Um percurso sobre o falo na psicanálise
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Um percurso sobre o falo na psicanálise
Artigos Verdade e ideologia na psicanálise e no capitalismo Oswaldo França Neto “Novos sintomas” e declínio da função paterna: um exame crítico da questão Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso e Roberto Calazans A crítica como método no retorno a Freud Marta Regina de Leão D’Agord Um percurso sobre o falo na psicanálise: primazia, querela, significante e objeto a Ana Costa e Flavia Bonfim Considerações psicanalíticas sobre os jogos de esconder: do puti ao esconde-esconde Humberto Moacir de Oliveira e Jacques Fux Miragens perimetrais: sobre o erro como limite Paulo Sérgio de Souza Jr. O imaginário coletivo da equipe de enfermagem sobre a interrupção da gestação Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune e Tânia Maria José Aiello Vaisberg Resenha Pela pluralidade da psicanálise Psicanálise entrevista, v.1, organizado por Mara Selaibe e Andrea Carvalho Ana Patitucci Dissertações e Teses Estudos em Teoria Psicanalítica VOLUME XVII NÚMERO 2 Julho / dezembro DE 2014 ISSN 1516-1498 Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica UFRJ Alguns casos, nem neuróticos, nem abertamente psicóticos Christian Hoffmann e Rosana Alves Costa Estudos em Teoria Psicanalítica Novas expressões da religiosidade: o que elas dizem sobre o sujeito em sociedade hoje Anna Carolina Lo Bianco e Natália Vidal v. XVII n. 2 ISSN 1516-1498 Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica Instituto de Psicologia UFRJ 9 771516 141211 Ágora capa vXVII n2.indd 1 16/12/2014 20:59:27 02 Oswaldo 36.indd 200 16/12/2014 19:34:17 Estudos em Teoria Psicanalítica 00 Preliminares 36.indd 169 16/12/2014 19:21:28 ÁGORA Estudos em teoria psicanalítica Editor Responsável Joel Birman Revista semestral do Programa de Pósgraduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Comissão Executiva Fenanda Pacheco Ferreira, Simone Perelson Publica trabalhos originais referentes a pesquisas teóricas em psicanálise, no sentido estrito ou nas articulações com outros campos do saber, e pesquisas em clínica psicanalítica, desde que acompanhadas de discussão teórica ou crítica. Publica, ainda, conferências, traduções, artigos de valor histórico, comunicações breves e resenhas de interesse para o campo da psicanálise. Os artigos inéditos deverão ser encaminhados ao Editor Responsável e estar de acordo com as Normas para Publicação que constam das páginas finais da Revista. Os artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião da Comissão Editorial. Secretária-executiva Luiz Paulo Leitão Martins Comissão Editorial Angélica Bastos, Ana Beatriz Freire, Anna Carolina Lo Bianco, Fernanda Costa-Moura, Fernanda Pacheco Ferreira, Joel Birman, Maria Cristina Poli, Marta Rezende Cardoso, Regina Herzog, Simone Perelson, Tania Coelho dos Santos Conselho Editorial-Científico Alain Vanier Université Paris VII André Michels Psiquiatra e psicanalista, Luxemburgo Christian Hoffmann Université de Poitiers Edson L. A. de Sousa Universidade Federal do Rio Grande do Sul Elizabeth Roudinesco Université de Paris VII Ernildo Stein Universidade Federal do Rio Grande do Sul John Forrester Cambridge University agradecimento aos PARECERISTAS Ana Lila Lejarraga Andrea Seixas Magalhães Betty Fuks Christian Dunker Cláudia Braga Andrade Doris Rangel Diogo Marcio Tavares D’Amaral Maria Inês Garcia de Freitas Bittencourt Nelma Cabral Paulo Vidal Regina Herzog Roberto Menezes de Oliveira Theodor Lovenkron Vincenzo Di Matteo Waldir Beividas Juan Carlos Cosentino Universidad de Buenos Ayres Judith Feher Gurewich Center for Literary and Cultural Studies, Harvard University Jurandir Freire Costa Universidade do Estado do Rio de Janeiro Luís Augusto Monnerat Celes Universidade de Brasília Luiz Fernando Dias Duarte Universidade Federal do Rio de Janeiro Mário E. C. Pereira Unicamp Michel Plon CNRS/Université Paris VII Olivier Douville Université Paris X Nanterre Vladimir Pinheiro Safatle Universidade de São Paulo Zeferino Rocha PUC Pernambuco Zeljko Loparic PUC São Paulo e Unicamp 00 Preliminares 36.indd 170 16/12/2014 19:21:29 ISSN 1516-1498 Estudos em Teoria Psicanalítica VOLUME XVII NÚMERO 2 julho/dezembro DE 2014 Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica Instituto de Psicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 00 Preliminares 36.indd 171 16/12/2014 19:21:29 172 Laoreet Dolore Magna Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida sem a permissão dos editores. APOIo Ministério da Educação Ministério da Ciência e Tecnologia FONTES DE INDEXAÇÃO PsycINFO (APA) Lilacs/Bireme Index-Psi Periódicos (CFP) Clase Qualis (A2) Disponível em versão de texto integral no serviço SciELO – Scientific Eletronic Library Online www.scielo.br/agora Revista associada à ABEC – Associação Brasileira de Editores Científicos Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica Instituto de Psicologia UFRJ Avenida Pasteur 250, Pavilhão Nilton Campos Urca 22290-240 Rio de Janeiro RJ [email protected] www.psicologia.ufrj.br/teoriapsicanalitica Assinaturas, distribuição e vendas Contra Capa Livraria Rua de Santana 198 Loja Centro 20230-261 Rio de Janeiro RJ Tel e fax (55 21) 2508-9517 / 2556-2530 [email protected] Catalogação na fonte Biblioteca do CFCH/UFRJ CDD 150.195 Ágora : estudos em teoria psicanalítica. vol. I, n. 1 (1998) – Rio de Janeiro: Pós-graduação em Teoria Psicanalítica IP/UFRJ. vol. XVII, número 2. Rio de Janeiro, julho/dezembro, 2014. Semestral. ISSN 1516-1498 00 Preliminares 36.indd 172 1. Psicanálise – Periódicos. I. IP/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. 16/12/2014 19:21:30 Sumário Duis autem vel eum iriure dolor in hendrerit in vulputate 173 ISSN 1516-1498 Artigos Novas expressões da religiosidade: o que elas dizem sobre o sujeito em sociedade hoje_______ 177 Anna Carolina Lo Bianco e Natália Vidal Verdade e ideologia na psicanálise e no capitalismo______ 187 Oswaldo França Neto “Novos sintomas” e declínio da função paterna: um exame crítico da questão_______________________________ 201 Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso e Roberto Calazans A crítica como método no retorno a Freud________________ 215 Marta Regina de Leão D’Agord Um percurso sobre o falo na psicanálise: primazia, querela, significante e objeto a___________________________ 229 Ana Costa e Flavia Bonfim Alguns casos, nem neuróticos, nem abertamente psicóticos_______________________________ 247 Christian Hoffmann e Rosana Alves Costa Considerações psicanalíticas sobre os jogos de esconder: do puti ao esconde-esconde__________________ 255 Humberto Moacir de Oliveira e Jacques Fux Miragens perimetrais: sobre o erro como limite___________________________________ 271 Paulo Sérgio de Souza Jr. O imaginário coletivo da equipe de enfermagem sobre a interrupção da gestação__________________________ 285 Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune e Tânia Maria José Aiello Vaisberg ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 169-176 00 Preliminares 36.indd 173 16/12/2014 19:21:30 174 Laoreet Dolore Magna Resenha Pela pluralidade da psicanálise___________________________ 299 Psicanálise entrevista, v.1, organizado por Mara Selaibe e Andrea Carvalho Ana Patitucci Dissertações e Teses Dissertações________________________________________________ 303 Teses________________________________________________________ 310 ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 169-176 00 Preliminares 36.indd 174 16/12/2014 19:21:30 Contents Duis autem vel eum iriure dolor in hendrerit in vulputate 175 ISSN 1516-1498 Articles New expressions of religiosity: what they say about subjectivity and society today_____________________ 177 Anna Carolina Lo Bianco and Natália Vidal Truth and ideology in capitalism and psychoanalysis_________________________________________ 187 Oswaldo França Neto “New symptoms” and paternal function decline: a critical examination of the question____________________ 201 Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso and Roberto Calazans The critique as method in the return to Freud____________ 215 Marta Regina de Leão D’Agord A course in psychoanalysis about the phallus: primacy, quarrel, significant and object a________________ 229 Ana Costa e Flavia Bonfim Some cases neither neurotics nor obviously psychotics___________________________________ 247 Christian Hoffmann and Rosana Alves Costa Psychoanalytic considerations on hide-and-seek games: from Puti to Peekaboo_______________________________ 255 Humberto Moacir de Oliveira and Jacques Fux Perimetrical mirages: on error as a limit_________________ 271 Paulo Sérgio de Souza Jr. The collective imaginary of the nursing staff about pregnancy’s interruption___________________________ 285 Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune and Tânia Maria José Aiello Vaisberg ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 169-176 00 Preliminares 36.indd 175 16/12/2014 19:21:30 176 Laoreet Dolore Magna Review For the plurality of psychoanalysis_______________________ 299 Psicanálise entrevista, v.1, organizado por Mara Selaibe and Andrea Carvalho Ana Patitucci Dissertations and Theses Dissertations_______________________________________________ 303 Theses_______________________________________________________ 310 ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 169-176 00 Preliminares 36.indd 176 16/12/2014 19:21:30 Artigos Novas expressões da religiosidade: o que elas dizem sobre o sujeito em sociedade hoje Anna Carolina Lo Bianco e Natália Vidal Anna Carolina Lo Bianco Professora do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Bolsista do CNPq. Natália Vidal Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Resumo: Nas últimas décadas surgiram novas expressões da religiosidade, manifestadas na proliferação das seitas engendradas numa dimensão de contrato e troca entre os fiéis e Deus. O artigo as compara com religiões tradicionais orientadas por um pacto que, ao contrário, mantém a referência à alteridade e a impossibilidade de um arbítrio frente aos desígnios de Deus. Para além das semelhanças que as unem — marcadas todas pela mesma busca da felicidade e do alívio para o mal-estar —, há diferenças acentuadas entre elas, que apontam para distintas configurações do laço social e do sujeito que delas é efeito. Palavras-chave: Psicanálise, religiões, seitas, contrato, pacto. Abstract: New expressions of religiosity: what they say about subjectivity and society today. In the last decades new expressions of religiosity have arisen in the form of sects that entail a dimension of contract and exchange between the faithful and God. The present article compares them with traditional religions that are guided by the notion of a pact. The former keeps the reference to alterity and considers it impossible for people to arbitrate when facing God’s will. In spite of their similitude — both sects and traditional religions are in search of happiness and relief from all kinds of discomfort in society — there are important differences between them pointing to diverse social bonds and hence different subjectivities. Keywords: Psychoanalysis, religions, sects, contract, pact. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 177-186 01 Lo Bianco 36.indd 177 16/12/2014 22:09:35 178 Anna Carolina Lo Bianco e Natália Vidal B asta uma olhada superficial na paisagem das principais cidades brasileiras, para vermos a profusão de monumentais construções que abrigam um sem número de templos das mais variadas seitas. Surgidas, em geral, há pouco mais de duas décadas, indicam a ubiquidade do que podemos considerar novas expressões da religiosidade. Um olhar psicanalítico nos permite localizar no constante recurso às novas religiões e no sucesso que alcançam importante dimensão do tipo de vínculo que prevalece em nossa vida em sociedade. Os cientistas sociais muitas vezes apontam para o poder organizador não desprezível destes movimentos (por exemplo, BOURDIEU, 1987). E não seria difícil, na comparação entre famílias que se afiliam às seitas e as que não o fazem, reconhecermos os efeitos positivos que o pertencimento a um grupo religioso frequentemente traz — sobretudo se pensamos em uma sociedade violenta, com os alarmantes índices de criminalidade — em especial homicídios como os que caracterizam nossas grandes cidades e suas populações. No entanto, acreditamos ver nas seitas efeitos apaziguadores que devem ser questionados, pois eles próprios, numa reviravolta não muito complexa, poderão ser encontrados quase sempre nas mesmas raízes dos fenômenos de violência. Hoje, grande parte dos conflitos em curso em diferentes partes do globo, a despeito de suas características e causas diversas, traz, entre estas últimas, motivos religiosos. A intolerância que neles têm lugar e seu correlato necessário — a violência — colocam em lados opostos até os adeptos de uma mesma religião. Por isso, é interessante nos perguntarmos que subjetividades estão aí implicadas e como elas se articulam e sustentam os laços sociais que habitamos (LO BIANCO, 2007). A partir daí, podemos esboçar uma diferença relevante e uma inflexão marcante que se anunciam na vida social, refletindo-se nas instituições religiosas, que deixam então de ser consideradas apenas como uma resposta homogênea ao mal-estar e ao sofrimento com que nos defrontamos no dia a dia da cultura, para serem indicadores privilegiados das circunstâncias da própria vida cultural. A religião do pacto Ao criar o que foi considerado por Lacan (1967-1968/2001) o último mito moderno — Totem e tabu —, Freud (1913/1996) encontra os meios para falar da primeira forma de manifestação religiosa: o totemismo. Reconhece então a sua articulação necessária com configurações sociais e obrigações morais que constituem estas últimas. Macho e forte, o pai era senhor da horda inteira, possuía todas as mulheres e exercia poder ilimitado e violento sobre os filhos, os quais acabaram por assassiná-lo (FREUD, 1913/1996). Entretanto, se o haviam odiado, veneravam-no ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 177-186 01 Lo Bianco 36.indd 178 16/12/2014 22:09:35 Novas expressões da religiosidade: o que elas dizem sobre o sujeito em sociedade hoje 179 como arquétipo e, em realidade, cada um deles queria ocupar o seu lugar. Ao parricídio sucedeu-se uma época durante a qual os irmãos lutavam entre si pela herança paterna; mas logo a lembrança da façanha que os havia livrado do estado de avassalamento em que se encontravam, assim como o sentimento que partilhavam acerca daquele tempo, levou-os finalmente a se unirem e a fazerem um pacto. Freud diz que: “nasce assim a primeira forma de organização social com renúncia do pulsional, reconhecimento de obrigações mútuas, estabelecimento de certas instituições que se declararam invioláveis (sagradas); vale dizer: os começos da Moral e do Direito” (1939/1996, p.79). Desta maneira, estabeleceram-se o tabu do incesto e as leis da exogamia que sustentam a organização social (FREUD, 1913/1996). É nesta configuração social regida pelo pacto que surge o totemismo — a primeira indicação da religião na história humana —, que encontra no totem a figura paterna e tem no banquete totêmico a expressão da ambivalência de sentimentos para com o pai assassinado e amado (idem). A força do mito de origem freudiano está nas condições que ele oferece para que venham a se alinhar no mesmo fio todas as religiões que então se sucederam (FREUD, 1939/1996). Elas sustentam, e ao mesmo tempo revelam, o pacto sobre o qual se erige a sociedade. Por certo, o sujeito que resulta de tal arranjo social é propriamente sujeito ao pacto — portanto, às renúncias e limites que este institui (CZERMAK, 2013). Vale dizer, é aquele que deixa de resolver os conflitos com os meios da violência exercida por um só, ou por indivíduos, e se submete às instituições que expressam o poder de uma comunidade. As leis dessa nova associação determinam agora a medida em que cada um deve renunciar à liberdade individual de obter o seu bem a qualquer custo, para que venha a ser possível a convivência em sociedade, assim como, ao mesmo tempo, o exercício do desejo. Surge, nas boas hipóteses, o sujeito obrigado a afastar ou pelo menos a manter sob controle suas demandas, tendências e inclinações, que serão atendidas apenas até o ponto em que não se sobreponham ao bem comum (FREUD, 1929/1996). A instauração dos monoteísmos, elegendo um deus-pai único que governa sem limitação, bem como o rito da comunhão, quando os fiéis incorporam a carne e o sangue de Jesus, são exemplos que repetem o sentido e o conteúdo do antigo banquete totêmico. Guardam a dimensão de partilha dos mesmos sentimentos, os quais garantem um lugar simbólico para o pai, entre os irmãos da horda (FREUD, 1939/1996). Contudo, subjacente às obrigações morais e aos marcos institucionais que advém como herança das sociedades totêmicas, encontra-se um aspecto ainda mais fundamental e determinante para o sujeito: seu advento por referência ao desejo (LACAN, 1959-1960/1997). Ora, em Totem e Tabu (1913/1996) Freud chama ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 177-186 01 Lo Bianco 36.indd 179 16/12/2014 22:09:35 180 Anna Carolina Lo Bianco e Natália Vidal a atenção para o caráter primordial e imperativo do desejo sobre a moral e as demais aquisições culturais. Nele vemos que não é o primeiro momento (assassinato do pai) que funda a Lei e as obrigações com o totem (caráter religioso), mas a identificação dos filhos a esta figura que se faz presente, num segundo momento, sob a forma de um sentimento de culpa. Foi diante desta ambivalência de sentimentos quanto ao pai, posto que cada filho aspirava tornar-se como ele, ocupar o seu lugar, no que ele era tão temido quanto invejado, que se recorreu ao pacto, como vimos, para a assunção de uma nova ordem (LACAN, 19691970/1992). Esta foi erigida sobre as interdições fundamentais a que se refere Freud (1913/1996) — dormir com a mãe e as irmãs — as quais, cabe salientar, guardavam uma intrincada relação com o desejo, pois diziam respeito às ações para as quais se podia identificar uma forte inclinação do sujeito (FREUD, 1913/1996). Se fosse facultado a cada irmão a livre satisfação dessa inclinação, o laço social seria inviável, pois entre eles travar-se-ia a mesma luta de vida ou morte que, os opondo ao pai, levara ao assassinato do mesmo. Para que a vida em comunidade fosse possível impôs-se a necessidade de renunciar aos objetos referidos acima (a mãe e as irmãs) e, com eles, a uma parcela significativa de sua vida sexual. O que o mito totêmico situa, portanto, é a origem do laço social e da religião como fundado por um pacto que obedece a um imperativo de constituição do sujeito. Mas trata-se de um pacto ao qual subjaz a dívida simbólica com o pai, pois é ele que faz referência à livre satisfação como impossível ao mesmo tempo em que abre as vias para o exercício do desejo articulado à cultura (LACAN, 1959-1960/1986). Podemos pensar nessa dívida simbólica com o pai que o mito veicula — e que encontra expressão nas obrigações religiosas em relação ao totem — como uma referência à dimensão de perda que, como vimos, marca a constituição de cada sujeito quando se torna sujeito à vida em comunidade (MELMAN, 2011). Contudo, conforme avançamos em direção à modernidade vemos a elisão dessa dimensão de pacto que havia sido, propriamente, o que viabilizara a vida em sociedade. O Estado Moderno, em suas bases contratuais, se assenta na ideia de um laço social fundado na livre iniciativa do sujeito, culminando, ademais, numa pretensa relação entre iguais. As restrições à livre satisfação do sujeito passam a ser creditadas à vontade geral dos cidadãos, elidindo, assim, que se devam a um imperativo de sua estrutura, com viemos demonstrando. E as instituições às quais a coletividade sacrifica (supostamente por vontade própria) essa satisfação, emergem como aquelas que poderiam garantir, em troca, a manutenção de um equilíbrio e harmonia mínimos quanto à convivência humana ou, ainda, restituir o que foi perdido. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 177-186 01 Lo Bianco 36.indd 180 16/12/2014 22:09:35 Novas expressões da religiosidade: o que elas dizem sobre o sujeito em sociedade hoje 181 Não tendo por objetivo uma análise minuciosa do período, nos limitamos a apontar na passagem para a modernidade a ênfase no caráter consensual do contrato em oposição à assimetria que marca a ideia anterior de pacto. Trata-se de uma questão importante em nossa argumentação sobre as diferenças que separam as religiões tradicionais das novas seitas religiosas, pois, conforme referidas a uma ou outra dimensão — pacto ou contrato — cada uma delas nos dará notícias da dimensão ética em que se constitui o sujeito ou, ainda, de sua elisão. Ética, porque mais do que uma realidade biológica e/ou social, o sujeito da psicanálise é um sujeito dividido entre as exigências da cultura e a possibilidade de, submetendo-se a elas, ultrapassá-las no exercício do desejo. Ora, o laço social fundado no pacto confronta o sujeito com essa divisão, a qual lhe impõe uma perda — de gozo, de liberdade, de mestria — e um mal-estar inerentes à cultura, frutos do conflito que então se coloca entre suas disposições e a vida em sociedade. Este conflito decorre, também, da desigualdade inata e não eliminável entre os seres humanos, a qual constantemente gera tensões insolúveis que ainda assim terão que ser domadas ou reguladas (FREUD, 1933/1996). Sendo o mal-estar que atravessa a cultura irredutível, o pacto impõe ao sujeito uma perda irrevogável, para a qual não há nenhuma possibilidade de restituição. Ao passo que o laço social que enfatiza a dimensão do contrato, que identificamos como próprio às novas seitas religiosas, ao contrário, elidem a dimensão de pacto que atravessa suas instituições, assinalam a possibilidade de uma negociação que se buscará reparar. Perde-se de vista, assim, o que o sujeito tem que pagar por sua entrada na cultura, ou seja, a dívida simbólica a que aludimos antes (LACAN, 1962-1963/2004). Tal dívida inscreve-se nas próprias origens desse significante — pacto — que a psicanálise identifica no fundamento da sociedade e na gênese dos principais sistemas religiosos. O referido significante tem sua origem no termo latino pactum — substantivo formado, por sua vez, a partir do verbo pangere, que significa “cravar, fixar, unir, determinar por acordo” (ETIMOLOGÍA DE PACTO, 2014). Este verbo se encontra na raiz etimológica de termos ainda hoje importantes por sua referência ao laço social. Entre eles destacamos o substantivo pax, ou seja, “vínculo e acordo bem travado que acaba com uma situação bélica”, de onde vêm termos como “paz”, “pacífico”, “pacificar” e “pagar” (SIGNIFICADO E ORIGEM DE PACTO, 2014). Este último acabou por desenvolver em latim o valor de “acalmar a um credor”, valor este que não possuía originalmente: pagar se dizia solvere (ETIMOLOGÍA DE PACTO, 2014). O que a etimologia de “pacto” nos permite perceber é que, mesmo quando este termo designava um acordo, sua ênfase recaía na dimensão do laço (e do conflito que lhe é inerente). E, ainda que celebrado entre duas partes, pressupunha um terceiro — aquele a quem cabe pagar — da mesma forma como, no ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 177-186 01 Lo Bianco 36.indd 181 16/12/2014 22:09:35 182 Anna Carolina Lo Bianco e Natália Vidal mito totêmico, a ordem social é formada por referência a um lugar de exceção — aquele do pai. Exclui-se, assim, a possibilidade de uma relação simétrica, de sustentação do laço social por uma ordem de equivalências. A referência a um registro terceiro obedece à própria estrutura da linguagem (LACAN, 19681969/2008), a qual, ela mesma, exclui a possibilidade de uma relação unívoca — portanto simétrica — entre seus elementos (por exemplo, entre significante e significado), dando lugar ao jogo metafórico e metonímico que lhe é próprio (LACAN, 1957-1958/1998). É esse mesmo deslizamento que nos permite perceber que, na evolução de seus significados, “pacto” veicula-se desde muito cedo à necessidade de um pagamento — seja da parte do sujeito, seja da coletividade. E, sendo a dívida a que nos referimos antes eminentemente simbólica, esse pagamento não encontra equivalência nos objetos da realidade. Fica assim excluída para qualquer religião fundada numa dimensão de pacto a possibilidade de uma negociação e/ou troca entre o sujeito e este lugar de exceção a que nos referimos acima (ou seja, entre o fiel e Deus) — é aqui que podemos falar de um sujeito e de seu desejo. Por fim, em relação a este mito moderno de fundação das sociedades (FREUD, 1913/1996), ressaltamos que o pai que transmite a castração, as interdições nas vias do gozo, é o pai morto — aquele que acedeu a um estatuto simbólico (LACAN, 1957-1958/1998). A referência à morte aqui se impõe como fundamental. Ela abole a possibilidade de qualquer garantia na sustentação do laço social — no caso que debatemos, na relação do sujeito com a crença em uma de suas manifestações principais, a religião. Isso porque, se a sociedade pós-moderna busca se cercar de garantias (BARTOLOMEI, 2008) — seja em sua forma laica, com o saber, seja em sua forma religiosa (simbólica), recorrendo a Deus —, a morte se lhe interpõe como um limite. Limite tanto ao saber quanto ao Simbólico: não se sabe o que é a morte; para ela não há qualquer representação significante (FREUD, 1915/1996; LACAN, 1969-1970/1992). Seu caráter irredutível e enigmático é especialmente flagrante no lugar central que ocupa nas diferentes religiões, as quais, cada uma à sua maneira, buscam lhe dar um contorno, que só pode se sustentar no registro da crença — por isso mesmo, no de uma aposta a fundo perdido. Aliás, quer se trate ou não da morte, é a crença que confere propriamente um lugar e uma força às diversas religiões, ao confrontar o sujeito com o que é posto pelo pacto: a referência à alteridade, a necessidade do desejo em fazê-la valer, a impossibilidade de uma garantia ou de um arbítrio frente aos desígnios de Deus na vida terrena. Veremos a partir de agora que a promessa de uma série de garantias ao sujeito, bem como a possibilidade de uma negociação, de uma relação simétrica com a alteridade, é um dos traços característicos dos movimentos religiosos recentes. Isso nos permitirá identificar uma lógica de ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 177-186 01 Lo Bianco 36.indd 182 16/12/2014 22:09:35 Novas expressões da religiosidade: o que elas dizem sobre o sujeito em sociedade hoje 183 funcionamento há muito em jogo em nossa sociedade e que a esfera religiosa, antes de a ter inaugurado, de fato a reproduz. As seitas dos contratos Serão os sujeitos ao pacto os mesmos que as seitas que vemos disseminadas por nossas comunidades evidenciam? A questão de uma dívida simbólica que não encontra equivalente nos objetos da realidade, ou que se vê pretensamente reduzida aos mesmos, emerge de forma flagrante nos discursos de que se valem as seitas religiosas hoje. De um lado, vemos subsistir o discurso das religiões tradicionais, as quais, mesmo com seus anacronismos e preconceitos, sustentam o lugar de uma renúncia da parte do sujeito. De outro, um discurso que busca responder a esta dimensão de renúncia pelo serviço dos bens característico da lógica de mercado. Estudos etnográficos cuidadosos como o de Giumbelli (2002) dão testemunho preciso desse discurso que nós mesmos cansamos de ver e ouvir nas diuturnas pregações dos pastores nas televisões. Tudo se passa na dimensão da troca: os fiéis pagam o dízimo para obter um milagre e são incentivados a cobrarem de Jesus a operação dos milagres pelos quais pagaram. Há mesmo relatos de templos em que se encontra na porta o aviso: “seu milagre garantido ou seu dinheiro de volta”. A dimensão do pacto dá lugar agora a de um acordo regido pelos serviços dos bens. Tal acordo visa à satisfação completa das partes envolvidas, tomadas ademais em uma relação igualitária, horizontalizada. Trata-se aqui de alguém que se reivindica o suposto direito à igualdade em todas as esferas do cotidiano e de relações sociais que cada vez menos reconhecem um lugar às diferenças como as geracionais ou as sexuais. A referência a um terceiro, por relação ao qual, como vimos, a ordem se estabeleça e venha a se assentar na renúncia à satisfação imediata se vê, portanto, abolida. Na verdade, passa-se até mesmo a se exigir e contar com a fidelidade de Deus! Os adesivos nos carros comprovam que “Deus é fiel”. O que aqui apontamos em relação às novas seitas traduz um processo há muito em jogo no laço social: é a modernidade que privilegia a ideia de um laço social atravessado pela dimensão contratual que ela, ademais, inaugura. Lacan (19671968/2001) fez referência a esse processo em seu seminário de 24 de janeiro de 1968. Dirigindo-se à sua audiência, ele não apenas denunciou o predomínio, em nossa época, de uma relação de troca na qual cada um supostamente receberia a parcela que acreditava ser a sua, como apontou seu caráter imaginário (especular). São abundantes nessa ocasião de seu seminário a presença de significantes tomados de empréstimo ao campo da economia, tais como “prestação de trocas”, ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 177-186 01 Lo Bianco 36.indd 183 16/12/2014 22:09:35 184 Anna Carolina Lo Bianco e Natália Vidal “esvazia bolsos”, “prestação de serviços”, significantes que passam a circunscrever o lugar do sujeito em termos mercantis (VIDAL, 2012). Trata-se de uma relação análoga a que hoje podemos verificar em outros domínios da vida social, como, por exemplo, o Direito (idem). Cada vez mais o vemos trabalhar apenas para restituir ao sujeito, ratificando todas as suas demandas, ao mesmo tempo em que busca convertê-las em termos monetários. Hoje já é possível indenizar um filho pelo abandono afetivo por parte de seu pai, o que, para além de qualquer consideração de cunho moral, esconde a dimensão ética de se conferir à afetividade, ao desejo, um correlato em cifras (idem). Em ambos os casos — do Direito, das seitas religiosas —, ao final de uma relação de troca perfeitamente constituída, almeja-se que o saldo da operação seja zero. Ou seja, que a cada um tenha sido concedida a sua parte. A consequência de um funcionamento social como este, contudo, não é aquele de um sujeito a quem é facultada uma vida mais plena, justa ou satisfatória. Ao contrário, posto que visa à completude, ele elide que a própria condição para que haja troca é que algo falte para o sujeito — dimensão do pacto e do desejo. Quanto a isso, afirma Lacan, “não se está de acordo” (1968-1969/2008), a conta não fecha, daí o caráter imaginário deste tipo de relação. As religiões, se ainda podemos chamá-las assim, falam agora de uma sociedade onde vigoram as relações contratuais. De um sujeito que pagava por sua entrada na cultura — e que o faz a cada vez — nos deparamos com um sujeito (se é que há aí sujeito) que se porta como credor da cultura. É a época em que a Lei, o Direito, a religião, que se instalaram com o pacto, implicando obrigações morais e sacrifícios do prazer imediato, tendem a ser ultrapassados por uma “lógica do consumidor” (VIDAL, 2012). Há que se garantir a satisfação demandada pelo cliente que, afinal, tem sempre razão. As seitas se oferecem como prestadoras de serviços e bens, e vivem de fazer promessas de satisfação em curto prazo. Não estaríamos “nesse momento a que chegamos de civilização” (LACAN, 19681969/2008, p.31) frente a um sujeito que somente busca se exercer como um sujeito de direitos — um sujeito-consumidor? Acreditamos, portanto, que para além das semelhanças que unem religiões tradicionais e movimentos religiosos recentes — marcados todos pela mesma busca da felicidade e do alívio para o mal-estar, ou seja, articulados todos para garantir os meios de apaziguamento do sofrimento —, há diferenças acentuadas entre ambos, que apontam para distintas configurações do laço social e do sujeito que delas é efeito. Ainda uma última palavra para lembrarmos que, enquanto nas religiões tradicionais se trata da referência a um pai morto que, portanto, ocupa um lugar que é simbólico, encontramos agora nos membros das seitas uma convicção obcecada acerca do saber e da autoridade de um fundador encarnado que vem ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 177-186 01 Lo Bianco 36.indd 184 16/12/2014 22:09:35 Novas expressões da religiosidade: o que elas dizem sobre o sujeito em sociedade hoje 185 prometer a facilidade do encontro com os objetos da satisfação inadiável. De um assujeitamento ao simbólico, a esse “pai morto”, passa-se assim à adesão a um líder (LO BIANCO, 2009). As consequências dessa afiliação cega, no mais, trazem-nos imediatamente à memória as cenas de horror já vistas no nazismo que marca o século XX, e marcará todos os outros depois dele. Recebido em 2/7/2014. Aprovado em 30/7/2014. Referências BARTOLOMEI, C. (2008) “La rétention de sûreté ou l’ilusion du risque zero par l’exclusion d’une poingnée de criminels”, in CASTANET, H. Quelle liberté pour le sujet à l’époque de la folie quantitative?. Nantes: Plein Feux, p.105-111. BOURDIEU, P. (1987) La distinction. Paris: Minuit. CZERMAK, M. (2013) A porta de entrada e a clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro. ETIMOLOGÍA DE PACTO. Disponível em: http:/etimologias.dechile. net/?pacto. Acesso em 10/6/2014. FREUD, S. (1996) Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu. (1913) “Tótem y tabú”. v.XIII, p.1-163. (1915) “De guerra y muerte. Temas de actualidad”. v.XIV, p.275-299. 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XVII n. 2 jul/dez 2014 177-186 01 Lo Bianco 36.indd 186 16/12/2014 22:09:36 Verdade e ideologia na psicanálise e no capitalismo Oswaldo França Neto Oswaldo França Neto Psicanalista, professor doutor do Programa de Pós-graduação strito sensu do Departamento de Psicologia da UFMG. Resumo: Tendo como referência algumas discussões levantadas por Alain Badiou e Slavoj Zizek, este texto se propõe a trabalhar a questão da verdade e da ideologia no capitalismo e para a psicanálise. A democracia representativa capitalista, na forma como hoje se operacionaliza quase que hegemonicamente no Ocidente, tem como ideologia o repúdio à verdade e ao sujeito que lhe corresponde, o que se manifesta em termos clínicos por depressão e ansiedade. A psicanálise, ao se propor a resgatar a verdade do sujeito, se coloca como obstáculo à hegemonia capitalista. Palavras-chave: Verdade, ideologia, capitalismo, democracia, sujeito. Abstract: Truth and ideology in capitalism and psychoanalysis. Taking as reference some discussions raised by Alain Badiou and Slavoj Zizek, this article seeks to deal with the issues of truth and ideology in capitalism and how it pertains to psychoanalysis. The current domination of representative capitalist democracy in most of the Western world promotes an ideology that repudiates the truth and the subject to which it corresponds, often times clinically manifesting in depression and anxiety. Psychoanalysis, upon proposing the rescue of truth to the subject, therefore poses itself as an obstacle to the hegemony of capitalism. Keywords: Truth, ideology, capitalism, democracy, subject. ágora (Rio de Janeiro) v. IX n. 2 jul/dez 2006 177-191 02 Oswaldo 36.indd 187 16/12/2014 19:34:16 188 Oswaldo França Neto P retendemos desenvolver aqui a questão da verdade, termo fundamental para a psicanálise, e seu lugar na ideologia capitalista. No que concerne à psicanálise, se o nosso objeto primeiro de trabalho é o sujeito, este só pode ser entendido correlativo à verdade que o institui. Esta, porém, não pode ser verbalizada em sua plenitude, da mesma forma com que o sujeito só pode ser concebido nos intervalos dos significantes, em situação de exclusão à cadeia. A verdade, para Freud, é da castração, e ela só pode ser dita por e nas formações do inconsciente (sonhos, sintomas, atos falhos e chistes), tendo estes a significação de um retorno da verdade do sujeito. Por poder ser apenas meio-dita (LACAN, 1972/2003, p.454), toda vez que ela se enuncia o que obtemos é semblante: “está claro que a Fala só começa com a passagem do fingimento à ordem do significante, e que o significante exige outro lugar — o lugar do Outro, o Outro-testemunha, o testemunho Outro que não qualquer de seus parceiros — para que a Fala que ele sustenta possa mentir, isto é, colocar-se como verdade.” (LACAN, 1960/1998, p.822) Na formalização que propôs para os quatro discursos, Lacan colocou o lugar da verdade embaixo da primeira barra, sendo ela a responsável por articular a relação entre os outros três termos: o agente, o outro e a produção (LACAN, 1992). Em uma analogia com a metáfora simbólica, em que o significado não é representado imediatamente por um significante, mas remetido a outro significante, nos discursos a verdade não é representada de forma imediata por seu “agente”, mas junto ao “outro” que supostamente deve receber a comunicação. No Seminário XX, após afirmar que o singular da análise é que ela “se possa constituir, por sua experiência, um saber sobre a verdade” (LACAN, 1985, p.123), Lacan diz que “há relação de ser que não se pode saber” (idem, p.162). Ou seja, se por um lado a verdade, em si, só pode ser entendida enquanto não sabida, por outro lado, a finalidade da análise é, paradoxalmente, suscitar um saber deste não sabido. A chave desse enigma estaria no que Lacan chamou de matema, em que, no processo analítico, por meio de uma escritura, se estabeleceria relação entre o ser que não se pode saber, e um saber sobre sua verdade, logo sobre o não sabido. Se a verdade, assim, é tema fundamental que move o trabalho analítico, já a nossa contemporaneidade tem tido sérias dificuldades em lidar com o que ela carreia. A verdade, em princípio, é uma categoria totalitária. Ela se distingue do campo das opiniões, as quais têm como característica principal o fato de serem horizontalmente substituíveis. Já a verdade, quando ela se apresenta, é absoluta, universal. Por razões que vamos trabalhar mais adiante, a democracia ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 187-199 02 Oswaldo 36.indd 188 16/12/2014 19:34:16 Verdade e ideologia na psicanálise e no capitalismo 189 representativa, pelo menos na forma como ela hoje se operacionaliza quase que hegemonicamente no Ocidente, se coloca como antítese ao totalitarismo. Para ela, o totalitarismo, assim como as ideologias, devem ser abolidos. A democracia se propõe como o império do “relativismo cético” (BADIOU, 2006, p.533). Para continuarmos, temos que desdobrar outro termo já introduzido na discussão: Ideologia. Para Marx, “a ideologia era sempre do Estado e, como disse Engels, o próprio Estado é a primeira força ideológica” (ZIZEK, 1996a, p.24). Essa concepção passou a dominar o conceito, que a partir de então se tornou necessariamente vinculada ao Estado (os “Aparelhos ideológicos de Estado” [ALTHUSSER, 1985], por exemplo). A ideologia passou a ser entendida como uma ideia ou crença utilizada com o objetivo de aquisição/preservação do poder. Intimamente vinculada a essa concepção, ela estaria no registro da ocultação, dando à mostra algo, tendo, entretanto, outro objetivo, oculto, que seria o de dominação — uma “mentira sob o disfarce da verdade” (ZIZEK, 1996a, p.14). A demonização da ideologia após o colapso do mundo comunista, segundo Zizek, levou ao esquecimento de outra faceta desse conceito, esta mais próxima da fantasia psicanalítica, na qual ela seria a moldura necessária para a constituição do quadro da realidade: “(...) não existe realidade sem o espectro, de que o círculo da realidade só pode ser fechado mediante um estranho suplemento espectral. (...) o ‘cerne’ pré-ideológico da ideologia consiste na aparição espectral que preenche o buraco do real” (ZIZEK, 1996a, p.26). Ou seja, para que a moldura da realidade se constitua, é necessário um suplemento que a determine como tal, estabelecendo a imprescindível conexão entre todos os elementos que se apresentam, para que do puro caos sensível se apreenda uma inteligibilidade. Freud trabalhou esse estranho suplemento, que na mesma medida em que é imprescindível é inapreensível (não apresentável como tal no campo em que os elementos da realidade se fazem presentes), como sendo a fantasia primordial. Esta é aquilo que deve se excluir, passando a ex-sistir para que todo o resto possa existir. Apesar de poder ser construída em análise, ela permaneceria restrita ao campo da ideia, uma pura representação simbólica que o próprio analisante não consegue reconhecer como efetivamente presente em sua história, posto que ex-sistente. A fantasia primordial está fadada a apresentar-se como ponto de impossibilidade na realidade que ela constitui. Ao aproximar esses dois conceitos, ideologia e fantasia primordial, como sendo aquilo que daria enquadre ao caos da experiência sensível, Zizek pontua a dificuldade que existe em tematizá-las. Por serem aquilo que constituem o campo no qual transitamos, é impossível produzirmos a necessária distância para apreendê-la em sua corporeidade. Ambas são o paradoxo impossível que, de fora, determinam a coerência de tudo o que existe dentro. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 187-199 02 Oswaldo 36.indd 189 16/12/2014 19:34:16 190 Oswaldo França Neto Nessa outra forma proposta por Zizek de se entender o termo ideologia, poderíamos identificar nela uma dimensão imaginária (que Alain Badiou [2010] nomeou de ‘utopia’) e uma simbólica. No seu aspecto utópico (ou imaginário), a ideologia seria aquele elemento necessário de encobrimento do furo do real, porém negando-o como ponto de impossibilidade. Seria a utopia entendida enquanto potência, enquanto ímpeto a se imaginar estar na escala de expansão em direção a uma totalidade infinita, por meio de uma representação possível da infinitização de uma finitude. Esse aspecto da ideologia é essencial, vindo daí a energia necessária para que ela se torne efetiva, produzindo movimentos. Porém, correlativamente a essa pregnância como potência, ela pensa em uma sociedade sem sintomas (ZIZEK, 1996b, p.307), e vê o seu necessário ponto constitutivo de impossibilidade como sendo da ordem da impotência. Ou seja, o que concede à dimensão utópica da ideologia toda sua força é também sua maior fraqueza, ao dar a ilusão de que seria possível ultrapassar ou eliminar a si própria enquanto necessário paradoxo insolúvel para que a realidade possa existir. Sua preservação é precária, sendo necessário um passo além, que seria a passagem da ideologia na sua dimensão imaginária para a dimensão simbólica. Em outros termos, a passagem da impotência para a impossibilidade. Se a ideologia é necessária para viabilizar que um sujeito exista como resposta à impossibilidade do real, nosso apego não deve ser propriamente à ilusão de que o que ela propõe é palpável, mas sim ao que, veiculado por ela, nos coloca em movimento. A ideologia, enquanto verdade, é uma paradoxal conjunção, em que o impossível se tornaria, no futuro do pretérito, possível. Seria a existência possível do impossível, sem que seu caráter de impossibilidade se esvaeça. Se uma verdade, enquanto algo eterno e imutável, é impossível de existir na contingência e mobilidade do mundo sublunar, a ideologia seria aquilo que viabilizaria sua paradoxal existência. Ela atua como operador de incorporação de um local como global. Ela (ou a fantasia, nos termos de Zizek) é o cruzamento impossível do singular com o universal, constituindo um lugar não apenas efêmero, mas de-localizado em relação ao saber, e, portanto, não apreensível por nenhuma particularidade estabelecida. Localização e verdade Seria interessante fazermos um pequeno parêntese, e tentarmos desdobrar o principal impasse com que sempre se deparou a filosofia com relação ao conceito de ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 187-199 02 Oswaldo 36.indd 190 16/12/2014 19:34:16 Verdade e ideologia na psicanálise e no capitalismo 191 verdade, que é sua localização. A grande dificuldade é como pensar a existência local de algo que, por definição, seria universal e absoluto.1 Poderíamos identificar a verdade como sendo o significante mestre do conjunto da filosofia em sua história. Esta última teria como tarefa fundamental a transmissão da verdade destacada das diversas configurações antropológicas, buscando a essência, aquilo que seria eterno e imutável, em oposição ao contingente e corrompível. Mas as coisas se complicam a partir do momento em que colocamos em cena a questão da existência. Esta última, por definição, é a atestação de um objeto qualquer, localizado em um campo relacional. A categoria da existência é, dessa forma, local. Aparecer é estar localizado, não havendo existência não situada, ou existência global. O Todo não existe, isto é, não se pode predicar a existência do Todo. Observamos assim uma distinção radical entre ser (global) e existir (local), sendo a segunda uma categoria de essência topológica (ou de localização). Existir é se manter em relação de vizinhança com outros existentes, portanto localizado. A grande dificuldade é que a verdade, apesar de universal e eterna, parece existir, o que seria uma contradição — se o universal e o eterno nos remetem a uma essência, a uma não localização, a verdade em princípio pode ser, mas não existir. A solução clássica para essa constatação (a impossibilidade de se localizar algo que é global e eterno) é de que a verdade estaria inscrita no registro do ser, e separada do registro do que aparece. Uma separação entre a ontologia e a topologia, que no fundo é onto-teológica, já que remeteria a verdade para o registro do transcendente. Kant, por exemplo, um dos representantes dessa forma de entender a verdade, só conceberia o aparecimento da verdade se fosse no registro do ato. Heidegger seria outro exemplo dessa solução clássica de separação entre o ser e o existir. Essa é também, aos olhos de Badiou, a solução da contemporaneidade, considerando a verdade como separada da existência. A democracia capitalista ocidental teria como ideologia fundamental a máxima “Viva sem Ideologia”, que nada mais é do que uma variante da expressão “Viva sem Verdade”.2 Porém, segundo Badiou, a solução clássica não é a única historicamente datada. Voltando à Grécia antiga, para Platão, utilizando-se do termo Ideia, a verdade atestaria um processo, que seria a idealidade da Ideia. Esta última seria o nome da potência de localização em verdade do que existe. Verdade em organização orgânica à existência. O grande problema para Platão não seria a separação, 1 As considerações a seguir baseiam-se em conferência de Alain Badiou proferida em Paris, em 15 de junho de 2010, no American University of Paris, até o momento inédita. Essa conferência teve por título exatamente “Localização e verdade”. 2 Voltaremos a esse ponto posteriormente. