ano i- número iii
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ano i- número iii
FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 REVISTA ACADÊMICA SABERES LINGUÍSTICOS N’AMAZÔNIA ISSN 2316-8471 CAPANEMA (PARÁ) – ANO 1 – NÚMERO 3 – 2013 1 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 FACULDADE PAN AMERICANA REITOR DIRETORA GERAL DIRETOR PEDAGÓGICO DIRETOR ACADÊMICO SECRETÁRIA ACADÊMICA COORDENADOR DE FILOSOFIA COORDENADOR DE LETRAS COORDENADOR DE PEDAGOGIA COORDENADOR DE TEOLOGIA Mons. Dr. Dom Dirceu Milani Profª Cleudimar Milani Prof. Marco Antônio Teixeira de Paula Profº Lionel Milani Madre Francesca Soares Milani Prof. MSc. Wladirson R. da S. Cardoso Prof. MSc. Marcos dos Reis Batista Prof. Marco Antônio Teixeira de Paula Prof. MSc. Sharles Cruz SABERES LINGUÍSTICOS N’AMAZÔNIA ISSN 2316-8471 Capanema (Pará) – ANO 1 – NÚMERO 3 - 2013 DIRETOR-GERAL Prof. MSc. Marcos dos Reis Batista MEMBROS Profa. MSc. Graciane Felipe Serrão Profa. MSc. Renata de Cássia Dória da Silva Prof. MSc. Marcos dos Reis Batista Prof. MSc. Regis Guedes Prof. MSc. Marcelo Dias Prof. MSc. Wladirson R. da S. Cardoso Prof. Esp. Marco Antônio Teixeira de Paula Profa. Esp. Grazielle de Jesus Leal de Sousa Prof. Esp. Adson Manoel Bulhões da Silva O Periódico SABERES LINGUÍSTICOS N’AMAZÔNIA é uma publicação acadêmica do Curso de Letras da Faculdade Pan Americana com periodicidade semestral e suporte em CD-ROM. Os artigos e resenhas aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores. Suas opiniões não refletem necessariamente as do corpo editorial desta publicação. Figura da capa: http://www.joseeduardomartins.com/10000-univ-big.jpg 2 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 APRESENTAÇÃO É com muita satisfação que a Coordenação do Curso de Letras da Faculdade Pan Americana coloca em público a terceira edição do Periódico SABERES LINGUÍSTICOS N’AMAZÔNIA. Trata-se de uma publicação desenvolvida em conjunto entre docentes e discentes da Instituição. Assim, busca-se por meio da reflexão e observação diante da problemática educacional a apresentação de pesquisas desenvolvidas em âmbito amazônico com o intuito de dar retorno à sociedade a qual esta Instituição de ensino superior está inserida e, também, com textos que colaborem com a formação dos estudantes e pesquisadores que atuam no âmbito amazônico. A primeira contribuição – intitulada ASSIMILAÇÃO EM APURINÃ: o espalhamento do traço palatal de autoria de Marília Fernanda Pereira de Freitas Corrêa e de Marcos dos Reis Batista – tem por objetivo descrever e analisar um processo fonológico que ocorre na língua Apurinã (Aruak), falada por comunidades indígenas que vivem no sudeste do estado do Amazonas, ao longo do rio Purus. Para tanto, recorreu-se à abordagem oferecida pela fonologia autossegmental. O segundo trabalho de autoria de Darlan Machado Dorneles e de Lindinalva Messias do Nascimento Chaves aborda a “Realização da vogal pretônica /e/ nos dados de três atlas linguísticos da região norte”, trabalho que analisa à luz da Dialetologia e da Geolinguística contemporânea, a realização da vogal pretônica /e/ na fala acriana, nos dados do projeto Atlas Linguístico do Acre (ALiAC). Em seguida, Isabel Cristina Rosa dos Santos trata da “designação de cidadão na enunciação de Prudente de Moraes e Campos Sales”, Fundamentado na Semântica do Acontecimento, ele busca compreender a designação da palavra cidadão na enunciação dos dois primeiros presidentes civis do Brasil: Prudente de Moraes e Campos Sales. O artigo intitulado “Propósitos comunicativos do gênero ofício” de Ismael Paulo Cardoso Alves aborda um corpus de 30 ofícios e são elencados os propósitos comunicativos mais recorrentes desse gênero. Para atingir esse fim, são utilizadas como aporte teórico as teorias de Askehave e Swales (2009) e Alves Filho (2011) sobre propósito comunicativo. O “Glossário português-parakanã para uso na educação bilíngüe e na saúde: produção, utilização e possibilidades” de Claudio Emidio Silva, Rita de Cássia Almeida Silva e de Ana Zélia Alves trata da experiência de construção de um glossário PortuguêsParakanã realizado com os dois grupos Parakanã (ocidental e oriental) da Terra Indígena Parakanã do Tocantins, nos municípios de Novo Repartimento e Itupiranga. O “Cangaço nos romances fogo morto e os desvalidos: uma análise comparativa” de Antonio Alan Dantas de Meneses é o último artigo onde apresenta um estudo visa estabelecer uma análise comparativa entre dois romances da literatura brasileira do século XX, no que tange à abordagem realizada pelas obras do fenômeno histórico-social do cangaço. As obras escolhidas, Fogo Morto, de José Lins do Rego, e Os Desvalidos, de Francisco Dantas, representam dois momentos distintos da produção ficcional nordestina. 3 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Por fim, Marcos dos Reis Batista apresenta a tradução do texto “A multimídia no ensino-aprendizagem do italiano. pro, contra... e erros para evitar” de autoria de T. Marin onde o autor trata do uso da multimídia no ensino de italiano como língua estrangeira. No entanto, mesmo se tratando de assunto específico – o ensino do italiano as considerações do autor podem ser refletidas para o ensino de línguas em geral, tanto maternas quanto estrangeiras. Desejamos a todos uma ótima leitura. Prof. MSc. Marcos dos Reis Batista 4 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 SUMÁRIO ASSIMILAÇÃO EM APURINÃ: o espalhamento do traço palatal Marília Fernanda Pereira de Freitas Corrêa – Universidade Federal do Pará Marcos dos Reis Batista – Universidade do Estado do Pará 06 A REALIZAÇÃO DA VOGAL