Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e

Transcrição

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Psicologia
Julia Cristina Tosto Leite
Psicose e escrita: ao pé da letra
Rio de Janeiro
2012
Julia Cristina Tosto Leite
Psicose e escrita: ao pé da letra
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
Pós-Graduação em Psicanálise do Instituto
Psicologia da Universidade do Estado do Rio
Janeiro como requisito parcial para obtenção
Título de Doutor em Psicanálise.
Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio Coutinho Jorge.
Rio de Janeiro
2012
de
de
de
do
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
L533
Leite, Julia Cristina Tosto.
Psicose e escrita : ao pé da letra / Julia Cristina Tosto Leite. – 2012.
203 f.
Orientador: Marco Antonio Coutinho Jorge.
Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Psicologia.
1. Psicoses – Teses. 2. Comunicação escrita – Teses. 3. Psicanálise e
literatura – Teses. I. Jorge, Marco Antonio Coutinho. II. Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. IV. Título.
es
CDU 616.89:82
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação.
___________________________________
Assinatura
_______________
Data
Julia Cristina Tosto Leite
Psicose e escrita: ao pé da letra
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
Pós-Graduação em Psicanálise do Instituto
Psicologia da Universidade do Estado do Rio
Janeiro como requisito parcial para obtenção
Título de Doutor em Psicanálise.
de
de
de
do
Aprovada em: 05 de dezembro de 2012.
Banca examinadora:
______________________________________________________________
Prof. Dr. Marco Antonio Coutinho Jorge (Orientador)
Orientador e Presidente da Banca
______________________________________________________________
Profª. Dra. Ana Maria Medeiros da Costa
Instituto de Psicologia – UERJ. Membro interno ao Programa
______________________________________________________________
Profa. Dra. Sonia Leite
Instituto de Psicologia – UERJ. Membro interno ao Programa
______________________________________________________________
Profa. Dra. Sonia Borges
Universidade Veiga de Almeida. Membro externo ao Programa
______________________________________________________________
Profa. Dra. Tania Rivera
Universidade Federal Fluminense. Membro externo ao Programa
Rio de Janeiro
2012
DEDICATÓRIA
Ao meu pai, Tancredo,
Contador também de histórias e estrelas.
A minha mãe, Ersília (in memorian),
que me transmitiu o gosto pelas letras.
A minha irmã, Lilia,
que trouxe a arte para nossas vidas.
Ao meu companheiro, Eduardo,
pela poesia de todos os dias.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Marco Antonio Coutinho Jorge, pela acolhida e incentivo ao
trabalho ao longo da elaboração do tema da tese e, principalmente, por seu rigor e
generosidade na transmissão da psicanálise.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise do Instituto de
Psicologia da UERJ, pela riqueza das discussões nas disciplinas cursadas, em especial a Ana
Costa, Doris Rinaldi e Heloisa Caldas que compartilham o interesse pelo tema da escrita.
A Sonia Borges, pelos preciosos comentários e contribuições, além da acolhida
afetuosa do trabalho na etapa de Qualificação.
A Ana Costa, pelo contato proporcionado com sua rica experiência com o tema em
seus desdobramentos teóricos, clínicos e de conexão com outros campos.
Aos colegas do Doutorado, principalmente a Mara Viana de Castro Sternick, cuja
amizade iniciada no Mestrado temperou as trocas sobre a construção e o percurso pelo tema
da tese.
Aos queridos amigos e colegas do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise, local onde
renovo continuamente minha ligação com a psicanálise.
A Vera Pollo, pelo acompanhamento ético na experiência do inconsciente e pelo apoio
tão importante para a realização do presente trabalho.
Aos escritores e aos poetas que me seduziram na aventura literária e, em especial,
aqueles que se dedicam a refletir sobre o enigmático processo da criação.
A Maria Tavares, pelo estímulo e pela confiança no trabalho clínico e de gestão do
hospital-dia e Centro de Atenção Diária do Instituto de Psiquiatria (IPUB) da UFRJ, além do
apoio à realização do presente trabalho.
Ao trabalho construído na Oficina de Escrita do hospital-dia e Centro de Atenção
Diária do Instituto de Psiquiatria (IPUB) da UFRJ, do qual me sinto parte, pelo rico
ensinamento clínico e de vida.
A Eliud Guerreiro, que plantou e cultivou a semente dessa oficina de escrita no
contexto do Instituto de Psiquiatria (IPUB) da UFRJ.
Aos amigos queridos, que acompanharam, com a inestimável importância de seu afeto,
o esforço de elaboração desse trabalho.
Pode-se, a partir daí, não repelir a priori que haja um benefício positivo da psicose: que tal
benefício se realize a expensas da adaptação social e mesmo biológica do sujeito, isto não tira
em nada de seu alcance humano em certas representações de origem mórbida. Este gosto pelo
escrito [...] – este gozo quase sensível que lhe é dado pelas palavras de sua língua – esse
caráter de necessidade pessoal que reveste para ela a obra literária, tudo isto se deve menos a
psicose que aos traços precedentes?
Lacan, 1932.
Nos resíduos das primeiras falas
Eu cisco meu verso
A partir do inominado
E do insignificante
É que eu canto
O som inaugural é tatibitate e vento
Um verso se revela tanto mais concreto quanto seja
Seu criador coisa adejante
(Coisa adejante, se infira, é o sujeito que se quebra
Até de encontro com uma palavra.)
Manoel de Barros
Trecho de “Sabiá com trevas” in Arranjos para assobio, 1980.
Como a desamparada pluma
subo ao reino da inconstância
para alojar a palavra inquieta.
Mia Couto
RESUMO
LEITE, Julia Cristina Tosto. Psicose e escrita: ao pé da letra. 2011. 203 f. Tese (Doutorado
em Psicanálise) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, rio de
Janeiro, 2012.
Esta tese aborda a clínica psicanalítica da psicose através de uma articulação entre
psicose e escrita, privilegiando a relação entre o “empuxo à escrita” e a valorização da letra
como característica da posição do sujeito na linguagem. Consideramos, inicialmente, que a
interseção entre inconsciente e pulsão, presente na obra freudiana e no ensino lacaniano,
constitui um ponto de trabalho conceitual importante para a discussão de nosso tema. Em
seguida, tomando a postulação do “inconsciente a céu aberto” na psicose, buscamos destacar
que Freud e Lacan estabelecem uma dimensão de criação na psicose correlativa a não
inscrição da função paterna. Entre as estratégias de estabilização da psicose, enfatizamos o
recurso da escrita como uma das implicações fundamentais desse ensinamento. Examinamos,
ainda, as relações entre loucura e literatura e os fenômenos de linguagem comuns na psicose
como referências importantes para a discussão das relações entre psicose e escrita a partir do
conceito lacaniano de letra. Finalmente, apresentamos nossa experiência em uma oficina de
escrita no campo da saúde mental, defendendo sua importância como dispositivo clínico de
acolhimento da peculiaridade estrutural da psicose.
Palavras-chave: Psicose. Escrita. Letra. Estabilização.
RÉSUMÉ
Cette thèse aborde la clinique psychanalytique de la psychose à travers d´une
articulation entre psychose et écriture, em privilégiant la relation entre “poussée à écrire” at la
valorisation de la lettre comme caractéristique de la posicion du sujet dans le linguagem.
Premièrement nous considérons que l´intersection entre l´inconscient et la pulsion, présent
dans l´oeuvre de Freud et dans l´enseignement de Lacan, constitue um point de travail
conceptuel important pour la discussion de notre thème . Puis, en prenant le postulat de
“l´inconscient à ciel ouvert” dans la psychose, nous chercherons souligner que Freud at Lacan
ont établi une dimension de la création dans la psychose corrélative à la non-inscription de la
fonction paternelle. Parmi les stratégies pour la stabilisation de la psychose, nous soulignons
l´utilisation de l´écriture comme l´une des conséquences fondamentales de cet enseignement.
Nous examinerons encore la relation entre folie et littérature et lês phénomènes de la
linguagem communs das la psychose comme références importantes à la discussion sur les
relations entre psychose et écriture à partir du concept lacanienne de lettre. Finalement, nous
présentons notre expérience dans un atelier d´écriture dans le champ de la santé mentale , em
préconisant son importance comme recour clinique d´accueil de la particularité structurale de
La psychose.
Mots-clés: Psychose. Écriture. Lettre. Stabilization.
ABSTRACT
This thesis approaches a psychoanalytic clinic of psychosis through a link between
psychosis and writing, privileging on the relationship between the “push to writing” and the
letter valorization which characteristic of position the subject in language. We consider
initially, the intersection between unconscious and instinct, present in freudian work and
lacanian teaching, is an important conceptual work point for the discussion of our theme. In
sequence, then taking the postulation of the “unconscious in open sky” in psychosis, we seek
to detach which Freud and Lacan establish a dimension of creation in psychosis correlative a
non-inscription of the paternal function. Among the strategies for stabilization of psychosis,
we empathizes the use of writing as one of the fundamental implications of this teaching. We
examined yet the relationship between madness and literature and common language
phenomena as important references to the discussion of the relationship between psychosis
and writing from the Lacan concept of letter. Finally, we presented our experience in a writing
workshop in the field of mental health, defending their importance as a clinical device of the
reception of structural peculiarity of psychosis.
Keywords: Psychosis. Writing. Letter. Stabilization.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 -
Reprodução do esquema baseado nos quatro conceitos fundamentais da
psicanálise.....................................................................................................
Figura 2 -
24
Quadro expositivo da associação entre representação de palavra e
representação de objeto.................................................................................
36
Figura 3 -
Diagrama psicológico de uma representação de palavra..............................
41
Figura 4 -
Esquema do signo linguístico de Saussure.................................................... 50
Figura 5 -
Esquema ilustrativo da operação lacaniana sobre o algorítimo saussureano
Figura 6 -
Esquema L..................................................................................................... 82
Quadro 1-
Estrutura evolutiva do delírio: psiquiatria e psicanálise...............................
55
94
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO……………………………………………………..…...
12
1
INCONSCIENTE: LINGUAGEM E PULSÃO……………..….…….
22
1.1
O inconsciente: “território estrangeiro interno”...................................
26
1.2
Inconsciente e representação...................................................................
33
1.3
Inconsciente e pulsão................................................................................
44
1.4
O inconsciente na teoria lacaniana: uma trama de linguagem............
47
1.4.1
A fala do sujeito e a linguagem do inconsciente........................................
49
1.4.2
A linguística saussureana: signo, significante e significado.......................
50
1.4.3
O inconsciente é estruturado como uma linguagem...................................
53
1.4.4
O significante em ação................................................................................
55
1.4.5
O sujeito do inconsciente............................................................................
56
2
INCONSCIENTE A CÉU ABERTO......................................................
58
2.1
Psicose: a hipótese o inconsciente e o campo da linguagem..................
58
2.2
Freud e a teorização das psicoses............................................................
66
2.2.1
A censura russa e a fratura do texto: a defesa nos preâmbulos da
teorização da psicose..................................................................................
2.2.2
67
A primeira tópica e o texto de Schreber: pai, estabilização e construção
da realidade.................................................................................................
70
2.2.3
A segunda tópica: a antítese entre o eu e o objeto......................................
74
2.3
Lacan: o inconsciente à flor da terra......................................................
76
2.3.1
Foraclusão do Nome-do-Pai.......................................................................
76
2.3.2
Na esquizofrenia, todo simbólico é real......................................................
80
2.3.3
A metáfora paterna.....................................................................................
82
2.4
Estratégias de estabilização nas psicoses................................................
87
2.4.1
Compensação imaginária............................................................................
90
2.4.2
Passagem ao ato..........................................................................................
92
2.4.3
Metáfora delirante.......................................................................................
93
2.4.4
Suplência perversa......................................................................................
96
2.4.5
Obra e escrita..............................................................................................
97
3
PSICOSE E ESCRITA.............................................................................
105
3.1
Literatura e loucura: raízes e flores........................................................
107
3.2
Antecedentes da investigação dos fenômenos de linguagem na
psiquiatria clássica....................................................................................
3.2.1
Ludwig Daniel Snell (1817-1892): os neologismos e a arquitetura
delirante.....................................................................................................
3.2.2
115
117
Eugenio Tanzi (1856-1934): o neologismo como sentinela perdida do
delírio..........................................................................................................
119
3.2.3
Louis Jules Ernest Séglas (1856-1939): neologismos ativos e passivos....
120
3.2.4
Richard von Krafft-Ebing (1840-1902): as disfrasias…………………….
122
3.2.5
Emil Kraepelin (1856-1926): as estereotipias............................................
123
3.2.6
Gaetan Gatian de Clérambault (1872-1934): o automatismo mental.........
125
3.2.7
Paul Guiraud (1882-1972): as formas verbais e a interpretação delirante..
126
3.2.8
Carl Pfersdorff: a linguagem automática e as interpretações filológicas....
128
3.3
Lacan e as relações entre escrita e psicose..............................................
128
3.4
A primazia da letra na psicose: do fenômeno à estrutura.....................
133
3.4.1
A letter, a litter: escritos em desvario.........................................................
133
3.4.2
Carta / letra..................................................................................................
137
3.4.3
Da letra, a instância no inconsciente: efeitos de frase................................
138
3.4.4
Letra e traço unário.....................................................................................
139
3.4.5
A holófrase estrutural do psicótico.............................................................
141
3.4.6
O real da letra: sua dimensão de litoral.......................................................
143
4
OFICINAS DE ESCRITA.......................................................................
146
4.1
Arte e loucura: entre interseções e intercessões....................................
147
4.2
A experiência do grupo francês: OULIPO – Oficinas de literatura
Potencial....................................................................................................
161
4.3
A psicose e o fio da escrita: criação e lugar no laço social....................
165
4.4
Uma oficina de escrita: relato de um trabalho.......................................
171
4.5
Letra e transferência: reflexões sobre a função de secretário na
oficina.........................................................................................................
176
4.6
Fragmentos da clínica: a emergência do sujeito na ponta da lápis......
178
4.6.1
Pedro e a escrita do delírio..........................................................................
179
4.6.2
Ângela: do risco no corpo ao traço da letra................................................
181
5
CONCLUSÃO...........................................................................................
185
BIBLIOGRAFIA......................................................................................
189
12
INTRODUÇÃO
[...] ali está alguém que penetrou, de maneira
mais profunda do que é dado ao comum dos
mortais, no próprio mecanismo do sistema
do inconsciente.
Lacan, 1955-56.
Nosso tema de trabalho no Doutorado nasceu no cotidiano da prática
psicanalítica em um serviço de atenção diária no campo da saúde mental. Ligado a um
hospital psiquiátrico universitário, esse serviço funciona como um espaço diferenciado
de cuidado intensivo e multiprofissional, voltado para a construção de caminhos e
arranjos de vida de sujeitos com diagnóstico de psicose. A partir da experiência de
condução de uma oficina de escrita – integrante do conjunto de práticas denominadas
“oficinas terapêuticas” –, elegemos investigar o “empuxo à escrita” em sua referência
estrutural à psicose como posição na linguagem. Maleval (2009a) confere um
importante alcance clínico ao empuxo à criação, como inerente à psicose, situando-o
como efeito da falta do recurso fálico para regular o gozo. O trabalho com a escrita, em
particular, é destacado pelo autor como um recurso importante na construção de linhas
de sustentação na psicose. Podemos pensar que a relação peculiar com o significante na
psicose implicaria, justamente, um esforço de encontrar uma função para a palavra de
modo a organizar o campo da linguagem, prevalecendo a importância de um recorte do
gozo que permita uma posição de sujeito.
Nossa hipótese é que o empuxo à escrita, expondo a dimensão de gozo da
linguagem da psicose, retoma também o processo de construção da ancoragem da
palavra em sua potência simbólica. Nessa dimensão de criação, o psicótico busca
remediar o campo da linguagem, tornando habitável o mundo, conforme o indica Freud.
O exercício da escrita, podendo destacar a dimensão de letra do significante, seria rico
em suas possibilidades de tratar a palavra que, tributária da foraclusão do Nome-do-Pai,
se impõe, anulando o sujeito, como coloca Laia (2008). A presente investigação propõe
um trabalho de articulação entre psicose e escrita pautado pela aproximação do
“empuxo à escrita” ao trabalho com a letra, justamente a dimensão real do significante,
buscando contribuir para evidenciar sua importância para a clínica da psicose.
As oficinas terapêuticas surgiram como dispositivos alternativos de trabalho
clínico e de busca de sustentação subjetiva no laço social para sujeitos em grave estado
de sofrimento psíquico a partir do movimento de reforma psiquiátrica e, portanto, do
13
questionamento da hegemonia do saber médico na lida com a loucura. Nossa proposta
na oficina de escrita, lastreada pela ética psicanalítica, tem destacado, como eixo de
trabalho clínico, a importância de acolher a determinação do sujeito na psicose e a
consideração das manifestações da estrutura primária do significante, que Lacan ressalta
com o conceito de letra. A ideia central foi problematizar a incidência e a função da
escrita como caminho peculiar de estabilização na psicose em sua perspectiva de
temperar o gozo mortífero da dimensão parasita da palavra e produzir efeitos de sujeito.
Sabemos que a escrita do psicótico nem sempre consegue sensibilizar e convidar
à leitura: os efeitos de ilegibilidade das produções não deixam de evidenciar as
consequências da dispersão do significante e da fixidez do sentido, respectivamente
referidas à esquizofrenia e à paranoia. Muitas vezes subvertendo a dimensão de
mensagem, a frequência da entrega à escrita na psicose, entretanto, se impõe ao bom
observador dentro e fora dos hospitais psiquiátricos. É bastante comum encontrarmos
verdadeiros “andarilhos escrevedores”, como denomina Manoel de Barros (apud
BRANCO, 1998, p. 189), que vagueiam pelas ruas ou pelas instituições, com papéis ou
cadernos cobertos de escrita, cujo gesto de escrever parece interminável e seus efeitos
para cada sujeito, diversificados. Há alguns que, mesmo chegando a integrar o universo
da literatura, indicam que a letra tem outra função na psicose, pois o psicótico não
habita o significante ao modo do recalcamento (HULAK, 2006). Pensamos que entre
criação e real há uma dinâmica fundamental da qual dão mostras alguns psicóticos e
artistas. O escritor Bernardo Carvalho (2010), dizendo de sua experiência de criação
literária, fala de um mal-estar que, não obstante, é também força propulsora.
Nesse percurso de pesquisa, então, entendemos que nossa discussão também está
do lado da especificidade da escrita, mais propriamente do mistério – em sua dimensão
atrativa e abissal – da criação literária que também intrigou a alguns poetas e escritores.
Como Duras reconhece, em seu conhecido texto “Escrever”, acerca dessa estranha
“intimidade com a tinta preta”: “em certos casos bem pessoais, só a escrita faz sentido”
(DURAS, 1994, p. 18). A escritora, em uma reflexão sobre o seu ofício, fala de uma
selvageria da escrita, distinta e inseparável da vida. Também é ela que ressalta o quanto
é difícil guiar a escrita na direção do leitor, na direção da leitura. Pensamos que o
trabalho de escrita, afeito ao indizível, convoca à prática. Abrindo uma porta ao
abandono, à solidão, também constrói uma possibilidade de “escrever com o
desespero”, portanto, de transmissão (DURAS, 1994, p. 27). No caso da psicose, ambas
14
as possibilidades seriam fundamentais. A escrita funcionaria como anteparo, justamente
nessa dobra da intimidade com a abertura para o laço social.
Assim, a consideração da literatura em sua dimensão de escrita e sua pertinência
como estrutura de borda – que, contornando o real, dele não se furta – acabou se
tornando um caminho de pesquisa bastante profícuo, seguindo a indicação de Freud
sobre a relação entre a criação artística e o psiquismo. Ao longo de nosso trabalho,
tomamos a conexão com o campo da arte pelo que esta pode ensinar sobre o litoral entre
o simbólico e o real e na sustentação da aposta em um trabalho psicanalítico consoante
com os desafios da clínica da psicose.
Nosso ponto de partida foi uma constatação trabalhada conceitualmente pela
psicanálise desde Freud e também conhecida pela psiquiatria clássica em sua dimensão
fenomênica: a importância fundamental dos fenômenos de linguagem e sua relação com
a estrutura da psicose. Encontramos, no contexto da oficina de escrita, um espaço de
trabalho que privilegia a dimensão de materialidade do significante, menos afeita a
precipitação do sentido e mais próxima dos sons, das formas e da musicalidade. As
“brincadeiras com as palavras”, como alguns denominam de forma sensível seu trabalho
de escrita, assim como as produções que, buscando construir um texto não deixam de
evidenciar as marcas de uma desorganização simbólica, mostram o esforço na direção
de seu abrigo, de possibilidades de subjetivação e de troca. É assim que a epígrafe dessa
introdução, remetendo à “linguagem de sabor particular” dos delirantes (LACAN, 195556/2002, p. 42), referida por Lacan à escrita de Schreber, nos leva ao próximo ponto no
desenvolvimento de nosso tema.
A ideia de que a escrita suporte, de maneira especial, o trabalho de composição
de uma trama delirante foi considerada por Freud e por Lacan no sentido em que ambos
puderam destacar os elementos de constituição do delírio a partir do seu registro escrito
e de um de seus desdobramentos, a publicação, em sua particularidade estrutural.
Assim, entendemos que situar o empuxo à escrita na psicose é privilegiar a
especificidade da determinação simbólica inconsciente na psicose e valorizar uma via
de trabalho de subjetivação que abre a perspectiva de sustentação no laço social, sendo
os impasses que resultam em exclusão, sobretudo, de natureza estrutural. Ao pé da letra,
subtítulo de nossa tese, destaca a importância de tomar a especificidade da linguagem na
psicose na direção da clínica e o desafio do psicanalista de sustentar, muitas vezes
juntamente com outros profissionais, a possibilidade de acolher uma dimensão que é de
diferença, mas também de trabalho.
15
Sabemos que, ao tomar contato com o livro de Daniel Paul Schreber, “Memórias
de um doente dos nervos”, Freud foi genial ao discernir esse caminho laborativo. Duas
indicações foram fundamentais para a clínica da psicose, sendo retomadas e
enriquecidas por Lacan. Em primeiro lugar, a consideração do delírio, não como
produto patológico, mas como tentativa de solução – nunca completa – a partir de
pontos de desligamento da relação com a realidade. Em segundo, a indicação do
funcionamento a céu aberto do inconsciente na psicose, a qual não deixa de estar ligada,
no caso de Schreber, ao lugar ocupado pela escrita. Seu uso da escrita tem relação com
sua posição na linguagem e seu trabalhoso esforço de ancoragem no simbólico,
indicação que Freud deixa ao acolher esse relato em sua dimensão de verdade. Freud
deixa-se conduzir pelo fio da escrita delirante de Schreber e Lacan destaca, com maior
amplitude, como a psicose revela os fundamentos da dependência do sujeito da ordem
simbólica.
Freud e Lacan estabelecem uma frutífera interlocução com poetas e escritores,
colocando-os como aliados valorosos no conhecimento do psiquismo. Para Freud, em
especial, essa aproximação não tem um caráter meramente especulativo, pois a alma
humana seria o domínio mais legítimo do escritor, precedendo a ciência (FREUD,
1907[1906]). Ele encontra no escritor o caminho para colocar em questão o saber
psiquiátrico, mas também diferencia a psicanálise da literatura, atrelando sua potência à
formalização de conceitos e hipóteses fundamentais e, principalmente, à construção de
uma clínica pautada pela escuta.
Se Freud propõe que o delírio constitui “uma tentativa de restabelecimento, um
processo de reconstrução”, através da qual o sujeito retoma a relação com as pessoas e
coisas do mundo (FREUD, 1911, p. 95), é importante lembrar que essa formulação
marca, de maneira fundamental, a diferença do interesse do psicanalista e do psiquiatra1
pelo campo da psicose. Aqui, encontramos um importante ponto de confluência em
nossa discussão: a relação entre delírio, fantasia e criação literária.
Segundo Jorge (2010), a postulação freudiana sobre o delírio é tributaria do
período de aprofundamento da teorização sobre a fantasia, que ocorre entre 1906 e
1911. Estabelecendo o papel de matriz do psiquismo da fantasia inconsciente a partir do
sintoma neurótico e dos sonhos, Freud também baseia um importante segmento dessa
1
“O interesse sentido pelo psiquiatra militante em formações delirantes como estas exaure-se,
geralmente, uma vez haja determinado o caráter dos produtos do delírio e feito uma estimativa de sua
influência sobre a conduta geral do paciente; em seu caso, maravilhar-se não é o inicio da compreensão”
(FREUD, 1911, p. 33).
16
discussão abordando o enigma da criação literária. Sua conhecida indicação de que toda
criança que brinca se comporta como o poeta, assim criando um mundo próprio, é
retomada em sua abordagem mais tardia da diferenciação entre neurose e psicose: a tese
sobre a perda da realidade coloca em jogo as relações entre desejo, criação e realidade.
Assim, longe de constituir uma hipótese simples sobre a psicose, trata-se da afirmação
da realidade como psíquica: “[...] o novo e fantástico mundo externo de uma psicose
tenta colocar-se no lugar da realidade externa, o da neurose, pelo contrário, está apto,
como o brinquedo das crianças, a ligar-se a um fragmento da realidade [...]” (FREUD,
1924b, p. 234).
Lacan retoma a riqueza da proposição freudiana sobre o delírio – este seria
“aplicado como um remendo no lugar em que originalmente uma fenda apareceu na
relação do eu com o mundo externo” (FREUD, 1924[1923]a, p. 191) – postulando que
algo de primordial quanto ao ser do sujeito não entrou na simbolização, exigindo um
esforço adicional de compor o mundo e nele se situar. Ressaltamos que, levando às
últimas consequências a lição freudiana sobre o inconsciente, Lacan destaca que é a
ordem simbólica que torna viável a vida do “sujeito estrambólico” que é o homem
(LACAN, 1955-56/2002, p. 114). A função do pai é ressaltada como ordem de palavra
– em sua força mediadora –, direção que Freud indica, justamente, com a busca de
Schreber em sua escrita. À força pulsional que se impõe na experiência de Schreber
corresponde, com detalhe, o esforço de recompor o pai como fundamento da ordem
simbólica e retomar algumas fronteiras que possibilitem sua circulação no laço social.
Na fase mais tardia de seu ensino, Lacan resgata, com ajuda da literatura de Joyce, a
dimensão de potência da função paterna no enlaçamento singular entre os três registros
– simbólico, imaginário e real.
Se considerarmos que, além da coincidência na aproximação da produção escrita
da psicose por Freud e Lacan, a discussão sobre a natureza do universo ficcional
também interessou aos escritores e poetas, veremos que as oficinas de escrita2, ainda
antes de serem inseridas no campo da saúde mental, surgem, exatamente, nas margens
do encontro entre arte e loucura. Lembremos que Hegel, em sua sistematização das
artes, coloca que a linguagem na criação poética: “não suporta a tirania do pensamento
comum, nem a lógica puramente racional ou as necessidades a que o pensamento
2
As oficinas de escrita, também chamadas oficinas de letras, presentes no campo da saúde mental,
surgem inspiradas nas OiLiPo, Ouvroir de Littérature Potentielle, oficinas de experimentação literária,
criadas na França. Esse tema será abordado no capítulo 4 da presente tese.
17
especulativo ou científico obedece” (HEGEL, 1997, p. 533). Freud fala em “realidade
poética”, buscando definir a potência do universo da criação literária em evitar – sem
contradizer – a dimensão do estranho, a qual antecipa a formulação da pulsão de morte
(FREUD, 1919, p. 311). Talvez, não seja mesmo a toa que a equação entre genialidade
(no sentido da criação) e loucura tenha sido, ao longo da história, formulada por
psiquiatras e literatos, ainda que muitas vezes, com demasiada facilidade. Tratando das
relações entre escrita e loucura, Plaza (1990) assinala que o caráter inefável da criação
literária quanto à dimensão de inspiração e talento suscitou, entre os interessados, desde
um respeito quase religioso até uma tentativa obstinada de explicação. Para a autora, são
os psicanalistas que têm o mérito da prudência nessa aproximação, estabelecendo
“pontos de fricção” entre os dois campos.
Quinet (2000) assinala que a prática artística é um recurso comum usado
espontaneamente pelo psicótico para simbolizar o real. O autor aponta que a arte pode
ser referida ao conceito de sublimação, como destino da pulsão sexual, mas também a
uma dimensão de gozo. Enquanto o artista faria seu trabalho se organizar em torno do
vazio de das Ding, o psicótico buscaria, através da arte, tratar o gozo invasivo, não
recortado pela fantasia. No início de seu ensino, Lacan relaciona a imposição de
trabalho contínuo e sempre precário de esvaziar o gozo a um simbólico ao qual falta
uma sustentação central, postulação que mantém sua fecundidade ao longo das
reformulações conceituais de seu ensino3.
Nossa indagação diz respeito à escrita em sua dimensão clínica no que esta pode
evidenciar de efeitos de sujeito e remeter ao esforço na direção do laço social. Assim,
consideramos algumas questões: Do que se trata quando a escrita se impõe? A escrita
pode tratar? A escrita é uma referência importante na clínica psicanalítica da psicose?
Alguns psiquiatras, escritores e poetas não hesitaram em reconhecer, às vezes de forma
ambivalente, uma relação entre loucura e criação literária. No universo literário, a
loucura, não raramente, foi encarada no sentido de remeter à fonte pura e viva da
inspiração, sendo apresentada como exaltação da autêntica criação (PLAZA, 1990).
Freud aceita o insondável da escrita literária, conferindo a alguns escritores, entretanto,
um estatuto especial: o de “criador original”, que lança mão de um “material novo”
(FREUD, 1908[1907], p. 154). Curiosamente, Maleval (1993-94) assinala que,
3
Na década de 50, é, graças à teorização da psicose, que Lacan estabelece a função central do pai como
fundamento da estruturação simbólica do sujeito. Sua argumentação aparece de forma mais completa em
“De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1957).
18
paralelamente à descoberta dos psicotrópicos, foi constatado um enfraquecimento da
potência criativa na psicose.
No início de nossa pesquisa, procuramos situar a relação entre metáfora, como
conhecida figura de estilo ligada à criação poética, e sua apropriação por Lacan. A
transformação da metáfora em conceito e a amplitude de seu alcance, com reflexos
sobre o ensino lacaniano mais tardio, evidenciam uma tentativa de circunscrever a
emergência do sujeito no campo da linguagem. Tomada como operação constitutiva do
inconsciente a partir do aporte da linguística, recebe um acento especial na elaboração
lacaniana da questão do pai, compondo a teorização da metáfora paterna. Assumindo,
para Lacan, o papel de fundamento da relação do sujeito com o simbólico, há que
assinalar que Freud também indica uma impossibilidade de adequação entre coisa e
palavra. Enfatizamos que essa antiga figura de linguagem, a metáfora – associada à
poesia e sistematizada por Aristóteles – tem uma origem grega e remete a meta (além) e
pher (levar para outro lugar), destacando a dimensão de nomeação em seu
distanciamento da imagem (REGO, 2006).
Além da metáfora paterna e da metáfora delirante, Lacan também abordou a
metáfora poética. Enquanto a metáfora delirante alude, em termos gerais, à construção
de uma ficção que tem como referência a metáfora paterna, a metáfora poética,
trabalhada no seminário dos anos 1964 e 1965, revela a céu aberto a operação
significante fundamental do inconsciente. E Lacan faz um assinalamento importante
para o nosso tema – ao discutir a interpretação analítica –: para além da significação, há
o significante – “não-senso, irredutível, traumático” ao qual o sujeito é, na verdade,
assujeitado. (LACAN, 1964/1985, p. 237). Estando referida a uma forma de operar a
ordem simbólica que estabelece uma distância do real pela vertente da criação, a
metáfora poética indica a força e a fraqueza do aparato da linguagem. Trata-se de uma
articulação significante que produz efeitos de verdade, mas também aponta algo de
irredutível. Maleval assinala, com grande pertinência, que a primazia conferida ao
simbólico no ensino lacaniano dos anos 50 proporcionou as condições de construção do
conceito de foraclusão do Nome-do-Pai. Marco fundamental na investigação da psicose,
essa teorização ganhou novos contornos a partir dos anos 70, com a conceituação do
objeto a, e a consideração de seus efeitos em termos da economia do gozo (MALEVAL,
2009a).
O conceito de letra, trabalhado ao longo do ensino de Lacan, é muito importante
na discussão da função econômica da linguagem na psicose. É o tratamento da palavra
19
como coisa, em sua referência ao processo primário, que leva Freud a indagar sobre o
mecanismo em jogo na psicose, diferenciando-o do recalque. Lacan liga a proeminência
da letra na psicose à ruptura da cadeia significante, consequência da foraclusão do
Nome-do-Pai. O trabalho com a palavra, em sua dimensão de letra, ou seja, para além
do plano da significação, é um caminho que une os poetas e os loucos, ainda que de
formas diversas, conforme aponta Branco (1998). Se o poeta pode tornar evidenciável a
dimensão do indizível, da palavra-coisa, ao psicótico esta se impõe.
Com sua arte, o poeta teria a possibilidade de entrar em contato com algo que
precede – logicamente – a ordenação simbólica do real (LACAN, 1955-56/2002, p. 97).
O “antesmente verbal: a despalavra”, conforme coloca magnificamente Manoel de
Barros (2010). O poeta direciona seu trabalho para o abismo em sua referência ao real,
mas desde a ponte do significante:
Sim, a poesia pra mim é a loucura das palavras, é o delírio verbal, a
ressonância das letras e o ilogismo. Sempre achei que atrás da voz dos
poetas moram crianças, bêbados e psicóticos. Sem eles a linguagem seria
mesmal. (BARROS apud BRANCO, 1998, p.187)
Vale lembrar que, além da referência etimológica de poiêsis como “criação”, há
outra tradição que liga a poesia às musas, que falariam através do poeta. Vem daí a
aproximação entre poeta e profeta e a valorização da inspiração (SUHAMY, 1988).
Supondo uma significação que domina o uso do significante, a metáfora é uma
referência rica para pensar a relação do sujeito com a linguagem na psicose. Não sendo
o simbólico da cadeia significante, gerador de ficções de significação (SOLER, 2007), a
psicose, como posição de linguagem, estaria marcada pelo comprometimento do
engendramento da significação.
Lacan não deixa de surpreender-se com o fato da linguagem ter seu ponto
máximo de eficácia, justamente, quando consegue dizer alguma coisa, dizendo outra
(LACAN, 1955-56/2002). Sua incursão pelo terreno da psicose possibilita especificar a
própria relação entre linguagem e inconsciente. No seminário sobre as psicoses, Lacan
confere um lugar de destaque ao tema da poesia que permite conceber o caráter central
da ordem simbólica como remetendo a uma falta. Reconhecendo que “não é a coisa no
mundo das mais fáceis de falar”, ele define a poesia como um uso da língua em que “a
significação arranca o significante de suas conexões lexicais” (LACAN, 1955-56/2002,
20
p. 249). A diferença é que, nessa discussão, o lugar do sujeito é colocado como virtude
metafórica, proposta desconhecida fora da psicanálise.
O questionamento lacaniano em relação à psicose vai de encontro à abertura que
Freud inaugura com o acolhimento da escrita de Schreber: “por que condenar de
antemão à caducidade o que se externa de um sujeito que se presume estar na ordem do
insensato, mas cujo testemunho é mais singular, e mesmo inteiramente original?”. A
maneira de sofrer a linguagem, revelada nos fenômenos elementares, e nomeada como
apassivação ou erotização, diz respeito a uma dimensão constitutiva do sujeito. Em
consequência:
Metodologicamente, estamos, portanto, no direito de aceitar o testemunho
do alienado em sua posição em relação à linguagem, e devemos tê-lo em
conta na análise de conjunto das relações do sujeito com a linguagem. É o
interesse maior e permanente do legado que Schreber nos fez de suas
memórias, coisa efetivamente memorável e digna de ser meditada.
(LACAN, 1955-56/ 2002, p. 238).
Buscando precisar as relações entre psicose e linguagem e o lugar da escrita
como recurso de estabilização, cotejamos a criação poética com a formação delirante
em termos de um trabalho com a letra. Recortamos um pequeno trecho de “A arte da
poesia: ensaios”, de Ezra Pound, que além de poeta e mestre da vanguarda poética,
também se dedicou a pensar a poesia: “A poesia é um centauro. A faculdade intelectiva
e aclaradora, que articula as palavras, deve se movimentar e saltar juntamente com as
faculdades energéticas, sensitivas e musicais.” (POUND, 1976, p. 70). Remetemos a
figura mitológica do centauro a uma conjugação especial entre simbólico e real e à
dimensão da letra, manejada com mestria pelos poetas e trabalho árduo na psicose.
Costa (2008, p. 54) lembra que as considerações sobre a letra – apoiadas na releitura de
Freud sobre o sonho enquanto rébus –, em sua referência o inconsciente, já apontam
para uma posição híbrida. Então, tomando o cuidado de diferenciar a posição na
linguagem na poesia e na psicose, exploramos seus “pontos de fricção” considerando
que, na própria diferenciação entre significante e letra, a dimensão afeita ao gozo da
linguagem vai se anunciando a partir da consideração dos avatares do sujeito na psicose.
A presente investigação está dividida em quatro capítulos, a saber:
No capítulo 1, intitulado “Inconsciente: linguagem e pulsão”, destacamos, a
partir da obra freudiana e do ensino lacaniano, a centralidade do conceito de
inconsciente na psicanálise em dois aspectos proeminentes para a discussão da
linguagem em sua referência estrutural e sobre a especificidade do “empuxo à escrita”
21
na psicose: a relação entre linguagem e representação e entre linguagem e pulsão.
Tomamos a elaboração lacaniana do conceito de significante e a discussão sobre a
determinação do sujeito na linguagem, sustentando que o campo da psicose foi uma via
privilegiada para a articulação entre inconsciente e simbólico, assim também como para
com sua vertente real.
No capítulo 2, intitulado “Inconsciente a céu aberto”, trabalhamos a teorização
freudiana e lacaniana das psicoses, buscando destacar que ambos estabelecem uma
dimensão de criação na psicose correlativa a não inscrição da função paterna. Esse
ensinamento
tem
duas
implicações
fundamentais,
anunciadas
por
Freud
e
problematizadas por Lacan: a estabilização em sua referência à estrutura e a dimensão
de sujeito como conferindo valor de verdade a esta. Essa orientação teórica marca a
clínica psicanalítica, diferenciando-a da abordagem da psicose pela psiquiatria.
Abordamos alguns caminhos de estabilização na psicose, privilegiando o recurso da
escrita.
No capítulo 3, “Psicose e escrita”, abordamos as relações entre loucura e
literatura a partir de suas possibilidades de composição e notas dissonantes. Retomamos
os transtornos de linguagem a partir de sua referência psiquiátrica, antecedente
importante na elaboração lacaniana dos mecanismos do inconsciente e da estrutura da
psicose. Abordamos, ainda, a peculiaridade do interesse de Lacan pelos chamados
“escritos inspirados” e, finalmente, a importância da letra como dimensão conceitual e
de trabalho subjetivo proeminente na psicose.
No capítulo 4, intitulado “Oficinas de escrita”, examinamos, inicialmente, as
relações entre arte e loucura e a experiência das Oficinas de Literatura Potencial
(OULIPO). Articulamos conceitualmente a função da escrita na psicose a partir do
relato da experiência com o dispositivo clínico denominado “oficina de escrita” em sua
referência à especificidade estrutural da psicose e à ética psicanalítica.
22
1 INCONSCIENTE: LINGUAGEM E PULSÃO
Esses métodos de funcionamento do
aparelho psíquico, que são normalmente
suprimidos nas horas de vigília, voltam a
tornar-se atuais na psicose e então revelam
sua incapacidade de satisfazer nossas
necessidades em relação ao mundo exterior.
Freud, 1900.
Duas obras principais, “A interpretação dos sonhos” e “Os três ensaios sobre a
sexualidade”, apresentam os fundamentos da psicanálise e marcam a peculiaridade da
contribuição de Freud para o mundo, assim como os pontos de impacto da resistência à
psicanálise: o inconsciente e a sexualidade. Ao estabelecer as bases conceituais do novo
campo, Freud gera hipóteses originais sobre a vida psíquica e, em um plano mais amplo,
sobre a cultura. Sendo uma clínica direcionada ao sujeito em sua verdade sempre
singular, a psicanálise também é um campo de investigação que se abre para a
teorização e o trabalho em suas múltiplas possibilidades de conexão, conforme afirma o
próprio Freud em um artigo intitulado “O interesse científico da psicanálise”, de 1913.
Ele defende, em particular, a legitimidade das hipóteses psicanalíticas no terreno das
psicoses:
Os discursos mais loucos e as mais estranhas posturas e atitudes adotadas
por esses pacientes tornam-se inteligíveis e podem ser encaixadas na cadeia
de seus processos mentais, se forem abordados com base em hipóteses
psicanalíticas (FREUD, 1913, p. 208).
Referidos aos processos inconscientes, os fenômenos da psicose são abordados,
a partir de Freud, de maneira inteiramente original em relação à tradição psiquiátrica. A
hipótese psicanalítica permite, quanto às psicoses, afirmar a natureza de seus processos
psicopatológicos como “atos psíquicos”. É principalmente o ensinamento extraído dos
sonhos que leva Freud a afirmar que este constitui o caminho para apreender o
mecanismo psíquico das neuroses e das psicoses. Nessa aproximação, encontramos uma
dupla tendência: a investigação freudiana ancora suas teses sobre a psicose, por um
lado, no modelo da neurose e, por outro, na busca de suas especificidades. Embora
resultando em perspectivas pouco favoráveis para a clínica psicanalítica da psicose, a
segunda tendência deixa em aberto questões instigantes e caminhos promissores.
23
Em seu ensino, Lacan revigora o cerne da descoberta freudiana do inconsciente,
marcando a importância de cada analista retomá-la em sua própria clínica e investigação
(JORGE & FERREIRA, 2005). Reabrindo de forma rigorosa a discussão teórica sobre o
campo das psicoses, ele também inaugura, de forma mais contundente, o debate sobre
suas perspectivas clínicas. E é na fronteira do inconsciente que ele situa o ponto de
apoio para situar a psicose como questão e sua clínica como desafio. Segundo coloca
Cabas (2009), com Lacan, a psicose nos obriga a levar em consideração os avatares da
condição de sujeito como função no campo do inconsciente.
Os dois domínios conceituais antes citados – os processos inconscientes e a
teoria das pulsões – ganham, com a investigação da psicose, importantes
redirecionamentos. Propomos tomar a discussão do seminário lacaniano sobre os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise 4 – inconsciente, repetição, transferência e pulsão
– mas a partir de um emparelhamento conceitual diverso, conforme a leitura de Jorge
(2010). Concordamos com o autor que assinala que esse recorte permite melhor
delimitar a diferenciação estrutural entre neurose e psicose. Jorge realiza um
emparelhamento conceitual original a partir de indicações de Freud5: primeiro,
inconsciente e pulsão, como dois conceitos fundamentais da teoria psicanalítica, e,
depois, transferência e repetição, como referidos à clínica psicanalítica. Nos dois níveis,
há uma região de interseção primordial, o real e o sintoma, respectivamente. A
proposição do autor auxilia a depreender os elementos essenciais dos conceitos,
conforme trabalhados por Lacan, assim como também permite explicitar a diferenciação
estrutural entre neurose e psicose. Sigamos um pouco mais o autor, destacando alguns
pontos de sua proposta.
4
O seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, proferido por Lacan em 1964, é um
marco no redirecionamento do destino teórico e político de seu ensino. Impedido de participar
diretamente da formação de analistas pela International Psychoanalitical Association (IPA), Lacan
propõe retomar os quatro principais conceitos freudianos. Destacando a subversão introduzida pela
psicanálise, faz também uma contribuição original. A partir da relevância que assume a teorização do
objeto a e sua influência na teoria do significante, Lacan propõe trabalhar, primeiramente, a articulação
entre inconsciente e repetição e, depois, entre transferência e pulsão. Miller defende que Lacan revitaliza,
principalmente, o conceito de inconsciente, articulando de diferentes maneiras através dos outros três
conceitos: repetição e cadeia significante, transferência e saber e, finalmente, pulsão e gozo (MILLER,
1997).
5
O autor postula uma homogeneidade entre inconsciente e pulsão a partir da colocação de Freud em uma
carta a Groddeck: “O inconsciente é certamente o verdadeiro intermediário entre o somático e o psíquico,
talvez seja o missing link tão procurado”. Ou seja, Freud aproxima os dois conceitos de modo a indicar
que o inconsciente é não-todo recalcado ou não-todo estruturado como linguagem. A partir do ensino
lacaniano, é possível precisar que o núcleo comum, o real, compareceria de modos diversos do lado do
inconsciente e no campo da sexualidade: como S( ) – falta de um significante no simbólico – e como
objeto a – falta no imaginário de um objeto de desejo –, respectivamente (JORGE, 2010, p. 62-70).
24
Figura 1 - Reprodução do esquema baseado nos quatro conceitos fundamentais da
psicanálise
TEORIA
INCONSCIENTE
Real
PULSÃO
a
Fantasia
$
CLÍNICA
TRANSFERÊNCIA
Sintoma
REPETIÇÃO
Fonte: JORGE, 2010, p. 67
Se tomarmos, essencialmente, o primeiro nível, inconsciente e pulsão, e sua
região de interseção, o real, fica mais fácil depreender, conforme indica o próprio autor,
o papel matricial da fantasia de velar o real – como o impossível de ser simbolizado – e
sua relação com o sintoma, dimensão acessível na clínica. É propriamente a dimensão
do real – que tem o autismo como seu centro – que constitui o essencial da psicose,
buscando o delírio reconstruir a armadura simbólica da fantasia. Ambos – fantasia e
delírio – seriam defesas contra o não-sentido do real: a primeira, efeito do recalque
originário, possibilita um simbólico dialetizável, enquanto o segundo implicaria um
comprometimento do simbólico que tenderia, então, a se imaginarizar ou a se realizar. O
segundo nível, de articulação entre transferência e repetição, acessível no trabalho
clínico, também permite, em nossa opinião, destacar os dois pontos de incidência da
polêmica da consideração do alcance do método psicanalítico para as psicoses. Não
obstante, há que se considerar que, tomada como efeito da determinação inconsciente e
de uma causalidade significante específica, a posição de trabalho do sujeito na psicose
traz questões importantes para a dimensão clínica da psicanálise.
Lembramos que, no seminário sobre os conceitos fundamentais, Lacan se
pergunta sobre as relações entre o sujeito e o real. Toma, em primeiro lugar, o sujeito
em sua determinação significante, asseverando que o que escapa a este é que sua sintaxe
está relacionada ao inconsciente, cujo núcleo comanda sua ação. E logo adiante, coloca
25
que “o real é, no sujeito, o maior cúmplice da pulsão” (LACAN, 1964/1985, p. 71).
Consideramos, então, que a dimensão de interseção entre inconsciente e pulsão constitui
um ponto de trabalho conceitual importante no terreno das psicoses com implicações
para o exercício da clínica.
Devemos reconhecer que o conceito de psicose que temos hoje deve muito a
Freud e à psicanálise, como tão bem coloca Menard (2008). Segundo o autor, a
principal ruptura freudiana em relação à tradição psiquiátrica consiste na reversão das
produções psicóticas – das mais discretas às mais exuberantes – do registro do déficit
para o de tentativa de cura. Desde o início de sua investigação, Freud afirma, em relação
à psicose, a ligação de seus fenômenos com a vida psíquica do sujeito. Também defende
uma radical diferença em relação ao mecanismo da neurose que começa a se delinear a
partir da hipótese de um inassimilável, sem inscrição no inconsciente, sobre o qual será
erigido o esforço de reparação. Menard (2008) relaciona esse esforço reconstrutivo ao
“empuxo à criação” que, constituiria, então, uma exigência lógica da estrutura. Aliás,
tomando o caso de Schreber como história clínica, Freud ressalta que, após a catástrofe
no seu mundo subjetivo, é com o “trabalho de seus delírios” que ele o reconstrói
(FREUD, 1911, p. 94).
No presente capítulo, propomos, a partir da obra freudiana e do ensino
lacaniano, destacar, no conceito de inconsciente, duas dimensões prevalentes para a
posterior discussão psicanalítica da estrutura da psicose e sobre a especificidade
estrutural do empuxo à escrita. De importância central para a delimitação do campo da
psicanálise, o conceito de inconsciente também é uma hipótese que ganhará contornos
específicos no terreno das psicoses. Ao consideramos que a lógica significante –
principal ensinamento extraído por Lacan da postulação freudiana do inconsciente –
proporciona as condições para a construção do conceito de foraclusão do Nome-do-Pai
e tem importantes consequências para a delimitação do campo do gozo (dimensão
enfatizada no ensino mais tardio de Lacan), é válido retomar a potência de discussão do
conceito de inconsciente para a clínica da psicose.
Assim, destacamos dois encaminhamentos teóricos e clínicos de Freud e Lacan
sobre o inconsciente e que constituem, segundo nossa experiência, operadores
relevantes na discussão sobre a diferenciação estrutural e a clínica da psicose: a
articulação do inconsciente com a representação e do inconsciente com a pulsão.
Em primeiro lugar, trata-se da relação entre inconsciente e representação,
articulação que confere originalidade à investigação freudiana e participa da construção
26
do conceito lacaniano de significante e da concepção de ordem simbólica. Lacan
assinala que, mesmo antes da formulação do inconsciente, Freud considera a
representação “como um fenômeno psíquico complexo, que, devido, à própria natureza
de sua constituição, é um nó, isto é, uma trama [...]” (BORGES, 2010, p. 59). A ideia de
representação referida ao inconsciente subverte as concepções de linguagem, percepção
e memória e instiga à reflexão acerca das relações entre inconsciente e constituição da
realidade, indicando um caminho importante para pensar a particularidade estrutural da
psicose e sua ligação com os processos primários do inconsciente. E, tanto na neurose
como na psicose, é na superfície dos fenômenos de linguagem que Freud e Lacan
encontram vias férteis para essa discussão.
Em segundo lugar, enfocamos a articulação entre inconsciente e pulsão. É
principalmente o conceito de fantasia, como efeito de operação simbólica – recalque
originário –, em seu papel matricial no aparelho psíquico, que indica a centralidade da
articulação entre inconsciente e pulsão, entre simbólico e real. Em sua ligação com o
princípio de prazer, a fantasia permite a sexualização do vetor mais radical da pulsão – a
pulsão de morte. Buscando a completude, a fantasia teria um polo ligado ao simbólico e
outro ao gozo (JORGE, 2010). Aliás, é, justamente, na dimensão de metáfora do delírio
que podemos encontrar uma tentativa mais vigorosa de simbolização na psicose.
Tomar o inconsciente como referência central na clínica da psicose – levando
em consideração suas vertentes, simbólica e real –, é também nos deixar conduzir, pelo
que ensinam os psicóticos com suas criações acerca da condição de sujeito na
radicalidade de seu enraizamento. A clínica da psicose apresenta seus maiores desafios,
justamente, ligados ao funcionamento a céu aberto do inconsciente e da realização da
“pulsão a chão aberto”, expressão proposta por Jorge em comunicação pessoal.
1.1 O inconsciente: “território estrangeiro interno”
Ao longo da segunda série de “conferências introdutórias sobre psicanálise”
publicadas em 1933 – as quais nunca foram proferidas, mas escritas –, Freud anuncia
que mais uma vez vai tomar seu lugar na sala de conferências 6, desta vez por um
6
Além da idade (76 anos) que o liberara da obrigação de fazer conferências na Universidade de Viena,
uma de suas muitas cirurgias o impedira de falar em público. Entretanto, sua posição na escrita é de
orador e de uma transmissão que se constrói em uma relação de generosidade e de troca com o
27
artifício de imaginação. Percorrendo novamente temas psicanalíticos centrais de
maneira crítica – o que implica uma abertura para ampliações e reformulações –
convida o leitor a tomar a psicanálise como um “um campo de trabalho científico” que
não propõe “dar uma aparência de que as coisas sejam simples, completas, acabadas”,
nem camuflar problemas ou negar lacunas e incertezas (FREUD, 1933[1932], p. 16).
Destacamos que, na conferência XXXI, ao retomar a trajetória da construção do
campo psicanalítico – dos sintomas até os processos inconscientes e às pulsões sexuais
–, Freud, denomina, de forma inspirada, o inconsciente como “território estrangeiro
interno” (FREUD, 1933[1932]). Lacan articula essa formulação freudiana situando o
inconsciente como “lugar do Outro” (LACAN, 1960/1998). Afirmando que há um
“isso fala dele”, destaca a causa significante do sujeito, ou seja, que é pelas leis da
linguagem que advém o sujeito do desejo, ali onde ele também é impelido a saber.
Devemos lembrar que, se o campo do Outro é definido como barrado,
incompleto, inconsistente, justamente, pela vigência de um significante que remete a
uma falta – um ponto inapreensível como o umbigo dos sonhos – que permite o
encadeamento significante, a psicose coloca em cena uma relação peculiar com esse
campo que implica em tomá-lo como polo absoluto de saber. Ainda assim, tomando a
hipótese do inconsciente como operante também no campo da psicose, é possível
apostar na dimensão de sujeito, justamente, como posição de trabalho inconsciente.
Conforme indica Quinet, na neurose, o sujeito desfia a cadeia associativa de seu
desejo que, então, emerge como interrogação (QUINET, 2000). Freud encontra, no
sintoma, assim como em outras formações do inconsciente, a articulação do desejo com
a Lei e a sua manifestação como impossível. É a experiência psicanalítica que põe em
relevo a função da fala no que esta comporta uma significação, conforme Lacan o
enuncia em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (LACAN,
1953/1998). A emergência pontual do sujeito em sua referência ao inconsciente
encontra eco na valorização dos sonhos por Freud: “quando o material inconsciente abre
seu caminho para o eu, ele traz consigo suas próprias formas de funcionamento”
(FREUD, 1940[1938], p. 193). Situando o campo da psicanálise, Freud defende a via da
ciência, posto que “procura levar em conta nossa dependência do mundo externo real”
(FREUD, 1933[1932], p. 212). A peculiaridade de sua descoberta – o inconsciente –,
entretanto, impõe interrogações cruciais para o método científico, baseado em
interlocutor. Os dois primeiros grupos de conferências foram proferidos na Clínica Psiquiátrica da
Universidade, para alunos de varias faculdades, durante o inverno dos anos de 1915-16 e 1916-17.