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 187-199 02 Oswaldo 36.indd 191 16/12/2014 19:34:16 192 Oswaldo França Neto mas a participação. Para Descartes, outro exemplo dessa solução não clássica, as verdades eternas são sempre criadas, ou seja, localizadas. Elas são inseparadas da existência, topologizadas pela localização. Para Espinosa, igualmente, verdade enquanto nome da não separação. Ela seria localizada, ou “modal” (utilizando um termo espinosista). Hegel também seguiria nessa linha de localização das verdades, ou seja, da não separação entre ser e existência das verdades. Há nessa solução não clássica o aparente paradoxo de localização da verdade, ao propor o estabelecimento impossível de uma particularidade da universalidade. Para Badiou, nós devemos confrontar de frente essa dificuldade, agravando-a. Para tanto, ele propõe três enunciados que serviriam como pontos de partida: Há um ser da verdade (ela tem um estatuto ontológico). Trata-se de um enunciado formalmente clássico. A verdade existe (ela tem um estatuto empírico). Ou seja, não se trata de um nome separado da existência. A existência e o aparecer são categorias intrinsecamente locais. O ser da verdade sobressai da álgebra da multiplicidade, enquanto a existência sobressai da topologia, do feixe (faisceau3). Nos termos de Badiou, o ser da verdade é multiplicidade genérica, ou seja, possui o menos de propriedade particular possível, sendo, portanto, universal, já que passível de pertencer a não importa qual subconjunto. Ainda no registro da ontologia, porém agora em oposição à multiplicidade genérica, teríamos a multiplicidade construtiva, que se assentaria sobre as identidades, em uma contínua reivindicação de propriedades. O mundo contemporâneo tem como tese que toda multiplicidade é construtiva, ou só é interessante o que é construtivo (identitário, portador de propriedades). A única coisa que teria uma aparência genérica seria o dinheiro, mas que na realidade existiria apenas para fazer as identidades (propriedades) circularem, que é o que de fato importa. A contemporaneidade ocidental, assim, denega a existência da verdade não apenas no registro do que aparece, mas também no registro do ser. É a morte de Deus, sobrando apenas identidades. Um mundo como localização de identidades, marcado pela disjunção entre o ser da verdade e o próprio mundo. Badiou propõe a seguir uma distinção entre localizado (imutável) e localização (em movimento). Essa distinção é fundamental no estabelecimento da solução não clássica. Para ela, se na sua proposta o ser é pensado como sempre localizado, nessa localização o aparecer apresenta-se sempre como modificação. Ou seja, se 3 Faisceau: “Disons intuitivement (...) qu’un faisceau est un ensemble dont les éléments peuvent n’exister que localement” (LAVENDHOMME, 2001, p. 239). ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 187-199 02 Oswaldo 36.indd 192 16/12/2014 19:34:16 Verdade e ideologia na psicanálise e no capitalismo 193 quisermos sustentar que a verdade existe (vem a localizar-se), seria sob a forma de uma deslocalização local. Um termo afetado por uma deslocalização local é o que Badiou propõe como sendo um sítio eventural.4 Uma deslocalização local (sítio) é assim o aparecimento em uma rede estrita de existência de algo que não é localizável, um defeito local da localização. Não se trata de forma alguma de uma separação (caso da solução clássica), mas de um disfuncionamento da localização. Apesar de ser necessariamente local, sua potência de localização seria localmente afetada. Seria uma identificação impossível, e, portanto, fugaz, do ser e da existência. Ponto não teleológico de coincidência, no qual a localização, de forma paradoxal, cessa de fazer barragem à universalidade. Diríamos assim que há uma deslocalização local quando o ser aparece no registro da existência, desvelando-se algo como ao mesmo tempo localizado e deslocalizado. Ela é o ponto em que a lei transcendental se porta como um objeto sob sua própria lei. Estaríamos no registro do que Badiou chamou de acontecimento (ou evento na tradução brasileira). Relembrando uma discussão pregressa que ele teve com Milner concernente ao estatuto do Nome-do-Pai, discussão esta que teve grande repercussão em alguns meios na França, e que teria como objeto o lugar do nome “Judeu” na civilização ocidental,5 Badiou propõe que, para Milner, o lugar que carrearia o estatuto de universalidade (o nome) seria prévio, enquanto para ele o lugar se colocaria como universal quando se deslocaliza. O lugar deslocalizado é universal exatamente por ser deslocalizado. Apenas uma deslocalização contingente, efeito de um acontecimento paradoxal e inesperado, pode preservar o fugaz estatuto de não predicabilidade. Ao propor que o nome seria anterior, Milner eliminaria seu caráter contingente, inserindo-o no registro das predicações. Podemos agora retornar ao impasse que a psicanálise representa para o capitalismo, tendo como referência o estatuto da verdade. O capitalismo e a psicanálise Ao se colocar como o fim das ideologias, a democracia ocidental e seu par, o capitalismo, camuflam a ideologia que serve como seu próprio enquadre, que é a máxima “Viva sem Ideologia”. Em uma inversão que não deixa de ser astuta, 4 No livro O ser e o evento, Alain Badiou define dessa forma o que ele chama de sítio eventual: “Um múltiplo em situação é um sítio eventual se ele for totalmente singular: ele é apresentado, mas nenhum de seus elementos o é. Pertence, mas está radicalmente não incluído. É elemento, mas não é, em absoluto, uma parte. É totalmente a-normal. Diremos também de tal múltiplo que ele está na borda do vazio, ou é fundador” (BADIOU, 1996, p.399). 5 Para essa discussão, ver os livros Les penchants criminels de l’Europe démocratique (MILNER, 2003) e Circonstances, 3: portées du mot “juif” (BADIOU, 2005). ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 187-199 02 Oswaldo 36.indd 193 16/12/2014 19:34:16 194 Oswaldo França Neto o capitalismo propõe como premissa inaugural de seu campo exatamente a negação da necessidade de existência de um ponto de impossibilidade constituidor que o determine como campo. Ele se propõe como infundado, ou seja, eterno, posto que fidedigno reflexo da natureza humana, e, portanto, distinto das corrompíveis e pouco confiáveis determinações culturais. E ele faz isso por meio de uma opressão fundamental, que é a imposição para a humanidade do abandono de qualquer pensamento que tenha estatuto de verdade. A morte das ideias verdadeiras significa o enclausuramento dos indivíduos em seus interesses finitos, na pura administração de bens e opiniões. Fazendo uso da Declaração dos Direitos Humanos, o capitalismo propõe o abandono de qualquer verdade que possa se colocar acima da vida biológica, condenando-nos à administração e preservação de corpos, em detrimento do embate das ideias. Ou seja, se agora nos vemos em luta contra o totalitarismo (ou hegemonia) do capitalismo, este tem como uma de suas maiores astúcias se colocar, junto com a democracia, como defesa contra os totalitarismos. E essa ideologia — “Viva sem Ideologia” — é perfeita para o nosso tempo. Pois se o século XX soube nos ensinar algo, foi o potencial sangrento e de terror que os totalitarismos ideológicos podem adquirir quando se baseiam em critérios raciais ou segregativos de qualquer espécie, como foram o nazismo, o fascismo ou o stalinismo. Em Le siècle (2005a), Alain Badiou propõe que nós somos hoje determinados pelo medo. A tônica da sociedade contemporânea é a aversão a qualquer tipo de ideologia e das verdades que elas carreiam. Marcados que somos pelos (des)caminhos de horror e sangue que as ideologias totalitárias do século XX produziram, nada mais tranquilizador do que um sistema que tem como prerrogativa primordial a máxima “Viva sem Ideia” ou “Viva sem Verdade”. Ao se propor como solução contra os incertos caminhos do sujeito e sua verdade, o capitalismo nos impede de nos debruçarmos sobre os desvios que marcaram as buscas totalitárias do século que findou e refletirmos seriamente sobre eles. Se em algum momento recuperarmos a coragem e buscarmos o resgate da verdade e seu necessário caráter universal, teremos que aprender a sustentar sua existência livre de qualquer particularidade, seja ela racial (nazismo), nacionalista (fascismo) ou de classe social (stalinismo). A verdade não comporta defesa de bens ou interesses pessoais, devendo ser, necessariamente, desinteressada. A democracia representativa, pelo menos na forma hegemônica com que no Ocidente nós a vivenciamos, interdita-nos o acesso à força da verdade, eliminando-a da cena e nivelando tudo na simetria das opiniões. Se não existem diferenças com relação ao valor de verdade, e todas as afirmações são simetricamente equivalentes, a importância destas passa a ser determinada pelo número: na política o que importa é o número de votos; o lugar na hierarquia social é reflexo da conta bancária; o melhor pesquisador é aquele que com mais ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 187-199 02 Oswaldo 36.indd 194 16/12/2014 19:34:16 Verdade e ideologia na psicanálise e no capitalismo 195 eficiência preenche os escores que a academia lhe demanda. O critério qualitativo é subsumido pelo quantitativo, que se torna a régua de todas as avaliações. Assim, encontra-se em consonância com a ciência clássica, que tem como ideal reduzir seu objeto a algo completamente mensurável. É claro o casamento perfeito entre a democracia ocidental e o capitalismo. Enquanto a primeira elimina a verdade, transformando-a em opiniões também substituíveis, o segundo nega a existência de objetos verdadeiros, transformando-os em substituíveis objetos de consumo. Ambos decretam a morte do irredutível em prol do relativo, e o valor de não importa o que passa a ser determinado pela quantificação. Se formos nos expressar de forma mais rigorosa, a democracia ocidental não faz propriamente oposição à verdade, mas a condena ao registro da exceção. Dessa forma, ela se estrutura como todo e qualquer sistema que se apresenta como um universo coerente e hegemônico. Segundo Agamben (2008), a verdadeira contemporaneidade não é a integral consonância com seu tempo, mas, ao contrário, certo desajuste com ele. O contemporâneo verdadeiro é aquele que está de certa forma em situação de exclusão, pois só esta, enquanto aquilo que deve passar a existir como resto (ex-sistir) para que uma totalidade se constitua, pode tornar-se o ponto de partida para uma nova e verdadeira universalidade. Como disse Freud, a solução para qualquer impasse teórico só é atingida “se o que constitui uma pedra no caminho de uma teoria puder tornar-se a pedra angular da teoria que a substitui” (FREUD, 1933/1976). O problema é que sua presentificação no campo corporifica-se como ponto de impossibilidade ou inconsistência, colocando o sistema sob impasse e forçando sua refundação. O sistema, então, para proteger-se, faz o possível para eliminá-la ou absorvê-la em sua lógica de funcionamento. Assim, a verdade, que por definição é universal e eterna (mesmo que seu surgimento seja sempre da ordem da contingência), apresenta-se inexoravelmente como exceção. Parafraseando Badiou, se a democracia ocidental reconhece a existência de apenas dois termos como sustentáculos de sua hegemonia, que seriam os corpos e as diversas linguagens que atuam sobre eles, a verdade seria aquele terceiro termo que, em situação de exceção, pontuaria o desvio ou desencontro entre os dois primeiros (BADIOU, 2006). A grande dificuldade com que hoje nos defrontamos é como forçar sua existência em um mundo que tem como diretriz primeira o imperativo da inexistência da verdade. Esse imperativo é poderoso não apenas por ser uma ótima resposta ao nosso medo contemporâneo de existir como sujeito, mas porque na realidade nada obriga que verdades ou sujeitos existam. Uma vida pautada na pura administração de títulos e propriedades, centrada na fruição de prazeres ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 187-199 02 Oswaldo 36.indd 195 16/12/2014 19:34:16 196 Oswaldo França Neto corporais sem qualquer menção à busca de verdades universais, não apenas é possível como é o motor da sociedade de consumo dos nossos tempos. Quando Fukuyama (2003) profetizou o fim da história com o casamento perfeito da democracia ocidental com o capitalismo, ele não necessariamente estava correto, mas também não necessariamente estava errado. Nada obriga que o capitalismo seja ultrapassado e sua lógica de consumo substituída por outra dita mais “evoluída”. Slavoj Zizek, contrapondo-se a Marx, afirma que não há nenhuma garantia de que o socialismo seja a evolução ou o passo seguinte natural do capitalismo. Para Zizek, Marx não teria conseguido extrair toda a amplitude do conceito de mais-valia.6 Ao contrário dos outros sistemas que o precederam, a contradição interna do capitalismo não é algo que se dê sob a forma de crises cíclicas como teria proposto Marx. O paradoxo imanente ao capitalismo é constante e constitutivo, mantendo-o em um estado de revolução permanente. O sistema já nasce, por assim dizer, “apodrecendo”, e “quanto mais ele apodrece, quanto mais se agrava sua contradição imanente, mais ele tem que se revolucionar para sobreviver” (ZIZEK, 1996b, p.329). O capitalismo se estrutura de tal forma que a presentificação daquilo que lhe causa impasse, no lugar de dar à mostra sua contradição constitutiva e forçar uma reformulação, realimenta sua lógica imanente. O sistema produz sem cessar restos, e os transforma continuamente em consumo, em um permanente estado de revolução. Ele se alimenta de seus próprios impasses, e quanto mais poderosa sua crise, mais forte ele se torna. Se em todo e qualquer sistema que se propõe hegemônico a grande dificuldade sempre foi forçar a existência daquilo que passou a ex-sistir para que ele se unificasse, o capitalismo se aprimorou em transformar em consumo todo e qualquer objeto que se apresenta com caráter excludente à sua lógica. Esse movimento é, inclusive, sua principal força motriz. Nada no sistema capitalista implica então um ultrapassamento, como se fosse uma evolução natural. Sua contradição imanente é o próprio motor de seu funcionamento, seu estado natural de ser, e não aquilo que vai levá-lo a caducar. O abandono da lógica do consumo, se ocorrer, será por escolha ou imposição externa, mas não por um destino inexorável inerente ao sistema. O grande problema dessa ideologia (“Viva sem Ideia” ou “Viva sem Verdade”), é que ela implica a morte do sujeito. Se há algo que podemos dizer que é ultra contemporâneo, no sentido de estar em sintonia com a democracia (na forma com que ela se operacionaliza no Ocidente) e o capitalismo, é o que se autodenomina de pós-modernidade. A modernidade nasce com Descartes, quando ele funda o sujeito. A psicanálise, assim, é genuinamente moderna: o 6 Sabemos que Lacan identificou na mais-valia de Marx um correspondente para seu conceito de objeto a. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 187-199 02 Oswaldo 36.indd 196 16/12/2014 19:34:16 Verdade e ideologia na psicanálise e no capitalismo 197 sujeito da psicanálise está ligado em seu gene ao sujeito cartesiano, dizia Lacan (1985, p.122). A pós-modernidade reduz tudo ao relativismo dos corpos e das linguagens. Não existem verdades, mas apenas uma multiplicidade infindável de corpos e linguagens (ou culturas). Os pós-modernos, diz Badiou, se orientam “no sentido da negação de toda universalidade, em proveito da livre concorrência dos aparelhos produtores de sentido, notadamente os aparelhos ‘culturais’” (BADIOU, 2006, p.317).7 Seria o império da sofística, diria Platão. Não é necessário pontuar como a Psicanálise se coloca como impasse, como ponto de impossibilidade frente à poderosa máquina de consumo do capitalismo. A psicanálise se assenta sobre o sujeito e sua verdade, justo aquilo que a democracia capitalista tem por força que eliminar para se sustentar. Não é nosso objetivo aqui propor alternativas à hegemonia da atualidade. Existem propostas em discussão, propostas estas que suscitam questões muito difíceis de serem trabalhadas, já que elas mobilizam diretamente o medo (ou a covardia) da sociedade contemporânea. Nós, século XXI, estamos, de certa forma, vacinados contra os descaminhos totalitários que as ideologias podem adquirir e suas consequências nefastas. Temos medo das verdades absolutas que as ideologias carreiam e dos desvios terríveis que delas podem advir. A Ideia (ou Ideologia) é o que dá corpo subjetivo à verdade, que como tal, apesar de ser inteiramente contingente, apresenta-se necessariamente após seu surgimento como sempre tendo existido, e com uma capacidade infinita de desdobramentos. É por isso que as máximas “Viva sem Ideia” e “Viva sem Verdade” são no fundo a mesma coisa. Frente ao temor da verdade, nós, herdeiros dos totalitarismos devastadores do século XX, nos escondemos na pacificação dos números, e nos cobrimos de seguros (seguro saúde, seguro de vida, seguro do carro, seguro da casa, seguro ou poupança para garantir a universidade dos filhos, etc.). Quanto mais seguros, maior o apaziguamento de nossos medos. A democracia contemporânea promete a felicidade pela astenia, nos vendendo a imagem de um mundo tão ramificado e com tantas nuances, e por isso mesmo tão adormecido e homogêneo, que em nenhum momento somos confrontados a fazer escolhas que sejam de fato definitivas. Não existem pontos de capiton. “A apologia moderna da ‘complexidade’ do mundo, sempre embelezada de um louvor do movimento democrático, nada mais é na realidade que um desejo de atonia generalizada” (BADIOU, 2006, p.443).8 O problema é que ao nos reduzirmos a puros corpos e linguagens, ao 7 « Vers la négation de toute universalité, au profit de la libre concurrence des appareis à produire du sens, notamment les appareils ‘culturels’ ». 8 « L’apologie moderne de la ‘complexité’ du monde, toujours agrémentée d’un éloge du mouvement démocratique, n’est en réalité qu’un désir d’atonie géneralisée ». ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 187-199 02 Oswaldo 36.indd 197 16/12/2014 19:34:16 198 Oswaldo França Neto eliminarmos a verdade e passarmos a viver sob a égide do medo, como dissemos acima, eliminamos junto o sujeito. Recuar frente ao sujeito e sua verdade, clinicamente já sabemos o resultado — é a depressão. A depressão e a ansiedade, assim como o arsenal terapêutico que o capitalismo de imediato se arvora a nos oferecer, é um dos corolários de nossa contemporaneidade. Talvez o que de mais marcante ela representa, se formos pensar sob a ótica da psicanálise. Fica a questão: o que nós, psicanalistas, podemos fazer frente a essa situação? O que fazer frente a uma sociedade que tem medo da verdade, que tem medo de ser sujeito, marcada pela depressão e suas síndromes de pânico, inundada pelos medicamentos miraculosos e inequivocamente cada vez mais eficazes que o sistema oferece? O que fazer frente à pura preservação de corpos e busca de prazeres imediatos? Como resgatar o sujeito? Recebido em 22/8/2011. Aprovado em 21/11/2011. Referências AGAMBEN, G. (2008) Qu’est-ce que le contemporain?. Paris: Payot & Rivages. ALTHUSSER, L. (1985) Aparelhos ideológicos de Estado. 2 ed. Trad. Valter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal. BADIOU, A. (1996) O ser e o evento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. . (2005a) Le siècle. Paris: Seuil. . (2005b) Circonstances, 3: portées du mot “juif”. Paris: Éditions lignes. . (2006) Logiques des mondes. Paris: Seuil. . (2010) Verdade e localização. Conferência do Seminário “Regards croisés”, Paris. FREUD, S. (1972-80) Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio: Imago. (1933) “Conferência XXXII: Ansiedade e vida instintual”, v.XXII, p.103-138. FUKUYAMA, F. (1989) The end of history? The National Interest. Disponível em: www.wesjones.com/eoh.htm. Acesso em 15/11/2008. LACAN, J. (1960/1998) “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, in Écrits. 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XVII n. 2 jul/dez 2014 187-199 02 Oswaldo 36.indd 199 16/12/2014 19:34:17 02 Oswaldo 36.indd 200 16/12/2014 19:34:17 “Novos sintomas” e declínio da função paterna: um exame crítico da questão Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso e Roberto Calazans Rosane Zétola Lustoza Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ); professora adjunta da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mauricio José d’Escragnolle Cardoso Doutor em Ciências da Linguagem, Université Paris X, Nanterre; professor adjunto da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Roberto Calazans Doutor em Teoria Psicanalítica (UFRJ); professor associado da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ); bolsista de produtividade em pesquisa nível 2 CNPq. Resumo: Partindo da perspectiva lacaniana, examina-se a relação entre declínio da função paterna e “novos sintomas”. Critica-se a assimilação entre declínio da função paterna e declínio do Nome-do-pai. Investiga-se o termo “novos sintomas”, demonstrando seu caráter contraditório. Conclui-se que a decadência da Lei social é compatível com a inscrição do Nome-do-pai; e que tal declínio engendrou novas patologias, mas que não são assimiláveis a sintomas. Palavras-chave: Novos sintomas, Nome-do-pai, Lei, Outro. Abstract: “New symptoms” and paternal function decline: a critical examination of the question. From the Lacanian perspective, it explores the relationship between the decline of the paternal function and the “new symptoms”. It criticizes the assimilation between paternal function decline and the decline of the Nameof-the-Father. It examines the term “new symptoms”, showing its contradictory character. It concludes that the decline of social law is compatible with the inscription of the Name-of-the-Father, and that such a decline engendered new pathologies, but these are not assimilable to symptoms. Keywords: New symptoms, Name-of-the-Father, Law, Other. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 201-213 03 Rosane 36.indd 201 16/12/2014 19:48:48 202 Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso e Roberto Calazans Apresentação do problema Na época contemporânea assiste-se a uma decadência dos grandes referenciais de avaliação que cimentavam o mundo social. Se antigamente as escolhas dos sujeitos eram norteadas pelos sólidos códigos de interpretação ofertados pela tradição, pela autoridade ou pela religião, hoje se observa um desmoronamento das balizas que conferiam coesão à sociedade. O homem se vê então sem uma grade de leitura que lhe permita decifrar os acontecimentos de seu mundo. Bauman (2001) chama de ‘modernidade líquida’ esse tempo em que qualquer convicção assumida pelo sujeito torna-se transitória, frágil, prestes a se volatilizar e dar lugar a outra. Nesse novo contexto social, qualquer um que pretenda assumir o lugar da exceção é, em pouco tempo, rechaçado como um impostor ridículo. A própria Lei social é considerada um artifício, uma ficção cultural, que os sujeitos encaram com desconfiança e rejeitam como um mero semblante. Na época de Freud, a moral da sociedade repressiva promovia a interdição do gozo; já hoje, em que está proibido proibir, em que a barreira ao gozo parece ter sido removida, os sujeitos parecem concluir que tudo é permitido. O filósofo Gilles Lipovetsky (2005) chama nossa sociedade de pós-moralista, na medida em que colocaria em jogo um crepúsculo do dever. Já Zizek (2008) sublinha não exatamente uma ausência de dever, mas uma nova qualidade de dever, em que o gozar torna-se uma obrigação moral. Esse discurso que fomenta a busca de gozo tem sérias repercussões clínicas. Assiste-se hoje à proliferação de patologias em que os atos parecem substituir a palavra. O fato de os atos predominarem sobre as palavras sinaliza uma hegemonia de respostas subjetivas pela via do gozo; daí muito do que se encontra sob a rubrica “novos sintomas” referir-se sobretudo a uma clínica das impulsões: bulimia, anorexia, novos tipos de adicções, hiperatividade, etc. Que os novos sintomas encontram-se ligados ao declínio da função paterna parece evidente. Contudo, um exame mais minucioso revela quão pouco evidente é o sentido dos termos cuja ligação é afirmada. Comecemos pelo termo “função paterna”. Afirmar seu declínio é legítimo, se com isso nos limitamos a constatar a dissolução dos grandes códigos de conduta que governavam a sociedade. Faz-se, porém, uma extrapolação abusiva quando se pretende tratar o dito declínio como uma derrocada do Nome-do-pai (como operador psíquico). Como nem sempre nos textos de psicanalistas essa discriminação é feita, muitos acabam assimilando de modo equívoco a decadência da lei simbólica a um apagamento do Nome-do-pai. Isso leva a certas confusões, como afirmar que estaria em cena uma nova subjetividade, a qual teria desalojado o velho sujeito neurótico freudiano de seu antigo posto; ou afirmar que a sociedade tornou-se majoritariamente psicótica ou perversa. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 201-213 03 Rosane 36.indd 202 16/12/2014 19:48:48 “Novos sintomas” e declínio da função paterna: um exame crítico da questão 203 Já o termo “novos sintomas” nos parece problemático por outras razões. Trata-se de um conjunto de fenômenos muito heterogêneos, a ponto de se poder indagar se é uma categoria conceitual cujos contornos podem ser precisados ou se constitui, ao contrário, uma noção confusa. Sua obscuridade não a torna, apesar disso, uma categoria pouco utilizada. Por surgir com frequência na cena do debate analítico, faz-se mister pensar seu estatuto conceitual. A fim de investigar a legitimidade dessa tese, nosso percurso será inicialmente separar Nome-do-pai e Lei social. Num segundo momento, investigaremos o sentido do termo ‘novos sintomas’, para só então estabelecer uma relação entre Nome-do-pai, lei social e novos sintomas. Nome-do-pai e Lei social O filme Entre os muros da escola, de Laurent Cantet (2008), é verdadeiramente emblemático desses tempos líquidos. Assistimos ali, reproduzido de forma microscópica, um problema que afeta não apenas a escola, mas, em larga escala, toda a sociedade. O professor parece ser tratado o tempo inteiro por seus alunos como uma fraude, alguém que não tem a menor legitimidade para ocupar a posição que ocupa e cuja palavra não exerce mais qualquer eficácia. Os estudantes contestam qualquer pretensão à assimetria de lugares: todos são iguais, não há por que obedecer a algo que não se compreende, pois a obediência por pura transferência é recusada. O filme torna-se um diagnóstico dos nossos tempos na medida em que, ao retratar a dificuldade pessoal daquele professor específico, o diretor atinge uma verdade geral, pois, hoje, qualquer um que busque reivindicar para si o lugar da exceção é violentamente rejeitado como um blefador patético, que oculta sua impotência sob o disfarce da Lei. Parece que todos nós sabemos, de forma selvagem, algo que só deveria emergir ao fim de uma análise: o grande Outro não existe. Porém, é preciso perguntar, como faz Zupancic (2007): se é verdade que todos nós sabemos que o Outro não existe, será que efetivamente agimos como se soubéssemos disso? Esta pergunta é importante, pois é possível que, no final das contas, descubramos, para nossa própria surpresa, que por trás da aparente destruição das velhas crenças, subsiste pelo menos uma: a crença inconsciente na existência de Deus (LACAN, 1969-70/1992). Conforme Zupancic (2007), o que de hábito se descreve como a inexistência do Outro é uma tese que merece maiores precisões. Pois o que houve de fato foi uma descrença generalizada na possibilidade de que um pequeno outro qualquer possa ocupar o lugar do Outro. Pais, professores, líderes políticos, enfim, todos os outros suscetíveis de ocupar um lugar especial nas séries psíquicas inconscientes, passaram a ser alvo de uma crítica que não deixa ninguém de fora. O que existe é uma grande ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 201-213 03 Rosane 36.indd 203 16/12/2014 19:48:48 204 Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso e Roberto Calazans dificuldade de acreditar que um pequeno outro qualquer mereça ser catapultado ao lugar de grande Outro. “Em outras palavras, o que é abandonada é a possibilidade de um laço ou de um curto-circuito entre o pequeno e o grande Outro, a possibilidade de acreditar que o ‘pequeno outro’ possa ser o próprio modo de existência do grande Outro. Nenhuma pessoa concreta (pai, professor, presidente) é verdadeiramente a instância do Outro, porque eles são apenas humanos, inconsistentes, quando não completamente fracos e patéticos.” (ZUPANCIC, 2007, p.6) Mas, que não se pense que essa operação é inócua. Na medida em que ninguém está autorizado a se confundir com o Outro, entra em jogo também uma extraordinária operação de salvamento, na qual o lugar vazio nunca é questionado. O saldo dessa manobra é que o grande Outro permanece preservado como um lugar vazio. O lugar do Outro fica fora de qualquer mácula, mantido à distância do mundo; ele pode continuar “inteiro, não barrado e onisciente em sua ignorância, na medida em que não está ativo, que não opera em nenhum pequeno outro (o que significa dizer que ele está a priori isento de qualquer responsabilidade nesse nível)” (ZUPANCIC, 2007, p.7). É como se a não existência do Outro na realidade não o impedisse de continuar a exercer sua eficácia: afinal, nada mais indestrutível do que aquilo que não existe! Ou seja, se por um lado nenhum discurso consegue ser suficientemente sedutor ou persuasivo para demover o sujeito de sua descrença, resta ainda viva nele uma crença: a de que o Pai ausente... faz falta! O lugar vazio do Pai não é sem consequências: nos casos mais extremos, ele pode gerar tanto o apelo desesperado quanto a desistência resignada. Isso gera alguns paradoxos, tais como o apontado por Zizek (2009), em que o sujeito se ressente pelo fato de o Outro não existir e o culpa por isso. Conforme Rocha (2010) ilustra à perfeição: “Essa postura evoca a fala do protagonista de Fim de caso, de Graham Greene: ‘eu o odeio, Deus, como se você realmente existisse” (p.193). O que é uma nova versão da velha fórmula freudiana de que o Pai morto é ainda mais forte do que vivo. Note-se, portanto, que a inscrição do Nome-do-pai é compatível com um ambiente de descrença em figuras de autoridade. Isso não significa que a instalação do Nome-do-pai necessariamente ocorrerá; a ausência desse processo é nomeada por Lacan de foraclusão e resulta numa psicose. O importante a frisar aqui é que a falência da autoridade não possui uma relação direta de causalidade com a psicose; a dita falência não autoriza qualquer previsão acerca da escolha da estrutura pelo sujeito. Como afirma Maleval (2007), “o declínio da autoridade não é o declínio do Nome-do-pai: as modificações da lei social não têm qualquer efeito sobre a lei do significante” (p.155). ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 201-213 03 Rosane 36.indd 204 16/12/2014 19:48:48 “Novos sintomas” e declínio da função paterna: um exame crítico da questão 205 Apesar de não decidirem diretamente a estrutura, as mutações sociais sem dúvida impactam o modo como os fenômenos se apresentam nas diferentes estruturas. O enfraquecimento da adesão coletiva aos ideais leva o sujeito a uma errância e precariedade maiores, o que explica a prevalência de certas síndromes no momento atual (MALEVAL, 2007). Um exemplo são os recentes debates sobre o conceito de psicose ordinária (MILLER et al., 2005), cujas características se afastam do quadro tradicional daquela patologia: em vez de delírios e alucinações, passam a ter lugar fenômenos muito mais difusos e sutis. A neurose parece também se manifestar sob a forma dos “novos sintomas”. Apesar da nova roupagem, o importante a frisar aqui é que as mudanças ocorridas não concernem à lógica das estruturas subjetivas. “Mutações dos sintomas, consequentemente, e não das estruturas subjetivas” (MALEVAL, 2007, p.155). Novos sintomas Costuma-se reunir sob a rubrica de “novos sintomas” uma lista heteróclita de fenômenos: depressão, transtorno de pânico, bulimia, anorexia, novas adicções, etc. Tal fato por si só já deve nos advertir que lidamos com fenômenos cujas classificações conceituais talvez sejam muito diferentes entre si. Ao longo de nossa exposição, pretende-se demonstrar que as novas patologias não formam uma categoria conceitual bem delimitada, mas uma noção confusa, que mescla elementos cuja natureza é distinta. Aceitemos por ora os termos em que o problema é colocado. O ponto de partida clínico é que se assiste hoje a uma ascensão de patologias cujo ponto em comum seria sua profunda repelência à palavra, o que as tornariam impermeáveis à interpretação psicanalítica tradicional. O paciente parece imerso num sofrimento silencioso. O paradigma comumente tomado é o da toxicomania, na qual fica clara uma busca de gozo tão poderosa que parece suspender o poder simbólico da palavra. A primeira interrogação a ser feita acerca dos “novos sintomas” é saber se, de fato, correspondem à definição freudo-lacaniana deste conceito. Em psicanálise, o sintoma (symptôme) é uma formação do inconsciente que tem estrutura de linguagem. Ele é o resultado final de um processo de deslocamentos e condensações, o que permite por isso mesmo uma decifração a posteriori do seu sentido. O problema com esses “novos sintomas” é justamente que não se deixam abordar pela manobra interpretativa clássica, em que um sentido latente pode surgir para além do sentido manifesto. Num texto bastante elucidativo, Recalcati (2004) compara as operações exigidas na clínica clássica e na clínica contemporânea. Na clínica clássica, o sujeito chega com uma demanda de cura, de livrar-se de algo insuportável. A manobra ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 201-213 03 Rosane 36.indd 205 16/12/2014 19:48:48 206 Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso e Roberto Calazans analítica seria aqui dupla: tentar tanto uma transformação heurística quanto ética da demanda. Heurística, na medida em que a pré-interpretação que o sujeito faz de seu sintoma deve ser substituída pela busca de uma verdade inconsciente. Essa transformação heurística — da vontade de se curar em vontade de saber — se faz acompanhar também por uma mutação ética. “A transformação ética da demanda consiste em indicar ao sujeito a parte que ele tem na fabricação e na preservação de sua condição de sofrimento. Portanto, em fazer trabalhar no sujeito a dimensão ética da culpa” (RECALCATI, p.5). Na clínica contemporânea, essa dupla operação não parece possível. Pois o que está problematizado é a própria dimensão da demanda. Miller & Laurent (2005) chamam tal demanda de convulsiva, pois visa obter o objeto de gozo de forma direta e ininterrupta. É como se houvesse uma busca imediata pela satisfação, num curto-circuito em que o sujeito se poupa de se dirigir ao grande Outro simbólico na busca de gozo. Busca-se desse modo uma satisfação que não passa pelo Outro e sim pelo próprio corpo, e que constituiria uma forma de autoerotismo. Para circunscrever a dificuldade que uma demanda convulsiva coloca para o tratamento, recordemos que a demanda, em sua acepção clássica, sempre se dirige ao Outro simbólico. Ao demandar algo ao Outro, o sujeito experimenta o retorno de uma mensagem, o que o leva a ressignificar sua posição inicial. Ao mesmo tempo, uma vez que a demanda está fundamentalmente centrada na resposta do Outro, ela obriga o sujeito a sustentar um intervalo entre o pedido e a resposta, a suportar um adiamento da satisfação. Acontece que o discurso contemporâneo incentiva uma demanda que não se dirige ao Outro simbólico, pois o objeto de gozo está implicado de forma mais imediata. O sujeito tem a esperança de encontrar o objeto sob uma forma mais direta, sem passar pelas intempéries e acidentes de percurso que experimenta quando tenta encontrar a satisfação pelo viés do desejo do Outro. Ressalte-se neste ponto a importante influência do discurso capitalista na proliferação dos ditos “novos sintomas”. Não exatamente porque o capitalismo seja deles a causa, mas porque convida o sujeito a negar a castração pela via do objeto de consumo, oferecendo-lhe sem cessar uma série de artefatos tecnológicos destinados a tamponar a falta — cirurgias estéticas, medicamentos psiquiátricos, drogas para disfunção erétil, etc. No capitalismo contemporâneo, a atividade de consumo (ou seja, a fruição de um bem) torna-se mais valorizada do que a atividade produtiva (isto é, a construção de um bem, o trabalho necessário para transformar algo em mercadoria) (BAUMAN, 2008). Em termos psicanalíticos, diríamos que o gozo torna-se mais importante que o desejo (LUSTOZA, 2009). Por isso diz-se que no discurso capitalista houve uma ascensão ao zênite do objeto a. Ao contrário dos outros discursos, cuja função seria refrear o gozo, o discurso capitalista é o único dentre eles cuja função seria fomentar o gozo. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 201-213 03 Rosane 36.indd 206 16/12/2014 19:48:48 “Novos sintomas” e declínio da função paterna: um exame crítico da questão 207 Uma coisa é o discurso; outra, bem diferente, são as reações subjetivas a este discurso. Dessa forma, os “novos sintomas” devem ser situados como respostas subjetivas ao discurso que incita o gozo. A pergunta a ser feita aqui é: seriam tais respostas assimiláveis a sintomas? Nossa conclusão é um tanto paradoxal: pois o que os “novos sintomas” têm em comum é justamente o fato de... não serem sintomas! Pelo menos não no sentido freudo-lacaniano do conceito. Se apelarmos para o famoso quadro de respostas subjetivas, exposto por Lacan (1962-63/2005) no Seminário 10, teríamos que classificar os “novos sintomas” mais próximos do acting out, da passagem ao ato, até mesmo da inibição, que do sintoma. Comparemos: a) O acting out seria um ato impulsivo em que o sujeito visa sair de um impasse simbólico de forma desesperada, mostrando algo ao Outro. Tal ato pressupõe uma demanda-demanda que não é posta em palavras, mas que antes mostra alguma coisa ao Outro. Na verdade, mesmo quando o acting se dá mediante o uso de palavras, estas visam expor à luz do dia alguma coisa que em geral se encontra velada, oculta. O que o acting mostra? Para responder a isso, voltemos ao comentário de Lacan (1962-63/2005) sobre o famoso caso do Homem dos Miolos Frescos, de E. Kris: o analista prova de maneira irrefutável que seu paciente, que se apresentara como um plagiador, não havia copiado o trabalho de um rival. Impedido de ocupar o lugar de ladrão de ideias, o paciente logo em seguida comete um acting out: ao sair da sessão, passa num restaurante exótico e consome miolos frescos, contando tal fato ao analista na sessão seguinte. O efeito da interpretação de Kris foi deixar o paciente sem lugar, como se toda a verdade do sujeito tivesse sido dita, sem espaço para qualquer zona de sombra. Por isso o acting tem sempre a função de marcar um ‘isso não é tudo’: resta algo por dizer. “Com os miolos frescos, o paciente simplesmente faz um sinal para Kris: tudo o que o senhor diz é verdade, mas simplesmente não toca na questão; restam os miolos frescos. Para mostrá-lo ao senhor, vou comê-los ao sair, para lhe mostrar na próxima sessão” (LACAN, 1962-63/2005, p.139). Se esse resto não pode ser dito, a saída é que ele seja visto, visibilizado, exposto. “O essencial do que é mostrado é esse resto, é sua queda, é o que sobra nessa estória” (p.139). O objeto no acting deixa seu estado habitual de causa ausente do desejo e sobe à cena sob a forma de uma exibição de gozo. A função da mostração no acting fica patente num caso clínico relatado por Alberti (1998), em que o paciente consumia e negociava drogas de maneira ostensiva no playground do próprio prédio do pai. Um pai que, muito absorvido por sua vida profissional, com frequência ignorava o filho. A analista interpreta a mostração no playground como um “apelo à função paterna, em que a droga é o instrumento de transgressão para fazer existir a lei” (p.127). ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 201-213 03 Rosane 36.indd 207 16/12/2014 19:48:48 208 Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso e Roberto Calazans Em que diferem acting e sintoma? Lacan (1962-63/2005) ensina que o acting clama por interpretação; já o sintoma, apesar de interpretável, não é essencialmente um apelo à interpretação. “O sintoma não é como o acting out, que pede interpretação, pois (...) o que a análise descobre no sintoma é que ele não é um apelo ao Outro, não é aquilo que mostra ao Outro. O sintoma, por natureza, é gozo, não se esqueçam disso, gozo encoberto, sem dúvida (...), não precisa de vocês como o acting out, ele se basta.” (LACAN, 1962-63/2005, p.140) Ou seja, o sintoma não mostra nada, o gozo está nele encoberto. Eis aqui uma diferença crucial: no sintoma há gozo encoberto, ao passo que no acting há mostração de gozo. Pode-se perguntar: se algumas das novas patologias são na verdade actings, por que razão seriam mais resistentes à manobra da interpretação que os sintomas? Aceitando a observação dos clínicos de que as patologias do ato são menos favoráveis à interpretação, e se o acting é uma dessas patologias, por que razão seria mais resistente à intervenção, se a essência do acting é ser justo um apelo — coisa que um sintoma não é fundamentalmente? Desde Freud (1914/1969), sabe-se que a elaboração e a verbalização envolvem uma suspensão do ato motor. Na análise, um impulso que se dirigiria à esfera motora pode ser canalizado para a esfera psíquica, o que significa que o ato de pensamento envolve uma colocação entre parênteses do ato motor. De modo inverso, quando a atuação prevalece, torna-se mais complicada a abertura à intervenção analítica e à mobilização do processo de pensar. Além disso, como no acting existe invariavelmente um destinatário do ato, o sujeito não se implica de forma direta naquilo que faz. Acrescentem-se, ainda, os efeitos disruptivos e desorganizadores que a subida à cena do objeto a provoca (MILLER, 2007); o que pode de fato trazer dificuldades adicionais de manejo para o tratamento. b) Passagem ao ato — A passagem ao ato envolve justamente a saída do sujeito da cena. Não havendo mais lugar para si numa configuração simbólica determinada, o sujeito então se evade da cena. Assim, a passagem ao ato é o oposto do acting: enquanto no acting o sujeito se esforça por restituir um lugar na cena do Outro, na passagem ao ato o sujeito sem lugar na cena se abandona à posição de resto. Por isso o sujeito na passagem ao ato não demanda mais nada ao Outro; ele não se endereça mais a ele, apenas se identifica ao resto que caiu da cena. No momento da passagem ao ato, temos uma situação de fato pouco propícia a um tratamento, na medida em que precisamente a dimensão da demanda é abolida e não há, portanto, apelo dirigido ao Outro. Tarrab (2005) conta o caso de uma paciente cuja única atividade é ficar o tempo inteiro na frente do computador. Apesar dos desesperados protestos da ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 201-213 03 Rosane 36.indd 208 16/12/2014 19:48:48 “Novos sintomas” e declínio da função paterna: um exame crítico da questão 209 família, ela persiste em seu vício em Internet, querendo apenas permanecer só, sem que ninguém a incomode. Ela não apela, nada demanda — isso porque na passagem ao ato o sujeito não age para inquietar o pai, a família, ou alguém específico (HARARI, 2008), ele simplesmente se demite da ficção simbólica, saindo de cena. Nesse caso, Tarrab afirma ser impossível retirar a garota de sua obstinada indiferença pela via da decifração do sentido. A dificuldade do tratamento repousa aí, e isso o afasta da operação psicanalítica clássica. c) Inibição — A inibição não envolve a execução de um ato, mas sua ausência. Ela é a restrição de uma função do Eu, tendo como finalidade evitar um conflito. Tal conflito surgiria caso fosse realizada certa atividade, ligada àquela função (FREUD, 1926 [1925]/2006). Não seria o caso de algumas dessas novas patologias poderem ser classificadas como inibições? Com todo cuidado de não fazer generalizações ambiciosas, podem-se apontar, por exemplo, alguns casos de depressão como formas de inibição, em que o sujeito renuncia ao desejo por temer que isso reative o conflito e as terríveis censuras superegoicas. A dificuldade clínica com a inibição é que ela é um momento de parada no tratamento: como é feita para impedir a emergência do conflito, este fica impossibilitado de se articular, ainda que de modo simbólico. Enquanto a inibição evita o surgimento do conflito, o sintoma supõe um conflito já instalado. Por isso é preciso que a inibição se transforme em sintoma para que o tratamento possa avançar. Do que foi aqui exposto conclui-se que o traço em comum entre esses “novos sintomas” é o de não serem sintomas — pelo menos não no sentido freudiano de mensagem latente. Pode-se usar a expressão de forma legítima caso a empreguemos no sentido mais amplo de sinthoma. É o que faz, por exemplo, Tarrab (2005) na seguinte passagem: “a toxicomania, a bulimia, a anorexia, os ataques de pânico e tudo o mais que colocarmos nesse saco estão muito próximos do que Lacan chama a operação selvagem do sintoma, e vão na contramão da vertente simbólica do sintoma como mensagem. É o sintoma que não pede nada, que é fixação de gozo.” (TARRAB, 2005, p.3) Este uso é importante e pode ser interessante, dependendo do nível de análise em que nos posicionamos. Contudo, acreditamos na necessidade de abandonar o nível da generalidade quando falarmos de respostas subjetivas específicas, a fim de podermos ter uma ideia mais adequada da riqueza das contribuições de Lacan para o campo. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 201-213 03 Rosane 36.indd 209 16/12/2014 19:48:48 210 Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso e Roberto Calazans Conclusão Escuta-se muito hoje que as patologias atuais impõem desafios e dificuldades para a teoria e a técnica psicanalítica. O que tentamos aqui defender foi a ideia de que as categorias tradicionais da psicanálise não foram ultrapassadas ou colocadas em xeque pelas patologias contemporâneas, pois a psicanálise tem, sim, instrumentos conceituais para pensá-las. Muitos desses fenômenos novos não são de fato redutíveis à definição tradicional do sintoma, pois seriam na verdade classificáveis como acting out, passagem ao ato e inibições. Temos razões para supor inclusive que essa lista não é exaustiva, pois no próprio Seminário 10, Lacan (1962-63/2005) elenca uma série de outras respostas subjetivas (impedimento, embaraço, efusão, etc.), cujo potencial ainda foi pouco explorado no campo analítico e que poderiam também servir como ferramentas conceituais para pensar a clínica contemporânea. No entanto, devemos fazer justiça à observação, comum na literatura sobre os “novos sintomas”, de que estes são inabordáveis pela decifração. Procuramos assinalar as dificuldades de manejo que as ditas patologias do ato apresentam. A interpretação pelo sentido não costuma funcionar nesses casos por diferentes razões. No caso do acting, observou-se como a adoção pelo sujeito da via da descarga motora e não da verbalização introduz um fator complicador no tratamento. A passagem ao ato é ainda mais preocupante, por ser um ato que não demanda mais nada ao Outro. Se não há demanda, a própria condição mínima para se fazer uma análise é questionada. Já a inibição — que é mais propriamente situável como uma ausência de ato — é problemática por supor uma paralisia do desejo: o desejo não está deslocado como no sintoma, pois a própria expressão desse desejo foi ceifada. Embora fuja ao escopo desse artigo discutir o tipo de intervenção apropriada nesses casos, por ora queremos apenas sinalizar que a psicanálise tem um arsenal teórico e técnico para pensar tais fenômenos. Devemos conter nossa ânsia por novidades e não ficarmos desorientados pelo que aparece como inédito. Se a nossa civilização parece incitar uma busca pelo gozo sem precedentes, é necessário voltar aos fundamentos da nossa teoria e lembrar que tal busca é sempre marcada por uma impossibilidade. Retomando aqui o argumento de Godino Cabas (2009), há uma impossibilidade de o gozo saturar completamente o desejo. O sinal dessa impossibilidade aparecerá sob a forma de um afeto, “uma circunstância na qual o sujeito do inconsciente se vê profundamente afetado. Ora por uma decepção (‘não era isso’), ora por um estado de tédio” (p.236). Ou seja, transposto o umbral do princípio do prazer e iniciada a busca incessante de gozo, no caminho para ele há algo que atualiza o mal-estar e que indica que o gozo encontrado não é ainda suficiente. O excesso de gozo traz tédio ou decepção. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 201-213 03 Rosane 36.indd 210 16/12/2014 19:48:48 “Novos sintomas” e declínio da função paterna: um exame crítico da questão 211 Serão precisamente esses afetos (tédio, decepção, angústia) que podem possibilitar uma via de saída e de acesso a um desejo. Se o método analítico tem ainda alguma chance de curar, é por encontrar nesses afetos um ponto de apoio para a eficácia de intervenção. Talvez seja pouco preciso dizer que tais afetos constituem um limite ao gozo. Um afeto não é exatamente um limite, uma vez que não leva de fato ao refreamento do gozo. Ele não representa um dique de contenção, tal como era a lei repressiva dos tempos freudianos. Mas ele é um limite num sentido mais largo, como um índice de que algo vai mal. Tampouco podemos dizer que tais afetos necessariamente suscitarão uma demanda. É essa a dificuldade dos “novos sintomas”, o não endereçamento ao Outro. Mas, insistimos, embora a presença de tais afetos não seja condição suficiente para a saída do gozo autista, representa sua condição necessária. Um esclarecimento importante em relação ao diagnóstico: pensamos que os “novos sintomas” são fenômenos compatíveis em principio com as três estruturas clínicas. Por exemplo, a passagem ao ato ocorre tanto na psicose quanto na neurose ou na perversão. O que acontece é que os “novos sintomas” impõem uma dificuldade a mais na definição inicial do diagnóstico, levando o clínico a não conseguir classificar de imediato qual a estrutura clínica em jogo. Isso não equivale a uma abolição do diagnóstico estrutural, mas a admissão de que nem sempre é possível decidir com convicção a classificação do caso num dado momento. A função das entrevistas preliminares ganha aqui uma justificativa adicional, pois será preciso que o analista se oponha às atuações e que suas intervenções visem promover um corte do excesso de gozo. Somente quando o “sintoma” está em perda de gozo é que o sujeito pode colocá-lo em jogo pela via da palavra. Os “novos sintomas” impõem, portanto, uma questão preliminar ao tratamento, por constituírem uma situação de urgência subjetiva. A urgência demanda do analista um manejo para que o sujeito seja colocado em condições de fazer análise e de aceder à regra fundamental. Que fique claro: assegurar que o sujeito tenha condições de respeitar minimamente o dispositivo da associação livre não significa que ele esteja em análise, mas é um passo prévio a isso, uma condição de possibilidade do tratamento. O diagnóstico quase sempre só pode ser feito após se obter um apaziguamento da urgência. Isso significa que urgência é um fator que complica a emissão do diagnóstico diferencial. De qualquer forma, é importante frisar que os “novos sintomas” não são apanágio de um estrutura clínica específica. Eles não apenas não servem para fazer o diagnóstico diferencial como o dificultam. Em relação à falência da autoridade simbólica, é importante frisar que tal falência está decerto articulada à proliferação das patologias do ato. O que se ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 201-213 03 Rosane 36.indd 211 16/12/2014 19:48:48 212 Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso e Roberto Calazans procurou demonstrar aqui é que o dito declínio não significa necessariamente declínio do Nome-do-pai. O Nome-do-pai poderá estar inscrito ou não, o que deve ser diagnosticado caso a caso. Uma estrutura discursiva que incita ao gozo certamente terá impactos diferenciados sobre as estruturas clínicas — neurose, psicose e perversão. Deve-se aqui pensar de maneira estrutural: um fenômeno (por exemplo, uma passagem ao ato) até pode ter uma organização interna, mas seu sentido e função serão pensados a partir da sua articulação aos outros na lógica da estrutura. No exemplo da passagem ao ato, são diversos os recursos com os quais o sujeito conta para lidar com ela: estes recursos serão muito diferentes numa psicose (em que não há inscrição do Nome-do-pai) e na neurose (em que há inscrição). Recebido em 5/3/2012. Aprovado em 11/6/2012. 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XVII n. 2 jul/dez 2014 201-213 03 Rosane 36.indd 213 16/12/2014 19:48:48 03 Rosane 36.indd 214 16/12/2014 19:48:48 A crítica como método no retorno a Freud Marta Regina de Leão D’Agord Marta Regina de Leão D’Agord Psicóloga, mestre em Filosofia, doutora em Psicologia; professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional (Instituto de Psicologia, UFRGS). Resumo: Em seu projeto de retorno a Freud, Lacan propõe um diálogo com outras disciplinas para a análise dos conceitos psicanalíticos. Neste artigo, analisa-se a contribuição de conceitos de Linguística, Lógica e Matemática para a formulação do conceito de sujeito do inconsciente, tal como encontramos no matema “um significante representa um sujeito para outro significante”. O termo ‘crítica’ é referido à análise da racionalidade necessária para se atingir um conhecimento. Este trabalho mostra que a análise do conceito de sujeito do inconsciente conduziu Lacan à elaboração de uma lógica do significante. Esta lógica poderá ser nomeada como uma lógica psicanalítica. Palavras-chave: Psicanálise, crítica, método, lógica. Abstract: The critique as method in the return to Freud. In his project of a return to Freud, Lacan proposes a dialogue with other disciplines for the analysis of psychoanalytic concepts. This paper presents an analysis of the contribution of concepts from linguistics, logic and mathematics in the elaboration of the concept of unconscious subject, as appears in the matheme: a signifier represents a subject to another signifier. The term critique refers to the analysis of rationality necessary to reach knowledge. This work concludes that the formulation of the concept of the unconscious subject leads Lacan to the development of a signifiant’s logic. This logic may be named as a psychoanalytical logical. Keywords: Psychoanalysis, critique, method, logic. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 215-227 04 Dagord 36.indd 215 16/12/2014 23:59:05 216 Marta Regina de Leão D’Agord Introdução Este trabalho analisa, na obra de Jacques Lacan, momentos que indicam a apropriação da crítica como método para a realização do projeto de retorno a Freud. Ao longo dessa crítica é possível identificar a emergência de uma lógica do significante a partir da elaboração do conceito de sujeito do inconsciente. Esse processo encontra seu momento privilegiado quando Lacan interpreta a expressão “nur einen einzigen Zug” de FREUD (1921c/1976, p.117), “apenas um traço isolado” (FREUD, 1921c/1987, p.135), com os aportes linguísticos, lógicos e matemáticos. O que seria uma lógica do significante? Tratar-se-ia de uma lógica no sentido do organon aristotélico, de instrumento para a produção de conhecimento? Se pensarmos que o instrumento é um conceito ou um modelo que não tem existência no real, mas que permite o acesso ao real, uma lógica seria um instrumento. Seria essa a função de uma lógica do significante? Um instrumento para acessar ou intuir o sujeito do inconsciente? A leitura da lógica como instrumento permite uma interpretação do uso da topologia por Lacan. Sobre esse uso encontramos duas vertentes nas pesquisas atuais. Uma primeira vertente poderia ser chamada de comparativa, a outra de estrutural. Para Conté (1996), representante da vertente comparativa, as superfícies topológicas seriam modelos para explicar o sujeito do inconsciente. Entretanto, para os representantes da vertente estrutural (EIDELSZTEIN, 1992 e DOUMIT 1996), a topologia em Lacan é algo mais do que um modelo. Para Eidelsztein (1992), os esquemas, grafos, superfícies e nós têm a mesma estrutura do que se quer representar, a saber, o sujeito. Doumit (1996) também faz essa leitura, ao observar que Lacan elabora os lineamentos de uma lógica “com um estilo e uma linguagem tais que não se apresentam como exteriores ao objeto de que falam” (p.297). Essas pesquisas trabalham com a hipótese de que Lacan buscava, no campo da Matemática e da Lógica, uma forma de acesso simbólico ao real, isto é, um método. “Para Lacan, observa Zizek (1997), a ciência moderna tem relação com o Real (matemático) que se encontra sob o universo simbólico” (ZIZEK, 1997, apud GLYNOS & STAVRAKAKIS, 2001, p.4). Considerando-se que o único acesso ao real se dá pela escrita, para se fazer ciência é preciso criar uma forma escrita, isto é, simbólica, de acesso ao real. Portanto, o esforço de Lacan ao criar esquemas e grafos (modelos topológicos bidimensionais) e, mais tarde, trabalhar com toros, cross-caps, garrafa de Klein e enlaces borromeanos (modelos topológicos tridimensionais) teria como objetivo a busca de uma escrita lógico-matemática e alfanumérica do real. Lacan empregou, primeiramente, o termo ‘categoria’ para falar de Real, Imaginário e Simbólico, como letras para descrever três zonas distintas do seu esquema R. Mais tarde, substituiu a noção de categoria pela de dimensão, sendo ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 215-227 04 Dagord 36.indd 216 16/12/2014 23:59:05 A crítica como método no retorno a Freud 217 a dimensão uma invariante topológica fundamental. E, por fim, a dimensão foi substituída pela noção de consistência na topologia dos enlaces borromeanos. Nessa trajetória, é possível mapear um projeto científico caracterizado pela busca de aperfeiçoamento de uma forma escrita para dar conta do sujeito do inconsciente. Podemos demarcar um início dessa trajetória de delimitação do real no escrito “A carta roubada” (1956/1998), quando Lacan aborda o jogo do “par ou ímpar” e suas variações: sinais de mais (+) e menos (-) ou “cara ou coroa”. Para Matherat (2007), esse texto contém uma parte matemática que se apoia no exemplo de como uma cadeia significante pode fazer aparecer, enquanto estruturada, uma cadeia aleatória. A partir de um apólogo extraído do conto homônimo de Edgar Allan Poe (1809-1849), Lacan demonstra que, a partir de um primeiro lance, que pode ser cara ou coroa, inicia-se aleatoriamente uma sucessão de lances em que: cara sucede à cara; coroa sucede à cara; cara sucede à cara; coroa sucede à coroa; e assim por diante. Poderemos, então, elaborar uma combinatória com todas as possibilidades de seriação a partir de um primeiro lance. Mesmo assim, o primeiro lance mantém-se não calculável, na medida em que depende apenas do acaso. O acaso do primeiro lance no jogo do cara ou coroa equivaleria ao real. Dado um primeiro sorteio ao acaso, uma estrutura poderá determinar as possibilidades dos novos sorteios. Com o cálculo das probabilidades, buscamos cercar e limitar o real por meio do simbólico. Quaisquer que sejam os resultados de uma série de sorteios ao acaso, esses resultados já entram em um sistema predeterminado, em uma estrutura que os determina. Porém, a estrutura simbólica não impede que o acaso continue existindo. Portanto, o simbólico não esgota o real. O projeto crítico Lacan (1953/1966) observou que a Psicanálise, como disciplina, devia seu valor científico aos conceitos elaborados no progresso da experiência de Freud. Entretanto, esses conceitos, por ainda estarem mal criticados, conservavam a ambiguidade da língua vulgar [“d’être encore mal critiqués et de conserver por autant la ambiguité de la langue vulgaire” (LACAN, 1953/1966, p.240-241)]. Ao designar como mal criticados os conceitos psicanalíticos, Lacan anunciava que a tarefa crítica estava incluída em seu projeto de “retorno a Freud”. O que seria uma crítica em Psicanálise? A pesquisa etimológica de Heidegger (1965/2001) indica que ‘crítica’, do grego crinein, significa diferenciar, realçar, deixar ver o diferente como tal em sua diferença. Nessa perspectiva, o que é diferente só o é porque é diferente com referência a algo. Atenção: caracteres gregos ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 215-227 04 Dagord 36.indd 217 16/12/2014 23:59:05 218 Marta Regina de Leão D’Agord Uma crítica, na acepção preconizada por Kant, indaga de que modo a razão chega ao conhecimento, isto é, a crítica avalia as condições para o conhecimento, dados os limites da experiência. Trata-se, em Kant, de uma crítica enquanto estabelecimento de limites para a razão. Diferenças e limites. Seriam essas as duas fontes críticas das quais se originaria o projeto lacaniano de retorno a Freud? A referência a diferenças e limites aparece no diálogo da Psicanálise com outros campos do conhecimento. Lacan (1953/1998) propõe a atividade comparativa enquanto busca de equivalências entre conceitos psicanalíticos e conceitos de outras disciplinas. “Parece-nos que esses termos [os psicanalíticos] só podem esclarecer-se ao estabelecermos sua equivalência com a linguagem atual da antropologia ou com os mais recentes problemas da filosofia, onde, muitas vezes, a psicanálise só tem a se beneficiar” (LACAN, 1953-1966/1998, p.241). Os limites, no projeto crítico de Lacan, serão propostos a partir do estabelecimento de equivalências com a linguagem da Antropologia, da Filosofia e da Lógica. A atividade comparativa responderá, portanto, pela crítica enquanto limite. Por outro lado, há uma dimensão do benefício que a crítica poderá trazer para a Psicanálise, enquanto fundamentação teórica necessária para uma disciplina que pretenda valor científico. Esse benefício seria a afirmação do que é o próprio da Psicanálise, isto é, em que a psicanálise se diferencia das outras ciências. Um terceiro aspecto do projeto crítico de Lacan tem como demarcador o uso das expressões “a experiência de Freud” e “a experiência freudiana”. Essas expressões, retomadas várias vezes por Lacan, seja nesse texto dos Escritos seja no Seminário, demarcam um distanciamento crítico em relação ao que provém da experiência freudiana. Consideramos que este terceiro aspecto do projeto crítico de Lacan caracteriza sua proposta de não romper com a terminologia, mas de contextualizar, na experiência freudiana, a origem dos termos. É nessa perspectiva tríplice de crítica que é preciso considerar a leitura do termo freudiano einziger Zug por Lacan (1961-1962/1996). “Somente um traço isolado” (nur einen einzigen Zug) é uma expressão utilizada por Freud (1921c/1987) para se referir a uma identificação com apenas um traço de outra pessoa. A leitura crítica que Lacan realiza do conceito de identificação pode ser analisada considerando as três vertentes que apontamos aqui. Há uma fundamentação teórica do conceito de identificação no diálogo com a Lógica e com a Linguística; há a afirmação da teoria psicanalítica com a elaboração do conceito de identificação simbólica, diferenciando-o do conceito de identificação imaginária. A identificação imaginária será caracterizada como biunívoca, tendo o estádio do espelho como paradigma. A identificação imaginária origina-se da imagem de si mesmo como uma totalidade que é antecipada pelo infans em seu encontro com a sua imagem refletida. Essa imagem oferecida pelo reflexo especular ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 215-227 04 Dagord 36.indd 218 16/12/2014 23:59:06 A crítica como método no retorno a Freud 219 é correspondência biunívoca, e se assim não fosse, não geraria o júbilo como efeito da antecipação de uma imagem de totalidade. Já a identificação simbólica será comparada à função significante e seu paradigma será o traço unário. Se a primeira corresponde ao eu ideal, a segunda ao ideal de eu. E, por fim, a noção de “um traço isolado”, na obra de Freud (1921c/1987), oferece um ponto de partida para a concepção de lógica do significante. O que revela o projeto lacaniano de continuidade da pesquisa psicanalítica sem ruptura com a obra freudiana. A aplicação da crítica enquanto método na leitura do unário como diferença “A abordagem moderna do Um é escritural, conforme o que um dia extraí de Freud, o einziger Zug. Essa é a expressão com que Freud rotula uma das formas do que chama de identificação. Eu a traduzi, de uma forma que persiste, por traço unário.” (LACAN, 1968-1969/2008, p.119) Kant criticara o conceito filosófico de unidade, mostrando que a unidade não é o um, mas uma função, a função sintética. Lacan, por sua vez, vai mostrar que o traço unário da experiência freudiana é para ser considerado como uma função: a função significante. Assim, a identificação do sujeito psíquico é para ser buscada não em uma unidade, como um ser, no sentido de algo já dado, mas em uma relação entre significantes. Lacan articula os designadores de Frege, o conceito de valor linguístico de Saussure, e a definição de signo de Peirce para pensar a função significante, isto é, o significante como o que pode ser apagado, isto é, que pode ser substituído por outro. A diferenciação dos designadores entre Sinn e Bedeutung por Frege (1848-1925), posta em relação com a concepção de valor linguístico de Saussure (1857-1913) e com o fundamento do signo em Peirce (1839-1914), permitirá a Lacan fundamentar o conceito de sujeito do inconsciente com a concisão do matema “um significante representa um sujeito para outro significante”. A relação entre um significante e outro significante é que vai produzir um sujeito. Um significante sozinho nada produz. Por sua vez, a concepção de função do significante supõe um diálogo com a Matemática, mais especificamente com a teoria dos conjuntos. Tomemos o conceito de número para analisar qual seria a comparação possível com o conceito de sujeito do inconsciente. Um número é uma propriedade de um conjunto. Se um conjunto tem a propriedade dois, dizemos que “nesse conjunto há dois elementos”. Assim, o número ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 215-227 04 Dagord 36.indd 219 16/12/2014 23:59:06 220 Marta Regina de Leão D’Agord dois poderá ser representado ou pelo algarismo dois ou pelo conjunto formado por dois elementos. Essa propriedade de um conjunto é também chamada de cardinal. Diferentemente do cardinal, o conceito de ordinal é relacionado à sucessão ou vizinhança. Qual é o número seguinte a um número dado? É aquele que se refere ao conjunto com um elemento a mais. Logo, o número seguinte é aquele que é representado por um conjunto onde há “Um a mais”. Assim, para que um conjunto A seja diferente de um conjunto B, é preciso que haja pelo menos um elemento em A que não esteja em B, ou vice-versa. Este elemento vai ser o um mais, o que faz a diferença entre os dois conjuntos. Se definirmos um conjunto pelos seus atributos, pode haver um conjunto mesmo quando não existam elementos. Ou seja, o conjunto é uma abstração formada a partir de uma definição de atributo, por exemplo, o atributo “quadrados redondos”. Por sua vez, um atributo ou designador pode ser analisado como denotação ou como conotação. É nessa perspectiva que Frege diferenciou “o caráter informativo de duas afirmações de identidade que contenham termos correferenciais, distinguindo o referente (Bedeutung) de um nome do seu sentido (Sinn)” (BRANQUINHO, 2006, p.670). O objeto ao qual o termo se aplica é o referente. E o sentido do termo contém o modo de apresentação de sua referência. Por exemplo, os nomes Edson Arantes do Nascimento e Pelé designam a mesma pessoa. Todavia, as frases: “Pelé é Pelé” e “Pelé é Edson Arantes do Nascimento” não têm o mesmo valor. “Pelé é Pelé” é uma frase que simplesmente expressa a identidade de uma pessoa consigo mesma. “Pelé é Edson Arantes do Nascimento”, por outro lado, tem valor informativo. Uma pessoa que descobre que “Pelé” e “Edson Arantes do Nascimento” designam a mesma pessoa não está meramente descobrindo a relação de identidade que uma pessoa tem consigo mesma, pois isso ela já sabia, ao menos implicitamente. Os nomes Edson Arantes do Nascimento e Pelé têm a mesma referência, mas não têm o mesmo sentido. É preciso, então, retomar o conceito de valor em linguística, o qual é constituído pelos princípios de troca e comparação. Pelo primeiro princípio, uma coisa dessemelhante é suscetível de ser trocada por outra coisa cujo valor resta determinar. Trata-se de uma significação. Pelo segundo princípio, coisas semelhantes podem ser comparadas com aquela cujo valor está em causa. Trata-se de uma oposição. Alguns exemplos, apresentados por Saussure (1916/1995), permitem compreender o alcance da concepção de valor em Linguística: O português carneiro ou o francês mouton podem ter a mesma significação que o inglês sheep, mas não o mesmo valor, pois ao falar de uma porção de carne preparada e servida à mesa, o inglês diz mutton e não sheep. Eis a diferença de valor entre as palavras sheep e mouton. Sheep tem a seu lado um segundo termo, mutton, o que não ocorre com a palavra portuguesa ou com a palavra francesa. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 215-227 04 Dagord 36.indd 220 16/12/2014 23:59:06 A crítica como método no retorno a Freud 221 A palavra sheep, pode significar carneiro, mas sheep, quando acompanhado por mutton, terá outra significação. Carneiro no contexto campo terá uma significação, mas carneiro, empregado em relação à mesa, terá outra significação. Há uma mudança de valor. Um significante (carneiro) produz uma significação (alimento) desde que posto em relação a outro significante (prato). Retomando os designadores, a palavra carneiro tem duas denotações (referentes): aquele animal e aquele tipo de carne. E a decisão a ser tomada quanto à significação em questão depende do contexto, isto é, do significante que vem antes ou depois no enunciado. Isto é, depende dos outros elementos do conjunto (enunciado) do qual faz parte a palavra carneiro. O que é introduzido, através diferença entre as apresentações de uma referência, é a função significante. Os nomes Edson e Pelé, mesmo que sejam a mesma pessoa, designam, diferentemente, o mesmo referente. Eis a diferença significante. A função significante gera, por sua vez, a distinção entre a função conotativa e a função denotativa. Outra diferença introduzida pela função significante será aquela entre as classes e os conjuntos. As classes respondiam pela relação de cada ente com determinada classe como um universo no qual ele estaria incluído ou não. Por exemplo, se um ente não estivesse incluído na classe x, ele estaria necessariamente incluído na classe não x, o complementar da classe. É preciso agora abordar as relações entre os membros de uma classe. É a essa questão que a teoria dos conjuntos responde. Pois não é apenas pela presença ou ausência de um atributo que é possível definir se determinado ente está incluído ou não em determinada classe. Logo, uma classe, enquanto universo, não é suficiente para trabalhar o conceito de identificação. Lacan compara, então, o conjunto vazio ao Outro enquanto lugar dos significantes. Dada a propriedade “x é diferente de si mesmo”. Dado que não existe um elemento que seja diferente de si mesmo, esse é um conjunto vazio. O conjunto vazio é, portanto, um conjunto que existe, mas que não tem elementos. Pelo princípio da extensionalidade, poderemos afirmar que há apenas um conjunto vazio. Se tivermos dois conjuntos, A e B, com exatamente os mesmos elementos, então se trata do mesmo conjunto e não de conjuntos diferentes. Ou seja: A = B. Para um conjunto A ser diferente de um conjunto B, é preciso que haja pelo menos um elemento em A que não esteja em B, e vice-versa. Dessa forma, só há um conjunto vazio, pois se houvesse dois candidatos distintos, um deles teria que conter um elemento que não se encontrasse no outro. Caso contrário seria o mesmo conjunto, o conjunto vazio. Assim como não há dois conjuntos vazios, não há Outro do Outro. Não há um sentido em um significante, assim como não há outro escondido atrás de um espelho. Não há nada senão a sucessão de significantes. Um corte nessa sucessão, ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 215-227 04 Dagord 36.indd 221 16/12/2014 23:59:06 222 Marta Regina de Leão D’Agord enquanto reordenamento de significantes, será produzido pelo sujeito do inconsciente no ato falho, no chiste, no sonho e no sintoma. Essa ruptura é que faz com que surja a possibilidade de novos sentidos. Mas algo permanece o mesmo? Lacan (1961-1962/2003) explica a identidade própria ao significante a partir de uma imagem criada por Saussure. Considerando-se “dois expressos Genebra-Paris das 8:45 da noite que partem com 24 horas de intervalo. Aos nossos olhos, é o mesmo expresso, e no entanto, provavelmente, locomotiva, vagão, pessoal, tudo é diferente” (SAUSSURE, 1916/1995, p.126). Ou seja, a realização material dos expressos é diferente. Essa imagem permite ilustrar a concepção de que o traço unário se realiza pela sucessão na qual se agrega um a mais a cada vez, por isso, a cada vez diferente. O significante é fecundo porque não pode ser idêntico a si mesmo. No exemplo do expresso das 8:45 da noite, a diferença, o um a mais, relaciona-se às condições materiais diferentes, ou seja, a cada nova edição do traço, a realização material do traço é outra. Poderíamos nos surpreender com essa abordagem da identificação a partir da função significante? Não, se pensarmos que se trata do significante em oposição ao significado, e da precedência do significante sobre o significado. O leitor se surpreenderá ao perceber que se trata de tematizar a função significante comparando-a com a função matemática. Essa função matemática é possível encontrar também na concepção de fundamento do signo em Peirce. Vamos, pois, retomar a definição de signo para observar quando surge a função. Um signo, ou representamen, para Peirce (1977), “É aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denominamos o interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo de ideia, o fundamento do representamen.” (PEIRCE, 1977, p.36) O fundamento do signo poderia ser equivalente a um operador de função, uma função que definiria o contexto em que determinado signo é apresentado. Seria em comparação ao fundamento do signo que Lacan desenvolveria um conceito de função significante, isto é, uma abordagem do significante como uma produção de efeitos de significação? Peirce abordara a potencialidade do signo de produzir algo na mente de alguém a partir de uma relação entre um primeiro signo e um segundo signo. Aquilo que produz essa relação, e que é chamado de fundamento, é algo em comum entre o primeiro e o segundo signo. Assim, é esse fundamento, enquanto exterior à tríade (signo, interpretante, objeto) que produz a equivalência sem a qual não haveria produção de ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 215-227 04 Dagord 36.indd 222 16/12/2014 23:59:06 A crítica como método no retorno a Freud 223 sentido. Esse fundamento que não é explicitado é como uma função significante, a produção de relações entre significantes sem que o sujeito o saiba. A função significante “É o significante que corta, é ele que introduz a diferença como tal no real, e justamente na medida em que não se trata de diferenças qualitativas.”1 (LACAN, 1961-1962/1996, p.58, tradução livre) A elaboração de uma lógica do significante para a teorização sobre o sujeito do inconsciente tem dois parâmetros: o matema “um significante representa um sujeito para outro significante” e a formulação da identificação do significante. Vamos a seguir articular essas dois demarcadores. O matema “um significante representa um sujeito para outro significante” introduz a serialidade. E uma série implica que sempre haverá um a mais, um significante a mais. Portanto, a serialidade introduz a diferença necessária a um significante para ser o que é. E aqui entra a questão matemática e também linguística da seriação. Esse conceito permite pensar a relação do sujeito do inconsciente a um primeiro significante que será denominado de ‘traço unário’. É o que vem depois, isto é, o “um a mais” de uma série, que produz o sujeito para um primeiro significante, e este primeiro está perdido, está fora da série. Assim, ao buscar na Matemática uma homologia, Lacan introduz temas que seguirá abordando na década seguinte, quando o “a mais” será também um “a menos”, e ambos serão relacionados ao par ordenado S1 e S2, e à emergência do sujeito do inconsciente e do objeto a como mais-de-gozar. Já o aporte para trabalhar o significante como diferença provém da Linguística. Saussure (1916/1995) aborda as diferenças e as oposições em um sistema de Língua. Um signo, como totalidade (significante e significado), é comparado a outro signo por oposição. Já a relação no interior do signo, a saber, entre significante e significado, é uma relação puramente diferencial. Assim, o estudo da linguagem se fundaria em oposições (distinções entre signos) e diferenciações fônicas (significantes) e conceituais (significados) que essas oposições implicam. Ou seja, a condição da oposição é a diferenciação. Aplicado à unidade (signo), o princípio da diferenciação pode ser assim formulado: os caracteres da unidade se confundem com a própria unidade. “Na língua, como em todo sistema semiológico, o que distingue um signo é 1 “C’est le significant qui tranche, c’est lui qui introduit la différence comme telle dans le réel, et justement dans la mesure ou ce dont il s’agit n’est point des différences qualitatives. ” ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 215-227 04 Dagord 36.indd 223 16/12/2014 23:59:06 224 Marta Regina de Leão D’Agord tudo o que o constitui. E a diferença é o que faz a característica, como faz o valor e a unidade” (SAUSSURE, 1916/1995, p.141). Essa característica da diferença, aportada ao signo pelo significante, será destacada por Lacan na comparação entre a diferença significante e a diferença qualitativa. Essa última denota uma diferença de significado e é pela eliminação das diferenças qualitativas que a lógica atinge o princípio da identidade. Já a diferença significante conota a diferença em estado puro. A operação que faz com que se gere uma identidade lógica ou matemática é aquela em que se abstrai de todas as diferenças qualitativas. Assim também o número é uma abstração, pois se trata de uma operação sobre, por exemplo, dois conjuntos contendo cada um três elementos, sejam esses conjuntos formados um por três frutas e outro por três animais. Abstraímos as qualidades dos elementos presentes e ficamos apenas com o número de elementos. Essa é a operação pela qual constituímos, na nossa infância, o conceito de número. Assim, do ponto de vista matemático, o real está aí, mas dele interessa a abstração número. Ao ser definida essa identidade, atinge-se também o suporte do significante, a letra. Ou seja, pelo princípio da identidade, o significante é ainda o mesmo. Mas ainda não se chegou à diferença significante. Esta surgirá quando nos interrogarmos sobre qualquer série de traços entalhados sobre uma costela e concluirmos que não há semelhança entre eles. Isso é possível, na medida em que considerarmos a ordenação, a posição de cada traço em relação ao outro. E a ordenação desses traços, um depois do outro, é o efeito do simbólico sobre o real. Se os traços formam uma série, e, em uma série, como na série de conjuntos numéricos, um elemento sucede ao outro, está em posição diferente da posição do outro. Eis o conceito de significante: o significante como diferença de posição simbólica em uma série. A contribuição que Lacan buscou na matemática foi esse ordenamento simbólico do real. Se o signo representa algo para alguém, é preciso alguém que já esteja aí como suporte do signo. O significante se distingue do signo porque manifesta a presença da diferença como tal e nada mais. O significante, não pode se definir senão como não sendo o que são os outros significantes. Do fato de ele não poder se definir senão justamente por não ser todos os outros significantes, depende essa dimensão de que ele não poderia ser ele mesmo. De onde surge outro ponto de partida, enunciado como “Um é o Outro”. “A não pode ser A”, o significante não pode ser idêntico a si mesmo. A função significante equivalerá à função da pura diferença. O significante introduz a diferença como tal no real. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 215-227 04 Dagord 36.indd 224 16/12/2014 23:59:06 A crítica como método no retorno a Freud 225 Considerações finais No projeto de retorno a Freud, o traço unário representa a leitura crítica de um termo freudiano na elaboração, por Lacan, da função significante. A função significante, por sua vez, é a articulação da concepção matemática do um e da concepção linguística do significante como diferença. A começar pela substituição de único por unário, em referência à teoria dos conjuntos, na qual conjunto unário é aquele que possui apenas um elemento. O traço unário, como um significante, é o que suporta o encadeamento ou a série. Nessa série, o significante primeiro é substituído por outro significante, e assim também acontece na metáfora. O acontecimento do sujeito do inconsciente toma a forma do apagamento ou substituição característica do significante. Se o signo peirceano tem no fundamento o seu suporte; o sujeito, por sua vez, encontrará seu suporte no significante, pois o significante representa o sujeito. A substituição de S1 por outro significante, S2, inaugura uma série, e o encadeamento, a seriação, é o próprio simbólico. É aqui que entra o conceito de Outro como lugar, apresentado comparativamente à cadeia significante como uma relação nunca esgotada entre as possibilidades de uso de fonemas, isto é, o jogo entre semantemas e fonemas. Encontramos, nessa elaboração lacaniana, o elemento fundamental do processo de simbolização já introduzido por Freud (1925h/1987) através da Verneinung, cuja conceituação também se situava a partir de uma análise comparativa com a Lógica. Um primeiro resultado da análise do projeto crítico de Lacan mostra que ele buscou o estabelecimento de um limite, isto é, o estabelecimento de uma regra primordial, como é apresentado no livro 9 do Seminário: “Fazemos uma lógica do funcionamento do significante, pois, sem essa referência constituída como primária, fundamental, da relação do sujeito com o significante, o que eu adianto, é que ele é, propriamente falando, impensável.” (LACAN, 19611962/2003, p.149) Recebido em 27/2/2012. Aprovado em 5/7/2012. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 215-227 04 Dagord 36.indd 225 16/12/2014 23:59:06 226 Marta Regina de Leão D’Agord Referências BRANQUINHO, J. (2006). Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes. CONTÉ, C. (1996). “Superfícies topológicas”, in KAUFMANN, P. (Ed.). Dicionário enciclopédico de psicanálise (p.527-541). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. DARMON, M. (1994). Ensaios sobre a topologia lacaniana. Porto Alegre: Artes Médicas. DOUMIT, É. 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Freud o situou como elemento fundamental da estruturação sexual; todavia, semelhante valor não lhe foi atribuído pelos pós-freudianos, dando início ao que Lacan denominou de “querela do falo”. Lacan, apesar de ter situado o falo como significante, promoveu deslocamentos e nuances na forma de abordá-lo — articulou-o ao objeto a, seguido da identificação ao semblante e culminando na lógica do todo e não-todo fálico. Estas formulações mostram relação com as construções a respeito do real; portanto, não revogam as contribuições anteriores, mas redimensionam o aparato teórico-clínico de Lacan. Palavras-chave: Falo, sexualidade, significante, objeto a, não-todo fálico. Abstract: A course in psychoanalysis about the phallus: primacy, quarrel, significant and object a. The considerations about the phallus in psychoanalytic history are not unanimous and liners. For Freud, the phallus is a fundamental element of sexual organization, however, the same value wasn’t assigned by the post-Freudian, initiating to what Lacan called the “quarrel of the phallus”. Lacan, despite having set the phallus as signifier, promoted changes and nuances in the way of approaching it — articulated to a object, followed by the identification to semblant and culminating in logic the phallus all and not-whole. These formulations reveal relationship with the theorizing on the real, therefore, not revoke the earlier contributions, but resize the theoretical apparatus and clinical of Lacan. Keywords: Phallus, sexuality, significant, object a, non-all phallic. * Artigo redigido a partir da dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 229-245 05 Ana Costa 36.indd 229 16/12/2014 23:39:21 230 Ana Costa e Flavia Bonfim A pesar de o falo ser um tema recorrente nos mais variados debates psicanalíticos, as construções a seu respeito ao longo da história da psicanálise não são unânimes e lineares. Sendo um conceito fundamental presente na obra freudiana no que se refere à hipótese da primazia fálica na estruturação sexual de ambos os sexos, não podemos afirmar que semelhante valor lhe foi atribuído pelos pós-freudianos. Estes, ao teorizarem sobre a sexualidade feminina, promoveram um desvio quanto ao lugar do falo na teoria freudiana sobre a sexualidade. Com Lacan, vemos tal embate ser solucionado, visto que o falo passa a ser esclarecido em sua função, ou seja, o falo é um significante, e todo desejo, seja do homem ou da mulher, possui referência fálica. Entretanto, o mesmo Lacan, mais à frente em seu ensino, apresenta-nos outra dimensão do falo. Este é articulado a uma das formas do objeto a. O objeto a, por sua vez, apresenta estrutura irredutível ao significante. Diante disso, este ensaio versa sobre o conceito de falo, tendo como objetivo geral traçar um percurso do mesmo na história da psicanálise. E, de modo especial, procuramos aqui extrair consequências da articulação entre falo e objeto a proposta por Lacan, com o objetivo de apontar em que perspectiva se insere esta elaboração teórica. A primazia fálica em Freud Ao abordar a noção de falo, é interessante pensar sobre a origem desse termo na psicanálise. Lacan, ao fazer referência ao falo, pondera que “não foi sem razão que Freud extraiu-lhe a referência de simulacro que ele era para os antigos.” (1998a [1958], p.359). Em seguida, Lacan (1999 [1957-58]) afirma que o falo, na antiguidade grega, não era idêntico ao órgão, seja em termos de acessório do corpo, prolongamento ou em seu estado de funcionamento — sendo seu uso mais predominante no sentido de simulacro, uma insígnia. Segundo este autor, isto nos coloca na pista do falo em seu papel preponderante como representante do desejo. A representação fálica era bastante familiar no cotidiano do mundo romano, egípcio, grego e etrusco antigo. Imagens de falo podiam ser encontradas em muros, joias, sinos, lamparinas, máscaras, paredes e tigelas, simbolizando a fertilidade e a força apotropaica (sua bondade trazia boa sorte e sua agressividade afastava o azar e o mau-olhado, cf. Cavicchioli, 2008). Isto é, os antigos viam no falo um objeto poderoso, perpetuador da vida de todas as espécies do planeta e neutralizador das coisas ruins. Também era possível encontrar na antiguidade o culto ao falo, manifesto em procissões religiosas (falofórias) em que se levavam uma ou várias imagens fálicas. Esse tipo de culto era um antídoto contra a impotência; traduzia-se em símbolo de fecundidade (BRANDÃO, 1991). Frente ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 229-245 05 Ana Costa 36.indd 230 16/12/2014 23:39:21 Um percurso sobre o falo na psicanálise: primazia, querela, significante e objeto a 231 a este lugar atribuido à referência fálica na antiguidade, podemos associar a supervalorização do falo e sua ligação com a sexualidade. Caso não haja a veneração ao objeto fálico, a virilidade fica ameaçada. Sua articulação com o desejo, com a sexualidade, está aí demarcada e Freud não desprezou o valor que ele tinha no mundo antigo, muito possivelmente porque em sua clínica tenha encontrado eco de sua importância. Por sua vez, Freud utiliza mais o termo “pênis” do que “falo”, servindo-se com frequência maior de sua forma adjetiva (fálico/a), ao mesmo tempo que sustenta que “o que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo” (1923b, p.158, grifo do autor). Os advertidos sabem que, em psicanálise, não podemos confundir falo com pênis; contudo, negar a articulação entre esses termos é uma imprecisão. Serge André comenta que, com o termo falo, Freud “introduz uma nuance: se o falo tem relação íntima com o órgão masculino, é na medida em que designa o pênis enquanto faltoso ou suscetível de vir faltar.” (1998, p.172). É a falta sempre presente, seja como ameaça ou como fato consumado. De modo mais apurado, o que é sustentado como elemento organizador da sexualidade não é o órgão genital masculino, mas a representação psíquica imaginária e simbólica construída a partir desta região corporal do homem. Para abordar esta intrínseca relação entre falo e sexualidade, Freud articula-o ao mito do Édipo e ao complexo de castração. Com os mitos, a perspectiva freudiana procura pensar “os começos”, “a origem” , sendo fundamentalmente por meio do complexo edípico que ele responde à indagação “quem sou eu?”, que se desdobra em “sou homem ou sou mulher?”. Assim, trata-se de uma referência mitológica que busca dar conta do impossível, do real em jogo no campo sexual. Em torno do complexo edipiano fez girar a questão da diferença anatômica enquanto significante, no qual podemos situar o falo como representante. Tais construções teóricas foram desenvolvidas com mais consistência por Freud entre as décadas de 1920 e 1930, sobretudo após suas reavaliações sobre a sexualidade feminina. Apesar disso, não convém ignorarmos o fato de que alguns pormenores dessas discussões já estavam presentes na obra freudiana desde 1905, especificamente nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Ali, Freud nos fala do seio materno como o primeiro objeto de investimento da criança e cita a noção de complexo de castração e de inveja do pênis. Já então sustenta que o clitóris é a zona erógena dominante nas meninas. Essas considerações foram retomadas, articuladas e depuradas no referido momento posterior do pensamento freudiano, mas encontram expressão igualmente nos Três ensaios. É também neste livro que podemos localizar o que Freud (1905) denominou de “estágio fálico da organização” sexual infantil. Nos Três ensaios, propõe “as fases do desenvolvimento da organização sexual” (oral e anal), incluindo, por ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 229-245 05 Ana Costa 36.indd 231 16/12/2014 23:39:21 232 Ana Costa e Flavia Bonfim meio de acréscimos posteriores de parágrafos e notas de rodapé, uma terceira fase — a fálica. Nesta, a criança de ambos os sexos conhece apenas um tipo de órgão sexual, o masculino. Isso nos leva à consideração de que não há registro no inconsciente do Outro sexo. Freud (1923) escreve que, nesta fase, existe a masculinidade, mas não a feminilidade; a antítese ocorre entre fálico e castrado. Assim, segundo ele (1924), na fase fálica, o desenvolvimento sexual infantil avança até um determinado ponto no qual o órgão genital masculino assume papel principal, estando a vagina irrevelada. Comenta André: “O que não quer dizer, certamente, que a existência material da vagina seja ignorada, mas ela não é conhecida como outra coisa que não um falo furado.” (1998, p.191, grifo do autor). Freud (1938) escreve-nos que ao longo da fase fálica a sexualidade infantil atinge seu apogeu e aproxima-se da dissolução; porém, depois desse período, meninos e meninas seguem caminhos distintos, sinalizando a dissimetria entre os sexos quanto aos complexos de Édipo e de castração — ponto demarcado por Freud desde 1924. Recalde comenta: “A menina entra no Édipo pelo mesmo motivo que o menino sai: o complexo de castração. Freud não renunciará nunca a esta assimetria inquestionável.” (2008, p.105-106, tradução livre). Na fase fálica, o menino ingressa no complexo edipiano e, com ele, a masturbação associa-se às fantasias incestuosas em relação à mãe. Contudo, as ameaças de castração acrescidas à visualização da ausência de pênis nas mulheres (confronto com a castração do Outro) ganham significação e o menino passa a temer a perda de seu órgão (FREUD, 1924). A menina, na fase fálica, também é forçada a se confrontar com a diferença anatômica entre os sexos, mas o que ocorre no caso dela? Essa pergunta está respondida por Freud desde os Três ensaios: “Está pronta a reconhecê-lo de imediato e é tomada pela inveja do pênis, que culmina no desejo de ser também um menino, tão importante em suas consequências.” (1905, p.183). Mais tarde, nos artigos “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1925), “Sexualidade feminina” (1931) e “Conferência XXXIII — Feminilidade” (1932), Freud explicita esta discussão de maneira mais detalhada e nos escreve que a menina, ao se confrontar com a castração, renuncia à mãe como objeto de amor, culpa-a por tê-la feito castrada e, em função disto, dirige-se amorosamente para o pai. No entanto, a situação feminina só se concretiza se o desejo de possuir um pênis for substituído pelo desejo de ter um bebê. Assim, a busca pelo pai, marcando sua entrada no Édipo, acontece tanto porque ele é o suposto portador do falo, como também porque é capaz de lhe dar um filho como substituto simbólico fálico. Sobre essa aproximação entre acesso à feminilidade e desejo de ter um bebê (correlato do desejo de possuir um falo), Recalde (2008) aponta que a ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 229-245 05 Ana Costa 36.indd 232 16/12/2014 23:39:21 Um percurso sobre o falo na psicanálise: primazia, querela, significante e objeto a 233 maternidade será a proposta freudiana para solucionar a questão da inveja do pênis, assim como a via amorosa (busca do parceiro) e a falicização do corpo. Por outro lado, a autora argumenta que o desejo do falo não se resolve quando a mulher torna-se mãe, ou ao eleger um parceiro (suposto de tê-lo), pois o falo não é o órgão masculino. Estas são apenas maneiras imaginárias com objetivos inoperantes de suturar uma falta irredutível. Sendo assim, será em torno do falo — enquanto possibilidade de perdê-lo ou na vontade de tê-lo — que Freud organizará a questão da sexualidade humana, procurando, por meio dos complexos de Édipo e de castração, explicar como o sujeito acede ao posicionamento subjetivo feminino ou masculino. Deste modo, Zack (2008) chama a atenção para o Édipo freudiano em sua dimensão estruturante, pois ele se apresenta como a base determinante do destino do sujeito, sem deixar de levar em conta a responsabilidade e o consentimento do mesmo, que implica seu posicionamento de gozo diante da confrontação com o desejo do Outro e com a castração. Os pós-freudianos e a “querela do falo” A teoria freudiana, ao conferir ao falo o lugar central de elemento estruturador da sexualidade, recebeu a crítica de ser falocêntrica e de propor uma hierarquização entre os sexos. Espelhados pelo movimento feminista que ganhava força na época, surgia também na psicanálise, entre as décadas de 1920 e 1930, o questionamento sobre a primazia do falo e a falta fálica como sendo o núcleo do ser feminino, iniciando-se fervorosas discussões sobre a feminilidade, mas, sobretudo, sobre a função do falo nas teorizações psicanalíticas — discussões que Lacan denominou de “querela do falo”. Retomando estes debates, que fazem parte do percurso sobre o conceito de falo na psicanálise, seguimos apresentando as construções dos pós-freudianos por meio de quatro eixos: 1) O falo como objeto interno da mãe e o complexo de Édipo na teoria kleiniana; 2) Ernest Jones e a natureza defensiva da fase fálica nas mulheres; 3) Hélène Deutsch e o masoquismo feminino; 4) A teoria cultural de Karen Horney. Na teoria kleiniana, foi possível verificar um distanciamento quanto à doutrina de Freud no que se refere ao Édipo e ao lugar do falo na experiência do sujeito. Em sua elaboração teórica, Klein ordena o que se passa com a criança e sua mãe por meio das noções de posição esquizoparanoide e posição depressiva, sinalizando que o complexo de Édipo começa a se desenvolver a partir desta última fase. Klein (1986 [1952]) afirma que, no complexo de Édipo primitivo, a criança imagina que o pênis, ou o pai, faz parte da mãe (fantasia dos pais combinados), idealizando que ela contém tudo o que é desejável: seio, bebês, fezes e pênis. Sendo assim, o Édipo precoce é caracterizado por uma ambivalência acirrada, pela ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 229-245 05 Ana Costa 36.indd 233 16/12/2014 23:39:21 234 Ana Costa e Flavia Bonfim predominância de tendências orais e pela indefinição quanto ao objeto sexual. O desejo de união genital é uma modificação da tentativa de recuperar a relação primitiva com o seio que foi danificado, isto é: o desejo de restaurar o corpo da mãe se processaria por meio da relação genital, que restituiria à imagem da genitora os seus objetos (SEGAL, 1973). Criticando tal formulação, Rabinovich (2009) pondera que ao final do Édipo o que temos na teoria de Klein é o luto da posição depressiva, e não um luto frente à renúncia aos objetos edípicos tal como encontramos em Freud. Não obstante, o lugar da figura materna nesta teoria foi hipervalorizado; logo, o papel do pai enquanto lei ordenadora foi desprezado e, consequentemente, a função fálica na economia subjetiva também. De modo mais específico, o pai desempenha seu lugar na trama infantil como um objeto alternativo frente ao medo e à possibilidade fantasística de perder a mãe. Quanto ao falo, ele foi equiparado e tomado como um dos objetos internos da mãe, tal como o seio, o leite, os bebês e as fezes, negligenciando seu valor estruturador do campo sexual. De forma mais radical sobre a função fálica, Rabinovich comenta: “A significação fálica aparece aqui como substituto progressivo da significação do seio. Ali é onde o Édipo só desempenha seu papel na medida em que o pênis paterno se apresenta como um substituto da medida-padrão dos objetos que é o seio materno.” (2009, p.61) Bebendo na fonte kleiniana, temos Ernest Jones. Em sua teoria, Jones (1977 [1927]) leva em consideração a noção de erotismo oral e sadismo, postulando que, no desenvolvimento da menina, o estágio sádico se colocaria mais tarde, de modo que nem o estágio oral ou o clitoriano receberiam catexias sádicas poderosas. Segundo Pollo (2003), para Jones, o estágio feminino assemelha-se ao estágio alimentar e o sadismo é provocado pela frustração oral. Não havendo essa frustração, o clitóris não se associaria a uma atitude masculina ativa. Sem o estágio sádico, ocorreria, então, a passagem bem-sucedida do estágio oral ao estágio anal, sendo a boca e o ânus equivalentes do órgão sexual feminino. Dito de outra forma: Jones defende o desenvolvimento feminino por meio do processo boca-ânus-vagina, no qual estaria posto uma identificação com a mãe. Logo, a fase fálica na menina foi compreendida como uma forma moderada de identificação ao pênis paterno (diferente da intensidade dessa identificação no caso das mulheres homossexuais), tendo uma natureza secundária e defensiva, não correspondendo a uma etapa verdadeira do desenvolvimento da mulher heterossexual (JONES, 1977 [1927]). Identificamos, nas construções de Jones, que a feminilidade não é mais especificada através da função fálica, mas pelo deslocamento da libido — o que assegura o conhecimento da vagina. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 229-245 05 Ana Costa 36.indd 234 16/12/2014 23:39:21 Um percurso sobre o falo na psicanálise: primazia, querela, significante e objeto a 235 Diante disso, Lacan (1995 [1956-57]) nos diz que não é porque possa haver algum tipo de experiência precoce na menina que provoque sensações na região vaginal que a hipótese de Freud pode vir a ser contestada. “A afirmação de Freud está fundada em sua experiência.” (idem, p.98). Intensificando sua crítica, Lacan assinala: “se a questão fosse apenas uma migração da pulsão erótica, veríamos traçada a via real da evolução da feminilidade no nível biológico.” (1999 [1957-58], p.287). O que Jones parece não notar, conforme indica Lacan (idem, ibidem), é que o Édipo não só fabrica a mulher, mas o homem também. Para os dois sexos, o que temos é um artifício significante. Discutindo também sobre a feminilidade, há a psicanalista Deutsch e suas construções sobre o papel do masoquismo na vida mental das mulheres. Deutsch (1979 [1925]) aceita e reconhece uma fase fálica no desenvolvimento da menina — afinando-se um pouco com a teoria freudiana nesse ponto. Todavia, esta autora considera que o desenvolvimento de uma fase genital na mulher se processa por um deslocamento da libido oral (equivalência entre boca e vagina) associado à estimulação do pênis do parceiro no ato sexual. A mulher, ao descobrir este novo orgasmo em seu próprio corpo, reconhece-se, então, sujeita de forma masoquista ao pênis — que a guiará a sua nova fonte de prazer. Isso porque a vagina não desempenha nenhum papel erógeno até que se proceda a primeira relação sexual. Confere-se, assim, que a incidência simbólica do falo nesse contexto encontra-se excluída — o que é apresentado é seu caráter puramente biológico, imaginário, com a experiência do ato sexual. Assim, para Deutsch, a vagina assumiria uma funcionalidade na mulher semelhante ao pênis no homem. Ao defender uma identificação funcional entre pênis e vagina, que permitiria à mulher superar o trauma da castração, ela trabalhou — tal como verifica Pollo (2003) — recusando a equivalência simbólica mediatizada pelo falo (pênis = bebê = fezes = dinheiro) postulada por Freud. Além disso, a psicanalista aproxima feminilidade e reprodução articuladas à questão do masoquismo. Para ela, o sexo representa a intenção e o começo do parto, bem como este é o fim do ato sexual. O “parto é para a mulher uma orgia de prazer masoquista.” (DEUTSCH, 1979 [1925], p.51, tradução livre). Afirma ainda que o desejo de ter um pênis é substituído pelo desejo de ser violada pelo pai e, com isso, receber um filho seu, concedendo à vida mental das mulheres a tríade masoquista: castração = violação = parto. Diante disso, Soler (2005) afirma que a ideia da “mulher masoquista” não é uma tese freudiana. Freud introduziu essa discussão e a explorou; porém, sinalizou que há mulheres e homens masoquistas, sabendo reconhecer que esta não era uma via de resposta à questão do feminino. Encerrando a “querela do falo” posta pelos pós-freudianos, Karen Horney enfatiza demasiadamente aspectos sociais e culturais presentes na história de vida ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 229-245 05 Ana Costa 36.indd 235 16/12/2014 23:39:21 236 Ana Costa e Flavia Bonfim do sujeito, negligenciando o que de fato interessa ao campo psicanalítico — a dimensão inconsciente. Para Horney (1966 [1939]), o complexo de Édipo e de castração, bem como a inveja do pênis, não são eventos típicos e decisivos para o desenvolvimento da sexualidade da mulher. Segundo a autora (1991 [1924]), a inveja do pênis decorreria do sentimento de desvantagem nas possibilidades de gratificação que os meninos adquirem em comparação com as meninas. O menino pode ver e segurar seu órgão genital — sendo isto interpretado inconscientemente como autorização para se masturbar. Assim, a menina se sentiria lesada por não dispor de mesma permissão em função de sua disposição anatômica, tendo a impressão de estar sujeita a restrições na satisfação de componentes pulsionais. Isso, contudo, não é decisivo para que a inveja de pênis se instale na mulher, pois, quando a falta de pênis se coloca como desvantagem para a menina, ela tem como saída a identificação com a mãe. É somente quando sofre rejeição do pai, associada a uma identificação com ele, que a menina é levada de volta à fase pré-genital da inveja do pênis, conferindo o estabelecimento de relações com homens baseadas em vingança e decepção (HORNEY, 1991 [1924]). A autora também aponta que fatores culturais e sociais ajudam a esclarecer os desejos de masculinidade. O primeiro deles seria que o desejo de ser um homem tem relação com o desejo de possuir qualidades ou privilégios (força, coragem, independência, liberdade sexual e sucesso) mais comuns aos homens na cultura vigente (HORNEY, 1966 [1939]). Sejam quais forem os argumentos tomados por Horney, todos desembocam — assim como vimos na perspectiva dos outros pós-freudianos — numa posição distinta da qual Freud situou a problemática da feminilidade e da primazia fálica. Talvez o ponto de maior equívoco tenha sido a maneira como o falo foi apreendido no discurso freudiano, fazendo com que a referência fálica fosse entendida absolutamente como equivalente ao pênis. Assim, o falo, nestas construções, foi apresentado em sua dimensão de realidade ou imaginária, porém, seu estatuto simbólico ficou desprezado, tornando-se necessário o esforço lacaniano de situá-lo como significante do desejo, ordenador do campo sexual em ambos os sexos. O falo como significante em Lacan De acordo com Rabinovich (2009), é possível identificar no primeiro ensino de Lacan um crescente destaque adquirido pelo falo em suas teorizações, desde o último capítulo do Seminário 3 (As psicoses), intitulado “O falo e o meteoro”, passando pelo Seminário 4 (A relação de objeto) e chegando ao Seminário 5 — (As formações do inconsciente). No Seminário 3, Lacan constata a foraclusão do Nome-do-Pai nas psicoses, indicando que a significação fálica também está ausente nesta ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 229-245 05 Ana Costa 36.indd 236 16/12/2014 23:39:21 Um percurso sobre o falo na psicanálise: primazia, querela, significante e objeto a 237 estrutura. Assim, segundo Rabinovich (op. cit.), Lacan inicia uma investigação sobre o papel do falo na neurose e na perversão. É em função disso que, nos seminários seguintes, encontramos o desenvolvimento da temática da falta de objeto (Livro 4), desembocando na discussão sobre a sexualidade, desejo, Édipo e castração (Livro 5). Vejamos cada um deles. A discussão em torno das três formas da falta de objeto apresentada no Seminário 4 permite inferir que a construção subjetiva não se realiza por meio da relação do sujeito com seus objetos, mas com a falta deles, sendo o falo — enquanto ausente (- j) — um objeto primordial dentre tantos outros. Neste livro, o falo, como objeto primordial do desejo, começa sendo localizado no imaginário e termina posicionado no simbólico. O falo (- j / imaginário) operando na castração só existe como falta, enquanto imagem negativa, e isso é eminentemente simbólico, ao passo que consideramos que o símbolo implica a barra sobre algo que existe. No Seminário 5, encontramos duas aulas que retomam o Édipo freudiano a partir de uma formulação em três tempos não cronológicos, mas lógicos, nas quais assistimos a hipótese edípica ser amarrada à inscrição do registro simbólico. No primeiro momento, temos o falo como objeto com a qual a criança se identifica, visto que deseja o desejo da mãe. A criança está na posição de ser o falo — objeto do desejo do Outro. Já no segundo tempo, a criança é desalojada do lugar de ser o falo para ter ou não ter o falo, podendo vir a se constituir como um sujeito desejante, e isso guarda profunda ligação com a mensagem que o pai dirige à mãe. O falo passa de objeto imaginário do desejo da mãe a significante do desejo do Outro. Por último, a criança tem acesso à significação fálica, possibilitando, assim, situar-se na partilha dos sexos. Ratificando tais construções teóricas, há um importante texto no escrito “A significação do falo” (1998 [1958]), em que podemos encontrar elementos fundamentais sobre a noção de falo como significante. Ali, Lacan retoma o embate entre Freud e os pós-freudianos, propondo-se a problematizar as discussões em torno da questão da primazia fálica na estruturação sexual tanto do homem quanto da mulher. Enfaticamente, ao longo do texto, Lacan (1998 [1958]) argumenta que a relação do sujeito com o falo se estabelece sem considerar a distinção anatômica entre os sexos e — tal como Freud — defende ser a partir da falta fálica que podemos abordar a problemática concernente à feminilidade. Diante disso, o esforço lacaniano foi além de apenas rebater as formulações dos pós-freudianos, mas procurou estabelecer o real lugar do falo nas teorizações de Freud — lugar que vinha sendo desconsiderado por esses autores. Sendo assim, ele afirma: “O falo é aqui esclarecido em sua função. Na doutrina freudiana, o falo não é uma fantasia, caso se deva entender por isto um efeito imaginário. Tampouco é, como tal, um objeto (parcial, interno, bom, mau etc.), na medida em que esse termo ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 229-245 05 Ana Costa 36.indd 237 16/12/2014 23:39:21 238 Ana Costa e Flavia Bonfim tende a prezar a realidade interessada numa relação. E é menos ainda o órgão, pênis ou clitóris, que ele simboliza.” (LACAN, 1998 [1958], p.696) Em se tratando da noção de falo e fase fálica encontramos certa dificuldade, se a tomamos numa racionalidade biológica, considera Lacan (1999 [1957-58]). Os pós-freudianos parecem ter se orientado por este viés. Acrescenta Lacan que o problema desaparece quando o falo é elevado em seu papel de significante. Tomar o falo como significante não impede que ele tenha em sua origem a dimensão imaginária do pênis, mas até mesmo nesta origem é possível encontrar certa propriedade (aparecimento/desaparecimento; ereção/detumescência) para desempenhar sua função significante. Lacan (1998 [1958]) demarca bem que o falo tem uma função constitutiva, pois introduz o sujeito em sua existência e em sua posição sexual. Isso só pode ser apreendido, diz ele, se o tomarmos como um significante indispensável pelo qual o desejo do sujeito é reconhecido como tal, quer seja homem ou mulher. Em suas palavras: “O falo é o significante privilegiado dessa marca, onde parte do logos se conjuga com o advento do desejo” (1998 [1958], p.692). Rabinovich (2005) esclarece-nos que o termo “logos” possui em grego três significações, a saber: linguagem, discurso e razão matemática/proporção. Sendo assim, encontramos nesta proposição a tentativa de reafirmar o falo como um significante privilegiado, que une sexualidade e linguagem, deixando uma marca sobre o corpo. A psicanalista é precisa ao dizer que “O falo suprirá o que o significante faz a sexualidade humana perder de natural, suprirá enquanto marca e, ao mesmo tempo, como cópula, como o que faz laço entre os sexos.” (2005, p.41). O falo, o objeto a e os avanços teóricos posteriores No escrito “A significação do falo” e no Seminário 5, como acompanhamos, Lacan situa o falo como um significante fundamental operador na dimensão desejante do humano. Contudo, deparamo-nos, no Seminário 10 (A angústia, 2005 [196263]), com uma maneira bastante distinta de abordar a função fálica. Neste livro, Lacan introduz a noção de objeto pequeno a e confere-lhe cinco figurações: o seio, o ânus, o falo, a voz e o olhar. Estas fazem referência ao objeto a na medida em que se constituem como objetos perdidos. Mais precisamente, Lacan (ibid.) articula ao objeto a o caráter de objeto cedível, podendo ser encontrado em todas as formas que mantêm relação com ele. Todos os objetos no percurso de Lacan, até esse seminário, podiam se tornar significantes. Agora, porém, ele nos apresenta um objeto com uma estrutura que não apenas se distingue do significante, mas é irredutível a ele. Para abordá-lo, ele o correlaciona ao fenômeno da angústia — sendo este o índice da presença ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 229-245 05 Ana Costa 36.indd 238 16/12/2014 23:39:21 Um percurso sobre o falo na psicanálise: primazia, querela, significante e objeto a 239 subjetiva do objeto a, o modo como ele aparece na clínica da neurose. Por conseguinte, as cinco dimensões do a estarão também articuladas a este fenômeno. Ao fazer referência ao falo e à questão da angústia, Vieira (2008) comenta que era comum designar no campo psicanalítico a mulher como castrada tendo que lidar com a falta de pênis, estando o homem livre de tal situação. No Seminário 10, este arranjo se inverte, tendo o homem que se confrontar mais radicalmente com a angústia de castração. Trata-se, neste livro, de enfatizar a falta e não a completude, na medida em que não designa a ameaça de castração como incidindo sobre um ser total, ideal, mas procura assinalar a falta que aponta para a impossibilidade de um gozo absoluto. Lacan (2005 [1962-63]) nos indica, então, que a detumescência na copulação — instrumento fora do combate, em seus termos — merece ser alvo de atenção, pois permite valorizar uma das dimensões da castração. E acrescenta, ainda: “O fato de o falo ser mais significativo na vivência humana por sua possibilidade de ser um objeto decaído do que por sua presença, é isso que aponta a possibilidade do lugar da castração na história do desejo” (idem, p.187). Referenciando-nos na categoria de objeto cedível, há algo que é arrancado no momento do orgasmo e, nesse momento, o sujeito ejacula — justamente no auge da angústia. Angustia-se, pois algo do gozo, do real e, portanto, sem explicação, toca o corpo. Assim, considera Lacan: “O falo funciona em toda parte, numa função mediadora, exceto onde é esperado, ou seja, na fase fálica. É essa carência do falo, presente e irredutível em todos os lugares, não raro para a nossa grande surpresa, é o esvanecimento da função fálica no nível em que se espera que ele funcione, que constitui o princípio da angústia de castração.” (2005 [1962-63], p.283) Ou seja: é onde o falo deveria estar, no nível da completude (na mediação sexual), que ele falta. Vieira (2008) comenta que de tantos elementos corporais disponíveis, o pênis sustenta o jogo da falta exatamente porque costuma faltar. Demonstra-se como um suporte natural de uma ambiguidade em jogo: “tudo ou nada, poder absoluto ao longo de alguns minutos e representante flácido, DETUMESCENTE, da potência perdida no restante do tempo.” (VIEIRA, 2008, p.92). Assim, de acordo com Leguil, no Livro 10, a questão fálica foi “remanejada numa abordagem da castração que não amarra exclusivamente às funções da lei [...] Ela passa a se ligar também ao real do gozo.” (2008, p.123). Há, desta maneira, “um novo status da angústia de castração, não mais referida à ameaça do Outro, a de um agente paterno, materno, mas ao fato biológico, anatômico, orgânico da detumescência da cópula.” (MILLER, 2005, p.34). Lacan ressitua a angústia de castração ao nível do órgão masculino, fazendo da detumescência ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 229-245 05 Ana Costa 36.indd 239 16/12/2014 23:39:21 240 Ana Costa e Flavia Bonfim — apagamento da função fálica no ato sexual — o princípio desta angústia, de modo que este princípio não mais se inscreve apenas no Édipo. Lacan reconhece a novidade que introduz com tal consideração, mas, por outro lado, considera que mesmo tendo situado o ponto da angústia no interior do sujeito, equivalendo orgasmo e angústia, nos diz que é “bastante evidente que não podemos desvincular disso [(- j)] o sinal da intervenção do Outro, uma vez que essa característica, desde o começo, sempre lhe foi imputada sob a forma das ameaças de castração.” (idem, p.285) O impacto do que nos é articulado ao longo do livro sobre a angústia pode ter algo de enigmático e surpreendente, que não será possível apreender, nem acompanhar a fineza do que se inaugura se não avançarmos mais um pouco no ensino de Lacan. Vale destacar que o deslocamento da ênfase no falo como um significante no Seminário 10 será ajustado no ensino lacaniano, mas tal transformação diz da emergência de uma dimensão da experiência que até então Lacan pouco tinha trabalhado: o real na clínica. É também neste livro que começa a ser esboçada uma modificação quanto à questão da feminilidade. No livro A angústia, o objeto a comparece do lado do real; porém, isso será relativizado nos anos de 1970, quando assistiremos a uma semblantização do a. De modo mais preciso, podemos apontar que o objeto a e o falo foram elevados à categoria de semblante no decorrer do ensino lacaniano. Nesta perspectiva, no Seminário 18 (De um discurso que não fosse do semblante), Lacan sinaliza que a teoria analítica articula o que ele designa como objeto a, no que “ele vem preencher, como seio, excremento, olhar ou voz, o lugar definido como de mais-de-gozar” (2009 [1971], p.32). O ato de falar já implica a produção de mais-de-gozar. O mais-de-gozar é o efeito do discurso, e seu suporte é a metonímia. Diz do excedente da força pulsional não assimilável pelo trabalho de simbolização. Refere-se à dimensão do excesso, do desperdício de gozo da máquina da cadeia discursiva, que produz algo que venha na suplência da falta oriunda da castração. O mais-de-gozar situa-se como a mais-valia da economia psíquica. Ele expressa na repetição a maneira como cada sujeito ordena sua cadeia significante e assujeita-se à lei da castração. A teoria psicanalítica enuncia justamente que essa relação de mais-de-gozar é essencial para o sujeito. Todavia, o mais-de-gozar, nos diz Lacan (idem), só se normaliza por uma relação com o gozo sexual, e esse gozo só se formula a partir do falo como seu significante. “O falo é, muito propriamente, o gozo sexual como coordenado com um semblante, como solidário a um semblante.” (idem, p.33). O falo é um significante — logo, um semblante. O semblante sempre envelopa o vazio, fazendo crer a existência de algo que não há. O semblante, ainda que se esforce por ocultar, o que oculta é nada. Dizendo de outro modo: “A função ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 229-245 05 Ana Costa 36.indd 240 16/12/2014 23:39:21 Um percurso sobre o falo na psicanálise: primazia, querela, significante e objeto a 241 essencial do semblante — ao menos do semblante fálico — é pelo que não há, algo que dissimula e tapa o que não há.” (BRODSKY, 2008 a, p.156). Avançando na discussão sobre o falo, Lacan o localiza como uma função a regular o gozo de cada sexo. É, então, no Seminário 20 que o ensino lacaniano irá formalizar, com as fórmulas quânticas da sexuação, que a sexualidade provém da função fálica (função jx); situar-se de um lado ou de outro, depende da maneira como o sujeito está assujeitado a ela: todo-fálico ou não-todo referido ao falo. Posicionar-se como homem implica estar totalmente submetido à lógica fálica. Situar-se numa posição feminina é estar também submetido ao falo, mas não por inteiro — o que tem como consequência o encontro do gozo fálico e gozo suplementar na mulher. Trata-se de um momento de avanço no que se refere à questão da feminilidade (LACAN, 1985 [1972-73]). A noção de não-todo, portanto, faz referência ao modo particular da mulher experimentar que uma parte de si localiza-se submetida ao gozo fálico (gozo sexual, determinado pelo significante falo), enquanto a outra se situa no gozo Outro, no gozo do corpo (gozo que escapa ao domínio significante). Assim, a dimensão do significante, enquanto o que evoca algo além do que ele diz, e produz seu mais além, nos permite aproximar da ideia de não-todo e gozo suplementar. Portanto, é a partir do gozo fálico que podemos supor um outro gozo. O gozo fálico, por estar articulado ao significante, nos faz supor que há uma “outra coisa”, um “mais-além”. Posto isto, não se pode falar em um gozo Outro senão a partir do gozo sexual limitado do órgão (idem). Morel assinala que a “linguagem impõe um significante único ao gozo: o falo” (1997, p.93). E do significante fálico, temos acesso ao gozo fálico, ao gozo do órgão. Caldas escreve que “O significante é precário para dizer da sexualidade. No entanto, paradoxalmente, a sexualidade só aparece e escoa pelo significante.” (2008, p.382). O significante produz corpo de gozo, mas não-todo, de modo que um resto escapa ao império da linguagem. Ao mesmo tempo, podemos propor que o gozo sempre escapa a qualquer tipo de regulação, sendo o significante fálico incapaz de ordenar totalmente o sexual e o campo que ele abre. Assim, o gozo feminino leva em conta o limite, a regulação, mas, do mesmo modo, também o transpõe. Diante disso, é possível concluir que Lacan não refutou completamente o Édipo freudiano; todavia, salientou que nele é possível identificar apenas a lógica fálica que permite estruturar a sexualidade masculina. Para tocar na questão da feminilidade, foi preciso que Lacan formalizasse o “além Édipo” em referência à lógica; com isso, acabou por articular a noção de primazia fálica de forma distinta de Freud e seus discípulos. Ou seja, o falo continuou a ser o único significante sexual, mas há duas possibilidades de inscrição na função fálica: todo ou não-todo. Em consequência, se há somente um significante da sexuação e este produz ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 229-245 05 Ana Costa 36.indd 241 16/12/2014 23:39:21 242 Ana Costa e Flavia Bonfim o homem, podemos dizer que ao nível inconsciente o Outro sexuado não existe. Eis o aforismo lacaniano: “A mulher não existe” — fruto da impossibilidade de encontrar do lado feminino um suporte identificatório que fundamente o ser dA mulher (BONFIM & VIDAL, 2009). Considerações finais No livro A angústia, Lacan enfatiza o falo como uma função escópica da potência, como (- j) do órgão, referindo-se não apenas à castração edipiana, mas à castração entendida como o desaparecimento do órgão fálico no momento do orgasmo, de modo a destacar a angústia ao nível da detumescência. Não obstante, isso denota a construção lacaniana de articular o falo a um objeto que não se reduz à simbolização, o objeto a. Temos, então, uma perspectiva bastante distinta sobre o falo, mas que de modo algum pode ser tomada como uma recusa à noção de falo como significante. Tal perspectiva é bem evidente quando acompanhamos as construções seguintes sobre o falo no ensino lacaniano. No Seminário 18, o significante é um semblante, e o falo, enquanto tal, também é elevado à categoria de semblante. Por conseguinte, no Seminário 20, Lacan se refere a dois tipos de gozo: um determinado pelo significante fálico e outro que escapa a ele, inserindo-se na discussão sobre a lógica do todo e não-todo fálico. Logo, é preciso considerar que, se há formas diferentes de se referir ao falo, isso tem relação com o percurso da clínica e os avanços teóricos possibilitados por ela. Miller (2005) considera que Lacan, no Seminário 10, nos leva a abordar o objeto a como um termo que não é significante e que, portanto, emerge no regime da exceção. Parece que o falo está aqui situado nesse mesmo regime. Até então, tudo era passível de se articular em termos simbólicos — inclusive o real podia ser abordado assim. O livro A angústia, contudo, demonstra que na estrutura da linguagem há algo que não pode ser reduzido ao significante, sendo “assimilado grosseiramente ao corpo vivo” (2005, p.24). Em outras palavras, o que se apresenta no Seminário 10 é o objeto a como real, além de situar-se a separação entre esse objeto e a linguagem. No Seminário 20, encontramos uma forma distinta de abordar o falo. Este não está mais vinculado à exceção, mas ao regime do não-todo. O não-todo não abole nem contrapõe o significante, mas estende-se ao conjunto do significante. Trata-se do não-todo fálico, que vem apontar para o gozo suplementar na mulher. O que podemos extrair do livro Mais, ainda é que existe uma articulação entre o significante e o gozo. O corpo que goza diz de um corpo afetado pelo significante. Esse desenrolar da teoria, entretanto, já começa a ser evidenciado desde o Seminário 18, em que Lacan retira o objeto a do real e o articula ao semblante. A construção da teoria lacaniana, sob esta forma tão desafiadora de ser apreendida, diz do próprio movimento da clínica, de uma lógica de entrada na psiágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 229-245 05 Ana Costa 36.indd 242 16/12/2014 23:39:21 Um percurso sobre o falo na psicanálise: primazia, querela, significante e objeto a 243 canálise, como sugere Costa (1998). Tal como Freud, que parte de uma confiança na interpretação e se depara com o esgotamento do significante, culminando nas elaborações sobre a pulsão de morte e o que chamamos de gozo, Lacan segue movimento semelhante. Assim, podemos inferir que as discussões lacanianas sobre o falo — como significante, seguido de sua articulação com o objeto a situado inicialmente como real, depois como semblante, chegando à lógica do todo e não-todo — não são pensamentos contraditórios ou descontínuos, mas apresentam intrínseca relação com o desenvolvimento das construções a respeito do real, que não revoga as contribuições anteriores — antes, redimensiona o aparato teórico-clínico de Lacan. Como se sabe, ao longo do ensino de Lacan, assistimos a um deslocamento da ênfase que é posta nos três registros — do imaginário para o simbólico, chegando ao cercamento mais rigoroso da categoria real, até se atingir uma equivalência entre eles. Os registros real-simbólico-imaginário não podem ser isolados, sendo a topologia do nó borromeano o que melhor expressa a união entre os três. Coutinho Jorge (2000) indica-nos que o interesse crescente de Lacan pelo real é correlato à introdução do objeto a em sua obra, sendo este o que dá ao real seu verdadeiro estatuto. Com o que nos deparamos, ao longo do Seminário 10, senão a discussão a respeito do objeto a? Assim, neste livro há uma virada — todavia, inacabada — sobre o real em jogo na clínica psicanalítica, que não convém assimilarmos como uma elaboração definitiva e muito menos tomá-lo sem levarmos em consideração a depuração final presente nas teorizações lacanianas — no caso desta discussão, o falo como um significante, porém submetido à lógica do não-todo. Por outro lado, como observa Bernardes a respeito do livro A angústia, é importante “Procurar não tanto eliminar as inúmeras contradições, dificuldades e ambiguidades que esse texto, por ser um Work in Progress, nos oferece, mas sim resgatar a sua novidade hoje.” (2007, p.2, grifo da autora). Recebido em 15/3/2012. Aprovado em 25/6/2012. Referências ANDRÉ, S. 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XVII n. 2 jul/dez 2014 229-245 05 Ana Costa 36.indd 245 16/12/2014 23:39:22 05 Ana Costa 36.indd 246 16/12/2014 23:39:22 Alguns casos, nem neuróticos, nem abertamente psicóticos Christian Hoffmann e Rosana Alves Costa Christian Hoffmann Psicanalista, professor doutor de Psicopatologia Clínica, diretor da Escola Doutoral da Sorbonne Paris Cité, Universidade Paris Diderot e pesquisador do CRPMS. Rosana Alves Costa Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade Paris Descartes, professora de Psicologia Médica do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, psicóloga do Centro de Referência da Infância e Adolescência (Cria). Resumo: As subjetividades “nem neuróticas nem abertamente psicóticas” encontram um esclarecimento pela topologia que abre a uma clínica de borders na qual o limite se torna um caminho praticável do buraco (do vazio) na cura analítica. Este esclarecimento passa pela gênese do limite no inconsciente que se funde sobre uma experiência de perda do objeto primordial de satisfação, cujas resultantes são a faculdade de julgamento e o princípio de realidade. O “não limite” dessas subjetividades articula-se com a aceleração contemporânea do tempo entre o julgar e a ação. Palavras-chave: Limite, borders e buracos no inconsciente, o vazio, a aceleração do tempo, subjetividades contemporâneas. Abstract: Some cases neither neurotics nor obviously psychotics. Subjectivities which are “neither neurotics nor obviously psychotics” are better explained at the light of typology that gives access to a clinic of borders where the border becomes a pathway to the hole (emptiness) in the analytical cure. Such explanation gets to the source of borders within the unconscious which originated in the early experience of the loss of the primordial object of satisfaction that gives birth to judgment faculty and to the reality principle. The “non-limit” of those types of subjectivity is related to the contemporary acceleration of laps of time that separates the judgment from the action. Keywords: Limit, borders and holes within the unconscious, the emptiness, time acceleration, contemporary subjectivities. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 247-253 06 Christian 36.indd 247 16/12/2014 23:40:49 248 Christian Hoffmann e Rosana Alves Costa O título deste trabalho é retirado de um texto de Freud de 1924, Neurose e psicose, que sempre será o tema desta questão clínica, do passado até hoje. Para André Green (2012), o problema das estruturas não neuróticas, ontem e hoje, surge em indivíduos nos quais predomina uma fixação pré-genital e um Édipo negativo. Ele observa, com outros, a transformação que constitui o Homem dos Lobos na clínica freudiana e que abre para Green (2012) o estudo dos estados limites. Sabemos que a fixação pré-genital anal do Homem dos Lobos não lhe permitiu a escolha entre duas representações do ato sexual, ou seja, da vagina ou do ânus, o que resulta na clivagem do sujeito, acompanhada por uma disfunção do ego em sua capacidade de julgamento. Green lamenta a abordagem destas patologias pela destrutividade, o eu e as relações de objeto, que não reconhece a sexualidade e seu papel primordial e determinante, pela importância que toma a angústia de castração como uma bênção para a criança sair “dos problemas de angústia insustentáveis e sem saída vinculados à relação dual com a mãe” (GREEN, 2012, p.179). Foi com Melanie Klein e Maurice Bouvet que as fixações pré-genitais se tornaram o ponto central da psicanálise, e foi sobre este terreno e por este motivo que surgiu o interesse pelo transtorno de personalidade limítrofe. Podemos recordar a via aberta por Stoller sobre o sexo e o gênero e, mais próximo de nós, Joyce Mac Dougall, que descreveu uma sexualidade contemporânea aditiva, explicando o efeito traumático de toda sexualidade, em que o conceito de castração já não é a referência. Deve-se reconhecer a André Green a percepção da insuficiência de tal explicação dos modos de gozos sexuais pela fixação traumática ou pré-genital. Ele propõe a utilização de outros mecanismos de defesa que não o recalque e avança no conceito freudiano de clivagem no qual Lacan introduz a foraclusão, como veremos mais adiante. Recordemos da obra de Green o seguinte: A articulação da pulsão com a relação de objeto. As fixações pré-genitais e a perturbação da genitalidade. A relação de castração entre a angústia neurótica ou a angústia de separação borderline. A regressão pré-genital com seu correlato do desfuncionamento da capacidade de julgamento do eu. A transferência como meio de apreender a relação com o outro pela descoberta da “intimidade psíquica”, ou seja, a relação entre sexualidade e amor. Uma observação sobre a transferência: para Green, diante de uma profunda angústia relacionada ao imago materno, existe uma transferência paterna possível neste tipo de patologia, quando o analista é investido de sentimentos contraditórios entre o chato e o protetor (BIRMAN & HOFFMANN, 2014). ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 247-253 06 Christian 36.indd 248 16/12/2014 23:40:49 Alguns casos, nem neuróticos, nem abertamente psicóticos 249 O que se pode hoje em dia ainda esclarecer com Freud, no que diz respeito a estas patologias nem neuróticas e nem abertamente psicóticas? Iniciaremos pelo estudo do julgamento. Em seu artigo La négation (1925/1985), Freud estudou pela primeira vez a maneira pela qual a função intelectual é gerada a partir da pulsão. O julgamento, e em especial a negação, permitem ao pensamento liberar-se dos limites do recalque e enriquecer-se de “conteúdos” indispensáveis para seu funcionamento. Em suma, o poder de julgamento (faculdade de julgar) abre o espaço psíquico para o pensamento. O que é a função do julgamento? Ela deve resultar em duas decisões. Deve, em primeiro lugar, poder julgar o que é bom de introjetar para o eu-prazer e o que deve ser jogado fora, porque é ruim. Em seguida, deve julgar a existência real de uma coisa representada na realidade, isso por conta de um eu real que Freud chama de “prova da realidade” (idem, p.136-137); não se trata mais de saber se uma coisa, um objeto de satisfação, é boa para o eu-prazer, mas se ela existe no mundo exterior. Vemos bem que se trata de uma questão de interior e exterior, o que nos leva a questionar o limite e sua gênese no inconsciente. Temos uma primeira indicação de Freud, no final de seu texto, quando afirma que a condição da função do julgamento, e por consequência do princípio de realidade, é a realização da prévia perda do objeto que trouxe uma real satisfação. Para resumir, a distinção entre um interior e um exterior se faz sobre a experiência de perda de um objeto de satisfação, que passa do eu-prazer seu mundo exterior (idem, p.138). A faculdade de julgar contribui para encontrar um objeto correspondente no mundo exterior. Vale lembrar, para os nossos propósitos, que “o julgar” decide sobre a passagem ao “ato”. A questão do limite (HOFFMANN, 2013) retorna/volta em O mal-estar da civilização (1929/2010), no qual Freud interroga sobre “sentimento de si”. É necessário partir da ideia de que a autonomia do ego é enganosa, ela se prolonga sem fronteiras no inconsciente pulsional, de que é apenas a fachada. Por outro lado, existe uma fronteira “clara e nítida” (idem, p.46) entre o eu e o mundo exterior, salvo nos casos patológicos. A gênese desta “fronteira” é tributária da experiência feita pelo bebê sobre o objeto de satisfação, como o seio, está “fora” de seu eu-prazer e seu reencontro necessita de uma ação específica. Esta oposição entre o eu-prazer e o objeto (perdido) empurra o eu ao reconhecimento do “mundo exterior” e, deste fato, ao reconhecimento dos limites do gozo do “ilimitado” (idem, p.49 e 56), de seu narcisismo de origem, como testemunha o “sentimento oceânico”, “sensação de eternidade”. Assim, se instaura o princípio de realidade, pela faculdade de julgar entre o objeto perdido e o objeto correspondente no mundo exterior; experiência que, na maioria das vezes, resulta no julgamento de que “não é isso!” e de que nenhum objeto é capaz de proporcionar a satisfação pulsional — é daqui a falta que o sujeito experimenta pela satisfação. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 247-253 06 Christian 36.indd 249 16/12/2014 23:40:49 250 Christian Hoffmann e Rosana Alves Costa Podemos condensar nosso raciocínio/desenvolvimento da seguinte maneira. Na prática terapêutica, se quisermos encontrar a relação subjetiva de um sujeito com o limite, é necessário escutar suas “práticas de si” e tentar entender a presença, ou não, da experiência da falta. Com Lacan, conseguimos precisar a relação do sujeito com a falta pela distinção de três modalidades da falta na subjetividade (SAFOUAN & HOFFMANN, 2014). A noção da falta não é uma inovação lacaniana, ela faz a substância mesma da pulsão freudiana. De fato, sabemos que, segundo Freud, a pulsão oral visa ao que ele chama de a primeira satisfação. Basta dizer que o objeto desta pulsão não é apenas o seio, mas o peito, como se fosse uma fonte de satisfação pela marca desse momento, segundo a expressão de Lacan. Em outras palavras, o seio funciona como a causa do desejo oral, desde que ele foi objeto de um desmame ou, mais precisamente, de um corte sofrido pelo sujeito como uma parte de si mesmo. A perda deste objeto, que nenhum objeto comum nem nenhum dom saberiam/poderiam restaurar, permite-lhe funcionar como o guardião de um desejo que permanece como falta. Ao nível anal, existe também a perda real de uma parte que se separa do corpo. Aos objetos anal e oral Lacan acrescenta a placenta, ou seja, este órgão, que medeia a relação entre a mãe e seu embrião, de modo que ele possa se alimentar e se desenvolver, faz parte dele, no sentido de ser constituído por seus próprios tecidos em vez dos da mãe. Sabemos que a necessidade se articula em uma demanda. Mas, para além do que se articula na demanda como a falta, outra demanda aparece — a demanda de amor. Uma criança que está sendo cuidada, apenas de modo a responder às suas necessidades, sem palavras, sem sorriso e sem relações pessoais, encontra-se dentro da impossibilidade de se integrar em uma relação humana. Em outras palavras, é uma criança condenada a murchar. No entanto, a demanda de amor induz a uma desvalorização de todo objeto que responde à demanda — este objeto torna-se um simples sinal de amor e não o próprio amor (amor dele mesmo). Nele, mesmo o amor permanece o que ele é, queremos dizer uma falta à qual responde adequadamente, uma falta comparável, e não o objeto; este, mais uma vez, é apenas um sinal. A questão é: o que são a pulsão genital e o desejo sexual? Trata-se de saber por quais meios é introduzido um terceiro tipo de falta, diferente da necessidade de amor. Lacan responde pelo intermediário da metáfora paternal. Uma metáfora é uma substituição, cuja característica reside em que ela origina uma nova significação — cria um novo significado. Admitimos que em virtude do fato da imaturidade marcar o ser humano no momento do nascimento, a experiência vivida com a mãe leva a criança à ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 247-253 06 Christian 36.indd 250 16/12/2014 23:40:49 Alguns casos, nem neuróticos, nem abertamente psicóticos 251 significação de uma relação de onipotência, da qual ela depende para sua sobrevivência. Precisamos, portanto, saber como se estrutura o desejo no momento em que a criança é, por assim dizer, surpreendida pela intrusão da sexualidade precoce. Remarcamos que esta aparição se desdobra da percepção de um desejo sexual da mãe, que aparecia até aqui como uma potência de dom ou de recusa de dom. Ou, então, basta pensar nos estragos neuróticos que engendra/origina em alguns uma determinada fantasia ou crença para assegurar, com seu pênis, não só o objeto, mas ainda a garantia de desejo do Outro, para que possamos avaliar a importância que retorna da significação de uma irredutibilidade da falta que em relação à mãe é da ordem do ter. Ou seja, o pênis não pode satisfazer o desejo da mãe. A metáfora paternal substitui no inconsciente o nome do pai no desejo da mãe. A substituição deste significante, com carga simbólica portadora de interdição de incesto — ter um desejo que apareceria de outra maneira como um desejo que nada retém — engendra no sujeito um efeito de significação: é o phallus, tal qual ele aparece na Grécia antiga ao fim dos mistérios. Aqui chegamos ao significado simbólico do nome do pai, desde que ele constitui não somente o significante do desejo da mãe, mas também o vínculo que une o desejo à interdição do gozo sexual da criança. É em função desta dimensão do nome do pai como ficção de linguagem que se aborda também a culpa que é inerente à gênese do desejo. Após a identificação do limite a partir da perda e da existência de uma falta na construção subjetiva, interrogamos a prática possível do limite. Em um belo texto sobre “margens, bordas, limites” (da singularidade),1 Jean Luc Nancy se interroga sobre o limite que limita e que singulariza o singular. Ele utiliza assim três noções: o limite, a borda e a margem. Em primeiro lugar, o limite é um fim, uma conclusão que não vem do exterior — é um fim que põe fim, como o final de uma história. Assim, ele é inerente ao singular enquanto seu “dentro” e ao mesmo tempo seu “fora”. Le limes latin designa o caminho e dá ao limite seu intervalo no qual podemos circular entre duas bordas. Portanto, se há uma ou duas bordas, vários cenários são possíveis. Em todo caso, esta questão se repete a cada apropriação de uma singularidade onde o limite faz borda, poderíamos dizer “faz corpo”. Este trabalho de apropriação por um trabalho de pensamento de uma singularidade somente pode ser feito em um intervalo “fora de tempo-fora de lugar”. Encontramos esta ideia em Agamben, ao definir a contemporaneidade pela “relação com seu próprio tempo, em que aderimos 1 Esse texto foi apresentado no colóquio Rivages, organizado pela Prefeitura e Universidade de Nice, em julho de 2000. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 247-253 06 Christian 36.indd 251 16/12/2014 23:40:49 252 Christian Hoffmann e Rosana Alves Costa tudo tomando distância” (2008, p.22). Podemos pensar igualmente no caminho de Heidegger: A caminho da linguagem (1976). Não estamos distante da costa e da margem, Mallarmé fala dos lábios como de “margens rosa”. É interessante notar o que Jean-Pierre Vernant faz do mito de Actéon (1998), o herói da margem; ele compreende o mito como aquele da prova da passagem da adolescência à virilidade. Delacroix pintou a cena colocando Artémise sobre a outra margem de um estreito rio. Podemos concluir com Jean-Luc Nancy (2000) que um mundo, uma singularidade, mantido na borda sem ver a outra borda é um mundo, ou uma singularidade, onde a margem está em ruína. Voltemos agora à nossa questão sobre o tratamento analítico dos sujeitos borderline. Como disse Lacan (1955-56), nada parece mais com uma neurose do que uma pré-psicose (ou as if, como se); podemos dizer o mesmo de patologias limítrofes. O que nos motiva no tratamento, para além dos sinais clínicos indicados no DSM V e das questões clássicas da transferência, é quando o sujeito se aproxima do buraco de sua estrutura, no sentido de que ele é a borda de sua estrutura (idem, p.221) — o limite é a borda de sua estrutura — como disse Jean-Luc Nancy. Tomemos simplesmente o clássico sentimento de vazio que geralmente testemunham estes sujeitos. Lacan evoca um caso que ele qualificava de “limite” (1986, p.140) em seu seminário sobre a ética da psicanálise, a propósito justamente de uma descrição clínica de um “espaço vazio” na subjetividade de uma paciente. Este “vazio de existência”, como dizia um jovem adolescente, é um vazio muito diferente do que um sujeito neurótico pode experimentar, no sentido de que este último se agarrará à beira de uma esperança de um amanhã (melhor) que cante. Enfim, ele está em uma beira, vê o outro lado e o caminho a executar/percorrer, e isto o deprime, enquanto o sujeito borderline está à beira do precipício sem outra beira para se agarrar. Em termo de topologia lacaniana, eles estão, todos os dois, sobre um borde real com a diferença de que o sujeito neurótico tem à sua disposição uma beira (um horizonte) simbólico que pode se imaginarizar em todos os momentos (O fantasma). A prática terapêutica com o sujeito borderline pode consistir em tentar dar borda ao buraco que se abre diante dele, procurando com ele o que Jean Oury ilustrava pela metáfora da “brasa em um monte de cinzas”. Trata-se, assim, de encontrar no envelope simbólico do sujeito a existência de um ponto onde se detenha um pouco mais de tempo, onde exista um pouco de desejo e em consequência a falta, e soprar em cima com prudência para que a chama da vida retome com uma malha simbólica. Recordamos um jovem paciente, o qual, após várias tentativas sem sucesso, encontra certa nostalgia em um pequeno flerte, que se tornou o ponto de partida da construção de um desejo do outro, como no ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 247-253 06 Christian 36.indd 252 16/12/2014 23:40:49 Alguns casos, nem neuróticos, nem abertamente psicóticos 253 quadro de Actéon. Ao final da cura, ele quis confirmar que foram as metáforas que o ajudaram a se reconstruir um si. Em termos da relação dessas patologias “sem limite” com nosso mundo contemporâneo, evocamos uma dessas características maiores de nossa atualidade, que é a aceleração vertiginosa do tempo, que expõe o sujeito (post-metafísico) à mania. Basta ler Paul Ricoeur (1985) e seu trabalho sobre tempos e narrativa para nos lembrarmos de que o trabalho de pensamento, a obra na narrativa está correlacionada à experiência temporal. Recebido em 25/9/2014. Aceito em 6/10/2014. Referências AGAMBEN, G. (2008) Qu’est ce que le contemporain? Paris: Rivages poche. BIRMAN, J. & HOFFMANN, C. (2014) “Problématique du suivi psychothérapeutique de patients borderline”, in CHABOUDEZ, G. & GILLIE, C. Actualités de la psychanalyse, Paris: Erès. . Névrose, psychose FREUD, S. (1924/1973) “Névrose et psychose”, in et perversion, Paris: PUF, p.286. . (1925/1985) “La négation”, in . Résultats, idées, problèmes, Paris: PUF. . (1929/2010) Le malaise dans la civilisation, Paris: Seuil. GREEN, A. (2012) La clinique psychanalytique contemporaine, Paris: Ithaque. HEIDEGGER, M. (1976) Acheminement vers la parole, Paris: Gallimard. HOFFMANN, C. (2013) Le concept de limite dans l’inconscient et ses états, Figures de la psychanalyse, n.25, Paris: Erès. LACAN, J. (1955-56) Les psychoses, Paris: Seuil, p.216. LACAN, J. (1986) L’éthique de la psychanalyse, Paris: Seuil, p.140. RICOEUR, P. (1985) Temps et récit, T. 3, Paris: Seuil. SAFOUAN, M. & HOFFMANN, C. (2014) Questions psychanalytiques, Paris: Hermann. VERNANT, J.-P. (1998) La mort dans les yeux, Paris: Hachette/Pluriel. Christian Hoffmann [email protected] Rosana Alves Costa [email protected] ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 247-253 06 Christian 36.indd 253 16/12/2014 23:40:50 06 Christian 36.indd 254 16/12/2014 23:40:50 Considerações psicanalíticas sobre os jogos de esconder: do puti ao esconde-esconde Humberto Moacir de Oliveira e Jacques Fux Humberto Moacir de Oliveira Professor da Faculdade Pitágoras de Ipatinga; mestre em Psicologia pela UFMG; coordenador do CEPP (Centro de Estudo e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço). Jacques Fux Pós-doutorando em Teoria Literária pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp; doutor em Literatura Comparada na UFMG (POS-LIT, 2010) em cotutela com a Universidade de Lille 3 (2010). Autor do livro: Literatura e matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o OULIPO (Tradição Planalto, 2011). Resumo: A psicanálise muito tem discutido sobre a brincadeira infantil, mas pouco tem relacionado as descobertas sobre os jogos de esconder realizadas por Freud a partir de 1920 à teoria de que toda brincadeira representa o desejo de ser adulto. Por meio do estudo das brincadeiras de esconder, o presente trabalho visa revelar como a repetição encontra um lugar na teoria psicanalítica do brincar, tornando-se um operador mais importante do que o próprio desejo de ser adulto, tão caro ao olhar inicial de Freud para as atividades infantis. Palavras-chave: Brincadeira; esconde-esconde; fantasia, repetição; psicanálise. Abstract: Psychoanalytic considerations on hide-and-seek games: from Puti to Peekaboo. Psychoanalysis has much discussed children games, but has seldom related the discoveries about hiding and seeking games, carried by Freud in the 1920’s, with the theory that all games represent the desire to be an adult. By studying the game of hide-and-seek, the present work aims at revealing how repetition finds its own place in the psychoanalytical theory of play and becomes a much more important operator than the desire a child holds of being an adult, as proposed by Freud. Keywords: Hiding and seeking games; peekaboo; fantasy, repetition; psychoanalysis. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 255-269 07 Humberto 36.indd 255 16/12/2014 23:44:34 256 Humberto Moacir de Oliveira e Jacques Fux Introdução A partir de 1920, não por acaso, as brincadeiras de esconder passam a chamar a atenção dos psicanalistas. Entre elas, o jogo de ocultar e revelar o rosto encontra-se fortemente enraizado em nossa cultura. Observando essa brincadeira com mais atenção, percebemos que sua versão brasileira vem quase sempre acompanhada de sons bastante breves como os que Freud (1920/1996) observou na brincadeira de seu neto. Na ocasião, a criança observada emitia sons que lembravam as palavras alemãs fort e da à medida que lançava seu carretel para longe de sua vista (fort: ir) e o puxava de volta (da: aqui). No Brasil, a brincadeira é com frequência acompanhada pelas palavras sumiu e achou ou, em muitos casos, por puti, o que justifica ela ser chamada, em algumas regiões, de jogo do puti. Além dos já citados jogos, muitas outras variações das brincadeiras de esconder são possíveis. Entre elas podemos citar alguns diferentes formatos da brincadeira do puti, como, por exemplo, o jogo em que, ao invés de se esconder, o adulto esconde a criança com algum pedaço de pano ou objeto similar. Ou ainda, a versão um pouco mais elaborada do mesmo jogo em que é a própria criança que se esconde e aguarda ser descoberta. Em crianças mais maduras, que em geral já não participam dos jogos do puti, e que talvez também já não retiram prazer dos jogos como o do carretel, encontramos ainda a brincadeira em que um grupo se esconde de uma criança a fim de disputar quem fica mais tempo escondido (o único que designaremos aqui por esconde-esconde). Outros jogos poderiam ser citados, mas nos deteremos nessa pequena lista que acreditamos formar um recorte geral dos jogos de esconder presentes no desenvolvimento de quase toda criança. A pergunta que fica é: como essas brincadeiras se relacionam e como podem ser assimiladas pela teoria psicanalítica do brincar? Sobre os jogos Antes de fazermos alguns avanços teóricos, comecemos analisando esse grande conjunto de brincadeiras que pode ser dividido em alguns subconjuntos. A primeira divisão que podemos fazer é separar duas classes de jogos que se distinguem pela maior atividade ou passividade na brincadeira. Ou seja, teríamos as brincadeiras em que as crianças ou os objetos são escondidos por um adulto e aquelas em que é a criança que se esconde ou esconde o objeto. Na primeira classe de brincadeiras — as brincadeiras passivas —, temos dois formatos do jogo do puti: o jogo em que o adulto se esconde e o jogo em que o adulto esconde a criança. Em ambos, quem exerce a função de esconder é o adulto. No outro formato da brincadeira, aquele em que a própria criança se esconde, assim como no jogo do fort da e no jogo do esconde-esconde, é a criança que se oculta ou oculta o objeto. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 255-269 07 Humberto 36.indd 256 16/12/2014 23:44:34 Considerações psicanalíticas sobre os jogos de esconder: do puti ao esconde-esconde 257 Outra distinção que parece ser relevante, mas que talvez só possa ser apreciada teoricamente depois de avançarmos nossa investigação, é a separação entre as brincadeiras em que a criança anseia pelo encontro do objeto escondido e aquelas, ou aquela, em que a criança anseia por sua não revelação. Curiosamente, a maioria das brincadeiras, exceto talvez a última referida, o esconde-esconde, se enquadram dentre as brincadeiras em que a criança anseia por encontrar o objeto ou, no caso de ser ela mesma o objeto escondido, em ser encontrada por um adulto. Mesmo nas brincadeiras em que a criança age ativamente se escondendo ou escondendo o objeto, o desejo de descobrir ou ser descoberto parece estar mais evidente do que o desejo de enganar ou de permanecer escondido, haja vista as crianças não se incomodarem muito com o fato de os adultos notarem onde e como elas estão escondendo o objeto, ou se escondendo. Nesse momento será bem-vinda uma breve citação que aponta para a confirmação da teoria de que um dos principais operadores do jogo de esconder, mesmo naqueles em que a criança exerce o papel mais ativo, é o desejo de descobrir o objeto ou de ser descoberto por ele. Trata-se de uma citação do escritor francês Georges Perec que, através dos usos curiosos que faz de sua língua, como inserir palíndromos e anagramas em seus textos ou mesmo escrever um livro inteiro sem a letra “e”, letra tão fundamental para o francês, diz situar sua escrita na curiosa posição da criança que brinca de esconde-esconde: “Uma vez mais, fui como uma criança que brinca de esconde-esconde e não sabe o que mais teme ou deseja: permanecer escondida, ser descoberta” (PEREC, 1995, p.14). É muito interessante para o nosso debate a observação do escritor, pois se é a própria criança quem se esconde poderíamos supor que seu maior desejo fosse não ser encontrada ou ao menos ludibriar o outro durante o máximo de tempo possível. Em alguns casos pode até ser que esse desejo de ludibriar se confirme, mas o escritor indica que esse desejo de não ser encontrado divide espaço com outro desejo, o de ser descoberto, ou com um temor, o de não ser descoberto. Em outras palavras, poderíamos dizer que na maioria dos jogos que propomos pesquisar, exceto talvez no que chamamos de esconde-esconde (ainda que nossa definição não coincida totalmente com a de Perec), a criança, mesmo que ativamente escondida, apresenta um claro desejo de ser descoberto que só pode ser fruto, como indica o escritor, de um temor, o temor de não ser encontrado. Uma última divisão que poderíamos vislumbrar entre as brincadeiras de esconder é a divisão por fases do desenvolvimento. Por achar um tanto quanto precipitado estabelecer uma divisão rígida das idades típicas de cada uma dessas brincadeiras, faremos uma divisão geral e maleável apenas indicando que a tendência geral, nem sempre obedecida, é de as brincadeiras se desenvolverem de acordo com a sequência em que as dispomos no início do texto de forma proposital, ou seja, as brincadeiras do puti parecem ser mais típicas de uma idade ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 255-269 07 Humberto 36.indd 257 16/12/2014 23:44:34 258 Humberto Moacir de Oliveira e Jacques Fux mais precoce do que a brincadeira do fort da, que por sua vez parece ser mais precoce do que a última das brincadeiras propostas, o esconde-esconde. Apresentado o material que deverá ser analisado, é hora de passarmos para as considerações teóricas que podemos tecer e assim vermos se as divisões que propomos encontram alguma utilidade para a visão psicanalítica do brincar em geral, e sobretudo, como é o objetivo desse trabalho, elucidar a função que a brincadeira de esconder exerce no ser humano e em sua constituição como sujeito, caminho aberto por Freud em 1920, mas que talvez ainda tenha campos a serem explorados. O brincar como fantasia Freud se ocupa da função do brincar em vários momentos de sua obra, quase sempre colocando essa atividade tipicamente infantil ao lado da criação artística, tipicamente adulta. Em “Escritores criativos e devaneios”, texto de 1908, o autor afirma que: “O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a realidade” (FREUD, 1908/1996, p.135). É nesse sentido que Freud defende que a antítese de brincar não é o que é sério, mas aquilo que é realidade. A fórmula freudiana para o brincar parece se ajustar muito bem à maioria das brincadeiras infantis que se ocupam em construir mundos imaginários, situações heroicas, revivências do mundo cotidiano do adulto, entre outras atividades em que um enredo imaginativo está em jogo. Freud (1908/1996) ainda observa que essas brincadeiras têm em comum um único desejo que auxilia a criança em seu desenvolvimento, o desejo de ser adulto. Temos como exemplos dessas atividades, as brincadeiras como as de papai e mamãe, nas quais as crianças exercem a função de um ou de outro membro do par parental, e que em geral detestam fazer o papel dos filhos. Temos também as brincadeiras de casinha, que novamente reconstituem o ambiente familiar. Ou a brincadeira de médico, que além de satisfazer o desejo de ser adulto permite que a criança explore o corpo humano. Poderíamos incluir aqui também algumas brincadeiras esportivas como o futebol, quando as crianças representam o papel de craques do momento. Essa ideia divulgada em 1908 já havia sido elaborada por Freud em um texto escrito entre 1905 e 1906, mas que só foi publicado depois de sua morte. Em “Personagens psicopáticos no palco”, Freud (1942/1996) afirma que para a plateia de um teatro, participar do jogo dramático funciona como o equivalente de uma brincadeira infantil. Ou seja, não só o artista, mas também o público, faz do jogo artístico um substituto do brincar e usa essas atividades para satisfazer seus ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 255-269 07 Humberto 36.indd 258 16/12/2014 23:44:34 Considerações psicanalíticas sobre os jogos de esconder: do puti ao esconde-esconde 259 desejos dentro de limites considerados normais em sua cultura. Consideramos bastante corriqueiro que uma criança de 8 anos se vista de policial e corra atrás de bandidos imaginários, mas um adulto que tivesse o mesmo comportamento, muito provavelmente seria tratado como anormal. Isso não impede que os adultos ditos normais façam atividades tão infantis e extravagantes quanto essa, desde que seja feita em sua própria imaginação, expressa ou em forma de devaneios ou em expressões artísticas. Enfim, em toda essa discussão primordial de Freud, o brincar ocupa a mesma função da arte, sendo sempre anterior a ela, ou ainda, sendo sempre um modelo, quem sabe uma condição, para arte. Nos textos citados, o que parece ser compartilhado entre a arte e o brincar é a fantasia. Em 1911 — pouco depois, portanto, dos dois textos aqui referidos —, Freud escreve “Formulações sobre os dois princípios de funcionamento mental”, no qual destaca um dos elementos básicos de sua teoria, o princípio de prazer. O princípio de prazer, fundamento tanto para o brincar quanto para a atividade artística, é o mecanismo mental que leva o ser humano, desde os períodos mais primordiais de sua existência, a buscar o prazer independentemente da realidade. O maior resquício desse mecanismo se revela nos sonhos, quando ignoramos a realidade e buscamos afastar de nossa mente qualquer evento que desperte desprazer, como acontece na clássica situação em que o dormente sedento alucina que está ingerindo algum líquido. Porém, visto que um ser vivo que se encontrasse imerso apenas nessa situação de busca intensa de prazer e desprezo da realidade jamais poderia manter-se vivo por muito tempo, o aparelho psíquico teve de tomar outra atitude perante a vida e se guiar não apenas pelo o que é sentido pela mente como prazer, mas também como real. É importante frisar que o real ao qual Freud se refere aqui se distingue do real lacaniano que trataremos adiante: o real como impossível de ser simbolizado. Isso se revela com mais exatidão quando Freud (1911/1996) chama esse mecanismo de “princípio de realidade”, o que nos permite doravante substituir no texto de Freud ‘real’ por ‘realidade’. No exemplo do sujeito sedento que sonha beber água, sabemos bem que a não satisfação da água alucinada o faz acordar e buscar alguma alteração objetiva na realidade. Assim, o princípio de prazer incluiria, para se livrar de novos desapontamentos, outro princípio, o princípio de realidade. A grande contribuição que essa teoria oferece às brincadeiras infantis é justamente no que se refere à fantasia, pois, como observa Freud, nosso aparelho mental apresenta sérias dificuldades em renunciar a um prazer uma vez obtido, e como o princípio de prazer se manifesta com muito mais liberdade quando não articulado ao princípio de realidade, o aparelho mental se apega a essa forma de obtenção de prazer que independe da realidade e a conserva lado a ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 255-269 07 Humberto 36.indd 259 16/12/2014 23:44:34 260 Humberto Moacir de Oliveira e Jacques Fux lado com as outras funções do organismo psíquico. Assim é que uma parte de nossas atividades de pensamento é liberada do teste de realidade e permanece subordinada apenas ao princípio de prazer. Nas palavras do próprio Freud: “Esta atividade é o fantasiar, que começa já nas brincadeiras infantis e, posteriormente, conservada como devaneio, abandona a dependência de objetos reais” (FREUD, 1911/1996, p.241). Temos então uma primeira definição do brincar que se sustenta, sobretudo, no princípio do prazer, conservado na fantasia, e em um dos principais desejos infantis, o de ser adulto, o que muito contribui com o desenvolvimento humano. Essa primeira definição de Freud se apoia em textos anteriores a 1920 e como sabemos muitas mudanças houve na obra freudiana a partir desse ano. Além disso, é fácil observar que a posição freudiana até então defendida se sustenta nos jogos imaginativos mais elaborados, mas traz algumas complicações para a análise das brincadeiras que nos dispomos a estudar. Cabe-nos perguntar, então, se Freud, preocupado nesses textos menos em esclarecer a função do brincar comparadas à atividade do artista, não teria buscado na infância algo já elaborado demais, que talvez seja inadequado para ser tomado como a gênese ou o modelo do brincar, já que podem existir estruturas mais arcaicas a ser consideradas. Nessa perspectiva é que as brincadeiras de esconder parecem estar em posição mais apropriada para o estudo da gênese do brincar e de sua função mais geral do que os jogos de fantasiar analisados por Freud entre 1905 e 1911. Freud parece ter essa percepção e, por isso, avançaremos nos estudos freudianos buscando resgatar dois outros momentos em que o pai da psicanálise estuda o brincar infantil a partir do que ficou conhecido como sua “segunda tópica”. O brincar como repetição Em 1920, no texto “Além do princípio do prazer”, Freud (1920/1996) caminha na direção de algum funcionamento mental que não apenas independa, mas que é mesmo mais fundamental e primordial do que o princípio de prazer com sua variação em princípio de realidade. É nesse texto que podemos encontrar a análise freudiana do jogo do fort da já citado aqui. Estamos de volta ao universo das brincadeiras de esconder, nas quais a fantasia não é tão evidente quanto nas brincadeiras comparadas à arte. Se em um primeiro passo a análise de Freud o conduziu a comparar o brincar com a atividade artística, a comparação agora é de ordem muito menos romântica. A comparação que Freud estabelece em 1920 para o brincar não é com o artista nem com o espectador da arte, mas com os chamados ‘neuróticos de guerra’, que na classificação atual da medicina se encaixam naquilo que ficou conhecido como Transtorno de Estresse Pós-Traumático. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 255-269 07 Humberto 36.indd 260 16/12/2014 23:44:34 Considerações psicanalíticas sobre os jogos de esconder: do puti ao esconde-esconde 261 A ligação das brincadeiras infantis às neuroses de guerra se deve à interpretação freudiana de uma brincadeira de seu neto. Em um primeiro momento, a criança brincava de jogar os mais variados objetos para longe de sua vista ao mesmo tempo em que emitia um vocábulo que se assemelhava ao alemão fort. Certo dia, a criança encontra um carretel que a permite completar a brincadeira e assim não apenas lança o objeto, perdendo-o, como o faz aparecer outra vez puxando o barbante, quando emite um som semelhante à palavra alemã da. A interpretação de Freud é que o menino revivia nesse jogo a saída da mãe, ou seja, a perda de um objeto importante. Considerando que a primeira parte do jogo independia a segunda, ou seja, que houve uma época em que ele apenas fazia propositalmente perder o objeto, Freud supõe que existe nesse jogo algo análogo às neuroses de guerra. Se nas neuroses de guerra o que se repete é a situação traumática da guerra — os sonhos com explosivos, a alucinose com os barulhos de tiros, entre outras lembranças — no jogo da criança o que é repetido é a perda do objeto materno. Pode-se julgar exagerado comparar a ansiedade causada pelo perigo iminente da morte com a perda temporária da mãe. Mas em psicanálise isso se esclarece quando lembramos que, como afirma Freud (1926/1996), um dos primeiros sinais de ansiedade apresentados pelas crianças é o colo de um estranho, ou seja, a perda do objeto materno (ou familiar). A conclusão a que essa discussão conduzirá Freud nós já conhecemos, é a compulsão à repetição, e, através dela, a Pulsão de Morte. Isso significa que existe uma tendência, no aparelho psíquico, mais primitiva do que o princípio do prazer e que independe dele. Ou seja, mais do que buscar o prazer, nosso aparelho psíquico busca a repetição, ele busca voltar a um estado anterior de coisas, busca repetir o ocorrido. Freud encontra vários exemplos na natureza que indicam uma tendência universal a esse retorno, desde as migrações dos pássaros e a piracema dos peixes até mesmo o destino de todo ser vivo à morte que nada mais é do que o retorno ao inanimado anterior à vida. A compulsão à repetição, não necessariamente contraria o princípio do prazer, pelo contrário, pode muitas vezes servi-lo, já que prazer é a redução da tensão psíquica e a repetição pode conduzir nossa mente a um estado anterior de menor tensão. Essas conclusões fazem Freud dar outros rumos à sua teoria, mas de maneira alguma abandonar o princípio de prazer e de realidade. Ele apenas reconhece que há algo mais fundamental do que eles, e que é nesse algo que podemos buscar alguma elucidação, tanto para os sonhos dos neuróticos de guerra que repetem uma situação de desprazer quanto para a brincadeira da criança que repete a perda do objeto. Freud reconhece nessas repetições a tendência do organismo a dominar, vincular as energias não vinculadas na mente. Em um linguajar mais lacaniano, que apresenta certa crítica a essa ideia do domínio, seria mais correto dizer que ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 255-269 07 Humberto 36.indd 261 16/12/2014 23:44:34 262 Humberto Moacir de Oliveira e Jacques Fux a perda do objeto ou o perigo iminente de morte aparece como real demais, algo inassimilável pelos significantes. Esse real resiste em ser simbolizado pela criança por sua rasa imersão no universo simbólico, assim como resiste no neurótico de guerra pela impossibilidade de o ser humano representar o real da própria morte. Como ressalta Maria Rita de Oliveira Guimarães: “O inassimilável é algo que não passa à representação, ou, dito de outra maneira, não cessa de não se inscrever. Isso importa no contexto da clínica. Não é simplesmente que não se inscreva, mas que sendo o que não cessa de não se inscrever, é causa de novas transcrições” (GUIMARÃES, 2007, p.3). Isso que não cessa de não se inscrever, Lacan, no livro 11 de seu Seminário, chama, tomando a palavra emprestada de Aristóteles, de tykhé, em contraponto ao automaton, que é o que Lacan designa por “insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio do prazer” (LACAN, 1964/2008, p.59). Tykhé, portanto, é o encontro do real, e o real é o que vige sempre atrás do automaton. Não que automaton não seja uma repetição, ele o é, mas não está além do princípio do prazer. O que extrapola esse princípio é o encontro do real, do inassimilável, que não deixa nunca de não se inscrever. Na visão crítica de Lacan, é essa falha na inscrição que mais importa quando Freud descreve a repetição em 1920. O que se repete é a não inscrição do real, o inassimilável do trauma. Se a ausência da mãe é vivida como uma perda do objeto, um encontro com o real, será esse o trauma, a falta, que não cessará de não se inscrever no jogo do carretel. Para Lacan (1964/2008), exercer o papel ativo no desaparecimento do objeto (que representa a mãe) é secundário, o principal da brincadeira do fort da é a superação da divisão do sujeito. Trata-se da clivagem do próprio sujeito, sua castração: “...a automutilação a partir da qual a ordem da significância vai se pôr em perspectiva” (LACAN, 1964/2008, p.66). Assim, o carretel, na análise lacaniana: “...é alguma coisinha do sujeito que se destaca embora ainda sendo bem dele, que ele segura” (LACAN, 1964/2008, p.66). Essa coisinha que se destaca é o que no estudo de Lacan conhecemos como objeto pequeno a. Retornando ao estudo freudiano, o que percebemos é que, mesmo em sua análise sobre o fort da, Freud não abandona sua primeira definição do brincar e, depois de dizer que “...em suas brincadeiras as crianças repetem tudo o que lhes causou uma grande impressão na vida real...”, afirma que “...é óbvio que todas as suas brincadeiras são influenciadas por um desejo que as domina o tempo todo: o desejo de crescer e poder fazer o que as pessoas crescidas fazem” (FREUD, 1920/1996, p.27). Essa teoria do brincar será mantida por Freud, porém, a ela será acrescentado o mecanismo de compulsão à repetição e vinculação das energias psíquicas. Vale a pena retomar, nesse ponto, a já referida crítica que Lacan faz a essa afirmação, quando assinala que: “Dizer que se trata simplesmente para o sujeito ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 255-269 07 Humberto 36.indd 262 16/12/2014 23:44:34 Considerações psicanalíticas sobre os jogos de esconder: do puti ao esconde-esconde 263 de se instituir numa função de domínio é uma tolice” (LACAN, 1964/2008, 232). A crítica outra vez se sustenta na operação lacaniana que Miller (2005) designa como uma clivagem da repetição, o que a distingue em dois níveis: tykhé e automaton. Dizer que a repetição é puro domínio, é acreditar: “...que tudo o que fosse da ordem do natural, dado no começo, real, passaria ao simbólico, sem deixar resto. O Seminário 11 assinala que a relação da repetição com o objeto não é a de uma simples anulação” (MILLER, 2005, p.167). A repetição a que Lacan se refere, portanto, vai ao encontro de um real, e o real se relacionará com o trauma, que Lacan transforma no “...conceito freudiano do inassimilável pelo significante” (MILLER, 2005, p.167), e que é o motor da repetição a partir do Seminário 11. Se o trauma é o inassimilável, ele não pode ser dominado, ele sempre deixa um resto, e é esse resto que motiva a repetição. A repetição, por sua vez, nunca dará conta dessa prometida vinculação, o que não significa que nada pode ser transcrito. Nessa perspectiva, a compulsão à repetição aparece na brincadeira infantil tanto enquanto determinada pelo encontro com o real, tykhé, quanto determinada pela insistência dos signos, automaton, princípio do prazer. Ainda que seja preciso reconhecer a importância da crítica lacaniana, continuar acompanhando o desenvolvimento do pensamento freudiano pode render bons frutos ao presente trabalho. E o que podemos observar nesse sentido é que Freud já antevia em 1920 a convergência da compulsão à repetição e do princípio do prazer na brincadeira infantil; por exemplo, quando afirma que também as experiências agradáveis, como uma história, tenderão a ser repetidas e que: “Nada disso contradiz o princípio de prazer: a repetição, a reexperiência de algo idêntico, é claramente, em si mesma, uma fonte de prazer” (FREUD, 1920/1996, p.46). Isso dito, percebemos que além do princípio do prazer e do desejo de ser adulto, também a compulsão à repetição torna-se um conceito fundamental para pensarmos a brincadeira infantil ainda que Freud, como observará Lacan em 1964, não tenha retirado desse fato toda sua magnitude. Resumindo, podemos dizer que na brincadeira infantil convergem a compulsão à repetição e o princípio de prazer: “...aqui, a compulsão à repetição e a satisfação instintual que é imediatamente agradável, parecem convergir em associação íntima” (FREUD, 1920/1996, 33). Chegamos enfim ao texto “Inibições, sintomas e ansiedade”, publicado em 1926, depois, portanto, do avanço freudiano rumo ao além do princípio do prazer e da nova topologia da mente, dividida agora em Isso, Eu e Supereu. A importância desse texto é crucial para nosso trabalho uma vez que será aqui que Freud abordará, ainda que de forma breve, a brincadeira do puti que acreditamos ser uma das mais primitivas brincadeiras infantis, e, portanto, mais primitiva do ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 255-269 07 Humberto 36.indd 263 16/12/2014 23:44:34 264 Humberto Moacir de Oliveira e Jacques Fux que as duas outras classes de brincadeiras estudadas por Freud, as brincadeiras enredadas pela fantasia de ser adulto e a brincadeira do fort da. Nesse momento, Freud de novo não está interessado especificamente na brincadeira, mas sim em um afeto muito caro à psicanálise, a ansiedade (em alemão: angst). Depois de propor significativa alteração em sua teoria, colocando a ansiedade não mais como uma libido transformada pelo recalque, mas como causa dele, Freud (1926/1996) afirmará que a ansiedade é incorporada na mente por meio de experiências anteriores. A isso Freud acrescenta que não existe uma experiência mais primitiva de intensa ansiedade do que o nascimento, que é, em outros termos, uma experiência de perda, de perda da mãe e do conforto da vida uterina. Mas, se a ansiedade, como irá sugerir Freud, é um sinal do eu perante o perigo, na situação do nascimento não podemos crer que o recém-nascido esteja ciente dos riscos que está correndo, sendo mais razoável dizer que essa primeira experiência de ansiedade é mais experimentada como dor, desprazer psíquico e corporal, do que como sinal de perigo. Percebemos, então, que a situação traumática causa a dor, excesso de energia psíquica desvinculada, e que a ansiedade é ou a expectativa de que o evento traumático ocorra ou sua repetição. Mas, se a ansiedade aparece toda vez que a criança supõe a repetição da experiência traumática (e as primeiras experiências traumáticas são sempre experiências que lançam o sujeito no desamparo do mundo externo), toda vez que for abandonada por um adulto, ela dará um sinal da antecipação do perigo que acredita correr. A criança, portanto, sempre que abandonada, revive a situação de sair do conforto da presença do objeto e pressente uma insegurança dando sinais de ansiedade. Os perigos estão, assim, relacionados ao desamparo e à perda do objeto, e perda do objeto, em psicanálise, não tem outro nome senão castração. Estamos de novo no ponto em que Lacan (1964/2008) indica que o carretel é uma “coisinha do sujeito que se destaca”. Esse desamparo humano, que se revela na dependência do bebê a seus primeiros objetos, explica os medos mais convencionais das crianças, como ficar sozinha, ficar no escuro ou ser entregue a um estranho — situações que repetem a perda do objeto. Toda essa digressão nos conduz de volta à brincadeira em geral e à brincadeira de esconder em particular. Pois, o que é a brincadeira do esconder, por exemplo, o jogo do puti, senão uma repetição da perda objetal? Podemos então observar que antes de participar da brincadeira do puti, a criança vivia a separação do objeto como uma experiência traumática de abandono e desamparo. Freud (1926/1996) ressalta que como a criança ainda não sabe distinguir a ausência temporária da perda permanente, ela vive cada experiência de separação como uma morte. É preciso então que repetidas experiências de afastamento ocorram para que a criança perceba que a ausência da mãe pode ser acompanhada de seu reaparecimento. As mães parecem se dar conta de parte ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 255-269 07 Humberto 36.indd 264 16/12/2014 23:44:34 Considerações psicanalíticas sobre os jogos de esconder: do puti ao esconde-esconde 265 desse processo, uma vez que muito costumeiramente elas consolam seus filhos com palavras do tipo: “Mamãe está aqui, não precisa chorar, etc.” Nesse momento, cabe-nos colocar a referência freudiana mais direta à brincadeira do puti: “A mãe encoraja esse conhecimento [o conhecimento de que o desaparecimento não é permanente], que é tão vital para a criança, fazendo aquela brincadeira tão conhecida de esconder dela o rosto com as mãos e depois, para sua alegria, descobri-lo de novo” (FREUD, 1926/1996, p.165). Para fins de resumo da situação apresentada, podemos retomar as palavras de Freud proferidas algumas páginas antes de sua referência à brincadeira do puti, para depois retomarmos com mais detalhes a investigação dos jogos de esconder: “A ansiedade é a reação original ao desamparo no trauma, sendo reproduzida depois da situação de perigo como um sinal em busca de ajuda. O ego, que experimentou o trauma passivamente, agora o repete ativamente, em versão enfraquecida, na esperança de ser ele próprio capaz de dirigir seu curso. É certo que as crianças se comportam dessa maneira em relação a toda impressão aflitiva que recebem, reproduzindo-a em suas brincadeiras. Ao passarem assim da passividade para a atividade tentam dominar suas experiências psiquicamente.” (FREUD, 1926/1996, p.162) O brincar de esconder: do puti ao esconde-esconde Tendo dito já muita coisa sobre o brincar infantil, desde sua relação com a arte e o fantasiar até sua relação com a compulsão à repetição e a ansiedade, chegamos à conclusão de que além de se apoiar na satisfação do princípio do prazer, reservando um pedaço do eu livre das condições do mundo externo (base do conceito freudiano de fantasia), o brincar também serve à criança como uma maneira de satisfazer a compulsão à repetição. Serão esses postulados que nos guiarão na pesquisa sobre o brincar de esconder a que nos propomos, com a única ressalva de que precisaremos extrapolar um pouco a teoria freudiana da vinculação, se quisermos acatar o conselho de Lacan (1964/2008) de que ficar preso ao domínio seria uma tolice. Comecemos pelo que achamos de mais primitivo em nossas pesquisas. Referimo-nos à experiência da perda objetal. Isso quer dizer que nem sempre a criança pôde participar do jogo de esconder, pois existia uma época em que ela mesma não se distinguia da mãe e a separação não poderia de maneira alguma ser experimentada como uma brincadeira nem a criança poderia dela retirar prazer. Vimos com Lacan (1964/2008), que a brincadeira do carretel, por exemplo, exige uma superação da clivagem do sujeito. Antes de brincar de esconder, a criança tem de ter experimentado a separação da mãe ou do adulto protetor como o avesso do prazer lúdico, um tormento comparável aos traumas ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 255-269 07 Humberto 36.indd 265 16/12/2014 23:44:34 266 Humberto Moacir de Oliveira e Jacques Fux de guerras ou a outras situações de perigo de vida. É só depois de verificar que o objeto não faz parte do eu infantil, só depois de destacar essa coisinha que será o objeto a, é que ela pode finalmente entrar no jogo e retirar algum prazer. Pois, não duvidemos, um dos principais motivos de toda brincadeira é retirar alguma cota de prazer. Vencida essa primeira etapa e preparada para a brincadeira, a criança, desde que auxiliada por um adulto, pode então repetir essa experiência traumática em forma de jogo. Temos agora uma bonificação por ter separado em grupos as diversas formas do brincar de esconder, pois podemos relacionar esses grupos e dizer que as brincadeiras mais antigas são as mesmas que, na separação por atividade, ficaram na classe das passivas. A criança então é convidada pelo adulto ao jogo de perder o objeto e retomá-lo, o que talvez seja o primeiro passo rumo à superação da divisão do eu. É importante aqui destacarmos outra vez que a maioria dessas brincadeiras é acompanhada de vocábulos simples que lembram o fort e o da da brincadeira do carretel. Esses vocábulos, como sumiu e achou, puti e outros, devem ter sua função psíquica, uma vez que são, em sua maioria, antítese significante, um S1 e um S2: “Não há fort sem da...” (LACAN, 1964/2008, p.232). Ainda que, como lembra Lacan, não seja da oposição pura e simples do fort e do da que o jogo retira sua força inaugural (mas sim do carretel enquanto objeto a) essa oposição entre os sons emitidos parecem não ser gratuitas, uma vez que colocam o sujeito entre dois significantes que o auxiliarão rumo à superação da castração. Se assim de fato for, temos então que a primeira função do brincar não é atender ao desejo de ser adulto, mas de tentar inscrever a falta inassimilável do objeto que não cessa de não se inscrever. A criança encontra no convite do adulto à brincadeira de esconder o rosto uma das primeiras tentativas dessa inscrição. Muito provavelmente, as primeiras brincadeiras que se tornam possíveis à criança é a que chamamos de puti, e nelas a criança participa inicialmente de forma passiva, ansiando pelo encontro do objeto que desapareceu por iniciativa do adulto. A próxima etapa, como já é possível supor, é quando a criança passa a exercer um papel ativo na brincadeira, ou se escondendo do adulto ou escondendo seus objetos. Aqui temos a brincadeira do fort da e a do puti em que a criança se esconde, ambas com um funcionamento muito semelhante ao que encontramos na primeira etapa, mas com a diferença de que é a criança agora que exerce o papel fundamental do jogo. Agora é a criança que começa a operar com os primeiros vocábulos e a colocá-los dentro da operação significante opondo-os de acordo com o momento da brincadeira. Aqui a criança pode simbolizar o objeto através não apenas de antíteses significantes como o puti e o achou, como, principalmente, do carretel e outros objetos. Mesmo nesse momento ainda não temos argumentos muito fortes para dizer que a criança brinca para atender ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 255-269 07 Humberto 36.indd 266 16/12/2014 23:44:34 Considerações psicanalíticas sobre os jogos de esconder: do puti ao esconde-esconde 267 seu desejo de ser adulto; o que parece imperar nesse caso ainda é a compulsão à repetição e sua relação com o trauma. Logicamente não podemos dizer que essas etapas são bem delimitadas e rígidas, mas seguindo nosso raciocínio, apenas um pouco mais tarde é que a criança começaria por encarar o jogo como um desafio e poderia retirar prazer de se esconder de outra criança com a preocupação de não ser encontrada durante muito tempo. Teríamos aqui, por fim, a situação de esconde-esconde. Ainda que não seja óbvia a relação que esse jogo apresenta com o desejo de ser adulto, podemos dizer que é por volta desse período que observamos com mais clareza a presença de brincadeiras que atendam ao desejo de ser adulto. Mesmo o esconde-esconde apresenta uma versão em que um grupo de crianças representando a polícia sai à procura de outras crianças escondidas que representam os bandidos: a brincadeira de polícia e ladrão. Seria o encontro do jogo de esconder com a fantasia de ser adulto? Essa pergunta, talvez inevitável, de saber quando o jogo da repetição do trauma encontra com o jogo fantasioso de ser adulto, ou se eles sempre coexistiram no desenvolvimento do sujeito, é difícil de responder. Mas a resposta pode ser procurada na relação do sujeito com o objeto, que como aprendemos com Freud (1923/1996), pode ser pelo menos de duas ordens que por vezes convergem: um desejo de ter e um desejo de ser o objeto. Assim, a criança representaria em suas brincadeiras ambas as situações, uma em que ela repete a perda do objeto e outra em que ela, fantasiosamente, se identifica com o objeto amado, que é também uma das formas de ter o objeto. Freud (1923/1996) defenderá essa hipótese afirmando que se o Eu se apresentar ao Isso de modo semelhante ao objeto perdido, o Isso pode amar o objeto através do amor narcísico que sente pelo Eu. Em outras palavras, se uma criança se assemelha ao adulto, ela pode amar essa parte de si que se parece com esse adulto. Assim, é notável os meninos que buscam usar os sapatos dos pais ou as meninas que buscam se maquiar como a mãe. Tudo isso confirma e explica a hipótese de que o brincar se guia pelo desejo de ser adulto. Teríamos nessa distinção entre o amor do ter e o amor do ser duas formas da criança tentar inscrever o real: repetindo a perda objetal e fantasiando ser adulto. É ainda apenas um esboço de resposta a essa pergunta que permanece em aberto. Por enquanto, apenas sugeriremos que o mesmo motor que move a repetição, aquilo que não cessa de não se inscrever, move também a fantasia presente nos jogos mais elaborados da criança. Como afirma Lacan, “...o real vai do trauma à fantasia...”, já que “...a fantasia nunca é mais do que a tela que dissimula algo de absolutamente primeiro, de determinante na função da repetição” (LACAN, 1964/2008, p.64). Talvez o que possa ser proposto nesse instante é que o real também vai da brincadeira do esconder à brincadeira do fantasiar ser adulto. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 255-269 07 Humberto 36.indd 267 16/12/2014 23:44:34 268 Humberto Moacir de Oliveira e Jacques Fux Considerações finais Embora algumas questões ainda estejam em aberto, a análise das brincadeiras de esconder não parece ter sido em vão. Além de trazermos reflexões para a teoria freudiana do brincar, também pudemos penetrar um pouco mais na função que o esconder exerce na vida do ser humano. O ponto a que chegamos é que o real da falta do objeto é o que sustenta os primeiros jogos de esconder e é o avanço desse movimento que possibilita novas brincadeiras. Se Éric Laurent (apud GUIMARÃES, 2007) diz que no jogo do fort da a criança simboliza a ausência e a presença, podemos dizer que outros jogos de esconder também cumprem essa função ou ao menos preparam o infante para ela. O autor ainda diz que a criança não tem a possibilidade de escrever em algum lugar que sua mãe partiu. O jogo de esconder ajuda no desenvolvimento dessa escrita, que se nunca será realizada, não significa que nada pode ser feito. Para Laurent, o carretel que simboliza a ausência e a presença pode ser transformado em urso de pelúcia, que é o que a criança busca quando tem que enfrentar uma separação. As crianças recusam dormir, pois dormir é uma separação, dormir é estar sozinho, o urso as ajuda nesse sentido. O esconder as ajuda a chegar ao urso. E é assim, num jogo de esconde-esconde, de presença e ausência, de puti e achou, de carretel e urso, que a criança tem a chance de “suportar a angústia do nada de traço da presença da ausência” (LAURENT, apud GUIMARÃES, 2007, p.4). Recebido em 5/3/2012. Aprovado em 30/5/2012. Referências FREUD, S. (1996) Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (1908) “Escritores criativos e devaneios”, v.IX, p.133-146. (1911) “Formulações sobre os dois princípios de funcionamento mental”, v.XII, p.233-246. (1920) “Além do princípio do prazer”, v.XVIII, p.13-78. (1923) “O Ego e o Id”, v.XIX, p.15-82. (1926) “Inibições, sintomas e ansiedade”, v.XX, p.81-174. (1942) “Personagens psicopáticos no palco”, v.VII, p.289-298. FUX, J. (2011) O ludicamente sério e o seriamente lúdico de Georges Perec. Revista Criação & Crítica, São Paulo, v.6, p.28-43. Disponível em: < http://www.ff lch.usp.br/dlm/criacaoecritica/dmdocuments/ CC_N6_JFux.pdf >. Acesso em 10/12/2011. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 255-269 07 Humberto 36.indd 268 16/12/2014 23:44:34 Considerações psicanalíticas sobre os jogos de esconder: do puti ao esconde-esconde 269 GUIMARÃES, M. R. O. (2007) Os três tempos do objeto no Fort-Da. Almanaque On-line, Belo Horizonte, Ano 01, n.1, p.1-6, 2007. Disponível em: < http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/ almanaque/textos/Texto%20M%201%20.%20Rita.revis.%20-%20 5%20laudas%20-.pdf >. Acesso em 10/12/2011. LACAN, J. (1964/2008) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. MILLER, J-A. (2005) Silet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. PEREC, G. (1995) W ou a memória da infância. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Humberto Moacir de Oliveira [email protected] Jacques Fux [email protected] ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 255-269 07 Humberto 36.indd 269 16/12/2014 23:44:35 07 Humberto 36.indd 270 16/12/2014 23:44:35 Miragens perimetrais: sobre o erro como limite Paulo Sérgio de Souza Jr. Paulo Sérgio de Souza Jr. Psicanalista, tradutor, doutor em Linguística pela Unicamp e pós-doutorando em teoria literária pela UFRJ. Membro do Centro de Pesquisas Outrarte (IELUnicamp). Resumo: O erro linguístico tem sido diversamente abordado ao longo das diferentes tradições dos estudos da linguagem. O presente trabalho propõe, a partir da psicanálise, uma discussão a respeito de possíveis considerações e sobre o que o erro viola. Assim, pretendemos vislumbrar onde, na topologia da língua, o erro encontra a sua morada, bem como questionar se, de fato, ele estaria aí em posição de limite. Palavras-chave: Erro, linguagem, língua, limite. Abstract: Perimetrical mirages: on error as a limit. Linguistic error has been approached differently throughout different traditions of language studies. This paper, based on psychoanalytical doctrine, proposes a discussion about some possible considerations and about what error violates. Thus we want to envision where in the topology of language indwells linguistic error, and question whether, in fact, it would be there in some boundary position. Keywords: Error, language, limit. Há erro — uma introdução tética “nunca cometo o mesmo erro duas vezes já cometo duas três quatro cinco seis até esse erro aprender que só o erro tem vez.” (Paulo Leminski, La vie en close, p.60) “Errar é humano”, diz a máxima. E, ao falarmos de erro, certamente seremos impelidos a dizer de sua constituição como um processo não subestimável, sobretudo na medida em que ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 271-284 08 Paulo Sergio 36.indd 271 16/12/2014 23:48:07 272 Paulo Sérgio de Souza Jr. histórico: é a historicidade do erro — uma vez que ele promove sempre uma diferença, seja por meio de uma descontinuidade entre o que o precede e aquilo que o sucede; ou, ainda, uma continuidade que impede a circunscrição de um domínio isolado — que constitui a certeza de sua própria garantia como algo que tenha efeitos na superfície do discurso. E é esse viés histórico que corrobora sua filiação, pois, ao âmbito das práticas humanas. A história, por sua vez, entendida como algo que se constitui no próprio trânsito entre a pura língua e o discurso,1 é possibilitada exatamente pela diferença de potencial em jogo nessa passagem.2 E, nessa correlação, somos também obrigados a situar a raiz do erro para além da própria noção de história, como presente já no vetor que parte do semiótico rumando ao semântico, visto que a língua mesma, em sua “ordem própria” (SAUSSURE, 1916/1972, p.31), interdita que tudo se possa dizer. Isso significa que, uma vez dispostos a perscrutar o que caracteriza a condição humana enquanto tal — visto que “a linguagem ensina a própria definição do homem” (HUMBOLDT apud AGAMBEN, 1978/2005, p.60) —, podemos dizer, de saída, que “errar é linguístico”. No que concerne ao erro de língua, discute-se com frequência a respeito de qual estatuto aquele tem nesta; e pode-se notar, no trato da linguagem, como é que o erro tem sido diversamente processado ao longo das diferentes tradições. Contudo, os questionamentos que advêm não saberiam abalá-lo em sua existência como tal: depreende-se que o erro há e que ele permeia as práticas linguísticas mais irrisórias, uma vez que, ainda que tomemos o falante exclusivamente em sua condição de falante — isto é, como alguém detentor apenas de um conhecimento epilinguístico3 sobre sua língua —, somos obrigados a reconhecer que ele, por via de um estranhamento, é sempre capaz de identificar algo passível de ser nomeado como sendo um erro de língua, sem que com isso, muitas das vezes, consiga precisar o que aí lhe estranha, ou mesmo fazer com que outro 1 “Somente porque [...] há uma diferença entre língua e discurso, entre semiótico e semântico, somente por isso existe história, somente por isto o homem é um ser histórico” (AGAMBEN, 1978/2005, p.64). 