PRETÔNICA /e/ NOS DADOS DE TRÊS ATLAS LINGUÍSTICOS DA REGIÃO NORTE Darlan Machado Dorneles e Lindinalva Messias do Nascimento Chaves – Universidade Federal do Acre 18 A DESIGNAÇÃO DE CIDADÃO NA ENUNCIAÇÃO DE PRUDENTE DE MORAES E CAMPOS SALES Isabel Cristina Rosa dos Santos – Universidade Estadual de Campinas 36 PROPÓSITOS COMUNICATIVOS DO GÊNERO OFÍCIO Ismael Paulo Cardoso Alves – Universidade Federal do Piauí 52 GLOSSÁRIO PORTUGUÊS-PARAKANà PARA USO NA EDUCAÇÃO BILÍNGÜE E NA SAÚDE: PRODUÇÃO, UTILIZAÇÃO E POSSIBILIDADES Claudio Emidio Silva – Universidade Federal do Pará Rita de Cássia AlmeidaSilva – Universidade do Estado do Pará Ana Zélia Alves – Programa Parakanã 60 O CANGAÇO NOS ROMANCES FOGO MORTO E OS DESVALIDOS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA Antonio Alan Dantas de Meneses – Universidade Federal do Pará 72 A MULTIMÍDIA NO ENSINO-APRENDIZAGEM DO ITALIANO. PRO, CONTRA... E ERROS PARA EVITAR T. Marin – Edizioni Edilingua Marcos dos Reis Batista – Universidade do Estado do Pará (Tradutor) 84 5 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 FONOLOGIA ASSIMILAÇÃO EM APURINÃ: o espalhamento do traço palatal Marília Fernanda Pereira de Freitas Corrêa Universidade Federal do Pará Marcos dos Reis Batista Universidade do Estado do Pará RESUMO: O presente artigo tem por objetivo descrever e analisar um processo fonológico que ocorre na língua Apurinã (Aruak), falada por comunidades indígenas que vivem no sudeste do estado do Amazonas, ao longo do rio Purus. Trata-se do espalhamento do traço palatal, que incide sobre determinados segmentos da língua, em contextos fonológicos específicos. Para tanto, recorreu-se à abordagem oferecida pela fonologia autossegmental. Os dados e informações apresentados neste trabalho foram retirados, principalmente, de Facundes (2000) e Pereira (2007). Palavras-chave: Apurinã. Assimilação. Espalhamento. Palatal. ABSTRACT: This paper aims to describe and analyze a phonological process that occurs in Apurinã language (Arawak), spoken by indigenous communities living in the southeastern area of state of Amazonas, along the Purus river. The phonological process is the scattering of a palatal feature, which falls on certain segments of the language in specific phonological contexts. Therefore, we used the approach offered by autossegmental phonology. The data and information presented in this paper were taken from Facundes (2000) and Pereira (2007). Keywords: Apurinã. Assimilation. Scattering. Palatal. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Os comentários aqui tecidos buscarão discutir acerca de um processo fonológico que ocorre na língua Apurinã, referente ao espalhamento do traço palatal, que incide sobre certos segmentos da língua. Nesse sentido, o objetivo deste estudo é descrever e analisar tal processo, com base nos pressupostos da fonologia autossegmental, abordagem não linear caracterizada por tratar os traços fonológicos de maneira diferenciada, em que, por exemplo, mesmo quando um determinado segmento não está contíguo a outro, um de seus traços pode vir a “se espalhar” para esse outro som, o que parece ocorrer na língua Apurinã. Para tanto, recorreu-se a Facundes (2000), Pereira (2007), a fim de se obter informações sobre a língua e dados para análise, além de outros autores, que deram suporte teórico para o presente estudo. Além dessas considerações iniciais, este artigo, inicialmente, apresentará um panorama acerca de características fonéticas e fonológicas da língua Apurinã; em seguida, o fenômeno de espalhamento do traço palatal será caracterizado e analisado, sob o viés da fonologia autossegmental; por fim, serão traçadas breves conclusões acerca do assunto estudado. 6 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 1. O POVO E A LÍNGUA APURINÃ: BREVES CONSIDERAÇÕES A língua Apurinã (Aruák) é falada por comunidades que vivem ao longo do rio Purus, no sudeste do Estado do Amazonas. Mesmo ultrapassando 2000-3000 pessoas, apenas um quarto da população, aproximadamente, fala a língua (FACUNDES e CHAGAS, no prelo). Com relação a estudos prévios da língua, esta já conta com uma gramática detalhada (tese de doutorado de FACUNDES, 2000), além de outros trabalhos. Nesta seção, serão apresentadas características fonéticas e fonológicas da língua Apurinã, especificamente relacionadas ao quadro de consoantes e vogais e estrutura silábica dessa língua (o que não está diretamente relacionado ao fenômeno em foco no presente artigo, mas que pode ser interessante, em termos de contextualização), conhecimentos esses que podem auxiliar na compreensão do processo de assimilação do traço palatal em Apurinã, foco deste trabalho. 1.1. Inventário de consoantes e vogais As tabelas 1 e 2 mostram o inventário de consoantes e vogais da língua. Oclusiva Nasal Bilabial Alveolar p t m Palatal Glotal k n Tepe Velar ɲ ɾ Fricativa s ʃ Africada ʦ ʧ Aproximante w h j Lateral l Tabela 1: quadro de consoantes da língua Apurinã. Anterior oral/nasal Alta i/ ĩ Média e/ ӗ Baixa Central Posterior oral/nasal oral/nasal ɨ/ĩ u/ ũ a/ ã Tabela 2: quadro de vogais da língua Apurinã. 