28
observação e experimentação. Escreve Freud: “[...] nossa ciência tem por assunto esse
próprio aparelho [psíquico]” (FREUD, 1940[1938], p. 184). Ou seja, sustentando-se em
uma dimensão de ruptura, opõe-se ao caminho indicado pela consciência.
A psicose e os chamados “estados psicóticos” trazem a tona, assim como o
método psicanalítico, “um material que ordinariamente é inconsciente” (FREUD,
1940[1938], p. 186). Em uma curiosa observação, Freud coloca que a resistência à
conscientização estaria ligada à condição de “normalidade”, a qual se desfaz, com o
rebaixamento da censura e a produção dos sonhos. O inconsciente é, então, uma
referência central para apreender os mecanismos subjacentes à fenomenologia da
psicose, mas também uma peça importante na discussão sobre a natureza de nossa
relação com o mundo e a consideração do estatuto da própria realidade. Essa
investigação é bastante laboriosa e Freud dela não se exime até o fim da vida.
No capítulo “O aparelho psíquico e o mundo externo”, de “Esboço de
Psicanálise” – trabalho que é deixado incompleto em função de sua morte –, ele coloca
que “a realidade sempre permanecerá incognoscível” (FREUD, 1940[1938], p. 225).
Mesmo o esforço do homem de aumentar a eficiência de seus órgãos do sentido, através
de auxílios artificiais, não atingiria o resultado esperado. Freud postula o processo
primário, referência central do inconsciente, como regido por leis diversas daquelas
familiares na vida desperta: “conquistadores invasores governam um país conquistado,
não segundo o sistema jurídico que lá encontram em vigor, mas de acordo com o seu
próprio” (FREUD, 1940[1938], p. 193).
Com a teoria do significante, Lacan retoma, de forma exemplar, a descoberta
freudiana do inconsciente. Destaca, aliás, a função criadora da linguagem, colocando
que: “o arado do significante sulca no real o significado, literalmente o evoca, faz
surgir, maneja-o, engendra-o” (LACAN, 1957-58/1999, p. 33). Aquilo que, no real, não
passa de “pura opacidade” ganha profundidade com a função primordial do significante.
Veremos como a dimensão de criação do inconsciente é evidenciada por sua estrutura
de encadeamento, mas também pelo que há de não-sentido no significante
As relações entre inconsciente e linguagem podem ser encontradas nas teses
freudianas de 1900 sobre os sonhos, mas também nas suas primeiras hipóteses de
trabalho sobre a clínica com as histéricas, inclusive na consideração das manifestações
delirantes na histeria 7. Mesmo reconhecendo a falta de acolhida de suas asserções entre
7
Freud relaciona os sintomas histéricos às ideias recalcadas de modo peculiar: “Se atentarmos
cuidadosamente para o fato de que são as ideias antitéticas aflitivas (inibidas e rechaçadas pela
29
psiquiatras e filósofos, Freud continua enfatizando a importância e a extensão da
descoberta do inconsciente nos anos posteriores à publicação de seu livro dos sonhos.
No prefácio de 1911, assinala a pertinência das relações entre o inconsciente e o
material apresentado na ficção, nos mitos, no uso linguístico e no folclore, assim como
também nas doenças mentais (FREUD, 1900a).
Em sua teorização dos sonhos como expressão do inconsciente, Freud se
interessa pela peculiaridade dos processos oníricos, particularmente sobre mudança da
“expressão insípida e abstrata do pensamento onírico” para uma “expressão pictórica”
(FREUD, 1900b, p.323). Arrivé (1994) aponta que Freud parece tendencioso a construir
uma semiótica do inconsciente, isto é, ao modo do uso coletivo da língua, posto que o
símbolo é considerado, em geral, como já existente na língua8. Para Freud, o que se
destaca na cena do sonho – sua apresentação pictórica –, são as chamadas formas
verbais que participam da urdidura própria ao inconsciente. Estas estariam presentes no
sonho por se apoiarem na propriedade de ambiguidade das palavras (FREUD, 1901).
Freud argumenta, no capítulo sobre a representabilidade, na sua obra sobre os
sonhos, que os pensamentos oníricos – aliviados da constrição do pensamento da vida
de vigília – são remodelados em sua forma verbal com uma preferência pelo que facilite
a representação visual. Valoriza as vias associativas verbais particulares a cada
sonhador, mas não deixa de considerar que os sonhos, como as neuroses, percorrem
“trilhas por onde passou toda a humanidade nas épocas mais remotas da civilização –
trilhas de cuja continuada existência em nossos dias, sob o mais diáfano dos véus,
encontram-se provas nos usos linguísticos [...]” (FREUD, 1900b, p. 329). Assim, ao
mesmo tempo, que Freud toma os elementos simbólicos como “relíquias” e marco de
consciência normal) que se impõem num primeiro plano, no momento da disposição para a histeria, e têm
acesso à inervação somática, então teremos a solução para compreender também a peculiaridade dos
delírios dos ataques histéricos. Não é mera coincidência que o delírio histérico das monjas durante as
epidemias da Idade Média tenha assumido a forma de blasfêmias violentas e linguagem erótica
desenfreada [...]” (FREUD, 1892-93, p. 145).
8
Partindo do itinerário de Laplanche e Pontalis sobre o tema, no Vocabulário da Psicanálise (1979),
Arrivé organiza seu percurso enumerando três empregos do termo símbolo na obra freudiana: símbolo
mnêmico, símbolo onírico e o símbolo como parte do processo de simbolização. Detendo-nos no segundo
tipo, acompanhamos o autor em sua observação de que a consideração do simbolismo, ao modo da língua,
toma um grande espaço na obra de 1900, inclusive com inúmeros acréscimos posteriores, embora não
apareça no seu índice como um assunto específico. Nas “Conferências Introdutórias sobre psicanálise”, de
Freud, publicadas em 1916-17, há um capítulo intitulado “Simbolismo nos sonhos” (ARRIVÉ, 1994, p.
32-53).
30
uma identidade conceitual e linguística de épocas remotas, ligando-os a uma exigência
de decifração, ele defende que o intérprete deve ser o próprio sonhador 9.
O simbolismo onírico é um caminho que conduz Freud a explorar as relações do
inconsciente com a linguagem. Sua concepção sobre o inconsciente é gerada a partir de
uma hipótese ligada à própria origem da linguagem 10. Em 1913, ao explorar o diálogo
entre a psicanálise e a filologia, como ciência da linguagem, Freud aproxima a
linguagem onírica de um “sistema altamente arcaico de expressão” (FREUD, 1913, p.
211). Ressalta, então, que a comparação mais apropriada para a forma de expressão do
inconsciente seria um antigo sistema de escrita, a escrita pictográfica, cuja característica
é, justamente, colocar em cheque a possibilidade de compreensão imediata.
Costa (2006) lembra que, em sua busca de deslindar a particularidade da
linguagem onírica, Freud aproxima o sonho de um texto, cujo conteúdo manifesto é
uma elaboração do conteúdo latente, referido ao inconsciente. Não é mero acaso que ele
compare as operações inconscientes encontradas nas produções oníricas à composição
poética: “[os pensamentos do sonho] são simbolicamente representados por meio de
símiles e metáforas, em imagens semelhantes às do discurso poético” (FREUD, 1901, p.
590). Com a referência poética, fica evidenciada a característica da linguagem
inconsciente de preservar um rastro da imagem a qual vem substituir, assim como a
dimensão enigmática de sua mensagem. Já em 1900, Freud destaca a engenhosidade da
construção da linguagem pictórica dos sonhos através da relação da poesia com a
linguagem:
Sem dúvida, o melhor poema será aquele em que deixarmos de notar a
intenção de encontrar uma rima, em que os dois pensamentos, por influência
mútua, tiverem escolhido desde o início uma expressão verbal que permita
surgir uma rima com apenas um ligeiro ajustamento subsequente (FREUD,
S. 1900b, p. 324).
9
Freud critica Stekel, que também foi para ele uma grande influência sobre o assunto: “Esse autor, que
talvez tenha prejudicado a psicanálise tanto quanto a beneficiou, trouxe à baila um grande numero de
traduções insuspeitadas dos símbolos” (FREUD, 1900b, p. 332).
10
Arrivé assinala que, no final do século XIX, na Alemanha, há um impressionante número de artigos e
livros sobre o tema. Ao longo de seu trabalho teórico, Freud utiliza a reflexão de dois “pesquisadores da
linguagem”, Hans Sperber e Carl Abel. No livro sobre os sonhos, aparecem referências às teses do
primeiro, mas como acréscimos posteriores a sua primeira edição. Para uma análise mais aprofundada
dessa influência, sugerimos a consulta ao capítulo 4, intitulado “Freud e seus linguistas: Sperber, Abel,
Schreber” in Linguística e psicanálise: Freud, Saussure, Hjelmslev, Lacan e os Outros, 1994.
31
Freud postula que, sendo a linguagem constituída, em sua origem, por uma gama
de palavras que possuíam um significado pictórico e concreto, esse seria o caminho
novamente percorrido pelos sonhos (FREUD, 1900b). Assim, esse método pictórico de
apresentação nos sonhos – em seu contraste “de nosso sóbrio método cotidiano de
expressão” – seria um fator importante para o caráter primordialmente confuso e
absurdo do sonho. Essa colocação sobre o processo primário tem incidência sobre a
perspectiva psicanalítica da relação do psicótico com a linguagem.
Vejamos outra tese de interesse para o nosso tema, encontrada em um dos
capítulos de “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (1905). Na aprendizagem do
vocabulário da língua materna, Freud lembra que a criança reúne palavras sem a
preocupação com seu sentido a fim de obter o efeito prazeroso de ritmo ou de rima.
Ainda que, com o tempo, as combinações significativas de palavras encubram o
chamado prazer no nonsense, resta sempre uma profunda e duradoura rebelião contra a
compulsão da lógica e da realidade. Esse movimento de resgate da dimensão de nãosentido da linguagem – nunca totalmente soterrada – aparece em situações especiais,
como a língua secreta de jogos juvenis, mas também em algumas afecções mentais.
Aliás, Freud acrescenta que a natureza essencial do chiste seria o “jogo com as
palavras”, o qual exibiria um núcleo original de prazer 11. Ele usa uma curiosa expressão
para designar a origem do jogo com o material verbal, utilizado nos chistes: “antiga
pátria”, fonte infantil de prazer.
Devemos lembrar que, através da complexa maquinaria da construção dos
sonhos, Freud encontra a referência do psiquismo ao desejo inconsciente, sexual e
indestrutível. O material a disposição dos sonhos, coloca Freud, “é oriundo da infância”
(FREUD, 1900a, p. 52), remetendo o desejo a uma estruturação edípica e à castração em
sua referência paterna. Rudge (2003) destaca que Freud trabalhou sobre sua teorização
dos sonhos nos anos subsequentes a 1900, retomando os sonhos traumáticos na
reformulação de sua teoria pulsional – na qual postula a pulsão de morte. Segundo a
autora, o próprio sonho inaugural, o sonho de Irma
12
, já revela a insuficiência desse
aporte inicial dos sonhos através de uma cena onírica que aponta um mais além. De
11
A título de esclarecimento, lembramos que, em uma Nota de Rodapé, referindo-se à dimensão nonsense
dos chistes, Freud coloca que há uma “dúplice raiz do prazer nos chistes – o jogo com as palavras e o
jogo com os pensamentos”. Enquanto o invólucro de prazer dos chistes estaria na suspensão das inibições,
seu núcleo de prazer seria constituído pelo “jogo com as palavras” (FREUD, 1905b, p. 161).
12
Freud elege um sonho pessoal, conhecido como sonho de Irma, para assentar a formulação do sonho
como realização de desejo, tese extraída do método de interpretação dos sonhos.
32
forma interessante, segundo a autora, também o sonho traumático não desmente a idéia
do sonho como realização de desejo, portanto, ligado ao princípio de prazer, mas divide
com essa função o propósito de ligação do processo primário para restabelecer o
principio de prazer, sendo, portanto, ao mesmo tempo, proteção e indicação do reino da
pulsão de morte.
Lacan relança a discussão do inconsciente, justamente, tomando sua
convergência com os processos de simbolização, formulando, na década de 50, a
hipótese do inconsciente estruturado como uma linguagem: “Os símbolos efetivamente
envolvem a vida do homem numa rede tão total que conjugam, antes que ele venha ao
mundo, aqueles que irão gerá-lo em `carne e osso´ [...]” (LACAN, 1953, p. 280).
Afirmada a primazia da linguagem na constituição do sujeito, Lacan aproxima,
sob o manto da causalidade significante, neurose e psicose. Não obstante, reconhece, do
lado da psicose, uma “liberdade negativa”: a fala coloca o sujeito em uma linguagem
sem dialética. Ou seja, a fecundidade significante torna-se aí petrificada, indicação que
a psiquiatria clássica reconhece como estereotipia (HULAK, 2006). A especificidade da
causalidade significante na psicose é formulada através do conceito de foraclusão do
Nome-do-Pai. Em convergência com a hipótese freudiana, Lacan postula a estrutura
linguageira da psicose a partir de sua dimensão de “fenômeno” (SOLER, 2007).
A discussão sobre as relações entre fala e linguagem, entre sujeito e desejo, é
enriquecida pelo questionamento trazido pela clínica da psicose, repercutindo também
sobre esta: “se a aplicação do método analítico não liberasse mais que uma leitura de
ordem simbólica, ela se mostraria incapaz de dar conta da distinção dos dois campos”
(LACAN, 1955-56/2002, p. 19).
Assim, como colocamos anteriormente, propomos mapear o solo conceitual da
hipótese do inconsciente a partir de duas referências centrais: a dimensão de linguagem,
com destaque para a problemática da representação, e a dimensão pulsional, sendo que
ambas comparecem na obra freudiana. Do ensino lacaniano, destacamos a lógica
significante em suas relações com o campo do Outro e a configuração da ordem
simbólica, a qual apresenta um importante redirecionamento conceitual após a
conceituação do objeto a. Entendemos que a clínica da psicose ensina sobre a
importância e o funcionamento da ordem simbólica, bem como sobre sua precariedade
fundamental. Às voltas com os “retornos do real” que acometem o psicótico (SOLER,
2007), o comparecimento do sujeito exige do analista uma escuta apurada, cujas
33
perspectivas foram em grande parte abertas por Freud e consolidadas por Lacan, assim
como a indicação de seus impasses e desafios.
1.2 Inconsciente e representação
Pela palavra que já é uma presença feita de
ausência, a ausência mesma vem a se
nomear em um momento original cuja
perpétua recriação o talento de Freud captou
na brincadeira da criança.
Lacan, 1953.
Em 1915, Freud continua defendendo de contestações a hipótese do
inconsciente, afirmando-a como “necessária e legítima” (FREUD, 1915) ao trabalho
psicanalítico. Tomando como inadequada a equivalência entre psíquico e consciente,
enfatiza que os processos inconscientes conferem uma inteligibilidade tanto aos atos
cotidianos como aos sintomas em sua referência clínica. Freud assevera que não se trata
considerar diferentes níveis da consciência para estabelecer o estatuto do inconsciente:
“ele não é uma franja ou margem da consciência, assim como não é o lugar do caótico e
do misterioso” (GARCIA-ROZA, 1995, p. 209). Se o inconsciente pensa, como coloca
Freud em 1900 – referência ao pensamento onírico latente –, o acesso a este não é
direto, mas se dá a partir de seus efeitos.
Lacan coloca que Freud fica siderado pelos fenômenos do inconsciente, mais
precisamente pelo modo como estes aparecem: como tropeço, desfalecimento,
rachadura. A exploração freudiana, ainda segundo Lacan, encontra o inconsciente a
partir dessa estranha temporalidade, sempre como um achado. Essa dimensão de
descontinuidade, a qual faz o inconsciente se manifestar como vacilação, também será
valorizada no ensino lacaniano (LACAN, 1964/1985).
Já no seminário dos anos de 1959-60, sobre a ética da psicanálise, Lacan faz
uma preciosa observação. Ao tomar o universo humano como estruturado em palavras,
trata-se, sobretudo, de definir o que é esse processo simbólico para além da psicologia,
portanto, a natureza da representação no inconsciente. E Lacan sugere que a extrema
afinidade do esquizofrênico com as palavras deve ser considerada a partir da leitura
esclarecedora do texto freudiano sobre o recalque. Se o recalque opera na relação do
sujeito com o significante, “a posição particular do esquizofrênico coloca-nos, de uma
34
maneira mais aguda do que em qualquer outra forma neurótica, na presença do
problema da representação” (LACAN, 1959-60/1997, p. 60).
A concepção de representação (Vorstellung), tributária da filosofia dos séculos
XVIII e XIX (GARCIA-ROSA, 1995), ganha uma perspectiva original na psicanálise
desde Freud. Sua teorização também tem influência em seu posicionamento no campo
da neurologia, preparando o terreno para a subversão introduzida pela psicanálise.
O saber clássico da filosofia, segundo Foucault, tem dois momentos principais
de consideração da relação entre palavras e coisas: enquanto, na idade clássica, a função
da linguagem restringe-se a de representar o mundo, a partir do século XX, com a
filosofia kantiana, o privilégio recai sobre o sujeito como centro da função simbólica e a
linguagem passa a ser o correlato da limitação da possibilidade de conhecer o mundo
(RUDGE, 1998). No campo da campo da neurologia, as investigações colocam em jogo
categorias como percepção, impressão, processos associativos e linguagem, ideias que
ganham a atenção de Freud no Projeto, em 1895, na aurora da gênese da conceituação
freudiana do inconsciente. No que se refere à elaboração freudiana sobre as relações
entre inconsciente e representação, é importante ressaltar que, enquanto na obra sobre os
sonhos, a representação inconsciente é articulada como desejo, no artigo
metapsicológico sobre o inconsciente, o conceito de pulsão ganha maior relevância,
tema que desenvolveremos, mais adiante, ainda no presente capítulo.
O texto de 1915, sobre o inconsciente, retoma o desenvolvimento de um antigo
trabalho de Freud, intitulado “Para uma concepção das afasias: um estudo crítico”.
Nesse artigo, de 1891, Freud apresenta o delineamento inicial de um “aparelho de
linguagem” e os conceitos de representação de palavra (Wortvorstellung) e
representação de objeto (Objektvorstellung)
13
. No texto original, suas hipóteses são
construídas para abordar as afasias, perturbações da linguagem que incidem sobre a
emissão e a expressão, assim como sobre a recepção e compreensão verbal. É no
trabalho sobre o inconsciente que Freud ressalta o papel metapsicológico da linguagem.
Fazemos um breve recorte sobre as principais ideias que influenciaram Freud em suas
formulações sobre a articulação entre linguagem e representação.
Podemos dizer, em linhas gerais, que, no campo da filosofia, Freud encontra
uma interlocução importante para conceber o psiquismo e problematizar sua dimensão
13
O termo Objektvorstellung (representação de objeto) do texto de 1891 é substituído por
Sachevorstellung (representação de coisa), em 1915, em “O inconsciente” (GARCIA-ROZA, 1995, p.
242). Retomaremos esse ponto mais adiante. Devemos lembrar que a partícula de não implica em que o
objeto e a palavra sejam representados, mas sim tomados como representação.
35
de registro. Já no terreno da neurologia, sobressai o solo para destacar a importância da
linguagem. Assim, retomamos, de forma sintética, as ideias dos pensadores Stuart Mill
e Brentano e dos pesquisadores da neurologia, Wernicke e Hughlings Jackson,
buscando, sobretudo, indicar a posição freudiana.
Freud assinala que “a filosofia nos diz que uma representação de objeto consiste
simplesmente nisso [...] ao enumerarmos as impressões sensoriais que recebemos de um
objeto, pressupomos a possibilidade de haver grande número de outras [...]” (FREUD,
1915/1891, p. 244). Stuart Mill, pensador inglês da tradição empirista, é sua referência
explícita no texto. Defendendo a doutrina associacionista, propõe a hipótese de uma
“química mental”, enfatizando que o produto de um complexo de ideias não se reduz a
sua soma. É interessante destacar que esse pensador concebe uma teoria psicológica
acerca do mundo externo que destaca a capacidade da mente humana de ter expectativas
para além das sensações. A referência ao filosofo Brentano é uma indicação preciosa
sobre a relação entre representação de objeto e representação de palavra, envolvendo a
produção de significação. Freud acompanhou seu curso durante seus estudos de
medicina na Universidade de Viena. Brentano usa o termo Vorstellung (representação)
para se referir ao ato de representar, embora não despreze o objeto representado. A
significação de uma representação advém, então, da relação entre representações, da
qual se infere que a linguagem não estaria relacionada a um objeto externo (GARCIAROZA, 2008, p. 50-59). Depreendemos que o aporte da filosofia aponta para uma
importante discussão presente na obra freudiana e melhor desenvolvida no ensino
lacaniano. Trata-se da diferenciação entre realidade psíquica e real e, em especial, da
constituição da primeira e sua relação com a estruturação do desejo e da fantasia.
No campo da neurologia, Freud refuta a teoria que apoia a compreensão das
afasias em uma hipótese de lesões cerebrais localizadas14. Wernicke defende que
haveria um centro sensorial, relacionado à capacidade de compreensão da linguagem,
correlato da conhecida teoria de Broca sobre um centro motor, relacionado à capacidade
de fala. Freud critica, mais propriamente, a proposta de uma “afasia de condução” que
seria um distúrbio da via de associação entre os dois centros. Enquanto nesse enfoque a
linguagem é tida como um processo fisiológico ligado a determinadas áreas do cérebro,
14
A afasia é, em um sentido mais amplo, um distúrbio de memória e, em sentido mais estrito, uma
perturbação da linguagem. Aos diferentes centros cerebrais, um centro motor (área de Broca) e um centro
sensorial (área de Wernicke), correspondem dois tipos de afasia: na afasia sensorial há perda da
compreensão e na afasia motora, perda da capacidade de pronunciar as palavras. Cf. Nota de Rodapé de
Garcia-Roza (2008, p. 19).
36
Freud propõe uma hipótese funcional não referida à deficiência de uma parte isolada.
Também refuta a ideia de representação – no sentido de registro – como efeito mecânico
da estimulação fisiológica. É nesse ponto, em especial, que a investigação freudiana
recebe a influência da contribuição de Hughlings Jackson: além de recusar a concepção
do psíquico como epifenômeno orgânico, ele defende que a linguagem tem níveis de
complexidade crescente, sendo que, nas afasias, a perda se iniciaria pelos níveis mais
refinados. O encaminhamento da discussão freudiana vai articulando, então, um
“território de linguagem” que compreende, sobretudo, um campo de associações e
transferências (GARCIA-ROZA, 2008).
Em sua formulação sobre a linguagem, Freud concebe que a significação é efeito
da associação entre representação de palavra e representação de objeto, enquanto o
acesso à consciência seria realizado pela associação de uma representação de objeto a
uma representação de palavra – surgindo, portanto, como operações simétricas e
inversas, conforme aponta Simanke (2009). Propomos uma breve apresentação
esquemática dessa elaboração:
Figura 2 – Quadro expositivo da associação entre representação de palavra e
representação de objeto
significação
representação de palavra
representação de objeto
consciência
Assim, na concepção freudiana de representação, está implicada uma
consideração inédita de relações entre percepção e memória. Referida ao inconsciente, a
noção de representação é desviada de sua concepção filosófica de referência estável a
um objeto. A memória, por sua vez, sendo relacionada à noção de traços mnêmicos –
não simplesmente em um sentido empírico –, mantém relações mais complexas com a
percepção, sendo fundadora do psiquismo (BORGES, 2010).
Antes de voltarmos à discussão da proposição freudiana do aparelho de
linguagem, vejamos como se articula, a partir da teoria dos sonhos, a discussão sobre as
relações entre linguagem e representação. Ao percorrermos a obra freudiana
“Interpretação de sonhos”, podemos dizer que, se ele confere uma importância à
37
presença do simbolismo nos sonhos – em sua referência à cultura –, também questiona
de forma inovadora sua referência a um código fixo, como o caso dos “logogramas” da
taquigrafia (FREUD, 1900b). A precisão de suas observações oriundas do trabalho
clínico resulta, como sabemos, na delimitação das leis do inconsciente.
Freud delineia sua descoberta das estruturas oníricas em uma perspectiva
inovadora: no sonho, não se trataria de representações destituídas de sentido ou
absurdas, nem de uma parcela adormecida de pensamentos, mas, fundamentalmente de
formações que integram uma atividade psíquica complexa ligada ao desejo. Destacamos
que ele menciona, inclusive, o poeta e filósofo Friedrich Schiller, o qual liga a criação
poética com o relaxamento da vigilância nos portais da razão (FREUD, 1900a). Freud
aproxima o postulado do sonho como via regia do inconsciente de uma curiosa
expressão do poeta: o sonho seria a obra de um “artista pensante”. As palavras de
Schiller o auxiliam a precisar a hipótese do inconsciente, por um lado, como o que
escapa às cadeias associativas da vida de vigília, e, por outro, como ampliando a
concepção da vida psíquica. O que ele enfatiza é a característica do pensamento
desperto de excluir, por sua estranheza, os problemas colocados pelos sonhos,
principalmente o enigma das “imagens de representação” (FREUD, 1901).
Defendendo ser o sonho uma “realização de um desejo” (FREUD, 1900a),
também aponta para uma das peculiaridades da maneira de trabalhar do inconsciente: a
forma notável e enigmática da realização do desejo nos sonhos, nomeada como
“distorção onírica”. Além de reconhecer o poder de uma força de censura, também
concebe uma exigência de abertura à consciência. É interessante pontuar que Freud
lança mão da figura do escritor “precavido”, que, mais que o orador, em algumas
situações, precisa atenuar e distorcer sua opinião para expressá-la. Consideramos
fundamental, nesse ponto, retomar a discussão sobre a relação íntima do sonho com a
“expressão linguística”, conforme formula Freud.
O rigor investigativo de Freud no levantamento da literatura sobre os sonhos,
mas principalmente a característica de sua transmissão, permite-nos saber que é da
tradição oriental
15
que ele retira duas importantes referências para compor o método
psicanalítico. Em primeiro lugar, um dos princípios da arte interpretativa oriental seria a
consideração da colaboração do sonhador no relato do contexto do sonho e, em
15
Freud destaca a obra de Artemidorus, pensador do final da Antiguidade, que leva em conta, não
somente o conteúdo, mas também a situação do sonhador como um elemento onírico de importância.
Atualmente, uma tradução integral desse livro é acessível em língua portuguesa: Sobre a interpretação
dos sonhos, Artemidoro de Daldis (2009).
38
segundo, a interpretação dos elementos oníricos seria baseada na comparação entre sons
e na semelhança entre palavras.
Freud sugere que são, justamente, os sonhos desconexos e confusos que
conduziram ao chamado método de “decifração”. Diferente do método “simbólico” que
substitui o conteúdo do sonho por outro em harmonia com o original, o método de
decifração propõe tomar o sonho como se fosse uma formação geológica, portanto,
composta por diferentes “fragmentos de rocha”. Freud ancora sua proposta de
abordagem científica dos sonhos em um método popular praticado no mundo grecoromano e que toma cada elemento do sonho como signo sem ter um código fixo para
decifração. O trabalho realizado pelo sonho implicaria, não em criar ditos, mas em lidar
com fragmentos pronunciados ou ouvidos de maneira peculiar de modo a produzir com
estes “uma nova versão”, muitas vezes, abandonando o sentido mais comum das
palavras. A situação dos ditos no sonho é nomeada como “estrutura de brecha”,
indicando que os blocos de vários tipos de rocha seriam consolidados por elementos
intermediários de ligação (FREUD, 1900b, p. 392).
Ao diferenciar o conteúdo manifesto dos pensamentos do sonho, Freud os toma
como duas versões do mesmo assunto em linguagens diferentes. A investigação
psicanalítica implica, então, em destacar uma peculiaridade: o sonho pode ser
considerado como uma escrita pictográfica cujos caracteres e leis sintáticas devem ser
levados em conta para se alcançar os processos em jogo na operação de transformação
dos pensamentos oníricos no seu conteúdo manifesto. São dois os processos em
operação no inconsciente, a condensação e o deslocamento.
É interessante lembrar que Freud compara a condensação à técnica das “fotos de
família” de Francis Galton: os pontos em comum entre as diferentes figuras sobressaem
a partir da superposição de diversas chapas fotográficas. No sonho, esse processo incide
sobre as formas verbais a maneira da criação poética: são usados elementos
intermediários, altamente engenhosos, entre palavra e imagem, as chamadas
representações compositas (FREUD, 1901). O cuidado, conforme lembra Freud, está
em diferenciar tais estruturas da categoria dos objetos de nossa percepção no mundo de
vigília. Assim, é importante ressaltar que a principal característica da operação de
condensação não é a mera abreviação, mas uma complexa trama na qual os “pontos
nodais”
sobressaem
advindos
de
vias
associativas
proeminentes
que
os
sobredeterminam (FREUD, 1900a). Ou seja, os elementos que estabelecem tais ligações
aproximam diferentes ideias como se tivessem igual peso.
39
Deslocamento é, segundo Freud, a operação inconsciente que consiste na
transposição de intensidades psíquicas de pontos centrais nos sonhos para elementos
oníricos que não merecem tal ênfase. Também a semelhança com a poesia é sublinhada,
mas em termos de seu potencial de representar ideias produzindo imagens (FREUD,
1901). A transformação em uma expressão pictórica de uma forma verbal, associada por
um tipo especial do mecanismo do deslocamento, é o gancho tomado por ele para
considerar a questão da representabilidade. Basicamente, ele considera a relação
simbólica assim estabelecida como relíquia de uma identidade linguística (FREUD,
1900b).
Retomemos a elaboração onírica, referida à transformação de pensamentos
latentes do sonho em imagens visuais. Freud não deixa de levar em consideração a
própria natureza do pensamento – expresso em palavras. A origem do pensamento está
ligada à vinculação de palavras com imagens mnêmicas de impressões dos sentidos.
(FREUD, 1917[1916-17]). É, aliás, o papel das palavras na articulação do pulsional que
será destacado por Freud.
No processo primário prevalece, então, a mobilidade e a busca da descarga
pulsional, enquanto, no processo secundário, ocorre um processo de ligação de
representações que resistem ao extravio das intensidades pulsionais. O pensamento,
referido ao processo secundário, seria uma tentativa de se liberar da força compulsiva
das pulsões ligadas ao principio de prazer. Segundo Freud, o processo secundário
adotaria uma “identidade de pensamento” – uma via indireta, pois dirigida à lembrança
– com a vivência de satisfação, contrapondo-se à busca de uma “identidade perceptiva”
(FREUD, 1900b).
Freud ressalta a importância de uma nova série de características que regulam,
então, os processos de pensamento. Estes carecem de qualidade a não ser pela dimensão
prazerosa ou desprazerosa que o acompanham e que deve ser mantida dentro de limites.
São lembranças verbais “cujos resíduos de qualidade são suficientes para atrair para si a
atenção da consciência e para dotar o processo de pensar de um novo investimento
móvel” (FREUD, 1900b, p. 558). Para Freud, esse novo processo de regulação seria a
marca da diferença entre animais e homens: o caráter mais abstrato da linguagem
implicaria um afastamento das qualidades de prazer e desprazer, ligadas ao corpo.
Essa ideia tem relação com um curioso achado de Freud. Ele encontra, na
literatura médica, uma aproximação entre sonho e loucura, o mesmo ocorrendo na obra
de alguns filósofos, como Kant e Schopenhauer, entre outros. Sabemos que ele propõe
40
que a investigação dos sonhos possa trazer mais luz ao conhecimento insatisfatório no
campo da psicose (FREUD, 1900a). A condição de afastamento do “mundo externo
real”, característica desses estados patológicos, estando presente de forma temporária
em todo sonhador, implicaria, para Freud, em uma modificação na distribuição da
energia psíquica: o impulso inconsciente, pressionando no sentido da satisfação, é
compelido a se dirigir à percepção, reunindo-se a imagens sensoriais e cenas visuais.
Assim, Freud destaca o que é peculiar na linguagem, tanto nos processos oníricos como
nas psicoses:
Todos os instrumentos linguísticos pelos quais expressamos as relações mais
sutis dos pensamentos [...] são eliminados porque não há meio de
representá-los; assim como uma linguagem primitiva sem nenhuma
gramática, expressa-se apenas a matéria prima do pensamento, e os termos
abstratos são substituídos pelos termos concretos que estão em sua base.
Depois disso, o que resta certamente pode parecer desconexo (FREUD,
1933[1932], p. 32).
Freud assevera que as “formas verbais absurdas” ou “malformações verbais” que
aparecem nos sonhos são semelhantes àquelas da paranoia (também da histeria e da
obsessão), das brincadeiras linguísticas das crianças e daqueles que fazem paródias.
Assim, fazendo sobressair a matéria prima do pensamento, a psicose se destacaria por
estar ligada a um esforço defensivo (FREUD, 1900a).
A consideração sobre a representabilidade no sonho não deixa de retomar a
discussão sobre a relação entre representações de palavra e representações de objeto.
Segundo Rudge, o que se confirma é a importância da linguagem no pensamento:
Se a predominância visual do sonho encontra uma analogia nas
representações de objeto, que tem no elemento visual seu aspecto
primordial, todas as relações existentes em nosso pensamento verbal ou na
fala já estão implicadas em sua constituição, no que Freud isola como
pensamento do sonho (RUDGE, 1998, p. 76).
Outra observação interessante da autora diz respeito às relações entre linguagem
e fantasia, evidenciadas na teoria dos sonhos e retomada em 1915, na abordagem
metapsicológica do inconsciente. Os sonhos revelam o papel essencial da linguagem na
regulação do princípio de prazer em sua referência à fantasia, mas também sugerem a
Freud um além do princípio de prazer. Rudge (1998) sublinha que a própria
predominância da imagem no sonho já opera em estrita e complexa interação com a
linguagem em sua dimensão de anteparo de um mais além.
41
Retornando ao texto metapsicológico sobre o inconsciente, propomos considerar
mais diretamente o apêndice intitulado “Palavras e coisas” que apresenta um trecho
extenso do texto de 1891. Freud situa a palavra como “unidade básica da função da
fala”, conceituando-a como uma “representação complexa, que vem a ser uma
combinação de elementos auditivos, visuais e cinestésicos” (FREUD, 1915). Postula
que a palavra tem quatro elementos: imagem sonora, imagem visual da letra (leitura),
imagem motora da fala e imagem motora da escrita. Se a ideia de imagem parece aludir
ao registro de uma marca, a complexidade da combinação desses elementos varia
conforme as várias atividades ligadas à palavra: aprendizagem da fala, aprendizagem de
outros idiomas, soletramento, leitura e, finalmente, a escrita. A palavra, então, advém de
um complexo processo de associação de imagens, enquanto sua significação depende de
sua ligação com uma representação de objeto – no caso dos substantivos.
Reproduzimos, a seguir, o esquema apresentado por Freud em 1891.
Figura 3 - Diagrama psicológico de uma representação de palavra
ASSOCIAÇÕES DE OBJETO
ACÚSTICAS
TÁTEIS
REPRESENTAÇÃO DE PALAVRA
VISUAIS
IMAGEM DA LEITURA
imagem visual da letra
IMAGEM SONORA
IMAGEM DA ESCRITA
imagem motora da escrita
IMAGEM MOTORA
imagem motora da fala
Fonte: FREUD, 1915, p. 244
A “representação de palavra” é formada, durante a aprendizagem da fala, a partir
da associação entre uma “imagem sonora” e um “sentido de inervação da palavra”
(sensações ligadas aos órgãos da fala). Assim, ao falar, além do som, há a aquisição de
uma “imagem motora”. É assim justificado que, no desenvolvimento da fala, a criança
associe as palavras pelo som. A imagem sonora é o ponto de contato da representação
42
de palavra com a representação de objeto, que é, por sua vez, um complexo de
associações, formado por impressões visuais, táteis, sonoras, etc. Do lado da
representação de objeto, são as impressões visuais que permitem, prioritariamente, a
ligação com as representações de palavra.
Freud explora dois aspectos importantes, a partir da ênfase na aprendizagem – da
fala, da leitura, da escrita –, a saber, a importância da atividade e a ideia de impressões
que se inscrevem a partir do elemento sonoro, mas também de sua dimensão cinestésica.
Rudge assinala que esta última – a via de inervação da fala – será retomada no Projeto e
na própria teorização dos sonhos como via de descarga e posteriormente de ação
específica, o que implica o papel do adulto cuidador, como uma máquina simbólica que
dá o impulso inicial (RUDGE, 1998). Temos, então, a linguagem, em sua dimensão
simbólica, referida tanto ao seu elemento significante quanto em seu enraizamento no
corpo. Destacamos que a escrita, em especial, colocaria em jogo essa dinâmica.
A ênfase na aprendizagem também nos conduz a outra indicação freudiana de
interesse para o nosso tema: as perturbações afásicas revelam um aparelho de linguagem
compelido a voltar às modalidades primárias de associação (FREUD, 1915). É preciso
lembrar que Freud indica que a associação entre representação de objeto e representação
de palavra, possibilitando a significação, depende de um processo que nunca está
estabelecido em definitivo (RUDGE, 1998), constituindo, inclusive, o ponto mais
vulnerável da operação da linguagem, conforme Freud evidencia. Pois, ele designa
como afasia assimbólica, justamente, a perturbação da associação entre a representação
de palavra e a representação de objeto. Veremos que a priorização da representação de
palavra (não em uma associação com a representação de objeto), mas com o papel de
uma representação de objeto, será central na caracterização das relações entre psicose e
linguagem e da caracterização do esforço de recuperação que dominam o quadro clínico
da esquizofrenia. Os esquizofrênicos contentam-se com palavras em vez de coisas, diz
Freud (FREUD, 1915).
Outra observação de Freud acerca da caracterização das representações de
palavra é importante para o nosso tema de pesquisa. Constituindo um sistema fechado,
as representações de palavra têm em sua dimensão motora uma importante ligação com
a consciência e o pensamento, emprestando-lhe realidade. A linguagem, em sua
dimensão de fala, permite a moderação pulsional.
Em 1915, Freud substitui a expressão representação de objeto por representação
de coisa (Sachvorstllung). Segundo Rudge, a “representação de coisa” é uma
43
terminologia tributária de uma abordagem propriamente psicanalítica da linguagem.
Para a autora, a diferenciação corresponde às relações entre pulsão e linguagem, ainda
que no texto de 1915 ocorra uma indeterminação em seu uso. Na segunda tópica, a ideia
da representação de palavra como mediadora para que o pensamento se torne consciente
é mantida, enquanto as representações de coisa correspondem aos traços mnêmicos. As
palavras permitiriam ou não a integração das representações de coisa no processo
secundário, destituindo-as do cunho de compulsão do processo primário. Podemos
destacar, então, a relação entre o processo secundário e o pensamento verbal nada tem
de simples, pois as palavras podem ser tratadas como coisas, assim indicam os sonhos e
as psicoses. (RUDGE, 1998).
Retomando o início desse trecho de nossa caminhada – inconsciente e
representação –, lembremos que Lacan propõe uma aproximação do território da
psicose, justamente, a partir do reconhecimento da importância da palavra na
estruturação do sintoma neurótico, conforme assinala em seu seminário sobre as
psicoses. Pretende, então, destacar o mecanismo constituinte da psicose em sua
diferenciação do recalcamento, asseverando, porém que a psicose não é como a neurose
“um puro e simples fato de linguagem”. A psicose coloca em questão a própria
estruturação do mundo pela linguagem, como revela o relato de Schreber, e não
simplesmente em sua dimensão imaginária. Tomar o recalcamento como estruturado
como fenômeno de linguagem é também trazer a discussão acerca da simbolização em
sua referência à Lei edípica. Como coloca Lacan: “Essa Lei fundamental é
simplesmente uma Lei de simbolização. É o que o Édipo quer dizer” (LACAN, 195556/2002, p. 100). O compromisso simbolizante da neurose, que opera com
substituições, não ocorre na psicose, implicando em que o sujeito, no início de sua
psicose, não tenha a sua disposição a função mediadora do simbólico. Não obstante, no
interior da dissolução imaginária, “subsiste a exigência do significante” (LACAN,
1955-56/2002, p. 104). Resgatamos a proposição de uma foraclusão (Verwerfung)
primitiva que Lacan contrapõe à afirmação (Bejahung) primitiva, postulada por Freud
para dar conta do que se passa na articulação simbólica primordial e na emergência
essencial do sujeito. Trata-se, segundo Lacan, de destacar a categoria do real, pois o que
se evidência na psicose é o abismo da linguagem. O real como impossível é temperado
pela linguagem na neurose, constituindo o sintoma, dialeto do sujeito.
Para finalizar, tomamos a referência freudiana ao jogo do fort-da, mencionado
na epígrafe que destacamos no início, para sublinhar que, segundo Lacan, a descoberta
44
freudiana diz respeito às relações do sujeito com a ordem simbólica (LACAN,
1953/1998). Freud capta no jogo da criança – quando a mãe sai, a criança atira
repetidamente um carretel e o recolhe em seguida, verbalizando a expressão fort-da –
que o que escapa ao princípio de prazer, ou seja, a perda do objeto aponta para a
importância da simbolização, mas também para um traumático irredutível.
O que está em jogo no brinquedo infantil é a construção de um conceito ou, mais
propriamente dizendo, ato e objeto engendrando símbolos (signos) com valor de dons.
“É porque houve a produção de símbolos com valor de dons que haverá o ingresso no
mundo das palavras, onde será criado o mundo das coisas” (FERREIRA, 2002, p. 118).
1.3 Inconsciente e pulsão
(...) a sexualidade se distribui de um lado a
outro de nossa borda como limiar do
inconsciente (...).
Lacan, 1960.
A indagação sobre as relações entre inconsciente e pulsão comporta dois
caminhos que buscaremos seguir em seus traçados centrais. Tomamos, principalmente,
a dimensão sexual do campo pulsional, evidenciada com a clínica das neuroses, mas que
ganha novos contornos a partir da formulação do conceito de narcisismo, em 1914. O
trabalho sobre o relato de Schreber, em 1911, impõe a Freud um redimensionamento na
discussão do funcionamento do aparato psíquico que abarca a constituição do eu e da
realidade em sua ligação com o princípio de prazer. A aproximação do campo da
psicose também vai contribuir para trazer à tona a face mais radical da pulsão, a pulsão
de morte. Se no chamado “ciclo da fantasia” da teorização freudiana (JORGE, 2010)
encontramos a pulsão ligada a uma busca de satisfação submetida ao principio de
prazer, jaz sob esse movimento uma busca mais radical, que vai além do objeto sexual,
dirigindo-se à das Ding. A fantasia, como construção simbólico-imaginária, constituiria,
justamente, um filtro que opera protegendo o sujeito da pulsão de morte. O trabalho do
delírio indicaria, sobretudo, o papel central da fantasia e a constituição da realidade em
seu fundamento psíquico.
Notemos que, embora o tema da sexualidade compareça pouco na teorização do
inconsciente em 1900, as referências que articulam o inconsciente e o corpo já são
45
problematizadas por Freud. Ele menciona, em vários trechos de sua magistral obra, um
autor cujas teses ele considera a “tentativa mais original e ampla” de explicar os sonhos
como uma atividade especial do psiquismo e capaz de livre expansão no estado de sono.
Trata-se de Scherner16, cujas teses ele entra em contato através do trabalho de Volkelt17.
Freud valoriza o talento e o interesse de Scherner por assuntos da mente tão obscuros
quanto os sonhos, mas deixa transparecer certa crítica em relação ao estilo
“extravagante” do mesmo, considerando-o pouco chegado às regras da ciência.
Comecemos com um pequeno trecho que anuncia o destaque dado por Freud:
Ocorre que todas as explicações dos sonhos apresentadas na literatura sobre
o assunto – com a possível exceção das de Scherner, que serão abordadas
posteriormente – deixam uma grande lacuna quando se trata de atribuir uma
origem às imagens de representação que constituem o material característico
dos sonhos (FREUD, 1900a, p. 72).
Scherner considera que a imaginação, liberta do poder controlador do
pensamento, assume a soberania, emprestando características peculiares ao sonho.
Através do ganho de maleabilidade, agilidade e versatilidade, opera de modo produtivo
– e não apenas reprodutivo – criando imagens plásticas. Destituída do poder conceitual
da linguagem, a imaginação onírica exerceria sua “atividade simbolizadora” a maneira
de um trabalho artístico. Entretanto, Freud contesta a ideia do autor de criar uma espécie
de “livro dos sonhos” para ajudar na interpretação e a ausência de uma explicação sobre
o papel da atividade de fantasiar durante o sonho para o psiquismo.
Freud reconhece, na hipótese fantástica do pesquisador, um “cerne de verdade”.
Destaca, em particular, que ele defende que a imaginação onírica retrata as coisas, não
como um todo, mas de forma rústica, através de seus atributos, além de envolver, em
suas representações plásticas, um “eu onírico”, produzindo, então, uma cena. A “força
propulsora dos sonhos” seria a antiga maneira de ver e sentir as coisas. Freud defende
de modo mais preciso que é “a atividade inconsciente da fantasia [que] tem grande
participação na formação dos pensamentos oníricos” (FREUD, 1900b, p. 537).
16
Em 1861, Karl Albert Scherner, filósofo da Universidade de Breslau (na Áustria), publicou um estudo
intitulado “A vida dos sonhos”. Defendia que a atividade psíquica durante o sonho se expressava por
meio de simbolismo. Além disso, aumentada a sensibilidade às sensações corporais durante o sono, a
maior parte das imagens do sonho estaria relacionada ao corpo.
17
Em 1875, o filósofo alemão Johanes Immanuel Volkelt escreve um trabalho intitulado “A fantasia
onírica” (Die Traum-Phantasie). Postula que haveria uma sabedoria nos sonhos, defendendo que a
resposta aos enigmas do mundo, para os quais os filósofos procuravam respostas, estaria na vida onírica.
46
Há outro achado de Scherner que Freud recolhe: a simbolização onírica é
exercida sobre o corpo. Ele reconhece, na frequência de representações do corpo
referida por Scherner, a presença do simbolismo sexual encontrado em sua clínica
(FREUD, 1900a). Sua hipótese, formulada de forma categórica, afirma o valor da
pesquisa psicanalítica. A teoria freudiana dos sonhos propõe provar que “[...] os sonhos
possuem um valor próprio como atos psíquicos, que os desejos são o motivo de sua
construção e que as experiências do dia anterior fornecem o material imediato para seu
conteúdo” (FREUD, 1900a, p. 229). Freud encontra nesse autor um estilo que considera
afeito à abordagem do inconsciente – “não é fácil evitar ser fantasioso” (FREUD,
1900a, p. 111) –, mas defende que suas contribuições devem ser retomadas a partir da
teorização do inconsciente, com base nos sonhos e sintomas neuróticos.
Sabemos que a minúcia e o rigor com que Freud percorre e discute os elementos
teóricos e exemplos recolhidos na literatura sobre os sonhos estão apoiados em seu
trabalho anterior com a psicologia das neuroses e que culmina na elaboração da
primeira tópica e na hipótese do inconsciente como estrutura na qual se ancora a
atividade psíquica comum. Ele acolhe opiniões dos mais diversos autores em função da
complexidade de sua tese, mas refuta a ideia do sonho como um processo sem sentido e
de origem somática (FREUD, 1900a).
Desde 1895, a referência primeira para estabelecer o sonho como realização de
desejo está nos processos primários que acompanham as experiências de satisfação
(FREUD, 1950[1895]). Em 1900, Freud encara os desejos provenientes do infantil
como “força propulsora indispensável” para a formação dos sonhos (FREUD, 1900b, p.
535). Já havia estabelecido, a partir de sua teoria das psiconeuroses, como fato
indiscutível e invariável, que as moções de desejo sexuais originadas da infância e que
foram recalcadas são passíveis de atuarem na formação dos sintomas. Podemos dizer
que a postulação das leis do inconsciente a partir dos sonhos (e de outros eventos
psíquicos da vida cotidiana) – como referenciadas à “estrutura normal do aparelho
anímico” (FREUD, 1900b, p. 550) –, preparam o terreno para uma mudança na
discussão das relações entre inconsciente e sexualidade e para a formulação do conceito
de pulsão.
Não esqueçamos que Freud propõe a denominação “metapsicologia” ao esforço
teórico de conceber o inconsciente em suas três dimensões: dinâmica, tópica e
econômica. No artigo metapsicológico “O inconsciente”, Freud coloca que “o núcleo do
Ics consiste representantes pulsionais que procuram descarregar sua energia; isto é,
47
consiste em impulsos carregados de desejo” (FREUD, 1915, p. 213). Obedecendo ao
principio de prazer, portanto, integrando o processo primário, as representações
inconscientes, em sua face sexual, são acessíveis, como vimos nos sonhos e nas
formações do inconsciente, justamente, por participarem da axiomática da fantasia.
1.4 O inconsciente na teoria lacaniana: uma trama de linguagem 18
O inconsciente é, no fundo dele, estruturado,
tramado, encadeado, tecido de linguagem.
Lacan, 1955-56.
Lacan afirma que o pensamento de Freud não se define numa direção dogmática
e definitiva, propondo, em seu ensino, tomá-lo como um movimento que comporta
aberturas. Trabalhando para depurar o ensinamento freudiano e valorizando a
experiência clínica, também no terreno da psicose, traz uma contribuição fundamental
para a afirmação do vigor e a possibilidade de permanência da psicanálise como campo
de investigação.
Ao dirigir-se a jovens analistas, em 1953, sublinha que os fundamentos da
descoberta trazida pela psicanálise estão nas relações entre inconsciente e linguagem.
Coloca que: “esses conceitos só adquirem pleno sentido ao se orientarem num campo de
linguagem, ao se ordenarem na função da fala” (LACAN, 1953/1998, p. 247). Essa
formulação resulta da forma peculiar pela qual, em seu “retorno a Freud”, Lacan se
aproxima dos conceitos da linguística, em especial, da obra de seu fundador, Ferdinand
de Saussure (FERREIRA, 2002).
Milner (2012) levanta duas hipóteses para considerar o caráter decisivo que a
linguística assume no ensino lacaniano. A primeira está ligada à retomada do projeto
cientifico de Freud para a psicanálise e a segunda, sobre a qual nos detemos, diz
respeito ao destaque conferido à linguagem. Ao articular inconsciente e linguagem,
Lacan encontra dois caminhos: da lógica, cuja vertente filosófica defende a preservação
da significação, e da linguística, ciência galileana, impassível à distância entre a
significação e a não-significação. Sua aposta na linguística possibilita a via clínica do
semi-dizer, que não despreza, entretanto, “efeitos de sentido”. O abandono da
18
No Seminário 3, na lição de 01 de fevereiro de 1956, Lacan coloca: “O inconsciente é, no fundo dele,
estruturado, tramado, encadeado, tecido de linguagem” (LACAN, 1955-56/ 2002, p 139).
48
linguística ocorrerá, no ensino lacaniano, a partir da consideração do gozo próprio ao
significante, para além do significante como interdição do gozo, conforme apontam
Vilela e Iannini (2012).
Segundo Arrivé, embora Saussure tenha sido seu contemporâneo, Freud
abastece-se, principalmente, no aparato mais tradicional da pesquisa científica da
linguagem de sua época, a gramática e a retórica (ARRIVÉ, 1999). É sabido que Freud
defende, inclusive, o interesse potencial da psicanálise para as ciências da linguagem em
seu artigo “O interesse científico da psicanálise”, escrito em 1913. Entre as ciências não
psicologias, aquelas do campo da linguagem estão no início de sua consideração.
Estarei sem duvida infringindo o uso linguístico comum ao postular um
interesse da psicanálise por parte dos filólogos, isto é dos peritos na fala,
porque, no que se segue a expressão “fala” deve ser entendida não apenas
como significando a expressão do pensamento por palavras, mas incluindo a
linguagem dos gestos e todos os outros métodos, como por exemplo, a
escrita, através dos quais a atividade psíquica pode ser expressa (FREUD,
1913, p. 211).
Freud reconhece caminhos importantes de confluência científica entre a
psicanálise e o campo das ciências da linguagem, considerando que estes se tornaram
acessíveis pela linguagem dos sonhos. A própria concepção do método de representação
nos sonhos e a consideração de suas relações com as raízes da língua são alguns pontos
destacados por Freud.
A tese lacaniana do “inconsciente estruturado como uma linguagem”, construída
e refinada ao longo de seu ensino, propõe retomar o núcleo da descoberta freudiana em
termos da dependência primordial do sujeito em relação à ordem simbólica. Embora a
influência de Saussure seja palpável desde 1953, ano de “Função e campo da fala e da
linguagem em psicanálise”, a referência explícita a ele aparece, no ensino oral de Lacan,
em 1954, ano de seu primeiro seminário oficial (lição de 24 de junho), sendo
confirmada em “A coisa freudiana”, conferência realizada em 1955 e passada para a
forma escrita. Qual seria o potencial conceitual e clínico entrevisto na disciplina
saussuriana?
Propomos situar brevemente o entrelaçamento das questões trazidas pela
psicanálise com as propostas da linguística estrutural de Saussure, conforme delineados
por Lacan. O acento estrutural da construção do simbólico, como um dos três registros
da realidade humana, permite a Lacan proceder a um redirecionamento fundamental em
sua teorização sobre o registro do imaginário, importante contribuição lacaniana em sua
49
entrada no campo da psicanálise, tomando a ordem simbólica como uma anterioridade
primordial (NANCY; LACOUE-LABARTHE, 1973/1991). Ocorre que, diferentemente
de Saussure
19
, Lacan irá conceber a linguagem em termos de inconsciente – ou seja,
inspirado em Freud, aposta na máxima que, dizendo de si, o sujeito fala a sua revelia
(LACAN, 1953/1998). Seu questionamento, sobretudo, é sobre “as instâncias mais
radicais da simbolização do ser”. Em suas palavras: “[...] trazem em seu nascimento,
com os dons dos astros, senão com os dons das fadas, o traçado de seu destino;
fornecem as apalavras que farão dele um fiel ou um renegado [...]” (LACAN,
1953/1998, p. 280).
