Um percurso sobre o falo na psicanálise

Transcrição

Um percurso sobre o falo na psicanálise
Artigos
Verdade e ideologia na psicanálise e no capitalismo
Oswaldo França Neto
“Novos sintomas” e declínio da função paterna:
um exame crítico da questão
Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso
e Roberto Calazans
A crítica como método no retorno a Freud
Marta Regina de Leão D’Agord
Um percurso sobre o falo na psicanálise:
primazia, querela, significante e objeto a
Ana Costa e Flavia Bonfim
Considerações psicanalíticas sobre os jogos
de esconder: do puti ao esconde-esconde
Humberto Moacir de Oliveira e Jacques Fux
Miragens perimetrais: sobre o erro como limite
Paulo Sérgio de Souza Jr.
O imaginário coletivo da equipe de enfermagem
sobre a interrupção da gestação
Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune
e Tânia Maria José Aiello Vaisberg
Resenha
Pela pluralidade da psicanálise
Psicanálise entrevista, v.1, organizado por Mara Selaibe
e Andrea Carvalho
Ana Patitucci
Dissertações e Teses
Estudos em T­eoria Psicanalítica
VOLUME XVII NÚMERO 2
Julho / dezembro DE 2014
ISSN 1516-1498
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica UFRJ
Alguns casos, nem neuróticos,
nem abertamente psicóticos
Christian Hoffmann e Rosana Alves Costa
Estudos em Teoria Psicanalítica
Novas expressões da religiosidade:
o que elas dizem sobre o sujeito em sociedade hoje
Anna Carolina Lo Bianco e Natália Vidal
v. XVII
n. 2
ISSN 1516-1498
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica
Instituto de Psicologia UFRJ
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Estudos em Teoria Psicanalítica
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ÁGORA
Estudos em teoria psicanalítica
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Revista semestral do Programa de Pósgraduação em Teoria Psicanalítica do
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Psiquiatra e psicanalista, Luxemburgo
Christian Hoffmann
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Université de Paris VII
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Universidade Federal
do Rio Grande do Sul
John Forrester
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Andrea Seixas Magalhães
Betty Fuks
Christian Dunker
Cláudia Braga Andrade
Doris Rangel Diogo
Marcio Tavares D’Amaral
Maria Inês Garcia de Freitas
Bittencourt
Nelma Cabral
Paulo Vidal
Regina Herzog
Roberto Menezes de Oliveira
Theodor Lovenkron
Vincenzo Di Matteo
Waldir Beividas
Juan Carlos Cosentino
Universidad de Buenos Ayres
Judith Feher Gurewich
Center for Literary and Cultural Studies,
Harvard University
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Universidade do Estado do
Rio de Janeiro
Luís Augusto Monnerat Celes
Universidade de Brasília
Luiz Fernando Dias Duarte
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Mário E. C. Pereira
Unicamp
Michel Plon
CNRS/Université Paris VII
Olivier Douville
Université Paris X Nanterre
Vladimir Pinheiro Safatle
Universidade de São Paulo
Zeferino Rocha
PUC Pernambuco
Zeljko Loparic
PUC São Paulo e Unicamp
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ISSN 1516-1498
Estudos em Teoria Psicanalítica
VOLUME XVII NÚMERO 2
julho/dezembro DE 2014
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica
Instituto de Psicologia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Laoreet Dolore Magna
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Ágora : estudos em teoria psicanalítica. vol. I,
n. 1 (1998) – Rio de Janeiro: Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica IP/UFRJ. vol. XVII, número 2. Rio de Janeiro,
julho/dezembro, 2014.
Semestral.
ISSN 1516-1498
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1. Psicanálise – Periódicos. I. IP/Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica.
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Sumário
Duis autem vel eum iriure dolor in hendrerit in vulputate
173
ISSN 1516-1498
Artigos
Novas expressões da religiosidade:
o que elas dizem sobre o sujeito em sociedade hoje_______ 177
Anna Carolina Lo Bianco e Natália Vidal
Verdade e ideologia na psicanálise e no capitalismo______ 187
Oswaldo França Neto
“Novos sintomas” e declínio da função paterna:
um exame crítico da questão_______________________________ 201
Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso
e Roberto Calazans
A crítica como método no retorno a Freud________________ 215
Marta Regina de Leão D’Agord
Um percurso sobre o falo na psicanálise: primazia,
querela, significante e objeto a___________________________ 229
Ana Costa e Flavia Bonfim
Alguns casos, nem neuróticos,
nem abertamente psicóticos_______________________________ 247
Christian Hoffmann e Rosana Alves Costa
Considerações psicanalíticas sobre os jogos
de esconder: do puti ao esconde-esconde__________________ 255
Humberto Moacir de Oliveira e Jacques Fux
Miragens perimetrais:
sobre o erro como limite___________________________________ 271
Paulo Sérgio de Souza Jr.
O imaginário coletivo da equipe de enfermagem
sobre a interrupção da gestação__________________________ 285
Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune
e Tânia Maria José Aiello Vaisberg
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Laoreet Dolore Magna
Resenha
Pela pluralidade da psicanálise___________________________ 299
Psicanálise entrevista, v.1, organizado por Mara Selaibe
e Andrea Carvalho
Ana Patitucci
Dissertações e Teses
Dissertações________________________________________________ 303
Teses________________________________________________________ 310
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Contents
Duis autem vel eum iriure dolor in hendrerit in vulputate
175
ISSN 1516-1498
Articles
New expressions of religiosity: what they say
about subjectivity and society today_____________________ 177
Anna Carolina Lo Bianco and Natália Vidal
Truth and ideology in capitalism
and psychoanalysis_________________________________________ 187
Oswaldo França Neto
“New symptoms” and paternal function decline:
a critical examination of the question____________________ 201
Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso
and Roberto Calazans
The critique as method in the return to Freud____________ 215
Marta Regina de Leão D’Agord
A course in psychoanalysis about the phallus:
primacy, quarrel, significant and object a________________ 229
Ana Costa e Flavia Bonfim
Some cases neither neurotics
nor obviously psychotics___________________________________ 247
Christian Hoffmann and Rosana Alves Costa
Psychoanalytic considerations on hide-and-seek
games: from Puti to Peekaboo_______________________________ 255
Humberto Moacir de Oliveira and Jacques Fux
Perimetrical mirages: on error as a limit_________________ 271
Paulo Sérgio de Souza Jr.
The collective imaginary of the nursing staff
about pregnancy’s interruption___________________________ 285
Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune
and Tânia Maria José Aiello Vaisberg
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Laoreet Dolore Magna
Review
For the plurality of psychoanalysis_______________________ 299
Psicanálise entrevista, v.1, organizado por Mara Selaibe
and Andrea Carvalho
Ana Patitucci
Dissertations and Theses
Dissertations_______________________________________________ 303
Theses_______________________________________________________ 310
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Artigos
Novas expressões da religiosidade:
o que elas dizem sobre o sujeito
em sociedade hoje
Anna Carolina Lo Bianco e Natália Vidal
Anna Carolina Lo Bianco
Professora do
Programa de
Pós-graduação em
Teoria Psicanalítica
da UFRJ. Bolsista do
CNPq.
Natália Vidal
Doutoranda pelo
Programa de
Pós-graduação em
Teoria Psicanalítica
da UFRJ.
Resumo: Nas últimas décadas surgiram novas expressões da religiosidade, manifestadas na proliferação das seitas engendradas
numa dimensão de contrato e troca entre os fiéis e Deus. O artigo
as compara com religiões tradicionais orientadas por um pacto
que, ao contrário, mantém a referência à alteridade e a impossibilidade de um arbítrio frente aos desígnios de Deus. Para além das
semelhanças que as unem — marcadas todas pela mesma busca da
felicidade e do alívio para o mal-estar —, há diferenças acentuadas
entre elas, que apontam para distintas configurações do laço social
e do sujeito que delas é efeito.
Palavras-chave: Psicanálise, religiões, seitas, contrato, pacto.
Abstract: New expressions of religiosity: what they say about
subjectivity and society today. In the last decades new expressions
of religiosity have arisen in the form of sects that entail a dimension of contract and exchange between the faithful and God. The
present article compares them with traditional religions that are
guided by the notion of a pact. The former keeps the reference to
alterity and considers it impossible for people to arbitrate when
facing God’s will. In spite of their similitude — both sects and
traditional religions are in search of happiness and relief from all
kinds of discomfort in society — there are important differences
between them pointing to diverse social bonds and hence different subjectivities.
Keywords: Psychoanalysis, religions, sects, contract, pact.
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Anna Carolina Lo Bianco e Natália Vidal
B
asta uma olhada superficial na paisagem das principais cidades brasileiras,
para vermos a profusão de monumentais construções que abrigam um sem
número de templos das mais variadas seitas. Surgidas, em geral, há pouco mais
de duas décadas, indicam a ubiquidade do que podemos considerar novas expressões da religiosidade. Um olhar psicanalítico nos permite localizar no constante
recurso às novas religiões e no sucesso que alcançam importante dimensão do
tipo de vínculo que prevalece em nossa vida em sociedade.
Os cientistas sociais muitas vezes apontam para o poder organizador não
desprezível destes movimentos (por exemplo, BOURDIEU, 1987). E não seria
difícil, na comparação entre famílias que se afiliam às seitas e as que não o fazem,
reconhecermos os efeitos positivos que o pertencimento a um grupo religioso
frequentemente traz — sobretudo se pensamos em uma sociedade violenta, com
os alarmantes índices de criminalidade — em especial homicídios como os que
caracterizam nossas grandes cidades e suas populações. No entanto, acreditamos ver nas seitas efeitos apaziguadores que devem ser questionados, pois eles
próprios, numa reviravolta não muito complexa, poderão ser encontrados quase
sempre nas mesmas raízes dos fenômenos de violência. Hoje, grande parte dos
conflitos em curso em diferentes partes do globo, a despeito de suas características
e causas diversas, traz, entre estas últimas, motivos religiosos. A intolerância que
neles têm lugar e seu correlato necessário — a violência — colocam em lados
opostos até os adeptos de uma mesma religião.
Por isso, é interessante nos perguntarmos que subjetividades estão aí implicadas e como elas se articulam e sustentam os laços sociais que habitamos (LO
BIANCO, 2007). A partir daí, podemos esboçar uma diferença relevante e uma
inflexão marcante que se anunciam na vida social, refletindo-se nas instituições
religiosas, que deixam então de ser consideradas apenas como uma resposta
homogênea ao mal-estar e ao sofrimento com que nos defrontamos no dia a dia
da cultura, para serem indicadores privilegiados das circunstâncias da própria
vida cultural.
A religião do pacto
Ao criar o que foi considerado por Lacan (1967-1968/2001) o último mito
moderno — Totem e tabu —, Freud (1913/1996) encontra os meios para falar
da primeira forma de manifestação religiosa: o totemismo. Reconhece então a
sua articulação necessária com configurações sociais e obrigações morais que
constituem estas últimas.
Macho e forte, o pai era senhor da horda inteira, possuía todas as mulheres e exercia poder ilimitado e violento sobre os filhos, os quais acabaram por
assassiná-lo (FREUD, 1913/1996). Entretanto, se o haviam odiado, veneravam-no
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Novas expressões da religiosidade: o que elas dizem sobre o sujeito em sociedade hoje
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como arquétipo e, em realidade, cada um deles queria ocupar o seu lugar. Ao
parricídio sucedeu-se uma época durante a qual os irmãos lutavam entre si pela
herança paterna; mas logo a lembrança da façanha que os havia livrado do estado
de avassalamento em que se encontravam, assim como o sentimento que partilhavam acerca daquele tempo, levou-os finalmente a se unirem e a fazerem um
pacto. Freud diz que: “nasce assim a primeira forma de organização social com
renúncia do pulsional, reconhecimento de obrigações mútuas, estabelecimento
de certas instituições que se declararam invioláveis (sagradas); vale dizer: os
começos da Moral e do Direito” (1939/1996, p.79).
Desta maneira, estabeleceram-se o tabu do incesto e as leis da exogamia que
sustentam a organização social (FREUD, 1913/1996).
É nesta configuração social regida pelo pacto que surge o totemismo — a
primeira indicação da religião na história humana —, que encontra no totem
a figura paterna e tem no banquete totêmico a expressão da ambivalência de
sentimentos para com o pai assassinado e amado (idem). A força do mito
de origem freudiano está nas condições que ele oferece para que venham a
se alinhar no mesmo fio todas as religiões que então se sucederam (FREUD,
1939/1996). Elas sustentam, e ao mesmo tempo revelam, o pacto sobre o qual
se erige a sociedade.
Por certo, o sujeito que resulta de tal arranjo social é propriamente sujeito
ao pacto — portanto, às renúncias e limites que este institui (CZERMAK, 2013).
Vale dizer, é aquele que deixa de resolver os conflitos com os meios da violência
exercida por um só, ou por indivíduos, e se submete às instituições que expressam
o poder de uma comunidade. As leis dessa nova associação determinam agora
a medida em que cada um deve renunciar à liberdade individual de obter o seu
bem a qualquer custo, para que venha a ser possível a convivência em sociedade,
assim como, ao mesmo tempo, o exercício do desejo. Surge, nas boas hipóteses,
o sujeito obrigado a afastar ou pelo menos a manter sob controle suas demandas,
tendências e inclinações, que serão atendidas apenas até o ponto em que não se
sobreponham ao bem comum (FREUD, 1929/1996).
A instauração dos monoteísmos, elegendo um deus-pai único que governa
sem limitação, bem como o rito da comunhão, quando os fiéis incorporam a
carne e o sangue de Jesus, são exemplos que repetem o sentido e o conteúdo
do antigo banquete totêmico. Guardam a dimensão de partilha dos mesmos
sentimentos, os quais garantem um lugar simbólico para o pai, entre os irmãos
da horda (FREUD, 1939/1996).
Contudo, subjacente às obrigações morais e aos marcos institucionais que
advém como herança das sociedades totêmicas, encontra-se um aspecto ainda
mais fundamental e determinante para o sujeito: seu advento por referência ao
desejo (LACAN, 1959-1960/1997). Ora, em Totem e Tabu (1913/1996) Freud chama
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a atenção para o caráter primordial e imperativo do desejo sobre a moral e as
demais aquisições culturais. Nele vemos que não é o primeiro momento (assassinato do pai) que funda a Lei e as obrigações com o totem (caráter religioso),
mas a identificação dos filhos a esta figura que se faz presente, num segundo
momento, sob a forma de um sentimento de culpa. Foi diante desta ambivalência
de sentimentos quanto ao pai, posto que cada filho aspirava tornar-se como ele,
ocupar o seu lugar, no que ele era tão temido quanto invejado, que se recorreu
ao pacto, como vimos, para a assunção de uma nova ordem (LACAN, 19691970/1992). Esta foi erigida sobre as interdições fundamentais a que se refere
Freud (1913/1996) — dormir com a mãe e as irmãs — as quais, cabe salientar,
guardavam uma intrincada relação com o desejo, pois diziam respeito às ações
para as quais se podia identificar uma forte inclinação do sujeito (FREUD,
1913/1996). Se fosse facultado a cada irmão a livre satisfação dessa inclinação,
o laço social seria inviável, pois entre eles travar-se-ia a mesma luta de vida ou
morte que, os opondo ao pai, levara ao assassinato do mesmo. Para que a vida
em comunidade fosse possível impôs-se a necessidade de renunciar aos objetos
referidos acima (a mãe e as irmãs) e, com eles, a uma parcela significativa de
sua vida sexual.
O que o mito totêmico situa, portanto, é a origem do laço social e da religião
como fundado por um pacto que obedece a um imperativo de constituição do
sujeito. Mas trata-se de um pacto ao qual subjaz a dívida simbólica com o pai,
pois é ele que faz referência à livre satisfação como impossível ao mesmo tempo
em que abre as vias para o exercício do desejo articulado à cultura (LACAN,
1959-1960/1986). Podemos pensar nessa dívida simbólica com o pai que o mito
veicula — e que encontra expressão nas obrigações religiosas em relação ao
totem — como uma referência à dimensão de perda que, como vimos, marca
a constituição de cada sujeito quando se torna sujeito à vida em comunidade
(MELMAN, 2011).
Contudo, conforme avançamos em direção à modernidade vemos a elisão
dessa dimensão de pacto que havia sido, propriamente, o que viabilizara a vida
em sociedade. O Estado Moderno, em suas bases contratuais, se assenta na ideia
de um laço social fundado na livre iniciativa do sujeito, culminando, ademais,
numa pretensa relação entre iguais. As restrições à livre satisfação do sujeito passam a ser creditadas à vontade geral dos cidadãos, elidindo, assim, que se devam
a um imperativo de sua estrutura, com viemos demonstrando. E as instituições
às quais a coletividade sacrifica (supostamente por vontade própria) essa satisfação, emergem como aquelas que poderiam garantir, em troca, a manutenção
de um equilíbrio e harmonia mínimos quanto à convivência humana ou, ainda,
restituir o que foi perdido.
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Novas expressões da religiosidade: o que elas dizem sobre o sujeito em sociedade hoje
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Não tendo por objetivo uma análise minuciosa do período, nos limitamos
a apontar na passagem para a modernidade a ênfase no caráter consensual do
contrato em oposição à assimetria que marca a ideia anterior de pacto. Trata-se
de uma questão importante em nossa argumentação sobre as diferenças que
separam as religiões tradicionais das novas seitas religiosas, pois, conforme
referidas a uma ou outra dimensão — pacto ou contrato — cada uma delas nos
dará notícias da dimensão ética em que se constitui o sujeito ou, ainda, de sua
elisão. Ética, porque mais do que uma realidade biológica e/ou social, o sujeito
da psicanálise é um sujeito dividido entre as exigências da cultura e a possibilidade de, submetendo-se a elas, ultrapassá-las no exercício do desejo. Ora, o laço
social fundado no pacto confronta o sujeito com essa divisão, a qual lhe impõe
uma perda — de gozo, de liberdade, de mestria — e um mal-estar inerentes à
cultura, frutos do conflito que então se coloca entre suas disposições e a vida em
sociedade. Este conflito decorre, também, da desigualdade inata e não eliminável
entre os seres humanos, a qual constantemente gera tensões insolúveis que ainda
assim terão que ser domadas ou reguladas (FREUD, 1933/1996). Sendo o mal-estar que atravessa a cultura irredutível, o pacto impõe ao sujeito uma perda
irrevogável, para a qual não há nenhuma possibilidade de restituição. Ao passo
que o laço social que enfatiza a dimensão do contrato, que identificamos como
próprio às novas seitas religiosas, ao contrário, elidem a dimensão de pacto que
atravessa suas instituições, assinalam a possibilidade de uma negociação que se
buscará reparar.
Perde-se de vista, assim, o que o sujeito tem que pagar por sua entrada na cultura, ou seja, a dívida simbólica a que aludimos antes (LACAN, 1962-1963/2004).
Tal dívida inscreve-se nas próprias origens desse significante — pacto — que a
psicanálise identifica no fundamento da sociedade e na gênese dos principais
sistemas religiosos. O referido significante tem sua origem no termo latino pactum — substantivo formado, por sua vez, a partir do verbo pangere, que significa
“cravar, fixar, unir, determinar por acordo” (ETIMOLOGÍA DE PACTO, 2014).
Este verbo se encontra na raiz etimológica de termos ainda hoje importantes
por sua referência ao laço social. Entre eles destacamos o substantivo pax, ou
seja, “vínculo e acordo bem travado que acaba com uma situação bélica”, de
onde vêm termos como “paz”, “pacífico”, “pacificar” e “pagar” (SIGNIFICADO
E ORIGEM DE PACTO, 2014). Este último acabou por desenvolver em latim o
valor de “acalmar a um credor”, valor este que não possuía originalmente: pagar
se dizia solvere (ETIMOLOGÍA DE PACTO, 2014).
O que a etimologia de “pacto” nos permite perceber é que, mesmo quando
este termo designava um acordo, sua ênfase recaía na dimensão do laço (e do
conflito que lhe é inerente). E, ainda que celebrado entre duas partes, pressupunha um terceiro — aquele a quem cabe pagar — da mesma forma como, no
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Anna Carolina Lo Bianco e Natália Vidal
mito totêmico, a ordem social é formada por referência a um lugar de exceção
— aquele do pai. Exclui-se, assim, a possibilidade de uma relação simétrica,
de sustentação do laço social por uma ordem de equivalências. A referência a
um registro terceiro obedece à própria estrutura da linguagem (LACAN, 19681969/2008), a qual, ela mesma, exclui a possibilidade de uma relação unívoca
— portanto simétrica — entre seus elementos (por exemplo, entre significante
e significado), dando lugar ao jogo metafórico e metonímico que lhe é próprio (LACAN, 1957-1958/1998). É esse mesmo deslizamento que nos permite
perceber que, na evolução de seus significados, “pacto” veicula-se desde muito
cedo à necessidade de um pagamento — seja da parte do sujeito, seja da coletividade. E, sendo a dívida a que nos referimos antes eminentemente simbólica,
esse pagamento não encontra equivalência nos objetos da realidade. Fica assim
excluída para qualquer religião fundada numa dimensão de pacto a possibilidade
de uma negociação e/ou troca entre o sujeito e este lugar de exceção a que nos
referimos acima (ou seja, entre o fiel e Deus) — é aqui que podemos falar de
um sujeito e de seu desejo.
Por fim, em relação a este mito moderno de fundação das sociedades (FREUD,
1913/1996), ressaltamos que o pai que transmite a castração, as interdições
nas vias do gozo, é o pai morto — aquele que acedeu a um estatuto simbólico
(LACAN, 1957-1958/1998). A referência à morte aqui se impõe como fundamental. Ela abole a possibilidade de qualquer garantia na sustentação do laço
social — no caso que debatemos, na relação do sujeito com a crença em uma
de suas manifestações principais, a religião. Isso porque, se a sociedade pós-moderna busca se cercar de garantias (BARTOLOMEI, 2008) — seja em sua
forma laica, com o saber, seja em sua forma religiosa (simbólica), recorrendo a
Deus —, a morte se lhe interpõe como um limite. Limite tanto ao saber quanto
ao Simbólico: não se sabe o que é a morte; para ela não há qualquer representação significante (FREUD, 1915/1996; LACAN, 1969-1970/1992). Seu caráter
irredutível e enigmático é especialmente flagrante no lugar central que ocupa
nas diferentes religiões, as quais, cada uma à sua maneira, buscam lhe dar um
contorno, que só pode se sustentar no registro da crença — por isso mesmo, no
de uma aposta a fundo perdido.
Aliás, quer se trate ou não da morte, é a crença que confere propriamente
um lugar e uma força às diversas religiões, ao confrontar o sujeito com o que é
posto pelo pacto: a referência à alteridade, a necessidade do desejo em fazê-la
valer, a impossibilidade de uma garantia ou de um arbítrio frente aos desígnios
de Deus na vida terrena. Veremos a partir de agora que a promessa de uma
série de garantias ao sujeito, bem como a possibilidade de uma negociação,
de uma relação simétrica com a alteridade, é um dos traços característicos dos
movimentos religiosos recentes. Isso nos permitirá identificar uma lógica de
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funcionamento há muito em jogo em nossa sociedade e que a esfera religiosa,
antes de a ter inaugurado, de fato a reproduz.
As seitas dos contratos
Serão os sujeitos ao pacto os mesmos que as seitas que vemos disseminadas por
nossas comunidades evidenciam?
A questão de uma dívida simbólica que não encontra equivalente nos objetos
da realidade, ou que se vê pretensamente reduzida aos mesmos, emerge de forma
flagrante nos discursos de que se valem as seitas religiosas hoje. De um lado,
vemos subsistir o discurso das religiões tradicionais, as quais, mesmo com seus
anacronismos e preconceitos, sustentam o lugar de uma renúncia da parte do
sujeito. De outro, um discurso que busca responder a esta dimensão de renúncia
pelo serviço dos bens característico da lógica de mercado.
Estudos etnográficos cuidadosos como o de Giumbelli (2002) dão testemunho preciso desse discurso que nós mesmos cansamos de ver e ouvir nas
diuturnas pregações dos pastores nas televisões. Tudo se passa na dimensão
da troca: os fiéis pagam o dízimo para obter um milagre e são incentivados a
cobrarem de Jesus a operação dos milagres pelos quais pagaram. Há mesmo
relatos de templos em que se encontra na porta o aviso: “seu milagre garantido
ou seu dinheiro de volta”.
A dimensão do pacto dá lugar agora a de um acordo regido pelos serviços
dos bens. Tal acordo visa à satisfação completa das partes envolvidas, tomadas
ademais em uma relação igualitária, horizontalizada. Trata-se aqui de alguém
que se reivindica o suposto direito à igualdade em todas as esferas do cotidiano
e de relações sociais que cada vez menos reconhecem um lugar às diferenças
como as geracionais ou as sexuais. A referência a um terceiro, por relação ao
qual, como vimos, a ordem se estabeleça e venha a se assentar na renúncia à
satisfação imediata se vê, portanto, abolida. Na verdade, passa-se até mesmo a
se exigir e contar com a fidelidade de Deus! Os adesivos nos carros comprovam
que “Deus é fiel”.
O que aqui apontamos em relação às novas seitas traduz um processo há muito
em jogo no laço social: é a modernidade que privilegia a ideia de um laço social
atravessado pela dimensão contratual que ela, ademais, inaugura. Lacan (19671968/2001) fez referência a esse processo em seu seminário de 24 de janeiro de
1968. Dirigindo-se à sua audiência, ele não apenas denunciou o predomínio, em
nossa época, de uma relação de troca na qual cada um supostamente receberia a
parcela que acreditava ser a sua, como apontou seu caráter imaginário (especular). São abundantes nessa ocasião de seu seminário a presença de significantes
tomados de empréstimo ao campo da economia, tais como “prestação de trocas”,
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“esvazia bolsos”, “prestação de serviços”, significantes que passam a circunscrever
o lugar do sujeito em termos mercantis (VIDAL, 2012).
Trata-se de uma relação análoga a que hoje podemos verificar em outros
domínios da vida social, como, por exemplo, o Direito (idem). Cada vez mais o
vemos trabalhar apenas para restituir ao sujeito, ratificando todas as suas demandas, ao mesmo tempo em que busca convertê-las em termos monetários. Hoje
já é possível indenizar um filho pelo abandono afetivo por parte de seu pai, o
que, para além de qualquer consideração de cunho moral, esconde a dimensão
ética de se conferir à afetividade, ao desejo, um correlato em cifras (idem). Em
ambos os casos — do Direito, das seitas religiosas —, ao final de uma relação
de troca perfeitamente constituída, almeja-se que o saldo da operação seja zero.
Ou seja, que a cada um tenha sido concedida a sua parte. A consequência de
um funcionamento social como este, contudo, não é aquele de um sujeito a
quem é facultada uma vida mais plena, justa ou satisfatória. Ao contrário, posto
que visa à completude, ele elide que a própria condição para que haja troca é
que algo falte para o sujeito — dimensão do pacto e do desejo. Quanto a isso,
afirma Lacan, “não se está de acordo” (1968-1969/2008), a conta não fecha, daí
o caráter imaginário deste tipo de relação.
As religiões, se ainda podemos chamá-las assim, falam agora de uma sociedade
onde vigoram as relações contratuais. De um sujeito que pagava por sua entrada
na cultura — e que o faz a cada vez — nos deparamos com um sujeito (se é que
há aí sujeito) que se porta como credor da cultura. É a época em que a Lei, o
Direito, a religião, que se instalaram com o pacto, implicando obrigações morais
e sacrifícios do prazer imediato, tendem a ser ultrapassados por uma “lógica do
consumidor” (VIDAL, 2012). Há que se garantir a satisfação demandada pelo
cliente que, afinal, tem sempre razão. As seitas se oferecem como prestadoras
de serviços e bens, e vivem de fazer promessas de satisfação em curto prazo.
Não estaríamos “nesse momento a que chegamos de civilização” (LACAN, 19681969/2008, p.31) frente a um sujeito que somente busca se exercer como um
sujeito de direitos — um sujeito-consumidor?
Acreditamos, portanto, que para além das semelhanças que unem religiões
tradicionais e movimentos religiosos recentes — marcados todos pela mesma
busca da felicidade e do alívio para o mal-estar, ou seja, articulados todos para
garantir os meios de apaziguamento do sofrimento —, há diferenças acentuadas entre ambos, que apontam para distintas configurações do laço social e do
sujeito que delas é efeito.
Ainda uma última palavra para lembrarmos que, enquanto nas religiões tradicionais se trata da referência a um pai morto que, portanto, ocupa um lugar
que é simbólico, encontramos agora nos membros das seitas uma convicção
obcecada acerca do saber e da autoridade de um fundador encarnado que vem
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prometer a facilidade do encontro com os objetos da satisfação inadiável. De
um assujeitamento ao simbólico, a esse “pai morto”, passa-se assim à adesão a
um líder (LO BIANCO, 2009). As consequências dessa afiliação cega, no mais,
trazem-nos imediatamente à memória as cenas de horror já vistas no nazismo
que marca o século XX, e marcará todos os outros depois dele.
Recebido em 2/7/2014. Aprovado em 30/7/2014.
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Anna Carolina Lo Bianco e Natália Vidal
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Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. Dissertação de
Mestrado, UFRJ.
Anna Carolina Lo Bianco
[email protected]
Natália Vidal
[email protected]
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Verdade e ideologia na psicanálise
e no capitalismo
Oswaldo França Neto
Oswaldo França Neto
Psicanalista,
professor doutor
do Programa de
Pós-graduação
strito sensu do
Departamento
de Psicologia da
UFMG.
Resumo: Tendo como referência algumas discussões levantadas
por Alain Badiou e Slavoj Zizek, este texto se propõe a trabalhar a
questão da verdade e da ideologia no capitalismo e para a psicanálise. A democracia representativa capitalista, na forma como hoje se
operacionaliza quase que hegemonicamente no Ocidente, tem como
ideologia o repúdio à verdade e ao sujeito que lhe corresponde, o
que se manifesta em termos clínicos por depressão e ansiedade. A
psicanálise, ao se propor a resgatar a verdade do sujeito, se coloca
como obstáculo à hegemonia capitalista.
Palavras-chave: Verdade, ideologia, capitalismo, democracia,
sujeito.
Abstract: Truth and ideology in capitalism and psychoanalysis.
Taking as reference some discussions raised by Alain Badiou and
Slavoj Zizek, this article seeks to deal with the issues of truth and
ideology in capitalism and how it pertains to psychoanalysis. The
current domination of representative capitalist democracy in most
of the Western world promotes an ideology that repudiates the
truth and the subject to which it corresponds, often times clinically manifesting in depression and anxiety. Psychoanalysis, upon
proposing the rescue of truth to the subject, therefore poses itself
as an obstacle to the hegemony of capitalism.
Keywords: Truth, ideology, capitalism, democracy, subject.
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Oswaldo França Neto
P
retendemos desenvolver aqui a questão da verdade, termo fundamental para
a psicanálise, e seu lugar na ideologia capitalista.
No que concerne à psicanálise, se o nosso objeto primeiro de trabalho é o
sujeito, este só pode ser entendido correlativo à verdade que o institui. Esta,
porém, não pode ser verbalizada em sua plenitude, da mesma forma com que
o sujeito só pode ser concebido nos intervalos dos significantes, em situação de
exclusão à cadeia. A verdade, para Freud, é da castração, e ela só pode ser dita
por e nas formações do inconsciente (sonhos, sintomas, atos falhos e chistes),
tendo estes a significação de um retorno da verdade do sujeito. Por poder ser
apenas meio-dita (LACAN, 1972/2003, p.454), toda vez que ela se enuncia o
que obtemos é semblante:
“está claro que a Fala só começa com a passagem do fingimento à ordem do
significante, e que o significante exige outro lugar — o lugar do Outro, o Outro-testemunha, o testemunho Outro que não qualquer de seus parceiros — para que
a Fala que ele sustenta possa mentir, isto é, colocar-se como verdade.” (LACAN,
1960/1998, p.822)
Na formalização que propôs para os quatro discursos, Lacan colocou o lugar
da verdade embaixo da primeira barra, sendo ela a responsável por articular
a relação entre os outros três termos: o agente, o outro e a produção (LACAN,
1992). Em uma analogia com a metáfora simbólica, em que o significado não é
representado imediatamente por um significante, mas remetido a outro significante, nos discursos a verdade não é representada de forma imediata por seu
“agente”, mas junto ao “outro” que supostamente deve receber a comunicação.
No Seminário XX, após afirmar que o singular da análise é que ela “se possa constituir, por sua experiência, um saber sobre a verdade” (LACAN, 1985, p.123),
Lacan diz que “há relação de ser que não se pode saber” (idem, p.162). Ou seja,
se por um lado a verdade, em si, só pode ser entendida enquanto não sabida, por
outro lado, a finalidade da análise é, paradoxalmente, suscitar um saber deste
não sabido. A chave desse enigma estaria no que Lacan chamou de matema, em
que, no processo analítico, por meio de uma escritura, se estabeleceria relação
entre o ser que não se pode saber, e um saber sobre sua verdade, logo sobre o
não sabido.
Se a verdade, assim, é tema fundamental que move o trabalho analítico, já a
nossa contemporaneidade tem tido sérias dificuldades em lidar com o que ela
carreia. A verdade, em princípio, é uma categoria totalitária. Ela se distingue
do campo das opiniões, as quais têm como característica principal o fato de
serem horizontalmente substituíveis. Já a verdade, quando ela se apresenta, é
absoluta, universal. Por razões que vamos trabalhar mais adiante, a democracia
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representativa, pelo menos na forma como ela hoje se operacionaliza quase que
hegemonicamente no Ocidente, se coloca como antítese ao totalitarismo. Para
ela, o totalitarismo, assim como as ideologias, devem ser abolidos. A democracia se propõe como o império do “relativismo cético” (BADIOU, 2006, p.533).
Para continuarmos, temos que desdobrar outro termo já introduzido na
discussão: Ideologia.
Para Marx, “a ideologia era sempre do Estado e, como disse Engels, o próprio Estado é a primeira força ideológica” (ZIZEK, 1996a, p.24). Essa concepção
passou a dominar o conceito, que a partir de então se tornou necessariamente
vinculada ao Estado (os “Aparelhos ideológicos de Estado” [ALTHUSSER, 1985],
por exemplo). A ideologia passou a ser entendida como uma ideia ou crença
utilizada com o objetivo de aquisição/preservação do poder. Intimamente vinculada a essa concepção, ela estaria no registro da ocultação, dando à mostra
algo, tendo, entretanto, outro objetivo, oculto, que seria o de dominação — uma
“mentira sob o disfarce da verdade” (ZIZEK, 1996a, p.14).
A demonização da ideologia após o colapso do mundo comunista, segundo
Zizek, levou ao esquecimento de outra faceta desse conceito, esta mais próxima
da fantasia psicanalítica, na qual ela seria a moldura necessária para a constituição do quadro da realidade: “(...) não existe realidade sem o espectro, de que
o círculo da realidade só pode ser fechado mediante um estranho suplemento
espectral. (...) o ‘cerne’ pré-ideológico da ideologia consiste na aparição espectral
que preenche o buraco do real” (ZIZEK, 1996a, p.26). Ou seja, para que a moldura
da realidade se constitua, é necessário um suplemento que a determine como
tal, estabelecendo a imprescindível conexão entre todos os elementos que se
apresentam, para que do puro caos sensível se apreenda uma inteligibilidade.
Freud trabalhou esse estranho suplemento, que na mesma medida em que é
imprescindível é inapreensível (não apresentável como tal no campo em que os
elementos da realidade se fazem presentes), como sendo a fantasia primordial.
Esta é aquilo que deve se excluir, passando a ex-sistir para que todo o resto possa
existir. Apesar de poder ser construída em análise, ela permaneceria restrita ao
campo da ideia, uma pura representação simbólica que o próprio analisante
não consegue reconhecer como efetivamente presente em sua história, posto
que ex-sistente. A fantasia primordial está fadada a apresentar-se como ponto
de impossibilidade na realidade que ela constitui.
Ao aproximar esses dois conceitos, ideologia e fantasia primordial, como
sendo aquilo que daria enquadre ao caos da experiência sensível, Zizek pontua
a dificuldade que existe em tematizá-las. Por serem aquilo que constituem o
campo no qual transitamos, é impossível produzirmos a necessária distância
para apreendê-la em sua corporeidade. Ambas são o paradoxo impossível que,
de fora, determinam a coerência de tudo o que existe dentro.
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Nessa outra forma proposta por Zizek de se entender o termo ideologia,
poderíamos identificar nela uma dimensão imaginária (que Alain Badiou
[2010] nomeou de ‘utopia’) e uma simbólica. No seu aspecto utópico (ou
imaginário), a ideologia seria aquele elemento necessário de encobrimento
do furo do real, porém negando-o como ponto de impossibilidade. Seria a
utopia entendida enquanto potência, enquanto ímpeto a se imaginar estar
na escala de expansão em direção a uma totalidade infinita, por meio de
uma representação possível da infinitização de uma finitude. Esse aspecto
da ideologia é essencial, vindo daí a energia necessária para que ela se torne
efetiva, produzindo movimentos. Porém, correlativamente a essa pregnância
como potência, ela pensa em uma sociedade sem sintomas (ZIZEK, 1996b,
p.307), e vê o seu necessário ponto constitutivo de impossibilidade como
sendo da ordem da impotência.
Ou seja, o que concede à dimensão utópica da ideologia toda sua força é
também sua maior fraqueza, ao dar a ilusão de que seria possível ultrapassar
ou eliminar a si própria enquanto necessário paradoxo insolúvel para que a
realidade possa existir. Sua preservação é precária, sendo necessário um passo
além, que seria a passagem da ideologia na sua dimensão imaginária para a
dimensão simbólica.
Em outros termos, a passagem da impotência para a impossibilidade. Se a
ideologia é necessária para viabilizar que um sujeito exista como resposta à
impossibilidade do real, nosso apego não deve ser propriamente à ilusão de que
o que ela propõe é palpável, mas sim ao que, veiculado por ela, nos coloca em
movimento.
A ideologia, enquanto verdade, é uma paradoxal conjunção, em que o impossível se tornaria, no futuro do pretérito, possível. Seria a existência possível
do impossível, sem que seu caráter de impossibilidade se esvaeça. Se uma verdade, enquanto algo eterno e imutável, é impossível de existir na contingência
e mobilidade do mundo sublunar, a ideologia seria aquilo que viabilizaria sua
paradoxal existência. Ela atua como operador de incorporação de um local como
global. Ela (ou a fantasia, nos termos de Zizek) é o cruzamento impossível do
singular com o universal, constituindo um lugar não apenas efêmero, mas
de-localizado em relação ao saber, e, portanto, não apreensível por nenhuma
particularidade estabelecida.
Localização e verdade
Seria interessante fazermos um pequeno parêntese, e tentarmos desdobrar o principal impasse com que sempre se deparou a filosofia com relação ao conceito de
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verdade, que é sua localização. A grande dificuldade é como pensar a existência
local de algo que, por definição, seria universal e absoluto.1
Poderíamos identificar a verdade como sendo o significante mestre do conjunto da filosofia em sua história. Esta última teria como tarefa fundamental
a transmissão da verdade destacada das diversas configurações antropológicas,
buscando a essência, aquilo que seria eterno e imutável, em oposição ao contingente e corrompível.
Mas as coisas se complicam a partir do momento em que colocamos em
cena a questão da existência. Esta última, por definição, é a atestação de um
objeto qualquer, localizado em um campo relacional. A categoria da existência
é, dessa forma, local. Aparecer é estar localizado, não havendo existência não
situada, ou existência global. O Todo não existe, isto é, não se pode predicar a
existência do Todo.
Observamos assim uma distinção radical entre ser (global) e existir (local),
sendo a segunda uma categoria de essência topológica (ou de localização). Existir
é se manter em relação de vizinhança com outros existentes, portanto localizado.
A grande dificuldade é que a verdade, apesar de universal e eterna, parece existir,
o que seria uma contradição — se o universal e o eterno nos remetem a uma
essência, a uma não localização, a verdade em princípio pode ser, mas não existir.
A solução clássica para essa constatação (a impossibilidade de se localizar
algo que é global e eterno) é de que a verdade estaria inscrita no registro do
ser, e separada do registro do que aparece. Uma separação entre a ontologia e
a topologia, que no fundo é onto-teológica, já que remeteria a verdade para
o registro do transcendente. Kant, por exemplo, um dos representantes dessa
forma de entender a verdade, só conceberia o aparecimento da verdade se fosse
no registro do ato. Heidegger seria outro exemplo dessa solução clássica de
separação entre o ser e o existir.
Essa é também, aos olhos de Badiou, a solução da contemporaneidade,
considerando a verdade como separada da existência. A democracia capitalista
ocidental teria como ideologia fundamental a máxima “Viva sem Ideologia”, que
nada mais é do que uma variante da expressão “Viva sem Verdade”.2
Porém, segundo Badiou, a solução clássica não é a única historicamente datada.
Voltando à Grécia antiga, para Platão, utilizando-se do termo Ideia, a verdade
atestaria um processo, que seria a idealidade da Ideia. Esta última seria o nome
da potência de localização em verdade do que existe. Verdade em organização
orgânica à existência. O grande problema para Platão não seria a separação,
1
As considerações a seguir baseiam-se em conferência de Alain Badiou proferida em Paris,
em 15 de junho de 2010, no American University of Paris, até o momento inédita. Essa
conferência teve por título exatamente “Localização e verdade”.
2 Voltaremos a esse ponto posteriormente.
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mas a participação. Para Descartes, outro exemplo dessa solução não clássica, as
verdades eternas são sempre criadas, ou seja, localizadas. Elas são inseparadas da
existência, topologizadas pela localização. Para Espinosa, igualmente, verdade
enquanto nome da não separação. Ela seria localizada, ou “modal” (utilizando
um termo espinosista). Hegel também seguiria nessa linha de localização das
verdades, ou seja, da não separação entre ser e existência das verdades.
Há nessa solução não clássica o aparente paradoxo de localização da verdade,
ao propor o estabelecimento impossível de uma particularidade da universalidade. Para Badiou, nós devemos confrontar de frente essa dificuldade, agravando-a.
Para tanto, ele propõe três enunciados que serviriam como pontos de partida:
Ÿ Há um ser da verdade (ela tem um estatuto ontológico). Trata-se de um enunciado formalmente clássico.
Ÿ A verdade existe (ela tem um estatuto empírico). Ou seja, não se trata de um
nome separado da existência.
Ÿ A existência e o aparecer são categorias intrinsecamente locais.
O ser da verdade sobressai da álgebra da multiplicidade, enquanto a existência
sobressai da topologia, do feixe (faisceau3). Nos termos de Badiou, o ser da verdade
é multiplicidade genérica, ou seja, possui o menos de propriedade particular
possível, sendo, portanto, universal, já que passível de pertencer a não importa
qual subconjunto. Ainda no registro da ontologia, porém agora em oposição à
multiplicidade genérica, teríamos a multiplicidade construtiva, que se assentaria
sobre as identidades, em uma contínua reivindicação de propriedades.
O mundo contemporâneo tem como tese que toda multiplicidade é construtiva, ou só é interessante o que é construtivo (identitário, portador de propriedades). A única coisa que teria uma aparência genérica seria o dinheiro, mas que
na realidade existiria apenas para fazer as identidades (propriedades) circularem,
que é o que de fato importa. A contemporaneidade ocidental, assim, denega a
existência da verdade não apenas no registro do que aparece, mas também no
registro do ser. É a morte de Deus, sobrando apenas identidades. Um mundo
como localização de identidades, marcado pela disjunção entre o ser da verdade
e o próprio mundo.
Badiou propõe a seguir uma distinção entre localizado (imutável) e localização
(em movimento). Essa distinção é fundamental no estabelecimento da solução
não clássica. Para ela, se na sua proposta o ser é pensado como sempre localizado,
nessa localização o aparecer apresenta-se sempre como modificação. Ou seja, se
3 Faisceau: “Disons intuitivement (...) qu’un faisceau est un ensemble dont les éléments
peuvent n’exister que localement” (LAVENDHOMME, 2001, p. 239).
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quisermos sustentar que a verdade existe (vem a localizar-se), seria sob a forma
de uma deslocalização local. Um termo afetado por uma deslocalização local é
o que Badiou propõe como sendo um sítio eventural.4
Uma deslocalização local (sítio) é assim o aparecimento em uma rede estrita de existência de algo que não é localizável, um defeito local da localização.