7 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 A tabela 1 mostra que a língua em questão apresenta apenas oclusivas surdas, [p], [t], [k], sendo uma bilabial, uma alveolar e outra velar, respectivamente; há, na língua, três consoantes nasais, sendo uma bilabial, [m], outra alveolar, [n], e a última palatal, [ɲ]; observa-se a ocorrência de tepe alveolar, [ɾ]; quanto às fricativas, as três encontradas são surdas, em que uma é alveolar, [s], uma é palatal, [ʃ], e a outra é glotal, [h]; Verificase a ocorrência de consoantes africadas, apenas surdas, tal como as oclusivas e as fricativas (o que parece presumível), as quais são a alveolar [ʦ], e a palatal [ʧ]; há, ainda, duas consoantes aproximantes na língua, sendo ambas sonoras: a bilabial [w] e a palatal [j]; por fim, observa-se a ocorrência de consoante lateral alveolar [l]. Quanto às vogais, a língua apresenta contraste de nasalidade e prolongamento (o que não aparece na tabela, embora ocorra de fato na língua), em que figuram vogais altas, médias e baixas. Observam-se, então, as vogais altas [i] (anterior), [ɨ] (central) e [u] (posterior); a vogal média [e]; e a baixa [a]. Todas elas apresentam contrapartes nasais e longas (cf.: FACUNDES, 2000). 1.2. Breves considerações acerca da estrutura silábica da língua Apurinã Com relação à estrutura silábica da língua Apurinã, observe-se o esquema abaixo: σ O R n (C) V(V) A sílaba, em Apurinã, pode ou não apresentar onset (O), elemento representado por uma consoante (ex: [ã.pu.ta] ‘abano’). Toda sílaba em Apurin~ precisa necessariamente apresentar pelo menos uma vogal, único elemento obrigatório da sílaba; o núcleo silábico pode vir sob a forma de uma única vogal, havendo a possibilidade de ocorrência de vogal longa (como em [ã.pa.ɾã] ‘|gua’ e [ã:.ta] ‘canoa tradicional, casco’, respectivamente). N~o h| coda na estrutura sil|bica dessa língua. Com base nessas considerações, observam-se as seguintes possibilidades, em termos de sílaba, na língua Apurinã: V VV CVV 8 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Após essa visão panorâmica relativa ao inventário de consoantes e vogais da língua Apurinã, bem como algumas considerações acerca da estrutura silábica dessa língua, será apresentado, na seção seguinte, um processo fonológico que incide sobre a língua em estudo, relacionado à assimilação do traço palatal. 2. Espalhamento do traço palatal em Apurinã: uma abordagem não linear Em Apurinã, ocorre um processo fonológico que incide sobre segmentos da língua, atribuindo a esses o traço [+palatal]. Antes de se discutir esse processo, considera-se importante mencionar o contexto em que ele se inscreve, o que será feito na seção a seguir. 2.1. Contextualizando o fenômeno A maioria dos dados utilizados para a análise aqui apresentada corresponde a palavras articuladas ao morfema indicativo de sujeito (no caso dos verbos) ou possuidor (no caso dos nomes), o que poderia conduzir a um equívoco, relacionado à atribuição do processo que será aqui discutido a questões morfológicas. No entanto, há evidências na língua Apurinã de que o processo em questão não é morfológico, mas sim fonologicamente condicionado. Tais evidências encontram-se, sobretudo, relacionadas às restrições fonotáticas da língua (o que será discutido mais adiante). Ocorre que o paradigma de verbos, articulados à marca de sujeito, e de nomes, articulados ao possuidor, são ambiente propício à visualização do processo fonológico que se pretende discutir aqui. Por conta disso, antes de apresentar a análise propriamente dita do processo de assimilação do traço palatal em Apurinã, considera-se importante mostrar o paradigma1 mencionado acima: ‘passar’ ‘comer’ ‘caçar’ ‘abano’ ‘copular’ napa ɲika ajata hãputa himata 1S2 nɨ-napa ɲi-ɲika n-ajata nɨ-hãputa ɲĩ-himata 2S pɨ-napa pi-ɲika p-ajata pɨ-hãputa pĩ-himata 3M.S ɨ-napa i-ɲika ø-ajata ɨ-hãputa ĩ-himata 3F.S u-napa u-ɲika ũ-ajata ũ-hãputa ũ-himata 1P a-napa a-ɲika ã-ajata ã-hãputa ã-himata 2P hĩ-napa hĩ-ɲika h-ajata hĩ-hãputa hĩ-himata 3P ɨ-napa-na i-ɲika-na ø-ajata-na ɨ- hãputa-na ĩ-himata-na Tabela 3: paradigma de verbos e nomes, articulados à marca de sujeito/possuidor. 1 Os dados em questão foram fornecidos pelo professor Sidney Facundes, em comunicação pessoal, em 12/07/2013, e correspondem à parte da análise demonstrada em sua tese de doutorado. 2 Em que 1, 2 e 3 correspondem à primeira, segunda e terceira pessoas pronominais; S = singular; M = masculino; F = feminino; P = plural. 9 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Há, com base no paradigma apresentado, um caso de alomorfia nas marcas de sujeito/possuidor da língua Apurinã, conforme as tabelas a seguir: Plural Singular 1 a-; ã- 1 nɨ-; ɲi-; n-; ɲĩ- 2 hĩ-; hĩ-; h- 2 pɨ-; pi-; p-; pĩ- 3M ɨ-; i-; ø-; ĩ- 3F ɨ-...-na; 3 u-; ũ- i-...-na; ø-...na; ĩ-...-na Tabela 4: marcas de sujeito/possuidor singular. Tabela 5: marcas de sujeito/possuidor plural. Nota-se que ocorrem mudanças em determinados segmentos, no interior dos morfemas supramencionados, mudanças essas ocasionadas por um conjunto de processos fonológicos, expressos por determinadas regras que, ordenadas, conseguem dar conta de explicar a alomorfia em questão. Vejamos, a seguir, cada uma das referidas regras3: Regra 1: [h] ø / V_V; Regra 2: [ɨ] [i] / _ C [+ palatal] ou C[i]C[i]; Regra 3: [n] [ɲ] / _ [i]; Regra 4: [ɨ] ø / _V; Regra 5: V [- central - baixa] V [+ nasal] / _V De todas essas regras, apenas as de número 2 e 3 serão focalizadas no presente artigo, já que envolvem o processo de assimilação do traço [+ palatal] em Apurinã, foco deste estudo. Como dito anteriormente, considerou-se importante oferecer o quadro geral em que esse processo, expresso pelas regras 2 e 3 supramencionadas, se inscreve, a título de contextualização. 3 Análise feita pelo professor Facundes, em comunicação pessoal, em 12/07/13, também apresentada em sua tese de doutorado. 