1.4.1 A fala do sujeito e a linguagem do inconsciente
Lacan foi um crítico contundente da deterioração do discurso analítico, travando
sua batalha no terreno da teoria e da prática, assim como um incansável trabalhador de
seus conceitos na sua dimensão de fundamentos do campo da psicanálise. A discussão
que circunscrevemos a seguir tem como pano de fundo o que Lacan nomeia como uma
prática de crescente desconhecimento do sujeito – refere-se à análise das resistências,
direção tomada por muitos pós-freudianos (LACAN, 1953/1998).
Para ele, o campo de discussão dos conceitos fundamentais da psicanálise é o
campo da linguagem, o qual implica a ideia de um efeito de significante em oposição ao
mal-entendido da linguagem-signo. Devemos destacar que, se Lacan delimita através da
linguagem o campo psicanalítico, também efetua uma ruptura não menos importante
pela ênfase na noção de sujeito em relação à linguística saussureana.
19
Arrivé assinala, com propriedade, que Saussure não destaca, em sua teorização, o papel do inconsciente
definido como separado do consciente e com uma estrutura específica, embora se aproxime desse
reconhecimento. Em primeiro lugar, há reflexões teóricas que permitiriam relacionar a linguagem e o
inconsciente, porém estas integram suas anotações pessoais, aparentemente não fazendo parte de seu
ensino oral. Também a pesquisa dos anagramas de poetas latinos e gregos o conduz a cogitar um texto
subterrâneo, porém ele abandona sua pesquisa. Para um exame mais detalhado sobre o tema, consultar
“Linguagem e psicanálise. Linguística e inconsciente. Freud, Saussure, Pichon, Lacan e Outros” (1994),
do autor.
50
1.4.2 A linguística saussureana: signo, significante e significado
Saussure conceitua de forma específica a língua e a linguagem, apresentando
referências importantes sobre as quais Lacan trabalha ao longo de seu ensino e que
influenciam, em especial, sua teorização do significante e do sujeito. Distinguir as
relações do sujeito com a estrutura, concebida como estrutura do significante, eis o
recorte original de Lacan sobre a obra freudiana e que destacamos como contexto
importante na consideração de nosso tema de pesquisa. Acompanhando brevemente
algumas proposições saussureanas, podemos melhor situar, então, o percurso lacaniano
e precisar a pertinência de nossa discussão sobre as relações da psicose com a escrita.
A língua é, para Saussure, um sistema de signos distintos correspondentes a
ideias distintas, portanto, associações ratificadas pelo uso coletivo (SAUSSURE, 2006).
No caso, o signo linguístico é uma entidade psíquica (não abstrata) constituída por dois
componentes, a imagem acústica (significante) e o conceito (significado). Suas “duas
faces” se correspondem e uma não valem senão pela outra. Conforme esclarece Arrivé,
não se trata de um vínculo que liga um nome e uma coisa, pois o referente é, em
princípio, descartado nessa “operação de designação” que depende da fala (ARRIVÉ,
1999). Além disso, com a ênfase terminológica no par significante / significado,
Saussure propõe que não se confunda “imagem acústica” com som material,
valorizando sim sua “marca psíquica”. Se a língua é, para Saussure, um depósito, algo
pmtnosun
so escue
at e5585(u)-0.295585(e)3.74(
)-500.443(n)3.73756(l)4(o)-0.29
recebidorplrostemos
de fora, a imagem
acústica
é, então,
a rep
51
Os termos significante (imagem acústica) e significado (conceito) são adotados
por Saussure em seu terceiro e último curso, em 1911, para desfazer dúvidas deixadas
quanto ao princípio da arbitrariedade do signo, que abordaremos a seguir (CUNHA,
2008).
A língua, segundo Saussure, é o objeto integral e concreto da linguística
(SAUSSURE, 2006). Não se confunde com a linguagem – faculdade mais ampla –, mas
é uma parte “essencial dela, indubitavelmente”. A língua é, ao mesmo tempo, um
produto social da linguagem e um conjunto de convenções adotadas pelo corpo social
(SAUSSURE, 2006). A fala, por sua vez, é um ato individual, um instrumento da
língua: mesmo perdida a capacidade de falar, pode ser conservada a língua e a
capacidade de compreender seus signos.
Já a linguagem é um campo mais amplo, multiforme e heteróclito, não passível
de ser definido como unidade: “cavaleiro de diferentes domínios”, eis a interessante
expressão
que
o
autor
usa
(SAUSSURE,
2006).
A
linguagem
pertence,
simultaneamente, ao domínio individual e ao domínio coletivo, participando de vários
campos.
Saussure enumera dois princípios do signo linguístico: a arbitrariedade e o
caráter linear do significante. A noção de arbitrariedade é proposta para afirmar,
basicamente, que não há razão para a união entre significante e significado. Esta é
sempre imotivada, mesmo quando Saussure fala de uma arbitrariedade relativa, pois é
relativa a outro signo que é arbitrário (CUNHA, 2008). Já sobre o princípio do caráter
linear do significante, Saussure afirma que os elementos linguísticos alinham-se um
após outro na cadeia da fala, dispondo, portanto, de uma linha de tempo (SAUSSURE,
2006). Jorge assinala que o primeiro princípio que rege o signo linguístico remete a sua
unidade, enquanto o segundo incide, justamente, sobre o significante (JORGE, 2000).
Segundo Jorge, que reconhece em Arrivé um dos mais ricos estudos sobre os
pontos de contato e de divergência da teorização de Lacan e Saussure, é,
principalmente, a introdução do problema do sentido – em sua independência do
referente – em uma teoria do valor que permite a Lacan destacar da tese freudiana do
inconsciente a noção de sujeito (JORGE, 2000). Vejamos, de forma breve, ainda dentro
da proposta de retomar os conceitos saussureanos para melhor situar a abordagem
lacaniana, sua proposição da língua como sistema de signos e sua relação com o valor
linguístico.
52
Saussure ensina que o valor do signo, embora seja um elemento da significação,
é mais do que isso, pois só comparece em sua relação com os outros signos. Assim,
embora as flechas do esquema indiquem que, no interior do signo, o conceito
(significado) é a contraparte da imagem acústica (significante), o signo é a contraparte
de outros signos da língua. Para ficar mais claro, recorremos a Saussure que elege uma
moeda como exemplo para diferenciar significação e valor:
[...] para determinar o que vale a moeda de cinco francos, cumpre saber: 1º.
Que se pode trocá-la por uma quantidade determinada de uma coisa
diferente, por exemplo, pão; 2º. Que se pode compará-la com um valor
semelhante do mesmo sistema, por exemplo, uma moeda de um franco, ou
uma moeda de algum outro sistema (um dólar etc.). Do mesmo modo, uma
palavra pode ser trocada por algo dessemelhante: uma ideia; além disso,
pode ser comparada com algo da mesma natureza; uma outra palavra
(SAUSSURE, 2006, p. 134).
Avançando um pouco, Saussure divide em sintagmáticas e paradigmáticas as
relações que movimentam a língua: “A relação sintagmática existe in praesentia;
repousa em dois ou mais termos igualmente presentes numa série efetiva. Ao contrário,
a relação associativa [paradigmática] une os termos in absentia numa série mnemônica
virtual” (SAUSSURE, 2006, p. 143). O valor do signo encontra-se, então, na dimensão
de sintagma, onde os termos se encadeiam “em presença”. O que Saussure ressalta é
que, na língua, só há diferenças: quer se considere o significado ou o significante,
importa o que existe em seu entorno. Ou seja, tudo é negativo, quando se considera
ambos separadamente, portanto remetendo à forma e não a substância. A positividade
está, assim, referida ao signo em sua relação ao sistema: “sua combinação é um fato
positivo” (SAUSSURE, 2006, p. 140).
Há, então, dois apontamentos que devemos proceder antes de passarmos à
teorização lacaniana do significante. É a partir da estrutura de hiância do inconsciente
que se torna possível para Lacan deslocar a categoria de sujeito de seu estatuto
ontológico. Assim, em primeiro lugar, lembramos que Costa-Moura sublinha que, ao
investigar a etiologia das neuroses, Freud se depara com um intervalo entre duas cenas,
mais especificamente, entre dois tempos, um ponto “incomensurável”: “algo discernível
como buraco, hiato” (COSTA-MOURA, 2006). Entre causa – de ordem sexual – e
efeito – aquilo que pulsa na fala –, há o intervalo, a hiância entre o sexual e a
linguagem. Lacan acentuará a ideia da cisão do sujeito, que nunca é aquele que sabe o
53
que diz – apoiado no ensinamento freudiano sobre o inconsciente – através da separação
entre significante e significado pela barra.
Constatamos que, em relação à riqueza da teoria saussureana, Lacan adota
posições diferenciadas ao longo de seu ensino, o que, certamente, é influenciado pelas
questões colocadas pela clínica. Concordamos com Arrivé em sua afirmação de que o
enraizamento saussureano do ensino lacaniano é autêntico e profundo (ARRIVÉ, 1999).
A retomada de seus pontos de convergência e divergência, como tão bem elenca e
discute o autor, pode sustentar a aproximação mais tardia entre inconsciente e alíngua,
ou seja, por um lado, a relação do inconsciente com o simbólico e, por outro, com o
real.
A busca de Lacan através da linguística é, fundamentalmente, guiada pela
interrogação sobre a apreensão da linguagem tal qual esta funciona na psicanálise
(VILELA & IANNINI, 2012).
1.4.3 O inconsciente é estruturado como uma linguagem
O conhecido aforismo lacaniano, acima referido, é, ao mesmo tempo, fruto da
mais apurada definição do essencial da obra freudiana e um aporte genialmente original
à mesma. Lacan encontra no ensinamento freudiano sobre os mecanismos inconscientes,
a importância do significante: “[...] é o mecanismo ou o metabolismo do significante
que se acha no princípio e na engrenagem das formações do inconsciente” (LACAN,
1957-58/1999, p. 40). Em uma inspirada formulação, coloca que o desejo “deita-se”
com o significante, eis o caminho pelo qual Lacan também introduz a questão do
sujeito.
Com auxilio de Roman Jakobson e da retórica clássica, Lacan define que a
função significante desenhada pela linguagem pode ser encontrada nas chamadas
figuras de estilo (LACAN, 1957a/1998). O linguista russo, leitor de Freud, define as
duas operações que presidem todo ato de fala – a seleção e a combinação –
aproximando-as dos mecanismos oníricos da condensação e do deslocamento
(FERREIRA, 2002). A metáfora seria correlata da condensação, enquanto a metonímia,
do deslocamento. Lembramos que o caráter lacônico do sonho, apontado por Freud,
como efeito da condensação, resulta do compromisso entre desejo e censura, enquanto o
54
deslocamento seria comparado ao uso de trilhas “escarpadas e incomodas” na ausência
da possibilidade de percorrer a via principal. Assim, unindo as formulações de Freud,
Jakobson e Lacan, temos a seguinte correspondência (JORGE, 2000, p. 88):
SELEÇÃO – SIMILARIDADE – CONDENSAÇÃO - METÁFORA
COMBINAÇÃO – CONTIGUIDADE – DESLOCAMENTO – METONÍMIA
A estrutura metonímica, implicando o deslizamento dos significantes instala a
falta-a-ser na relação de objeto, sendo o desejo sustentado exatamente nessa falta.
A metonímia, como lhes ensino, é o efeito possibilitado por não haver
nenhuma significação que não remeta a outra significação, e no qual se
produz o denominador mais comum entre elas, ou seja, o pouco de sentido
(comumente confundido com o insignificante), o pouco de sentido, digo eu,
que se revela no fundamento do desejo e lhe confere o toque de perversão
[...] (LACAN, 1958/1998, p. 628-29).
Na estrutura metafórica, por sua vez, produz-se o efeito de significação, efeito de
poesia ou criação (LACAN, 1957a/1998), no qual Lacan depura a função do sujeito. É
em confluência ao “regato do desejo” que deriva da cadeia significante que o sujeito
marca sua presença. Articulada na substituição de um significante por outro, a metáfora
revela que o sentido nasce, justamente, no ponto de falta-de-sentido.
Para Lacan, entretanto, diferentemente do linguista – para o qual se trataria de
duas atividades diversas de linguagem –, as duas operações estariam ligadas. Esse é um
ponto fundamental para pensar a questão da criação na psicose. Segundo assinala
Ferreira (2002), a metonímia é efeito de uma operação metafórica interrompida pelo
recalque, assim como a metáfora é efeito de uma operação metonímica. Essa
formulação lacaniana está baseada na produção de uma metáfora inaugural, suporte das
duas técnicas do significante – a metáfora e a metonímia –, a saber, o Nome-do-Pai,
como o “significante que representa a existência do lugar da cadeia significante como
lei” (LACAN, 1957-58/1999, p. 202). Portanto, no centro da estrutura de linguagem,
trabalha o significante.
55
1.4.4 O significante em ação
Para Lacan, o significante tem uma especificidade ligada aos dois conceitos
centrais da obra freudiana, o inconsciente e a sexualidade. Assim, ele propõe o
algoritmo S/s, no qual o significante está colocado acima da barra. Essa barra,
diferentemente da linha reta do esquema saussureano, é correlativa da ideia de recalque
e, portanto, de um deslizamento contínuo do significado sob o significante.
Em “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, Lacan
sublinha que é na cadeia do significante que o sentido insiste:
O significante, por sua natureza, sempre se antecipa ao sentido,
desdobrando-se como que adiante dele sua dimensão. É o que se vê, no nível
da frase, quando ela é interrompida antes do termo significativo: Eu nunca
..., A verdade é que ... [...] (LACAN, 1957a/1998, p. 505).
As duas propriedades do significante estariam, então, formuladas: a posição
primordial do significante e a composição em cadeia. Nancy e Lacoue-Labarthe
(1973/1991) apontam, com propriedade, que Lacan não assinala apenas a primazia do
significante, mas enfatiza a barra como impedindo a significação, contrariando o
princípio saussureano da arbitrariedade do signo. Embora Saussure critique a ideia de
uma relação entre nome e coisa – questionando, portanto, a antiga problemática
filosófica do signo –, é Lacan que abala de forma mais radical a ideia de uma função
representativa deste.
A partir de um exemplo simples, no qual o significante é duplicado, Lacan nega
o paralelismo entre as ordens do significante e do significado para, então, apreender sua
função:
Figura 5 – Esquema ilustrativo da operação lacaniana s obre o algoritmo saussureano
HOMENS
MULHERES
Fonte: LACAN, 1957, p. 502
56
No nível superior, do significante, Lacan chama a atenção para seu valor de
diferença, enquanto, no nível do significado, introduz a simbolização de uma lei sexual,
resultando, então que a significação não passaria pelo significado como referência.
Lacan revira a ideia da linguagem como “nomenclatura”: o valor do significante é
definido, não como ligado ao significado, mas em função de sua diferença em relação
aos demais elementos. Instaura-se aí a autonomização do significante: “o significante só
se põe como não tendo nenhuma relação com o significado” (LACAN, 1972-73, p. 32).
Cada significante remete a outro em um processo infindável, transformando a função do
signo em “pura função do significante” – ou, mais precisamente, revelando sua
independência (NANCY e LACOUE-LABARTHE, 1973/1991).
A inversão da fórmula saussureana é motivada, sobretudo, pelo sentido do
sintoma: retomando o estado de latência em que Freud destaca o significado em sua
experiência com as histéricas, Lacan vai mais longe, mostrando que a psicanálise
encontra um termo estranho, uma questão, um enigma encarnado no dizer, mas inscrito
no corpo. (CABAS, 2009).
1.4.5 O sujeito do inconsciente
O projeto lacaniano de retorno a Freud consiste, sobretudo, em uma operação
que incide de forma contundente sobre o redirecionamento da teoria e da clínica
psicanalítica para as teses fundamentais de Freud. Segundo Cabas (2009, p. 101),
exilada do lastro freudiano, a psicanálise tendia, na década de cinquenta, para a via
explicativa. Também acossada pelo declínio da clínica psiquiátrica, ligado ao advento
dos medicamentos psicotrópicos, a clínica psicanalítica começava a ser reduzida a uma
ferramenta em meio a outras alternativas terapêuticas, deixando de constituir um saber
original e consequente. Trata-se, para Lacan, de reintroduzir a função do sujeito em sua
referência primordial ao inconsciente.
Em “Posição do inconsciente”, Lacan define o inconsciente como o corte em
ato, tal corte comandando as duas operações de causação do sujeito. Apenas pontuamos
que a alienação é a operação própria do sujeito: um sujeito advém em um mundo de
significantes que não querem dizer nada e precisam ser decifrados. Ou seja, seguindo
57
Freud, Lacan constata que o significante joga e vence. É, então, o Outro, como lugar,
que constitui sua causa significante. A causação do sujeito fecha-se na operação de
separação, que constitui uma estrutura de borda em sua função de limite. De forma
interessante, Lacan coloca que separare, se parare – na língua francesa, gabar-se, mas
também proteger, enfeitar – implica em que o sujeito, para se enfeitar com o
significante, sob o qual sucumbe, ataca a cadeia, fazendo surgir o intervalo (LACAN,
1960/1998). Como pensar a dimensão criativa da psicose?
Cabas (2009) resume uma formulação mais tardia de Lacan quanto ao sujeito
sobre o qual opera a psicanálise – o sujeito da ciência – em três pontos: 1. O sujeito é
uma função referida ao significante; 2. Como função, carece de substância; 3. Tem um
lugar, um lugar intervalar que remete à interseção entre pulsão e inconsciente.
Assim, como presença evanescente e como fenômeno de borda, o sujeito revelase como efeito da linguagem, mas também como um ponto aquém desta, ligado a
dimensão de objeto. Seguindo o percurso lacaniano, o autor contrapõe duas formulações
lacanianas sobre o sujeito de 1960, uma de “Subversão do sujeito e dialética do desejo
no inconsciente freudiano” e outra de “Posição do inconsciente”. A primeira, definindo
o sujeito como efeito de significante é mais conhecida e usada, enquanto a segunda
apresenta uma inversão dos termos: “O inconsciente é um conceito forjado no rastro
daquilo que opera para constituir o sujeito” (LACAN, 1960/1998, p. 830). Em sua
opinião, Lacan concebe que a hipótese do inconsciente seria formulada como resposta a
uma problemática inaugural, a saber, a questão do sujeito. Em razão dos deslocamentos
da matéria significante, então, o sujeito é sempre uma função em condições de operar,
uma responsabilidade frente à exigência pulsional.
Se todos – neuróticos e psicóticos – padecem da linguagem, alguns são seus
mártires, o que relacionamos, com Lacan, a uma posição de trabalho subjetivo contínuo,
mas sempre precário, como mostram os psicóticos e suas criações. A psicose revela, de
forma radical, o vazio, “do lado do zero absoluto” (LACAN, 1975-76/2007, p. 117).
Pensamos que a arbitrariedade, conforme anunciada por Saussure e desenvolvida por
Lacan, aponta um buraco na linguagem que, sendo comum a todos, aparece exposto na
psicose.
No capítulo seguinte, abordaremos a articulação do inconsciente “à flor da
terra” na psicose e suas implicações sobre a posição de sujeito, calçando o caminho para
a discussão da direção da clínica e sua pertinência para pensar a função da escrita na
psicose.
58
2 INCONSCIENTE A CÉU ABERTO
O louco é um sonhador acordado.
Kant
No presente capítulo, retomamos a trajetória de Freud e de Lacan, buscando
recortar suas formulações sobre a articulação entre psicose e inconsciente. Na obra de
Freud, percorremos o caminho que se inicia com a ideia de defesa e culmina na tese –
de aparente simplicidade – da perda da realidade e o expediente de sua reconstrução. Já
no ensino de Lacan, privilegiamos a hipótese da foraclusão do Nome-do-Pai em seus
efeitos sobre o simbólico. Finalmente, buscamos trazer a discussão sobre a operação em
jogo e a dimensão de trabalho subjetivo nas estratégias de estabilização, começando a
abordar a especificidade da escrita. Podemos pensar que, ao atribuir ao psicótico a
condição de mártir do inconsciente, em seu sentido mais radical de seu testemunho
aberto. Lacan também problematiza os caminhos buscados pelo sujeito e suas
consequências para pensar a clínica.
2.1 Psicose: a hipótese do inconsciente e o campo da linguagem
Em 1915, Freud defende que, embora sua hipótese do inconsciente tenha
germinado no terreno das neuroses de transferência e da vida onírica, a promessa de
tornar mais tangível o conhecimento do “enigmático inconsciente” está no campo das
chamadas psiconeuroses narcísicas. Propomos acompanhar Freud na construção dessa
articulação, assim como Lacan em sua afirmação da causalidade significante da psicose.
Freud encontra uma longa tradição sobre o parentesco dos sonhos com a psicose
entre médicos, assim como entre filósofos e poetas. Embora a maior parte das opiniões
médicas tenda a considerar os sonhos como mero sinal ou produto da doença, há uma
proposição que ele destaca por convergir com sua investigação: os dois fenômenos
seriam “essencialmente afins” (FREUD, 1900a). Essa breve constatação, porém, é o
ensejo para uma posição firme em relação ao que anuncia a psicanálise. Pois, se a
ciência médica valoriza as conexões clínicas e etiológicas, a psicanálise propõe que a
59
mudança de atitude em relação aos sonhos possa promover uma abertura no estado de
conhecimento das psicoses.
Assim, tomando o sonho como via régia para o inconsciente, Freud defende
poder contribuir para a elucidação dos mecanismos constitutivos da psicose, assim
como para estabelecer uma ponte sólida entre o normal e o patológico. Cogita que a
dimensão de desejo do inconsciente também vigore na psicose, constituindo uma chave
importante para uma teoria psicológica nesse terreno. É interessante assinalar o quanto
Freud mantém uma posição de contínuo diálogo com a produção científica dos
expoentes da psiquiatria de sua época, mas também vai construindo a especificidade do
enfoque da psicanálise. Assim, encontra na observação clínica de Wilhelm Griesinger 20
um importante ponto de convergência com sua pesquisa: para o psiquiatra alemão, na
psicose, o que é buscado é aquilo que a realidade nega. Podemos pensar, com Simanke
(2009), que a tese sobre a realização alucinatória do desejo como fundadora do
psiquismo converge com a reflexão sobre a psicose. Freud retoma, ainda mais
tardiamente, a complexidade de sua articulação: “Pode ser que os próprios delírios em
que essas alucinações são constantemente incorporadas, sejam menos independentes do
impulso ascendente do inconsciente [...]” (FREUD, 1940[1938], p. 302). Lembra que,
via de regra, no mecanismo de um delírio, são acentuados dois fatores – o afastamento
do mundo real, por um lado, e a influência exercida pela realização de desejo sobre o
conteúdo do delírio, por outro. Chama a atenção para uma ideia que, embora reconheça
como não sendo nova, propõe trazer para o primeiro plano: não há apenas método na
loucura, mas um núcleo de verdade sobre o qual poderia ser desenvolvido o trabalho
terapêutico, ainda que sem muita ênfase na possibilidade de sucesso deste último.
Como colocamos, Freud aproxima-se do território da psicose partindo do solo
conceitual teórico e clínico preparado, sobretudo, pela experiência com as neuroses de
transferência. Nessa vertente inicial de investigação, extrai importantes ensinamentos,
as mantém uma atitude de reserva quase severa quanto ao alcance da psicanálise para os
20
Autor de “Patologia e terapêutica das doenças mentais” (Pathologie und Therapie der psychischen
Krankheitein), publicado em 1845, Griesinger foi um importante expoente da psiquiatria alemã. Sabe-se
que Freud tinha um exemplar desse tratado inteiramente anotado a lápis, principalmente em passagens
sobre o processo de transformação do eu na psicose e sobre o delírio. Embora Griesinger seja conhecido
como o pai da psiquiatria biológica, sua teorização apresenta um nível mais complexo e apurado de
discussão. Além disso, foi também um dos precursores da ampliação da proposta assistencial, buscando
melhores condições de tratamento aliadas à investigação científica. Cf. PEREIRA, M.E.C. Griesinger e as
bases da “primeira psiquiatria biológica”. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 10, n. 4, p. 685691, dez.2007.
60
psicóticos. É, principalmente, uma segunda direção de pesquisa que essa possibilidade
mostrará mais fértil: a indagação sobre a especificidade da psicose. Lacan retomará
muitos elementos teóricos da obra freudiana para formular novas hipóteses e reabrir a
discussão da clínica psicanalítica da psicose. Em seu seminário sobre as psicoses, Lacan
assinala, claramente, que busca discernir o traço essencial da psicose (LACAN, 195556/2002). Aliás, a propósito do relato de Schreber, ele convida a um exame dos
fenômenos verbais e sua associação com os deslocamentos libidinais. Na obra freudiana
a psicose já comparece como rica fonte para a discussão do inconsciente e de suas
relações com o pulsional. Vejamos como a hipótese psicanalítica marca a diferença em
relação ao enfoque da psiquiatria.
Dirigindo-se aos psiquiatras, já em 1900, Freud questiona – e de certa forma
ironiza – o saber médico em sua pretensão de hegemonia científica:
É verdade que a predominância do cérebro sobre o organismo é sustentada
com aparente confiança. Não obstante, qualquer coisa que possa indicar que
a vida mental é de algum modo independente das alterações orgânicas
demonstráveis, ou que suas manifestações são de algum modo espontâneas,
alarma o psiquiatra moderno, como se o reconhecimento dessas coisas fosse
trazer de volta, inevitavelmente, os dias da Filosofia da Natureza e da visão
metafísica da natureza da mente. As suspeitas dos psiquiatras puseram a
mente, por, assim dizer, sob tutela [...] (FREUD, 1900a, p. 73).
O lugar da psicanálise é anunciado em sua peculiaridade científica: “seria um
erro grave supor que a análise favorece ou pretende uma visão puramente psicológica
das perturbações mentais” (FREUD, 1913, p. 209). Na verdade, ele recoloca a questão
da importância de suas fontes corporais, trazendo um elemento teórico original – a
teoria pulsional em sua contínua reformulação – para a teorização da psicose.
A partir de 1907, as trocas com o hospital psiquiátrico Burghölzli, na Suíça, em
especial com Bleuler, Jung, Eitingon, Abraham, entre outros, contribuem para a difusão
da psicanálise e para a afirmação da importância dos “mecanismos freudianos” para
esclarecer os quadros psiquiátricos (FREUD, 1914a). Freud defende a fertilidade do
método psicanalítico em seu potencial clínico, relacionando as principais premissas
teóricas da psicanálise – o inconsciente e a pulsão – à possibilidade de abertura a outros
campos de saber.
A elaboração do conceito de narcisismo, em 1914, representa uma encruzilhada
teórica importante na diferenciação dos mecanismos psíquicos da psicose. Paradigma do
processo de retração da libido sobre o eu – até então, as pulsões do eu eram um dos
61
polos do conflito psíquico21 –, o “muro narcísico” da psicose, considerado em seu efeito
patogênico sobre a mobilidade da libido, coloca dificuldades para a transferência, pilar
da clínica psicanalítica. Freud parece entrever, justamente, na psicose, algo para além do
sexual, embora o formule a partir de sua primeira teoria pulsional:
Eu não me surpreenderia se fosse verificado que o poder de produzir efeitos
patogênicos de fato constituísse uma prerrogativa das pulsões sexuais, de
modo que a teoria da libido pudesse celebrar seu triunfo por toda uma
extensão que vai desde a mais simples neurose “atual” até a mais grave
alienação da personalidade. [...] No entanto, considero extremamente
provável que as pulsões do eu são arrastadas secundariamente pela
instigação patogênica da libido e levadas a perturbações funcionais. E não
penso que seria um desastre para o rumo de nossas pesquisas se aquilo que
nos aguarda é a descoberta de que, nas psicoses graves, as próprias pulsões
do eu perderam sua orientação, como fato principal. O futuro nos dará a
resposta – para os senhores, pelo menos (FREUD, 1917[1916-17], p. 501).
Em uma formulação original, Freud destaca que, na psicose, o elemento
patogênico é a retirada da libido, o que o leva a considerar suas consequências para o
eu. Não obstante, é com relação ao quadro clínico que Freud chama a atenção para algo
de peculiar em sua composição:
[...] não é determinado exclusivamente pelos sintomas que emergem da
retração da libido para longe de seus objetos, e de sua acumulação no eu sob
a forma de libido narcísica. Uma grande parte é antes desempenhada por
outros fenômenos derivados dos esforços da libido no sentido de,
novamente, alcançar os objetos, portanto correspondendo a uma tentativa de
reintegração ou recuperação (FREUD, 1917[1916-17], p. 492).
Trata-se de manifestações mais ruidosas e evidentes e que têm uma semelhança
fenomênica com as formações substitutivas das neuroses de transferência, mas diferem
destas por seu mecanismo. Freud coloca que o que domina nesses quadros clínicos é a
tentativa espontânea de restabelecimento na qual a antítese entre o eu e o objeto fica
mais proeminente (FREUD, 1915). Devemos lembrar, neste ponto, que a dimensão
estruturante da fantasia – em sua função de fixar uma certa relação do sujeito com sua
causa de desejo – implica em que, através do principio de prazer, seja possível investir
21
Em 1910, Freud propõe o primeiro dualismo pulsional: pulsões sexuais e pulsões de autoconservação
(ou pulsões do eu). Concebe que a atividade prazerosa tem sua origem em uma função vital (noção de
apoio). Essa teorização começa a ser abalada, justamente, em 1914, quando a libido passa a ser
considerada como podendo investir o eu. O segundo dualismo é proposto em 1920, quando as pulsões
sexuais e pulsões do eu são reunidas sob a denominação de pulsões de vida, passando a pulsão de morte a
constituir o termo de oposição. Jorge (2000) aponta que, a partir de Lacan, é, nesse segundo momento da
elaboração freudiana, que a essencialidade do pulsional – especificando a sexualidade humana – fica mais
evidente, a saber, a falta de objeto.
62
libidinalmente o objeto. Daí a ideia do emparelhamento estrutural com o delírio,
conforme colocada por Jorge (2010), que Freud concebe como um “remendo” no lugar
onde uma fenda apareceu na relação do eu com o mundo externo. Nesse sentido,
podemos pensar que fantasia e delírio têm em comum uma dimensão de estabilização –
considerada na clínica da psicose, como veremos no presente capítulo – no sentido de
constituírem uma referência relacionada a uma articulação simbólica imaginária que faz
frente ao real.
Em 1915, na elaboração metapsicológica sobre o inconsciente, Freud retoma a
articulação da discussão sobre a psicose com sua teoria pulsional. Concebe, então – a
partir da contribuição de Abraham 22 – que, representando uma modalidade mais radical
de afastamento do eu em relação aos objetos, na psicose vigoraria um investimento mais
intenso nas representações de palavra. Devemos lembrar que, nesse momento, Freud
supõe que o recalcamento2009(r)2.80324(o)-0.29( )250]T63(23.74(a)3.7474(p)-0.295585(r)2.80561(e)3.6
63
No curso de seu trabalho teórico e clínico, Freud continuará se perguntando
sobre a natureza do processo que, nas neuroses narcísicas, desvia a libido dos objetos e
impede a sua volta. Enfatiza, entretanto, o modelo do recalque:
Se constasse de nosso plano de aprofundar-nos mais na demência precoce,
eu lhes demonstraria que o processo que desliga a libido de seus objetos e
bloqueia seu retorno a eles, é estreitamente relacionado ao processo de
recalque, devendo, assim, ser considerado sua contrapartida (FREUD,
1917[1916-17], p. 491).
Após a segunda tópica, Freud diferencia mais claramente neurose e psicose, a
partir do destacamento da relação da castração com a “lei universal da vida mental” e o
complexo de Édipo: “Se a satisfação do amor no campo do complexo de Édipo deve
custar à criança o pênis, está fadado a surgir um conflito entre seu interesse narcísico
nessa parte do corpo e o investimento libidinal nos objetos parentais” (FREUD, 1924a).
De forma interessante, concebe que, enquanto a neurose e a psicose, em sua busca de
um substituto da satisfação perdida, resultam em produtos associais e narcísicos, o
artista – como criador – seria mais hábil por conjugar um afastamento para o mundo da
imaginação com um apoio mais firme na realidade. Conforme coloca Freud, são:
“capazes de evocar e satisfazer os mesmos impulsos inconscientes, repletos de desejos”
(FREUD, 1925[1924], p. 81).
Em um artigo publicado em 1924, intitulado “Uma breve descrição da
psicanálise”, Freud ressalta apropriadamente que a psicanálise marcou seu lugar no
campo da psiquiatria por questionar mais radicalmente a linha divisória entre normal e
patológico a partir do conceito de inconsciente. Suas palavras são enfáticas:
[...] o estudo psicanalítico das neuroses constitui a única preparação para a
compreensão das psicoses, e que a psicanálise está destinada a tornar
possível uma psiquiatria científica do futuro, que não precisará contentar-se
com a descrição dos quadros clínicos e sequências ininteligíveis de eventos,
e com traçar a influência de grosseiros traumas anatômicos e tóxicos sobre
um aparelho psíquico inacessível ao nosso conhecimento (FREUD,
1924[1923], p. 254).
Devemos ressaltar que o elemento teórico mais inovador que Freud introduz na
concepção das psicoses diz respeito ao foco que lança sobre a construção do delírio: “a
formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma
tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução” (FREUD, 1911, p. 94-95).
Para Freud, o interesse do psiquiatra se esgota após uma estimativa da forma e do
64
prejuízo do delírio na vida do doente, diferentemente da psicanálise que se dispõe a
pesquisar, justamente, como “estruturas de pensamento tão extraordinárias como estas”
derivam “dos mais gerais e compreensíveis impulsos da mente humana” (FREUD,
1911, p. 33). Sendo o vetor da pulsão dirigido à satisfação absoluta – destino silencioso
nomeado como pulsão de morte por Freud e como gozo por Lacan – o delírio funciona
como tentativa – nem sempre bem sucedida – de construir uma barreira, implicando,
portanto, perda de gozo. Segundo Maleval, certas formas de delírio conseguem
extinguir as manifestações do gozo sem lei, nem marco – portanto, essencialmente,
parasitárias –, reunindo o essencial do investimento libidinal em uma construção
significante que passa a polarizar a relação com o mundo (MALEVAL, 1998). Em sua
entrada na psicanálise, Lacan se deixa levar por Freud, através da fenomenologia
delirante, até o limite em que esta se revela em “efeitos de criação” (LACAN,
1955b/1998, p. 70). Podemos dizer que o ensinamento freudiano conduz a apurar a
escuta analítica do sujeito no próprio trabalho do delírio.
Sabemos que Lacan realiza uma importante contribuição para a abordagem
estrutural das psicoses a partir do resgate da discussão freudiana sobre a especificidade
do mecanismo da psicose e, sobretudo, da conceituação, em 1957, da foraclusão do
Nome–do–Pai. O termo Verwerfung foi destacado da leitura de Lacan da obra freudiana,
como veremos adiante, ganhando especificidade ao remeter ao que fica fora da
simbolização que estrutura o sujeito (LACAN, 1955-56/2002) e às consequências de
rasgamento para o tecido psíquico, como tão bem coloca Rabinovitch (2001). Assim,
Lacan recoloca a discussão sobre a noção freudiana de defesa a partir da estrutura
significante e dos efeitos da psicose para as relações do sujeito com a linguagem.
Atrelada, finalmente, à inscrição do Nome-do-Pai, a foraclusão opera sobre a separação
necessária do sujeito do campo do Outro com consequências para o corpo e a
linguagem.
Lacan recolhe as “pedras de espera” (LACAN, 1955-56/2002) deixadas por
Freud ao retomar as próprias questões sobre as quais ele constrói suas hipóteses.
Maleval pontua, com precisão, que, pautada na lógica do significante – campo da
linguagem –, a formulação da foraclusão do Nome-do-Pai promove também uma atitude
de prudência no tratamento de psicóticos. A partir da articulação, em seu ensino mais
tardio, da desamarração significante com a economia do gozo, mais precisamente, a
desregulação do gozo, Lacan deixa aberta uma via de renovação da perspectiva clínica
da psicose (MALEVAL, 2009a).
65
A especificidade da abordagem que Lacan realiza – servindo-se de aportes de
outras disciplinas, como o estruturalismo e a linguística – reside em situar a psicose a
partir da função e campo da fala e da linguagem, solo da própria constituição do sujeito.
Ou seja, abre-se uma via de mão dupla, na qual os ensinamentos extraídos da
fenomenologia da psicose são enriquecidos, mas também contribuem para questionar a
relação do sujeito com a linguagem:
O sistema da linguagem, em qualquer ponto em que vocês o apreendam,
nunca se reduz a um indicador diretamente dirigido a um ponto da realidade,
é toda a realidade que está abrangida pelo conjunto da rede de linguagem
(LACAN, 1955-56/2002, p. 43).
Em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Lacan postula a
prevalência do simbólico como lei da linguagem e sua força na mediação do desejo e,
portanto, na possibilidade do sujeito de acesso e manutenção da realidade (LACAN,
1953/1998).
Afirma que: “O homem fala, mas porque o símbolo o fez homem”
(LACAN, 1953/1998, p. 278). Na psicose, o que sucumbe é, justamente, o suporte da
ordem simbólica, constituído pela função paterna, esta correlativa de uma simbolização
fundamental – a castração, que abre a possibilidade de desejar. O apego ao delírio,
situado por Freud, é referenciado com Lacan à própria função econômica que a
linguagem assume na psicose (LACAN, 1955-56/2002).
A reabertura por Lacan da discussão sobre as psicoses leva em conta uma
indicação precisa de Freud, a partir do relato de Schreber e acessível na fala do
delirante: “a palavra tem peso em si mesma” (LACAN, 1955-56/2002, p. 43). Lacan
afirma que a característica estrutural do discurso na psicose é a forma assumida pela
significação. Aliás, ele adverte, justamente, nesse ponto, sobre a armadilha de se tomar
o significado pelo objeto, pois se trata da significação. É uma significação que não
remete à outra e que tem, mais radicalmente, algo de inefável. É o “chumbo na malha”
da rede discursiva, como coloca Lacan.
Conforme temos ressaltado, é importante lembrar que, a partir do privilégio dos
fenômenos de linguagem, Lacan não situará somente as marcas de decomposição do
simbólico, mas também seus “efeitos de criação” (SOLER, 1998, p. 30). Já na ocasião
de sua tese, quando dirige sua atenção à produção literária de Aimée, afirma ter
encontrado inegável valor poético, para além da característica da estereotipia de
pensamento presente em alguns de seus escritos (LACAN, 1932/2011, p. 175).
66
As “modalidades originais” da linguagem na psicose (evidenciadas na fala e na
escrita), já haviam chamado a atenção de Lacan que considera como um toque de
singularidade estrutural. Amplamente descritas na psiquiatria clássica, também são
consideradas por Freud. De início, Lacan remete as alterações de linguagem mais
diretamente às formações delirantes (LACAN, 1946/1998), para relacioná-las, depois,
com a hipótese da foraclusão do Nome-do-Pai. Mesmo em seu ensino mais tardio,
quando a ênfase de sua teorização recai sobre o campo do gozo e Lacan passa a falar de
uma pluralização dos Nomes-do-Pai, o interesse pelos fenômenos de linguagem é
mantido e renovado em sua importância.
Como assevera Maleval, Lacan afina a análise da metáfora paterna, fazendo o
Nome-do-Pai coincidir com a operação que recorta um vazio no Outro e, ao mesmo
tempo, é uma resposta a essa falta. A inscrição significante da perda – correspondente à
queda do objeto a – passa a ser fundante da ordem simbólica, sendo a função paterna
remetida à coordenação da linguagem com o gozo, o que permite o ciframento deste.
Esse recentramento traz outras possibilidades de pensar a clínica da psicose, agora em
termos da variação de tentativas de remediar um excesso – o objeto a – e, portanto, de
moderar o gozo – tornado invasor – dentro das redes da linguagem (MALEVAL,
2009a).
Assim, podemos considerar que, incluindo a psicose em seu campo de
investigação, Freud e Lacan contribuíram para estabelecer a especificidade da clínica
psicanalítica e a separação do enfoque da psiquiatria. Um dos pontos de apoio dessa
inovação foi reconhecer a dimensão de trabalho reconstrutivo na psicose, acessível a
partir da conceituação do inconsciente em suas relações com a linguagem. Esse
ensinamento
tem
duas
implicações
fundamentais,
anunciadas
por
Freud
e
problematizadas por Lacan: a dimensão de sujeito e a estabilização clínica em sua
referência à estrutura.
2.2 Freud e a teorização das psicoses
Podemos destacar três grandes momentos da teorização freudiana da psicose que
se articulam com a própria construção do campo da psicanálise: em primeiro lugar, a
hipótese da defesa, que marca a especificidade dos primeiros contornos dados ao campo
67
da psicanálise e coloca a problemática do eu; em segundo lugar, a primeira tópica, que,
remetendo ao inconsciente, ao sonho e à fantasia, contribui para a valorização do delírio
na psicose como tentativa de reconstrução da relação com a com o mundo; e,
finalmente, a segunda tópica e a postulação da pulsão de morte, que culminam em uma
teorização mais precisa da psicose e, ao mesmo tempo, de aparente simplicidade, posto
que, tanto a perda da realidade quanto a construção de um substituto remetem a pontos
de convergência entre delírio e fantasia.
2.2.1 A censura russa e a fratura do texto: a defesa nos preâmbulos da teorização da
psicose
Você viu alguma vez um jornal estrangeiro
que tenha passado pela censura russa na
fronteira? Palavras, orações e frases inteiras
são obliteradas, de modo que o que resta se
torna ininteligível. Uma censura russa desse
tipo se efetua nas psicoses e produz delírios
aparentemente sem sentido.
Freud, 1897.
Desde as primeiras hipóteses psicanalíticas, as psicoses estão incluídas lado a
lado com as neuroses e Freud defende haver, entre estas, traços diferenciais, mas
também conexões inteligíveis (FREUD, 1894). Em 1894, um ano após a “Comunicação
preliminar”, escrita com Breuer, e antes de sua contribuição para “Estudos sobre a
histeria”, Freud está em pleno trabalho de teorização sobre as neuroses e agrega as
psicoses em sua discussão. Entre 1894 e 1896, em dois artigos que caracterizam sua
investigação clínica, “As psiconeuroses de defesa” e “Observações adicionais sobre as
psiconeuroses de defesa”, respectivamente, Freud agrupa, sob a rubrica de
“psiconeuroses de defesa”, a histeria, a obsessão, a fobia e a psicose alucinatória, além
da paranóia. A hipótese de defesa é o ponto nuclear da caracterização do mecanismo
psíquico destas e envolve uma suposição original sobre a divisão da consciência e a
formação de grupos psíquicos separados
23
23
. Em linhas gerais, é concebida como
Freud retoma a ideia de divisão da consciência – de Janet – para expor suas objeções. Juntamente com
Breuer, Freud já havia questionado o postulado de Janet sobre a degeneração mental com a hipótese de
uma histeria adquirida e a ideia de um estado peculiar de consciência, denominado “hipnóide”.
68
intenção de “expulsar” para longe uma representação não aceitável pelo eu. Tal
“incompatibilidade na vida representativa” estaria, em geral, ligada às sensações e
experiências sexuais, as quais, por suscitarem um afeto aflitivo, levariam o sujeito, por
um ato voluntário, a buscar esquecer. Freud coloca a ligação entre esse esforço
voluntário – em principio não patológico – e os sintomas neuróticos da seguinte forma:
A tarefa que o eu se impõe, em sua atitude defensiva, de tratar a
representação como non-arrivé simplesmente não pode ser realizada por ele.
Tanto o traço mnêmico como o afeto ligado à representação lá estão de uma
vez por todas e não podem ser erradicados. (FREUD, 1894, p. 56).
Assim, uma realização aproximada desse fim consiste em enfraquecer a
representação, retirando-lhe o afeto com o qual está investida
24
. Resultando em uma
diminuição da exigência ao trabalho associativo, restaria a tarefa de dar um destino ao
afeto. A partir daí, os caminhos divergem: na histeria, a conversão e na obsessão, a
transposição do afeto. Uma modalidade defensiva mais potente é evidenciada no quadro
clínico da psicose alucinatória:
Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem sucedida.
Nela, o eu rejeita (Verwerfung) a representação incompatível juntamente com
seu afeto e se comporta como se a representação jamais tivesse lhe ocorrido.
(FREUD, 1894, p. 63).
Nesse caso, o processo pelo qual é realizada a defesa implica em uma perda
parcial ou total da realidade, posto que, em seu esforço de afastar a representação – que
está ligada a um fragmento da realidade –, o eu também se desliga. É assim que Freud
concebe o ganho de força do conteúdo aflitivo que penetraria, então, na consciência. As
vozes alucinatórias seriam um exemplo dessa configuração defensiva.
Em 1896, no artigo “Observações adicionais sobre as psiconeuroses de defesa”,
Freud mantém a hipótese do recalcamento como núcleo comum do mecanismo psíquico
de neuroses e psicoses e enfatiza o papel das vivências traumáticas sexuais infantis
como sua origem. A partir de sua própria experiência clínica com a senhora P., propõe a
denominação “psicose de defesa”, enfatizando, para a psiquiatria, a perspectiva da
importância do fator da “defesa” na discussão sobre a psicose. Assim, os sintomas nas
24
A hipótese de trabalho sobre as neuroses de defesa, formulada já em 1894, é assim colocada: “nas
funções psíquicas, devem se distinguir algo – uma carga de afeto ou soma de excitação – que possui todas
as características de uma quantidade (embora não tenhamos meios de medi-la) passível de aumento,
diminuição, deslocamento e descarga, e que se espalha sobre os traços mnêmicos das representações
como uma carga elétrica espalhada pela superfície de um corpo” (FREUD, 1894, p. 65).
69
neuroses e nas psicoses teriam seu mecanismo ligado ao retorno do recalcado. A
paranoia mostra, entretanto, uma particularidade adicional: a subjugação do eu.
Esperando encontrar pensamentos inconscientes e lembranças recalcadas que poderiam
ser trazidos à consciência, como nas neuroses, Freud observa que tais conteúdos são
vivenciados como vozes ou visões. Concebe, então, sua força adicional em relação à
consciência, contrapondo-os ao mecanismo da neurose obsessiva. Devemos ressaltar
que, nesse relato clínico, Freud destaca os maneirismos da fala, reconhecidos pela
psiquiatria, relacionando-os à ideia de formação de compromisso entre a força do
recalcado e a oposição do eu: “as palavras que ela ouvia tinham um braço de
diplomática indefinição” (FREUD, 1896, p. 171).
De forma interessante, Freud postula que a neurose obsessiva contaria com um
período primário de defesa “bem sucedido” – a autodesconfiança – que implicaria no
recalcamento da autoacusação relacionada às lembranças do prazer sexual infantil. Os
sintomas de conscenciosidade, como formações de compromisso, impediriam o sujeito
de dar crédito à autoacusação, ao mesmo tempo em que implicariam a “crença”, que
leva o eu a reconhecer os sintomas como seus. Já na paranoia, estaria em jogo, no
processo de recalcamento, a projeção e a formação do sintoma de desconfiança em
outras pessoas. Essa forma tornaria, portanto, o sujeito mais exposto ao retorno do
recalcado, pois a defesa primária já seria a desconfiança dos outros. Ou seja, com a
projeção, a crença perderia sua potência de defesa secundária.
Freud entende as alucinações sensoriais (vozes e visões) como sintomas de
compromisso que dariam ao recalcado sua condição de retorno, porém a defesa
secundária se apresentaria de forma diversa. Sendo as representações delirantes
tentativas do eu de lidar com o retorno do recalcado – já mais potencializado pela
configuração da defesa primária –, estas fariam exigências ao eu, obrigando-o a se
remodelar: “delírios interpretativos que terminam por uma alteração do eu” (FREUD,
1896, p. 173).
Podemos pensar que, embora Freud faça um esforço de teorização da psicose a
partir da hipótese incipiente do recalcamento, sua elaboração já permite trabalhar com
uma diferenciação de mecanismos psíquicos e uma delimitação de manifestações
clínicas distintas. A expressão “censura russa” de nossa epígrafe, aparece em um
comentário na correspondência com Fliess, em 1897, e, mais tarde, em 1900, sendo
usada de modo que consideramos instrutivo.
70
O delírio seria uma obra da censura que não se dá ao trabalho de esconder seu
funcionamento, resultando em efeitos de desconexão e desorganização do conteúdo do
texto. A consideração de seu sentido, no entanto, exigiria, justamente, levar em conta
essas lacunas. Ou seja, Freud ironiza os psiquiatras afetados somente pela falta de
concatenação de ideias na psicose. O delírio revelaria a impossibilidade de trânsito pelas
vias normais de ligação das representações e o uso de alternativas inusitadas (FREUD,
1900b).
Entre os anos de 1894 e 1899, Freud mergulha nas perguntas e hipóteses
produzidas em sua investigação. Trata-se de aprofundar a pesquisa clínica sobre as
relações entre as ideias sexuais e o desprazer e sobre as peculiaridades da relação entre
defesa e sexualidade. Em 1900, Freud postula o conceito de inconsciente, delimitando o
campo da psicanálise em sua direção teórica e clínica. Como aponta Quinet (2000), o
sujeito aparece, então, determinado pelas leis da linguagem por onde desliza seu desejo.
Para terminar, retomemos uma colocação de Freud, de 1907, que explicita os
dois ensinamentos que ele extrai do rigor de sua pesquisa e transmite-nos como
indicação teórica e clínica para o campo da psicose:
Essa crença profunda que o enfermo tem em seu delírio não provém de seus
elementos falsos, nem é motivada por uma incapacidade de julgamento.
Acontece que existe uma parcela de verdade oculta em todo delírio, um
elemento digno de fé, que é a origem da convicção do enfermo [...].
(FREUD, 1907, p. 83)
O “elemento verdadeiro do delírio”, como anunciamos antes, é concebido,
justamente, a partir da indagação sobre o método de construção do delírio. Situado em
sua relação com o inconsciente, não difere tanto dos processos de pensamento que
combinam verdade e erro, podendo ser, referido ao processo defensivo.
2.2.2 A primeira tópica e o texto de Schreber: pai, estabilização e construção da
realidade
Em 1911, Freud propõe precisar melhor o mecanismo especial do recalcamento
na psicose, a partir do estudo de “Memórias de um doente dos nervos”, relato publicado
pelo magistrado alemão Schreber, em 1903. Esse “talentoso paranoico”, conforme a ele
71
se refere Freud, atesta uma característica clínica importante dos paranoicos: expõe,
ainda que de forma distorcida, o que os neuróticos escondem. Ao tomar o relato escrito
como um caso clínico, Freud explicita o ponto de partida da psicanálise: as declarações
delirantes do paciente – “ele próprio não raro oferece-nos a chave” (FREUD, 1911, p.
53). Seguiremos, brevemente, a história clínica retomada por Freud e a apresentação da
versão em português do livro de Schreber feita por Marilene Carone (SCHREBER,
1995), responsável pela tradução e estudiosa de sua obra, antes de desenvolver os
pontos de interesse para nossa discussão.
Daniel Paul Schreber (1842-1911) nasceu em uma família burguesa e
protestante, cujos membros, além de abastados e cultos, buscavam a notoriedade por
meio da obra escrita. Seu bisavô paterno tinha por lema a frase “escrevemos para a
posteridade”, enquanto seu pai, Daniel Gottlieb Moritz Schreber, que era médico e
pedagogo, escreveu cerca de vinte livros nos quais pregava uma doutrina educacional
bastante rígida, aplicada também em seus cinco filhos. Daniel Paul é o terceiro filho
depois de Daniel Gustav, que se suicidou aos 38 anos, e Anna, que morreu na infância,
sendo seguido por Sidonie e Klara. Após a morte do pai, Schreber, então com 19 anos,
segue a escolha profissional do irmão mais velho, o direito, e após a morte deste, casase, aos 35 anos, com Sabine, quinze anos mais jovem. Treze anos da vida de Schreber
são passados em sanatórios psiquiátricos, sendo sua primeira internação aos 42 anos.
Jurista e funcionário do Ministério da Justiça, teve uma carreira regular, com
promoções obtidas por nomeação direta ou eleição interna. Na época de sua primeira
internação, que durou cerca de seis meses, havia passado por uma derrota em uma
eleição parlamentar. Além de uma manchete de jornal com a pergunta “Quem conhece
esse tal de Dr. Schreber?”, sua esposa havia passado por dois abortos espontâneos.
Apresentava, então, um grave quadro hipocondríaco, havendo informações, segundo
Carone, de outra crise mais branda, por ocasião de seu casamento. Freud destaca, às
primeiras páginas de seu estudo, que ele ficou internado sob os cuidados do Dr.
Flechsig, figura central em suas ideias delirantes posteriores. Retomou suas atividades
profissionais como juiz-presidente no Tribunal de Leipzig, onde permaneceu durante os
oito anos seguintes. No final de 1893, aos 51 anos, Schreber é nomeado juiz-presidente
para a Corte de Apelação na cidade de Dresden, por determinação do rei, sendo,
portanto, um posto irrecusável que o levava ao ápice da carreira em uma idade precoce.
Entre a notícia e o início de sua atividade, ele teve alguns sonhos sobre a antiga doença
e um devaneio, descrito com suas palavras: “Era a ideia de que deveria ser realmente
72
bom ser uma mulher se submetendo ao coito” (SCHREBER, 1995, p. 54). Tratava-se de
uma ideia que, segundo seu próprio relato, não seria aceitável e que atribuía, então, à
influência externa. Segue-se a segunda internação, ainda em 1893, em função do rápido
agravamento de seu quadro clínico, caracterizado por exuberantes manifestações
alucinatórias e, finalmente, por ideias delirantes de perseguição e de cunho místico.
Dessa vez, o período de hospitalização duraria oito anos, sendo que Schreber passou
grande parte desse período no asilo de Sonnenstein. Dr. Flechsig, seu médico anterior,
passa a ocupar o centro de suas ideias delirantes de perseguição e prejuízo.
Freud é preciso ao dizer que seu interesse investigativo está na “arquitetura
delirante” de Schreber, a qual parece tornar viável o retorno ao seu cotidiano (FREUD,
1911). Ou seja, algo se organiza no delírio e Freud busca discernir suas linhas de força.