2 “É, com efeito, a diferença que talha a cesura do isolamento na homogeneidade da linguagem e que, inversamente, abre em cada sistema as vias para um outro. A instabilidade interna dos ciclos e o equívoco de suas relações não são dois problemas. Sob essas duas formas, como relação com o outro e como relação consigo, um confrontamento incessante trabalha a história, legível nas rupturas que fazem os sistemas bascularem e nas coerências que tendem a recalcar uma alteração interna. Há continuidade e descontinuidade, todas as duas enganadoras, porque nesse ‘modo de ser da ordem’ que lhe é própria, cada momento epistemológico carrega em si uma alteridade que toda representação procura eliminar objetivando, mas sem jamais poder sufocar seu obscuro trabalho e nem prevenir seu veneno mortal” (DE CERTEAU, 2002, p.168; tradução livre). 3 Termo utilizado por Culioli (1968) para designar o saber inconsciente que todo falante possui sobre sua própria língua — anterior, portanto, a uma metalinguagem, a um aparato que possibilite construir um saber objetivo sobre essa língua. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 271-284 08 Paulo Sergio 36.indd 272 16/12/2014 23:48:07 Miragens perimetrais: sobre o erro como limite 273 sinta ali o mesmo e compartilhe do seu estranhamento; em algumas ocasiões, aliás, ele sequer pode oferecer àquilo que causa tal sensação uma alternativa que a reconforte. Mesmo que possamos dizer, minimamente orientados pela noção de níveis de análise (BENVENISTE, 1964), que, nesse processo de aperceber-se dele, o erro apresenta diferentes nuances — afinal, ninguém contrariaria a afirmação, mesmo que razoavelmente obscura, de que há diferença quanto ao estatuto do erro ao se ponderar as equivalências, por exemplo, entre uma troca de letras numa palavra e uma violação de uma regra sintática —, iniciaremos o presente trabalho com uma discussão situada num ponto um pouco aquém dessas nuances, isto é, por meio da seguinte pergunta: o que é que o erro, como tal, viola? Assim, poderemos nos guiar conforme nossos propósitos, tornando-nos capazes de vislumbrar onde, na topologia da língua, o erro encontra o seu abrigo; e questionar se, de fato, ele se encontra em posição de limite, visto que, ao nos darmos conta de que a língua não vai em todos os sentidos — isto é, que “não se diz tudo” (MILNER, 1978/2012, p.69) —, talvez fôssemos levados a crer que um dos papéis do erro fosse justamente o de estabelecer os seus lindes. A lupa da letra: o erro através “Sem o escrito não há nenhuma forma possível de chegar a questionar o que resulta essencialmente do efeito da linguagem como tal.” (Jacques Lacan, 17 de fevereiro de 1971) Longe de se pretender reduzir o erro a uma palavra-mestra, ainda assim parece inevitável situá-lo sob os auspícios daquilo que o evidencia, a saber, a escrita — na medida em que, sabe-se, é apenas a partir do seu estabelecimento que determinado saber consistente sobre a língua se torna possível (AUROUX, 1992, p.22). Sabe-se que, por um lado, “a escrita obscurece a visão da língua” e “não é um traje, mas um disfarce” (SAUSSURE, 1916/1972, p.40) — que se lembre aqui, é necessário dizer, da potência do efeito de báscula promovido pelo gesto saussuriano, que coloca a língua falada à frente da escrita em termos de privilégio de estudo; por outro, contudo, caso pensemos no processo de reflexão sobre a língua atual frente aos estados anteriores, já somos obrigados a reconhecer que a escrita tem aí um papel de esclarecimento fundamental. Além do mais, por meio de sua fixidez, ela garante a leitura de textos de outras épocas com os quais muitas vezes não se teve contato prévio — ou com o escrito em si, propriamente, ou com o texto oral que lhe deu origem. Ainda, como prótese mnêmica, é capaz de livrar da necessidade do conhecimento, de cor, dos textos que se deseja fazer uso. Assim, ela vai subitamente na contramão ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 271-284 08 Paulo Sergio 36.indd 273 16/12/2014 23:48:07 274 Paulo Sérgio de Souza Jr. da própria imutabilidade, uma vez que sua fixidez também denuncia, para além da variação sincrônica à qual o falante tem acesso, o efeito da diacronia pesando sobre a língua. Mas não só, já que chega, como Saussure mesmo é obrigado a reconhecer, a causar modificações no próprio estado de língua que lhe é contemporâneo: o que vai ser nomeado no Curso como uma espécie de auge da “tirania da letra”, quando a escrita acaba por influir na língua, modificando-a (idem, p.41). Essa dimensão da variação que a escrita submete aos sentidos do falante não deixa de ter efeitos, visto que a variação linguística, sincrônica ou diacrônica, costuma ser encarada com maus olhos nas mais diversas tradições — em que vigoram considerações que datam de muito antigamente, por exemplo, como a de que a língua de um outro povo é uma língua menor, não sagrada; ou, ainda, a de que a capacidade de falar todas as línguas havia sido concedida ao primeiro dos homens, mas foi mais tarde perdida devido a algum infortúnio/intemperança: o orgulho humano e a insolência contra os seus deuses ocupam, para vários povos, esse lugar (tal qual se mostram justificativas, por exemplo, para a separação/perda que está em jogo na origem do amor, como no mito descrito por Aristófanes, conforme O banquete, de Platão). A dimensão do sagrado como estando atrelada aos fenômenos linguísticos se mostra, desde então, no cerne de muitas das concepções tanto sobre a origem da linguagem — e.g. o povo dogom (AUROUX, 1992, p.19) —, quanto sobre a diversidade das línguas — e.g. o mito babélico; o mito da confusão das línguas por Zeus, para os gregos. E o sagrado, aliás, chega a garantir o seu lugar de tangência inclusive em produções gramaticais mais recentes — e.g. a querela entre jesuítas e jansenistas no século XVII (DEFIZE, 1988). Os primeiros relatos de estudos gramaticais já haviam colocado em cena a religião. Tomemos a Índia politeísta do século IV a.C.: é nesse período que encontramos a gramática de Panini e, já aí, a frutífera noção de boa formação — de palavras, até então —,4 que estava em jogo na língua que se acreditava que, aos poucos, vinha se perdendo devido à variação. Essa língua, com a qual o gramático trabalhou em sua Ashtadhyayi,5 é aquela em que foram escritos os Vedas; e o objetivo de sua compilação de regras guarda relação íntima com o fato de que os eruditos acreditavam que o sânscrito, considerado a língua dos deuses, estava sofrendo mudanças e se degradando, o que poderia acarretar severas implicações 4 A palavra como unidade privilegiada atravessará grande parte do período clássico, como na obra de Dionísio, o Trácio — autor, no século II a.C., da primeira gramática ocidental documentada. A frase só começará a ser tomada como unidade de análise no século II d.C., com Apolônio Díscolo e seus trabalhos sobre a sintaxe do grego. 5 A gramática de Panini é composta por aproximadamente 4 mil regras, além de alguns anexos — como uma lista de aproximadamente 2 mil raízes. Foi tão profícua que até hoje ainda desperta grande interesse, como denuncia um projeto (Grammaires Paninéennes) em curso, no momento, dedicado exclusivamente ao seu estudo no Instituto Francês de Pondichéry. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 271-284 08 Paulo Sergio 36.indd 274 16/12/2014 23:48:07 Miragens perimetrais: sobre o erro como limite 275 religiosas: uma diferença/erro aparentemente banal de pronúncia, por exemplo, seria capaz de colocar toda uma cerimônia a perder. Vemos, então, uma estreita relação entre mudança e erro, isto é, entre a noção seminal de erro, nos primórdios da gramática, e a violação de uma língua anterior — correlata a um momento mítico (muitas vezes sagrado) de pureza — à qual deveríamos nos reportar sempre, por algum motivo, e por cuja preservação deveríamos supostamente zelar: refreando a mudança; retornando aos primórdios desse gozo perdido que estaria em jogo para uma língua imaculada; recusando a falta, na busca de uma língua de fato completa. Tal entendimento que afirma a língua atual como algo que violaria um estado anterior estará por detrás da própria noção de erro gramatical — e, se não estivesse, correríamos o risco do anacronismo, visto que a violação pressupõe algo que já havia para, então, num segundo tempo, ser violado —, o que, ao se replicar, supõe a remissão a uma espécie de idioma “pré-babélico”, que figuraria como língua ideal. Basculando dessa língua ideal ao ideal de língua, vemos que se identifica no erro certa natureza transcendente,6 pois, apesar de exceder toda e qualquer língua, manifesta-se em cada uma: o erro quotidiano viola a língua no estado atual; a variante regional viola o standard; o erro que se torna fato de língua viola o estado de língua anterior; o idioma como tal viola a língua que lhe deu origem. Não será diferente, portanto, nas tradições dos séculos seguintes, como se pode ver com o segundo período da história da Linguística, conforme descreve o Curso de Ferdinand de Saussure (1916/1972, p.7): a Filologia. Apesar de haver aí uma preocupação maior com outras questões — datação, interpretação e comentário de textos clássicos —, ela acaba por estabelecer, ainda que por outras vias, a mesma suposição de primazia à língua dos antigos: o próprio Saussure aponta como uma falha da disciplina a atenção exclusiva a textos escritos (literários, além do mais, lembremos), em detrimento do atual da língua falada, que vai ser entendida como uma manifestação linguística menor (idem, p.8). O erro, portanto, reconhece o seu lugar para além da língua, isto é, no descompasso entre a língua atual e o lugar fantasístico que a imagem de uma língua perdida guarda para si — descompasso que guiará a noção de norma que acompanha, com fertilidade, a tradição gramatical no âmbito escolar até mesmo nos dias de hoje.7 6 Damos a medida desse termo conforme a lógica medieval entende os transcendentia, isto é, predicados que transcendem as categorias, mas persistem em todas elas (AGAMBEN, 1978/2005, p.13). 7 Nas gramáticas escolares — seja de primeira língua, seja para aprendizado de língua estrangeira — o trabalho gramatical normativo, entendido como arte, faz do erro a violação de uma tekhné consolidada pelas mãos de grandes escritores, deixando ao sabor do cânone — e daquilo que o garante enquanto tal, então — os poderes de fixar seus lineamentos: a boa língua; a língua dos doutos; a língua das pessoas de bem; a língua dos bons costumes. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 271-284 08 Paulo Sergio 36.indd 275 16/12/2014 23:48:07 276 Paulo Sérgio de Souza Jr. Se pensarmos em Port-Royal, por sua vez, a questão encontra o seu reverso. Aqui, a noção de gramática rompe com a tradição que vê sua exímia figuração no trabalho de Vaugelas (Remarques sur la Langue Française, 1647), isto é, ela não será entendida como uma teoria dos usos, e sim como uma disciplina que incide sobre a própria racionalidade e generalidade que estão em jogo na função da linguagem compartilhada pelos homens.8 Visto que a língua, no caso, é tomada como uma expressão daquilo que se pensa, o erro de língua consiste em erro de pensamento: a língua se isenta do erro, isto é, o erro em si encontra-se aquém da língua. Ao nos ampararmos no próprio Curso saussuriano, caso caminhemos um bocado mais adiante na história das reflexões linguísticas, vemos que a questão parece se espelhar outra vez. Afinal, se é “a fala que faz evoluir a língua” (SAUSSURE, 1916/1972, p.27) e, ao mesmo tempo, se “as inovações da fala não têm [todas] o mesmo êxito e, enquanto permanecem individuais, [para a Linguística] não há porque levá-las em conta” (idem, p.115), depreendemos que o movimento individual, num primeiro momento — enquanto fato de fala —, nada mais é do que erro frente ao fato de língua do qual ele se desvia, isto é, novamente se presentifica a violação de uma cristalização e o erro retoma o seu lugar de além-da-língua. Mas e hoje? Bem, se podemos dizer do erro no atual estado da arte vemos que a gramática gerativa — em seu lugar privilegiado entre as abordagens atuais do fenômeno da linguagem — trata-o de maneira a tornar evidente uma relação necessária para pensá-lo de forma profícua para o campo da psicanálise. É o que veremos mais adiante. Dois erres do erro A gramática gerativa, acreditamos, é a que melhor situa o erro em sua natureza bífida: 1) de um lado, temos a violação no sentido gramatical leigo, que, apesar de não ser valorado negativamente — já que a normatividade não é o que está para ela em jogo —, não deixa, contudo, de ser fundamental para os estudos que contrastam os funcionamentos das línguas entre si; 2) de outro, há o erro enquanto algo que o julgamento de gramaticalidade do falante é capaz de descartar (caracterizar como algo que não pertence à sua língua), e que só compareceria na fala por conta de uma falha de processamento. 8 “Primeiro que tudo, ela marca, intencionalmente pelo menos, o fim do privilégio reconhecido, nos séculos precedentes, à gramática latina, que tendia a apresentar-se como modelo para qualquer gramática: a gramática geral é tanto latina, quanto francesa ou alemã, mas transcende a todas as línguas” (DUCROT & TODOROV, 1972/2001, p.220). ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 271-284 08 Paulo Sergio 36.indd 276 16/12/2014 23:48:07 Miragens perimetrais: sobre o erro como limite 277 Do segundo tipo supõe-se que ele pode ser discriminado por meio de um juízo enunciável pelo falante, e que a violação em que esse erro consiste, muitas vezes, de um princípio fundamental para a língua que lhe é materna, funciona como uma espécie de proibição que sequer precisa dizer seu nome através da gramática normativa. Podemos ver, nos dois exemplos do Português Brasileiro (PB) que se seguem, locuções que figuram bem aquilo que chamamos aqui de natureza bífida do erro: 1) Os menino saiu. 2) * Menino o saiu. A primeira sentença, considerada uma variante com relação ao português standard (“os meninos saíram”), não é condenável pela linguística como erro, mas não deixa de estar marcada com uma diferença, minimamente na medida em que conota, no sentido hjelmsleviano do termo (HJELMSLEV, 1943/1968). A segunda, por sua vez, é uma frase que não faz parte do conjunto dos enunciados possíveis em PB, o que faz dela, nessa perspectiva, um erro que se poderia, no âmbito da disciplina, chamar de legítimo: uma má formação, de fato. Contudo há aí, para além de matizes, cores que se distanciam muito no espectro: nesses dois exemplos, onde é que se erra, com efeito? Façamos, então, certa disjunção para assediarmos o erro de um modo que nos parece fundamental. Em 1), a violação consiste na ruptura com a formalidade da regra em sua vertente normativa, no que diz respeito à arte da gramática tradicional; porém, não se pode dizer — uma vez que se é imaginariamente capaz de dizer o que é uma língua — que essa frase não é do PB. Já em 2), a frase viola uma das constituintes básicas do PB, a saber, que os artigos sempre precedem os nomes. Quando essa regra é violada, o nível de estranhamento dirá respeito ao próprio reconhecimento de que o que ocorre ali é a intromissão de algo que, por meio de sua exclusão, antes se encontrava em posição de assegurar à língua a garantia de sua integridade. Com isso, a possibilidade de situar o PB como sendo uma língua, antes mesmo de ser uma língua entre outras, é pouco garantida pelo fato de que haja outras línguas que não são o PB — ainda que, com efeito, soe tentador acreditar que aquilo que faz o PB ser o PB é o fato de que ele não é o português europeu, o kamayurá ou o russo, por exemplo. Há aí um tempo anterior: o que está em jogo na constituição dessa língua como supostamente idêntica a ela mesma é a própria possibilidade de dizer, de dentro do PB, o que ele não é.9 9 Note-se, aí, a inevitável remissão à inconsistência da língua, e os meandros que, de fato, enlaçam o todo e o não-todo no que diz respeito aos estudos linguísticos (MILNER, 1978/2012, cap.5). ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 271-284 08 Paulo Sergio 36.indd 277 16/12/2014 23:48:07 278 Paulo Sérgio de Souza Jr. Talvez possamos dizer, então, que em 1) ocorre uma violação do contingente, enquanto que em 2) ocorre uma violação no nível do necessário — e, nesse sentido, a segunda violação incide num dos pontos de estabilidade imprescindíveis à construção de uma fronteira imaginária entre o que é ou não é uma língua. Pode-se depreender, então, que o erro necessário promove a possibilidade de vislumbrar a língua enquanto toda: essas locuções, ao permanecerem num pretenso fora, são condição para podermos tomar a língua como um Todo idêntico a si mesmo — em outras palavras: pensá-la como um sistema, como forma. A partir do que havia feito Jean-Claude Milner (1978/2012) — que fala da proibição na língua como uma encarnação do impossível do incesto —, e tendo em vista a disjunção que acabamos de fazer entre essas manifestações que chamamos de erro, somos compelidos a estabelecer uma distinção lá onde o autor estagnou a pena. O erro necessário seria, ele sim, o que podemos conceber como estando do lado daquilo que Milner (1978/2012, p.81) chama de “Édipo linguístico”. Mas e a proibição do erro contingente, por sua vez? Com o que estaria relacionada? Acreditamos poder elucubrar que o erro do tipo 1) parece estar ligado mais a um desejo de não desejo, atuando como gestos em direção ao retorno ao gozo perdido da língua ideal. A possibilidade desse tipo de erro supõe uma regragem do dizer que, apesar de se manifestar justo pela coerção, está referenciada por outro tempo, um tempo sem lei — o que pode parecer contraintuitivo, mas mais compreensível se pensarmos naquilo que está em jogo para o supereu, que, segundo Lacan (1972-73/2008, p.11), é precisamente “o imperativo do gozo — Goza!”. Nesse ponto se torna clara a escolha da primazia dada ao sincrônico pela Linguística moderna em sua procura por filiação à ordem das ciências, deixando de lado o acúmulo diacrônico, que curtocircuita passado e presente da língua.10 Isso porque, se pensamos na tradição gramatical, salta aos olhos o estatuto da gramática enquanto arte, na medida em que ela dá conta de uma verdade que a ciência da linguagem procura obliterar: a do preço pago, a perda — acarretada pela entrada na linguagem — que tem sua morada num tempo que é póstumo a si mesmo (inapreensível à cronologia, portanto, e que por isso suscita um tempo lógico); tempo encarnado nos mitos que encenam a origem da linguagem, em termos filogênicos, e na infância do sujeito, em termos ontogênicos, como nos mostra Giorgio Agamben (1978/2005). Contudo, precisar essa bifurcação não muda o curso do argumento de Milner, pois ambas as facetas do erro nos colocam no caminho de que ele nos fala: sobre o fato de o erro ser constituído de língua, de estar na língua. Se uma locução 10 Não nos esqueçamos de que “o centro de gravidade do sujeito é essa síntese presente do passado a que chamamos história” (LACAN, 1953-1954/1986, p.48). ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 271-284 08 Paulo Sergio 36.indd 278 16/12/2014 23:48:07 Miragens perimetrais: sobre o erro como limite 279 é, então, proibida, o é na medida em que poderia ser proferida, tanto que a escrevemos aqui e, então, a notamos como incorreta; ou seja, o componente de impossibilidade em jogo na sua não execução não se deve a uma suposta suspensão do funcionamento linguístico enquanto tal. O véu e a vergonha: Aufhebung e pudor “‘Lalíngua’, qualquer que seja, é uma obscenidade.” (Jacques Lacan, 19 de abril de 1977) Uma vez, então, que o erro está na língua, e não se encontra em posição limítrofe entre o linguístico e o que não o seria, a necessidade de lidar com ele está posta para os falasseres (parlêtres); e, além do mais, pode-se notar que estes operam com ele: colocam óleo em suas juntas para seguir adiante. O erro, visto que é língua, não teria mesmo como estancar a operação significante. Se, todavia, como nos aponta Milner, a língua é uma rede recoberta por falhas, isso não quer dizer que essas falhas constituam um Todo, ou seja, que se mostrem circunscritíveis e possam solidamente se agregar em seu lugar de excrescência; muito pelo contrário, essas falhas desenham um não-todo — “lalíngua é não-toda” (MILNER, 1978/2012, p.39). A Linguística, contudo — e para isso se ampara inclusive no erro que aqui chamamos de necessário —, imaginariza uma agregação para esses pontos de equívoco (que são frutos de determinado resultado do juízo de atribuição do falante a respeito de sua própria língua, e suscitam, no só-depois: ou uma rejeição da coisa que estava em causa, ou o seu desconhecimento acompanhado pela incapacidade de decidir a respeito dela), colocando-os numa posição de limite e, então, procurando assegurar o todo de seu objeto, quer lançando-os para a órbita das particularidades da fala, quer para a opacidade misteriosa do uso. Não se pode compreender mal, todavia: limite, aqui, não significa exterioridade, mas sim certa impossibilidade — apesar de se poder dizer a locução proibida, não se pode dizer dela. Mas, no caso do erro contingente, há uma especificidade capital: pode-se dizê-lo, e também se pode dizer dele.11 Há alguma coisa em jogo aí que não é da 11 No caso do erro necessário, não se pode conjeturar por que é que, no que diz respeito à própria língua, não se pode dizer “menino o”, tampouco por que é que se diz, suponhamos, num determinando momento — pois, via de regra, esse enunciado sequer é dito. No caso do contingente, todavia, pode-se argumentar que “os menino saiu” é fruto da violação de uma lei explícita quanto à concordância, e arriscar algum motivo para tanto: uso de um registro informal ou pouca familiaridade com a norma culta, por exemplo; pode-se até chegar a dizer que o falante não conhece sobre a língua. Já no caso do erro necessário não podemos dizer o mesmo — salvo, obviamente, se se tratar de um falante estrangeiro (quem sabe um ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 271-284 08 Paulo Sergio 36.indd 279 16/12/2014 23:48:07 280 Paulo Sérgio de Souza Jr. ordem do impossível: a possibilidade de algo que se relaciona com aquilo pelo qual nos referenciamos surdamente acima ao falarmos do aspecto religioso dos estudos da linguagem desde os seus primórdios: o erro viola. Há uma dimensão do obsceno no que diz respeito ao erro; e com o obsceno, ora, sempre se soube o que fazer! Digamos que ele pode ser assediado de uma forma simples, mas não negligenciável: uma maneira corrente de encapsular o seu efeito é, no texto, o uso das aspas, uma vez que “a palavra entre aspas está suspensa em sua história” (AGAMBEN, 1985/1998, p.91). Quando se pretende fazer com que algo de errado compareça no texto, as aspas parecem constituir um possível invólucro para que essa violação entre aí inócua12 — de tal modo que se possa operar e fazer com ela, já que o fato transgressor foi abarcado, circunscrito por esses sinais gráficos: as guillemets (aspas) abrem espaço para submergir os guille-mots (mergulhões/palavras) do pensamento: “lá onde falhou uma voz, onde faltou um sopro, um pequeno signo foi suspenso no ar. Sem outro suporte que não este, hesitante, o pensamento se aventura”13 (AGAMBEN, 1985/1998, p.93). Além disso, se, conforme Lacan, pensamos o obsceno em sua conjuminação com a Outra cena — isto é, o anderobsceno de que ele fala em seu Seminário 24 (1976-77) —, também não deixamos de ver, aqui, a marca de um lugar ambíguo com relação à locução que as aspas abrigam, uma vez que, conforme a tradição da escrita de textos (sobretudo a acadêmica) consolidou, elas denotam que as palavras que ficam à sua sombra têm origem no discurso originado n’outro lugar; e essa intromissão se deixa ver com facilidade em língua alemã, que nomeia as aspas como Anführungszeichen, em que — por que não? — poderíamos ver precisamente as marcas de uma introjeção, Einführungszeichen. falante de dinamarquês ou romeno aprendendo português possa vir a dizer “menino o” por assimilação de uma regra de sua própria língua, que posiciona o artigo definido como sufixo) —, já que o que está em jogo não é um saber sobre a língua, mas precisamente saber lalíngua. Sobre “saber a” e “saber sobre”, cf. De Lemos (1991). 12 Evidentemente, se o erro é trazido, e não traz a si próprio — como num lapso ou num chiste, por exemplo (FREUD, 1901/1905) —, essa estabilização já está de algum modo posta; mas é curioso que, em termos de efeito, as aspas sirvam exatamente para que um outro, o leitor, tome conhecimento de que aquele erro não constitui um lapso, mas sim algo que é da ordem da vontade do sujeito que escreve. 13 Nesse sentido, é interessante poder articular a garantia de certo desempenho do pensamento pela suspensão do recalque (Aufhebung der Verdrängung) possibilitada pela denegação, como mostra Freud em seu artigo sobre a Verneinung (1925): “Vermittels des Verneinungssymbols macht sich das Denken von den Einschränkungen der Verdrängung frei und bereichert sich um Inhalte, deren es für seine Leistung nicht entbehren kann.” [Por intermédio do símbolo da negação, o pensar se livra das limitações do recalque e se enriquece com conteúdos dos quais não pode abrir mão para o seu desempenho]. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 271-284 08 Paulo Sergio 36.indd 280 16/12/2014 23:48:07 Miragens perimetrais: sobre o erro como limite 281 Reflexões finais “Não apenas a inteira faculdade do pensamento reside na linguagem, [...] mas a linguagem é também o ponto central do mal-entendido da razão consigo mesma.” (Johann Georg Hamann, Sämtlichen Werken, v.III) Se o erro, no sentido lato, não garante exterioridade propriamente dita, de onde viria essa sua pregnância quanto à construção de um limite como algo que é capaz de situar os alcances da língua? Bem, para isso precisamos recorrer a um ato: ao “ato de violência” que consiste no par ordenado nas matemáticas, e do qual Lacan tira muitas consequências em seu seminário De um Outro ao outro (LACAN, 1968-1969/2008, p.74, 81), por meios dos diagramas de Euler, para pensar os conjuntos-objetos. Para termos uma apreensão mais apurada da natureza do erro tal como vem sendo pensado neste trabalho, consideremos: sendo E o conjunto que representa o erro, e L, a língua, digamos que E é o subconjunto de L formado pelos elementos que não contêm a si mesmos — isto é, para x ser elemento de E, x não deve pertencer a x, e deve, simultaneamente, pertencer a L. Desse modo, a pergunta que podemos fazer é: E, enquanto elemento, pertence a si mesmo? Se assim fosse, transgrediria a regra de construção que, de início, determinamos para ele próprio. Contudo, se não o fosse, seria um conjunto que não contém a si, e deveria, pois, estar contido em E: o que nada mais é que o paradoxo de Russell. Mas se os elementos de E devem simultaneamente pertencer a L, uma vez que E é subconjunto de L, temos a seguinte configuração possível, à direita — em correspondência com o desenho, à esquerda, feito por Lacan no Seminário citado: A L Sα Sβ Sγ S2 Sα Sβ Sγ E Vemos, assim, que, apesar de seus elementos estarem na língua, o erro como tal permanece fora dela — assim como o saber (S2) se encontra fora do Outro (A), muito embora os significantes que o constituem façam, com efeito, parte do Outro — do “tesouro dos significantes”, como nomeava Lacan. O erro constitui, então, não um limite da língua, já que não poderíamos recorrer a uma topologia orientável para situar o seu lugar. Com efeito, o que há aí é uma espécie de limite interno, um fora-dentro simultâneo que suscita recorrer a formas de mostração de outra ordem. Se quisermos, de fato, apreenágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 271-284 08 Paulo Sergio 36.indd 281 16/12/2014 23:48:07 282 Paulo Sérgio de Souza Jr. der algo do erro que não se reduza a uma planificação balizada pela geometria euclidiana, pensemos, então, na figura de um oito-interior — que marca o percurso ao longo de uma banda de Moebius projetado sobre uma superfície: A morada do erro, então, possibilita, com efeito, a construção de um limite imaginário, um perímetro miraginal que descreve uma espécie de falso miolo — sem, no entanto, que a língua o deixe de fora, já que ele é interno a ela. É essa possibilidade de ver o descompasso que constitui o erro com relação à língua que faz com que ele possa ser situado como o representante cabal da remissão significante-significante — o erro, antes de mais nada, supõe a remissão a outro significante. Além disso, o erro faz ressoar a própria dissonância entre o simbólico e o real: ele é aquilo que, na língua, dá a ver a possibilidade da estrutura, fazendo com que reconheçamos aí a afirmação explícita que faz Lacan (1964/1985, p.27), ao pronunciar que só daquilo que falha é que há causa; ou, o que ainda pode nos dizer a literatura, na pena de um Duhamel (1949, p.27): “o erro é a regra. A verdade é o acidente do erro” que a letra vem grafar, poderíamos acrescer. Mas se a escrita possui, feito Janus, suas duas caras — como já pudemos notar ao discutirmos sobre a importância da letra para os estudos linguísticos —, embora também se possa, por meio dela, abrandar o erro, procurando esvair as suas forças, por exemplo, por meio do emprego dos singelos sinaizinhos gráficos que compõem as aspas, “no momento em que ela [a palavra] parece se esvaziar de toda significação e dar o último suspiro, os pequenos algozes, saciados porém inquietos, retornam à vírgula que é sua origem e que, segundo Isidoro de Sevilha, marca o ritmo da respiração na formulação do sentido” (AGAMBEN, 1985/1998, p.93). O itinerário significante, então, prossegue apontando-nos — reféns da língua que nos falta e da inconsistência do Outro — a brecha em que se fixa a oportunidade da demanda:14 entre as duas revelações da esfinge, cada qual com a sua porção do erro. De um lado, a mãe como objeto sexual e o erro que viola no 14 “É na medida em que o campo do Outro não é consistente que a enunciação assume a feição da demanda, e isso antes mesmo que aí se venha instalar seja o que for que carnalmente possa responder a ela” (LACAN, 1968-1969/2008, p.82). ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 271-284 08 Paulo Sergio 36.indd 282 16/12/2014 23:48:08 Miragens perimetrais: sobre o erro como limite 283 nível do necessário; de outro, o assassinato do pai, e o erro que viola no nível do contingente — marcado pela norma, por um supereu linguístico que ecoa como as vozes da consciência de que havia falado Freud em Totem e tabu. Recebido em 5/3/2012. Aprovado em 30/4/2012. Referências AGAMBEN, G. (1978/2005) “Infância e história”, in . Infância e história. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG. . (1985/1998) Idée de la prose. Trad. de Gérard Macé. Paris: Christian Bourgois Éditeur. AUROUX, S. (1992) A revolução tecnológica da gramatização. 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Rio de Janeiro: Jorge Zahar. . (1976-1977) Le séminaire livre 24, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre. [inédito]. LEMINSKI, P. (1991) La vie en close. São Paulo: Brasiliense. MILNER, J.-C. (1978) O amor da língua. Trad. de P. S. de Souza Jr. Campinas: Editora da Unicamp. SAUSSURE, F. (1916/1972) Curso de linguística geral. Trad. A. Chelini, J. P. Paes, I. Blikstein. São Paulo: Cultrix. Paulo Sérgio de Souza Jr. [email protected] ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 271-284 08 Paulo Sergio 36.indd 284 16/12/2014 23:48:08 O imaginário coletivo da equipe de enfermagem sobre a interrupção da gestação Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune e Tânia Maria José Aiello Vaisberg Miriam Tachibana Pós-doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo e pela Université de Paris X – Nanterre, com bolsa Fapesp. Doutora em Psicologia, Ciência e Profissão, pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, com bolsa brasileira do CNPq, doutora em Psicologia pela Université Charles de Gaulle Lille 3, com bolsa sanduíche da Capes. Fabiana Follador e Ambrosio Doutora em Psicologia, Ciência e Profissão pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, com bolsa do CNPq. Daniel Beaune Professor doutor no curso de Psicologia da Université Charles de Gaulle Lille 3 e orientador de mestrados e doutorados na Université ParisDiderot – Paris 7. Resumo: Objetivamos investigar o imaginário coletivo de enfermeiras sobre a mulher cuja gravidez foi interrompida, já que o trabalho da enfermagem envolve, além de cuidados técnicos, proximidade inter-humana em situação de fragilidade emocional. Entrevistamos individualmente 16 profissionais, usando o Procedimento Desenhos-Estórias com Tema. Após cada entrevista, redigimos narrativas transferenciais que, com os desenhos-estórias, foram consideradas psicanaliticamente, visando a produção interpretativa de campos de sentido afetivo-emocional. Observamos três campos que permitem a compreensão de que a gravidez interrompida é associada a fantasias de maldade e falta de amor materno, o que pode estar relacionado a eventuais dificuldades no cuidado a estas pacientes. Palavras-chave: Enfermagem, gravidez, imaginário coletivo, procedimento de desenhos-estórias com tema Tânia Maria José Aiello Vaisberg Professora livre docente e orientadora de mestrados e doutorados do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC-Campinas e do Instituto de Psicologia na USP, coordenadora da Ser e Fazer: Oficinas Psicoterapêuticas de Criação e presidente da NEW (Núcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo). ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 285-297 09 Tachibana 36.indd 285 16/12/2014 23:49:10 286 Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune e Tânia Maria José Aiello Vaisberg Abstract: The collective imaginary of the nursing staff about pregnancy’s interruption. We aimed at investigating the collective imaginary of nurses about women whose pregnancy was interrupted, since nursing’s work involves technical care and human’s proximity in situation of emotional fragility. We interviewed 16 professionals, using the Drawing Stories with Theme. After each interview, we wrote psychoanalytical narratives that, with the drawing stories, were psychoanalytically considered, in order to produce, by interpretation, fields of affective and emotional sense. We observed three fields that allow the comprehension that the interrupted pregnancy is associated with fantasies of evil and lack of maternal love, which may be related to possible difficulties in caring those patients. Keywords: Nursing, pregnancy, collective imaginary, procedure drawing stories with theme. O fenômeno da interrupção da gestação Observamos que a literatura psicológica focada no fenômeno da interrupção da gestação detém-se na experiência emocional da mulher cuja gravidez foi interrompida, constituindo conhecimento que pode ser clinicamente útil, como os trabalhos de Gesteira, Barbosa e Endo (2006) e Benute, Nomura, Pereira, Lucia e Zugaib (2009). Como a maioria desta população tende a vivenciar uma gravidez subsequente em pouco tempo (VIDAL, 2008, 2010), entendemos que tais estudos configurariam uma atenção psicológica clínica não apenas à mulher, mas, também, ao bebê que poderá vir a ter e que dela dependerá. Sabemos que, segundo os padrões da cultura ocidental, as mães são vistas como aquelas que exercem função essencial no desenvolvimento emocional das crianças, sendo que seu desempenho materno dependeria, como parece julgar o senso comum, exclusivamente de características “internas” da mulher. No presente estudo, entretanto, partimos da compreensão de que toda manifestação humana, incluindo a maternagem, emerge em condições concretas, históricas, culturais, sociais e econômicas (BLEGER, 1963; FERRARI e PICCININI, 2010), sejam elas a familiar, a conjugal, a laboral ou a hospitalar. Dentre os ambientes sociais que sustentam a maternagem, optamos por focalizar o hospitalar, constituído essencialmente pela equipe de enfermagem obstétrica, vale dizer, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem. Essa escolha por entrevistar esse coletivo justifica-se pela óbvia importância do ambiente hospitalar, apontado, ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 285-297 09 Tachibana 36.indd 286 16/12/2014 23:49:10 O imaginário coletivo da equipe de enfermagem sobre a interrupção da gestação 287 por pais que sofreram perdas gestacionais, como fundamental na elaboração de vivências de enlutamento (RODRIGUES e HOGA, 2005; GANIÈRE e FAHRNI-NATER, 2009). Winnicott (1957) esteve tão atento à influência da equipe hospitalar na relação que a mãe estabeleceria com seu recém-nascido que, diferentemente dos teóricos de sua época, ao invés de debruçar-se apenas sobre os significados inconscientes de determinados sintomas das gestantes, optou por produzir outro tipo de conhecimento psicanalítico: “De que forma a psicanálise associa-se ao tema da obstetrícia? (...) A psicanálise está começando a projetar luz sobre todos os tipos de anomalias, tais como a menorragia, os abortos sucessivos, a náusea e o vômito no início da gravidez (...) Muito tem sido escrito sobre estes distúrbios psicossomáticos. Aqui, no entanto, estou preocupado com outro aspecto da contribuição psicanalítica: tentarei indicar, em termos gerais, o efeito das teorias psicanalíticas sobre as relações entre o médico, a enfermeira e a paciente (...)” (WINNICOTT, 1957, p.61-62) Assim, do mesmo modo que Winnicott teorizava acerca da importância de um ambiente suficientemente bom, encarnado nos cuidados maternos, ao desenvolvimento das potencialidades inatas do bebê, entendemos que a constituição de um ambiente hospitalar suficientemente bom seria essencial para a mulher sentir-se emocionalmente sustentada e capaz de fazer o mesmo em relação ao bebê que poderá vir a ter (AIELLO-VAISBERG e TACHIBANA, 2008). À medida que todo ser humano demanda um ambiente suficientemente bom, independentemente da etapa evolutiva em que se encontra, entendemos que a constituição de um ambiente hospitalar suficientemente bom seria valiosa também para a própria atuação da equipe de enfermagem. Afinal, estudos realizados com equipes hospitalares demonstram que tais grupos vivenciam intensa angústia, ao lidar cotidianamente com o sofrimento físico e emocional de seus pacientes (LUNARDI et al., 2004; FERICELLI, 2008). Estamos, desse modo, de pleno acordo com Campos (2003, p.41): “Desde a década de 70 (...), os profissionais de saúde vêm sendo estimulados a funcionarem como suportes sociais para seus pacientes, seja individualmente, seja em equipe (...). Seu uso vem se difundindo, seja em ambulatórios, hospitais ou ambientes comunitários (...). Por outro lado, se considerarmos o estresse cotidiano em que vivem tais profissionais no contato direto com o sofrimento e a morte, fácil é imaginar que, também eles, estejam vulneráveis a doenças (...). Observa-se que é extensa a literatura sobre grupos de suporte voltados para pessoas e situações de ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 285-297 09 Tachibana 36.indd 287 16/12/2014 23:49:10 288 Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune e Tânia Maria José Aiello Vaisberg doença, mas poucos são os trabalhos que enfocam os profissionais da saúde, não enquanto ‘cuidadores’, mas enquanto pessoas demandando ‘cuidados’” Podemos supor que esta escassez de trabalhos investigativos sobre a vivência emocional da equipe de enfermagem em seu cotidiano de trabalho esteja relacionada a uma dificuldade, por parte da comunidade científica, em concebê-la como um grupo social que demanda atenção psicológica. Tal obstáculo pode estar ligado tanto à postura tecnicista e racional dos profissionais, que não transparece seu próprio sofrimento emocional, quanto a um imaginário social em relação aos profissionais de enfermagem, os quais seriam pessoas “naturalmente” cuidadoras, no sentido de terem uma disponibilidade emocional para a devoção e o cuidado (PESSINI, 2002; SADOCK, 2003; ELIAS e NAVARRO, 2006). “A enfermagem está ligada, desde suas origens, à noção de caridade e devotamento, sendo seus primeiros executores pessoas ligadas à igreja, ou leigos praticando a caridade. Esse fato imprimiu marcas que perduram até hoje e se explicitam na concepção de enfermagem de alunos e enfermeiros. (...) A ideologia que perpassa a profissão desde sua origem significa abnegação, obediência, dedicação. (...)” (ELIAS e NAVARRO, 2006, p.518) Dessa maneira, a realização deste estudo visa a produzir conhecimento que possa contribuir para a identificação dos aspectos emocionais envolvidos no trabalho da equipe de enfermagem, que possa ser empregado no favorecimento da constituição de um ambiente hospitalar suficientemente bom, que beneficiaria tanto a mulher que sofreu a interrupção da gestação quanto o bebê que poderá ter futuramente, bem como a equipe de enfermagem obstétrica. Investigando o imaginário coletivo da equipe de enfermagem Em nosso grupo de pesquisa1, temos realizado estudos focados nos aspectos afetivo-emocionais subjacentes às condutas humanas, dessa maneira, intencionando produzir conhecimento sobre as motivações de indivíduos e coletivos que estariam sustentando práticas estereotipadas. A partir daí, desenvolvemos o conceito de “imaginário coletivo” entendido, a partir do conceito de “conduta” de Bleger (1963), como manifestações simbólicas de subjetividades grupais, ou seja, as imagens, crenças e emoções que um determinado grupo social produz em relação a um fenômeno (AIELLO-VAISBERG e MACHADO, 2008). 1 Grupo de pesquisa CNPq “Atenção psicológica clínica em instituições: prevenção e intervenção”. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 285-297 09 Tachibana 36.indd 288 16/12/2014 23:49:10 O imaginário coletivo da equipe de enfermagem sobre a interrupção da gestação 289 Assim, com o intuito de investigar o imaginário coletivo da equipe de enfermagem acerca do fenômeno da interrupção da gestação, abordamos uma equipe de enfermagem obstétrica de um hospital-maternidade, do interior do estado de São Paulo. Participaram dezesseis mulheres, das quais quatro enfermeiras, dez técnicas e quatro assistentes de enfermagem, que atuavam nos plantões matutino, vespertino e noturno. As entrevistas foram realizadas individualmente, no próprio ambiente hospitalar, seguindo um enquadre clínico, apropriado para o estudo de imaginários coletivos, denominado “entrevista individual para abordagem da pessoalidade coletiva” (ÁVILA, TACHIBANA e AIELLO-VAISBERG, 2008). Tal configuração clínica pressupõe o uso de recursos mediadores dialógicos visando a facilitar a expressão emocional dos participantes, seguindo o paradigma das consultas terapêuticas, em que Winnicott (1968) fazia uso do jogo do rabisco para favorecer a expressão emocional significativa de seus pacientes. Neste estudo, foi empregado o Procedimento Desenhos-Estórias com Tema (AIELLO-VAISBERG, 1999), convidando as participantes a elaborarem um desenho sobre o tema “uma mulher que sofreu interrupção da gestação” e a inventarem, a seguir, uma história sobre a figura desenhada. Ao final, as participantes eram solicitadas a atribuírem um título à produção gráfica. Após a realização das entrevistas, uma das pesquisadoras2 redigiu narrativas transferenciais, tendo em vista registrar o acontecer clínico. Trata-se de uma estratégia metodológica que temos usado, tanto em pesquisas sobre imaginários coletivos como em investigações sobre eficácia clínica ou potencialidade mutativa de enquadres de atendimento psicológico (GRANATO e AIELLO-VAISBERG, 2004; AIELLO-VAISBERG e MACHADO, 2005; AIELLO-VAISBERG et al., 2009). Assim, por meio do método psicanalítico, a entrevistadora redigiu os relatos das manifestações das participantes, bem como a comunicação de suas impressões e sentimentos contratransferenciais, vivido em cada encontro. Posteriormente, o corpus formado pelo conjunto das dezesseis narrativas psicanalíticas e dos dezesseis desenhos-estórias foi apresentado aos integrantes do grupo de pesquisa, todos com formação psicanalítica, com a finalidade de provocar múltiplos olhares a fim de favorecer uma compreensão emocional abrangente e aprofundada. “A apresentação [da narrativa] suscitará narrativas alternativas. Estas não se referirão evidentemente ao acontecer primeiro, tomado como imaginário, do encontro inicial, mas ao que poderá ser acrescentado, transformado, criado/encontrado na narrativa primeira. Enfim, a narrativa não pede que o outro se cale — ou se pronuncie diante 2 As entrevistas foram realizadas por Miriam Tachibana. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 285-297 09 Tachibana 36.indd 289 16/12/2014 23:49:10 290 Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune e Tânia Maria José Aiello Vaisberg de um erro, de uma falha —, mas sim que prossiga, que, sentindo-se provocado, no sentido etimológico do termo latino, possa fazer suas associações, possa tecer suas considerações. (...)” (AIELLO-VAISBERG e MACHADO, 2005, p.7) Desse modo, fazendo uso do método psicanalítico, o grupo de pesquisadores deixou-se impressionar emocionalmente pelo material clínico para buscar “campos de sentido afetivo-emocional”. Trata-se de conceito que foi articulado repensando e retomando a “Teoria dos Campos” de Herrmann (2001) e o conceito de “conduta” de Bleger (1963), que permitem conceber os campos de sentido afetivo-emocional como conjunto de regras lógico-emocionais que sustentariam as condutas. Os campos de sentido afetivo-emocional do imaginário A partir do encontro com o material, foram captados três campos de sentido afetivo-emocional: “Fim do mundo”, “Enlouquecimento” e “Monstruosidade”. Em relação ao campo “Fim do mundo”, pudemos observar que todos os desenhos-estórias produzidos pelas participantes emergiram, como condutas, a partir deste substrato afetivo-emocional. Trata-se de um inconsciente relativo regido pela crença de que a interrupção da gestação consistiria em evento de caráter apocalíptico, no sentido de que a morte de um bebê colocaria em risco a própria existência do mundo. Tratar-se-ia de uma equação simbólica, na qual parte e todo se confundiriam, o que, para alguns autores, indica esferas imaginárias de marcada profundidade (MATTE-BLANCO, 1988). O trecho de uma das narrativas cabe aqui como ilustração: “Desenhei este sol morrendo, porque é assim que vejo a gravidez interrompida. A gente tem sempre certeza de que o sol vai nascer, no dia seguinte, não é? É algo que já é tão esperado e natural que a gente nem para para pensar que pode ser que ele não nasça. Para mim, gravidez sempre termina em nascimento: o bebê é feito para nascer, e não para morrer. Quando um bebê morre, é como se o sol estivesse morrendo também... É por isso que escolhi trabalhar em obstetrícia: porque queria ver bebês nascendo e mães renascendo junto com seus filhos...”. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 285-297 09 Tachibana 36.indd 290 16/12/2014 23:49:11 O imaginário coletivo da equipe de enfermagem sobre a interrupção da gestação 291 Um aspecto bastante interessante foi o de que, neste campo afetivo-emocional, pudemos observar a tentativa, nas produções, de detectar os sentimentos das gestantes visando a diferenciar aquelas que sofrem verdadeiramente com a perda de outras que estariam aliviadas por terem se livrado do bebê. Estas duas alternativas permitiram que o material se organizasse em dois grupos de manifestações imaginativas: um relacionado à mulher que sofreu uma interrupção espontânea da gravidez, configurando campo de sentido afetivo-emocional intitulado “Enlouquecimento”; e outro, denominado “Monstruosidade”, que corresponderia às situações em que a mulher a provocou. O campo “Enlouquecimento” organiza-se ao redor da regra lógico-emocional de que a interrupção espontânea da gestação lança a mulher numa agonia enlouquecedora. Este campo afetivo-emocional, subjacente a oito das produções gráficas, pode ser ilustrado com o trecho narrativo a seguir: Após dizer-me que o ponto de interrogação representava a multiplicidade de condutas que poderiam ser assumidas por uma mulher que perdeu o seu bebê, o que tornava difícil a tarefa de descrevê-la para mim, a participante contou-me a seguinte história: “Teve uma vez que uma mãe, que tinha perdido o bebê, pediu pra segurar, no colo, o bebê de outra paciente que estava internada na enfermaria. Isto causou um choque para toda equipe e muita gente ficou pensando que ela havia enlouquecido. Só depois que pediram para que voltasse pro quarto que entendi que ela só queria segurar um bebê. Ela sabia que não era o dela, mas queria ver como seria”. Perguntei, então, se esta era a paciente que havia desenhado, para mim. A participante olhou para seu desenho e respondeu: “Não sei... Sabe que, na hora em que estava fazendo o desenho, não pensei em nenhuma paciente especificamente, mas pode ser que seja ela, sim. Aquela imagem dela mal conseguindo andar, chorando e pedindo para segurar o bebê de outra mãe, foi bem forte, para mim...”. Observamos que este imaginário de que a mulher estaria condenada a um sofrimento eterno esteve associado à crença de que ela nutriria um secreto desejo de interrupção da gestação. Assim, este campo da agonia enlouquecedora correságora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 285-297 09 Tachibana 36.indd 291 16/12/2014 23:49:11 292 Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune e Tânia Maria José Aiello Vaisberg ponderia a uma punição ao desamor que, mesmo não motivando atos voluntários de provocação de aborto, ter-se-ia manifestado por um caminho psicossomático, interrompendo a vida do bebê. Tal configuração pode ser apreciada a seguir: “Esta mulher que desenhei está chorando porque perdeu o bebê. A gente vê, aqui, que as mulheres que perdem o bebê têm reações muito diversas: umas choram muito e você vê, daí, que essas queriam muito aquela gravidez; outras ficam mais caladas, sérias, e você percebe que aquela gravidez não era tão querida. Talvez a interrupção até tenha sido provocada, sabe?”. Perante este comentário da entrevistada, questionei: “Mas e esta aqui que você desenhou? Ela está chorando, mas também está sorrindo”. A participante respondeu: “É, aqui ela está fazendo as duas coisas, né? Mas ela realmente queria a gravidez. E está sorrindo porque o seu bebê era muito malformado e não teria uma vida muito digna... Neste caso, foi melhor para o bebê que acabasse falecendo dentro da mãe dele...”. Por sua vez, o campo “monstruosidade” define-se pela regra lógico-emocional que relaciona a interrupção da gestação a um ato hediondo, perpetuado por uma mulher de caráter insensível e cruel. Este inconsciente relativo, subjacente a seis das produções gráficas, manifesta-se, por exemplo, no trecho seguinte: Quando perguntei à entrevistada como se sentia ao atender uma paciente que teve a sua gestação interrompida, respondeu-me: “Procuro fazer com que ela sofra o mínimo possível. Sempre tomo o cuidado de não deixar uma mãe que perdeu o bebê junto com uma mãe que está, ali, internada com o bebê ao lado. Hoje, quando cheguei no hospital e vi que tinha uma mãe esperando para ser internada, pois tinha o diagnóstico de óbito fetal, fui olhar, na minha listagem, se tinha alguma outra paciente que estava internada, aqui, sem o bebê. Daí, vi que tinha uma sozinha, porque o bebê dela está na UTI neonatal. Juntei as duas no mesmo quarto, né? Só que, mais tarde, ouvi bronca da minha chefe: ela veio brigar comigo porque a mãe que estava sozinha, no quarto, é uma paciente que tentou provocar o aborto da gravidez, mas não conseguiu e seu bebê nasceu prematuro e cheio de problemas. Acabei juntando, sem saber, uma mãe que perdeu o bebê e outra que queria ter perdido, entendeu? E esta mulher, como não conseguiu interromper a gravidez, acabou prometendo dar o bebê para um casal...”. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 285-297 09 Tachibana 36.indd 292 16/12/2014 23:49:11 O imaginário coletivo da equipe de enfermagem sobre a interrupção da gestação 293 Notamos que este imaginário que associa a mulher que provocou a interrupção da gravidez a um ser monstruoso esteve, em três produções gráficas, associado ao bebê morto. Assim, haveria a crença, por parte da equipe de enfermagem, de que a malformação — que não raro acompanha os bebês natimortos — seria um efeito da monstruosidade materna, como se o bebê denunciasse a sua feição desumana. Para ilustrar este fenômeno, segue o material clínico: Quando pedi para que me contasse uma história associada ao desenho, disse: “Acredito que todos, principalmente as crianças, quando morrem, vão pro céu. Esta criança que desenhei é um bebê que não teve a oportunidade de viver aqui na Terra”. A entrevistada narrou, então, uma situação em que foi acompanhar uma paciente, até a geladeira, para que conhecesse seu bebê falecido: “Eu sabia que o bebê tinha múltiplas malformações, porque o pessoal que estava no parto já tinha comentado. Daí, quando a mãe pediu para que a acompanhasse, já sabia que veria algo difícil. Mas não imaginava que fosse tanto... Era um bebê que não tinha pernas e braços (os pés e as mãos partiam direto do corpo); tinha uma cabeça grande (maior que o tamanho do corpo); estava com o cérebro exposto; tinha duas genitálias...”. Considerações finais A presente investigação permitiu detectar crenças inconscientes no coletivo de enfermagem obstétrica, de acordo com as quais a ocorrência de interrupção da gestação carregaria um sentido de devastação da vida e da humanidade. Assim, se, no imaginário socialmente predominante acerca da maternidade, há crenças de que toda mulher amaria incondicionalmente seus filhos e a de que cada recém-nascido seria símbolo de vida e esperança, aquele que sai morto do ventre materno denunciaria um estado catastrófico. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 285-297 09 Tachibana 36.indd 293 16/12/2014 23:49:11 294 Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune e Tânia Maria José Aiello Vaisberg A morte do bebê é imaginariamente atribuída à mãe, seja porque provocou a interrupção, seja porque nutriu sentimentos de rejeição em relação ao filho. Considerada culpada, em registros imaginários profundos, a mulher deixa de ser concebida como merecedora de sentimentos de compaixão, solidariedade e empatia. Vemos, dessa maneira, que, malgrado sua formação profissional específica, a equipe de enfermagem sustenta um imaginário, provavelmente compartilhado pela sociedade em geral, de que a interrupção da gravidez equivaleria a um ato tão destrutivo que seria emocionalmente incompatível com uma motivação espontânea a prestar ajuda e cuidado. Trata-se de uma constatação a qual denota que, para que um trabalho de assistência hospitalar seja bem-realizado, os profissionais certamente precisam realizar movimentos psíquicos que permitam a superação da reação negativa imediata para considerarem tais mulheres como pacientes, no sentido preciso da palavra. Tais considerações impelem a reflexões atinentes à necessidade e às possibilidades de intervenção dos psicólogos clínicos, que poderiam auxiliar os profissionais de saúde a elaborarem os sentimentos contraditórios que vivenciam diante da mulher que sofreu interrupção da gestação, à medida que a veem, simultaneamente, como pessoas que apresentam sintomas físicos que requerem tratamento e como aquelas que causaram, direta ou indiretamente, a morte de um inocente. Vale ressaltar que o tipo de intervenção que este fenômeno requer é de caráter psicológico, não derivando, como creem alguns, de mera falta de conhecimento teórico. Não se trata, de modo algum, de substituir o imaginário dos profissionais por informação baseada em conceitos teóricos (SOUZA, ALENCASTRE e SAEKI, 2000; LOPES e LUIS, 2005), mas, sim, de realizar uma clínica psicológica voltada ao cuidado da equipe. Dada a importância do substrato afetivo-emocional das condutas humanas, seria possível afirmar que o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar do Ministério da Saúde3 carece de estratégias que favoreçam a consideração de tais aspectos vivenciais dos profissionais de saúde, privilegiando técnicas de desenvolvimento de habilidades interpessoais ou a apresentação teórica de temas relacionados ao cotidiano de trabalho. Apesar de o Programa de Humanização apontar para a necessidade de atenção à saúde mental dos profissionais, também com o intuito de oferecer cuidado indireto a seus pacientes, de maneira geral, os diversos pesquisadores mobilizados por este movimento acabam voltando-se ao tecnicismo, mesmo aqueles que o criticavam (DIMENSTEIN, 2004; BERNARDES e GUARESCHI, 2007; CARVALHO; SANTANA e SANTANA, 2009). 3 Desde o ano 2000, o programa orienta diversas políticas públicas visando a “humanizar” o ambiente hospitalar, tanto do ponto de vista dos pacientes quanto dos profissionais. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 285-297 09 Tachibana 36.indd 294 16/12/2014 23:49:11 O imaginário coletivo da equipe de enfermagem sobre a interrupção da gestação 295 Partimos da concepção de que a transformação deste imaginário requer a criação de espaços onde estudantes e profissionais possam expressar seus sentimentos e crenças, tal como as participantes deste estudo puderam fazer ao longo das entrevistas. A provisão de atenção psicológica aparece como facilitadora da aproximação entre o que é pensado e o que é sentido, assim, permitindo uma integração destes aspectos experienciais e contribuindo tanto para a transformação de concepções estereotipadas quanto para a adoção de um fazer menos dissociado. É justamente devido à preocupação em ressaltar o oferecimento de atenção psicológica a indivíduos e coletivos que se tem realizado investigações clínicas focadas na possibilidade de integração, na formação profissional, dos aspectos teóricos e técnicos aos afetivo-emocionais, destacando Aiello-Vaisberg (1999); Ribeiro, Tachibana e Aiello-Vaisberg (2008), Vitali e Aiello-Vaisberg (2006) e Baptista e Aiello-Vaisberg (2003). Incentivamos, desse modo, a realização de novos estudos, sejam relacionados à equipe de enfermagem obstétrica, sejam associados ao imaginário social prevalecente sobre a maternidade, de tal forma que, enquanto cidadãos, seja possível conviver com as variadas escolhas pessoais acerca da maternidade, favorecendo a criação de um mundo menos discriminatório e mais ético: um novo mundo, em vez do fim do mundo. Recebido em 16/4/2012. Aprovado em 29/7/2012. Referências AIELLO-VAISBERG, T. M. J. (1999) Encontro com a loucura: transicionalidade e ensino de psicopatologia. 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O título do prefácio que abre Psicanálise entrevista faz jus ao conteúdo que o leitor encontrará ao longo das suas páginas: nelas se abre “um convite ao pensamento livre”. Organizado por Mara Selaibe e Andrea Carvalho, o livro reúne entrevistas realizadas durante os 25 anos da revista de psicanálise Percurso, publicada pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Segundo as organizadoras, a coletânea não foi concebida originalmente para o aniversário da publicação, mas podemos considerar que veio à luz em momento oportuno, de modo a dar sequência aos eventos comemorativos ocorridos no final de 2013. Afinal, as entrevistas são um retrato da linha editorial da revista, revelando a qualidade de seu trabalho. Renato Mezan, coordenador editorial da Percurso e responsável pelo prefácio do livro, destaca que o conjunto das entrevistas “faz surgir um panorama fascinante” na medida em que se evidenciam as “tradições diversas” que compõem o cenário da psicanálise atual (p.9). Tal panorama, registrado em 35 entrevistas, tomará forma em dois volumes: o primeiro já está disponível ao público e o segundo se encontra no prelo. Neste primeiro volume reúnem-se 18 autores, em cuidadosa edição, na qual há uma breve apresentação de cada um deles — com a data, o local em que a mesma se realizou e o nome dos entrevistadores. No final da obra, encontra-se um índice onomástico. Entre os entrevistados, 17 são psicanalistas que representam diferentes correntes teórico-clínicas, brasileiros e estrangeiros, cujas produções se estendem de 1950 até os dias de hoje. Para citar alguns, aí encontramos Jurandir Freire Costa, J.-B. Pontalis, Jean Laplanche, Joyce McDougall, Monique Schneider. A décima oitava entrevista é de Sérgio Paulo Rouanet, o único pensador deste volume que não é psicanalista, embora grande estudioso da obra freudiana, com vários livros publicados sobre o assunto. Cada entrevista é uma porta de entrada ao pensamento do entrevistado, o que torna a coletânea interessante para um público amplo: para o leigo interessado no tema, para o pesquisador de áreas afins e para o psicanalista. Ao conhecermos o percurso de formação e o pensamento dos autores, vemos surgir, com as narrações, a própria história da psicanálise pós-freudiana, em seus diversos segmentos. Aqui, a clínica continua a ter seu lugar privilegiado, pois, falada de forma explícita ou não, ela é o fundamento a partir do qual se constrói e alimenta a teoria, num processo dialético com ela. É constante a ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 299-301 10 Resenha 36.indd 299 16/12/2014 20:44:31 300 RESENHA presença do olhar crítico sobre a cultura contemporânea. O que se desvela então, ao longo do livro, é que, na letra dos pós-freudianos, a psicanálise continua a seguir a herança deixada por seu fundador e produz clínica, teoria e análise da cultura. Todos os autores partem de uma origem comum, a obra freudiana, ao reconhecê-la como referência para o desenvolvimento de seu próprio repertório conceitual teórico-clínico. Para eles, não se trata de superar Freud, mas sim trabalhar as insuficiências, lacunas e limites de seu pensamento, tal como aponta André Green: “Penso que é preciso trabalhar sobre ela [obra de Freud] a partir do que a história do pensamento psicanalítico pós-freudiano nos trouxe e a partir dos desafios que a clínica contemporânea nos lança” (p.59). Assim, são temas recorrentes: a formação do analista, o desenvolvimento metapsicológico, a importância da psicanálise como prática terapêutica, sua relação com o campo político-social, com a psiquiatria, as problematizações e o lugar da psicanálise em nossa cultura. Desvela-se também a importância da interface da psicanálise com a filosofia e a política, no sentido de que estas oferecem um repertório poderoso para a formação do analista e para a construção e reflexão teórica e clínica. O intercâmbio de ideias entre a psicanálise e outras ciências ou campos do saber é valorizado e pensado como uma das formas de se evitar o fechamento da psicanálise em si mesma e a formação de igrejas — fatos responsáveis por um dogmatismo deletério e paralisante da criatividade do psicanalista. Assim, o relato de Jean Oury nos dá o testemunho de como o encontro entre a psicanálise, a psiquiatria, a filosofia e a política produziram trabalhos fecundos e de referência, como a psicoterapia institucional e a formação de La Borde, na França. Marcelo Viñar, a partir de sua experiência na ditadura uruguaia, retrata como a política se apresenta na clínica e como pensar os efeitos e as possibilidades de elaboração de situações de violência social, tal como aquelas vivenciadas na guerra ou em regimes de exceção, como os regimes militares na América do Sul. Trata-se de uma contribuição importante para a discussão de um tema que está na ordem do dia, neste momento em que se rememoram os 50 anos do golpe militar no Brasil. As entrevistas se abrem, portanto, para um diálogo com o leitor, contribuindo para pensarmos a clínica que praticamos, as instituições nas quais nos inserimos, a formação que seguimos, o pensamento que podemos construir em nome próprio. Mas isso ainda não é tudo. É possível uma leitura transversal do livro, na medida em que os relatos abrem também um diálogo entre os próprios entrevistados, amplificando as questões que cada um deles tematiza e a riqueza de um “campo pluralista marcado por diferenças”, como se refere Joel Birman (p.270). Nesse ponto emerge, por exemplo, a psicanálise que detém um conhecimento sobre o psiquismo humano e questiona, com olhar crítico, o nosso tempo, como vemos em Chaim S. Katz: “O que têm os psicanalistas a dizer, a não ser que os humanos se destinam ao mal-estar e que se deva evitar os atalhos (prometidos pelos biopsíquicos) para diminuí-lo?” (p.261). Sua interrogação pode ser articulada ao modo como Sílvia Alonso coloca a problemática da contemporaneidade na clínica, em geral pensada com a preocupação de compreender a formação das novas subjetividades e dos novos sintomas face às transformações da sociedade. Ela inverte essa problemática ao colocar o analista, e ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 299-301 10 Resenha 36.indd 300 16/12/2014 20:44:32 RESENHA 301 não a análise ou o paciente, no centro da reflexão. Alonso alerta que pensar sobre as novas disposições sintomáticas e as novas subjetividades é importante, mas não suficiente. É necessário refletir também sobre os efeitos desse contexto cultural na posição e no modo de clinicar do analista, pois ele é parte dessa mesma cultura. A evidência dessa colocação de Alonso me levou a pensar, então, no quanto temos discutido sobre o uso, cada vez mais frequente e indiscriminado, dos medicamentos e de seus efeitos no cotidiano de nossa clínica. Em contrapartida, e é isso que tem me chamado a atenção, é raro pensarmos sobre a clínica de um analista que usa medicação: quais são as implicações para sua escuta e para a transferência? E, em última instância, quais são as implicações no rumo da própria psicanálise, dado que esta tem, desde a sua fundação, um “lugar excêntrico” em relação às demandas correntes do indivíduo e da sociedade, como lembra Joel Birman (p.280)? Esse é apenas um exemplo das muitas questões que são suscitadas pela leitura prazerosa de Psicanálise entrevista , v.1, cuja qualidade maior é mostrar uma psicanálise que, com uma base comum, se caracteriza atualmente pela pluralidade e, consequentemente e a despeito da comentada crise que a cerca, continua muito viva, interessante e produtiva. Recebida em 2/6/2014. Aprovada em 27/6/2014. Ana Patitucci [email protected] ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 299-301 10 Resenha 36.indd 301 16/12/2014 20:44:32 10 Resenha 36.indd 302 16/12/2014 20:44:32 Dissertações e teses DISSERTAÇÕES DE MESTRADO E TESES DE DOUTORADO/2013 Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas Instituto de Psicologia Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica Dissertações Título: Identidade e diferença na relação com a alteridade Autora: Augusta Rodrigues de Oliveira Zana Orientadora: Simone Perelson Data de defesa: janeiro/2013 O objetivo deste trabalho é discutir a relação com a alteridade a partir de duas ordens de reconhecimento. No capítulo 1, discutimos a experiência de satisfação, como proposta por Freud (1895/1996) no “Projeto para uma psicologia científica”, e apresentamos sua análise sobre o que acontece quando o objeto da percepção é outro ser humano, enunciando o complexo do próximo (Nebenmensch). Em seguida, discutimos a formulação do estranho em Freud (1919/1996) e sua releitura por Lacan (1959-1960/1997) como o não representado, por meio do conceito de das Ding. No capítulo 2, partimos do narcisismo no texto freudiano “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1996) e do estádio do espelho em Lacan (1949/1998a) para chegar ao conceito de identificação, que é discutido fundamentalmente a partir das formulações de Lacan (1956-57/1995) no Seminário 4. Finalizamos o capítulo com as operações de alienação e separação apresentadas por Lacan (1964/2008 a) no Seminário 11 e retomadas no seminário O ato psicanalítico (1967-68). No capítulo 3, trabalhamos com duas ordens de reconhecimento, sendo a primeira, a partir das leituras de Honneth (2003) e Szpacenkopf (2011), focalizada na relação entre indivíduos e circunscrita ao campo da representação. Apresentamos a crítica da categoria da identidade por duas vias: pela desconstrução da categoria de identidade empreendida por Butler (1998; 2003; 2010) e pelo descentramento do sujeito proposto pela psicanálise e trabalhado por Birman (2003). Em seguida, discutimos, a partir de Cunha (2009) e Safatle (2012), outra ordem de reconhecimento, que leva em conta o estranho e não apenas a relação imaginária entre indivíduos, permitindo tratar do reconhecimento da não identidade. Chegamos finalmente a uma tentativa de compatibilizar essas duas ordens de reconhecimento, retomando considerações dos autores já referidos e apresentando as proposições de Hardt e Negri (2005). Título: O estatuto teórico da metapsicologia freudiana Autor: Caio Padovan Soares de Souza Orientadora: Ana Beatriz Freire Data de defesa: fevereiro/2013 Com base no estudo de pesquisas conduzidas por Sigmund Freud, e por outros ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318 11 Dissertações e teses 36.indd 303 16/12/2014 20:46:04 304 dissertações e teses psicanalistas e pesquisadores contemporâneos àquele autor, esta dissertação tem como objetivo contribuir para a definição do estatuto teórico da metapsicologia. Por ‘estatuto teórico’ entende-se aqui o conjunto de princípios que regem determinado tipo de construção teórica. Nossa hipótese inicial é a de que a metapsicologia está condicionada, nos termos do seu estatuto e enquanto teoria psicanalítica, aos imperativos de uma forma particular de experiência que teria lugar na clínica psicanalítica. Com vistas a avaliar esta hipótese, dedicamo-nos ao estudo de alguns textos de caráter clínico e metodológico escritos por psicanalistas e publicados entre as últimas décadas do século XIX e o início do século XX. Esta delimitação se justifica por duas razões. A primeira delas tem relação com o necessário recorte temático exigido por um trabalho deste porte; a segunda está baseada na aposta de que um estudo a respeito das condições de possibilidade da metapsicologia seria mais bem sucedido se dirigido ao próprio contexto de surgimento desta disciplina. Os resultados obtidos durante a pesquisa confirmaram nossas expectativas em torno do valor da experiência para a elaboração metapsicológica, sendo possível concluir que há nesta experiência uma espécie de critério empírico capaz de avaliar a pertinência de um dado constructo teórico. Ao que tudo indica, tal critério vem coincidir com aquele usado pelo clínico em uma análise, a saber, o da manifestação das resistências, o que parece atestar uma coincidência — sustentada por Freud desde os seus primeiros trabalhos — entre pesquisa e tratamento no contexto da prática psicanalítica. Outra importante conclusão a que chegamos é a de que a objetividade deste critério, capaz de revelar aquilo que viemos chamar de uma materialidade psíquica, não é a mesma observada entre as ciên- cias experimentais, situação que parece evidenciar uma suposta impossibilidade de tratar a experiência psicanalítica em termos quantitativos (matemáticos) ou em categorias descritivas universalizáveis. Título: Ver e olhar: contribuições psicanalíticas sobre a cegueira Autora: Cintia Rita de Oliveira Magalhães Orientadora: Simone Perelson/Regina Herzog Data de defesa: fevereiro/2013 Na teoria psicanalítica, a visão parece possuir certa primazia em relação aos demais sentidos. Já no início de sua obra, Freud destaca a importância das impressões visuais na estruturação do psiquismo. Ao teorizar sobre a primeira vivência de satisfação, ele demonstra o caráter visual desta experiência que abre espaço para a emergência do desejo. O olho deixa de ser, exclusivamente, fonte da visão e passa a ser fonte da libido que o erogeniza, pois para Freud ele é um órgão que está a serviço de dois senhores: pulsões do Eu e pulsões sexuais. No primeiro grupo, ele serviria para a apreensão da realidade e no segundo seria envolvido pela função sexual. Logo, pode-se dizer que o corpo constituído a partir do narcisismo é derivado de sensações corporais. Contudo, sua relação com o mundo externo também é de grande importância, pois grande parte de sua própria forma é adquirida a partir dessa interação com o mundo externo — visões vistas, sons ouvidos, corpos tocados, prazeres explorados. Em função disso, podemos nos perguntar de que maneira uma pessoa cega vivenciaria esses processos. Logo, o presente trabalho tem por objetivo fazer uma reflexão acerca ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318 11 Dissertações e teses 36.indd 304 16/12/2014 20:46:04 dissertações e teses da cegueira à luz da psicanálise, partindo, principalmente, da distinção entre o ver e o olhar. Título: Os lugares do analista no ensino de Lacan Autor: Erly Alexandrino da Silva Neto Orientadora: Tânia Coelho dos Santos Data de defesa: março/2013 Este trabalho conduzirá um estudo sobre os lugares do analista ao longo do ensino psicanalítico de Jacques Lacan. Partindo da formulação de seu vigésimo terceiro seminário, a de que o psicanalista é um sinthoma, não pretende deixar dúvidas a respeito do lugar que Lacan concede ao analista: ele é real, não é ficção, não é convenção nem mais um profissional psi a disputar o mercado, mas o trauma do forçamento a uma nova escrita do gozo, e é a partir deste lugar que ele é eficaz. O pressuposto que este estudo sustenta, portanto, é de que o correto estatuto do lugar do analista é indispensável para a eficácia de suas intervenções. Entretanto, as formulações finais de Lacan — especialmente na forma como aparecem nas produções teóricas dos analistas contemporâneos — não são apreensíveis sem a condução de uma espécie de exegese de suas elaborações anteriores, que é a tarefa a que se propõe esta dissertação. Deste modo, após estabelecer um assoalho conceitual e teórico a partir dos escritos freudianos sobre a técnica da psicanálise, retomará o início que o próprio Lacan estabelece para o seu ensino, 1951, e percorrerá seus cursos e escritos iniciais para estabelecer os fundamentos de sua teoria, e a tônica de seu retorno à Freud. Após isso, sistematizará o núcleo de seu ensino, o período que Miller chamou de lacanismo ‘clássico’, para estabelecer 305 com rigor e precisão a estrutura simbólica do sujeito e da experiência analítica, sempre dando relevo aos lugares do analista e suas relações com o real. Por fim, mostrará como o seminário sobre a ética da psicanálise revisou o estatuto do real e introduziu a Coisa freudiana como precursora do objeto agalma, no seminário sobre a transferência, e do objeto a como causa do desejo, no seminário da angústia. A título de indicações, percorrerá as formulações do seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise — que é onde o próprio Lacan situa o início de seu segundo ensino — no intuito de apontar as linhas de desenvolvimento que culminarão no axioma da não relação sexual, nas fórmulas da sexuação e do analista como traumatismo. Título: Da castração como rochedo freudiano à vertente feminina da sexuação lacaniana Autora: Fernanda Oliveira Queiroz de Paula Orientadora: Tânia Coelho dos Santos Data de defesa: fevereiro/2013 A presente pesquisa busca delimitar as especificidades da sexuação feminina para a psicanálise. A incidência do complexo de castração e do complexo de Édipo, operadores simbólicos que ordenam a diferença sexual sob a égide da lógica fálica, não se efetua da mesma maneira nos homens e nas mulheres. Há uma dissimetria na constituição subjetiva feminina e masculina devido ao fato desvelado por Freud de que, apesar da existência de dois sexos anatômicos no inconsciente só há o princípio do falo. Com isso, a primazia fálica e a falta de uma representação no inconsciente que designe o que é uma mulher são ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318 11 Dissertações e teses 36.indd 305 16/12/2014 20:46:04 306 dissertações e teses as consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. Entretanto, o que Freud desenvolveu acerca da sexualidade feminina e da feminilidade foi com base na lógica masculina da sexuação, definida por Lacan como lógica do todo. Isso o colocou diante de impasses acerca do processo da sexuação feminina, e a questão do feminino fica como um enigma: “O que quer uma mulher?”, “O que é ser uma mulher?”. Ao final de sua obra, Freud concebe que o complexo de castração é um rochedo no processo de sexuação de ambos os sexos e um “osso” no processo analítico, e equivale os impasses da sexuação àqueles encontrados ao final de uma análise. Partindo do retorno de Lacan à obra freudiana, apoiamo-nos na sua afirmação de que Freud não avançou para além desse rochedo por não conseguir sair do lugar de identificação ao pai ideal do Édipo. Do mesmo modo, constatamos no percurso de Lacan, que é apenas quando este consegue dar um passo além do pai edipiano como Outro consistente, que lhe é possível avançar na formalização da vertente feminina da sexuação. Desse modo, a presente pesquisa busca apresentar a interseção entre a transposição do pai ideal ao pai implicado à sua causa de desejo, assim como a transposição da dimensão do conceito lacaniano de Outro enquanto consistente — A —, ao seu estatuto inconsistente — S( A ) —, como os passos que permitiram Lacan ultrapassar a castração como um rochedo freudiano, rumo à formalização inédita, da vertente feminina da sexuação, com base em uma lógica para além do falo e da lógica do todo: a lógica do não-todo. Título: Corpo e alteridade: processo de subjetivação Autora: Jôse Lane de Sales Orientadora: Regina Herzog Data de defesa: fevereiro/2013 A presente dissertação se propõe a abordar a questão da constituição da subjetividade em uma perspectiva psicanalítica. Seu objetivo é investigar como se dá o complexo processo de subjetivação no qual a questão corporal e a função da alteridade possuem papel relevante. O primeiro capítulo será dedicado ao exame do registro do corpo autoerótico, que tem lugar no pensamento de Freud com a introdução da ideia de uma sexualidade infantil e do conceito de pulsão sexual. O segundo se propõe a pensar o registro do corpo narcísico unificado, que surge em 1914 e se radicaliza em 1923 com a concepção de um Eu-corporal. O último abordará o que se designa como o corpo irrepresentável, o qual adquire proeminência a partir do conceito de pulsão de morte em 1920. Para articular a questão da alteridade com cada um desses registros, visando trabalhar aspectos mais precoces do desenvolvimento subjetivo, recorreremos a outros autores, privilegiadamente Donald Winnicott, Piera Aulagnier e Sándor Ferenczi. Título: A transmissão psíquica e o negativo constituinte Autora: Ludmilla Tassano Pitrowsky Orientadora: Simone Perelson Data de defesa: março/2013 Neste trabalho, procuraremos discutir a seguinte questão: haveria na transmissão psíquica inconsciente conteúdos da ordem do negativo que seriam constitutivos no ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318 11 Dissertações e teses 36.indd 306 16/12/2014 20:46:05 dissertações e teses processo de estruturação psíquica? Para colocarmos tal questão, faremos um estudo teórico a respeito dos temas: a transmissão psíquica, o negativo e a constituição psíquica. No primeiro capítulo, introduziremos a teoria de René Kaës acerca da transmissão psíquica, principalmente em seus diálogos com a teoria freudiana. Dentro do vasto estudo de René Kaës, pesquisaremos seu desenvolvimento acerca da teoria da transmissão psíquica inconsciente, desde os primeiros momentos em que o tema pode ser encontrado em seus estudos com Didier Anzieu, até sua mais recente publicação acerca dos vínculos implicados no processo de transmissão geracional, as alianças inconscientes. No segundo capítulo, discutiremos o conceito de negativo através de André Green, precursor da questão do trabalho do negativo através também das obras de Freud. Após vislumbrarmos alguma compreensão de sua teoria, entraremos na “transmissão-repetição”, conceito trazido por René Kaës ao tratar a transmissão psíquica em duas vertentes: positiva e negativa. Neste momento, traremos autores que nos ajudem a pensar tal proposta, como Haydée Faimberg, Tatiana Inglez-Mazzarella, Jô Gondar, Luiz Alfredo Garcia-Roza, entre outros. No terceiro capítulo traremos possíveis campos de investigação do negativo constituinte do psiquismo que nos seria transmitido inconscientemente. Desta forma, traremos os conceitos de Introjeção e incorporação de S. Ferenczi, desenvolvidos por N. Abraham e M. Torok para em seguida estudarmos a teoria da sedução generalizada de J. Laplanche. Na terceira parte deste terceiro capítulo, abordaremos os conceitos de sombra falada e contrato narcísico de Piera Aulagnier e, por fim, da possibilidade de pensarmos a violência fundamental de Jean Bergeret. No momento final desta dissertação, 307 discutiremos os problemas, dificuldades e possíveis conclusões do nosso percurso em busca da colocação e discussão de nossa questão. Título: Confluências entre as neuroses atuais e as patologias da atualidade Autor: Paulo Giovani Goulart Ritter Orientadora: Marta Rezende Cardoso Data de defesa: março/2013 O objetivo deste trabalho é propor linhas de convergência entre as neuroses atuais, designação estabelecida por Freud nos anos 1890, e as patologias da atualidade, cujas configurações psíquicas, por diferirem das organizações subjetivas de cunho neurótico e exigirem ferramentas técnicas distintas das habituais, têm desafiado a teoria e a clínica psicanalíticas. Realizamos uma releitura das neuroses atuais à luz de avanços teóricos posteriores da elaboração freudiana. Nessa releitura, as ideias de insuficiência psíquica e excesso de excitação, base de sua concepção das neuroses atuais, são articuladas ao conceito de narcisismo e à noção de excesso pulsional, o que permite pensá-las como estreitamente referidas à dimensão de precariedade narcísica e ao campo do traumático. Mostramos como as neuroses atuais levantam a mesma questão que a figura da neurose traumática coloca em cena em 1920 — o excesso pulsional —, questão fundamentada nos conceitos de pulsão de morte e de compulsão à repetição. Esta análise nos permite explorar as patologias contemporâneas, de base traumática, em que o excesso pulsional atinge níveis inéditos, aspecto correlativo aos limites dos processos de ligação e representação, marca do impacto traumático da pulsão. Como resultado desse processo, há o in- ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318 11 Dissertações e teses 36.indd 307 16/12/2014 20:46:05 308 dissertações e teses cremento de respostas defensivas elementares, com apelo ao registro do corpo e ao do ato. Assim, defendemos a ideia de que as neuroses atuais apresentam elementos importantes que iluminam o entendimento das patologias contemporâneas. Título: A marca de Tânatos: o traço melancólico no texto literário Autora: Rita Isadora Pessoa Soares de Lima Orientadora: Anna Carolina Lo Bianco Data de defesa: março/2013 Título: Da questão da transferência ao surgimento de um novo dispositivo clínico: o que o autismo nos ensina Autor: Rafael Ferreira Lima Dias Orientadora: Ana Beatriz Freire Data de defesa: abril/2013 A possibilidade de interlocução entre a psicanálise e a literatura ao mesmo tempo em que impulsiona esta pesquisa, constitui, também, um desafio. Desde a antiguidade, a melancolia apresenta uma extensa trajetória através dos registros médicos e da história da arte. Se esta trajetória é, portanto, povoada de múltiplas metamorfoses, fez-se necessário mapear uma série delas para então cingir o nosso objeto de pesquisa — o traço melancólico no texto literário. A estreita relação entre a melancolia e a pulsão de morte — sendo a primeira descrita por Freud em 1923 como a pura cultura da pulsão de morte — nos conduziu rumo à identificação de uma relação entre o destino pulsional da sublimação e o predomínio da pulsão de morte na melancolia. Freud fez algumas considerações acerca dos riscos em jogo no trabalho sublimatório, e Lacan, de alguma forma, retoma tal posição em seu seminário sobre a ética, em 1959, quando afirma que a sublimação é uma tarefa para além do princípio de prazer, uma vez que, a rigor, ao dessexualizar a pulsão, passa a não estar mais a serviço de Eros. Partindo daí, a busca por um eixo que permanecesse constante ao longo das transformações e derivas sofridas pela melancolia no decurso dos séculos se coloca como uma etapa importante no processo de cernir o traço melancólico. Alguns autores e poetas possuem vozes e obras nas quais podemos mais facilmente identificar a presença do traço melancólico. A obra final da poeta norte-americana Sylvia Plath foi escolhida por nós para análise e estudo de caso. Esta dissertação tem por objetivo levantar os impasses da oferta da psicanálise aos ditos sujeitos autistas, a partir da problematização da transferência na clínica com a psicose. Para tanto, levantamos a hipótese do autismo como tipo clínico do campo da psicose. A transferência na psicose é uma questão que impulsiona os analistas, e a clínica com esses pacientes é fonte de inúmeras pesquisas. A partir dos impasses freudianos com a transferência na clínica da psicose, veremos como Lacan em seu retorno à Freud provoca uma reviravolta introduzindo a linguagem, o significante e o gozo no campo psicanalítico. Desta forma ele concebe condições preliminares para todo o tratamento possível da psicose. Veremos também como o mesmo Lacan deixou indicações preciosas quanto à clínica com os sujeitos autistas. Veremos como os impasses da oferta da psicanálise para sujeitos autistas propiciou a construção de dispositivos que permitem a inclusão desta entidade clínica. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318 11 Dissertações e teses 36.indd 308 16/12/2014 20:46:05 dissertações e teses Título: Caps-AD Alameda: um trabalho orientado pela psicanálise no campo da Saúde Mental Autora: Tatiana Lins Serra Cattapan Orientadora: Fernanda Costa-Moura Data de defesa: junho/2013 Título: “Como seria belo ser uma mulher”: transexualismo masculino e empuxo-à-mulher Autor: Wellington Carlos Moreira Júnior Orientadora: Angélica Bastos Data de defesa: março/2013 Propõe-se, nesta dissertação, uma articulação entre a Psicanálise e o campo da Saúde Mental. Pretende-se discernir o campo da Saúde Mental, orientado por princípios como a ressocialização e a cidadania, da psicanálise, que incide sobre a relação do sujeito com seu desejo. Ao definir alguns pressupostos do campo da Saúde Mental, construídos no movimento da reforma psiquiátrica, pretende-se mostrar de que forma o Caps AD foi inserido no campo da Saúde Mental. A contribuição da psicanálise para o campo da Saúde Mental é discutida a partir de uma investigação sobre os conceitos de demanda e desejo, apoiada nos trabalhos de Freud e Lacan. Ressalta-se a importância do aspecto imperativo da pulsão, visto na compulsão à repetição em sujeitos toxicômanos. A partir destes fundamentos retoma-se uma experiência de trabalho orientado pela psicanálise no Caps AD Alameda, dispositivo da Rede de Saúde Mental do município de Niterói/Rio de Janeiro, na qual se evidenciaram, em situações da prática cotidiana do processo de recepção neste serviço, as dificuldades da entrada em tratamento de pacientes toxicômanos. Através de um fragmento de caso clínico discute-se a dificuldade de adesão do paciente ao tratamento oferecido no Caps-AD Alameda, e a fragilidade na ligação com o terapeuta, que coloca em risco todos os ideais da reforma psiquiátrica, enfatizando a grande dificuldade de incidência das políticas publicas de tratamento e prevenção na vida desses sujeitos. Esta pesquisa interroga a relação entre o transexualismo e o efeito de empuxo-à-mulher nas psicoses. Adota-se como referencial teórico-clínico a psicanálise, em especial, os ensinos de S. Freud e J. Lacan. O objetivo consiste em verificar a presença do empuxo-à-mulher no transexualismo, partindo da advertência de J. Lacan sobre a face psicótica dos transexuais que será explicada pela presença da foraclusão do significante paterno nesses sujeitos. O procedimento buscou investigar a tendência à feminização, tão evidente na orla da psicose. Do estudo paradigmático de Freud (1911/1996) sobre o presidente Schreber, destacou-se a prevalência da fixação narcísica e da poderosa defesa erguida pelo sujeito diante da irrupção da libido homossexual. Lacan (1957-58/1998), diferindo de Freud, propôs o conceito gozo transexualista circunscrevendo, sob esse prisma, a prática de transformação em mulher vivenciada por Schreber. Em outro momento do seu ensino, Lacan nomeou a manifestação do gozo na psicose como efeito de empuxo-à-mulher (Lacan, 1973/2003), o que suscitou, nesta pesquisa, a interrogação sobre se este último corresponderia a uma atualização do conceito gozo transexualista. Tal indagação orientou o desenvolvimento da dissertação, cuja pertinência reside no fato de que a convicção do sujeito de ser mulher, a despeito do que se verifica na morfologia do seu corpo, é uma manifestação clínica própria da psicose. Nota-se nesses sujeitos uma grande dificuldade em acessar o 309 ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318 11 Dissertações e teses 36.indd 309 16/12/2014 20:46:05 310 dissertações e teses dispositivo simbólico, a partir do qual se delimitaria, no discurso, a resposta sobre a diferença sexual: o que é um homem, o que é uma mulher. Ao mesmo tempo, observa-se que eles recorrem ao atributo da imagem para estabelecer tal diferença. A pesquisa é de cunho teórico-clínico, baseando-se em casos da literatura especializada e em publicações com depoimentos e entrevistas de transexuais. A dissertação se divide em quatro partes: uma revisão histórica do conceito de transexualismo; uma discussão entre a proposta stolleriana, a freudiana e a lacaniana sobre a diferença sexual; um estudo sobre o gozo transexualista e o efeito de empuxo-à-mulher e, por fim, uma discussão entre essas duas formulações lacanianas do gozo na psicose e o transexualismo. Nesta última seção, faz-se uso de dois casos da literatura, Amanda e Tininha Nova York, nos quais a manifestação do transexualismo demonstrava a clara ação do efeito de empuxo-à-mulher. Discute-se também a necessária indicação cirúrgico-hormonal, feita pela ciência médica, para o transexualismo. Conclui-se que, a presença da foraclusão no discurso do sujeito, revelada na sua convicção em ser mulher, indica a ação do efeito de empuxo-à-mulher. Este compõe uma definição ampla para o gozo nas psicoses, e se aplica às múltiplas faces da representação deste gozo, indo além do gozo transexualista, que supõe apenas uma das representações consequentes do efeito de empuxo-à-mulher. Teses Título: O caráter perturbador da verdade em Psicanálise Autora: Aline Vieira Friedman Orientadora: Anna Carolina Lo Bianco Data de defesa: julho/2014 O objetivo desta tese é refletir sobre a noção de verdade na psicanálise, tomando como base os textos de Freud e o ensino de Lacan. Começamos por nossa aposta numa verdade cuja função seria a de circunscrever o campo psicanalítico, conferindo-lhe sua especificidade e o afastando de outras formas de clínica. A fim de por à prova nossa proposta, partimos da advertência de Freud (1937/2004) aos analistas quanto ao amor à verdade, no sentido em que ao instaurar e sustentar o vínculo analítico, esse amor se constitui ao mesmo tempo como o obstáculo para o término de uma análise. Buscamos com Lacan (1970) elucidar essa referência freudiana ao amor, e depreendemos como direção, para tratar nosso tema, o que o psicanalista francês chamou de uma “impotência da verdade” (Lacan, p. 191) dada por sua articulação com o Real (die Wirklichkeit) como impossível. Em seguida, investigamos a relação entre verdade e real à luz do mito — como o “enunciado do impossível” (Lacan, p. 145) —, passando antes por uma revisão da função do mito juntamente às críticas de Lacan (1954-5, 1960-1) ao saber epistêmico. Estudamos a importância do mito de Édipo com as contribuições do estruturalismo de Lévi-Strauss e como Lacan s’en sert pour s’en passer (Melman, 2003). Assim, pudemos passar à relação entre verdade e saber, apoiados no uso lacaniano de algumas teses da matemática referentes ao número de Äuler, assim como ao entrecruzamento de verágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318 11 Dissertações e teses 36.indd 310 16/12/2014 20:46:05 dissertações e teses dade, o Outro e gozo seguindo o caminho de Lacan dentro do materialismo de Sade e da mais-valia de Marx. Chegamos numa função da verdade como objeto a, determinada a posteriori (Nachträglich) pela castração e pelo furo do sexual. Por fim, trabalhamos com a importância de considerar uma verdade atravessada pelo sexual, isto é, insistir num lugar dado ao sexual que o faz, desde Freud, funcionar como verdade, como o que instaura para o sujeito o que é da diferença sexual e que determina sua subjetividade. Desprovida de conteúdos reveladores e alardeantes, mais afeita ao cômico e à babaquice (connerie), chegamos a uma verdade como a morada onde se instala o segredo do sexo. Como resposta ao assexualismo e ao unissex, que têm seu ápice na contemporaneidade, defendemos a importância de retomar o problema da verdade na clínica psicanalítica. Tendo em vista a especificidade dessa noção, procuramos justificar o seu papel na permanência da psicanálise e de sua radicalidade em não abdicar do enfrentamento de um sexual que secciona e reinstaura a cada vez o mal-estar do sujeito na cultura. Título: O lugar do analista na clínica atual: da fixidez da fantasia à mobilidade psíquica Autora: Ana Bárbara de Toledo Andrade Orientadora: Regina Herzog Data de defesa: julho/2014 O objetivo central da tese é o de examinar a especificidade do papel do analista na clínica contemporânea, abordando uma problemática comum aos casos difíceis com os quais nos deparamos na clínica atual. O fantasiar penoso de desvalia narcísica revela-se uma problemática que não só dificulta a mobilidade psíquica do sujeito, 311 como também