Não se trata de forma alguma de uma separação (caso da solução clássica), mas
de um disfuncionamento da localização. Apesar de ser necessariamente local,
sua potência de localização seria localmente afetada. Seria uma identificação
impossível, e, portanto, fugaz, do ser e da existência. Ponto não teleológico de
coincidência, no qual a localização, de forma paradoxal, cessa de fazer barragem
à universalidade.
Diríamos assim que há uma deslocalização local quando o ser aparece no
registro da existência, desvelando-se algo como ao mesmo tempo localizado e
deslocalizado. Ela é o ponto em que a lei transcendental se porta como um objeto
sob sua própria lei. Estaríamos no registro do que Badiou chamou de acontecimento
(ou evento na tradução brasileira).
Relembrando uma discussão pregressa que ele teve com Milner concernente
ao estatuto do Nome-do-Pai, discussão esta que teve grande repercussão em
alguns meios na França, e que teria como objeto o lugar do nome “Judeu” na
civilização ocidental,5 Badiou propõe que, para Milner, o lugar que carrearia o
estatuto de universalidade (o nome) seria prévio, enquanto para ele o lugar se
colocaria como universal quando se deslocaliza. O lugar deslocalizado é universal
exatamente por ser deslocalizado. Apenas uma deslocalização contingente, efeito
de um acontecimento paradoxal e inesperado, pode preservar o fugaz estatuto
de não predicabilidade. Ao propor que o nome seria anterior, Milner eliminaria
seu caráter contingente, inserindo-o no registro das predicações.
Podemos agora retornar ao impasse que a psicanálise representa para o capitalismo, tendo como referência o estatuto da verdade.
O capitalismo e a psicanálise
Ao se colocar como o fim das ideologias, a democracia ocidental e seu par, o
capitalismo, camuflam a ideologia que serve como seu próprio enquadre, que é
a máxima “Viva sem Ideologia”. Em uma inversão que não deixa de ser astuta,
4 No livro O ser e o evento, Alain Badiou define dessa forma o que ele chama de sítio eventual:
“Um múltiplo em situação é um sítio eventual se ele for totalmente singular: ele é apresentado, mas nenhum de seus elementos o é. Pertence, mas está radicalmente não incluído. É
elemento, mas não é, em absoluto, uma parte. É totalmente a-normal. Diremos também de
tal múltiplo que ele está na borda do vazio, ou é fundador” (BADIOU, 1996, p.399).
5 Para essa discussão, ver os livros Les penchants criminels de l’Europe démocratique (MILNER, 2003)
e Circonstances, 3: portées du mot “juif” (BADIOU, 2005).
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o capitalismo propõe como premissa inaugural de seu campo exatamente a
negação da necessidade de existência de um ponto de impossibilidade constituidor que o determine como campo. Ele se propõe como infundado, ou seja,
eterno, posto que fidedigno reflexo da natureza humana, e, portanto, distinto
das corrompíveis e pouco confiáveis determinações culturais. E ele faz isso por
meio de uma opressão fundamental, que é a imposição para a humanidade do
abandono de qualquer pensamento que tenha estatuto de verdade. A morte das
ideias verdadeiras significa o enclausuramento dos indivíduos em seus interesses
finitos, na pura administração de bens e opiniões. Fazendo uso da Declaração
dos Direitos Humanos, o capitalismo propõe o abandono de qualquer verdade
que possa se colocar acima da vida biológica, condenando-nos à administração
e preservação de corpos, em detrimento do embate das ideias.
Ou seja, se agora nos vemos em luta contra o totalitarismo (ou hegemonia) do
capitalismo, este tem como uma de suas maiores astúcias se colocar, junto com
a democracia, como defesa contra os totalitarismos. E essa ideologia — “Viva
sem Ideologia” — é perfeita para o nosso tempo. Pois se o século XX soube nos
ensinar algo, foi o potencial sangrento e de terror que os totalitarismos ideológicos podem adquirir quando se baseiam em critérios raciais ou segregativos de
qualquer espécie, como foram o nazismo, o fascismo ou o stalinismo.
Em Le siècle (2005a), Alain Badiou propõe que nós somos hoje determinados pelo medo. A tônica da sociedade contemporânea é a aversão a qualquer
tipo de ideologia e das verdades que elas carreiam. Marcados que somos pelos
(des)caminhos de horror e sangue que as ideologias totalitárias do século XX
produziram, nada mais tranquilizador do que um sistema que tem como prerrogativa primordial a máxima “Viva sem Ideia” ou “Viva sem Verdade”. Ao se
propor como solução contra os incertos caminhos do sujeito e sua verdade, o
capitalismo nos impede de nos debruçarmos sobre os desvios que marcaram as
buscas totalitárias do século que findou e refletirmos seriamente sobre eles. Se
em algum momento recuperarmos a coragem e buscarmos o resgate da verdade
e seu necessário caráter universal, teremos que aprender a sustentar sua existência livre de qualquer particularidade, seja ela racial (nazismo), nacionalista
(fascismo) ou de classe social (stalinismo). A verdade não comporta defesa de
bens ou interesses pessoais, devendo ser, necessariamente, desinteressada.
A democracia representativa, pelo menos na forma hegemônica com que
no Ocidente nós a vivenciamos, interdita-nos o acesso à força da verdade,
eliminando-a da cena e nivelando tudo na simetria das opiniões. Se não existem diferenças com relação ao valor de verdade, e todas as afirmações são simetricamente equivalentes, a importância destas passa a ser determinada pelo
número: na política o que importa é o número de votos; o lugar na hierarquia
social é reflexo da conta bancária; o melhor pesquisador é aquele que com mais
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eficiência preenche os escores que a academia lhe demanda. O critério qualitativo é subsumido pelo quantitativo, que se torna a régua de todas as avaliações.
Assim, encontra-se em consonância com a ciência clássica, que tem como ideal
reduzir seu objeto a algo completamente mensurável.
É claro o casamento perfeito entre a democracia ocidental e o capitalismo.
Enquanto a primeira elimina a verdade, transformando-a em opiniões também
substituíveis, o segundo nega a existência de objetos verdadeiros, transformando-os em substituíveis objetos de consumo. Ambos decretam a morte do irredutível
em prol do relativo, e o valor de não importa o que passa a ser determinado
pela quantificação.
Se formos nos expressar de forma mais rigorosa, a democracia ocidental não
faz propriamente oposição à verdade, mas a condena ao registro da exceção.
Dessa forma, ela se estrutura como todo e qualquer sistema que se apresenta
como um universo coerente e hegemônico. Segundo Agamben (2008), a verdadeira contemporaneidade não é a integral consonância com seu tempo, mas,
ao contrário, certo desajuste com ele. O contemporâneo verdadeiro é aquele que
está de certa forma em situação de exclusão, pois só esta, enquanto aquilo que
deve passar a existir como resto (ex-sistir) para que uma totalidade se constitua,
pode tornar-se o ponto de partida para uma nova e verdadeira universalidade.
Como disse Freud, a solução para qualquer impasse teórico só é atingida “se o
que constitui uma pedra no caminho de uma teoria puder tornar-se a pedra
angular da teoria que a substitui” (FREUD, 1933/1976). O problema é que sua
presentificação no campo corporifica-se como ponto de impossibilidade ou
inconsistência, colocando o sistema sob impasse e forçando sua refundação.
O sistema, então, para proteger-se, faz o possível para eliminá-la ou absorvê-la
em sua lógica de funcionamento.
Assim, a verdade, que por definição é universal e eterna (mesmo que seu
surgimento seja sempre da ordem da contingência), apresenta-se inexoravelmente
como exceção. Parafraseando Badiou, se a democracia ocidental reconhece a existência de apenas dois termos como sustentáculos de sua hegemonia, que seriam
os corpos e as diversas linguagens que atuam sobre eles, a verdade seria aquele
terceiro termo que, em situação de exceção, pontuaria o desvio ou desencontro
entre os dois primeiros (BADIOU, 2006).
A grande dificuldade com que hoje nos defrontamos é como forçar sua
existência em um mundo que tem como diretriz primeira o imperativo da inexistência da verdade. Esse imperativo é poderoso não apenas por ser uma ótima
resposta ao nosso medo contemporâneo de existir como sujeito, mas porque na
realidade nada obriga que verdades ou sujeitos existam. Uma vida pautada na
pura administração de títulos e propriedades, centrada na fruição de prazeres
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corporais sem qualquer menção à busca de verdades universais, não apenas é
possível como é o motor da sociedade de consumo dos nossos tempos.
Quando Fukuyama (2003) profetizou o fim da história com o casamento
perfeito da democracia ocidental com o capitalismo, ele não necessariamente
estava correto, mas também não necessariamente estava errado. Nada obriga
que o capitalismo seja ultrapassado e sua lógica de consumo substituída por
outra dita mais “evoluída”. Slavoj Zizek, contrapondo-se a Marx, afirma que não
há nenhuma garantia de que o socialismo seja a evolução ou o passo seguinte
natural do capitalismo. Para Zizek, Marx não teria conseguido extrair toda a
amplitude do conceito de mais-valia.6 Ao contrário dos outros sistemas que
o precederam, a contradição interna do capitalismo não é algo que se dê sob
a forma de crises cíclicas como teria proposto Marx. O paradoxo imanente ao
capitalismo é constante e constitutivo, mantendo-o em um estado de revolução
permanente. O sistema já nasce, por assim dizer, “apodrecendo”, e “quanto mais
ele apodrece, quanto mais se agrava sua contradição imanente, mais ele tem que
se revolucionar para sobreviver” (ZIZEK, 1996b, p.329).
O capitalismo se estrutura de tal forma que a presentificação daquilo que
lhe causa impasse, no lugar de dar à mostra sua contradição constitutiva e forçar uma reformulação, realimenta sua lógica imanente. O sistema produz sem
cessar restos, e os transforma continuamente em consumo, em um permanente
estado de revolução. Ele se alimenta de seus próprios impasses, e quanto mais
poderosa sua crise, mais forte ele se torna. Se em todo e qualquer sistema que se
propõe hegemônico a grande dificuldade sempre foi forçar a existência daquilo
que passou a ex-sistir para que ele se unificasse, o capitalismo se aprimorou em
transformar em consumo todo e qualquer objeto que se apresenta com caráter
excludente à sua lógica. Esse movimento é, inclusive, sua principal força motriz.
Nada no sistema capitalista implica então um ultrapassamento, como se
fosse uma evolução natural. Sua contradição imanente é o próprio motor de seu
funcionamento, seu estado natural de ser, e não aquilo que vai levá-lo a caducar.
O abandono da lógica do consumo, se ocorrer, será por escolha ou imposição
externa, mas não por um destino inexorável inerente ao sistema.
O grande problema dessa ideologia (“Viva sem Ideia” ou “Viva sem Verdade”), é que ela implica a morte do sujeito. Se há algo que podemos dizer que
é ultra contemporâneo, no sentido de estar em sintonia com a democracia (na
forma com que ela se operacionaliza no Ocidente) e o capitalismo, é o que
se autodenomina de pós-modernidade. A modernidade nasce com Descartes,
quando ele funda o sujeito. A psicanálise, assim, é genuinamente moderna: o
6 Sabemos que Lacan identificou na mais-valia de Marx um correspondente para seu conceito
de objeto a.
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sujeito da psicanálise está ligado em seu gene ao sujeito cartesiano, dizia Lacan
(1985, p.122). A pós-modernidade reduz tudo ao relativismo dos corpos e das
linguagens. Não existem verdades, mas apenas uma multiplicidade infindável de
corpos e linguagens (ou culturas). Os pós-modernos, diz Badiou, se orientam
“no sentido da negação de toda universalidade, em proveito da livre concorrência dos aparelhos produtores de sentido, notadamente os aparelhos ‘culturais’”
(BADIOU, 2006, p.317).7 Seria o império da sofística, diria Platão.
Não é necessário pontuar como a Psicanálise se coloca como impasse, como
ponto de impossibilidade frente à poderosa máquina de consumo do capitalismo. A psicanálise se assenta sobre o sujeito e sua verdade, justo aquilo que a
democracia capitalista tem por força que eliminar para se sustentar.
Não é nosso objetivo aqui propor alternativas à hegemonia da atualidade.
Existem propostas em discussão, propostas estas que suscitam questões muito
difíceis de serem trabalhadas, já que elas mobilizam diretamente o medo (ou
a covardia) da sociedade contemporânea. Nós, século XXI, estamos, de certa
forma, vacinados contra os descaminhos totalitários que as ideologias podem
adquirir e suas consequências nefastas. Temos medo das verdades absolutas que
as ideologias carreiam e dos desvios terríveis que delas podem advir. A Ideia
(ou Ideologia) é o que dá corpo subjetivo à verdade, que como tal, apesar de
ser inteiramente contingente, apresenta-se necessariamente após seu surgimento
como sempre tendo existido, e com uma capacidade infinita de desdobramentos.
É por isso que as máximas “Viva sem Ideia” e “Viva sem Verdade” são no fundo
a mesma coisa.
Frente ao temor da verdade, nós, herdeiros dos totalitarismos devastadores
do século XX, nos escondemos na pacificação dos números, e nos cobrimos de
seguros (seguro saúde, seguro de vida, seguro do carro, seguro da casa, seguro
ou poupança para garantir a universidade dos filhos, etc.). Quanto mais seguros,
maior o apaziguamento de nossos medos. A democracia contemporânea promete
a felicidade pela astenia, nos vendendo a imagem de um mundo tão ramificado
e com tantas nuances, e por isso mesmo tão adormecido e homogêneo, que em
nenhum momento somos confrontados a fazer escolhas que sejam de fato definitivas. Não existem pontos de capiton. “A apologia moderna da ‘complexidade’
do mundo, sempre embelezada de um louvor do movimento democrático, nada
mais é na realidade que um desejo de atonia generalizada” (BADIOU, 2006,
p.443).8 O problema é que ao nos reduzirmos a puros corpos e linguagens, ao
7
« Vers la négation de toute universalité, au profit de la libre concurrence des appareis à
produire du sens, notamment les appareils ‘culturels’ ».
8 « L’apologie moderne de la ‘complexité’ du monde, toujours agrémentée d’un éloge du
mouvement démocratique, n’est en réalité qu’un désir d’atonie géneralisée ».
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eliminarmos a verdade e passarmos a viver sob a égide do medo, como dissemos
acima, eliminamos junto o sujeito.
Recuar frente ao sujeito e sua verdade, clinicamente já sabemos o resultado
— é a depressão. A depressão e a ansiedade, assim como o arsenal terapêutico
que o capitalismo de imediato se arvora a nos oferecer, é um dos corolários de
nossa contemporaneidade. Talvez o que de mais marcante ela representa, se
formos pensar sob a ótica da psicanálise.
Fica a questão: o que nós, psicanalistas, podemos fazer frente a essa situação?
O que fazer frente a uma sociedade que tem medo da verdade, que tem medo
de ser sujeito, marcada pela depressão e suas síndromes de pânico, inundada
pelos medicamentos miraculosos e inequivocamente cada vez mais eficazes que
o sistema oferece? O que fazer frente à pura preservação de corpos e busca de
prazeres imediatos? Como resgatar o sujeito?
Recebido em 22/8/2011. Aprovado em 21/11/2011.
Referências
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Jorge Zahar.
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Jorge Zahar.
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Verdade e ideologia na psicanálise e no capitalismo
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ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto.
. (1996b) “Como Marx inventou o sintoma”, in
. Um mapa
da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto.
Oswaldo França Neto
[email protected]
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“Novos sintomas” e declínio da função
paterna: um exame crítico da questão
Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso e Roberto Calazans
Rosane Zétola Lustoza
Doutora em Teoria
Psicanalítica
(UFRJ); professora
adjunta da
Universidade
Federal do Paraná
(UFPR).
Mauricio José
d’Escragnolle Cardoso
Doutor em Ciências
da Linguagem,
Université Paris
X, Nanterre;
professor adjunto
da Universidade
Federal do Paraná
(UFPR).
Roberto Calazans
Doutor em Teoria
Psicanalítica
(UFRJ); professor
associado da
Universidade
Federal de São
João del Rei
(UFSJ); bolsista de
produtividade em
pesquisa nível 2
CNPq.
Resumo: Partindo da perspectiva lacaniana, examina-se a relação
entre declínio da função paterna e “novos sintomas”. Critica-se a
assimilação entre declínio da função paterna e declínio do Nome-do-pai. Investiga-se o termo “novos sintomas”, demonstrando seu
caráter contraditório. Conclui-se que a decadência da Lei social é
compatível com a inscrição do Nome-do-pai; e que tal declínio engendrou novas patologias, mas que não são assimiláveis a sintomas.
Palavras-chave: Novos sintomas, Nome-do-pai, Lei, Outro.
Abstract: “New symptoms” and paternal function decline: a
critical examination of the question. From the Lacanian perspective, it explores the relationship between the decline of the paternal
function and the “new symptoms”. It criticizes the assimilation
between paternal function decline and the decline of the Nameof-the-Father. It examines the term “new symptoms”, showing its
contradictory character. It concludes that the decline of social law
is compatible with the inscription of the Name-of-the-Father, and
that such a decline engendered new pathologies, but these are not
assimilable to symptoms.
Keywords: New symptoms, Name-of-the-Father, Law, Other.
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Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso e Roberto Calazans
Apresentação do problema
Na época contemporânea assiste-se a uma decadência dos grandes referenciais
de avaliação que cimentavam o mundo social. Se antigamente as escolhas dos
sujeitos eram norteadas pelos sólidos códigos de interpretação ofertados pela
tradição, pela autoridade ou pela religião, hoje se observa um desmoronamento
das balizas que conferiam coesão à sociedade. O homem se vê então sem uma
grade de leitura que lhe permita decifrar os acontecimentos de seu mundo.
Bauman (2001) chama de ‘modernidade líquida’ esse tempo em que qualquer
convicção assumida pelo sujeito torna-se transitória, frágil, prestes a se volatilizar
e dar lugar a outra.
Nesse novo contexto social, qualquer um que pretenda assumir o lugar da
exceção é, em pouco tempo, rechaçado como um impostor ridículo. A própria
Lei social é considerada um artifício, uma ficção cultural, que os sujeitos encaram
com desconfiança e rejeitam como um mero semblante.
Na época de Freud, a moral da sociedade repressiva promovia a interdição
do gozo; já hoje, em que está proibido proibir, em que a barreira ao gozo parece
ter sido removida, os sujeitos parecem concluir que tudo é permitido. O filósofo
Gilles Lipovetsky (2005) chama nossa sociedade de pós-moralista, na medida
em que colocaria em jogo um crepúsculo do dever. Já Zizek (2008) sublinha
não exatamente uma ausência de dever, mas uma nova qualidade de dever, em
que o gozar torna-se uma obrigação moral.
Esse discurso que fomenta a busca de gozo tem sérias repercussões clínicas.
Assiste-se hoje à proliferação de patologias em que os atos parecem substituir a
palavra. O fato de os atos predominarem sobre as palavras sinaliza uma hegemonia de respostas subjetivas pela via do gozo; daí muito do que se encontra sob
a rubrica “novos sintomas” referir-se sobretudo a uma clínica das impulsões:
bulimia, anorexia, novos tipos de adicções, hiperatividade, etc.
Que os novos sintomas encontram-se ligados ao declínio da função paterna
parece evidente. Contudo, um exame mais minucioso revela quão pouco evidente
é o sentido dos termos cuja ligação é afirmada.
Comecemos pelo termo “função paterna”. Afirmar seu declínio é legítimo, se
com isso nos limitamos a constatar a dissolução dos grandes códigos de conduta
que governavam a sociedade. Faz-se, porém, uma extrapolação abusiva quando se pretende
tratar o dito declínio como uma derrocada do Nome-do-pai (como operador psíquico). Como nem
sempre nos textos de psicanalistas essa discriminação é feita, muitos acabam
assimilando de modo equívoco a decadência da lei simbólica a um apagamento
do Nome-do-pai. Isso leva a certas confusões, como afirmar que estaria em
cena uma nova subjetividade, a qual teria desalojado o velho sujeito neurótico
freudiano de seu antigo posto; ou afirmar que a sociedade tornou-se majoritariamente psicótica ou perversa.
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“Novos sintomas” e declínio da função paterna: um exame crítico da questão
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Já o termo “novos sintomas” nos parece problemático por outras razões.
Trata-se de um conjunto de fenômenos muito heterogêneos, a ponto de se poder
indagar se é uma categoria conceitual cujos contornos podem ser precisados
ou se constitui, ao contrário, uma noção confusa. Sua obscuridade não a torna,
apesar disso, uma categoria pouco utilizada. Por surgir com frequência na cena
do debate analítico, faz-se mister pensar seu estatuto conceitual.
A fim de investigar a legitimidade dessa tese, nosso percurso será inicialmente
separar Nome-do-pai e Lei social. Num segundo momento, investigaremos o
sentido do termo ‘novos sintomas’, para só então estabelecer uma relação entre
Nome-do-pai, lei social e novos sintomas.
Nome-do-pai e Lei social
O filme Entre os muros da escola, de Laurent Cantet (2008), é verdadeiramente emblemático desses tempos líquidos. Assistimos ali, reproduzido de forma microscópica, um problema que afeta não apenas a escola, mas, em larga escala, toda a
sociedade. O professor parece ser tratado o tempo inteiro por seus alunos como
uma fraude, alguém que não tem a menor legitimidade para ocupar a posição que
ocupa e cuja palavra não exerce mais qualquer eficácia. Os estudantes contestam
qualquer pretensão à assimetria de lugares: todos são iguais, não há por que
obedecer a algo que não se compreende, pois a obediência por pura transferência é recusada. O filme torna-se um diagnóstico dos nossos tempos na medida
em que, ao retratar a dificuldade pessoal daquele professor específico, o diretor
atinge uma verdade geral, pois, hoje, qualquer um que busque reivindicar para
si o lugar da exceção é violentamente rejeitado como um blefador patético, que
oculta sua impotência sob o disfarce da Lei. Parece que todos nós sabemos, de
forma selvagem, algo que só deveria emergir ao fim de uma análise: o grande
Outro não existe.
Porém, é preciso perguntar, como faz Zupancic (2007): se é verdade que
todos nós sabemos que o Outro não existe, será que efetivamente agimos como se
soubéssemos disso? Esta pergunta é importante, pois é possível que, no final
das contas, descubramos, para nossa própria surpresa, que por trás da aparente
destruição das velhas crenças, subsiste pelo menos uma: a crença inconsciente
na existência de Deus (LACAN, 1969-70/1992).
Conforme Zupancic (2007), o que de hábito se descreve como a inexistência do Outro é uma tese que merece maiores precisões. Pois o que houve de fato foi
uma descrença generalizada na possibilidade de que um pequeno outro qualquer possa ocupar o lugar
do Outro. Pais, professores, líderes políticos, enfim, todos os outros suscetíveis
de ocupar um lugar especial nas séries psíquicas inconscientes, passaram a ser
alvo de uma crítica que não deixa ninguém de fora. O que existe é uma grande
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dificuldade de acreditar que um pequeno outro qualquer mereça ser catapultado
ao lugar de grande Outro.
“Em outras palavras, o que é abandonada é a possibilidade de um laço ou de um
curto-circuito entre o pequeno e o grande Outro, a possibilidade de acreditar que o
‘pequeno outro’ possa ser o próprio modo de existência do grande Outro. Nenhuma
pessoa concreta (pai, professor, presidente) é verdadeiramente a instância do Outro,
porque eles são apenas humanos, inconsistentes, quando não completamente fracos
e patéticos.” (ZUPANCIC, 2007, p.6)
Mas, que não se pense que essa operação é inócua. Na medida em que ninguém está autorizado a se confundir com o Outro, entra em jogo também uma
extraordinária operação de salvamento, na qual o lugar vazio nunca é questionado. O saldo dessa manobra é que o grande Outro permanece preservado como um lugar
vazio. O lugar do Outro fica fora de qualquer mácula, mantido à distância do
mundo; ele pode continuar “inteiro, não barrado e onisciente em sua ignorância,
na medida em que não está ativo, que não opera em nenhum pequeno outro
(o que significa dizer que ele está a priori isento de qualquer responsabilidade
nesse nível)” (ZUPANCIC, 2007, p.7). É como se a não existência do Outro na
realidade não o impedisse de continuar a exercer sua eficácia: afinal, nada mais
indestrutível do que aquilo que não existe!
Ou seja, se por um lado nenhum discurso consegue ser suficientemente
sedutor ou persuasivo para demover o sujeito de sua descrença, resta ainda viva
nele uma crença: a de que o Pai ausente... faz falta! O lugar vazio do Pai não é
sem consequências: nos casos mais extremos, ele pode gerar tanto o apelo desesperado quanto a desistência resignada. Isso gera alguns paradoxos, tais como
o apontado por Zizek (2009), em que o sujeito se ressente pelo fato de o Outro
não existir e o culpa por isso. Conforme Rocha (2010) ilustra à perfeição: “Essa
postura evoca a fala do protagonista de Fim de caso, de Graham Greene: ‘eu o odeio,
Deus, como se você realmente existisse” (p.193). O que é uma nova versão da
velha fórmula freudiana de que o Pai morto é ainda mais forte do que vivo.
Note-se, portanto, que a inscrição do Nome-do-pai é compatível com um
ambiente de descrença em figuras de autoridade. Isso não significa que a instalação do Nome-do-pai necessariamente ocorrerá; a ausência desse processo é
nomeada por Lacan de foraclusão e resulta numa psicose. O importante a frisar
aqui é que a falência da autoridade não possui uma relação direta de causalidade
com a psicose; a dita falência não autoriza qualquer previsão acerca da escolha
da estrutura pelo sujeito. Como afirma Maleval (2007), “o declínio da autoridade
não é o declínio do Nome-do-pai: as modificações da lei social não têm qualquer
efeito sobre a lei do significante” (p.155).
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“Novos sintomas” e declínio da função paterna: um exame crítico da questão
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Apesar de não decidirem diretamente a estrutura, as mutações sociais sem
dúvida impactam o modo como os fenômenos se apresentam nas diferentes
estruturas. O enfraquecimento da adesão coletiva aos ideais leva o sujeito a uma
errância e precariedade maiores, o que explica a prevalência de certas síndromes
no momento atual (MALEVAL, 2007). Um exemplo são os recentes debates sobre
o conceito de psicose ordinária (MILLER et al., 2005), cujas características se
afastam do quadro tradicional daquela patologia: em vez de delírios e alucinações, passam a ter lugar fenômenos muito mais difusos e sutis. A neurose parece
também se manifestar sob a forma dos “novos sintomas”. Apesar da nova roupagem, o importante a frisar aqui é que as mudanças ocorridas não concernem
à lógica das estruturas subjetivas. “Mutações dos sintomas, consequentemente, e
não das estruturas subjetivas” (MALEVAL, 2007, p.155).
Novos sintomas
Costuma-se reunir sob a rubrica de “novos sintomas” uma lista heteróclita de
fenômenos: depressão, transtorno de pânico, bulimia, anorexia, novas adicções,
etc. Tal fato por si só já deve nos advertir que lidamos com fenômenos cujas
classificações conceituais talvez sejam muito diferentes entre si. Ao longo de
nossa exposição, pretende-se demonstrar que as novas patologias não formam
uma categoria conceitual bem delimitada, mas uma noção confusa, que mescla
elementos cuja natureza é distinta.
Aceitemos por ora os termos em que o problema é colocado. O ponto de
partida clínico é que se assiste hoje a uma ascensão de patologias cujo ponto
em comum seria sua profunda repelência à palavra, o que as tornariam impermeáveis à interpretação psicanalítica tradicional. O paciente parece imerso num
sofrimento silencioso. O paradigma comumente tomado é o da toxicomania, na
qual fica clara uma busca de gozo tão poderosa que parece suspender o poder
simbólico da palavra.
A primeira interrogação a ser feita acerca dos “novos sintomas” é saber se,
de fato, correspondem à definição freudo-lacaniana deste conceito. Em psicanálise, o sintoma (symptôme) é uma formação do inconsciente que tem estrutura de
linguagem. Ele é o resultado final de um processo de deslocamentos e condensações, o que permite por isso mesmo uma decifração a posteriori do seu sentido. O
problema com esses “novos sintomas” é justamente que não se deixam abordar
pela manobra interpretativa clássica, em que um sentido latente pode surgir para
além do sentido manifesto.
Num texto bastante elucidativo, Recalcati (2004) compara as operações exigidas na clínica clássica e na clínica contemporânea. Na clínica clássica, o sujeito
chega com uma demanda de cura, de livrar-se de algo insuportável. A manobra
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analítica seria aqui dupla: tentar tanto uma transformação heurística quanto ética
da demanda. Heurística, na medida em que a pré-interpretação que o sujeito faz
de seu sintoma deve ser substituída pela busca de uma verdade inconsciente.
Essa transformação heurística — da vontade de se curar em vontade de saber
— se faz acompanhar também por uma mutação ética. “A transformação ética
da demanda consiste em indicar ao sujeito a parte que ele tem na fabricação e
na preservação de sua condição de sofrimento. Portanto, em fazer trabalhar no
sujeito a dimensão ética da culpa” (RECALCATI, p.5).
Na clínica contemporânea, essa dupla operação não parece possível. Pois o que
está problematizado é a própria dimensão da demanda. Miller & Laurent (2005) chamam
tal demanda de convulsiva, pois visa obter o objeto de gozo de forma direta e
ininterrupta. É como se houvesse uma busca imediata pela satisfação, num curto-circuito em que o sujeito se poupa de se dirigir ao grande Outro simbólico na
busca de gozo. Busca-se desse modo uma satisfação que não passa pelo Outro e
sim pelo próprio corpo, e que constituiria uma forma de autoerotismo.
Para circunscrever a dificuldade que uma demanda convulsiva coloca para
o tratamento, recordemos que a demanda, em sua acepção clássica, sempre se
dirige ao Outro simbólico. Ao demandar algo ao Outro, o sujeito experimenta
o retorno de uma mensagem, o que o leva a ressignificar sua posição inicial.
Ao mesmo tempo, uma vez que a demanda está fundamentalmente centrada na
resposta do Outro, ela obriga o sujeito a sustentar um intervalo entre o pedido
e a resposta, a suportar um adiamento da satisfação. Acontece que o discurso
contemporâneo incentiva uma demanda que não se dirige ao Outro simbólico,
pois o objeto de gozo está implicado de forma mais imediata. O sujeito tem a
esperança de encontrar o objeto sob uma forma mais direta, sem passar pelas
intempéries e acidentes de percurso que experimenta quando tenta encontrar a
satisfação pelo viés do desejo do Outro.
Ressalte-se neste ponto a importante influência do discurso capitalista na
proliferação dos ditos “novos sintomas”. Não exatamente porque o capitalismo
seja deles a causa, mas porque convida o sujeito a negar a castração pela via do
objeto de consumo, oferecendo-lhe sem cessar uma série de artefatos tecnológicos
destinados a tamponar a falta — cirurgias estéticas, medicamentos psiquiátricos,
drogas para disfunção erétil, etc. No capitalismo contemporâneo, a atividade
de consumo (ou seja, a fruição de um bem) torna-se mais valorizada do que a
atividade produtiva (isto é, a construção de um bem, o trabalho necessário para
transformar algo em mercadoria) (BAUMAN, 2008). Em termos psicanalíticos,
diríamos que o gozo torna-se mais importante que o desejo (LUSTOZA, 2009).
Por isso diz-se que no discurso capitalista houve uma ascensão ao zênite do objeto
a. Ao contrário dos outros discursos, cuja função seria refrear o gozo, o discurso
capitalista é o único dentre eles cuja função seria fomentar o gozo.
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Uma coisa é o discurso; outra, bem diferente, são as reações subjetivas a este
discurso. Dessa forma, os “novos sintomas” devem ser situados como respostas
subjetivas ao discurso que incita o gozo. A pergunta a ser feita aqui é: seriam tais
respostas assimiláveis a sintomas? Nossa conclusão é um tanto paradoxal: pois
o que os “novos sintomas” têm em comum é justamente o fato de... não serem
sintomas! Pelo menos não no sentido freudo-lacaniano do conceito. Se apelarmos
para o famoso quadro de respostas subjetivas, exposto por Lacan (1962-63/2005)
no Seminário 10, teríamos que classificar os “novos sintomas” mais próximos do
acting out, da passagem ao ato, até mesmo da inibição, que do sintoma.
Comparemos:
a) O acting out seria um ato impulsivo em que o sujeito visa sair de um impasse
simbólico de forma desesperada, mostrando algo ao Outro. Tal ato pressupõe uma
demanda-demanda que não é posta em palavras, mas que antes mostra alguma
coisa ao Outro. Na verdade, mesmo quando o acting se dá mediante o uso de
palavras, estas visam expor à luz do dia alguma coisa que em geral se encontra
velada, oculta.
O que o acting mostra? Para responder a isso, voltemos ao comentário de Lacan (1962-63/2005) sobre o famoso caso do Homem dos Miolos Frescos, de E.
Kris: o analista prova de maneira irrefutável que seu paciente, que se apresentara
como um plagiador, não havia copiado o trabalho de um rival. Impedido de
ocupar o lugar de ladrão de ideias, o paciente logo em seguida comete um acting
out: ao sair da sessão, passa num restaurante exótico e consome miolos frescos,
contando tal fato ao analista na sessão seguinte.
O efeito da interpretação de Kris foi deixar o paciente sem lugar, como se
toda a verdade do sujeito tivesse sido dita, sem espaço para qualquer zona de
sombra. Por isso o acting tem sempre a função de marcar um ‘isso não é tudo’: resta
algo por dizer. “Com os miolos frescos, o paciente simplesmente faz um sinal
para Kris: tudo o que o senhor diz é verdade, mas simplesmente não toca na
questão; restam os miolos frescos. Para mostrá-lo ao senhor, vou comê-los ao
sair, para lhe mostrar na próxima sessão” (LACAN, 1962-63/2005, p.139). Se
esse resto não pode ser dito, a saída é que ele seja visto, visibilizado, exposto.
“O essencial do que é mostrado é esse resto, é sua queda, é o que sobra nessa
estória” (p.139). O objeto no acting deixa seu estado habitual de causa ausente
do desejo e sobe à cena sob a forma de uma exibição de gozo.
A função da mostração no acting fica patente num caso clínico relatado por
Alberti (1998), em que o paciente consumia e negociava drogas de maneira ostensiva no playground do próprio prédio do pai. Um pai que, muito absorvido
por sua vida profissional, com frequência ignorava o filho. A analista interpreta
a mostração no playground como um “apelo à função paterna, em que a droga
é o instrumento de transgressão para fazer existir a lei” (p.127).
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Em que diferem acting e sintoma? Lacan (1962-63/2005) ensina que o acting
clama por interpretação; já o sintoma, apesar de interpretável, não é essencialmente um apelo à interpretação.
“O sintoma não é como o acting out, que pede interpretação, pois (...) o que a análise
descobre no sintoma é que ele não é um apelo ao Outro, não é aquilo que mostra
ao Outro. O sintoma, por natureza, é gozo, não se esqueçam disso, gozo encoberto, sem dúvida (...), não precisa de vocês como o acting out, ele se basta.” (LACAN,
1962-63/2005, p.140)
Ou seja, o sintoma não mostra nada, o gozo está nele encoberto. Eis aqui
uma diferença crucial: no sintoma há gozo encoberto, ao passo que no acting há
mostração de gozo. Pode-se perguntar: se algumas das novas patologias são na
verdade actings, por que razão seriam mais resistentes à manobra da interpretação
que os sintomas? Aceitando a observação dos clínicos de que as patologias do ato
são menos favoráveis à interpretação, e se o acting é uma dessas patologias, por
que razão seria mais resistente à intervenção, se a essência do acting é ser justo
um apelo — coisa que um sintoma não é fundamentalmente?
Desde Freud (1914/1969), sabe-se que a elaboração e a verbalização envolvem
uma suspensão do ato motor. Na análise, um impulso que se dirigiria à esfera
motora pode ser canalizado para a esfera psíquica, o que significa que o ato de
pensamento envolve uma colocação entre parênteses do ato motor. De modo
inverso, quando a atuação prevalece, torna-se mais complicada a abertura à
intervenção analítica e à mobilização do processo de pensar. Além disso, como
no acting existe invariavelmente um destinatário do ato, o sujeito não se implica
de forma direta naquilo que faz. Acrescentem-se, ainda, os efeitos disruptivos
e desorganizadores que a subida à cena do objeto a provoca (MILLER, 2007); o
que pode de fato trazer dificuldades adicionais de manejo para o tratamento.
b) Passagem ao ato — A passagem ao ato envolve justamente a saída do sujeito
da cena. Não havendo mais lugar para si numa configuração simbólica determinada, o sujeito então se evade da cena. Assim, a passagem ao ato é o oposto do
acting: enquanto no acting o sujeito se esforça por restituir um lugar na cena do
Outro, na passagem ao ato o sujeito sem lugar na cena se abandona à posição de
resto. Por isso o sujeito na passagem ao ato não demanda mais nada ao Outro;
ele não se endereça mais a ele, apenas se identifica ao resto que caiu da cena.
No momento da passagem ao ato, temos uma situação de fato pouco propícia
a um tratamento, na medida em que precisamente a dimensão da demanda é
abolida e não há, portanto, apelo dirigido ao Outro.
Tarrab (2005) conta o caso de uma paciente cuja única atividade é ficar o
tempo inteiro na frente do computador. Apesar dos desesperados protestos da
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família, ela persiste em seu vício em Internet, querendo apenas permanecer só,
sem que ninguém a incomode. Ela não apela, nada demanda — isso porque na
passagem ao ato o sujeito não age para inquietar o pai, a família, ou alguém
específico (HARARI, 2008), ele simplesmente se demite da ficção simbólica,
saindo de cena.
Nesse caso, Tarrab afirma ser impossível retirar a garota de sua obstinada
indiferença pela via da decifração do sentido. A dificuldade do tratamento repousa aí, e isso o afasta da operação psicanalítica clássica.
c) Inibição — A inibição não envolve a execução de um ato, mas sua ausência.
Ela é a restrição de uma função do Eu, tendo como finalidade evitar um conflito.
Tal conflito surgiria caso fosse realizada certa atividade, ligada àquela função
(FREUD, 1926 [1925]/2006).
Não seria o caso de algumas dessas novas patologias poderem ser classificadas como inibições? Com todo cuidado de não fazer generalizações ambiciosas,
podem-se apontar, por exemplo, alguns casos de depressão como formas de
inibição, em que o sujeito renuncia ao desejo por temer que isso reative o conflito
e as terríveis censuras superegoicas.
A dificuldade clínica com a inibição é que ela é um momento de parada no
tratamento: como é feita para impedir a emergência do conflito, este fica impossibilitado de se articular, ainda que de modo simbólico. Enquanto a inibição
evita o surgimento do conflito, o sintoma supõe um conflito já instalado. Por
isso é preciso que a inibição se transforme em sintoma para que o tratamento
possa avançar.
Do que foi aqui exposto conclui-se que o traço em comum entre esses “novos
sintomas” é o de não serem sintomas — pelo menos não no sentido freudiano
de mensagem latente.
Pode-se usar a expressão de forma legítima caso a empreguemos no sentido
mais amplo de sinthoma. É o que faz, por exemplo, Tarrab (2005) na seguinte
passagem:
“a toxicomania, a bulimia, a anorexia, os ataques de pânico e tudo o mais que colocarmos nesse saco estão muito próximos do que Lacan chama a operação selvagem
do sintoma, e vão na contramão da vertente simbólica do sintoma como mensagem.
É o sintoma que não pede nada, que é fixação de gozo.” (TARRAB, 2005, p.3)
Este uso é importante e pode ser interessante, dependendo do nível de análise
em que nos posicionamos. Contudo, acreditamos na necessidade de abandonar
o nível da generalidade quando falarmos de respostas subjetivas específicas, a
fim de podermos ter uma ideia mais adequada da riqueza das contribuições de
Lacan para o campo.
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Conclusão
Escuta-se muito hoje que as patologias atuais impõem desafios e dificuldades
para a teoria e a técnica psicanalítica. O que tentamos aqui defender foi a ideia
de que as categorias tradicionais da psicanálise não foram ultrapassadas ou
colocadas em xeque pelas patologias contemporâneas, pois a psicanálise tem,
sim, instrumentos conceituais para pensá-las. Muitos desses fenômenos novos
não são de fato redutíveis à definição tradicional do sintoma, pois seriam na
verdade classificáveis como acting out, passagem ao ato e inibições. Temos razões
para supor inclusive que essa lista não é exaustiva, pois no próprio Seminário 10,
Lacan (1962-63/2005) elenca uma série de outras respostas subjetivas (impedimento, embaraço, efusão, etc.), cujo potencial ainda foi pouco explorado no
campo analítico e que poderiam também servir como ferramentas conceituais
para pensar a clínica contemporânea.
No entanto, devemos fazer justiça à observação, comum na literatura sobre
os “novos sintomas”, de que estes são inabordáveis pela decifração. Procuramos
assinalar as dificuldades de manejo que as ditas patologias do ato apresentam.
A interpretação pelo sentido não costuma funcionar nesses casos por diferentes
razões. No caso do acting, observou-se como a adoção pelo sujeito da via da
descarga motora e não da verbalização introduz um fator complicador no tratamento. A passagem ao ato é ainda mais preocupante, por ser um ato que não
demanda mais nada ao Outro. Se não há demanda, a própria condição mínima
para se fazer uma análise é questionada. Já a inibição — que é mais propriamente
situável como uma ausência de ato — é problemática por supor uma paralisia do
desejo: o desejo não está deslocado como no sintoma, pois a própria expressão
desse desejo foi ceifada.
Embora fuja ao escopo desse artigo discutir o tipo de intervenção apropriada
nesses casos, por ora queremos apenas sinalizar que a psicanálise tem um arsenal
teórico e técnico para pensar tais fenômenos. Devemos conter nossa ânsia por
novidades e não ficarmos desorientados pelo que aparece como inédito. Se a
nossa civilização parece incitar uma busca pelo gozo sem precedentes, é necessário voltar aos fundamentos da nossa teoria e lembrar que tal busca é sempre
marcada por uma impossibilidade. Retomando aqui o argumento de Godino
Cabas (2009), há uma impossibilidade de o gozo saturar completamente o desejo. O sinal dessa
impossibilidade aparecerá sob a forma de um afeto, “uma circunstância na qual
o sujeito do inconsciente se vê profundamente afetado. Ora por uma decepção
(‘não era isso’), ora por um estado de tédio” (p.236). Ou seja, transposto o umbral
do princípio do prazer e iniciada a busca incessante de gozo, no caminho para
ele há algo que atualiza o mal-estar e que indica que o gozo encontrado não é
ainda suficiente. O excesso de gozo traz tédio ou decepção.
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Serão precisamente esses afetos (tédio, decepção, angústia) que podem possibilitar uma via de saída e de acesso a um desejo. Se o método analítico tem
ainda alguma chance de curar, é por encontrar nesses afetos um ponto de apoio
para a eficácia de intervenção.
Talvez seja pouco preciso dizer que tais afetos constituem um limite ao
gozo. Um afeto não é exatamente um limite, uma vez que não leva de fato ao
refreamento do gozo. Ele não representa um dique de contenção, tal como era
a lei repressiva dos tempos freudianos. Mas ele é um limite num sentido mais
largo, como um índice de que algo vai mal. Tampouco podemos dizer que tais
afetos necessariamente suscitarão uma demanda. É essa a dificuldade dos “novos
sintomas”, o não endereçamento ao Outro. Mas, insistimos, embora a presença
de tais afetos não seja condição suficiente para a saída do gozo autista, representa
sua condição necessária.
Um esclarecimento importante em relação ao diagnóstico: pensamos que os
“novos sintomas” são fenômenos compatíveis em principio com as três estruturas clínicas. Por exemplo, a passagem ao ato ocorre tanto na psicose quanto na
neurose ou na perversão. O que acontece é que os “novos sintomas” impõem
uma dificuldade a mais na definição inicial do diagnóstico, levando o clínico
a não conseguir classificar de imediato qual a estrutura clínica em jogo. Isso
não equivale a uma abolição do diagnóstico estrutural, mas a admissão de que
nem sempre é possível decidir com convicção a classificação do caso num dado
momento.
A função das entrevistas preliminares ganha aqui uma justificativa adicional,
pois será preciso que o analista se oponha às atuações e que suas intervenções
visem promover um corte do excesso de gozo. Somente quando o “sintoma” está
em perda de gozo é que o sujeito pode colocá-lo em jogo pela via da palavra.
Os “novos sintomas” impõem, portanto, uma questão preliminar ao tratamento, por constituírem uma situação de urgência subjetiva. A urgência demanda
do analista um manejo para que o sujeito seja colocado em condições de fazer
análise e de aceder à regra fundamental. Que fique claro: assegurar que o sujeito
tenha condições de respeitar minimamente o dispositivo da associação livre não
significa que ele esteja em análise, mas é um passo prévio a isso, uma condição
de possibilidade do tratamento.