De fevereiro a setembro de 1900, Schreber redige os vinte e três capítulos de suas
memórias, escrevendo os suplementos durante os anos de 1901 e 1902. A perspicácia e
a força de sua lógica, finalmente, coroam de sucesso seus esforços para recobrar sua
liberdade civil em 1902. Em 1903, o casal adota uma menina de 13 anos e seu livro é
publicado com o corte de um capítulo referente aos familiares. Então com 60 anos,
relata, segundo Carone, que as vozes nunca o deixaram, embora tenham se tornado um
zumbido contínuo, localizado na cabeça, por onde tem a sensação de ser puxado. Em
1907, quando sua esposa sofre um derrame cerebral e ele também recebe um pedido de
apoio ao reconhecimento da obra de seu pai, Schreber é hospitalizado pela terceira vez
em um estado psíquico, desde o início, considerado muito grave. Escreve apenas
palavras soltas – “milagre”, “túmulo”, “não comer” – e, posteriormente, rabiscos que
mal se assemelham a letras. Morre aos 69 anos, com sintomas cardíacos.
Dois pontos do sistema delirante de Schreber são destacados por Freud:
1.
A ideia de ser transformado em mulher constitui o germe de seu sistema delirante,
sendo também a única parte que persiste após sua recuperação. Freud discorda,
nesse ponto, do diretor da clínica que considera que a força desse delírio resulta da
ideia de grandeza de ser o Redentor.
2.
A atitude de Schreber para com Deus é singular, podendo ser caracterizada por uma
mistura de reverência e rebeldia. A própria figura de Deus é de extrema
complexidade.
Destacamos que, em seu rico trabalho de discussão da construção do delírio de
Schreber, Freud tem o mérito de articular seus principais elementos, justamente, a partir
de uma busca cuidadosa da particularidade subjetiva. Em uma abordagem estritamente
73
nosográfica, o apego às categorias sintomáticas tenderia a ocultar, exatamente, a relação
entre as linhas de construção do delírio e os eixos para a discussão de seu mecanismo.
Freud relaciona a produção do delírio com uma “fantasia feminina de desejo” (FREUD,
1911, p. 67), considerando-a como o cerne da construção delirante final. O delírio seria
uma defesa contra as pulsões homossexuais, proposição que ganhará uma reformulação
fundamental com a conceituação do narcisismo. Por hora, assinalamos que a estratégia
de fina abordagem clínica desse relato escrito resulta em três pontos que caracterizam o
enfoque freudiano da psicose, em especial da paranoia, mas também sua íntima relação
com processos psíquicos e mesmo com a origem do laço social (FREUD, 1911): o pai, a
construção da realidade e, finalmente, a estabilização. Tais pontos serão destacados e
desenvolvidos ao longo do ensino lacaniano.
Freud situa o complexo paterno como elemento dominante da psicose de
Schreber e procede a uma discussão guiada pela referência edípica: “Um pai como este
de maneira alguma seria inadequado para a transfiguração em Deus na lembrança
afetuosa do filho [...]” (FREUD, 1911, p. 71). Atento ao desenvolvimento do delírio de
Schreber, Freud acompanha a engenhosidade de suas transformações, as quais fazem
sobressair uma força potencial. Coloca que o “papel de perseguidor foi primeiramente
atribuído ao professor Flechsig, médico sob cujos cuidados ele estava; mais tarde, o
lugar foi assumido pelo próprio Deus” (FREUD, 1911, p. 34). Com a figura de Deus, o
poder está associado, essencialmente, à criação: “[os nervos de Deus] em sua
capacidade criativa, isto é, no poder de se transformarem em todo objeto imaginável no
mundo criado – são conhecidos como raios” (FREUD, 1911, p. 38). Freud articula as
quatro formas do delírio paranoico25 como estruturas gramaticais, considerando-as em
termos de acesso aos processos inconscientes do delírio e ao seu papel frente ao
pulsional.
A questão da qual parte Freud é precisa: como se dá a aceitação da fantasia
feminina de desejo que tivera de ser recalcada? A fantasia erótica que despertou a
oposição do paciente teria suas raízes em um anseio pelo pai e, portanto, “devolvido ao
pai, chegou-se a uma estabilização do conflito” (FREUD, 1911, p. 70). Essa fantasia
teria, então, suas raízes no conflito infantil entre o pai amado e o temor da ameaça
paterna de castração. A consideração etiológica da formação delirante aparece apoiada
25
Delírio de perseguição: “eu não o amo – eu o odeio, porque ele me persegue”; erotomania: “eu não o
amo – eu a amo, porque ela me ama”; delírio de ciúmes: “não sou eu quem o ama – ela o ama”; e
megalomania: “não amo de modo algum, não amo ninguém” (FREUD, 1911, p. 86-88).
74
no modelo da neurose, portanto, no conflito entre o eu e a sexualidade, priorizando sua
vertente objetal. A diferenciação entre libido do eu e libido do objeto, em 1914,
possibilitará considerar o tema em outras bases.
A projeção é colocada como a segunda característica mais notável da formação
delirante: a supressão de uma percepção interna que retorna, após uma certa
deformação, como percepção externa. A origem da projeção seria a retirada da libido
das pessoas e do ambiente: “O fim do mundo é a projeção dessa catástrofe interna; seu
mundo subjetivo chegou ao fim, desde o retraimento de seu amor por ele” (FREUD,
1911, p. 93-94). Tal processo aconteceria silenciosamente, diferentemente do trabalho
que busca levar a libido de volta aos objetos. É nesse ponto que Freud coloca que a
formação delirante, que se presume ser o produto patológico, é um processo de
reconstrução.
Assim, a leitura freudiana do relato de Schreber põe em questão a estreita
vinculação entre o eu e a dinâmica libidinal. Freud relaciona a psicose com o
mecanismo de funcionamento da defesa: a retirada da libido dos objetos para o eu. As
“teorias explanatórias” do paranoico, em particular, seriam criações ligadas à relação
peculiar com o mundo externo. Ou seja, a consideração do desinvestimento pulsional
primário, ocorrido na psicose, faz com que a discussão sobre a relação com a realidade
ganhe espaço: “Os neuróticos afastam-se da realidade por achá-la insuportável – seja no
todo ou em parte. O tipo mais extremo desse afastamento da realidade é apresentado em
certos casos de psicose alucinatória [...]” (FREUD, 1911, p. 277). Logo em seguida, ele
coloca: “E defrontamo-nos agora com a tarefa de investigar o desenvolvimento da
relação dos neuróticos e da humanidade em geral com a realidade [...]” (FREUD, 1911,
p. 277). Assim, embora a psicose seja discutida à luz da neurose, a dimensão positiva do
delírio é assentada, assim como são retomadas questões mais amplas.
2.2.3 A segunda tópica: a antítese entre o eu e o objeto na psicose
Em “Sobre o narcisismo: uma introdução”, em 1914, Freud realiza um
importante redirecionamento na trajetória do conceito de sexualidade com a postulação
do narcisismo. Em poucas palavras, a oposição entre pulsões sexuais e pulsões do eu
começa a perder terreno, pois o próprio eu poderia ser investido pela libido. Ainda
75
assim, mesmo antes da reformulação da teoria pulsional com a introdução do conceito
de pulsão, Freud defende a ideia de uma energia não-sexual, denominada interesse
(GARCIA-ROZA, 1995). Em 1920, como sabemos, as pulsões sexuais e as pulsões do
eu são reunidas sob a denominação pulsões de vida, em oposição à pulsão de morte.
Uma das preocupações de Freud era articular os frutos da investigação sobre a
psicose com a teoria da libido. A hipótese de introversão da libido, defendida por Jung,
é considerada por Freud como muito vaga, sobretudo, porque esta é concebida como
uma energia indiferenciada. Freud enfatiza o fundamento sexual da psicose, justamente,
a partir de seu estudo do relato de Schreber, defendendo que seu delírio constitui uma
defesa à homossexualidade.
A hipótese de um narcisismo primário
26
e normal surge, justamente, a partir da
aproximação, não mais da paranoia, mas da esquizofrenia. Nessa afecção, as
características centrais em relação à teoria da libido seriam a megalomania e o
afastamento do mundo externo. A megalomania remeteria, entretanto, não a algo novo,
mas a uma condição primeira: “formamos a ideia de que há um investimento libidinal
original do eu, parte do qual é posteriormente transmitido aos objetos” (FREUD, 1914b,
p. 90). Freud esclarece que a antítese entre libido do eu e libido objetal – “quanto mais
uma é empregada, mais a outra se esvazia” – seria mais evidente na psicose. Passando à
discussão sobre a retirada da libido, devemos lembrar que Freud a relaciona com a
perda da realidade, porém não de forma simplista. Ele alerta para que não se considere a
sexualidade em seu sentido genital, nem se considere a localização patogênica da libido
apressadamente, pois esta pode ser sublimada. Na psicose, diferente da neurose, a
retirada da libido ocorreria sem o recurso da fantasia, resultando em um afastamento do
objeto e um acúmulo no eu.
É partir de 1915, segundo indica Maleval (2009a), que Freud questiona com
maior intensidade o papel do recalcamento na psicose, porém não chega a isolar com
precisão a especificidade do seu mecanismo. Oscila entre as hipóteses de Verleugnung
(desmentido ou renegação) e de Verwerfung (foraclusão), usado com menor frequência.
Sendo o termo Verleugnung (desmentido) mais ligado à criação do fetiche na perversão
e inofensiva na criança, Lacan conclui que haveria pouca solidez na atribuição freudiana
26
É a partir de 1914 que a noção de narcisismo ganha destaque e a ideia de um narcisismo primário
aparece como fase intermediária entre o auto-erotismo e o narcisismo propriamente dito, correspondendo
à unificação do eu. A partir de 1920, prevalece a noção de narcisismo primário, porém remetendo a um
período no qual ainda não há eu e a pulsão sexual se satisfaz auto-eroticamente no corpo (GARCIA–
ROZA, 1995, p. 46).
76
desse mecanismo à psicose e valoriza o segundo termo. Ocorre que, enquanto para os
pós-freudianos a psicose tende a ser concebida como potencialidade humana, Lacan
postula um caminho diverso, enfatizando o acento de radicalidade da Verwerfung
(foraclusão), não obstante os dois termos compartilhem o campo semântico.
A teorização da segunda tópica, em 1923, leva Freud a recolocar a diferenciação
entre neurose e psicose em termos de um conflito entre três forças, o eu, o isso e a
realidade: “[...] em uma neurose, o eu, em sua dependência da realidade, suprime um
fragmento do isso (da vida pulsional), ao passo que, em uma psicose, esse mesmo eu, a
serviço do isso, se afasta de um fragmento da realidade” (FREUD, 1924[1923]a, p.
229). Em uma segunda elaboração, Freud estabelece a diferenciação em termos do fator
decisivo em jogo: a realidade no caso da neurose e o isso no caso da psicose. O poder
do isso no afastamento da realidade, na psicose, resulta na criação de uma nova
realidade que não tem restrições a este (FREUD, 1924[1923]a).
Concluímos considerando que a tese freudiana mais tardia sobre a psicose
retoma as formulações dos textos de 1894 a 1896. Assim, a psicose é relacionada a uma
defesa mais enérgica, ao funcionamento a céu aberto do inconsciente e à retração da
libido em relação aos objetos.
2.3 Lacan: o inconsciente à flor da terra
A questão não é tanto a de saber por que o
inconsciente que está aí, articulado à flor da
terra, permanece excluído para o sujeito, não
assumido – mas porque ele aparece no real.
Lacan, 1955-56.
2.3.1 Foraclusão do Nome-do-Pai
Durante a década de 50, Lacan destaca o lugar central do significante na
constituição do sujeito, concebendo o inconsciente como “estruturado, tramado,
encadeado, tecido de linguagem” (LACAN, 1955-56/2002, p. 139). Seguindo as pistas
de Freud, sobretudo em sua abertura para novas indagações, a direção de sua abordagem
das psicoses tem duas vertentes fundamentais. Em primeiro lugar, é no registro da fala
77
que afirma encontrar toda a riqueza fenomenológica da psicose, esta, certamente,
referida ao inconsciente (LACAN, 1955-56/2002). Ou seja, assim como Freud, ele
legitima os fenômenos da psicose no mesmo terreno em que opera a experiência
psicanalítica. Em segundo lugar, é na ordem da relação com o significante, mais
propriamente em um acidente desse registro – o simbólico – que Lacan encontra o ponto
principal de especificidade da estrutura da psicose (LACAN, 1957b/1998).
Assim, Lacan leva em conta os transtornos de linguagem presentes na psicose –
aliás, desde suas primeiras aproximações da teoria freudiana – como um caminho
importante para estabelecer as relações entre fenômeno e estrutura. Ele chega a
estabelecer a presença das alterações de linguagem como convenção provisória na
definição diagnóstica de psicose (LACAN, 1955-56/2002). A importância concedida a
estes tem como antecedente a longa tradição da semiologia psiquiátrica como veremos,
com mais detalhe, adiante. As “modalidades originais” que mostram a linguagem na
psicose (LACAN, 1946/1998, p. 168) conduzem Lacan a retomar a questão da psicose
no ponto em que Freud a deixa, a saber, na diferenciação do seu mecanismo específico.
Conforme aponta Napolitano (2005), é a partir dos transtornos de linguagem que Lacan
evidencia uma distinção que acompanhará seu ensino: os fenômenos que representam
marcas da decomposição, da estereotipia e da inércia do simbólico e aqueles que
resultam em “efeitos de criação”. Lembremos que, já em sua tese de doutoramento,
Lacan defende as “virtualidades de criação” produzidas diretamente pela psicose
(LACAN, 1932/2011, p. 287).
A foraclusão do Nome-do-Pai é o conceito central para a definição da estrutura
da psicose e para a afirmação de sua causalidade significante. Lacan começa a delineálo durante seu seminário das psicoses, dando a este um acabamento mais formal em
1957, em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”.
Construído a partir de sua leitura de Freud e da afirmação do privilégio do simbólico na
constituição do sujeito – momento de seu ensino para o qual concorre também a
referência à dialética hegeliana, à linguística estrutural e às contribuições de LéviStrauss (MALEVAL, 2009a) –, aponta para um acidente significante que atinge o
suporte da ordem simbólica. Formulações posteriores – sobre o gozo e o real –
confirmam a fecundidade dessa hipótese, conforme tão bem pontua Maleval (2009a, p.
12), permitindo retomá-la em uma perspectiva diferente. No campo da clínica, se essa
conceituação confirmou a atitude de reserva e prudência, recomendada por Freud, não
deixou de abrir perspectivas importantes por levar em conta a produção do sujeito pela
78
linguagem e não a via do eu, pela qual algumas orientações pós-freudianas se
pautaram27.
Lacan propõe a tradução de Verwerfung por foraclusão na última aula de seu
seminário sobre as psicoses. Segundo Maleval (2009a), ele não fornece indicações sobre
essa escolha e o autor vai buscá-las no uso do termo na língua francesa, assim como na
cena teórica em que o conceito é forjado. Com o sentido de exclusão, o termo é usado,
na língua francesa, no campo jurídico, significando “a caducidade de um direito não
exercido nos prazos prescritos”
28
. Sabemos que a tese da foraclusão do Nome-do-Pai
vai articular desejo e Lei. O Nome-do-Pai é concebido em sua referência religiosa, isto
é, como a busca do sujeito de um elemento exterior que garanta a consistência dos
limites da sua morada na linguagem. O mesmo termo traz o eco da proibição como
mandamento negativo – principalmente na língua francesa: Nom Du Père e Non Du
Père remetem à lei do desejo a partir do mito freudiano “Totem e tabu”, portanto, ao pai
morto. A morte do pai, dando origem à culpa, regularia, então, o desejo. Maleval
(2009a) assinala que o mito confere forma épica à hipótese do inconsciente.
É preciso lembrar que Lacan diferencia o Outro como lugar do significante do
Outro como lugar da Lei (LACAN, 1957b). Ou seja, a falência do Nome-do-Pai diz
respeito à falência do significante que, no lugar do Outro como significante, é o
significante do Outro como lugar da Lei. Antes de prosseguir, vejamos, porém, uma
elaboração inicial da noção de Verwerfung por Lacan. E a questão que a introduz é:
como diferenciar o real como impossível de dizer, como excluído do simbólico, do
funcionamento a céu aberto acessível nos fenômenos psicóticos? Como estabelecer uma
distância entre o indizível original e o simbólico não dialetizável das psicoses?
Maleval (2009a) assevera que, no inicio da teorização lacaniana o conceito de
Verwerfung não remete ao campo da psicose. Através do uso do termo por Freud, no
texto “A negativa”, de 1925, Lacan procura aprofundar a relação entre recalcamento
primário e emergência do sujeito, mas também aproxima a Verwerfung do recalcamento
primário, no artigo “Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a Verneinung de
Freud”, de 1954. No texto freudiano, tão breve quanto denso, é considerada a gênese do
julgamento que levaria a aceitar ou negar o conteúdo do pensamento. Freud parte da
27
Paul Federn define a psicose a partir da debilidade do eu, que seria responsável pela liberação do
inconsciente (MALEVAL, 2009a, p. 34).
28
Tradução livre de “La caducidad de un derecho no ejercido en los plazos prescritos” (MALEVAL,
2009a, 61).
79
ideia de que um juízo negativo é o substituto do recalcamento
29
, tendo suas raízes
ligadas às pulsões e ao princípio de prazer (FREUD, 1925). Nessas considerações,
subverte a tradição filosófica, propondo que o juízo de existência é posterior ao juízo
atributivo primitivo. Uma Bejahung (afirmação primordial) precederia a Austossung
(expulsão/rejeição). Essa inversão é explicada da seguinte maneira: Freud concebe um
eu-prazer original que funda um dentro e fora a partir de qualidades: o bom é introjetado
e o mau é expulso (werfen), segundo o modelo da pulsão oral. Então, “aquilo que é
mau, que é estranho ao eu, e aquilo que é externo são, para começar, idênticos”,
conforme esclarece Freud (FREUD, 1925, p. 297). Ser integrado ao eu é a condição
para negar algo. Como foi mencionado, Lacan aproxima a Verwerfung do recalque
primário que divide um domínio admitido no simbólico e outro fora, não havendo para
Freud uma distinção clara dos termos.
No julgamento de existência também se trata de uma diferenciação entre um
“dentro” e um “fora”, agora guiada pelo teste de realidade – o atributo “bom” é
merecido pelo que pode ser encontrado no mundo externo. Freud lembra que as
representações se originam de percepções, não se diferenciando, inicialmente, destas. O
objetivo do teste de realidade é convencer-se de que o objeto está lá ou, como coloca
Freud, “reencontrá-lo”, pois o objeto da satisfação real foi perdido.
A partir do caso do “homem dos lobos”, de Freud, Lacan coloca que a castração,
excluída da simbolização primordial (Bejahung), não retorna como recalcado, mas
aparece no real: “A castração, que é precisamente o que para ele não existiu, manifestase sob a forma do que ele imagina – ter–se cortado o dedinho” (LACAN, 195354a/1986). A partir de Freud, Lacan concebe que “o que teria sido submetido à
Bejahung, a simbolização primitiva, terá diversos destinos, o que cai sobre o golpe da
Verwerfung primitiva terá outro” (LACAN, 1955-56/2002, p. 98).
A anterioridade da Bejahung é, para Lacan, lógica, e dela depende a dialética
neurótica, definida como uma palavra que se articula – isto é, recalcado e retorno do
recalcado são uma só coisa. Assim, na psicose, algo que não foi simbolizado retorna no
real. Concebendo a Bejahung como sujeita a toda espécie de acidente, afirma: “é com o
que resta que o sujeito compõe um mundo, e, sobretudo se situa dentro” (LACAN,
1955-56/2002, p. 99).
29
Ideia exposta no livro sobre os chistes (1905), no texto “Dois princípios” (1911), e no artigo
metapsicológico “O inconsciente” (1915).
80
Voltemos ao nexo que Lacan estabelece entre Verwerfung e Édipo, a partir da
consideração do pai como significante. A lei simbólica é aquilo que intervém na relação
imaginária, conflituosa, do Édipo – algo deve servir para estabelecer uma distância.
Lacan coloca: “A ordem que impede a colisão e o rebentar da situação no conjunto está
fundada na existência desse nome do pai”. O pai é concebido, portanto, como “ordem
da palavra” (LACAN, 1955-56/2002, p. 114).
Para concluir, provisoriamente, lembramos a referência – bastante poética – de
Lacan ao acometimento do significante na psicose, a partir do relato de Schreber: tratase “de uma desordem provocada na junção mais intima do sentimento de vida do
sujeito” (LACAN, 1957b/1998, p. 565).
2.3.2 Na esquizofrenia, todo simbólico é real
A clínica da psicose confirma a importância da ordem simbólica – cerne da
descoberta freudiana (NOMINÉ, 2000) quase pelo seu avesso, posto que a fala e a
escrita comportam uma estranheza, seja por sua forma, ênfase ou organização.
Paradoxalmente, também é no terreno da palavra – onde se evidencia a claudicação do
simbólico – que também são travadas as mais intrigantes lutas na psicose. Ou seja, na
relação do sujeito com a linguagem, encontramos mais evidenciados os problemas da
determinação do sujeito no campo do Outro, assim como seus esforços de construir e
manter uma morada cujos alicerces faltaram. Examinaremos a afirmação lacaniana de
que, para o esquizofrênico, “todo o simbólico é real” (LACAN, 1953-54b/1998, p. 394)
e que corresponde à proposição freudiana sobre o tratamento das palavras –
significantes – como coisas. Vejamos como o sobreinvestimento na representação de
palavra remete a uma tentativa de recuperação cuja especificidade Lacan desenvolve a
partir de sua leitura de Freud.
Lacan usa a interessante expressão “pontuação sem texto” para assinalar que, se
algo retorna erraticamente no real, é porque foi excluído do limite da simbolização
(LACAN, 1953-54b/1998, p. 390). Desvinculados simbólico e imaginário, manifesta-se
a falta da associação estável entre representações de palavra e representações de objeto
com efeitos sobre a significação. A partir da lição freudiana – que leva em conta o
81
recalcamento –, Lacan destaca a especificidade do sobreinvestimento da representação
de palavra na psicose como consequência da foraclusão do Nome-do-Pai.
Se a mediação da linguagem introduz uma distância entre o sujeito e o real, o
acesso ao exercício do símbolo é pago com uma separação original, para Freud, de seu
objeto de satisfação inicial. A Lei da linguagem diz respeito a uma perda irrecuperável e
está associada à instauração de um regime de oposições próprio do significante. Como
vimos, progressivamente, Lacan diferencia a falta fundadora do sujeito da falta de um
significante primordial no simbólico. O trabalho com o texto freudiano sobre Schreber o
conduz a tomar o pai como o “ponto de amarração entre significante e significado”, o
que confere a sustentação central do simbólico. Sem este, como veremos adiante, a
corrente contínua do significante permanece sem direção (MALEVAL, 2009a, p.57).
Do “texto simbólico” – registro da rememoração – Lacan resgata a característica
fundamental da ordem simbólica: o vazio é a condição de sua propriedade dialética.
Talvez daí a insistência do esquizofrênico em estabelecer esse vazio fundador da ordem
simbólica – “nada existe senão sobre um fundo de ausência”. O paranoico, entretanto,
produz ensaios significantes, acessíveis nos fenômenos elementares, que “só depois de
uma organização discursiva longa e penosa, conseguem estabelecer, constituir, esse
universo sempre parcial a que se chama delírio” (LACAN, 1953-54/1998, p. 394). Ou
seja, ocorreria uma inclinação do simbólico na direção do real, no caso da esquizofrenia
e uma tendência à imaginarização, no caso da paranoia, sendo que o ponto em comum é
o ganho de autonomia das representações de palavra.
Lacan defende, em seu seminário sobre as psicoses, a exigência da presença de
distúrbios na ordem da linguagem para o diagnóstico de psicose (LACAN, 195556/2002). Toma-os como fenômenos elementares, inspirado em Clérambault, não como
núcleo inicial da psicose – “um ponto parasitário”, como diz seu mestre – mas no
sentido de apresentarem as mesmas forças estruturantes do delírio. Tais fenômenos
anunciam, em geral, a catástrofe subjetiva correlativa ao desencadeamento da psicose.
Se tomarmos o esquema L que apresenta o sujeito repuxado na direção de seus
quatro cantos – a saber, S (sujeito), a (estúpida e inefável existência), a’ (eu) e A
(Outro) –, para considerar que o que ocorre no nível do questionamento da existência
precisa ser articulado no Outro, ficam mais claros os efeitos da foraclusão do Nome-doPai. É o vazio que surge do lado do Outro – não está escrito o que o sujeito é para o
Outro – que é denominado fenômeno elementar (NOMINÉ, 2000, p. 101).
82
FIGURA 6: Esquema L
Fonte: LACAN, 1957b/1998, p. 555
2.3.3 A metáfora paterna
[...] esses jogos significantes na psicose
acabam por ocupar o sujeito inteiramente.
Lacan, 1953-54.
A promoção de uma figura de linguagem – a metáfora – ao estatuto de conceito
é apoiada na afirmação da supremacia do significante no engendramento da
significação. Lacan o coloca de forma poética: “o arado do significante sulca no real o
significado, literalmente, o evoca, o faz surgir, maneja-o, engendra-o” (LACAN, 195758/1999, p.33). A metáfora e a metonímia conjugariam as funções essenciais do
significante. Lacan apoia-se, então, no trabalho do linguista Roman Jakobson, também
leitor de Freud, concebendo a metáfora e a metonímia como categorias linguísticas
referidas à distinção freudiana entre a condensação e o deslocamento, responsáveis pela
diferença entre conteúdo manifesto e latente do sonho. É interessante pensar que ambas
são “figuras de estilo”, como aponta Arrivé, posto que “ornamentam o discurso”,
funcionando como se apontassem para outra palavra além dela própria (in
KAUFMANN, 1996, p. 331).
Vejamos a definição de Lacan da estrutura metafórica: “é na substituição do
significante pelo significante que se produz um efeito de significação que é de poesia ou
criação, ou, em outras palavras, do advento da significação em questão” (LACAN,
83
1957a/1998, p. 519). O valor de transposição da barra pelo significante remeteria ao
lugar do sujeito, à verdade inconsciente que aparece a revelia deste.
A articulação da metáfora com a função paterna – esboçada em suas articulações
preliminares no seminário sobre as psicoses – ganha maior fundamentação com a
discussão da estrutura da neurose, no seminário de 1956-57, e é formulada no seminário
seguinte, sobre as formações do inconsciente. Como já pontuamos, Lacan coloca que a
intervenção do pai, como significante, é um pilar essencial do complexo de Édipo, base
da relação do sujeito com a cultura. O pai simbólico se especifica por ser uma metáfora,
complementa:
A função do pai no complexo de Édipo é ser um significante que substitui o
primeiro significante introduzido na simbolização, o significante materno.
Segundo a fórmula que um dia lhes expliquei ser a da metáfora, o pai vem
no lugar da mãe [...] (LACAN, 1957-58/1999, p. 180).
A via simbólica é a via metafórica, assevera Lacan. Não se trata de relação de
objeto, trata-se de que a criança, em posição de objeto, é levada a indagar sobre as idas e
vindas da mãe e a subjetivá-las. Lacan explica que encontra, na metáfora, a
possibilidade de articular mais claramente Édipo e castração. Diz ele que a posição de
sujeito é, justamente, constituída na referência a um terceiro, o grande Outro. O pai
como símbolo é correlativo da posição do falo no imaginário. Vamos acompanhar as
colocações de Lacan:
Observemos esse desejo do outro, que é o desejo da mãe e que comporta um
para-além. Só que para atingir esse para-além é necessário uma mediação, e
essa mediação é dada, precisamente, pela posição do pai na ordem
simbólica. (LACAN, 1957-58/1999, p. 190).
É a substituição de um significante por outro que instaura o intervalo na cadeia
significante. O terceiro termo é o falo, que possibilita o acesso à dialética simbólica sob
o fundamento de uma experiência de falta (CONTÉ in KAUFMANN, 1996, p. 335). Ao
renunciar a ser o falo da mãe, o sujeito recebe sua significação da metáfora paterna, que
fica por ser decifrada. A metáfora paterna permite, então, que o desejo passe pela
mediação da linguagem. Ainda assim, embora o pai seja feito de palavras, também tem
sua parte impronunciável, mas insere o sujeito no simbólico e recorta o gozo
(RABINOVITCH, 2001).
84
Se a configuração no plano imaginário, dada pela escolha de ser ou não ser o
falo da mãe, é fundamental, trata-se de indagar sobre essa escolha como diz Lacan. O
escolher estaria entre aspas, posto que o sujeito é tão passivo quanto ativo: “a frase foi
começada antes dele” (LACAN, 1957-58/1999, p. 192). Há, ainda, mais um passo a dar:
a alternativa ter ou não ter o falo é regida pelo complexo de castração. Para ter o falo, é
preciso que tenha sido instaurada a possibilidade de ser castrado:
Para que ele não seja pura e simplesmente um assujeito, é necessário que
apareça alguma coisa que lhe meta medo. É aqui que convém assinalar que o
Outro a quem ele se dirige, isto é, claramente a mãe, tem uma certa relação
com o pai. [...] O essencial é que a mãe funde o pai como mediador daquilo
que está para além da lei dela e de seu capricho, pura e simplesmente, a Lei
como tal (LACAN, 1957-58/1999, p. 196-97).
O primeiro tempo – ser ou não ser o falo – é seguido por um segundo tempo –
ter ou não ter o falo – e, finalmente, um terceiro, a dimensão de metáfora do pai. O pai
entra em jogo como “aquele que tem”, definindo a saída do Édipo. Mais do que objeto
do qual o pai pode privá-lo, trata-se de resgatar o falo como objeto de desejo da mãe em
seu valor significante. O pai aparece, efetivamente, não mais como proibidor e privador,
mas como doador, portanto, como suporte identificatório, possibilitando a articulação
das questões do sexo e da existência. Quinet (2000, p. 14) assinala que, com a metáfora
paterna, o desejo enigmático da Mãe é “significantizado” pelo falo, que se torna
significante do desejo.
Assim, implícito na metáfora paterna, encontramos um desdobramento do Outro
da linguagem em Outro da Lei. Safouan (2006, p. 81) assinala que a teoria da metáfora
paterna mostra que o desejo, articulado, inicialmente, a elementos imaginários, deve ser
submetido a um efeito significante que o articulará a uma falta. A fantasia fundamental
possibilita a construção de uma cena, de uma frase simbólica axiomática, e demarca o
gozo enigmático do Outro. Em seu efeito de significação fálica, a metáfora paterna
constitui o paradigma de toda significação, pois produz efeitos de verdade, apontando,
ao mesmo tempo, para algo irredutível.
A metáfora paterna que instaura pontos de basta, assegurando a significação
faltosa do falo, pode, entretanto, fracassar. No lugar do Nome-do-Pai existe um puro
buraco, um vazio no cerne da ordem simbólica. A não inscrição da significação fálica
acarreta consequências para o sujeito e, portanto, para a constituição da realidade.
85
No seminário sobre as psicoses, a partir do caso de Schreber, Lacan define o
fenômeno psicótico:
É a emergência na realidade de uma significação enorme que não se parece
com nada – e isso, na medida em que não se pode ligá-la a nada, já que ela
jamais entrou no sistema de simbolização – mas que pode, em certas
condições, ameaçar todo o edifício. (LACAN, 1955-56/2002, p. 102)
Lacan adverte que o delirante – referência à paranoia – articula, em abundância e
com riqueza, a solução de sua problemática, a maior parte do tempo, em produções
literárias – no sentido de “folhas de papel cobertas de escrita”, esta última característica
aproximando-o
também
do
esquizofrênico
(LACAN,
1955-56/2002,
p.
93).
Diferenciando a poesia da criação delirante, sublinha que o paranoico – em seu delírio –
não é poeta. A significação que o paranoico faz existir como resultado de sua laboriosa
construção é vazia dele como sujeito, enquanto a poesia é criação de um sujeito que
assume uma posição na ordem simbólica.
Nos elementos do delírio de Schreber, Lacan – guiado por Freud – encontra uma
solidariedade contínua e profunda entre estes: trata-se, assim, de um campo de
significação que organizou um certo significante (LACAN, 1955-56/2002). O delírio,
ao contrario do caos petrificado a que levou o abalo significante, é “uma solução
elegante” (LACAN, 1957b/1998, p. 578). Funda uma filiação, implicando o sujeito em
um elo com o pai. Via régia para a reordenação do campo da linguagem na psicose, o
delírio representa também o reengajamento na construção da realidade. Porém, trata-se
de uma realidade quase sempre problemática, pois de consistência instável, desancorada
da referência fálica (SOUZA, 1999).
Retomemos alguns pontos dessa breve incursão pela teorização da metáfora
paterna no ensino lacaniano. É a operação metafórica que propicia o estabelecimento de
uma distância entre o sujeito e Outro, pois produz o deslocamento da posição de objeto,
através da coordenação do “enigmático desejo materno” à norma fálica. Assim, regula o
gozo pela linguagem, mas deixa um resto inassimilável, como foi colocado
anteriormente – não ordena integralmente o simbólico, nem completa o Outro. A
significação fálica, produzida pela metáfora paterna, corresponde ao modo neurótico de
amarração da realidade à maneira edípica. Permite uma certa sustentação do universo
significante, onde o sujeito pode se acomodar.
86
A referência paterna é recolocada na discussão da suplência para além do
modelo neurótico da metáfora, conforme uma nota no seminário sobre as psicoses:
“Após o encontro, a colisão com o significante inassimilável, trata-se de reconstituí-lo,
já que esse pai não pode ser um pai bem simples, um pai bem redondinho [...]”
(LACAN, 1955-56/2002, p. 360). Mais tarde, no ensino lacaniano, a função paterna não
será mais redutível ao Édipo nem ao privilégio de um registro.
Fazemos duas últimas considerações a partir da elaboração lacaniana do tema da
metáfora paterna a partir de nossa clínica. Em primeiro lugar, o imperativo de trabalho
contínuo na psicose – que pode se evidenciar como um “empuxo à escrita” – decorre do
acidente no plano simbólico, representado pela foraclusão do Nome-do-Pai, que
confronta o sujeito com uma totalidade sem furo, com um Outro que o faz de objeto.
Quinet (2000) lembra que Lacan articulou uma modalidade criacionista, denominada
sinthoma, que permite pensar as alternativas de lidar com a Coisa não esvaziada de seu
gozo. Soler (2007), por sua vez, correlaciona o trabalho na psicose ao trabalho na
transferência, mas diferenciado, pois dele o próprio sujeito se encarrega, solitariamente.
A autora também fala do expediente de “civilizar o gozo até torná-lo suportável” por
diferentes soluções.
A segunda articulação que interessa para o nosso tema ocorre entre o delírio e as
perturbações de linguagem. Como coloca Maleval:
A foraclusão da função paterna suscita uma carência da significação fálica
que desconecta o objeto a de sua dependência da cadeia significante. Resulta
disso uma deslocalização do gozo. No campo da linguagem certos
significantes se tornam autônomos e então adquirem um caráter objetal.
(MALEVAL, 1998, p. 72)
O fenômeno do isolamento de alguns significantes, consequente à ruptura da
cadeia significante, torna-se acessível nas interpretações delirantes. Esses elementos que
comparecem no real se revelam particularmente importantes para o sujeito, o que dá
testemunho do gozo que se vincula com a letra. Reenxertados na trama do delírio, no
caso da paranoia, ou submetidas ao processo primário, na esquizofrenia, constituem
uma tentativa de ordenar e limitar o gozo. Em sua função de ponto de basta, a metáfora
delirante remete às relações significantes estruturantes da posição do sujeito em relação
ao gozo e ao Outro (BORGES, 2010, p.177). Voltaremos ao tema da metáfora delirante
em nossa discussão sobre as estratégias de estabilização nas psicoses.
87
2.4 Estratégias de estabilização nas psicoses
Quem anda no trilho é trem de ferro
Sou água que corre entre pedras:
- liberdade caça jeito
Procuro com meus rios os passarinhos
Eu falo desemendado.
Manoel de Barros
Propomos trabalhar a noção de estabilização a partir das contribuições de Lacan
para a discussão das perspectivas da direção do tratamento na clínica da psicose,
buscando situar como a escrita aí se insere. Assinalamos, inicialmente, conforme indica
Soler (2007), que o uso mais ou menos comum do termo estabilização exige a
introdução de certo rigor para sua consideração no campo psicanalítico.
Em seu seminário sobre as psicoses, Lacan indaga se a estabilização
proporcionada pelo delírio estaria relacionada a uma forma de compensação que levaria
o sujeito a um estado mais calmo do que no momento da eclosão da psicose e a certo
domínio sobre sua psicose (LACAN, 1955-56/2002). Referindo-se a Schreber,
considera que ele escreveu sua obra “no auge de sua estabilização”, o que aponta para
duas dimensões concernentes ao próprio lugar do simbólico: a dependência do
imaginário da rede significante e a estabilidade do simbólico pelo Nome-do-Pai.
Schreber produz, entretanto, algo distinto do compromisso simbolizante – apoiado na lei
edípica – da neurose. Guerra (2010) assinala que o acompanhamento das soluções
encontradas na psicose implica em conceber um sujeito que constrói saídas para o
embaraço de sua posição em relação à linguagem.
Sabemos que a psicanálise questiona a psicologia clássica sobre a ideia de
“adaptação”, pois há sempre algo “que não cola”, como diz Lacan. Sempre somos
passados para trás, pois “mesmo quando se faz alguma coisa que da certo, não é
justamente o que se queria”. Não há nada como “um eu bem adaptado, razoável, que
sabe navegar, reconhecer o que tem de ser feito e o que não tem de ser feito, levar em
conta as realidades” (LACAN, 1955-56/2002, p. 99). A neurose, entretanto, mostra a lei
do pai sustentando a ordem da palavra de modo que a imagem corporal ganha
estabilidade e a apreensão da realidade passa pela via do desejo. Já na psicose, como
colocamos anteriormente, há um procedimento peculiar para compor um campo de
88
significação: “uma longa construção que foi para ele a solução de sua aventura interior”
(LACAN, 1955-56/ 2002, p. 95). Ocorre que, se, na neurose, é pela angústia que se
revela o algo de profundamente rasgado na relação do sujeito com o mundo, na psicose,
esse abismo não está costurado em alguns pontos (GARCIA, 2011), tomando essas duas
dimensões outra importância e configuração.
Lacan coloca que, em seu escrito, Schreber articula a estrutura do mundo
imaginário de “mil maneiras”, porém de forma diferente do que o poeta alcança no
processo metafórico. Ou seja, o próprio significante sofre remanejamentos que resultam
no acento característico do uso da linguagem na psicose. Na psicose, algo do sujeito não
foi simbolizado (LACAN, 1955-56/2002) e estão em jogo, portanto, significantes
isolados da cadeia que abatem o sujeito (SOLER, 2007). Podemos dizer que se trata de
uma navegação na qual o navegador é exigido de forma radical, posto que deve
construir uma âncora que o permitiria parar em algum porto durante sua viagem e não
ser arrastado pela deriva da pulsão. Alguns a encontrarão antes de uma submersão,
outros somente após, sendo que a expressão “mártir do inconsciente” remete a uma
posição de trabalho como tão bem situa Soler (2007).
Cumpre considerar as noções de desencadeamento e de enigma, conforme
desenvolvidas por Lacan, balizas importantes para a discussão da estabilização
(GUERRA, 2007). De modo geral, o desencadeamento remete à confrontação do sujeito
com o que determina sua própria estrutura, a saber, na organização do simbólico.
Seriam três as condições para o desencadeamento da psicose: a condição estrutural, a
quebra da identificação imaginária e a condição específica. A primeira, conforme
esclarece Maleval (2009a), diz respeito à própria condição estrutural que põe em
evidência a carência paterna em sua função de regular o desejo. A segunda condição, a
quebra da identificação imaginária, incide sobre a identificação em que o sujeito assume
o desejo da mãe. Finalmente, a terceira, a condição específica diz respeito à entrada do
pai em sua dimensão real – portanto, fora do simbólico – em alguma situação que tenha
por base a relação da dupla imaginaria.
A noção de enigma é dimensionada na década de 50, com a retomada de Lacan
da leitura de Schreber, sendo correlativa da ideia do surgimento de significantes fora da
cadeia, desarticulados do simbólico. Mesmo em sua teorização inicial, essa perspectiva
abre o caminho para a conceituação da letra, como veremos. O paradoxo central estaria
em que, apresentando uma densidade, esses significantes funcionariam como “chumbo
na malha”, mas também remeteriam ao vazio radical. Assim, segundo Guerra (2007),
89
diriam respeito, ao mesmo tempo, a uma certeza de significação e a uma experiência de
não sentido.
Devemos lembrar que há dois grandes momentos nos quais Lacan situa o cerne
da estabilização da psicose: primeiro, a ênfase recai na sutura imaginário-simbólico e,
depois, na sutura do simbólico com o gozo (SOLER, 2007, p. 204). Tal consideração
está ligada, como sabemos, a uma mudança na teorização da psicose. A foraclusão do
Nome-do-Pai, tomada como “condição essencial” da estrutura da psicose – uma vez que
há psicoses não desencadeadas –, pode encontrar um substituto que realize uma função
análoga. A desestabilização seria, então, justamente, o fracasso do ponto de basta. A
pluralização do Nome-do-Pai abre para formas diferentes de basteamento do imaginário
e do simbólico. Por fim, o próprio Nome-do-Pai é considerado como elemento
suplementar do caráter nodal dos registros real–simbólico–imaginário.
O termo suplência aparece no ensino de Lacan, no final da década de 50, em seu
seminário “As formações do inconsciente”, quando se refere a Schreber: “o sujeito tem
de suprir a falta desse significante que é o Nome-do-Pai” (LACAN, 1957-58/1999,
p. 153). O Nome-do-Pai é o significante essencial, no que ele funda a lei numa certa
ordem – a lei do Édipo, da proibição da mãe – e Lacan busca estabelecer o que acontece
na psicose a partir da linguagem. É na dimensão metafórica que concebe a função
paterna: “é preciso ter o Nome-do-Pai, mas é também preciso que saibamos servir-nos
dele” (LACAN, 1957-58/1999, p. 163). Ou seja, o cerne da operação metafórica
evidencia a primazia do significante e a possibilidade do sujeito dispor do simbólico
para lidar com o traumático.
Soler (2007) defende que os termos metáfora e suplência, pertencentes ao ensino
lacaniano, contribuem para delinear a especificidade do tema da estabilização no campo
mais específico da clínica da psicose. A mesma autora faz outra diferenciação de
interesse para pensar as estabilizações como esforços de tratamento do real. Nessas
tentativas, que poderiam ou não funcionar como suplências, o sujeito poderia se servir
do simbólico, do imaginário e do real. Os modos mais duradouros de estabilização
teriam como referências principais a metáfora delirante, formulada na década de 50 com
o caso Schreber, e o conceito de sinthoma, articulado na década de 70, com a escrita de
Joyce. Para a autora, situar o esforço curativo do sujeito deveria constituir, justamente,
uma tarefa preliminar na condução do tratamento.
Ao retomarmos os caminhos de estabilização na psicose, conferimos destaque à
discussão do trabalho de escrita em suas possibilidades depois do desencadeamento e
90
evitando-o. A escrita, em sua dimensão de empuxo ao gozo, ilustra bem dois caminhos
distintos de estabilização, a partir do ensino lacaniano: erotização do significante e a
gozo da letra. O sobreinvestimento da palavra, como via de trabalho na psicose, foi
indicado por Freud – embora também situado pela psiquiatria clássica – já abre a
perspectiva para essa consideração. Finalmente, propomos articular a relação entre
estabilização e laço social.
Escolhemos tomar algumas estratégias de estabilização na psicose, buscando
articular a escrita como parte de um conjunto maior de procedimentos que, expondo os
efeitos da foraclusão do Nome-do-Pai, também indicam os esforços de reconstrução nos
quais é possível circunscrever efeitos de sujeito. Sabemos que nem sempre tais
caminhos serão conquistados no trabalho analítico, porém pode a psicanálise, ao apostar
na riqueza dessa via, contribuir na condução do tratamento no acompanhamento em
dispositivos de atenção interdisciplinar.
A partir do ensino lacaniano, podemos discernir cinco modalidades de
estabilização, a saber, a compensação imaginária, a passagem ao ato, a metáfora
delirante, a suplência perversa e a escrita. Algumas teriam uma estrutura mais afeita a
um certo adiamento, mais ou menos sustentável, do desencadeamento, outras realçariam
a dimensão de enfrentamento mais radical com a linguagem correlativa à eclosão da
psicose. A escrita apresenta a peculiaridade de constituir um recurso comum nas duas
situações, além de envolver uma referência ao simbólico e ao real.
2.4.1 Compensação imaginária
Em seu seminário sobre as psicoses, quando toma a psicose como uma
despossessão primitiva do significante – de um significante primordial, ligado à função
paterna –, Lacan concebe que o sujeito possa dela se encarregar, assumindo
identificações conformistas que funcionam como “muletas imaginarias” (LACAN,
1955-56/2002, p. 233). O sujeito arranja-se com uma imagem que, mesmo implicando
uma redução do significante paterno, portanto não se inscrevendo em uma dialética
triangular, permite um enganchamento. A imagem assume uma função sexualizada
(simbólica), mas funciona em sua dimensão de captura e de alienação radical. Lacan faz
91
uma analogia: “nem todos os tamboretes tem quatro pés. Há os que ficam em pé com
três” (LACAN, 1955-56/2002, p. 231).
Lacan compara esse mecanismo de compensação imaginária à formulação
clínica da “personalidade como se” de Helene Deutsch30, considerando como uma
dimensão significativa da sintomatologia esquizofrênica. A autora busca apreender sua
formulação a partir da própria clínica.
A única razão pela qual uso esse rótulo pouco original para o tipo de pessoa
que desejo apresentar é que toda tentativa de compreender o modo de sentir
e a maneira de viver dessas pessoas traz ao observador uma inevitável
impressão de que todas as relações do indivíduo com a vida têm algo em si
que mostra uma falta de autenticidade e ainda assim, aparentemente, seguem
em frente “como se” tudo estivesse bem (DEUTSCH, 1942).
Recortamos, a partir da afinada descrição da autora, sua observação sobre o
trabalho intelectual e criativo:
A primeira impressão que essas pessoas provocam é de completa
normalidade. Elas são intelectualmente preservadas, bem dotadas e
compreendem bem os problemas intelectuais e emocionais; mas quando
perseguem seus frequentes impulsos para o trabalho criativo, elas
constroem, na forma, um bom trabalho, mas ele é sempre uma espasmódica
repetição, embora hábil, de um protótipo sem o menor traço de
originalidade. Numa observação mais próxima, o mesmo acontece nas suas
relações afetivas com o ambiente. (DEUTSCH, 1942).
É interessante considerar que a autora menciona que, apesar da carência de uma
marca de originalidade, a busca criativa seria comum. De modo geral, ela refere à
origem da “personalidade como se” a três pontos principais: a dificuldade de
investimento objetal, a dimensão ortopédica das identificações e a ausência de
modulação afetiva. Sua descrição clínica é extremamente rica e ela indica uma
perspectiva interessante dada à peculiaridade da transferência: foi a emergência da
angústia na transferência em um de seus casos que possibilitou algum movimento de
trabalho. Lembramos que Lacan é muito cauteloso, assinalando a ausência de uma
sustentação simbólica para a identificação a “personagens que lhe darão o sentimento do
30
Freud sugere que Helene Deutsch escolha outro termo para designar o fenômeno clínico, pois Hans
Vaihinger havia postulado a filosofia do “como se”. Para o filósofo alemão, o homem não pode realmente
conhecer a realidade do mundo e, por essa razão, constrói ficções através das quais acredita entendê-lo.
Verbete “Hans Vaihinger” disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Hans_Vaihinger. Consultado em
13/10/2011. Deutsch (1965) reconhece a ousadia de sua insistência no termo em relação ao mestre: “Mas
eu não pude abandoná-lo, porque não era possível encontrar outro termo que conviesse melhor à situação.
E não seguir o conselho de Freud nesta época, e em Viena, já era uma espécie de revolução!”.
92
que é preciso fazer para ser um homem” (LACAN, 1955-56/2002, p. 233). Essa
tentativa de restituição, embora possa durar algum tempo, também está aberta ao risco
de ser interrogada, justamente, ali onde ela falha, ou seja, na carência de ancoragem
simbólica.
2.4.2 Passagem ao ato
A passagem ao ato, implicando o tratamento dos retornos do real, não pela via
simbólica, resulta em efeitos, muitas vezes, letais sobre o real do corpo, além do risco
de ruptura no laço social. Colocada como solução da psicose a partir da discussão do
caso de Aimée, na tese de doutoramento de Lacan, integra sua hipótese do mecanismo
de autopunição da paranóia. O que se destaca nessa primeira abordagem é a associação
entre o ato – em sua dupla vertente de violência e autoagressão – e a queda do delírio.
Concordamos com a ideia de que, no cotidiano dos hospitais psiquiátricos, a passagem
ao ato, não obstante constitua uma irrupção do gozo em sua dimensão brutal de excesso,
pode ser elevada “à dignidade de atos passíveis de escuta” (VERAS, 2010, p. 190).
Em seu seminário sobre a angústia (1962-63), Lacan propõe uma diferenciação
entre o ato em sua dimensão significante, orientada para o Outro, referido como actingout, e a passagem ao ato, ligada ao objeto. Assim, o ato teria uma referência sintomática
– e como tal deve ser interpretado na transferência –, enquanto a passagem ao ato
implica um “sujeito que se encaminha para se evadir da cena” (LACAN, 1962-63/2005,
p. 130). Remetendo ao Outro, no ponto em que o sujeito se constitui como falante,
mostra um sujeito identificado ao objeto.
Ocorre que, na psicose, não há a extração do objeto a e, portanto, a castração não
opera seu efeito de organização simbólica a partir do Nome-do-Pai, nem introduz a
significação fálica que recorta o gozo, localizando-o, e separando o sujeito do campo do
Outro. É desse objeto que o sujeito tenta se desvencilhar. Guerra (2007) pontua que se
trata, assim, de um excesso na economia psíquica, que invade, exigindo a construção de
uma barreira. Vale lembrar, como bem ressalta Dutra (2005), que a passagem ao ato do
psicótico nada tem de projeção, na medida em que o objeto a, objeto a ser golpeado,
embora se encontre em condição de exterioridade, representa nada menos que o próprio
ser do sujeito.
93
2.4.3 Metáfora delirante
A noção de metáfora delirante designa um processo de substituição produzido no
campo da linguagem correlativa à teorização lacaniana da foraclusão do Nome-do-Pai,
construída a partir da leitura do caso Schreber e ligada à formulação da metáfora
paterna, na década de 50. Em seu seminário sobre as psicoses, Lacan retoma,
primeiramente, a indicação de Freud, a partir de Schreber, de que há mudanças na
relação com o mundo em função da regressão narcísica da libido. Para ele, trata-se de
indagar por que na psicose há tanta dificuldade de restaurar a relação do sujeito com a
realidade. Lacan procederá, neste ponto, buscando articular o processo que justifica essa
dinâmica pulsional, não a partir do eu, mas dos fenômenos verbais. Encontrando aí um
“nível de criação bastante elevado” (LACAN, 1955-56/2002, p. 137) e que diz respeito
à linguagem, Lacan concebe o delírio como um “campo de significação que organizou
um certo significante”. Reafirmando a solidariedade profunda dos elementos
significantes no extenso escrito de Schreber, Lacan assinala: “[...] a análise do delírio
nos revela a relação fundamental do sujeito no registro no qual se organizam e se
desenvolvem todas as manifestações do inconsciente” (LACAN, 1955-56/2002, p. 141).
Rebate a ideia de que a “elaboração em palavras” seria imprópria e sempre distorcida
em relação ao inefável e incomunicável do vivido da psicose em seu período fecundo.
Assim coloca Lacan:
Por que um estado terminal seria menos instrutivo que um estado inicial?
Nada garante que esse estado terminal represente uma menos-valia, desde
que admitamos o principio de que, em matéria de inconsciente, a relação do
sujeito ao simbólico é fundamental (LACAN, 1955-56/2002, p. 138).
Podemos retomar, nesse ponto, a importante contribuição de Maleval (2009a)
acerca da estrutura evolutiva do delírio. Diferenciando da estrutura tripartida proposta
pela psiquiatria clássica – perplexidade inicial, elaboração e sutura megalomaníaca –, o
autor responde, segundo ele próprio, ao convite de Lacan de articular a lógica
quaternária já esboçada em seu ensino. Apresentamos abaixo um pequeno quadro
comparativo da consideração da evolução do delírio pela psiquiatria clássica e da lógica
quaternária proposta por Maleval a partir de Lacan:
94
Quadro 1 - Estrutura evolutiva do delírio: psiquiatria e psicanálise
Psiquiatria clássica
Psicanálise
1. Perplexidade inicial.
1 – Perplexidade – desencadeamento do
significante e deslocalização do gozo.
2. Elaboração inquieta.
2 – Tentativa de significantização do
(Esquizofrenia)
gozo do Outro.
3. Sutura megalomaníaca.
3 – Localização do gozo do Outro.
(Paranoia)
4 – Consentimento.
Testemunho
Fonte: Maleval, 2009a
É essa dinâmica de elaboração do delírio que torna mais clara – ao mesmo
tempo em que afirma sua pertinência teórica e clínica – a noção de metáfora delirante.
Em princípio, a metáfora delirante remete a uma solução mais acabada, que parte de um
movimento que se põe em jogo logo após o período inicial de perplexidade angustiante.
Lacan lembra, a propósito, que: “Não há nada a esperar do modo de abordagem da
psicose no plano do imaginário, pois que o mecanismo imaginário é o que dá a sua
forma à alienação psicótica, mas não sua dinâmica” (LACAN, 1955-56/2002, p. 170).
Passemos às fases do delírio, destacando o que cada uma tem de específico e
considerando uma margem de interpenetração dos fenômenos (MALEVAL, 2009a).
