Leomar Antonio MONTAGNA
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Leomar Antonio MONTAGNA
2 3 4 A ÉTICA COMO ELEMENTO DE HARMONIA SOCIAL EM SANTO AGOSTINHO 5 CAPA: http://4.bp.blogspot.com/-zyE7qqs80GA/T5V8x_PjWI/AAAAAAAAAiA/5944oZvLEFU/s400/1.jpg 6 Leomar Antonio MONTAGNA A ÉTICA COMO ELEMENTO DE HARMONIA SOCIAL EM SANTO AGOSTINHO I Edição On-line Reimpressão Humanitas Vivens Ltda “Uma Instituição a serviço da Vida” Maringá –PR, 2009 7 Copyright 2009 by Humanitas Vivens Ltda EDITOR: Prof. Dr. José Francisco de Assis DIAS CONSELHO EDITORIAL: Prof. Ms. José Aparecido PEREIRA Prof. Ms. Fábio Inácio PEREIRA Prof. Gunnar Gabriel ZABALA MELGAR REVISÃO GERAL: André Luis Sena dos SANTOS Anna Ligia CORDEIRO BOTTOS Paulo Cezar FERREIRA CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN: Agnaldo Jorge MARTINS Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) M758e Montagna, Leomar Antonio A ética como elemento de harmonia social em Santo Agostinho [recurso eletrônico] / Leomar Antonio Montagna. 1. ed. -- Sarandi, PR : Humanitas Vivens,2009. ISBN:978-85-61837-09-9 Modo de acesso: <www.humanitasvivens.com.br/> 1. Ética. 2. Amor. 3. Santo Agostinho. 4. Patrologia. 5. Felicidade. 5. Ética agostiniana. CDD 21. ed. 100 Bibliotecária: Ivani Baptista CRB-9/331 O conteúdo da obra, bem como os argumentos expostos, é de responsabilidade exclusiva de seus autores, não representando o ponto de vista da Editora, seus representantes e editores. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita do Autor e da Editora Humanitas Vivens Ltda. www.humanitasvivens.com.br – [email protected] Fone: (44) 3046-4667 8 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ........................................................ 11 INTRODUÇÃO ............................................................... 13 CAPÍTULO I SANTO AGOSTINHO: VIDA, CONTEXTO HISTÓRICO E OBRAS ................................................. 23 1 Santo Agostinho: conhecer-se para conhecer a Deus .......................................27 2 Santo Agostinho: o filosofar na fé por meio de suas obras literárias .................65 CAPÍTULO II 67 PRINCÍPIOS DA ÉTICA AGOSTINIANA ...................... 1 O primado do amor .......................................................... 67 2 O amor e a noção agostiniana de ordem .......................... 72 3 O amor e a felicidade ........................................................78 4 A moral interior: princípio do agir humano ......................83 5 O amor e a experiência de Deus ....................................... 86 6 O amor e a ética do dever: 90 princípio da moralidade agostiniana ....................................... CAPÍTULO III 101 A DIMENSÃO ÉTICA E SOCIAL DO AMOR .................. 107 1 Ética social, prolongamento da moral individual ................ 2 O amor enquanto fundamento ético de 110 socialização do homem ........................................................... 3 Amar o próximo: a plenitude e as expressões do amor-caridade .....................112 3.1 Amar o próximo – os parentes .....................................117 3.2 Amar o próximo – os amigos .......................................119 3.3 Amar o próximo – os pobres .........................................120 9 3.4 Amar o próximo – os inimigos .....................................124 3.5 Amar o próximo – os frutos ..........................................127 4 Fundamento da verdadeira justiça no Estado: 130 o amor .................................................................................... 5 Finalidade imediata do Estado terreno: 139 a ordenada concórdia ou a paz temporal ................................... 6 Fundamentos da ordenada concórdia ou 142 paz temporal no Estado: a verdadeira justiça........................ 7 A paz e a “guerra justa” na história .................................146 8 Complemento: 150 A “Paz justa” e o caráter social do Estado ............................ 9 Instrumento garantidor da ordenada concórdia ou 160 paz temporal no Estado o poder temporal .......................... 167 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................. ANEXO 1: RELAÇÃO DE OBRAS DE AGOSTINHO 175 EM ORDEM CRONOLÓLIGA ........................................ REFERÊNCIAS 181 Primárias ................................................................................ 183 Secundárias ............................................................................ 183 Comentários sobre Santo Agostinho ...................................... 186 Outras obras de apoio ............................................................. 10 APRESENTAÇÃO Com profunda e plena satisfação, escrevo esta breve apresentação da obra do Padre Leomar Antonio Montagna: A ética como elemento de harmonia social em Santo Agostinho. Com especial alegria, participei do projeto, do esforço e, agora, da colheita dos frutos. O Pe. Leomar tem conseguido tecer, com harmonia, fazendo honra ao título, o tema central da pessoa, pensamento, coração e paixão do grande Agostinho: o amor com a ética. Um tema importante nos escritos de Agostinho, porém não tão conhecido e profusamente estudado como outros. O leitor e ainda mais o estudioso de Santo Agostinho e da ética vão tirar proveito mesmo desta obra, pois, com muito fundamento e habilidade, o autor consegue expressar essa harmonia agostiniana do amor como peso e medida da vida da pessoa e da justiça social. Com abundância de textos agostinianos, bíblicos, da doutrina cristã e de outros autores sobre estas matérias, a exposição consegue, no decorrer de seus três capítulos, prender o leitor, o estudioso e até o curioso. O estilo narrativo inquieta o coração, questiona e purifica a mente e empenha a vida dele na dinâmica da fé e a caridade a fim de viver na justiça. Tudo bem imbuído do autêntico espírito agostiniano. Quero me congratular com o autor e com todos os que de diferentes maneiras participaram deste projeto do qual, hoje, desfrutamos de seus resultados. Desejo que outros projetos venham a se realizar, estudos e obras em favor da ética como elemento da harmonia social. Fr. Sebastián Olalla del Río, OAR Prior da Ordem dos Agostinianos Recoletos – OAR Vicariato do Brasil da Prov. de Santo Tomás de Vilanova da OAR Seminário Santo Agostinho – Maringá – Paraná – 2006. 11 12 INTRODUÇÃO Vivemos atualmente numa sociedade carente de sentido e de horizontes, por isso sofremos as consequências mais terríveis nas mais diversas dimensões da vida humana. A partir do pensamento de Santo Agostinho, pode-se explicitar uma crítica à modernidade1, pois se deduz que 1 Na Filosofia Antiga, o centro das atenções era o cosmo, isto é a physis – natureza. Quando os gregos tentam explicar por que existem livres e escravos, eles vão dizer que é a natureza que decidiu isso: é por natureza que uns são livres e outros são escravos; é por natureza que o homem manda na mulher etc. Na Idade Média, a preocupação central era Deus: desde a Patrística (período dos Padres da Igreja que, através dos seus escritos, constituíram-se líderes e pais espirituais tanto na teologia como na filosofia – entre os séculos II e VII), até a Escolástica (período do surgimento das escolas e caracterizado pela subordinação da filosofia à teologia – entre os séculos XI e XIV), a relação entre fé e razão foi pensada em três formulações: “creio porque é absurdo”, “creio para entender” e “entendo para crer”. Longo foi o debate em torno dessas formulações. Santo Agostinho (354 – 430) muito escreveu sobre este tema, para ele, é preciso crer, pois a fé é necessária para o conhecimento da verdade religiosa e moral. Mas é preciso também usar a razão para que a adesão à fé não seja cega e meramente passiva. Santo Tomás de Aquino (século XIII) entende que fé e razão são modos diferentes de conhecer, mas não podem contradizer-se, porque Deus é seu autor comum. Quando aparece uma oposição, é sinal de que não se trata de verdade, mas de conclusões falsas ou não necessárias. Nas universidades, estas questões não só eram expostas (expositio) pelo mestre, mas também debatidas com os alunos (disputatio). Na Filosofia Moderna, há um deslocamento da problemática cosmológica e teológica para a antropológica. Nela, o homem é a 13 essa falta de sentido proceda de um tipo de sociedade que criamos que eliminou os princípios e os fins absolutos; tudo ficou reduzido ao conhecimento empírico, testável, deixando de lado pontos referenciais necessários à conduta humana. Questões fundamentais que caracterizam o percurso da existência humana foram deixadas de lado, tais como: Quem sou eu? De onde venho e para onde vou? Por que existe o mal? O que é que existe depois desta vida? Por falta de um referencial maior, percebe-se, hoje, a dissolução do indivíduo, da família e da sociedade. Os contrastes agudos entre as idéias e promessas e a realidade efetiva são cada vez mais facilmente percebidos; principal questão. Na modernidade, aparece com força e como ponto de partida de toda a Filosofia a descoberta da subjetividade – primeiro ato do conhecimento do qual dependerão todos os outros, é a Reflexão ou Consciência de si. A consciência é para si mesma o primeiro objeto de conhecimento ou o conhecimento de que é capacidade de e para conhecer. O pensamento consciente de si, de sua força, capaz de oferecer a si mesmo um método e de intervir na realidade natural e política para modificá-la. A modernidade se caracterizou pelo fato de a razão humana erigir-se como critério último da verdade e, portanto, também da eticidade. Mesmo quando Deus não é negado, ele é colocado entre parênteses ou só é aceito nos limites da racionalidade humana. Elimina-se qualquer referência ao transcendente e passa-se a viver uma fragmentação do saber, da doutrina e dos valores. A modernidade ofereceu quatro grandes revoluções: a econômica, a cultural, a política e a social; porém não conseguiu cumprir o prometido. Por isso a crítica que se faz, hoje, é que a profecia prometida de dar ao homem a felicidade, não só não se cumpriu assim como ele mesmo se enganou com totalitarismos inumanos, guerras, bombas atômicas, holocaustos etc. Para Agostinho, o ser humano, para viver bem socialmente e em harmonia consigo mesmo, necessariamente, precisa submeter-se a uma vontade superior, isto é, a Deus. 14 enquanto se sonha com um mundo em paz, agravam-se o ódio e a violência nos mais diversos níveis. Ocorre, não obstante todo o inédito avanço científico, a crescente consciência de um incisivo desconforto, de proporções desmedidas, latente, que atinge toda civilização. A Filosofia, mãe de todas as ciências, chega ao século XXI em uma situação penosa de insegurança com relação a seus próprios fundamentos e, mesmo, no que diz respeito à justificação de sua própria existência. Os imensos avanços das ciências, por um lado, e a crescente consciência da desagregação das certezas da tradição, por outro, colocam o pensamento filosófico em um impasse de grandes proporções.2 Como a ética trata do agir do ser humano e o tema desenvolvido nesta obra versa sobre A ética como elemento de harmonia social em Santo Agostinho e, tendo em vista que hoje percebemos grandes conturbações sociais e uma solidão cada vez mais profunda no ser humano, mesmo os que moram em “megalópoles”, então, esta obra não é só um desafio, mas também uma oportunidade para compreender o homem de hoje, para alguns, denominado “pós-moderno”3. 2 Cf. SANTOS, 2000. Alguns pensadores dizem que a modernidade está em crise e falam da pós-modernidade. São aqueles que dizem que a modernidade não é simplesmente antropocentrismo, mas é um antropocentrismo em que se aposta que os seres humanos podem, por sua própria força, criar um mundo perfeito. Essa capacidade é posta em cheque, pois dizem: Como vamos criar um mundo perfeito se, dominando a natureza, o homem, provoca uma crise ecológica e também a crise social de uns dominando os outros? Outros afirmam que a cultura pós-moderna nasceu no século XX, nos grandes centros urbanos dos países ricos e industrializados. É uma 3 15 Neste sentido, compreender o pensamento ético de Santo Agostinho será muito válido para poder visualizar um caminho possível para a recuperação de certos aspectos do ser humano, pois o modo de agir segue sempre o modo de ser (Aristóteles). cultura do tédio, da depressão, do trabalho massacrante e da vida sem sentido. O ensino não oferece mais uma visão global do mundo, uma síntese, mas conhecimentos parciais, especializados e fragmentários. As pessoas se sentem como baratas tontas e sem perspectivas. A modernidade não trouxe a felicidade. A pobreza aumentou. Os banqueiros e os grandes empresários tomaram o poder dos políticos e o Estado deixou de ser o juiz dos conflitos entre capital e trabalho. Neste contexto, só o capital tem a palavra e o dinheiro manda no mundo. Ultimamente, em meio a mudanças tão aceleradas, as teorias pósmodernas, em suas várias formas de manifestação, também buscam compreender este homem que, entre tantos seres, não tem conseguido realmente ser sua totalidade. A própria razão, que se tornou o mito da modernidade, e todas as verdades cultivadas e vivenciadas durante séculos, tem sido questionada. Tão perseguida, tornou-se, hoje, em muitos casos, fonte de exclusão e banalização e, ao mesmo tempo em que é usada para gerar vida, tem gerado a morte. Alimentos são produzidos em quantidades nunca vistas e milhares morrem de fome; inventam-se aparelhos e máquinas nunca imaginados e poucos podem usufruí-los; o meio ambiente, que nos permite ter vida, tem sido destruído em ritmo irracional. Em meio a esse turbilhão, a pessoa humana continua a buscar formas de utilizar-se desse ser racional que, afinal, faz parte de sua própria constituição, sem conseguir alcançar seu objetivo maior que é ser mais feliz e mais gente. Enfim, pode-se dizer que os conflitos, as desigualdades, tensões sociais, revoluções no âmbito tecnológico e das comunicações, tudo isso determina a direção que a Filosofia tem de tomar na sua atual relação com o mundo. Tratase da direção ética. É a legitimidade da Filosofia, hoje, depende da melhor fundamentação possível do agir humano, pois é da racionalidade desse agir ético que depende o futuro do mundo. 16 No primeiro capítulo, abordamos os caminhos da vida de Santo Agostinho, por meio de suas obras, de maneira especial Confissões4 e, nele, o “Homem Agostinho” identifica-se com o gênero humano, isto é, o homem enquanto humanidade, em qualquer tempo e contexto. Quando descrevemos a vida de Santo Agostinho, não pensamos numa história singular de uma vida de inquietudes, angústias, dúvidas, erros e acertos, mas sim em cada um de nós, em nossas ansiedades e inquietudes, lutas e contradições interiores, dores e alegrias. Percebemos que, apesar das conquistas alcançadas ao longo da história, com seus avanços nas mais variadas áreas do conhecimento, o homem continua inquieto, angustiado e carente de felicidade. Agostinho não se contentou em levar uma vida medíocre, não se conformou com os relativismos éticos que o dissolviam numa vida sem sentido: buscou, acreditou e encontrou o horizonte, a paz a segurança, enfim, o Ser-Deus que tanto procurava. Talvez seja esta a questão principal para se discutir, hoje, o porquê dessa dissolução ética.5 A 4 Além das Confissões, utilizada desde o primeiro capítulo, far-se-á uso, nos outros capítulos (segundo e terceiro), de A cidade de Deus, pois nela encontra-se a essência do pensamento ético-político-social de Agostinho. Entretanto, como Agostinho é um pensador de gigantesca produção literária, tomar-se-ão outras de suas obras para enriquecer nosso tema, assim como muitos filósofos que refletem sobre seu pensamento. 5 Hoje, vive-se uma ditadura do relativismo, há uma ausência de objetividade e uma constante mudança de valores. O excessivo valor que se tem dado nos últimos tempos à pessoa, suas atividades e sentimentos, tem como consequência uma forte dose de subjetivismo e uma perda de objetividade. Se as coisas, as circunstâncias e as opções mudam segundo varia o sentimento da pessoa, não há nada absoluto, nem fixo, nem objetivo. Os valores mudam e são novos sempre, como a moda de temporada. Falta uma fundamentação em tudo, a vida é 17 dissolução ética remete para o problema da dissolução ontológica, pois a maneira como expressamos a realidade depende do que conhecemos e acreditamos. Mas as questões a que o pensamento ético de Agostinho nos remete são: O que conhecemos? No que acreditamos? Onde está nossa segurança? No ter? No prazer? No poder? Será que teremos que trilhar penosamente o caminho, para, em última instância, voltar para Deus? Haverá ainda tempo de uma regeneração individual e coletiva? Estas questões serão esclarecidas por intermédio do pensamento de Agostinho, no segundo e terceiro capítulos, em que são trabalhados os princípios da ética agostiniana e sua dimensão social que é o amor. Para ele, a força maior da moral interior é o amor, expresso no duplo preceito da caridade: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”.6 Esse amor tem a dupla função de constituir tanto o peso como a medida de todos os fundamentos ético-morais do homem: “O meu amor é o meu peso. Para qualquer parte que vá, é ele que me leva”7, como aqueles relativos à dimensão ético-política do estado: superficial, valoriza-se a aparência, o contingente e o precário. É a aparição da chamada “cultura light”. E o mais delicado de tudo: a atitude ética se rege pela norma de viver o momento presente. Consequências disso: tudo muda, tudo se acelera e nada está em seu lugar. Produz-se, assim, uma sensação de precariedade, de insegurança, de vazio e insatisfação, de instabilidade, porque tudo é limitado, contingente, passageiro. Por isso se fala hoje de uma cultura móvel. Não há absolutos. 6 Mt 22, 37-39. 7 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 1997, XIII, 9,10. Nas próximas indicações referentes a esta, obra indicar-se-á somente o nome da obra com o respectivo livro, capítulo e parágrafo. 18 Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos homens e tem esta por máxima glória de Deus, testemunha de sua consciência.8 Assim como o amor (caridade) é a fonte da moral interior individual, tendo como meta a busca da felicidade do homem, da mesma forma, acontece na vida social. A caridade gera a concórdia que, num plano social, é a base de uma sociedade justa. Portanto, Agostinho faz da ordem social um prolongamento da ordem moral interior, no qual a organização dos homens em sociedade (Estado), fundamentada no amor, não tem outra finalidade senão garantir a paz temporal ou a felicidade temporal dos homens, com vista à paz eterna ou verdadeira felicidade. Tendo como máxima aristotélica que a maneira como expressamos a realidade depende de em que acreditamos, então, é fundamental resgatar o valor dos princípios e fins norteadores da conduta humana que, para Agostinho, é a reta ordem do amor que supõe a primazia de Deus. Para que o homem alcance a felicidade, Agostinho propõe uma moral interior orientada para a reta escolha das coisas a serem usadas e das coisas a serem fruídas. Para ele, devemos gozar 8 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Trad. Oscar Paes Leme. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2003. (Coleção Pensamento Humano). XIV, 28. Nas próximas indicações referentes a esta obra, indicar-se-á somente o nome da obra com o respectivo livro, capítulo e parágrafo. 19 unicamente em Deus. Devemos apenas utilizar as coisas terrenas de forma reta, para merecermos o gozo em Deus. Assim, somente se o homem viver esta reta ordem do amor poderá atingir a harmonia individual e coletiva e salvar o planeta, pois da maneira que segue a sociedade, a vida do planeta corre um grande risco de destruição. Estamos, dessa forma, colocando em perigo a existência de uma vida futura. No segundo e terceiro capítulos, percebemos que, para Agostinho, cabe aos seres humanos a livre escolha para construir ou não um mundo mais justo e solidário. Mas essa escolha deve ser a partir de dentro, do íntimo de cada pessoa. O pensamento cristão insiste na interiorização da moralidade e, especificamente, em Santo Agostinho, de tal modo que os valores cívicos não servem mais como referência fundamental para nossa existência.9 Devemos buscar na consciência e em sua relação com a verdade o caminho para a compreensão de nossa liberdade. Com isto, desmorona o ideal da pólis10: “A partir da descoberta da 9 Uma antiga estória cristã sobre as primícias da liberdade na verdade da fé diz o seguinte: “Quando a Fé liberta a vida, não se presta atenção nas pessoas dignas nem se procuram homens fiéis. Os superiores são como os galhos mais altos das árvores e os inferiores são como os animais da floresta. Honestos e sinceros, os homens nem têm idéia de que são cumpridores de seus deveres. Amam-se uns aos outros, sem saber quem é o próximo, nem imaginam que estão cumprindo o maior de todos os mandamentos. Não enganam ninguém e não se têm em conta de pessoas confiáveis. Convivem na liberdade de dar e receber e não se sentem generosos. Pode-se fiar deles e ignoram o que seja fidelidade. Seus feitos não deixam vestígios e suas obras não são alardeadas. A história nem suspeita de suas vidas”. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Vol. I – Introdução. p. 19-20. 10 Pólis, para os gregos, referia-se ao conjunto das pessoas que viviam na cidade. A cidade era um espaço seguro, ordenado e manso, onde os 20 interioridade da moral passamos a ser membros, em primeiro lugar, de uma comunidade racional que se constrói a partir de princípios derivados da lei divina, expressos pela dimensão prática da razão”.11 Trabalhar o tema da ética como elemento de harmonia social em Santo Agostinho tem como objetivo buscar uma direção mais segura para o ser humano que, constantemente, é bombardeado por agentes externos que provocam inquietações, desajustes estruturais e conflitos sociais. O tema proposto e o estudo das obras de Santo Agostinho que, no anexo 01, estão relacionadas em ordem cronológica, são uma oportunidade para compreender melhor a Filosofia, principalmente, no início da Idade Média, e para entender como ocorreu a mudança do pensamento grego para o pensamento cristão. Além do interesse filosófico que o pensamento de Santo Agostinho desperta nos estudiosos e filósofos, também é importante para os que buscam compreender o pensamento cristão, desde suas origens, pois a influência do pensamento homens podiam se dedicar à busca da felicidade. Os cidadãos ganhavam destaque na hierarquia social, uma vez que cidadão era quem pensava, ocupava-se com a arte, com a filosofia ou com a vida intelectual. Por sua vez, as mulheres, as crianças, os estrangeiros e os escravos não participavam e não decidiam, pois não eram considerados cidadãos. Pólis, também, é a cidade não como conjunto de edifícios, ruas e praças, mas como espaço cívico, ou seja, entendida como comunidade organizada, formada por cidadãos (polítikos), isto é, pelos homens livres e iguais nascidos em seu território, portadores de dois direitos inquestionáveis: a isonomia (igualdade perante a lei) e a isegoria (a igualdade no direito de expor e discutir, em público, opiniões sobre ações que a cidade deve ou não realizar). 11 BIGNOTTO, Newton. 1992. p. 19 21 agostiniano foi decisiva na formação e no desenvolvimento da filosofia cristã no período medieval. E não só nesse período, mas também na modernidade muitos pensadores receberam influência de suas obras. Elas atravessaram os séculos, influenciando desde as pessoas mais simples até aos mais eruditos. Enfim, compreender a filosofia e a teologia de Santo Agostinho é uma oportunidade única no sentido de uma verdadeira realização pessoal e de uma vida mais serena e humana. 22 CAPÍTULO I SANTO AGOSTINHO: VIDA, CONTEXTO HISTÓRICO E OBRAS Santo Agostinho, embora não conhecesse diretamente os clássicos gregos12, foi, contudo, um homem de cultura grega no sentido de que seu mundo espiritual era um mundo essencialmente marcado pela cultura grega. Quando assumiu a fé cristã13, passou por um formidável desenvolvimento intelectual, no qual, pouco a pouco, as categorias históricas vão predominar sobre as categorias cósmicas. O cristianismo significou uma ampliação de sua busca filosófica, uma vez que, do ponto de vista do conteúdo, ele considera o cristianismo como a verdadeira sabedoria, a filosofia suprema.14 O que há de original é um 12 Seu conhecimento do grego era insuficiente de tal modo que ele não teve acesso, no original, às obras dos grandes filósofos gregos. Assim, por exemplo, as posições fundamentais de Platão e Aristóteles lhe chegaram ao conhecimento por intermédio da tradução da obra de Plotino ou de Cícero. 13 Para ele, de nenhuma forma, significa uma renúncia à razão, mas a abertura do espaço para uma compreensão mais profunda de tudo. 14 O cristianismo é o caminho universal de salvação, a filosofia para qualquer um. Fé e razão não só não se separam, mas se condicionam mutuamente (Cf. AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. Trad. de Nair de Assis Oliveira, São Paulo: Paulus, 2002, III, 3. Nas 23 caminho novo que conduz ao fim, ou seja, o encontro de um absoluto transcendente no seio da razão como origem radical e fim da razão mesma. Esse novo caminho rearticula, pelas raízes, a herança recebida da filosofia grega. Santo Agostinho, depois de levar uma vida dissoluta, passar por violenta crise espiritual e se converter à religião cristã, propiciou valiosíssima contribuição à filosofia, ou seja, a fusão do cristianismo e do neoplatonismo.15 Isso não próximas indicações referentes a esta obra, indicar-se-á somente o nome da obra com o respectivo capítulo e parágrafo). 15 Corrente filosófica do séc. III da era cristã, fundada por Antônio Sacas e divulgada por Plotino e seus seguidores Porfírio, Iâmblico e Proclo (séc. V). “O Neoplatonismo se caracteriza por uma interpretação espiritualista e mística das doutrinas de Platão, com influência do estoicismo e do pitagorismo. Segundo o neoplatonismo, o real é constituído por três hipóstases – o Uno, a Inteligência (Nous) e a Alma, sendo que as duas últimas procederiam da primeira por emanação. É considerado um sistema um tanto obscuro, embora tenha tido grande influência no início da formação do pensamento cristão, sobretudo devido a seu espiritualismo” (JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. 1996, p. 194). Quanto aos fundamentos do neoplatonismo, são os seguintes: “1º - caráter de revelação da verdade, que, portanto, é de natureza religiosa e se manifesta nas instituições religiosas existentes e na reflexão do homem sobre si próprio; 2º caráter absoluto da transcendência divina: Deus visto como o Bem está além de qualquer determinação cognoscível e é julgado inefável; 3º - teoria da emanação, ou seja, todas as coisas existentes derivam necessariamente de Deus e vão-se tornando cada vez menos perfeitas à medida que se afastam d’Ele; conseqüentemente o mundo inteligível (Deus, Intelecto e Alma do mundo) é distinto do mundo sensível (ou material), que é uma imagem ou manifestação do outro; 4º - retorno do mundo a Deus através do homem e de sua progressiva interiorização, até o ponto do êxtase, que é a união com Deus” (ABBAGNANO, Nicola. 2000, p. 710-711). 24 só proporcionou uma sólida fundamentação intelectual ao cristianismo, como o vinculou à tradição filosófica grega. Toda filosofia agostiniana é uma resposta às grandes preocupações vividas pelo homem Agostinho (a vida de Agostinho resume, de forma precisa, a vida de todos os homens de qualquer tempo e espaço – o homem enquanto humanidade); as suas inquietações interiores (preocupação ética e antropologia filosófica) e as grandes questões religiosas, políticas e sociais suscitadas em sua época (filosofia social). Pode-se dizer que toda a ética filosófica de Santo Agostinho gira em torno do problema da felicidade do homem, e que esta se confunde com o problema do homem Agostinho, o problema de sua dispersão, inquietude e busca da felicidade: “Tornei-me um grande problema para mim mesmo e perguntava à minha alma por que estava tão triste e angustiado, mas não tinha resposta”.16 O centro de sua especulação filosófica coincide, verdadeiramente, com sua personalidade. Sua filosofia é uma interpretação de sua vida. Apresentamos, a seguir, de forma sintética, a vida de Santo Agostinho e o contexto histórico em que viveu. Ao narrar sua história singular, Agostinho fala da história de cada um de nós, de nossas ansiedades e inquietações, de nossas lutas e contradições interiores, de nossas dores e alegrias. “Santo Agostinho é humano como nós; ‘é homem’. E, como nós, conhece a tragédia de viver longe de Deus, a tristeza do pecado, a dor da ausência e a festa do regresso. Seu relato obriga-nos a reler o nosso próprio ser, a dolorosa experiência da difícil arte de viver”.17 Tal empreendimento 16 17 Confissões IV, 4, 9. LUCAS, Miguel. 1997, p. 06. 25 apresenta-se, primeiro, como uma contribuição a todo aquele que deseja conhecer a biografia de Agostinho e, segundo, como forma de contextualizar a temática da ética que é, inequivocamente, uma ética do amor, mais precisamente, caritas18, que, só depois de uma longa luta interior, ele consegue viver e entender: 18 Charitas, palavra que vem do latim e que quer dizer caridade. “Caridade é o amor para os cristãos, que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem e procura identificar-se com o amor de Deus; ágape, amor-caridade” (In: DE BONI, Luiz Alberto. 1996 p. 41). “Este falso amor que se prende ao mundo e que, por este motivo, o constitui, e que, como tal, é mundano, Santo Agostinho chama cobiça (cupiditas), e ao amor justo que aspira à eternidade e ao futuro absoluto, caridade (caritas)” (ARENDT, Hannah. 1997, p. 24-25). Em grego, o termo usado pelo Evangelista João é único: ágape. Na versão latina manuseada por Agostinho, o termo latino usado era apenas: dilectio. A Vulgata de São Jerônimo traduziu o ágape ora por dilectio, ora por caritas. Santo Agostinho introduz uma terceira expressão: amor. O sentido com que Agostinho utiliza esses três termos pode ser assim traduzido: 1 – Amor: pode ser tomado como amor ao mal ou ao bem. Presta-se a antíteses. Em A Cidade de Deus (XIV, 28), ele fala sobre os dois amores: o amor a Deus e o amor a si mesmo, que estão na origem das duas cidades. Para ele, há duas espécies de amor que se excluem mutuamente, são incompatíveis: o amor a Deus e o da criatura; este, se desregrado, é perversão daquele amor que é movimento da alma para Deus. O amor das coisas criadas é legítimo, mas não pode nos afastar de Deus, antes, deve conduzir-nos até ele. 2 – Dilectio: este termo, para Agostinho, designa, habitualmente, o amor das realidades espirituais, é o amor bom e tem o Espírito Santo por princípio. É amor de benevolência, de oblação; não de cuncupiscência, obsessivo, de posse ou destruição do outro. 3 – Caritas: Agostinho identifica este termo explicitamente com a virtude teologal, se bem que também o empregue como sinônimo de dilectio. Também chama de caridade ao amor natural e lícito de uns para com os outros, põe em relevo nessa caridade natural, a gratuidade e desinteresse, que ele apresenta como característica essencial da verdadeira caridade. 26 Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz.19 1 Santo Agostinho: conhecer a Deus20 conhecer-se para Podemos conhecer a vida de Santo Agostinho por meio de diversas obras, dentre elas, destaca-se a Vita Augustinus (Vida de Santo Agostinho) escrita pelo primeiro biógrafo do pensador, o bispo Possídio21, um dos amigos com quem Agostinho conviveu desde o mosteiro de 19 Confissões X, 27, 38. Cf. AGOSTINHO, Santo. Solilóquios. Trad. introdução e notas Adaury Fiorótti. São Paulo: Paulus, 1998, II, 1, 1. Nas próximas indicações referentes a esta, obra indicar-se-á somente o nome da obra com o respectivo capítulo e parágrafo. 21 POSSÍDIO. 2004. 