, não se torna realidade; deixa também de sentir o senso de obrigação para com seus pais e respeito à lei e às convenções que antes a caracterizam. Acaba até por não respeitar o período exato de um ano que devia trabalhar para Mariah. Embora seu exterior continuasse o mesmo, Lucy percebe-se como se fosse uma estranha em sua própria pele: 34 Eu não conhecia muito bem a pessoa que eu havia me tornado. Quer dizer, por fora tudo era familiar. Meu cabelo era o mesmo, embora agora ele estivesse curto, rente à cabeça, e isso fizesse meu rosto parecer redondo, e assim, pela primeira vez, eu alimentei a idéia de que eu podia ser mesmo bonita (1990, p 133). No entanto, Lucy sabe que mudanças físicas e emocionais são fatos normais para uma pessoa de sua idade, e a cada dia sente que está mais madura, capaz de tomar decisões e de viver sua própria vida. Cria então, um sentimento de vitória, pois ao menos alcança a autonomia que ela tanto desejava, e isto a deixava profundamente feliz: “No dia seguinte, eu acordei em uma cama nova, e ela era minha. Eu a tinha comprado com meu dinheiro. O telhado sobre a minha cabeça era meu, ou seja, enquanto eu pudesse me dar ao luxo de pagar o aluguel dele” (1990, p.144). A extensão de sua mudança é dimensionada, por exemplo, no episódio em que, ao encontrar em sua gaveta alguns papéis legais, tais como passaporte e cartão de imigração, reflete que todos eles traziam tudo sobre ela e ao mesmo tempo não traziam absolutamente nada, ou seja, mostravam-na como era perante as outras pessoas, seus aspectos físicos, mas não como era sua interioridade. Como ela mesma declara, mostravam que seu nome era Lucy, Lucy Josephine Potter, mas não eram capazes de mostrar o sentimento de ódio que sentia por seu próprio nome: Eu procurei dentro da gaveta e recuperei uma pequena pilha de documentos oficiais: meu passaporte, meu cartão de imigração, a minha autorização para trabalhar, a certidão de nascimento, e uma cópia do contrato de locação do apartamento. Esses documentos mostravam tudo sobre mim e, no entanto, eles não mostravam nada sobre mim. Mostravam onde eu nasci. Mostravam que eu nasci no dia vinte e cinco de maio de 1949. Mostravam minha altura. Mostravam que a minha pele e os olhos eram da mesma cor, marrom, todavia, não diziam se as sombras eram idênticas. Esses documentos todos diziam que meu nome era Lucy - Lucy Josephine Potter. Eu costumava odiar todos estes três nomes (1990, p. 149). No decorrer da narrativa, a protagonista afirma que passado é algo que não faz mais parte do presente de alguém, que há simplesmente uma linha demarcatória que separa os fatos passados dos presentes, e que não deixa conseqüências. Propõe a si mesma a idéia de que tudo que viveu não interfere em sua vida, e as pessoas com quem conviveu ou as situações que viveu são fatos insignificantes agora: Eu tinha começado a ver o passado como isto: existe uma linha, você pode desenhá-la por si próprio, ou por vezes ela é desenhada para você; seja como for, lá está ele, seu passado, uma coleção de pessoas que você costumava ser, e coisas que você costumava fazer. Seu passado é a pessoa que você não é mais, as situações nas quais você não mais está (1990, p.137). Contudo, depois de certo tempo sofrendo com o desejo de esquecer seu passado por completo, começa a ser dar conta de que é realmente impossível se desvencilhar dele, que não existe a possibilidade de simplesmente se passar uma borracha em tudo que se passou. Ela se conforma com o fato de que onde 35 quer que vá, seu passado estará junto a ela, mesmo que não queira: tudo o que ela havia feito interferiu e interfere de certa forma em seu presente. Como se percebe, há uma clara evolução na protagonista, especialmente no que tange ao processo de aceitação de si mesma e de seu passado. Lucy acreditava que o EUA era uma espécie de paraíso, o que acabou não se confirmando; com a decepção tem que passar por um processo de recuperação, o qual consegue com a ajuda de Mariah. Sua outra luta se refere à busca por uma nova identidade e sua conseqüente briga com suas memórias, que tem de aceitar para que possa então conseguir viver em paz com seu presente. Nota-se que Lucy não consegue cumprir aquilo a que se havia proposto, ou seja, relegar seu passado a uma simples demarcação temporal na qual os fatos que aconteceram em sua terra natal em seu passado não lhe causam nenhum efeito no presente. Cria a consciência de que, apesar de não mais estar inserida nas ações do seu passado e situações de sua terra, já participou das mesmas e isto ninguém conseguirá apagar, nem mesmo o tempo, nem a força de vontade. Lucy é a pessoa que é por que seu passado foi vivido daquela forma e, portanto, está gravado em sua identidade. Lucy pode até mudar, como de fato mudou, mas tudo que viveu de alguma forma terá que ficar marcado em sua vida. É, pois, somente a partir da conscientização de que o passado não é uma linha demarcatória, mas um continuum, não aquilo que demarca “a pessoa que... não mais [se] é”, mas o que alimenta aquela que nos tornamos, que finalmente se encontra pronta para encarar de frente seu futuro e viver o que de bom sua nova terra pode lhe oferecer. Tal conscientização se dá com a ajuda fundamental de Mariah, que faz com que ela perceba que não precisa necessariamente ficar remoendo o passado como se não tivesse um presente e um futuro a viver: deve, antes, aceitá-lo, o que equivale a aceitar-se. Somente então pode viver plenamente sua vida no presente. Referências <http://www.cwrl.utexas.edu/~bump/E388M2/students/meraz/thematic.html>. Acesso em: 20/10/2007. DONNEL, Alison; WELSH, Sarah Lawson. The Routledge Reader in Caribbean Literature. London and New York: Routledge, 1996. KINCAID, Jamaica. Lucy. New York: Farrar, Straus e Giroux, 2002. MERAZ, Cesar and Sharon. 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