O primeiro período, denominado, mais comumente, perplexidade ou incubação,
está relacionado com transtornos hipocondríacos. É o momento de ruptura da cadeia
significante e que resulta na autonomia do significante no real. É caracterizado por uma
intensa angústia e um sentimento mais ou menos confuso de morte. Abrindo-se uma
falha no campo simbólico, o que se impõe é uma alteração da ordem do mundo. A
carência do significante paterno é revelada em suas duas principais consequências: o
desencadeamento do significante e a deslocalização do gozo.
No segundo período, ocorre uma mobilização significante para remediar a falha
simbólica inicial. É a fase em que se desenrolam tentativas de elaboração confirmatória
no sentido de busca de uma explicação para os fenômenos que invadem o sujeito.
Ocorre, com frequência, a chamada a um princípio paterno, encarnado em figuras da lei,
do poder e do divino, mas também em invenções revolucionarias, entre outros
exemplos. O ponto central é a tentativa de significantizar o gozo. Sua forma é,
entretanto, paranoide, pois o delírio ainda não está organizado.
95
No terceiro período, quando o sujeito recupera um ponto de apoio, através da
significantização do gozo, o delírio se sutura e se organiza em uma armação mais ou
menos fixa. Um eco da violência do gozo, entretanto, persiste no cerne do delírio,
adquirindo a forma de perseguidores, porém, agora, localizados. Nesse ponto, situa-se o
paranoico que identifica a desamarração do gozo – que ameaça a ordem do mundo – no
campo do Outro. Diferente do que ocorre na esquizofrenia, conforme sublinha Quinet
(2006), o paranoico concentra o gozo de três formas básicas: o Outro perseguidor
(delírio de perseguição), o Outro do amor (delírio erotomaníaco) e o Outro da traição
(delírio de ciúmes).
Finalmente, no quarto período, o sujeito encontra-se em pleno acordo com a
realidade reconstruída. Consente ao gozo, porque, dessa forma, alcança um saber
essencial, geralmente recebido de uma figura paterna da qual passa ser responsável por
transmitir sua palavra ou se tornar sua encarnação. Essa situação é correlativa aos temas
megalomaníacos e fantásticos. Embora seja confundido com o delírio paranóico, é mais
raro e tem características peculiares. Ocorre um apaziguamento subjetivo, mas a
originalidade de sua criação tende a afastá-lo do laço social e conduzi-lo à condição de
testemunho.
Recapitulando, podemos dizer que a metáfora delirante é uma construção mais
acabada, ligada aos principais efeitos da foraclusão do Nome-do-Pai. Nesse processo,
que nem sempre se completa, os significantes ocupam o lugar da falha no simbólico que
se refletia no imaginário de diversas maneiras. As características do delírio
esquizofrênico, em especial, ganham maior esclarecimento a partir da consideração da
economia do gozo, que vai desde sua deslocalização até o consentimento a este através
de um processo de significantização. Sua elaboração, entretanto, demanda tempo e um
esforçado trabalho.
Ainda que possamos traduzir cada uma dessas fases em posições subjetivas na
psicose, conforme assinala Maleval (2009a), resta uma indagação e um desafio presente
no cotidiano dessa clínica: a posição de sujeito não estaria sempre ameaçada pelo perigo
deste se tornar objeto do gozo do Outro? Aqui, há duas considerações importantes e
correlacionadas, a saber, o estatuto do pai e a função fálica. Em primeiro lugar, a lógica
quaternária do delírio, cujo ponto central é a moderação do gozo, mostra que a carência
do pai simbólico tende a fazer surgir o pai real, formulado, por Freud, em “Totem e
tabu”. Diante do pai gozador, o sujeito na psicose dispõe de poucas opções: tornar-se
rebotalho; feminilizar-se; eliminá-lo ou colocar-se a seu serviço para testemunhá-lo. Se
96
na neurose, a função fálica, recortando o gozo a partir da referência simbólica, permite
ao sujeito estabelecer, por meio da fantasia, uma distância em relação ao objeto, na
psicose, ao contrario, a fragilidade das construções imaginarias ameaçam revelar o
gozo.
Uma consideração pertinente ao nosso tema diz respeito ao empuxo a
testemunhar sua experiência que concerne às posições subjetivas de denunciar e se
converter em porta voz, características das duas últimas fases da elaboração delirante.
Ou seja, o gozo, embora temperado pelo simbólico, confere valor de verdade ao delírio.
Trata-se de dar a conhecer essa verdade mediante a fala ou o escrito, como bem assinala
Maleval (2009a).
Desde Freud, portanto, que toma o delírio em sua dimensão de autotratamento, a
metáfora delirante reafirma o potencial criacionista do sujeito na psicose. Lacan
relaciona a virtude metafórica ao significante e, portanto, à posição de sujeito. Mas,
diferentemente da metáfora delirante, é na metáfora poética, frequentada pelos
surrealistas, que Lacan encontra esse objetivo contemplado. Segundo Quinet (2006),
além de permitir a estabilização, o enquadramento da dispersão dos significantes e do
gozo pelo delírio abre a possibilidade de representação do sujeito no campo do Outro e,
portanto, também viabiliza as tentativas de inserção no laço social.
2.4.4 Suplência perversa
Maleval (1995) postula a associação entre estrutura psicótica e práticas perversas
como uma modalidade de suplência à foraclusão do Nome-do-Pai. Curiosamente,
afirma que essa resposta seria tão comum quanto a escrita e os transtornos
psicossomáticos em sujeitos psicóticos que não apresentam alucinações nem delírios. O
autor leva em conta as inclinações perversas de Joyce, reveladas em sua
correspondência com a mulher, Nora, mas detém-se em um caso paradigmático
diagnosticado como masoquismo perverso e relatado, em 1972, por Michel de M´uzan.
Trata-se do Sr. M., um homem de 65 anos que apresenta em seu corpo marcas,
tatuagens, mutilações e cicatrizes que remetem a busca de uma extrema degradação do
corpo. Embora encontre alguns traços atípicos, M´uzan conclui que se trata de um “caso
de masoquismo perverso”, hipótese que Maleval irá contrapor com a ideia de uma
97
estrutura psicótica estabilizada por uma montagem imaginaria precária que revela a
posição de dejeto do sujeito, de objeto caído do simbólico. Estaria evidenciado que a
função paterna não operou para localizar e matizar o gozo. O gozo do Outro, fora da
mediação significante, domina sua economia libidinal a qual o limite fálico não chegou
a recortar. Ou seja, não lastreada pela fantasia, sua estrutura é revelada pelo tratamento
do gozo, estatuto do corpo e relação com o Outro. Indagando sobre a sustentação da
psicose do Sr. M. durante os vinte anos em que o mesmo abandona suas práticas
perversas, Maleval conclui que, embora as inscrições em seu corpo o feminizem e
fecalizem, o que predomina é a busca de uma inscrição no real do corpo: ele trata de
encarnar um falo imaginário ao qual falta a negativização da castração (MALEVAL,
1995). Dispensando o recurso da prática perversa, as letras escritas em sua carne
possibilitam, entretanto, eternizar a mesma posição frente ao Outro.
2.4.5 Obra e escrita
Queria transformar o vento.
Dar ao vento uma forma concreta e apta à foto.
Eu precisava pelo menos enxergar uma parte
física do vento; uma costela, o olho ...
Mas a forma do vento me fugia que nem as formas de uma voz.
Manoel de Barros
Escolhemos tomar a obra como fazer artístico para pensar um caminho de
estabilização na psicose. Começamos com três indicações principais, duas delas
advindas mais diretamente do campo da psicanálise a partir da obra freudiana e do
ensino lacaniano e outra de nossa experiência.
Em primeiro lugar, lembramos Freud que, interrogando sobre a arte do escritor,
afirma a relação entre o ficcional e o sexual. Segundo Jorge (2009), o artista abriria
passagem para que o inconsciente se apresentasse através da fantasia que vela o real.
Essa formulação freudiana será central na delimitação do campo psicanalítico e também
possibilitará conceber a arte como tratamento do excesso.
Em segundo lugar, pensamos que não foi sem consequências que Lacan elegeu a
escrita de Joyce para discutir o savoir-faire que sua arte evidencia, tratando-o como
98
paradigma para retomar a discussão das relações entre inconsciente e gozo e
redimensionar a clínica a partir de novas questões. Diz Lacan: “[...] anúncio o que será
minha interrogação deste ano sobre a arte” (LACAN, 1975-76/2007, p. 23). O conceito
de sinthoma marca, através de uma delimitação mais precisa da noção de suplência,
uma ênfase na dimensão real da criação.
Finalmente, em terceiro lugar, nosso interesse partiu de uma indagação nascida
de nossa experiência clínica com psicóticos sobre a relação entre psicose e criação e,
particularmente, sobre a potência da arte como uma prática que questiona as fronteiras
da psicopatologia e contribui para permitir uma posição de sujeito.
O interesse pelas relações entre loucura e produção artística é atravessado por
importantes transformações no campo da clínica e da arte e nas possibilidades de
articulação entre ambos. O trabalho artístico dos loucos foi considerado de maneiras
diversas, sendo tomado tanto em seu valor indicativo da psicopatologia como em sua
importância em termos de potência criadora ligada à experiência peculiar de sofrimento
psíquico da loucura. Já no âmbito da clínica, a arte foi convocada a participar dos
processos de transformação da instituição psiquiátrica e da problematização do tema da
loucura (LIMA, 2009). No campo da saúde mental, as chamadas oficinas terapêuticas,
muitas delas envolvendo o fazer artístico, afirmam a importância da dimensão da prática
e do laço social em suas possibilidades de agenciamento do sujeito na psicose.
Nos anos de 1975 e 1976, Lacan interroga, justamente, o savoir-faire do artista
através da escrita de Joyce. Ao longo de seu seminário, elabora a noção de sinthoma,
conferindo contornos mais definidos à noção de suplência, a partir da teoria do nó
borromeano. Trata-se de um momento de refinamento teórico de sua discussão sobre as
relações entre inconsciente e real, linguagem e gozo. Laia (2001) coloca que a criação
joyceana mostra uma referência à linguagem, sem excluir o confronto com sua
dimensão mortífera:
[...] em Joyce, a epifania enoda inconsciente e real, efetivando a articulação
do discurso do Outro, esse encadeamento simbólico determinante da
narrativa de uma vida, com o registro do real que, fora da representação e
mesmo do laço discursivo, não deixa de se impor àquele que fala. (LAIA,
2001, p. 149)
O modo de operar com as palavras e a tessitura resultante evidenciam, na obra
joyceana, a fuga do sentido. Assim, o irrepresentável ganha uma certa inscrição, mas
guarda algo da dimensão do incomunicável. A ilegibilidade estaria ligada ao
99
desprendimento da relação imaginaria com o corpo que liberaria também a consistência
imaginaria de sua narrativa. Laia afirma que o sentido comparece em uma dimensão de
fuga. Não se trata de uma obra que opera com a metáfora em suas substituições
criativas, mas de um trabalho sobre a dimensão real do sentido. Consideramos mesmo
que Lacan encontra, no expediente joyceano, uma modalidade de articulação criativa
mais complexa que o delírio, pois entrelaça o desabonamento do inconsciente com a
proliferação de gozo.
O enlaçamento entre inconsciente e real, através da obra, é tecido sobre outros
parâmetros, abordáveis, em parte, pelo que Joyce chama de “epifanias”. O termo
epifania tem acepções gerais, mas assume, na arte de Joyce, uma função particular. Do
grego, epiphaneia, quer dizer “aparição”, sendo referida, em Joyce, à dimensão do
olhar31, a qual se impõe para além da representação possibilitada no campo visual. De
certa forma, as epifanias estão ligadas à espessura enigmática que a linguagem assume
na psicose. Não obstante, vigora um certo saber do seu criador. Não se trata do real,
registro heterogêneo ao saber e alheio ao sentido, mas de um uso que as liga ao real
(LAIA, 2001). Lacan fala de amarração entre inconsciente e real, ou seja, a obra de
Joyce presentifica, ao mesmo tempo, o que falha – fora da simbolização – e o não
simbolizável. Assim, há um legível referido, ainda que minimamente, ao imaginário, e
um ilegível que escapa à interpretação delirante.
Lacan fala de uma sustentação pela arte por Joyce da falta simbólica do pai
(LACAN, 1975-76/2007). A suplência vai assumindo, no ensino lacaniano, o sentido de
um “a mais”. Guerra (2007) pontua que a discussão sobre a psicose tem efeitos sobre a
consideração da operação do significante Nome-do-Pai como cerne da estrutura. Está
em jogo a função de nomeação, diversa da significação: “faz um verdadeiro buraco na
dimensão do sentido” (LAURENT apud LAIA, 2001, p. 187). Sua obra convocaria,
menos à interpretação em sua dimensão de sentido – de símbolo – e mais à procura de
seu autor, de seu método de trabalho. É, através desse trabalho, que Joyce se impõe
como “identidade textual”, uma operação que invoca a paternidade e abre a via da
identificação simbólica. Costa lembra, com pertinência, que na psicose a produção não
está submetida à genealogia: “é criar algo que não existia antes” (COSTA, 2008, p.
31
A voz e o olhar são acréscimos que Lacan faz à série pulsional de Freud e que integram sua
contribuição mais original, a teorização do objeto a. É através do objeto a que Lacan aborda o que resta
opaco à linguagem, aquilo que é da ordem de um excesso que escapa à simbolização. Remetendo ao
gozo, em seu enraizamento no corpo, diz respeito a um objeto que se produz como perda, algo destacável
do corpo.
100
141). Não sustentado falicamente por seu pai, Joyce usa sua arte. Assim, a obra no
sentido de sinthoma seria referida a uma operação real sobre o gozo que não implica
uma apropriação simbólica, estando mais próxima da letra em sua condição de suporte
do significante. Joyce elabora o sinthoma em sua dimensão artística a partir de uma
dimensão pulsional.
Qual seria a função da obra, em sua abertura para a possibilidade de sinthoma,
na estabilização da psicose? O tratamento da dimensão pulsional seria um caminho para
pensar os efeitos sobre a posição de sujeito na psicose.
Propomos pensar a escrita em suas possibilidades de funcionar como estratégia
privilegiada ou composta com outras na estabilização da psicose. Freud encontra no
escrito de Schreber, não um prejuízo ligado ao seu adoecimento, mas um trabalho de
criação que revela a estrutura maior do delírio. Aliás, foi essa a via pela qual Freud
evidenciou uma perspectiva que revolucionou o enfoque e a clínica das psicoses: a fase
menos silenciosa da evolução da psicose, o delírio, seria uma tentativa de cura. Maleval
(2007) designa como “empuxo à criação” o movimento de execução de um trabalho
psíquico destinado a remediar os efeitos da foraclusão do Nome-do-Pai. O mesmo autor
assinala a predominância do trabalho de criação através da escrita, alem de outros
recursos, como a pintura, a escultura e os desenhos. Branco (2010) também articula sua
hipótese sobre a relação da psicose com a escrita, formulando-a com o auxilio de uma
expressão retirada do texto da escritora portuguesa Maria Gabriella Llansol: a psicose
revela sua “áspera matéria de enigma”, sobretudo, por escrito. A dimensão de letra que
assume o funcionamento do significante na psicose teria, então, pontos de convergência
com o processo poético.
O tema de nossa tese surgiu a partir da clínica com esses sujeitos, mais
precisamente a partir da experiência com uma oficina de escrita, inserida no contexto
institucional do campo da saúde mental. A presença marcante das oficinas de escrita
como dispositivos privilegiados tanto no contexto hospitalar como em recursos
substitutivos à internação (centros de atenção diária, entre outros) não deixa de chamar a
atenção. Mais raramente conduzidas dentro de proposta ocupacional ou pedagógica,
essas oficinas teriam como potencial central uma dimensão clínica de acolhimento da
prática espontânea de entrega, às vezes de maneira contínua e incansável, ao trabalho de
escrita de muitos psicóticos. Em nossa experiência, duas situações nos tocaram. A
primeira, também encontrada na literatura, diz respeito aos psicóticos que, dentro e fora
do ambiente institucional, fazem de suas anotações escritas em cadernos ou folhas soltas
101
um precioso guardado. Muitos desses escritos, ou simplesmente folhas de papel
“cobertas de escrita”, são entregues aos profissionais para guarda, sendo que boa parte
desse material, recebida como produto direto do adoecimento, fica arquivada,
justamente, nos prontuários. A segunda foi uma observação, advinda do incômodo de
um analista sobre a proeminência do trabalho de escrita sobre a fala durante a análise de
um psicótico.
Se em alguns poucos casos a posição de artista pode subsumir a posição
estrutural da psicose, a pesquisa acerca da função da criação na psicose ganha com a
aproximação da arte. A profusão de produções escritas entre psicóticos, certamente,
nem sempre poderá ser remetida à função de sinthoma – uma modalidade de
enquadramento do gozo que permite o enodamento do real, simbólico e imaginário no
ponto mesmo de seu fracasso –, nem ao campo da arte. A escrita, entretanto, tem um
lugar de destaque entre os esforços de estabilização, não devendo ser negligenciada em
seu estatuto de trabalho e, muitas vezes, de ato. Vejamos tais possibilidades mais
detalhadamente.
Maleval (1993-94) faz uma distinção quanto à diversidade de relações possíveis
entre psicose e escrita. Em alguns casos, o trabalho de escrita põe obstáculo ao
desencadeamento propriamente dito da psicose, com êxitos diversos, mas de maneira
mais ou menos duradoura. Ocorrência mais rara, esta seria o caso de Joyce, Roussel e
Wittgenstein, entre outros. Segundo o autor, os três teriam consagrado sua vida a
examinar a linguagem até o seu limite desde uma condição que implica o
franqueamento dos limites simbólicos do gozo, posto que o objeto a não foi extraído. O
gozo se manifesta, portanto, de diferentes formas. Em princípio, a suplência pela escrita
implica, então, em uma clínica diferencial que se apoia no exercício de reconhecimento
mais preciso dos erros do nó borromeano. Maleval (1993-94) coloca que Joyce
produziu, com sua obra, um enodamento que repara a desconexão do imaginário,
enquanto Roussel
32
constrói um simbólico que limita o imaginário e o real. Ambos
revelam, em sua obra, a dimensão do ilegível – e a condição de desabonados do
inconsciente –, mas de formas diferentes: Joyce, com suas epifanias, põe em relevo uma
ausência de significação, e Roussel que, em seu esforço de reduzir o texto ao S2, o
destitui de seu suporte de enunciação e produz significações vazias.
32
Raymond Roussel (1877-1933), escritor e pintor francês que foi um dos precursores do surrealismo.
Sua obra conjuga elementos sobrenaturais e jogos linguísticos..
102
Já a escrita que se associa à psicose desencadeada tem frequência e variações
mais marcantes. As produções textuais diferenciam-se, segundo Maleval, por sua
relação com o real: a escrita impossível, a escrita confrontada com o impossível e a
escrita do impossível (MALEVAL, 1993-94).
1 - Escrita impossível
Essa forma de escrita estaria próxima do campo da “arte bruta”
33
. Como uma
espécie de “escritor bruto”, o sujeito se exercitaria em uma recusa radical do Outro do
significante, tendendo a uma proliferação de neologismos. Trata-se do “gozo puro da
caligrafia”, o que, em princípio, aumenta o isolamento do sujeito, embora com efeitos
de
apaziguamento.
É
encontrada,
mais
comumente,
entre
esquizofrênicos
hospitalizados. Trata-se de uma escrita do traço unário que supõe alcançar das Ding, em
sua diferença radical, incluindo-a na letra.
2 - Escrita confrontada com o impossível
Forma de escrita caracterizada por um trabalho com a letra que localiza apenas
parcialmente o gozo, pois o ciframento operado é impotente para captá-lo. Trata-se, em
geral, de escritos de esquizofrênicos paranoides, acossados por alucinações. O trabalho
emana da rebelião frente a um Outro gozador. O trabalho textual não chega além de
cercar o impossível que não deixa de escapar.
3 - Escrita do impossível
Essa forma de escrita ultrapassa o fracasso da anterior, pois a enunciação se
aloja no texto, deixando raízes em significantes-mestre, a partir dos quais um delírio é
construído. É a escrita do sujeito que identifica o gozo no lugar do Outro, traço pelo
qual Lacan define o paranoico. A escrita do impossível se afirma como anunciando a
verdade.
Todas essas formas de escrita contribuem como estratégias para depositar o gozo
– e, correlativamente, cifrar o gozo, significantizá-lo –, embora seus modos de
esvaziamento passem por diferentes estratégias. É preciso, então, situar essas dimensões
que a escrita pode assumir na economia do gozo do sujeito na psicose. Tais modalidades
de escrita não são próprias ao psicótico, nem devem sustentar, isoladamente, um
diagnóstico diferencial das estruturas. Vejamos as três dimensões do processo pelo qual
Maleval sustenta a hipótese de “empuxo à escrita” e sua pertinência na dimensão
estrutural da psicose.
33
Tema abordado no quarto capítulo.
103
1 - Escrita como depósito de gozo:
Em principio, ressaltar que a produção escrita serve à função de “depósito de
gozo” não tem relevância particular, a não ser acompanhada da consideração da questão
do gozo na psicose. É a partir daí que se destacará uma dimensão primordial da
produção textual na psicose: sua dimensão objetal. Na psicose, o gozo comparece em
sua dimensão de excesso – invasor –, ligado ao corpo, pois não está perdido pela
castração, que marca o campo da linguagem em sua função de separar de das Ding. A
lei da castração implica em que o gozo estando perdido, precisa ser simbolizado e
limitado: é o simbólico que recorta o corpo, operando a disjunção entre gozo e desejo.
Trata-se, na psicose, de um gozo fora da lei, não regulado pela significação fálica – o
falo, em seu caráter pacificador do simbólico, oferece uma medida comum, possibilita
acordos (RABINOVICH, 2005) – e que está ligado a não extração do objeto a.
É importante destacar a acepção de mais-de-gozar do objeto a, presente na
elaboração lacaniana do final da década de 60, particularmente, nos seminários “De um
Outro a um outro” e “O avesso da psicanálise”. Assim define Lacan o mais-de-gozar: “é
uma função da renúncia ao gozo sob efeito do discurso. É isso que dá lugar ao objeto a”
(LACAN, 1968-69/2008, p. 19). A articulação entre objeto e gozo é feita através do
conceito de mais-valia de Marx. Haveria, a partir da realidade econômica, uma perda
entre o sujeito de troca e o sujeito de uso, chamada mais-valia. Rabinovich (2004)
assinala que a função de mais-de-gozar do objeto a indica uma dobradiça entre desejo e
pulsão. Vejamos como coloca Lacan: “Isto quer dizer que a perda de objeto é também
hiancia [...]. A relação com o gozo se acentua subitamente por essa função ainda virtual
que se chama função do desejo”. (LACAN, 1969-70/1992, p. 17). Mais adiante ele
assinala ainda: “Aí está o oco, a hiância, que de saída um certo número de objetos vêm
certamente preencher, objetos que são, de algum modo, pré-adaptados, feitos para servir
de tampão” (LACAN, 1969-70/1992, p. 48). É, justamente, pela linguagem que o maisde-gozar do objeto se vincula a uma perda de gozo.
2 - Escrita como objeto condensador de gozo:
Nas psicoses, o objeto a não é extraído do campo do Outro, funcionando como
um excesso – sem limite e localização –, vertente que se diferencia do objeto a como
causa de desejo. Ali onde o neurótico apela a procedimentos simbólicos na relação com
o Outro, o psicótico recorre a objetos reais. Não fazendo advir a castração, mas
promovendo alívio, o procedimento deve ser continuamente reiterado. Maleval (199394) sublinha que a escrita pode operar como objeto condensador de gozo, do qual,
104
então, procura se separar. A escrita em sua dimensão de prática da letra auxiliaria a
constituir um objeto condensador de gozo correlativo ao ciframento do gozo do Outro.
Esse procedimento poderia, ainda, se completar com a “publixação” – poubelication,
trocadilho composto dos termos poubelle (lata de lixo) e publication (publicação)
(LACAN, 1965-66/1998). O esvaziamento do gozo a partir da separação do objeto
mais-de-gozar, entretanto, às vezes, se revela sem limite. Maleval (1993-94) chama a
atenção para o fato da separação salvadora – não sustentada pelo simbólico – ocorrer
sempre nas bordas do real despedaçamento do sujeito. Assim, esse processo teria graus
de êxito variados, assim como riscos possíveis.
3 - Escrita como objeto textual:
Certos esquizofrênicos dedicam-se a produções escriturais que põem em relevo
o desenho – mesmo informe – das letras e se apresentam como ilegíveis. Situam- se
mais próximos da materialidade da letra, do principio de toda significação em seu
enraizamento da inscrição do significante no corpo. Seu benefício seria limitado, pois há
o depósito do gozo sem seu ciframento. Alguns, entretanto, tomam em seu trabalho
com a escrita, justamente, o que é rechaçado do simbólico para franquear o gozo com
efeitos amenizadores dos transtornos ligados à deslocalização do gozo. Para o autor, a
produção do “objeto textual” pode inserir-se como momento do tratamento, porém não
como seu fim. Sucede que, não havendo a simbolização da perda real, o trabalho deve
ser reiterado e, algumas vezes, seu destino na estabilização é incerto.
Fica mais claro, a partir da exposição de Maleval (1993-94), considerar que, na
neurose, a criação está apoiada sobre a hiância cavada pelo recalcamento originário e
responde ao gozo fálico, enquanto, na psicose, a criação tem relação com o excesso,
com o gozo invasivo.
No capítulo seguinte, abordaremos as relações entre loucura e literatura,
buscando aprofundar o tema da criação literária e suas relações com a clínica
psicanalítica da psicose. Retomaremos os fenômenos de linguagem da psicose como
antecedente importante na elaboração lacaniana da estrutura da psicose e da abordagem
dos chamados “escritos inspirados”. Finalmente, destacaremos a importância da letra
como dimensão conceitual e de trabalho subjetivo proeminente na psicose.
105
3 PSICOSE E ESCRITA
[...] há pessoas que se compõem de atos, ruídos,
retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem de palavras
Manoel de Barros
No presente capítulo, percorremos mais detidamente alguns temas caros à
perspectiva proposta em nossa tese de articular psicose e escrita. Partimos de dois
caminhos abertos pela psicanálise, a saber, a consideração dos laços entre inconsciente e
escrita e a proximidade entre texto e caso clínico, estabelecida a partir do livro de
Schreber. Ambas são anunciadas por Freud e fortalecidas por Lacan com a conceituação
do significante e da letra com sua referência ao real. Consideramos que a escrita,
contextualizada por uma dimensão de trabalho clínico – como no caso das oficinas de
escrita inseridas como dispositivos frequentes no campo da saúde mental –, comporta
uma discussão a partir do recorte de alguns elementos conceituais da teoria e suas
implicações para a clínica.
Em primeiro lugar, na articulação entre inconsciente e escrita, consideramos que
ao formular o conceito de significante para abordar as formações do inconsciente, Lacan
também é conduzido à estrutura da escrita em seu ultrapassamento da dimensão
representacional, conforme aponta Machado (2000). Entre o indelével da palavra falada
e a escrita que a torna passível de rasura, Lacan concebe a operação da metáfora e seu
valor no universo simbólico. Incidindo sobre o significante, a operação de apagamento
da letra leva a palavra a encontrar um lugar, uma possibilidade de inscrição, retomando
seu nascimento no universo simbólico.
Em segundo lugar, temos a consideração do escrito de Schreber em sua potência
de ensinamento sobre a psicose e sobre a dimensão estrutural do inconsciente. Arrivé
(1999) assinala que, a partir da abordagem de Freud da escrita de Schreber, Lacan
avança na consideração das relações entre o regime do significante implicado na
estrutura da psicose e a questão do estilo. A ausência da virtude metafórica – da
substituição significante na linearidade da cadeia – no texto de Schreber remeteria ao
estilo conforme os gramáticos o valorizam. Ou seja, a ideia do “ponto de basta” que,
possibilitando uma ancoragem ao desfile significante, tem a mesma função na ficção e
106
na psicose. Essa aproximação permite a Lacan enriquecer a discussão da clínica da
psicose a partir da consideração entre literatura e literalidade, entre o poeta e o escritor.
O texto de Schreber deve ser lido como ficção? As intenções de Schreber estariam
ausentes dos textos literários? São questões inspiradas e inspiradoras do percurso que
fazemos a seguir.
Assim, entre a escrita – em sua dimensão conceitual – e a psicanálise, há
afinidades estruturais, que, certamente, também dizem respeito à escrita como questão.
O que é a escrita? A aventura humana de estabelecimento da escrita tem sua história
entrelaçada com o nascimento da civilização34. Na tradição de estudos sobre a escrita,
da qual participam historiadores e linguistas, o tema das relações com a oralidade é
muito comum, apesar da diversidade na terminologia usada. Machado (2000) aponta
que a maioria dos estudiosos defende a função representativa da escrita, havendo
também aqueles que afirmam a autonomia da escrita, apoiados na discussão de sua
característica conservadora e de visualidade.
Pensamos que Freud, na construção do campo da psicanálise, circunscreve a
aproximação estrutural entre escrita e psiquismo, extraindo consequências que
fundamentam a articulação entre teoria e clínica. Concordamos com Rego (2006) que
Freud vai discernindo a operação psíquica a partir de recortes muito precisos do tema da
escrita, entre estes, a dimensão pictográfica do sonho e as relações entre mensagem e
construção de sentido, trazidas pela discussão sobre a decifração, além de seu aspecto
de velamento, no qual o traumático marca um limite ao dizer. Podemos dizer que, ao
longo de sua obra, estando atento à dobra da presença-ausência acessível no coração da
escrita, Freud construiu a teorização e a clínica sobre um fundamento real. A articulação
mais específica entre escrita e literatura destacaria, na obra freudiana, a dimensão mítica
em sua importância na articulação da verdade do sujeito. Porém, Freud também aprende
outra lição com os poetas: a importância do silêncio e dos brancos no território da
linguagem, como coloca Edson Sousa (in MACHADO, 2000).
Tratamos de problematizar, inicialmente, a tradição que aproxima literatura e
loucura. Em seguida, abordamos os fenômenos de linguagem da psicose, recolhendo
algumas das importantes contribuições da psiquiatria clássica que remetem, na obra
freudiana e no ensino lacaniano, aos mecanismos do inconsciente e à estrutura da
psicose. Abordamos, ainda, a peculiaridade do interesse de Lacan pelos chamados
34
Remetemos o leitor a um interessante trabalho, intitulado História concisa da escrita, de Charles
Higounet, que discorre, entre outros temas, sobre as origens e as variedades de escrita.
107
“escritos inspirados” e, finalmente, a importância da letra como dimensão conceitual e
de trabalho subjetivo proeminente na psicose.
3.1 Literatura e loucura: raízes e flores
A aproximação entre literatura e loucura é uma interrogação que tem interessado
a psicopatologistas e a escritores e poetas, entre outros estudiosos, principalmente no
que diz respeito ao tema da criação. A partir da psicanálise, o interesse nesse assunto
tem incidido nessa dobra que confere à literatura uma face significante e outra, real.
Desde o inicio de nossa pesquisa, conferimos algum destaque à poesia35, em seu sentido
mais amplo de criação, mas também de trabalho de construção de versos e de relação
com as figuras de estilo, metáfora e metonímia. Pensamos que, na poesia, a dimensão
significante não deixa de revelar outra, mais voltada para o exercício da letra, em seus
efeitos de ruptura da significação, levando a linguagem a um permanente estado
nascente. Como diz o poeta inglês Shelley: “a poesia contribui para o efeito, porque age
sobre a causa”, referindo-se à influência dos elementos da poesia – a sensibilidade e o
prazer, a paixão e o belo – sobre os laços que mantêm unidos os homens (LOBO, 1987,
p. 227). Seu ensaio, “Defesa da poesia”, escrito em 1821, traz uma deliciosa
argumentação sobre a importância do princípio poético em sua potência: a razão estaria
para a imaginação como o instrumento para o agente. Como tão bem coloca o poeta: a
poesia “é, ao mesmo tempo, a raiz e a flor de todos os outros sistemas de pensamento; é
aquilo de onde tudo brota e que tudo adorna” (LOBO, 1987, p. 239).
Há um certo consenso sobre a ideia de que o processo de aprendizagem da fala
tem na poesia seu fundamento. Octavio Paz coloca que a prosa implica um permanente
controle da linguagem, cuja tendência seria retornar ao poético e fugir ao uso voltado
para a comunicação cotidiana (apud LOPES, 1995). Encontramos também, a partir das
35
O termo poesia é impreciso. A tradição ocidental abrange três gêneros de poesia: épico, lírico e
dramático. Herança de Platão e Aristóteles, essa diferenciação serve como referência mais ampla para a
literatura em geral, podendo cada um dos gêneros poéticos ser expresso em verso ou prosa. Verso é, em
termos mais simples, a constituição de uma linha rítmica, também remetendo ao entrelaçamento de
imagens e ideias. Nos idiomas indo-europeus, o verso difundiu-se como forma linguística que facilita a
condensação. A complexidade da relação entre os três gêneros poéticos enraíza-se na Antiguidade
clássica, sendo que os mitos mostram indicações interessantes: o épico estaria ligado a Homero, o lírico a
Orfeu e o dramático a Dionísio. Para um exame mais aprofundado, consultar: LOPES, A.J. Estética e
poesia: imagem, metamorfose e tempo trágico.
108
possibilidades de conexão entre psicanálise e literatura, a afirmação de um
tangenciamento entre os peculiares fenômenos de linguagem da psicose e o modo de
operação do poético (BRANCO, 1998). Assim, a despeito de grandes e importantes
diferenças, é possível reconhecer, na linguagem do esquizofrênico, o trabalho dos
mesmos mecanismos em jogo na poesia e nos sonhos (MANNONI, 1992b).
Sobre o enigma da criação literária, Freud se debruçou muito cedo, fazendo de
suas incursões pela literatura não um movimento de ampliação da psicanálise para outro
domínio, mas uma afirmação da profunda afinidade do mundo do poeta com o novo
campo (MANNONI, 1992a). Podemos retomar, a partir de uma pequena referência
freudiana de 1897, uma das primeiras hipóteses sobre a formação de sintomas nas
neuroses, uma categoria clínica que incluía, então, a histeria, a neurose obsessiva e a
paranoia. São três os elementos destacados para uma diferenciação: a lembrança, o
impulso e a “ficção protetora” ou fantasia, os quais constituiriam, respectivamente, o
sintoma como formação de compromisso em cada uma das afecções (FREUD, 1950
[1892-1899]). A “ficção protetora”, característica da paranoia, seria derivada de “coisas
experimentadas e ouvidas”, um amalgama de veracidade e embelezamento frente ao
sexual traumático. Por volta de 1900, em plena elaboração da teorização das relações
entre sintoma, inconsciente e recalque, a aproximação de Freud da literatura já não é um
simples recurso ilustrativo, mas um campo de trabalho com ensinamentos para a teoria e
a clínica. É interessante ressaltar que, por ocasião de sua formulação sobre a pulsão de
morte, Freud toma a estética da criação artística também como uma abordagem
econômica – ligada ao princípio de prazer – da tendência mais primitiva da pulsão
(FREUD, 1920).
Já antes de sua reformulação da teoria pulsional, aliás, Freud usa a expressão
“realidade poética”, ressaltando o poder da criação literária de constituir um espaçotempo paradoxal no qual figuras como almas, espíritos e fantasmas aparecem sem
qualquer vestígio do estranho, ligado ao recalcado. Esse expediente, mais evidente nos
contos de fadas, traria a tona o elemento infantil, forma prévia de funcionamento do
aparato psíquico – a onipotência do pensamento ligada à pronta realização de desejos
(FREUD, 1919). Podemos pensar que, embora prevaleça o polo significante da fantasia
(JORGE, 2010), a dimensão de estranho, em sua vertente de gozo, vai se tornando mais
presente nessa articulação com a literatura e o ofício do poeta. Na vida psíquica, como
na obra de ficção, “ficção protetora” e “realidade poética” teriam pontos de afinidade
estrutural.
109
O poeta e o fantasiar, publicado em 1908, é o trabalho de Freud mais conhecido
sobre as relações entre fantasia e ficção. O próprio texto conjuga, de forma poética, a
importância e o limite da fantasia frente ao traumático. Freud afirma uma raiz comum
entre a brincadeira infantil e a criação literária, considerando que o poeta e a criança
criam um mundo imaginário e o levam a sério, sem, entretanto, o confundir com a
realidade. Essa “irrealidade” da brincadeira da criança tem uma proximidade com a arte
do poeta, envolvendo prazer. É interessante assinalar que Freud reconhece que, embora,
tenha colocado o poeta em primeiro lugar no título de seu artigo, o caminho de seu
exame do tema da criação poética é constituído pela teorização da fantasia a partir de
seu trabalho clínico. Em um artigo sobre esse texto freudiano, intitulado Una magistral
iluminación (1999), Aguinis defende que Freud se deixa levar pela arte para lançar as
bases de uma ponte que permite pensar o trabalho psíquico e esse produto tão complexo
do psiquismo que é fantasia. Entretanto, o autor também lembra que ele permite uma
aproximação do fazer artístico para além de seu resultado, enfoque que interessa ao
nosso tema. A própria dimensão de trabalho da escrita, destacada a possibilidade de
funcionar como caminho de estabilização na psicose, poderia integrar o campo da arte
desde uma perspectiva que não focalizasse apenas o seu resultado. Sigamos um pouco
mais essa via.
Pommier coloca que a emoção estética, mais propriamente a beleza, recurso do
poeta, não deixa de apresentar um ponto de resistência à nomeação, retomando o trauma
primeiro do encontro com a língua e com o Outro que a anima. Ou seja, a falta de
palavras é também aquilo que atrai, guardando a poesia um parentesco com o resto de
gozo. Trabalhando com a sonoridade das palavras, seu valor plástico, para além de sua
utilidade, de sua significação, o poeta aproxima-se do abismo que mora no mundo das
palavras: “o gozo que o trabalho das palavras, que o trabalho sobre as palavras atrai é
terrível, porque sua condição é a ausência” (POMMIER, 1987, p. 104).
O autor toma a imagem das flores de papel japonesas que se abrem na água para
evocar um tempo mítico do significante, aberto a todas as significações. Ou seja, o
infinito no cerne mesmo das palavras para além do abrigo do pai, que seria sua potência
formadora de frases. Pommier alude à ideia do “aberto”, colocada por Rilke, para falar
da palavra para além da significação, conforme o poeta a maneja, ou seja, pela sua
sonoridade e plasticidade. Diferencia, entretanto, o poeta, o místico e a mulher – que
mostrariam uma escolha pelo “sem abrigo” da dispersão da significação – da posição do
psicótico, para o qual o engajamento na linguagem não é recortado pelo Nome-do-Pai,
110
ruptura metafórica que nomeia uma ausência. Pommier lembra que o abrigo do
significante torna acessível o mundo, justamente, porque pelo menos uma palavra
permanece muda quanto a sua significação, podendo estancar sua associação infinita.
Retomando os significantes de nosso subtítulo, raiz e flor, que elegemos para
considerar as relações entre loucura e literatura, lembramos o desenvolvimento que
realiza Laia sobre as flores joyceanas (LAIA, 2001) – referência abundante no texto de
Joyce desde Ulisses – como flores literais. As flores de Joyce seriam diferentes dos
floreios das lembranças encobridoras e acessíveis nas formações do inconsciente, dos
quais fala o próprio Freud – o “disfarce floreado” da cena infantil (FREUD, 1950[189299]). Em seu exemplo, Freud não deixa de reparar na ligação entre a frase destacada da
lembrança encobridora (sobre flores) e o gozo, no caso interditado, mas incorporado na
própria palavra36.
De forma interessante, Laia propõe discernir a condição de desabonado do
inconsciente37 através do uso que Joyce faz da “linguagem das flores”: uma literalidade
que toma o corpo das palavras e que Lacan chama alíngua (lalangue). Lacan postula a
dimensão de gozo da linguagem:
Alíngua serve para coisas inteiramente diferentes da comunicação. É o que a
experiência do inconsciente mostrou, no que ele é feito de alíngua, essa
alíngua que vocês sabem que eu escrevo numa só palavra, para designar o
que é a ocupação de cada um de nós, alíngua dita materna e não por nada
dita assim. (LACAN, 1972-73/2008, p. 148).
Conforme bem lembra Mandil (2003), acerca do interesse de Lacan por Joyce, o
surpreendente é que o escritor irlandês mostra um saber-fazer com alíngua a partir da
própria literatura.
Fica um pouco mais claro, quando consideramos como ocorrem as relações entre
literatura e loucura e a própria abertura ao indizível no campo das “belas letras”. No
final do século XVIII, a influência do Romantismo propõe alinhar o trabalho com a
linguagem sob o ângulo da fantasia, da imaginação, do fantástico (LOBO, 1987),
contribuindo para abrir caminho para uma visão mais positiva da loucura a partir de seu
potencial criativo (MELLO, 2000). A loucura é, então, valorizada por sua dimensão
lírica. Remetendo às raízes da subjetividade, o poder da loucura estaria, então, em
36
“Tirar as flores de uma menina significa deflorá-la. Que contraste entre o despudor dessa fantasia [...]”
(FREUD, 1950[1892-99], p. 282).
37
“Joyce como, se assim posso dizer, é desabonado do inconsciente” (LACAN, 1975-76/2007, p. 160).
111
“enunciar esse segredo insensato do homem” (FOUCAULT, 2010, p. 511). O louco
carregaria mais verdade que a sua própria, desvendando a força elementar das paixões
em seu enraizamento no corpo.
Laia (2001) localiza, de modo curioso, o que denomina como um impasse do
qual Foucault não consegue se desvencilhar: ao mesmo tempo em que proclama que a
loucura é “ausência de obra”, ele também a concebe como um “escarpamento sobre o
abismo”38. Foucault considera que a loucura interrompe a criação, posição que coaduna,
de certa forma, com a ênfase psiquiátrica no empobrecimento subjetivo atribuído a essa
condição. Laia aproxima essa colocação de Foucault da possibilidade de um trabalho
sobre o vazio aberto no campo da linguagem pela foraclusão do Nome-do-Pai pela via
da suplência. Ou seja, o que se afigura, a partir de Foucault, como uma dicotomia entre
loucura e obra, merece ser retomado a partir da perspectiva clínica que Lacan traz para o
campo da psicose e, de forma, mais ampla, para pensar a sustentação da subjetividade.
Não é a toa que a obra de Joyce parece apurar a vizinhança entre literatura e loucura.
Hulak, retomando Milner, autor de A obraM
maeoL-0.295187(-).164
112
palavras, atos e textos. Seu exame sobre as relações entre escrita e loucura passa por três
eixos centrais: as relações entre criação e a loucura, a questão do texto louco e os
escritos sobre a loucura (PLAZA, 1990).
No primeiro eixo, das relações entre criação e loucura, a autora situa o campo
que reúne o fascínio ambivalente de médicos, filósofos, artistas e psicanalistas em torno
dos mistérios da criação. Se, no final do século XIX, os psiquiatras tendiam a considerar
a criação como circunscrita pela loucura – ainda que reconhecessem que a perspectiva
da arte ultrapassasse, muitas vezes, a moldura da loucura –, alguns escritores indagaram
sobre a proximidade entre o território da criação literária e o intangível presente na
experiência da loucura. Os mais prudentes, segundo a autora, seriam os psicanalistas,
que estabelecem com os artistas e escritores uma troca que resultou, desde Freud, em
interessantes composições, sem desconsiderar algumas notas dissonantes.
Se, por um lado, Freud aprofunda a distância entre o trabalho do escritor e do
psicanalista – “Provavelmente, bebemos na mesma fonte e trabalhamos com o mesmo
objeto, embora cada um com seu próprio método” (FREUD, 1907[1906], p. 93), ele
também examina o poder do escritor de emocionar, de debruçar-se sobre as próprias
virtualidades inconscientes e expressá-las através da arte. Em princípio, Freud aproxima
a criação da produção do sintoma na neurose, sendo a arte também considerada como
uma solução de compromisso entre a força do recalque e a expressão do recalcado.
Segundo Plaza (1990), para Freud, nem o escritor criativo nem Schreber teriam um
saber sobre as forças inconscientes em jogo na sua produção. As notas dissonantes dos
encontros entre psicanálise e literatura, talvez, possam ser audíveis em uma vinculação
mais estreita entre obra e biografia do escritor. Por outro lado, a potência que o campo
da psicanálise traz para a literatura poderia estar na possibilidade de uma leitura ao nível
da construção significante. Escritores e loucos aí frequentariam um terreno comum de
formas diferentes: o escritor “disporia dos elementos de um quebra-cabeça que não
pode, no entanto, enunciar o conceito”, enquanto o louco teria caído nessa zona abissal
da qual a própria literatura provém (PLAZA, 1990).
Rivera (2002) assinala que a busca de uma expressão mais livre, através da
potência criadora do inconsciente, é abraçada pelo o surrealismo, no inicio do século
XX, com algumas propostas. Destacamos a “escrita automática”, procedimento que
implicava no ideal de escrever sem os entraves das amarras da consciência e das
exigências estéticas. O próprio Freud aponta o equívoco desse caminho, concebendo a
obra de arte não como uma liberação inconsciente, mas como uma retomada do conflito.
113
Embora Freud faça críticas à arte moderna, o hiato que acaba por se firmar entre o
surrealismo e a psicanálise deixa marcas em ambos os campos, segundo Rivera (2002).
Outra referência do eixo que relaciona criação e loucura é a “arte bruta”, o “ouro
mais puro da criação”, segundo Jean Dubuffet (1901-1985). Para ele, a especificidade
dessa arte está na sua produção por artistas que não estudaram arte e pertencem a
minorias excluídas, entre estas aqueles que foram internados em hospital psiquiátrico. O
potencial da “arte bruta” seria principalmente sua característica de questionamento da
cultura, embora o próprio louco possa continuar encerrado em seu abismo. É desses
teóricos que advém o conceito de “loucaliteratura”. O artista bruto não teria a intenção
subversiva em relação à cultura, nem mesmo artística. Em especial, o “texto bruto” seria
separado, afastado, estranho à cultura, desafiando a inteligibilidade do coletivo,
exibindo um hermetismo e uma solidão radicais.
O texto “bruto” não poderia transpor sozinho a rampa da publicação:
rejeitado, seria esquecido e sujeito à dificuldade de venda, ou tornar-se-ia
um documento de psicopatologia, sujeito à dificuldade de leitura. Somente
acompanhado, traduzido, interpretado, ele pode encontrar um certo lugar –
marginal, de resto – na edição. Por razões do seu distanciamento e da sua
heterogeneidade em relação aos diversos códigos psico-sócio-culturais, o
texto “bruto” é desprovido de autointeligibilidade (PLAZA, 1990, p. 46).
Há, por fim, os “loucos literários”, termo de uma teorização diversa do projeto
surrealista e da arte bruta e que se refere a obras que, embora escritas por autores que
não passaram por internação psiquiátrica nem receberam o rótulo de doentes mentais, se
apresentam como “corpo estranho no tecido textual coletivo”. Tais autores conferem ao
seu texto um estatuto social, principalmente, através de sua publicação. A inspiração
principal dessa proposta é Raymond Queneau (1903-1976) que contribuiu para a
criação, em 1960, da Oficina de Literatura Potencial (Ouvroir de Litterature Potentielle)
ou Oulipo, referência bem humorada aos ateliês de corte e costura das freiras
39
.
Propondo um trabalho literário que buscava colocar em evidência o domínio da criação,
questionava a articulação entre genialidade e loucura. Recusando o ideal romântico da
loucura, considerava que os “loucos literários” deveriam ser catalisadores de processos
criativos. O termo loucura, usado mais em relação à heterogeneidade fundamental do
texto, passa a designar o autor, principalmente, no sentido de colocar a descoberto uma
solidão que não suscita adesão, embora não contrarie os critérios comuns de
inteligibilidade. Segundo Andre Blavier, outro importante expoente desse projeto, os
39
Voltaremos ao tema no capítulo 4.
114
escritos dos “loucos literários” teriam uma função psicológica para seus autores,
circunscrevendo alguns elementos de sua loucura. Assim, essa discussão focaliza a
complexidade das relações entre autor, texto e cultura, buscando evidenciar a estranheza
que isola o autor de seus leitores.
O segundo eixo põe em questão os critérios usados para considerar um texto
como louco:
Somos tentados a falar de loucura a propósito de um texto quando a sua
forma nos parece estranhamente hermética, ininteligível, ou quando o seu
sentido vai contra os nossos critérios do “razoável”, quer dizer, nosso
julgamento da realidade. Designamos, pois, por este termo, um texto
curiosamente heterogêneo ao nosso pensamento, que não encontra em nos
qualquer eco positivo, que parece não suscitar da nossa parte nenhum
movimento de identificação: não conseguimos identificar o texto num
registro conhecido e somos incapazes de nos identificar com aquilo que o
texto propõe (PLAZA, 1990, p. 59).
Apresentando-se a partir de sua densidade diferenciada, entretanto, o texto louco
não nos deixa frios ou indiferentes. Confronta-nos com palavras, frases e
encadeamentos opacos que nos lançam, literalmente, para fora do texto. Mais do que
jogos de língua que podem resultar desde o estranho até o ininteligível, as palavras
ganham um peso especial, como “uma espécie de chumbo na malha”, como coloca
Lacan. A trama deixa de exibir as características da ordem simbólica e nossa atenção é
atraída para a forma mais que o conteúdo. Revelam, comumente, vestígios da ruptura do
simbólico e da plenitude do eu. O ato de escrever possibilita, entretanto, “por a
distância”, sendo uma tentativa de dominar o inefável, o abismo como o reino do grito,
onde as palavras se corroem. Ainda assim, como coloca Plaza (1990), o texto
testemunha as “dores infindas” dessa experiência. Lacan encontra, na arte joyceana, a
invasão do grito no escrito, mas, também, uma busca radical tramada no seio da língua.
O fosso cavado entre o texto louco e o leitor, quebrando a promessa de significação e
conduzindo ao indizível, revela que nossa relação com a loucura não é só de pura perda,
abandono do abrigo do significante, mas também de contato com o excesso, com o que
extravasa de gozo. Para Plaza (1990), loucura e ordem simbólica são solidarias: a
fragilidade da primeira logo revela a precariedade da segunda. A autora traz uma
imagem interessante, buscando definir as relações do autor com a linguagem e seu
reflexo sobre o leitor:
115
Em vez de assistirmos o desenrolar de um filme, a nossa atenção é atraída
pelos movimentos sacudidos da câmera. A emissão da mensagem é posta em
causa mesmo antes de podermos apreender a mensagem em si [...] (PLAZA,
1990, p. 68).
Curiosamente, a autora lembra que pode acontecer de relacionarmos essa
heterogeneidade à poesia, a forma linguageira mais preciosa dessa assimilação, pois
permite mais liberdades com a língua. Entretanto, resistindo à leitura, o texto louco
pode se constituir como OVNI, “objeto verdadeiramente não identificado”.
Finalmente, tomamos o terceiro eixo das relações entre loucura e literatura: os
escritos sobre a loucura. A loucura pode penetrar na escrita sem despertar rejeição de
duas maneiras: como testemunho ou como escrita literária. No primeiro caso, aquele
que viveu a experiência da loucura busca assinar um novo pacto com o mundo. Esse
movimento que é de cura, de reconstrução, não subjuga sua particularidade estrutural.
Da experiência inefável da loucura, advém uma tentativa de um novo recomeço que não
raramente toma a forma de uma “escrita-testemunho”, que ultrapassa a ideia de
autobiografia. O autor desse tipo de escrita articula a dimensão de enigma de sua
experiência ao mesmo tempo em que desta se distancia, “arrancando-se ao Outro” pela
palavra (PLAZA, 1990, p. 117). Na segunda variedade, que abrange a “loucura
romanceada”, o escritor, através do recurso da arte, envolve o leitor na experiência de
atopia da loucura. São exemplos conhecidos, algumas obras de Virginia Woolf, M.
Duras, entre outros.
A literatura – como a arte – constitui uma zona privilegiada de questionamento
do litoral entre saber e gozo, entre significante e objeto. Com Lacan dizemos que a
ordem simbólica remete a uma “esperança romântica”, expressão usada por Plaza, que
não deixa desvanecer seu desgosto. Se o poeta e o escritor exploram o abismo do
indizível, alguns loucos estabelecem, através da literatura, uma rigorosa negociação:
com o artifício da arte, transmitem ao leitor a abertura e a angústia dessa aventura.
3.2 Antecedentes da investigação dos fenômenos de linguagem na psiquiatria
clássica
[...] se soubermos escutar, o delírio das
psicoses alucinatórias crônicas manifesta
uma relação muito específica do sujeito em
relação ao conjunto do sistema da linguagem
[...] o sujeito dá testemunho efetivamente de
116
uma certa virada na relação com a
linguagem, que se pode nomear erotização,
ou apassivação.
Lacan, 1955-56.
Os fenômenos de linguagem ocupam um lugar de destaque na investigação e na
construção da semiologia da psiquiatria clássica desde o início do século XIX. Já no
final do século XVIII, Esquirol, discípulo de Pinel, observava que a fala de muitos
enfermos apresenta modificações com a cronificação de seu estado. Embora
valorizadas, são muitas as dificuldades para determinar a especificidade e valor das
alterações de linguagem na psicopatologia. Assim, o tema também interessou a
neurologistas e linguistas que debateram sobre as fronteiras entre as alterações de
linguagem e o uso que os escritores e poetas fazem da língua.
Entre as psicoses, a paranoia e a esquizofrenia se destacam por evidenciarem as
implicações da linguagem na fala, no corpo e na constituição da realidade. Na
esquizofrenia, de forma mais radical, as palavras carecem de sua função significante,
perdendo a característica de pura diferença e de encadeamento, com sérias
consequências para o corpo, uma vez que este fica destituído de sua armadura
simbólica. Já na paranoia, o que sobressai é a dimensão de trabalho delirante que tenta
recompor a relação com a realidade (SOUZA, 1991).