20 27 Tagaste, onde escreveu suas centenas de cartas epistolares e, principalmente, sua obra Confissões que aparece sob forma de autobiografia. Aurélio Augustinus22 (Santo Agostinho) nasceu em Tagaste23, província romana da Numídia, na África romanizada (hoje, chamada Souk-Ahrás, na atual Argélia, Norte da África), em 13 de novembro de 354. Santo Agostinho nasceu em meio a uma família dividida. Seu pai, Patrício, um africano romanizado, era um curialis, ou seja, conselheiro municipal do ordo splendissimus de Tagaste24. Além de funcionário público, era pequeno proprietário de terras. Era um pagão de caráter duro e difícil, às vezes, brutal e violento. Patrício se converteu ao cristianismo pouco antes de morrer, em 371. Sua mãe, Mônica (Santa Mônica), mulher humilde e piedosa, teria um papel marcante na vida de Agostinho. Importante personagem de Confissões e presente em outras. Na época em que Agostinho nasceu, sua mãe tinha 22 anos de idade, enquanto seu pai já era um homem idoso. Além de Agostinho, Patrício e Mônica tiveram mais dois filhos: “O Segundo nome de Aurelius nunca aparece nas suas correspondências, mas lhe é dado pelos seus contemporâneos, ou seja, apesar de ter ficado conhecido como Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho, este nunca assinava suas cartas e documentos com seu segundo nome Augustinus, mas apenas o primeiro Aurelius” (COSTA, Marcos Roberto Nunes. 1999, p. 15). 23 Na época de Agostinho, Tagaste era uma cidade próspera culturalmente e economicamente, sendo um dos ricos celeiros de alimentos, especialmente olivas, da África. 24 Cf. HAMMAN, A. G. 1989, p. 13. Outros autores dizem que o pai de Agostinho era um tenuis municeps, quer dizer, um pequeno burguês com magros recursos. 22 28 Navígio que se converteu juntamente com Agostinho, mas que morreu jovem, e uma irmã de nome Perpétua que, depois de enviuvar, entrou para a vida religiosa, chegando à superiora de um convento agostiniano feminino em Hipona.25 Alguns autores trazem notícias de uma segunda irmã, de que não se sabe o nome. Entre esses autores, temos Hylton Rocha, que assim diz: “Eles tiveram pelo menos dois filhos e duas filhas. Entre esses, Navígio, que se converteu juntamente com Agostinho, e uma irmã que foi superiora do mosteiro de Hipona”.26 Pelo que tudo indica, a mãe de Agostinho nasceu na Numídia, Norte da África, e era de descendência bérbere, seu nome, Mônica, é atribuído a uma das divindades autóctones, Monnica.27 Após o nascimento, Agostinho ficou acometido por uma febre muito alta, esteve à beira da morte. Sua mãe, preocupada em purificar-lhe do pecado original, procurou a Igreja, e ele foi marcado com o sinal-da-cruz, o que significa que fora inscrito na lista dos catecúmenos. Mas, passado o perigo, o batismo foi adiado. Mais tarde, Agostinho lamenta ter tornado esse seu primeiro batismo em vão, pois, “como se fosse inevitável que, vivendo, devesse continuar a corromper-me, sem dúvida porque se pensava que a responsabilidade pelas faltas cometidas depois do batismo é ainda mais grave e perigosa”.28 25 RUBIO, Pedro. 1995, p. 392. ROCHA, Hylton Miranda. 1979, p. 24. 27 Cf. HAMMAN, A. G. op. cit., 1989, p. 13 e ROCHA, Hylton Miranda. 1981, p. 5-6. 28 Confissões I, 11, 17. 26 29 Agostinho falava púnico ou cartaginês, a língua natural de sua terra, e latim, a língua do Império Romano. Mais do que isso, chegou a escrever e pronunciar sermões em púnico, para melhor atingir aos fiéis, quando bispo de Hipona, pois “mesmo cidades como Hipona falavam púnico, dificilmente conseguindo seguir um sermão em latim”.29 Quanto às características físicas de Agostinho: “Não era de grande estatura: o hábito parecia grande demais para seu físico”.30 Em outra fonte, Carlo Cremona, referindo-se às palavras agressivas de Juliano de Eclama, bispo pelagiano, que assim fala de Agostinho: “És um negro, coitado, filho de uma beberrona!”31 Desde criança, Agostinho desenvolveu grande paixão por jogos, o que iria atrapalhar o gosto pelos estudos: “eu não gostava do estudo e detestava ser obrigado a ele”.32 Por conta disso, foi obrigado a estudar, sendo muitas vezes castigado para tal. Agostinho lembra esses momentos e diz: “era pequeno ainda, mas era grande o fervor com que eu te implorava para que me evitasses os castigos na escola (...) Não que nos faltasse memória ou a inteligência, pois nos dotaste, Senhor, com o suficiente para a nossa idade. O fato 29 HAMMAN. A. G. op. cit., 1989, p. 10. CREMONA, Carlo. 1990, p. 64. 31 CREMONA, Carlo. Op.cit., 1990, p. 240. “O fato de Juliano ter se referido a Mônica como beberrona está, certamente, associado ao fato de que em Confissões, cap. IX, 8, 17-18. Agostinho ter narrado que sua mãe Mônica desde jovem adquiriu o hábito de tomar vinho, e que repassara o mesmo para seus filhos” (COSTA, Marcos Roberto Nunes, op. cit., 1999, p. 20). 32 Confissões I, 12, 19. 30 30 é que gostávamos de nos divertir, e o mesmo faziam, é verdade, aqueles que nos castigavam.”33 Santo Agostinho recebeu, em Tagaste, seus primeiros estudos de gramática, aritmética, latim e um pouco de grego, língua que nunca chegou a dominar bem. Vemos, em Confissões, o lamento por não ter aprendido grego: “Ainda hoje não sei explicar bem a causa da minha repugnância pelo estudo do grego, que tentavam inculcar-me desde criança”.34 Um pouco mais adiante, afirma: “Outrora, quando menino, nem mesmo do latim eu conhecia alguma coisa; no entanto, eu aprendi, com um pouco de atenção, sem temores nem castigos e ameaças, impelido pela necessidade que sentia no coração de exprimir meus pensamentos”.35 Mesmo com dificuldades para aprender o grego, Agostinho gostava das poesias da mitologia grega na versão latina e, já na infância, sabia de cor muitos versos de Virgílio, poeta de sua predileção, que seria citado em diversas de suas obras. Com o passar do tempo, desenvolveria o gosto pelos poetas e historiadores, especialmente Varrón36, que teria grande influência no seu pensamento. 33 Ibid., I, 9, 14-15. Ibid., I, 13, 20. 35 Ibid., I, 14, 23. 36 Marco Terêncio Varrón (116-27 a.C.), amigo de Cícero, grande erudito e escritor latino. Escreveu uma extraordinária quantidade de obras sobre história, filosofia e sobre as artes e a cultura romana, das quais se conservam poucas atualmente. Agostinho cita diversos escritos de Varrón em algumas de suas obras, principalmente em: A Ordem (2, 12.35; 2, 20.54) e A Cidade de Deus (4, 6-7; 6,3-5; 7; 18 e 19, 1-3). 34 31 No ano de 365, com 11 anos de idade, foi enviado a uma cidade maior (Madaura), cerca de 30 quilômetros de Tagaste, considerada cidade intelectual da região, para estudar educação geral (Literatura e Gramática). “De acordo com a tradição, os autores do programa (dentre eles: Terêncio, Plauto, Sêneca, Salústio, Horácio, Cícero, etc) eram estudados sob quatro aspectos: lectio (leitura em voz alta com ensino de dicção); enarratio (explicação dos textos); emendatio (análise gramatical e literária) e judicium (estudo de conjunto). Ao mesmo tempo, estudavam o grego”.37 Bem-sucedido na cidade de Madaura, Agostinho começa a brilhar entre seus colegas e os mestres prediziamlhe um futuro brilhante. Em contrapartida, sua conduta moral foi, aos poucos, decaindo, na busca de prazeres mundanos. O ambiente intelectual de Madaura fizera esquecer, pouco a pouco, os ensinamentos cristãos que recebera de sua mãe. Agostinho lembra esses momentos com pesar: Eu me encontrava, pobre menino, no limiar dessa escola de moral (...) Eu não percebia o abismo de ignomínia em que me atirava, longe de tua presença. Diante de ti, o que havia mais indigno do que eu? Eu desagradava até mesmo àqueles homens, ao enganar com inúmeras mentiras o pedagogo, os mestres e pais, tão grande era o meu amor pelo jogo, a minha paixão pelos espetáculos frívolos e a mania de imitar os atores. Eu furtava da despensa e da mesa de meus 37 ROCHA, Hylton Miranda. op. cit., 1989, p. 19 32 pais, ora impelido pela gula, ora para ter com que pagar aos companheiros, que vendiam seus jogos, mas que se divertiam tanto quanto eu. Muitas vezes eu cometia fraudes no jogo para conseguir vitórias, dominado pelo tolo desejo de superioridade sobre os outros.38 No início de 370, Agostinho volta para a casa dos pais em Tagaste, para um período de férias, que duraria quase um ano. Seus pais se preparavam economicamente para enviá-lo a Cartago, onde faria os estudos superiores. De férias em Tagaste, Agostinho continua sua vida de desfrutes, praticando uma série de desmandos junto com outros amigos jovens, como, por exemplo, o famoso “roubo das pêras”, narrado por ele em Confissões.39 Foi naquela época que iniciou, e manteve até os trinta anos, um romance com uma mulher de condições modestas, uma vendedora de violetas, chamada Melânia, com a qual, em 372, um ano após a morte de seu pai, veio a ter um filho chamado Adeodato (que significa “dado por Deus”). Sobre isso, Agostinho confessa: No entanto - miserável que sou! – eu me abandonava com furor à torrente das paixões que me afastavam de ti; eu transgredia todas as tuas leis, sem escapar naturalmente de teus castigos. Quem dos mortais conseguiria fazê-lo? Sempre estavas presente em tua severa misericórdia, entremeando de amargos 38 39 Confissões I, 19, 30. Confissões II, 4, 9. 33 desgostos os meus prazeres ilícitos, a fim de que eu aprendesse a procurar a alegria sem ofender-te.40 No final do ano de 370, com 16 anos de idade, depois de quase um ano de ociosidade e vícios, Agostinho foi enviado a Cartago, capital de uma das províncias do Império Romano na África do Norte, para fazer seus estudos superiores que contemplavam o seguinte currículo: retórica, dialética, direito romano, música, geometria e matemática. A ida para essa cidade só foi possível graças à ajuda de um benfeitor amigo da família, o mecenas Romaniano41. Neste território, Cartago era a maior cidade do ocidente latino, depois de Roma. Sua importância era tal que recebeu o nome célebre de Carthago Veneris (Cartago de Vênus). “Os romanos haviam reconstruído Cartago graças à prosperidade africana. César e Augusto a haviam povoado com colonos procedentes da capital e das províncias da Itália, fazendo-a uma verdadeira Roma de ultramar”.42 Em Cartago, Agostinho chegou totalmente pervertido e logo passou a fazer parte de um grupo de jovens que se autodenominava “demolidores”, os quais arrumavam confusão em toda parte. Seu temperamento fogoso lançou-o à busca dos prazeres: 40 Ibid., II, 2, 4. “Romaniano – Homem rico de Tagaste. Pagou os estudos de Agostinho em Cartago. Mostrando sua gratidão, Agostinho tomou a seu cargo a educação de Trigécio e Licencio, filhos de seu mecenas” (RUBIO, Pedro. 1995, p. 394). 42 HAMMAN, A. G. op. cit., 1997, p. 11 41 34 Vim para Cartago e logo fui cercado pelo ruidoso fervilhar dos amores ilícitos. Ainda não amava, e já gostava de ser amado, e, na minha profunda miséria, eu me odiava por não ser bastante miserável (...) Era para mim mais doce amar e ser amado, se eu pudesse gozar do corpo da pessoa amada. Assim, eu manchava as fontes da amizade com a sordidez da concupiscência e turbava a pureza delas com a espuma infernal das paixões.43 Vivendo uma vida frívola, logo foi arrastado para os teatros, para o prazer dramático, pelo qual tinha uma certa paixão desde criança, quando desenvolveu o gosto pela mitologia e historiografia grega. “Extasiavam-me os espetáculos teatrais, que espelhavam copiosamente as minhas misérias e alimentavam a minha fogueira”.44 Embora passando por essa realidade de confusões e desvios, Agostinho dedica-se aos estudos e, em pouco tempo, já era o primeiro da escola. Com sua inteligência brilhante e a influência dos pais que lhe desejavam um futuro promissor, Agostinho sonhava em formar-se em Direito e sua facilidade de argumentação e de retórica lhe garantiam tal carreira. Mas a morte do pai, Patrício, em 371, perturbaria os planos de Agostinho, e só graças à ajuda do seu benfeitor, Romaniano, pôde continuar seus estudos em Cartago. Pelos poucos escritos dedicados ao pai, percebe-se que Agostinho não o nutria com grande paixão. Em 43 44 Confissões III, 1, 1. Ibid., III, 2, 2. 35 Confissões, pouco comenta a morte deste, diferentemente da morte de sua mãe, a quem dedica várias páginas para narrar o fato. Tendo completado seus 19 anos, em meio aos estudos em Cartago, conheceu e leu a obra Hortensius45 de Cícero. Neste livro, o velho tribuno, desiludido das suas ambições políticas, volta-se para a filosofia e exprime suas tristezas e suas alegrias na meditação dos problemas eternos. A obra despertava-lhe o gosto pela filosofia, um amor intenso pela verdade. Em Confissões, Agostinho fala da importância que teve o Hortensius em sua vida. Seguindo o programa normal do curso, chegou-me às mãos o livro de tal Cícero, cuja linguagem - mas não o coração – é quase unanimamente admirada. O livro é uma exortação à filosofia e chama-se Hortênsio. Devo dizer que ele mudou os meus sentimentos e o modo de me dirigir a ti; ele transformou as minhas aspirações e desejos. Repentinamente pareceram-me desprezíveis todas as vãs esperanças. Eu passei a aspirar com todas as forças à imortalidade que vem da sabedoria. Começava a levantar-me para voltar a ti.46 Este livro de Cícero teve o poder de despertar Agostinho do marasmo em que vivia. Foi uma espécie de revelação que o levou a defrontar-se com as verdades eternas; verdades que o perturbariam até sua conversão. Entretanto, naquele momento, o famoso livro não foi capaz 45 Neste livro, em diálogo, de que, hoje, só se conhecem fragmentos, Cícero respondia às dificuldades de Hortênsio contra a filosofia. 46 Confissões III, 4, 7. 36 de dar a paz que Agostinho tanto procurava em seu coração inquieto, pois, por mais que tivesse se desviado da religião cristã, seu coração fora marcado pelo cristianismo, sua infância fora marcada pelas palavras de Cristo, pronunciadas pela boca de sua mãe. Por isso, Agostinho, ao ler a obra de Cícero, lamenta não ter encontrado nela o nome de Cristo: “Mas, no meio de tanto fervor, havia uma circunstância que me mortificava: a ausência de Cristo no livro”.47 Sem o nome de Cristo no “Hortensius” Agostinho vai à procura das Sagradas Escrituras: “Resolvi por isso dedicar-me ao estudo das Sagradas Escrituras, para conhecê-las”.48 Fato que o deixou decepcionado, pois, diante da majestade da obra de Cícero, a Bíblia parecia indigna e modesta: “Tive a impressão de uma obra indigna de ser comparada à majestade de Cícero. Meu orgulho não podia suportar aquela simplicidade de estilo. Por outro lado, a agudeza de minha inteligência não conseguia penetrar-lhe o íntimo”.49 Naquele momento, a Bíblia não preenchia o coração inquieto de Agostinho. Seu espírito não encontraria repouso enquanto não encontrasse a verdade.50 47 Ibid., III, 4, 8. Ibid., III, 5, 9. 49 Id. 50 “A incapacidade de pensar, querendo pensar o meu Deus, como uma coisa diferente de uma massa corpórea, já que me parecia que nada existisse sem um corpo, era a suprema e quase única razão do meu inevitável erro” (Confissões 5, 10, 19). Então, para Agostinho, o materialismo lhe pareceu o único modo de conhecer a realidade. Foi essa razão, entre outras, que o impediu de aceitar a encarnação verdadeira e real de Jesus Cristo. “Nosso próprio Salvador, teu Filho único, eu o imaginava como se proviesse da massa do teu corpo de luz para a nossa salvação (...) Mas eu não conseguia ver como poderia 48 37 Por causa dessa experiência frustrada da leitura da Bíblia, em sua angústia e ânsia de encontrar a verdade, Agostinho foi procurá-la em outros lugares. Foi aí que entrou para a seita gnóstica dos maniqueus51, onde permaneceria por nove anos (374-383): “Caí assim nas unir-se à carne, e ao mesmo tempo não se contaminar, este ser que eu imaginava” (Confissões 5, 10, 20). Esta concessão do materialismo foi verdadeiramente profunda enquanto não se libertou com a leitura dos neoplatônicos e escutando as pregações de Ambrósio em Milão. Assim, encontrou a solução dos dois problemas: a espiritualidade do ser e a origem do mal. Da leitura dos livros dos neoplatônicos, Agostinho trouxe a luz para superar o materialismo e para liberar o problema do mal. Ele superou o materialismo com a distinção proposta entre o mundo sensível e o mundo inteligível e com o convite à interiorização feita pelos mesmos. Embora a filosofia tenha sido de muita utilidade para Agostinho, foi somente na Igreja, e a partir da autoridade da revelação, que ele encontra o valor absoluto e sempre válido, isto é, Deus. “O problema do mal e do livre-arbítrio suscita, pois, no horizonte da reflexão sobre a idéia da ordem e da beatitude, a questão fundamental sobre o fim objetivo último da ordem, que é igualmente seu princípio: a questão de Deus. Como tal, Deus é necessariamente o objeto supremo da beatitude, e é nessa supremacia absoluta, a nós dada a conhecer pela mediação cristológica, cuja ausência é, segundo Agostinho, a grande e insanável falha da ascensão neoplatônica (Confissões, VII, 9, 13-14), que a metafísica da ordem e o seu prolongamento ético na doutrina da beatitude encontram o fundamento último” (VAZ, Henrique C. de Lima. 1999. p. 192). 51 Do ponto de vista doutrinal, o maniqueísmo é uma seita gnóstica que mistura seitas orientais, filosofia grega e religião judaico-cristã. Sua tese fundamental consiste na afirmação de dois princípios ontológicos originários do mundo. Costa, Marcos Roberto Nunes (op. cit., 1999, p. 35ss), faz um estudo muito profundo sobre o maniqueísmo. 38 mãos de homens desvairados pela presunção, extremamente carnais e loquazes”.52 Ao fazer a opção pelo maniqueísmo, Agostinho refletia sua angústia na busca de uma paz de espírito. De certa forma, o maniqueísmo respondia, pelo menos num primeiro momento, às grandes preocupações de sua vida: encontrar uma explicação ou justificativa para seus erros e contradições, a força que o impulsionava a praticar o mal.53 O maniqueísmo era uma seita filosófico-religiosa que se originou na Pérsia, fundada por Mani, que misturava doutrinas de Zoroastro com o cristianismo. Sua tese fundamental consistia em afirmar a existência de dois princípios eternos, criadores do Bem e do Mal, que continuam em luta no mundo. Trazendo isso para a prática, o maniqueísmo afirmava que o mal que está em nós, ou que cada um que o pratica, não é responsabilidade própria, mas culpa do princípio do mal. Na época, essa idéia satisfazia as 52 Confissões III, 6, 10. Agostinho aceita a doutrina maniqueísta, mais precisamente, aceita a antropologia maniqueísta. Eis as suas palavras: “Conservava ainda a idéia de que não éramos nós que pecávamos, mas alguma outra natureza estabelecida em nós. O fato de estar sem culpa e de não dever confessar o mal após tê-lo cometido satisfazia o meu orgulho; desse modo eu não permitia que curasses minha alma que pecara contra ti preferindo desculpá-la e acusar não sei qual outra força, que estava em mim, mas que não era eu” (Confissões V, 10, 18). A solução maniqueísta do problema do mal era fundada na teoria metafísica dos dois princípios coeternos e contrários. Então o dualismo metafísico se tornava necessariamente dualismo antropológico. Duas almas no homem, uma boa e uma outra ruim, em eterno conflito entre elas. A vitória de uma ou de outra é a vitória do princípio do bem ou do princípio do mal operante no homem. 53 39 angústias de Agostinho, uma explicação fácil para seus problemas morais. Na obra Confissões, Agostinho fala do maniqueísmo como uma doutrina obscura, confusa e enganadora: Suas palavras traziam as armadilhas do demônio, numa mistura confusa do teu nome com o de nosso Senhor Jesus Cristo e do Espírito Santo consolador (...) Repetiam: ‘Verdade, verdade’! E me falavam muito dela, mas não a possuíam; pelo contrário, ensinavam falsidades, não só a teu respeito, que és realmente a verdade, mas também sobre a existência do mundo, criatura tua.54 Voltando para Tagaste no ano de 374, Agostinho abriu uma escola de gramática para crianças. Um ano depois, mais uma vez ajudado por seu benfeitor Romaniano, abriu uma escola de retórica em Cartago, destinada a ensinar eloquência aos jovens daquela cidade. Os jovens que frequentavam a escola de Agostinho eram tão vazios quanto ele, pois procuravam não a verdade, mas a fama, a glória e o prazer conseguidos com facilidade. Falando sobre essa experiência de professor em Cartago, Agostinho enuncia: Durante os nove anos que se seguiram, dos dezenove aos vinte e oito anos de idade, fui muitas vezes seduzido e sedutor, enganado e enganador, em meio às diversas paixões, ensinando, de público, as 54 Confissões III, 6, 10. 40 ciências chamadas liberais e, em particular, praticando uma religião indigna de tal nome.55 Hylton Rocha reforça essa informação ao dizer: “Seus alunos eram jovens baderneiros, enviados por seus pais ricos para conseguir uma posição social, por meio de uma educação ‘esmerada’. Queriam apenas algo que abrisse as portas para uma situação que fosse fácil e lucrativa”.56 No período que permaneceu como professor em Cartago, dedicou-se aos estudos de filosofia e foi aí que leu As Categorias de Aristóteles57, bem como alguns autores latinos, dentre eles: Varrón, Sêneca, Lucrécio, Apuleio, Cornélio Celso e Cícero. Nesse período e ainda em Cartago, Agostinho fez um grupo de amigos, dentre eles: Licênio, Alípio, Nebrídio, Eulógio e Fortunato, que formavam a base de sua escola, com quem discutia questões mais sérias. Dessas discussões nasceu seu primeiro livro, De Pulchro et Apto58 (Do Belo e Conveniente) que, apesar da influência do materialismo maniqueísta, já refletia um pouco as desilusões de Agostinho por esta doutrina. Depois de algum tempo e a partir da leitura dos filósofos gregos e latinos, as respostas maniqueístas já não satisfaziam mais a Agostinho. Este, depois de muitos 55 Confissões IV, 1, 1. ROCHA, Hylton Miranda. op. cit. 1989, p. 27. 57 Confissões IV, 16, 28. 58 Esta primeira obra de Agostinho, Tratado de Estética, perdeu-se. Em Confissões, ele diz que nem ele mesmo sabe como (Confissões IV, 13, 20). 56 41 debates com seus colegas, esperava encontrar respostas nas palavras do bispo maniqueu Fausto, pois este tinha grande fama de eloquência. Entretanto, quando esteve com o referido bispo, viu nele uma pessoa amável, mas não obteve dele os esclarecimentos de que precisava. Fausto confessou a impossibilidade de responder às suas indagações. Agostinho elogiou a honestidade de Fausto, mas decepcionou-se com sua limitação. A desilusão instalou-se no coração de Agostinho que não abandonaria definitivamente o maniqueísmo, mas entraria, aos poucos, numa fase de ceticismo. Apesar de participar do maniqueísmo, Agostinho nunca chegou à classe dos electi (eleitos), mas apenas de auditor (ouvinte), conforme relato de Carlo Cremona. É verdade, na seita tinha preferido ficar entre os ‘ouvintes’, não obstante as solicitações dos hierarcas para levá-lo a entrar no rol dos ‘eleitos’. Mas os ouvintes podiam ter uma mulher, enquanto os eleitos, pelo menos explicitamente, não podiam; e aquele jovem, agora bispo, era de uma paixão tão ardente, que não podia dormir sem o amplexo de uma mulher.59 Desiludido por não encontrar no maniqueísmo uma explicação para a questão que tanto o torturava, ou seja, “Como explicar que a minha vontade tenda para o mal e não para o bem?”,60 Agostinho é levado, então, a procurar na astrologia uma resposta: 59 60 CREMONA, Carlo. op. cit., 1990, p. 13. Confissões VII, 3, 5. 42 Quis também interrogar as estrelas sobre o mistério e o destino do homem, sempre procurando saber quem, na realidade, faz decidir, nos atos morais, a agir de um modo antes que de outro. Ele sentia que não agia bem e queria jogar a responsabilidade disto sobre um outro ou sobre alguma coisa exterior a si.61 Após a leitura de alguns livros, Agostino procurou um famoso astrólogo de nome Vindiciano que, além de astrólogo, era um excelente médico. Este, que já o conhecia desde a África, em sua honestidade, aconselha-o: “Meu jovem, joga logo fora esse livro, não percas tempo (...) Tu tens um bom talento, empreendeste uma carreira de estudos dignos de respeito que te dará certamente com que viver. A astrologia desviar-te-ia do bom caminho”.62 Mais tarde, já no ano de 383, aos 29 anos de idade, desgostoso com a indisciplina dos jovens alunos de Cartago e atraído pela possibilidade de maiores lucros e honras, resolve transferir-se para Roma, onde abriria uma escola de retórica. A ida para Roma não seria fácil: sua mãe, percebendo a crise por que estava passando seu filho, procura impedir de todas as formas sua partida, mas ele mentiu para ela e fugiu de Cartago. Em Confissões, Agostinho narra o momento em que enganou sua mãe no porto: Quando me apertou estreitamente, tentando persuadir-me a voltar ou a deixá-la vir comigo, 61 62 CREMONA, op. cit., 1990, p. 48 Confissões IV, 3, 5. 43 enganei-a (...) Menti à minha mãe – e que mãe! Fugi dela. No entanto, apesar da sordidez execrável de que estava cheio, tu me salvaste, porque me perdoaste misericordiosamente (...) Nessa mesma noite parti escondido, e ela ficou a chorar e a rezar.63 Chegando a cidade de Roma, Agostinho hospedou-se na mansão de um amigo maniqueu de nome Constâncio. Segundo Carlo Cremona: “Constâncio, como Agostinho e Alípio, não pertencia à classe dos ‘eleitos’, mas à dos ‘ouvintes’. Era um homem rico que procurava tornar-se importante pela sua generosidade”.64 Em casa de Constâncio, Agostinho é acometido por uma febre que o deixou entre a vida e a morte. Passada essa fase crítica, Agostinho fundou uma escola de retórica em Roma. Em Roma, numa nova experiência como professor, Agostinho decepciona-se, pois os alunos eram de melhor nível e disciplinados, mas tinham o mau costume de não pagarem aos professores. Além disso, a sua estadia na casa de um maniqueu trazia-lhe alguns constrangimentos, pois já não acreditava mais no maniqueísmo e via-se obrigado a compartilhar, ou pelos menos, a se passar por um maniqueu. Ainda em Roma, Agostinho recebeu apoio e ajuda solidária de seu grande amigo Alípio que, àquela altura, exercia um cargo público de juiz. Sem este apoio, não teria sido fácil sua sobrevivência. Alípio procurou ajudá-lo em muitos outros momentos. 63 64 Confissões V, 8, 15. CREMONA, Carlo. op. cit., 1990, p. 39. 44 Embora com muitas dificuldades, Agostinho, em pouco tempo, conseguiu grande fama de retórico, tendo sido procurado por várias autoridades, entre elas, Símaco, prefeito de Roma, que tinha por ele grande admiração. No ano de 384, início do verão, Símaco procurou Alípio, contou-lhe que fora encarregado pela corte imperial de escolher um professor (rector) de prestígio para a vaga de eloquência do estudo público de Milão e que pretendia oferecer o cargo a Agostinho: “Conhecida, através de Alípio, a proposta de Símaco, superada a prova de dicção diante do prefeito, o próprio Agostinho interessou-se para que a partida fosse apressada. Além do mais, aquela transferência libertava-o dos maniqueus, que nunca mais frequentaria”.65 Logo em seguida, no verão de 384, Agostinho e Alípio, que deixou seu cargo público, partiram de Roma. Em Milão, Agostinho foi recebido pelas autoridades imperiais, intelectuais e eclesiásticas com grande simpatia e curiosidade. Nesta época, Milão florescia como uma cidade brilhante. Para lá acorria uma legião de poetas, escritores, oradores e filósofos. A filosofia grega ganhava ali seus adeptos entre os leigos e o clero. Era Platão, em nova roupagem (neoplatonismo), que dominava o ambiente cultural. O catolicismo era importante na cidade. O bispo da cidade, Ambrósio, pronunciava sermões eruditos, elaborados segundo a melhor tradição ciceroniana. Seu 65 CREMONA, Carlo. op. cit., 1990, p. 57. 45 pensamento deixava sentir neoplatonismo reinante. a forte influência do Desejando e atraído pela fama de orador do Bispo Ambrósio, Agostinho resolveu ouvi-lo, no início, não pela fé, mas pela curiosidade. As pregações de Ambrósio, carregadas de conteúdos platônicos, não levaram, de imediato, Agostinho à Igreja Católica, mas lançaram luz sobre sua alma e, aos poucos, foram acabando com as dúvidas dos seus tempos de maniqueísmo e ceticismo. Agostinho, em Confissões, definiu esse período de professor e funcionário do Império como momentos de profunda ambição e miséria de seu coração, e disse: “Eu aspirava às honras, à riqueza, ao matrimônio, e tu rias de mim. Nesses desejos amargos eu sofria dissabores, e tu me querias tanto mais bem quanto menos consentias que eu experimentasse consolação naquilo que não eras tu”.66 Foi nessa época que aconteceu o famoso “encontro do mendigo”, quando Agostinho, ao ser encarregado de preparar um discurso de louvores para o Imperador Valetiniano, tendo consciência de que teria de mentir, pois este não tinha grandes méritos, encontrou um mendigo bêbado que, na sua pobreza, parecia feliz, enquanto ele, na sua ambição, vivia angustiado. Agostinho descobriu sua pobreza de espírito e disse: É claro que a alegria dele não era a verdadeira; mas o objeto de minha ambição era bem mais falso. Ele, pelo menos, estava satisfeito com sua alegria, e eu, preocupado; ele era livre, estava tranqüilo, e eu, 66 Confissões VI, 6, 9. 46 cheio de inquietações (...) Na mesma noite, aquele mendigo teria curado sua embriaguez, enquanto eu havia dormido e acordado com a minha, e ainda com ela tornaria a dormir e acordar; e quem sabe por quanto tempo!67 Depois de chegar a Milão, um ano depois, em 385, Agostinho trouxe sua mãe, sua mulher, seu filho Adeodato e seu irmão Navígio para viverem com ele. Mônica tinha grandes preocupações com Agostinho, principalmente, por suas posições céticas dos últimos tempos, mas, ao chegar a Milão, encontrou-o mudado, pois, pelo menos, não era mais maniqueísta. Conforme ele mesmo refere: “Ao chegar, encontrou-me em grande perigo, provocado pela completa falta de confiança em conhecer a verdade. Quando a informei de que não era maniqueu, embora ainda não fosse cristão católico, não saltou de alegria (...) Quanto a este aspecto de minha miséria, ela estava tranqüila”.68 Na cidade de Milão, depois de receber a influência do bispo Ambrósio, Agostinho resolveu convidar dois amigos da África, Alípio e Nebrídio,69 para formarem, juntos com sua mãe, sua mulher, seu filho e seu irmão Navígio, uma comunidade. Nessa época, por inquietações de sua consciência e pressões de sua mãe, que, há tempos, insistia 67 Ibid., VI, 6, 9-10. Ibid., VI, 1, 1. 69 Nebrídio e Alípio eram conterrâneos de Agostinho, filhos de famílias abastadas. Vieram estudar em Cartago e, ali, juntaram-se ao grupo de alunos de Agostinho, tornaram-se seus melhores amigos. Acompanharam Agostinho por Roma e Milão, vindo a fazer parte do grupo de convertidos. Nebrídio faleceu jovem e Alípio chegou a ser Bispo de Tagaste um ano antes de Agostinho ser bispo. 68 47 para que se casasse, como forma de sair da condição de pecado em que vivia ao conviver com uma mulher sem matrimônio, Agostinho resolveu casar-se, chegando a pedir em casamento a mão de uma jovem de família rica. Entretanto, segundo o próprio Agostinho, o casamento não foi possível, pois, apesar já ter sido feito o pedido de casamento, “faltavam-lhe, ainda, dois anos para a idade núbil,70 mas, por ser do agrado de todos, ia-se esperando”.71 Melânia, sua mulher, vendo-se traída por Agostinho ter pedido uma jovem em casamento, resolveu abandoná-lo e voltou para África, deixando seu filho Adeodato e fazendo juramento de que nunca mais se juntaria a outro homem. Agostinho resolveu, então, ampliar seu projeto comunitário e convidou outros amigos para fazerem parte do grupo que, então, chegava a ser composto de cerca de dez pessoas. Dentre esses amigos, havia homens ricos e de posição social, como Romaniano, seu benfeitor, que fazia parte da corte imperial. Nesse novo estilo de vida, o projeto comunitário era radical, pois: “Tínhamos organizado o nosso retiro, de modo a por em comum os bens que possuíamos, formando assim um patrimônio único. Entendíamos que, diante da sincera amizade que nos unia, nada deveria pertencer a este ou àquele. Tudo deveria ser de todos e de cada um”. 72 Mas o projeto de Agostinho não foi possível de ser realizado, pois 70 A jovem que Agostinho pediu em casamento tinha cerca de 10 anos de idade, pois, segundo este, faltava-lhe cerca de dois anos para completar a idade de poder casar-se que, em Roma, era de 12 anos. 71 Confissões VI, 13, 23. 