O diagnóstico quase sempre só pode ser feito após se obter um apaziguamento
da urgência. Isso significa que urgência é um fator que complica a emissão do
diagnóstico diferencial. De qualquer forma, é importante frisar que os “novos
sintomas” não são apanágio de um estrutura clínica específica. Eles não apenas
não servem para fazer o diagnóstico diferencial como o dificultam.
Em relação à falência da autoridade simbólica, é importante frisar que tal
falência está decerto articulada à proliferação das patologias do ato. O que se
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procurou demonstrar aqui é que o dito declínio não significa necessariamente
declínio do Nome-do-pai. O Nome-do-pai poderá estar inscrito ou não, o que
deve ser diagnosticado caso a caso.
Uma estrutura discursiva que incita ao gozo certamente terá impactos diferenciados sobre as estruturas clínicas — neurose, psicose e perversão. Deve-se
aqui pensar de maneira estrutural: um fenômeno (por exemplo, uma passagem
ao ato) até pode ter uma organização interna, mas seu sentido e função serão
pensados a partir da sua articulação aos outros na lógica da estrutura. No exemplo
da passagem ao ato, são diversos os recursos com os quais o sujeito conta para
lidar com ela: estes recursos serão muito diferentes numa psicose (em que não
há inscrição do Nome-do-pai) e na neurose (em que há inscrição).
Recebido em 5/3/2012. Aprovado em 11/6/2012.
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Rosane Zétola Lustoza
[email protected]
Mauricio José d`Escragnolle Cardoso
[email protected]
Roberto Calazans
[email protected]
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A crítica como método
no retorno a Freud
Marta Regina de Leão D’Agord
Marta Regina de Leão
D’Agord
Psicóloga, mestre
em Filosofia,
doutora em
Psicologia;
professora do
Departamento
de Psicanálise e
Psicopatologia e
do Programa de
Pós-Graduação em
Psicologia Social
e Institucional
(Instituto de
Psicologia, UFRGS).
Resumo: Em seu projeto de retorno a Freud, Lacan propõe um diálogo com outras disciplinas para a análise dos conceitos psicanalíticos.
Neste artigo, analisa-se a contribuição de conceitos de Linguística,
Lógica e Matemática para a formulação do conceito de sujeito do
inconsciente, tal como encontramos no matema “um significante
representa um sujeito para outro significante”. O termo ‘crítica’ é
referido à análise da racionalidade necessária para se atingir um
conhecimento. Este trabalho mostra que a análise do conceito de
sujeito do inconsciente conduziu Lacan à elaboração de uma lógica
do significante. Esta lógica poderá ser nomeada como uma lógica
psicanalítica.
Palavras-chave: Psicanálise, crítica, método, lógica.
Abstract: The critique as method in the return to Freud. In his
project of a return to Freud, Lacan proposes a dialogue with other
disciplines for the analysis of psychoanalytic concepts. This paper
presents an analysis of the contribution of concepts from linguistics,
logic and mathematics in the elaboration of the concept of unconscious subject, as appears in the matheme: a signifier represents a
subject to another signifier. The term critique refers to the analysis
of rationality necessary to reach knowledge. This work concludes
that the formulation of the concept of the unconscious subject leads
Lacan to the development of a signifiant’s logic. This logic may be
named as a psychoanalytical logical.
Keywords: Psychoanalysis, critique, method, logic.
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Marta Regina de Leão D’Agord
Introdução
Este trabalho analisa, na obra de Jacques Lacan, momentos que indicam a apropriação da crítica como método para a realização do projeto de retorno a Freud.
Ao longo dessa crítica é possível identificar a emergência de uma lógica do
significante a partir da elaboração do conceito de sujeito do inconsciente. Esse
processo encontra seu momento privilegiado quando Lacan interpreta a expressão
“nur einen einzigen Zug” de FREUD (1921c/1976, p.117), “apenas um traço isolado”
(FREUD, 1921c/1987, p.135), com os aportes linguísticos, lógicos e matemáticos.
O que seria uma lógica do significante? Tratar-se-ia de uma lógica no sentido do organon aristotélico, de instrumento para a produção de conhecimento?
Se pensarmos que o instrumento é um conceito ou um modelo que não tem
existência no real, mas que permite o acesso ao real, uma lógica seria um instrumento. Seria essa a função de uma lógica do significante? Um instrumento
para acessar ou intuir o sujeito do inconsciente?
A leitura da lógica como instrumento permite uma interpretação do uso da
topologia por Lacan. Sobre esse uso encontramos duas vertentes nas pesquisas
atuais. Uma primeira vertente poderia ser chamada de comparativa, a outra
de estrutural. Para Conté (1996), representante da vertente comparativa, as
superfícies topológicas seriam modelos para explicar o sujeito do inconsciente.
Entretanto, para os representantes da vertente estrutural (EIDELSZTEIN, 1992
e DOUMIT 1996), a topologia em Lacan é algo mais do que um modelo. Para
Eidelsztein (1992), os esquemas, grafos, superfícies e nós têm a mesma estrutura
do que se quer representar, a saber, o sujeito. Doumit (1996) também faz essa
leitura, ao observar que Lacan elabora os lineamentos de uma lógica “com um
estilo e uma linguagem tais que não se apresentam como exteriores ao objeto
de que falam” (p.297).
Essas pesquisas trabalham com a hipótese de que Lacan buscava, no campo
da Matemática e da Lógica, uma forma de acesso simbólico ao real, isto é, um
método. “Para Lacan, observa Zizek (1997), a ciência moderna tem relação com
o Real (matemático) que se encontra sob o universo simbólico” (ZIZEK, 1997,
apud GLYNOS & STAVRAKAKIS, 2001, p.4).
Considerando-se que o único acesso ao real se dá pela escrita, para se fazer
ciência é preciso criar uma forma escrita, isto é, simbólica, de acesso ao real.
Portanto, o esforço de Lacan ao criar esquemas e grafos (modelos topológicos
bidimensionais) e, mais tarde, trabalhar com toros, cross-caps, garrafa de Klein e
enlaces borromeanos (modelos topológicos tridimensionais) teria como objetivo
a busca de uma escrita lógico-matemática e alfanumérica do real.
Lacan empregou, primeiramente, o termo ‘categoria’ para falar de Real,
Imaginário e Simbólico, como letras para descrever três zonas distintas do seu
esquema R. Mais tarde, substituiu a noção de categoria pela de dimensão, sendo
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a dimensão uma invariante topológica fundamental. E, por fim, a dimensão foi
substituída pela noção de consistência na topologia dos enlaces borromeanos.
Nessa trajetória, é possível mapear um projeto científico caracterizado pela
busca de aperfeiçoamento de uma forma escrita para dar conta do sujeito do
inconsciente.
Podemos demarcar um início dessa trajetória de delimitação do real no escrito
“A carta roubada” (1956/1998), quando Lacan aborda o jogo do “par ou ímpar” e
suas variações: sinais de mais (+) e menos (-) ou “cara ou coroa”. Para Matherat
(2007), esse texto contém uma parte matemática que se apoia no exemplo de
como uma cadeia significante pode fazer aparecer, enquanto estruturada, uma
cadeia aleatória. A partir de um apólogo extraído do conto homônimo de Edgar
Allan Poe (1809-1849), Lacan demonstra que, a partir de um primeiro lance,
que pode ser cara ou coroa, inicia-se aleatoriamente uma sucessão de lances em
que: cara sucede à cara; coroa sucede à cara; cara sucede à cara; coroa sucede à
coroa; e assim por diante. Poderemos, então, elaborar uma combinatória com
todas as possibilidades de seriação a partir de um primeiro lance.
Mesmo assim, o primeiro lance mantém-se não calculável, na medida em que
depende apenas do acaso. O acaso do primeiro lance no jogo do cara ou coroa
equivaleria ao real. Dado um primeiro sorteio ao acaso, uma estrutura poderá
determinar as possibilidades dos novos sorteios. Com o cálculo das probabilidades, buscamos cercar e limitar o real por meio do simbólico. Quaisquer que
sejam os resultados de uma série de sorteios ao acaso, esses resultados já entram
em um sistema predeterminado, em uma estrutura que os determina. Porém,
a estrutura simbólica não impede que o acaso continue existindo. Portanto, o
simbólico não esgota o real.
O projeto crítico
Lacan (1953/1966) observou que a Psicanálise, como disciplina, devia seu valor científico aos conceitos elaborados no progresso da experiência de Freud.
Entretanto, esses conceitos, por ainda estarem mal criticados, conservavam a
ambiguidade da língua vulgar [“d’être encore mal critiqués et de conserver por autant la
ambiguité de la langue vulgaire” (LACAN, 1953/1966, p.240-241)]. Ao designar como
mal criticados os conceitos psicanalíticos, Lacan anunciava que a tarefa crítica
estava incluída em seu projeto de “retorno a Freud”.
O que seria uma crítica em Psicanálise? A pesquisa etimológica de Heidegger
(1965/2001) indica que ‘crítica’, do grego crinein, significa diferenciar, realçar,
deixar ver o diferente como tal em sua diferença. Nessa perspectiva, o que é diferente só o é porque é diferente com referência a algo. Atenção: caracteres gregos
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Uma crítica, na acepção preconizada por Kant, indaga de que modo a razão
chega ao conhecimento, isto é, a crítica avalia as condições para o conhecimento, dados os limites da experiência. Trata-se, em Kant, de uma crítica enquanto
estabelecimento de limites para a razão.
Diferenças e limites. Seriam essas as duas fontes críticas das quais se originaria o projeto lacaniano de retorno a Freud? A referência a diferenças e limites
aparece no diálogo da Psicanálise com outros campos do conhecimento. Lacan
(1953/1998) propõe a atividade comparativa enquanto busca de equivalências
entre conceitos psicanalíticos e conceitos de outras disciplinas. “Parece-nos que
esses termos [os psicanalíticos] só podem esclarecer-se ao estabelecermos sua
equivalência com a linguagem atual da antropologia ou com os mais recentes
problemas da filosofia, onde, muitas vezes, a psicanálise só tem a se beneficiar”
(LACAN, 1953-1966/1998, p.241).
Os limites, no projeto crítico de Lacan, serão propostos a partir do estabelecimento de equivalências com a linguagem da Antropologia, da Filosofia e da Lógica. A atividade comparativa responderá, portanto, pela crítica enquanto limite.
Por outro lado, há uma dimensão do benefício que a crítica poderá trazer para a
Psicanálise, enquanto fundamentação teórica necessária para uma disciplina que
pretenda valor científico. Esse benefício seria a afirmação do que é o próprio da
Psicanálise, isto é, em que a psicanálise se diferencia das outras ciências.
Um terceiro aspecto do projeto crítico de Lacan tem como demarcador o
uso das expressões “a experiência de Freud” e “a experiência freudiana”. Essas
expressões, retomadas várias vezes por Lacan, seja nesse texto dos Escritos seja no
Seminário, demarcam um distanciamento crítico em relação ao que provém da
experiência freudiana. Consideramos que este terceiro aspecto do projeto crítico
de Lacan caracteriza sua proposta de não romper com a terminologia, mas de
contextualizar, na experiência freudiana, a origem dos termos.
É nessa perspectiva tríplice de crítica que é preciso considerar a leitura do
termo freudiano einziger Zug por Lacan (1961-1962/1996). “Somente um traço
isolado” (nur einen einzigen Zug) é uma expressão utilizada por Freud (1921c/1987)
para se referir a uma identificação com apenas um traço de outra pessoa.
A leitura crítica que Lacan realiza do conceito de identificação pode ser
analisada considerando as três vertentes que apontamos aqui. Há uma fundamentação teórica do conceito de identificação no diálogo com a Lógica e com a
Linguística; há a afirmação da teoria psicanalítica com a elaboração do conceito de
identificação simbólica, diferenciando-o do conceito de identificação imaginária.
A identificação imaginária será caracterizada como biunívoca, tendo o estádio
do espelho como paradigma. A identificação imaginária origina-se da imagem
de si mesmo como uma totalidade que é antecipada pelo infans em seu encontro com a sua imagem refletida. Essa imagem oferecida pelo reflexo especular
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é correspondência biunívoca, e se assim não fosse, não geraria o júbilo como
efeito da antecipação de uma imagem de totalidade. Já a identificação simbólica
será comparada à função significante e seu paradigma será o traço unário. Se a
primeira corresponde ao eu ideal, a segunda ao ideal de eu.
E, por fim, a noção de “um traço isolado”, na obra de Freud (1921c/1987),
oferece um ponto de partida para a concepção de lógica do significante. O que
revela o projeto lacaniano de continuidade da pesquisa psicanalítica sem ruptura
com a obra freudiana.
A aplicação da crítica enquanto método
na leitura do unário como diferença
“A abordagem moderna do Um é escritural, conforme o que um dia extraí de
Freud, o einziger Zug. Essa é a expressão com que Freud rotula uma das formas do que
chama de identificação. Eu a traduzi, de uma forma que persiste, por traço unário.”
(LACAN, 1968-1969/2008, p.119)
Kant criticara o conceito filosófico de unidade, mostrando que a unidade não
é o um, mas uma função, a função sintética. Lacan, por sua vez, vai mostrar
que o traço unário da experiência freudiana é para ser considerado como uma
função: a função significante. Assim, a identificação do sujeito psíquico é para
ser buscada não em uma unidade, como um ser, no sentido de algo já dado, mas
em uma relação entre significantes.
Lacan articula os designadores de Frege, o conceito de valor linguístico de
Saussure, e a definição de signo de Peirce para pensar a função significante, isto
é, o significante como o que pode ser apagado, isto é, que pode ser substituído
por outro.
A diferenciação dos designadores entre Sinn e Bedeutung por Frege (1848-1925),
posta em relação com a concepção de valor linguístico de Saussure (1857-1913)
e com o fundamento do signo em Peirce (1839-1914), permitirá a Lacan fundamentar o conceito de sujeito do inconsciente com a concisão do matema “um
significante representa um sujeito para outro significante”. A relação entre um
significante e outro significante é que vai produzir um sujeito. Um significante
sozinho nada produz. Por sua vez, a concepção de função do significante supõe
um diálogo com a Matemática, mais especificamente com a teoria dos conjuntos.
Tomemos o conceito de número para analisar qual seria a comparação possível
com o conceito de sujeito do inconsciente.
Um número é uma propriedade de um conjunto. Se um conjunto tem a propriedade dois, dizemos que “nesse conjunto há dois elementos”. Assim, o número
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dois poderá ser representado ou pelo algarismo dois ou pelo conjunto formado
por dois elementos. Essa propriedade de um conjunto é também chamada de
cardinal. Diferentemente do cardinal, o conceito de ordinal é relacionado à sucessão ou vizinhança. Qual é o número seguinte a um número dado? É aquele
que se refere ao conjunto com um elemento a mais. Logo, o número seguinte é
aquele que é representado por um conjunto onde há “Um a mais”. Assim, para
que um conjunto A seja diferente de um conjunto B, é preciso que haja pelo
menos um elemento em A que não esteja em B, ou vice-versa. Este elemento
vai ser o um mais, o que faz a diferença entre os dois conjuntos. Se definirmos
um conjunto pelos seus atributos, pode haver um conjunto mesmo quando não
existam elementos. Ou seja, o conjunto é uma abstração formada a partir de uma
definição de atributo, por exemplo, o atributo “quadrados redondos”.
Por sua vez, um atributo ou designador pode ser analisado como denotação
ou como conotação. É nessa perspectiva que Frege diferenciou “o caráter informativo de duas afirmações de identidade que contenham termos correferenciais,
distinguindo o referente (Bedeutung) de um nome do seu sentido (Sinn)” (BRANQUINHO, 2006, p.670). O objeto ao qual o termo se aplica é o referente. E o
sentido do termo contém o modo de apresentação de sua referência.
Por exemplo, os nomes Edson Arantes do Nascimento e Pelé designam a
mesma pessoa. Todavia, as frases: “Pelé é Pelé” e “Pelé é Edson Arantes do Nascimento” não têm o mesmo valor. “Pelé é Pelé” é uma frase que simplesmente
expressa a identidade de uma pessoa consigo mesma. “Pelé é Edson Arantes do
Nascimento”, por outro lado, tem valor informativo. Uma pessoa que descobre
que “Pelé” e “Edson Arantes do Nascimento” designam a mesma pessoa não está
meramente descobrindo a relação de identidade que uma pessoa tem consigo
mesma, pois isso ela já sabia, ao menos implicitamente. Os nomes Edson Arantes
do Nascimento e Pelé têm a mesma referência, mas não têm o mesmo sentido.
É preciso, então, retomar o conceito de valor em linguística, o qual é constituído pelos princípios de troca e comparação. Pelo primeiro princípio, uma
coisa dessemelhante é suscetível de ser trocada por outra coisa cujo valor resta
determinar. Trata-se de uma significação. Pelo segundo princípio, coisas semelhantes podem ser comparadas com aquela cujo valor está em causa. Trata-se
de uma oposição. Alguns exemplos, apresentados por Saussure (1916/1995),
permitem compreender o alcance da concepção de valor em Linguística: O português carneiro ou o francês mouton podem ter a mesma significação que o inglês
sheep, mas não o mesmo valor, pois ao falar de uma porção de carne preparada
e servida à mesa, o inglês diz mutton e não sheep. Eis a diferença de valor entre as
palavras sheep e mouton. Sheep tem a seu lado um segundo termo, mutton, o que não
ocorre com a palavra portuguesa ou com a palavra francesa.
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A palavra sheep, pode significar carneiro, mas sheep, quando acompanhado por
mutton, terá outra significação. Carneiro no contexto campo terá uma significação, mas
carneiro, empregado em relação à mesa, terá outra significação. Há uma mudança
de valor. Um significante (carneiro) produz uma significação (alimento) desde
que posto em relação a outro significante (prato). Retomando os designadores,
a palavra carneiro tem duas denotações (referentes): aquele animal e aquele tipo
de carne. E a decisão a ser tomada quanto à significação em questão depende
do contexto, isto é, do significante que vem antes ou depois no enunciado. Isto
é, depende dos outros elementos do conjunto (enunciado) do qual faz parte a
palavra carneiro.
O que é introduzido, através diferença entre as apresentações de uma referência, é a função significante. Os nomes Edson e Pelé, mesmo que sejam a
mesma pessoa, designam, diferentemente, o mesmo referente. Eis a diferença
significante. A função significante gera, por sua vez, a distinção entre a função
conotativa e a função denotativa.
Outra diferença introduzida pela função significante será aquela entre as
classes e os conjuntos. As classes respondiam pela relação de cada ente com
determinada classe como um universo no qual ele estaria incluído ou não. Por
exemplo, se um ente não estivesse incluído na classe x, ele estaria necessariamente incluído na classe não x, o complementar da classe. É preciso agora abordar
as relações entre os membros de uma classe. É a essa questão que a teoria dos
conjuntos responde. Pois não é apenas pela presença ou ausência de um atributo
que é possível definir se determinado ente está incluído ou não em determinada
classe. Logo, uma classe, enquanto universo, não é suficiente para trabalhar o
conceito de identificação.
Lacan compara, então, o conjunto vazio ao Outro enquanto lugar dos significantes. Dada a propriedade “x é diferente de si mesmo”. Dado que não existe um
elemento que seja diferente de si mesmo, esse é um conjunto vazio. O conjunto
vazio é, portanto, um conjunto que existe, mas que não tem elementos. Pelo
princípio da extensionalidade, poderemos afirmar que há apenas um conjunto
vazio. Se tivermos dois conjuntos, A e B, com exatamente os mesmos elementos,
então se trata do mesmo conjunto e não de conjuntos diferentes. Ou seja: A =
B. Para um conjunto A ser diferente de um conjunto B, é preciso que haja pelo
menos um elemento em A que não esteja em B, e vice-versa. Dessa forma, só há
um conjunto vazio, pois se houvesse dois candidatos distintos, um deles teria
que conter um elemento que não se encontrasse no outro. Caso contrário seria
o mesmo conjunto, o conjunto vazio.
Assim como não há dois conjuntos vazios, não há Outro do Outro. Não há
um sentido em um significante, assim como não há outro escondido atrás de um
espelho. Não há nada senão a sucessão de significantes. Um corte nessa sucessão,
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enquanto reordenamento de significantes, será produzido pelo sujeito do inconsciente no ato falho, no chiste, no sonho e no sintoma. Essa ruptura é que faz
com que surja a possibilidade de novos sentidos. Mas algo permanece o mesmo?
Lacan (1961-1962/2003) explica a identidade própria ao significante a partir
de uma imagem criada por Saussure. Considerando-se “dois expressos Genebra-Paris das 8:45 da noite que partem com 24 horas de intervalo. Aos nossos olhos,
é o mesmo expresso, e no entanto, provavelmente, locomotiva, vagão, pessoal,
tudo é diferente” (SAUSSURE, 1916/1995, p.126). Ou seja, a realização material
dos expressos é diferente.
Essa imagem permite ilustrar a concepção de que o traço unário se realiza
pela sucessão na qual se agrega um a mais a cada vez, por isso, a cada vez diferente. O significante é fecundo porque não pode ser idêntico a si mesmo. No
exemplo do expresso das 8:45 da noite, a diferença, o um a mais, relaciona-se às
condições materiais diferentes, ou seja, a cada nova edição do traço, a realização
material do traço é outra. Poderíamos nos surpreender com essa abordagem da
identificação a partir da função significante? Não, se pensarmos que se trata do
significante em oposição ao significado, e da precedência do significante sobre o
significado. O leitor se surpreenderá ao perceber que se trata de tematizar a função
significante comparando-a com a função matemática. Essa função matemática
é possível encontrar também na concepção de fundamento do signo em Peirce.
Vamos, pois, retomar a definição de signo para observar quando surge a função.
Um signo, ou representamen, para Peirce (1977),
“É aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se
a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um
signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denominamos o interpretante do
primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto
não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo de ideia, o fundamento
do representamen.” (PEIRCE, 1977, p.36)
O fundamento do signo poderia ser equivalente a um operador de função,
uma função que definiria o contexto em que determinado signo é apresentado.
Seria em comparação ao fundamento do signo que Lacan desenvolveria um
conceito de função significante, isto é, uma abordagem do significante como
uma produção de efeitos de significação? Peirce abordara a potencialidade do
signo de produzir algo na mente de alguém a partir de uma relação entre um
primeiro signo e um segundo signo. Aquilo que produz essa relação, e que
é chamado de fundamento, é algo em comum entre o primeiro e o segundo
signo. Assim, é esse fundamento, enquanto exterior à tríade (signo, interpretante, objeto) que produz a equivalência sem a qual não haveria produção de
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sentido. Esse fundamento que não é explicitado é como uma função significante,
a produção de relações entre significantes sem que o sujeito o saiba.
A função significante
“É o significante que corta, é ele que introduz a diferença como tal no real, e
justamente na medida em que não se trata de diferenças qualitativas.”1 (LACAN,
1961-1962/1996, p.58, tradução livre)
A elaboração de uma lógica do significante para a teorização sobre o sujeito
do inconsciente tem dois parâmetros: o matema “um significante representa um
sujeito para outro significante” e a formulação da identificação do significante.
Vamos a seguir articular essas dois demarcadores.
O matema “um significante representa um sujeito para outro significante”
introduz a serialidade. E uma série implica que sempre haverá um a mais, um
significante a mais. Portanto, a serialidade introduz a diferença necessária a
um significante para ser o que é. E aqui entra a questão matemática e também
linguística da seriação. Esse conceito permite pensar a relação do sujeito do inconsciente a um primeiro significante que será denominado de ‘traço unário’.
É o que vem depois, isto é, o “um a mais” de uma série, que produz o sujeito
para um primeiro significante, e este primeiro está perdido, está fora da série.
Assim, ao buscar na Matemática uma homologia, Lacan introduz temas que
seguirá abordando na década seguinte, quando o “a mais” será também um “a
menos”, e ambos serão relacionados ao par ordenado S1 e S2, e à emergência do
sujeito do inconsciente e do objeto a como mais-de-gozar.
Já o aporte para trabalhar o significante como diferença provém da Linguística. Saussure (1916/1995) aborda as diferenças e as oposições em um sistema de
Língua. Um signo, como totalidade (significante e significado), é comparado a
outro signo por oposição. Já a relação no interior do signo, a saber, entre significante e significado, é uma relação puramente diferencial. Assim, o estudo da
linguagem se fundaria em oposições (distinções entre signos) e diferenciações
fônicas (significantes) e conceituais (significados) que essas oposições implicam.
Ou seja, a condição da oposição é a diferenciação.
Aplicado à unidade (signo), o princípio da diferenciação pode ser assim
formulado: os caracteres da unidade se confundem com a própria unidade.
“Na língua, como em todo sistema semiológico, o que distingue um signo é
1 “C’est le significant qui tranche, c’est lui qui introduit la différence comme telle dans le
réel, et justement dans la mesure ou ce dont il s’agit n’est point des différences qualitatives. ”
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tudo o que o constitui. E a diferença é o que faz a característica, como faz o
valor e a unidade” (SAUSSURE, 1916/1995, p.141).
Essa característica da diferença, aportada ao signo pelo significante, será
destacada por Lacan na comparação entre a diferença significante e a diferença
qualitativa. Essa última denota uma diferença de significado e é pela eliminação
das diferenças qualitativas que a lógica atinge o princípio da identidade. Já a
diferença significante conota a diferença em estado puro.
A operação que faz com que se gere uma identidade lógica ou matemática
é aquela em que se abstrai de todas as diferenças qualitativas. Assim também o
número é uma abstração, pois se trata de uma operação sobre, por exemplo, dois
conjuntos contendo cada um três elementos, sejam esses conjuntos formados um
por três frutas e outro por três animais. Abstraímos as qualidades dos elementos
presentes e ficamos apenas com o número de elementos. Essa é a operação pela
qual constituímos, na nossa infância, o conceito de número. Assim, do ponto
de vista matemático, o real está aí, mas dele interessa a abstração número.
Ao ser definida essa identidade, atinge-se também o suporte do significante,
a letra. Ou seja, pelo princípio da identidade, o significante é ainda o mesmo.
Mas ainda não se chegou à diferença significante. Esta surgirá quando nos
interrogarmos sobre qualquer série de traços entalhados sobre uma costela e
concluirmos que não há semelhança entre eles. Isso é possível, na medida em
que considerarmos a ordenação, a posição de cada traço em relação ao outro.
E a ordenação desses traços, um depois do outro, é o efeito do simbólico sobre o
real. Se os traços formam uma série, e, em uma série, como na série de conjuntos
numéricos, um elemento sucede ao outro, está em posição diferente da posição
do outro. Eis o conceito de significante: o significante como diferença de posição
simbólica em uma série. A contribuição que Lacan buscou na matemática foi
esse ordenamento simbólico do real.
Se o signo representa algo para alguém, é preciso alguém que já esteja aí
como suporte do signo. O significante se distingue do signo porque manifesta a
presença da diferença como tal e nada mais. O significante, não pode se definir
senão como não sendo o que são os outros significantes. Do fato de ele não poder
se definir senão justamente por não ser todos os outros significantes, depende
essa dimensão de que ele não poderia ser ele mesmo. De onde surge outro ponto
de partida, enunciado como “Um é o Outro”. “A não pode ser A”, o significante
não pode ser idêntico a si mesmo. A função significante equivalerá à função da
pura diferença. O significante introduz a diferença como tal no real.
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Considerações finais
No projeto de retorno a Freud, o traço unário representa a leitura crítica
de um termo freudiano na elaboração, por Lacan, da função significante.
A função significante, por sua vez, é a articulação da concepção matemática
do um e da concepção linguística do significante como diferença. A começar
pela substituição de único por unário, em referência à teoria dos conjuntos, na
qual conjunto unário é aquele que possui apenas um elemento. O traço unário,
como um significante, é o que suporta o encadeamento ou a série. Nessa série,
o significante primeiro é substituído por outro significante, e assim também
acontece na metáfora. O acontecimento do sujeito do inconsciente toma a forma
do apagamento ou substituição característica do significante. Se o signo peirceano
tem no fundamento o seu suporte; o sujeito, por sua vez, encontrará seu suporte
no significante, pois o significante representa o sujeito.
A substituição de S1 por outro significante, S2, inaugura uma série, e o encadeamento, a seriação, é o próprio simbólico. É aqui que entra o conceito de
Outro como lugar, apresentado comparativamente à cadeia significante como
uma relação nunca esgotada entre as possibilidades de uso de fonemas, isto é, o
jogo entre semantemas e fonemas.
Encontramos, nessa elaboração lacaniana, o elemento fundamental do processo de simbolização já introduzido por Freud (1925h/1987) através da Verneinung,
cuja conceituação também se situava a partir de uma análise comparativa com
a Lógica. Um primeiro resultado da análise do projeto crítico de Lacan mostra
que ele buscou o estabelecimento de um limite, isto é, o estabelecimento de
uma regra primordial, como é apresentado no livro 9 do Seminário:
“Fazemos uma lógica do funcionamento do significante, pois, sem essa referência
constituída como primária, fundamental, da relação do sujeito com o significante,
o que eu adianto, é que ele é, propriamente falando, impensável.” (LACAN, 19611962/2003, p.149)
Recebido em 27/2/2012. Aprovado em 5/7/2012.
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Um percurso sobre o falo na psicanálise:
primazia, querela, significante e objeto a*
Ana Costa e Flavia Bonfim
Ana Costa
Psicanalista,
professora da UERJ
e coordenadora da
Rede de Pesquisa
Escritas da
Experiência. Autora
dos livros: Clinicando
(Appoa, 2008);
Sonhos (Jorge Zahar,
2006); Tatuagem
e marcas corporais e
Atualizações do sagrado
(Casa do Psicólogo,
2003).
Flavia Bonfim
Psicanalista,
psicóloga
graduada e com
especialização
em Psicanálise e
Laço Social pela
UFF, mestre em
Pesquisa e Clínica
em Psicanálise pela
UERJ e supervisora
de estágio do Setor
de Psicologia Geral
da Associação
Fluminense de
Reabilitação.
Resumo: As considerações sobre o falo na história psicanalítica
não são unânimes e lineares. Freud o situou como elemento fundamental da estruturação sexual; todavia, semelhante valor não
lhe foi atribuído pelos pós-freudianos, dando início ao que Lacan
denominou de “querela do falo”. Lacan, apesar de ter situado o falo
como significante, promoveu deslocamentos e nuances na forma
de abordá-lo — articulou-o ao objeto a, seguido da identificação
ao semblante e culminando na lógica do todo e não-todo fálico.
Estas formulações mostram relação com as construções a respeito
do real; portanto, não revogam as contribuições anteriores, mas
redimensionam o aparato teórico-clínico de Lacan.
Palavras-chave: Falo, sexualidade, significante, objeto a, não-todo
fálico.
Abstract: A course in psychoanalysis about the phallus: primacy,
quarrel, significant and object a. The considerations about the phallus in psychoanalytic history are not unanimous and liners. For
Freud, the phallus is a fundamental element of sexual organization,
however, the same value wasn’t assigned by the post-Freudian, initiating to what Lacan called the “quarrel of the phallus”. Lacan, despite
having set the phallus as signifier, promoted changes and nuances
in the way of approaching it — articulated to a object, followed by
the identification to semblant and culminating in logic the phallus
all and not-whole. These formulations reveal relationship with the
theorizing on the real, therefore, not revoke the earlier contributions, but resize the theoretical apparatus and clinical of Lacan.
Keywords: Phallus, sexuality, significant, object a, non-all phallic.
*
Artigo redigido a partir da dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
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Ana Costa e Flavia Bonfim
A
pesar de o falo ser um tema recorrente nos mais variados debates psicanalíticos, as construções a seu respeito ao longo da história da psicanálise não são
unânimes e lineares. Sendo um conceito fundamental presente na obra freudiana
no que se refere à hipótese da primazia fálica na estruturação sexual de ambos
os sexos, não podemos afirmar que semelhante valor lhe foi atribuído pelos
pós-freudianos. Estes, ao teorizarem sobre a sexualidade feminina, promoveram
um desvio quanto ao lugar do falo na teoria freudiana sobre a sexualidade. Com
Lacan, vemos tal embate ser solucionado, visto que o falo passa a ser esclarecido
em sua função, ou seja, o falo é um significante, e todo desejo, seja do homem
ou da mulher, possui referência fálica. Entretanto, o mesmo Lacan, mais à frente
em seu ensino, apresenta-nos outra dimensão do falo. Este é articulado a uma
das formas do objeto a. O objeto a, por sua vez, apresenta estrutura irredutível
ao significante.
Diante disso, este ensaio versa sobre o conceito de falo, tendo como objetivo
geral traçar um percurso do mesmo na história da psicanálise. E, de modo especial, procuramos aqui extrair consequências da articulação entre falo e objeto
a proposta por Lacan, com o objetivo de apontar em que perspectiva se insere
esta elaboração teórica.
A primazia fálica em Freud
Ao abordar a noção de falo, é interessante pensar sobre a origem desse termo na
psicanálise. Lacan, ao fazer referência ao falo, pondera que “não foi sem razão
que Freud extraiu-lhe a referência de simulacro que ele era para os antigos.”
(1998a [1958], p.359). Em seguida, Lacan (1999 [1957-58]) afirma que o falo,
na antiguidade grega, não era idêntico ao órgão, seja em termos de acessório do
corpo, prolongamento ou em seu estado de funcionamento — sendo seu uso
mais predominante no sentido de simulacro, uma insígnia. Segundo este autor,
isto nos coloca na pista do falo em seu papel preponderante como representante
do desejo.
A representação fálica era bastante familiar no cotidiano do mundo romano,
egípcio, grego e etrusco antigo. Imagens de falo podiam ser encontradas em
muros, joias, sinos, lamparinas, máscaras, paredes e tigelas, simbolizando a fertilidade e a força apotropaica (sua bondade trazia boa sorte e sua agressividade
afastava o azar e o mau-olhado, cf. Cavicchioli, 2008). Isto é, os antigos viam no
falo um objeto poderoso, perpetuador da vida de todas as espécies do planeta e
neutralizador das coisas ruins. Também era possível encontrar na antiguidade
o culto ao falo, manifesto em procissões religiosas (falofórias) em que se levavam uma ou várias imagens fálicas. Esse tipo de culto era um antídoto contra a
impotência; traduzia-se em símbolo de fecundidade (BRANDÃO, 1991). Frente
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a este lugar atribuido à referência fálica na antiguidade, podemos associar a supervalorização do falo e sua ligação com a sexualidade. Caso não haja a veneração
ao objeto fálico, a virilidade fica ameaçada. Sua articulação com o desejo, com a
sexualidade, está aí demarcada e Freud não desprezou o valor que ele tinha no
mundo antigo, muito possivelmente porque em sua clínica tenha encontrado
eco de sua importância.
Por sua vez, Freud utiliza mais o termo “pênis” do que “falo”, servindo-se
com frequência maior de sua forma adjetiva (fálico/a), ao mesmo tempo que
sustenta que “o que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo” (1923b, p.158, grifo do autor). Os advertidos
sabem que, em psicanálise, não podemos confundir falo com pênis; contudo,
negar a articulação entre esses termos é uma imprecisão. Serge André comenta
que, com o termo falo, Freud “introduz uma nuance: se o falo tem relação íntima
com o órgão masculino, é na medida em que designa o pênis enquanto faltoso
ou suscetível de vir faltar.” (1998, p.172). É a falta sempre presente, seja como
ameaça ou como fato consumado. De modo mais apurado, o que é sustentado
como elemento organizador da sexualidade não é o órgão genital masculino,
mas a representação psíquica imaginária e simbólica construída a partir desta
região corporal do homem.
Para abordar esta intrínseca relação entre falo e sexualidade, Freud articula-o ao mito do Édipo e ao complexo de castração. Com os mitos, a perspectiva
freudiana procura pensar “os começos”, “a origem” , sendo fundamentalmente
por meio do complexo edípico que ele responde à indagação “quem sou eu?”,
que se desdobra em “sou homem ou sou mulher?”. Assim, trata-se de uma referência mitológica que busca dar conta do impossível, do real em jogo no campo
sexual. Em torno do complexo edipiano fez girar a questão da diferença anatômica enquanto significante, no qual podemos situar o falo como representante.
Tais construções teóricas foram desenvolvidas com mais consistência por
Freud entre as décadas de 1920 e 1930, sobretudo após suas reavaliações sobre
a sexualidade feminina. Apesar disso, não convém ignorarmos o fato de que
alguns pormenores dessas discussões já estavam presentes na obra freudiana
desde 1905, especificamente nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Ali, Freud
nos fala do seio materno como o primeiro objeto de investimento da criança
e cita a noção de complexo de castração e de inveja do pênis. Já então sustenta
que o clitóris é a zona erógena dominante nas meninas. Essas considerações
foram retomadas, articuladas e depuradas no referido momento posterior do
pensamento freudiano, mas encontram expressão igualmente nos Três ensaios.
É também neste livro que podemos localizar o que Freud (1905) denominou
de “estágio fálico da organização” sexual infantil. Nos Três ensaios, propõe “as
fases do desenvolvimento da organização sexual” (oral e anal), incluindo, por
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meio de acréscimos posteriores de parágrafos e notas de rodapé, uma terceira
fase — a fálica. Nesta, a criança de ambos os sexos conhece apenas um tipo de
órgão sexual, o masculino. Isso nos leva à consideração de que não há registro
no inconsciente do Outro sexo. Freud (1923) escreve que, nesta fase, existe a
masculinidade, mas não a feminilidade; a antítese ocorre entre fálico e castrado.
Assim, segundo ele (1924), na fase fálica, o desenvolvimento sexual infantil
avança até um determinado ponto no qual o órgão genital masculino assume
papel principal, estando a vagina irrevelada. Comenta André: “O que não quer
dizer, certamente, que a existência material da vagina seja ignorada, mas ela não
é conhecida como outra coisa que não um falo furado.” (1998, p.191, grifo do
autor).
Freud (1938) escreve-nos que ao longo da fase fálica a sexualidade infantil
atinge seu apogeu e aproxima-se da dissolução; porém, depois desse período,
meninos e meninas seguem caminhos distintos, sinalizando a dissimetria entre
os sexos quanto aos complexos de Édipo e de castração — ponto demarcado
por Freud desde 1924. Recalde comenta: “A menina entra no Édipo pelo mesmo
motivo que o menino sai: o complexo de castração. Freud não renunciará nunca
a esta assimetria inquestionável.” (2008, p.105-106, tradução livre).
Na fase fálica, o menino ingressa no complexo edipiano e, com ele, a masturbação associa-se às fantasias incestuosas em relação à mãe. Contudo, as ameaças de castração acrescidas à visualização da ausência de pênis nas mulheres
(confronto com a castração do Outro) ganham significação e o menino passa a
temer a perda de seu órgão (FREUD, 1924). A menina, na fase fálica, também
é forçada a se confrontar com a diferença anatômica entre os sexos, mas o que
ocorre no caso dela? Essa pergunta está respondida por Freud desde os Três ensaios: “Está pronta a reconhecê-lo de imediato e é tomada pela inveja do pênis,
que culmina no desejo de ser também um menino, tão importante em suas
consequências.” (1905, p.183).
Mais tarde, nos artigos “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1925), “Sexualidade feminina” (1931) e “Conferência
XXXIII — Feminilidade” (1932), Freud explicita esta discussão de maneira mais
detalhada e nos escreve que a menina, ao se confrontar com a castração, renuncia à mãe como objeto de amor, culpa-a por tê-la feito castrada e, em função
disto, dirige-se amorosamente para o pai. No entanto, a situação feminina só se
concretiza se o desejo de possuir um pênis for substituído pelo desejo de ter um
bebê. Assim, a busca pelo pai, marcando sua entrada no Édipo, acontece tanto
porque ele é o suposto portador do falo, como também porque é capaz de lhe
dar um filho como substituto simbólico fálico.
Sobre essa aproximação entre acesso à feminilidade e desejo de ter um
bebê (correlato do desejo de possuir um falo), Recalde (2008) aponta que a
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maternidade será a proposta freudiana para solucionar a questão da inveja do
pênis, assim como a via amorosa (busca do parceiro) e a falicização do corpo.
Por outro lado, a autora argumenta que o desejo do falo não se resolve quando
a mulher torna-se mãe, ou ao eleger um parceiro (suposto de tê-lo), pois o falo
não é o órgão masculino. Estas são apenas maneiras imaginárias com objetivos
inoperantes de suturar uma falta irredutível.
Sendo assim, será em torno do falo — enquanto possibilidade de perdê-lo ou
na vontade de tê-lo — que Freud organizará a questão da sexualidade humana,
procurando, por meio dos complexos de Édipo e de castração, explicar como o
sujeito acede ao posicionamento subjetivo feminino ou masculino. Deste modo,
Zack (2008) chama a atenção para o Édipo freudiano em sua dimensão estruturante, pois ele se apresenta como a base determinante do destino do sujeito,
sem deixar de levar em conta a responsabilidade e o consentimento do mesmo,
que implica seu posicionamento de gozo diante da confrontação com o desejo
do Outro e com a castração.
Os pós-freudianos e a “querela do falo”
A teoria freudiana, ao conferir ao falo o lugar central de elemento estruturador
da sexualidade, recebeu a crítica de ser falocêntrica e de propor uma hierarquização entre os sexos. Espelhados pelo movimento feminista que ganhava força
na época, surgia também na psicanálise, entre as décadas de 1920 e 1930, o
questionamento sobre a primazia do falo e a falta fálica como sendo o núcleo
do ser feminino, iniciando-se fervorosas discussões sobre a feminilidade, mas,
sobretudo, sobre a função do falo nas teorizações psicanalíticas — discussões
que Lacan denominou de “querela do falo”. Retomando estes debates, que fazem
parte do percurso sobre o conceito de falo na psicanálise, seguimos apresentando
as construções dos pós-freudianos por meio de quatro eixos: 1) O falo como
objeto interno da mãe e o complexo de Édipo na teoria kleiniana; 2) Ernest
Jones e a natureza defensiva da fase fálica nas mulheres; 3) Hélène Deutsch e o
masoquismo feminino; 4) A teoria cultural de Karen Horney.
Na teoria kleiniana, foi possível verificar um distanciamento quanto à doutrina
de Freud no que se refere ao Édipo e ao lugar do falo na experiência do sujeito. Em
sua elaboração teórica, Klein ordena o que se passa com a criança e sua mãe por
meio das noções de posição esquizoparanoide e posição depressiva, sinalizando
que o complexo de Édipo começa a se desenvolver a partir desta última fase.
Klein (1986 [1952]) afirma que, no complexo de Édipo primitivo, a criança
imagina que o pênis, ou o pai, faz parte da mãe (fantasia dos pais combinados),
idealizando que ela contém tudo o que é desejável: seio, bebês, fezes e pênis.
Sendo assim, o Édipo precoce é caracterizado por uma ambivalência acirrada, pela
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predominância de tendências orais e pela indefinição quanto ao objeto sexual.
O desejo de união genital é uma modificação da tentativa de recuperar a relação
primitiva com o seio que foi danificado, isto é: o desejo de restaurar o corpo
da mãe se processaria por meio da relação genital, que restituiria à imagem da
genitora os seus objetos (SEGAL, 1973). Criticando tal formulação, Rabinovich
(2009) pondera que ao final do Édipo o que temos na teoria de Klein é o luto
da posição depressiva, e não um luto frente à renúncia aos objetos edípicos tal
como encontramos em Freud.
Não obstante, o lugar da figura materna nesta teoria foi hipervalorizado; logo,
o papel do pai enquanto lei ordenadora foi desprezado e, consequentemente,
a função fálica na economia subjetiva também. De modo mais específico, o
pai desempenha seu lugar na trama infantil como um objeto alternativo frente
ao medo e à possibilidade fantasística de perder a mãe. Quanto ao falo, ele foi
equiparado e tomado como um dos objetos internos da mãe, tal como o seio, o
leite, os bebês e as fezes, negligenciando seu valor estruturador do campo sexual.