Na psicopatologia descritiva, a desorganização da linguagem, mais comum na
esquizofrenia, tem sido sistematizada teoricamente de várias formas (fonética,
semântica e sintática), sendo indicativa de perdas relativas aos processos de pensamento
e à formação e uso de conceitos, juízos e raciocínios (EY, 1977, p. 576-77;
DALGALARRONDO, 2000, p. 148). Fenomenologicamente, também vem recebendo
117
Pincerati (2009b), na aurora dessa disciplina, a ênfase nos neologismos relaciona-se ao
esforço de construção de categorias clínicas. O que este autor sublinha é que, embora
muitos tenham concebido os neologismos a partir da noção de erro, seja da percepção
ou do pensamento, a maioria destacou sua relação com a elaboração delirante.
De modo geral, a perspectiva da psiquiatria recebe grande influência das
investigações e teorizações realizadas pela neurologia e pela linguística. Retomamos
alguns antecedentes da abordagem de tais fenômenos, destacando as descrições clínicas
e elaborações teóricas de alguns autores. Sabemos que Lacan valoriza os fenômenos de
linguagem em termos de um fecundo ensinamento (LACAN, 1955-56/2002) e
propomos realizar um percurso que, sem pretender ser exaustivo, recupera algumas
referências por ele indicadas em seus seminários e escritos. Procedemos a uma breve
apresentação dos principais expoentes do final do século XIX e início do XX, guiandonos pelas referências de Lacan desde sua tese de doutorado e seus primeiros escritos
sobre a psicose.
São três as principais escolas de psiquiatria europeias desse período, a saber, a
alemã, a italiana e a francesa. Os estudos sobre os fenômenos de linguagem da psicose
apoiam-se, basicamente, em hipóteses sobre as relações entre pensamento e linguagem,
retomando uma antiga discussão filosófica. Alguns autores, inscrevendo sua
investigação no paradigma do alienismo, como Snell e Tanzi, trazem descrições
detalhadas, atendo-se ao conteúdo revelado pelos fenômenos de linguagem em sua
possibilidade de esclarecer sobre as ideias delirantes. A escola francesa, por sua vez,
traz uma colaboração importante sobre a natureza econômica de tais alterações
(VOLTA & ACHILLI , 2004). Iniciamos com Snell, um dos pioneiros na investigação
dos fenômenos de linguagem na psicose, apresentando, em ordem cronológica, as teses
dos seguintes autores: Tanzi, Séglás, Krafft–Ebing, Kraepelin, Clérambault, Guiraud e
Pfersdorff.
3.2.1 Ludwig Daniel Snell (1817-1892): os neologismos e a arquitetura delirante
Em 1852, o alienista alemão Snell publica um texto intitulado “As alterações da
forma de falar e de formação de expressões e de palavras novas nos delírios”. Ele foi
um dos primeiros a destacar, em sua observação clínica, a “maneira estranha” de falar
119
3.2.2 Eugenio Tanzi (1856-1934): o neologismo como sentinela perdida do delírio
Em 1889, o psiquiatra italiano Tanzi publica “Os neologismos dos alienados
relacionados com o delírio crônico”. Seu trabalho é caracterizado por uma observação
apurada, que reúne traços clínicos dos neologismos, e por uma rica teorização que os
articula com sua estrutura e a função no delírio.
O psiquiatra belga Jean Bobon dedica um dos capítulos do seu livro à
contribuição de Tanzi – “Introdução histórica ao estudo dos neologismos e das
glossolalias em psicopatologia”, destacando que ele identificou mais de duzentos
neologismos na fala e na escrita de cerca de uma centena e meia de “matóides”
41
,
agrupando-os segundo uma tipologia. Interessante frisar que cada tipo é especificado
“pelo grau de precisão com o qual o delírio se objetiva na palavra” (TANZI apud
VOLTA; ACHILLI, 2004, p. 23). Apenas a título de exemplo, alguns termos são usados
para designar pessoas ou seres (geralmente, perseguidores ou protetores); outros
remetem a agentes mais vagos, tais como uma energia, e, finalmente, alguns são mais
amorfos e menos sistematizados.
Para Tanzi, o neologismo se infiltra na fala ou no escrito – há, aliás, muitos
grafônomos entre os doentes que apresentam esses termos novos –, agindo como uma
“sentinela perdida do delírio”, pois, buscando se esconder, também revela, através de
suas letras ou sílabas, a ideia delirante de referência. De forma interessante, Tanzi
reconhece um aspecto criativo nos neologismos, justamente naqueles em que há uma
ligação com a maior elaboração do delírio. Assim, sua investigação aponta para o
processo mental pelo qual o neologismo se forma e se fixa no delírio. Vejamos mais de
perto a hipótese do autor.
Assim como Snell, Tanzi destaca o valor diagnóstico do neologismo, mas no que
este é sugestivo de um comprometimento do pensamento. Essa característica ajudaria a
diferenciar os neologismos ligados ao delírio daqueles criados por cientistas e poetas,
além dos termos que renovam a língua ou são usados em circunstâncias temporárias e
grupos específicos. Para o autor, o delírio estaria relacionado a um comprometimento da
função do pensamento que o conduziria a estágios anteriores da evolução humana. O
41
O termo “matóide” – matto, louco em italiano – é usado pela corrente antropológica da psiquiatria
italiana para designar, genericamente, aqueles que apresentam ideias de grandeza, além dos paranoicos
reivindicadores. Curiosamente, os matoides grafômanos seriam os mais comuns. Bobon apud
PINCERATTI, 2009a.
120
mecanismo central da construção de neologismos seria a exaltação da palavra e a crença
em seu poder. Tanzi denomina tal tendência de “logolatria” e define: “o delirante tem
[...] uma espécie de culto pelo verbo” (BOBON apud PINCERATTI, 2009a). Assim, a
formação e a fixação do neologismo no delírio estariam ligadas ao uso mais exuberante
do pensamento. Ou seja, seria diferente dos neologismos presentes na mania, fruto de
uma função prejudicada.
É desse autor a conhecida observação de que “o neologismo do louco nasce e
morre com ele”. Ele afirma que há, sob esse tipo de neologismo, um pensamento
insistente ou um afeto invasor para o qual o doente não encontra no léxico comum um
termo apropriado. Constituiria, então, “a parte mais original de seu pensamento”
(TANZI apud VOLTA; ACHILLI, 2004, p. 24).
Com esse autor, temos um encaminhamento fenomênico e teórico bastante
elaborado. Além de reconhecer a importância dos neologismos para estabelecer as
características regulares das formações delirantes, ele concebe o mecanismo de criação
dos neologismos como ligado à origem historicamente remota da relação do homem
com a palavra. É interessante notar, ainda, como esse autor percebe a densidade
diferenciada que o neologismo assume para o delirante, integrando-a na particularidade
de sua experiência.
A proeminência que a relação do sujeito com a linguagem assume na psicose é
abordada, na obra freudiana, nos desenvolvimentos encontrados também na sua
teorização do sonho – e do processo primário –, e, em Lacan, a partir da abordagem
estrutural e no privilegio das relações entre inconsciente e linguagem.
3.2.3 Louis Jules Ernest Séglas (1856-1939): neologismos ativos e passivos
Durante o ano de 1891, Séglas ministra uma série de conferências no Hospital
Salpêtière, publicando, em 1892, uma monografia intitulada “Os distúrbios da
linguagem nos alienados”, um dos temas principais de suas aulas. Sua principal
contribuição é a diferenciação entre neologismos passivos e ativos, o que se insere na
discussão sobre as relações entre a linguagem e pensamento.
Para o autor, os neologismos passivos resultariam de processos psicológicos
automáticos de associação – o “automatismo psicológico” –, prevalecendo a via da
121
contiguidade e da semelhança fonética e semântica entre as palavras. Mais comuns nos
maníacos, tais neologismos não teriam significado algum para os doentes ou o teriam
apenas de forma instável. Tal hipótese é sustentada pela concepção do psiquismo como
atividade associativa.
Os neologismos ativos, por sua vez, estariam ligados à atividade mais complexa
do pensamento, constituindo associações coordenadas em uma direção que resulta na
criação de uma palavra nova. Séglas relaciona o neologismo ativo ao delírio paranoico.
Embora seja fruto de um engenhoso trabalho de elaboração das convicções delirantes, a
criação do neologismo expressaria mais um comprometimento do pensamento. Por
outro lado, também os neologismos ativos estariam relacionados a alucinações verbais,
sendo necessária outra diferenciação. Séglas distingue os neologismos assistemáticos e
absurdos daqueles que apresentam uma gênese lógica. Consideramos, então, que, além
do destaque ao caráter de exterioridade da linguagem, em sua variante do automatismo
mental – do qual trataremos adiante –, haveria um certo privilégio da dimensão criativa
na qual poderiam ser reconhecidos efeitos de sujeito. O próprio Séglas refere que, em
alguns casos de neologismos criados a partir do automatismo mental, “[...] seus
inventores, que resumem desta forma seu delírio, não querem ou não podem dar-lhes
significação [...] e, amiúde, é essa origem misteriosa para o enfermo que o fascina”
(MALEVAL, 2009a, p. 170).
A criação ativa dos neologismos, em oposição aos neologismos passivos
42
,
remeteria, em principio, a um trabalho subjetivo que corresponde ao processo de
nomear de forma mais precisa as convicções delirantes. Mais do que isso, o neologismo
ativo substitui as sínteses sucessivas que levaram a sua criação. Como coloca Maleval
(2009), uma de suas principais características seria a densidade semântica em oposição
ao “sem sentido” dos neologismos passivos.
42
É interessante pontuar que Lacan recupera essa discussão na formulação da diferença entre intuição
delirante e ritornelos, nos anos 50 (Maleval, 2009a) Retomamos o tema ao longo de nosso trabalho.
122
3.2.4 Richard von Krafft-Ebing (1840-1902): as disfrasias
Em 1897, o psiquiatra austríaco Krafft-Ebing escreve um artigo intitulado
“Distúrbios da linguagem na loucura” 43. Concebe a linguagem como função cerebral e
intermediária do pensamento, situando-a em uma hierarquia que vai dos gestos e sons,
passando pelas palavras e chegando à escrita, que seria sua forma mais evoluída. No
domínio da patologia da articulação da linguagem, destaca as disfrasias e disfasias.
Escolhemos retomar as disfrasias, mais comuns e caracterizadas como anomalias do
ritmo, da forma, da sintaxe e do conteúdo.
1) Alterações do ritmo: aceleração, lentidão e confusão. A aceleração tornaria a
palavra “mais desembaraçada” pela precipitação rápida de representações e
perda dos elos de encadeamento destas, com prejuízo da construção
gramatical. A lentidão afetaria o processo de formação das ideias e, por fim,
a confusão seria precipitada pela ênfase nos sons e na homonímia das
palavras. A aceleração e a confusão seriam comuns nos estados maníacos,
enquanto a lentidão, na melancolia.
2) Alterações da forma: estariam mais presentes na linguagem rimada dos
maníacos e na verbigeração44, uma repetição contínua das mesmas palavras e
frases, que pode ser encontrada na paranoia.
3) Alterações da sintaxe: consistiriam em mudanças operadas sobre as palavras,
tais como, a transformação de um substantivo em verbo, de forma
semelhante à linguagem das crianças.
4) Alterações do conteúdo: destacamos a “onomatopoesia”, que implicaria na
criação de um termo novo para descrever a experiência alucinatória. Essas
“ligações de sons sem ordem e sem significação” estariam ligadas a uma
atividade automática do cérebro, chamada inconsciente por sua oposição à
consciência.
43
O título original francês de “Distúrbios da linguagem na loucura” é Troubles du langage dans la folie.
In: ALBERTI, S. (org.) Autismo e esquizofrenia na clínica da esquize (1999).
44
Descrita por Kahlbaum, conforme coloca o próprio Krafft-Ebing, em seu texto.
123
Krafft-Ebing pertence à tradição organicista de Morel para quem as doenças
mentais são resultantes de lesões do funcionamento cerebral e, assim, apresenta uma
concepção de linguagem relacionada a essa referência teórica. Procedendo a uma
descrição clínica mais pragmática, suas observações se alinham com a ideia de que a
disfrasia constituiria uma evidência do automatismo mental, portanto em uma vertente
mais deficitária. O enfoque do autor também coloca a fala e a escrita em uma relação de
hierarquia que privilegia a complexidade da segunda. Eis uma antiga polêmica que será
redimensionada nas formulações freudianas e no ensino lacaniano.
3.2.5 Emil Kraepelin (1856-1926): as estereotipias
Representante da escola alemã, Emil Kraepelin é considerado o verdadeiro
criador da nosografia psiquiátrica do final do século XIX, introduzindo o critério
clínico-evolutivo na apreciação dos quadros psicopatológicos (MUNICOY et al., 2004).
Em 1899, o eminente psiquiatra propõe a categoria clínica da “demência precoce”
45
,
procedendo a um recorte nosológico no campo maior das demências senis e paralisias.
Composto pelas formas hebefrênica, catatônica e paranoide, a principal característica da
demência precoce é um enfraquecimento peculiar, denominado demenciação, que
envolve prejuízos específicos e permanentes da vida psíquica. Em um extenso elenco de
mudanças, ele inclui as perturbações do curso e do processo do pensamento e suas
consequências para a fala (KRAEPELIN, 1899/1999). Kraepelin também foi um dos
primeiros psiquiatras a se interessar pelos fenômenos de linguagem presentes nos
sonhos e entre as crianças. Como outros representantes de sua época, sustentava uma
concepção instrumentalista da linguagem, tomando a fala como expressão do
pensamento.
Assim, os transtornos da fala e do pensamento seriam considerados
conjuntamente, sendo divididos em dois grupos: os transtornos da fala que resultam de
um empobrecimento do pensamento ou de uma perturbação da esfera volitiva.
No primeiro grupo, das alterações da linguagem ligadas a desordens do
pensamento, encontramos três variedades de fenômenos (MUNICOY et al., 2004).
45
Título original alemão: Die Eintheilung der Seelenstörungen. (A demência precoce). In: ALBERTI, S.
(org.) Autismo e esquizofrenia na clínica da esquize (1999), p. 45-71.
124
1) O empobrecimento do pensamento aparece na fala a partir de desordens que
podem oscilar de uma facilidade para a distração até uma desconexão
acentuada. Kraepelin está alinhado com outros expoentes da psiquiatria
alemã, considerando patognomônicos a incoerência, a tendência à rima, as
assonâncias e os jogos de palavras. Essas desordens da fala estariam ligadas
a uma estereotipia do pensamento (KRAEPELIN, 1889/1999). Ainda assim,
em alguns casos, essas alterações da fala também seriam consideradas como
recursos para lidar com a desordem do pensamento.
2) As perturbações da linguagem da demência precoce têm uma identidade com
sonhos. O ponto de contato seria a parafasia, uma perturbação da capacidade
de encontrar palavras e de estabelecer nexos entre estas e que poderia
resultar também na criação de neologismos. Segundo Kraepelin, o
desenvolvimento de representações delirantes, definindo-se em certas
direções após o aparecimento de neologismos, tornaria a fala confusa.
3) Perturbações que afetam a expressão do pensamento ou acatafasias: o curso
do pensamento se desvia de uma serie de pensamentos para outra, resultando
em incoerência.
No segundo grupo, das alterações de linguagem ligadas à esfera volitiva,
encontramos outra descrição interessante. A linguagem se tornaria autônoma com
relação à vontade do enfermo, comparecendo uma outra face das estereotipias, a saber,
as ecolalias, as verbigerações, entre outras. Tais fenômenos, mais que outros, segundo
Kraepelin, evidenciariam que a fala está submetida a “forças estranhas”.
Municoy e colaboradores(2004) indicam que Kraepelin introduz, na oitava
edição de seu Compêndio de Psiquiatria, uma forma clínica de demência precoce sobre
a qual nos detemos. A esquizofasia ou demência com alteração da linguagem é
diferenciada das outras formas clínicas pela especificidade de seu sintoma patológico e
por sua evolução. Caracterizada por um declínio gradual, inquietude e ações absurdas e
podendo ser acompanhada de manifestações alucinatórias e alterações de humor, a
esquizofasia teria como principal sintoma mórbido a alteração da fala. Consistiria em
um fluxo automático de expressões sem laço associativo e na presença de termos
ininteligíveis e neologismos que se expressam na conversação ou em solilóquios.
Embora se encaixe na ideia da autonomização da linguagem em relação ao pensamento,
a esquizofasia se caracterizaria por uma flutuação temporal e mesmo uma remissão
125
parcial, colocando em cheque o critério terminal de deterioração privilegiado por
Kraepelin.
Uma apreciação mais apurada da herança kraepeliniana deve incidir sobre sua
contribuição sem deixar de incluir os impasses de sua investigação. A importância dos
fenômenos de linguagem em sua relação com a psicose aparece em inúmeras descrições
clinicas de Kraepelin. Ele ressalta, inclusive, que os exageros da fala presentes na
psicose também apareceriam na redação dessas ideias e que seria comum, inclusive,
uma grande quantidade de produção escrita (KRAEPELIN, 1899/1999). Podemos
considerar que, embora ele privilegie a dimensão de estereotipia da linguagem, a
riqueza de sua clínica abre a possibilidade de muitas questões sobre a relação do
psicótico com a linguagem.
3.2.6 Gaetan Gatian de Clérambault (1872-1934): o automatismo mental
Segundo Lacan, o termo “automatismo mental” foi usado por Mignard e Petit,
desde 1912, para designar uma concepção de delírio estritamente relacionada aos fatos
clínicos: as ideias delirantes seriam o produto de uma “corrente psíquica” silenciosa que
súbita ou lentamente se impõe ao sujeito. Os autores chegam a chamar o sistema
delirante que assim se autonomiza de “parasita” (LACAN, 1932/2011, p. 122). Mas é
com o psiquiatra Clérambault (1872-1934) que o termo ganha proeminência para
delimitar um conjunto de fenômenos encontrados no início da psicose e que reúnem
algumas características bastante peculiares.
Definido como um processo primitivo da psicose, de conteúdo neutro e não
sensorial, o fenômeno do automatismo mental pode subsistir por muito tempo em estado
puro: o delírio seria, então, um trabalho a ele superposto e cronologicamente posterior.
O doente, segundo Clérambault, seria importunado por experiências nas quais ele é o
centro, mas que não são entendidas como existindo para incomodá-lo. Ainda assim,
essas experiências seriam caracterizadas por tornar o pensamento estranho e “desdobrálo” sem uma forma sensorial definida (CLERAMBAULT, 1924 in HARARI, 2006).
Lacan assinala que tais fenômenos seriam vividos em um caráter mais poderoso que a
sensorialidade ou a crença, pois visariam o sujeito, estando, portanto, no campo do
sentido.
126
Clérambault entende o fenômeno em uma perspectiva puramente mecânica, mas
oferece a Lacan a ideia de uma dimensão constituinte na psicose. Lacan considera que a
hipótese desse autor seria a mais próxima de uma análise estrutural do que qualquer
outro esforço clínico da psiquiatria francesa, pois, apontando para um núcleo inicial, um
ponto parasitário, acabaria por revelar uma força estruturante presente no próprio
fenômeno. Mas, o que é, então, um fenômeno psicótico?
É a emergência na realidade de uma significação que não se parece com
nada – e, isso na medida em que não se pode ligá-la a nada, já que ela jamais
entrou no sistema de simbolização – mas que pode, em certas condições,
ameaçar todo o edifício. (LACAN, 1955-56/2002, p. 102)
Lacan afirma que a característica estrutural do discurso na psicose é a forma
assumida pela significação: como “chumbo na malha” da rede discursiva, a significação
deixa de remeter a outra significação. A reabertura por Lacan da perspectiva de
abordagem das psicoses leva em conta uma indicação precisa de Freud, a partir do
relato de Schreber: “a palavra tem peso em si mesma” (LACAN, 1955-56/2002, p. 43).
A elaboração teórica de Lacan o conduz a produzir uma articulação original
sobre inconsciente e linguagem, a partir da noção de cadeia significante. Para Lacan,
Clérambault evidencia que o psicótico é “habitado, possuído pela linguagem” (LACAN,
1955-56/2002, p. 284). Ou seja: “Se a linguagem fala sozinha, está aí justamente a
oportunidade, ou não, de utilizar o termo automatismo, e é o que dá ao termo que
Clérambault usava, sua ressonância autêntica [...]” (LACAN, 1955-56/2002, p. 345).
Lacan postula que o significante em sua articulação com outro significante promove a
significação e possibilita a representação do sujeito.
3.2.7 Paul Guiraud (1882-1972): as formas verbais e a interpretação delirante
Há dois artigos principais do psiquiatra francês Paul Guiraud, citados por Lacan
em sua discussão sobre as psicoses: “Os estados de loquacidade na demência precoce”
(1914) e “As formas verbais da interpretação delirante” (1921). A partir da investigação
de um fenômeno comum em muitos casos de enfermidade mental – a perda de
significação das palavras com a conservação de seu valor sonoro – Lacan sublinha que a
127
contribuição mais original de Guiraud é conceber o mecanismo do delírio interpretativo
em termos de formas verbais.
Guiraud estabelece o mecanismo lógico da interpretação delirante a partir de
quatro formas verbais: alusões, relações cabalísticas, homonímias e jogo de palavras.
Cada tipo de forma verbal funcionaria como elo entre as ideias e também como valor de
argumento na interpretação delirante. As duas primeiras seriam as mais frequentes. O
uso da primeira forma – as alusões –, relacionadas a palavras e objetos, fica mais clara
no exemplo: “Minha cunhada enviou uma caixa de ovos com meu nome escrito na parte
inferior para dizer que pessoas como eu não valem nada” (BASUALDO, 2004, p. 79).
Na segunda forma – as relações cabalísticas –, o enfermo estabelece relações
insuspeitadas entre cifras, como no exemplo: “Perdi uma moeda de quarenta centavos,
por isso sei que fiquei quarenta anos sem ver meu pai”. Na terceira forma – as
homonímias –, vigora a semelhança de nomes ou sobrenomes, como no exemplo da
enferma internada que estabelece, a partir do nome do perseguidor, várias associações
que explicariam seu sofrimento. Finalmente, na quarta forma, o jogo de palavras, é a
semelhança entre as palavras que estabelece o laço entre as ideias.
Guiraud diferencia dois fatores que polariza as associações nas formas verbais.
No grupo das alusões e relações cabalísticas, seria um estado afetivo, acompanhando-se
as associações de uma perda limitada da crítica. No grupo das homonímias e jogo de
palavras, prevaleceria, primeiramente, uma convicção de certeza a partir da qual o
enfermo busca coordenar as ideias.
Em “Formulações sobre a causalidade psíquica”, ao indagar sobre a crença
delirante, Lacan menciona Guiraud e Clérambault, valorizando suas observações
clínicas mais do que suas teorias. Afirma que eles, como bons mecanicistas, alcançaram
a “anatomia” que se manifesta na fala e na escrita dos delirantes: o problema da
significação (LACAN, 1946/1998). As formas verbais da interpretação delirante seriam
concernentes, dentro do grupo das psicoses, às paranoias, conforme indica a tese de
Lacan e outros estudos do mesmo período. Em “Escritos inspirados: esquizografia”,
escrito juntamente com J.
Pfersdorff.
Lévy-Valensi e P. Migault, Lacan menciona também
128
3.2.8 Carl Pfersdorff: a linguagem automática e as interpretações filológicas
Carl Pfersdorff, psiquiatra alsaciano, dedica-se, a partir de 1905, ao estudo da
patologia da linguagem. Em seus trabalhos, “A esquizofasia e as categorias de
linguagem” (1927) e “Contribuição ao estudo das categorias da linguagem, a
interpretação filológica” (1929), chama a atenção para a perda de sentido das palavras.
A partir do termo “esquizofasia”, introduz a categoria da “linguagem automática” que
consiste no uso de frases curtas e sem sentido, com vínculos associativos apoiados em
aliterações e palavras compostas, com alguma manutenção da sintaxe. Entretanto, para
além do puro jogo automático da linguagem, haveria também uma tendência à
interpretação filológica, feita a partir da polissemia das palavras.
Enquanto Guiraud ressalta a potência das formas verbais no resgate da trama de
ideias do sistema delirante, Pfersdorff sublinha sua vertente deficitária – como
“linguagem automática” –, mas também emancipa a interpretação filológica do
automatismo.
Após esse breve percurso pelos antecedentes da psiquiatria clássica no estudo
dos fenômenos de linguagem, podemos dizer que Lacan, fisgado pelo ensinamento
freudiano, o reelabora em sua formulação do simbólico. Aliás, o destaque da
importância da ordem simbólica, que caracteriza a fase inicial de seu ensino, recebeu
rico aporte de sua investigação clínica no campo da psicose.
3.3 Lacan e as relações entre escrita e psicose
O interesse pela relação entre os fenômenos de linguagem e a estrutura da
psicose compareceu muito cedo na investigação lacaniana em sua aproximação da obra
freudiana. Por ocasião de sua tese, em 1932, Lacan inclui um capítulo sobre a criação
literária de Aimée, chamando a nossa atenção para sua dimensão fenomênica, mas
também para sua consideração clínica. Após percorrer as referências indicadas na
trajetória de Lacan, situamos sua valorização dos escritos de Aimée como uma incursão
importante na investigação da relação do psicótico com o significante e também em
seus efeitos sobre a reabertura mais consistente dessa clínica. Qual a importância dessa
129
passagem pela consideração da escrita na psicose? Em seu trabalho com a literatura de
Joyce que resulta na conceituação do sinthoma, Lacan lembra seu interesse inicial:
Certamente somos arrebatados ao enveredar por esse caminho, como
testemunha o fato de eu ter começado escrevendo “escritos inspirados”. É
um fato eu ter começado assim, e é por isso que não deve me espantar muito
ver-me novamente confrontado com Joyce (LACAN, 1975-76/2007, p. 76).
A passagem de um enfoque mais deficitário a uma positivação dos chamados
“escritos loucos”, que ocorre cedo na trajetória lacaniana de articulação entre escrita e
psicose, tem marcos contextuais definidos. Partindo da tradição psiquiátrica, que o leva
a destacar os fenômenos de linguagem, Lacan estabelece a causalidade significante da
psicose. Em sua busca do “traço primordial” da psicose, ressalta o problema da
significação, o que o conduz a enfatizar a importância do simbólico e a formular a
hipótese da foraclusão do Nome-do-Pai. Assim, ao longo de sua elaboração teórica, sem
negar os efeitos de estereotipia e inércia da linguagem na psicose, Lacan também remete
alguns fenômenos de linguagem a um “esforço de rigor”, potencializando, desde cedo, a
abordagem dos seus efeitos de criação (BASUALDO et al., 2005).
Já em 1931, um ano antes do término de sua tese, Lacan escreve, juntamente
com J. Lévy-Valensi e P. Migault, o artigo “Escritos ‘inspirados’: esquizografia”. Suas
conclusões são contextualizadas pela discussão da psiquiatria francesa da época sobre o
problema dos fundamentos do delírio e dos mecanismos em jogo na sua produção. O
trabalho aborda a escrita poética e epistolar de uma professora primária, Marcelle C,
diagnosticada como paranoica. A ideia geral, então, é que a escrita constituiria uma via
para estabelecer o diagnóstico a partir dos fenômenos elementares. O termo
esquizografia é forjado a partir da denominação da variedade clínica denominada por
Kraepelin de “esquizofasia”, como assinalamos antes. Na discussão da psicopatologia
do caso, os pesquisadores destacam a afirmação da paciente de que seus escritos seriam
“impostos” de modo acabado, o que influencia a expressão usada no título do trabalho.
A paciente realiza dois tipos de produções: por um lado, cartas comuns e, por outro,
textos incompreensíveis, cujo conteúdo ela acredita apresentar “verdades de ordem
superior”.
Para definir os transtornos de pensamento que condicionam a estrutura do delírio
de Marcelle C, os autores usam as categorias de alterações de linguagem que Head
estabelece, em 1926, a partir da clinica da afasia. São estes: transtornos verbais,
130
nominais, gramaticais e semânticos. Apesar de reconhecerem alguns “resultados
altamente expressivos”, a produção de Marcelle C é, principalmente, referida à
estereotipia. Segundo Napolitano e Piro (2004, p. 105-106), a explicação da
“inspiração”
é
colocada
nos
seguintes
termos:
o
automatismo
supriria
o
empobrecimento patológico do pensamento. Lacan, Lévy-Valensi e Migault (LACAN,
1932/2011) encontram na atitude da paciente para com seus escritos a mesma estrutura
de seu delírio, a saber, a convicção sobre seu valor e a perplexidade.
Uma mudança na perspectiva de análise propiciará a abordagem da dimensão
criativa dos escritos de Aimée, caso clínico da tese de Lacan. Nos escritos de Aimée,
também encontra um uso peculiar das palavras, assinalando, aliás, que ela se refere a si
mesma como “namorada das palavras”. Questiona, então, a referência da teorização da
neurologia para discutir os fenômenos de linguagem na psicose, considerando-a mais
tendenciosa a evidenciar a vertente dificitária. Defendendo a ideia de funções de
representação superiores e virtualidades criativas, anuncia: “o leitor em parte alguma
terá essa impressão de estereotipia do pensamento, sobre a qual já insistimos analisando
certos escritos mórbidos” (LACAN 1932/2011, p. 175).
Finalmente, em 1933, escreve “O problema do estilo e a concepção psiquiátrica
das formas paranoicas da experiência”, artigo no qual desenvolve uma interessante
discussão aproximando a “sintaxe original” da experiência paranoica à da questão do
estilo na criação artística. Entre suas conclusões, uma interessante colocação:
Ora, estudamos metodicamente as expressões simbólicas da experiência que
esses sujeitos apresentam: são, por um lado, os temas ideacionais e os atos
significativos de seu delírio, e, por outro, as produções plásticas e poéticas
em que muitos são fecundos (LACAN, 1933/2011, p. 399)
O conhecimento dessa sintaxe original, diz Lacan, parece constituir “uma
introdução indispensável” à compreensão dos valores simbólicos da arte, mais
particularmente à questão do estilo.
Propomos retomar uma pontuação importante no seminário sobre as psicoses,
que situamos no encaminhamento de nossa questão de trabalho. Vejamos:
Mas o que a psicanálise trouxe de novo, como abordá-lo [fenômeno na
psicose] sem recair no ramerrão por uma via diferente [...]? O único modo
de abordar conforme a descoberta freudiana é o de por a questão no próprio
registro em que o fenômeno nos aparece, isto é, no da fala. É o registro da
fala que cria toda a riqueza da fenomenologia da psicose, é aí que vemos
131
seus aspectos, as suas decomposições, as suas refrações. (LACAN, 195556/2002, p. 47)
Trata-se, para Lacan, de conceitualizar os fenômenos na psicose no próprio
registro em que estes comparecem, o que é sublinhado quando outorga valor ao
testemunho do sujeito. É essa a perspectiva central do seminário mencionado: a psicose
evidencia a relação do sujeito com o significante. A dimensão do dito evidenciada, mais
claramente na esquizofrenia, em falas estranhas, revela que o eixo inconsciente, que se
refere à dimensão de enunciação do sujeito, não está operando.
A presença dos transtornos de linguagem tem, então, no ensino lacaniano da
década de cinquenta, um lugar especial no diagnóstico estrutural da psicose. Lacan
segue a tradição psiquiátrica ao valorizar os fenômenos de linguagem na busca dos
mecanismos da psicose. Também acompanha Freud, que indica que, no próprio
testemunho escrito, o “discurso do sujeito” é a via para a aproximação dos mecanismos
constituintes da psicose. Lacan propõe um caminhar cuidadoso para não “saltar os
relevos”, sob o pretexto de uma aproximação demasiada da neurose (LACAN, 195556/2002, p. 75).
Diferencia duas ordens de fenômenos: aqueles decorrentes da foraclusão do
Nome-do-Pai, fundamentalmente, os transtornos de linguagem, e aqueles relacionados à
carência da significação fálica, no registro do imaginário, como alguns fenômenos
libidinais, incluindo as alucinações e as formações delirantes. O estudo do delírio de
Schreber mostra que o “formigamento imaginário” busca fazer uma mediação possível.
Tendo o significante sofrido profundos remanejamentos, a exigência do simbólico
permanece. Trata-se de integrar algo dele mesmo que não foi simbolizado (LACAN,
1955-56/2002, p. 105). No delírio, ainda é possível distinguir o problema da
significação, tomado, nesse momento, como efeito imaginário da articulação
significante. Em relação à neurose, a diferença é que se trata de uma significação
irredutível, que só remete a ela mesma.
Segundo Lacan, o inefável da significação na psicose tem planos diferentes que
revelam a materialidade do significante, a saber, a intuição delirante e a fórmula vazia.
Na intuição delirante, que tem um caráter invasivo para o sujeito, o que é sublinhado é a
palavra do enigma. Na fórmula vazia, o que comparece “em oposição à palavra”, é o
ritornelo, da ordem da estereotipia. Na primeira, a significação plena e na segunda, a
significação vazia (LACAN, 1955-56/2002, p. 44).
132
Como colocamos, a psicose é abordada, fundamentalmente, no nível das
relações do sujeito com o significante. Na ausência do Nome-do-Pai no lugar do Outro,
que permitiria descompletá-lo, falha a significação fálica em sua potência de articular
significante e significado. Em 1957, Lacan distingue os fenômenos de código e os
fenômenos de mensagem, sendo que os fenômenos intuitivos passam a integrar a
primeira variedade. Como fenômeno de código, a intuição delirante privilegia o que
acontece do lado do Outro. Enquanto na neurose, o enigma chama à produção de um S2
que permite sustentar uma pergunta, na psicose, o gozo do Outro se relaciona a não
simbolização do enigma. A abordagem dos transtornos de linguagem não é totalmente
abandonada com a investigação das alucinações, mas se torna mais complexa. Assim,
experiência enigmática, como experiência de gozo, acentua mais o vazio de
significação.
Na discussão da representação do sujeito na estrutura, o melhor acabamento da
concepção de metáfora paterna ajuda a precisar a falha estrutural no campo do Outro.
Há uma diferenciação entre o Outro primordial, que introduz a língua, capturando o ser,
e o Outro da Lei, do significante Nome-do-Pai, privilegiado na ordenação do simbólico.
É o que confere consistência ao conjunto de significantes. A sua ausência impede a
inscrição do sujeito na castração, a diferenciação entre enunciado e enunciação, um para
além da mensagem.
A progressiva elaboração da formulação do objeto a, correlativa ao tratamento
lógico da estrutura significante, revelará a insuficiência do significante para situar o
sujeito no Outro. A função do corte e do intervalo, central na abordagem da fantasia,
começa a ser delineada bem antes, ressaltando um elemento heterogêneo – alheio ao
significante –, mas que intervém na dependência de sua articulação (MUNICOY &
FANJUL, 2005, p. 62).
Ansermet (1990), abordando o estatuto da escrita para o psicótico, propõe que o
Outro – suposto leitor –, embora ausente, funcionaria como corte para deter a
significação. Certamente, Lacan encontra “efeitos de criação” nos escritos de Aimée
(1932/2011, p. 287), porém alguns escritos, na psicose, ressaltariam uma dimensão de
objeto do escrito, mais afeita à letra.
133
3.4 A primazia da letra na psicose: do fenômeno à estrutura
[...] a partir do momento em que se agarra o
que há – como dizer – de mais vivo ou de
mais morto na linguagem, a saber, a letra, é
unicamente a partir daí que temos acesso ao
real.
Lacan, 1974
3.4.1 A letter, a litter: escritos em desvario 46
Sabemos que as relações entre significante e letra, implicando aproximação e
diferenciação entre os dois conceitos, foram se delineando ao longo do ensino de Lacan,
justamente, na articulação entre linguagem e gozo. Na consideração do impossível no
campo do simbólico, mas, sobretudo, na possibilidade de articular o impossível
enquanto real derivam perspectivas cada vez mais promissoras para pensar tanto a
especificidade da psicose como estrutura como as questões que emergem dessa clínica.
Assim, mais que uma dimensão literal do significante, a letra é concebida como ligada
ao real. Nossa proposta tem sido tomar, como caminho para abordar o empuxo à escrita
na psicose, a importância que assume o exercício da letra para a criação em sua função
de suporte de um efeito de sujeito e no laço social e sua importância para a direção da
clínica psicanalítica na psicose.
Lembramos que a letra – em sua referência mais geral de barrar a relação entre
significante e significado, de ruptura, de indizível – marca presença no coração da
semiologia psiquiátrica, mais propriamente, nos fenômenos elementares, como vimos
anteriormente. O interesse de psiquiatras e artistas pelas produções artísticas de sujeitos
psicóticos focalizou, justamente, a peculiaridade dos procedimentos estilísticos –
embora de formas diversas. Assim, o trabalho artístico foi considerado indicativo da
psicopatologia, tendo destacada sua vertente deficitária, mas também foi apontado como
46
Em “O seminário sobre a A carta roubada”, de 1955, Lacan usa a expressão “a letter, a litter, uma
carta, uma letra, um lixo” (LACAN, 1955a/1998, p. 28). Voltaremos a essa expressão, que adianta
importantes articulações conceituais de Lacan sobre linguagem e gozo, ao longo de nosso texto. Laia
assinala que, especialmente em Finnegans Wake, Joyce tira proveito da ilegibilidade, introduzindo uma
literalidade na mensagem, que lança sua escrita em uma espécie de desvario, mas que é, porém, uma
conquista, conforme constatamos com a noção de suplência no ensino lacaniano (LAIA, 2001, p. 52).
134
um esforço reparador (HULAK, 2006, p.21). Devemos lembrar que Lacan destaca o
legado freudiano da letra de forma curiosa: “Mas, acaso já não sentimos há algum
tempo que, por ter seguido os caminhos da letra para chegar à verdade freudiana,
ardemos em seu fogo, que consome por toda parte?” (LACAN, 1957/1998, p. 512).
Lacan postula que “a letra mata”, em oposição ao espírito, que vivifica –
referência à segunda epístola de Paulo aos Coríntios e à consciência (LACAN,
1957a/1998, p. 512-13) –, materializando a instância da morte, pois o significante não é
senão símbolo de uma ausência. É o inconsciente que produz efeitos de verdade:
[...] esse registro da verdade deve ser tomado ao pé da letra, isto é, que a
determinação simbólica, ou seja, aquilo a que Freud chama
sobredeterminação, deve ser considerada, antes de mais nada, um fato de
sintaxe, se quisermos apreender seus efeitos de analogia. (LACAN,
1956/1998, p. 470).
Podemos considerar que, não obstante as diferentes formas do processo de
erotização do significante, é possível evidenciar a primazia da letra em sua face mais
radical – a mesma que leva Freud a duvidar que, na psicose, esteja em jogo o recalque
(FREUD, 1915, p.231). Maleval (2009a, p. 186) contrapõe o trabalho com o puro
material verbal pouco voltado para as significações – derivado do gozo da letra – às
grandes construções delirantes que parecem mais claramente destinadas a uma
restauração da realidade. Esse é um ponto de interesse de Lacan por James Joyce,
particularmente em seu livro Finnegans Wake, pois o escritor promove, no próprio seio
da literatura – simbólica por excelência, portanto, ligada ao laço social – o gozo autista
da letra. A arte de Joyce permite pensar o sinthoma como referido à letra e ao real e não
como função da metáfora pertencente ao campo do simbólico (SOLER, 2007, p. 206),
formulação que reabre a discussão sobre a questão da psicose para além de sua
referência à neurose.
Segundo Maleval, a formulação freudiana de 1915 sobre o psicótico “se
contentar com palavras em vez de coisas” concentra magistralmente o essencial da
função da letra nessa estrutura, contrastando com a diversidade de descrições da
psiquiatria que, não obstante, tem seu valor de destacar o fenômeno em si (MALEVAL,
2009a).
Iniciamos com o jogo de palavras letra/lixo – a letter, a litter, referido à língua
inglesa –, que aparece no texto que abre os Escritos, “O seminário sobre A carta
roubada”, onde encontramos a primeira referência ao termo letra. Curiosamente, a
135
expressão é extraída do livro organizado por Sylvia Beach, editora de Joyce, intitulado
Our exagmination roud his factification for incamination of work in progress.
Joyce vinha publicando fragmentos de Finnegans Wake, os quais eram alvo de
críticas, e resolve, então, convocar ao trabalho, sobre seu texto ainda inacabado, doze
autores. Mandil (2003) chama atenção para dois pontos: Joyce brinca, posteriormente,
com os termos do título dessa coletânea na versão final de seu livro. Destacamos apenas
que exagmination, neologismo criado a partir do grego, ex-agmine, remete ao que “se
aparta da tropa”, subvertendo o que se convenciona chamar leitor comum e também de
leitura, pois convoca a uma posição de trabalho ativo. Joyce ainda usa a curiosa
expressão word in pregross, referindo-a a uma “palavra em estado de gestação”.
Propondo a regeneração da língua, procede a um laborioso exercício de deformação da
mesma. Conforme sinaliza Mandil, evidencia que, frente ao impacto traumático da
entrada do sujeito na linguagem, cada língua seria uma forma de apaziguar o caráter
enlouquecedor das palavras. Joyce escreve em inglês, que não é sua língua materna,
destacando os recursos que, embora façam vacilar o sentido, apelando ao nonsense,
mostram um esforço de ciframento que pode ser situado nos limites do simbólico,
portanto menos afeito a dimensão de mensagem e de fruição de prazer.
O poeta e ensaísta Valdimir Dixon, interessado na inovação literária de Joyce, é
o autor de A litter to Mr. James Joyce, que integra o volume citado. Ele estabelece as
ressonâncias entre letra e lixo que se perdem na língua portuguesa. Em uma rigorosa
pesquisa, Laia (2001) esclarece que, embora o texto desse comentador seja escrito a la
Joyce, o recurso gramatical também é habilmente usado como um elogio ao escritor,
pois a litter também remete aos termos “liteira” e “ninhada”. Lacan sublinha,
inicialmente, justamente a dimensão de rasura e da letra em seu comprometimento da
dimensão da mensagem.
Mais tarde, ao dedicar a Joyce um seminário, Lacan não fala mais de
sublimação, como destino da pulsão, nem de sintoma, mas de sinthoma. Essa
conceituação tem implicações clínicas que ainda constituem um verdadeiro work in
progress em relação à clinica psicanalítica da neurose, mas que descortina novos
horizontes para a clínica das psicoses, pois seu acento recai sobre a peculiar relação
entre linguagem e gozo.
Machado (2000) assinala que Lacan destaca a letra mais diretamente de sua
leitura da obra de Freud, enquanto o conceito de significante é construído,
principalmente, a partir de um trabalho sobre a linguística estrutural de Saussure. Em
136
nossa opinião, é nessa interseção, entretanto, que Lacan reabre a potência conceitual da
psicanálise, ao mesmo tempo em que mantém viva a raiz do ensinamento freudiano. A
contribuição das categorias centrais da teoria linguística – significante e significado – é
definida por Lacan como necessidade para o trabalho psicanalítico, ao mesmo tempo em
que adverte o analista de forma incisiva: “a armadilha, o buraco no qual não se deve
cair, é a de crer que o significado são os objetos, as coisas” (LACAN, 1955-56/2002, p.
43). É a própria realidade que é abrangida pelo significante.
Confirmando a relação diferenciada do psicótico com a linguagem, Lacan trata
de demarcá-la como carecendo de dialética. Propõe apreender os fenômenos da psicose
a partir da ordem simbólica em sua dimensão constituinte. Assim, diferencia os
fenômenos de código dos fenômenos de mensagem, recolocando, como mencionamos, a
oposição entre intuição plena e fórmula vazia (LACAN, 1957/1998).
A intuição delirante e o ritornelo retêm a significação, constituindo uma espécie
de “chumbo na rede”. A intuição delirante, soldando a palavra com a coisa está ligada a
uma convicção absoluta, “a palavra reveladora”, enquanto o ritornelo é uma palavra que
se repete com uma insistência estereotipada (LACAN, 1955-56/2002). O que
destacamos, nesse ponto, é que, em ambas, os elementos significantes, desconectados
da cadeia, assumem para o sujeito uma importância fundamental, revelando o gozo que
veiculam (MALEVAL, 2009a).
É interessante, então, focalizar, no ensino lacaniano, a delimitação do conceito
de letra em sua relação com a teorização do significante. O terreno da psicose,
certamente, possibilita pontos de abertura nessa teorização, assim como esta reverte
também sobre a elaboração de novas perspectivas para a clínica das psicoses.
Entre 1953 e meados de sessenta, Lacan precisa o conceito de significante em
sua distinção das formulações saussureanas. De modo geral, ele destaca o caráter
constitutivo da linguagem, mais especialmente a determinação fundamental do sujeito
pelo significante Ao longo de sua elaboração, nem sempre é possível encontrar uma
diferenciação mais definida entre significante e letra, porém dois trabalhos da década de
50 reúnem referências importantes sobre a letra: “O seminário sobre A carta roubada”,
de 1955, e “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, de 1957. Há,
ainda assim, entre os dois, configurações conceituais diversas, conforme aponta o
próprio Lacan na década de setenta (LACAN, 1971/2009).
137
3.4.2 Carta/letra
Em “O seminário sobre A carta roubada”, Lacan elege o texto de Edgar Allan
Poe
47
para colocar em relevo a ordem simbólica e a supremacia do significante. A
carta, em seu percurso circular e repetitivo, é apontada como revelando o
funcionamento do significante em seus efeitos sobre o sujeito: “o significante só se
sustenta num deslocamento comparável ao de nossas faixas de letreiros luminosos [...]”
(LACAN, 1955a/1998, p. 33).
Lacan define o nível da mensagem como operando por aberturas e nãoaberturas, isto é, por oposições fundamentais (LACAN, 1954-55/1985). O inconsciente
como discurso do Outro é, então, o circuito onde o sujeito se integra e que funciona para
além do principio de prazer. A ordem simbólica remeteria, portanto, a essa alteridade
fundamental.
Eis como Lacan toma a problemática freudiana do automatismo da repetição:
não só o sujeito segue o “veio do simbólico”, mas há possibilidades diferentes do sujeito
estar no jogo – conforme as “mudanças de mão” da carta. Assim coloca Lacan: “ao
entrarem de posse da carta/letra – admirável ambiguidade da linguagem –, é o sentido
dela que os possui” (LACAN, 1955a/1998, p. 34). Seu uso para fins de poder só pode
ser potencial, ou seja, continuar fazendo-a circular – uma forma aproximada de pensar a
ideia de mensagem, descolando-a de seu conteúdo. Lacan ressalta – também a partir de
seu seminário intitulado “De um discurso que não fosse semblante”, de 1971 – a
importância de quem “detém” a carta, mais do que seu autor (LACAN, 1955a/1998).
A dimensão de vazio da letra pode ser mais bem precisada em sua relação com o
falo, conforme indica Mandil (2003). Assim como o caráter visível do falo – anunciado
pela formulação freudiana da primazia do falo (FREUD, 1923) – implica a possibilidade
de sua perda, é o caráter visível da letra que torna o inconsciente abordável. Sob a
dimensão de mensagem, entretanto, revela-se uma dimensão de gozo, a qual alude a
expressão a letter, a litter. É a partir do jogo de deslocamentos e substituições que
constitui a articulação significante – que conjuga presença e ausência –, que Lacan
introduz a figura do caput mortuum do significante, expressão usada pelos alquimistas
para designar o resíduo não líquido de suas poções (REGO, 2006).
47
“[...] “A carta roubada”, novela absolutamente sensacional, que poder-se-ia até considerar como
fundamental para um psicanalista”. (LACAN, 1954-55/1985, p. 226).
138
Nesse texto, então, a ênfase lacaniana recai na dupla natureza da letra/carta:
além do nível da mensagem, o nível de sua materialidade, o qual permite tanto seu
manuseio, como a possibilidade desta ser esquecida, rasgada, rasurada ou jogada fora.
Ou seja, “como elemento de um sistema significante, não é da mesma ordem quando
essa carta é tomada como objeto, como pedaço de papel rabiscado” (MANDIL, 2003, p.
27).
3.4.3 Da letra, a instância no inconsciente: efeitos de frase
Em “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, mais uma vez
Lacan destaca a primazia do significante, ganhando a dimensão de letra maior precisão
conceitual através da comparação com os “caracteres móveis” da caixa do tipógrafo.
Além de se compor segundo leis de uma ordem fechada – como cadeia significante –, o
significante é puro elemento de diferença: “Donde se pode dizer que é na cadeia do
significante que o sentido insiste, mas que nenhum dos elementos da cadeia consiste na
significação de que ele é capaz nesse momento” (LACAN, 1957a/1998, p. 506).
Lacan toma a noção de fonema – da linguística – para distinguir, do ponto de
vista psicanalítico, significante e significado: o significante se organiza em uma
“estrutura literante”, isto é, fonemática (MANDIL, 2003, p. 30). Ao “pé da letra”
remete, então, ao significante depurado do significado, conforme Freud o articula no
sonho com a ideia do rébus, que deve ser lido em seu valor de letra e não como imagem
(LACAN, 1957a/1998, p. 513). As imagens devem ser consideradas, então, como
escrita, ou seja, não constituem uma significação e tem uma relação com a estrutura
significante que as determinam. Fora da leitura, são indecifráveis, remetendo, portanto,
ao seu funcionamento como escrita. Lacan define a letra da seguinte maneira:
“designamos por letra este suporte material que o discurso concreto toma emprestado da
linguagem” (LACAN, 1957a/1998, p. 498). Ou seja, a experiência psicanalítica
descobre no inconsciente, a fala, a estrutura de linguagem.
Na segunda parte desse texto – a letra no inconsciente
48
– são articuladas
colocações sobre o enraizamento da prática psicanalítica no “cristal significante”
48
O texto “A instancia da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1957) é dividido em três partes:
o sentido da letra; a letra no inconsciente; e a letra, o ser e o outro.
139
(LACAN, 1957a/1998, p. 523). Lacan lembra que Freud confirma com os sonhos o
papel constitutivo do significante para o inconsciente: uma questão de escrita e não de
pantomima. Nas formações do inconsciente, como indica Freud, trata-se de um jogo de
letras. O sonho dispõe da fala como elemento de encenação, coloca Lacan.
Lacan diferencia, a partir de Freud, duas vertentes da incidência do significante
sobre o significado: a condensação (Verdichtung) referida à metáfora e remetendo à
superposição de significantes e a produção de uma nova significação – efeito de poesia
ou criação – e o deslocamento (Verschiebung), referido à metonímia e ao transporte da
significação, portanto, explicitando a resistência à vinculação entre significante e
significado. Lembremos que a discussão sobre a origem da determinação do enlace
entre significante e significado recebe um considerável estímulo, justamente, da clinica
com psicóticos. Lacan propõe que a autonomia do significante – em sua organização
própria – é que produz a significação (ligada à indestrutibilidade do desejo
inconsciente), indo além da linguística em sua postulação de ligação arbitraria entre
significante e significado.
Finalmente, devemos destacar que Lacan assinala a relação entre sujeito e
significante em termos de efeitos desarmônicos de uma verdade que se articula na
linguagem. Afirmando com Freud a alteridade radical do inconsciente, ele coloca:
“Qual é, pois, esse outro a quem sou mais apegado do que a mim, já que, no seio mais
consentido de minha identidade comigo mesmo, é ele que me agita?” (LACAN,
1957a/1998, p. 528). Lacan usa a sonoridade da língua francesa, la lettre, l´être et
l´autre, para falar da função significante na determinação do sujeito.
3.4.4 Letra e traço unário
Entre 1961 e 1962, no seminário intitulado “A identificação”, Lacan toma a
noção de traço unário (einziger Zug, o traço único da identificação freudiana49) para
destacar a letra como aspecto mais elementar do significante. Ao funcionar em sua
49
Segundo M. Andrès, Freud indica em “Psicologia das massas e a análise do eu”, de 1923, que, na
formação do sintoma, a identificação constitui a forma mais primitiva de apego. O eu toma do objeto –
amado ou não – apenas um de seus traços. Por intermédio de seu apagamento, o traço está articulado ao
objeto através de sua ausência (KAUFMANN, 1996, p. 561).
140
essência de letra – pura diferença, não significando nada – o significante se diferencia
do signo – que sempre significa algo para alguém (LACAN, 1961-62).
Unário é um termo retirado da teoria dos conjuntos, segundo Lacan, para
destacar sua função exemplar ligada à redução extrema, como o traço da escrita chinesa.
Assim, trata-se não da função unificadora, mas da função distintiva e referida à
estrutura. Seria, então, a constituição do sujeito como Um primordial que aparece no
lugar de uma falta, de um apagamento originário. Como coloca M. Andrès, “a passagem
do real impossível para o simbólico se funda necessariamente sobre a negatividade”. A
lógica do significante está referida, portanto, à relação da falta com o traço
(KAUFMANN, 1996, p. 562). Essa marca está calcada em um “erro de conta”:
operando com a linguagem, a posição primitiva do sujeito é contar-se. Permitindo a
contagem, o traço unário é suporte de identificação para o sujeito, mas introduz um
registro que é do simbólico: não é apenas o que subsiste do objeto, mas é também o que
se apagou, remetendo, pois, ao significante fálico e à castração (CHEMAMA, p. 217).
Assim, articulam-se, no registro simbólico, identidade e diferença, esta última
introduzida pela seriação – a diferença, e não a identidade, advinda, portanto, da
repetição. Diz Lacan: “É o significante que decide, é ele que introduz a diferença como
tal no real, e justamente na medida em que o que importa não são diferenças
qualitativas” (LACAN, 1961-62). E, voltando à constituição do sujeito pelo
significante, coloca: “é o que representa, precisamente, o sujeito para outro significante”
(LACAN, 1961-62).
Costa (2008) traz assinalamentos importantes acerca de aspectos relevantes na
discussão sobre o traço unário e para sua consideração clínica na abordagem da psicose.
Coloca que um traço que conta o sujeito, e que não se confunde com uma qualidade,
pode ser relacionado com o nome próprio, mais propriamente no encontro do nome com
a coisa, portanto na função de nomeação. Trata-se do que permite ser um entre outros,
“singular, apesar de não ser único”. Ocorre que na psicose a nomeação se confunde com
o lugar de objeto. É importante ressaltar que, na clínica da psicose, haveria a
possibilidade de fazer operar o desejo do analista no sentido da separação entre o objeto
da pulsão e o traço de contagem.