72 Ibid., VI, 14, 24. 48 alguns membros do grupo eram casados e, na impossibilidade de renunciarem a suas esposas, o projeto tornou-se inviável. O próprio Agostinho, que não era casado, mas que convivia com uma mulher há quinze anos, não renunciou aos seus desejos carnais. Sofrendo pelo abandono de sua mulher e tendo que esperar por dois anos até que sua noiva completasse a idade núbil, Agostinho não se conteve e procurou outra mulher. Em Confissões, ele assim descreveu esses momentos: Ela voltou para a África fazendo a ti o voto de jamais pertencer a outro homem e deixando para mim o filho que me havia dado. Mas eu, infeliz, fui incapaz de imitar a esta mulher! Eu não conseguia suportar a espera de dois anos para receber a esposa que tinha pedido. Na realidade eu não amava o matrimônio; eu era, sim, escravo do prazer. E tratei de arranjar outra mulher, não como esposa legítima, para manter e alimentar intacta, ou agravar a doença da minha alma até o casamento, e aí chegar sem haver interrompido meus hábitos.73 Ainda em Milão, aos 32 anos de idade, Agostinho conheceu Mânlio Teodoro, personalidade política que chegou ao cargo de cônsul. Era um homem culto e orgulhoso, amante da filosofia neoplatônica. Por intermédio dele, conheceu e leu as obras neoplatônicas de Plotino, escritas pelo seu discípulo Porfírio, especialmente, as Enéadas, traduzidas do grego para o latim por Mário Vitorino: 73 Confissões VI, 15, 25. 49 Encontrei escrito, se não com as mesmas palavras, certamente com o mesmo significado e com muitas provas convincentes, o seguinte: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus’ (...) Li escrito nesses livros que o Verbo, que é Deus, nasceu, não da carne nem do sangue, não da vontade do homem, nem da vontade da carne, mas de Deus”.74 Foi através das leituras do neoplatônico Plotino que Agostinho descobriu que Deus é a fonte única de todo bem e que o mal não forma uma substância. Bem como o “nous”, ou razão natural, remonta ao “logos” do Evangelho de São João. Foi um importante passo para que Agostinho vencesse seu ceticismo e caminhasse para a especulação filosóficoreligiosa. Mais uma vez Agostinho foi sacudido em seu íntimo, pois as leituras neoplatônicas lançavam grandes inquietações em seu coração. Então, resolveu procurar o bispo Ambrósio, em cujos sermões ouvira falar, muitas vezes, de Plotino. Depois de uma longa conversa, o bispo o aconselhou a procurar Simpliciano,75 um cristão exemplar que poderia trazer-lhe as respostas que precisava. 74 Ibid., VII, 9, 13-14. São Simpliciano era um sacerdote instruído que viera de Roma a Milão para instruir Santo Ambrósio nas Sagradas escrituras como diretor espiritual. Por isto Agostinho se refere a este como pai de Ambrósio. Mais tarde, em 397, com a morte de Ambrósio, este lhe sucedeu no bispado de Milão. 75 50 Quando procurou Simpliciano, Agostinho contou-lhe que havia lido os escritos neoplatônicos e revelou suas insatisfações. Este reforçou os enganos dos neoplatônicos e, para exaltar o sentido da humildade e redenção divina, contou-lhe acerca da recente conversão de Vitorino (o que havia traduzido os escritos de Plotino), como exemplo de humildade. Este relato da conversão de Vitorino comoveu Agostinho, como ele mesmo declarou: “Logo que teu servo Simpliciano me contou esses fatos sobre Vitorino, senti imenso desejo de imitá-lo”.76 Ao término da conversa, Simpliciano aconselhou Agostinho a ler as Sagradas Escrituras, especialmente, as cartas paulinas: “Lancei-me avidamente à venerável Escritura inspirada por ti, especialmente à do apóstolo Paulo (...) Começando a leitura, descobri que tudo o que de verdadeiro tinha encontrado nos livros platônicos, aqui é dito com a garantia de tua graça”.77 Com uma grande diferença: os livros platônicos, ao identificarem o Verbo de Deus, ou “logos”, com o “nous”, ou razão, esqueciam de dizer que “o Verbo se fez homem e habitou entre nós”.78 Por isso Agostinho afirma: “Eu tagarelava como se fosse competente, mas se não tivesse procurado o teu caminho em Cristo nosso Salvador, não teria sido perito e sim perecido”.79 76 Confissões VIII, 5, 10. Ibid., VII, 21, 27. 78 Jo 1,13. 79 Confissões VII, 20, 26. “Perito” - Verdadeiro saber que leva à salvação. “Perituro” – Perecido falso saber que leva à morte, ou à condenação. 77 51 Depois da conversa com Simpliciano, Agostinho passou a viver o dilema entre servir a Deus, a exemplo de Vitorino, ou continuar sua vida devassa. Conflito que se agravaria até o momento de sua conversão e que se caracterizava pela luta entre duas vontades: A nova vontade apenas despontava; a vontade de servir-te e de gozar-te, ó meu Deus, única felicidade segura, ainda não era capaz de vencer a vontade anterior, fortalecida pelo tempo (...) Eu estava certo de que me entregar ao vosso amor era melhor que ceder ao meu apetite. Mas o primeiro agradava-me e vencia-me; o segundo aprazia-me e encadeava-me (...) Deleitava-me com vossa Lei segundo o homem interior, mas em vão, porque em meus membros outra lei repugnava à lei do meu espírito, e me mantinha cativo na lei do pecado que está em meus membros.80 Agostinho continuaria com sua angústia à espera de um momento, mas este dilema levaria alguns dias até que acontecesse sua conversão. Não se pode deixar de mencionar outro acontecimento importante para a conversão de Agostinho que fora o encontro com Ponticiano, um cristão fiel e compatriota africano que exercia um alto cargo no palácio e que viera visitar Agostinho e seus conterrâneos Alípio e Nebrídio. Agostinho conta que, ao chegar a sua casa, Ponticiano viu uma Bíblia sobre uma mesa e, acreditando estar numa casa de cristãos, felicitou-os como tal. Em 80 Confissões VIII, 5, 10-12. 52 seguida, falou acerca da vida de Santo Antão, um monge do Egito até então desconhecido de Agostinho, de seus amigos e de seus seguidores. A narrativa de Ponticiano levou Agostinho a comparar a vida dos jovens que seguiram Santo Antão com a sua, e isso aumentou ainda mais sua angústia e seu conflito interior. Agora, no entanto, quanto mais ardentemente amava aqueles dois de quem conhecera a salutar decisão de se entregarem completamente a ti para serem curados, mais profundamente eu me detestava, ao comparar-me com eles (...) Vós, Senhor, enquanto ele falava, me fazíeis refletir sobre mim mesmo (...) Vós me colocáveis a mim mesmo diante de mim, e me arremessáveis para frente de meus olhos, para que, ‘encontrando a minha iniquidade, a odiasse’. Conhecia-a, mas fingia que não via, procurando esquecê-la. (...) Vós me colocáveis perante o meu rosto, para que visse como andava torpe, disforme, sujo, manchado e ulceroso. Via-me e horrorizava-me; mas não tinha por onde fugir (...) Assim me roía interiormente, confundindo-me com horrível e acentuada vergonha, enquanto Ponticiano falava.81 Após a conversa de Ponticiano, Agostinho ficara profundamente perturbado, sua alma recusava-se a se escusar, “pois temia que me atendesses logo e me curasses imediatamente do mal da concupiscência, que eu achava melhor satisfazer do que extinguir”.82 Depois de discutir com Alípio sobre o que ouviram, Agostinho, perturbado, 81 82 Confissões VIII, 7, 16-18. Confissões VIII, 7, 17. 53 retirou-se para os jardins de sua casa a fim de meditar. “Para aí fui levado pelo tumulto do coração, onde ninguém podia interferir na luta violenta que travava comigo mesmo, e cujo resultado nem eu mesmo conhecia, somente tu (...) Eu fremia de violenta indignação contra mim mesmo, por não ceder à tua vontade e à aliança contigo, meu Deus”.83 Muito agitado interiormente, Agostinho fez diversos movimentos corporais, conforme narra: “Assim, eu arrancava os cabelos, batia na testa, apertava os joelhos entre os dedos entrelaçados”.84 Mas nada resolvia, pois o problema não estava no corpo, mas na alma, na vontade. Não suportando mais essa luta interior, Agostinho caiu em choro e, em meio as suas lágrimas, interrogou-se: Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda: amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não pôr fim agora à minha indignidade? Assim falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor do coração. Eis que, de repente, ouço uma voz vinda da casa vizinha. Parecia de um menino ou menina repetindo continuamente uma canção: ‘Toma e lê, toma e lê’.85 Como de impulso, Agostinho lembrou-se da narrativa de Ponticiano acerca do momento em que Santo Antão recebeu um sinal de Deus, este interpretou sua experiência como um chamado de Deus para ler a Bíblia. Daí correu ao encontro de Alípio que lhe entregou o Novo Testamento e este abriu-o espontaneamente e leu o que lhe veio aos olhos, caindo sobre a Epístola de São Paulo (Rm 13,13s) que dizia: 83 Ibid., VIII, 8, 19. Ibid., VIII, 8, 20. 85 Ibid., VIII, 12, 28-29. 84 54 Não caminheis em glutonarias e embriaguez, nem em desonestidades e dissoluções, nem em contendas e rixas; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus apetites (Rm 13,13s). Não quis ler mais, nem era necessário. Apenas acabei de ler estas frases, penetrou-me no coração uma espécie de luz serena e todas as trevas da minha dúvida fugiram.86 Partilhou a passagem da epístola com Alípio e, juntos, discutiram a experiência. Em seguida, foram ao encontro de Mônica contar o ocorrido: estava decidido a ser católico, queria batizar-se. Ocorria, assim, o início da conversão de Agostinho que desistiu da idéia de casar-se e pensou, logo, em deixar a cadeira de retórica. Era verão de 386, três semanas antes do término do curso acadêmico. Anteriormente, ele já pensava em pedir demissão do cargo, no final do curso. Sua voz era fraca e alguma enfermidade dos brônquios que iria molestá-lo toda vida, agravada pelo frio da Itália, tinha aumentado e prejudicado seu desempenho como professor de retórica.87 Quando terminou o curso, Agostinho pediu demissão de seu cargo. Um de seus amigos, Verecundo, colocou a sua disposição uma casa de campo, num lugar chamado 86 87 Confissões VIII, 12, 29. ROCHA, Hylton, op. cit., 1989, p. 36. 55 Cassicíaco, perto de Milão, para onde se retirou com os amigos africanos: Alípio, Licênio e Trigécio, filhos de Romaniano, seus dois primos Rústico e Lastidiano, seu irmão Navígio, seu filho Adeodato e sua mãe Mônica, para se dedicarem aos estudos e à leitura da Bíblia. Ali, iriam preparar-se para o batismo, sob as orientações do bispo Ambrósio. Mais tarde, já quase no final de sua vida, nas Retratações, Agostinho chama este retiro em Cassicíaco de “Christianae vitae otium”, “ócio ou lazer da vida cristã”, no qual o grupo se dedica à vida contemplativa, tendo como modelo a vida de Santo Antão88. Foi a partir desse retiro que nasceram as suas primeiras obras: Contra Acadêmicos (386), De Beata Vita (386), De ordine (386) e Soliloquia, libri duo (387). Esses tratados, comumente chamados de “Diálogos de Cassicíaco”, estão ainda profundamente marcados pela experiência da vida anterior de Agostinho. Neles, Agostinho procurou respostas as suas inquietações. No entanto, em 387, Agostinho, seu amigo Alípio e seu filho Adeodato voltaram a Milão para receberem o batismo. E, no Sábado Santo (25 de abril) de 387, foram batizados pelo bispo Ambrósio. Não sabia Ambrósio que, daquela pia batismal, nascia um dos maiores “gênios cristãos” da razão e da fé: “Quando chegou o momento em 88 A vida de Santo Antão, narrada por Ponticiano, teria grande influência no modelo de vida contemplativa adotado por Agostinho durante sua vida religiosa e em seus mosteiros, ao longo dos séculos. 56 que devia dar o meu nome para o batismo 89, deixando o campo, voltamos para Milão (...) Fomos batizados, e desapareceu qualquer preocupação quanto à vida passada”.90 Agora como cristão, batizado, Agostinho permanece em Milão, onde escreve o tratado De Immortalitate Animae (387), e começa o projeto, que nunca chegou a realizar, de escrever uma enciclopédia de artes liberais, à maneira de Varrón. Escreveu, também, De Gramatica (387) e começou De Musica que só veio a terminar em 39l. Agostinho tinha como grande meta retornar a Tagaste, sua terra natal, onde pretendia dedicar-se à vida monástica. Ainda em 387, iniciou o caminho rumo a Tagaste, mas, em passagem por Óstia, sua mãe faleceu tendo, então, 56 anos de idade. Mônica foi sepultada na igreja de Santa Áurea, em Óstia. Em 1430, seus restos mortais foram transferidos para Roma e depositados, primeiro, na Igreja de São Trifão, e, em 1455, transladados para a igreja de Santo Agostinho, construída pelos agostinianos. Em 1566, a urna que contém os restos mortais de Mônica foi colocada na capela dedicada à Santa, na mesma igreja de Santo Agostinho. Em Confissões, no momento em que narra a morte de sua mãe, Agostinho dedica várias páginas para falar das suas virtudes e qualidades. Na mesma ocasião, narra o famoso “êxtase de Óstia”91, vivido por ele e sua mãe, poucos dias antes de esta falecer. 89 Entenda-se: ser batizado. Os catecúmenos, no início da quaresma, deviam pedir o batismo. 90 Confissões IX, 6, 14. 91 Confissões IX, 10, 23-26. Aqui se encontra a síntese do pensamento de Agostinho acerca do conhecimento da Verdade-Deus. Ele percorre 57 Após a morte da mãe, Agostinho voltou para Roma, onde permaneceu por quase um ano. Nesse período, escreveu De Quantitate Animae (388), De Moribus ecclesiae Catholicae et Manichaeorum (388) e iniciou o De Libero Arbitrio, que só veio a terminar na África, em 395. No ano de 388, regressou à África, estabelecendo-se em Tagaste. Ali, seguindo o preceito evangélico da pobreza, vendeu as modestas propriedades de seus pais, ficando com apenas a casa paterna, onde estabeleceu uma espécie de mosteiro, vivendo em companhia de seus amigos e discípulos. Assim, daquela primeira comunidade, nascia o ideal de vida monástica do Ocidente. Agostinho tinha uma paixão fascinante pela vida comunitária, pois, desde seus tempos de juventude, vivera em comunidade com amigos e familiares. Segundo Carlo Cremona, Agostinho “nunca teria sido capaz de viver sozinho (...) Este homem, imerso nos livros (que gostava de ler e escrever em paz) era incapaz de viver só”.92 Nessa época, escreveu: De Genesi contra manichaeos (388-390), De Magistro (389), De Vera Religione (388-391), De Diversis Quaestionibus Octoginta Tribus (389-396). Depois de um ano que estava em Tagaste, morreu seu filho Adeodato; tinha 17 anos de idade. Em Confissões, Agostinho assim se refere a seu filho: Juntamos também a nós Adeodato, filho carnal do meu pecado, a quem tinhas dotado de grandes as etapas do conhecimento humano: conhecimento da alma e da razão superior. 92 CREMONA, Carlo. op. cit., 1990, p. 17 58 análise dos sentidos, qualidades. Com quinze anos apenas, superava em talento muitas pessoas maduras e eruditas (...) Escrevi um livro intitulado O mestre (De Magistro), no qual meu filho conversa comigo. Tu bem o sabes, todos os pensamentos aí manifestados por meu interlocutor são realmente dele, então com dezesseis anos (...) Reconheço os teus dons, Senhor meu Deus, criador de todas as coisas e tão poderoso para corrigir nossas deformidades, pois, de meu, naquele rapaz, nada havia senão o pecado.93 Estabelecido em Tagaste, Agostinho vive seu ideal religioso, uma vida dedicada à contemplação e aos estudos das Sagradas Escrituras, dosada de uma atividade pastoral, especialmente, escrevendo seus livros e cartas. De sua experiência de vida comunitária, iniciada já antes de sua conversão, nasceriam as famosas Regras, um ideal de vida monástica que tinha como máxima: “Ama e faze o que queres! A medida para amar a Deus é amá-lo sem medida” (Reg. 34, 4,7), que seria seguida pelos mosteiros agostinianos e que influenciaria grande parte das Ordens e Congregações Religiosas de outras denominações espalhadas pelo mundo até hoje. Agostinho nem pensava em ser sacerdote, chegando, inclusive, a evitar passar por cidades onde não houvesse sacerdotes, para que não lhe atribuíssem tal encargo. Agostinho queria contribuir com a Igreja Católica, mas como um intelectual, um pregador da Palavra de Deus. Em um de seus sermões, encontramos uma confirmação dessa postura, ao afirmar: “Temia o ofício de bispo de tal forma 93 Confissões IX, 6, 14. 59 que não ia a nenhum lugar, onde soubesse que estava vacante a sede”.94 Sem querer, Agostinho caiu numa armadilha. Segundo Possídio, em sua Vita Augustinus, O bispo Valério, de Hipona, um grego de nascimento, achava-se em dificuldades para combater as seitas heréticas que se espalhavam em sua diocese, pois, devido às dificuldades de falar o latim, pouco convencia seus adversários. Sabendo da fama de orador de Agostinho, pede a um amigo, “homem de negócios”, que escrevesse a Agostinho contando-lhe seu desejo de entrar para a vida monástica, pedindo-lhe que viesse até Hipona para apresentar-lhe sua experiência de vida. Agostinho, desejoso de conhecê-lo, veio visitá-lo. Em Hipona, Agostinho sentia-se tranquilo, pois esta não era uma diocese vacante. Chegando à cidade, o referido “homem de negócios” convidou Agostinho para ir conhecer a catedral. Era um momento de assembléia e, vendo Agostinho se aproximar, o bispo Valério começou a explicar ao povo o seu desejo de encontrar alguém, um sacerdote culto, zeloso e de doutrina segura que o ajudasse a combater as heresias. Agostinho avançava pela catedral quando, subitamente, uma multidão de fiéis gritava em coro: Agostinho! Agostinho! e o arrastou forçosamente até o bispo Valério: Como um animal manso preso pelo braço, teve medo. Olhou assustado o primeiro que lhe tocou as mãos como lhe implorar piedade. Mas outras mãos vieram sobre ele, levantaram-no e carregaram-no até o 94 Sermão 355, 2. As citações dos Sermões e das Epístolas que serão mencionadas nesta obra serão extraídas a partir da tradução que se encontra em: RAMOS, Francisco Manfredo Tomás. 1984. 60 presbítero, abrindo passagem entre a multidão, que gritava sempre mais forte: ‘Agostinho! Agostinho!’ Começou então a debater-se e a implorar com as lágrimas (...) Agostinho, sempre pronto a acolher os sinais de Deus quando este estava convencido de que a Graça e somente a Graça, o atraía, disse então, entre lágrimas: ‘Sim, eis aqui”.95 Agostinho foi recebido no dia seguinte pelo bispo Valério. Queria confessar-lhe as suas hesitações de ser sacerdote, mas, como era da vontade de Deus, aceitaria. Entretanto queria um tempo para preparar-se, bem como pedia permissão para continuar sua vida monástica naquela cidade. O bispo concedeu-lhe o tempo desejado e prometeu ajudá-lo a fundar um mosteiro em Hipona. Na despedida, já se sentindo padre, ciente de suas responsabilidades, entregou nas mãos do bispo Valério uma carta que havia escrito na noite anterior. Esta carta é uma verdadeira obraprima de consciência sacerdotal. Nela, Agostinho apresenta o seu conceito de sacerdócio: Nesta vida e sobretudo neste tempo, não há nada mais fácil e honorífico para um homem do que a dignidade de bispo, de padre ou diácono. Mas igualmente não há nada mais miserável, prejudicial e reprovável aos olhos de Deus, se isto é feito com desleixo ou por vil ambição.96 Depois de alguns meses de preparação espiritual, aos trinta e sete anos de idade, Agostinho foi ordenado 95 96 POSSÍDIO, apud CREMONA, Carlo. op. cit., 1990, p. 146. Epístola 21, 2. 61 sacerdote, pelas mãos do bispo Valério. A partir daí, Hipona seria a residência definitiva de Agostinho, até o fim de sua vida. Hipona, a Hippo Regius para os latinos, uma simples cidade portuária, passaria para a História Universal, não por sua importância, mas por causa da grandeza de Agostinho, que ainda hoje é conhecido como Agostinho de Hipona. Com o tempo, Hipona passaria a se chamar Bona, hoje, é Anabá, na Argélia. Depois da ordenação, o bispo Valério, atendendo ao seu desejo monástico, “entrega-lhe parte de um jardim, junto à residência. Agostinho, presbítero da Igreja, estabelece aí a continuidade de sua experiência de vida comunitária”.97 Este mosteiro, de grande importância na história de Agostinho, ficaria conhecido como o “mosteiro do jardim”. Agostinho sempre foi muito admirado pelos cristãos de Hipona, pois ele tinha muito prestígio, não só em Hipona e região, mas em toda África, temiam que, a qualquer momento, este fosse chamado a servir em outros lugares. O bispo e os clérigos não gostavam que ele se afastasse de Hipona. Tinham medo de que o raptassem para fazê-lo bispo de outra diocese. Por isso, o bispo Valério escreveu ao Primaz da África, pedindo-lhe que ordenasse Agostinho bispo auxiliar de sua diocese. Tentou fugir mais uma vez de tal compromisso, mas, diante da insistência de Valério, no mês de junho de 395, seria sagrado Bispo Coadjutor de Hipona pelas mãos de Magálio, Bispo Primaz da África. Posteriormente, em 97 ROCHA, Hylton Miranda. op. cit., 1989, p. 94. 62 sermão, diante dos fiéis, Agostinho diz: “Cheguei a esta cidade para visitar um amigo com a esperança de ganhá-lo para Deus e para nosso mosteiro. Fui, porém, apreendido, ordenado sacerdote e mais tarde bispo”.98 Um ano depois, com o falecimento de Valério, Agostinho ficaria como Bispo titular de Hipona. Sua capacidade não era só a de um intelectual ou homem de gabinete, mas era um homem preocupado e envolvido com as grandes questões doutrinais da época. Ele vivia no meio do seu povo. “Basta percorrer suas obras, particularmente os seus sermões, pronunciados em Hipona e Cartago, para ver desenrolar-se a vida cotidiana: a habitação e a alimentação, os jogos e o lazer, a caça e a pesca, as viagens e a acolhida. Nada escapa ao olhar observador do Bispo”.99 Atuando no ministério episcopal, Agostinho era bastante popular, convivia com seu povo, conhecia as suas ansiedades, sofrimentos e alegrias. Basta vermos as centenas de cartas e sermões dirigidos aos seus diocesanos e amigos de outras regiões. Agostinho era um bispo que participava ativamente da vida política e social de sua época, interferindo, reivindicando e intercedendo junto às autoridades por seu rebanho. Por isso, é errônea a imagem que os artistas da Idade Média e dos tempos modernos pintaram de Agostinho, como um bispo vestido pomposamente com trajes episcopais, com mitra, báculo, anel e um livro na mão. Agostinho era um bispo humilde que se vestia como um sacerdote do povo. Ele usava uma 98 99 Sermão 355, 2. HAMMAN, A. G. op. cit., 1989, p. 41 63 túnica de lã branca, sem ornamentos e sandálias, mesmo quando estava pregando ou celebrando. Em um de seus sermões, ao comentar acerca dos presentes pessoais que os fiéis lhe ofereciam, diz: “Dá-me, de preferência , uma túnica, bem simples, que eu possa dar de presente a um pobre, e a um diácono ou a um subdiácono, senão eu devolverei. Uma veste luxuosa me cobre de vergonha e não convém à minha função, nem a meu corpo envelhecido, nem a meus cabelos brancos”.100 Quanto à linguagem na época em que fora bispo, falavam-se em Hipona duas línguas: o púnico e o latim. A elite culta falava e escrevia em latim e o povo das cidades periféricas e do campo falava o púnico: “Roma não apenas suplantou o grego, língua cultural e internacional até o século III, mas também fez recuar o púnico, trazido pelos fenícios, que parece ter-se mantido na costa mediterrânea, onde se escalonavam os entrepostos comerciais”.101 Agostinho gozava do privilégio de falar as duas línguas. Muitas vezes, chegou a traduzir seus sermões para o púnico, como forma de atender aos fiéis que falavam esta língua. No ano de 410, Agostinho acompanhava atentamente todos os acontecimentos acerca do saque de Roma, pelos Godos de Alarico. Diante das acusações dos romanos de que a debilidade do Império Romano estaria na sua adesão ao cristianismo, Marcelino, tribuno romano, pediu a Agostinho que escrevesse uma obra a ser intitulada A Cidade de Deus contra tais acusações e em defesa dos cristãos. 100 101 Sermão 356, 13. HAMMAN, A. G. op. cit., 1989, p. 41. 64 Próximo ao final de sua vida, iniciaria outra importante obra Retractationum Libri Duo, com um olhar retrospecto de todas as suas obras anteriores, mas que ficaria inacabada. Finalmente, em pleno cerco dos invasores vândalos a Hipona, Agostinho faleceu no dia 28 de Agosto de 430. 2 Santo Agostinho: o filosofar na fé por meio de suas obras literárias Agostinho, um dos maiores gênios de todos os tempos e o maior de todos os Padres da Igreja, foi também o maior filósofo dos quinze séculos que separam Aristóteles de Tomás de Aquino. Escreveu muitíssimas obras, embora sem a intenção de elaborar um sistema filosófico completo, conseguiu, melhor do que qualquer outro pensador cristão, estruturar sobre uma base racional marcada pelo platonismo todas aquelas doutrinas que, reveladas pelo cristianismo, são também acessíveis à razão. Não temos a certeza quanto ao número exato de obras escritas por Agostinho. Alguns comentadores dizem que ele escreveu 94 obras, divididas em 232 livros, mais algumas centenas de sermões e cartas, além de pequenos tratados. Waldecy Tenório102 fala de 113, já Pedro Rubio103 diz que, na Coleção Latina de Escritores Cristãos, encontram-se mais 102 103 TENÓRIO, Waldecy. 1986, p. 78. RUBIO, Pedro. op. cit., 1995, p. 398 65 de 150 títulos diferentes, sem contar as centenas de cartas, sermões e pequenos tratados. Para uma melhor visão de seus escritos, ao final desta obra, destacar-se-á uma relação de seus escritos em ordem cronológica.104 104 Ver Anexo 1: Relação de Obras de Santo Agostinho. 66 CAPÍTULO II PRINCÍPIOS DA ÉTICA AGOSTINIANA 1 O primado do amor A ética agostiniana, sem equívoco, “é uma ética do amor, mais precisamente caritas”.105 Para formular uma moral baseada no amor, Santo Agostinho empreende um estudo, seguindo o que lhe foi transmitido pela tradição pagã, cristã, grega e latina. Para Agostinho a força que impulsiona a realização da ordem moral é o sentimento de amor, que tem como fim a caridade. Sua força orientadora é a vontade, que culmina na liberdade, tendo como consumação a ordem da caridade. O amor é “a força da alma e da vida”, cuja sua morada é a virtude. 105 Charitas, palavra que vem do latim e que quer dizer caridade. “Caridade é o amor para os cristãos, que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem e procura identificar-se com o amor de Deus; ágape, amor-caridade” (DE BONI, Luiz Alberto. 1996 p. 41). Para uma melhor compreensão, deste termo, ver nota 7 (sete) do capítulo I desta obra. 67 De acordo com Philotheus Boehner e Etienne Gilson,106 o problema central da ética agostiniana é “o da reta escolha das coisas a serem amadas”. Nesta perspectiva, o problema moral não consiste em perguntar-se se há que amar, senão o que amar. Para Agostinho, o amor está na própria natureza humana. Trata-se de um apetite natural, pressuposto pela vontade livre que deve, iluminada pela luz natural da razão, orientá-lo finalmente para Deus. O amor é, pois, uma atividade decorrente do próprio ser humano. Donde se deduz que, quando se tem no fundo do coração a raiz do amor, dessa raiz não pode sair senão o bem, o que resulta na tão citada máxima agostiniana: “Ama e faze o que quiseres”.107 Neste sentido, seria um equívoco querer separar do homem o seu amor. Pois, se há um problema, este não diz respeito ao amor como tal, nem à necessidade de amar, mas unicamente à escolha do objeto a ser amado, ou melhor, ao valor ou intensidade que se dá ao objeto amado, pois, em si, o objeto é um bem. Portanto, o problema da liberdade é o da reta escolha das coisas amadas, da intensidade ou medida em que se amam as coisas, isto é, da reta ordem do amor: Vive justa e santamente quem é perfeito avaliador das coisas. E quem as estima exatamente mantém amor ordenado. Dessa maneira, não ama o que não é digno de amor, nem deixa de amar o que merece ser amado. Nem dá primazia no amor àquilo que deve 106 BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. 1988. AGOSTINHO, Santo. Comentário da primeira Epístola de São João. Trad. de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989. Livro VII, 8. Nas próximas indicações referentes a esta obra, indicarse-á somente o nome da obra com o respectivo capítulo e parágrafo. 107 68 ser menos amado, nem ama com igual intensidade o que se deve amar menos ou mais, nem ama menos ou mais o que convém amar de forma idêntica.108 Dentro do princípio da ordem dos seres, o amor é o parâmetro na hierarquia de valores das coisas a serem amadas: “O amor, que faz com que a gente ame bem o que deve amar, deve ser amado também com ordem; assim, existirá em nós a virtude que traz consigo o bem viver”.109 E dentro da hierarquia das coisas a serem amadas, Deus aparece em primeiro lugar, a Ele deve-se amar com todo o amor: “O Criador, se é verdadeiramente amado, isto é, se é amado Ele e não outra coisa em seu lugar”,110 aí reside o verdadeiro amor, que faz do homem um ser reto e feliz. Do contrário, chegamos à origem e natureza do pecado ou mal. Pecado ou mal consiste em submeter a razão humana à paixão, em desobedecer às leis divinas, em afastar-se do Bem supremo. Portanto, se a perfeição moral consiste em amar a Deus, em dirigir a vontade a Deus e em por todas as potências, os sentidos, por exemplo, em harmonia com aquela direção, o mal consistirá em afastar-se da vontade de Deus. Por isso o mal é sempre mal moral e tem como origem a vontade livre do homem. O homem é o autor do mal moral. O mal moral nada mais é que um ato insuficiente da vontade, uma escolha corrupta: para não cair e, portanto, para bem usar o livre arbítrio, é indispensável à intervenção divina. Alcançar a Deus, isto é, conhecer e amar a verdade é a única felicidade que pode satisfazer o espírito humano; toda satisfação nos bens terrenos, imperfeitos e caducos, 108 A doutrina Cristã. I, 27, 28. A cidade de Deus XV, 22. 110 Ibid., X, 22. 109 69 está destinada a desiludir amargamente a aspiração inata do homem. Agostinho, em O Livre Arbítrio e, também, em A Cidade de Deus, chega à conclusão de que o problema não está nas coisas temporais, que em si são boas, uma vez que foram criadas por Deus, mas no mau uso dessas coisas pelo homem. O problema está no homem que, por um ato de liberdade, resolve inverter a ordem estabelecida por Deus, preferindo amar antes as coisas criadas, inclusive, a si próprio, do que ao Criador; a isso Agostinho chama de má vontade, soberba ou pecado.111 111 O problema do mal perpassa toda a filosofia de Santo Agostinho, pondo em discussão a conduta moral humana e suas implicações éticas. A identificação do mal como pecado (do latim pecus, que significa emperrar, travar), é oriundo do cristianismo. De fato, entre os gregos e outros povos antigos, o mal sempre foi pensado de maneira “passiva”, sobretudo, entre os povos politeístas, pois acreditavam que fazia parte de uma relação natural com os deuses. A partir dos escritos paulinos, não temos mais os males humanos como decorrência da vingança dos deuses (como narram os mitos), mas os males do mundo (morais e físicos), como decorrentes do mal ou pecado humano. Mais explicitamente, contrapondo-se à sabedoria, a concupiscência causa males à natureza e, no homem, seus efeitos podem ser percebidos, inclusive, no seu próprio corpo (ex: algumas doenças, a morte...). O pecado é então, o mal que se lança do interior do homem não permitindo que o bem prevaleça e somente é conhecido por ser refletido nas relações com as coisas. Diferentemente do mal metafísico que seria uma realidade externa ao homem, o mal moral parte das paixões humanas; elas são interiores e se concretizam no agente moral que é dotado de consciência, liberdade e vontade. Por ser interior, revela-se somente nas ações morais exteriores e reveste-se de coletividade, ou seja, todos partilham seus efeitos, portanto, capaz de determinar o justo e o injusto, o sensato e o insensato, indistintamente. O mal moral tem sua raiz na má vontade humana orientada pelo livre arbítrio que, movida pelos vícios e não pelas virtudes, não escolhendo 70 Para Agostinho, a força maior da moralidade é o amor, que é a medida e o peso da vontade humana: “As tendências dos pesos são como que os amores dos corpos, quer busquem, por seu peso, descer, quer busquem, por sua leveza, subir, pois, como o ânimo é levado pelo amor aonde quer que vá, assim também o corpo é por seu peso”.112 Para ele, o que pode levar-nos a Deus é a “caritas”, ou seja, o amor indivisível a Deus. A caridade consiste principalmente num peso interior que atrai a alma para Deus: “Meu peso é o amor; por ele sou levado para onde sou levado”.113 Mas esta caridade se diferencia de todas as outras modalidades de “amor”, pelo fato de referir-se exclusivamente a seres pessoais. O amor a uma pessoa difere do amor a uma simples coisa. Nós amamos as coisas em atenção à nossa própria pessoa, a cujo serviço elas perdem sua existência, como sucede com outros amores terrenos que se ama, mas que se consome com o passar do tempo. Já o amor puro, sincero e generoso a um ser corretamente, não proporciona o bem que poderia em potencialidade. Assim, também as más ações cometidas por ignorância, inadvertência e involuntariamente não deixam de ser males, pois têm sua origem no primeiro pecado. Esse, com efeito, como antecedente, provocou todos os outros consequentes, isto é, os males físicos. Agostinho, identificando a origem do mal com a liberdade, solidifica seus argumentos, fundamentando na vontade humana (desordenada e depravada), o surgimento de uma realidade não existente, mas que passa a existir decorrente do mau uso da liberdade, não subsistindo por si própria. 