De forma mais radical sobre a função fálica, Rabinovich comenta:
“A significação fálica aparece aqui como substituto progressivo da significação do
seio. Ali é onde o Édipo só desempenha seu papel na medida em que o pênis paterno se apresenta como um substituto da medida-padrão dos objetos que é o seio
materno.” (2009, p.61)
Bebendo na fonte kleiniana, temos Ernest Jones. Em sua teoria, Jones (1977
[1927]) leva em consideração a noção de erotismo oral e sadismo, postulando
que, no desenvolvimento da menina, o estágio sádico se colocaria mais tarde,
de modo que nem o estágio oral ou o clitoriano receberiam catexias sádicas
poderosas. Segundo Pollo (2003), para Jones, o estágio feminino assemelha-se
ao estágio alimentar e o sadismo é provocado pela frustração oral. Não havendo
essa frustração, o clitóris não se associaria a uma atitude masculina ativa. Sem
o estágio sádico, ocorreria, então, a passagem bem-sucedida do estágio oral
ao estágio anal, sendo a boca e o ânus equivalentes do órgão sexual feminino.
Dito de outra forma: Jones defende o desenvolvimento feminino por meio do
processo boca-ânus-vagina, no qual estaria posto uma identificação com a mãe.
Logo, a fase fálica na menina foi compreendida como uma forma moderada de
identificação ao pênis paterno (diferente da intensidade dessa identificação no
caso das mulheres homossexuais), tendo uma natureza secundária e defensiva,
não correspondendo a uma etapa verdadeira do desenvolvimento da mulher
heterossexual (JONES, 1977 [1927]). Identificamos, nas construções de Jones,
que a feminilidade não é mais especificada através da função fálica, mas pelo
deslocamento da libido — o que assegura o conhecimento da vagina.
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Diante disso, Lacan (1995 [1956-57]) nos diz que não é porque possa haver
algum tipo de experiência precoce na menina que provoque sensações na região vaginal que a hipótese de Freud pode vir a ser contestada. “A afirmação de
Freud está fundada em sua experiência.” (idem, p.98). Intensificando sua crítica,
Lacan assinala: “se a questão fosse apenas uma migração da pulsão erótica, veríamos traçada a via real da evolução da feminilidade no nível biológico.” (1999
[1957-58], p.287). O que Jones parece não notar, conforme indica Lacan (idem,
ibidem), é que o Édipo não só fabrica a mulher, mas o homem também. Para
os dois sexos, o que temos é um artifício significante.
Discutindo também sobre a feminilidade, há a psicanalista Deutsch e suas
construções sobre o papel do masoquismo na vida mental das mulheres. Deutsch (1979 [1925]) aceita e reconhece uma fase fálica no desenvolvimento da
menina — afinando-se um pouco com a teoria freudiana nesse ponto. Todavia,
esta autora considera que o desenvolvimento de uma fase genital na mulher se
processa por um deslocamento da libido oral (equivalência entre boca e vagina) associado à estimulação do pênis do parceiro no ato sexual. A mulher, ao
descobrir este novo orgasmo em seu próprio corpo, reconhece-se, então, sujeita
de forma masoquista ao pênis — que a guiará a sua nova fonte de prazer. Isso
porque a vagina não desempenha nenhum papel erógeno até que se proceda a
primeira relação sexual. Confere-se, assim, que a incidência simbólica do falo
nesse contexto encontra-se excluída — o que é apresentado é seu caráter puramente biológico, imaginário, com a experiência do ato sexual.
Assim, para Deutsch, a vagina assumiria uma funcionalidade na mulher semelhante ao pênis no homem. Ao defender uma identificação funcional entre
pênis e vagina, que permitiria à mulher superar o trauma da castração, ela trabalhou — tal como verifica Pollo (2003) — recusando a equivalência simbólica
mediatizada pelo falo (pênis = bebê = fezes = dinheiro) postulada por Freud.
Além disso, a psicanalista aproxima feminilidade e reprodução articuladas à
questão do masoquismo. Para ela, o sexo representa a intenção e o começo do
parto, bem como este é o fim do ato sexual. O “parto é para a mulher uma orgia
de prazer masoquista.” (DEUTSCH, 1979 [1925], p.51, tradução livre). Afirma
ainda que o desejo de ter um pênis é substituído pelo desejo de ser violada pelo
pai e, com isso, receber um filho seu, concedendo à vida mental das mulheres
a tríade masoquista: castração = violação = parto. Diante disso, Soler (2005)
afirma que a ideia da “mulher masoquista” não é uma tese freudiana. Freud
introduziu essa discussão e a explorou; porém, sinalizou que há mulheres e
homens masoquistas, sabendo reconhecer que esta não era uma via de resposta
à questão do feminino.
Encerrando a “querela do falo” posta pelos pós-freudianos, Karen Horney
enfatiza demasiadamente aspectos sociais e culturais presentes na história de vida
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do sujeito, negligenciando o que de fato interessa ao campo psicanalítico — a
dimensão inconsciente. Para Horney (1966 [1939]), o complexo de Édipo e de
castração, bem como a inveja do pênis, não são eventos típicos e decisivos para
o desenvolvimento da sexualidade da mulher. Segundo a autora (1991 [1924]),
a inveja do pênis decorreria do sentimento de desvantagem nas possibilidades
de gratificação que os meninos adquirem em comparação com as meninas.
O menino pode ver e segurar seu órgão genital — sendo isto interpretado
inconscientemente como autorização para se masturbar. Assim, a menina se
sentiria lesada por não dispor de mesma permissão em função de sua disposição anatômica, tendo a impressão de estar sujeita a restrições na satisfação de
componentes pulsionais.
Isso, contudo, não é decisivo para que a inveja de pênis se instale na mulher,
pois, quando a falta de pênis se coloca como desvantagem para a menina, ela
tem como saída a identificação com a mãe. É somente quando sofre rejeição do
pai, associada a uma identificação com ele, que a menina é levada de volta à fase
pré-genital da inveja do pênis, conferindo o estabelecimento de relações com
homens baseadas em vingança e decepção (HORNEY, 1991 [1924]). A autora
também aponta que fatores culturais e sociais ajudam a esclarecer os desejos
de masculinidade. O primeiro deles seria que o desejo de ser um homem tem
relação com o desejo de possuir qualidades ou privilégios (força, coragem, independência, liberdade sexual e sucesso) mais comuns aos homens na cultura
vigente (HORNEY, 1966 [1939]).
Sejam quais forem os argumentos tomados por Horney, todos desembocam
— assim como vimos na perspectiva dos outros pós-freudianos — numa posição
distinta da qual Freud situou a problemática da feminilidade e da primazia fálica.
Talvez o ponto de maior equívoco tenha sido a maneira como o falo foi apreendido no discurso freudiano, fazendo com que a referência fálica fosse entendida
absolutamente como equivalente ao pênis. Assim, o falo, nestas construções, foi
apresentado em sua dimensão de realidade ou imaginária, porém, seu estatuto
simbólico ficou desprezado, tornando-se necessário o esforço lacaniano de situá-lo como significante do desejo, ordenador do campo sexual em ambos os sexos.
O falo como significante em Lacan
De acordo com Rabinovich (2009), é possível identificar no primeiro ensino
de Lacan um crescente destaque adquirido pelo falo em suas teorizações, desde
o último capítulo do Seminário 3 (As psicoses), intitulado “O falo e o meteoro”,
passando pelo Seminário 4 (A relação de objeto) e chegando ao Seminário 5 — (As
formações do inconsciente). No Seminário 3, Lacan constata a foraclusão do Nome-do-Pai nas psicoses, indicando que a significação fálica também está ausente nesta
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estrutura. Assim, segundo Rabinovich (op. cit.), Lacan inicia uma investigação
sobre o papel do falo na neurose e na perversão. É em função disso que, nos
seminários seguintes, encontramos o desenvolvimento da temática da falta de
objeto (Livro 4), desembocando na discussão sobre a sexualidade, desejo, Édipo
e castração (Livro 5). Vejamos cada um deles.
A discussão em torno das três formas da falta de objeto apresentada no Seminário
4 permite inferir que a construção subjetiva não se realiza por meio da relação do
sujeito com seus objetos, mas com a falta deles, sendo o falo — enquanto ausente
(- j) — um objeto primordial dentre tantos outros. Neste livro, o falo, como
objeto primordial do desejo, começa sendo localizado no imaginário e termina
posicionado no simbólico. O falo (- j / imaginário) operando na castração só
existe como falta, enquanto imagem negativa, e isso é eminentemente simbólico,
ao passo que consideramos que o símbolo implica a barra sobre algo que existe.
No Seminário 5, encontramos duas aulas que retomam o Édipo freudiano a
partir de uma formulação em três tempos não cronológicos, mas lógicos, nas
quais assistimos a hipótese edípica ser amarrada à inscrição do registro simbólico. No primeiro momento, temos o falo como objeto com a qual a criança se
identifica, visto que deseja o desejo da mãe. A criança está na posição de ser o
falo — obje­to do desejo do Outro. Já no segundo tempo, a criança é desalojada
do lugar de ser o falo para ter ou não ter o falo, podendo vir a se constituir como um
sujeito desejante, e isso guarda profunda ligação com a mensagem que o pai
dirige à mãe. O falo passa de objeto imaginário do desejo da mãe a significante
do desejo do Outro. Por último, a criança tem acesso à significação fálica,
possibilitando, assim, situar-se na partilha dos sexos.
Ratificando tais construções teóricas, há um importante texto no escrito “A
significação do falo” (1998 [1958]), em que podemos encontrar elementos fundamentais sobre a noção de falo como significante. Ali, Lacan retoma o embate entre
Freud e os pós-freudianos, propondo-se a problematizar as discussões em torno
da questão da primazia fálica na estruturação sexual tanto do homem quanto da
mulher. Enfaticamente, ao longo do texto, Lacan (1998 [1958]) argumenta que a
relação do sujeito com o falo se estabelece sem considerar a distinção anatômica
entre os sexos e — tal como Freud — defende ser a partir da falta fálica que
podemos abordar a problemática concernente à feminilidade. Diante disso, o
esforço lacaniano foi além de apenas rebater as formulações dos pós-freudianos,
mas procurou estabelecer o real lugar do falo nas teorizações de Freud — lugar
que vinha sendo desconsiderado por esses autores. Sendo assim, ele afirma:
“O falo é aqui esclarecido em sua função. Na doutrina freudiana, o falo não é uma
fantasia, caso se deva entender por isto um efeito imaginário. Tampouco é, como
tal, um objeto (parcial, interno, bom, mau etc.), na medida em que esse termo
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tende a prezar a realidade interessada numa relação. E é menos ainda o órgão, pênis
ou clitóris, que ele simboliza.” (LACAN, 1998 [1958], p.696)
Em se tratando da noção de falo e fase fálica encontramos certa dificuldade,
se a tomamos numa racionalidade biológica, considera Lacan (1999 [1957-58]).
Os pós-freudianos parecem ter se orientado por este viés. Acrescenta Lacan que
o problema desaparece quando o falo é elevado em seu papel de significante.
Tomar o falo como significante não impede que ele tenha em sua origem a dimensão imaginária do pênis, mas até mesmo nesta origem é possível encontrar
certa propriedade (aparecimento/desaparecimento; ereção/detumescência) para
desempenhar sua função significante.
Lacan (1998 [1958]) demarca bem que o falo tem uma função constitutiva,
pois introduz o sujeito em sua existência e em sua posição sexual. Isso só pode
ser apreendido, diz ele, se o tomarmos como um significante indispensável pelo
qual o desejo do sujeito é reconhecido como tal, quer seja homem ou mulher.
Em suas palavras: “O falo é o significante privilegiado dessa marca, onde parte
do logos se conjuga com o advento do desejo” (1998 [1958], p.692). Rabinovich
(2005) esclarece-nos que o termo “logos” possui em grego três significações,
a saber: linguagem, discurso e razão matemática/proporção. Sendo assim, encontramos nesta proposição a tentativa de reafirmar o falo como um significante
privilegiado, que une sexualidade e linguagem, deixando uma marca sobre o
corpo. A psicanalista é precisa ao dizer que “O falo suprirá o que o significante faz a sexualidade humana perder de natural, suprirá enquanto marca e, ao
mesmo tempo, como cópula, como o que faz laço entre os sexos.” (2005, p.41).
O falo, o objeto a e os avanços teóricos posteriores
No escrito “A significação do falo” e no Seminário 5, como acompanhamos, Lacan
situa o falo como um significante fundamental operador na dimensão desejante
do humano. Contudo, deparamo-nos, no Seminário 10 (A angústia, 2005 [196263]), com uma maneira bastante distinta de abordar a função fálica. Neste livro,
Lacan introduz a noção de objeto pequeno a e confere-lhe cinco figurações: o
seio, o ânus, o falo, a voz e o olhar. Estas fazem referência ao objeto a na medida
em que se constituem como objetos perdidos. Mais precisamente, Lacan (ibid.)
articula ao objeto a o caráter de objeto cedível, podendo ser encontrado em todas
as formas que mantêm relação com ele.
Todos os objetos no percurso de Lacan, até esse seminário, podiam se tornar
significantes. Agora, porém, ele nos apresenta um objeto com uma estrutura que
não apenas se distingue do significante, mas é irredutível a ele. Para abordá-lo,
ele o correlaciona ao fenômeno da angústia — sendo este o índice da presença
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subjetiva do objeto a, o modo como ele aparece na clínica da neurose. Por conseguinte, as cinco dimensões do a estarão também articuladas a este fenômeno.
Ao fazer referência ao falo e à questão da angústia, Vieira (2008) comenta que
era comum designar no campo psicanalítico a mulher como castrada tendo que
lidar com a falta de pênis, estando o homem livre de tal situação. No Seminário
10, este arranjo se inverte, tendo o homem que se confrontar mais radicalmente
com a angústia de castração. Trata-se, neste livro, de enfatizar a falta e não a
completude, na medida em que não designa a ameaça de castração como incidindo sobre um ser total, ideal, mas procura assinalar a falta que aponta para a
impossibilidade de um gozo absoluto.
Lacan (2005 [1962-63]) nos indica, então, que a detumescência na copulação
— instrumento fora do combate, em seus termos — merece ser alvo de atenção,
pois permite valorizar uma das dimensões da castração. E acrescenta, ainda: “O
fato de o falo ser mais significativo na vivência humana por sua possibilidade de
ser um objeto decaído do que por sua presença, é isso que aponta a possibilidade
do lugar da castração na história do desejo” (idem, p.187). Referenciando-nos na
categoria de objeto cedível, há algo que é arrancado no momento do orgasmo e,
nesse momento, o sujeito ejacula — justamente no auge da angústia. Angustia-se, pois algo do gozo, do real e, portanto, sem explicação, toca o corpo. Assim,
considera Lacan:
“O falo funciona em toda parte, numa função mediadora, exceto onde é esperado,
ou seja, na fase fálica. É essa carência do falo, presente e irredutível em todos os
lugares, não raro para a nossa grande surpresa, é o esvanecimento da função fálica
no nível em que se espera que ele funcione, que constitui o princípio da angústia
de castração.” (2005 [1962-63], p.283)
Ou seja: é onde o falo deveria estar, no nível da completude (na mediação
sexual), que ele falta. Vieira (2008) comenta que de tantos elementos corporais
disponíveis, o pênis sustenta o jogo da falta exatamente porque costuma faltar.
Demonstra-se como um suporte natural de uma ambiguidade em jogo: “tudo ou
nada, poder absoluto ao longo de alguns minutos e representante flácido, DETUMESCENTE, da potência perdida no restante do tempo.” (VIEIRA, 2008, p.92).
Assim, de acordo com Leguil, no Livro 10, a questão fálica foi “remanejada
numa abordagem da castração que não amarra exclusivamente às funções da
lei [...] Ela passa a se ligar também ao real do gozo.” (2008, p.123). Há, desta
maneira, “um novo status da angústia de castração, não mais referida à ameaça
do Outro, a de um agente paterno, materno, mas ao fato biológico, anatômico,
orgânico da detumescência da cópula.” (MILLER, 2005, p.34). Lacan ressitua a
angústia de castração ao nível do órgão masculino, fazendo da detumescência
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— apagamento da função fálica no ato sexual — o princípio desta angústia, de
modo que este princípio não mais se inscreve apenas no Édipo. Lacan reconhece
a novidade que introduz com tal consideração, mas, por outro lado, considera
que mesmo tendo situado o ponto da angústia no interior do sujeito, equivalendo orgasmo e angústia, nos diz que é “bastante evidente que não podemos
desvincular disso [(- j)] o sinal da intervenção do Outro, uma vez que essa
característica, desde o começo, sempre lhe foi imputada sob a forma das ameaças
de castração.” (idem, p.285)
O impacto do que nos é articulado ao longo do livro sobre a angústia pode
ter algo de enigmático e surpreendente, que não será possível apreender, nem
acompanhar a fineza do que se inaugura se não avançarmos mais um pouco no
ensino de Lacan. Vale destacar que o deslocamento da ênfase no falo como um
significante no Seminário 10 será ajustado no ensino lacaniano, mas tal transformação diz da emergência de uma dimensão da experiência que até então Lacan
pouco tinha trabalhado: o real na clínica. É também neste livro que começa a
ser esboçada uma modificação quanto à questão da feminilidade.
No livro A angústia, o objeto a comparece do lado do real; porém, isso será
relativizado nos anos de 1970, quando assistiremos a uma semblantização do a.
De modo mais preciso, podemos apontar que o objeto a e o falo foram elevados
à categoria de semblante no decorrer do ensino lacaniano. Nesta perspectiva,
no Seminário 18 (De um discurso que não fosse do semblante), Lacan sinaliza
que a teoria analítica articula o que ele designa como objeto a, no que “ele
vem preencher, como seio, excremento, olhar ou voz, o lugar definido como
de mais-de-gozar” (2009 [1971], p.32). O ato de falar já implica a produção
de mais-de-gozar. O mais-de-gozar é o efeito do discurso, e seu suporte é a
metonímia. Diz do excedente da força pulsional não assimilável pelo trabalho
de simbolização. Refere-se à dimensão do excesso, do desperdício de gozo da
máquina da cadeia discursiva, que produz algo que venha na suplência da falta
oriunda da castração. O mais-de-gozar situa-se como a mais-valia da economia
psíquica. Ele expressa na repetição a maneira como cada sujeito ordena sua cadeia
significante e assujeita-se à lei da castração.
A teoria psicanalítica enuncia justamente que essa relação de mais-de-gozar
é essencial para o sujeito. Todavia, o mais-de-gozar, nos diz Lacan (idem), só se
normaliza por uma relação com o gozo sexual, e esse gozo só se formula a partir
do falo como seu significante. “O falo é, muito propriamente, o gozo sexual como
coordenado com um semblante, como solidário a um semblante.” (idem, p.33).
O falo é um significante — logo, um semblante. O semblante sempre envelopa
o vazio, fazendo crer a existência de algo que não há. O semblante, ainda que
se esforce por ocultar, o que oculta é nada. Dizendo de outro modo: “A função
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essencial do semblante — ao menos do semblante fálico — é pelo que não há,
algo que dissimula e tapa o que não há.” (BRODSKY, 2008 a, p.156).
Avançando na discussão sobre o falo, Lacan o localiza como uma função
a regular o gozo de cada sexo. É, então, no Seminário 20 que o ensino lacaniano irá
formalizar, com as fórmulas quânticas da sexuação, que a sexualidade provém da
função fálica (função jx); situar-se de um lado ou de outro, depende da maneira
como o sujeito está assujeitado a ela: todo-fálico ou não-todo referido ao falo.
Posicionar-se como homem implica estar totalmente submetido à lógica fálica.
Situar-se numa posição feminina é estar também submetido ao falo, mas não
por inteiro — o que tem como consequência o encontro do gozo fálico e gozo
suplementar na mulher. Trata-se de um momento de avanço no que se refere à
questão da feminilidade (LACAN, 1985 [1972-73]).
A noção de não-todo, portanto, faz referência ao modo particular da mulher
experimentar que uma parte de si localiza-se submetida ao gozo fálico (gozo
sexual, determinado pelo significante falo), enquanto a outra se situa no gozo
Outro, no gozo do corpo (gozo que escapa ao domínio significante). Assim,
a dimensão do significante, enquanto o que evoca algo além do que ele diz,
e produz seu mais além, nos permite aproximar da ideia de não-todo e gozo
suplementar. Portanto, é a partir do gozo fálico que podemos supor um outro
gozo. O gozo fálico, por estar articulado ao significante, nos faz supor que há
uma “outra coisa”, um “mais-além”. Posto isto, não se pode falar em um gozo
Outro senão a partir do gozo sexual limitado do órgão (idem).
Morel assinala que a “linguagem impõe um significante único ao gozo: o
falo” (1997, p.93). E do significante fálico, temos acesso ao gozo fálico, ao gozo
do órgão. Caldas escreve que “O significante é precário para dizer da sexualidade.
No entanto, paradoxalmente, a sexualidade só aparece e escoa pelo significante.”
(2008, p.382). O significante produz corpo de gozo, mas não-todo, de modo que
um resto escapa ao império da linguagem. Ao mesmo tempo, podemos propor
que o gozo sempre escapa a qualquer tipo de regulação, sendo o significante
fálico incapaz de ordenar totalmente o sexual e o campo que ele abre. Assim,
o gozo feminino leva em conta o limite, a regulação, mas, do mesmo modo,
também o transpõe.
Diante disso, é possível concluir que Lacan não refutou completamente o
Édipo freudiano; todavia, salientou que nele é possível identificar apenas a lógica
fálica que permite estruturar a sexualidade masculina. Para tocar na questão da
feminilidade, foi preciso que Lacan formalizasse o “além Édipo” em referência à
lógica; com isso, acabou por articular a noção de primazia fálica de forma distinta
de Freud e seus discípulos. Ou seja, o falo continuou a ser o único significante
sexual, mas há duas possibilidades de inscrição na função fálica: todo ou não-todo. Em consequência, se há somente um significante da sexuação e este produz
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o homem, podemos dizer que ao nível inconsciente o Outro sexuado não existe.
Eis o aforismo lacaniano: “A mulher não existe” — fruto da impossibilidade de
encontrar do lado feminino um suporte identificatório que fundamente o ser
dA mulher (BONFIM & VIDAL, 2009).
Considerações finais
No livro A angústia, Lacan enfatiza o falo como uma função escópica da potência,
como (- j) do órgão, referindo-se não apenas à castração edipiana, mas à castração entendida como o desaparecimento do órgão fálico no momento do orgasmo,
de modo a destacar a angústia ao nível da detumescência. Não obstante, isso
denota a construção lacaniana de articular o falo a um objeto que não se reduz à
simbolização, o objeto a. Temos, então, uma perspectiva bastante distinta sobre
o falo, mas que de modo algum pode ser tomada como uma recusa à noção de
falo como significante. Tal perspectiva é bem evidente quando acompanhamos
as construções seguintes sobre o falo no ensino lacaniano.
No Seminário 18, o significante é um semblante, e o falo, enquanto tal, também
é elevado à categoria de semblante. Por conseguinte, no Seminário 20, Lacan se
refere a dois tipos de gozo: um determinado pelo significante fálico e outro que
escapa a ele, inserindo-se na discussão sobre a lógica do todo e não-todo fálico.
Logo, é preciso considerar que, se há formas diferentes de se referir ao falo, isso
tem relação com o percurso da clínica e os avanços teóricos possibilitados por ela.
Miller (2005) considera que Lacan, no Seminário 10, nos leva a abordar o objeto
a como um termo que não é significante e que, portanto, emerge no regime da
exceção. Parece que o falo está aqui situado nesse mesmo regime. Até então,
tudo era passível de se articular em termos simbólicos — inclusive o real podia
ser abordado assim. O livro A angústia, contudo, demonstra que na estrutura da
linguagem há algo que não pode ser reduzido ao significante, sendo “assimilado grosseiramente ao corpo vivo” (2005, p.24). Em outras palavras, o que se
apresenta no Seminário 10 é o objeto a como real, além de situar-se a separação
entre esse objeto e a linguagem.
No Seminário 20, encontramos uma forma distinta de abordar o falo. Este não
está mais vinculado à exceção, mas ao regime do não-todo. O não-todo não
abole nem contrapõe o significante, mas estende-se ao conjunto do significante.
Trata-se do não-todo fálico, que vem apontar para o gozo suplementar na mulher.
O que podemos extrair do livro Mais, ainda é que existe uma articulação entre o
significante e o gozo. O corpo que goza diz de um corpo afetado pelo significante. Esse desenrolar da teoria, entretanto, já começa a ser evidenciado desde
o Seminário 18, em que Lacan retira o objeto a do real e o articula ao semblante.
A construção da teoria lacaniana, sob esta forma tão desafiadora de ser apreendida, diz do próprio movimento da clínica, de uma lógica de entrada na psiágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 229-245
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canálise, como sugere Costa (1998). Tal como Freud, que parte de uma confiança
na interpretação e se depara com o esgotamento do significante, culminando nas
elaborações sobre a pulsão de morte e o que chamamos de gozo, Lacan segue
movimento semelhante. Assim, podemos inferir que as discussões lacanianas
sobre o falo — como significante, seguido de sua articulação com o objeto a
situado inicialmente como real, depois como semblante, chegando à lógica do
todo e não-todo — não são pensamentos contraditórios ou descontínuos, mas
apresentam intrínseca relação com o desenvolvimento das construções a respeito
do real, que não revoga as contribuições anteriores — antes, redimensiona o
aparato teórico-clínico de Lacan.
Como se sabe, ao longo do ensino de Lacan, assistimos a um deslocamento da
ênfase que é posta nos três registros — do imaginário para o simbólico, chegando
ao cercamento mais rigoroso da categoria real, até se atingir uma equivalência
entre eles. Os registros real-simbólico-imaginário não podem ser isolados, sendo
a topologia do nó borromeano o que melhor expressa a união entre os três.
Coutinho Jorge (2000) indica-nos que o interesse crescente de Lacan pelo real é
correlato à introdução do objeto a em sua obra, sendo este o que dá ao real seu
verdadeiro estatuto. Com o que nos deparamos, ao longo do Seminário 10, senão
a discussão a respeito do objeto a? Assim, neste livro há uma virada — todavia,
inacabada — sobre o real em jogo na clínica psicanalítica, que não convém assimilarmos como uma elaboração definitiva e muito menos tomá-lo sem levarmos
em consideração a depuração final presente nas teorizações lacanianas — no
caso desta discussão, o falo como um significante, porém submetido à lógica do
não-todo. Por outro lado, como observa Bernardes a respeito do livro A angústia, é
importante “Procurar não tanto eliminar as inúmeras contradições, dificuldades
e ambiguidades que esse texto, por ser um Work in Progress, nos oferece, mas sim
resgatar a sua novidade hoje.” (2007, p.2, grifo da autora).
Recebido em 15/3/2012. Aprovado em 25/6/2012.
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Ana Costa
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Flavia Bonfim
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Alguns casos, nem neuróticos,
nem abertamente psicóticos
Christian Hoffmann e Rosana Alves Costa
Christian Hoffmann
Psicanalista,
professor doutor
de Psicopatologia
Clínica, diretor da
Escola Doutoral
da Sorbonne Paris
Cité, Universidade
Paris Diderot e
pesquisador do
CRPMS.
Rosana Alves Costa
Doutora em
Psicologia Clínica
pela Universidade
Paris Descartes,
professora de
Psicologia Médica
do Departamento
de Psiquiatria
da Universidade
Federal de São
Paulo, psicóloga
do Centro de
Referência
da Infância e
Adolescência (Cria).
Resumo: As subjetividades “nem neuróticas nem abertamente
psicóticas” encontram um esclarecimento pela topologia que abre
a uma clínica de borders na qual o limite se torna um caminho praticável do buraco (do vazio) na cura analítica. Este esclarecimento
passa pela gênese do limite no inconsciente que se funde sobre
uma experiência de perda do objeto primordial de satisfação, cujas
resultantes são a faculdade de julgamento e o princípio de realidade.
O “não limite” dessas subjetividades articula-se com a aceleração
contemporânea do tempo entre o julgar e a ação.
Palavras-chave: Limite, borders e buracos no inconsciente, o vazio,
a aceleração do tempo, subjetividades contemporâneas.
Abstract: Some cases neither neurotics nor obviously psychotics.
Subjectivities which are “neither neurotics nor obviously psychotics” are better explained at the light of typology that gives access
to a clinic of borders where the border becomes a pathway to the
hole (emptiness) in the analytical cure. Such explanation gets to
the source of borders within the unconscious which originated
in the early experience of the loss of the primordial object of
satisfaction that gives birth to judgment faculty and to the reality
principle. The “non-limit” of those types of subjectivity is related
to the contemporary acceleration of laps of time that separates the
judgment from the action.
Keywords: Limit, borders and holes within the unconscious, the
emptiness, time acceleration, contemporary subjectivities.
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O
título deste trabalho é retirado de um texto de Freud de 1924, Neurose e psicose,
que sempre será o tema desta questão clínica, do passado até hoje.
Para André Green (2012), o problema das estruturas não neuróticas, ontem
e hoje, surge em indivíduos nos quais predomina uma fixação pré-genital e
um Édipo negativo. Ele observa, com outros, a transformação que constitui o
Homem dos Lobos na clínica freudiana e que abre para Green (2012) o estudo
dos estados limites. Sabemos que a fixação pré-genital anal do Homem dos
Lobos não lhe permitiu a escolha entre duas representações do ato sexual, ou
seja, da vagina ou do ânus, o que resulta na clivagem do sujeito, acompanhada
por uma disfunção do ego em sua capacidade de julgamento. Green lamenta a
abordagem destas patologias pela destrutividade, o eu e as relações de objeto,
que não reconhece a sexualidade e seu papel primordial e determinante, pela
importância que toma a angústia de castração como uma bênção para a criança
sair “dos problemas de angústia insustentáveis e​​ sem saída vinculados à relação
dual com a mãe” (GREEN, 2012, p.179).
Foi com Melanie Klein e Maurice Bouvet que as fixações pré-genitais se tornaram o ponto central da psicanálise, e foi sobre este terreno e por este motivo que
surgiu o interesse pelo transtorno de personalidade limítrofe. Podemos recordar
a via aberta por Stoller sobre o sexo e o gênero e, mais próximo de nós, Joyce
Mac Dougall, que descreveu uma sexualidade contemporânea aditiva, explicando
o efeito traumático de toda sexualidade, em que o conceito de castração já não é
a referência. Deve-se reconhecer a André Green a percepção da insuficiência de
tal explicação dos modos de gozos sexuais pela fixação traumática ou pré-genital.
Ele propõe a utilização de outros mecanismos de defesa que não o recalque e
avança no conceito freudiano de clivagem no qual Lacan introduz a foraclusão,
como veremos mais adiante.
Recordemos da obra de Green o seguinte:
Ÿ A articulação da pulsão com a relação de objeto.
Ÿ As fixações pré-genitais e a perturbação da genitalidade.
Ÿ A relação de castração entre a angústia neurótica ou a angústia de separação
borderline.
Ÿ A regressão pré-genital com seu correlato do desfuncionamento da capacidade
de julgamento do eu.
Ÿ A transferência como meio de apreender a relação com o outro pela descoberta
da “intimidade psíquica”, ou seja, a relação entre sexualidade e amor.
Uma observação sobre a transferência: para Green, diante de uma profunda
angústia relacionada ao imago materno, existe uma transferência paterna possível
neste tipo de patologia, quando o analista é investido de sentimentos contraditórios entre o chato e o protetor (BIRMAN & HOFFMANN, 2014).
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Alguns casos, nem neuróticos, nem abertamente psicóticos
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O que se pode hoje em dia ainda esclarecer com Freud, no que diz respeito
a estas patologias nem neuróticas e nem abertamente psicóticas?
Iniciaremos pelo estudo do julgamento. Em seu artigo La négation (1925/1985),
Freud estudou pela primeira vez a maneira pela qual a função intelectual é gerada a partir da pulsão. O julgamento, e em especial a negação, permitem ao
pensamento liberar-se dos limites do recalque e enriquecer-se de “conteúdos”
indispensáveis para seu funcionamento. Em suma, o poder de julgamento (faculdade de julgar) abre o espaço psíquico para o pensamento.
O que é a função do julgamento? Ela deve resultar em duas decisões. Deve,
em primeiro lugar, poder julgar o que é bom de introjetar para o eu-prazer e o
que deve ser jogado fora, porque é ruim. Em seguida, deve julgar a existência
real de uma coisa representada na realidade, isso por conta de um eu real que
Freud chama de “prova da realidade” (idem, p.136-137); não se trata mais de
saber se uma coisa, um objeto de satisfação, é boa para o eu-prazer, mas se ela
existe no mundo exterior. Vemos bem que se trata de uma questão de interior
e exterior, o que nos leva a questionar o limite e sua gênese no inconsciente.
Temos uma primeira indicação de Freud, no final de seu texto, quando afirma
que a condição da função do julgamento, e por consequência do princípio de
realidade, é a realização da prévia perda do objeto que trouxe uma real satisfação.
Para resumir, a distinção entre um interior e um exterior se faz sobre a experiência de perda de um objeto de satisfação, que passa do eu-prazer seu mundo
exterior (idem, p.138). A faculdade de julgar contribui para encontrar um objeto
correspondente no mundo exterior. Vale lembrar, para os nossos propósitos, que
“o julgar” decide sobre a passagem ao “ato”.
A questão do limite (HOFFMANN, 2013) retorna/volta em O mal-estar da civilização (1929/2010), no qual Freud interroga sobre “sentimento de si”. É necessário partir da ideia de que a autonomia do ego é enganosa, ela se prolonga sem
fronteiras no inconsciente pulsional, de que é apenas a fachada. Por outro lado,
existe uma fronteira “clara e nítida” (idem, p.46) entre o eu e o mundo exterior,
salvo nos casos patológicos. A gênese desta “fronteira” é tributária da experiência
feita pelo bebê sobre o objeto de satisfação, como o seio, está “fora” de seu eu-prazer e seu reencontro necessita de uma ação específica. Esta oposição entre
o eu-prazer e o objeto (perdido) empurra o eu ao reconhecimento do “mundo
exterior” e, deste fato, ao reconhecimento dos limites do gozo do “ilimitado”
(idem, p.49 e 56), de seu narcisismo de origem, como testemunha o “sentimento
oceânico”, “sensação de eternidade”. Assim, se instaura o princípio de realidade,
pela faculdade de julgar entre o objeto perdido e o objeto correspondente no
mundo exterior; experiência que, na maioria das vezes, resulta no julgamento de
que “não é isso!” e de que nenhum objeto é capaz de proporcionar a satisfação
pulsional — é daqui a falta que o sujeito experimenta pela satisfação.
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Podemos condensar nosso raciocínio/desenvolvimento da seguinte maneira.
Na prática terapêutica, se quisermos encontrar a relação subjetiva de um sujeito
com o limite, é necessário escutar suas “práticas de si” e tentar entender a presença, ou não, da experiência da falta.
Com Lacan, conseguimos precisar a relação do sujeito com a falta pela distinção de três modalidades da falta na subjetividade (SAFOUAN & HOFFMANN,
2014).
A noção da falta não é uma inovação lacaniana, ela faz a substância mesma da
pulsão freudiana. De fato, sabemos que, segundo Freud, a pulsão oral visa ao que
ele chama de a primeira satisfação. Basta dizer que o objeto desta pulsão não é
apenas o seio, mas o peito, como se fosse uma fonte de satisfação pela marca desse
momento, segundo a expressão de Lacan. Em outras palavras, o seio funciona
como a causa do desejo oral, desde que ele foi objeto de um desmame ou, mais
precisamente, de um corte sofrido pelo sujeito como uma parte de si mesmo.
A perda deste objeto, que nenhum objeto comum nem nenhum dom saberiam/poderiam restaurar, permite-lhe funcionar como o guardião de um desejo
que permanece como falta.
Ao nível anal, existe também a perda real de uma parte que se separa do
corpo. Aos objetos anal e oral Lacan acrescenta a placenta, ou seja, este órgão,
que medeia a relação entre a mãe e seu embrião, de modo que ele possa se alimentar e se desenvolver, faz parte dele, no sentido de ser constituído por seus
próprios tecidos em vez dos da mãe.
Sabemos que a necessidade se articula em uma demanda. Mas, para além do
que se articula na demanda como a falta, outra demanda aparece — a demanda
de amor. Uma criança que está sendo cuidada, apenas de modo a responder às
suas necessidades, sem palavras, sem sorriso e sem relações pessoais, encontra-se
dentro da impossibilidade de se integrar em uma relação humana. Em outras
palavras, é uma criança condenada a murchar.
No entanto, a demanda de amor induz a uma desvalorização de todo objeto
que responde à demanda — este objeto torna-se um simples sinal de amor e
não o próprio amor (amor dele mesmo). Nele, mesmo o amor permanece o
que ele é, queremos dizer uma falta à qual responde adequadamente, uma falta
comparável, e não o objeto; este, mais uma vez, é apenas um sinal.
A questão é: o que são a pulsão genital e o desejo sexual? Trata-se de saber
por quais meios é introduzido um terceiro tipo de falta, diferente da necessidade de amor. Lacan responde pelo intermediário da metáfora paternal. Uma
metáfora é uma substituição, cuja característica reside em que ela origina uma
nova significação — cria um novo significado.
Admitimos que em virtude do fato da imaturidade marcar o ser humano
no momento do nascimento, a experiência vivida com a mãe leva a criança à
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significação de uma relação de onipotência, da qual ela depende para sua sobrevivência. Precisamos, portanto, saber como se estrutura o desejo no momento
em que a criança é, por assim dizer, surpreendida pela intrusão da sexualidade
precoce. Remarcamos que esta aparição se desdobra da percepção de um desejo
sexual da mãe, que aparecia até aqui como uma potência de dom ou de recusa
de dom. Ou, então, basta pensar nos estragos neuróticos que engendra/origina
em alguns uma determinada fantasia ou crença para assegurar, com seu pênis,
não só o objeto, mas ainda a garantia de desejo do Outro, para que possamos
avaliar a importância que retorna da significação de uma irredutibilidade da falta
que em relação à mãe é da ordem do ter. Ou seja, o pênis não pode satisfazer
o desejo da mãe.
A metáfora paternal substitui no inconsciente o nome do pai no desejo da mãe.
A substituição deste significante, com carga simbólica portadora de interdição
de incesto — ter um desejo que apareceria de outra maneira como um desejo
que nada retém — engendra no sujeito um efeito de significação: é o phallus, tal
qual ele aparece na Grécia antiga ao fim dos mistérios.
Aqui chegamos ao significado simbólico do nome do pai, desde que ele
constitui não somente o significante do desejo da mãe, mas também o vínculo
que une o desejo à interdição do gozo sexual da criança. É em função desta
dimensão do nome do pai como ficção de linguagem que se aborda também a
culpa que é inerente à gênese do desejo.
Após a identificação do limite a partir da perda e da existência de uma falta
na construção subjetiva, interrogamos a prática possível do limite.
Em um belo texto sobre “margens, bordas, limites” (da singularidade),1 Jean
Luc Nancy se interroga sobre o limite que limita e que singulariza o singular. Ele
utiliza assim três noções: o limite, a borda e a margem. Em primeiro lugar, o
limite é um fim, uma conclusão que não vem do exterior — é um fim que põe
fim, como o final de uma história. Assim, ele é inerente ao singular enquanto
seu “dentro” e ao mesmo tempo seu “fora”. Le limes latin designa o caminho e dá
ao limite seu intervalo no qual podemos circular entre duas bordas. Portanto, se
há uma ou duas bordas, vários cenários são possíveis. Em todo caso, esta questão se repete a cada apropriação de uma singularidade onde o limite faz borda,
poderíamos dizer “faz corpo”. Este trabalho de apropriação por um trabalho
de pensamento de uma singularidade somente pode ser feito em um intervalo
“fora de tempo-fora de lugar”. Encontramos esta ideia em Agamben, ao definir
a contemporaneidade pela “relação com seu próprio tempo, em que aderimos
1 Esse texto foi apresentado no colóquio Rivages, organizado pela Prefeitura e Universidade
de Nice, em julho de 2000.
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tudo tomando distância” (2008, p.22). Podemos pensar igualmente no caminho
de Heidegger: A caminho da linguagem (1976).
Não estamos distante da costa e da margem, Mallarmé fala dos lábios como
de “margens rosa”. É interessante notar o que Jean-Pierre Vernant faz do mito
de Actéon (1998), o herói da margem; ele compreende o mito como aquele da
prova da passagem da adolescência à virilidade. Delacroix pintou a cena colocando Artémise sobre a outra margem de um estreito rio.
Podemos concluir com Jean-Luc Nancy (2000) que um mundo, uma singularidade, mantido na borda sem ver a outra borda é um mundo, ou uma
singularidade, onde a margem está em ruína.
Voltemos agora à nossa questão sobre o tratamento analítico dos sujeitos
borderline. Como disse Lacan (1955-56), nada parece mais com uma neurose do
que uma pré-psicose (ou as if, como se); podemos dizer o mesmo de patologias
limítrofes. O que nos motiva no tratamento, para além dos sinais clínicos indicados no DSM V e das questões clássicas da transferência, é quando o sujeito
se aproxima do buraco de sua estrutura, no sentido de que ele é a borda de sua
estrutura (idem, p.221) — o limite é a borda de sua estrutura — como disse
Jean-Luc Nancy.
Tomemos simplesmente o clássico sentimento de vazio que geralmente testemunham estes sujeitos. Lacan evoca um caso que ele qualificava de “limite” (1986,
p.140) em seu seminário sobre a ética da psicanálise, a propósito justamente de
uma descrição clínica de um “espaço vazio” na subjetividade de uma paciente.
Este “vazio de existência”, como dizia um jovem adolescente, é um vazio
muito diferente do que um sujeito neurótico pode experimentar, no sentido de
que este último se agarrará à beira de uma esperança de um amanhã (melhor)
que cante. Enfim, ele está em uma beira, vê o outro lado e o caminho a executar/percorrer, e isto o deprime, enquanto o sujeito borderline está à beira do
precipício sem outra beira para se agarrar. Em termo de topologia lacaniana,
eles estão, todos os dois, sobre um borde real com a diferença de que o sujeito
neurótico tem à sua disposição uma beira (um horizonte) simbólico que pode
se imaginarizar em todos os momentos (O fantasma).
A prática terapêutica com o sujeito borderline pode consistir em tentar dar
borda ao buraco que se abre diante dele, procurando com ele o que Jean Oury
ilustrava pela metáfora da “brasa em um monte de cinzas”. Trata-se, assim, de
encontrar no envelope simbólico do sujeito a existência de um ponto onde se
detenha um pouco mais de tempo, onde exista um pouco de desejo e em consequência a falta, e soprar em cima com prudência para que a chama da vida
retome com uma malha simbólica. Recordamos um jovem paciente, o qual, após
várias tentativas sem sucesso, encontra certa nostalgia em um pequeno flerte,
que se tornou o ponto de partida da construção de um desejo do outro, como no
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quadro de Actéon. Ao final da cura, ele quis confirmar que foram as metáforas
que o ajudaram a se reconstruir um si.
Em termos da relação dessas patologias “sem limite” com nosso mundo contemporâneo, evocamos uma dessas características maiores de nossa atualidade,
que é a aceleração vertiginosa do tempo, que expõe o sujeito (post-metafísico)
à mania. Basta ler Paul Ricoeur (1985) e seu trabalho sobre tempos e narrativa
para nos lembrarmos de que o trabalho de pensamento, a obra na narrativa está
correlacionada à experiência temporal.
Recebido em 25/9/2014. Aceito em 6/10/2014.
Referências
AGAMBEN, G. (2008) Qu’est ce que le contemporain? Paris: Rivages poche.
BIRMAN, J. & HOFFMANN, C. (2014) “Problématique du suivi psychothérapeutique de patients borderline”, in CHABOUDEZ, G. & GILLIE,
C. Actualités de la psychanalyse, Paris: Erès.
. Névrose, psychose
FREUD, S. (1924/1973) “Névrose et psychose”, in
et perversion, Paris: PUF, p.286.
. (1925/1985) “La négation”, in
. Résultats, idées, problèmes,
Paris: PUF.
. (1929/2010) Le malaise dans la civilisation, Paris: Seuil.
GREEN, A. (2012) La clinique psychanalytique contemporaine, Paris: Ithaque.
HEIDEGGER, M. (1976) Acheminement vers la parole, Paris: Gallimard.
HOFFMANN, C. (2013) Le concept de limite dans l’inconscient et ses
états, Figures de la psychanalyse, n.25, Paris: Erès.
LACAN, J. (1955-56) Les psychoses, Paris: Seuil, p.216.
LACAN, J. (1986) L’éthique de la psychanalyse, Paris: Seuil, p.140.
RICOEUR, P. (1985) Temps et récit, T. 3, Paris: Seuil.
SAFOUAN, M. & HOFFMANN, C. (2014) Questions psychanalytiques, Paris:
Hermann.
VERNANT, J.-P. (1998) La mort dans les yeux, Paris: Hachette/Pluriel.