10 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Segundo a regra 2, a vogal alta central [ɨ] se transforma na vogal alta anterior [i], quando diante de consoantes palatais. Os dados4 a seguir ilustram essa ocorrência: (1) ɨ-taka ‘ele planta (coloca)’ (2) ɨ-seɾӗna ‘ele dança’ (3) i-ɲika ‘ele come’ Em (1) observa-se a ocorrência de [ɨ] diante da consoante oclusiva alveolar surda [t], enquanto que em (2) a mesma vogal ocorre com a consoante fricativa alveolar surda [s]; por outro lado, em (3), verifica-se o emprego da vogal [i], diante da consoante nasal palatal [ɲ]. Os demais exemplos a seguir também podem ilustrar essa questão: (4) i-jumɨteka ‘ele corre’ (5) i-jutɨpaka ‘ele se senta’ (6) i-jana ‘ele anda’ (7) i-ʃikaɾewata ‘ele canta’ (8) i-tʃa ‘ele diz’ ou ‘ele faz’ Nos exemplos de (4) a (8), observa-se a ocorrência de [i] diante das demais consoantes palatais da língua Apurinã, além de [ɲ], o que comprova a eficácia da regra 2. Há, no entanto, uma outra possibilidade de aplicação dessa regra, que incide sobre casos em que se observa uma sequência composta por uma consoante qualquer mais a vogal [i], seguida de outra consoante qualquer mais a vogal [i] novamente. Seria o caso de palavras como: (9) i-piti (10) ɲi-kiti ‘pena dele’ 'meu pé' Em (9), ainda que se observe a consoante oclusiva bilabial [p] e em (10) a oclusiva velar [k], e não uma consoante palatal, emprega-se a vogal [i], precedida, no caso de (10), por [ɲ], o que revela uma espécie de fuga ao padrão da língua, prevista apenas para esse contexto específico de consoante + vogal [i] + consoante + vogal [i]. Outra questão que chama a atenção no dado (10) se refere à utilização de [ɲ], como consequência do uso de [i], já que, na língua Apurinã, a consoante nasal alveolar [n] nunca ocorre diante de [i], sendo esta uma restrição fonotática da língua; essa informação acaba por conduzir à terceira regra mencionada mais acima. Segundo a regra 3, a consoante nasal alveolar [n] passa a [ɲ], quando diante da vogal [i], o que pode ser confirmado também com base no exemplo (10), além dos demais exemplos abaixo: (11) ɲi-jumɨteka (12) ɲi-jutɨpaka ‘eu corro’ ‘eu me sento’ 4 Todas as palavras apresentadas neste artigo foram extraídas de Facundes (2000) e Pereira (2007). 11 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 (13) ɲi-jana ‘eu ando’ (14) ɲi-ʃikaɾewata ‘eu canto’ (15) ɲi-tʃa ‘eu digo’ ou ‘eu faço’ (16) ɲi-ʃĩɲi ‘minha carne’ (17) ɲi-ʃiɾipi ‘minha flecha’ (18) ɲi-tʃiɾĩ ‘meu dente’ (19) ɲika ‘comer’ (20) akaɲi ‘piqui|’ Os exemplos acima mostram a aplicação da regra 3, tanto no caso do morfema ‘ɲi’ (exemplos de 11 a 18) quanto em outros contextos (exemplos 19 e 20), o que comprova o caráter fonológico desse processo, e não morfológico. Neste ponto, alguns questionamentos poderiam surgir, como, por exemplo, se as vogais [i] e [ɨ] contrastam, isto é, se são fonemas diferentes ou alofones de um mesmo fonema. Como dito na seção 1.1 deste artigo, no quadro de vogais da língua Apurinã, estes são fonemas diferentes, o que pode ser comprovado com o par [iɾi] ‘fruta’ e [ɨɾɨ] ‘pai’. Outro aspecto a ser esclarecido diz respeito à possibilidade de sons foneticamente semelhantes à consoante nasal alveolar [n], tais como [t], [s] e [ts], poderem sofrer o processo referido na regra 3, quando diante da vogal [i]. Para discutir essa possibilidade, observem-se os exemplos abaixo: (21) nɨ-tika (22) nɨ-tikata (23) sikimaɾi (24) tikiɲi ‘minha tripa’ ‘eu defeco’ ‘capitari, macho da tartaruga’ ‘atr|s’ Com esses exemplos, pode-se perceber que os sons [t] e [s], mesmo sendo foneticamente semelhantes a [n], não estão sujeitos ao processo expresso pela regra 3, já que, quando diante de [i], esses sons, no contexto dos exemplos de (19) a (22), não sofrem palatalização. Com relação ao fone [ts], não foram encontradas, nos dados utilizados, palavras em que tal som ocorresse diante de [i]. Mais acima, afirmou-se que o processo aqui discutido se dá no nível fonológico, não estando restito à marcação de sujeito/possuidor da língua Apurinã, embora a maioria dos dados fornecidos se enquadre neste último caso. Afirmou-se, ainda, que as evidências capazes de confirmar esse caráter fonológico do processo em foco se dariam dentro das restrições fonotáticas encontradas na língua. Dessa forma, segundo Facundes, em comunicação pessoal, a tabela abaixo ilustra as restrições relacionadas ao fenômeno ora estudado: 12 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 *ɨɲ *ɲɨ *ɨi *iɨ *ɨj *jɨ *ɨʃ *ʃɨ *ɨtʃ *tʃɨ Tabela 6: restrições fonotáticas da língua Apurinã relacionadas ao processo de palatalização. Acredita-se que as evidências apresentadas nesta seção sejam suficientes para caracterizar o processo de assimilação do traço palatal na língua Apurinã, o qual será analisado na seção seguinte. 2.2. Fonologia autossegmental e espalhamento do traço [+palatal] em Apurinã Os processos focalizados na seção anterior, nas regras 2 e 3, podem ser tratados sob uma abordagem não linear, isto é, a partir de um ponto de vista que considera que não há uma relação de um para um entre o segmento e o conjunto de traços que o caracteriza. Isso significa dizer, por exemplo, que o apagamento de um segmento não implica, necessariamente, o desaparecimento de todos os traços que o compõem e que os traços podem estender-se além ou aquém de um dado segmento. É dentro desse tipo de abordagem que se inscreve a fonologia autossegmental, a qual, segundo Goldsmith (1974 e 1976 apud GOLDSMITH e LAKS5, 2011), desafiou o caráter linear de representações fonológicas visto na fonologia generativa tradicional, permitindo uma simplificação considerável da concepção de regra fonológica. Muitas regras fonológicas produtivas, sob esse viés, poderiam ser reinterpretadas. Acredita-se que o tipo de perspectiva mencionado acima pode dar conta de explicar de maneira satisfatória os fenômenos descritos nas