112 A cidade de Deus XI, 28. 113 Confissões XIII, 9, 10. 71 pessoal, ao contrário, visa à pessoa como tal, e em si mesma.114 2 O amor e a noção agostiniana de ordem A originalidade do pensamento de Agostinho consiste no fato de ele ter realizado uma síntese entre a filosofia antiga, que lhe foi possível conhecer, e a revelação judaicocristã. Só entendemos bem sua noção de ordem, se entendemos o que dela pensaram seus antecessores. Para a filosofia antiga, isto é, para os gregos, o mundo era inicialmente o imenso caos que, de algum modo, passou a ser cosmos. A grande preocupação dos pré-socráticos era, exatamente, a de saber qual era o arché ou o princípio ordenador do universo. Na verdade, toda filosofia grega procurou esclarecer esta questão. Sabemos, porém, que o período socrático era mais antropológico e o pós-socrático mais ético, mas foi, sem dúvida, o paradigma cosmológico que marcou toda a filosofia grega. Contudo, apesar de divergências, ficou a idéia da existência de um logos, uma razão universal responsável pela origem e manutenção da ordem cósmica. O homem, por sua vez, enquanto ser racional, está submisso a esta ordem e, ao mesmo tempo, ligado ao próprio logos, uma vez que traz em si uma centelha dele. Essa racionalidade o torna capaz de conhecer 114 Coment. da 1ª Epístola de São João VIII, 4-5, apud BOEHNER, Philotheus e GILSON. 1988. p. 189. 72 a ordem da natureza e de ter a independência de aceitá-la ou rejeitá-la. Decorre daí a noção de que a perfeição moral consiste na identificação da vontade com a reta ordem da natureza. Portanto, na visão clássica, a idéia de ordem tem duas faces: uma ontológica e outra ética. Santo Agostinho absorve esta noção de ordem e a articula com algumas idéias fundamentais da revelação judaico-cristã, tais como a de um Deus subsistente, criador de todas as coisas e, especialmente, do homem. Nesta síntese, ele leva a ordem ontológica a sua perfeição e, ao mesmo tempo, leva a ordem ética ao seu pleno esclarecimento. Agostinho, para aperfeiçoar a ordem ontológica, introduz nela a figura do Deus criador, que, em muito, ultrapassa tanto o Demiurgo platônico que, ordenando o caos, faz surgir o cosmos, como o Uno plotiniano do qual procedem espontaneamente todos os seres. O Deus da revelação judaico-cristã, diferente e superior, cria, ou seja, faz surgir do nada: “Ele é o criador... Daí vem ter criado do nada todas as coisas”115, por sua livre e suprema vontade, tudo o que existe116. Em seu ato criador, Ele dá não só a existência a todas as criaturas, mas as dota também de uma lei interna e natural que as rege em harmonia com a sua própria lei eterna117. Além disso, neste mesmo ato, aquele que é o Ser e o Bem supremo comunica às criaturas seu ser e sua bondade; portanto, estas são ontologicamente boas, não por si mesmas, mas por uma participação na suprema bondade do seu criador: “Tais seres não conservariam a 115 O livre arbítrio I, 2, 5. Confissões XI, 4-6 e XII. 117 O livre arbítrio I, 2, 4 e 6, 15. 116 73 própria ordem, se não houvessem sido feitos por Aquele que é em sumo grau, e é sumamente sábio e sumamente bom”.118 Portanto, fica evidente que a ordem ontológica é o fundamento da ordem ética, pois, embora as leis que regem as duas ordens tenham a sua origem no mesmo Deus criador, a moralidade diz respeito à manutenção ou perturbação da ordem natural. Logo, enquanto a ordem ontológica aplica-se a todas as criaturas, a ordem ética é específica do homem, uma vez que somente ele tem o poder de respeitar ou transgredir a lei natural e eterna. Isto é possível porque, ao criá-lo à sua imagem e semelhança119, Deus o dotou de vontade livre; tornando-o capaz de uma transgressão culposa ou de uma aceitação respeitosa da reta ordem dos seres.120 Em um outro momento, Agostinho afirma: “Toda criatura, pois sendo boa, pode ser amada bem e mal. Amada bem, quando observada a ordem; mal, quando pervertida”.121 Dessa forma, a virtude já não pode mais ser concebida como uma contenção do desejo ou do amor. Portanto, se em seu diálogo sobre A Vida feliz122, ele havia 118 A cidade de Deus XI, 28. Agostinho expõe essa questão em A Trindade XII, 7,12 e XIV, 8,11, e em A cidade de Deus XII, 23 e 27. 120 Cf. O livre arbítrio II, 18,47. 121 A cidade de Deus XV, 22. 122 Nesta obra, Agostinho é ainda muito influenciado pelo pensamento grego, principalmente pelos estóicos. Na concepção estóica, os princípios éticos da harmonia e do equilíbrio baseiam-se, em última análise, nos princípios que ordenam o próprio cosmo. Assim, o homem, como parte desse cosmo, deve orientar sua vida prática por esses princípios. A ataraxia, apatia, imperturbabilidade, é o sinal máximo de sabedoria e felicidade, já que representa o estado no qual o homem, impassível, não é afetado pelos males da vida. 119 74 definido a virtude como moderação da alma, em A Cidade de Deus, ele a define, de modo mais perfeito, como ordem do amor. “O amor, que faz com que a gente ame bem o que deve amar, deve ser amado também com ordem; assim, existirá em nós a virtude, que traz consigo o viver bem. Por isso, parece-me ser a seguinte a definição mais acertada e curta de virtude: A virtude é a ordem do amor”.123 Para Agostinho, o amor é a essência e o motor da vida humana, não amar significa não viver, ser infeliz e contê-lo é o mesmo que viver precariamente ou morrer. Para ele, na verdade, o coração vive inquieto, não porque amamos, mas porque amamos desordenadamente. Portanto, não será limitando o amor que encontraremos a paz, mas sim ordenando-o: “As coisas que não estão no próprio lugar agitam-se, mas quando o encontram, ordenam-se e repousam”.124 Ainda uma questão: ao amar, que tipo de ordem o homem deve seguir? Ora, “a ordem é a disposição que às coisas diferentes e às iguais determina o lugar que lhe corresponde”.125 Assim, o homem amará ordenadamente se, julgando e apreciando todas as coisas com justiça, submeter os bens exteriores ao corpo, este, por sua vez, à alma, em seguida, na própria alma subordinar os sentidos à razão e esta a Deus: “Por conseguinte, quando a razão domina esses impulsos da alma, deve dizer-se que o homem está conformado segundo a norma da ordem”.126 123 A cidade de Deus XV, 22. Confissões XIII, 9, 10, e também A cidade de Deus XIX, 13. 125 A cidade de Deus XIX, 13, 1. 126 O livre arbítrio I, 8, 18. Agostinho também diz o seguinte: “Com efeito, quando a mente não se ama como deve é ré de pecado e seu amor não é perfeito. Isso acontece, por exemplo, quando a mente do homem se ama com a mesma intensidade com que ama o seu corpo 124 75 A ordem do amor é a perfeita justiça: “Essa é a perfeita justiça – a que nos leva a amar mais o que vale mais, e amar menos o que vale menos”.127 Portanto, é somente quando o homem ama, por sua livre vontade, de acordo com a ordem natural e eterna que o próprio Deus imprimiu no interior de todas as criaturas, que ele estará vivendo a autêntica ordem do amor. Além disso, é esta virtude do amor ordenado que, mesmo em meio às adversidades desta vida que perturbam a paz, permite-nos usar ordenadamente os bens e até os males deste mundo, garantindo-nos, assim, a verdadeira paz: “Esta paz, ansiada por todos”.128 Isto se esclarece melhor quando ele enuncia: Quando nós, mortais, entre a efemeridade das coisas, possuímos a paz que pode existir no mundo, se vivemos retamente, a virtude usa com retidão de seus bens; mas, quando não a possuímos, a virtude faz bom uso até mesmo dos males de nossa condição humana. A verdadeira virtude consiste, portanto, em fazer bom uso dos bens e males e em referir tudo ao fim último, que nos porá na posse da perfeita e incomparável paz.129 pois ela é superior ao corpo. Peca do mesmo modo, e seu amor não é perfeito, se ela se ama mais do que exige o seu ser, como no caso de se amar a si mesma, com o mesmo ardor exigido pelo amor devido a Deus - pois ela é incomparavelmente inferior a Deus. Incorre em pecado de maior malícia e maldade, se ela amar o seu corpo tanto como Deus deve ser amado” (A Trindade IX, 4,4). 127 A doutrina cristã I, 27, 28. 128 A cidade de Deus XIX, 11. 129 Ibid., XIX, 10. 76 Como vimos, quando o homem ordena o seu amor, encontra a sua paz. E, como em Agostinho, paz e felicidade se identificam, podemos dizer que, amando ordenadamente, o homem será feliz e terá paz: “E tão nobre bem é a paz, que mesmo entre as coisas terrenas e mortais nada existe mais grato ao ouvido, nem mais desejável ao desejo, nem superior em excelência (...) doçura da paz, ansiada por todos”.130 Porém, uma outra questão vem à tona: à medida que o homem ordena o seu desejo a fim de amar a todos os seres de acordo com o lugar que cada um ocupa na escala ontológica, vai crescendo nele a consciência de que não há, entre eles, nenhum que seja o ser supremo, exceto Aquele que os criou. “Sendo, pois, Deus suma essência, isto é, sendo em sumo grau e, portanto, imutável, pôde dar o ser às coisas que criou do nada, não, porém, o grau sumo, como é Ele”.131 E para conhecê-Lo precisamos transcender com o poder da razão. “É grande e bem raro esforço transcender com o poder da razão todas as criaturas corpóreas e incorpóreas, que se apresentam mutáveis, e chegar à substância imutável de Deus, e dele próprio aprender que toda a natureza que não é Ele não tem outro autor senão Ele”.132 Ora, a consolidação desta consciência o leva a desejá-Lo, preferencialmente, pois a própria ordem do amor assim o exige. Falando de maneira diferente, à medida que amamos ordenadamente as criaturas, percebemos que elas se constituem num convite para que amemos em primeiro 130 Ibid., XIX, 11. A cidade de Deus XII, 2. 132 Ibid., XI, 2. 131 77 lugar o seu Criador133. Assim, a virtude do amor não apenas faz o homem amar retamente todas as coisas, mas também desperta e ordena o seu amor-desejo em direção a Deus. Para Agostinho, o homem virtuoso ama a Deus não pelo simples cumprimento de um dever, mas porque O deseja. Porém, mesmo vivendo a ordem do amor e experimentando toda paz e alegria que esta lhe proporciona, ele ainda não é completamente feliz. Pois, se deseja Deus, como pode ser feliz, se ainda deseja? “Não é feliz, senão aquele que possui tudo o que quer...”.134 Também: “Não é feliz aquele que não tem o que deseja”.135 Entretanto, desde então, este homem já é feliz: “Feliz o que Vos ama...”.136, porque ama, acima de todas as coisas, o Único que pode, realmente, conduzi-lo à plena felicidade. 3 O amor e a felicidade: o eudemonismo137 antropológico em Santo Agostinho Será que existe alguém que não queira ser feliz? Existirá alguém que não ame? Amar e ser feliz, dois anseios Cf. Confissões: “Diálogo com as criaturas à procura de Deus” (X, 6,9-10) e “Deus, no poema da criação” (XI, 4,6). 134 A Trindade XIII, 5, 8. 135 Ibid., XIII, 6, 9. 136 Confissões IV, 9, 14. 137 Doutrina que admite ser a felicidade individual ou coletiva o fundamento da conduta humana moral, isto é, que são moralmente boas as condutas que levam à felicidade. 133 78 de todo homem. Mas em que consiste a felicidade? O que devemos amar para sermos felizes? Que tipo de amor pode realmente fazer-nos felizes? Seriam muitas as perguntas e respostas. No entanto, mais do que perguntas, transparecem o desejo de felicidade e a necessidade de amor. Santo Agostinho, como todo ser humano, não somente experimentou estas realidades e percebeu a estreita relação que existe entre elas, mas também se esforçou para compreendê-las e partilhar as suas luzes intelectuais com seus ouvintes e leitores. Agostinho tinha a certeza e fez isto na esperança de que, compreendendo-as melhor, nós amaríamos o que realmente necessitamos amar e, desse modo, também neste amor, seríamos felizes. Neste sentido, podemos afirmar que toda sua antropologia filosófica gira em torno do problema da felicidade do homem e que esta se confunde com o problema do homem Agostinho; o problema de sua dispersão, inquietude e busca da felicidade: “Tornei-me um grande problema para mim mesmo e perguntava à minha alma por que estava tão triste e angustiado, mas não tinha resposta”.138 O centro de sua especulação filosófica coincide verdadeiramente com sua personalidade. Sua filosofia é uma interpretação de sua vida, conforme expusemos no primeiro capítulo desta obra, através do itinerário de sua vida. Na obra A Cidade de Deus, Agostinho diz que todos os homens querem ser felizes: “É pensamento unânime de todos quantos podem fazer uso da razão que todos os mortais querem ser felizes. Mas quem é feliz, como tornarse feliz, eis o problema que a fraqueza humana propõe e 138 Confissões IV, 4, 9. 79 provoca numerosas e intermináveis discussões”.139 Esta constatação ele a põe na base e no início de todas suas argumentações, em resposta às mais variadas interrogações ou situações. O problema da felicidade humana perpassa toda sua produção literária, desde os primeiros diálogos filosóficos de Cassicíaco140, passando pelas dezenas de obras filosófico-teológicas e centenas de cartas e sermões. Ao escrever uma de suas cartas para aconselhar à rica viúva Proba sobre o que pedir em oração, Agostinho coloca que a busca da felicidade é algo imanente à natureza do homem, fazendo, assim, parte da natureza humana; todos os homens, bons e maus, a desejam: “Todos os homens querem possuir vida feliz, pois mesmo os que vivem mal não viveriam desse modo, se não acreditassem que, assim, são, ou que podem vir a ser felizes. Que outra coisa te convém pedir se não o que bons e maus procuram adquirir, ainda que somente os bons consigam?”141 No final do diálogo, Agostinho chega à conclusão de que a verdadeira felicidade está em Deus, isto é, só é verdadeiramente feliz quem possui a Deus. Para ele, a busca da felicidade do homem convertese na procura ou busca de Deus, o único que pode dar-lhe consistência e estabilidade. A inquietude, as dúvidas, a necessidade de amor e de felicidade fundamentam a natureza própria do homem. Esta inquietação não é senão a ânsia por conhecer a si mesmo e a Deus: “Onde estava eu quando te procurava? Estavas diante de mim, e eu até de 139 A cidade de Deus X, 1. Cassicíaco, lugar onde Agostinho se retirou junto com seus amigos e sua mãe para se preparar para o batismo. Frutos deste retiro foram as obras: A Vida Feliz, Solilóquios, Da Ordem e Contra Acadêmicos. 141 AGOSTINHO, Santo. Cartas a Proba e a Juliana: direção espiritual. São Paulo: Paulus, 1987. Ep. 130, 4,9. 140 80 mim mesmo me afastava, e se não encontrava nem a mim mesmo, muito menos podia encontrar-te a ti”.142 Agostinho, de certa forma, renova a especulação filosófica sobre o homem, ao transformar o princípio filosófico-natural de Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”, em um princípio filosófico-religioso: “Que eu me conheça a mim mesmo e que te conheça, Senhor!”.143 Nisso, Agostinho introduz um importante elemento para a compreensão de sua especulação filosófica racional: a fé revelada que daria um caráter original ao seu pensamento filosófico e que se caracterizaria por uma Filosofia Cristã. Agostinho, neste sentido, faz uma perfeita conciliação entre a fé e a razão ou filosofia, chegando à sua máxima de “Crede ut intellegas, intellege ut credas”, ou seja: “Crê para que a fé ajude o intelecto a entender; entender, para que o intelecto procure a fé”.144 Alguns comentadores de suas obras afirmam que toda filosofia de Agostinho é filosofia cristã, desenvolvendo-se no âmbito da fé, não sendo senão esforço para reencontrar, pela razão, a verdade recebida por via da autoridade. Eles reconhecem que a necessidade de crer para compreender é exigência essencial do agostinianismo, completada pelo compreender para melhor crer.145 Para Agostinho, o objetivo da filosofia será sempre a procura da felicidade: “Que o filósofo tenha amor a Deus, pois se a felicidade é o fim da filosofia, gozar de Deus é ser feliz”.146 O filósofo procura a verdade, não simplesmente 142 Confissões V, 2, 2. Solilóquios II, 1, 1. 144 Sermão 43, 9. 145 Cf. BROWN, Peter. Apud OLIVEIRA, Nair de Assis. In: AGOSTINHO, Santo. Solilóquios. 1993. 146 A cidade de Deus VIII, 9. 143 81 para ser sábio, mas para ser feliz, e coloca tal felicidade onde realmente ela se encontra, a saber: na posse de um bem imutável, na verdade, em Deus. Quem procura a felicidade busca a Deus, e só ao encontrar a Deus encontrará a felicidade. “Ninguém faz feliz o homem senão aquele que o criou”.147 Portanto, para responder aos questionamentos sobre onde encontrar a felicidade ou como pode o homem ser feliz, Agostinho não tem dúvidas de que uma só é a resposta: a sabedoria. Sabedoria, entretanto, que é a posse do conhecimento, de verdade tal, capaz de saciar plenamente a aspiração humana pela beatitude. Ele proclama, com convicção, ser a Sabedoria um dos nomes de Deus, mais precisamente, o nome do Filho de Deus, Cristo. Ele vincula sabedoria, posse do conhecimento ou da verdade, com a felicidade. Para ele, não é possível a felicidade sem a verdade. Quando, mais tarde, ao rever a própria atitude de inquietação e angústia que o dominou toda sua vida, Agostinho dá-se conta de que, na realidade, nunca desejou outra coisa senão a verdade, e que a verdade é o próprio Deus, que Deus se encontra no interior do homem, na sua alma. A partir de sua experiência, ele ensina: “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do homem”.148 147 148 Epístola 155,2. A verdadeira religião 39, 72. 82 4 A moral interior: princípio do agir humano Para Agostinho, como vimos no item anterior, o grande problema do homem é a busca da felicidade, a qual consiste na plena posse e gozo do amor, da sabedoria, da verdade. Ou seja, da verdadeira felicidade que se encontra em Deus, “sumo bem do homem... ser supremo... imutável, ao qual todos os outros bens se referem”.149 A partir desse pressuposto, Agostinho orienta suas teses morais para a busca da beatitude e, por ela, para Deus que, exclusivamente, pode assegurá-la. Nesse sentido, toda moral agostiniana se enquadra dentro de seu eudemonismo antropológico, cuja preocupação primeira e última é a felicidade do homem que, em Agostinho, adquire um caráter cristão, em que o início e o fim da procura é Deus. Santo Agostinho chega à certeza de que só em Deus o homem encontra a verdadeira felicidade. Entretanto, o homem é um ser concreto, que vive em meio a bens materiais. Daí, como conciliar a felicidade temporal, proporcionada pelos bens temporais, mutáveis e corruptíveis, e a verdadeira felicidade que se encontra em Deus, imutável e eterno? De que forma o homem pode usufruir dos bens temporais em vista dos bens eternos? Para ele, viver, segundo os bens temporais, tendo em vista os bens eternos, constitui o grande drama existencial do homem em busca da felicidade: 149 Epístola 137. 83 Há uma certa vida do homem envolvida nos sentidos carnais, entregue aos gozos da carne (...) A felicidade de tal vida é temporal (...) Mas há outra vida, cujo gozo está na alma, cuja felicidade é interior e eterna (...) O que importa é saber para onde a alma racional prefere dirigir pela vontade o uso da mesma razão ou para os bens da natureza exterior e inferior; isto é, para que goze do corpo e do tempo ou, ao invés, da divindade e da eternidade.150 Buscando resolver tal drama, Agostinho desenvolve sua doutrina moral e ascética, centrada nas regras da ordem e do amor, ou amor ordenado, que se baseia no princípio cristão da divina ordem, como vimos no item anterior, e cujo papel fundamental é desempenhado pela vontade humana, a qual, conhecendo a reta ordem através da razão, irá escolher, por um ato livre, viver segundo essa ordem ou desrespeitá-la. Neste sentido, a doutrina moral agostiniana supõe a existência de uma ordem divina no mundo. O reconhecimento e enquadramento nessa reta ordem pela razão ou vontade humana é a condição da posse e gozo da verdadeira felicidade do homem. Reconhecendo essa ordem, a vontade humana evita perturbá-la e a respeita em suas ações, mediante a justa apreciação de valores e reta conduta de vida, frente a ela. Assim, o fim da moralidade é a reta manutenção da ordem, que se identifica com a vontade divina; ao passo que o mal, desordem, consiste na transgressão culposa desta ordem: 150 Epístola 140, 2,3. 84 “Deus, Autor das naturezas, não dos vícios, criou o homem reto; mas, o homem, depravando-se por sua própria vontade e justamente condenado, gerou seres desordenados e condenados”.151 Mesmo o mal, fruto da livre vontade do homem, passa a fazer parte da ordem divina, pois, segundo Agostinho, “o Criador permanece bom, usando bem, mesmo do que é mau. Quem, pois, se põe fora da ordem pela injustiça dos pecados, volta a esta ordem mediante a justiça dos castigos”.152 Em diversos momentos de A Cidade de Deus, Agostinho insiste em afirmar que toda natureza é boa, visto que todas as coisas foram criadas por Deus, o problema é o valor que a vontade humana atribui às coisas criadas: “Nenhuma natureza, absolutamente falando, é um mal”.153 Por último, ele defende que, na ordem dos valores, não devemos antepor as coisas superiores às inferiores, mas dar a cada um o que é seu. Para defender essa idéia, ele parte do conceito ciceroniano de justiça (fundado no direito natural), segundo o qual justo é dar a cada um o que é seu: “E finalmente sobre a justiça, o que diremos ser ela, senão a virtude pela qual damos a cada um o que é seu?”154 Ele lhe dá um caráter religioso, tendo como fundamento o duplo preceito da caridade: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo” 155, ou seja, dar a cada um o 151 A cidade de Deus XIII, 24. Epístola 140, 2, 4. 153 A cidade de Deus XI, 27. 154 O livre arbítrio I, 13, 27. Também em A cidade de Deus XIX, 21 e XXI, 16. 155 Lucas 10, 27. 152 85 amor devido; a Deus em primeiro lugar e a si mesmo e ao próximo em segundo lugar. 5 O amor e a experiência de DEUS Somente o amor a Deus é o único caminho que conduz o homem à perfeita felicidade; porém, como este amor é ainda um desejo, uma vez despertado em seu coração, ele não repousará enquanto não possuir a Deus: “Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti”.156 Quando o desejo de Deus desperta em nós e que, movidos por ele, resolvemos amá-Lo acima de todas as coisas, a nossa vida transforma-se num constante exercitar-se e o fim não pode ser outro senão a sua completa satisfação. Este desejo de Deus marca o início de um novo movimento na caminhada do homem em busca da felicidade. Antes de sua conversão, Agostinho buscava a felicidade fora de si mesmo e só encontrava insatisfação com a posse das coisas e das criaturas; isso o fez sentir a necessidade de realizar o movimento de retorno para seu próprio interior, a fim de, pela prática da virtude, ordenar o seu amor-desejo. Agora, tendo a ordem do amor despertado nele o desejo de Deus, apresenta-se a ele a oportunidade de encontrar não apenas a si mesmo, mas de ir além de seu próprio espírito a fim de atingir o transcendente, isto é, Deus. 156 Confissões I, 1, 1. 86 O desejo de Deus não é algo acrescentado culturalmente, mas é algo que já se encontra no interior do homem, está implícito no desejo de felicidade: “desejam ser felizes, como a verdade o proclama, como o exige a própria natureza, na qual o Criador inseriu esse desejo”157; é algo tão natural e inato quanto o desejo de autoconservação e o próprio desejo sexual. O desejo de Deus é parte constitutiva da estrutura psico-ontológica do homem; e ele o carrega dentro de si, como uma fome interior.158 O homem deve tomar consciência desse desejo e canalizá-lo para Deus, senão, ele permanecerá secretamente vivo em seu coração, provocando nele uma constante inquietude.159 Para Agostinho, Deus colocou esse desejo no coração do homem não porque precisasse dele, visto que Ele é imune às necessidades, mas porque queria que ele participasse de sua suprema beatitude.160 Portanto, buscar ser feliz é buscar a Deus e o desejo universal de felicidade é a explicitação do desejo de Deus que secretamente habita todo homem. Para encontrar a Deus, o homem deve encontrar-se a si mesmo, imagem e semelhança do seu Criador, aí está a dignidade do homem, não no sentido corpóreo, mas na sua alma “imagem de Deus... que se encontra na alma”161, ou, 157 A Trindade XIII, 8, 11. “Fome de Deus...” Confissões III, 1,1. 159 Confissões I, 1,1. 160 “São felizes aqueles (...) por estarem unidos a Deus, somente Deus é o bem que torna feliz a criatura racional ou intelectual. Assim, embora nem toda criatura possa ser feliz (pois não alcançam nem são capazes de tal graça as feras, as plantas, as pedras e coisas assim), a que pode sê-lo não o pode por si mesma, mas por Aquele que a criou. Torna-a feliz a posse daquele cuja perda a torna miserável” (A cidade de Deus XII, 1,2). 161 A Trindade XIV, 16,22. 158 87 precisamente, na sua parte mais nobre, também chamada de razão, mente ou espírito que é diferente dos irracionais162, isto é, no homem interior.163 Mas, para o pensamento agostiniano, o fato de Deus habitar no interior do homem, mesmo que o homem entre em seu interior e conheça sua alma, logo perceba que mesmo esta parte mais nobre dele ainda não é Deus, será ainda necessário transcender totalmente a si mesmo e, subindo interiormente, ir para além de seu próprio espírito: “A Verdade habita no coração do homem (...) vai além de ti mesmo (...) dirige-te à fonte da própria luz da razão”.164 É na alma, interioridade do homem, o lugar onde o homem experimenta a vida feliz.165 Esta, porém, só fixará morada se o homem encontrar, não somente a si mesmo, mas também a Deus. Encontrar Deus é uma necessidade de todo ser humano, é um desejo e o desejo é um dos afetos básico da vontade, está presente em todas as partes da alma. Portanto, a mente, enquanto sua parte superior, é dotada não somente da capacidade de conhecer e contemplar a Deus, mas também de desejá-Lo, amá-Lo e, consequentemente, possuíLo: “Ninguém é capaz de amar a Deus, antes de o conhecer. E o que é conhecer a Deus, senão o contemplar e perceber com firmeza, com os olhos da mente? Ele não é um corpo para que possamos divisá-lo e percebê-lo com os olhos corporais”.166 Amar a Deus é renunciar a si mesmo e entregar-se completamente. Quando o homem entrega-se totalmente ao amor de Deus, entra na posse de Deus, e quem 162 Ibid., XV, 1, 1. A Trindade XIV, 8, 11, e O livre arbítrio I, 8, 18. 164 A verdadeira religião 39, 72. 165 A vida feliz IV, 25. 166 A Trindade VIII, 4, 6. 163 88 O possui já não tem necessidade de mais nada, pois Ele é o soberano bem, já que possuí-Lo é tudo possuir. Amando a Deus desta forma, o homem estará, de fato, amando a si mesmo, uma vez que somente a posse de Deus o satisfaz plenamente.167 A este amor que é união com Deus Agostinho chama de caridade, pois é o amor com perfeição, sem inquietudes, porque atingiu o seu Bem supremo e, portanto, sua completa satisfação.168 Estar unidos a Deus e amá-Lo é tornar-nos semelhantes a Ele: “Cada um é tal qual aquilo que ama. Amas a terra? Terra serás. Amas a Deus? Que direi? Serás deus? Não ouso afirmá-lo por minha conta. Escutemos as Escrituras: ‘Eu disse sois deuses e todos sois filhos do Altíssimo”.169 Quanto mais estamos unidos a Ele, mais compreendemos que “Deus é Amor”, e quem O ama realmente participa do seu amor. Portanto, amar a Deus é tornar o nosso amor semelhante ao Seu; pois, uma vez que a sua essência170 é o Amor, é somente quando amamos do jeito Dele que nos tornamos semelhantes a Ele. 167 A Trindade VIII, 8,12 e XIV, 14,18. A verdadeira religião 47, 90. Agostinho também faz uma síntese da moral, baseada no amor, em A doutrina cristã, nos capítulos 22 a 34. 169 Comentário da 1ª Epístola de São João II, 14. 170 Para os gregos, a idéia de um Deus que ama era impensável; para eles, o amor era um desejo, um eros, próprio de um ser imperfeito; não poderia existir em Deus, ser perfeito e imutável por natureza. Agostinho, porém, é fiel à revelação cristã; para ele, Deus não somente ama, mas o amor é a sua própria essência. 168 89 6 O amor e a ética do dever: princípio da moralidade agostiniana Partindo do pressuposto de que a finalidade da moralidade é garantir a perfeita ordem, ou a reta ordem dos valores, Agostinho desenvolve os conceitos de “uti-frui” como princípio da moralidade, através do qual, pela vontade livre, o homem distingue as coisas a serem gozadas das coisas a serem usadas. Para Agostinho, a vida moral se traduz, forçosamente, numa sequência de atos individuais. Cada um deles implica numa tomada de posição face às coisas; ou fruímos, ou nos utilizamos delas. “Fruir”171 significa afeiçoar-se a algo por si mesmo, ou seja, “fruir é aderir a alguma coisa por amor a ela própria”.172 “Utilizar”, ao contrário, é servir-se de algo para alcançar um objeto que se ama; ou seja, dizemos “usar, quando buscamos um objeto por outro”.173 Logo, podemos usar de todas as coisas, desde que as usemos com a finalidade de atingir a fruição de Deus; pois, sendo Ele o nosso sumo bem, é também o único que merece ser amado por si mesmo. O uso ilícito, por sua vez, recebe o nome apropriado de abuso, ou seja, “quando se oferece onde não “Ninguém é feliz, se não goza do que ama” (A Cidade de Deus VIII, 8). 172 A doutrina cristã I, 4. Ou também: “Dizemos gozar, quando o objeto nos deleita por si mesmo, sem necessidade de referi-lo a outra coisa” (A cidade de Deus XI, 25). 173 A cidade de Deus XI, 25. Assim como: “Usar é orientar o objeto de que se faz uso para obter o objeto ao qual se ama, caso tal objeto mereça ser amado” (A doutrina cristã I, 4). 171 90 convém ou o que não convém neste lugar, mas noutro, ou quando se oferece quando não convém ou o que não convém na ocasião, mas noutra”.174 Assim, Agostinho deixa bem claro que, entre as coisas, há algumas para serem fruídas, outras para serem utilizadas e outras, ainda, para os homens fruírem e utilizálas. As que são objeto de fruição fazem-nos felizes. As de utilização ajudam-nos a tender à felicidade e servem de apoio para chegarmos às que nos tornam felizes e nos permitem aderir melhor a elas.175 Considerando-se que nós, homens, “somos peregrinos para Deus nesta vida mortal”,176 que não podemos viver felizes a não ser na “pátria celestial”, que, “se queremos voltar à pátria, lá onde podemos ser felizes, havemos de usar deste mundo, mas não fruirmos dele”,177 isto é, por meio dos bens corporais e temporais, devemos procurar conseguir as realidades espirituais. Disto decorre que “devemos gozar unicamente das coisas que são bens imutáveis e eternos. As outras coisas devemos usar para poder conseguir o gozo daquelas”.178 174 A cidade de Deus XV, 7. A doutrina cristã I, 3. 176 2Coríntios 3, 6. 177 A doutrina cristã I, 4. 178 Ibid., I, 22. Ou ainda: “Das coisas temporais devemos usar, não gozar, para merecermos gozar das eternas. Não como os perversos, que querem gozar do dinheiro e usar de Deus, porque não gastam o dinheiro por amor a Deus, mas prestam culto a Deus por causa do dinheiro” (A cidade de Deus XI, 25). 