Christian Hoffmann
[email protected]
Rosana Alves Costa
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Considerações psicanalíticas
sobre os jogos de esconder:
do puti ao esconde-esconde
Humberto Moacir de Oliveira e Jacques Fux
Humberto Moacir
de Oliveira
Professor da
Faculdade Pitágoras
de Ipatinga; mestre
em Psicologia
pela UFMG;
coordenador do
CEPP (Centro de
Estudo e Pesquisa
em Psicanálise do
Vale do Aço).
Jacques Fux
Pós-doutorando em
Teoria Literária pelo
Instituto de Estudos
da Linguagem da
Unicamp; doutor
em Literatura
Comparada na
UFMG (POS-LIT,
2010) em cotutela
com a Universidade
de Lille 3 (2010).
Autor do livro:
Literatura e matemática:
Jorge Luis Borges,
Georges Perec e o
OULIPO (Tradição
Planalto, 2011).
Resumo: A psicanálise muito tem discutido sobre a brincadeira
infantil, mas pouco tem relacionado as descobertas sobre os jogos de esconder realizadas por Freud a partir de 1920 à teoria de
que toda brincadeira representa o desejo de ser adulto. Por meio
do estudo das brincadeiras de esconder, o presente trabalho visa
revelar como a repetição encontra um lugar na teoria psicanalítica
do brincar, tornando-se um operador mais importante do que o
próprio desejo de ser adulto, tão caro ao olhar inicial de Freud para
as atividades infantis.
Palavras-chave: Brincadeira; esconde-esconde; fantasia, repetição;
psicanálise.
Abstract: Psychoanalytic considerations on hide-and-seek games:
from Puti to Peekaboo. Psychoanalysis has much discussed children
games, but has seldom related the discoveries about hiding and
seeking games, carried by Freud in the 1920’s, with the theory that
all games represent the desire to be an adult. By studying the game
of hide-and-seek, the present work aims at revealing how repetition finds its own place in the psychoanalytical theory of play and
becomes a much more important operator than the desire a child
holds of being an adult, as proposed by Freud.
Keywords: Hiding and seeking games; peekaboo; fantasy, repetition;
psychoanalysis.
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Humberto Moacir de Oliveira e Jacques Fux
Introdução
A partir de 1920, não por acaso, as brincadeiras de esconder passam a chamar a
atenção dos psicanalistas. Entre elas, o jogo de ocultar e revelar o rosto encontra-se
fortemente enraizado em nossa cultura. Observando essa brincadeira com mais
atenção, percebemos que sua versão brasileira vem quase sempre acompanhada
de sons bastante breves como os que Freud (1920/1996) observou na brincadeira
de seu neto. Na ocasião, a criança observada emitia sons que lembravam as palavras alemãs fort e da à medida que lançava seu carretel para longe de sua vista
(fort: ir) e o puxava de volta (da: aqui). No Brasil, a brincadeira é com frequência
acompanhada pelas palavras sumiu e achou ou, em muitos casos, por puti, o que
justifica ela ser chamada, em algumas regiões, de jogo do puti.
Além dos já citados jogos, muitas outras variações das brincadeiras de esconder
são possíveis. Entre elas podemos citar alguns diferentes formatos da brincadeira
do puti, como, por exemplo, o jogo em que, ao invés de se esconder, o adulto
esconde a criança com algum pedaço de pano ou objeto similar. Ou ainda, a
versão um pouco mais elaborada do mesmo jogo em que é a própria criança que
se esconde e aguarda ser descoberta. Em crianças mais maduras, que em geral já
não participam dos jogos do puti, e que talvez também já não retiram prazer dos
jogos como o do carretel, encontramos ainda a brincadeira em que um grupo
se esconde de uma criança a fim de disputar quem fica mais tempo escondido
(o único que designaremos aqui por esconde-esconde). Outros jogos poderiam ser
citados, mas nos deteremos nessa pequena lista que acreditamos formar um
recorte geral dos jogos de esconder presentes no desenvolvimento de quase toda
criança. A pergunta que fica é: como essas brincadeiras se relacionam e como
podem ser assimiladas pela teoria psicanalítica do brincar?
Sobre os jogos
Antes de fazermos alguns avanços teóricos, comecemos analisando esse grande conjunto de brincadeiras que pode ser dividido em alguns subconjuntos.
A primeira divisão que podemos fazer é separar duas classes de jogos que se
distinguem pela maior atividade ou passividade na brincadeira. Ou seja, teríamos
as brincadeiras em que as crianças ou os objetos são escondidos por um adulto e
aquelas em que é a criança que se esconde ou esconde o objeto. Na primeira classe
de brincadeiras — as brincadeiras passivas —, temos dois formatos do jogo do puti:
o jogo em que o adulto se esconde e o jogo em que o adulto esconde a criança.
Em ambos, quem exerce a função de esconder é o adulto. No outro formato da
brincadeira, aquele em que a própria criança se esconde, assim como no jogo do
fort da e no jogo do esconde-esconde, é a criança que se oculta ou oculta o objeto.
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Outra distinção que parece ser relevante, mas que talvez só possa ser apreciada teoricamente depois de avançarmos nossa investigação, é a separação entre
as brincadeiras em que a criança anseia pelo encontro do objeto escondido e
aquelas, ou aquela, em que a criança anseia por sua não revelação. Curiosamente,
a maioria das brincadeiras, exceto talvez a última referida, o esconde-esconde, se
enquadram dentre as brincadeiras em que a criança anseia por encontrar o objeto
ou, no caso de ser ela mesma o objeto escondido, em ser encontrada por um
adulto. Mesmo nas brincadeiras em que a criança age ativamente se escondendo
ou escondendo o objeto, o desejo de descobrir ou ser descoberto parece estar
mais evidente do que o desejo de enganar ou de permanecer escondido, haja
vista as crianças não se incomodarem muito com o fato de os adultos notarem
onde e como elas estão escondendo o objeto, ou se escondendo.
Nesse momento será bem-vinda uma breve citação que aponta para a confirmação da teoria de que um dos principais operadores do jogo de esconder, mesmo
naqueles em que a criança exerce o papel mais ativo, é o desejo de descobrir o
objeto ou de ser descoberto por ele. Trata-se de uma citação do escritor francês
Georges Perec que, através dos usos curiosos que faz de sua língua, como inserir
palíndromos e anagramas em seus textos ou mesmo escrever um livro inteiro
sem a letra “e”, letra tão fundamental para o francês, diz situar sua escrita na
curiosa posição da criança que brinca de esconde-esconde: “Uma vez mais, fui como
uma criança que brinca de esconde-esconde e não sabe o que mais teme ou deseja:
permanecer escondida, ser descoberta” (PEREC, 1995, p.14).
É muito interessante para o nosso debate a observação do escritor, pois se
é a própria criança quem se esconde poderíamos supor que seu maior desejo
fosse não ser encontrada ou ao menos ludibriar o outro durante o máximo de
tempo possível. Em alguns casos pode até ser que esse desejo de ludibriar se
confirme, mas o escritor indica que esse desejo de não ser encontrado divide
espaço com outro desejo, o de ser descoberto, ou com um temor, o de não ser
descoberto. Em outras palavras, poderíamos dizer que na maioria dos jogos que
propomos pesquisar, exceto talvez no que chamamos de esconde-esconde (ainda que
nossa definição não coincida totalmente com a de Perec), a criança, mesmo que
ativamente escondida, apresenta um claro desejo de ser descoberto que só pode
ser fruto, como indica o escritor, de um temor, o temor de não ser encontrado.
Uma última divisão que poderíamos vislumbrar entre as brincadeiras de
esconder é a divisão por fases do desenvolvimento. Por achar um tanto quanto
precipitado estabelecer uma divisão rígida das idades típicas de cada uma dessas brincadeiras, faremos uma divisão geral e maleável apenas indicando que a
tendência geral, nem sempre obedecida, é de as brincadeiras se desenvolverem
de acordo com a sequência em que as dispomos no início do texto de forma
proposital, ou seja, as brincadeiras do puti parecem ser mais típicas de uma idade
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mais precoce do que a brincadeira do fort da, que por sua vez parece ser mais
precoce do que a última das brincadeiras propostas, o esconde-esconde.
Apresentado o material que deverá ser analisado, é hora de passarmos para
as considerações teóricas que podemos tecer e assim vermos se as divisões que
propomos encontram alguma utilidade para a visão psicanalítica do brincar
em geral, e sobretudo, como é o objetivo desse trabalho, elucidar a função que
a brincadeira de esconder exerce no ser humano e em sua constituição como
sujeito, caminho aberto por Freud em 1920, mas que talvez ainda tenha campos
a serem explorados.
O brincar como fantasia
Freud se ocupa da função do brincar em vários momentos de sua obra, quase
sempre colocando essa atividade tipicamente infantil ao lado da criação artística,
tipicamente adulta. Em “Escritores criativos e devaneios”, texto de 1908, o autor
afirma que: “O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um
mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande
quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo
e a realidade” (FREUD, 1908/1996, p.135).
É nesse sentido que Freud defende que a antítese de brincar não é o que é
sério, mas aquilo que é realidade. A fórmula freudiana para o brincar parece se
ajustar muito bem à maioria das brincadeiras infantis que se ocupam em construir mundos imaginários, situações heroicas, revivências do mundo cotidiano
do adulto, entre outras atividades em que um enredo imaginativo está em jogo.
Freud (1908/1996) ainda observa que essas brincadeiras têm em comum um
único desejo que auxilia a criança em seu desenvolvimento, o desejo de ser
adulto. Temos como exemplos dessas atividades, as brincadeiras como as de papai
e mamãe, nas quais as crianças exercem a função de um ou de outro membro do
par parental, e que em geral detestam fazer o papel dos filhos. Temos também
as brincadeiras de casinha, que novamente reconstituem o ambiente familiar. Ou
a brincadeira de médico, que além de satisfazer o desejo de ser adulto permite que
a criança explore o corpo humano. Poderíamos incluir aqui também algumas
brincadeiras esportivas como o futebol, quando as crianças representam o papel
de craques do momento.
Essa ideia divulgada em 1908 já havia sido elaborada por Freud em um texto
escrito entre 1905 e 1906, mas que só foi publicado depois de sua morte. Em
“Personagens psicopáticos no palco”, Freud (1942/1996) afirma que para a plateia
de um teatro, participar do jogo dramático funciona como o equivalente de uma
brincadeira infantil. Ou seja, não só o artista, mas também o público, faz do
jogo artístico um substituto do brincar e usa essas atividades para satisfazer seus
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desejos dentro de limites considerados normais em sua cultura. Consideramos
bastante corriqueiro que uma criança de 8 anos se vista de policial e corra atrás
de bandidos imaginários, mas um adulto que tivesse o mesmo comportamento,
muito provavelmente seria tratado como anormal. Isso não impede que os adultos
ditos normais façam atividades tão infantis e extravagantes quanto essa, desde
que seja feita em sua própria imaginação, expressa ou em forma de devaneios
ou em expressões artísticas. Enfim, em toda essa discussão primordial de Freud,
o brincar ocupa a mesma função da arte, sendo sempre anterior a ela, ou ainda,
sendo sempre um modelo, quem sabe uma condição, para arte.
Nos textos citados, o que parece ser compartilhado entre a arte e o brincar é
a fantasia. Em 1911 — pouco depois, portanto, dos dois textos aqui referidos —,
Freud escreve “Formulações sobre os dois princípios de funcionamento mental”,
no qual destaca um dos elementos básicos de sua teoria, o princípio de prazer.
O princípio de prazer, fundamento tanto para o brincar quanto para a atividade
artística, é o mecanismo mental que leva o ser humano, desde os períodos mais
primordiais de sua existência, a buscar o prazer independentemente da realidade.
O maior resquício desse mecanismo se revela nos sonhos, quando ignoramos a
realidade e buscamos afastar de nossa mente qualquer evento que desperte desprazer, como acontece na clássica situação em que o dormente sedento alucina
que está ingerindo algum líquido.
Porém, visto que um ser vivo que se encontrasse imerso apenas nessa situação
de busca intensa de prazer e desprezo da realidade jamais poderia manter-se
vivo por muito tempo, o aparelho psíquico teve de tomar outra atitude perante
a vida e se guiar não apenas pelo o que é sentido pela mente como prazer, mas
também como real. É importante frisar que o real ao qual Freud se refere aqui
se distingue do real lacaniano que trataremos adiante: o real como impossível
de ser simbolizado. Isso se revela com mais exatidão quando Freud (1911/1996)
chama esse mecanismo de “princípio de realidade”, o que nos permite doravante
substituir no texto de Freud ‘real’ por ‘realidade’. No exemplo do sujeito sedento
que sonha beber água, sabemos bem que a não satisfação da água alucinada o
faz acordar e buscar alguma alteração objetiva na realidade. Assim, o princípio
de prazer incluiria, para se livrar de novos desapontamentos, outro princípio,
o princípio de realidade.
A grande contribuição que essa teoria oferece às brincadeiras infantis é justamente no que se refere à fantasia, pois, como observa Freud, nosso aparelho
mental apresenta sérias dificuldades em renunciar a um prazer uma vez obtido,
e como o princípio de prazer se manifesta com muito mais liberdade quando
não articulado ao princípio de realidade, o aparelho mental se apega a essa
forma de obtenção de prazer que independe da realidade e a conserva lado a
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lado com as outras funções do organismo psíquico. Assim é que uma parte de
nossas atividades de pensamento é liberada do teste de realidade e permanece
subordinada apenas ao princípio de prazer. Nas palavras do próprio Freud: “Esta
atividade é o fantasiar, que começa já nas brincadeiras infantis e, posteriormente,
conservada como devaneio, abandona a dependência de objetos reais” (FREUD,
1911/1996, p.241).
Temos então uma primeira definição do brincar que se sustenta, sobretudo,
no princípio do prazer, conservado na fantasia, e em um dos principais desejos
infantis, o de ser adulto, o que muito contribui com o desenvolvimento humano.
Essa primeira definição de Freud se apoia em textos anteriores a 1920 e como
sabemos muitas mudanças houve na obra freudiana a partir desse ano. Além
disso, é fácil observar que a posição freudiana até então defendida se sustenta
nos jogos imaginativos mais elaborados, mas traz algumas complicações para a
análise das brincadeiras que nos dispomos a estudar. Cabe-nos perguntar, então,
se Freud, preocupado nesses textos menos em esclarecer a função do brincar
comparadas à atividade do artista, não teria buscado na infância algo já elaborado
demais, que talvez seja inadequado para ser tomado como a gênese ou o modelo
do brincar, já que podem existir estruturas mais arcaicas a ser consideradas.
Nessa perspectiva é que as brincadeiras de esconder parecem estar em posição
mais apropriada para o estudo da gênese do brincar e de sua função mais geral
do que os jogos de fantasiar analisados por Freud entre 1905 e 1911. Freud parece
ter essa percepção e, por isso, avançaremos nos estudos freudianos buscando
resgatar dois outros momentos em que o pai da psicanálise estuda o brincar
infantil a partir do que ficou conhecido como sua “segunda tópica”.
O brincar como repetição
Em 1920, no texto “Além do princípio do prazer”, Freud (1920/1996) caminha
na direção de algum funcionamento mental que não apenas independa, mas
que é mesmo mais fundamental e primordial do que o princípio de prazer com
sua variação em princípio de realidade. É nesse texto que podemos encontrar a
análise freudiana do jogo do fort da já citado aqui. Estamos de volta ao universo
das brincadeiras de esconder, nas quais a fantasia não é tão evidente quanto nas
brincadeiras comparadas à arte. Se em um primeiro passo a análise de Freud o
conduziu a comparar o brincar com a atividade artística, a comparação agora é
de ordem muito menos romântica. A comparação que Freud estabelece em 1920
para o brincar não é com o artista nem com o espectador da arte, mas com os
chamados ‘neuróticos de guerra’, que na classificação atual da medicina se encaixam naquilo que ficou conhecido como Transtorno de Estresse Pós-Traumático.
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A ligação das brincadeiras infantis às neuroses de guerra se deve à interpretação freudiana de uma brincadeira de seu neto. Em um primeiro momento,
a criança brincava de jogar os mais variados objetos para longe de sua vista ao
mesmo tempo em que emitia um vocábulo que se assemelhava ao alemão fort.
Certo dia, a criança encontra um carretel que a permite completar a brincadeira
e assim não apenas lança o objeto, perdendo-o, como o faz aparecer outra vez
puxando o barbante, quando emite um som semelhante à palavra alemã da. A
interpretação de Freud é que o menino revivia nesse jogo a saída da mãe, ou seja,
a perda de um objeto importante. Considerando que a primeira parte do jogo
independia a segunda, ou seja, que houve uma época em que ele apenas fazia
propositalmente perder o objeto, Freud supõe que existe nesse jogo algo análogo
às neuroses de guerra. Se nas neuroses de guerra o que se repete é a situação
traumática da guerra — os sonhos com explosivos, a alucinose com os barulhos
de tiros, entre outras lembranças — no jogo da criança o que é repetido é a perda
do objeto materno. Pode-se julgar exagerado comparar a ansiedade causada pelo
perigo iminente da morte com a perda temporária da mãe. Mas em psicanálise
isso se esclarece quando lembramos que, como afirma Freud (1926/1996), um
dos primeiros sinais de ansiedade apresentados pelas crianças é o colo de um
estranho, ou seja, a perda do objeto materno (ou familiar).
A conclusão a que essa discussão conduzirá Freud nós já conhecemos, é a
compulsão à repetição, e, através dela, a Pulsão de Morte. Isso significa que
existe uma tendência, no aparelho psíquico, mais primitiva do que o princípio
do prazer e que independe dele. Ou seja, mais do que buscar o prazer, nosso
aparelho psíquico busca a repetição, ele busca voltar a um estado anterior de
coisas, busca repetir o ocorrido. Freud encontra vários exemplos na natureza
que indicam uma tendência universal a esse retorno, desde as migrações dos
pássaros e a piracema dos peixes até mesmo o destino de todo ser vivo à morte
que nada mais é do que o retorno ao inanimado anterior à vida. A compulsão
à repetição, não necessariamente contraria o princípio do prazer, pelo contrário, pode muitas vezes servi-lo, já que prazer é a redução da tensão psíquica e
a repetição pode conduzir nossa mente a um estado anterior de menor tensão.
Essas conclusões fazem Freud dar outros rumos à sua teoria, mas de maneira
alguma abandonar o princípio de prazer e de realidade. Ele apenas reconhece
que há algo mais fundamental do que eles, e que é nesse algo que podemos
buscar alguma elucidação, tanto para os sonhos dos neuróticos de guerra que
repetem uma situação de desprazer quanto para a brincadeira da criança que
repete a perda do objeto.
Freud reconhece nessas repetições a tendência do organismo a dominar,
vincular as energias não vinculadas na mente. Em um linguajar mais lacaniano,
que apresenta certa crítica a essa ideia do domínio, seria mais correto dizer que
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a perda do objeto ou o perigo iminente de morte aparece como real demais, algo
inassimilável pelos significantes. Esse real resiste em ser simbolizado pela criança
por sua rasa imersão no universo simbólico, assim como resiste no neurótico de
guerra pela impossibilidade de o ser humano representar o real da própria morte.
Como ressalta Maria Rita de Oliveira Guimarães: “O inassimilável é algo que
não passa à representação, ou, dito de outra maneira, não cessa de não se inscrever.
Isso importa no contexto da clínica. Não é simplesmente que não se inscreva,
mas que sendo o que não cessa de não se inscrever, é causa de novas transcrições”
(GUIMARÃES, 2007, p.3).
Isso que não cessa de não se inscrever, Lacan, no livro 11 de seu Seminário, chama,
tomando a palavra emprestada de Aristóteles, de tykhé, em contraponto ao automaton, que é o que Lacan designa por “insistência dos signos aos quais nos vemos
comandados pelo princípio do prazer” (LACAN, 1964/2008, p.59). Tykhé, portanto, é o encontro do real, e o real é o que vige sempre atrás do automaton. Não
que automaton não seja uma repetição, ele o é, mas não está além do princípio do
prazer. O que extrapola esse princípio é o encontro do real, do inassimilável,
que não deixa nunca de não se inscrever. Na visão crítica de Lacan, é essa falha na
inscrição que mais importa quando Freud descreve a repetição em 1920. O que
se repete é a não inscrição do real, o inassimilável do trauma.
Se a ausência da mãe é vivida como uma perda do objeto, um encontro com
o real, será esse o trauma, a falta, que não cessará de não se inscrever no jogo do
carretel. Para Lacan (1964/2008), exercer o papel ativo no desaparecimento do
objeto (que representa a mãe) é secundário, o principal da brincadeira do fort da
é a superação da divisão do sujeito. Trata-se da clivagem do próprio sujeito, sua
castração: “...a automutilação a partir da qual a ordem da significância vai se pôr
em perspectiva” (LACAN, 1964/2008, p.66). Assim, o carretel, na análise lacaniana: “...é alguma coisinha do sujeito que se destaca embora ainda sendo bem
dele, que ele segura” (LACAN, 1964/2008, p.66). Essa coisinha que se destaca é
o que no estudo de Lacan conhecemos como objeto pequeno a.
Retornando ao estudo freudiano, o que percebemos é que, mesmo em sua
análise sobre o fort da, Freud não abandona sua primeira definição do brincar e,
depois de dizer que “...em suas brincadeiras as crianças repetem tudo o que lhes
causou uma grande impressão na vida real...”, afirma que “...é óbvio que todas as
suas brincadeiras são influenciadas por um desejo que as domina o tempo todo:
o desejo de crescer e poder fazer o que as pessoas crescidas fazem” (FREUD,
1920/1996, p.27). Essa teoria do brincar será mantida por Freud, porém, a ela
será acrescentado o mecanismo de compulsão à repetição e vinculação das
energias psíquicas.
Vale a pena retomar, nesse ponto, a já referida crítica que Lacan faz a essa
afirmação, quando assinala que: “Dizer que se trata simplesmente para o sujeito
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de se instituir numa função de domínio é uma tolice” (LACAN, 1964/2008,
232). A crítica outra vez se sustenta na operação lacaniana que Miller (2005)
designa como uma clivagem da repetição, o que a distingue em dois níveis: tykhé
e automaton. Dizer que a repetição é puro domínio, é acreditar: “...que tudo o que
fosse da ordem do natural, dado no começo, real, passaria ao simbólico, sem
deixar resto. O Seminário 11 assinala que a relação da repetição com o objeto não
é a de uma simples anulação” (MILLER, 2005, p.167).
A repetição a que Lacan se refere, portanto, vai ao encontro de um real, e o
real se relacionará com o trauma, que Lacan transforma no “...conceito freudiano
do inassimilável pelo significante” (MILLER, 2005, p.167), e que é o motor da
repetição a partir do Seminário 11. Se o trauma é o inassimilável, ele não pode
ser dominado, ele sempre deixa um resto, e é esse resto que motiva a repetição.
A repetição, por sua vez, nunca dará conta dessa prometida vinculação, o que
não significa que nada pode ser transcrito. Nessa perspectiva, a compulsão à
repetição aparece na brincadeira infantil tanto enquanto determinada pelo
encontro com o real, tykhé, quanto determinada pela insistência dos signos,
automaton, princípio do prazer.
Ainda que seja preciso reconhecer a importância da crítica lacaniana, continuar acompanhando o desenvolvimento do pensamento freudiano pode render
bons frutos ao presente trabalho. E o que podemos observar nesse sentido é
que Freud já antevia em 1920 a convergência da compulsão à repetição e do
princípio do prazer na brincadeira infantil; por exemplo, quando afirma que
também as experiências agradáveis, como uma história, tenderão a ser repetidas
e que: “Nada disso contradiz o princípio de prazer: a repetição, a reexperiência
de algo idêntico, é claramente, em si mesma, uma fonte de prazer” (FREUD,
1920/1996, p.46).
Isso dito, percebemos que além do princípio do prazer e do desejo de ser
adulto, também a compulsão à repetição torna-se um conceito fundamental para
pensarmos a brincadeira infantil ainda que Freud, como observará Lacan em
1964, não tenha retirado desse fato toda sua magnitude. Resumindo, podemos
dizer que na brincadeira infantil convergem a compulsão à repetição e o princípio de prazer: “...aqui, a compulsão à repetição e a satisfação instintual que é
imediatamente agradável, parecem convergir em associação íntima” (FREUD,
1920/1996, 33).
Chegamos enfim ao texto “Inibições, sintomas e ansiedade”, publicado em
1926, depois, portanto, do avanço freudiano rumo ao além do princípio do prazer
e da nova topologia da mente, dividida agora em Isso, Eu e Supereu. A importância desse texto é crucial para nosso trabalho uma vez que será aqui que Freud
abordará, ainda que de forma breve, a brincadeira do puti que acreditamos ser
uma das mais primitivas brincadeiras infantis, e, portanto, mais primitiva do
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que as duas outras classes de brincadeiras estudadas por Freud, as brincadeiras
enredadas pela fantasia de ser adulto e a brincadeira do fort da. Nesse momento,
Freud de novo não está interessado especificamente na brincadeira, mas sim em
um afeto muito caro à psicanálise, a ansiedade (em alemão: angst).
Depois de propor significativa alteração em sua teoria, colocando a ansiedade
não mais como uma libido transformada pelo recalque, mas como causa dele,
Freud (1926/1996) afirmará que a ansiedade é incorporada na mente por meio
de experiências anteriores. A isso Freud acrescenta que não existe uma experiência mais primitiva de intensa ansiedade do que o nascimento, que é, em
outros termos, uma experiência de perda, de perda da mãe e do conforto da vida
uterina. Mas, se a ansiedade, como irá sugerir Freud, é um sinal do eu perante
o perigo, na situação do nascimento não podemos crer que o recém-nascido
esteja ciente dos riscos que está correndo, sendo mais razoável dizer que essa
primeira experiência de ansiedade é mais experimentada como dor, desprazer
psíquico e corporal, do que como sinal de perigo. Percebemos, então, que a situação traumática causa a dor, excesso de energia psíquica desvinculada, e que a
ansiedade é ou a expectativa de que o evento traumático ocorra ou sua repetição.
Mas, se a ansiedade aparece toda vez que a criança supõe a repetição da
experiência traumática (e as primeiras experiências traumáticas são sempre experiências que lançam o sujeito no desamparo do mundo externo), toda vez que
for abandonada por um adulto, ela dará um sinal da antecipação do perigo que
acredita correr. A criança, portanto, sempre que abandonada, revive a situação
de sair do conforto da presença do objeto e pressente uma insegurança dando
sinais de ansiedade. Os perigos estão, assim, relacionados ao desamparo e à
perda do objeto, e perda do objeto, em psicanálise, não tem outro nome senão
castração. Estamos de novo no ponto em que Lacan (1964/2008) indica que o
carretel é uma “coisinha do sujeito que se destaca”.
Esse desamparo humano, que se revela na dependência do bebê a seus primeiros objetos, explica os medos mais convencionais das crianças, como ficar
sozinha, ficar no escuro ou ser entregue a um estranho — situações que repetem a perda do objeto. Toda essa digressão nos conduz de volta à brincadeira
em geral e à brincadeira de esconder em particular. Pois, o que é a brincadeira
do esconder, por exemplo, o jogo do puti, senão uma repetição da perda objetal?
Podemos então observar que antes de participar da brincadeira do puti, a criança
vivia a separação do objeto como uma experiência traumática de abandono e
desamparo. Freud (1926/1996) ressalta que como a criança ainda não sabe distinguir a ausência temporária da perda permanente, ela vive cada experiência
de separação como uma morte. É preciso então que repetidas experiências de
afastamento ocorram para que a criança perceba que a ausência da mãe pode
ser acompanhada de seu reaparecimento. As mães parecem se dar conta de parte
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desse processo, uma vez que muito costumeiramente elas consolam seus filhos
com palavras do tipo: “Mamãe está aqui, não precisa chorar, etc.” Nesse momento, cabe-nos colocar a referência freudiana mais direta à brincadeira do puti:
“A mãe encoraja esse conhecimento [o conhecimento de que o desaparecimento
não é permanente], que é tão vital para a criança, fazendo aquela brincadeira
tão conhecida de esconder dela o rosto com as mãos e depois, para sua alegria,
descobri-lo de novo” (FREUD, 1926/1996, p.165).
Para fins de resumo da situação apresentada, podemos retomar as palavras de
Freud proferidas algumas páginas antes de sua referência à brincadeira do puti,
para depois retomarmos com mais detalhes a investigação dos jogos de esconder:
“A ansiedade é a reação original ao desamparo no trauma, sendo reproduzida depois
da situação de perigo como um sinal em busca de ajuda. O ego, que experimentou
o trauma passivamente, agora o repete ativamente, em versão enfraquecida, na
esperança de ser ele próprio capaz de dirigir seu curso. É certo que as crianças se
comportam dessa maneira em relação a toda impressão aflitiva que recebem, reproduzindo-a em suas brincadeiras. Ao passarem assim da passividade para a atividade
tentam dominar suas experiências psiquicamente.” (FREUD, 1926/1996, p.162)
O brincar de esconder: do puti ao esconde-esconde
Tendo dito já muita coisa sobre o brincar infantil, desde sua relação com a arte
e o fantasiar até sua relação com a compulsão à repetição e a ansiedade, chegamos à conclusão de que além de se apoiar na satisfação do princípio do prazer,
reservando um pedaço do eu livre das condições do mundo externo (base do
conceito freudiano de fantasia), o brincar também serve à criança como uma
maneira de satisfazer a compulsão à repetição. Serão esses postulados que nos
guiarão na pesquisa sobre o brincar de esconder a que nos propomos, com a
única ressalva de que precisaremos extrapolar um pouco a teoria freudiana da
vinculação, se quisermos acatar o conselho de Lacan (1964/2008) de que ficar
preso ao domínio seria uma tolice.
Comecemos pelo que achamos de mais primitivo em nossas pesquisas.
Referimo-nos à experiência da perda objetal. Isso quer dizer que nem sempre
a criança pôde participar do jogo de esconder, pois existia uma época em que
ela mesma não se distinguia da mãe e a separação não poderia de maneira
alguma ser experimentada como uma brincadeira nem a criança poderia dela
retirar prazer. Vimos com Lacan (1964/2008), que a brincadeira do carretel,
por exemplo, exige uma superação da clivagem do sujeito. Antes de brincar de
esconder, a criança tem de ter experimentado a separação da mãe ou do adulto
protetor como o avesso do prazer lúdico, um tormento comparável aos traumas
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de guerras ou a outras situações de perigo de vida. É só depois de verificar que
o objeto não faz parte do eu infantil, só depois de destacar essa coisinha que
será o objeto a, é que ela pode finalmente entrar no jogo e retirar algum prazer.
Pois, não duvidemos, um dos principais motivos de toda brincadeira é retirar
alguma cota de prazer.
Vencida essa primeira etapa e preparada para a brincadeira, a criança, desde
que auxiliada por um adulto, pode então repetir essa experiência traumática
em forma de jogo. Temos agora uma bonificação por ter separado em grupos as
diversas formas do brincar de esconder, pois podemos relacionar esses grupos
e dizer que as brincadeiras mais antigas são as mesmas que, na separação por
atividade, ficaram na classe das passivas. A criança então é convidada pelo adulto
ao jogo de perder o objeto e retomá-lo, o que talvez seja o primeiro passo rumo
à superação da divisão do eu. É importante aqui destacarmos outra vez que a
maioria dessas brincadeiras é acompanhada de vocábulos simples que lembram
o fort e o da da brincadeira do carretel. Esses vocábulos, como sumiu e achou, puti
e outros, devem ter sua função psíquica, uma vez que são, em sua maioria, antítese significante, um S1 e um S2: “Não há fort sem da...” (LACAN, 1964/2008,
p.232). Ainda que, como lembra Lacan, não seja da oposição pura e simples do
fort e do da que o jogo retira sua força inaugural (mas sim do carretel enquanto
objeto a) essa oposição entre os sons emitidos parecem não ser gratuitas, uma
vez que colocam o sujeito entre dois significantes que o auxiliarão rumo à superação da castração.
Se assim de fato for, temos então que a primeira função do brincar não é
atender ao desejo de ser adulto, mas de tentar inscrever a falta inassimilável do
objeto que não cessa de não se inscrever. A criança encontra no convite do adulto à
brincadeira de esconder o rosto uma das primeiras tentativas dessa inscrição.
Muito provavelmente, as primeiras brincadeiras que se tornam possíveis à criança
é a que chamamos de puti, e nelas a criança participa inicialmente de forma passiva, ansiando pelo encontro do objeto que desapareceu por iniciativa do adulto.
A próxima etapa, como já é possível supor, é quando a criança passa a exercer um papel ativo na brincadeira, ou se escondendo do adulto ou escondendo
seus objetos. Aqui temos a brincadeira do fort da e a do puti em que a criança se
esconde, ambas com um funcionamento muito semelhante ao que encontramos
na primeira etapa, mas com a diferença de que é a criança agora que exerce
o papel fundamental do jogo. Agora é a criança que começa a operar com os
primeiros vocábulos e a colocá-los dentro da operação significante opondo-os
de acordo com o momento da brincadeira. Aqui a criança pode simbolizar o
objeto através não apenas de antíteses significantes como o puti e o achou, como,
principalmente, do carretel e outros objetos. Mesmo nesse momento ainda não
temos argumentos muito fortes para dizer que a criança brinca para atender
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seu desejo de ser adulto; o que parece imperar nesse caso ainda é a compulsão
à repetição e sua relação com o trauma.
Logicamente não podemos dizer que essas etapas são bem delimitadas e
rígidas, mas seguindo nosso raciocínio, apenas um pouco mais tarde é que a
criança começaria por encarar o jogo como um desafio e poderia retirar prazer
de se esconder de outra criança com a preocupação de não ser encontrada durante muito tempo. Teríamos aqui, por fim, a situação de esconde-esconde. Ainda
que não seja óbvia a relação que esse jogo apresenta com o desejo de ser adulto,
podemos dizer que é por volta desse período que observamos com mais clareza a presença de brincadeiras que atendam ao desejo de ser adulto. Mesmo o
esconde-esconde apresenta uma versão em que um grupo de crianças representando
a polícia sai à procura de outras crianças escondidas que representam os bandidos: a brincadeira de polícia e ladrão. Seria o encontro do jogo de esconder com
a fantasia de ser adulto?
Essa pergunta, talvez inevitável, de saber quando o jogo da repetição do trauma encontra com o jogo fantasioso de ser adulto, ou se eles sempre coexistiram
no desenvolvimento do sujeito, é difícil de responder. Mas a resposta pode ser
procurada na relação do sujeito com o objeto, que como aprendemos com Freud
(1923/1996), pode ser pelo menos de duas ordens que por vezes convergem: um
desejo de ter e um desejo de ser o objeto. Assim, a criança representaria em suas
brincadeiras ambas as situações, uma em que ela repete a perda do objeto e outra
em que ela, fantasiosamente, se identifica com o objeto amado, que é também
uma das formas de ter o objeto. Freud (1923/1996) defenderá essa hipótese afirmando que se o Eu se apresentar ao Isso de modo semelhante ao objeto perdido,
o Isso pode amar o objeto através do amor narcísico que sente pelo Eu. Em outras
palavras, se uma criança se assemelha ao adulto, ela pode amar essa parte de si
que se parece com esse adulto. Assim, é notável os meninos que buscam usar os
sapatos dos pais ou as meninas que buscam se maquiar como a mãe. Tudo isso
confirma e explica a hipótese de que o brincar se guia pelo desejo de ser adulto.
Teríamos nessa distinção entre o amor do ter e o amor do ser duas formas
da criança tentar inscrever o real: repetindo a perda objetal e fantasiando ser
adulto. É ainda apenas um esboço de resposta a essa pergunta que permanece
em aberto. Por enquanto, apenas sugeriremos que o mesmo motor que move a
repetição, aquilo que não cessa de não se inscrever, move também a fantasia presente
nos jogos mais elaborados da criança. Como afirma Lacan, “...o real vai do trauma
à fantasia...”, já que “...a fantasia nunca é mais do que a tela que dissimula algo
de absolutamente primeiro, de determinante na função da repetição” (LACAN,
1964/2008, p.64). Talvez o que possa ser proposto nesse instante é que o real
também vai da brincadeira do esconder à brincadeira do fantasiar ser adulto.
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Considerações finais
Embora algumas questões ainda estejam em aberto, a análise das brincadeiras de
esconder não parece ter sido em vão. Além de trazermos reflexões para a teoria
freudiana do brincar, também pudemos penetrar um pouco mais na função que
o esconder exerce na vida do ser humano. O ponto a que chegamos é que o real
da falta do objeto é o que sustenta os primeiros jogos de esconder e é o avanço
desse movimento que possibilita novas brincadeiras.
Se Éric Laurent (apud GUIMARÃES, 2007) diz que no jogo do fort da a criança
simboliza a ausência e a presença, podemos dizer que outros jogos de esconder também cumprem essa função ou ao menos preparam o infante para ela.
O autor ainda diz que a criança não tem a possibilidade de escrever em algum
lugar que sua mãe partiu. O jogo de esconder ajuda no desenvolvimento dessa
escrita, que se nunca será realizada, não significa que nada pode ser feito. Para
Laurent, o carretel que simboliza a ausência e a presença pode ser transformado
em urso de pelúcia, que é o que a criança busca quando tem que enfrentar uma
separação. As crianças recusam dormir, pois dormir é uma separação, dormir
é estar sozinho, o urso as ajuda nesse sentido. O esconder as ajuda a chegar ao
urso. E é assim, num jogo de esconde-esconde, de presença e ausência, de puti e achou,
de carretel e urso, que a criança tem a chance de “suportar a angústia do nada
de traço da presença da ausência” (LAURENT, apud GUIMARÃES, 2007, p.4).
Recebido em 5/3/2012. Aprovado em 30/5/2012.
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Considerações psicanalíticas sobre os jogos de esconder: do puti ao esconde-esconde
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Humberto Moacir de Oliveira
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Jacques Fux
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Miragens perimetrais:
sobre o erro como limite
Paulo Sérgio de Souza Jr.
Paulo Sérgio de Souza Jr.
Psicanalista,
tradutor, doutor
em Linguística
pela Unicamp e
pós-doutorando em
teoria literária pela
UFRJ. Membro do
Centro de Pesquisas
Outrarte (IELUnicamp).
Resumo: O erro linguístico tem sido diversamente abordado ao
longo das diferentes tradições dos estudos da linguagem. O presente
trabalho propõe, a partir da psicanálise, uma discussão a respeito
de possíveis considerações e sobre o que o erro viola. Assim, pretendemos vislumbrar onde, na topologia da língua, o erro encontra
a sua morada, bem como questionar se, de fato, ele estaria aí em
posição de limite.
Palavras-chave: Erro, linguagem, língua, limite.
Abstract: Perimetrical mirages: on error as a limit. Linguistic error
has been approached differently throughout different traditions of
language studies. This paper, based on psychoanalytical doctrine,
proposes a discussion about some possible considerations and about
what error violates. Thus we want to envision where in the topology of language indwells linguistic error, and question whether, in
fact, it would be there in some boundary position.
Keywords: Error, language, limit.
Há erro — uma introdução tética
“nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez.”
(Paulo Leminski, La vie en close, p.60)
“Errar é humano”, diz a máxima. E, ao falarmos de erro, certamente seremos impelidos a dizer de sua constituição como
um processo não subestimável, sobretudo na medida em que
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histórico: é a historicidade do erro — uma vez que ele promove sempre uma
diferença, seja por meio de uma descontinuidade entre o que o precede e aquilo
que o sucede; ou, ainda, uma continuidade que impede a circunscrição de um
domínio isolado — que constitui a certeza de sua própria garantia como algo
que tenha efeitos na superfície do discurso. E é esse viés histórico que corrobora
sua filiação, pois, ao âmbito das práticas humanas.
A história, por sua vez, entendida como algo que se constitui no próprio
trânsito entre a pura língua e o discurso,1 é possibilitada exatamente pela diferença de potencial em jogo nessa passagem.2 E, nessa correlação, somos também
obrigados a situar a raiz do erro para além da própria noção de história, como
presente já no vetor que parte do semiótico rumando ao semântico, visto que a
língua mesma, em sua “ordem própria” (SAUSSURE, 1916/1972, p.31), interdita
que tudo se possa dizer. Isso significa que, uma vez dispostos a perscrutar o que
caracteriza a condição humana enquanto tal — visto que “a linguagem ensina a
própria definição do homem” (HUMBOLDT apud AGAMBEN, 1978/2005, p.60)
—, podemos dizer, de saída, que “errar é linguístico”.
No que concerne ao erro de língua, discute-se com frequência a respeito de
qual estatuto aquele tem nesta; e pode-se notar, no trato da linguagem, como é
que o erro tem sido diversamente processado ao longo das diferentes tradições.
Contudo, os questionamentos que advêm não saberiam abalá-lo em sua existência
como tal: depreende-se que o erro há e que ele permeia as práticas linguísticas
mais irrisórias, uma vez que, ainda que tomemos o falante exclusivamente em
sua condição de falante — isto é, como alguém detentor apenas de um conhecimento epilinguístico3 sobre sua língua —, somos obrigados a reconhecer que
ele, por via de um estranhamento, é sempre capaz de identificar algo passível
de ser nomeado como sendo um erro de língua, sem que com isso, muitas das
vezes, consiga precisar o que aí lhe estranha, ou mesmo fazer com que outro
1 “Somente porque [...] há uma diferença entre língua e discurso, entre semiótico e semântico, somente por isso existe história, somente por isto o homem é um ser histórico”
(AGAMBEN, 1978/2005, p.64).
2 “É, com efeito, a diferença que talha a cesura do isolamento na homogeneidade da linguagem e que, inversamente, abre em cada sistema as vias para um outro. A instabilidade
interna dos ciclos e o equívoco de suas relações não são dois problemas. Sob essas duas
formas, como relação com o outro e como relação consigo, um confrontamento incessante
trabalha a história, legível nas rupturas que fazem os sistemas bascularem e nas coerências
que tendem a recalcar uma alteração interna. Há continuidade e descontinuidade, todas as
duas enganadoras, porque nesse ‘modo de ser da ordem’ que lhe é própria, cada momento
epistemológico carrega em si uma alteridade que toda representação procura eliminar objetivando, mas sem jamais poder sufocar seu obscuro trabalho e nem prevenir seu veneno
mortal” (DE CERTEAU, 2002, p.168; tradução livre).
3 Termo utilizado por Culioli (1968) para designar o saber inconsciente que todo falante
possui sobre sua própria língua — anterior, portanto, a uma metalinguagem, a um aparato que
possibilite construir um saber objetivo sobre essa língua.
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sinta ali o mesmo e compartilhe do seu estranhamento; em algumas ocasiões,
aliás, ele sequer pode oferecer àquilo que causa tal sensação uma alternativa
que a reconforte.
Mesmo que possamos dizer, minimamente orientados pela noção de níveis
de análise (BENVENISTE, 1964), que, nesse processo de aperceber-se dele, o
erro apresenta diferentes nuances — afinal, ninguém contrariaria a afirmação,
mesmo que razoavelmente obscura, de que há diferença quanto ao estatuto do
erro ao se ponderar as equivalências, por exemplo, entre uma troca de letras
numa palavra e uma violação de uma regra sintática —, iniciaremos o presente
trabalho com uma discussão situada num ponto um pouco aquém dessas nuances, isto é, por meio da seguinte pergunta: o que é que o erro, como tal, viola?
Assim, poderemos nos guiar conforme nossos propósitos, tornando-nos capazes
de vislumbrar onde, na topologia da língua, o erro encontra o seu abrigo; e
questionar se, de fato, ele se encontra em posição de limite, visto que, ao nos
darmos conta de que a língua não vai em todos os sentidos — isto é, que “não
se diz tudo” (MILNER, 1978/2012, p.69) —, talvez fôssemos levados a crer que
um dos papéis do erro fosse justamente o de estabelecer os seus lindes.
A lupa da letra: o erro através
“Sem o escrito não há nenhuma forma possível de chegar a questionar o que resulta
essencialmente do efeito da linguagem como tal.”
(Jacques Lacan, 17 de fevereiro de 1971)
Longe de se pretender reduzir o erro a uma palavra-mestra, ainda assim parece
inevitável situá-lo sob os auspícios daquilo que o evidencia, a saber, a escrita — na
medida em que, sabe-se, é apenas a partir do seu estabelecimento que determinado saber consistente sobre a língua se torna possível (AUROUX, 1992, p.22).