regras 2 e 3 da seção 2.1 deste trabalho. Nesse sentido, com base nos pressupostos da fonologia autossegmental, procurar-se-á discutir brevemente o processo fonológico da língua Apurinã focalizado neste trabalho, o qual diz respeito à assimilação do traço [+palatal]. A análise em separado de cada uma das regras supramencionadas, sob uma abordagem linear, poderia conduzir à interpretação de que ocorreriam dois processos diferentes, embora envolvendo o mesmo traço. Sob essa perspectiva, as regras em questão assim poderiam ser interpretadas: a) no caso da regra 2, a vogal [ɨ] passa a [i], diante de consoante palatal ou da sequência “CiCi”. Para esta regra, as consoantes palatais parecem funcionar como gatilho, tendo como alvo a vogal [ɨ]. Em se tratando dos traços6 envolvidos nesse processo, teríamos o seguinte: 5 http://hum.uchicago.edu/~jagoldsm/Papers/GenerativePhonology.pdf 6 Com relação aos traços distintivos adotados nesta análise, recorreu-se a Ladefoged (1982 apud CLARK e YALLOP, 1990), que propõe a adoção de traços segundo uma escala física, articulatória ou acústica; desse 13 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 [+vocálico+alto–anterior–posterior] [+vocálico+alto+anterior+palatal]/__ [+ consonantal + palatal] ou sequência {[+consonantal [+vocálico+alto+anterior+palatal] [+consonantal [+vocálico+alto+anterior+palatal]} b) já na regra 3, poder-se-ia considerar como gatilho a vogal [i], sendo o alvo a consoante palatal [ɲ]. Teríamos, portanto, os seguintes traços envolvidos: [+nasal+alveolar] [+nasal+palatal] / __ [+vocálico+alto+anterior+palatal] No entanto, sob um enfoque não linear, acredita-se que estes não sejam processos separados, mas um mesmo processo, em que um traço de um determinado segmento acaba por “contaminar” n~o apenas o segmento adjacente a ele, mas também um outro segmento não contíguo àquele cujo traço é assimilado. Se vistos sob essa perspectiva, os processos mencionados nas regras 2 e 3 poderiam ser tomados como um único processo de assimilação do traço palatal, sendo que esse traço seria espalhado para outro segmento. Para melhor ilustrar essa hipótese, retomemos aqui o exemplo (11) ɲi-jumɨteka ‘eu corro’. Em um primeiro momento, agregar-se-ia ao verbo o morfe nɨ-, gerando a forma *nɨ-jumɨteka; [ɨ], então, passaria a [i], por conta da assimilação do traço [+palatal] da consoante [j]; dando origem à forma *ni-jumɨteka; em seguida, esse traço [+palatal] seria espalhado para o outro segmento (consonantal), na direção regressiva; nesse caso, a consoante nasal [n] passaria a [ɲ], conduzindo ao seguinte resultado final: ɲi-jumɨteka. Assim, nesse segundo estágio, poder-se-ia considerar como gatilho a presença do traço palatal da vogal /i/, cujo alvo seria a consoante /n/, que assimilaria o traço [+palatal]. Isso é confirmado por formas como n-ajata ‘eu caço’, pois essa forma demonstra que somente a presença de uma consoante com o traço palatal, nesse caso /j/, em ambiente não contíguo à consoante /n/, não provoca o espalhamento do traço palatal até a consoante nasal alveolar [n]. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, foram discutidas questões relacionadas ao processo de assimilação do traço palatal na língua Apurinã, sob uma perspectiva não linear, a partir da hipótese de que esse traço estaria se espalhando para outro segmento, além daquele adjacente ao segmento que desencadeou o processo. Nesse sentido, foram apresentadas informações relativas ao povo e à língua Apurinã, especificamente no que se refere a características fonéticas e fonológicas. Após a apresentação dos dados da pesquisa, além de alguns esclarecimentos necessários à contextualização desses dados, apresentou-se uma análise, com base nos pressupostos da fonologia autossegmental, a fim de sustentar a hipótese de que, na língua Apurinã, ocorre o espalhamento do traço palatal, na direção regressiva, tendo como gatilho autor, utilizou-se o traço [+palatal]. Além de Ladefoged, também a proposta de Halle e Clements (1983) foi adotada, os quais admitem os demais traços aqui mencionados, entre outros. 14 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 consoantes palatais e uma vogal com o traço palatal, e como alvo a vogal alta central [ɨ], a qual se converte em [i], e a consoante alveolar [n], que se converte em [ɲ]. As breves discussões aqui apresentadas correspondem a um estudo preliminar, sendo que seria necessário analisar um corpus mais extenso para que se pudesse chegar a uma análise mais detalhada. REFERÊNCIAS CLARK, John; YALLOP, Colin. An introduction to phonetics and Phonology. Oxford: Basil Blackwell,1990. HALLE, Morris; CLEMENTS, G. N. Problem Book in Phonology: a workbook for introductory Courses in Linguistics and in Modern Phonology. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1983. FACUNDES, Sidney da Silva. The Language Of The Apurinã People Of Brazil (Maipure/Arawak). Nova York, Búfalo: Faculty of the Graduate School of State University of New York at Buffalo (Tese de Doutorado), 2000. ______.; CHAGAS, Angela.Verbos e Estrutura Argumental em Apurinã (Aruák). In: FRANCHETTO, Bruna; LIMA, Suzi. Sintaxe e Semântica do Verbo em Línguas Indígenas do Brasil. São Paulo: Parábola Editorial (no prelo). PEREIRA, Érika Lúcia Barreto. Variação Linguística em Apurinã: aspectos linguísticos e fatores condicionantes. Belém – Pará: Universidade Federal do Pará - Programa de Pós-graduação em Letras – Estudos Linguísticos, 2007 (dissertação de Mestrado). GOLDSMITH e LAKS FONOLOGIA GERATIVA. Disponível em: http://hum.uchicago.edu/~jagoldsm/Papers/GenerativePhonology.pdf. Acesso em 03 Ago. 2013. APÊNDICE