175 91 Como se vê, através dos conceitos de uti-frui, Agostinho estabelece a distinção entre as coisas das quais o homem pode gozar, que asseguram a verdadeira felicidade, e as coisas que deve usar, e usar bem, como instrumentos para atingir a felicidade: A alma pode também usar bem da felicidade temporal e corporal, se não se entregar à criatura, desprezando o Criador, mas antes pondo aquela felicidade a serviço do mesmo Criador (...) Assim como são boas todas as coisas que Deus criou (...) a alma racional se comporta bem em relação a elas, se guardar a reta ordem e distinguir, escolhendo, julgando, subordinando os bens menores aos maiores, os corporais aos espirituais, os inferiores aos superiores, os temporais aos sempiternos; evitará de fazer decair em si mesma e ao corpo da sua nobreza, com o desprezo dos bens superiores e o desejo daqueles inferiores.179 Dentro dessa ótica, o homem não pode ser, por si mesmo, o bem capaz de fazê-lo feliz,180 o que significa dizer que “ninguém deve gozar de si próprio, porque ninguém deve se amar por si próprio, mas por aquele de quem há de gozar”181, pois “somente Deus é o bem que torna feliz a criatura racional (...), pois, embora nem toda criatura possa ser feliz, a que pode sê-lo não o pode por si mesma, mas por Aquele que a criou”.182 179 Epístola 140, 2, 4. A doutrina cristã I, 23. 181 Ibid., I, 22. 182 A cidade de Deus XII, 1. 180 92 Com essas palavras, não devemos entender que o homem deva odiar-se a si próprio, mas, tão somente, que o homem deve amar a si mesmo, mas em função de Deus, afinal, diz o preceito evangélico: “amarás o Senhor teu Deus de todo coração, de toda a alma e todo entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo”.183 Também não devemos entender que o homem deva odiar o seu próprio corpo, pois “ninguém jamais quis mal à sua própria carne”.184 Pelo contrário, na epístola 130, Agostinho afirma que, entre os bens que devemos desejar para vivermos convenientemente, está a saúde do corpo, pois a conservação da saúde relaciona-se com a própria vida: com a sanidade e integridade da alma e do corpo.185 Agostinho propõe que devemos “ensinar ao homem a medida de seu amor, isto é, a maneira como deve amar-se a si próprio para que esse amor lhe seja proveitoso (...) como deve amar seu corpo, para que tome cuidado dele, com ordem e prudência”.186 O que Agostinho condena é o amor desordenado ao corpo. Em A Cidade de Deus, falando a respeito do amor ao corpo das mulheres diz: A beleza do corpo, bem criado por Deus, mas temporal, ínfimo e carnal, é mal amado, quando o amor a ele se antepõe ao devido a Deus, bem eterno, interno e sempiterno. Assim como o avaro, abandonando a justiça, ama o ouro, o pecado não é do ouro, mas do homem. E assim sucede a toda criatura, pois, sendo boa, pode ser amada bem ou 183 Mateus 22, 37. Efésios 5, 29. 185 A doutrina cristã I, 13. 186 Ibid., I, 24. 184 93 mal. Amada bem, quando observada a ordem; mal quando pervertida.187 Vimos que o princípio norteador de toda moral agostiniana é a distinção entre bens a serem gozados e bens a serem usados. Segundo Manfredo Ramos188, esta separação é consequência da distinção que este faz entre Ser Imutável (Bem ontológico - Deus) e seres mutáveis (bens éticos - corpos); há uma dependência destes em relação ao primeiro, resultando que, na ordem moral, o ontológico comanda o ético189, o que dimana numa “moral da felicidade” e numa “moral do dever”, ambas fundamentadas na busca da felicidade. Essa distinção, que não é nada mais do que as duas faces de uma mesma moeda, explica por que Agostinho procura a felicidade não como uma felicidade qualquer, mas a própria vita beata do homem, aquele bem ao qual devemos dirigir todas as nossas ações, sem que haja mais nada além dele que procurar,190 ou seja, Deus, verdadeira felicidade, bem em si mesmo ou Bem ontológico. Nesse sentido, a moral agostiniana fundamenta-se numa “moral da felicidade” enquanto um bem a ser buscado por si mesmo. Entretanto, Agostinho reconhece que o homem é um ser existencial que vive numa realidade temporal, na qual, quer queira ou não, precisa dos bens temporais para sobreviver. A cidade de Deus XV, 22. E ainda: “Não há dúvida de que todas as coisas que podem ser desejadas de modo útil e conveniente o devem em função daquela vida, na qual se vive com Deus e de Deus” (Epístola 130, 7,14). 188 RAMOS, Francisco Manfredo Tomás. 1984. 189 Cf. RAMOS, Francisco Manfredo T. op. cit. p. 62. 190 A cidade de Deus VIII, 8. 187 94 Daí que, sendo a preocupação primeira do homem a busca da verdadeira felicidade, este precisa usar os bens temporais de tal forma que o levem a alcançar os bens eternos. Surge, assim, o segundo aspecto da moral agostiniana: a “moral do dever”.191 A “moral da felicidade”, fundamentada na busca do Bem ontológico (Deus), orienta ou determina a “moral do dever”, que se caracteriza pela reta utilização dos bens temporais, pois “os homens não se tornam bons por meio “O dever é uma categoria fundamental da filosofia prática. Isso, de modo algum, significa que só tenha uma importância técnica filosófica. Na vida cotidiana, expressa o que se tem a obrigação de fazer, o que convém fazer. Serve também para formular e descrever a relação existente entre nossas ações e os objetivos que elas buscam atingir” (COUTO, Sperber Monique, 2003). Para Santo Agostinho, tudo foi criado por Deus segundo ordem, peso e medida, isto é, tudo está sabiamente ordenado numa escala hierárquica: Deus, homem, animal, vegetal e mineral. Essa hierarquia é a Lei eterna de Deus, não é uma Filosofia, pois, segundo Santo Agostinho, a lei eterna é a vontade Divina que manda conservar a ordem natural e não perturbála. A Lei eterna Divina é interior à criatura (o objetivo fundamental do ser humano, da sua felicidade, é realizar a vontade de Deus. Por isso o dever moral é definido como a ação em conformidade com a vontade divina). É a conjugação do pensamento de Deus com as criaturas ordenadas traduzido na escala Cósmica. A “moral do dever” consiste no amor à ordem. Para ele, Deus não está “lá fora”, nas criaturas, nos prazeres, na Filosofia e nem na riqueza (“nem lá em cima, nem lá em baixo”), mas está dentro de nós. Assim, ele consegue encontrar Deus dentro de si por meio da verdade. Então, a “moral do dever” é tão somente amar a verdade Divina presente em mim. “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do homem. E se não encontras senão a tua natureza sujeita a mudanças, vai além de ti mesmo. Em te ultrapassando, porém, não te esqueças que transcendes tua alma que raciocina. Portanto, dirige-te à fonte da própria luz da razão” (A verdadeira religião 39,72). 191 95 desses bens, mas os que se fizeram tais por outro meio é que fazem com que estes se tornem bons, usando-os bem (...) Segue-se que qualquer bem que é desejado útil e convenientemente deve ser sem dúvida referido àquela única vida que se vive com Deus e de Deus”.192 Como se vê, numa relação de consequência, Agostinho mostra que não há verdadeira felicidade sem vontade reta, isto é, sem a virtude que, usando corretamente os bens temporais, torna-os bons (moralmente), ordenandoos para a vida eterna, que é a única bem-aventurada. Manfredo Ramos chama a atenção para o fato de Agostinho orientar toda sua moral para a busca da felicidade enquanto Bem ontológico, a ser alcançado na vida eterna, dando, assim, um caráter teleológico a sua moral. Para ele, essa é uma característica genuína da moral agostiniana que permite diferenciá-la da dos antigos filósofos, pois, como na antiguidade não se tinha uma convicção clara de vida eterna, a moral dos antigos não tinha este caráter teleológico.193 Diante do exposto, ainda, poderíamos nos perguntar: seria o homem capaz, por suas próprias forças, de alcançar a felicidade perfeita? Agostinho, desde o seu diálogo sobre A Vida Feliz, apesar da forte influência grega, já começa a delinear o que virá a ser a sua filosofia cristã, pois se, de um lado, ele concorda com os estóicos que a felicidade só se encontra na posse da sabedoria,194 de outro, supera-os, quando afirma: “Mas a que devemos chamar de sabedoria, Epístola 130, 2,3,4. Mais adiante diz: “A única verdadeira vida e a única bem-aventurada (...) em vista desta única coisa procuram-se e desejam-se honestamente todas as demais coisas” (Ibid., 130, 14). 193 Cf. RAMOS, Francisco Manfredo T. op. cit. p. 69. 194 A vida feliz IV, 33. 192 96 senão a sabedoria de Deus?”195 E, se ele concorda com os platônicos que a autêntica felicidade só se encontra na fruição de Deus,196 também a estes supera, quando diz que há “uma certa admoestação que age em nós, para que nos lembremos de Deus, para que O procuremos, O desejemos (...) emana até nós da própria fonte da verdade”.197 É o próprio Deus-uno-e-trino que, agindo em nós, conduz-nos à fruição de sua Verdade e de seu Ser. Mas uma das grandes novidades da ética de Agostinho é, exatamente, a idéia de que a felicidade perfeita é atingível; porém, não devemos entendê-lo, como fizeram os gregos, enquanto uma conquista exclusivamente humana.198 Na verdade, para que a alcancemos, faz-se necessário que o próprio Deus seja nosso aliado nesta busca; de modo que possamos contar com sua ajuda, ou melhor, com a sua graça: “A graça, mediante a qual, unindo-se a Ele, somos felizes”.199 A felicidade é um dom de Deus.200 E, mesmo que se diga que ela é um dom merecido, uma vez que é dada em resposta ao esforço de busca do homem, ela é sempre um dom. É o próprio Deus que, fazendo-se Ele mesmo dom, quer doar-se inteiramente a nós para saciar completamente o nosso ser. Feita a experiência da fruição de Deus, permanecerá para sempre: “E como ninguém pode lhe arrebatar, nem a sua virtude nem o seu Deus, tampouco pode lhe ser tirada a felicidade”.201 Somente a união com Deus assegura a nossa fruição Dele e a nossa imortalidade, condições para sermos 195 Ibid., IV, 34. A cidade de Deus VIII, 8. 197 A vida feliz IV, 35. 198 A Trindade XIII, 7,10. 199 A cidade de Deus VIII, 10, 2. 200 A vida feliz I, 5. 201 A verdadeira religião 47, 91. 196 97 plenamente felizes. Nossa união com Deus se dá através da caridade, então, podemos concluir que é somente a caridade que nos garante a verdadeira felicidade. A caridade, além de nos fazer felizes já nesta vida, é também a garantia de que ainda maior será a felicidade na vida futura. Embora ainda não saibamos como será esta vida bem-aventurada que nos espera, já temos convicção de que, por mais feliz que possamos imaginá-la, a sua realidade supera todas as nossas expectativas: Pois naquela felicidade, nada desejará que lhe falte e não faltará nada do que desejar. Tudo o que amar estará lá presente e não desejará nada que esteja ausente. Tudo o que ali estará para o gozo de todos os que o amam. E eis o que será o maior grau de felicidade: estará certo de que será assim por toda a eternidade. 202 Quanto à felicidade da vida presente, Agostinho afirma: “Segue o mesmo caminho que a salvação, o da esperança. E como não temos a salvação já, mas a esperamos futura, assim se passa com a felicidade”.203 Neste sentido, enquanto se vai adiando a perfeita felicidade para a vida futura, outro movimento vai se operando no pensamento de Santo Agostinho. Assim, aquela primazia do conhecimento tão presente no diálogo sobre A Vida Feliz vai 202 A Trindade XIII, 7,10. Em outro texto, Agostinho assim afirma: “Pois a ninguém que a deseja, a beatitude concedida é menor do que a desejada. Logo não poderá sentir-se decepcionado quem a encontrar, pois não será inferior à idéia que dela se fizera. Por mais alta que alguém queira tê-la imaginado, mais preciosa achará quando a abraçar” (A doutrina cristã I, 38, 42). 203 A cidade de Deus XIX, 4, 5. Cf. também: A Trindade XIII, 7,10. 98 cedendo lugar, nas obras da maturidade, a um primado da vontade sobre o intelecto. E como o desejo é a principal afeição da vontade e é também amor, a partir desta nova primazia, o amor aparece como a categoria central de todo o seu pensamento e, mais especificamente, de sua ética. Portanto, a caridade surge agora como a virtude primeira e o fundamento de toda a vida ética. Para ele, a caridade é a essência da ética e, se somarmos a estas conclusões o fato de que o homem é um ser social, e, se ele ama a Deus, deve também amar os outros, poderemos desenvolver, assim, a dimensão ética e social do amor. Isso será desenvolvido no próximo capítulo. 99 100 CAPÍTULO III A DIMENSÃO ÉTICA E SOCIAL DO AMOR Como já vimos, para ser plenamente feliz, o homem precisa amar a Deus, numa entrega total de si mesmo; pois somente amando-O deste modo, se unirá a Ele, fruindo-O e, dessa forma, experimentará a verdadeira felicidade. No capítulo anterior, vimos que toda a moralidade Agostiniana tem como base a distinção entre as coisas a serem gozadas (amadas) e as coisas a serem usadas que, em última instância, é uma distinção entre os seres imutáveis ou superiores, nos quais devemos concentrar todo nosso amor, e seres mutáveis ou inferiores, dos quais devemos apenas nos utilizar em função das coisas superiores, e que a reta ordem do amor consiste em não amarmos as coisas inferiores em detrimento das coisas superiores. No que se refere ao homem individual, classificado entre os seres mutáveis, Agostinho não tem dúvida de que este não deve amar-se por si mesmo, mas amar a si mesmo em função de Deus. Entretanto, no mundo real, o homem não vive isolado, ele vive em sociedade, em relação concreta com os demais homens, seres, também, mutáveis. Daí surge a questão: como atender ao preceito bíblico de nos amarmos 101 mutuamente? Devemos amar o nosso semelhante por ele próprio ou por outro fim? Se for por ele próprio, nós estaremos gozando204 dele; se for por outro motivo, nós nos servimos205 dele. Partindo do mesmo preceito evangélico que justifica o amor do homem a si mesmo: “amarás o Senhor teu Deus de todo coração, de toda a alma e de todo entendimento e amarás o teu próximo como a ti mesmo”,206 Agostinho recomenda que devemos amar nossos semelhantes nas mesmas condições em que nos amamos a nós mesmos, ou seja, que amemos nossos semelhantes não por si mesmos, mas em função de Deus: “todo homem, enquanto tal, deve ser amado por causa de Deus”.207 Assim, pelo preceito evangélico do amor, Agostinho estabelece que é nosso dever amar ao próximo como a nós mesmos. E, mais do que isso, que esse amor deve ser universal; deve ser estendido a todos os homens: “todos Pode ser traduzido por fruir. “Fruir é aderir a alguma coisa por amor a ela própria” (A doutrina cristã I, 4). Fruir de Deus, em Agostinho, significa a interioridade espiritual, encontrar Deus dentro de si, entregar-se inteiramente ao Seu amor e unido a Ele, pela caridade, experimentar todo prazer que esta união pode lhe oferecer. Fruir de Deus é sentir Sua presença em nós a nos satisfazer plenamente; é, enfim, participar de seu Ser, de sua Bondade e de seu Amor. “É preciso permanecer junto a ele, aderir plenamente a ele, para gozarmos de sua presença” (A Trindade VIII, 4, 6). 205 Também, pode-se dizer usar. “Usar é orientar o objeto de que se faz uso para obter o objeto ao qual se ama, caso tal objeto mereça ser amado” (A doutrina cristã I, 4). 206 Mt 22, 37. 207 A doutrina cristã I, 28. 204 102 devem ser amados de forma igual”,208 inclusive, “devemos amar até nossos inimigos”,209 pois “quem não vê que ninguém se exclui do preceito e a ninguém pode-se negar o dever da misericórdia? Esse serviço foi estendido até a nossos inimigos pelo Senhor: ‘amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam’ (Mt 5,44)”,210 não por nós mesmos, nem por eles mesmos, mas por “querer, acima de tudo, que todos amem a Deus conosco”.211 Daí que, em A Cidade de Deus, Agostinho afirma: “a própria misericórdia que alivia o próximo não é, em absoluto, sacrifício, se não feita por amor a Deus”.212 E comenta: A esse Bem devemos ser conduzidos por aqueles que nos amam e conduzir os que amamos, para que, assim, se cumpram os dois preceitos (...) A quem sabe amar a si mesmo, quando lhe manda amar ao próximo como a si mesmo, que outra coisa se lhe manda senão, quando esteja ao seu alcance, encarecer a outrem o amor a Deus? Quem ama ao próximo como a si mesmo, outra coisa não quer senão ser feliz.213 Assim, a partir do duplo preceito evangélico, Agostinho aponta o amor ao próximo (a caridade) como força que dá movimento a toda socialização entre os homens. As relações humanas têm como sangue e energia o amor. O amor é a força motriz da vontade que culmina na 208 Ibid., I, 29 Id. 210 Ibid., I, 31. 211 Ibid., I, 29. 212 A cidade de Deus X, 6. 213 Ibid., X, 3. 209 103 liberdade para Deus, supremo Bem, para o qual tudo se dirige. Esse amor dirigido aos semelhantes, em função de Deus, é a caridade. Assim, pela caridade, Agostinho faz a ponte entre o homem individual e o homem social, pois a realização do amor em Deus exige a realização do amor entre os homens. Pela caridade, o amor assume uma dimensão social, enquanto princípio de socialização do homem. A preocupação em ressaltar a dimensão social do amor fez com que, um ano antes de iniciar A Cidade de Deus (411-412), em carta ao senador Volusiano, respondendo às objeções deste ao Cristianismo, Agostinho apresentasse ao amigo o duplo preceito do amor, como única forma possível de se alcançar a paz temporal, ou concórdia, sendo esta, a finalidade imediata do Estado: Que discussões, que doutrina de qualquer filósofo que seja, que leis de qualquer Estado se podem de algum modo confrontar com os dois preceitos nos quais Cristo diz que se compreendia toda Lei dos Profetas: ‘Amarás o Senhor teu Deus com todo o coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente e amarás o teu próximo como a ti mesmo’? Nestas palavras se inclui a filosofia natural, visto que as causas todas de todos os elementos da natureza estão em Deus Criador; está compreendida a filosofia moral, uma vez que uma vida boa e honesta não de outra fonte recebe o seu sacrifício senão quando aquilo que é para se amar, a saber, Deus e o próximo, se ama como se deve; está incluída a lógica, pois a verdade e a luz da alma racional não são senão Deus; está contida também a salvação de um 104 Estado louvável, pois não se funda nem se conserva melhor um Estado do que mediante o fundamento e o vínculo da fé e da sólida concórdia, a saber, quando se ama o bem comum, que na sua expressão mais alta e verdadeira é Deus mesmo, e n’Ele os homens se amam mutuamente com a máxima sinceridade, no momento que se querem bem por amor d’Aquele ao qual não podem esconder o espírito com que amam.214 Assim, dentro do princípio da caridade, o amor a si mesmo e ao próximo em função de Deus gera a concórdia que, num plano social, é a base de uma sociedade justa. O amor próprio, ou o amor ao próximo em função de nós mesmos gera a soberba que, num plano social, é a base de uma sociedade injusta. Por isso, ao iniciar a análise da origem, natureza, desenvolvimento e fins das “duas cidades” em sua obra A Cidade de Deus, Agostinho começa por dizer: “Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo de Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos homens, e tem esta por máxima a glória de Deus”215. Como se vê, pelo duplo preceito do amor, Agostinho faz da ordem social um prolongamento da ordem moral individual, pois a organização dos homens em sociedade (Estado), fundamentada na reta ordem do amor, não tem outra finalidade senão garantir a paz temporal, ou felicidade 214 215 Epístola 137, 5, 17. A cidade de Deus XIV, 28. 105 temporal imediata dos homens; mas tendo em vista a “paz eterna” ou “verdadeira felicidade” a ser alcançada em Deus. Neste sentido, podemos dizer que toda a moral, toda a sociologia, toda a política de Santo Agostinho não é senão a aplicação do primeiro de todos os mandamentos: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito”.216 Assim, a pedra angular sobre a qual está assentado todo o eudemonismo antropológico agostiniano é o desejo do homem de ser feliz, ou seja, a “vita Vera beata” que não é senão alcançar a vida eterna ou “verdadeira felicidade”. Esses “Fundamentos Ontológicos do Homem” vão nortear a vida social dos homens organizados em sociedade (Estado).217 Vamos, portanto, indicar que há uma continuidade entre o problema central do homem, a busca da “verdadeira felicidade”, e o problema do Estado, garantir a paz temporal ou felicidade temporal dos homens, com vista à “verdadeira felicidade”. A filosofia moral agostiniana constitui uma ampla e compreensiva síntese entre o caráter íntimo e pessoal do ético e a imersão do homem na vida universal da humanidade. 216 Mt 22, 37. A ética política de Agostinho é, também, coerentemente regida por este mesmo princípio. 217 106 1 Ética social, prolongamento da moral individual Todos nós queremos ser felizes, mas ninguém consegue se imaginar feliz sozinho. O homem não consegue ser feliz sozinho, porque a sua natureza é intrinsecamente social, ele tem uma necessidade natural de conviver com os outros e a causa fundamental desta tendência é exatamente a “natureza comum que une todos os homens entre si”,218 isto é, os homens têm uma mesma origem, estão ligados por um parentesco comum: Quanto ao homem, chamado, por criação, natural, a ocupar lugar entre os anjos e os irracionais, Deus criou apenas um (...) Deus fê-lo um e só, não para privá-lo da sociedade humana, e sim para encarecerlhe sempre mais a unidade social e o vínculo da concórdia, que aumentaria, se os homens não se unissem apenas pela semelhança da natureza, mas também pelos laços de parentesco.219 Não só por causa da unidade ontológica o homem sente necessidade de viver em sociedade, mas também por outros motivos: sobrevivência física, aquisição de bens, satisfação de carências psíquico-afetivas220 etc. 218 Epístola 130, 6, 13. A cidade de Deus XII, 21. 220 “Que consolo melhor encontramos, entre as agitações e amargores da sociedade humana, que a fé sincera e o mútuo amor dos bons amigos?” (A cidade de Deus XIX, 8). 219 107 Para Agostinho, o homem é um ser social por natureza, depende dos outros para nascer, crescer e viver. Sua humanidade estaria comprometida fora desta dimensão social. Seria racionalmente impensável viver isolado, ausente da convivência com os seus semelhantes, pois, dessa forma, não poderia ser feliz: “A vida do sábio é vida de sociedade”.221 Ao deixar sua família de origem, o homem forma uma outra família e, assim, as várias famílias, enquanto pequenas sociedades articuladas entre si, formam a cidade; e estas, unidas uma as outras, o estado ou país; e estes, a grande sociedade humana: Depois da cidade ou urbe vem o orbe da terra, terceiro grau da sociedade humana, que percorre os seguintes estágios: casa, urbe e orbe.222 Estendida pela terra toda e nos mais diversos lugares, ligada pela comunhão da mesma natureza, a sociedade dos mortais (...) Sociedade que com palavra genérica chamamos cidade deste mundo.223 Sendo uma exigência da natureza racional do homem viver em sociedade, então, para serem felizes, eles devem amar-se mutuamente e querer uns para os outros o mesmo bem que desejam para si próprios. Quando isso não for possível por amor recíproco, ao menos seja em razão da natureza comum que une todos os homens entre si.224 Reconhecendo a sua natureza social, o homem tem se utilizado da razão para estabelecer normas de vida que o 221 Ibid., XIX, 5 e XIX, 3,2. Ibid., XIX, 7. 223 Ibid., XVIII, 2, 1. 224 Cf. Epístola 130, 6, 13. 222 108 conduzam à felicidade.225 Ele tem procurado uma conduta que ordene todas as partes do seu ser e lhe traga a paz interior.226 Esta procura tem sido não apenas para criar uma moral individual, mas também para produzir uma ética que seja capaz de gerar a ordem e a paz entre os homens: “paz dos homens entre si e sua ordenada concórdia”.227 Ainda neste capítulo sobre a Dimensão Ética e social do Amor, desenvolvemos, mais adiante, alguns tópicos sobre as normas que conduzem à harmonia social, tais como: finalidade imediata do Estado terreno, a ordenada concórdia ou a paz temporal e, também, sobre a verdadeira justiça. 225 Agostinho trabalha esta questão em A Cidade de Deus, livro XIX. Nesta obra, vemos que, para preservar a ordem da paz na sociedade humana, é preciso obedecer algumas normas: não fazer mal a ninguém e socorrer a todos os que padecem necessidades. Sobre esta ordem que é condição indispensável para se obter a verdadeira paz, Agostinho fala de algumas normas. Estas normas obrigam a cuidar primeiro dos próprios familiares, assegurando, assim, a paz doméstica. O marido deve cuidar da esposa, os pais dos filhos, os patrões dos criados. Por outro lado, a reta ordem exige que aqueles que são objetos de tais cuidados prestem obediência aos que cuidam deles; assim, as mulheres devem obedecer aos maridos, os filhos, aos pais, os criados, aos patrões. Contudo, esta relação puramente natural estabelecida pela obediência é grandemente suavizada e enobrecida na casa do justo, que vive da fé. Pois, só na família cristã, os que parecem mandar são na realidade os servos dos outros: “Quem manda também serve àqueles que parece dominar. A razão é que não manda por desejo de domínio, mas por dever de caridade, não por orgulho de reinar, mas por misericórdia de auxiliar” (A cidade de Deus XIX, 14). 226 “Como não há ninguém que não queira sentir alegria, assim também não há ninguém que não queira ter paz” (A cidade de Deus XIX, 12). 227 Ibid., XIX, 13,1. 109 2 O amor enquanto fundamento ético de socialização do Homem Para Agostinho, o que está na base de todas as sociedades humanas, sejam quais forem, sem dúvida, é o amor. O amor é uma força capaz de unir os homens entre si, este os une em torno daquilo que amam. Quando consideramos algo como um bem supremo, nós o amamos e logo desejamos que os outros também se unam a nós neste amor, não propriamente por eles, mas por causa deste bem que elegemos como merecedor de nosso amor. Vejamos com Agostinho este exemplo: Nos palcos da iniqüidade, é um fato o espectador gostar, em especial, de um artista e julgar a arte dele como de grande valia ou ainda a considerar isso como o bem supremo. Igualmente, gosta de todos os que partilham dessa sua admiração. Não por causa desses admiradores, mas por causa do ídolo comum. E quanto mais o amor por aquele artista for ardente, tanto mais o admirador esforçar-se-á, por todos os meios a seu alcance, de o fazer admirar por muitos e desejará exibi-lo a uma grande platéia. Se encontrar alguém indiferente, estimula-lo-á quanto pode, com elogios ao artista de sua predileção. Se encontrar um que se oponha, aborrece-se veementemente com o menosprezo a seu favorito. Por todos os meios, procura reparar esse descaso.228 228 A doutrina cristã I, 29, 30. 110 Toda sociedade humana, como vimos no exemplo citado por Agostinho, está fundada neste amor-desejo. Assim, o fundamento da vida social é, exatamente, o fato de os homens nutrirem desejos pelos mesmos objetos e pressuporem que a associação entre eles facilitará a sua aquisição. Para Agostinho, a avaliação do nível de uma determinada sociedade pode ser feita observando-se a qualidade dos objetos desejados pelos seus integrantes, isto é, pelo amor-desejo que os mantém unidos.229 Para que se cumpra esse amor-desejo em qualquer sociedade humana, é necessário que nela reine a paz, embora uma paz temporal comum aos bons e maus; pois ela é o maior bem da cidade.230 “Uma cidade é a dos homens que querem viver segundo a carne, a outra, a dos que querem viver segundo o espírito, cada qual em sua própria paz. E a paz de cada uma delas consiste em ver realizados todos os seus desejos”.231 Esta paz da cidade é de grande valor, porque é ela que garante aos cidadãos a posse e o usufruto dos objetos que eles amam e desejam. Cabe “O povo é o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos amados, é preciso, para saber o que é cada povo, examinar os objetos de seu amor. Não obstante, seja qual for seu amor, se não é conjunto de animais desprovidos de razão, mas seres racionais, ligados pela concorde comunhão de objetos amados, pode, sem absurdo algum, chamar-se povo. Certo que será tanto melhor quanto mais nobres os interesses que os ligam e tanto pior quanto menos nobres” (A cidade de Deus XIX, 24). 230 “E tão nobre bem é a paz, que mesmo entre as coisas terrenas e mortais nada existe mais grato ao ouvido, nem mais desejável ao desejo, nem superior em excelência (...) doçura da paz, ansiada por todos” (A cidade de Deus XIX, 11). 231 Ibid., XIV, 1. 229 111 ressaltar que, para Agostinho, a paz temporal é fruto da justiça: “Onde não existe verdadeira justiça não pode existir comunidade de homens fundada sobre direitos reconhecidos”.232 Sobre este assunto, desenvolvemos, mais adiante, um tópico para fundamentar que a ordenada concórdia entre os homens ou paz temporal é a verdadeira justiça. 3 Amar o próximo: a plenitude e as expressões do amor-caridade A caridade é a perfeição do amor, pela qual o homem se entrega totalmente a Deus, mas Deus nada pede para si mesmo, já que não há nada que possamos lhe oferecer que O favoreça: “Não penses que dás algo a Deus. Deus não precisa de servos, mas são os servos que precisam de Deus”.233 Deus é Sumo Bem que de nenhum bem precisa e tudo o que Ele exige do homem é em vista de seu bem; ao contrário, tudo o que o homem oferece a Deus se reverte em benefício próprio,234 pois “Deus é aquele que quer ser amado não para obter para si alguma vantagem, mas para conceder aos que o amam uma recompensa eterna”.235 Como Deus nada quer para si, Agostinho nos diz que Deus quer que amemos aqueles que Ele ama: nós e nossos semelhantes: “A Deus nós o amamos por ele mesmo, e a nós 232 Ibid., XIX, 21. Comentário da 1ª Epístola de São João VIII, 14. 234 A doutrina cristã I, 32,35. 235 Ibid., I, 29,30. 233 112 mesmos e ao próximo por amor a ele”.236 Esta é uma questão fundamental, porque da sua compreensão depende o entendimento de toda a ética de Agostinho. Quanto a nós, já nos amamos naturalmente,237 resta-nos, pois, que amemos nossos irmãos por amor a Deus e nisso está a perfeição da caridade: “Todo homem deve ser amado por causa de Deus”.238 Portanto, o amor é perfeito quando chega ao nível da caridade fraterna239: Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia o seu irmão é mentiroso. Como provar que ele é mentiroso? Escuta: Pois quem não ama seu irmão a quem vê, a Deus que não vê, não poderá amar (1Jo 4, 20). Como assim? Quem ama a seu irmão, também ama a Deus? Sim, se ele ama a seu irmão, necessariamente também ama a Deus, que é o próprio amor.240 Podemos concluir com Agostinho que, para amar a Deus, não precisamos buscá-lo muito distante de nós: “Se Deus é Amor, porque caminhar e correr às alturas dos céus ou às profundezas da terra à procura daquele que está junto de nós, se quisermos estar junto dele”.241 Como o amor de Deus, a nossa caridade deverá ser benevolente, gratuita e universal, pois Deus ama a todos 236 Epístola 130, 7, 14. A doutrina cristã I, 26,27. 238 Ibid., I, 27,28. 239 Comentário da 1ª Epístola de São João VIII, 10 e 12. 240 Ibid., IX, 10. 241 A Trindade VIII, 7,11. 237 113 com gratuidade e benevolência242, antes mesmo que existíssemos, conhecêssemos e O amássemos: “Ele nos amou em primeiro lugar”,243 criou-nos a Sua imagem e semelhança, amando-nos mais do que outras criaturas, dotando-nos de livre arbítrio244 tornou-nos partícipes de seu ser,245 de sua bondade e de sua felicidade: “Somente Deus é o bem que torna feliz a criatura racional e intelectual. Assim, embora nem toda criatura possa ser feliz (...) a que pode sê-lo não pode por si mesma, mas por Aquele que a criou”.246 Quando, por soberba, afastamo-nos Dele, não nos abandonou, ao contrário, continuou a nos amar e, usando de misericórdia para conosco, tudo fez para restaurar a nossa natureza decaída e devolver-nos a dignidade que, por nossa culpa, perdemos. Neste sentido, Deus é o modelo da caridade perfeita ou fraterna.247 Mesmo com todo esforço de ordenar sua vontade a fim de amar os outros com perfeita caridade, o homem, por suas próprias forças, não consegue, precisa pedir a ajuda da graça divina: “Rogai a Deus a graça de vos amar uns aos outros”.248 Esse jeito de amar, mais do que uma virtude, é o maior dom de Deus e, sem a caridade, nenhum outro dom de Deus nos leva até Ele.249 Este dom é o único e verdadeiramente necessário que o homem deve buscar antes de qualquer outra coisa. “A caridade é a própria essência de 242 Comentário da 1ª Epístola de São João VIII, 5. Ibid., VII, 7 e VII, 9. 