Pensamos que a escrita, para o psicótico, pode ter o mérito de funcionar como
recurso de separação, ou seja, da produção de um recorte do objeto e, ao mesmo tempo,
de seu apagamento, o que permitiria a inscrição de um traço de contagem. É a função de
nomeação que Lacan destaca com a noção de sinthoma. Na psicose, trata-se de construir
141
um recurso – com pedaços de real, mais do que com significantes – para viver e se
aguentar na diferença em relação à neurose. Borsoi e Muñoz (2011) lembram que as
vias para nomear o real admitem elementos simbólicos, imaginários e reais, situando a
nomeação como produção de um lugar no Outro, a construção artesanal do corpo e,
finalmente, a obra em sua dimensão do fazer. Retomando a diferenciação entre
significante e letra, podemos dizer que, enquanto o significante aponta a diferença,
implicando novas possibilidades de significação por se articular em cadeia, a letra
marca a repetição de elementos finitos.
3.4.5 A holófrase estrutural do psicótico
O conceito lacaniano de holófrase ajuda a precisar a suspensão da função
significante e suas consequências para a posição subjetiva em alguns casos, entre estes a
psicose. Lacan retira esse termo da linguística, operando uma torção conceitual que
acompanha o seu uso em diferentes momentos de seu ensino, mas que, basicamente,
remete à ausência do princípio mínimo da estrutura do significante na qual o sujeito é
representado entre dois significantes. Maleval indica, com precisão conceitual, que essa
formulação lacaniana torna mais claro o funcionamento do significante como letra,
assim como a especificidade da posição subjetiva na psicose (MALEVAL, 2009, p.
173).
É interessante acompanhar o contexto linguístico no qual se insere a holófrase
para melhor retomar os três principais momentos em que Lacan se serve do termo.
Recuperando as origens de seu uso na linguística, Stevens coloca que o adjetivo
“holofrásico”, que surge no final do século XIX, é um termo gramatical que designa um
tipo de língua na qual uma única palavra aglutina, como se fosse uma frase, sujeito,
verbo e predicado (STEVENS, 1987). A holófrase é um termo que comparece referido a
três pontos da discussão dos linguistas: a tipologia das línguas, a origem da linguagem
e, finalmente, a noção de desenvolvimento na criança. Abordaremos, resumidamente, os
principais aspectos de cada um desses pontos.
Segundo Maleval, Stevens sublinha que, graças à colocação em novas bases da
discussão sobre a tipologia das línguas por Guillaume, um dos pioneiros da linguística,
Lacan extrai a referência estrutural da holófrase para inscrevê-la em sua proposição
142
sobre código e mensagem (MALEVAL, 2009a). É esse linguista que, destacando a
noção de palavra-frase, começa a subverter a ideia de línguas apoiadas na estrutura da
palavra ou da frase, tipos não superponíveis. Ele situa a holófrase como um ato de
linguagem onde o “ato de representação” (na língua) e o “ato de expressão” (o discurso)
coincidem (STEVENS, 1987).
A polêmica sobre a origem da linguagem é ironizada por Lacan já no primeiro
ano de seu seminário: “toda discussão sobre a origem da linguagem está marcada por
uma irremediável puerilidade, e mesmo por um seguro cretinismo” (LACAN, 195354/1986, p. 256). Ele refere-se mais especificamente à tentativa das hipóteses do século
XIX, no encontro com a teoria evolucionista, de explicar a passagem do animal ao
humano. Segundo Stevens, a holófrase é o termo que Lacan usa para demonstrar a falta
de pertinência de tal suposição (STEVENS, 1987).
Lacan contesta a ideia de que a holófrase seria um intermediário entre o animal e
o homem, que habita o mundo simbólico. Para ele, os elementos no mundo verbal não
possuem valor a não ser em seu potencial de diferença. Com auxilio de Saussure, Lacan
caracteriza a insuficiência do imaginário no homem e sua determinação pelo plano
simbólico: a holófrase concerne a uma situação imaginária, mas que já está inserida em
uma estrutura simbólica. Essa configuração não é sem consequências para a posição
subjetiva: “Verão também que toda holófrase se liga a situações-limite, em que o sujeito
está suspenso numa relação especular ao outro” (LACAN, 1953-54a/1986, p. 258). Ou
seja, a dimensão significante da linguagem está ligada ao fato de um elemento remeter a
outro, eis o que constitui o campo simbólico. Nascida em um fundo de ausência, a
143
enunciação, no grafo do desejo, tem uma passagem alienante pela cadeia dos
significantes do Outro.
Em 1964, em seu seminário sobre os conceitos fundamentais, Lacan postula a
holófrase do par significante primordial (S1 e S2) na psicose, entre outras situações
clínicas. Recordamos o contexto dessa tese lacaniana: “Em sua origem, o S1 não pode
significar-se a si mesmo, é puro não-sentido. Só mediante sua articulação com o S2, se
produz sua determinação, por um processo de retroação” (MALEVAL, 2009a, p. 232).
É nesse intervalo que se aloja o enigma do desejo do Outro. Assim, na psicose, a
holófrase faria um curtocircuito no processo da alienação-separação: o sujeito não está
dividido pelo significante e sua relação com o objeto a não está regulada pelo
significante fálico que orienta o desejo. O significante, na psicose, não se salva da
invasão do gozo relativo à presença do objeto a (não extraído) e da invasão do real.
A holófrase coloca em destaque a importância da função fálica: o significante
fálico seria responsável por manter a tensão da cadeia, além funcionar no intervalo,
contribuindo para sua diferenciação. Unindo S1 e S2, a holófrase resulta em um saber
sem ambiguidade, de tal forma que, em vez de interrogar-se sobre seu sintoma, o sujeito
o testemunha.
3.4.6 O real da letra: a dimensão de litoral
Passemos ao seminário de 1971, intitulado “De um discurso que não fosse
semblante”, no qual está incluída a lição intitulada “Lituraterra”. A letra é, então,
enfatizada em sua dimensão de real, daquilo que se conserva, diferenciando-se mais
claramente do significante, vinculado ao simbólico. Lacan inicia uma articulação que
desloca a letra que faz instância no inconsciente para o Um fora da cadeia, assunto do
seminário “Mais, ainda”, dos anos de 1972 e 1973. Segundo Dunker (2002), a letra
remete ao limite do fundamento do significante dent
144
mensagem: trata-se de evidenciar sua desconexão do sentido. Ou seja, é o gozo marcado
por uma perda inaugural que possibilita sua circulação.
Foge ao nosso objetivo atual abordar a amplitude conceitual e clínica do
deslocamento da teorização lacaniana da ênfase no significante para a dimensão do
gozo, uma vez que também se trata de um refinamento progressivo da noção de real
como impossível. Embora não se trate de uma correspondência entre a tríade freudiana,
os pontos de vista tópico, dinâmico e econômico e os três registros lacanianos, a saber,
o imaginário, o simbólico e o real, Dunker (2002) lembra que, na noção de real, entra
em jogo cada vez mais o inominável, aquilo que resiste à inscrição simbólica. Assim,
desde Freud, é o campo da psicose, colocando em evidência o gozo como correlato
clínico do real, que traz mais elementos para a teorização da dimensão pulsional e
também abre a perspectiva de pensar os impasses dessa clínica.
Na lição intitulada “Lituraterra”, Lacan liga a letra à ideia de litoral, tornando-a
um articulador entre simbólico e real: “O litoral é aquilo que instaura um domínio
inteiro como formando uma outra fronteira, se vocês quiserem, mas justamente por eles
não
terem
absoluta
mente
nada
em
comum,
nem
mesmo
relação
recíproca”(LACAN,1971/2009, p.109).
A expressão a letter, a litter é mais uma vez invocada no termo lituraterra, que
deriva de uma pesquisa da etimologia de lino, litura e liturarius, ligada à perspectiva de
tomar a literatura para além de sua dimensão de mensagem. Lacan privilegia a raiz
latina lino, de litura, que significa cobertura, mas também rasura, contrapondo-a à letter
que está na origem de literatura (MANDIL, 2003). Cabendo à letra articular os dois
territórios heterogêneos, esta também mostra seu fracasso, sua dimensão de furo, o furo
no saber, que a psicanálise defende. A descontinuidade no saber articulado ocorre em
função da dimensão de objeto da letra, ligada ao gozo.
Há, ainda, outra figuração ligada à noção de litoral, a do escrito como sulco
(ravinement), a terra feita de rasuras, lituras. Não se trata, entretanto, da idéia de bemescrever, como se um traço cobrisse o outro em busca de um melhor – uma palavra
apropriada –, mas da ausência de um traço fundador, uma palavra mais próxima de das
Ding. Lacan toma os sulcos produzidos na terra na conjugação com sua fonte, as nuvens
e a chuva: entre as nuvens – dimensão de significante – e sua ruptura com a formação
da chuva e dos riachos – escoamento ligado ao gozo –, não haveria continuidade.
Trazemos um trecho de “A arte da poesia: ensaios”, de Ezra Pound, um poeta
que, além de mestre da vanguarda poética, também se dedicou a pensar a escrita da
145
poesia. A poesia articularia, como a tendência da letra a operar como litoral, o pulsional
e o significante, acolhendo, entretanto, diversamente da prosa, o que nela resiste à
dimensão mensageira.
A poesia é um centauro. A faculdade intelectiva e aclaradora, que articula as
palavras, deve movimentar-se e saltar juntamente com as faculdades
energéticas, sensitivas e musicais. É precisamente a dificuldade dessa
existência anfíbia que faz com que seja tão baixo o registro censitário dos
bons poetas (POUND, 1976, p. 70).
No seminário “Mais, ainda”, de 1972-73, Lacan ainda ressalta a dimensão de
lixo da letra, assinalando a perspectiva de inutilidade do gozo. Pensado como resíduo, o
gozo deixa marcas indeléveis no simbólico, pois é o que põe o sujeito em marcha.
Após esse breve percurso sobre o conceito de letra, podemos pensar que, na
borda do simbólico, o psicótico e o poeta operam com o indizível do Real, fazendo
sulcos, abrindo trilhas. O primeiro, certamente, através de um trabalho incessante sobre
um gozo avassalador, frente ao qual, diferente do poeta, a posição de sujeito tem uma
precariedade radical. Privilegiando o que escapa ao significante, trabalhando no seu
limite, Joyce constrói, de forma original, algo da ordem de um (con)texto que o ancora
como sujeito, justamente, por fazer sobressair, em sua escrita, a dimensão de letra e
possibilitar um traço de contagem, um lugar no Outro.
No capítulo seguinte, abordaremos as relações entre arte e loucura em sua
perspectiva transformadora do trabalho com a psicose, destacando a experiência
francesa das Oficinas de Literatura Potencial (OULIPO), importante influência no
cenário das instituições de saúde mental. Finalmente, articulamos conceitualmente a
função da escrita na psicose a partir do relato de nossa experiência de trabalho clínico,
em sua referência à ética psicanalítica, em uma oficina de escrita.
146
4 OFICINAS DE ESCRITA
A palavra me leva para as paixões e os
hospitais. Me deforma e me refaz. A vida da
gente se torna texto. [...] A palavra me vai
revelando. Um dia me mostra conspícuo.
Noutro dia venéreo.
Manoel de Barros
Manoel de Barros escreve que poesia é a “armação de objetos lúdicos / com
emprego de palavras imagens cores sons etc. / geralmente feitos por crianças pessoas
esquisitas loucos e bêbados” (BARROS, 2010, p. 181). Deixemo-nos levar pelos poetas
e escritores e por essa experiência tão especial que é a escrita em sua vertente de litoral
entre o simbólico e o real para discutir possíveis pontos de convergência com a relação
do psicótico com a linguagem e o laço social.
Se a palavra constitui um instrumento privilegiado para os poetas e os escritores,
sabemos desde Freud e Lacan que, para o psicótico, a palavra é tomada como uma via
secundária em relação à estrada principal na qual se manifesta a potência polarizante do
significante (LACAN, 1955-1956/2002). Em seu seminário sobre as psicoses, Lacan usa
o exemplo da estrada principal para tomar o significante em seu valor de enganchar e
agrupar em feixe as significações, contrapondo-a ao percurso por pequenos caminhos
para caracterizar o recurso da linguagem para o psicótico. É inclusive destacando, em
um atlas, o mapa político – no qual os traços contam a história das significações ali
construídas e delimitam as fronteiras entre as terras – que Lacan fala da relação do
homem com o significante e do percurso diferenciado do psicótico. Além de obrigar a
um tempo maior, a via secundária muda a dinâmica entre o ponto de partida e o ponto
de chegada, visto que a própria direção deve ser construída. É a dimensão de letra do
significante, então, que é valorizada como um caminho de reconstrução e de alguma
ancoragem no laço social.
O trabalho com o real do aparato significante seria mais afeito ao exercício da
escrita? A escrita, em sua dimensão de criação – afiliada à arte –, acolheria,
diferentemente da fala, a possibilidade de recortar o gozo mortífero em uma versão
ímpar? Lacan identifica o nascimento da lei escrita e a importância simbólica da estrada
principal, assim como relaciona os letreiros dos pequenos caminhos com as alucinações.
Seria a escrita um recurso a ser considerado em sua pertinência estrutural no caso da
psicose? Sabemos que a loucura – no que permite o acesso ao gozo desnudado – não
147
deixa de visitar alguns poetas e escritores, e que, na psicose, trata-se de trabalho
forçado, árduo e ininterrupto. Não há aí um litoral no qual a discussão sobre a clínica da
psicose pode ser enriquecida? Eis nossa aposta. A partir da psicanálise, articulamos
escrita e literatura, tomada em sua dimensão de criação que possibilita efeitos de sujeito
e alguma circulação no laço social.
No presente capítulo, apresentamos um breve percurso pelas articulações entre
arte e loucura como solo nascente do dispositivo conhecido como “oficinas de escrita”,
inserido, com considerável frequência, no âmbito da abordagem institucional da
psicose. Sustentamos o lugar do aporte da psicanálise nessa discussão e na dimensão de
clínica da oficina de escrita a partir do relato de nossa experiência.
4.1 Arte e loucura: entre interseções e intercessões
Em nossa experiência, a clínica da psicose tem conduzido a refletir sobre a
articulação entre o papel do trabalho criativo na psicose e sua relação com o tratamento
do sujeito. Essa é uma direção de pesquisa de muitos analistas, mas também de muitos
trabalhadores do campo denominado de saúde mental. Propomos, então, rastrear alguns
caminhos pelos quais a arte e a loucura resultaram na composição de pontos de contato
conceituais e de orientação do trabalho prático. Tomamos as zonas de cruzamento – as
interseções – e os pontos que ensejam efeitos de trabalho vivo – as intercessões. Para
iniciar, delimitamos algumas configurações históricas que evidenciam a transformação
do trabalho clínico com a loucura a partir dessa co
148
ideia de acolher a peculiaridade da subjetividade na loucura (GUERRA, 2008, p. 23).
Não obstante, parece que a aproximação entre arte e loucura, recolocada pelos ares da
Reforma e que resultou em alguns encontros fecundos, tem sua origem na riqueza das
interrogações que ambos os campos germinaram mutuamente. Colocando em cena o
descentramento do sujeito, a psicanálise também se constituiu como teoria e clínica em
uma troca sempre oscilante, mas fundamental, com a arte e as questões colocadas pela
psicose. Rivera (2002) defende que a psicanálise tem aceitado pôr-se em movimento
com a arte em um convite mútuo. Ambas estariam relacionadas à desmedida que coloca
em cheque a cultura. Aliás, Lacan aceita o convite de Joyce e seu trabalho original com
a literatura – em sua dimensão de letra – e produz redirecionamentos fundamentais para
a clínica psicanalítica e para a reflexão sobre a psicose. Esse escritor e alguns poetas
mostram que a arte literária – tempero da civilização, como coloca Soler (1998) – tem,
além de sua dimensão significante, uma dimensão de objeto.
Antunes e colaboradores (2002), responsáveis por uma coletânea de trabalhos
que discutem a intrincada rede de relações entre arte, loucura e tratamento, defendem o
rico potencial de tal articulação:
Seja a arte tomada como louca pelo poder autoritário, seja do desatino tendo
vez e voz na criação artística, seja da apropriação das artes pelas terapias,
seja da apropriação da psicanálise pelas artes, o que se desenrola é a
possibilidade de escrever os desenhos dessa interação [...] (ANTUNES et al.,
2002, p. 23).
Curiosamente, o trecho acima destaca a possibilidade de uma escrita entre arte e
loucura que demarque um litoral. Concordamos com Lima e Pelbart (2007) quando
estes afirmam que, embora um campo não revele a verdade do outro – posição que leva
alguns a dar por ultrapassadas as possibilidades de conexão intensificadas no seio da
modernidade –, muitas mudanças foram mutuamente produzidas e permanecem
frutificando novas coordenadas de discussão.
Buscando contextualizar os movimentos de influência recíproca entre a arte e a
loucura, assim como ressaltar a importância da arte nos esforços de apreensão e
abordagem da loucura para além de sua dimensão de patologia, retomamos, a partir de
Foucault, quatro variações lógicas que presidiram as relações da sociedade com a
loucura ao longo dos tempos e através de diferentes lugares. São elas: a lógica trágica, a
lógica do desvio social, a lógica moral e, finalmente, a lógica reformista.
149
A primeira, chamada lógica trágica – inspirada na leitura “com Lacan” de
Foucault, sugerida por Laia (2001) –, corresponde aos séculos XV e XVI. Ao longo da
Idade Média e da Renascença, segundo Foucault (1972/2010), a loucura porta uma
dimensão de enigma, de força primitiva de revelação. Traz a marca da segregação, mais
no sentido de se originar de um “outro lugar” e menos como ameaça à sociedade por se
ligar a uma errância fundamental e à falta de inserção no mundo do trabalho. A loucura
provoca inquietude, da mesma forma que a morte: em seu liame com o nada, confronta
o homem com o que é sem recurso. Para Foucault, é no interior da tradição humanista
que a loucura perde muito dessa dimensão trágica: “sob a consciência crítica da loucura
e suas formas filosóficas ou científicas, morais ou médicas, uma abafada consciência
trágica não deixou de ficar em vigília” (FOUCAULT, 1972/2010, p. 29). A dimensão
trágica, com o abismo da loucura e seu perigo, é desarmada e ocultada, basicamente, por
uma relativização em relação à razão – “loucura e razão entram numa relação
eternamente reversível que faz com que toda loucura tenha sua razão que julga e
controla, e toda razão sua loucura na qual ela encontra sua verdade irrisória”
(FOUCAULT, 1972/2010, p. 30).
A segunda lógica, chamada do desvio social, corresponde ao século XVII,
dominando o período denominado como “grande internamento”. Nas casas de
internamento, misturam-se, não sem conflito, os velhos privilégios da Igreja na
assistência aos pobres e marginalizados com a preocupação burguesa de ordenar o
mundo da miséria: “o desejo de ajudar e a necessidade de reprimir; o dever de caridade
e a vontade de punir” (FOUCAULT, 1972/2010, p. 53). A sensibilidade social à loucura
– e a outros desviantes – é, então, pautada pela reação à miséria em sua ligação com a
desordem pública e a ociosidade. Datam dessa mesma época a criação, na Inglaterra,
das workhouses que, diferenciadas dos hospitais, deveriam assegurar trabalho e meios
de sustento econômico aos seus internos. Nestas, prevalecia a atividade de manufatura –
moinho, fiação e tecelagem – pois, no limiar da industrialização, a exigência moral
costumava tornar-se tática econômica (FOUCAULT, 1972/2010).
A terceira lógica, denominada de desvio moral, é articulada pela medicina, mas
apoiada na razão cristã. “A loucura começa a avizinhar-se com o pecado”, coloca
Foucault (1972/2010, p. 87), resultando em alianças obscuras das quais a psiquiatria
positivista não consegue se libertar. O tratamento da loucura no decorrer do século
XVIII e XIX tem suas bases estabelecidas na aproximação da destinação dos mesmos
lugares aos insanos e doentes venéreos. O espaço do internamento constitui, então, a
150
união das possibilidades de redenção dos pecados da carne e das faltas contra a razão.
Assim, o racionalismo acaba por autorizar a confusão entre castigo e remédio. O
desatino é concebido como doença, passando a hospitalização a ser considerada como
ato terapêutico (FOUCAULT, 1972/2010).
Finalmente, temos a lógica reformista que preside a constituição do campo da
151
os atos de vida têm sua administração aplicada de maneira coletiva e impessoal, como
podemos constatar na formulação de um representante da escola alienista, em 1841:
a repressão imediata e incessante das faltas de qualquer espécie, e da
desordem sob todas as suas formas, a sujeição ao silêncio e ao repouso
durante certo tempo determinado, a imposição ao trabalho a todos os
indivíduos capazes, a comunidade da refeição, as recreações com hora fixa e
duração determinada, a interdição aos jogos que excitam as paixões e que
entretêm a preguiça e, acima de tudo, a ação do médico, impondo a
submissão, a afeição e o respeito por sua intervenção em tudo que diz
respeito à vida moral dos alienados [...]. (Parchappe apud CASTEL, 1978, p.
116)
Sob o enfoque alienista, a subjetividade é apreendida como um excesso a ser
normatizado – “no fundo, a loucura não é original” (CASTEL, 1978, p. 115). A
supremacia das causas morais implica em perceber negativamente os fenômenos da
loucura sob um fundo de ordem, além de proporcionar a delimitação de um domínio de
prática mais seguro. Segundo Castel (1978), os representantes da escola alienista,
embora não deixassem de considerar uma etiologia orgânica, inclinaram-se mais para
uma nosografia moral e social que remeteria às paixões, assim como ao terreno social.
Como coloca o próprio Pinel, em se Traité Médico-Philosophique sur l´Alienaton
Mentale, de 1809:
Aprendi que a alienação mental é causada, em alguns casos, por lesões
orgânicas ou por uma disposição hereditária, mas, mais frequentemente, por
afetos morais muito profundos e contrastados [...] Seja qual for a acepção
que se dê ao termo, é certo, todavia, que as paixões estão entre as causas
mais comuns de doença; a alienação mental oferece inúmeros exemplos [...].
(PINEL apud PESSOTTI, 1996, p. 93)
As causas da loucura são discutidas ao longo de seu Traité e abrangem um
amplo e variado espectro de situações e fatores, reunidos a partir da observação clínica.
As paixões, em particular, são definidas como “modificações desconhecidas da
sensibilidade física e moral” e apresentadas em sua variedade: vícios, sofrimentos,
desavenças conjugais, frustrações, entre outros exemplos, além das paixões alegres,
como o amor e o arrebatamento, são capazes de convulsionar a razão (PESSOTTI,
1996).
Apesar do paradoxo que positiva a loucura pelo seu aspecto de prejuízo, a escola
alienista inicia um esforço de tratamento que mantém estreita relação com a teorização.
Pinel propõe uma nosografia filosófica – diversa da busca de cientificidade da medicina
152
apoiada na anatomia e na fisiologia – na medida em que pretende uma racionalidade
fenomenológica. Sua obra teórica constitui um dos últimos sistemas classificatórios
apoiados na observação sistemática de sinais exteriores. Fundada no modelo das
ciências naturais, a busca pineliana é de estabelecer os traços distintivos da alienação
mental (CASTEL, 1978). Um dos principais alvos do tratamento moral insere-se,
justamente, nessa racionalidade: se a loucura é frequentemente produto das paixões, seu
tratamento deve visar seu regramento.
As ideias teóricas e de tratamento defendidas pela escola alienista têm suas
raízes na Antiguidade, conforme assinala Pessotti (1996). Segundo o autor, o médico
Bartolomeu, um dos mestres da primeira escola médica do mundo ocidental, a Escola de
Salerno – que floresceu entre os séculos X e XII –, defendia que as paixões da alma
estavam entre as causas da loucura. Para esse mestre, os doentes deveriam ser
revigorados, confortados e afastados das fontes de seus males e, mesmo, “alegrados”
com música ou alguma ocupação. Esses meios eram considerados mais eficazes que
outros, como banhos, dietas e infusões, embora tivessem um papel coadjuvante
(PESSOTTI, 1996). Já no mundo oriental, a partir do pensamento árabe, por volta do
século XII, a música, a dança, o teatro, entre outras artes, integram a cura da alma nos
primeiros hospitais verdadeiramente direcionados aos insanos. Com a emergência do
tratamento moral, entretanto, passa a vigorar a valorização da razão e do trabalho (em
seu valor disciplinar), enquanto as artes, remetendo às paixões, começam a desertar
desse campo (LIMA, 2009).
Não há duvida de que há uma revalorização das paixões na consideração das
causas da loucura por Pinel – herança da tradição da Idade Média –, sendo esse
elemento integrado no projeto de tratamento, não apenas como coadjuvante, mas como
forma de atingir a causa do adoecimento, a própria essência da loucura. A articulação
teórica e prática do tema das paixões é que será equacionada de maneira peculiar.
Devemos considerar que Pinel traz alguns elementos inovadores que descortinam um
horizonte de tratamento: a loucura é concebida como uma condição não dissociada da
sanidade, portanto, reversível. Sob a influência do humanismo iluminista, o louco não
tem diminuído seu valor e a postura de segregação perde seu sentido. Tratando-se,
então, de um desequilíbrio da razão por influência das paixões, o tratamento moral
propõe experiências corretivas que atinjam a gênese dos erros da razão. Assim, o termo
“moral” (PESSOTTI, 1996) está ligado às ideias de prudência, controle e contenção de
excessos, ou seja, correlato direto das paixões como causa da loucura.
153
Há que se destacar que o tratamento moral – como “obra ordenadora”
(KANTZÀ, 1989, apud PESSOTTI, 1996, p. 127) – não escuta as palavras do louco,
não adentra à experiência do delírio. Seu princípio básico – influenciado pelo
pensamento de Locke – é que as paixões impedem ou distorcem a percepção da
realidade, sobre a qual se forjam e se elaboram as ideias. O caminho para a reconstrução
da vida psíquica é a experiência sensorial: “A loucura é desarranjo na gênese das ideias
ou na forma de elaboração mental da experiência dos sentidos [...]” (PESSOTTI, 1996,
p. 123). Um exemplo que chama nossa atenção é a descrição da estratégia para tornar
insustentável o pensamento delirante. Visando à reordenação de suas ideias delirantes, o
doente é submetido a inusitadas experiências sensoriais, como mostra um trecho do
verbete Mélancolie, escrito por Pinel, cerca de quinze anos depois de seu Traité:
Aquele, por exemplo, que acredita não ter cabeça deve portar um pesado
chapéu de chumbo até que mude de ideia, àquele que tem uma serpente no
ventre administra-se um emético e na substância vomitada coloca-se, às
escondidas, um animal desse tipo [...] Um paciente tem delírio de grandeza e
se considera Cristo; dá-se ordem a todos para que ninguém fale com ele; o
paciente, empurrado sobre si mesmo, sente-se profundamente humilhado no
seu isolamento social e depois de algum tempo abandona sua ideia para ser
novamente aceito na comunidade [...]. (Pinel, 1816, apud Petrella, citado por
PESSOTTI, 1996, p. 131).
O delírio, em particular, como coloca o alienista Petrella, deve ser confrontado
com recursos que objetivam combater seu impulso excêntrico. Parece que a intensidade
da mola passional que o sustenta exige uma força de oposição igualmente vigorosa.
Passemos à consideração da atividade laboral e da presença da arte no contexto
da escola alienista de Pinel. Se tomarmos em paralelo a experiência inglesa, veremos
que a passagem do grande internamento para o nascimento do asilo é forjada no
contexto da crescente industrialização e da consolidação da sociedade burguesa.
Segundo Foucault, as relações entre trabalho, lucro e virtude, sustentadas pela
consciência burguesa, marcam a história das grandes casas de internamento, que
reorganizam a assistência aos insanos e surgem como resposta à necessidade de ordem
pública e à crise econômica (FOUCAULT, 1972/ 2010). O quadro do trabalho vai se
constituindo, progressivamente, no encontro dos mundos econômico e moral, em sua
dimensão de valor social.
As propostas de Pinel e Tuke, as quais marcam o nascimento do asilo como
domínio específico do tratamento da loucura, têm diferenças interessantes. Samuel Tuke
não era médico, sendo que sua iniciativa, o retiro, estava ligada a uma organização
154
privada denominada Quacre. Bastante comum na Inglaterra do final do século XVIII,
era destinada a angariar fundos e acolher os doentes, em especial, os insanos. Foucault
destaca a força do “mito do retiro” que nos interessa por privilegiar o papel do trabalho
e das artes no tratamento da loucura. Nas palavras que aparecem em um relatório de
visita ao Retiro, podemos ter melhor delineada sua proposta central:
A respeitável sociedade dos Quacres ... desejou assegurar a seus membros
que por infelicidade tivessem perdido a razão , sem ter fortuna suficiente
para recorrer aos estabelecimentos dispendiosos, todos os recursos da arte e
todas as amenidades da vida compatíveis com sua condição [...].
(DELARIVE apud FOUCAULT, 1972/ 2010, p. 459).
Segundo Foucault, a obra de Tuke insere o doente na natureza – a chamada
“sabedoria dos jardins” – para resgatar o ponto no qual a sociedade se origina. A
verdade da loucura seria o que o homem tem de primitivamente mais inalienável.
Assim, o trabalho físico – valorizado em seu aspecto social – teria como fim
“desalienar” o espírito perdido nos excessos da liberdade. Por outro lado, o trabalho do
espírito deveria ser restrito ao estudo das matemáticas e das ciências naturais – àquilo
que é conforme com a sabedoria da natureza – e evitar os exercícios da imaginação, que
mantêm um parentesco com as paixões e as ilusões delirantes. Em termos gerais, essa
espécie de purificação moral estava atrelada a uma visão religiosa (FOUCAULT, 1972/
2010).
Na França, Pinel constitui o espaço e o funcionamento da instituição em
continuidade com a moral social (FOUCAULT, 1972/ 2010). O tratamento moral está
apoiado nos valores da família e do trabalho e se opõe a tudo que é contrário às virtudes
da sociedade. Os vícios, o comportamento desordenado, a preguiça, entre outros,
degradariam, aos poucos, a razão. Assim, como coloca o próprio Pinel: “[...] o meio
mais seguro e talvez a única garantia de manutenção da saúde, do bom comportamento
e da ordem é a lei de um trabalho mecânico rigorosamente executado” (Pinel apud
FOUCAULT, 1972/ 2010, p. 488). O apego às regras tem um motivo: retirar a
experiência sensível da ambiguidade (PESSOTTI, 1996). Com a finalidade de conduzir
às chamadas “sínteses morais”, as estratégias de organização da rotina envolvem o
julgamento, a punição e o reconhecimento pelo culpado. Há uma conversão do
tratamento em justiça e repressão, o que certamente contribuiu para abusos. Segundo
Pessotti (1986), os aspectos passionais da alienação, ainda que tomados em uma
moldura moral, passarão para um plano secundário com o declínio desse modelo. O
155
projeto filosófico-humanista que norteara a obra de Pinel, aos poucos, deteriora-se,
principalmente, no campo terapêutico, revigorando o interesse nas explicações e
tratamento organicistas da loucura. O manicômio como fonte de conhecimento da
psicopatologia e como centro da função disciplinadora do tratamento começa a ser
questionado.
Assim, não se trataria, entretanto, de uma diferença de meios terapêuticos, pois,
mesmo na vertente do tratamento moral, os recursos do chamado tratamento físico,
conhecido desde a época hipocrática, não eram dispensados. O que deve ser levado em
conta é sua função na estratégia terapêutica. Conforme esclarece Pessotti (1996), a
finalidade dos meios terapêuticos estava ligada à complexa relação estabelecida entre a
causa e a ideia de intervenção sobre a mesma. Embora o repertório de alternativas de
tratamento fosse, na verdade, mais ou menos comum entre a corrente pineliana e a
orientação organicista da psiquiatria, o que variava era a intenção da ação sobre a razão
– influência iluminista – ou sobre o organismo, o “cérebro doente”.
A partir dessas últimas considerações, devemos refletir sobre o tema específico
da presença das artes na orientação conceitual e terapêutica da abordagem da loucura ao
longo da história. A inclusão da arte – seja como patrimônio social e cultural seja como
produção ou criação – entre os recursos usados no tratamento da loucura está
estreitamente ligada às concepções sobre a natureza e as causas da loucura. Recolhemos
apenas algumas indicações sem a intenção de historiá-las rigorosamente. No
pensamento hipocrático, do século IV a.C., no qual a loucura é efeito de desarranjos
humorais de natureza física, o emprego da música, do teatro e outras atividades
artísticas visava o tratamento físico, a saber, a restauração da economia humoral
(PESSOTTI, 1996). O médico romano Celsus, do século I, fiel seguidor da medicina
hipocrática, propõe tratamentos específicos: no caso da melancolia, o doente deveria ser
distraído com narrativas, contos e ocupações que o interessavam na época da saúde;
suas obras deveriam ser elogiadas e deixadas perto dele (PESSOTTI, 1994). Os médicos
do período pós-hipocrático entendem que a loucura resulta de alterações nos fluídos
humorais e na sua distribuição, sendo as alternativas de tratamento – que incluíam as
atividades artísticas – de natureza purgativa do organismo, chamadas catárticas.
No coro do organicismo humoral, como coloca Pessotti (1994), Sorano de
Éfesus é uma voz dissonante, acreditando nos recursos do espírito e, como nos parece,
no valor da prática de algumas atividades. Além de recomendar aos melancólicos, o
teatro, em especial, as comédias, e aos loucos alegres, as peças trágicas, considerava que
156
os doentes deveriam ser incentivados a escrever e ler discursos, sendo louvados pelos
ouvintes, de preferência seus familiares, enquanto os iletrados deveriam dar
continuidade à prática de seus ofícios.
No confronto entre os tratamentos organicistas e moralistas, o emprego
alternativo de meios físicos ou morais pode atender a diferenciadas finalidades, a saber,
à alteração do estado orgânico ou à modificação das ideias a partir das experiências
sensíveis. Assim, a música, o teatro ou a recreação eram recursos usados por ambas as
visões do processo terapêutico (PESSOTTI, 1996). Particularmente, no tratamento
pineliano, a música, a leitura, a escrita, o desenho, a pintura e a escultura, eram
valorizadas ainda que direcionadas a um reordenamento funcional da mente e inseridas
na “prescrição médica” .
Finalmente, devemos refletir sobre as consequências das diferenças de
teorização e orientação da prática de tratamento, assim também como na consideração
da produção artística dos assim denominados loucos, tanto no campo da psiquiatria
como no campo da arte. Em nossa opinião, embora tenha ocorrido mútua e frutífera
influência nos encontros entre arte e loucura, os equívocos e as confusões não estão
ausentes.
No final do século XIX, o modelo institucional de Pinel e Esquirol começa a
decair em função do obscurecimento dos seus aspectos mais progressistas – o
manicômio como função de conhecimento da psicopatologia e de enfrentamento das
“causas morais” – e a ser questionado em sua tendência segregacionista (PESSOTTI,
1996). Ocorre, nessa época, uma interessante confluência de dois movimentos: o
interesse dos psiquiatras pela produção artística dos internos nos hospícios e o
questionamento dos movimentos de vanguarda sobre as convenções acadêmicas que
regiam a criação artística (LIMA, 2009). Clínicos e artistas, entretanto, usavam lentes
muito diferentes.
A tradição romântica, do final do século XVIII, contribuindo para uma visão
mais favorável da loucura, abre espaço para a consideração das obras artísticas
produzidas no interior dos hospícios, chamando a atenção para a dimensão sensível e
criativa da própria loucura (MELLO, 2000). Porter (1990) assinala que o casamento
entre loucura e gênio artístico, constituído no berço do romantismo, contribui para a
concepção da loucura criativa e, finalmente, para sua inscrição na psiquiatria em
expansão. Surgem as primeiras coleções de trabalhos artísticos de internos de grandes
hospícios da Inglaterra e da Escócia e alguns médicos começam a estudar a produção
157
plástica dos loucos. É possível afirmar que expoentes da psiquiatria clássica, como
Lombroso,
Kraepelin
e
Jaspers,
buscavam,
essencialmente,
dados
sobre
a
psicopatologia, embora abrissem novos caminhos de discussão.
Em “Gênio artístico e loucura: Strindberg e VanGogh”, publicado em 1922, Karl
Jaspers (1922/2001) admite uma “profundidade misteriosa” nas relações entre a
esquizofrenia e a obra desses artistas excepcionais. Em um estudo fértil na
problematização de muitas questões, ele se deixa levar por essas “mentes singulares”,
sem abandonar sua posição de estudioso da psicopatologia. Abrindo-se ao singular da
experiência esquizofrênica, assume uma atitude prudente, fazendo uma certa crítica ao
entusiasmo cultural da época sobre a ligação entre essa condição e a possibilidade
máxima de autenticidade no campo da arte. Entre suas colocações, destacamos aquela
que se refere, justamente, às relações entre obra e esquizofrenia:
É muito provável que a esquizofrenia seja uma condição para a criação das
obras de alguns artistas, devido à coincidência entre o transcurso temporal
da evolução da psicose, a alteração de seus modos vivenciais e criativos e a
mudança de estilo de suas obras. [...] Poderia objetar-se que toda evolução
genial apresenta esse caráter: o artista experimenta uma nova revelação e,
em seguida, coloca mãos a obra para desenvolver um novo estilo. Tal
proceder é conhecido, não precisa da intervenção da psicose e não só é
concebível como habitual, no caso do gênio (JASPERS, 1922/2001, p.242).
Tomando a história e a obra do escritor Strindberg e do pintor VanGogh, além
de outros dois artistas – Swedenborg e Holderlein, considerados como paralelos
respectivamente aos primeiros – Jaspers propõe uma “patobiografia”. Discute as
relações entre a produção artística e as mudanças psíquicas trazidas pela esquizofrenia,
ressaltando, em particular, a riqueza desse processo patológico. Para ele, esse tipo de
estudo abriria a possibilidade de conhecer aspectos da esquizofrenia poucos acessíveis
na clínica:
Como os esquizofrênicos excepcionais constituem uma raridade, poderia se
pensar na possibilidade de estudar esses enfermos que escrevem, pintam,
entalham e desenham nos centros psiquiátricos com a finalidade de conhecer
a diversidade de afetos na esquizofrenia (JASPERS, 1922/2001, p.249).
Jaspers é contemporâneo das primeiras coleções e estudos de psiquiatras, assim
expressando-se sobre o valor dessas iniciativas: “agora se encontram em um só lugar e,
sem dúvida, podem ser comparadas e submetidas a questionamentos científicos”
(JASPERS, 1922/2001, p.250).
158
Entre o final do século XIX e início do século XX, surgem as primeiras
publicações médicas, algumas promovidas no contexto do interesse pela arte por parte
de alguns psiquiatras e pelas experiências inovadoras no campo da psiquiatria
52
. A
escrita é, então, uma manifestação artística incluída, inclusive, no título de algumas
dessas obras.
Em 1845 e 1848, os alienistas Pliny Earle e Forbes Winslow publicam estudos
sobre a produção artísticas dos chamados insanos. Mais perto do final do século, o
psiquiatra francês Ambroise Tardieu (1888) defende a importância de se examinar a arte
produzida pelos loucos e o psiquiatra francês Paul-Max Simon escreve “Les écrits et les
dessins des aliénés” (1888), estabelecendo correspondências entre manifestações
artísticas e categorias clínicas. A partir desses pesquisadores, o discurso psicopatológico
começa a estabelecer as relações com a produção estética, tomando a arte como uma
espécie de documento clínico (ANDRIOLO, 2006).
Em 1864, Cesare Lombroso, psiquiatra italiano e diretor do manicômio de Pádua
– mais conhecido por seus estudos de influência positivista sobre a medicina
criminalista –, escreveu “Gênio e loucura”. Segundo Mello (2000), foi um dos pioneiros
a conceber a relação entre loucura e capacidade criativa, embora não considerasse que
tais produções pudessem ter valor no campo da arte. Andriolo (2006) assinala que a
teoria da degenerescência (Morel), que tem em Lombroso um dos seus expoentes, serve
de apoio para uma aproximação da produção artística dos insanos da mentalidade
infantil ou primitiva. O gênio teria suas raízes na loucura e no domínio da degeneração,
sendo um “degenerado superior”.
Já em 1907, o médico e ensaísta francês Marcel Réja, que escreveu “A arte nos
loucos: desenho, poesia e prosa”, é um dos primeiros a chamar a atenção para a
qualidade estética das obras, ainda que estivessem presentes em seu estudo indícios de
sua visada psicopatológica. O autor afasta-se das categorias clínicas para propor uma
reflexão antropológica da produção plástica dos loucos e sua função simbólica,
comparando-a com a arte das crianças, dos prisioneiros, dos primitivos, entre outros
(ANDRIOLO, 2006).
52
Podemos citar alguns exemplos: o psiquiatra francês Joseph Rogues de Fursac com “Les écrits et les
dessins dans les maladies nerveuses et mentales” (1905), o psiquiatra, filósofo, educador e linguista
peruano Honorio Delgado com “El dibujo de los psicopatas” (1822), o psiquiatra suíço Walter
Morgenthaler com “Ein Geisteskranker alskunstler” ou “Um artista alienado” (1925) e o neuropsiquiatra
francês Jean Vinchon com “L´art et La folie” (1925) (Cesar, 1951 e Dalgalarrondo, 2006 apud
DALGALARRONDO e cols, 2007).
159
Em 1922, Hans Prinzhorn, psiquiatra e crítico de arte alemão, lançou o livro
“Expressões da loucura”, defendendo que o poder criador subsiste na loucura e
recusando a exclusão dos trabalhos do campo da arte. Seu interesse é buscar o que
singulariza o estilo de cada subjetividade e a coleção existe até hoje. Nas décadas de 20
e 30, várias exposições artísticas acontecem na França, Alemanha e Suíça, causando
impacto e reações contrárias ao valor artístico das obras. Na vigência do nazismo, a arte
produzida nos asilos é denominada “arte degenerada”.
No Brasil, em 1923, o paraibano Osório César, psiquiatra, músico e crítico de
arte, frequentador dos salões de arte modernista, companheiro de Tarsila do Amaral,
começa a estudar a arte dos alienados no Hospital Psiquiátrico do Juquery em São
Paulo, comparando-a com a arte primitiva, das crianças e de vanguarda. Em 1929,
escreve o livro “A expressão artística dos alienados” e, em 1934, cria a Escola Livre de
Artes, pois observara que grande parte dos internos desenvolvia espontaneamente várias
formas de arte: pintura, escultura, poesia e música.
Em 1945, o pintor Jean Dubuffet inicia uma das mais importantes pesquisas da
Europa e cria o conceito de “arte bruta”, definindo-a como uma arte espontânea e
fortemente inventiva, feita por pessoas não inseridas no meio artístico. Desejoso de
descobrir produções artísticas que fomentassem sua investigação, ele encontra nos
trabalhos artísticos feitos no interior dos hospícios o caráter radicalmente inédito e
imaginativo que aponta como abrindo novos caminhos para a arte. Frayse-Pereira
(1995) assinala que a busca de Dubuffet era fruto de seu descontentamento com os
cânones renascentistas e mesmo da arte contemporânea e se dirigia às forças e formas
elementares da expressão artística.
Em 1946, a psiquiatra Nise da Silveira, envolvida na luta contra a hegemonia das
práticas médicas no trato institucional com a loucura, cria o Ateliê de pintura no Centro
Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro. Acolhida no Setor de Terapêutica Ocupacional
e Reabilitação, propõe incluir a arte na atenção aos internados, contribuindo de maneira
importante para a discussão dos rumos futuros da clínica institucional da psicose. Desde
sua primeira exposição de trabalhos do Ateliê, o interesse do público e de artistas
prevaleceu sobre aquele do meio psiquiátrico.
Nas décadas de cinquenta e sessenta, no Brasil, destacamos a contribuição do
crítico de arte Mario Pedrosa que, como Dubuffet, exalta o valor artístico da produção
do hospício, denominando-a “arte virgem”. Defendendo a arte como domínio de todo
“ser sensível”, portanto louco ou não, assinala que o esquizofrênico criaria a partir de
160
um ponto no qual “se borram esses limites que a atividade normal da consciência não
cessa de traçar entre o que distingue o eu e o não-eu, entre o sujeito e o objeto”
(PEDROSA, 1964 apud FRAYSE-PEREIRA, 1995).
Devemos apontar que as obras, assim como o próprio processo de criação, são
concebidas de forma diversa por psiquiatras e artistas. As pesquisas médicas,
geralmente dedicadas à busca de elementos para a construção de um saber sobre os
estados patológicos do psiquismo, certamente, foram atravessadas pelo diálogo com a
psicanálise e pelos questionamentos introduzidos pela arte moderna. No âmbito do
campo da saúde mental, a arte permanece valorizada em sua vertente terapêutica e por
sua potência de socialização. Podemos dizer que as perspectivas de acolhida no laço
social da diferença trazida pela loucura, reabertas pelo movimento da reforma
psiquiátrica, conjugam-se, exatamente, em torno de sua riqueza criadora.
O movimento da reforma psiquiátrica brasileira implicou a substituição do
modelo asilar por uma rede integrada de serviços que compõem recursos terapêuticos e
comunitários. Surgiram os hospitais-dia, os ambulatórios especializados, os CAPS
(Centros de Atenção Psicossocial), os serviços residenciais terapêuticos, os centros de
convivência e o dispositivo das oficinas terapêuticas. Segundo Tenório (2001), a
reforma brasileira está ligada a três eixos principais: a desinstitucionalização, a
reabilitação psicossocial e a clínica institucional. Basicamente, as três vertentes
propõem deslocar o foco da ideia de doença e de tratamento para a problematização da
loucura como condição de existência e de um campo de cuidados que possibilitem um
certo agenciamento no laço social.
As iniciativas que trouxeram, para a cena da discussão das questões colocadas
pela psicose, a articulação com a potência da arte – seja na sua dimensão de sujeito, seja
na dimensão de produzir alternativas de sustentação no laço social – continuam
presentes na atualidade das propostas de trabalho das políticas públicas de saúde mental.
Em nossa opinião, tendo a configuração desse movimento se formado não sem a
contribuição da psicanálise, o analista é convocado em sua responsabilidade ética de
seguir pensando sobre a importância da criação nessa clínica. A escrita, em especial,
deve ser uma via a ser considerada na aposta de trabalho na psicose. Consideramos que
a apropriação pelo campo da saúde mental – campo múltiplo de formação profissional e
de práticas – da valorização do delírio e da criação como tentativas de cura, envolveria
um certo risco de naturalização da radical estranheza trazida pela psicose. Tenório
(2001) recomenda prudência na consideração a priori dos efeitos organizadores da
161
produção na psicose, principalmente, na medida em que estes sejam inseridos no campo
dos ideais no sentido oposto do que propõe a psicanálise em sua valorização da lógica
singular da psicose.
4.2 A experiência do grupo francês: OULIPO – Oficinas de Literatura Potencial
Há um cio vegetal na voz do artista.
Ele vai ter que envesgar seu idioma ao ponto
De alcançar o murmúrio das águas nas folhas
das árvores.
Não terá mais o condão de refletir sobre as
coisas.
Manoel de Barros.
Mais uma vez, um trecho extraído da pena de Manoel de Barros pode ser
remetido à relação peculiar do poeta com as palavras. Implicando sempre uma
subversão da linguagem, na dimensão do código, é também uma busca deliberada. Para
além de seu efeito de recobrimento do real, a palavra do poeta não oculta – e é dirigida,
mesmo – à aventura de aproximação do real: “palavra de um artista [...] tem que chegar
enferma de suas dores, de seus limites, de suas derrotas” (BARROS, 2010, p. 359). De
forma diferente, na psicose, as palavras ganham a corporeidade de coisa e, submetidas
ao processo primário, como no sonho, têm comprometida sua dimensão significante.
Na psicose, a dimensão do gozo indizível impõe-se, exigindo um esforço maior
de trabalho, pois o abrigo do significante é mais precário. Carente do limite fálico,
ordenador do simbólico e do jogo do desejo, a linguagem indica, através de suas
vicissitudes, também uma vertente afeita à criação.
Freud defendeu muito cedo que trabalhar com a palavra “como coisa” constitui
um expediente comum entre as experiências do artista, do psicótico e da criança,
indicação reiterada ao longo de sua obra. Em 1913, quando trata da origem da lei da
castração e do laço social, Freud remonta tanto o tabu – em seu sentido de proibição –
como o totem – em sua relação com o pai morto – a esse uso peculiar da linguagem,
comum também aos selvagens. A cultura passaria a vigorar quando, legitimada a lei
simbólica da castração – através da construção do mito –, se abriria a via do desejo. Ou
162
seja, ordenando a cadeia significante, a castração marcaria o impossível encontro com
das Ding.
A experiência do grupo OULIPO – OUvroir de LItèrature POtentialle, traduzido
como Oficinas de Literatura Potencial
53
– ajuda a situar o contexto do surgimento das
oficinas de escrita no âmbito das práticas de saúde mental. Trata-se de uma ideia
nascida coletivamente no Colóquio de Cerisy La Salle, no início da década de 60, que
propõe explorar o potencial de criação da linguagem. O grupo foi fundado a partir do
encontro e de interesses comuns entre escritores e matemáticos em um evento chamado,
inicialmente, Sélitex (Seminário de Literatura Experimental).
A proposta dos oulipianos é de que o escritor se abra ao “acontecimento” do
material linguístico: “livre da necessidade de significar, de ter algo a dizer, de encontrar
algum sentido precedente a seu ato de escrita, o autor concentra-se no fazer do texto”
(ALENCAR & MORAES, 2005, p.5). O grupo foi fundado, basicamente, pelo escritor
Raymond Queneau e pelo matemático François Le Lionnais, além de outros, entre estes
Andre Blavier, Georges Perec e Italo Calvino, em um momento no qual a literatura era
atravessada pela influência dos movimentos formalistas.
Lembramos que o formalismo russo, que desencadeou a abordagem linguística
da literatura e teve Vitor Chklovski e Roman Jakobson entre seus representantes,
questiona a ideia da literatura como discurso ornado e ficcional ou como expressão da
vida. Para Chklovski, a arte deveria restaurar a intensidade da descoberta através de
técnicas aplicadas às palavras em seus níveis semântico, sintático e fonológico.
Implicaria, portanto, um conjunto de atitudes na direção da produção do insólito, do
imprevisto, do estranhamento. A literatura passa a ser concebida como um modo de
articulação da linguagem que leva em conta a estrutura verbal do texto em seu potencial
poético, portanto, de divergência do padrão dominante.
Os oulipianos propõem uma produção textual que leve em conta uma oposição
entre a fala e a escrita: enquanto o discurso falado implica em restrições que ordenam
sua legibilidade dentro de universos já existentes, como a gramática, o vocabulário, a
sociedade e a cultura – chamadas contraintes discursivas –, a escrita tem contraintes
scripturales, restrições que são fruto da escolha voluntária do autor. Tais regras podiam
53
ALENCAR, Ana Maria & MORAES, Ana Lúcia. O OULIPO e as oficinas de escrita. In: Terceira
margem. Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Ano IX, n. 13, 2005.
Disponível em http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/terceiramargemonline/numero13/ii.html. Consultado
em: 28/07/2007.
163
ser aquelas conhecidas do campo da criação literária, mas também algumas da
matemática. O projeto do grupo é definido nas palavras de um de seus participantes:
OULIPO? O que é isso? O que é aquilo? O que é este OU? E este LI?
E este PO?
OU é oficina, uma fábrica. Para fabricar o quê? A LI.
LI é literatura, aquilo que se lê e que se rasura. Que tipo de LI? A
LIPO.
PO significa potencial. Literatura potencial em quantidade ilimitada,
potencialmente produtiva até o fim dos tempos, em quantidades
enormes, infinitas para todos os fins práticos.
QUEM? Ou, dito de outro modo, quem é responsável por esta
empreitada insana? Raymond Queneau, chamado RQ, um dos pais
fundadores, e François Le Lionnais, dito FLL, pai cooperador,
companheiro fundador e primeiro presidente do grupo, seu FresidentePundador.
Que fazem os oulipianos, os membros do OULIPO (Calvino, Perec,
Marcel Duchamps e outros, matemáticos e literatos, literatosmatemáticos e matemáticos-literatos)? Eles trabalham.
Claro, mas em quê? Em fazer avançar a LIPO.
Certo, mas como?
Eles inventam restrições. Restrições novas e antigas, restrições
difíceis, menos difíceis e demasiadamente difíceis.
A Literatura Oulipiana é uma LITERATURA SOB RESTRIÇÕES.
E um AUTOR oulipiano, o que é ele? É um "rato que constrói para si
mesmo um labirinto do qual se propõe a sair".
Labirinto de quê? De palavras, de sons, de frases, de parágrafos, de
capítulos, de livros, de bibliotecas, de prosa, de poesia, de tudo isso...
(Bénabou e Roubaud apud ALENCAR & MORAES, 2005)
São três os significantes dessa interessante definição – fábrica, escrita que se
rasura e produção – que destacamos como uma influência conceitual e de prática na
proposta das oficinas de escrita conforme podemos concebê-la a partir da contribuição
164
O grupo leva às últimas consequências a potencialidade da linguagem de ser
“rica em sua miséria” (Le Lionnais apud ALENCAR & MORAES, 2005, p.3). Podemos
pensar que o empenho do trabalho desse grupo está na direção de destacar, justamente, a
dimensão estrutural da linguagem. Não é a toa que se colocam em oposição à escrita
automática, proposta pelos surrealistas: para os oulipianos, nem a linguagem nem o
inconsciente operariam de forma aleatória.
É interessante assinalar que Raymon Queneau, nascido em 1903 e cujas virtudes
cômicas, insolentes e corrosivas de sua obra o mantiveram em certa marginalidade
literária, rompeu com o surrealismo e se interessou pelos chamados “loucos escritores”,
os fous littéraires. Sua obra-prima, “Exercícios de estilo”, foi escrita a partir de uma
ideia concebida após o concerto “Arte da fuga”, de Bach, a saber, como variações
proliferadas quase ao infinito sobre um mesmo tema. Em princípio, ele questiona a ideia
de que o estilo pertença ao autor e abole as fronteiras entre cópia e modelo, em
benefício da afirmação do devir da linguagem.