LISTA DE PALAVRAS DA LÍNGUA APURINà 1 2 3 4 5 6 7 8 PALAVRAS ãputa/ hãputa kӗmap~n~/ kӗmap~na tsapɨɾɨkɨ/ tsapeɾɨkɨ/ sapuɾiki tsapɨɾɨkɨna/ tsapeɾɨkɨna makawa/ makawã apaɾãa/ ãpaɾãa maɾãkata/ ma:ɾãkata ãpaɾ~/ ĩpuɾ~/ ĩpaɾã: TRADUÇÃO PARA O PORTUGUÊS Abano Abelha que faz mel Açaí Açaizeiro Acauã Afogado Agarrar Água 15 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 53 54 55 56 57 58 59 Amãa/ ãmãa kijumãɲi/ kiumãne jana kӗma/ kӗm~ katsakitiɾu/ katsakatɨɾu/ kasakitiɾu kamĩ:ɾɨ/ kãmeɾi ajumata/ ajamata kumɨɾɨkatɨ/ kumeɾɨkata kukanɨɾɨ/ kukã:neɾɨ ɨtakaɾaw~tĩɲi/ itakaɾewatĩɲi tikiɲi putʃi/ putʃu tsupata/ supata katsaɾe/ katsaɾɨ pɨpӗtӗka/ pɨpɨtӗka ɨpĩtɨkɨɾɨ/ epĩtikiɾi kutʃapɨɾɨ/ kutʃipɨɾɨ jumakɨ/ jũmakɨ tɨnɨkɨ/ tenɨkɨ tʃuɾatu/ tʃuɾatɨ paikumakɨ/ puikumakɨ katati/ katatu sãnɨ/ sãne ʃimiɾi/ ʃimeɾi kemiʃike/ kimiʃike apakatɨɾɨ/ apakatiɾi/ apakatɨɾu tuɾũkãnɨ/ tɨɾũkãnɨ anãpãnaɾi/ anãpãnali/ aɾãpãnaɾi kapasãnɨkɨ/ kapasãɲiti meɾiti/ miɾiti Kitsĩna/ kits~na ã:ta ʃikaɾewata sikimaɾi/ ʃikimaɾi pɨtetɨ/ pɨtɨtɨ jutɨpa/ jũtɨpa ʃĩɲi/ ʃӗɲi mãɲitɨhãwite/ mãnɨtiãwita amãakɨ/ ãmãakɨ kutʃiti/ kitʃiti awĩɲi/ awĩnɨ makɨ/ maku ajata iʃiwãwita/ iʃuwãwite kũteɾi/ kĩtule ã:tapãɲi/ a:tapãɲi/ atapãɲi ukapita/ ukapite ɨmɨnɨ/ imӗne/ ӗmӗne Anajá Ancião, o mais velho Andar Anta Aranha Arara Arrumar-se Árvore ou galho de mandioca Assassino Ato de plantar algo Atrás Bacuri grande Barata do mato Barro de fazer panela, tabatinga Bater Bem-te-vi Besouro cascudo Bico de flecha Bico do seio Bocão, saco de padre Bola feita de paikuma (para pescar) Borboleta Caba Caba de oco Cabelo de milho Cacau da terra firme Cachoeira Cachorro Cachorro do mato Caititu Calango Canoa tradicional, casco. Cantar Capitari, macho da tartaruga Caquinho Cará grande Carne Carneiro Caroço de anajá Carrapato Casa nossa Castanha Caçar Cavalo Cigarra Cinza Cipó Cobra (em geral) 16 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 ɲika kupӗna/ kupӗne himata katɨɾũkãnɨ/ kajtɨɾũkãnɨ jumɨteka kɨata/ kujata katʃikiɾɨkɨ/ kutʃikiɾɨkɨ kɨpɨtĩna/ kɨpetĩna kɨpɨtɨkɨ/ kɨpetɨkɨ seɾӗna/ seɾӗne/ se:ɾӗna tikata tʃiɾĩ tʃa ʃiɾipi napa kiti piti akaɲi taka jutɨpaka tika Comer Copaíba Copular Corredeira (do rio) Correr Cuia Cumaru de cheiro Cutia preta Cutiara, cutia pequena Dançar Defecar Dente Dizer ou fazer Flecha Passar Pé Pena Piquiá Plantar, colocar Sentar-se Tripa 17 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 FONOLOGIA / SOCIOLINGUÍSTICA A REALIZAÇÃO DA VOGAL PRETÔNICA /e/ NOS DADOS DE TRÊS ATLAS LINGUÍSTICOS DA REGIÃO NORTE Darlan Machado Dorneles7 Lindinalva Messias do Nascimento Chaves8 Universidade Federal do Acre RESUMO: Nesta pesquisa, analisa-se à luz da Dialetologia e da Geolinguística contemporânea, a realização da vogal pretônica /e/ na fala acriana, nos dados do projeto Atlas Linguístico do Acre (ALiAC). Em seguida, comparam-se os resultados do presente estudo aos de Pereira (2011), voltados para uma zona urbana de Rio Branco, aos do Atlas Linguístico do Amazonas (ALAM) e aos do Atlas Linguístico Sonoro do Pará (ALiSPA). O objetivo, de modo geral, é apresentar um perfil da pronúncia da vogal pretônica /e/ no português falado no Acre, no Amazonas e no Pará, revelando um pouco das peculiaridades linguísticas dos falares amazônicos. Os resultados revelam um comportamento variável da realização da vogal pretônica /e/ nas quatro regionais analisadas no Estado do Acre (Alto Acre, Baixo Acre, Purus e Juruá), mas com tendência à pronúncia aberta, o que vai ao encontro das demarcações de Nascentes (1953). Da comparação dos dados com os de Pereira, verifica-se que, de modo geral, no estudo da autora, o sexo masculino apresenta maior tendência para a pronúncia fechada (61%), ao passo que nas realizações da presente pesquisa ocorre certa aproximação dos percentuais referentes às duas realizações. Da comparação entre os três atlas, nos dados do ALAM destaca-se o fechamento (46%) contrapondo-se a 28,5% da abertura, nos do ALiSPA há um equilíbrio entre a abertura (36%) e o fechamento (35%) e no ALiAC ocorre uma diferença não muito grande, 41,4% referente a abertura e 38,5% ao fechamento . Logo, os resultados levam à constatação de que os falares amazônicos possuem um comportamento variável e diferenciado no que se refere à pronúncia da referida vogal. PALAVRAS-CHAVE: Vogal pretônica /e/; ALiAC; Falares amazônicos. FINANCIADOR: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). RÉSUMÉ: Dans cette recherche on analyse la réalisation de la voyelle pretonique /e/ dans les données du Projet Atlas Linguístico do Acre (ALiAC) sous l’optique de la Dialectologie et de la Géolinguistique. Ensuite on compare les résultats de la présente étude à ceux de Pereira (2011), dont les questionnaires ont été appliqués dans une zone urbaine de Rio Branco, { ceux de l’Atlas Linguístico do Amazonas (ALAM) et { ceux de l’ Atlas Linguístico Sonoro do Pará (ALiSPA). De façon générale le but est celui de présenter 7 Acadêmico do Curso de Letras – Português e Bolsista PIBIC do CNPq. 8 Doutora em Linguística pela Universidade de Strasbourg, Professora Associada III da área de Linguística do Centro de Educação, Letras e Artes (CELA) da Universidade Federal do Acre (UFAC) e Líder do Grupo de Pesquisa Centro de Estudos dos Discursos do Acre (CED-AC). 