244 O livre arbítrio II, 18, 48. 245 A Trindade XIV, 8, 11. 246 A cidade de Deus XII, 1, 2. 247 Comentário da 1ª Epístola de São João IX, 3. 248 Ibid., X, 7 249 A Trindade XV, 17,27; 18,32 e 19,36. 243 114 Deus”.250 Portanto, a caridade fraterna é o próprio Deus amando, em nós e através de nós, a todos os homens, ela é uma realidade tão interior quanto o próprio Deus. Cada um deve sempre examinar sua consciência e verificar se possui a caridade, uma vez que, exteriormente, as suas obras podem confundir-se com as do orgulho.251 Assim, se, para encontrar a Deus e contemplá-Lo, é necessário um processo de interiorização, para vivermos a perfeita caridade, precisamos, igualmente, acompanhar os movimentos do amor em nosso coração a fim de percebermos o que ele nos leva a amar.252 Para Agostinho, a caridade não pode enclausurar-se somente no nosso interior, pois é de sua natureza agir e expandir-se em ações de amor fraterno253. Quem a possui, ama interiormente a Deus com todas as suas forças, ao mesmo tempo em que, do mais profundo do seu coração, transborda um amor benevolente e gratuito em direção a todos os homens: “A caridade interior nunca se interrompe! As obras da caridade, porém, se exercem conforme as exigências do tempo”.254 Nestas exigências do tempo, a caridade vai exteriorizar-se, mas a questão que se coloca é em direção a quem e de que modo? Primeiramente, Agostinho responde dizendo que: “todos têm direito ao nosso amor e caridade; isso é o mesmo que dizer que não 250 Ibid., XV, 17, 31. Cf. Comentário da 1ª Epístola de São João V, 6 e VIII, 9. 252 Cf. Confissões XIII, 9, 10. 253 “Se quereis conservar a caridade, irmãos, guardai-vos sobretudo de pensar que ela seja sem iniciativa, sem atividade” (Comentário da 1ª Epístola de São João VII, 11). 254 Ibid., VIII, 3. 251 115 existe ninguém que não tenha direito ao nosso amor”.255 Ele, de maneira especial, relaciona quatro tipos específicos de pessoas ou de próximos aos quais devemos expressar nosso amor-caridade: os parentes, os amigos, os pobres e os inimigos. Quanto ao modo, além de nos indicar o segundo mandamento: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”,256 ele preceitua: “Eis a regra da dileção: querer também para o outro o bem que se quer para si. E não querer para ele o mal que não se quer para si mesmo. E isso serve para todos os homens”.257 Neste sentido, devemos buscar para os outros todo bem que procuramos para nós mesmos; isto quer dizer que nenhum bem adquirido deveria ser possuído individualmente, ou melhor, todos os bens deveriam ser socializados. Entendido dessa forma, o simples cumprimento deste segundo mandamento já seria mais do que suficiente para tornar justa e igualitária qualquer sociedade humana. Dentro dessa compreensão de amar o próximo, de querermos para ele todo o bem que desejamos para nós, devemos também ajudá-lo a encontrar e possuir o seu Bem supremo; já que, só a fruição Dele lhe proporcionará a verdadeira felicidade, pela qual ele anseia, tanto quanto nós.258 Assim, estaremos cumprindo plenamente o preceito de amar o próximo como a nós mesmos. 255 Epístola 130, 6,13. Mt 22, 39. 257 A verdadeira religião 46, 87. 258 “Devemos querer acima de tudo que todos amem a Deus conosco, e que toda ajuda que lhes dermos ou que deles recebermos seja orientada para essa única finalidade” (A doutrina cristã I, 29, 30). 256 116 3.1 Amar o próximo – os parentes Para Agostinho, em primeiro lugar são os parentes os que têm direito a nossa caridade, porque Deus nos dotou, assim como aos irracionais, de uma afeição e de um amor instintivo por eles; de modo que, natural e socialmente, eles são o nosso próximo, mais próximo: “Em primeiro lugar está o cuidado com os seus, porque a natureza e a sociedade humana lhe dão acesso mais fácil e meios mais oportunos. Por isso, afirma o Apóstolo: Quem não provê aos seus, mormente se familiares, nega a fé e é pior que infiel”259 Embora devamos amar e fazer o bem a todos igualmente, em caso de nos depararmos com duas pessoas necessitadas, uma estranha e a outra um parente, e nossos recursos nos permitirem atender a apenas uma delas, é nosso dever socorrer, primeiramente, nosso parente. Em casos como estes, deve-se aceitar a proximidade de parentesco como se fosse algo determinado pela sorte: Todos devem ser amados de forma igual. No entanto, já que não podemos ser úteis a todos indistintamente, devemos atender de modo especial aos que estão mais ligados pelas circunstâncias concretas de tempo e de lugar, ou por quaisquer outras, de ordem diferente. Isso por assim dizer, como se fosse por sorteio. Deves considerar como determinado pela sorte o grau de proximidade que, por razão de circunstâncias 259 A cidade de Deus XIX, 14. 117 temporais, te ligou a cada um deles, de modo mais estreito.260 Agostinho ressalta que o amor aos nossos parentes não se deve basear apenas na afeição natural própria dos laços consanguíneos, pois esta não é suficiente para mantêlo por muito tempo; prova disso é a situação de instabilidade em que se encontram nossas famílias. Assim, se quisermos que realmente a estabilidade e a paz reinem nelas, é necessário que amemos os nossos familiares com um amor que esteja acima dos vínculos carnais: “É porque, chamando-nos a recobrar a perfeição de nossa primeira natureza, a mesma Verdade nos admoesta a resistir aos liames carnais e ensina que ninguém é apto para o reino de Deus se não se desprender desses vínculos carnais”.261 Portanto, além deste amor natural, devemos amá-los em Deus, porque a união que nasce da “caridade é superior a todas as outras”.262 Assim, alcançaremos a tão sonhada harmonia familiar, que Agostinho chama de “a paz doméstica”263: somente quando amarmos os nossos parentes com verdadeira caridade. A doutrina cristã I, 28, 29. Em outro texto, Agostinho diz: “Como não pode aliviar a sorte de todos os homens, a quem ama igualmente, pensaria faltar à justiça se não atendesse de preferência aos que lhe estão mais unidos” (A verdadeira religião 47,91). 261 Ibid., 46, 88. 262 Ibid., 47, 91. 263 A cidade de Deus XIX, 14. 260 118 3.2 Amar o próximo – os amigos Para Agostinho, também, os amigos devem ser amados com caridade. Os amigos são aqueles a que estamos ligados, não necessariamente por laços consanguíneos, mas por afeição. Porém, não bastam somente os vínculos afetivos para manter uma verdadeira amizade, pois esta se manteria somente enquanto durarem as atenções, as ajudas e as gratidões mútuas. Na ausência desses elementos, a amizade tenderia a se enfraquecer e correria o risco de desaparecer. Portanto, a caridade deve ser o fundamento consistente na amizade para que ela permaneça inabalável e faça os amigos felizes: “Só não perde nenhum amigo aquele a quem todos são queridos n’Aquele que nunca perdemos”.264 Quando a amizade tem Deus como fundamento, independente de quaisquer desequilíbrios, ela continuará viva, porque cada um procurará antecipar-se em seu amor pelo outro, já que, aquilo que os une, além da afeição própria deste relacionamento, é a mútua caridade. Os verdadeiros amigos são aqueles que suportam todas as dificuldades próprias da amizade, sem se deixarem abater ou perecer, justamente porque a cultivam e a fundamentam no amor de Deus. Agostinho sempre buscou e quis viver entre verdadeiros amigos265, pois estes são os mais doces laços das relações humanas266 e são justamente 264 Confissões IV, 9, 14. “Qualquer que seja sua situação, o homem não pode considerar a vida amiga, se não tiver outro como amigo” (Epístola 130, capítulo 2, 4). 266 Cf. A cidade de Deus XIX, 8. 265 119 eles que necessitamos ou devemos preservar: “Se possuímos tais amigos, é preciso rezar para conservá-los. Se, porém, não os possuímos, é preciso orar para os conseguir”.267 3.3 Amar o próximo – os pobres Para Agostinho, os pobres devem ser amados com caridade. Eles, geralmente, não estão ligados a nós por vínculos naturais e afetivos. Além disso, a própria condição econômica, social, cultural e até física em que se encontram mais nos afastam do que nos aproximam deles. Portanto, se o nosso amor por eles for movido apenas por interesses deste tipo é sinal que, de fato, jamais os amaremos. Então, só a verdadeira caridade pode nos aproximar dos pobres e nos fazer reconhecer neles o próximo, a quem devemos amar como a nós mesmos. Quem ama a Deus pratica seus ensinamentos e passa a ver em cada ser humano, carente de misericórdia, o seu próximo.268 É diante dos pobres que somos provados se realmente amamos a Deus e demonstramos realmente o que move as nossas ações: “Pode haver obra mais manifesta da caridade do que atender aos pobres?”269 Provamos que encontramos a Deus e estamos em comunhão com Ele se amamos os pobres, caso contrário, 267 Epístola 130, 6, 13. A doutrina cristã I, 30, 31-32. 269 Comentário da 1ª Epístola de São João VI, 2. 268 120 resta-nos ainda uma última chance: fazer da misericórdia para com os indigentes e necessitados o nosso caminho mais seguro para o encontro com Deus. É a caridade que nos une a Deus. Agostinho assevera que não devemos desejar que sempre existam pobres a fim de que não nos falte esta oportunidade de salvação. Pensar assim seria o mesmo que admitir que a nossa misericórdia não é autêntica, visto que ela não brota da verdadeira caridade. Quem age movido pela caridade não aceita que nenhum homem lhe seja inferior, ao contrário, tudo faz para torná-los iguais. Assim, aquele que ama com perfeita caridade, não se contenta apenas em dar do que lhe sobra; uma vez que ela desperta nele uma nova inquietude, chamada fome e sede de justiça, que o leva a lutar para corrigir as desigualdades sociais: Na verdade, não devemos desejar que haja miseráveis para termos ocasião de realizar obras de misericórdia. Tu dás pão a quem tem fome, mas melhor seria que ninguém passasse fome, que não tivesse ninguém para dar! Vestes o que está nu. Aprouvesse ao céu que todos fossem vestidos e que essa necessidade não se fizesse sentir! Todos esses serviços, com efeito, respondem a necessidades. Suprimi as carências e as obras de misericórdia cessarão. E as obras de misericórdia cessarão, quer dizer que o ardor da caridade cessará? Mais autêntico é o amor que dedicas à pessoa feliz, que não precisa de teus dons (...) Isso porque, prestando serviço a um necessitado, talvez deseje te exaltar diante dele (...) Ele está carente, tu lhe dás parte de teus bens, e porque dás, tu te imaginas superior àquele a quem dás. Deseja, ao 121 contrário, que ele te seja igual! Isso para que ambos estejam sujeitos Aquele a quem nada se pode dar.270 No sentido acima proposto, percebemos que “muitas coisas podem ser feitas sob a aparência do bem, mas que não procedem da raiz da caridade”.271 Nos relacionamentos humanos com aparência de caridade, também reside o egoísmo, e este consiste em querer o bem somente a si próprio, esquecendo-se do outro, mas também há a generosidade que é a doação de si ao próximo. Egoísmo e generosidade estão misturados no ser do homem: “Tratavase de um profundo desgosto pela vida, aliado ao grande medo de morrer. Quanto mais eu amava, creio eu, tanto mais odiava e temia a morte (...) tal era meu estado de espírito”.272 Portanto, se amamos a Deus, devemos nos aproximar dos pobres e não permitir que a mendicância os humilhe ainda mais; devemos devolver o que lhes pertence por direito, isto é, nosso supérfluo. O supérfluo dos ricos é o necessário dos pobres. Possuem bens alheios os que possuem bens supérfluos. Agostinho, quase no final da obra A Cidade de Deus, fala da paz temporal e da paz espiritual e afirma que o homem realiza a sua felicidade só quando há equilíbrio entre estas duas formas: Por paz temporal ele entende a satisfação das necessidades do homem; por paz espiritual, a da alma. Porém, ele acrescenta que não há paz 270 Ibid., VIII, 5. Comentário da 1ª Epístola de São João VII, 8. 272 Confissões IV, 6, 11. 271 122 espiritual sem a paz temporal. Com isto quer dizer que o fundamento, a base ou, melhor, a condição da paz espiritual é a paz temporal, isto é, a satisfação das necessidades materiais do homem. Santo Agostinho pergunta-se: o que é sobra? É o supérfluo. Então o versículo evangélico significa: daí aos pobres o supérfluo. Mas Santo Agostinho não pára aqui: Há que dar aos pobres como se fossem cães, as sobras? Excessivamente cômodo, mas pouco cristão. Santo Agostinho analisa profundamente o conceito de supérfluo. Supérfluo em relação a quem? Todo homem não está só, vive em sociedade; quando o supérfluo define-se dentro da sociedade, então ele não é considerado em relação a mim, como se eu estivesse sozinho no mundo ou se pudesse isolar-me dos demais. O supérfluo é definido em relação a mim porque sou “socius”, membro pertencente a uma sociedade. Por conseguinte, para definir o meu supérfluo, aquilo que para mim é supérfluo, devo definir em relação ao outro, diz Santo Agostinho. Portanto, define-se assim: aquilo que é supérfluo para você, é o necessário para o outro. Definido assim, o supérfluo adquire uma enorme importância social, ou seja, cada homem deve definir o seu supérfluo não em relação a si, mas em relação à necessidade da sociedade em que vive.273 Agostinho adverte quanto ao orgulho e a ostentação que, muitas vezes, aparentemente, promovem ações em prol da justiça social e que, exteriormente, confundem-se com as 273 SCIACCA, Michele Federico. 2002. 123 ações da caridade.274 Devemos distinguir o seguinte: enquanto os que possuem a perfeita caridade buscam realmente a igualdade entre os homens, os que agem por ostentação e orgulho, apesar das aparências, de fato, não desejam esta igualdade, visto que, com a chegada dela, desapareceriam as suas oportunidades de autopromoção. Devemos querer que todos os homens sejam iguais, pois a busca sincera e ativa desta justiça social é uma das mais profundas expressões da verdadeira caridade. 3.4 Amar o próximo – os inimigos Agostinho refere que a verdadeira caridade leva a amar os nossos inimigos, pois eles também estão incluídos naquela categoria de próximo, de modo que amá-los é um dever dos que amam a Deus: “Homem algum, de fato, está excluído por aquele que nos disse de amar o próximo”.275 Somente estendendo o nosso amor até o próximo (inimigos) estaremos cumprindo plenamente o preceito da caridade. Agostinho mesmo afirma: Estende o teu amor aos que estão próximos, mas, na verdade, ainda não chames a isso estender. Porque é a ti mesmo que amas, quando amas os que te estão “Ora, muitos fazem isso por ostentação, não por dileção” (Comentário da 1ª Epístola de São João VI, 2). 275 A doutrina cristã I, 30, 31. “Devemos amar até os inimigos” (Ibid., I, 29, 30). 274 124 estritamente unidos. Estende o teu amor até aos desconhecidos que não te fizeram nenhum mal. E vai mais longe ainda. Chega até a amar os teus inimigos. Sem dúvida, é isso o que o Senhor te pede.276 Deus nos pede para amá-los, porque Ele é o próprio modelo supremo do Amor e nos convida a imitá-Lo em sua perfeição. Portanto, assim como Ele ama igualmente a toda pessoa humana, dando-lhes a vida e distribuindo, igualmente, a bons e maus, os dons da natureza, será exatamente quando amamos até os nossos inimigos que O estaremos imitando em seu jeito de amar.277 Agostinho assevera que devemos amar os nossos inimigos, não porque nos odeiam, causam sofrimentos e nos fazem mal, não por esses motivos278, mas porque contemplamos neles algo de mais profundo, isto é, o fato de serem imagem e semelhança de Deus: “Como não haveria de ser invencível em seu amor, aquele que ama o homem como homem, isto é, como criatura feita à imagem de Deus”.279 Portanto, vamos amá-los não para que continuem sendo nossos inimigos, mas para que se tornem nossos irmãos e um dia possamos, juntos, desfrutar de Deus.280 Eles são nossos inimigos, porque estão distantes de Deus e ainda não O conheceram: 276 Comentário da 1ª Epístola de São João VIII, 5. Ibid., IX, 3. 278 “O que ama nele, não é o que cai sob seus olhos, ou sob os sentidos corporais. O que é preciso amar é a natureza humana perfeita ou em via de se aperfeiçoar, independentemente de suas condições carnais” (A verdadeira religião 46, 86. 89). 279 Ibid., 47, 90 280 Cf. Comentário da 1ª Epístola de São João VII, 10 e I, 9. 277 125 Nós não os tememos, na verdade, visto que não podem nos tirar aquele a quem amamos. Mas nós nos compadecemos deles, porque nos odeiam, tanto mais quanto estão distantes do objeto de nosso amor. E se acaso voltassem a ele, necessariamente ama-lo-iam, como o Bem beatificante, e a nós, como coparticipantes de tão grande bem.281 Agostinho insiste que devemos alcançar a perfeição da caridade, não somente pelo nosso esforço humano, mas também pela ajuda divina; portanto, devemos pedir a Deus a graça de amar sempre e a todos. “Rogai a Deus a graça de vos amar uns aos outros. Rogai para estardes sempre abrasados do amor fraterno. Seja para com o que já é vosso irmão, seja para com o inimigo, afim de que se torne vosso irmão”.282 Para Agostinho, só o amor tem o poder de converter um inimigo num irmão: “Teu amor faz um irmão daquele homem que era teu inimigo (...) Ama-o com amor fraterno. Ainda ele não é um irmão, mas já o amas como se o fosse”.283 Enfim, para alcançarmos a perfeição da caridade, devemos preparar um espaço interior para ela, esvasiando o nosso coração do amor do mundo e enchendoo do amor de Deus. Assim, nascerá em nós a caridade fraterna que deverá ser sempre alimentada nesta perfeição: Há dois amores: o amor do mundo e o amor de Deus. Se o amor do mundo fixar residência em nós, o amor de Deus não poderá entrar. Que se afaste o amor do mundo e tenha morada em nós o amor de Deus. Não 281 A doutrina cristã I, 29, 30. Comentário da 1ª Epístola de São João X, 7. 283 Id. 282 126 ames o mundo! Afasta de teu coração a má dileção do mundo, para o deixar encher-se do amor de Deus. És um vaso, mas ainda estás cheio. Derrama o que está em ti, para receberes o que não está.284 Agindo assim, tornar-nos-emos fortes o suficiente para, se necessário for, darmos a nossa própria vida por aqueles a quem amamos. 3.5 Amar o próximo – os frutos Para Agostinho, a caridade não gera benefícios apenas para os que são amados, ela também produz frutos maravilhosos na vida e no ser daqueles que amam, pois, se o que está na base de um relacionamento é a perfeita caridade, todos os envolvidos nele se beneficiam: “essa misericórdia, que exercemos para com um homem necessitado, Deus não a deixa sem recompensa”.285 Os maiores agraciados não são os que recebem da caridade alheia, mas sim aqueles que amam com caridade, ou seja, os que partilham, servem e doam-se aos outros, porque, se aceitamos que Deus é caridade, a lógica nos obriga a admitir que quem possui a caridade também possui a Deus. Quando o homem possui a Deus, torna-se plenamente livre, a ponto de Agostinho determinar: “Ama e faze o que quiseres”.286 Neste sentido, 284 Ibid., II, 8-9. A Trindade XV, 17,28. 286 Comentário da 1ª Epístola de São João VII, 8. 285 127 quando a raiz das ações é a caridade, não poderá surgir o mal287, mas somente o bem: Não se distingam as ações humanas a não ser pela raiz da caridade. Uma vez por todas, foi-te dado somente um breve mandamento: Ama e faze o que quiseres. Se te calas, cala-te movido pelo amor; se falas em tom alto, fala por amor; se perdoas, perdoa por amor. Tem no fundo do coração a raiz do amor: dessa raiz não pode sair senão o bem!.288 Quando amamos dessa forma, somos realmente livres, porque a nossa vontade já não quer outra coisa senão o bem de todos aqueles que são o nosso próximo. Acrescentamos, com Agostinho, que a grande realização da caridade é a de tornar-nos semelhantes a Deus, já que ela nos faz capazes de amar os outros, não somente como a nós mesmos, mas do modo como Deus os ama. A caridade permite amá-los com o amor do próprio Deus; pois a caridade não é outra coisa senão Deus amando, por meio daqueles que acolheram o dom do seu Amor: “O Espírito Santo, que procede de Deus, quando é outorgado ao homem, inflama-o de amor por Deus e pelo próximo, sendo ele mesmo o Amor”.289 Para Agostinho, a questão da semelhança do homem com Deus tem dois aspectos. O primeiro diz respeito ao momento da criação, quando Deus faz o homem a sua imagem e semelhança; nesse sentido “Quando esvaziares o coração do amor terreno, haurirás o amor divino. E nele logo começa a habitar a caridade da qual nenhum mal pode proceder” (Ibid., II, 8). 288 Ibid., VII, 8. 289 A Trindade XV, 17, 31. 287 128 todo homem carrega dentro de si esta imagem divina. Um segundo momento é quando o homem, por sua livre vontade, deve esforçar-se para imitar o modo de amar de Deus; neste último aspecto, tornam-se semelhantes a Deus os que O buscam e O amam verdadeiramente. Este segundo momento é, na verdade, uma restauração do primeiro, visto que, ao assemelhar-se a Deus pela caridade, o homem não está fazendo outra coisa senão restaurando em si a imagem divina deteriorada pelo egoísmo. Assim, ao tornar-nos semelhantes a Deus, a caridade nos faz também filhos seus: “A caridade é o único sinal que distingue os filhos de Deus dos filhos do demônio”.290 Pois, assim como entre os homens é a semelhança física o que caracteriza alguém como filho de outrem; do mesmo modo, o sinal distintivo dos verdadeiros filhos de Deus é, exatamente, a vivência da caridade. Embora muitos aleguem ser filhos de Deus, somente os que amam com caridade, de fato, o são. Portanto, se quisermos ser realmente felizes, não devemos perder tempo com amores particulares, egoístas e passageiros; ao contrário, amemos, sem reservas, a todos: parentes, amigos, inimigos e, especialmente, os pobres deste mundo. Seremos felizes nesta vida e por toda eternidade, se todas as nossas ações forem movidas pelo amor, mas não por qualquer amor, e sim por aquele que chamamos de amor fraterno ou de perfeita caridade. Para alcançar esta meta do amor eterno, precisamos nos amparar nos meios do poder temporal: a Justiça e o Estado. Passamos a descrever, nos itens seguintes, ainda dentro deste capítulo, como Santo Agostinho pensa estes meios em relação à dimensão ética e social do amor. 290 Comentário da 1ª Epístola de São João V, 7. 129 4 Fundamento da verdadeira justiça no estado: o amor Uma das quatro virtudes cardeais (ou cristãs) apresentadas por Agostinho é a justiça pela qual “nos uniremos com suma retidão ao bem ao qual com toda razão deveremos nos submeter”.291 Analisamos, agora, a importância do conceito de justiça no eudemonismo éticopolítico de Santo Agostinho, seus fundamentos e determinações. Para denunciar o estado de corrupção em que se encontravam os romanos, fruto dos vícios espalhados pelos deuses pagãos, e demonstrar que o Império Romano, por sua adesão aos cultos pagãos e promoção desses, já não podia ser mais chamado de República (ou Estado), Agostinho, num primeiro momento292, vai buscar em Cícero, tribuno romano, os argumentos necessários para afirmar que um dos elementos essenciais para que haja uma república é a Justiça, virtude que ele não encontra mais no Império Romano de seu tempo. Cícero, falando pela boca de Cipião, afirma: “República é coisa do povo, e povo não é um ajuntamento qualquer de indivíduos, mas uma associação de homens baseada no consenso do direito e na comunidade de interesses”.293 E coloca a justiça como fundamento da 291 Epístola 155, 1. A cidade de Deus II, 21. 293 A República I, apud A cidade de Deus II, 21. 292 130 concórdia, ao dizer que “aquilo que no canto os músicos chamam de harmonia, na cidade é a concórdia, o mais suave e estreito vínculo de consistência em toda república; que sem justiça não pode, em absoluto, subsistir”.294 Assim, no dizer de Cícero: Só existe república, isto é, coisa do povo, quando a mesma é governada com honestidade e justiça, seja por um rei, seja por um grupo de nobres, seja ainda, pelo povo todo inteiro. Ao contrário, se tais governantes forem injustos, já não existe mais república, pois não existirá a coisa do povo (...) E o povo mesmo não seria mais um povo se ele fosse injusto.295 No final de sua obra “A República”, Cícero lamenta a perda dos costumes antigos e as instituições dos antepassados que garantiam a continuidade da República romana: “por causa de nossos vícios, não por causalidade, da república nos fica o nome apenas, pois na realidade tempo faz que a perdemos”.296 Servindo-se das últimas palavras de Cícero, Agostinho comenta: “Se tais coisas fossem afirmadas depois da encarnação de Cristo, certamente não faltariam pagãos para atribuí-las à religião cristã!”.297 E vai mais além: “de acordo com as definições de Cícero, em que resumidamente consignou que era a república o que era do povo, nem mesmo ao tempo daqueles costumes e varões antigos, a romana jamais foi república, 294 Id. Id. 296 Id. 297 Id. 295 131 porque jamais conheceu a justiça”.298 Apesar de admitir que o que se chama de república romana foi mais bem administrada pelos antigos do que pelos de seu tempo. Assim como em Cícero, para Santo Agostinho, a justiça é a pedra angular da sociedade civil, pois, “desterrada a justiça, que é todo reino senão pirataria? Pois, também é punhado de homens, rege-se pelo poderio do príncipe, liga-se por meio de pacto de sociedade, reparte a presa de acordo com certas convenções”.299 No entanto, não podemos chamar a pirataria de República. Entretanto, para este, enquanto pensador cristão, a justiça não se encerra no puro conceito filosófico natural, mas adquire um sentido filosófico religioso, o qual tem uma estreita relação com a “verdadeira justiça”, cujo objetivo principal é o sumo bem do homem, ou a “verdadeira felicidade”, a ser alcançada em Deus. Assim, apesar de concordar com Cícero que a justiça fundamenta o Estado, Agostinho vai além da visão ciceroniana (fundada no direito natural) e, dentro de uma perspectiva filosófico-religiosa, transforma a justiça em “verdadeira justiça”, fundamentada no princípio da “divina ordem”, ou lei eterna, cujo caminho para alcançá-la é o duplo preceito evangélico da “verdadeira caridade” (amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo). O conceito ciceroniano de justiça foi retrabalhado por Agostinho, inicialmente, em O Livre Arbítrio, no qual adquiriu um caráter religioso, tendo como fundamento o 298 299 Id. A cidade de Deus IV, 4. 132 princípio da “divina ordem”. Enuncia ele: “Com efeito, nenhuma força, nenhum acontecimento, nenhuma catástrofe nunca conseguirá fazer com que não seja justo que todas as coisas estejam conformes a uma ordem perfeita”.300 Na referida obra, diante das interrogações apresentadas por seu interlocutor, Evódio, acerca da justiça praticada na sociedade (Cidade terrena), interpretada por este como lei (jus), Agostinho reconhece que existem, de fato, leis na sociedade. Entretanto, esclarece que devemos distinguir dois tipos de leis: A “lei temporal” e a “lei eterna”. A lei temporal é a lei dos homens, mutáveis e subordinados ao tempo; consequentemente, uma lei também mutável e sujeita a mudanças. A esta chamamos de “jus”, ou seja, “a lei que, embora justa, pode legitimamente ser mudada ao longo do tempo”.301 A outra, ao contrário, “é chamada Razão suprema de tudo, à qual é preciso obedecer sempre e em virtude da qual os bons merecem a vida feliz e os maus, vida infeliz, é ela o fundamento da retidão e das modificações daquela outra lei que justamente denominamos temporal”.302 Essa é a lei eterna e imutável. Apesar de reconhecer que a lei temporal pode (ou não) ser justa, fica claro que esta, para ser justa, deverá submeter-se à lei eterna.303 Em outras palavras, a lei temporal (jus) não tem vida própria, ou não se constitui em 300 O Livre Arbítrio I, 6, 15. Id. 302 Id. 303 “Na primeira, a temporal, só é justo e legítimo o que os homens para si tenham feito derivar da segunda, a eterna (...) aquela, em virtude da qual é justo que todas as coisas sejam inteiramente conformes à norma absoluta da ordem” (Id.). 301 133 um bem em si mesmo; ao contrário da lei eterna (verdadeira justiça) que se constitui em um bem em si mesmo (bem onto).304 Mais adiante, ainda em O Livre Arbítrio, Agostinho conclui o diálogo com Evódio, definindo que, “no tocante à justiça, que diremos ser ela senão a virtude, pela qual se dá a cada um o que é seu?”305 Essa é a “verdadeira justiça”, “que faz com que o único e supremo Deus, segundo sua graça, impere à obediente cidade que não se sacrifique a ninguém senão a Ele”,306 pela qual “nos uniremos com suma retidão ao bem, ao qual, com toda razão, deveremos nos submeter”.307 Pois, “quando a alma está submetida a Deus, impera com justiça sobre o corpo e, na alma, a razão, submetida a Deus, manda 304 Em outra oportunidade, em carta a Consêncio, Agostinho chega a identificar a Justiça com o próprio Deus, quando diz: “A justiça que vive em si mesma, sem dúvida, é Deus; essa vive imutavelmente. Assim como, porém, sendo ela a vida em si mesma, torna-se também a nossa vida, quando dela de qualquer maneira participamos, do mesmo modo enquanto justiça perfeita torna-se também nossa justiça, quando aderimos a ela vivamente. E seremos mais ou menos justos, conforme a nossa adesão a ela seja maior ou menor” (Epístola 120, 1). 305 O Livre Arbítrio I, 13, 27. Esse conceito reaparecerá, mais tarde, em A Cidade de Deus, quando, comentando acerca dos castigos eternos, por ocasião do juízo final, diz: “Não se deve, porém, negar que o fogo será, segundo a diversidade de merecimentos maus, para uns mais brando e para outros mais vivo, quer varie sua intensidade e violência segundo a pena merecida, quer arda por igual, mas nem todos lhe sintam por igual o sofrimento que causa” (A cidade de Deus XXI, 16), pois “a justiça é a virtude que dá a cada um o que é seu” (Ibid., XIX, 21). 306 A cidade de Deus XIX, 23. 307 Epístola 155, 1. 134 com justiça a libido e as demais paixões. Portanto, quando o homem não serve a Deus, que justiça há nele?”308 E, para alcançarmos ou possuirmos a “verdadeira justiça”, Agostinho aponta a caridade, ou “verdadeira caridade”, como virtude pela qual escolhemos, com justiça, as coisas a serem fruídas e as coisas a serem utilizadas.309 Nisso reside o fundamento da “verdadeira justiça” que consiste em dar a Deus, “Sumo Bem”, todo o nosso amor, no qual se encontra a justa medida a todos os outros valores criados, concordando com a definição já vista anteriormente de que “a justiça não é, senão, a virtude pela qual se dá a cada um o que é seu”.310 A justiça “que submete no homem a alma a Deus, a carne à alma e, por conseguinte, a alma e a carne a Deus”,311 pois “somente quem criou o homem pode torná-lo bem-aventurado”,312 ou verdadeiramente feliz. E este mesmo princípio ético-moral individual que recomenda que devemos amar a Deus sobre todas as coisas também recomenda que “cuidemos, pois, com todo esforço, de que cheguem a Ele também aqueles que amamos como a 308 A cidade de Deus XIX, 2. “A justiça não é outra coisa senão amar o que deve ser amado... O que, porém, devemos escolher como objeto mais digno de nosso amor, senão aquilo que é o melhor que podemos encontrar, isto é, Deus?” (Epístola 155). 310 O livre arbítrio I, 13, 27. 311 A cidade de Deus XIX, 4. 312 Epístola 155. 309 135 nós mesmos”,313 transformando-se em um princípio éticopolítico social, segundo o qual: “Como um só justo vive da fé, assim também o conjunto e o povo de justos viverão dessa fé que age pela caridade, que leva o homem a amar a Deus como deve e ao próximo como a si mesmo”,314 pois “uma coisa não é a ventura da cidade e outra do homem, pois toda cidade não passa de sociedade de homens que vivem unidos.315 Assim, ao introduzir o amor (ou a caridade cristã) como fundamento ético-político capaz de levar o homem e o Estado a alcançar a “verdadeira justiça”, Agostinho reformula o conceito de povo proposto por Cícero (fundado no direito natural), redefinindo-o como “o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos amados”.316 Daí que, para sabermos o que é um povo, basta 313 Id. A cidade de Deus XIX, 23. 