Sabe-se que, por um lado, “a escrita obscurece a visão da língua” e “não é
um traje, mas um disfarce” (SAUSSURE, 1916/1972, p.40) — que se lembre
aqui, é necessário dizer, da potência do efeito de báscula promovido pelo gesto
saussuriano, que coloca a língua falada à frente da escrita em termos de privilégio
de estudo; por outro, contudo, caso pensemos no processo de reflexão sobre a
língua atual frente aos estados anteriores, já somos obrigados a reconhecer que
a escrita tem aí um papel de esclarecimento fundamental.
Além do mais, por meio de sua fixidez, ela garante a leitura de textos de
outras épocas com os quais muitas vezes não se teve contato prévio — ou com
o escrito em si, propriamente, ou com o texto oral que lhe deu origem. Ainda,
como prótese mnêmica, é capaz de livrar da necessidade do conhecimento, de
cor, dos textos que se deseja fazer uso. Assim, ela vai subitamente na contramão
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da própria imutabilidade, uma vez que sua fixidez também denuncia, para além
da variação sincrônica à qual o falante tem acesso, o efeito da diacronia pesando
sobre a língua. Mas não só, já que chega, como Saussure mesmo é obrigado a
reconhecer, a causar modificações no próprio estado de língua que lhe é contemporâneo: o que vai ser nomeado no Curso como uma espécie de auge da “tirania da
letra”, quando a escrita acaba por influir na língua, modificando-a (idem, p.41).
Essa dimensão da variação que a escrita submete aos sentidos do falante não
deixa de ter efeitos, visto que a variação linguística, sincrônica ou diacrônica,
costuma ser encarada com maus olhos nas mais diversas tradições — em que
vigoram considerações que datam de muito antigamente, por exemplo, como a
de que a língua de um outro povo é uma língua menor, não sagrada; ou, ainda,
a de que a capacidade de falar todas as línguas havia sido concedida ao primeiro
dos homens, mas foi mais tarde perdida devido a algum infortúnio/intemperança: o orgulho humano e a insolência contra os seus deuses ocupam, para
vários povos, esse lugar (tal qual se mostram justificativas, por exemplo, para a
separação/perda que está em jogo na origem do amor, como no mito descrito
por Aristófanes, conforme O banquete, de Platão).
A dimensão do sagrado como estando atrelada aos fenômenos linguísticos se
mostra, desde então, no cerne de muitas das concepções tanto sobre a origem
da linguagem — e.g. o povo dogom (AUROUX, 1992, p.19) —, quanto sobre a
diversidade das línguas — e.g. o mito babélico; o mito da confusão das línguas
por Zeus, para os gregos. E o sagrado, aliás, chega a garantir o seu lugar de tangência inclusive em produções gramaticais mais recentes — e.g. a querela entre
jesuítas e jansenistas no século XVII (DEFIZE, 1988).
Os primeiros relatos de estudos gramaticais já haviam colocado em cena a
religião. Tomemos a Índia politeísta do século IV a.C.: é nesse período que encontramos a gramática de Panini e, já aí, a frutífera noção de boa formação — de
palavras, até então —,4 que estava em jogo na língua que se acreditava que, aos
poucos, vinha se perdendo devido à variação. Essa língua, com a qual o gramático trabalhou em sua Ashtadhyayi,5 é aquela em que foram escritos os Vedas; e o
objetivo de sua compilação de regras guarda relação íntima com o fato de que
os eruditos acreditavam que o sânscrito, considerado a língua dos deuses, estava
sofrendo mudanças e se degradando, o que poderia acarretar severas implicações
4 A palavra como unidade privilegiada atravessará grande parte do período clássico, como
na obra de Dionísio, o Trácio — autor, no século II a.C., da primeira gramática ocidental
documentada. A frase só começará a ser tomada como unidade de análise no século II d.C.,
com Apolônio Díscolo e seus trabalhos sobre a sintaxe do grego.
5 A gramática de Panini é composta por aproximadamente 4 mil regras, além de alguns
anexos — como uma lista de aproximadamente 2 mil raízes. Foi tão profícua que até hoje
ainda desperta grande interesse, como denuncia um projeto (Grammaires Paninéennes) em curso,
no momento, dedicado exclusivamente ao seu estudo no Instituto Francês de Pondichéry.
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religiosas: uma diferença/erro aparentemente banal de pronúncia, por exemplo,
seria capaz de colocar toda uma cerimônia a perder.
Vemos, então, uma estreita relação entre mudança e erro, isto é, entre a noção seminal de erro, nos primórdios da gramática, e a violação de uma língua
anterior — correlata a um momento mítico (muitas vezes sagrado) de pureza
— à qual deveríamos nos reportar sempre, por algum motivo, e por cuja preservação deveríamos supostamente zelar: refreando a mudança; retornando aos
primórdios desse gozo perdido que estaria em jogo para uma língua imaculada;
recusando a falta, na busca de uma língua de fato completa.
Tal entendimento que afirma a língua atual como algo que violaria um estado anterior estará por detrás da própria noção de erro gramatical — e, se não
estivesse, correríamos o risco do anacronismo, visto que a violação pressupõe
algo que já havia para, então, num segundo tempo, ser violado —, o que, ao se
replicar, supõe a remissão a uma espécie de idioma “pré-babélico”, que figuraria
como língua ideal. Basculando dessa língua ideal ao ideal de língua, vemos que
se identifica no erro certa natureza transcendente,6 pois, apesar de exceder toda
e qualquer língua, manifesta-se em cada uma: o erro quotidiano viola a língua
no estado atual; a variante regional viola o standard; o erro que se torna fato de
língua viola o estado de língua anterior; o idioma como tal viola a língua que
lhe deu origem.
Não será diferente, portanto, nas tradições dos séculos seguintes, como se
pode ver com o segundo período da história da Linguística, conforme descreve
o Curso de Ferdinand de Saussure (1916/1972, p.7): a Filologia. Apesar de haver aí
uma preocupação maior com outras questões — datação, interpretação e comentário de textos clássicos —, ela acaba por estabelecer, ainda que por outras vias,
a mesma suposição de primazia à língua dos antigos: o próprio Saussure aponta
como uma falha da disciplina a atenção exclusiva a textos escritos (literários,
além do mais, lembremos), em detrimento do atual da língua falada, que vai
ser entendida como uma manifestação linguística menor (idem, p.8). O erro,
portanto, reconhece o seu lugar para além da língua, isto é, no descompasso
entre a língua atual e o lugar fantasístico que a imagem de uma língua perdida
guarda para si — descompasso que guiará a noção de norma que acompanha, com
fertilidade, a tradição gramatical no âmbito escolar até mesmo nos dias de hoje.7
6
Damos a medida desse termo conforme a lógica medieval entende os transcendentia, isto
é, predicados que transcendem as categorias, mas persistem em todas elas (AGAMBEN,
1978/2005, p.13).
7 Nas gramáticas escolares — seja de primeira língua, seja para aprendizado de língua estrangeira — o trabalho gramatical normativo, entendido como arte, faz do erro a violação
de uma tekhné consolidada pelas mãos de grandes escritores, deixando ao sabor do cânone
— e daquilo que o garante enquanto tal, então — os poderes de fixar seus lineamentos: a
boa língua; a língua dos doutos; a língua das pessoas de bem; a língua dos bons costumes.
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Se pensarmos em Port-Royal, por sua vez, a questão encontra o seu reverso.
Aqui, a noção de gramática rompe com a tradição que vê sua exímia figuração
no trabalho de Vaugelas (Remarques sur la Langue Française, 1647), isto é, ela não será
entendida como uma teoria dos usos, e sim como uma disciplina que incide
sobre a própria racionalidade e generalidade que estão em jogo na função da
linguagem compartilhada pelos homens.8 Visto que a língua, no caso, é tomada
como uma expressão daquilo que se pensa, o erro de língua consiste em erro de
pensamento: a língua se isenta do erro, isto é, o erro em si encontra-se aquém
da língua.
Ao nos ampararmos no próprio Curso saussuriano, caso caminhemos um
bocado mais adiante na história das reflexões linguísticas, vemos que a questão parece se espelhar outra vez. Afinal, se é “a fala que faz evoluir a língua”
(SAUSSURE, 1916/1972, p.27) e, ao mesmo tempo, se “as inovações da fala
não têm [todas] o mesmo êxito e, enquanto permanecem individuais, [para
a Linguística] não há porque levá-las em conta” (idem, p.115), depreendemos
que o movimento individual, num primeiro momento — enquanto fato de fala
—, nada mais é do que erro frente ao fato de língua do qual ele se desvia, isto
é, novamente se presentifica a violação de uma cristalização e o erro retoma o
seu lugar de além-da-língua.
Mas e hoje? Bem, se podemos dizer do erro no atual estado da arte vemos
que a gramática gerativa — em seu lugar privilegiado entre as abordagens atuais
do fenômeno da linguagem — trata-o de maneira a tornar evidente uma relação
necessária para pensá-lo de forma profícua para o campo da psicanálise. É o que
veremos mais adiante.
Dois erres do erro
A gramática gerativa, acreditamos, é a que melhor situa o erro em sua natureza
bífida: 1) de um lado, temos a violação no sentido gramatical leigo, que, apesar
de não ser valorado negativamente — já que a normatividade não é o que está
para ela em jogo —, não deixa, contudo, de ser fundamental para os estudos que
contrastam os funcionamentos das línguas entre si; 2) de outro, há o erro enquanto algo que o julgamento de gramaticalidade do falante é capaz de descartar
(caracterizar como algo que não pertence à sua língua), e que só compareceria
na fala por conta de uma falha de processamento.
8
“Primeiro que tudo, ela marca, intencionalmente pelo menos, o fim do privilégio reconhecido, nos séculos precedentes, à gramática latina, que tendia a apresentar-se como modelo
para qualquer gramática: a gramática geral é tanto latina, quanto francesa ou alemã, mas
transcende a todas as línguas” (DUCROT & TODOROV, 1972/2001, p.220).
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Do segundo tipo supõe-se que ele pode ser discriminado por meio de um
juízo enunciável pelo falante, e que a violação em que esse erro consiste, muitas
vezes, de um princípio fundamental para a língua que lhe é materna, funciona
como uma espécie de proibição que sequer precisa dizer seu nome através da
gramática normativa. Podemos ver, nos dois exemplos do Português Brasileiro
(PB) que se seguem, locuções que figuram bem aquilo que chamamos aqui de
natureza bífida do erro:
1) Os menino saiu.
2) * Menino o saiu.
A primeira sentença, considerada uma variante com relação ao português
standard (“os meninos saíram”), não é condenável pela linguística como erro,
mas não deixa de estar marcada com uma diferença, minimamente na medida
em que conota, no sentido hjelmsleviano do termo (HJELMSLEV, 1943/1968).
A segunda, por sua vez, é uma frase que não faz parte do conjunto dos enunciados possíveis em PB, o que faz dela, nessa perspectiva, um erro que se poderia,
no âmbito da disciplina, chamar de legítimo: uma má formação, de fato. Contudo
há aí, para além de matizes, cores que se distanciam muito no espectro: nesses
dois exemplos, onde é que se erra, com efeito? Façamos, então, certa disjunção
para assediarmos o erro de um modo que nos parece fundamental.
Em 1), a violação consiste na ruptura com a formalidade da regra em sua
vertente normativa, no que diz respeito à arte da gramática tradicional; porém,
não se pode dizer — uma vez que se é imaginariamente capaz de dizer o que
é uma língua — que essa frase não é do PB. Já em 2), a frase viola uma das
constituintes básicas do PB, a saber, que os artigos sempre precedem os nomes.
Quando essa regra é violada, o nível de estranhamento dirá respeito ao próprio
reconhecimento de que o que ocorre ali é a intromissão de algo que, por meio de
sua exclusão, antes se encontrava em posição de assegurar à língua a garantia de
sua integridade. Com isso, a possibilidade de situar o PB como sendo uma língua,
antes mesmo de ser uma língua entre outras, é pouco garantida pelo fato de que haja
outras línguas que não são o PB — ainda que, com efeito, soe tentador acreditar
que aquilo que faz o PB ser o PB é o fato de que ele não é o português europeu,
o kamayurá ou o russo, por exemplo. Há aí um tempo anterior: o que está em
jogo na constituição dessa língua como supostamente idêntica a ela mesma é a
própria possibilidade de dizer, de dentro do PB, o que ele não é.9
9 Note-se, aí, a inevitável remissão à inconsistência da língua, e os meandros que, de
fato, enlaçam o todo e o não-todo no que diz respeito aos estudos linguísticos (MILNER,
1978/2012, cap.5).
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Talvez possamos dizer, então, que em 1) ocorre uma violação do contingente,
enquanto que em 2) ocorre uma violação no nível do necessário — e, nesse sentido, a segunda violação incide num dos pontos de estabilidade imprescindíveis
à construção de uma fronteira imaginária entre o que é ou não é uma língua.
Pode-se depreender, então, que o erro necessário promove a possibilidade de
vislumbrar a língua enquanto toda: essas locuções, ao permanecerem num pretenso fora, são condição para podermos tomar a língua como um Todo idêntico
a si mesmo — em outras palavras: pensá-la como um sistema, como forma.
A partir do que havia feito Jean-Claude Milner (1978/2012) — que fala da
proibição na língua como uma encarnação do impossível do incesto —, e tendo em vista a disjunção que acabamos de fazer entre essas manifestações que
chamamos de erro, somos compelidos a estabelecer uma distinção lá onde o
autor estagnou a pena. O erro necessário seria, ele sim, o que podemos conceber
como estando do lado daquilo que Milner (1978/2012, p.81) chama de “Édipo
linguístico”. Mas e a proibição do erro contingente, por sua vez? Com o que
estaria relacionada?
Acreditamos poder elucubrar que o erro do tipo 1) parece estar ligado mais
a um desejo de não desejo, atuando como gestos em direção ao retorno ao gozo
perdido da língua ideal. A possibilidade desse tipo de erro supõe uma regragem do
dizer que, apesar de se manifestar justo pela coerção, está referenciada por outro
tempo, um tempo sem lei — o que pode parecer contraintuitivo, mas mais compreensível se pensarmos naquilo que está em jogo para o supereu, que, segundo
Lacan (1972-73/2008, p.11), é precisamente “o imperativo do gozo — Goza!”.
Nesse ponto se torna clara a escolha da primazia dada ao sincrônico pela
Linguística moderna em sua procura por filiação à ordem das ciências, deixando
de lado o acúmulo diacrônico, que curtocircuita passado e presente da língua.10
Isso porque, se pensamos na tradição gramatical, salta aos olhos o estatuto da
gramática enquanto arte, na medida em que ela dá conta de uma verdade que a
ciência da linguagem procura obliterar: a do preço pago, a perda — acarretada
pela entrada na linguagem — que tem sua morada num tempo que é póstumo a
si mesmo (inapreensível à cronologia, portanto, e que por isso suscita um tempo
lógico); tempo encarnado nos mitos que encenam a origem da linguagem, em
termos filogênicos, e na infância do sujeito, em termos ontogênicos, como nos
mostra Giorgio Agamben (1978/2005).
Contudo, precisar essa bifurcação não muda o curso do argumento de Milner,
pois ambas as facetas do erro nos colocam no caminho de que ele nos fala: sobre
o fato de o erro ser constituído de língua, de estar na língua. Se uma locução
10
Não nos esqueçamos de que “o centro de gravidade do sujeito é essa síntese presente do
passado a que chamamos história” (LACAN, 1953-1954/1986, p.48).
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é, então, proibida, o é na medida em que poderia ser proferida, tanto que a
escrevemos aqui e, então, a notamos como incorreta; ou seja, o componente
de impossibilidade em jogo na sua não execução não se deve a uma suposta
suspensão do funcionamento linguístico enquanto tal.
O véu e a vergonha: Aufhebung e pudor
“‘Lalíngua’, qualquer que seja, é uma obscenidade.”
(Jacques Lacan, 19 de abril de 1977)
Uma vez, então, que o erro está na língua, e não se encontra em posição limítrofe
entre o linguístico e o que não o seria, a necessidade de lidar com ele está posta
para os falasseres (parlêtres); e, além do mais, pode-se notar que estes operam
com ele: colocam óleo em suas juntas para seguir adiante. O erro, visto que é
língua, não teria mesmo como estancar a operação significante.
Se, todavia, como nos aponta Milner, a língua é uma rede recoberta por
falhas, isso não quer dizer que essas falhas constituam um Todo, ou seja, que
se mostrem circunscritíveis e possam solidamente se agregar em seu lugar de
excrescência; muito pelo contrário, essas falhas desenham um não-todo — “lalíngua é não-toda” (MILNER, 1978/2012, p.39).
A Linguística, contudo — e para isso se ampara inclusive no erro que aqui
chamamos de necessário —, imaginariza uma agregação para esses pontos de equívoco (que são frutos de determinado resultado do juízo de atribuição do falante
a respeito de sua própria língua, e suscitam, no só-depois: ou uma rejeição
da coisa que estava em causa, ou o seu desconhecimento acompanhado pela
incapacidade de decidir a respeito dela), colocando-os numa posição de limite
e, então, procurando assegurar o todo de seu objeto, quer lançando-os para a
órbita das particularidades da fala, quer para a opacidade misteriosa do uso. Não
se pode compreender mal, todavia: limite, aqui, não significa exterioridade,
mas sim certa impossibilidade — apesar de se poder dizer a locução proibida,
não se pode dizer dela.
Mas, no caso do erro contingente, há uma especificidade capital: pode-se
dizê-lo, e também se pode dizer dele.11 Há alguma coisa em jogo aí que não é da
11
No caso do erro necessário, não se pode conjeturar por que é que, no que diz respeito à
própria língua, não se pode dizer “menino o”, tampouco por que é que se diz, suponhamos,
num determinando momento — pois, via de regra, esse enunciado sequer é dito. No caso do
contingente, todavia, pode-se argumentar que “os menino saiu” é fruto da violação de uma
lei explícita quanto à concordância, e arriscar algum motivo para tanto: uso de um registro
informal ou pouca familiaridade com a norma culta, por exemplo; pode-se até chegar a
dizer que o falante não conhece sobre a língua. Já no caso do erro necessário não podemos
dizer o mesmo — salvo, obviamente, se se tratar de um falante estrangeiro (quem sabe um
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ordem do impossível: a possibilidade de algo que se relaciona com aquilo pelo
qual nos referenciamos surdamente acima ao falarmos do aspecto religioso dos
estudos da linguagem desde os seus primórdios: o erro viola.
Há uma dimensão do obsceno no que diz respeito ao erro; e com o obsceno,
ora, sempre se soube o que fazer! Digamos que ele pode ser assediado de uma
forma simples, mas não negligenciável: uma maneira corrente de encapsular o
seu efeito é, no texto, o uso das aspas, uma vez que “a palavra entre aspas está
suspensa em sua história” (AGAMBEN, 1985/1998, p.91).
Quando se pretende fazer com que algo de errado compareça no texto, as aspas
parecem constituir um possível invólucro para que essa violação entre aí inócua12
— de tal modo que se possa operar e fazer com ela, já que o fato transgressor
foi abarcado, circunscrito por esses sinais gráficos: as guillemets (aspas) abrem
espaço para submergir os guille-mots (mergulhões/palavras) do pensamento: “lá
onde falhou uma voz, onde faltou um sopro, um pequeno signo foi suspenso
no ar. Sem outro suporte que não este, hesitante, o pensamento se aventura”13
(AGAMBEN, 1985/1998, p.93).
Além disso, se, conforme Lacan, pensamos o obsceno em sua conjuminação com a Outra cena — isto é, o anderobsceno de que ele fala em seu Seminário 24
(1976-77) —, também não deixamos de ver, aqui, a marca de um lugar ambíguo
com relação à locução que as aspas abrigam, uma vez que, conforme a tradição
da escrita de textos (sobretudo a acadêmica) consolidou, elas denotam que as
palavras que ficam à sua sombra têm origem no discurso originado n’outro lugar;
e essa intromissão se deixa ver com facilidade em língua alemã, que nomeia as
aspas como Anführungszeichen, em que — por que não? — poderíamos ver precisamente as marcas de uma introjeção, Einführungszeichen.
falante de dinamarquês ou romeno aprendendo português possa vir a dizer “menino o”
por assimilação de uma regra de sua própria língua, que posiciona o artigo definido como
sufixo) —, já que o que está em jogo não é um saber sobre a língua, mas precisamente saber
lalíngua. Sobre “saber a” e “saber sobre”, cf. De Lemos (1991).
12 Evidentemente, se o erro é trazido, e não traz a si próprio — como num lapso ou num
chiste, por exemplo (FREUD, 1901/1905) —, essa estabilização já está de algum modo posta;
mas é curioso que, em termos de efeito, as aspas sirvam exatamente para que um outro, o
leitor, tome conhecimento de que aquele erro não constitui um lapso, mas sim algo que é
da ordem da vontade do sujeito que escreve.
13 Nesse sentido, é interessante poder articular a garantia de certo desempenho do
pensamento pela suspensão do recalque (Aufhebung der Verdrängung) possibilitada pela denegação,
como mostra Freud em seu artigo sobre a Verneinung (1925): “Vermittels des Verneinungssymbols
macht sich das Denken von den Einschränkungen der Verdrängung frei und bereichert sich um Inhalte, deren es für
seine Leistung nicht entbehren kann.” [Por intermédio do símbolo da negação, o pensar se livra das
limitações do recalque e se enriquece com conteúdos dos quais não pode abrir mão para o
seu desempenho].
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Miragens perimetrais: sobre o erro como limite
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Reflexões finais
“Não apenas a inteira faculdade do pensamento reside na linguagem, [...] mas a linguagem
é também o ponto central do mal-entendido da razão consigo mesma.”
(Johann Georg Hamann, Sämtlichen Werken, v.III)
Se o erro, no sentido lato, não garante exterioridade propriamente dita, de onde
viria essa sua pregnância quanto à construção de um limite como algo que é
capaz de situar os alcances da língua?
Bem, para isso precisamos recorrer a um ato: ao “ato de violência” que consiste
no par ordenado nas matemáticas, e do qual Lacan tira muitas consequências
em seu seminário De um Outro ao outro (LACAN, 1968-1969/2008, p.74, 81), por
meios dos diagramas de Euler, para pensar os conjuntos-objetos.
Para termos uma apreensão mais apurada da natureza do erro tal como vem
sendo pensado neste trabalho, consideremos: sendo E o conjunto que representa
o erro, e L, a língua, digamos que E é o subconjunto de L formado pelos elementos que não contêm a si mesmos — isto é, para x ser elemento de E, x não deve
pertencer a x, e deve, simultaneamente, pertencer a L. Desse modo, a pergunta
que podemos fazer é: E, enquanto elemento, pertence a si mesmo? Se assim
fosse, transgrediria a regra de construção que, de início, determinamos para
ele próprio. Contudo, se não o fosse, seria um conjunto que não contém a si, e
deveria, pois, estar contido em E: o que nada mais é que o paradoxo de Russell.
Mas se os elementos de E devem simultaneamente pertencer a L, uma vez que
E é subconjunto de L, temos a seguinte configuração possível, à direita — em
correspondência com o desenho, à esquerda, feito por Lacan no Seminário citado:
A
L
Sα
Sβ
Sγ
S2
Sα
Sβ
Sγ
E
Vemos, assim, que, apesar de seus elementos estarem na língua, o erro como
tal permanece fora dela — assim como o saber (S2) se encontra fora do Outro
(A), muito embora os significantes que o constituem façam, com efeito, parte
do Outro — do “tesouro dos significantes”, como nomeava Lacan.
O erro constitui, então, não um limite da língua, já que não poderíamos
recorrer a uma topologia orientável para situar o seu lugar. Com efeito, o que
há aí é uma espécie de limite interno, um fora-dentro simultâneo que suscita
recorrer a formas de mostração de outra ordem. Se quisermos, de fato, apreenágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 271-284
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der algo do erro que não se reduza a uma planificação balizada pela geometria
euclidiana, pensemos, então, na figura de um oito-interior — que marca o
percurso ao longo de uma banda de Moebius projetado sobre uma superfície:
A morada do erro, então, possibilita, com efeito, a construção de um limite
imaginário, um perímetro miraginal que descreve uma espécie de falso miolo
— sem, no entanto, que a língua o deixe de fora, já que ele é interno a ela. É essa
possibilidade de ver o descompasso que constitui o erro com relação à língua
que faz com que ele possa ser situado como o representante cabal da remissão
significante-significante — o erro, antes de mais nada, supõe a remissão a outro
significante.
Além disso, o erro faz ressoar a própria dissonância entre o simbólico e o
real: ele é aquilo que, na língua, dá a ver a possibilidade da estrutura, fazendo
com que reconheçamos aí a afirmação explícita que faz Lacan (1964/1985, p.27),
ao pronunciar que só daquilo que falha é que há causa; ou, o que ainda pode
nos dizer a literatura, na pena de um Duhamel (1949, p.27): “o erro é a regra.
A verdade é o acidente do erro” que a letra vem grafar, poderíamos acrescer.
Mas se a escrita possui, feito Janus, suas duas caras — como já pudemos notar
ao discutirmos sobre a importância da letra para os estudos linguísticos —,
embora também se possa, por meio dela, abrandar o erro, procurando esvair as
suas forças, por exemplo, por meio do emprego dos singelos sinaizinhos gráficos
que compõem as aspas, “no momento em que ela [a palavra] parece se esvaziar
de toda significação e dar o último suspiro, os pequenos algozes, saciados porém inquietos, retornam à vírgula que é sua origem e que, segundo Isidoro de
Sevilha, marca o ritmo da respiração na formulação do sentido” (AGAMBEN,
1985/1998, p.93).
O itinerário significante, então, prossegue apontando-nos — reféns da língua
que nos falta e da inconsistência do Outro — a brecha em que se fixa a oportunidade da demanda:14 entre as duas revelações da esfinge, cada qual com a sua
porção do erro. De um lado, a mãe como objeto sexual e o erro que viola no
14 “É na medida em que o campo do Outro não é consistente que a enunciação assume a feição da demanda, e isso antes mesmo que aí se venha instalar seja o que for que carnalmente
possa responder a ela” (LACAN, 1968-1969/2008, p.82).
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Miragens perimetrais: sobre o erro como limite
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nível do necessário; de outro, o assassinato do pai, e o erro que viola no nível
do contingente — marcado pela norma, por um supereu linguístico que ecoa como
as vozes da consciência de que havia falado Freud em Totem e tabu.
Recebido em 5/3/2012. Aprovado em 30/4/2012.
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Paulo Sérgio de Souza Jr.
[email protected]
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O imaginário coletivo da equipe
de enfermagem sobre a interrupção
da gestação
Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune e
Tânia Maria José Aiello Vaisberg
Miriam Tachibana
Pós-doutoranda em
Psicologia Clínica
pela Universidade
de São Paulo e
pela Université
de Paris X –
Nanterre, com bolsa
Fapesp. Doutora
em Psicologia,
Ciência e Profissão,
pela Pontifícia
Universidade
Católica de
Campinas, com
bolsa brasileira
do CNPq, doutora
em Psicologia
pela Université
Charles de Gaulle
Lille 3, com bolsa
sanduíche da Capes.
Fabiana Follador e
Ambrosio
Doutora em
Psicologia,
Ciência e Profissão
pela Pontifícia
Universidade
Católica de
Campinas, com
bolsa do CNPq.
Daniel Beaune
Professor doutor no
curso de Psicologia
da Université
Charles de Gaulle
Lille 3 e orientador
de mestrados e
doutorados na
Université ParisDiderot – Paris 7.
Resumo: Objetivamos investigar o imaginário coletivo de enfermeiras sobre a mulher cuja gravidez foi interrompida, já que o trabalho
da enfermagem envolve, além de cuidados técnicos, proximidade
inter-humana em situação de fragilidade emocional. Entrevistamos
individualmente 16 profissionais, usando o Procedimento Desenhos-Estórias com Tema. Após cada entrevista, redigimos narrativas
transferenciais que, com os desenhos-estórias, foram consideradas
psicanaliticamente, visando a produção interpretativa de campos de
sentido afetivo-emocional. Observamos três campos que permitem a
compreensão de que a gravidez interrompida é associada a fantasias
de maldade e falta de amor materno, o que pode estar relacionado
a eventuais dificuldades no cuidado a estas pacientes.
Palavras-chave: Enfermagem, gravidez, imaginário coletivo, procedimento de desenhos-estórias com tema
Tânia Maria José Aiello
Vaisberg
Professora
livre docente
e orientadora
de mestrados e
doutorados do
Programa de
Pós-Graduação
em Psicologia da
PUC-Campinas
e do Instituto de
Psicologia na USP,
coordenadora da
Ser e Fazer: Oficinas
Psicoterapêuticas
de Criação e
presidente da NEW
(Núcleo de Estudos
Winnicottianos de
São Paulo).
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Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune e Tânia Maria José Aiello Vaisberg
Abstract: The collective imaginary of the nursing staff about
pregnancy’s interruption. We aimed at investigating the collective
imaginary of nurses about women whose pregnancy was interrupted, since nursing’s work involves technical care and human’s
proximity in situation of emotional fragility. We interviewed 16
professionals, using the Drawing Stories with Theme. After each
interview, we wrote psychoanalytical narratives that, with the
drawing stories, were psychoanalytically considered, in order to
produce, by interpretation, fields of affective and emotional sense.
We observed three fields that allow the comprehension that the
interrupted pregnancy is associated with fantasies of evil and lack
of maternal love, which may be related to possible difficulties in
caring those patients.
Keywords: Nursing, pregnancy, collective imaginary, procedure
drawing stories with theme.
O fenômeno da interrupção da gestação
Observamos que a literatura psicológica focada no fenômeno da interrupção da
gestação detém-se na experiência emocional da mulher cuja gravidez foi interrompida, constituindo conhecimento que pode ser clinicamente útil, como os
trabalhos de Gesteira, Barbosa e Endo (2006) e Benute, Nomura, Pereira, Lucia e
Zugaib (2009). Como a maioria desta população tende a vivenciar uma gravidez
subsequente em pouco tempo (VIDAL, 2008, 2010), entendemos que tais estudos configurariam uma atenção psicológica clínica não apenas à mulher, mas,
também, ao bebê que poderá vir a ter e que dela dependerá.
Sabemos que, segundo os padrões da cultura ocidental, as mães são vistas
como aquelas que exercem função essencial no desenvolvimento emocional das
crianças, sendo que seu desempenho materno dependeria, como parece julgar
o senso comum, exclusivamente de características “internas” da mulher. No
presente estudo, entretanto, partimos da compreensão de que toda manifestação
humana, incluindo a maternagem, emerge em condições concretas, históricas,
culturais, sociais e econômicas (BLEGER, 1963; FERRARI e PICCININI, 2010),
sejam elas a familiar, a conjugal, a laboral ou a hospitalar. Dentre os ambientes sociais que sustentam a maternagem, optamos por focalizar o hospitalar,
constituído essencialmente pela equipe de enfermagem obstétrica, vale dizer,
enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem. Essa escolha por entrevistar
esse coletivo justifica-se pela óbvia importância do ambiente hospitalar, apontado,
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por pais que sofreram perdas gestacionais, como fundamental na elaboração de
vivências de enlutamento (RODRIGUES e HOGA, 2005; GANIÈRE e FAHRNI-NATER, 2009).
Winnicott (1957) esteve tão atento à influência da equipe hospitalar na
relação que a mãe estabeleceria com seu recém-nascido que, diferentemente
dos teóricos de sua época, ao invés de debruçar-se apenas sobre os significados
inconscientes de determinados sintomas das gestantes, optou por produzir outro
tipo de conhecimento psicanalítico:
“De que forma a psicanálise associa-se ao tema da obstetrícia? (...) A psicanálise está
começando a projetar luz sobre todos os tipos de anomalias, tais como a menorragia, os abortos sucessivos, a náusea e o vômito no início da gravidez (...) Muito
tem sido escrito sobre estes distúrbios psicossomáticos. Aqui, no entanto, estou
preocupado com outro aspecto da contribuição psicanalítica: tentarei indicar, em
termos gerais, o efeito das teorias psicanalíticas sobre as relações entre o médico,
a enfermeira e a paciente (...)” (WINNICOTT, 1957, p.61-62)
Assim, do mesmo modo que Winnicott teorizava acerca da importância de
um ambiente suficientemente bom, encarnado nos cuidados maternos, ao desenvolvimento das potencialidades inatas do bebê, entendemos que a constituição
de um ambiente hospitalar suficientemente bom seria essencial para a mulher
sentir-se emocionalmente sustentada e capaz de fazer o mesmo em relação ao
bebê que poderá vir a ter (AIELLO-VAISBERG e TACHIBANA, 2008).
À medida que todo ser humano demanda um ambiente suficientemente
bom, independentemente da etapa evolutiva em que se encontra, entendemos
que a constituição de um ambiente hospitalar suficientemente bom seria valiosa
também para a própria atuação da equipe de enfermagem. Afinal, estudos realizados com equipes hospitalares demonstram que tais grupos vivenciam intensa
angústia, ao lidar cotidianamente com o sofrimento físico e emocional de seus
pacientes (LUNARDI et al., 2004; FERICELLI, 2008).
Estamos, desse modo, de pleno acordo com Campos (2003, p.41):
“Desde a década de 70 (...), os profissionais de saúde vêm sendo estimulados a
funcionarem como suportes sociais para seus pacientes, seja individualmente, seja
em equipe (...). Seu uso vem se difundindo, seja em ambulatórios, hospitais ou
ambientes comunitários (...). Por outro lado, se considerarmos o estresse cotidiano
em que vivem tais profissionais no contato direto com o sofrimento e a morte, fácil é
imaginar que, também eles, estejam vulneráveis a doenças (...). Observa-se que
é extensa a literatura sobre grupos de suporte voltados para pessoas e situações de
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doença, mas poucos são os trabalhos que enfocam os profissionais da saúde, não
enquanto ‘cuidadores’, mas enquanto pessoas demandando ‘cuidados’”
Podemos supor que esta escassez de trabalhos investigativos sobre a vivência
emocional da equipe de enfermagem em seu cotidiano de trabalho esteja relacionada a uma dificuldade, por parte da comunidade científica, em concebê-la
como um grupo social que demanda atenção psicológica. Tal obstáculo pode estar
ligado tanto à postura tecnicista e racional dos profissionais, que não transparece
seu próprio sofrimento emocional, quanto a um imaginário social em relação
aos profissionais de enfermagem, os quais seriam pessoas “naturalmente” cuidadoras, no sentido de terem uma disponibilidade emocional para a devoção e
o cuidado (PESSINI, 2002; SADOCK, 2003; ELIAS e NAVARRO, 2006).
“A enfermagem está ligada, desde suas origens, à noção de caridade e devotamento, sendo seus primeiros executores pessoas ligadas à igreja, ou leigos praticando
a caridade. Esse fato imprimiu marcas que perduram até hoje e se explicitam na
concepção de enfermagem de alunos e enfermeiros. (...) A ideologia que perpassa a
profissão desde sua origem significa abnegação, obediência, dedicação. (...)” (ELIAS
e NAVARRO, 2006, p.518)
Dessa maneira, a realização deste estudo visa a produzir conhecimento que
possa contribuir para a identificação dos aspectos emocionais envolvidos no
trabalho da equipe de enfermagem, que possa ser empregado no favorecimento
da constituição de um ambiente hospitalar suficientemente bom, que beneficiaria
tanto a mulher que sofreu a interrupção da gestação quanto o bebê que poderá
ter futuramente, bem como a equipe de enfermagem obstétrica.
Investigando o imaginário coletivo da equipe de enfermagem
Em nosso grupo de pesquisa1, temos realizado estudos focados nos aspectos
afetivo-emocionais subjacentes às condutas humanas, dessa maneira, intencionando produzir conhecimento sobre as motivações de indivíduos e coletivos
que estariam sustentando práticas estereotipadas. A partir daí, desenvolvemos o
conceito de “imaginário coletivo” entendido, a partir do conceito de “conduta”
de Bleger (1963), como manifestações simbólicas de subjetividades grupais, ou
seja, as imagens, crenças e emoções que um determinado grupo social produz
em relação a um fenômeno (AIELLO-VAISBERG e MACHADO, 2008).
1 Grupo de pesquisa CNPq “Atenção psicológica clínica em instituições: prevenção e intervenção”.
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O imaginário coletivo da equipe de enfermagem sobre a interrupção da gestação
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Assim, com o intuito de investigar o imaginário coletivo da equipe de enfermagem acerca do fenômeno da interrupção da gestação, abordamos uma equipe
de enfermagem obstétrica de um hospital-maternidade, do interior do estado de
São Paulo. Participaram dezesseis mulheres, das quais quatro enfermeiras, dez
técnicas e quatro assistentes de enfermagem, que atuavam nos plantões matutino,
vespertino e noturno.
As entrevistas foram realizadas individualmente, no próprio ambiente hospitalar, seguindo um enquadre clínico, apropriado para o estudo de imaginários
coletivos, denominado “entrevista individual para abordagem da pessoalidade
coletiva” (ÁVILA, TACHIBANA e AIELLO-VAISBERG, 2008). Tal configuração
clínica pressupõe o uso de recursos mediadores dialógicos visando a facilitar
a expressão emocional dos participantes, seguindo o paradigma das consultas
terapêuticas, em que Winnicott (1968) fazia uso do jogo do rabisco para favorecer
a expressão emocional significativa de seus pacientes.
Neste estudo, foi empregado o Procedimento Desenhos-Estórias com Tema
(AIELLO-VAISBERG, 1999), convidando as participantes a elaborarem um desenho sobre o tema “uma mulher que sofreu interrupção da gestação” e a inventarem, a seguir, uma história sobre a figura desenhada. Ao final, as participantes
eram solicitadas a atribuírem um título à produção gráfica.
Após a realização das entrevistas, uma das pesquisadoras2 redigiu narrativas
transferenciais, tendo em vista registrar o acontecer clínico. Trata-se de uma
estratégia metodológica que temos usado, tanto em pesquisas sobre imaginários
coletivos como em investigações sobre eficácia clínica ou potencialidade mutativa de enquadres de atendimento psicológico (GRANATO e AIELLO-VAISBERG,
2004; AIELLO-VAISBERG e MACHADO, 2005; AIELLO-VAISBERG et al., 2009).
Assim, por meio do método psicanalítico, a entrevistadora redigiu os relatos
das manifestações das participantes, bem como a comunicação de suas impressões
e sentimentos contratransferenciais, vivido em cada encontro. Posteriormente,
o corpus formado pelo conjunto das dezesseis narrativas psicanalíticas e dos dezesseis desenhos-estórias foi apresentado aos integrantes do grupo de pesquisa,
todos com formação psicanalítica, com a finalidade de provocar múltiplos olhares a fim de favorecer uma compreensão emocional abrangente e aprofundada.
“A apresentação [da narrativa] suscitará narrativas alternativas. Estas não se referirão
evidentemente ao acontecer primeiro, tomado como imaginário, do encontro inicial,
mas ao que poderá ser acrescentado, transformado, criado/encontrado na narrativa
primeira. Enfim, a narrativa não pede que o outro se cale — ou se pronuncie diante
2
As entrevistas foram realizadas por Miriam Tachibana.
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Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune e Tânia Maria José Aiello Vaisberg
de um erro, de uma falha —, mas sim que prossiga, que, sentindo-se provocado,
no sentido etimológico do termo latino, possa fazer suas associações, possa tecer
suas considerações. (...)” (AIELLO-VAISBERG e MACHADO, 2005, p.7)
Desse modo, fazendo uso do método psicanalítico, o grupo de pesquisadores deixou-se impressionar emocionalmente pelo material clínico para buscar
“campos de sentido afetivo-emocional”. Trata-se de conceito que foi articulado repensando e retomando a “Teoria dos Campos” de Herrmann (2001) e o
conceito de “conduta” de Bleger (1963), que permitem conceber os campos
de sentido afetivo-emocional como conjunto de regras lógico-emocionais que
sustentariam as condutas.
Os campos de sentido afetivo-emocional do imaginário
A partir do encontro com o material, foram captados três campos de sentido
afetivo-emocional: “Fim do mundo”, “Enlouquecimento” e “Monstruosidade”.
Em relação ao campo “Fim do mundo”, pudemos observar que todos os
desenhos-estórias produzidos pelas participantes emergiram, como condutas,
a partir deste substrato afetivo-emocional. Trata-se de um inconsciente relativo
regido pela crença de que a interrupção da gestação consistiria em evento de
caráter apocalíptico, no sentido de que a morte de um bebê colocaria em risco
a própria existência do mundo. Tratar-se-ia de uma equação simbólica, na qual
parte e todo se confundiriam, o que, para alguns autores, indica esferas imaginárias de marcada profundidade (MATTE-BLANCO, 1988). O trecho de uma
das narrativas cabe aqui como ilustração:
“Desenhei este sol morrendo, porque é assim que vejo a gravidez interrompida. A gente tem sempre certeza
de que o sol vai nascer, no dia seguinte, não é? É algo que já é tão esperado e natural que a gente nem
para para pensar que pode ser que ele não nasça. Para mim, gravidez sempre termina em nascimento: o
bebê é feito para nascer, e não para morrer. Quando um bebê morre, é como se o sol estivesse morrendo
também... É por isso que escolhi trabalhar em obstetrícia: porque queria ver bebês nascendo e mães
renascendo junto com seus filhos...”.
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Um aspecto bastante interessante foi o de que, neste campo afetivo-emocional,
pudemos observar a tentativa, nas produções, de detectar os sentimentos das
gestantes visando a diferenciar aquelas que sofrem verdadeiramente com a perda
de outras que estariam aliviadas por terem se livrado do bebê. Estas duas alternativas permitiram que o material se organizasse em dois grupos de manifestações
imaginativas: um relacionado à mulher que sofreu uma interrupção espontânea
da gravidez, configurando campo de sentido afetivo-emocional intitulado “Enlouquecimento”; e outro, denominado “Monstruosidade”, que corresponderia
às situações em que a mulher a provocou.
O campo “Enlouquecimento” organiza-se ao redor da regra lógico-emocional
de que a interrupção espontânea da gestação lança a mulher numa agonia enlouquecedora. Este campo afetivo-emocional, subjacente a oito das produções
gráficas, pode ser ilustrado com o trecho narrativo a seguir:
Após dizer-me que o ponto de interrogação representava a multiplicidade de condutas que poderiam ser
assumidas por uma mulher que perdeu o seu bebê, o que tornava difícil a tarefa de descrevê-la para mim,
a participante contou-me a seguinte história: “Teve uma vez que uma mãe, que tinha perdido o bebê,
pediu pra segurar, no colo, o bebê de outra paciente que estava internada na enfermaria. Isto causou um
choque para toda equipe e muita gente ficou pensando que ela havia enlouquecido. Só depois que pediram
para que voltasse pro quarto que entendi que ela só queria segurar um bebê. Ela sabia que não era o dela,
mas queria ver como seria”.
Perguntei, então, se esta era a paciente que havia desenhado, para mim. A participante olhou para seu
desenho e respondeu: “Não sei... Sabe que, na hora em que estava fazendo o desenho, não pensei em
nenhuma paciente especificamente, mas pode ser que seja ela, sim. Aquela imagem dela mal conseguindo
andar, chorando e pedindo para segurar o bebê de outra mãe, foi bem forte, para mim...”.
Observamos que este imaginário de que a mulher estaria condenada a um
sofrimento eterno esteve associado à crença de que ela nutriria um secreto desejo
de interrupção da gestação. Assim, este campo da agonia enlouquecedora correságora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 285-297
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ponderia a uma punição ao desamor que, mesmo não motivando atos voluntários
de provocação de aborto, ter-se-ia manifestado por um caminho psicossomático,
interrompendo a vida do bebê. Tal configuração pode ser apreciada a seguir:
“Esta mulher que desenhei está chorando porque perdeu o bebê. A gente vê, aqui, que as mulheres que
perdem o bebê têm reações muito diversas: umas choram muito e você vê, daí, que essas queriam muito
aquela gravidez; outras ficam mais caladas, sérias, e você percebe que aquela gravidez não era tão querida.
Talvez a interrupção até tenha sido provocada, sabe?”.
Perante este comentário da entrevistada, questionei: “Mas e esta aqui que você desenhou? Ela está chorando,
mas também está sorrindo”. A participante respondeu: “É, aqui ela está fazendo as duas coisas, né? Mas
ela realmente queria a gravidez. E está sorrindo porque o seu bebê era muito malformado e não teria uma
vida muito digna... Neste caso, foi melhor para o bebê que acabasse falecendo dentro da mãe dele...”.