18 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 um profil de la prononciation de la voyelle pretonique /e/ da la variante du portugais parle dans les États brésiliens “Acre”, “Amazonas” et “Par|”. Ainsi, l’étude montre un peu des particularités linguistiques des parlers amazoniens. Les résultatas révèlent une variation de la réalisation de la voyelle dans les quatre régions de l’Acre (Alto Acre, Baixo Acre, Purus et Juruá), mais une tendance à la prononciation ouverte, ce qui confirme les délimitations de Nascentes (1953). Dans les données de l’ALAM, la fermeture est majoritaire (46%) et dans eux de l’ALiSPA il y a um equilibre entre l’ouverture (36%) et la fermeture (35%). Donc, on constate que les parlers amazoniens possèdent um comportement variable et différent entre eux en ce qui concerne la prononciation de la voyelle surmentionnée. MOTS-CLÉS: Voyelle pretonique /e/; ALiAC; parlers amazoniens. 1 INTRODUÇÃO A variação na pronúncia da vogal pretônica /e/ constitui-se em um elemento de diferenciação dialetal tanto no português brasileiro como no português europeu; tratase de um fenômeno de alta produtividade, pois as vogais pretônicas /e, o/ podem ser realizadas abertas, fechadas ou alçadas dependendo da região ou mesmo do falante (NASCENTES, 1953; MATTOSO CÂMARA JÚNIOR, 1976; CRISTÓFARO SILVA, 1999; CALLOU; LEITE, 2004; MATTOS, SILVA, s.d.). Neste estudo, nosso objetivo é contribuir para a demarcação das realizações (aberta ou fechada) da vogal média pretônica /e/ na fala de três Estados da Região Norte, a saber, Acre, Amazonas e Pará. Em um primeiro momento, examinamos os dados do projeto Atlas Linguístico do Acre (ALiAC), buscando identificar o grau de abertura e fechamento do /e/ pretônico na fala de quatro Regionais do Acre: Alto Acre (Brasileia e Xapuri), Baixo Acre (Plácido de Castro e Rio Branco), Purus (Sena Madureira e Santa Rosa do Purus) e Juruá (Cruzeiro do Sul e Porto Walter). Traçamos um perfil dessa vogal nos dados mencionados e comparamos os resultados obtidos com os dados do estudo realizado por Pereira (2011), acerca da abertura e fechamento das vogais médias pretônicas /e, o/ em uma zona de Rio Branco, capital acriana. Diante da proposta de apresentar um panorama dialetal da pronúncia da vogal pretônica /e/ nos falares dos três estados supracitados, em um segundo momento, comparamos os resultados nos dados do ALiAC aos registrados no Atlas Linguístico do Amazonas (ALAM) e aos do Atlas Linguístico Sonoro do Pará (ALiSPA), apresentando, como produto, Cartas Geolinguísticas que registram as variantes respectivas a cada atlas, com seus percentuais. Verificamos, em um terceiro momento, se a divisão estabelecida por Nascentes (1953) se aplica aos dados dos três atlas linguísticos: ALiAC, ALAM e ALiSPA, ou seja, se há maior tendência à pronúncia aberta da vogal pretônica /e/. Cabe aqui esclarecer que o alçamento não se constitui em nosso objeto de pesquisa e que os dados referentes a esse fenômeno constam apenas por haver ocorrências na amostra. O trabalho estrutura-se da seguinte forma: Introdução; noções básicas do que vêm a ser Dialetologia, Geolinguística e Atlas Linguísticos, neste último caso, com uma breve apresentação dos já publicados; exposição das vogais pretônicas no português, em seu aspecto histórico, e de alguns estudos realizados no português brasileiro; Aspectos 19 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Metodológicos, com descrição do perfil dos informantes; das localidades da regional do Juruá e procedimentos de análise. Incluímos nessa parte pequena apresentação dos três atlas a cujos dados os nossos foram comparados; Resultados e Discussões (análise dos dados das quatro regionais; comparação com os dados de Pereira e, em seguida, com os do ALAM, os do ALiSPA e os do ALiAC), e, por fim, as Considerações Finais e as Referências Bibliográficas. 2 DIALETOLOGIA, GEOLINGUÍSTICA, ATLAS LINGUÍSTICOS A Dialetologia e a Geolinguística constituem-se em áreas interdisciplinares da Linguística que mantêm uma interface com vários outros campos do saber como a História (para a descrição histórica da região), a Cartografia (para a elaboração do mapa-base onde serão inseridos os gráficos ou símbolos), a Informática (para a armazenação dos dados), a Sociolinguística (para o estabelecimento de relações entre as formas de falar analisadas e a sociedade envolvente), a Linguística Histórica (para a compreensão dos fenômenos linguísticos em sua essência), entre outras (TELES, RIBEIRO, 2006; CARDOSO, 2010; ALENCAR, 2011). Para Cardoso (2010, p. 15) “a dialetologia é um ramo dos estudos linguísticos que tem por tarefa identificar, descrever e situar os diferentes usos em que uma língua se diversifica, conforme a sua situaç~o espacial, sociocultural e cronológica”. A Geolinguística, por sua vez é o “método por excelência da Dialectologia”, e “ainda hoje se mostra eficaz para o conhecimento das variantes populares do Português do Brasil” (CRUZ, 2004, p. 20). Essa ramificação da Linguística é comumente utilizada na construção de atlas linguísticos e para demarcar as variações linguísticas em pesquisas menores. Esse método “foi aperfeiçoado e difundido por Jules Gilliéron que, entre 1902 e 1910, publicou o Atlas Linguístico da França (ALF), obra considerada como marco dos estudos dialetais e que muito contribuiria para o progresso da ciência da linguagem”. (CRUZ, 2004, p. 20). Trata-se, segundo a literatura específica, de um método hábil e eficaz a ser empregado na análise linguística, pois registra, apresentando como resultados cartas que revelam alguns fenômenos de variação da fala. Até o presente momento foram publicados doze atlas linguísticos no Brasil, sendo um regional e onze estaduais: Atlas Prévio dos Falares Baianos – APFB (ROSSI, FERREIRA, ISENSEE, 1963), Esboço de um Atlas linguístico de Minas Gerais - EALMG (RIBEIRO, ZÁGARI, GAIO, 1977), Atlas Linguístico da Paraíba - ALPB (ARAGÃO, MENEZES, 1984), Atlas Linguístico de Sergipe - ALS (ROSSI, FERREIRA, ISENSEE, 