315 Ibid., I, 15. Por isso, um ou dois anos antes de começar a escrever A Cidade de Deus, em passagem já anteriormente citada, Agostinho interrogava o Senador Volusiano sobre “quais leis de qualquer Estado se podem de algum modo confrontar com os dois preceitos nos quais Cristo diz que se compreendia toda a Lei e os Profetas: ‘Amarás o teu Deus (...) Amarás o teu próximo (...) Nelas se encontra a salvação de um Estado digno de louvor, pois não se funda nem se conserva melhor o mesmo do que mediante o fundamento e o vínculo da fé e da sólida concórdia, a saber, quando se ama o bem comum, que na sua expressão mais alta e verdadeira é Deus mesmo, e n’Ele os homens se amam mutuamente com a máxima sinceridade” (Epístola 137). 316 A cidade de Deus XIX, 24. 314 136 examinarmos os objetos de seu amor.317 Por isso, no final do Livro XIV, de A Cidade de Deus, ao analisar a origem, a natureza, o desenvolvimento e os fins das duas cidades, Agostinho toma como medida o amor: Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos homens, e tem esta por máxima a glória de Deus, testemunha de sua consciência.318 Ao colocar o amor como fundamento da justiça, Agostinho transforma não só o conceito de justiça, mas repensa a visão negativa que tinha do Império Romano. É por isso que, treze anos depois do que havia escrito no Livro II, Agostinho reaparece mais conciliador e, buscando um conceito próprio de povo, afirma: “O povo é o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos amados”,319 reformulando parcialmente as afirmações negativas que fizera no início da obra (Livro II) acerca do Império Romano. Ele assevera: “Não diríamos que não é povo ou que seu governo não é República, enquanto subsista o conjunto de seres racionais unidos pela comunhão concorde de objetos amados (...) de acordo com Os nossos costumes, diz Agostinho: “são julgados não pelo que cada um conhece, mas pelo que cada um ama; nem se tornam bons ou maus os costumes, senão pelos bons ou maus afetos” (Epístola 155). 318 A cidade de Deus XIV, 28. 319 A cidade de Deus XIX, 24. 317 137 isto, o povo romano é um povo e seu governo, República”.320 Entretanto, paralelamente a essa nova visão, Agostinho lamenta que, ao longo dos tempos, a República Romana se tenha corrompido. E, mais uma vez, retoma a sua posição de que a República Romana já não merece tal nome, pois não possui a “verdadeira justiça”, ao afirmar que, “em geral, a cidade dos ímpios, refratária às ordens de Deus, que proíbe sacrificar a outros deuses afora Ele, e, por isso, incapaz de fazer a alma prevalecer sobre o corpo e a razão sobre os vícios, desconhece a verdadeira justiça”.321 Agostinho conclui sua denúncia sobre a República Romana: A justiça consiste em que Deus mande no homem obediente, a alma no corpo e a razão nos vícios (...) e em que se peça a Deus a graça do merecimento e o perdão dos pecados e se dêem graças pelos favores recebidos”.322 Pois, “a verdade é que, se o homem não serve a Deus, a alma não pode com justiça imperar sobre o corpo, nem a razão sobre as paixões. E, se no homem individualmente considerado não há 320 Id. Ele já havia dito isso no Livro V, quando, servindo-se dos relatos de Salústio, afirma: “Os antigos e primitivos romanos, segundo nos ensina e lembra a História, como outros povos (...) eram ávidos de louvor, liberais em dinheiro e queriam a glória imensa e riqueza honesta. Amaram-na com ardente amor, por ela quiseram viver e não vacilaram em morrer por ela. Pelo amor à liberdade, primeiro, depois pelo amor ao domínio, e pelo desejo de louvor e glória, levaram a cabo diversas façanhas” (Ibid., V, 12 ). 321 Ibid., XIX, 24. 322 Ibid., XIX, 27. 138 justiça alguma, que justiça pode haver em associação de homens composta de indivíduos semelhantes?”.323 Logo, “onde não existe semelhante justiça não existe tampouco a congregação de homens, fundada sobre direitos reconhecidos e comunidades de interesses. E, se isso não existe, não existe o povo.324 5 Finalidade imediata do estado terreno: a ordenada concórdia ou a “paz temporal” Vimos anteriormente, quando da exposição do fundamento da justiça no Estado, que Agostinho apresenta um certo “vínculo da concórdia” como elemento determinante na concepção de Estado: “O que é, por outro lado, o Estado senão uma multidão de pessoas unidas entre si por um certo vínculo de concórdia?”,325 concórdia que não será alcançada sem a “verdadeira justiça”: “onde não existir verdadeira justiça não pode existir comunidade de homens congregados em concordes interesses”.326 E, como já visto, superando o conceito filosóficonatural ciceroniano de justiça, fundado no direito natural, transforma a justiça em um conceito filosófico-religioso, fundado no amor (a caridade): 323 Ibid., XIX, 21. Ibid., XIX, 23. 325 Epístola 138. 326 A cidade de Deus XIX, 21. 324 139 Então, para saber o que seja cada povo, deve-se ter em conta o que amam. Pois o povo é uma multidão de seres racionais associados pela concorde 327 participação nos bens que eles amam”, que não é senão o amor ou busca do bem comum: “um Estado louvável não se funda nem se conserva melhor do que mediante o fundamento da fé e da sólida concórdia, a saber, quando se ama o bem comum.328 Assim, fica evidente que a tarefa ou finalidade imediata do Estado terreno é proporcionar o bem comum, conforme atesta Agostinho, ao interpelar Ceciliano, Comissário imperial da África: “O que, porém, fazeis de bom em meio a tantas preocupações e fadigas, senão procurar o bem dos cidadãos? Com efeito, se não fazeis isto, então será melhor dormir noite e dia do que vigiar nas fadigas impostas pelo Estado, se estas não fossem de nenhum proveito para os cidadãos”.329 Isso leva a dizer que um dos fundamentos ético-políticos do Estado em Agostinho é a concórdia ou “paz temporal” que, por sua vez, enquadra-se em seu eudemonismo ético-político, uma vez que promover o bem comum é o mesmo que promover a paz ou felicidade temporal do homem. Além de identificar a concórdia ou “paz temporal” com o bem comum, Agostinho a classifica como o maior de todos os bens temporais a que os homens almejam, afirmando que: “tão grande, com efeito, é o bem da paz que, mesmo nos negócios terrenos e perecíveis, nada se possa 327 Ibid., XIX, 24. Epístola 137. 329 Epístola 151. 328 140 ouvir de mais agradável, nada procurar de mais desejável, nada encontrar de melhor. Podemos dizer da paz o que dissemos da vida eterna, a saber, que é o fim de nossos bens”.330 Para Agostinho, a paz é um bem imanente à natureza humana. Todos a desejam: bons e maus331, com efeito, “a paz é aspiração última de toda natureza e de todos os homens, mesmo os maus”332 e, consequentemente, o maior bem temporal que um Estado pode proporcionar. A paz, diz Agostinho, “é o bem supremo da cidade”.333 Sendo a paz um desejo imanente a todos os homens, a vida social aparece como uma necessidade interior ao homem; está na própria natureza humana viver em sociedade. Ainda em estado de inocência, os homens haviam buscado companhia. Por isso Agostinho afirma que “nenhum animal é mais feroz por vício, nem mais social por natureza que o homem”.334 Agostinho acrescenta, ainda, que todos os homens aspiram à paz, e que ninguém pode ser tão perverso que não queira viver em paz. Até os animais ferozes que vivem solitários, que brigam pela sobrevivência e pela alimentação e evitam a companhia dos outros animais da mesma espécie, em determinadas épocas do ano, juntamse para a procriação e para proteger seus filhotes. Quanto 330 A cidade de Deus XIX, 11. “Quem quer que repare nas coisas humanas e na natureza delas reconhecerá comigo que, assim como não há quem não queira ser feliz, assim também não há quem não queira a paz” (A cidade de Deus XIX, 12). 332 Id. 333 Id. 334 Ibid., XII, 27. 331 141 mais o homem, que é racional, que sabe distinguir o bem do mal e que, levado pelas leis da sua natureza a formar sociedade, deverá conviver o mais pacificamente possível com todos.335 6 Fundamento da ordenada concórdia ou paz temporal no estado: a verdadeira justiça Sendo a paz um bem natural almejado por todos os homens, bons e maus, Agostinho alerta-nos para os perigos na interpretação ou concretização deste tão sublime bem, pois muitos, por vontade ou livre arbítrio, subvertendo a “divina ordem”, constroem a paz a partir de interesses próprios e não tendo em vista o bem comum. 336 Para ele, a sociedade não cumpre a sua função, se nela não reinar a paz ou a ordenada concórdia, e esta não será possível enquanto não imperar a justiça entre os seus cidadãos. Neste sentido, a justiça é o fundamento da sociedade. Daí que, para evitar tal risco, Agostinho faz uma íntima relação entre a paz e a justiça, fundada no princípio 335 Cf. A cidade de Deus XIX, 12. “Os maus combatem pela paz dos seus e, se possível, querem submeter todos, para todos servirem um só. Odeiam a justa paz de Deus e amam a sua própria, embora injusta. Impossível é que não se ame a paz, seja qual for” (A cidade de Deus XIX, 12). Mas “quem sabe antepor o reto ao torto e a ordem à perversidade reconhece que, comparada com a paz dos justos, a paz dos pecadores não merece sequer o nome de paz” (Ibid., XX, 12). 336 142 da “divina ordem”, “que não é senão a virtude pela qual se dá a cada um o que é seu”.337 Assim, “a ordem é a disposição que às coisas diferentes e às iguais determina o lugar que lhes corresponde”.338 Da mesma forma que, ao falar da justiça, enquanto “justa associação de homens concordes”, Agostinho não está falando de uma justiça qualquer, mas da “verdadeira justiça”. Também, ao relacionar a justiça com a concórdia, ele não está falando de uma concórdia qualquer, mas da “ordenada concordia”, ou seja, a paz temporal que garanta a justa ordem, aquela que “subordina as coisas somente às dignas, as corporais às espirituais, as inferiores às superiores, as temporais às sempiternas”.339 Seguindo esse princípio, Agostinho afirma que “a paz entre o homem mortal e Deus é a obediência ordenada pela fé sob a lei eterna. A paz dos homens entre si, sua ordenada concórdia. A paz da cidade, a ordenada concórdia entre os governantes e os governados”.340 Partindo do princípio de que a paz é o melhor de todos os bens temporais, quando fundamentada na justiça, Agostinho admite até a guerra como instrumento justo de realização da paz, ou ser a paz o verdadeiro fim da guerra, pois, “com efeito, os próprios amigos da guerra, apenas desejam vencer e, por conseguinte, anseiam, guerreando, chegar à gloriosa paz. O homem, com a guerra, busca a paz, 337 O livre arbítrio I, 13, 27. A cidade de Deus XIX, 13. 339 Epístola 140. 340 A cidade de Deus XIX, 13. 338 143 mas ninguém busca a guerra com a paz”.341 Não que Agostinho defenda ser a guerra um bem em si mesma, mas que devemos fazer bom uso até das coisas más para alcançarmos o bem342, desde que em nome de uma causa justa, ou seja, as “guerras justas” são permitidas, mas só devem empreender-se por necessidade e para o bem da paz. Para que o Estado faça “guerra justa”, Agostinho apresenta o amor como princípio regulador; ou seja, que a mesma tenha como finalidade não a vingança e a maldade, mas o amor, ou o desejo de salvação do inimigo pecador: Se o Estado terreno observasse os preceitos de Cristo, nem mesmo as próprias guerras se fariam sem benevolência (...) Aquele, de fato, a quem se tira a possibilidade de fazer o mal é vencido com benefício dele mesmo. Assim, com tal espírito de misericórdia, se fosse possível, os bons fariam também as guerras, a fim de que, prevalecendo sobre as paixões licenciosas, fossem eliminados estes vícios que um justo governo deveria extirpar ou reprimir.343 E, mais uma vez, Agostinho adverte que a “guerra justa” não é um bem em si mesma. Ela é apenas um instrumento que nos leva à paz (bem comum), devemos usála em última necessidade: “A paz deve residir na vontade, e a guerra deve ser apenas uma necessidade, para que Deus 341 Ibid., XIX, 12. “A verdadeira virtude consiste, portanto, fazer uso dos bens e dos males e em referir tudo ao fim último, que nos porá na posse de perfeita e incomparável paz” (Ibid., XIX, 10). 343 Epístola 138. 342 144 nos livre da necessidade e nos conserve em paz!”.344 E, sempre dentro de seu espírito pacificador, recomenda antes o poder da palavra que o da guerra: “Mas, título maior de glória é matar a guerra com a palavra, antes de matar os homens com a espada; é procurar manter a paz com a paz e não com a guerra”.345 Como se vê, a “ordenada concórdia” está fundamentada na “verdadeira justiça” e esta, por sua vez, deverá estar assentada no princípio do amor. Mais uma vez, Agostinho apresenta o preceito da “verdadeira caridade”, expressão maior do amor ou do duplo preceito da caridade (amor de Deus e do próximo por causa de Deus) como caminho para se alcançar a “paz temporal” ou “ordenada concórdia”: “na falta da piedade ou da caridade, a paz deste mundo não passa de uma isca, um convite ou um reforço para a luxúria e a perdição”.346 O amor guarda a ordem do ser: “A piedade, pois, a saber, o culto do verdadeiro Deus, é útil para tudo: ela, de fato, nos ajuda a afastar ou avaliar as moléstias desta vida e nos conduz àquela vida de salvação em que não devemos mais sofrer nenhum mal, mas somente gozar do sumo e eterno Bem”.347 344 Epístola 189. Epístola 229. 346 Epístola 231. 347 Epístola 155. 345 145 7 A Paz e a “guerra justa” na história Desde Santo Agostinho, a questão da guerra justa é um desafio constante, até hoje, para a teologia, para a moral e para a praxe política das Igrejas. A formulação clássica da doutrina medieval sobre a guerra justa, recordada pelo Catecismo da Igreja Católica, publicado em 1992,348 procede de Tomás de Aquino349 e de Santo Agostinho. São quatro as condições estabelecidas para que uma guerra possa ser considerada justa: 1ª) que seja declarada pela autoridade legítima; 2ª) que haja uma intenção e uma causa justas: instaurar a justiça, restaurar a paz, castigar os culpados e defender a comunidade dos ataques injustos; 3ª) que a guerra seja o último recurso, uma vez esgotadas outras 348 Embora o Catecismo da Igreja Católica desenvolva, nos parágrafos, 2.302 ao 2.317, toda uma teologia da paz: a paz é a tranqüilidade da ordem, não é somente ausência de guerra, não pode ser obtida sem o respeito pela dignidade das pessoas e dos povos, sem a prática da justiça e da caridade, ele ainda recorda os elementos tradicionais enumerados na assim chamada doutrina da “guerra justa”. 349 Tomás de Aquino, assim como Agostinho e outros teólogos medievais, considera a guerra justa último recurso da suprema autoridade, legitimamente constituída. A guerra é um meio para defender ou reconstruir a paz interna e externa, a ordem e a justiça. O fim da guerra e sua reta intenção não é o castigo do inimigo, mas o bem comum da paz e da justiça. Citando Agostinho diz: “Removida a justiça o que são os Reinos, senão grandes latrocínios?” (Tomás de Aquino, 1, II/2, q. 34; q. 40, art. 1). 146 formas de solução; 4ª) que haja proporção entre os meios a serem utilizados e o fim para conseguir.350 Atualmente, questiona-se esta doutrina clássica da guerra justa e cresce a convicção de que, no marco das armas nucleares, não há possibilidade de que nenhuma guerra possa ser justa; todas as guerras são injustas e injustificáveis. O Concílio Vaticano II condena, na sua Constituição Pastoral Gaudium et Spes (Alegria e Esperança - 1965), a defesa com o uso de meios nucleares de aniquilação de massa como crime contra Deus e os homens: “Pelo progresso das armas científicas, o horror e a perversidade da guerra cresceram sem medida. Com o emprego dessas armas, as operações bélicas podem causar destruições enormes e indiscriminadas, que portanto, ultrapassam de muito os limites da legítima defesa”. 351 O Papa João XXIII, em sua carta encíclica sobre a paz, Pacem in Terris (1963), declara: “no nosso tempo, que se vangloria de possuir a força atômica, é irracional continuar a considerar a guerra como meio apropriado para restabelecer direitos feridos”.352 Esta encíclica marca a substituição da doutrina da guerra justa pela doutrina da paz justa, que é entendida como desenvolvimento social. A paz não pode mais ser definida a partir do conceito de guerra, mas se determina apoiando-se estritamente na tradição bíblica, como justiça em favor dos injustiçados socialmente, os pobres e famintos. Numerosos moralistas católicos resumem Neste item, o Catecismo assim se expressa: “Que o emprego das armas não acarrete males e desordens mais graves do que o mal a eliminar. O poderio dos meios modernos de destruição pesa muito na avaliação desta condição” (CIC, 2309). 351 GS 80. 352 PT 127. 350 147 esta visão nos seguintes termos: “As armas nucleares exigem uma nova ética da paz em que as distinções tradicionais entre pacifismo e guerra justa deixem de ter vigência. A oposição, por princípio, a todas as guerras é, hoje, a única posição ética cristã e humana”.353 A nova ética tem uma proposta: a paz justa. Nesta, o trabalho pela paz se apresenta como indissociável da luta pela justiça e, por fim, da opção pelos pobres. A paz justa é a condenação sem reservas da corrida armamentista como loucura, injustiça, crime e erro contra os pobres. O contraste manifesto entre superprodução profusa de material de guerra e a multidão de necessidades vitais não satisfeitas (países em desenvolvimento, os pobres que vivem à margem da sociedade de bemestar) representa em si e por si uma agressão que pode tornar-se crime: mesmo quando não usadas, as 353 Dicionário de Conceitos Fundamentais do Cristianismo. 1999, p.590. 148 armas matam, por seus altos custos354, os pobres ou os fazem passar fome.355 A busca da paz requer questionamento sobre as raízes dos atentados contra a paz em forma de guerra. Uma das raízes mais profundas costuma ser a diferença entre ricos e pobres e as assombrosas desigualdades socioeconômicas entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. A ética da paz tem sua base em uma ética da justiça, que implica a proposta de nova ordem econômica internacional igualitária e um modelo de desenvolvimento solidário com os povos do Terceiro Mundo e com os marginalizados do Quarto Mundo e o respeito da natureza como morada da humanidade. A proposta moral de uma paz justa não pode compartilhar com a moral judaica do Antigo Testamento que pede a Deus extermínio dos inimigos e fala de ‘guerra de Iahweh’, ou com a moral grega bélica, ou com a moral imperialista da paz romana, ou com a moral medieval das guerras justas, ou com 354 Quanto aos gastos bélicos, o mundo começa a ficar indignado. Surgem instituições em defesa da paz em muitos países. “Essas instituições fazem pesquisas e divulgam dados que têm impacto sobre a opinião pública mundial. Por exemplo: para cada dólar que a ONU gasta em missões de paz, o mundo investe 2 mil dólares em guerra; em 1997 foram gastos 740 bilhões de dólares em armas, o que representa 1 milhão e 400 mil dólares por minuto; em 2003, o total mundial de gastos militares chegou a 960 bilhões de dólares, o que representa mais de US$ 30 mil (cerca de R$ 100 mil) por segundo! Esses e outros dados alimentam uma indignação nova, e a população mundial é convidada a tomar posição” (Texto Base da Campanha da Fraternidade – 2005 Ecumênica, 51). 355 Comissão Pontifícia Justiça e Paz – A Santa Sé e o desenvolvimento, 1977. 149 a ética ilustrada e burguesa da paz, que considera a mesma como irrevogável mandato da razão prática, mas que defende também a guerra entendida como fator de promoção do progresso civilizador.356 Construir a paz é um dever de todos nós. Hoje, a guerra perde o apelo de ato heróico e passa a ser vista pelo seu lado trágico e desumano. Há que se construir uma cultura da paz. 8 Complemento: A “Paz justa” e o caráter social do Estado A paz é um valor, um dever universal e encontra seu fundamento na ordem racional e moral da sociedade que tem as suas raízes no próprio Deus, “fonte primária do ser, verdade essencial e bem supremo”.357 A paz não é simplesmente ausência de guerra e, tampouco, um equilíbrio estável entre forças adversárias, mas se funda sobre uma correta concepção de pessoa humana e exige a edificação de uma ordem segundo a justiça e a caridade.358 A paz é fruto da justiça, entendida em sentido amplo como o respeito ao equilíbrio de todas as dimensões da 356 Dicionário de Conceitos Fundamentais do Cristianismo. 1999, p. 591. 357 João Paulo II, Mensagem para a celebração do Dia Mundial da Paz, 1982. 358 Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 51. 150 pessoa humana. A paz está em perigo, quando não se reconhece o que é devido ao homem enquanto homem, quando não é respeitada a sua dignidade e quando a convivência não é orientada em direção ao bem comum. Para a construção de uma sociedade pacífica e o desenvolvimento integral de indivíduos, povos e nações, são essenciais a defesa e a promoção dos direitos humanos. Quando não há paz, é essencial a busca das causas e, em primeiro lugar, as que se ligam a situações estruturais de injustiça, de miséria, de exploração, sobre as quais é necessário intervir com o objetivo de removê-las: “Por isso, o outro nome da paz é o desenvolvimento. Como existe a responsabilidade coletiva de evitar a guerra, do mesmo modo, há a responsabilidade coletiva de promover o desenvolvimento”.359 Hoje, o atual sistema sócio-político-econômico mundial em vigor, de forma hegemônica, é internalizado em cada país e tende a destruir a democracia, liquidar com a ética e tornar supérfluos os parlamentos das nações.360 Sabese que todas as sociedades modernas e as democracias nasceram sustentadas pela tríade: cidadania, solidariedade e 359 Ibid., 52. “Domina cada vez mais, em muitos países americanos, um sistema conhecido como ‘neoliberalismo’; sistema este que, apoiado numa concepção economicista do homem, considera o lucro e as leis de mercado como parâmetros absolutos a prejuízo da dignidade e do respeito da pessoa e do povo. Por vezes, este sistema transformou-se numa justificação ideológica de algumas atitudes e modos de agir no campo social e político que provocam a marginalização dos mais fracos. De fato, os pobres são sempre mais numerosos, vítimas de determinadas políticas e estruturas freqüentemente injustas” (João Paulo II, Exortação Apostólica Pós-Sinodal Ecclesia in América. São Paulo: Ed. Paulinas, 1999, p. 92, nº 56). 360 151 construção do bem comum. Mas esses valores estão sendo sistematicamente mudados por um outro sistema: o "deus do mercado", que é a liberalização, a desregulamentação e a privatização,361 em todos os campos da sociedade, não só na economia. A lógica fundamental que preside o processo atual e que quase não encontra resistências obedece à lógica do capital. Essa lógica orienta-se, fundamentalmente, por valores e critérios identificados como referência exclusiva, fundados no individualismo (egolatria) e na concorrência. O processo hoje mundial, hegemonizado pelo capital, coloca a economia como eixo estruturador das relações mundiais. A lógica não é cooperativa, é competitiva. A crise reside em tomar os valores e os critérios dessa lógica como referências e critérios exclusivos daquilo que é bom, que é útil, que é desejável para toda a sociedade. Essa lógica está criando uma dupla cultura. A cultura da conquista: trata-se de conquistar novos mercados, conquistar posições, conquistar mais dinheiro, conquistar mais "status" pessoal; tudo é objeto de conquista, numa luta de todos contra todos, porque se trata de individualismo. É uma cultura, também, dos meios, dos instrumentos. O fim desse processo não é o ser humano, não são os povos. O fim é a acumulação cada vez mais crescente de bens e serviços, é a criação de riqueza e, por isso, o desenvolvimento da economia tem de ser viável, esquecendo que tudo isso, economia, mercado, mercadoria, é da natureza dos meios. 361 O ponto principal da desestatização consiste em vender empresas públicas aos capitalistas particulares, com o pretexto de reduzir a participação do Estado na economia, aumentar a eficiência e a rentabilidade das empresas. 152 São meios para atender a necessidades coletivas dos povos ou necessidades pessoais e individuais, porque esses são os fins. O ser humano não tem centralidade. A centralidade é ocupada pela busca acelerada e maximizada da riqueza. As pessoas são indivíduos e não pretendem mais viver juntas, mas buscam assegurar seu bem-estar material individual e maximizar sua utilidade individual. Em função disso, não se dá prioridade à solidariedade, à erradicação da pobreza, à luta contra as exclusões, contra o racismo, contra a xenofobia, mas ela é concedida à eficácia produtiva e à rentabilidade financeira em curto prazo. Essa lógica dominante está destruindo os laços de sociabilidade e a possibilidade de uma real democracia.362 Em que reside a crise do capitalismo? Na ordem do capital, hoje, mundializada, tudo se transformou em mercadoria, desde o sexo à mística, até à mercadoria mais direta, como produção material de bens e serviços. Não há mais espaço para as dimensões da gratuidade e da sociabilidade. A crise é esta: a razão utilitarista, aproveitadora, acumuladora, está ocupando todos os espaços da sociedade. Na sociedade, na qual todos dizem "eu", em 362 Tais conceitos, expostos acima, quando vivenciados no cotidiano social, traduzem-se no chamado darwinismo social que quer dizer desenvolvimento social baseado na luta e na seleção natural dos mais fortes sobre os mais fracos. É desta forma que o mercado - “sagrado” para os neoliberais nos divide entre “ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres”. E esse grande grupamento humano caminha à margem da própria cidadania, surgem então aqueles a que chamamos de excluídos. São os que estão fora das políticas públicas, não produzem para o sistema e não se enquadram nos padrões dominantes do sistema. 153 que há a guerra dos "eus", destroem os laços de sociabilidade. Portanto, a questão não é discutir se esse ou aquele procedimento é ético ou não; é discutir se este projeto é absolutamente antiético, porque ele se orienta por formas de relação de produção e de destruição e não de construção coletiva que implica a introdução de uma máquina de morte363 que atinge as sociedades, as classes, as pessoas, a humanidade; que atinge a natureza, pilhada sistematicamente; e destrói o nosso futuro, o futuro comum da terra, como planeta, como casa comum, e a humanidade, como filhos e filhas da terra. Há quem diga que, se não superarmos a crise desse capitalismo selvagem, poderemos ir ao encontro do pior. Poderemos conhecer, quem sabe dentro da nossa geração ainda, o destino dos dinossauros, talvez possa haver uma devastação fantástica de seres vivos, humanos e não-humanos. Cidadania, solidariedade, bem comum eram os princípios fundadores da sociedade moderna que, desaparecidos, agora, importa resgatá-los. Quanto à cidadania, nas suas três dimensões já conhecidas: a Para os “excluídos”, o sistema neoliberal preparou uma nova política: a morte. Seja pelo extermínio direto ou pela ausência de políticas básicas que garantam condições de vida. Este nefasto projeto político de morte visa eliminar este “excedente social”, sem lugar no mundo. São imigrantes, crianças, jovens, velhos, mulheres e homens que têm a morte como destino certo. Eles não são bonitos, não frequentam os shopping center, geralmente, são migrantes e desabrigados, carregam a expressão de dor, da revolta e do sofrimento, não se enquadram nos nossos padrões. Para quem os vê, é difícil crer que haja vida por dentro deles. Para o sistema, eles são números. 363 154 cidadania civil: garantir os direitos, as liberdades básicas de falar, de se comunicar, de se expressar; a cidadania política: garantir os meios de participação do poder por partidos, sindicatos, imprensa etc.; e a cidadania social: garantir os meios de uma dignidade mínima para os seres humanos, em termos de trabalho, saúde, relação social, qualidade de vida. A realidade mostra alguns dados: 1,9 bilhões de pessoas vivem com menos de um dólar por dia e 2,8 bilhões vivem com menos de dois dólares por dia; isto é, para mais da metade da humanidade, a vida não é sustentável. Essa economia é uma máquina de morte que as tritura, que as devora. Os cálculos já foram feitos. O sistema hoje integrado da economia e da política funciona bem, e muito bem, para 1,6 bilhões de pessoas. Ocorre que somos mais de seis bilhões para os quais a vida é um purgatório ou um inferno. Essa economia política é desastrosa para a humanidade, é absolutamente antiética, desde que a ética seja a forma de os seres humanos buscarem aquilo que é bom para todos, útil para as comunidades, que é desejável para estar conforme a natureza social do ser humano. Essa estratégia, hoje mundializada, impossibilita a democracia, destrói a ética. Um dos passos importantes dela é desacreditar o Estado e o mundo político, porque o Estado, e esta é a sua função, é o promotor e a garantia do bem comum. Hoje, é criticado e condenado, não o Estado burocrático ou Estado corrupto, mas o Estado em si, pura e simplesmente. Por quê? Porque ele impede, coloca barreiras à voracidade do capital e aos itinerários meramente individuais das pessoas que buscam o bem-estar individual; 155 e também dos políticos que representam, finalmente, a coletividade. Então, procura-se desacreditar essas instâncias, desmantelar o Estado, tornar ridícula a política. Precisamos estar atentos às críticas contundentes e contínuas que são feitas ao Estado e ao mundo político por toda a mídia. Há uma segunda intenção, que não é só a busca do combate à corrupção, o que é legítimo, mas é a busca da invalidação do Estado e das políticas, para deixar o campo limpo à voracidade individualista. O bem comum é entendido assim: o interesse daquele que ganha, de forma individual, converte-se em interesse geral, em bem comum; mas não deixa de ser individual. É preciso reordenar as prioridades, isto é, submeter a economia à política e a política à ética. Hoje, a economia tem uma natureza perversa que contradiz toda reflexão filosófica e a reflexão social dos últimos dois mil anos. Desde Platão e Aristóteles, a economia era sempre, e a palavra, filologicamente, significa isto: o atendimento das necessidades da casa. A economia não tem mais essa natureza. Transformou-se na técnica de enriquecimento linear e, cada vez mais crescente, às custas das classes e da natureza. A economia deve voltar a ser um capítulo da política, porque é na política que os seres humanos decidem as formas de produzir, as maneiras de distribuir e estabelecem os consensos de como, juntos, viver e sobreviver. A economia é da ordem dos meios e não da ordem dos fins. A política estabelece os fins para os cidadãos viverem em paz e alimentar a seguridade da sua existência coletivamente garantida. Entretanto a economia deve ser 156 submetida à política e a política à ordem ética. A ética com aquela dimensão, aquele senso dos seres humanos de buscarem a justa medida, o comportamento reto que se adapta a nossa natureza de seres sociais e que faz com que nossa convivência não seja uma trégua e um processo de guerra de todos contra todos, mas seja a construção coletiva da paz, como algo perene nos seres humanos. Reafirmar a primazia do ético e do políticodemocrático sobre o financeiro-econômico. Isso se faz ao reforçar a fonte de todo o poder que pode controlar esses processos, que é reforçar a sociedade civil com todos os seus movimentos. O segundo ponto é promover novas formas de representação política. Não bastam os partidos, porque partido é sempre parte de algo. É preciso estabelecer uma nova ponte entre o Congresso, governo e sociedade, que mais e mais se organiza em mil movimentos para que haja novas formas de poder e antipoder. Que o poder se descentralize. Que o consenso não seja negociado e construído só dentro do Parlamento, mas seja continuamente frutificado e amadurecido no diálogo com a sociedade civil e com todos os seus movimentos.364 364 O caminho é a participação. Engajar-se nas organizações do movimento social, fortalecer a democracia participativa por meio de conselhos populares, incentivar a gestão coletiva governo e sociedade, rever os padrões e quebrar preconceitos. O grande desafio que temos pela frente é a busca da plena cidadania para todos e o resgate dos Direitos Humanos. Temos, também, que investir numa representação política que venha defender os interesses dos trabalhadores e dos mais pobres e fazer com que o Estado garanta a justiça, a dignidade e os direitos fundamentais da pessoa humana. É fundamental que se fortifiquem a consciência e a organização política. Só assim os 157 Em terceiro, com esse novo diálogo, com essa interação do poder social com o poder político, pode-se garantir, postular e reforçar a busca do acesso a bens e serviços necessários e indispensáveis para uma vida minimamente digna a todos os cidadãos. Essa vida não vem por si mesma; vem por meio de muita pressão e negociação. Mediante a pressão e a negociação da sociedade com esse poder social e político, deve-se resgatar uma dimensão básica do Estado: a dimensão ética. O Estado não é só mecanismo de poder. Representa valores, sonhos e ideais que a sociedade quer ver realizados nos portadores de poder, que não devem ser corruptos, mas pessoas altamente éticas que apresentam, nas suas próprias vidas, nos seus percursos biográficos, na forma como manejam e gerenciam o poder, os valores da solidariedade, os valores éticos da colaboração e da transparência do poder. Hoje, com a recuperação do estatuto ético, o Estado ganha credibilidade. É necessário resgatar o caráter social do Estado, porque o próprio Estado, por sua natureza social, está sendo privatizado. Talvez ele seja a maior instituição que ainda não foi totalmente manipulada pelos interesses das grandes corporações multinacionais que o querem para garantir o mínimo de segurança e poderem circular dentro dos espaços econômicos. Recuperar o caráter social do Estado, isto é, que as políticas sociais do Estado não sejam relegadas a um só departamento: à Comunidade Solidária. Que as políticas sociais sejam imperativo e presença em todos os direitos dos trabalhadores e dos cidadãos e cidadãs, em geral, podem ser respeitados. 