Por sua vez, o campo “monstruosidade” define-se pela regra lógico-emocional
que relaciona a interrupção da gestação a um ato hediondo, perpetuado por uma
mulher de caráter insensível e cruel. Este inconsciente relativo, subjacente a seis
das produções gráficas, manifesta-se, por exemplo, no trecho seguinte:
Quando perguntei à entrevistada como se sentia ao atender uma paciente que teve a sua gestação
interrompida, respondeu-me: “Procuro fazer com que ela sofra o mínimo possível. Sempre tomo o cuidado
de não deixar uma mãe que perdeu o bebê junto com uma mãe que está, ali, internada com o bebê ao
lado. Hoje, quando cheguei no hospital e vi que tinha uma mãe esperando para ser internada, pois tinha
o diagnóstico de óbito fetal, fui olhar, na minha listagem, se tinha alguma outra paciente que estava
internada, aqui, sem o bebê. Daí, vi que tinha uma sozinha, porque o bebê dela está na UTI neonatal.
Juntei as duas no mesmo quarto, né? Só que, mais tarde, ouvi bronca da minha chefe: ela veio brigar
comigo porque a mãe que estava sozinha, no quarto, é uma paciente que tentou provocar o aborto da
gravidez, mas não conseguiu e seu bebê nasceu prematuro e cheio de problemas. Acabei juntando, sem
saber, uma mãe que perdeu o bebê e outra que queria ter perdido, entendeu? E esta mulher, como não
conseguiu interromper a gravidez, acabou prometendo dar o bebê para um casal...”.
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Notamos que este imaginário que associa a mulher que provocou a interrupção da gravidez a um ser monstruoso esteve, em três produções gráficas, associado
ao bebê morto. Assim, haveria a crença, por parte da equipe de enfermagem,
de que a malformação — que não raro acompanha os bebês natimortos — seria
um efeito da monstruosidade materna, como se o bebê denunciasse a sua feição
desumana. Para ilustrar este fenômeno, segue o material clínico:
Quando pedi para que me contasse uma história associada ao desenho, disse: “Acredito que todos,
principalmente as crianças, quando morrem, vão pro céu. Esta criança que desenhei é um bebê que não
teve a oportunidade de viver aqui na Terra”.
A entrevistada narrou, então, uma situação em que foi acompanhar uma paciente, até a geladeira, para
que conhecesse seu bebê falecido: “Eu sabia que o bebê tinha múltiplas malformações, porque o pessoal
que estava no parto já tinha comentado. Daí, quando a mãe pediu para que a acompanhasse, já sabia
que veria algo difícil. Mas não imaginava que fosse tanto... Era um bebê que não tinha pernas e braços
(os pés e as mãos partiam direto do corpo); tinha uma cabeça grande (maior que o tamanho do corpo);
estava com o cérebro exposto; tinha duas genitálias...”.
Considerações finais
A presente investigação permitiu detectar crenças inconscientes no coletivo de
enfermagem obstétrica, de acordo com as quais a ocorrência de interrupção da
gestação carregaria um sentido de devastação da vida e da humanidade. Assim,
se, no imaginário socialmente predominante acerca da maternidade, há crenças de que toda mulher amaria incondicionalmente seus filhos e a de que cada
recém-nascido seria símbolo de vida e esperança, aquele que sai morto do ventre
materno denunciaria um estado catastrófico.
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A morte do bebê é imaginariamente atribuída à mãe, seja porque provocou
a interrupção, seja porque nutriu sentimentos de rejeição em relação ao filho.
Considerada culpada, em registros imaginários profundos, a mulher deixa de ser
concebida como merecedora de sentimentos de compaixão, solidariedade e empatia. Vemos, dessa maneira, que, malgrado sua formação profissional específica,
a equipe de enfermagem sustenta um imaginário, provavelmente compartilhado
pela sociedade em geral, de que a interrupção da gravidez equivaleria a um ato
tão destrutivo que seria emocionalmente incompatível com uma motivação espontânea a prestar ajuda e cuidado. Trata-se de uma constatação a qual denota
que, para que um trabalho de assistência hospitalar seja bem-realizado, os profissionais certamente precisam realizar movimentos psíquicos que permitam a
superação da reação negativa imediata para considerarem tais mulheres como
pacientes, no sentido preciso da palavra.
Tais considerações impelem a reflexões atinentes à necessidade e às possibilidades de intervenção dos psicólogos clínicos, que poderiam auxiliar os profissionais de saúde a elaborarem os sentimentos contraditórios que vivenciam
diante da mulher que sofreu interrupção da gestação, à medida que a veem,
simultaneamente, como pessoas que apresentam sintomas físicos que requerem
tratamento e como aquelas que causaram, direta ou indiretamente, a morte de
um inocente.
Vale ressaltar que o tipo de intervenção que este fenômeno requer é de caráter
psicológico, não derivando, como creem alguns, de mera falta de conhecimento
teórico. Não se trata, de modo algum, de substituir o imaginário dos profissionais por informação baseada em conceitos teóricos (SOUZA, ALENCASTRE e
SAEKI, 2000; LOPES e LUIS, 2005), mas, sim, de realizar uma clínica psicológica
voltada ao cuidado da equipe.
Dada a importância do substrato afetivo-emocional das condutas humanas,
seria possível afirmar que o Programa Nacional de Humanização da Assistência
Hospitalar do Ministério da Saúde3 carece de estratégias que favoreçam a consideração de tais aspectos vivenciais dos profissionais de saúde, privilegiando
técnicas de desenvolvimento de habilidades interpessoais ou a apresentação
teórica de temas relacionados ao cotidiano de trabalho. Apesar de o Programa de
Humanização apontar para a necessidade de atenção à saúde mental dos profissionais, também com o intuito de oferecer cuidado indireto a seus pacientes, de
maneira geral, os diversos pesquisadores mobilizados por este movimento acabam
voltando-se ao tecnicismo, mesmo aqueles que o criticavam (DIMENSTEIN, 2004;
BERNARDES e GUARESCHI, 2007; CARVALHO; SANTANA e SANTANA, 2009).
3 Desde o ano 2000, o programa orienta diversas políticas públicas visando a “humanizar”
o ambiente hospitalar, tanto do ponto de vista dos pacientes quanto dos profissionais.
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Partimos da concepção de que a transformação deste imaginário requer a
criação de espaços onde estudantes e profissionais possam expressar seus sentimentos e crenças, tal como as participantes deste estudo puderam fazer ao longo
das entrevistas. A provisão de atenção psicológica aparece como facilitadora da
aproximação entre o que é pensado e o que é sentido, assim, permitindo uma
integração destes aspectos experienciais e contribuindo tanto para a transformação de concepções estereotipadas quanto para a adoção de um fazer menos
dissociado.
É justamente devido à preocupação em ressaltar o oferecimento de atenção
psicológica a indivíduos e coletivos que se tem realizado investigações clínicas
focadas na possibilidade de integração, na formação profissional, dos aspectos
teóricos e técnicos aos afetivo-emocionais, destacando Aiello-Vaisberg (1999);
Ribeiro, Tachibana e Aiello-Vaisberg (2008), Vitali e Aiello-Vaisberg (2006) e
Baptista e Aiello-Vaisberg (2003). Incentivamos, desse modo, a realização de
novos estudos, sejam relacionados à equipe de enfermagem obstétrica, sejam
associados ao imaginário social prevalecente sobre a maternidade, de tal forma
que, enquanto cidadãos, seja possível conviver com as variadas escolhas pessoais
acerca da maternidade, favorecendo a criação de um mundo menos discriminatório e mais ético: um novo mundo, em vez do fim do mundo.
Recebido em 16/4/2012. Aprovado em 29/7/2012.
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Miriam Tachibana
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Fabiana Follador e Ambrosio
[email protected]
Daniel Beaune
[email protected]
Tânia Maria José Aiello Vaisberg
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Resenha
Pela pluralidade da psicanálise
Psicanálise entrevista, v.1, organizado
por Mara Selaibe e Andrea Carvalho.
São Paulo: Estação Liberdade, 2014,
392 p.
Ana Patitucci
Psicanalista, membro do Depto de
Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae;
doutora pela PUC-SP.
O título do prefácio que abre Psicanálise
entrevista faz jus ao conteúdo que o leitor
encontrará ao longo das suas páginas:
nelas se abre “um convite ao pensamento
livre”. Organizado por Mara Selaibe e
Andrea Carvalho, o livro reúne entrevistas
realizadas durante os 25 anos da revista de
psicanálise Percurso, publicada pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes
Sapientiae. Segundo as organizadoras, a
coletânea não foi concebida originalmente
para o aniversário da publicação, mas podemos considerar que veio à luz em momento oportuno, de modo a dar sequência
aos eventos comemorativos ocorridos no
final de 2013. Afinal, as entrevistas são
um retrato da linha editorial da revista,
revelando a qualidade de seu trabalho.
Renato Mezan, coordenador editorial
da Percurso e responsável pelo prefácio do
livro, destaca que o conjunto das entrevistas “faz surgir um panorama fascinante”
na medida em que se evidenciam as “tradições diversas” que compõem o cenário
da psicanálise atual (p.9). Tal panorama,
registrado em 35 entrevistas, tomará
forma em dois volumes: o primeiro já
está disponível ao público e o segundo se
encontra no prelo.
Neste primeiro volume reúnem-se 18
autores, em cuidadosa edição, na qual há
uma breve apresentação de cada um deles
— com a data, o local em que a mesma
se realizou e o nome dos entrevistadores.
No final da obra, encontra-se um índice
onomástico. Entre os entrevistados, 17 são
psicanalistas que representam diferentes
correntes teórico-clínicas, brasileiros e
estrangeiros, cujas produções se estendem
de 1950 até os dias de hoje. Para citar
alguns, aí encontramos Jurandir Freire
Costa, J.-B. Pontalis, Jean Laplanche,
Joyce McDougall, Monique Schneider.
A décima oitava entrevista é de Sérgio
Paulo Rouanet, o único pensador deste
volume que não é psicanalista, embora
grande estudioso da obra freudiana, com
vários livros publicados sobre o assunto.
Cada entrevista é uma porta de entrada
ao pensamento do entrevistado, o que
torna a coletânea interessante para um
público amplo: para o leigo interessado
no tema, para o pesquisador de áreas afins
e para o psicanalista. Ao conhecermos o
percurso de formação e o pensamento dos
autores, vemos surgir, com as narrações,
a própria história da psicanálise pós-freudiana, em seus diversos segmentos.
Aqui, a clínica continua a ter seu lugar
privilegiado, pois, falada de forma explícita ou não, ela é o fundamento a partir do
qual se constrói e alimenta a teoria, num
processo dialético com ela. É constante a
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300
RESENHA
presença do olhar crítico sobre a cultura
contemporânea.
O que se desvela então, ao longo do
livro, é que, na letra dos pós-freudianos,
a psicanálise continua a seguir a herança
deixada por seu fundador e produz clínica, teoria e análise da cultura. Todos os
autores partem de uma origem comum,
a obra freudiana, ao reconhecê-la como
referência para o desenvolvimento de seu
próprio repertório conceitual teórico-clínico. Para eles, não se trata de superar
Freud, mas sim trabalhar as insuficiências,
lacunas e limites de seu pensamento, tal
como aponta André Green: “Penso que
é preciso trabalhar sobre ela [obra de
Freud] a partir do que a história do pensamento psicanalítico pós-freudiano nos
trouxe e a partir dos desafios que a clínica
contemporânea nos lança” (p.59). Assim,
são temas recorrentes: a formação do analista, o desenvolvimento metapsicológico,
a importância da psicanálise como prática
terapêutica, sua relação com o campo
político-social, com a psiquiatria, as problematizações e o lugar da psicanálise em
nossa cultura.
Desvela-se também a importância da
interface da psicanálise com a filosofia e a
política, no sentido de que estas oferecem
um repertório poderoso para a formação
do analista e para a construção e reflexão
teórica e clínica. O intercâmbio de ideias
entre a psicanálise e outras ciências ou
campos do saber é valorizado e pensado como uma das formas de se evitar o
fechamento da psicanálise em si mesma
e a formação de igrejas — fatos responsáveis por um dogmatismo deletério e
paralisante da criatividade do psicanalista.
Assim, o relato de Jean Oury nos dá o
testemunho de como o encontro entre
a psicanálise, a psiquiatria, a filosofia e
a política produziram trabalhos fecundos e de referência, como a psicoterapia
institucional e a formação de La Borde,
na França. Marcelo Viñar, a partir de sua
experiência na ditadura uruguaia, retrata
como a política se apresenta na clínica e
como pensar os efeitos e as possibilidades
de elaboração de situações de violência
social, tal como aquelas vivenciadas na
guerra ou em regimes de exceção, como
os regimes militares na América do Sul.
Trata-se de uma contribuição importante
para a discussão de um tema que está na
ordem do dia, neste momento em que se
rememoram os 50 anos do golpe militar
no Brasil.
As entrevistas se abrem, portanto, para
um diálogo com o leitor, contribuindo
para pensarmos a clínica que praticamos,
as instituições nas quais nos inserimos, a
formação que seguimos, o pensamento
que podemos construir em nome próprio.
Mas isso ainda não é tudo.
É possível uma leitura transversal do
livro, na medida em que os relatos abrem
também um diálogo entre os próprios entrevistados, amplificando as questões que
cada um deles tematiza e a riqueza de um
“campo pluralista marcado por diferenças”, como se refere Joel Birman (p.270).
Nesse ponto emerge, por exemplo, a
psicanálise que detém um conhecimento
sobre o psiquismo humano e questiona,
com olhar crítico, o nosso tempo, como
vemos em Chaim S. Katz: “O que têm os
psicanalistas a dizer, a não ser que os humanos se destinam ao mal-estar e que se
deva evitar os atalhos (prometidos pelos
biopsíquicos) para diminuí-lo?” (p.261).
Sua interrogação pode ser articulada ao
modo como Sílvia Alonso coloca a problemática da contemporaneidade na clínica,
em geral pensada com a preocupação de
compreender a formação das novas subjetividades e dos novos sintomas face às
transformações da sociedade. Ela inverte
essa problemática ao colocar o analista, e
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RESENHA
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não a análise ou o paciente, no centro da
reflexão. Alonso alerta que pensar sobre
as novas disposições sintomáticas e as novas subjetividades é importante, mas não
suficiente. É necessário refletir também
sobre os efeitos desse contexto cultural na
posição e no modo de clinicar do analista,
pois ele é parte dessa mesma cultura.
A evidência dessa colocação de Alonso
me levou a pensar, então, no quanto temos
discutido sobre o uso, cada vez mais frequente e indiscriminado, dos medicamentos e de seus efeitos no cotidiano de nossa
clínica. Em contrapartida, e é isso que tem
me chamado a atenção, é raro pensarmos
sobre a clínica de um analista que usa
medicação: quais são as implicações para
sua escuta e para a transferência? E, em
última instância, quais são as implicações
no rumo da própria psicanálise, dado que
esta tem, desde a sua fundação, um “lugar
excêntrico” em relação às demandas correntes do indivíduo e da sociedade, como
lembra Joel Birman (p.280)?
Esse é apenas um exemplo das muitas
questões que são suscitadas pela leitura
prazerosa de Psicanálise entrevista , v.1, cuja
qualidade maior é mostrar uma psicanálise que, com uma base comum, se
caracteriza atualmente pela pluralidade
e, consequentemente e a despeito da comentada crise que a cerca, continua muito
viva, interessante e produtiva.
Recebida em 2/6/2014. Aprovada em
27/6/2014.
Ana Patitucci
[email protected]
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Dissertações e teses
DISSERTAÇÕES DE MESTRADO
E TESES DE DOUTORADO/2013
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Instituto de Psicologia
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica
Dissertações
Título: Identidade e diferença
na relação com a alteridade
Autora: Augusta Rodrigues de Oliveira
Zana
Orientadora: Simone Perelson
Data de defesa: janeiro/2013
O objetivo deste trabalho é discutir a
relação com a alteridade a partir de duas
ordens de reconhecimento. No capítulo
1, discutimos a experiência de satisfação,
como proposta por Freud (1895/1996) no
“Projeto para uma psicologia científica”,
e apresentamos sua análise sobre o que
acontece quando o objeto da percepção é
outro ser humano, enunciando o complexo do próximo (Nebenmensch). Em seguida,
discutimos a formulação do estranho em
Freud (1919/1996) e sua releitura por Lacan (1959-1960/1997) como o não representado, por meio do conceito de das Ding.
No capítulo 2, partimos do narcisismo
no texto freudiano “Sobre o narcisismo:
uma introdução” (1914/1996) e do estádio
do espelho em Lacan (1949/1998a) para
chegar ao conceito de identificação, que é
discutido fundamentalmente a partir das
formulações de Lacan (1956-57/1995) no
Seminário 4. Finalizamos o capítulo com
as operações de alienação e separação
apresentadas por Lacan (1964/2008 a)
no Seminário 11 e retomadas no seminário
O ato psicanalítico (1967-68). No capítulo
3, trabalhamos com duas ordens de
reconhecimento, sendo a primeira, a
partir das leituras de Honneth (2003) e
Szpacenkopf (2011), focalizada na relação
entre indivíduos e circunscrita ao campo
da representação. Apresentamos a crítica
da categoria da identidade por duas vias:
pela desconstrução da categoria de identidade empreendida por Butler (1998; 2003;
2010) e pelo descentramento do sujeito
proposto pela psicanálise e trabalhado
por Birman (2003). Em seguida, discutimos, a partir de Cunha (2009) e Safatle
(2012), outra ordem de reconhecimento,
que leva em conta o estranho e não apenas
a relação imaginária entre indivíduos,
permitindo tratar do reconhecimento da
não identidade. Chegamos finalmente a
uma tentativa de compatibilizar essas duas
ordens de reconhecimento, retomando
considerações dos autores já referidos e
apresentando as proposições de Hardt e
Negri (2005).
Título: O estatuto teórico da
metapsicologia freudiana
Autor: Caio Padovan Soares de Souza
Orientadora: Ana Beatriz Freire
Data de defesa: fevereiro/2013
Com base no estudo de pesquisas conduzidas por Sigmund Freud, e por outros
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psicanalistas e pesquisadores contemporâneos àquele autor, esta dissertação tem
como objetivo contribuir para a definição
do estatuto teórico da metapsicologia.
Por ‘estatuto teórico’ entende-se aqui o
conjunto de princípios que regem determinado tipo de construção teórica. Nossa
hipótese inicial é a de que a metapsicologia está condicionada, nos termos do seu
estatuto e enquanto teoria psicanalítica,
aos imperativos de uma forma particular
de experiência que teria lugar na clínica
psicanalítica. Com vistas a avaliar esta hipótese, dedicamo-nos ao estudo de alguns
textos de caráter clínico e metodológico
escritos por psicanalistas e publicados
entre as últimas décadas do século XIX
e o início do século XX. Esta delimitação
se justifica por duas razões. A primeira
delas tem relação com o necessário recorte
temático exigido por um trabalho deste
porte; a segunda está baseada na aposta de
que um estudo a respeito das condições
de possibilidade da metapsicologia seria
mais bem sucedido se dirigido ao próprio
contexto de surgimento desta disciplina.
Os resultados obtidos durante a pesquisa
confirmaram nossas expectativas em torno
do valor da experiência para a elaboração
metapsicológica, sendo possível concluir
que há nesta experiência uma espécie de
critério empírico capaz de avaliar a pertinência de um dado constructo teórico. Ao
que tudo indica, tal critério vem coincidir
com aquele usado pelo clínico em uma
análise, a saber, o da manifestação das resistências, o que parece atestar uma coincidência — sustentada por Freud desde os
seus primeiros trabalhos — entre pesquisa
e tratamento no contexto da prática psicanalítica. Outra importante conclusão a
que chegamos é a de que a objetividade
deste critério, capaz de revelar aquilo que
viemos chamar de uma materialidade psíquica,
não é a mesma observada entre as ciên-
cias experimentais, situação que parece
evidenciar uma suposta impossibilidade
de tratar a experiência psicanalítica em
termos quantitativos (matemáticos) ou
em categorias descritivas universalizáveis.
Título: Ver e olhar: contribuições
psicanalíticas sobre a cegueira
Autora: Cintia Rita de Oliveira
Magalhães
Orientadora: Simone Perelson/Regina
Herzog
Data de defesa: fevereiro/2013
Na teoria psicanalítica, a visão parece
possuir certa primazia em relação aos
demais sentidos. Já no início de sua obra,
Freud destaca a importância das impressões visuais na estruturação do psiquismo.
Ao teorizar sobre a primeira vivência de
satisfação, ele demonstra o caráter visual
desta experiência que abre espaço para a
emergência do desejo. O olho deixa de
ser, exclusivamente, fonte da visão e passa a ser fonte da libido que o erogeniza,
pois para Freud ele é um órgão que está a
serviço de dois senhores: pulsões do Eu e
pulsões sexuais. No primeiro grupo, ele
serviria para a apreensão da realidade e
no segundo seria envolvido pela função
sexual. Logo, pode-se dizer que o corpo
constituído a partir do narcisismo é derivado de sensações corporais. Contudo,
sua relação com o mundo externo também
é de grande importância, pois grande
parte de sua própria forma é adquirida
a partir dessa interação com o mundo
externo — visões vistas, sons ouvidos,
corpos tocados, prazeres explorados. Em
função disso, podemos nos perguntar de
que maneira uma pessoa cega vivenciaria
esses processos. Logo, o presente trabalho
tem por objetivo fazer uma reflexão acerca
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da cegueira à luz da psicanálise, partindo,
principalmente, da distinção entre o ver
e o olhar.
Título: Os lugares do analista
no ensino de Lacan
Autor: Erly Alexandrino da Silva Neto
Orientadora: Tânia Coelho dos Santos
Data de defesa: março/2013
Este trabalho conduzirá um estudo sobre
os lugares do analista ao longo do ensino
psicanalítico de Jacques Lacan. Partindo da
formulação de seu vigésimo terceiro seminário, a de que o psicanalista é um sinthoma,
não pretende deixar dúvidas a respeito
do lugar que Lacan concede ao analista:
ele é real, não é ficção, não é convenção
nem mais um profissional psi a disputar
o mercado, mas o trauma do forçamento
a uma nova escrita do gozo, e é a partir
deste lugar que ele é eficaz. O pressuposto
que este estudo sustenta, portanto, é de
que o correto estatuto do lugar do analista é indispensável para a eficácia de suas
intervenções. Entretanto, as formulações
finais de Lacan — especialmente na forma
como aparecem nas produções teóricas
dos analistas contemporâneos — não
são apreensíveis sem a condução de uma
espécie de exegese de suas elaborações anteriores, que é a tarefa a que se propõe esta
dissertação. Deste modo, após estabelecer
um assoalho conceitual e teórico a partir
dos escritos freudianos sobre a técnica da
psicanálise, retomará o início que o próprio Lacan estabelece para o seu ensino,
1951, e percorrerá seus cursos e escritos
iniciais para estabelecer os fundamentos
de sua teoria, e a tônica de seu retorno à
Freud. Após isso, sistematizará o núcleo de
seu ensino, o período que Miller chamou
de lacanismo ‘clássico’, para estabelecer
305
com rigor e precisão a estrutura simbólica do sujeito e da experiência analítica,
sempre dando relevo aos lugares do analista e suas relações com o real. Por fim,
mostrará como o seminário sobre a ética
da psicanálise revisou o estatuto do real
e introduziu a Coisa freudiana como precursora do objeto agalma, no seminário
sobre a transferência, e do objeto a como
causa do desejo, no seminário da angústia. A título de indicações, percorrerá as
formulações do seminário sobre os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise —
que é onde o próprio Lacan situa o início
de seu segundo ensino — no intuito de
apontar as linhas de desenvolvimento que
culminarão no axioma da não relação
sexual, nas fórmulas da sexuação e do
analista como traumatismo.
Título: Da castração como rochedo
freudiano à vertente feminina da
sexuação lacaniana
Autora: Fernanda Oliveira Queiroz
de Paula
Orientadora: Tânia Coelho dos Santos
Data de defesa: fevereiro/2013
A presente pesquisa busca delimitar as
especificidades da sexuação feminina para
a psicanálise. A incidência do complexo de
castração e do complexo de Édipo, operadores simbólicos que ordenam a diferença
sexual sob a égide da lógica fálica, não se
efetua da mesma maneira nos homens
e nas mulheres. Há uma dissimetria na
constituição subjetiva feminina e masculina devido ao fato desvelado por Freud
de que, apesar da existência de dois sexos
anatômicos no inconsciente só há o princípio do falo. Com isso, a primazia fálica
e a falta de uma representação no inconsciente que designe o que é uma mulher são
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as consequências psíquicas da distinção
anatômica entre os sexos. Entretanto,
o que Freud desenvolveu acerca da
sexualidade feminina e da feminilidade
foi com base na lógica masculina da sexuação, definida por Lacan como lógica do
todo. Isso o colocou diante de impasses
acerca do processo da sexuação feminina,
e a questão do feminino fica como um
enigma: “O que quer uma mulher?”, “O
que é ser uma mulher?”. Ao final de sua
obra, Freud concebe que o complexo de
castração é um rochedo no processo de sexuação de ambos os sexos e um “osso” no
processo analítico, e equivale os impasses
da sexuação àqueles encontrados ao final
de uma análise. Partindo do retorno de Lacan à obra freudiana, apoiamo-nos na sua
afirmação de que Freud não avançou para
além desse rochedo por não conseguir sair
do lugar de identificação ao pai ideal do
Édipo. Do mesmo modo, constatamos no
percurso de Lacan, que é apenas quando
este consegue dar um passo além do pai
edipiano como Outro consistente, que
lhe é possível avançar na formalização
da vertente feminina da sexuação. Desse
modo, a presente pesquisa busca apresentar a interseção entre a transposição
do pai ideal ao pai implicado à sua causa
de desejo, assim como a transposição da
dimensão do conceito lacaniano de Outro
enquanto consistente — A —, ao seu estatuto inconsistente — S( A ) —, como os
passos que permitiram Lacan ultrapassar
a castração como um rochedo freudiano,
rumo à formalização inédita, da vertente
feminina da sexuação, com base em uma
lógica para além do falo e da lógica do
todo: a lógica do não-todo.
Título: Corpo e alteridade: processo
de subjetivação
Autora: Jôse Lane de Sales
Orientadora: Regina Herzog
Data de defesa: fevereiro/2013
A presente dissertação se propõe a abordar
a questão da constituição da subjetividade
em uma perspectiva psicanalítica. Seu
objetivo é investigar como se dá o complexo processo de subjetivação no qual a
questão corporal e a função da alteridade
possuem papel relevante. O primeiro capítulo será dedicado ao exame do registro
do corpo autoerótico, que tem lugar no
pensamento de Freud com a introdução
da ideia de uma sexualidade infantil e
do conceito de pulsão sexual. O segundo
se propõe a pensar o registro do corpo
narcísico unificado, que surge em 1914 e
se radicaliza em 1923 com a concepção de
um Eu-corporal. O último abordará o que
se designa como o corpo irrepresentável,
o qual adquire proeminência a partir do
conceito de pulsão de morte em 1920. Para
articular a questão da alteridade com cada
um desses registros, visando trabalhar aspectos mais precoces do desenvolvimento
subjetivo, recorreremos a outros autores,
privilegiadamente Donald Winnicott,
Piera Aulagnier e Sándor Ferenczi.
Título: A transmissão psíquica
e o negativo constituinte
Autora: Ludmilla Tassano Pitrowsky
Orientadora: Simone Perelson
Data de defesa: março/2013
Neste trabalho, procuraremos discutir a
seguinte questão: haveria na transmissão
psíquica inconsciente conteúdos da ordem
do negativo que seriam constitutivos no
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processo de estruturação psíquica? Para
colocarmos tal questão, faremos um
estudo teórico a respeito dos temas: a
transmissão psíquica, o negativo e a constituição psíquica. No primeiro capítulo,
introduziremos a teoria de René Kaës
acerca da transmissão psíquica, principalmente em seus diálogos com a teoria
freudiana. Dentro do vasto estudo de René
Kaës, pesquisaremos seu desenvolvimento
acerca da teoria da transmissão psíquica
inconsciente, desde os primeiros momentos em que o tema pode ser encontrado em
seus estudos com Didier Anzieu, até sua
mais recente publicação acerca dos vínculos implicados no processo de transmissão
geracional, as alianças inconscientes. No
segundo capítulo, discutiremos o conceito
de negativo através de André Green, precursor da questão do trabalho do negativo
através também das obras de Freud. Após
vislumbrarmos alguma compreensão de
sua teoria, entraremos na “transmissão-repetição”, conceito trazido por René
Kaës ao tratar a transmissão psíquica em
duas vertentes: positiva e negativa. Neste
momento, traremos autores que nos ajudem a pensar tal proposta, como Haydée
Faimberg, Tatiana Inglez-Mazzarella, Jô
Gondar, Luiz Alfredo Garcia-Roza, entre
outros. No terceiro capítulo traremos
possíveis campos de investigação do
negativo constituinte do psiquismo que
nos seria transmitido inconscientemente.
Desta forma, traremos os conceitos de
Introjeção e incorporação de S. Ferenczi,
desenvolvidos por N. Abraham e M. Torok
para em seguida estudarmos a teoria da
sedução generalizada de J. Laplanche. Na
terceira parte deste terceiro capítulo, abordaremos os conceitos de sombra falada e
contrato narcísico de Piera Aulagnier e,
por fim, da possibilidade de pensarmos
a violência fundamental de Jean Bergeret. No momento final desta dissertação,
307
discutiremos os problemas, dificuldades
e possíveis conclusões do nosso percurso
em busca da colocação e discussão de
nossa questão.
Título: Confluências entre as neuroses
atuais e as patologias da atualidade
Autor: Paulo Giovani Goulart Ritter
Orientadora: Marta Rezende Cardoso
Data de defesa: março/2013
O objetivo deste trabalho é propor linhas
de convergência entre as neuroses atuais,
designação estabelecida por Freud nos
anos 1890, e as patologias da atualidade,
cujas configurações psíquicas, por diferirem das organizações subjetivas de cunho
neurótico e exigirem ferramentas técnicas
distintas das habituais, têm desafiado a
teoria e a clínica psicanalíticas. Realizamos
uma releitura das neuroses atuais à luz de
avanços teóricos posteriores da elaboração
freudiana. Nessa releitura, as ideias de insuficiência psíquica e excesso de excitação,
base de sua concepção das neuroses atuais,
são articuladas ao conceito de narcisismo e
à noção de excesso pulsional, o que permite pensá-las como estreitamente referidas
à dimensão de precariedade narcísica e ao
campo do traumático.
Mostramos como as neuroses atuais levantam a mesma questão que a figura da
neurose traumática coloca em cena em
1920 — o excesso pulsional —, questão
fundamentada nos conceitos de pulsão de
morte e de compulsão à repetição. Esta
análise nos permite explorar as patologias
contemporâneas, de base traumática, em
que o excesso pulsional atinge níveis
inéditos, aspecto correlativo aos limites
dos processos de ligação e representação,
marca do impacto traumático da pulsão.
Como resultado desse processo, há o in-
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cremento de respostas defensivas elementares, com apelo ao registro do corpo e ao
do ato. Assim, defendemos a ideia de que
as neuroses atuais apresentam elementos
importantes que iluminam o entendimento das patologias contemporâneas.
Título: A marca de Tânatos: o traço
melancólico no texto literário
Autora: Rita Isadora Pessoa Soares de
Lima
Orientadora: Anna Carolina Lo Bianco
Data de defesa: março/2013
Título: Da questão da transferência
ao surgimento de um novo
dispositivo clínico: o que o autismo
nos ensina
Autor: Rafael Ferreira Lima Dias
Orientadora: Ana Beatriz Freire
Data de defesa: abril/2013
A possibilidade de interlocução entre a
psicanálise e a literatura ao mesmo tempo
em que impulsiona esta pesquisa, constitui,
também, um desafio. Desde a antiguidade,
a melancolia apresenta uma extensa trajetória através dos registros médicos e da história da arte. Se esta trajetória é, portanto,
povoada de múltiplas metamorfoses, fez-se
necessário mapear uma série delas para
então cingir o nosso objeto de pesquisa
— o traço melancólico no texto literário.
A estreita relação entre a melancolia e a pulsão de morte — sendo a primeira descrita
por Freud em 1923 como a pura cultura da
pulsão de morte — nos conduziu rumo à
identificação de uma relação entre o destino
pulsional da sublimação e o predomínio da
pulsão de morte na melancolia. Freud fez
algumas considerações acerca dos riscos em
jogo no trabalho sublimatório, e Lacan, de
alguma forma, retoma tal posição em seu
seminário sobre a ética, em 1959, quando
afirma que a sublimação é uma tarefa para
além do princípio de prazer, uma vez que,
a rigor, ao dessexualizar a pulsão, passa a
não estar mais a serviço de Eros. Partindo
daí, a busca por um eixo que permanecesse constante ao longo das transformações
e derivas sofridas pela melancolia no
decurso dos séculos se coloca como uma
etapa importante no processo de cernir o
traço melancólico. Alguns autores e poetas
possuem vozes e obras nas quais podemos
mais facilmente identificar a presença do
traço melancólico. A obra final da poeta
norte-americana Sylvia Plath foi escolhida
por nós para análise e estudo de caso.
Esta dissertação tem por objetivo levantar
os impasses da oferta da psicanálise aos
ditos sujeitos autistas, a partir da problematização da transferência na clínica
com a psicose. Para tanto, levantamos a
hipótese do autismo como tipo clínico
do campo da psicose. A transferência na
psicose é uma questão que impulsiona os
analistas, e a clínica com esses pacientes é
fonte de inúmeras pesquisas. A partir dos
impasses freudianos com a transferência
na clínica da psicose, veremos como Lacan em seu retorno à Freud provoca uma
reviravolta introduzindo a linguagem, o
significante e o gozo no campo psicanalítico. Desta forma ele concebe condições
preliminares para todo o tratamento possível da psicose. Veremos também como o
mesmo Lacan deixou indicações preciosas
quanto à clínica com os sujeitos autistas.
Veremos como os impasses da oferta da
psicanálise para sujeitos autistas propiciou
a construção de dispositivos que permitem
a inclusão desta entidade clínica.
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Título: Caps-AD Alameda: um
trabalho orientado pela psicanálise
no campo da Saúde Mental
Autora: Tatiana Lins Serra Cattapan
Orientadora: Fernanda Costa-Moura
Data de defesa: junho/2013
Título: “Como seria belo ser uma
mulher”: transexualismo masculino
e empuxo-à-mulher
Autor: Wellington Carlos Moreira Júnior
Orientadora: Angélica Bastos
Data de defesa: março/2013
Propõe-se, nesta dissertação, uma articulação entre a Psicanálise e o campo da Saúde
Mental. Pretende-se discernir o campo da
Saúde Mental, orientado por princípios
como a ressocialização e a cidadania, da
psicanálise, que incide sobre a relação do
sujeito com seu desejo. Ao definir alguns
pressupostos do campo da Saúde Mental,
construídos no movimento da reforma
psiquiátrica, pretende-se mostrar de que
forma o Caps AD foi inserido no campo da
Saúde Mental. A contribuição da psicanálise para o campo da Saúde Mental é discutida a partir de uma investigação sobre
os conceitos de demanda e desejo, apoiada
nos trabalhos de Freud e Lacan. Ressalta-se a importância do aspecto imperativo
da pulsão, visto na compulsão à repetição
em sujeitos toxicômanos. A partir destes
fundamentos retoma-se uma experiência
de trabalho orientado pela psicanálise no
Caps AD Alameda, dispositivo da Rede de
Saúde Mental do município de Niterói/Rio
de Janeiro, na qual se evidenciaram, em
situações da prática cotidiana do processo
de recepção neste serviço, as dificuldades
da entrada em tratamento de pacientes
toxicômanos. Através de um fragmento
de caso clínico discute-se a dificuldade de
adesão do paciente ao tratamento oferecido no Caps-AD Alameda, e a fragilidade
na ligação com o terapeuta, que coloca em
risco todos os ideais da reforma psiquiátrica, enfatizando a grande dificuldade de
incidência das políticas publicas de tratamento e prevenção na vida desses sujeitos.
Esta pesquisa interroga a relação entre o
transexualismo e o efeito de empuxo-à-mulher nas psicoses. Adota-se como referencial teórico-clínico a psicanálise, em
especial, os ensinos de S. Freud e J. Lacan.
O objetivo consiste em verificar a presença
do empuxo-à-mulher no transexualismo,
partindo da advertência de J. Lacan sobre
a face psicótica dos transexuais que será
explicada pela presença da foraclusão do
significante paterno nesses sujeitos. O procedimento buscou investigar a tendência
à feminização, tão evidente na orla da
psicose. Do estudo paradigmático de Freud
(1911/1996) sobre o presidente Schreber, destacou-se a prevalência da fixação
narcísica e da poderosa defesa erguida
pelo sujeito diante da irrupção da libido
homossexual. Lacan (1957-58/1998),
diferindo de Freud, propôs o conceito
gozo transexualista circunscrevendo, sob
esse prisma, a prática de transformação
em mulher vivenciada por Schreber. Em
outro momento do seu ensino, Lacan nomeou a manifestação do gozo na psicose
como efeito de empuxo-à-mulher (Lacan,
1973/2003), o que suscitou, nesta pesquisa, a interrogação sobre se este último
corresponderia a uma atualização do conceito gozo transexualista. Tal indagação
orientou o desenvolvimento da dissertação, cuja pertinência reside no fato de
que a convicção do sujeito de ser mulher,
a despeito do que se verifica na morfologia
do seu corpo, é uma manifestação clínica
própria da psicose. Nota-se nesses sujeitos uma grande dificuldade em acessar o
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dispositivo simbólico, a partir do qual se
delimitaria, no discurso, a resposta sobre
a diferença sexual: o que é um homem,
o que é uma mulher. Ao mesmo tempo,
observa-se que eles recorrem ao atributo
da imagem para estabelecer tal diferença.
A pesquisa é de cunho teórico-clínico, baseando-se em casos da literatura especializada e em publicações com depoimentos
e entrevistas de transexuais. A dissertação
se divide em quatro partes: uma revisão
histórica do conceito de transexualismo;
uma discussão entre a proposta stolleriana, a freudiana e a lacaniana sobre a
diferença sexual; um estudo sobre o gozo
transexualista e o efeito de empuxo-à-mulher e, por fim, uma discussão entre
essas duas formulações lacanianas do
gozo na psicose e o transexualismo. Nesta
última seção, faz-se uso de dois casos da
literatura, Amanda e Tininha Nova York,
nos quais a manifestação do transexualismo demonstrava a clara ação do efeito de
empuxo-à-mulher. Discute-se também a
necessária indicação cirúrgico-hormonal,
feita pela ciência médica, para o transexualismo. Conclui-se que, a presença da
foraclusão no discurso do sujeito, revelada
na sua convicção em ser mulher, indica a
ação do efeito de empuxo-à-mulher. Este
compõe uma definição ampla para o gozo
nas psicoses, e se aplica às múltiplas faces
da representação deste gozo, indo além
do gozo transexualista, que supõe apenas
uma das representações consequentes do
efeito de empuxo-à-mulher.
Teses
Título: O caráter perturbador
da verdade em Psicanálise
Autora: Aline Vieira Friedman
Orientadora: Anna Carolina Lo Bianco
Data de defesa: julho/2014
O objetivo desta tese é refletir sobre a
noção de verdade na psicanálise, tomando como base os textos de Freud e o
ensino de Lacan. Começamos por nossa
aposta numa verdade cuja função seria a
de circunscrever o campo psicanalítico,
conferindo-lhe sua especificidade e o afastando de outras formas de clínica. A fim
de por à prova nossa proposta, partimos
da advertência de Freud (1937/2004) aos
analistas quanto ao amor à verdade, no
sentido em que ao instaurar e sustentar o
vínculo analítico, esse amor se constitui
ao mesmo tempo como o obstáculo para
o término de uma análise. Buscamos
com Lacan (1970) elucidar essa referência freudiana ao amor, e depreendemos
como direção, para tratar nosso tema, o
que o psicanalista francês chamou de uma
“impotência da verdade” (Lacan, p. 191)
dada por sua articulação com o Real (die
Wirklichkeit) como impossível. Em seguida,
investigamos a relação entre verdade e real
à luz do mito — como o “enunciado do
impossível” (Lacan, p. 145) —, passando
antes por uma revisão da função do mito
juntamente às críticas de Lacan (1954-5,
1960-1) ao saber epistêmico. Estudamos
a importância do mito de Édipo com as
contribuições do estruturalismo de Lévi-Strauss e como Lacan s’en sert pour s’en passer
(Melman, 2003). Assim, pudemos passar
à relação entre verdade e saber, apoiados
no uso lacaniano de algumas teses da matemática referentes ao número de Äuler,
assim como ao entrecruzamento de verágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318
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dade, o Outro e gozo seguindo o caminho
de Lacan dentro do materialismo de Sade
e da mais-valia de Marx. Chegamos numa
função da verdade como objeto a, determinada a posteriori (Nachträglich) pela castração e
pelo furo do sexual. Por fim, trabalhamos
com a importância de considerar uma
verdade atravessada pelo sexual, isto é,
insistir num lugar dado ao sexual que o
faz, desde Freud, funcionar como verdade,
como o que instaura para o sujeito o que
é da diferença sexual e que determina sua
subjetividade. Desprovida de conteúdos
reveladores e alardeantes, mais afeita ao
cômico e à babaquice (connerie), chegamos
a uma verdade como a morada onde se
instala o segredo do sexo. Como resposta
ao assexualismo e ao unissex, que têm seu
ápice na contemporaneidade, defendemos
a importância de retomar o problema da
verdade na clínica psicanalítica. Tendo
em vista a especificidade dessa noção,
procuramos justificar o seu papel na permanência da psicanálise e de sua radicalidade em não abdicar do enfrentamento
de um sexual que secciona e reinstaura a
cada vez o mal-estar do sujeito na cultura.
Título: O lugar do analista na clínica
atual: da fixidez da fantasia
à mobilidade psíquica
Autora: Ana Bárbara de Toledo Andrade
Orientadora: Regina Herzog
Data de defesa: julho/2014
O objetivo central da tese é o de examinar
a especificidade do papel do analista na
clínica contemporânea, abordando uma
problemática comum aos casos difíceis
com os quais nos deparamos na clínica
atual. O fantasiar penoso de desvalia narcísica revela-se uma problemática que não só
dificulta a mobilidade psíquica do sujeito,
311
como também coloca obstáculos à própria
mobilidade da prática psicanalítica. Indicamos que a fixidez da fantasia decorreria
de uma relação traumática de submissão
absoluta ao objeto primário. A esta questão articula-se uma fantasia materna que
buscaria manter intocável e imodificável
o estado psíquico de indiferenciação eu-outro. Diante das dificuldades impostas
por esses pacientes no âmbito da condução do tratamento, empreendemos uma
discussão a respeito da particularidade
da dinâmica transferencial, visando
compreender como essa configuração
subjetiva inscreve-se no contexto clínico.
Deste modo, desenvolvemos uma reflexão
teórico-clínica a propósito da condução do
tratamento analítico com os casos difíceis.
Propomos uma dialética temporal e rítmica para o manejo transferencial e para
o movimento interpretativo em análise.
Titulo: TDAH: Novo sintoma da
criança ou a criança como um novo
sintoma da contemporaneidade?
Autora: Ana Carolina Duarte Lopes
Orientadora: Tânia Coelho dos Santos
Data de defesa: julho/2013
Este trabalho busca ref letir sobre o
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) em crianças à luz da
psicanálise, tendo como referencial o arcabouço teórico de Freud e Lacan. O TDAH
é reconhecido como doença nos compêndios médicos e é o transtorno infantil
mais frequente na atualidade. O Diagnostic
and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM)
caracteriza as manifestações do transtorno
em torno de três sintomas básicos: desatenção, hiperatividade e impulsividade.
De acordo com o manual, esses sintomas
devem ser mais intensos e frequentes do
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que o tipicamente observado em crianças
no mesmo nível de desenvolvimento. A
neuropsicologia define o TDAH como
uma disfunção no sistema perceptivo
central localizado no córtex pré-frontal.
A disciplina tem como objetivo estudar
as relações entre a atividade cerebral, a
cognição e o comportamento utilizando
diversos instrumentos de avaliação. Para
tratar os déficits cognitivos observados em
crianças com TDAH, a neuropsicologia faz
uso do processo de reabilitação cognitiva.
Sabemos que a abordagem psicanalítica e
neuropsicológica são incomparáveis sob o
ponto de vista teórico e epistemológico —
fato que não impede o trabalho paralelo
e colaborativo entre as duas disciplinas.