coloca obstáculos à própria mobilidade da prática psicanalítica. Indicamos que a fixidez da fantasia decorreria de uma relação traumática de submissão absoluta ao objeto primário. A esta questão articula-se uma fantasia materna que buscaria manter intocável e imodificável o estado psíquico de indiferenciação eu-outro. Diante das dificuldades impostas por esses pacientes no âmbito da condução do tratamento, empreendemos uma discussão a respeito da particularidade da dinâmica transferencial, visando compreender como essa configuração subjetiva inscreve-se no contexto clínico. Deste modo, desenvolvemos uma reflexão teórico-clínica a propósito da condução do tratamento analítico com os casos difíceis. Propomos uma dialética temporal e rítmica para o manejo transferencial e para o movimento interpretativo em análise. Titulo: TDAH: Novo sintoma da criança ou a criança como um novo sintoma da contemporaneidade? Autora: Ana Carolina Duarte Lopes Orientadora: Tânia Coelho dos Santos Data de defesa: julho/2013 Este trabalho busca ref letir sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) em crianças à luz da psicanálise, tendo como referencial o arcabouço teórico de Freud e Lacan. O TDAH é reconhecido como doença nos compêndios médicos e é o transtorno infantil mais frequente na atualidade. O Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) caracteriza as manifestações do transtorno em torno de três sintomas básicos: desatenção, hiperatividade e impulsividade. De acordo com o manual, esses sintomas devem ser mais intensos e frequentes do ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318 11 Dissertações e teses 36.indd 311 16/12/2014 20:46:05 312 dissertações e teses que o tipicamente observado em crianças no mesmo nível de desenvolvimento. A neuropsicologia define o TDAH como uma disfunção no sistema perceptivo central localizado no córtex pré-frontal. A disciplina tem como objetivo estudar as relações entre a atividade cerebral, a cognição e o comportamento utilizando diversos instrumentos de avaliação. Para tratar os déficits cognitivos observados em crianças com TDAH, a neuropsicologia faz uso do processo de reabilitação cognitiva. Sabemos que a abordagem psicanalítica e neuropsicológica são incomparáveis sob o ponto de vista teórico e epistemológico — fato que não impede o trabalho paralelo e colaborativo entre as duas disciplinas. Dessa maneira, propomos uma articulação da teoria do advento do eu com o funcionamento comprometido do sistema neurológico. Na clínica psicanalítica com crianças, situamos o TDAH com relação ao desejo da mãe e o nome do pai. Marcamos que no TDAH há uma enorme carência do significante nome do pai. A partir dessa constatação, relacionamos o TDAH e a fobia, já que ambos são sintomas típicos da infância, podendo ainda ser pensados como a busca por um agente organizador, uma hipótese que aproximaria tais sintomas do campo subjetivo. Título: Trauma e prática clínica: um percurso entre Freud e Ferenczi Autor: André Soares Pereira Avelar Orientador: Joel Birman Data de defesa: julho/2013 O presente trabalho propõe uma investigação a respeito do tema do trauma. Entendemos como traumático o que transcende os limites da representação. Fizemos inicialmente uma incursão ao pensamento freudiano, com o intuito de dar relevo a uma concepção do traumático estreitamente ligado ao pulsional. Em um segundo momento, utilizamos as contribuições de Sandor Ferenczi, para esboçar uma prática clínica sintonizada com a problemática da compulsão à repetição. Nosso objetivo é enfocar o “sentir” do analista como o modo encontrado pelo autor para constituir uma prática clínica capaz de abarcar aquilo que comparece como puro excesso, carente de simbolização. Entendemos que o sentir do analista pode ser tomado como um índice para o esboço de uma estratégia clínica sintonizada com o específico e singular sofrimento psíquico endereçado ao analista. Nesse sentido, estamos enfatizando o exercício de uma sensibilidade cujo propósito é criar condições de possibilidade para a inclusão no campo discursivo daquilo que é, por excelência, da ordem do traumático. Título: Domínio e culpa na neurose obsessiva: marcas da destrutividade Autora: Camila Peixoto Farias Orientadora: Marta Rezende Cardoso Data de defesa: fevereiro/2013 O objetivo central desta tese é promover um aprofundamento do estudo da neurose obsessiva sob uma nova perspectiva a partir da qual se destaca a sua dimensão destrutiva. O traumático é um fator relevante na gênese dessa patologia, tendo em vista o caráter violento de seu sistema defensivo, indicativo de que sua análise foi determinante para a emergência da pulsão de morte na obra de Freud. O modo singular de relação com o objeto na neurose obsessiva é um dos tópicos essenciais desta investigação. São analisados ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318 11 Dissertações e teses 36.indd 312 16/12/2014 20:46:05 dissertações e teses os elementos traumáticos envolvidos na sua etiologia a partir do plano da relação primária, e de seu entrecruzamento com o plano edipiano. A noção de domínio é o articulador principal desta reflexão sobre a relação eu/outro nos registros intrapsíquico e intersubjetivo. Quanto à dimensão de alteridade interna na neurose obsessiva, o foco de análise incide sobre as modalidades compulsivas de resposta psíquica diante do constante vivido de ameaça de transbordamento pulsional. São respostas que implicam complexa articulação entre ato e pensamento em cujo eixo há a compulsão à repetição e a onipotência narcísica, conduzindo a uma compulsão à síntese, destrutiva, por seu caráter fechado, de imobilismo. O pensamento ganha, neste caso, valor de ato, abrindo a discussão sobre a natureza das violentas autoacusações, em suma, da problemática da culpa. Explora-se o acirrado combate entre ego e superego para se demonstrar que a ferocidade do sentimento de culpa na neurose obsessiva já constitui uma primeira tentativa egoica de “dominação” do excesso pulsional. perativo de gozo superegoico para situar a função da dialética das identificações na clínica com os pacientes ditos obesos. Tendo em vista as duas principais diferenciações da compulsão na psicanálise, a saber, a compulsão na neurose obsessiva e a compulsão à repetição, trabalha-se a questão da angústia na teoria freudiana e lacaniana articulada ao conceito de gozo para verificar se a incidência das exigências superegoicas estaria diretamente relacionada à manutenção do sintoma e ao aumento da angústia, devido a uma falha na operação simbólica que regula as relações entre ideal do eu, supereu, gozo e desejo. Numa perspectiva clínica, a dialética das identificações e o trabalho do luto cujo correlato é a análise são pensados como o que permite a construção de recursos para lidar com o excesso pulsional, circunscrevendo as possíveis formas de responder ao imperativo superegoico. Por fim, retomam-se as observações sobre a angústia sinal, a angústia traumática, a culpa e a identificação para elaborar considerações sobre a clínica e a direção do tratamento com pacientes ditos obesos. Título: Imperativo de gozo na obesidade: sobre a função da angústia e da identificação na clínica psicanalítica Autora: Cristiane Marques Seixas Orientador: Joel Birman Data de defesa: julho/2013 Título: Reflexões sobre a questão do poder na teoria freudiana: da pulsão de domínio à pulsão de destruição Autora: Cynthia Cristiane Guerreiro Baldi Orientador: Joel Birman Data de defesa: julho/2013 O presente trabalho aborda a problemática da obesidade no campo psicanalítico, circunscrevendo a questão da compulsão por comer a partir da metapsicologia freudiana e da psicanálise lacaniana. Visa-se delimitar em que medida a compulsão por comer está relacionada à angústia e ao im- Este trabalho tem por objetivo pesquisar de que forma Freud pensou a questão do poder nos diferentes momentos de sua obra que propusemos dividir em duas fases, passando por um período de transição. No primeiro momento de seu pensamento, tentamos mostrar de que forma 313 ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318 11 Dissertações e teses 36.indd 313 16/12/2014 20:46:05 314 dissertações e teses a primeira parte da teoria se articulava com o poder. Em seguida, sublinhamos os momentos que eram indicativos de que uma mudança começava a se produzir em seus escritos e, nesse sentido, a eclosão da Primeira Guerra Mundial, bem como os efeitos do pós-guerra, também parecem ter contribuído significativamente para a mudança de paradigma que aconteceria nos anos seguintes em seu pensamento. Finalmente, com a postulação da pulsão de morte, diversos efeitos foram produzidos no que concerne à questão do poder e da política em sua relação com a guerra. De forma que, no final de sua obra, suas reflexões acerca do poder tomaram rumos bastante diversos de suas reflexões iniciais. Título: As concepções da parceria analítica no ensino de Lacan Autor: Douglas Nunes Abreu Orientadora: Tânia Coelho dos Santos Data de defesa: julho/2013 Esta tese parte de alguns impasses e questões pertinentes à prática do analista no século XXI, tais como a prática analítica na era das avaliações, no campo da saúde mental e diante das novas apresentações sintomáticas. Elenca as perspectivas lógicas que podem melhor orientar a configuração da prática psicanalítica em cada momento da clínica lacaniana. Essa divisão lógica serve de eixo para o desenvolvimento das parcerias analíticas em Lacan. Desenvolve a ideia do parceiro-imago na teoria do imaginário como momento antecedente da prática propriamente lacaniana. Trabalha as parcerias do analista a partir do axioma do inconsciente estruturado como uma linguagem, na lógica do inconsciente transferencial: o analista como parceiro- -símbolo na máquina significante e o analista como parceiro-objeto a na clínica da fantasia. Desenvolve a parceria analítica na clínica do real, balizada pelo axioma da não relação sexual, na lógica do inconsciente real, onde a parceria analítica é descrita como a de parceiro-sintoma. Ao final do trabalho, discutem-se as parcerias analíticas na perspectiva de alguns casos clínicos da literatura psicanalítica, visando às considerações finais sobre o tema. Título: O real da ciência e o real da psicanálise Autor: Fabiana Mendes Pinheiro de Souza Orientadora: Tânia Coelho dos Santos Data de defesa: fevereiro/2013 Esta pesquisa parte do axioma lacaniano: “O sujeito sobre o qual a psicanálise opera só pode ser o sujeito da ciência” (Lacan, 1965-66, p. 873). Abordamos o advento do real da ciência a partir da epistemologia francesa tendo como referência, os autores, Canguilhem, Bachelard, Koyré e Milner. Diferentemente da epistemologia bachelardiana, centrada no conceito de corte epistemológico, Foucault situou sua leitura arqueológica no limiar da epistemologização. Neste nível a cientificidade não serve como norma. Demonstramos a partir de Machado (2009) que na história arqueológica o que se tenta revelar são as práticas discursivas na medida em que elas dão lugar a um saber. Foucault não considerou pertinente a distinção entre ciência e ideologia. Ao não estabelecer os critérios de demarcação entre uma e outra, situou a arqueologia como uma história do saber. Para Foucault todo conhecimento, seja ele científico ou ideológico, só pode existir a partir de correlações de força ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318 11 Dissertações e teses 36.indd 314 16/12/2014 20:46:05 dissertações e teses que constituem tanto o sujeito quanto os domínios do saber. Com base em Machado (2009), destacamos a passagem de arqueologia do saber (1969b) para a genealogia do poder de Michel Foucault, quando a investigação do saber dá lugar aos estudos sobre o poder. Este último se exerce, é luta, correlações de força que resultam uma estratégia sem sujeito. A epistemologia está assentada no conceito de corte epistemológico, conceito bachelardiano, que sustenta o primeiro eixo desta pesquisa. Acompanhamos a homologia estrutural proposta por Milner entre o teorema de Kojève de que “há entre o mundo antigo e o universo moderno um corte” e o teorema de Koyré de que “entre a episteme antiga e a ciência moderna existe um corte”. Esses cortes correspondem a momentos logicamente superpostos à constituição do sujeito. A posição subjetiva moderna só foi possível a partir do advento da ciência moderna. A partir do advento do real da ciência, o real da psicanálise foi delineado com base nas discussões de Lacan com Hyppolite em 1953-54. Este real é delimitado a partir de uma primeira constituição de um externo não simbolizado, por meio da operação da Austossung, expulsão primordial. Trabalhamos o conceito de pulsão de morte, o automatismo da repetição (Wiederholungszwang), e sua relação com a ordem simbólica. A pulsão de morte foi definida por Lacan (1954-55) como a ordem simbólica enquanto muda. A pulsão de morte é a máscara da ordem simbólica. Demonstramos que o conceito de real equivaleria à definição de das Ding proposta por Lacan em 1959-60. Tendo como referência o período de 1962-63, quando a angústia foi definida como sinal do real, retomamos a tese de Coelho dos Santos de que angústia automática (Automatischeangst) é a legítima representante da pulsão de morte no aparelho psíquico e 315 analisamos sua relação com a definição lacaniana de que a angústia é o sinal do real. Encerramos nosso percurso retomando a tese lacaniana de que a angústia é a única tradução subjetiva do objeto a. Logo, este último, é o nome do real neste período do ensino de Lacan. Título: A impossibilidade revelada pela psicanálise diante do enigma da diferença sexual Autora: Jamille Lima dos Santos Orientadora: Anna Carolina Lo Bianco Data de defesa: julho/2013 A presente tese parte da concepção de sexualidade proposta por Freud e sustenta que a diferença entre os sexos não implica uma simetria ou completude entre eles. Recorre aos desenvolvimentos de Lacan para demonstrar como o conceito de falo é o referente, tanto da inscrição do sujeito em uma posição sexuada, quanto do seu posicionamento diante do encontro com o outro sexo. Tomando como parâmetro a lógica fálica, problematiza a vinculação entre o falo e o atributo e evidencia que, na sua vinculação com os quantificadores, o falo opera como função fálica. É por essa referência que o sujeito se inscreve em uma das duas posições sexuadas. Para o homem, a função fálica é o referente da sua inscrição na sexuação e se articula na relação entre o todo e a exceção; para a mulher, a função fálica não permite sua inscrição como um todo. Isto é, a lógica que rege a posição feminina é não-toda referida à função fálica. Nessa perspectiva, é a partir da lógica que rege cada posição sexuada que o sujeito tem que se fazer valer no encontro com o outro sexo. Ou seja, a assunção de uma posição sexuada não está dada de uma vez por todas, só po- ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318 11 Dissertações e teses 36.indd 315 16/12/2014 20:46:05 316 dissertações e teses dendo se fazer por referência ao semblant. Desse modo, circunscreve e caracteriza o conceito de sexualidade para a psicanálise e indica que diante da impossibilidade estrutural imposta pelo sexual, o encontro entre os sexos se dá pela via do semblant e se faz através da articulação entre o cômico e o amor. Nesse contexto, é ressaltado que é próprio do sujeito neurótico recuar diante do real desvelado pelo sexual e conclui que ao revelar ao mundo essa impossibilidade, a psicanálise demonstra que a assunção de uma posição sexuada não é da ordem de uma natureza, nem uma questão de opção — é um fato de estrutura. Título: Da falta à perda: a tarefa analítica Autor: Jorge Gonçalves dos Santos Orientadora: Fernanda Costa-Moura Data de defesa: fevereiro/2013 O trabalho aborda a passagem da falta à perda do objeto, no percurso denominado por Lacan (1967-8) como “a tarefa analítica”. Trata-se de examinar quais são os limites da análise diante da demanda de cura que o neurótico endereça ao analista, uma vez que a descoberta freudiana apontou as satisfações pulsionais que o sintoma representa, e das quais Lacan demarcou sua presença real e encadeamento simbólico. Partindo do exame da determinação significante do sujeito e da montagem pulsional, discerne-se a dimensão da falta de objeto último para o desejo, aberta pela castração, que institui o estatuto da demanda no campo do sujeito. Na medida em que o registro da demanda, em lugar de implicar a existência de um objeto que a satisfaça, reenvia o sujeito à metonímia significante que é sempre incessante como tal, observa-se que a circunscrição da operação da castração definida somente em referência ao registro da falta oblitera qualquer saída efetiva para o impasse com que Freud se deparou na análise da neurose sob a forma do “rochedo da castração”. Delimita-se assim a operação de extração e perda do objeto a, como o ato que possibilita cernir, e ir além, da impossibilidade de transposição do rochedo da castração enquanto limite. Para abordá-lo discute-se o problema do limite da interpretação e a noção freudiana de “regressão pulsional” com base na análise realizada por Lacan dos significantes acéfalos da gramática pulsional, a fim de localizar a perda implicada no objeto, como um momento lógico anterior à falta sintomática do mesmo. Expõe-se, por fim, a castração como limite colocado em cada demanda, em cada modalidade de satisfação pulsional, ao examinar o ato de perda e cessão do objeto a no que Lacan denomina a “regressão analítica”, bem como no que é apresentado no tetraedro balizador da análise, construído no seminário O ato psicanalítico (1967-8). O que aí se representa podendo aparecer ao final como sendo da ordem de uma báscula que se abre para o sujeito como passagem ética da falta à perda, na medida mesmo e na vigência dos limites constitutivos do processo analítico. Título: A psicanálise e o cuidado de si: entre a sujeição e a liberdade Autor: Rodrigo Cardoso Ventura Orientador: Joel Birman Data de defesa: julho/2013 A presente tese de doutorado tem como principal objetivo pensar a psicanálise na atualidade como uma prática inscrita na tradição do cuidado de si (epiméleia heautoû), a partir da articulação entre o discurso ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318 11 Dissertações e teses 36.indd 316 16/12/2014 20:46:05 dissertações e teses freudiano, a obra do filósofo francês Michel Foucault e a filosofia antiga, em torno das figuras de Sócrates e Diógenes, o cínico. A motivação desta tese é problematizar as condições de possibilidade da transformação subjetiva na experiência psicanalítica, que aponta para a constituição de novos modos de vida. O que nos interessa neste trabalho é pensar a prática psicanalítica como um espaço de liberdade visando à experimentação de outras formas de ser e de acontecer na vida. Um grande desafio, porém, se coloca. E quem nos coloca este desafio é Foucault. Em sua genealogia do poder, ele afirma que os efeitos de sujeição das relações de poder-saber, que normalizam as subjetividades e sufocam os espaços possíveis de liberdade, também estão presentes na experiência psicanalítica. Para encontrar as saídas frente às questões colocadas por Foucault, este trabalho de pesquisa vai refletir acerca da tensão presente no setting analítico entre a sujeição e a liberdade das subjetividades. Para tal, nossa aposta é buscar na própria filosofia de Foucault, quando esse autor se volta para a Antiguidade greco-romana para estudar a noção de cuidado de si, os elementos que nos permitam encontrar na obra freudiana, tão rica em possibilidades de leitura, uma psicanálise comprometida com a produção de modos de vida singulares, menos normalizados e submissos. Considerando que o cuidado de si é composto por um conjunto de práticas ascéticas e eróticas, que visam à transformação da própria maneira de se viver, e trazendo para o primeiro plano do discurso psicanalítico as noções de trabalho (áskesis) e Eros, acreditamos ser possível estabelecer uma leitura da psicanálise que retome aspectos fundamentais da tradição do cuidado de si. Conjugando estas duas noções, nos arriscaremos a pensar a prática psicanalítica como uma ascese erótica, ou 317 melhor, como um trabalho erótico, cujo objetivo terapêutico se deslocaria para o trabalho de si sobre si e para o exercício de novos modos de existência, a partir da constituição de destinos eróticos para a pulsão. Essa é a nossa hipótese de pesquisa. Para desenvolvê-la, tentando estabelecer uma ponte entre a prática psicanalítica e as técnicas do cuidado de si, realizaremos uma leitura da psicanálise com as lentes da dimensão econômica do aparelho psíquico, que implica a inscrição desta no registro das intensidades e a concepção do psiquismo como aparelho de captura e domínio das forças pulsionais. Nesse sentido, a experiência psicanalítica, enfrentando o risco de sujeição que paralisa e inviabiliza qualquer pretensão de transformação subjetiva, estaria comprometida com o exercício da liberdade, entendida como espaço de mobilidade pulsional, em um processo de erotização e afirmação da vida. Da sujeição à liberdade, é a direção que pretendemos seguir nesta tese, buscando, no cerne da psicanálise atual, os elementos fundamentais da tradição do cuidado de si. Título: Os efeitos subjetivos da pobreza material e consequências materiais do empobrecimento psíquico Autora: Valéria Wanda da Silva Fonseca Orientadora: Tânia Coelho dos Santos Data de defesa: julho/2013 O objetivo desta pesquisa foi delimitar quais pressupostos teóricos na psicanálise a serem considerados nas estratégias clínicas de atendimento dos brasileiros oriundos da população de baixa renda, pouco escolarizada e não familiarizada com o discurso psicanalítico. O acesso dessa po- ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318 11 Dissertações e teses 36.indd 317 16/12/2014 20:46:05 318 dissertações e teses pulação ao tratamento psicanalítico ainda é restrito aos poucos serviços públicos e ou privados de caráter ambulatorial. A ampliação da oferta desses atendimentos exige mapeamento dos efeitos subjetivos da pobreza entre os cidadãos brasileiros. Ref letiu-se a respeito da constituição do laço social, da força da religião e da ciência e seus reflexos na organização da sociedade, e, em particular, nas famílias brasileiras, e ainda, sobre a constituição do sujeito na contemporaneidade. Identificamos a importância do conceito de eu na obra freudiana, e dos estudos sobre as relações entre o empobrecimento do eu e o empobrecimento econômico e social. A ação humana, particularmente a satisfação das necessidades, desenrola-se na rede da linguagem, em discurso, e no campo da ética. O universo simbólico é transmitido por meio dos enunciados primordiais, dos códigos e das leis. As necessidades nunca se apresentam em estado puro, já que não se tem acesso à ordem natural. Elas precisam ser faladas, e sempre perpassadas pelo desejo e pela demanda. Para Lacan, o que tem status de necessidade e torna possível a existência do homem é a diferença sexual: masculino e feminino. O complexo de castração é o motor da renegação, que institui o conflito constitucional do eu. Demanda-se a outro, outro do laço social que cuide, alimente e transmita as regras do pacto civilizatório, ou seja, que ame! Contudo, quanto maior as exigências pulsionais associadas à precariedade dos recursos externos provindos da civilização, maiores as dificuldades na eficácia da renúncia pulsional, e consequentemente maior ‘debilidade’ do eu. Essa precariedade seria fator de adoecimento psíquico, presente nas neuroses e na melancolia. Uma característica peculiar da melancolia é o medo do empobrecimento. Freud alertou-nos sobre a pobreza que se alastra nas cidades, tal como uma epidemia social. Faz-se necessário analisar e diagnosticar quem são os sujeitos que vivem nos diversos estágios da pobreza, inclusive os pobres que vivem entre os ricos, ou seja, todos os sujeitos que se não forem protegidos pelas benesses do Estado e ou das famílias abastadas, padecerão de uma total incompetência para gerir a própria vida. Ao atualizar a condição ser da falta, o sujeito pobre desmascara a precariedade do outro social, que geralmente, por ser marcado pela castração, vacila na transmissão do saber sobre o que fazer com a falta que nos é constitucional. Desde sempre, consideramos como estratégia na direção do tratamento aprender a contornar os impasses mediante a experiência da castração e da partilha dos sexos, ambos por serem a base da constituição psíquica. ágora (Rio de Janeiro) v. XVII n. 2 jul/dez 2014 303-318 11 Dissertações e teses 36.indd 318 16/12/2014 20:46:05 Normas para Publicação I. APRECIAÇÃO PELA COMISSÃO EDITORIAL Os originais serão aceitos para avaliação desde que não tenham sido publicados anteriormente, devendo ser acompanhados de carta ao Editor Responsável solicitando publicação. Na carta, o(s) autor(es) deve(m) informar eventuais conflitos de interesse – profissionais, financeiros e benefícios diretos ou indiretos – que possam vir a influenciar os resultados da pesquisa. Deve(m), ainda, revelar as fontes de financiamento envolvidas no trabalho, bem como garantir a privacidade e o anonimato das pessoas envolvidas. O material deve ser acompanhado também de uma declaração do(s) autore(s) atestando o ineditismo do trabalho, conforme o seguinte , declaro modelo: Eu, , que o artigo intitulado apresentado para publicação na revista Ágora – Estudos em Teoria Psicanalítica, não foi publicado ou apresentado para avaliação e publicação em nenhuma outra revista ou livro, sendo, portanto, original. Inicialmente, o trabalho será apreciado pelo Editor, que enviará ao(s) autor(es) carta ou e-mail comunicando o início do processo editorial, caso o encaminhamento do material esteja de acordo com as normas estabelecidas pela revista. Em seguida, o manuscrito será enviado para avaliação de dois pareceristas anônimos, que poderão rejeitar, recomendar a publicação com reformulações, ou aceitar a publicação sem modificações. Caso haja discordância entre os pareceres quanto à publicação, o trabalho será encaminhado a um terceiro consultor ad hoc. Os pareceres serão enviados ao(s) autor(es) para que se justifique o resultado da avaliação ou para que sejam realizadas modificações no texto, devendo o(s) autor(es), neste caso, devolver o trabalho reformulado no prazo máximo de vinte dias. O trabalho será reenviado aos pareceristas, que deverão se pronunciar com relação à revisão efetuada. Caberá à Comissão Editorial a decisão final quanto à publicação. Pequenas alterações no texto poderão ser feitas pela Comissão Editorial para atender aos critérios e normas operacionais da revista. 12 Final 36.indd 319 Serão aceitos para publicação na revista Ágora – Estudos em teoria psicanalítica somente artigos que tenham como autor pelo menos um mestre ou doutor. Haverá exceção a essa regra no caso de autores que tenham notório saber, sendo a Comissão Editorial responsável por encaminhar os artigos destes autores para avaliação dos pareceristas. II. DIREITOS AUTORAIS A aprovação dos textos implica a cessão imediata e sem ônus dos direitos de publicação nesta revista, a qual terá exclusividade de publicá-los em primeira mão. O autor continuará a deter os direitos autorais para publicações posteriores. III. APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS O autor deverá enviar o trabalho em duas cópias impressas e uma cópia eletrônica – em disquete (Word for Windows – versão 6.0 ou superior e com extensão .doc) ou via e-mail. O texto deverá ser digitado em fonte Times New Roman, corpo 12, formato letter, espaço 1,5 linha. Os originais enviados não serão devolvidos. As resenhas não poderão exceder o total de três laudas. Folha de rosto – Título em português; nome do autor, seguido de créditos acadêmicos e profissionais (no máximo três titulações); endereço postal e eletrônico do autor; número de telefone/fax. Folha de resumo – Resumo em português (máximo de 100 palavras – aproximadamente 580 caracteres com espaço); palavras-chave em português (no mínimo três e no máximo cinco palavras); título em inglês, compatível com o título em português; abstract em inglês, compatível com o texto do resumo; keywords em inglês, compatíveis com as palavras-chave. Texto – O corpo do texto (sem contar as folhas de rosto e de resumo) deverá apresentar somente o título do trabalho e conter de 14 a 20 laudas com 2.000 caracteres com espaço cada uma. O texto não deverá conter menos de 28 mil nem mais de 40 mil caracteres com espaço. Padrão das notas – As notas, utilizadas caso sejam indispensáveis, devem ser indicadas por algarismos arábicos ao longo do texto e digita 16/12/2014 20:54:45 das no pé da página que contém a nota, com a utilização de opção automática do Word. IV. REFERÊNCIAS E CITAÇÕES A referência a autores deverá ser feita no corpo do texto, somente mencionando o sobrenome, acrescido do ano da obra. Ex.: (GREEN, 1982) Em caso de autores cujo ano do texto ou da obra é importante, colocar o ano em que foi escrito o texto ou a obra seguido do ano da edição utilizada. Ex.: (FREUD, 1915/1974) Caso haja coincidência de datas de um texto ou obra, distinguir com letra (1915a, 1915b), respeitando a ordem de entrada no artigo. Em caso de compilação de textos de um mesmo autor em uma obra, colocar o ano do texto seguido do ano da edição da obra utilizada. Ex: (LACAN, 1946/1966) Caso haja vários autores, todos deverão ser citados, usando-se “e” ou “&”. Ex: (PRIGOGINE & STENGERS, 1984) Em caso de citações textuais, entre aspas, deverá ser indicada a página. Ex: “É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar” (FOUCAULT, 1984, p.28). Citações textuais com menos de três linhas, entre aspas, deverão ser mantidas no corpo do texto. Citações textuais com mais de três linhas deverão aparecer em destaque, observando um espaço do tabulador, espaço simples, e digi tadas em Times New Roman, corpo 10. VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS As referências bibliográficas devem aparecer no final do artigo, em ordem alfabética de sobrenome. A lista se guiará pela ordem cronológica dos textos, ou seja, as obras de um mesmo autor devem ser listadas segundo o ano de publicação das mesmas. Devem obedecer à seguinte ordem de itens: Livro – sobrenome em caixa alta, iniciais do autor, ano da edição – antecedido, se for o caso, pelo ano em que foi escrito – entre parênteses, título em itálico, cidade, editora. Ex: FOUCAULT, M. (1984) Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal. LACAN, J. (1959-1960/1988) O Seminário livro 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Citação de Freud – sobrenome em caixa alta, iniciais do autor, ano em que foi escrito e ano da edição entre parênteses, título da edição utilizada em itálico, cidade, editora. Em seguida, o título do artigo entre aspas, volume e páginas. 12 Final 36.indd 320 Ex.: FREUD, S. (1975) The standard edition of the complete psychological works. Londres: Hogarth Press. (1900) “The Interpretation of dreams”, v.IV e V, p.1-734. (1915) “Repression”, v.XIV, p.141-158. Artigo de livro – sobrenome em caixa alta, ini ciais do autor, ano da edição entre parênteses, título do artigo entre aspas, seguido de in (sem itálico) e do nome do coordenador, título do livro em itálico, cidade, editora. Ex.: ANDRADE, R. (1995) “A teoria das pulsões no romantismo alemão”, in MOURA, A.H. (org.). As pulsões. São Paulo: Escuta. Capítulo ou parte de livro – sobrenome em caixa alta, iniciais do autor, ano da edição entre parênteses, título da parte entre aspas, seguido de in e do título do livro em itálico, cidade, editora. Ex.: LACAN, J. (1946/1966) “Propos sur la causalité psychique”, in Écrits. Paris: Seuil. Artigo de revista – sobrenome em caixa alta, iniciais do autor, ano da edição entre parênteses, título do artigo (sem aspas), nome da revista em itálico, volume (v.), número (n.), cidade, editora, páginas (usar p. para o singular e o plural). Ex.: SAFRA, G. (2000) Uma nova modalidade psicopatológica na pós-modernidade: os espectrais. Psychê, ano IV, n.6. São Paulo: Unimarco, p.45-51. Dissertações e teses – sobrenome em caixa alta, iniciais do autor, ano de defesa, título entre aspas, tipo de trabalho, programa, instituição, cidade. Ex.: VIDAL, P.E.V. (2005) “Declinando o declínio do pai”. Tese de Doutorado, Programa de PósGraduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Artigo publicado em revista eletrônica – sobrenome em caixa alta, iniciais do autor, ano de publicação entre parênteses, título do artigo, nome da revista em itálico, volume (v.), número (n.), endereço eletrônico e data da consulta. Ex.: DI MATTEO, V. (2005) Fenomenologia do espírito e psicanálise: aproximações. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos, ano II, n.2. Disponível em http://w w w.hegelbrasil.org Acesso em 10/3/2006. Endereço para remessa de trabalhos Revista Ágora – Estudos em Teoria Psicanalítica A/c Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica – Instituto de Psicologia UFRJ Campus Praia Vermelha Avenida Pasteur 250 fundos Urca 22290-240 Rio de Janeiro RJ [email protected] 16/12/2014 20:54:45 ROTEIRO DE PARECER O trabalho deve ser avaliado levando em consideração os seguintes itens a serem devidamente comentados: Organização do trabalho Adequação do título Clareza e concisão do resumo Pertinência das palavras-chave Inserção na área de abrangência da revista ConteÚdo Delimitação e definição do foco do trabalho Explicitação das premissas do trabalho O parecer deve ser conclusivo quanto à recomendação final (favorável, favorável com modificações ou desfavorável). Como este parecer será enviado para o autor, é importante que venha com uma justificativa detalhada, destacando as modificações e sugestões necessárias, com indicação das passagens e sua localização (nº da página) no artigo. No caso de parecer desfavorável, solicitamos que explicite os motivos. A Revista Ágora preserva o sigilo de seus consultores. Consistência do desenvolvimento da questão Conclusões decorrentes da argumentação apresentada Adequação da bibliografia ao problema abordado Redação Gramática/ortografia Clareza na expressão das ideias Citações apresentadas corretamente Apresentação, organização e tamanho do artigo Acordo com as “normas de publicação” Julgamento final Favorável à publicação sem modificações Favorável à publicação com modificações Desfavorável à publicação 12 Final 36.indd 321 16/12/2014 20:54:45 ÚLTIMOS NÚMEROS Um novo lance de dados: psicanálise e medicina na contemporaneidade. Organizado por Joel Birman, Isabel Fortes e Simone Perelson Silvia Alexim Nunes Dissertações e teses 2011 VOLUME XV NÚMERO 1 Janeiro/junho de 2012 Artigos VOLUME XV NÚMERO 2 Julho/dezembro de 2012 O SUJEITO E SEUS MODOS DE GOZO Christian Hoffmann Artigos A “bela morte” Laurie Laufer Elucubrações sobre um sonho elucidativo: o erro fetichista e o acerto freudiano Simone Perelson Os processos subjetivos e os jogos de verdadeda psicanálise frente à transformação do lugar do pai Maria Regina dos Santos Prata O afeto e a reflexão Sylvain Tousseul TRAUMA: O AVESSO DA MEMÓRIA Maria Manuela Assunção Moreno e Nelson Ernesto Coelho Junior Sublimação: da construção ao resgate do conceito Zeila Facci Torezan e Fernando Aguiar Brito DEFESA E TRAUMA: DO PROJETO À ATUALIDADE Sissi Vigil Castiel, Alexandra Dal Prá Sibemberg, Luciana Salgado Firpo e Rosangela Maria Martins da Silva O papel da ilusão na psicanálise freudiana Zeferino Rocha DA hamartiaΑCOMO FALTA E A DIMENSÃO TRÁGICA DA VIDA NA PSICANÁLISE Hugo Juliano Duarte Matias HYSTORIZAÇÃO E ROMANCE: A CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM NO DIÁRIO ÍNTIMO DE ADOLESCENTES Nádia Laguárdia de Lima e Ana Lydia Bezerra Santiago O CASO MARYLIN MONROE: EVIDÊNCIAS DA FORCLUSÃO DO SUJEITO E DE SEU ATO Jéferson Machado Pinto e Márcia Rosa Lágrimas nas profundezas: alegorias utópicas em Moby Dick e o nominalismo na obra de William de Ockham Estevan de Negreiros Ketzer e Edson Luiz André de Sousa A metafísica do olhar: breve interlocução com Sartre, MerleauPonty e Lacan Paulo de Carvalho Ribeiro O vampiro, um não morto ainda vivo Max Kohn A REALIZAÇÃO IMAGINÁRIA DO DESEJO INCONSCIENTE NUM GRUPO TERAPÊUTICO DE CRIANÇAS EM IDADE PRÉ-ESCOLAR Jefferson Silva Krug e Nedio Seminotti A neurose obsessiva sob a ótica de Melanie Klein Marcos Leandro Klipan e Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto MODALIDADES DO ATO NA PARTICULARIDADE DA ADOLESCÊNCIA Carla Almeida Capanema e Angela Vorcaro A linguagem das resistências: considerações sobre o trauma na clínica psicanalítica Fernanda Canavêz e Regina Herzog PEIRCE, LACAN E A QUESTÃO DO SIGNO INDICiAL Mauricio José d’Escragnolle Cardoso Resenhas A PSICANÁLISE, SEUS CONTORNOS E SUAS BORDAS Limites da clínica. Clínica dos limites. Organizado por Cláudia Amorim Garcia e Marta Rezende Cardoso Maria Teresa de Melo Carvalho NOVOS HORIZONTES NO DIÁLOGO ENTRE PSICANÁLISE E MEDICINA 12 Final 36.indd 322 Resenha Um livro fundamental para todo analistaem formação Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan, a clínica da fantasia, v.2, de Marco Antonio Coutinho Jorge Vanisa Maria da Gama Moret Santos Homenagem Homenagem a Jean Laplanche Christophe Dejours e Francis Martens 16/12/2014 20:54:45 VOLUME XV / número especial dezembro DE 2012 VOLUME XVI / número especial abril DE 2013 Editorial Editorial Artigos Artigos Música e um pouco de silêncio: da voz ao sujeito Carolina Mousquer Lima e Maria Cristina Poli Discurso freudiano e tradição judaica Joel Birman Para além da ilusão: o real na crítica freudiana à religião Claudia Maria Silva Moreira e Jeferson Machado Pinto Do vazio ao objeto: das Ding e a sublimação em Jacques Lacan Ariana Lucero e Ângela Vorcaro Crítica do empirismo aplicado à psicopatologia clínica: da esterilidade do DSM a uma saída pela psicanálise Tereza Pinto A psicose na contemporaneidade e seus novos sintomas: do pathos ao orthos Rogério Paes Henriques Erotomania: os impasses do amor e uma resposta psicótica Juliana Bressanelli e Antônio M. Ribeiro Teixeira Adolescência: muda psíquica à procura de continentes Nathalie de Kernier e Dominique Cupa Críticas e alternativas de Winnicott ao conceito de pulsão de morte Leopoldo Fulgencio O lugar do perito e o lugar do analista na abordagem do louco infrator Romina Moreira de Magalhães Gomes Tradução Mal-estar na civilização e desastre totalitário François Villa Resenhas Verdade e metalinguagem em Lacan Estilo e verdade na perspectiva da crítica lacaniana à metalinguagem, de Gilson de Paulo Moreira Iannini Christian Ingo Lenz Dunker A psicanálise é contra-hegemônica Leituras da clínica, escritas da cultura, de Maria Cristina Poli Amadeu de Oliveira Weinmann 12 Final 36.indd 323 O estatuto conceitual do inconsciente em Freud e algumas de suas implicações para a prática psicanalítica Helio Honda “Medô medo”: Investigação sobre a fobia em Freud, Lacan e autores contemporâneos a partir de um caso clínico André Ehrlich e Vinicius Anciaes Darriba Manuscritos freudianos inéditos: das Ich und das Es Juan Carlos Cosentino Do fenômeno psicossomático ao sintoma: a aderência do sujeito ao diagnóstico médico e o trabalho analítico Doris Rinaldi, Roseane Freitas Nicolau e Claudia Escórcio Gurgel do Amaral Pitanga Escrita no corpo: gozo e laço social Rita Manso e Heloisa Caldas O a posteriori transferencial dos traumas do início da vida Jacques André Bebês com risco de autismo: o não-olhar do médico Mariana Rodrigues Flores e Luciane Najar Smeha Resenhas Novos sentidos da psicanálise Sofrimentos narcísicos, organizado por Julio Verztman, Regina Herzog, Teresa Pinheiro e Fernanda Pacheco-Ferreira Mariana de Toledo Barbosa A potência da dor A dor psíquica, de Isabel Fortes Andréa Barbosa de Albuquerque 16/12/2014 20:54:45 VOLUME XVI / número 1 Janeiro/junho de 2013 VOLUME XVI / número 2 Julho/dezembro de 2013 Artigos Artigos Do debate sobre o Édipo à dissolução do sujeito em Foucault e Lacan Marlos Terêncio O estruturalismo em Jacques Lacan: da apropriação à subversão da corrente estruturalista no estabelecimento de uma teoria do sujeito do inconsciente Luis Flávio Silva Couto e Luis Flávio Silva Couto As ressonâncias subjetivas da mudança de nome Rajaa Stitou Interdito e silêncio: análise de alguns enunciados Fabio Elias Verdiani ATfouni Cultura e desejo: a construção da identidade adicta no cenário contemporâneo Roberta Giacobone e Mônica Kother Macedo As manifestações do ato e sua singularidade em suas relações com o feminino Cristina Moreira Marcos e Carla de Abreu Machado Derzi Repressão e inconsciente no desenvolvimento da metapsicologia freudiana Fátima Caropreso e Richard Theisen Simanke Desvio do pensamento e da cultura nas novlínguas (Klemperer, Orwell, Canetti) Claudine Haroche O corpo e o feminino enquanto lugares de subjetivação possível: O aporte das artes visuais Alessandra Monachesi Ribeiro Revisitando o primeiro modelo freudiano do trauma: sua composição, crise e horizonte de persistência na teoria psicanalítica Antônio Luiz Pereira de Castilho O complexo de Édipo nas obras de Klein e Winnicott: comparações Priscila Toscano de Oliveira Marchiolli e Leopoldo Fulgencio O índice de um enigma: o inconsciente e o fenômeno da premonição Ronaldo Manzi Filho Laço social na psicose: impasses e possibilidades Fabio Malcher e Ana Beatriz Freire Por uma língua-objeto: o avesso do gozo na cultura de consumo Milena Maria Sarti e Leda Verdiani Tfouni A psicanálise no hospital: dos impasses às condições de possibilidades Maíla Do Val Machado e Daniela Sheinkman Chatelard A fantasia no ciberespaço: a disponibilização de múltiplos roteiros virtuais para a subjetividade Márcio Rimet Nobre e Jacqueline de Oliveira Moreira Dissertações de mestrado e teses de doutorado/2012 A psicanálise é uma ciência e o discurso analítico é uma práxis? Tania Coelho dos Santos A castração e seus efeitos estilísticos: da parresia foucaultiana a uma postura psicanalítica Amos Squverer Resenha As categorias do sujeito na contemporaneidade O sujeito na contemporaneidade, de Joel Birman Isabel Fortes 12 Final 36.indd 324 16/12/2014 20:54:46 VOLUME XVII / número 1 Janeiro/junho de 2014 Artigos A encenação dos sonhos: imagens de Freud e de Benjamin Alessandra Affortunati Martins Parente O self como centro de ação em James e Winnicott Claudia Passos-Ferreira Psicanálise e estética da recepção: desacordos e entrecruzamentos Gustavo Henrique Dionisio A voz na experiência psicanalítica Angélica Bastos Maternidade do exílio. Quando o deslocamento favorece a fertilidade Elise Pestre Sobre o amor e suas falhas: uma leitura da melancolia em psicanálise Felipe Castelo Branco A construção do caso clínico como forma de pesquisa em psicanálise Alexandre Costa Val e Mônica Assunção Costa Lima O diagnóstico fonoaudiológico na paralisia cerebral: o sujeito entre a fala e a escuta Giuliana Bonucci Castellano e Regina Maria Ayres de Camargo Freire Conceitos fundamentais dos métodos projetivos Elza Rocha Pinto Resenha “Agiste conforme o teu desejo?” Antígona e a ética trágica da psicanálise, de Ingrid Vorsatz Betty B. Fuks VOLUME XVII / número especial AGOSTO de 2014 Editorial Artigos Etat limite, adolescence, cannabis et cocaïne Didier Lauru Drogas, performance e psiquiatrização na contemporaneidade Joel Birman Para uma clínica do uso de álcool e drogas com adolescentes das comunidades do Rio de Janeiro Francisco Leonel F. Fernandes O abuso de substâncias tóxicas na adolescência: uma tentativa de incorporação do objeto? Silvia Maria Abu-Jamra Zornig Dependência e adolescência: a recusa da diferença Marta Rezende Cardoso Dépendance aux images et élaboration de la violence Florian Houssier Agressions sexuelles et dépendance à l’adolescence Jean-Yves Chagnon Dépendance à l’adolescence : le vide par l’excès Teresa Rebelo Separation, dependance et depression a l’adolescence François Marty Embaraço, humilhação e transparência psíquica: O tímido e sua dependência do olhar Julio Verztman Proliferação das #hashtags: lógica da ciência, discurso e movimentos sociais contemporâneos Fernanda Costa-Moura 12 Final 36.indd 325 16/12/2014 20:54:46 Projeto gráfico e diagramação Areté Programação Visual Anita Slade Sonia Goulart Padronização de textos Sonia Cardoso Tânia Lopes Pré-impressão e impressão Sermograf Tiragem 1.000 exemplares Impressão da capa em cartão supremo 250g/m2 e do miolo no papel pólen soft 80g/m2 Tipografia utilizada Joana MT, Boton regular, Univers e Univers condensed Impresso em dezembro de 2014 12 Final 36.indd 326 16/12/2014 20:54:46 Estudos em Teoria Psicanalítica Assinatura / Subscription 2014 2010 (XVII/1 e XVII/2) (XIII/1 + XIII/2) Brasil (individual) R$ 56,00 Brasil (institucional) R$ 70,00 Other countries (individual) US$ 40 Other countries (institutional) US$ 80 Números atrasados (com assinatura) / Back issues (with subscription) Números / issues Brasil (individual) R$ 28,00 cada Brasil (institucional) R$ 35,00 cada Other countries (individual) US$ 20 each Other countries (institutional) US$ 30 each Pagamento / Payment Total $ Depósito bancário (only in Brazil) Solicitar instruções pelo e-mail [email protected] ou pelo tel (55 21) 2507-9448 Mastercard Visa Cartão nº / Card number Código / Code Validade / Valid through Nome do titular / Holder’s name E-mail Assinatura / Subscription Data / Date Preços válidos até 30/06/2014 / Prices valid until 06/30/2014 12 Final 36.indd 327 16/12/2014 20:54:46 Assinante / Ordered by Nome / Name Endereço / Address Bairro / Neighborhood Cidade / City CEP / Zip code Estado / State País / Country Tel. / Phone Fax / Fax E-mail Envie seu pedido de assinatura ou solicite por telefone / e-mail: Send this coupon or order by telephone / e-mail: Contra Capa Livraria Tel (55 21) 2507-9448 [email protected] Distribuição / Distribution Contra Capa Livraria Tel (55 21) 2507-9448 Fax (55 21) 3435-5128 [email protected] www.contracapa.com.br 12 Final 36.indd 328 16/12/2014 20:54:46 02 Oswaldo 36.indd 200 16/12/2014 19:34:17 Artigos Verdade e ideologia na psicanálise e no capitalismo Oswaldo França Neto “Novos sintomas” e declínio da função paterna: um exame crítico da questão Rosane Zétola Lustoza, Mauricio José d’Escragnolle Cardoso e Roberto Calazans A crítica como método no retorno a Freud Marta Regina de Leão D’Agord Um percurso sobre o falo na psicanálise: primazia, querela, significante e objeto a Ana Costa e Flavia Bonfim Considerações psicanalíticas sobre os jogos de esconder: do puti ao esconde-esconde Humberto Moacir de Oliveira e Jacques Fux Miragens perimetrais: sobre o erro como limite Paulo Sérgio de Souza Jr. O imaginário coletivo da equipe de enfermagem sobre a interrupção da gestação Miriam Tachibana, Fabiana Follador e Ambrosio, Daniel Beaune e Tânia Maria José Aiello Vaisberg Resenha Pela pluralidade da psicanálise Psicanálise entrevista, v.1, organizado por Mara Selaibe e Andrea Carvalho Ana Patitucci Dissertações e Teses Estudos em Teoria Psicanalítica VOLUME XVII NÚMERO 2 Julho / dezembro DE 2014 ISSN 1516-1498 Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica UFRJ Alguns casos, nem neuróticos, nem abertamente psicóticos Christian Hoffmann e Rosana Alves Costa Estudos em Teoria Psicanalítica Novas expressões da religiosidade: o que elas dizem sobre o sujeito em sociedade hoje Anna Carolina Lo Bianco e Natália Vidal v. XVII n. 2 ISSN 1516-1498 Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica Instituto de Psicologia UFRJ 9 771516 141211 Ágora capa vXVII n2.indd 1 16/12/2014 20:59:27