158 Ministérios, em todas as políticas, porque o Estado é instância delegada do poder popular e do poder social.365 Se a luta por essa sociedade que quer mais ética é resgatar o sentido da democracia como solidariedade e como busca do bem comum, hoje, globalizado, e de uma cidadania mais integrada, ela não é só desejável, mas é possível e produz frutos. Ela inviabiliza as artimanhas dos poderosos que, de costas à humanidade, reúnem-se para defender privilégios, estabelecer políticas que garantam os seus ganhos e continuam sacrificando e martirizando mais da metade da humanidade. Não é impossível que os caminhos sejam abertos para resgatarmos a democracia com o sentido de cidadania plena, com sentido ético nas relações sociais, com horizonte aberto em que não sejamos condenados a ser lobos uns dos outros, mas que possamos ser cidadãos concidadãos, filhos e filhas da alegria, e não condenados a viver e a sofrer num vale de lágrimas. Enfim, a paz justa é aquela que possibilita a segurança, a tranquilidade e a unidade. O trabalho pela paz se apresenta como indissociável da luta pela justiça e, por fim, da opção pelos pobres. A busca da paz requer questionamento sobre as raízes dos atentados contra a paz em forma de guerra. E a raiz, pelo menos, uma das raízes mais profundas costuma ser a assimetria entre ricos e pobres, as assombrosas diferenças socioeconômicas entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Por consequência, a ética da paz tem sua base em uma ética da justiça que 365 Cf. BOFF, Leonardo. 2000. 159 implica a proposta de nova ordem econômica internacional igualitária e um modelo de desenvolvimento solidário com os povos do Terceiro Mundo e os marginalizados do Quarto Mundo e o respeito da natureza como morada da humanidade.366 9 Instrumento garantidor da ordenada concórdia ou paz temporal no estado: o poder temporal O poder temporal, para Agostinho, é um dos elementos essenciais para preservação da “ordenada concórdia” ou “paz temporal” e está fundamentado no princípio da “verdadeira justiça”, ou da “divina ordem”,367 ou seja, que haja a subordinação das coisas inferiores (os mandados) às superiores (aos que mandam). Assim, no caso da paz doméstica, por exemplo, Agostinho afirma que é justo que “mandem os que cuidam, como o homem à mulher, os pais aos filhos, os patrões aos criados e obedeçam quem é objeto de cuidados, como as mulheres aos maridos, os filhos aos pais, os criados aos patrões”.368 366 Cf. Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. 1999, p. 590-591. 367 Princípio segundo o qual é justo que se “subordine as coisas somente às dignas, as corporais às espirituais, as inferiores às superiores, as temporais às sempiternas” (Epístola 140). 368 A Cidade de Deus XIX, 14. O mesmo princípio da justiça doméstica seria aplicado à cidade, fazendo da família um protótipo do Estado: “A casa deve ser o princípio e o fundamento da cidade. Por 160 Mais do que isso, a “verdadeira justiça” justifica também o uso do poder como força coercitiva (castigo), como punidora dos que desrespeitam a justa ordem, ou a “ordenada concórdia” entre os homens, segundo a qual, além de ser justo que uns mandem e outros obedeçam, é também justo que se castigue o infrator; isto é, aquele que não quer obedecer ao que manda: “se em casa alguém turba a paz doméstica por desobediência, é para sua própria utilidade corrigido com a palavra, com pancadas ou com qualquer outro gênero de castigo justo e lícito admitido pela sociedade dos homens, para reuni-lo à paz de que se afastara”.369 Não que o castigo seja um bem em si mesmo, mas um instrumento da justiça, pelo qual se aplica o princípio de “dar a cada um o que é seu”.Então, “o jugo da fé impõe-se com justiça ao pecador”.370 E entre os castigos sociais admitidos pela sociedade, e justamente aplicados para preservação da “ordenada concórdia”, está a escravidão. Agostinho não justifica a escravidão como um direito natural, como o fez Aristóteles. Deus não criou os homens para que dominassem seus semelhantes, mas somente os animais. Se a escravidão existe, deve ser vista como um castigo infligido à humanidade por conta de seus pecados. Assim, quando os vencedores transformam seus vencidos isso (...) deve a ordenada concórdia entre os que mandam e os que obedecem relacionar-se com a ordenada concórdia entre os cidadãos que mandam e os que obedecem” (Ibid., XIX, 16). 369 Ibid., XIX, 16. 370 Ibid., XIX, 15. 161 em servos, ou seja, numa classe socialmente inferior, isso acontece por merecimento do pecado.371 Agostinho assevera que as relações de poder devem ter, como princípio, a caridade, sem a qual o poder não será justo, isto é, “que não mande por desejo de domínio, mas por dever de caridade, não por orgulho de reinar, mas por misericórdia de auxílio”.372 Para Agostinho, a legitimidade do poder está na sua relação com Deus, do qual provém todo poder: “Não há autoridade que não venha de Deus”,373: Se, por conseguinte, se rende culto ao Deus verdadeiro, servindo com sacrifícios sinceros e bons costumes, é útil que os bons reinem por muito tempo e onde quer que seja. E não o é tanto para os governantes como para os governados. Quanto a eles, a piedade e a bondade, grandes dons de Deus, lhes bastam para felicidade verdadeira, que, se merecida, permite a gente viver bem nesta vida e conseguir depois a vida eterna.374 Agostinho faz uma estreita relação entre o uso do poder e a caridade, ao dizer que “nada é mais feliz para as coisas humanas que o fato de virem a obter o poder, por “A primeira causa da servidão, é, pois, o pecado, que submete um homem a outro pelo vínculo da posição social. Por natureza o homem não é escravo, mas por causa do pecado a escravidão penal está regida e ordenada por lei, que manda conservar a ordem natural e proíbe perturbá-la” (Id.). 372 A cidade de Deus XIX, 14. 373 Rm 13, 1. 374 A cidade de Deus IV, 3. 371 162 bondade de Deus, homens que vivem bem, dotados de uma verdadeira piedade”.375 Já em 390, muito antes de escrever A Cidade de Deus, Agostinho, apesar de elogiar o amor patriótico do pagão Nectário, governador de Calama, preocupado “em deixar, ao morrer, sua pátria incólume e florescente”,376 lamentava faltar-lhe o preceito da “divina caridade”, a única capaz de garantir a “verdadeira felicidade” dos cidadãos que não é senão levá-los a alcançar a pátria celeste. Ele diz: Também pelos serviços prestados à pátria terrena, se fizeres com amor vero e religioso ganharás a pátria celeste (...) deste modo, proverás, de verdade, ao bem de teus concidadãos a fim de fazê-los usufruir não da falsidade dos prazeres temporais, nem da funestíssima impunidade da culpa, mas da graça da felicidade eterna. Suprimam-se todos os ídolos e todas as loucuras, convertam-se as pessoas ao culto do verdadeiro Deus e a pios e castos costumes; e então verás a tua pátria florir não segundo a falsa opinião dos estultos, mas segundo a verdade professada pelos sábios, quando esta pátria, em que nasceste para vida mortal, será uma porção daquela pátria para a qual se nasce não com o corpo, mas Ibid., V, 19. E acrescenta: “Quem não é cidadão da cidade eterna, que em nossas Sagradas Letras chama-se cidade de Deus, é mais útil à cidade terrena quando tem, pelo menos, essa virtude que se carece dela. Os verdadeiramente piedosos, que à vida moral unem a ciência de reger os povos, constituem verdadeira bênção para as coisas, se, por misericórdia de Deus, gozam do poder. Tais homens, sejam quantas forem as virtudes que podem ter nesta vida, atribuem-nas à graça de Deus” (Id.). 376 Epístola 90. 375 163 pela fé, onde, após o inverno cheio de sofrimentos desta vida, florescerão na eternidade que não conhece ocaso (...), pois o amor mais ordenado e mais útil pelos cidadãos consiste em levá-los ao culto do sumo Deus e à religião. Este é o amor verdadeiro e pio da pátria terrestre, que te fará merecer a pátria celeste.377 Como se vê, para Agostinho, todas as instituições da sociedade, dentre elas, o poder, têm por fim último fazer arder no coração do homem o desejo expresso no PaiNosso: “Venha a nós o vosso reino”. Por isso, visto que amar a Deus e amar os homens é a mesma coisa, é necessário que as instituições sociais sejam moldadas pela caridade. Concluindo, pode-se afirmar que a ética agostiniana realiza-se à medida que se realiza a ordem moral, isto é, o amor. Orientando-se pela razão, o homem pode conhecer o bem, mas a vontade pode rejeitá-lo, porque, embora pertencendo ao espírito humano, a vontade é uma faculdade diferente da razão, tendo uma autonomia própria em relação à razão, embora seja a ela vinculada. A razão conhece e a vontade escolhe, podendo escolher, inclusive, o irracional, ou seja, aquilo que não está em conformidade com a razão, por exemplo, evitando fazer o bem e praticando somente o mal. Portanto, para vivermos bem, precisamos aspirar ao desejo da paz e da tranquilidade. Agostinho ensina a invocar o nome de Deus para conseguir essa tão sedenta paz: 377 Epístola 104. 164 Senhor Deus, concede-nos a paz, tu que tudo nos deste. Concede-nos a paz do repouso, a paz do sábado, uma paz sem ocaso. Essa belíssima ordem das coisas muito boas, uma vez cumprindo o seu papel, toda ela passará; porque terão tido um amanhecer e uma tarde.378 378 Confissões XIII, 35, 50. 165 166 CONSIDERAÇÕES FINAIS Santo Agostinho foi um pensador que conseguiu ser, ao mesmo tempo, poeta, filósofo, teólogo e sábio. Suas obras permanecem atuais, embora os séculos que nos separam delas. Seus ensinamentos filosóficos e suas virtudes são exaltados por muitos: “Pelo gênio agudíssimo, pela riqueza e sublimidade de doutrina, pela santidade da vida e pela defesa da verdade, ninguém ou certamente pouquíssimos, de quantos floresceram desde o início do gênero humano até hoje, podem ser comparados a ele”379. Todo o esforço intelectual e pastoral de Agostinho foi o de mostrar que a força da Razão e da Fé leva o homem a conhecer mais sobre a totalidade do ser humano. Os primeiros séculos do cristianismo representam um momento forte da relação fé e razão, principalmente, quando os cristãos entraram em contato com o pensamento filosófico grego, período das grandes questões teológicas e momento de desestruturação dos antigos valores que sustentavam a sociedade no Império Romano. Santo Agostinho se destaca neste ambiente e foi o grande baluarte da fundamentação filosófica do cristianismo até a Idade Média. O caminho da sua conversão é bastante conhecido por seus próprios escritos, evidenciados, principalmente, no 379 Pio XI, Encíclica Ad salutem humani generis. Apud, João Paulo II. Carta Apostólica Augustinum Hipponensem: pelo 16º centenário da conversão de Santo Agostinho. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 5. 167 primeiro capítulo desta obra.380 Mas é, sobretudo, mediante as célebres Confissões, obra que é, ao mesmo tempo, autobiografia, filosofia, teologia, mística e poesia, e, na qual, homens sequiosos da verdade e cônscios dos próprios limites se encontraram e se encontram a si mesmos. Também hoje, as Confissões de Santo Agostinho estimulam e comovem não só os crentes; também aquele que não tem fé, mas está à procura de uma certeza que, pelo menos, permita-lhe compreender a si mesmo, as suas aspirações profundas e os seus tormentos. A conversão de Santo Agostinho, dominada pela necessidade de encontrar a verdade, tem muito a ensinar aos homens de hoje, com frequência, tão desorientados ante o grande problema da vida.381 Aquela harmonia constante entre fé e razão vivida na Idade Média se vê ameaçada na época moderna que marca um período de progressiva separação entre a fé e a razão, atingindo seu apogeu com o iluminismo e teve como consequência a deformação da razão, levando-a a se tornar uma “razão instrumental ao serviço de fins utilitaristas, de prazer e de poder”.382 Como resultado desta caminhada histórica do homem, evidencia-se, hoje, que tudo aquilo que sustentava nossa forma de viver está em plena deterioração no que tange à religião, à economia, ética, sociologia e política; as mudanças são cada vez mais bruscas. Nesta crise de civilização cultural, não se fortalece a tradição e cada 380 As que ele escreveu no retiro de Cassicíaco antes do batismo (A vida feliz, Contra Acadêmicos e Solilóquios) e principalmente Confissões. 381 Cf. João Paulo II. 1986, p. 7. 382 João Paulo II. Carta Encíclica Fides et Ratio. São Paulo: Paulinas, 1998, nº 47. 168 pessoa se vê chamada a criar um projeto de vida muito particular. Percebe-se, então, que a tentativa da humanidade de criar uma cultura nova e racional, rejeitando toda e qualquer ligação entre fé e razão e entre Deus e os homens, ou seja, tirar Deus como possibilidade, princípio e fim, gerou uma cultura de morte, sem horizonte e sem sentido. Nesse sentido, pode-se dizer que não haverá encontro com a verdade para aquele que se detém apenas nos estreitos limites da razão e despreza a fé como possibilidade de transcendência. A razão, por si só, não alcança a plenitude do mistério. Santo Agostinho, com o auxílio do pensamento platônico, libertou-se do conceito da vida material obtido do maniqueísmo: “Instigado por esses escritos a retornar a mim mesmo, entrei no íntimo do meu coração sob tua guia (...) Entrei e, com os olhos da alma (...) e acima de minha própria inteligência, vi uma luz imutável”.383 Foi esta luz imutável que lhe abriu os horizontes imensos do espírito e de Deus. Compreendeu que em relação à grave questão do mal, que constituía o seu grande tormento,384 a primeira pergunta a ser feita não era de onde ele provém, mas que coisa é,385 e intuiu que o mal não é uma substância, mas uma privação do bem.386 Deus, portanto, concluía ele, é o criador 383 Confissões, VII, 10, 16. “Minha juventude cheia de vícios estava morta. Caminhava para a maturidade, e quanto mais avançava em anos, tanto mais vergonhosamente me deixava contaminar pelas coisas vãs” (Confissões VII, 1, 1). 385 “Eu pesquisava mal a origem do mal, e não enxergava o mal que havia na própria busca” (Confissões VII, 5, 7). 386 “Em ti o mal não existe de forma alguma; e não só em ti, mas em quaisquer criaturas tomadas em sua universalidade. Porque, fora da 384 169 de todas as coisas e não existe substância alguma que não tenha sido criada por Ele.387 Ele também compreendeu que o pecado se origina da vontade do homem, uma vontade livre e defectível: “era eu quem o queria, e ao mesmo tempo era eu quem não o queria: sempre eu. Não tinha uma vontade plena, nem decidida falta de vontade; daí a luta comigo mesmo, deixando-me dilacerado”.388 Agostinho, a partir dessa experiência, tem consciência de que os maiores obstáculos no caminho para a verdade não são de ordem teórica, mas de ordem prática, isto é, de ordem moral: “Admirava-me de agora amar a ti, e não a um fantasma em teu lugar. Mas, ao mesmo tempo, eu não era estável no gozo do meu Deus. Atraído por tua beleza, era logo afastado de ti por meu próprio peso, que me fazia precipitar gemendo por terra. Esse peso eram os meus hábitos”.389 Compreendeu, então, que uma coisa é conhecer a meta e outra alcançá-la, deduz, assim, que o homem não pode salvar-se a si mesmo, tão pouco no âmbito intelectual: tem que começar pela fé na autoridade da Palavra de Deus, para que a inteligência, liberta dos erros, assim como o coração do orgulho e da soberba, possa logo exercitar sua razão no caminho da verdade revelada. Foi, então, nas cartas de Paulo, que ele descobriu Cristo Mestre, como sempre o tinha venerado, mas também Cristo Redentor, Verbo encarnado, único Mediador entre Deus e os homens. tua criação nada existe que possa invadir ou corromper a ordem por ti estabelecida” (Confissões VII, 13, 19). 387 Cf. Confissões VII, 12, 18. 388 Ibid., VIII, 10, 22. 389 Ibid., VII, 17, 23. 170 Agostinho vê o esplendor da filosofia, era a filosofia do Apóstolo Paulo que tem Cristo como centro, poder e sabedoria de Deus, e que tem outros centros: a fé, a humildade, a graça; a filosofia que, ao mesmo tempo, é sabedoria e graça, pela qual se torna possível não só conhecer a pátria, mas também alcançá-la.390 Para Agostinho, todos os homens querem ser alegres e felizes, mas a verdadeira alegria só vem de Deus. A carne e seus apelos, a matéria, podem levar o homem a confundirse e a fazer aquilo que pode fazer, mas não aquilo que realmente quer fazer. Deus é a felicidade, porque é a verdade. E a alegria reside na verdade. Esta é uma só e Deus é a sua fonte. O homem deve invocar a Deus, mas este já habita nele. Para voltar a encontrar a verdade, tem de purificar sua alma, livrando-se, principalmente, do orgulho e da soberba, das comoções da carne, seguindo exemplo de Jesus Cristo, que foi, ao mesmo tempo, Deus e homem, verbo imortal e carne perecível. Este morreu para salvar o homem do pecado original. Depois da experiência com a Palavra de Deus, Agostinho reconduz toda sua doutrina e toda sua vida cristã à caridade, entendida como adesão à verdade para viver na justiça.391 A caridade constitui a alma de tudo, o centro de irradiação, a mola secreta do organismo espiritual. Na caridade, ele pôs a essência e a medida da perfeição cristã, como foi exposto no segundo e terceiro capítulos desta obra, nos quais se constatou que o sentido da existência humana passa pela vertente do mistério do amor: “Meu peso é o 390 391 Cf. Confissões VII, 21, 27. Cf. A Trindade VIII, 7, 10. 171 amor; por ele sou levado para onde sou levado”.392 Conforme Agostinho, o amor é o peso do coração capaz de fazê-lo inclinar-se para um lado ou para outro e cujo objeto da busca é sempre o bem, não no sentido moral, mas no sentido ontológico, isto é, o bem comum. O fim último dessa tendência amorosa do homem é a felicidade, isto é, o gozar do bem supremo, que é gozar do próprio Deus. “Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti”.393 Quanto a isso, todos concordam que todos os homens querem ser felizes, mas nem todos estão de acordo em que consiste a felicidade: nos prazeres, nas vanglórias, no poder, na fama, em Deus. Santo Agostinho ensina, portanto, que o amor em si é neutro e que pode ser bom ou mau, segundo seja ordenado ou desordenado. E ele será ordenado ou não, segundo se coloque ou não às exigências objetivas da ordem real e ontológica dos bens. Esta ordem consiste na primazia absoluta de Deus, que é o Bem Supremo. Pode-se concluir, então, que o amor ordenado é o amor que ama a Deus acima de todas as coisas, pelo mesmo Deus, a todos os demais e, portanto, de acordo com sua lei. É desordenado o amor que coloca acima de Deus algum bem criado, por amá-lo fora ou em contradição com as leis de Deus. Mas o que ama com amor ordenado, e somente este, tem a lei divina interiorizada no seu coração, gravada de tal maneira que, para ele, e só para ele, vale a máxima de Agostinho: “Ama e faze o que quiseres”.394 392 Confissões XIII, 9, 10. Ibid., 1, 1, 1. 394 Comentário da Primeira Epístola de São João 7, 8. 393 172 É, pois, na filosofia e teologia do amor que Santo Agostinho fundamenta a sua concepção filosófica e teológica da história. Quando, nA cidade de Deus, ele apresenta toda a história da humanidade como a história da luta entre duas cidades, a cidade de Deus e a cidade do mundo ou dos homens, as quais estariam constituídas, fundamentalmente, por dois amores: “Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial”.395 Portanto, sem a graça de Deus, o amor humano, necessariamente, volta-se, ilicitamente, sobre as criaturas, sob o peso da herança de Adão. Para Agostinho, é a morte de Jesus Cristo, Filho de Deus, na cruz, a que, abrindo as portas da graça celestial, torna possível o amor humano por cima de todos os seus próprios limites existenciais, fazendoo participar, pela fé e pela esperança da caridade divina: “Porque Deus é Amor”.396 Pelo amor pode-se chegar a uma atitude ética para com os outros. Este é o primeiro passo para o altruísmo e a fraternidade social, cujo resultado é a harmonia no convívio entre as pessoas. 395 396 A cidade de Deus 14, 28. 1João 1, 8. 173 174 ANEXO 1 RELAÇÃO DE OBRAS DE SANTO AGOSTINHO EM ORDEM CRONOLÓGICA Guilherme Fraile397 apresenta a seguinte relação, em ordem cronológica, de obras escritas por Santo Agostinho: 01 - De Pulchro et Apto (374) 02 - Contra Academicis (386) 03 - De Beata Vita (386) 04 - De Ordine (386) 05 - Soliloquia (386/387) 06 - De Immortalitate Animae (387) 07 - De Grammatica (387) 08 - De Quantitate Animae (387-388) 09 - De Musica (388-391) 10 - De Moribus Ecclesiae Catholicae et Manichaeorum (388) 11 - De Libero Arbitrio (388-395) 12 - De Genesi Contra Manichaeos (388-390) 13 - De Magistro (389) 14 - De Vera Religione (388-391) 15 - De Diversis Quaestionibus Octoginta Tribus (388-396) 16 - De Utilitate Credendi (391-392) 17 - De Duabus Animabus Contra Manichaeos (391392) 397 FRAILE, Guillerme. 1966, p. 191-231. 175 18 - Contra Fortunatum Manichaeos (392) 19 - De Fide et Symbolo (393) 20 - De genesi ad litteram Liber Imperfectus (393) 21 - Psalmus Abecedarius Contra Partem Donati (393) 22 - De Sermone Domini in Monte (393-396) 23 - Contra Adimantum Manichaei Discipulum (393396) 24 - Expositio 84 Propositionum ex Epistola ad Romanos (394-396) 25 - Expositio Epistolae ad Galatas (394 - 395) 26 - De Mendacio (394) 27 - De Continentia (394) 38 - Expositio in Epistolam ad Romanos Inchoata (394-396) 29 - Contra Mendicacium (395) 30 - De Agone Christiano (396) 31 - De Diversis Quaestionibus ad Simplicianum (396-397) 32 - Contra Epistolam Manichaei Quam Vocant Fundamenti (396-397) 33 - De Doctrina Christiana (397) 34 - Annotationes in Iob (397-400) 35 - Contra Hilarium (399) 36 - De Divinatione Deamonum (399) 37 - De Catechizandis Rudibus (400) 38 - Confessionum (400) 39 - Contra Faustum Manichaeum (400) 40 - De Concensu Evangelistarum (400) 41 - Ad Inquisitiones Iaunaurri (400) 42 - De Opere Monachorum (400) 43 - De Fide Rerum Quae Non Videntur (400) 44 - Quaestiones Evangeliorum (400) 176 45 - Contra Epistolam Parmeniani (400) 46 - De Baptismo Contra Donatistas (400) 47 - De Trinitate (412 - 420) 48 - De Bono Coniugali (401) 49 - De Sancta Virginitate (401) 50 - Contra litteras Petiliani (401) 51 - De Unitate Ecclesiae (401) 52 - De Genesi ad litteram (401-415) 53 - De Actis Cum Felice Manichaeo (404) 54 - De Natura Boni (405) 55 - Contra Secundinum Manichaeum (405-406) 56 - Contra Cresconium Grammaticum Partis Donati (406) 57 - Sex Questiones Expositae Contra Paganos (409) 58 - De unico Baptismo Contra Petilianum (411) 59 - Breviculus Collationis Cum Danatistis (411) 61 - De Gratia Novi Testamenti ad Honoratum (412) 62 - Contra Donatistas Post Collationem (412) 63 - De Peccatorum Meritis et Remissione et de Baptismo Parvulorum (412) 64 - De Fide et Operibus (413) 65 - De Spiritu et littera ad Marcellinum (413) 66 - De Videndo Deo (413) 67 - De Civitate Dei (412-426) 68 - De Bono Viduitatis (414) 69 - De Octo Quaestionibus ex Veteri Testamento (414) 70 - De Natura et Gratia (415) 71 - De Patientia (415) 72 - Contra Priscillianistas et Origenistas ad Orosium (415) 73 - De Origine Animae Animis ad Hieronymum (415) 177 74 - De Setentia Jacobi ad Hieronymum (415) 75 - De Perfectione Justitiae Himinis ad Eutropium et Paulum (415) 76 - Enarrationes in Psalmos (415 - 422) 77 - Tractatus in Joannis Evangelium (416-417) 78 - Tractatus in Epistolam Joannis ad Parthos (416) 79 - De Gestis Pelagii in Synodo Diospolitano (416) 80 - De Corretione Donatistarum (417) 81 - De Prasentia Dei (417) 82 - De Gratia Christi et Peccato Originali (418) 83 - De Gestis Cum Emerito Caesareensi Donatistorum Episcopo (418) 84 - Contra Sermones Arianorum (418) 85 - De Coniugiis Adulterinis (419) 86 - Locutionum in Heptateuchum (419) 87 - Questiones in Heptateuchum (419) 88 - De Nupitiis et Concupiscentia (419-420) 89 - De anima et eius Origine (419-420) 90 - Contra duas Epistolas Pelagianorum (420) 91 - Contra Gaudentium Donatistarum Episcopum (420) 92 - Contra Adversarium legis et Prophetarum (420) 93 - Contra Julianum Haeresis Pelagianae Defensorem (421) 94 - Enchiridium ad Laurentium (421) 95 - De Cura pro Mortuis Gerenda (421) 96 - De Octo Dulcitii Quaestionibus (422) 97 - Regula ad Servos Dei (423) 98 - De Gratia et Libero Arbitrio (426-427) 99 - De Correptione et Gratia (426-427) 100 - Retractationum (426-427) 101 - Speculum de Scriptura Sacra (427) 178 102 - Collatio cum Maximino Arianorum Episcopo (428) 103 - Contra Maximinum Arianorum Episcopo (428) 104 - Tractatus Adversus Judaeus (428) 105 - De Dono Perseverantiae (428-429) 106 - De Praedestinatione Sanctum (428-429) 107 - Opus Imperfectum Contra Juliano (430) 108 - Questionum Septemdecim in Ev. Secundum Mathaeum (data incerta) 109 - Expositio Epistolae ad Duodecim Tribus (data incerta). 179 180 REFERÊNCIAS Primárias AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona, 354-430. A doutrina Cristã: manual de exegese e formação cristã. Trad. e not. Nair de Assis Oliveira; rev. H. Dalbosco e P. Bazaglia. São Paulo: Paulus, 2002. 284 p. (Patrística; 17). ______. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Trad. Oscar Paes Leme. Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2003. v. 1, v. 2. (Coleção pensamento humano). ______. Cartas a Proba e a Juliana: direção espiritual. 2. ed. Trad. e not. Nair de Assis Oliveira, rev. E. Gracindo. São Paulo: Paulus, 1987. 100 p. (Série Espiritualidade). ______. A Trindade. 2. ed. Trad. e int. Agustinho Belmonte; rev. e not. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1994. 726 p. (Coleção patrística). ______ Confissões. 2. ed. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 1997. 450 p. (Coleção Patrística; 10). 181 ______ O Livre Arbítrio. 3. ed. 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Leomar Antonio MONTAGNA, possui Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUCPR; Curso de Especialização, ênfase em Ética, também, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUCPR; Pós-Graduação em História do Pensamento Brasileiro pela Universidade Estadual de Londrina UEL; Reconhecimento de Graduação em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE; Graduação em Teologia pelo Instituto Teológico Paulo VI de Londrina; Graduação em Ciências: Licenciatura de 1º Grau pela Fundação Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Mandaguari FAFICLEM e ... Curso de Graduação em Filosofia pelo Instituto Filosófico Arquidiocesano de Maringá IFAMA. Presbítero da Arquidiocese de Maringá, Pe. Leomar Antonio Montagna, atualmente, é Assessor da Pastoral Universitária, Diretor e Professor do Curso de Licenciatura em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Câmpus Maringá; Professor convidado da Faculdade Missioneira do Paraná (FAMIPAR) de Cascavel; Assessor e Professor da Escola Teológica Para Cristãos Leigos da Arquidiocese de Maringá. Membro do Conselho Editorial da Editora Humanitas Vivens LTDA – Editora On-line; PUBLICOU esta mesma obra em uma primeira edição on-line pela Editora Humanitas Vivens LTDA, disponível no site www.humanitasvivens.com.br. Autor do volume Como ler Agostinho, que será publicado na coleção Como ler os Pensadores, da Editora Humanitas Vivens LTDA, coordenada pelos professores Claudinei Luiz CHITOLINA e José Francisco de Assis DIAS. Autor de vários artigos para revistas e jornais, palestras e cursos de breve duração. Na área de Filosofia, atua, principalmente, nos seguintes temas: Filosofia, Ética, Filosofia Política, Santo Agostinho, História da Filosofia e História do Pensamento Brasileiro e Latino-americano. Na área de Teologia tem experiência 195 em Moral Social e Doutrina Social da Igreja. A presente obra. A ética como elemento de harmonia social em Santo Agostinho, procura demonstrar que o amor é o sinal distintivo dos cidadãos da Cidade Celeste e o fundamento da moral tanto individual quanto da sociedade humana e tem por meta a busca da felicidade do homem. O amor gera a concórdia que, num plano social, é a base de uma sociedade justa. Dessa forma, Agostinho faz da ordem social um prolongamento da ordem moral interior; assim, a organização dos homens em sociedade, fundamentada no amor, não tem outra finalidade senão garantir a paz ou felicidade temporal dos homens, com vista à paz eterna ou à verdadeira felicidade. Esta obra é composta de três capítulos. No primeiro capítulo, descrevem-se os caminhos da vida de Santo Agostinho, e, nele, o “Homem Agostinho”, identifica-se o homem enquanto humanidade em qualquer tempo e contexto. No segundo e terceiro capítulos, abordam-se os princípios da ética agostiniana e sua dimensão social que é o amor. Estudar a ética como elemento de harmonia social em Santo Agostinho é estudar o problema do amor. Para ele, o amor está na própria natureza humana. Trata-se de um apetite natural, pressuposto pela vontade livre, que deve, iluminada pela luz natural da razão, orientá-lo para Deus. O amor é, pois, uma atividade decorrente do próprio ser humano. O amor, neste sentido, é uma espécie de desejo. O desejo é uma tendência que inquieta o homem, fazendo-o querer possuir tudo aquilo que é distinto dele mesmo, tendo como fim último torná-lo feliz. Mas, para que o homem seja realmente feliz, é necessário que, por meio da virtude, ele ordene o seu amor-desejo em relação a todas as coisas e o oriente para Deus, único capaz de satisfazê-lo plenamente. No pensamento de Agostinho, o amor é intrínseco ao ser do homem do qual não podemos separá-lo. E, se há um problema, este não diz respeito ao amor como tal, nem à necessidade de amar, mas unicamente à escolha do objeto a ser amado, ao valor ou intensidade que se dá ao objeto amado, pois, em si, ele é um bem. Dentro do princípio da ordem dos seres, o amor é o parâmetro na hierarquia de valores das coisas a serem amadas. Nesta hierarquia das coisas a serem amadas, Deus aparece em primeiro lugar: a Ele deve-se amar com todo amor. Para Agostinho, a força maior da moral interior é o amor, expresso no duplo preceito da caridade: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. Palavras-chave: Santo Agostinho, ética, amor, patrologia, felicidade. 196