Dessa maneira, propomos uma articulação da teoria do advento do eu com o
funcionamento comprometido do sistema
neurológico. Na clínica psicanalítica com
crianças, situamos o TDAH com relação ao
desejo da mãe e o nome do pai. Marcamos
que no TDAH há uma enorme carência do
significante nome do pai. A partir dessa
constatação, relacionamos o TDAH e a
fobia, já que ambos são sintomas típicos
da infância, podendo ainda ser pensados
como a busca por um agente organizador,
uma hipótese que aproximaria tais sintomas do campo subjetivo.
Título: Trauma e prática clínica:
um percurso entre Freud e Ferenczi
Autor: André Soares Pereira Avelar
Orientador: Joel Birman
Data de defesa: julho/2013
O presente trabalho propõe uma investigação a respeito do tema do trauma.
Entendemos como traumático o que
transcende os limites da representação.
Fizemos inicialmente uma incursão ao
pensamento freudiano, com o intuito de
dar relevo a uma concepção do traumático
estreitamente ligado ao pulsional. Em um
segundo momento, utilizamos as contribuições de Sandor Ferenczi, para esboçar
uma prática clínica sintonizada com a
problemática da compulsão à repetição.
Nosso objetivo é enfocar o “sentir” do
analista como o modo encontrado pelo
autor para constituir uma prática clínica
capaz de abarcar aquilo que comparece
como puro excesso, carente de simbolização. Entendemos que o sentir do analista
pode ser tomado como um índice para o
esboço de uma estratégia clínica sintonizada com o específico e singular sofrimento
psíquico endereçado ao analista. Nesse
sentido, estamos enfatizando o exercício
de uma sensibilidade cujo propósito é
criar condições de possibilidade para a
inclusão no campo discursivo daquilo que
é, por excelência, da ordem do traumático.
Título: Domínio e culpa na neurose
obsessiva: marcas da destrutividade
Autora: Camila Peixoto Farias
Orientadora: Marta Rezende Cardoso
Data de defesa: fevereiro/2013
O objetivo central desta tese é promover
um aprofundamento do estudo da neurose obsessiva sob uma nova perspectiva a
partir da qual se destaca a sua dimensão
destrutiva. O traumático é um fator relevante na gênese dessa patologia, tendo
em vista o caráter violento de seu sistema
defensivo, indicativo de que sua análise
foi determinante para a emergência da
pulsão de morte na obra de Freud. O
modo singular de relação com o objeto
na neurose obsessiva é um dos tópicos essenciais desta investigação. São analisados
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os elementos traumáticos envolvidos na
sua etiologia a partir do plano da relação
primária, e de seu entrecruzamento com
o plano edipiano. A noção de domínio
é o articulador principal desta reflexão
sobre a relação eu/outro nos registros
intrapsíquico e intersubjetivo. Quanto à
dimensão de alteridade interna na neurose
obsessiva, o foco de análise incide sobre
as modalidades compulsivas de resposta
psíquica diante do constante vivido de
ameaça de transbordamento pulsional.
São respostas que implicam complexa
articulação entre ato e pensamento em
cujo eixo há a compulsão à repetição e
a onipotência narcísica, conduzindo a
uma compulsão à síntese, destrutiva, por
seu caráter fechado, de imobilismo. O
pensamento ganha, neste caso, valor de
ato, abrindo a discussão sobre a natureza
das violentas autoacusações, em suma,
da problemática da culpa. Explora-se o
acirrado combate entre ego e superego
para se demonstrar que a ferocidade do
sentimento de culpa na neurose obsessiva
já constitui uma primeira tentativa egoica
de “dominação” do excesso pulsional.
perativo de gozo superegoico para situar
a função da dialética das identificações
na clínica com os pacientes ditos obesos.
Tendo em vista as duas principais diferenciações da compulsão na psicanálise,
a saber, a compulsão na neurose obsessiva
e a compulsão à repetição, trabalha-se a
questão da angústia na teoria freudiana e
lacaniana articulada ao conceito de gozo
para verificar se a incidência das exigências superegoicas estaria diretamente
relacionada à manutenção do sintoma e
ao aumento da angústia, devido a uma
falha na operação simbólica que regula
as relações entre ideal do eu, supereu,
gozo e desejo. Numa perspectiva clínica,
a dialética das identificações e o trabalho
do luto cujo correlato é a análise são pensados como o que permite a construção de
recursos para lidar com o excesso pulsional, circunscrevendo as possíveis formas
de responder ao imperativo superegoico.
Por fim, retomam-se as observações sobre
a angústia sinal, a angústia traumática, a
culpa e a identificação para elaborar considerações sobre a clínica e a direção do
tratamento com pacientes ditos obesos.
Título: Imperativo de gozo
na obesidade: sobre a função
da angústia e da identificação
na clínica psicanalítica
Autora: Cristiane Marques Seixas
Orientador: Joel Birman
Data de defesa: julho/2013
Título: Reflexões sobre a questão do
poder na teoria freudiana: da pulsão
de domínio à pulsão de destruição
Autora: Cynthia Cristiane Guerreiro
Baldi
Orientador: Joel Birman
Data de defesa: julho/2013
O presente trabalho aborda a problemática da obesidade no campo psicanalítico,
circunscrevendo a questão da compulsão
por comer a partir da metapsicologia freudiana e da psicanálise lacaniana. Visa-se
delimitar em que medida a compulsão por
comer está relacionada à angústia e ao im-
Este trabalho tem por objetivo pesquisar
de que forma Freud pensou a questão do
poder nos diferentes momentos de sua
obra que propusemos dividir em duas
fases, passando por um período de transição. No primeiro momento de seu pensamento, tentamos mostrar de que forma
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a primeira parte da teoria se articulava
com o poder. Em seguida, sublinhamos
os momentos que eram indicativos de que
uma mudança começava a se produzir em
seus escritos e, nesse sentido, a eclosão da
Primeira Guerra Mundial, bem como os
efeitos do pós-guerra, também parecem
ter contribuído significativamente para a
mudança de paradigma que aconteceria
nos anos seguintes em seu pensamento.
Finalmente, com a postulação da pulsão de
morte, diversos efeitos foram produzidos
no que concerne à questão do poder e
da política em sua relação com a guerra.
De forma que, no final de sua obra, suas
reflexões acerca do poder tomaram rumos
bastante diversos de suas reflexões iniciais.
Título: As concepções da parceria
analítica no ensino de Lacan
Autor: Douglas Nunes Abreu
Orientadora: Tânia Coelho dos Santos
Data de defesa: julho/2013
Esta tese parte de alguns impasses e questões pertinentes à prática do analista no
século XXI, tais como a prática analítica
na era das avaliações, no campo da saúde
mental e diante das novas apresentações
sintomáticas. Elenca as perspectivas
lógicas que podem melhor orientar a
configuração da prática psicanalítica
em cada momento da clínica lacaniana.
Essa divisão lógica serve de eixo para
o desenvolvimento das parcerias analíticas em Lacan. Desenvolve a ideia do
parceiro-imago na teoria do imaginário
como momento antecedente da prática
propriamente lacaniana. Trabalha as
parcerias do analista a partir do axioma
do inconsciente estruturado como uma
linguagem, na lógica do inconsciente
transferencial: o analista como parceiro-
-símbolo na máquina significante e o
analista como parceiro-objeto a na clínica
da fantasia. Desenvolve a parceria analítica
na clínica do real, balizada pelo axioma
da não relação sexual, na lógica do inconsciente real, onde a parceria analítica
é descrita como a de parceiro-sintoma. Ao
final do trabalho, discutem-se as parcerias
analíticas na perspectiva de alguns casos
clínicos da literatura psicanalítica, visando
às considerações finais sobre o tema.
Título: O real da ciência e o real
da psicanálise
Autor: Fabiana Mendes Pinheiro
de Souza
Orientadora: Tânia Coelho dos Santos
Data de defesa: fevereiro/2013
Esta pesquisa parte do axioma lacaniano:
“O sujeito sobre o qual a psicanálise opera
só pode ser o sujeito da ciência” (Lacan,
1965-66, p. 873). Abordamos o advento
do real da ciência a partir da epistemologia francesa tendo como referência, os
autores, Canguilhem, Bachelard, Koyré e
Milner. Diferentemente da epistemologia
bachelardiana, centrada no conceito de
corte epistemológico, Foucault situou sua
leitura arqueológica no limiar da epistemologização. Neste nível a cientificidade
não serve como norma. Demonstramos a
partir de Machado (2009) que na história
arqueológica o que se tenta revelar são as
práticas discursivas na medida em que
elas dão lugar a um saber. Foucault não
considerou pertinente a distinção entre
ciência e ideologia. Ao não estabelecer os
critérios de demarcação entre uma e outra,
situou a arqueologia como uma história do
saber. Para Foucault todo conhecimento,
seja ele científico ou ideológico, só pode
existir a partir de correlações de força
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que constituem tanto o sujeito quanto os
domínios do saber. Com base em Machado
(2009), destacamos a passagem de arqueologia do saber (1969b) para a genealogia
do poder de Michel Foucault, quando a
investigação do saber dá lugar aos estudos
sobre o poder. Este último se exerce, é luta,
correlações de força que resultam uma
estratégia sem sujeito. A epistemologia
está assentada no conceito de corte epistemológico, conceito bachelardiano, que
sustenta o primeiro eixo desta pesquisa.
Acompanhamos a homologia estrutural
proposta por Milner entre o teorema de
Kojève de que “há entre o mundo antigo e
o universo moderno um corte” e o teorema de Koyré de que “entre a episteme antiga e a ciência moderna existe um corte”.
Esses cortes correspondem a momentos
logicamente superpostos à constituição
do sujeito. A posição subjetiva moderna
só foi possível a partir do advento da
ciência moderna. A partir do advento do
real da ciência, o real da psicanálise foi
delineado com base nas discussões de
Lacan com Hyppolite em 1953-54. Este
real é delimitado a partir de uma primeira
constituição de um externo não simbolizado, por meio da operação da Austossung,
expulsão primordial. Trabalhamos o conceito de pulsão de morte, o automatismo
da repetição (Wiederholungszwang), e sua
relação com a ordem simbólica. A pulsão
de morte foi definida por Lacan (1954-55)
como a ordem simbólica enquanto muda.
A pulsão de morte é a máscara da ordem
simbólica. Demonstramos que o conceito
de real equivaleria à definição de das Ding
proposta por Lacan em 1959-60. Tendo
como referência o período de 1962-63,
quando a angústia foi definida como sinal
do real, retomamos a tese de Coelho dos
Santos de que angústia automática (Automatischeangst) é a legítima representante da
pulsão de morte no aparelho psíquico e
315
analisamos sua relação com a definição lacaniana de que a angústia é o sinal do real.
Encerramos nosso percurso retomando a
tese lacaniana de que a angústia é a única
tradução subjetiva do objeto a. Logo, este
último, é o nome do real neste período do
ensino de Lacan.
Título: A impossibilidade revelada
pela psicanálise diante do enigma
da diferença sexual
Autora: Jamille Lima dos Santos
Orientadora: Anna Carolina Lo Bianco
Data de defesa: julho/2013
A presente tese parte da concepção de
sexualidade proposta por Freud e sustenta
que a diferença entre os sexos não implica
uma simetria ou completude entre eles.
Recorre aos desenvolvimentos de Lacan
para demonstrar como o conceito de falo
é o referente, tanto da inscrição do sujeito
em uma posição sexuada, quanto do seu
posicionamento diante do encontro com
o outro sexo. Tomando como parâmetro
a lógica fálica, problematiza a vinculação
entre o falo e o atributo e evidencia que,
na sua vinculação com os quantificadores,
o falo opera como função fálica. É por
essa referência que o sujeito se inscreve
em uma das duas posições sexuadas. Para
o homem, a função fálica é o referente da
sua inscrição na sexuação e se articula na
relação entre o todo e a exceção; para a
mulher, a função fálica não permite sua
inscrição como um todo. Isto é, a lógica
que rege a posição feminina é não-toda
referida à função fálica. Nessa perspectiva,
é a partir da lógica que rege cada posição
sexuada que o sujeito tem que se fazer valer
no encontro com o outro sexo. Ou seja,
a assunção de uma posição sexuada não
está dada de uma vez por todas, só po-
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dendo se fazer por referência ao semblant.
Desse modo, circunscreve e caracteriza o
conceito de sexualidade para a psicanálise
e indica que diante da impossibilidade
estrutural imposta pelo sexual, o encontro
entre os sexos se dá pela via do semblant e se
faz através da articulação entre o cômico e
o amor. Nesse contexto, é ressaltado que é
próprio do sujeito neurótico recuar diante
do real desvelado pelo sexual e conclui que
ao revelar ao mundo essa impossibilidade,
a psicanálise demonstra que a assunção
de uma posição sexuada não é da ordem
de uma natureza, nem uma questão de
opção — é um fato de estrutura.
Título: Da falta à perda: a tarefa
analítica
Autor: Jorge Gonçalves dos Santos
Orientadora: Fernanda Costa-Moura
Data de defesa: fevereiro/2013
O trabalho aborda a passagem da falta à
perda do objeto, no percurso denominado por Lacan (1967-8) como “a tarefa
analítica”. Trata-se de examinar quais são
os limites da análise diante da demanda
de cura que o neurótico endereça ao analista, uma vez que a descoberta freudiana
apontou as satisfações pulsionais que o
sintoma representa, e das quais Lacan
demarcou sua presença real e encadeamento simbólico. Partindo do exame
da determinação significante do sujeito
e da montagem pulsional, discerne-se a
dimensão da falta de objeto último para o
desejo, aberta pela castração, que institui o
estatuto da demanda no campo do sujeito.
Na medida em que o registro da demanda,
em lugar de implicar a existência de um
objeto que a satisfaça, reenvia o sujeito
à metonímia significante que é sempre
incessante como tal, observa-se que a
circunscrição da operação da castração
definida somente em referência ao registro
da falta oblitera qualquer saída efetiva para
o impasse com que Freud se deparou na
análise da neurose sob a forma do “rochedo da castração”. Delimita-se assim a
operação de extração e perda do objeto
a, como o ato que possibilita cernir, e ir
além, da impossibilidade de transposição
do rochedo da castração enquanto limite.
Para abordá-lo discute-se o problema do
limite da interpretação e a noção freudiana
de “regressão pulsional” com base na análise realizada por Lacan dos significantes
acéfalos da gramática pulsional, a fim de
localizar a perda implicada no objeto,
como um momento lógico anterior à falta
sintomática do mesmo. Expõe-se, por fim,
a castração como limite colocado em cada
demanda, em cada modalidade de satisfação pulsional, ao examinar o ato de perda
e cessão do objeto a no que Lacan denomina a “regressão analítica”, bem como no
que é apresentado no tetraedro balizador
da análise, construído no seminário O ato
psicanalítico (1967-8). O que aí se representa
podendo aparecer ao final como sendo da
ordem de uma báscula que se abre para
o sujeito como passagem ética da falta à
perda, na medida mesmo e na vigência dos
limites constitutivos do processo analítico.
Título: A psicanálise e o cuidado
de si: entre a sujeição e a liberdade
Autor: Rodrigo Cardoso Ventura
Orientador: Joel Birman
Data de defesa: julho/2013
A presente tese de doutorado tem como
principal objetivo pensar a psicanálise na
atualidade como uma prática inscrita na
tradição do cuidado de si (epiméleia heautoû),
a partir da articulação entre o discurso
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freudiano, a obra do filósofo francês
Michel Foucault e a filosofia antiga, em
torno das figuras de Sócrates e Diógenes,
o cínico. A motivação desta tese é problematizar as condições de possibilidade da
transformação subjetiva na experiência
psicanalítica, que aponta para a constituição de novos modos de vida. O que nos
interessa neste trabalho é pensar a prática
psicanalítica como um espaço de liberdade visando à experimentação de outras
formas de ser e de acontecer na vida. Um
grande desafio, porém, se coloca. E quem
nos coloca este desafio é Foucault. Em sua
genealogia do poder, ele afirma que os
efeitos de sujeição das relações de poder-saber, que normalizam as subjetividades e
sufocam os espaços possíveis de liberdade,
também estão presentes na experiência
psicanalítica. Para encontrar as saídas
frente às questões colocadas por Foucault,
este trabalho de pesquisa vai refletir acerca
da tensão presente no setting analítico entre
a sujeição e a liberdade das subjetividades.
Para tal, nossa aposta é buscar na própria
filosofia de Foucault, quando esse autor
se volta para a Antiguidade greco-romana
para estudar a noção de cuidado de si, os
elementos que nos permitam encontrar na
obra freudiana, tão rica em possibilidades
de leitura, uma psicanálise comprometida
com a produção de modos de vida singulares, menos normalizados e submissos.
Considerando que o cuidado de si é composto por um conjunto de práticas ascéticas e eróticas, que visam à transformação
da própria maneira de se viver, e trazendo
para o primeiro plano do discurso psicanalítico as noções de trabalho (áskesis) e
Eros, acreditamos ser possível estabelecer
uma leitura da psicanálise que retome
aspectos fundamentais da tradição do
cuidado de si. Conjugando estas duas noções, nos arriscaremos a pensar a prática
psicanalítica como uma ascese erótica, ou
317
melhor, como um trabalho erótico, cujo
objetivo terapêutico se deslocaria para o
trabalho de si sobre si e para o exercício
de novos modos de existência, a partir da
constituição de destinos eróticos para a
pulsão. Essa é a nossa hipótese de pesquisa.
Para desenvolvê-la, tentando estabelecer
uma ponte entre a prática psicanalítica e
as técnicas do cuidado de si, realizaremos
uma leitura da psicanálise com as lentes
da dimensão econômica do aparelho psíquico, que implica a inscrição desta no
registro das intensidades e a concepção
do psiquismo como aparelho de captura
e domínio das forças pulsionais. Nesse
sentido, a experiência psicanalítica, enfrentando o risco de sujeição que paralisa
e inviabiliza qualquer pretensão de transformação subjetiva, estaria comprometida
com o exercício da liberdade, entendida
como espaço de mobilidade pulsional, em
um processo de erotização e afirmação da
vida. Da sujeição à liberdade, é a direção
que pretendemos seguir nesta tese, buscando, no cerne da psicanálise atual, os
elementos fundamentais da tradição do
cuidado de si.
Título: Os efeitos subjetivos da
pobreza material e consequências
materiais do empobrecimento
psíquico
Autora: Valéria Wanda da Silva Fonseca
Orientadora: Tânia Coelho dos Santos
Data de defesa: julho/2013
O objetivo desta pesquisa foi delimitar
quais pressupostos teóricos na psicanálise
a serem considerados nas estratégias clínicas de atendimento dos brasileiros oriundos da população de baixa renda, pouco
escolarizada e não familiarizada com o
discurso psicanalítico. O acesso dessa po-
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pulação ao tratamento psicanalítico ainda
é restrito aos poucos serviços públicos e
ou privados de caráter ambulatorial. A
ampliação da oferta desses atendimentos
exige mapeamento dos efeitos subjetivos
da pobreza entre os cidadãos brasileiros.
Ref letiu-se a respeito da constituição
do laço social, da força da religião e da
ciência e seus reflexos na organização da
sociedade, e, em particular, nas famílias
brasileiras, e ainda, sobre a constituição
do sujeito na contemporaneidade. Identificamos a importância do conceito de eu
na obra freudiana, e dos estudos sobre as
relações entre o empobrecimento do eu
e o empobrecimento econômico e social.
A ação humana, particularmente a satisfação das necessidades, desenrola-se na
rede da linguagem, em discurso, e no
campo da ética. O universo simbólico
é transmitido por meio dos enunciados
primordiais, dos códigos e das leis. As
necessidades nunca se apresentam em
estado puro, já que não se tem acesso à
ordem natural. Elas precisam ser faladas,
e sempre perpassadas pelo desejo e pela
demanda. Para Lacan, o que tem status de
necessidade e torna possível a existência
do homem é a diferença sexual: masculino
e feminino. O complexo de castração é o
motor da renegação, que institui o conflito
constitucional do eu. Demanda-se a outro,
outro do laço social que cuide, alimente e
transmita as regras do pacto civilizatório,
ou seja, que ame! Contudo, quanto maior
as exigências pulsionais associadas à precariedade dos recursos externos provindos
da civilização, maiores as dificuldades na
eficácia da renúncia pulsional, e consequentemente maior ‘debilidade’ do eu.
Essa precariedade seria fator de adoecimento psíquico, presente nas neuroses e
na melancolia. Uma característica peculiar
da melancolia é o medo do empobrecimento. Freud alertou-nos sobre a pobreza
que se alastra nas cidades, tal como uma
epidemia social. Faz-se necessário analisar
e diagnosticar quem são os sujeitos que
vivem nos diversos estágios da pobreza,
inclusive os pobres que vivem entre os
ricos, ou seja, todos os sujeitos que se não
forem protegidos pelas benesses do Estado
e ou das famílias abastadas, padecerão
de uma total incompetência para gerir a
própria vida. Ao atualizar a condição ser
da falta, o sujeito pobre desmascara a precariedade do outro social, que geralmente,
por ser marcado pela castração, vacila na
transmissão do saber sobre o que fazer
com a falta que nos é constitucional. Desde
sempre, consideramos como estratégia na
direção do tratamento aprender a contornar os impasses mediante a experiência da
castração e da partilha dos sexos, ambos
por serem a base da constituição psíquica.
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que o artigo intitulado
apresentado para publicação na revista Ágora – Estudos em Teoria Psicanalítica, não foi
publicado ou apresentado para avaliação e
publicação em nenhuma outra revista ou livro,
sendo, portanto, original.
Inicialmente, o trabalho será apreciado pelo
Editor, que enviará ao(s) autor(es) carta ou
e-mail comunicando o início do processo
editorial, caso o encaminhamento do material
esteja de acordo com as normas estabelecidas
pela revista. Em seguida, o manuscrito será
enviado para avaliação de dois pareceristas
anônimos, que poderão rejeitar, recomendar
a publicação com reformulações, ou aceitar
a publicação sem modificações. Caso haja
discordância entre os pareceres quanto à publicação, o trabalho será encaminhado a um
terceiro consultor ad hoc. Os pareceres serão
enviados ao(s) autor(es) para que se justifique
o resultado da avaliação ou para que sejam
realizadas modificações no texto, devendo
o(s) autor(es), neste caso, devolver o trabalho
reformulado no prazo máximo de vinte dias. O
trabalho será reenviado aos pareceristas, que
deverão se pronunciar com relação à revisão
efetuada. Caberá à Comissão Editorial a decisão
final quanto à publicação. Pequenas alterações
no texto poderão ser feitas pela Comissão
Editorial para atender aos critérios e normas
operacionais da revista.
12 Final 36.indd 319
Serão aceitos para publicação na revista Ágora
– Estudos em teoria psicanalítica somente
artigos que tenham como autor pelo menos
um mestre ou doutor. Haverá exceção a essa
regra no caso de autores que tenham notório
saber, sendo a Comissão Editorial responsável
por encaminhar os artigos destes autores para
avaliação dos pareceristas.
II. DIREITOS AUTORAIS
A aprovação dos textos implica a cessão imediata e sem ônus dos direitos de publicação nesta
revista, a qual terá exclusividade de publicá-los
em primeira mão. O autor continua­rá a deter os
direitos autorais para publicações posteriores.
III. APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS
O autor deverá enviar o trabalho em duas cópias
impressas e uma cópia eletrônica – em disquete
(Word for Windows – versão 6.0 ou superior e
com extensão .doc) ou via e-mail. O texto deverá ser digitado em fonte Times New Roman,
corpo 12, formato letter, espaço 1,5 linha. Os
originais enviados não serão devolvidos.
As resenhas não poderão exceder o total de
três laudas.
Folha de rosto – Título em português; nome
do autor, seguido de créditos acadêmicos
e profissionais (no máximo três titulações);
endereço postal e eletrônico do autor; número
de telefone/fax.
Folha de resumo – Resumo em português (máximo de 100 palavras – aproximadamente 580
caracteres com espaço); palavras-chave em
português (no mínimo três e no máximo cinco
palavras); título em inglês, compatível com o
título em português; abstract em inglês, compatível com o texto do resumo; keywords em
inglês, compatíveis com as palavras-chave.
Texto – O corpo do texto (sem contar as folhas
de rosto e de resumo) deverá apresentar somente o título do trabalho e conter de 14 a 20
laudas com 2.000 caracteres com espaço cada
uma. O texto não deverá conter menos de 28 mil
nem mais de 40 mil caracteres com espaço.
Padrão das notas – As notas, utilizadas caso
sejam indispensáveis, devem ser indicadas por
algarismos arábicos ao longo do texto e digita­
16/12/2014 20:54:45
das no pé da página que contém a nota, com
a utilização de opção automática do Word.
IV. REFERÊNCIAS E CITAÇÕES
A referência a autores deverá ser feita no corpo
do texto, somente mencionando o sobrenome,
acrescido do ano da obra.
Ex.: (GREEN, 1982)
Em caso de autores cujo ano do texto ou da
obra é importante, colocar o ano em que foi
escrito o texto ou a obra seguido do ano da
edição utilizada.
Ex.: (FREUD, 1915/1974)
Caso haja coincidência de datas de um texto
ou obra, distinguir com letra (1915a, 1915b),
respeitando a ordem de entrada no artigo.
Em caso de compilação de textos de um mesmo
autor em uma obra, colocar o ano do texto seguido do ano da edição da obra utilizada.
Ex: (LACAN, 1946/1966)
Caso haja vários autores, todos deverão ser
citados, usando-se “e” ou “&”.
Ex: (PRIGOGINE & STENGERS, 1984)
Em caso de citações textuais, entre aspas,
deverá ser indicada a página.
Ex: “É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar” (FOUCAULT,
1984, p.28).
Citações textuais com menos de três linhas,
entre aspas, deverão ser mantidas no corpo
do texto.
Citações textuais com mais de três linhas deverão aparecer em destaque, observando um
espaço do tabulador, espaço simples, e digi­
tadas em Times New Roman, corpo 10.
VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
As referências bibliográficas devem aparecer
no final do artigo, em ordem alfabética de
sobrenome. A lista se guiará pela ordem cronológica dos textos, ou seja, as obras de um
mesmo autor devem ser listadas segundo o
ano de publicação das mesmas.
Devem obedecer à seguinte ordem de itens:
Livro – sobrenome em caixa alta, iniciais do
autor, ano da edição – antecedido, se for o caso,
pelo ano em que foi escrito – entre parênteses,
título em itálico, cidade, editora.
Ex: FOUCAULT, M. (1984) Microfísica do poder.
Rio de Janeiro: Graal.
LACAN, J. (1959-1960/1988) O Seminário livro 7,
A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar.
Citação de Freud – sobrenome em caixa alta,
ini­ciais do autor, ano em que foi escrito e ano
da edição entre parênteses, título da edição
utilizada em itálico, cidade, editora. Em seguida, o título do artigo entre aspas, volume
e páginas.
12 Final 36.indd 320
Ex.: FREUD, S. (1975) The standard edition of
the complete psychological works. Londres:
Hogarth Press.
(1900) “The Interpretation of dreams”, v.IV e
V, p.1-734.
(1915) “Repression”, v.XIV, p.141-158.
Artigo de livro – sobrenome em caixa alta, ini­
ciais do autor, ano da edição entre parênteses,
título do artigo entre aspas, seguido de in (sem
itálico) e do nome do coordenador, título do
livro em itálico, cidade, editora.
Ex.: ANDRADE, R. (1995) “A teoria das pulsões
no romantismo alemão”, in MOURA, A.H. (org.).
As pulsões. São Paulo: Escuta.
Capítulo ou parte de livro – sobrenome em
caixa alta, iniciais do autor, ano da edição
entre parênteses, título da parte en­tre aspas,
seguido de in e do título do livro em itálico,
cidade, editora.
Ex.: LACAN, J. (1946/1966) “Propos sur la causalité psychi­que”, in Écrits. Paris: Seuil.
Artigo de revista – sobrenome em caixa alta,
iniciais do autor, ano da edição entre parênteses, título do artigo (sem aspas), nome da
revista em itálico, volume (v.), número (n.),
cidade, editora, páginas (usar p. para o singular
e o plural).
Ex.: SAFRA, G. (2000) Uma nova modalidade
psicopatológica na pós-modernidade: os
espectrais. Psychê, ano IV, n.6. São Paulo:
Unimarco, p.45-51.
Dissertações e teses – sobrenome em caixa
alta, iniciais do autor, ano de defesa, título
entre aspas, tipo de trabalho, programa, instituição, cidade.
Ex.: VIDAL, P.E.V. (2005) “Declinando o declínio
do pai”. Tese de Doutorado, Programa de PósGraduação em Teoria Psicanalítica, Instituto
de Psicologia, Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
Artigo publicado em revista eletrônica – sobrenome em caixa alta, iniciais do autor, ano de
publicação entre parênteses, título do artigo,
nome da revista em itálico, volume (v.), número
(n.), endereço eletrônico e data da consulta.
Ex.: DI MATTEO, V. (2005) Fenomenologia do
espírito e psicanálise: aproximações. Revista
Eletrônica Estudos Hegelianos, ano II, n.2.
Disponível em http://w w w.hegelbrasil.org
Acesso em 10/3/2006.
Endereço para remessa de trabalhos
Revista Ágora – Estudos em Teoria Psicanalítica
A/c Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica – Instituto de Psicologia UFRJ
Campus Praia Vermelha
Avenida Pasteur 250 fundos
Urca 22290-240 Rio de Janeiro RJ
[email protected]
16/12/2014 20:54:45
ROTEIRO DE PARECER
O trabalho deve ser avaliado levando em
consideração os seguintes itens a serem
devidamente comentados:
Organização do trabalho
Adequação do título
Clareza e concisão do resumo
Pertinência das palavras-chave
Inserção na área de abrangência da revista
ConteÚdo
Delimitação e definição do foco do trabalho
Explicitação das premissas do trabalho
O parecer deve ser conclusivo quanto à
recomendação final (favorável, favorável
com modificações ou desfavorável).
Como este parecer será enviado para o
autor, é importante que venha com uma
justificativa detalhada, destacando as
modificações e sugestões necessárias, com
indicação das passagens e sua localização
(nº da página) no artigo.
No caso de parecer desfavorável,
solicitamos que explicite os motivos.
A Revista Ágora preserva o sigilo de seus
consultores.
Consistência do desenvolvimento da
questão
Conclusões decorrentes da argumentação
apresentada
Adequação da bibliografia ao problema
abordado
Redação
Gramática/ortografia
Clareza na expressão das ideias
Citações apresentadas corretamente
Apresentação, organização e tamanho do artigo
Acordo com as “normas de publicação”
Julgamento final
Favorável à publicação sem modificações
Favorável à publicação com modificações
Desfavorável à publicação
12 Final 36.indd 321
16/12/2014 20:54:45
ÚLTIMOS NÚMEROS
Um novo lance de dados: psicanálise e
medicina na contemporaneidade.
Organizado por Joel Birman, Isabel Fortes e
Simone Perelson
Silvia Alexim Nunes
Dissertações e teses 2011
VOLUME XV NÚMERO 1
Janeiro/junho de 2012
Artigos
VOLUME XV NÚMERO 2
Julho/dezembro de 2012
O SUJEITO E SEUS MODOS DE GOZO
Christian Hoffmann
Artigos
A “bela morte”
Laurie Laufer
Elucubrações sobre um sonho
elucidativo: o erro fetichista e o
acerto freudiano
Simone Perelson
Os processos subjetivos e os jogos
de verdadeda psicanálise frente à
transformação do lugar do pai
Maria Regina dos Santos Prata
O afeto e a reflexão
Sylvain Tousseul
TRAUMA: O AVESSO DA MEMÓRIA
Maria Manuela Assunção Moreno e Nelson
Ernesto Coelho Junior
Sublimação: da construção ao
resgate do conceito
Zeila Facci Torezan e Fernando Aguiar Brito
DEFESA E TRAUMA: DO PROJETO À
ATUALIDADE
Sissi Vigil Castiel, Alexandra Dal Prá
Sibemberg, Luciana Salgado Firpo e
Rosangela Maria Martins da Silva
O papel da ilusão na psicanálise
freudiana
Zeferino Rocha
DA hamartiaΑCOMO FALTA E A DIMENSÃO
TRÁGICA DA VIDA NA PSICANÁLISE
Hugo Juliano Duarte Matias
HYSTORIZAÇÃO E ROMANCE: A
CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM NO
DIÁRIO ÍNTIMO DE ADOLESCENTES
Nádia Laguárdia de Lima e Ana Lydia Bezerra
Santiago
O CASO MARYLIN MONROE: EVIDÊNCIAS
DA FORCLUSÃO DO SUJEITO E DE SEU ATO
Jéferson Machado Pinto e Márcia Rosa
Lágrimas nas profundezas:
alegorias utópicas em Moby Dick e o
nominalismo na obra de William de
Ockham
Estevan de Negreiros Ketzer e Edson Luiz
André de Sousa
A metafísica do olhar: breve
interlocução com Sartre, MerleauPonty e Lacan
Paulo de Carvalho Ribeiro
O vampiro, um não morto ainda vivo
Max Kohn
A REALIZAÇÃO IMAGINÁRIA DO DESEJO
INCONSCIENTE NUM GRUPO TERAPÊUTICO
DE CRIANÇAS EM IDADE PRÉ-ESCOLAR
Jefferson Silva Krug e Nedio Seminotti
A neurose obsessiva sob a ótica de
Melanie Klein
Marcos Leandro Klipan e Gustavo Adolfo
Ramos Mello Neto
MODALIDADES DO ATO NA
PARTICULARIDADE DA ADOLESCÊNCIA
Carla Almeida Capanema e Angela Vorcaro
A linguagem das resistências:
considerações sobre o trauma na
clínica psicanalítica
Fernanda Canavêz e Regina Herzog
PEIRCE, LACAN E A QUESTÃO DO SIGNO
INDICiAL
Mauricio José d’Escragnolle Cardoso
Resenhas
A PSICANÁLISE, SEUS CONTORNOS E
SUAS BORDAS
Limites da clínica. Clínica dos limites.
Organizado por Cláudia Amorim Garcia e
Marta Rezende Cardoso
Maria Teresa de Melo Carvalho
NOVOS HORIZONTES NO DIÁLOGO ENTRE
PSICANÁLISE E MEDICINA
12 Final 36.indd 322
Resenha
Um livro fundamental para todo
analistaem formação
Fundamentos da psicanálise de Freud a
Lacan, a clínica da fantasia, v.2, de Marco
Antonio Coutinho Jorge
Vanisa Maria da Gama Moret Santos
Homenagem
Homenagem a Jean Laplanche
Christophe Dejours e Francis Martens
16/12/2014 20:54:45
VOLUME XV / número especial
dezembro DE 2012
VOLUME XVI / número especial
abril DE 2013
Editorial
Editorial
Artigos
Artigos
Música e um pouco de silêncio: da voz
ao sujeito
Carolina Mousquer Lima e Maria Cristina Poli
Discurso freudiano e tradição
judaica
Joel Birman
Para além da ilusão: o real na
crítica freudiana à religião
Claudia Maria Silva Moreira e Jeferson
Machado Pinto
Do vazio ao objeto: das Ding
e a sublimação em Jacques Lacan
Ariana Lucero e Ângela Vorcaro
Crítica do empirismo aplicado
à psicopatologia clínica: da
esterilidade do DSM a uma saída pela
psicanálise
Tereza Pinto
A psicose na contemporaneidade
e seus novos sintomas: do pathos ao
orthos
Rogério Paes Henriques
Erotomania: os impasses do amor
e uma resposta psicótica
Juliana Bressanelli e Antônio M. Ribeiro
Teixeira
Adolescência: muda psíquica
à procura de continentes
Nathalie de Kernier e Dominique Cupa
Críticas e alternativas de Winnicott
ao conceito de pulsão de morte
Leopoldo Fulgencio
O lugar do perito e o lugar do
analista na abordagem do louco
infrator
Romina Moreira de Magalhães Gomes
Tradução
Mal-estar na civilização e desastre
totalitário
François Villa
Resenhas
Verdade e metalinguagem em Lacan
Estilo e verdade na perspectiva da crítica
lacaniana à metalinguagem, de Gilson de
Paulo Moreira Iannini
Christian Ingo Lenz Dunker
A psicanálise é contra-hegemônica
Leituras da clínica, escritas da cultura, de
Maria Cristina Poli
Amadeu de Oliveira Weinmann
12 Final 36.indd 323
O estatuto conceitual
do inconsciente em Freud e algumas
de suas implicações para a prática
psicanalítica
Helio Honda
“Medô medo”: Investigação sobre
a fobia em Freud, Lacan e autores
contemporâneos a partir
de um caso clínico
André Ehrlich e Vinicius Anciaes Darriba
Manuscritos freudianos inéditos:
das Ich und das Es
Juan Carlos Cosentino
Do fenômeno psicossomático
ao sintoma: a aderência do sujeito
ao diagnóstico médico e o trabalho
analítico
Doris Rinaldi, Roseane Freitas Nicolau e
Claudia Escórcio Gurgel do Amaral Pitanga
Escrita no corpo: gozo e laço social
Rita Manso e Heloisa Caldas
O a posteriori transferencial
dos traumas do início da vida
Jacques André
Bebês com risco de autismo:
o não-olhar do médico
Mariana Rodrigues Flores e Luciane Najar
Smeha
Resenhas
Novos sentidos da psicanálise
Sofrimentos narcísicos, organizado por Julio
Verztman, Regina Herzog, Teresa Pinheiro e
Fernanda Pacheco-Ferreira
Mariana de Toledo Barbosa
A potência da dor
A dor psíquica, de Isabel Fortes
Andréa Barbosa de Albuquerque
16/12/2014 20:54:45
VOLUME XVI / número 1
Janeiro/junho de 2013
VOLUME XVI / número 2
Julho/dezembro de 2013
Artigos
Artigos
Do debate sobre o Édipo à dissolução
do sujeito em Foucault e Lacan
Marlos Terêncio
O estruturalismo em Jacques
Lacan:
da apropriação à subversão da
corrente estruturalista no
estabelecimento de uma teoria do
sujeito do inconsciente
Luis Flávio Silva Couto e Luis Flávio Silva
Couto
As ressonâncias subjetivas
da mudança de nome
Rajaa Stitou
Interdito e silêncio: análise
de alguns enunciados
Fabio Elias Verdiani ATfouni
Cultura e desejo: a construção
da identidade adicta no cenário
contemporâneo
Roberta Giacobone e Mônica Kother Macedo
As manifestações do ato e sua
singularidade em suas relações
com o feminino
Cristina Moreira Marcos e Carla de Abreu
Machado Derzi
Repressão e inconsciente no
desenvolvimento da metapsicologia
freudiana
Fátima Caropreso e Richard Theisen
Simanke
Desvio do pensamento e da cultura
nas novlínguas (Klemperer, Orwell,
Canetti)
Claudine Haroche
O corpo e o feminino enquanto
lugares de subjetivação possível:
O aporte das artes visuais
Alessandra Monachesi Ribeiro
Revisitando o primeiro modelo
freudiano do trauma: sua
composição, crise e horizonte
de persistência na teoria
psicanalítica
Antônio Luiz Pereira de Castilho
O complexo de Édipo nas obras de
Klein e Winnicott: comparações
Priscila Toscano de Oliveira Marchiolli e
Leopoldo Fulgencio
O índice de um enigma: o
inconsciente
e o fenômeno da premonição
Ronaldo Manzi Filho
Laço social na psicose: impasses
e possibilidades
Fabio Malcher e Ana Beatriz Freire
Por uma língua-objeto: o avesso do
gozo na cultura de consumo
Milena Maria Sarti e Leda Verdiani Tfouni
A psicanálise no hospital:
dos impasses às condições
de possibilidades
Maíla Do Val Machado e Daniela Sheinkman
Chatelard
A fantasia no ciberespaço:
a disponibilização de múltiplos
roteiros virtuais para a
subjetividade
Márcio Rimet Nobre e Jacqueline de
Oliveira Moreira
Dissertações de mestrado
e teses de doutorado/2012
A psicanálise é uma ciência e
o discurso analítico é uma práxis?
Tania Coelho dos Santos
A castração e seus efeitos
estilísticos: da parresia
foucaultiana a uma postura
psicanalítica
Amos Squverer
Resenha
As categorias do sujeito na
contemporaneidade
O sujeito na contemporaneidade, de Joel
Birman
Isabel Fortes
12 Final 36.indd 324
16/12/2014 20:54:46
VOLUME XVII / número 1
Janeiro/junho de 2014
Artigos
A encenação dos sonhos: imagens de
Freud e de Benjamin
Alessandra Affortunati Martins Parente
O self como centro de ação em James
e Winnicott
Claudia Passos-Ferreira
Psicanálise e estética da recepção:
desacordos e entrecruzamentos
Gustavo Henrique Dionisio
A voz na experiência psicanalítica
Angélica Bastos
Maternidade do exílio. Quando
o deslocamento favorece a
fertilidade
Elise Pestre
Sobre o amor e suas falhas: uma
leitura da melancolia em psicanálise
Felipe Castelo Branco
A construção do caso clínico
como forma de pesquisa em
psicanálise
Alexandre Costa Val e Mônica Assunção Costa
Lima
O diagnóstico fonoaudiológico na
paralisia cerebral: o sujeito entre a
fala e a escuta
Giuliana Bonucci Castellano e Regina Maria
Ayres de Camargo Freire
Conceitos fundamentais dos métodos
projetivos
Elza Rocha Pinto
Resenha
“Agiste conforme o teu desejo?”
Antígona e a ética trágica da psicanálise, de
Ingrid Vorsatz
Betty B. Fuks
VOLUME XVII / número especial
AGOSTO de 2014
Editorial
Artigos
Etat limite, adolescence, cannabis et
cocaïne
Didier Lauru
Drogas, performance e
psiquiatrização
na contemporaneidade
Joel Birman
Para uma clínica do uso de álcool e
drogas
com adolescentes das comunidades
do Rio de Janeiro
Francisco Leonel F. Fernandes
O abuso de substâncias tóxicas na
adolescência:
uma tentativa de incorporação do
objeto?
Silvia Maria Abu-Jamra Zornig
Dependência e adolescência: a recusa
da diferença
Marta Rezende Cardoso
Dépendance aux images et
élaboration
de la violence
Florian Houssier
Agressions sexuelles
et dépendance à l’adolescence
Jean-Yves Chagnon
Dépendance à l’adolescence : le vide
par l’excès
Teresa Rebelo
Separation, dependance et depression
a l’adolescence
François Marty
Embaraço, humilhação e
transparência psíquica:
O tímido e sua dependência do olhar
Julio Verztman
Proliferação das #hashtags: lógica
da ciência, discurso e movimentos
sociais contemporâneos
Fernanda Costa-Moura
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16/12/2014 20:54:46
Projeto gráfico e diagramação
Areté Programação Visual
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Padronização de textos
Sonia Cardoso
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Pré-impressão e impressão
Sermograf
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Impressão da capa em cartão supremo
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Tipografia utilizada
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Impresso em dezembro de 2014
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Estudos em Teoria Psicanalítica
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Artigos
Verdade e ideologia na psicanálise e no capitalismo
Oswaldo França Neto
“Novos sintomas” e declínio da função paterna:
um exame crítico da questão
Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso
e Roberto Calazans
A crítica como método no retorno a Freud
Marta Regina de Leão D’Agord
Um percurso sobre o falo na psicanálise:
primazia, querela, significante e objeto a
Ana Costa e Flavia Bonfim
Considerações psicanalíticas sobre os jogos
de esconder: do puti ao esconde-esconde
Humberto Moacir de Oliveira e Jacques Fux
Miragens perimetrais: sobre o erro como limite
Paulo Sérgio de Souza Jr.
O imaginário coletivo da equipe de enfermagem
sobre a interrupção da gestação
Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune
e Tânia Maria José Aiello Vaisberg
Resenha
Pela pluralidade da psicanálise
Psicanálise entrevista, v.1, organizado por Mara Selaibe
e Andrea Carvalho
Ana Patitucci
Dissertações e Teses
Estudos em T­eoria Psicanalítica
VOLUME XVII NÚMERO 2
Julho / dezembro DE 2014
ISSN 1516-1498
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica UFRJ
Alguns casos, nem neuróticos,
nem abertamente psicóticos
Christian Hoffmann e Rosana Alves Costa
Estudos em Teoria Psicanalítica
Novas expressões da religiosidade:
o que elas dizem sobre o sujeito em sociedade hoje
Anna Carolina Lo Bianco e Natália Vidal
v. XVII
n. 2
ISSN 1516-1498
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica
Instituto de Psicologia UFRJ
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