O grupo oulipiano concebe a produção textual – para além do pressuposto do
romantismo do escritor como gênio ou talento e da obra como inspiração – em termos
da capacidade de achar empiricamente um caminho que liberte as possibilidades do
material linguístico. Os textos escritos a partir dessa proposta mostram algo que não é
dito, mas feito: objetos textuais parciais que têm, entre eles, uma relação de diferença,
não permitindo a referência a uma totalidade. Trata-se, assim, de uma produção textual
que busca libertar a linguagem, estilhaçando-a, para criar possibilidades. Aliás, proposta
como uma escrita em grupo, OULIPO também rompe com a ideia do escritor solitário.
Sem a pretensão de constituir um movimento literário, uma escola científica ou
uma fabrica de literatura “aleatória”, essa proposta traz elementos interessantes para
pensar que, nas Oficinas de Escrita no campo da saúde mental, estaria em jogo uma
experiência dirigida, essencialmente, à prática da letra. Destacamos que a própria ideia
de objetos textuais dos oulipianos, indo além da legibilidade possível a partir do
simbólico, traz para a cena a letra em sua proximidade do real, evidenciada na arte
joyceana 54.
54
“Que é o savoir-faire? É a arte, o artifício, o que dá à arte da qual se é capaz um valor notável [...]”
(LACAN, 1975-76/2007, p. 59).
165
4.3 A psicose e o fio da escrita: criação e lugar no laço social
Sempre acho que na ponta do meu lápis tem
um nascimento.
Manoel de Barros
A pertinência da inserção de práticas ligadas à criação, a escrita em especial, nas
oficinas terapêuticas destinadas ao acolhimento do psicótico tem sua perspectiva
enriquecida a partir da articulação da potência de troca entre a psicanálise e a literatura,
mas, essencialmente, através da possibilidade de tomá-la em sua dimensão de clínica,
mais propriamente de trabalho do sujeito. A abordagem psicanalítica da psicose foi e
continua sendo assunto de discussão em torno de seu alcance e de seus limites e,
retomando nossa proposta de sustentar a possibilidade de um trabalho clínico em uma
oficina de escrita, rastreamos algumas experiências afins no campo da saúde mental
para encaminhar uma questão principal: qual a especificidade da escrita nas práticas
ligadas à criação na clínica da psicose? Como eixo ordenador desse levantamento,
voltamos a uma indagação que resgata nossa colocação do início: como considerar a
presença da arte na clínica psicanalítica da psicose no trabalho na oficina?
As chamadas oficinas terapêuticas, que têm sua formalização nas políticas
públicas de saúde mental do Brasil 55, são definidas como atividades grupais realizadas,
preferencialmente, em serviços extra-hospitalares (mas também presentes no contexto
hospitalar de internação) e que possuem função de expressão e socialização. De modo
geral, compõem um universo de práticas que propõem os recursos da cultura,
principalmente a arte e o trabalho, como formas de promover e ampliar possibilidades
de construção de caminhos e arranjos de vida àqueles que apresentam sofrimento
psíquico intenso. Não é raro haver algum desprezo sobre a possibilidade de um trabalho
clínico orientado pela ética psicanalítica em uma oficina terapêutica. Pensamos que seja
defensável considerar a dimensão clínica das oficinas a partir das perspectivas abertas
pelo discurso do analista. A objeção mais comum em relação à oficina de escrita é que
esta valoriza a escrita em detrimento da fala. Ocorre que, viabilizando a possibilidade de
um contorno significante do gozo invasivo, a escrita pode estimular a fala em sua
dimensão de busca de um lugar no laço social.
55
Portaria/SNAS n. 189 de 19 de novembro de 1991 do Ministério da Saúde (BRASIL, 1991).
166
Historicamente, as oficinas foram convocadas para romper a lógica asilar de
abordagem da loucura – centrada na ideia de doença e no modelo médico –, em
princípio, pelo potencial de favorecer, através da mediação de atividades diversas, a
conexão entre a expressão singular e as oportunidades de convivência. Lima (2008)
afirma que a prática artística, em seu potencial de favorecimento dos processos de
criação e de relativização da fronteira entre o normal e o patológico, foi o fator que
contribuiu para dar maior consistência à proposta de substituição do modelo médicohospitalar. Assim, um leque diversificado de atividades expressivas, criativas e
produtivas, conduzido por abordagens psicodinâmicas, estéticas e sociais, entre outras,
tem consolidado o caminho de transformação da dimensão do tratamento, assim como
de questionamento do lugar da loucura na sociedade (LIMA, 2008).
Também é interessante considerar que as diferentes denominações, a saber,
laboratórios, ateliês e oficinas remetem grosso modo às especificidades de sua origem.
Os laboratórios, criados na reforma psiquiátrica italiana, referem-se a um espaço de
experimentação e pesquisa de possibilidades de vida e de troca. Os ateliês de La Borde,
na França, privilegiam a criação artística, assim como a criação de territórios de
existência. De forma curiosa, o termo oficina, mais usado no Brasil, está ligado à ideia
de produção, basicamente de produção de subjetividade e de possibilidades de
socialização, conforme assinala Lima (2008).
O recorte que propomos privilegia as contribuições mais diretamente ligadas à
experiência de oficinas e ateliês de escrita com psicóticos, mas também aquelas que
indagam sobre a função da escrita na psicose a partir da clínica e da aproximação da
produção literária de alguns escritores de alguma forma concernidos pela experiência da
loucura.
As oficinas e ateliês de escrita surgem, no campo da saúde mental, inseridas
entre as chamadas oficinas expressivas. É importante ressaltar que o termo “expressão”
integra a estética romântica, que traz para a arte a valorização da espontaneidade e das
manifestações da vida interior (NUNES apud LIMA, 2008).
As oficinas e ateliês de escrita, referenciadas pela psicanálise, como temos
constatado, estão, em geral, relacionadas às possibilidades de acolher e trabalhar com o
“tratamento das palavras como coisas” a partir da indicação freudiana e da antiga
caracterização fenomenológica da psiquiatria clássica dos chamados transtornos de
linguagem. Assim, o “empuxo à escrita” está concernido por um intenso e diversificado
exercício na linguagem compatível com a não separação do objeto a, conforme assinala
167
Maleval (2008, p. 237). A escrita revelaria, então, o enraizamento do uso do significante
na sua dimensão mais básica, de letra.
No contexto efervescente do movimento da reforma psiquiátrica brasileira do
final da década de oitenta e início de noventa, surgem as primeiras oficinas de escrita no
campo da atenção à saúde mental, integrando, particularmente, os dispositivos de
acompanhamento de sujeitos com diagnóstico de psicose. Uma das iniciativas pioneiras
surgiu a partir de um projeto de pesquisa universitária que investigava, no
entrecruzamento da disciplina de Letras com a psicanálise, a convergência entre o
poético e o psicótico. Assim, Lucia Castelo Branco (1998) iniciou, na capital mineira,
uma experiência que denominou “oficinas de letras”. Inseridas no Centro de
Convivência Arthur Bispo do Rosário do Instituto Raul Soares, não eram restritas a
participantes psicóticos, mas sua dinâmica de funcionamento levava em consideração a
particularidade estrutural da psicose. A proposta era possibilitar caminhos de criação a
partir da hipótese de um tangenciamento entre os fenômenos de linguagem próprios da
estrutura psicótica e o arranjo de linguagem operante na poesia. Essa pesquisa teve
desdobramentos clínicos que levaram à construção e difusão desse trabalho nos novos
dispositivos de acompanhamento de psicóticos que substituíram os manicômios na rede
pública do Estado. A autora defendia, então, a criação e a loucura como territórios
limítrofes, sem deixar de diferenciar a posição na linguagem do poeta e do psicótico
(BRANCO, 1998, p. 12). Depreendemos do extenso trabalho da pesquisadora e de seus
alunos que a referência da escrita à arte tem importantes pontos de confluência com a a
psicanálise e, particularmente, para a clínica psicanalítica da psicose, auxiliando a
ultrapassar a ideia de uma estrita finalidade terapêutica, mais afeita à terapia
ocupacional, conforme tão bem pontua Greco (2008).
Lobosque (1998/2001) assume um posicionamento de interrogação permanente
sobre o encontro da psicanálise com o campo da saúde mental com o qual concordamos.
A autora defende, de forma sensível, a possibilidade de construção de pontes nas quais
se mantenham “uma amistosa curiosidade e uma curiosa incompreensão”. É também a
autora que lembra o quanto Freud já aponta para a apreensão do sujeito do inconsciente
como “questão textual” cuja leitura não se dá facilmente nem remete a um saber sob o
domínio (LOBOSQUE, 1998/2001). Sua indicação é, justamente, uma referência à arte
em sua potência de inovação no mundo. Pensamos que, no compromisso de sustentar o
rigor da clínica, a arte interessaria, de forma especial, ao psicanalista, marcando
diferença em relação às dimensões política e social da reforma psiquiátrica.
168
As possibilidades de conexão entre a psicanálise e o campo da arte, em especial
da criação literária, são privilegiadas desde Freud. A posição freudiana indica, por um
lado, a relação da arte com o inconsciente e a veiculação de um saber que ultrapassa o
artista e, por outro, a relação da arte com a pulsão, no caso do processo sublimatório,
distinto do recalcamento constitutivo do sintoma. Em seu ensino, Lacan aprofunda a
discussão sobre as relações entre sublimação e criação artística: ligada ao significante,
também remeteria ao vazio mais radical de das Ding (LACAN, 1959-60/1997).
Trazendo a problemática freudiana do objeto, ligada ao narcisismo, a perspectiva
lacaniana remete também a das Ding como “exterioridade íntima”.
Branco assinala que a dimensão de sublimação estaria mais ligada ao eixo
metafórico da palavra e ao sintoma, enquanto o sinthoma, noção consolidada a partir do
contato com a literatura joyceana, estaria mais ligado à dimensão metonímica
(BRANCO, 1998). O estudo da arte joyceana consolida um redirecionamento teórico e
clínico apontado progressivamente no ensino lacaniano: conferindo privilégio à
dimensão de gozo, um savoir-faire da língua, Lacan permite considerar o “insuportável”
da produção da obra.
Abordando as relações entre sublimação e sinthoma, particularmente no campo
da arte, Río (1994) também situa caminhos diversos. O fazer sublimatório implica em
trazer o insondável de das Ding, mas recoberto pelo significante de modo que o real é
plasmado na obra. Já o artifício sinthomático envolveria “uma costura”, um fazer ligado
a um saber advindo do real, que escapa, portanto, à dimensão representacional. É um
efeito de um “para além” da subordinação ao objeto – ligada à castração – e do gozo
fálico.
A propósito da psicose e referenciada pela discussão igemaisc50.3015(c)3.74(o)-0.295585((l)-
169
atividade e de destino pulsional para além de sua ligação com a arte. Sublinha também
que não é por mero acaso que o estilo, remetendo ao risco presente na sexualização da
pulsão, ganha tanta importância no universo da arte. Entre o que resiste ao saber, caso
da neurose, e o que se opõe ao saber, caso da psicose, o sinthoma abre novas
perspectivas para a clínica da psicose.
No caso da psicose – ainda que seja pertinente proceder a uma diferenciação
mais fina entre esquizofrenia e paranoia – o excesso presente no encontro com a
linguagem, carece do limite fálico em sua possibilidade de recortar a dimensão de
desejo. Se na neurose, o sujeito pode desembaraçar-se, tomar distância, pela via
sublimatória, de sua posição de falo para o Outro, tornando a criação sua morada, como
coloca Pommier (1990), na psicose, talvez se trate de buscar construir marcos que
orientem a viagem, sobre os quais pode ou não sobrevir uma obra. Parece ser essa a
direção tomada na consideração da importância da conceituação de sinthoma para a
clínica da psicose.
Buscando tomar a especificidade da função da escrita na psicose, Costa (2009)
chama a atenção para a dimensão corporal da escrita, colocando em destaque a letra em
sua vertente de resto e de busca de inscrição. A autora indaga a propósito:
O que significa produzir a letra, como repetição mesma do exercício
pulsional, sem que consiga chegar a um endereço, numa experiência que se
esgota em si mesma? O cerne desta questão se coloca tanto para a clínica
psicanalítica, quanto para a produção literária, que têm por princípio a
condição de que seja possível transmitir experiências que a priori são
intransmissíveis (COSTA, 2009, p.27).
No caso da psicose, a produção de um leitor, em sua referência a um saber
compartilhável, expõe suas dificuldades mais radicais. É, justamente, um dos pontos
que Lacan destaca no encontro com o ilegível da obra mais tardia de Joyce. Lembramos
que, remexendo na própria matéria prima do texto, compondo com a quebra e o
ajuntamento de pedaços de palavras e variados idiomas, Joyce trabalha com a
contingência da letra. Paiva e colaboradores (1996, p. 114) colocam que, em uma
entrevista a Arthur Power, o próprio Joyce coloca: “uma nova forma de pensar e
escrever teve início”.
Pensamos que a prática da escrita, concernida por um enraizamento corporal,
tem pontos de afinidade estrutural com a relação do psicótico com a linguagem, seja em
sua vertente de maior consistência, como na paranoia, seja em sua dimensão de
170
estilhaçamento, como na esquizofrenia. Assim, escrever seria uma via de
estabelecimento de uma distância que, passando pelos caminhos da pulsão, também
implica uma perda de gozo, possibilitando um efeito de sujeito. Cadoux (1999, p. 5556) lembra que, em sua origem, a palavra “grafia” significa arranhar, esfolar,
implicando um traço que se separa do gesto e que persiste como um souvenir, uma
cicatriz. O autor lembra, muito apropriadamente, que alguns psicóticos escrevem ao
infinito, sem levantarem o lápis ou a caneta do papel, justamente, por não suportarem a
dimensão de separação e diferenciação ai envolvida. A escrita comporta, então, uma
vertente que pode ser colocada como de fundação subjetiva em termos de separação do
objeto.
A via sublimatória na psicose remeteria a uma sustentação subjetiva em sua
dimensão mais radical. Referindo-se à sublimação, Pommier valoriza sua importância
geral: “o quadro, o canto e a escultura são nossa morada mais segura”, posto que a
criação inova no terreno de uma ausência primeira (POMMIER, 1990, p.196). Para o
autor, na neurose, sublimação e fantasia estariam enlaçadas, enquanto na psicose a via
sublimatória teria a função de assegurar a existência, pois faz do pai e da foraclusão do
Nome-do-Pai uma questão relativa ao ato, tendo, assim, um efeito subjetivo diverso do
basteamento imaginário no ideal.
A partir de sua experiência de trabalho com psicóticos na rede pública, Ester
Trevisan faz algumas pontuações acerca do atelier de escrita que construiu junto com
Denise da Silveira (TREVISAN, 2007). Em primeiro lugar, toma a constituição desse
espaço de trabalho clínico-institucional como sustentado pela ética psicanalítica no
sentido da estruturação de um dispositivo que leve em conta: a presença do
inconsciente, um tempo de trabalho e de produção de transferência. A autora elege a
metáfora do “tecido que se borda” para falar da escrita como operador de marcas e
traços em um espaço coletivo, ou seja, aberto à possibilidade de endereçamento. O
escrever em um contexto grupal possibilitaria potencializar a produção de bordas que
resultam em efeitos de separação e de um bordado que inscreve o incomunicável em
alguma troca simbólica no contexto de transferência e do laço social. Assim, a autora
reconhece que a escrita é “um exercício que pode ser ao mesmo tempo doloroso e
prazeroso” (TREVISAN, 2007, p. 187). Depositar as letras sobre a folha, deixar correr a
tinta, implica perda, uma perda que possibilita a constituição para alguns de um lugar de
intimidade, de mediação na relação com o Outro.
171
O estatuto de perda na aventura da escrita também é destacado por Guimarães
(2008), outra pesquisadora das articulações entre psicanálise e o tema da escrita. Para a
autora, escrever é suportar uma perda – referida ao objeto causa de desejo – mas,
sobretudo, como complementa, escreve-se para suportar a perda.
Cadoux (1999) também toma a escrita, comum na adolescência, como ato de
separação. Obrigado a tornar-se criador, o sujeito na adolescência tenta compor, com
auxilio da escrita – seja na forma de poesia, diário, entre outros gêneros literários –, a
presença do outro estranho em si mesmo. Destacando a dimensão expulsiva da escrita, o
autor sublinha que o suporte espacial e material permite localizar algo dos
transbordamentos pulsionais ameaçadores. Longe de constituir uma realização externa,
no entanto, marcaria a busca de uma inscrição psíquica.
4.4 Uma oficina de escrita: relato de um trabalho
O que é, o que é ...
se planta com as mãos
e se colhe com os olhos?
É a letra.
A.C. (participante da Oficina)
As questões que sustentaram o projeto da presente tese germinaram no solo de
uma oficina de escrita tomada como domínio de trabalho clínico com a psicose. A
conexão entre psicanálise e arte, em especial a literatura, tem constituído uma rica
influência em nossa reflexão e na condução dessa experiência.
Esse dispositivo foi criado em 199156 pela psicóloga Eliud Guerreiro como uma
modalidade de trabalho grupal com o “comportamento expressivo” que visava melhorar
a auto-estima, recuperar habilidades abstratas do pensamento e contribuir para a
construção de um lugar de sujeito que fala de suas próprias experiências. Segundo relato
recente da mesma, a ideia da oficina surgiu a partir de outra atividade, chamada jornalmural, na qual a proposta era ler, conversar e estimular o posicionamento frente a
notícias do cotidiano social. Inicialmente, cada participante deveria escolher uma notícia
para conversar sobre suas impressões com o grupo e, então, colocá-la em um mural
coletivo. Alguns começaram a pedir para escrever textos e, aos poucos, configurou-se
uma demanda de uma oficina que contemplasse o próprio exercício de escrita.
56
Fonte: Anais do II Congresso de Extensão da UFRJ, 1992.
172
Pesquisando sobre a vertente terapêutica da escrita, a psicóloga conheceu uma
professora de letras que ensinou algumas técnicas de escrita criativa. A partir daí, a
leitura de gêneros literários variados também era usada como estímulo à escrita. A
produção textual da oficina resultou em algumas coletâneas artesanais, elaboradas pelos
seus participantes. Ao longo dos anos, a coordenação dessa oficina teve profissionais
com formações variadas e diferentes inserções no cenário do campo da saúde mental, o
que implicou na angulação da proposta para diferentes ideias sobre a função da escrita e
o papel do coordenador.
Compondo a grade de alternativas de acompanhamento clínico multiprofissional
em um Centro de Atenção Diária – que, diferentemente de um CAPS, está inserido em
um espaço no qual há um hospital psiquiátrico –, a oficina de escrita recebe pacientes
com diagnóstico de psicose, geralmente, encaminhados ao serviço por graves
dificuldades de sustentação no laço social devido à sintomatologia produtiva ou
negativa de forte intensidade. Em geral, a participação na oficina ocorre a partir do
interesse pela escrita por parte do paciente, geralmente detectado em entrevistas iniciais
para a construção de um projeto terapêutico no Serviço.
A partir de 2007, assumi a condução da oficina, buscando desenvolver uma
direção de trabalho que permitisse coordená-la com a clínica psicanalítica da psicose a
partir da problematização do empuxo à escrita e da consideração do recurso da escrita
entre os caminhos de estabilização da psicose.
Atualmente, a oficina funciona uma vez por semana, com a duração de uma hora
e meia, acolhendo os pacientes que têm uma relação especial com a escrita, o que é, em
geral, colocado pelos participantes como um “trabalho” de expressão, reflexão e troca
sobre as vivências relacionadas ao adoecer e ao cotidiano. Apesar de não constituir uma
oficina aberta aos pacientes internados57, tem recebido alguns, mas principalmente os
próprios integrantes da oficina em períodos em que necessitam de hospitalização.
Tomada como espaço de trabalho/tratamento pelos seus participantes, a oficina
de escrita comporta, certamente, diferentes possibilidades quanto à função da escrita na
sustentação do sujeito e no estabelecimento de pontes no laço social. Alguns verbalizam
que a escrita ajuda a organizar o pensamento, aliviar o sofrimento relacionado às
57
Algumas oficinas terapêuticas funcionam como atividades livres, isto é, estão abertas aos pacientes
internados, além daqueles acompanhados regularmente no Centro de Atenção Diária. Essa variação
depende, basicamente, da proposta de trabalho da oficina, em suas vertentes clínica e social, e da
possibilidade de acolher uma dinâmica de rotatividade maior com pacientes em estado de agudização do
seu quadro.
174
para sua vida. “Preciso escrever”, diz ela em momentos mais difíceis, sendo que a
temática e a forma de sua produção textual remetem sempre a conteúdos apaziguadores:
sua letra é distribuída na página de modo cuidadoso e há sempre a tentativa de listar
significantes que invoquem uma proteção contra o caráter invasor das vozes (deus,
oração, paz, entre outros).
O funcionamento da oficina tem uma lógica temporal com três momentos
diferenciados. O primeiro momento, de encontro, desenrola-se entre uma conversa
informal, a distribuição dos cadernos, canetas e lápis e a escolha de um tema para a
escrita. Em geral, em semanas alternadas, há a leitura de um texto ou poema a partir do
qual o grupo ou cada participante elege um tema – que pode estar relacionado ao seu
conteúdo e funcionar como estímulo inspirador – ou uma escolha livre de tema. No
segundo momento, de silêncio, ocorre a escrita de cada um. Na sala, há duas grandes
mesas nas quais os participantes da oficina se dispõem à vontade.
No terceiro
momento, de troca, após a formação de um grande círculo com as cadeiras, ocorre a
leitura em voz alta de cada texto. A leitura é, em geral, acompanhada de comentários e
perguntas, mais breves ou mais longos, na dependência do número de participantes.
Finalmente, há um ritual antigo da oficina de fechar a atividade com a escolha de uma
palavra pelo grupo a partir das sugestões de cada um. Em geral, a palavra remete ao
clima do grupo, seja do que prevaleceu na escrita ou na troca a partir da mesma.
A relação do psicótico com a linguagem, concernindo a um acidente silencioso
na sua origem, tem repercussões ruidosas mais tarde. Como tão bem coloca Souza
(1991), o excesso e a falta de sentido se aproximam em termos de seus efeitos
devastadores sobre o sujeito. Sustentando a aposta na construção de um arrimo, ainda
que temporário ou mesmo frágil, a oficina permite um certo esvaziamento da dimensão
avassaladora das palavras que se constitui ao longo de seus três momentos: encontro e
escolha do tema, escrita e troca. Laurent (1987) assinala, a propósito do empuxo à
escrita na psicose, que a literatura tem também uma vertente de distribuição de gozo, de
rechaço do inconsciente, em sua abertura ao ilegível.
Como essa divisão temporal tem sido mantida ao longo dos anos e através de
diferentes propostas teóricas, consideramos a possibilidade de referenciá-la aos três
tempos lógicos, propostos por Lacan, posto que concernem, justamente, à mediação
temporal na articulação da emergência do sujeito no campo do Outro: instante de ver,
tempo para compreender, momento de concluir (LACAN, 1945/1998, p. 204). No
início de cada encontro na oficina, o “instante de ver”, a escolha de um tema geral que
175
pode ser tomado como uma imersão no campo do Outro simbólico, um primeiro recorte
significante que funciona como matriz. Referido à condição de falante, como pontua
Perez (2006), exige uma passagem do espaço ao tempo, uma abertura à pontuação, ao
intervalar típico da operação do inconsciente. O “sabe-se” produz uma escansão lógica
no campo do Outro. No “tempo para compreender”, temos a escrita de cada
participante, que permite uma aproximação da relação mais particular do sujeito com o
Outro. A construção de um ponto de ignorância abre para o tempo de elaboração, pois a
consideração da causalidade mútua também possibilita a construção de uma mediação,
de um Outro que oferece algum abrigo. Aí situamos a especificidade da dimensão da
escrita no contexto do grupo. No “momento de concluir”, quando ocorre a leitura e a
troca sobre a produção textual de cada um, a diferenciação que comporta a ação para a
emergência do sujeito. Há, ainda, um “momento de concluir” do grupo com a escolha
de uma palavra que parece destacar a precipitação de uma potência diferencial do
“tempo de trabalho” na oficina naquele dia.
Cadoux (1999) destaca duas referências importantes de sua experiência com um
atelier de escrita que são preciosas para pensar o trabalho com as palavras na psicose e
que também constituíram nosso ponto de partida na construção de nossa questão de
pesquisa. Em primeiro lugar, o autor ressalta a rica discussão freudiana sobre a relação
da criação literária com o jogo infantil e, em segundo, uma dimensão artesanal da
narrativa, a qual ele remete a Walter Benjamin – que situa o nascimento do narrador no
contexto do oficio do artesão –, mas que também podemos relacionar à máxima
freudiana de tratar as palavras como coisas. Assim, propomos pensar a função e o
funcionamento da produção textual na oficina em uma dobra que leva em conta a escrita
em sua referência ao campo da arte como experiência de sujeito e sua relação com a
especificidade estrutural da psicose.
Aproximando o escritor da criança que brinca, Freud ressalta, ao mesmo tempo,
a dimensão de simbolização e de indizível que revela a criação literária: levando a sério
sua brincadeira, o escritor cria um mundo à parte, mas que permite domar os rigores da
vida. Essa dimensão de enlaçamento da criação ficcional que Freud associa ao fantasiar
assume, no caso da psicose, outros contornos que colocam em destaque, antes, as
impossibilidades inerentes aos circuitos simbólicos e o trabalhoso engendramento de
uma distância em relação ao objeto. Na face ficcional do recurso da escrita, alguns
encontram a possibilidade de lidar com o gozo invasivo do Outro da linguagem. Seja
atravessada pela construção delirante, seja servindo para demarcar pontos de basta,
176
pontuações temporárias de um texto por fazer, a escrita se torna abrigo, mas também
passagem, em alguns casos.
Essa dimensão artesanal de “fazer histórias”, também ressaltada por Cadoux
(1999) a partir de Walter Benjamin alude a uma interface trabalhada por Costa (2001), a
partir do autor, entre escrita e transmissão. Criativa em sua essência, o destino da
narração seria ser passado adiante, ser composta simultaneamente no coletivo e pela
diferença. Ou seja, a dimensão organizadora da narrativa teria sua base no
estabelecimento de um solo comum que possibilitaria construir, deformar, enriquecer
histórias que dariam material para sua existência: a ficção, do latim, com o sentido de
fingimento, mas também de fabricação, nascendo da fricção (Cadoux, 1999).
Acrescentaríamos que a perspectiva de efeitos de sujeito aberta pela trabalhosa via da
alteridade, sempre em construção, seria capitalizada pela escrita em um espaço coletivo.
Se as palavras, reduzidas ao estado de coisa, carecem de sua qualidade
significante, não é incomum que seja no seio mesmo da língua que o psicótico busque
guarida. Acolhendo a solidão sem deixar de se abrir para o encontro da alteridade, a
escrita permite um contorno significante sem alhear-se da música das pulsões,
envolvendo o corpo em sua dobra mais potente do sexual e da morte. O quanto desse
trabalho resulta em acolhida no laço social nunca é garantido. Terminamos com Manoel
de Barros que, se referindo à aventura da poesia, também toca nos avatares da errância
psicótica: “poesia é uma aventura errática. Eu a acho parecida com os andarilhos. Os
andarilhos não andam por caminhos traçados. Eles fazem seus caminhos. Mas não
sabem aonde chegar. E se um dia chegam, eles nem desconfiavam”. (BARROS in
BRANCO, 1998, p. 9).
4.5 Letra e transferência: reflexões sobre a função de secretário na oficina
A literalidade da fala na psicose, que tende a ser mais acentuada no quadro
clínico da esquizofrenia, remetendo à carência de amarração entre significante e
significado, pode ser referida ao que Freud enuncia como dificuldade de transferência
(Quinet, 2006), ao mesmo tempo em que é também tentativa de recuperação do objeto a
partir de sua parte verbal (FREUD, 1915). Soler (2007) coloca de forma bastante
precisa a questão da incidência do ato analítico sobre o autotratamento dos excessos de
177
gozo que se impõem ao sujeito na psicose. Acrescentaríamos ainda que a escuta do
analista na clínica da psicose, ao acolher uma produção escrita, implicaria em enfrentar
sua particularidade estrutural da posição de sujeito. Assim, podemos pensar a oficina de
escrita em termos de uma possibilidade de endereçamento, a produção de um leitor, e da
especificidade da operação de secretariar do trabalho do analista na condução do
trabalho como referendando uma direção clínica coerente com a psicanálise.
Sendo que a psicose implica em que o campo do sujeito e o campo do Outro
sejam atingidos em sua dimensão simbólica, a clínica psicanalítica começaria por
levantar os esforços de produção que dinamizam essa articulação, desafio que não é sem
percalços. A escrita parece-nos constituir, nesse sentido, um caminho profícuo, ainda
que aberto ao incerto em seus efeitos58. Pensar a oficina de escrita como campo do
Outro também nos permite tomar o trabalho de escrita como construção de uma
mediação que possibilite um efeito de sujeito no seio do empuxo à escrita, em sua face
de gozo, assim especificando a ética psicanalítica na dimensão de clínica da psicose
dessa proposta. Guerra (2008), em uma experiência próxima a nossa, defende que a
própria oficina terapêutica pode operar como letra, como suporte material do
significante – seja pelo objeto produzido, pelo oficineiro ou pelo próprio espaço da
oficina.
Assim, pensamos que essa abertura à vertente literal do trabalho significante é
afeita à função da letra que intervém sob a forma de trabalho de escrita – em sua forma
manuscrita. Hulak (2006) coloca que o “empuxo à escrita” é endereçado ao analista de
maneira nada infrequente. Pensamos que, ao abordar a especificidade da transferência
na psicose – que inclui o analista no “a céu aberto” do inconsciente –, o empuxo à
escrita tem um valor de busca de testemunho ou de alguém que secretarie esse trabalho,
vertentes destacadas por Lacan na direção da clínica da psicose. A idéia de um
“secretario do alienado” remete, justamente, ao acolhimento que se exime de
interferência direta. Ao mesmo tempo, permite fortalecer a dimensão simbólica do
Outro como mediação significante de ensaios delirantes ou de pontos de amarração da
dispersão significante. Assim, a ancoragem do sujeito em significantes que podem se
destacar nesse trabalho de escrita – no que ele confere um contorno significante,
58
Carvalho (2003) examina, na obra de Sylvia Plath, escritora americana que se suicidou aos 30 anos, a
presença de forças destrutivas no centro do processo de criação. Busca os pontos de limite e tensão da
escrita da autora, interrogando o profundo sofrimento psíquico de alguns artistas e escritores no seu
processo de criação. Assim, problematiza a vertente de apaziguamento pulsional da sublimação, mas
também daquela trazida pela pulsão de morte e que focaliza, no cerne do processo criativo, o desamparo,
o inominável.
178
podendo abrir a perspectiva de retomada da fala – permite a circulação no campo do
Outro em sua potência de dialetização simbólica, de barrar a invasão ou a fragmentação
do gozo. Mais que um interesse pelo trabalho de escrita do sujeito na psicose, trata-se de
uma posição ética frente ao seu funcionamento estrutural. O próprio Freud, ao acolher
de forma original a escrita de Schreber como trabalho subjetivo, ressalta seu efeito
estabilizador, embora indique que a própria potência da escrita não impeça novos
desencadeamentos.
O ilegível da produção textual próprio da psicose, diante do qual Freud e Lacan
não recuam, tem, no espaço de trabalho da oficina, uma peculiar perspectiva de
mediação simbólica – conjunção entre ficção e fricção, nas palavras de Trevisan (2007).
A autora, assim como nossa experiência tem mostrado, está atenta aos efeitos singulares
das possibilidades de passagem à cultura, em âmbito mais amplo. Para alguns, a
constituição de uma obra assumirá um valor mais estável como estratégia de
estabilização, para outros, cabe acompanhar os efeitos dessa passagem. Em um “varal
de letras”, construído com o grupo para um evento comunitário, uma das participantes,
M.C., escreve, justamente, sobre a função da exposição de seu trabalho: “Quando fui tão
normal, não consegui viver. Para o mundo, era incapaz. Hoje a loucura me leva a buscar
a vida, agora estou nascendo com uma capacidade louca para viver ajudar e dividir”.
4.6 Fragmentos da clínica: a emergência do sujeito na ponta do lápis
Dois casos clínicos estiveram no início de nossa trajetória de trabalho clínico e
teórico a partir da experiência de condução da oficina de escrita e comparecem agora na
finalização de nosso percurso. Serão apresentados fragmentos clínicos que permitem
destacar duas dimensões que se mostraram proeminentes na articulação do “empuxo à
escrita” à estrutura da psicose: o trabalho com a letra em sua dimensão mais próxima do
significante – na tentativa do encadeamento – e do objeto – em sua materialidade de
letra. Para isso, retomamos alguns recortes da história de cada um, buscando tecer
considerações sobre a função da escrita em sua especificidade estrutural e na
singularidade de cada percurso.
179
4.6.1 Pedro e a escrita do delírio 59
Pedro tem 50 anos e frequenta a Oficina de Escrita há cerca de duas décadas.
Escreve pouco em sua casa, prefere escrever na companhia do grupo, segundo seu
próprio relato, evocando um Outro que nele acredite. É também na oficina que ele
constata que nem todos “acreditam” nas suas histórias, o que, às vezes, o faz sofrer, mas
também foi subjetivado dentro da própria trama delirante: alguns sabem a verdade, mas
tiveram suas memórias apagadas, e outros ainda saberão. Seu enredo delirante tem
relação com a forma pela qual deseja ser reconhecido: um “dador de ideias” para filmes
que foram ou serão realizados por uma grande rede de televisão. Não se interessa por
publicar nem por dar entrevistas para contar sua história que, quase sem exceção,
interessa a todos pela sua riqueza que revela um autêntico “esforço de rigor” da psicose.
Dos participantes da oficina, tem um respeito que tende a se apoiar, justamente, em uma
significação que se não é partilhável é pelo menos comunicável. Aceita brincadeiras
sobre suas histórias, mas frisa sempre que está dizendo a “verdade”.
O início de seu quadro ocorre próximo aos dezoito anos de idade com vivências
enigmáticas de estranhamento: relata que sentia um impulso incontrolável de sair
andando pelas ruas de camisa vermelha para encontrar e dar um abraço no presidente
Figueiredo, porque ficaria amigo dele. Na mesma época, começou a ser assolado pela
sensação de controlar as condições climáticas do planeta, o que o angustiava, pois
pensava ser responsável pelas catástrofes da natureza. A figura do presidente logo
assumiu o lugar de um perseguidor cruel que queria que ele se matasse. Nossas
observações, que se iniciaram em 2007, se coadunam com a discussão clínica efetuada
por Borges (2010). A autora destaca, na configuração do desencadeamento de sua
psicose, o início da vida laborativa, assim como a descoberta de uma doença ocular
degenerativa da qual padece ainda hoje. Assim, consequente à dramática catástrofe
imaginária, sucede a impossibilidade de encontrar um lugar mais estável no simbólico,
o que tomamos como referência estrutural da psicose.
59
Elegemos relatar um caso clínico, anteriormente trabalhado por Borges (2010) no artigo intitulado: “De
A a Z, a escrita do delírio”. Tomamos emprestada uma parte de seu título, levando em conta que o mesmo
destaca, com precisão, a pertinência do que se evidencia como função da escrita nesse caso: a construção
da metáfora delirante. Mantemos o nome fictício escolhido pela autora, ressaltando que seu duplo
sobrenome paterno remete a um significante que conjuga força e virilidade e que assume, na trama
delirante, lugar de proeminência.
180
Sua trama delirante, como que uma rede bem tecida e jogada sobre o vazio e o
terror que se instala em seu mundo, é rica em desdobramentos, inclusive com tramas
que poderiam conferir a este algum lugar no campo da arte, da literatura mais
especificamente. Ainda assim, admitimos que se o enredo tem valor, sua forma é mais
corriqueira. Pedro não escreve como um escritor, embora algumas vezes relacione seu
trabalho ao esforço de ser poeta: “Tento ser poeta na oficina de escrita. A tarefa não é
nada fácil, porque tenho transtorno mental. Jesus, Deus e o espírito santo me deram uma
tarefa extremamente difícil: desvirginar uma galena”. Essa referência está relacionada à
sua “missão”, a qual ficou “conhecendo” a partir de sua primeira internação. Pedro
sempre volta, em seus escritos, aos relatos sobre a III Guerra Mundial, ocorrida no
espaço e travada contra os “galenos”, “seres extraterrestres do mal” que pretendiam
acabar com o nosso planeta.
Borges (2010) destaca que Pedro conta que foi através de um aparelho, instalado
em seu intestino pelo presidente Figueiredo, que ficou sabendo dessa ameaça. É também
pelo aparelho que recebia ordens e informações e tinha seus pensamentos rastreados.
Atualmente, o aparelho, usado de início para torturá-lo, o mantém protegido, embora
continuamente monitorado. Um de seus escritos versa sobre o tema dos galenos: “A
terceira guerra mundial foi travada no espaço contra um império de planetas de
extraterrestres hostis à humanidade. Os tallallarianos são nossos aliados compraram
nossa briga contra os galenos que são do mal. Quando os machos galenos morrem eles
vão para o esquecimento, somem com roupa e tudo”. Segundo Pedro, os galenos
andavam pela terra, disfarçados de humanos, tendo cerrado seus chifres para não serem
reconhecidos. Esses seres “queriam conquistar a terra pela força das armas sem acordo
de espécie alguma”. São os aliados, chamados tallallarianos, os “extraterrestres do
bem”, que mantêm protegida a terra. Vale sublinhar que ele também destaca a
importância das “grandes naves-mãe”, com várias pequenas naves em seus ventres,
como armas potentes contra a ameaça dos “galenos”.
Pedro conta que descobriu que sua missão é salvar a terra “desvirginando uma
galena” que “se entregaria” a ele. É interessante colocar que seu próprio sobrenome
paterno, remetendo duplamente à potência viril, parece ser um elemento constitutivo
dessa face de sua construção delirante que permite que o gozo se mantenha em um
adiamento contínuo. Embora costume esperar no pátio por uma galena e já tenha achado
que algumas estagiárias fossem galenas, aguarda, pois ela virá “se entregar”
espontaneamente.
181
Na oficina de escrita, Pedro refere buscar manter a cabeça “raciocinando
logicamente”, o que parece corresponder ao próprio trabalho do delírio. Em seus textos
encontramos referências diversas: “escrevendo fico mais calmo, exorcizo meus
demônios e espanto meus fantasmas” e “fico com ansiedade para escrever e melhorar
minha cabeça. Melhorei muito da esquizofrenia que tenho desde criança. Ajuda a
melhorar dessa doença maldita que atrapalhou a minha vida”.
Pedro é filho de um pai que também teve várias internações e de uma mãe
portuguesa bastante severa e pouco afetiva. A loucura delirante de Pedro não encontra
qualquer abrigo na família: a irmã e a mãe pouco o acolhem, mantendo-se indiferentes
ao seu bem mais precioso, suas “histórias” e o pai, morto há alguns anos, o chamava de
“merda”. Pedro, entretanto, sempre gostou de histórias de ficção e de filmes na
televisão, campo onde emerge a dimensão invasiva do gozo, mas também onde será
possível elaborar uma rica construção delirante. Borges (2010) coloca que a emergência
do significante “galena” funciona como um ponto de basta articulador de outros
significantes: “galena vem a adquirir o estatuto de letra condensadora de gozo pelo
valor que ocupa no jogo das substituições metonímicas” (BORGES, 2010, p. 171). A
partir dessa indicação, pudemos escutar, em um contato casual com a mãe, que esta era
de origem galega. É com esse significante que Pedro encontra sua missão: “desvirginar
uma galena” e estar seguro de que há poderosas “naves-mãe” aludiria a uma força
poderosa, mas protetora. Precisa, então, “continuar escrevendo”, como diz ele, o que faz
há 20 anos.
Podemos dizer que Pedro faz, através da escrita, montagens e recortes com os
quais consegue construir uma trama que possibilita uma condição subjetiva de
hospedagem (sempre provisória e inserida em uma batalha contínua) no campo do
Outro – usando o termo de Cerdeira e Gutman (2005). Escreve sobre forças do bem e do
mal, ataque e defesa, um campo de luta que busca manter em equilíbrio.
4.6.2 Ângela: do risco no corpo ao traço da letra
Ângela tem 40 anos e iniciou seu acompanhamento no centro de atenção diária
há seis anos, dois anos depois de começar seu tratamento psiquiátrico ambulatorial.
Encaminhada por sua psiquiatra, apresentava uma ideia persistente de morte e uma
182
tendência ao isolamento e à depressão, após a morte de sua mãe, sem resultados estáveis
somente com as consultas médicas. Embora trabalhasse como caixa e fosse casada,
tinha história de episódios de cortes pelo corpo, iniciada aos 16 anos. Após a morte da
mãe, passou a sentir vontade de andar sem rumo e seus pensamentos ficaram confusos.
Novamente o impulso de se cortar retornou de modo intensificado e a visão do próprio
sangue escorrendo lhe trazia alívio.
Ao longo de sua vida, Ângela buscara sempre situações arriscadas nas quais
pudesse ter “a aventura, o perigo e a sensação de poder”. Chegou a ser despedida do
trabalho por dizer a um colega que tinha vontade de andar no beiral da janela em um
andar alto do prédio da empresa. Conta que sempre sentiu “atração pela vida
criminosa”, porque achava que havia pessoas demais no mundo, porém nunca quis
decepcionar a mãe. Ao mesmo tempo, também refere que gostaria de ter sido juíza e
chegou a iniciar a faculdade de direito. Sua mãe morreu de câncer e sempre foi muito
calada e chorosa, tendo também uma história de tentativas de suicídio. Sempre procurou
proteger a mãe que se dizia muito infeliz com o marido. Ângela costuma se vestir de
modo mais masculino, queixando-se sempre de não conseguir definir sua sexualidade.
Escutava vozes que, de início, eram apenas murmúrios impessoais, e, atualmente, são
ocasionalmente impositivas. Uma das particularidades de sua evolução é que ela não
toma remédios regularmente. Embora verbalize que as vozes sejam “espíritos do mal”
que a enganam, desaparecendo para que ela ache que o remédio está fazendo efeito,
conta com estas para protegê-la, pois elas passaram a avisar quando alguém pretende
enganá-la.
Muito fechada e suspicaz, Ângela começa a comparecer à oficina de escrita,
escrevendo, principalmente, sobre sua “atração pela morte”. Em muitas ocasiões
escreve em tinta vermelha, aludindo à cor do sangue. De sua produção textual também
se destacam alguns significantes através dos quais busca a contenção do gozo assim
como pontos de amarração da dispersão metonímica: animais, natureza, anjos. Suas
vivências de invasão do gozo no corpo – morte, vazio e sangue – despertam, nela
própria, medo e atração. Seu trabalho com a escrita se intensifica tanto dentro como fora
da oficina, pois, diferentemente, de Pedro, passa a escrever longos relatos, cartas e
mensagens sobre temas sobre os quais acha difícil falar. Os cortes em seu corpo
diminuem exatamente quando uma trama delirante começa a se estabelecer em torno da
figura da presidente Dilma: recebe ligações dela e conta que ela lhe pede conselhos. Aos
poucos, refere que gostaria de viajar com ela e que abandonaria o marido para isso.
183
Ângela também se preocupa muito com os registros escritos por médicos e
outros profissionais e chegou a destruir parte de seu prontuário, assim como já pensou
em incendiar a sala de arquivos. Escrevendo sobre assuntos sobre os quais nem sempre
quer falar – “o lado obscuro da vida” –, parece conseguir fazer borda à desmedida do
gozo não recortado pela função fálica. Muitas vezes, Ângela procura falar de suas
vivências, de sua vida, mas a face enigmática de sua experiência com o significante se
sobrepõe e ela recorre à escrita.
O recurso da escrita parece permitir a Ângela que o alinhavo se torne costura
delirante e mediação nas relações e nas situações do cotidiano. Vejamos um de seus
escritos: “Nas linhas do meu cérebro, circulam meus pensamentos, desde os
pensamentos mais comuns até os mais bizarros. Pensamentos felizes, tristes, confusos,
misturados de todos os jeitos. Nas linhas do meu cérebro também estão fantasias
passando por um mundo fechado somente meu. Como se eu tivesse várias vidas. É um
mundo onde tudo é permitido pois só deus sabe, pois ele é o único que lê pensamentos.
Ao mesmo tempo que sou livre sou prisioneira dos meus pensamentos”.
A densidade da letra aparece em seu trabalho de subjetivação através de seu
esforço de trabalhar os fragmentos dispersos de sua história e da dimensão de enigma
que se revela em significações desancoradas de um eixo organizador. Ainda assim, o
recurso da escrita passa a substituir o risco cortante em seu corpo. O corte passa a ser o
do traçado das linhas escritas no papel. A mãe de Ângela dizia que a morte era um anjo
e que queria ter um filho homem porque ele não sofreria como as mulheres. Na escrita
de Ângela, os anjos anunciadores da morte transfiguram-se nas asas de um Outro mais
acolhedor. Apresentamos mais um trecho de seus escritos: “No mundo existe vários
anjos. Eles estão por toda parte. Eu já vi anjos saindo das nuvens para entrar no mar,
para dançar em suas profundezas. Tem anjos bons com uma luz azul”. A escrita
comparece, no caso de Ângela, em sua exuberância de letra – a dimensão de separação,
de corte, possibilitada pela escrita, é proeminente –, mas também em sua face de Eros,
sexualizando a dimensão pulsional de seu mundo.
Fechando o capítulo, escolhemos um trecho do poema de Manoel Barros, “Sabiá
com trevas”:
Há quem aceite a palavra em ponto de osso, de oco;
ao ponto de ninguém e de nuvem.
Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida,
na sarjeta.
184
Sou mais a palavra ao ponto de entulho.
Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las
pro chão, corrompê-las
até que padeçam de mim e me sujem de branco.
Sonho exercer com elas o ofício de criado:
Usá-las como quem usa brincos.
(BARROS, 2010, p. 172)
Como criado, o poeta escolhe se entregar à palavra-coisa, sem resistência, mas
certamente nem sempre sem dor. Já o psicótico, talvez, tomado por esta, procura fazê-la
trabalhar para que ela lhe sirva de semente de um lugar de sujeito. A escrita seria, então,
em sua potência, mais que a literatura, fazendo sobressair sua dimensão de real.
185
5 CONCLUSÃO
Ao finalizar este percurso, consideramos que nossa investigação se deu no
encontro entre clínica, escrita e psicose, mais precisamente na riqueza de indagações e
no efeito de troca com a literatura, um campo distinto, mas com profunda afinidade com
a psicanálise. Paul Valery, citado por Augusto de Campos, coloca que a criação poética
é hesitação entre som e sentido (CAMPOS apud CRUZ, 2009), trazendo a dimensão
fundamental de experimentação da linguagem que Freud e o inspirado Manoel de
Barros encontram entre as crianças, os loucos e os poetas. Diferentemente da fala, a
escrita implica mais
fortemente um
duplo
movimento
de engajamento
e
desengajamento, de construção e de perda, dimensões que a clínica psicanalítica da
psicose também coloca em questão. Assim, mais que um fruto de nosso percurso e
formação no campo da psicanálise, esse caminho de pesquisa também foi marcado pelo
desafio e pelos impasses de sustentar a escuta da dimensão de sujeito na psicose.
Podemos dizer que, embora o questionamento sobre a especificidade do trabalho
envolvido no gesto da escrita integre um âmbito mais amplo, nos deixamos guiar, em
nossa investigação, pelos psicóticos e pelos escritores, buscando manter viva a via de
sustentação da clínica na ética psicanalítica.
Ainda que tenhamos nos detido no gesto mesmo da escrita, afirmamos que a
articulação entre psicose e escrita remete a uma dimensão conceitual mais ampla e à
especificidade das questões da clínica psicanalítica da psicose. Freud e Lacan indicam
que, na psicose, embora o sujeito fale, está em jogo uma relação diferenciada com o
inconsciente que traz consequências para sua posição de sujeito, sua relação com o
objeto e, portanto, para a constituição da realidade. Entretanto, essa posição de risco do
sujeito na psicose, que compromete a possibilidade de lugar no laço social, é também
posição de trabalho, trabalho árduo de construção de uma mediação que, na neurose,
tem seu correlativo na centralidade da fantasia.
A escrita é um tema caro à psicanálise, pois Freud a considera em sua concepção
sobre o psiquismo e na relação do sujeito com o mundo, mas também direciona sua
investigação para o enigmático ofício do escritor. Esse movimento, porém, é feito,
justamente, a partir da clínica. Aliás, é no enfoque original dado ao escrito de Schreber
que ele convoca à consideração do fino ensinamento clínico que a psicose oferece ao
analista. O empuxo à escrita na psicose, em particular, implicando uma posição de
186
trabalho, ainda que com efeitos diversos, exigiria uma escuta na qual deve vigorar o
desejo do analista como função de produção de diferença na radicalidade que coloca
essa estrutura. A escrita, em sua variedade, pode compor, no caso da psicose, com
outros caminhos de estabilização, constituindo um recurso de vigor subjetivo e
pulsional. Remetendo à dimensão de encobrimento da palavra no que esta se articula em
uma narrativa – delirante ou não –, a escrita também traz sua cicatriz pulsional,
retomando o registro da morte, do núcleo de autismo da linguagem.
Com pontos de partida diversos, Freud e Lacan encontram na escrita de Schreber
e de Aimée, respectivamente, caminhos cruciais para o redimensionamento da hipótese
do inconsciente e para a sustentação do sujeito na psicose. Os elementos conceituais que
essa escrita permite evidenciar – em sua referência inicial à metáfora delirante –
indicam chaves importantes sobre a relação do sujeito com o simbólico e a dimensão
traumática do real. Particularmente, o correlato clínico do real, o gozo, passa a constituir
uma dimensão de trabalho central na clínica psicanalítica da psicose.
No desenvolvimento de nosso tema, partimos da interseção entre inconsciente e
pulsão, anunciada na obra freudiana e evidenciada ao longo do ensino lacaniano, para
situar a psicose como posição de linguagem. Considerando as dimensões simbólica e
real do inconsciente, situamos a criação na psicose como tributária da retomada da
emergência do sujeito em seu enraizamento no campo do Outro. A realização da
“pulsão a chão aberto” encontraria na escrita um chamado ao trabalho – certamente,
acessível a todo sujeito, independente de sua estruturação – de valor especial.
Conjugando a possibilidade de um contorno significante e da organização de um campo
de significação, a escrita também acolheria uma dimensão originária de enfrentamento
do real. O abismo da linguagem buscado voluntariamente pelo escritor e presente no
seio da criação literária, acometeria o psicótico de forma a impor-se. A escrita, com sua
natureza anfíbia, promoveria um operador significante, mas de enraizamento no corpo,
em uma dimensão de fundamento da linguagem, denominada lalíngua por Lacan.
Retomando a postulação do inconsciente a céu aberto na psicose, destacamos,
novamente na teorização freudiana e lacaniana, o estabelecimento de uma dimensão de
criação na psicose correlativa à abertura de sua perspectiva clínica. A consideração do
tema da estabilização em sua referência à estrutura da psicose remete ao enfoque
original dos procedimentos que, expondo os efeitos da foraclusão do Nome-do-Pai,
também revelariam um esforço de reconstrução no qual é possível circunscrever efeitos
de sujeito. A escrita, em particular, teria a peculiaridade de funcionar como sustentação
187
no adiamento do desencadeamento da psicose, constituindo também um recurso de
enfrentamento mais radical com a linguagem correlativa à sua eclosão. A produção
textual que se associa à psicose desencadeada implicaria em níveis diversos de
elaboração do acometimento do real. Segundo Maleval (1993-94), oscilariam do gozo
puro da caligrafia, passando por um trabalho com a letra, em sua dimensão indicativa de
trilhamentos possíveis, até um enraizamento significante mais estável.
Para situar o conceito lacaniano de letra na discussão de nosso tema, exploramos
algumas relações entre loucura e literatura e os fenômenos de linguagem comuns na
psicose. Podemos sublinhar sua importância através da dimensão de rasura que a escrita
confere à palavra. Não é a toa que Lacan a leva em conta na operação da metáfora
paterna com seu valor no universo simbólico. Incidindo sobre o significante, a operação
de apagamento da letra leva a palavra a encontrar um lugar, uma possibilidade de
inscrição, a qual tem uma importância primordial para o sujeito. A escrita em sua
dimensão de letra, evidenciada mais do lado do enigma da criação literária, integraria
uma perspectiva convergente com a particularidade estrutural da psicose.
Finalmente, apresentamos nossa experiência com uma oficina de escrita no
campo da saúde mental, defendendo sua importância como dispositivo clínico de
acolhimento da peculiaridade estrutural da psicose da posição do sujeito na linguagem.
A vertente de criação da psicose que aponta também a precariedade do abrigo do
significante ganharia, na clínica psicanalítica, uma importante referência no campo da
arte em sua relação com o real. Se tomarmos a teorização do totem, de 1913, podemos
considerar, justamente, que a abertura ao desejo vigora a partir da criação do mito. É
quando Freud trata da lei da castração e do fundamento do laço social.
A oficina de escrita como dispositivo de trabalho clínico referenciado pela
psicanálise contemplaria a possibilidade de situar o empuxo à escrita dentro de um
trabalho com a dimensão de letra do significante, mas também de endereçamento
transferencial que poderia potencializar efeitos de sujeito e de construção de uma
hospedagem no laço social. A escrita, diferentemente de outras formas de expressão,
teria como particularidade, o movimento na direção do objeto, funcionando como
proteção frente à dimensão invasiva do Outro, mas também forjando um interlocutor,
um leitor possível.
Na redação do laudo do caso de Aimée, Lacan menciona a “execução urgente de
escritos” (LACAN, 1932/2011, p. 202), incluindo-o em sua discussão como caminho
importante para a pesquisa dos mecanismos da psicose. Até o fim de seu ensino, ele irá
188
valorizar as virtualidades criativas da psicose como uma questão para o analista em sua
experiência de escuta do sujeito na psicose e, de modo mais amplo, na consideração da
importância, para a práxis psicanalítica, da letra como litoral entre saber e gozo.
189
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