1987), Atlas Linguístico do Paraná - ALPR (AGUILERA, 1994), Atlas Linguístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil - ALERS (KOCH, KLASSMAN, ALTENHOFEN, 2002), Atlas linguístico sonoro do Pará - ALISPA (RAZKY, 2004), Atlas linguístico de Sergipe II - ALS II (CARDOSO, 2005), Atlas linguístico do Amazonas - ALAM (CRUZ, 2004), Atlas Linguístico do Paraná II – ALPR II (ALTINO, 2007), Atlas linguístico de Mato Grosso do Sul - ALMS (OLIVEIRA, 2007) e, por fim, o Atlas linguístico do Ceará - ALECE (BESSA, 2010). Os Atlas Linguísticos mostram a história e os avanços das pesquisas no âmbito da Dialetologia e da Geolinguística no Brasil, visto que, no decorrer dos anos, diversos 20 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 pesquisadores estão mostrando as características e peculiaridades do português falado no Brasil. Nesse sentido, A visão atual é bem diferente. Falamos do século XXI, em plena era eletrônica, em que o português passa por um processo de explosão e internacionalização do vocabulário. Um informante que mora no Ceará, sob influência do crescente poder dos meios de comunicação de massa (rádio, jornal, televisão), percebe rapidamente, que em outras localidades desse nosso imenso país, se fala diferente, principalmente, no que diz respeito à pronuncia, e que há diferentes maneiras para se dizer a mesma coisa, embora a língua nacional seja a mesma (ALENCAR, 2011, p. 27). A importância dos atlas linguísticos reside na capacidade de mostrar de forma visual e bastante fácil, mesmo para os não especialistas, essa diversidade da língua, mas não se trata apenas de mostrar, pois os atlas se constituem em verdadeiros arquivos de uma variante falada em determinada época, em determinado lugar. 3 AS VOGAIS PRETÔNICAS NO PORTUGUÊS Sabe-se que Antenor Nascentes (1953) é um marco histórico nos estudos das vogais pretônicas no português brasileiro, tendo em vista o fato de ter dividido o Brasil em dois grandes grupos: o do norte (Amazonas, Pará até a Bahia) e o do sul (do Espírito Santo até o Rio Grande do Sul). No mapa abaixo, podemos visualizar essa divisão dialetal antiga do português brasileiro, que até hoje é citada e comparada a outros estudos empreendidos tanto à luz da Sociolinguística, como da Dialetologia e da Geolinguística. Fonte: Nascentes (1953, p. 25). 21 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Ao dividir o Brasil em dois grandes grupos, o do Norte e o do Sul, Nascentes (1953) diz que os falares do norte apresentam uma tendência maior à pronúncia aberta [, ] e os do sul à fechada [, ]. Essa divisão dialetal serviu como base para diversos estudos j| que “a realizaç~o aberta ou fechada das vogais médias pretônicas é considerada uma marca regional, desde a proposta de Antenor Nascentes, que tomou o par}metro de realizaç~o das pretônicas para a divis~o dos dialetos do norte e do sul”. (ARAGÃO, 2003, p. 105). Mattoso Câmara Júnior (1970), em uma perspectiva estruturalista, define as vogais levando em consideração a posição na palavra, em posição tônica: sete vogais /, , , , , , /, em posição pretônica cinco: /, , , , /, e em posição átona final três: /, , /. Ocorre essa redução vocálica devido ao processo de neutralização, que consiste na perda do traço distintivo entre dois fonemas, // e //, // e //, oposição entre fechamento e abertura. Exemplo: []l[]fante – []l[]fante / B[]lívia – B[]lívia. A harmonização vocálica e o alçamento sem motivo aparente são dois outros fenômenos recorrentes nas ocorrências das vogais médias pretônicas, contudo, por não se constituírem em objeto de análise do presente estudo, não nos deteremos sobre o assunto. Dentre os estudos mais recentes, na perspectiva da Linguística Histórica, sobre as vogais, citamos Basílio (1972), Silva (1989), Cristófaro Silva (1999), Araújo (2007), Viegas e Cambraia (2011) e Mattos e Silva (s.d.). Basílio (p. 50-51) compara o sistema vocálico do português com o do latim e diz que a diferença mais notória é que as vogais médias no português possuem “graus de abertura, opondo-se as fechadas / / às abertas / /, que não existem no sistema latino”. Para Silva (1989, p. 41), em sua descrição do percurso histórico das vogais pretônicas na língua, “s~o escassas as referências à realização de vogais antes da tônica, j| que elas n~o interessavam”, aos gram|ticos e ortógrafos do século passado, “cuja meta era, quase sempre, o estabelecimento de uma escrita portuguesa”. Todavia, comumente ao se referir às vogais tem-se sempre em mente o sistema normativo gramatical em situação acentuada, sem considerar a sua ocorrência não acentuada, o que [...] explica as parcas informações sobre as vogais em sílabas pretônicas, que quase sempre se obtém de comentários secundários, às vezes restritos a algumas variedades do português, ou de lista de “erros”. É desse material que se deve valer quem quiser perscrutar o passado (SILVA, 1989, p. 41). Ainda no plano histórico, Viegas e Cambraia (2011, p. 14), dizem que, no decorrer do tempo, o antigo sistema vocálico latino evoluiu e modificou-se até culminar hoje na distinção entre a pronúncia aberta que se opõe à fechada das vogais pretônicas no português brasileiro. Esses autores observam ainda que “a história do sistema voc|lico pretônico da língua portuguesa é complexa e, por isso, demanda dados de diferentes fontes para sua melhor compreens~o”. Sobre a temática, Mattos e Silva (s.d.), assim como Silva (1989) e Viegas e Cambraia (2011), destaca que, para traçar um histórico das vogais pretônicas, dados de 22 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 gramáticos e ortógrafos são as únicas fontes de que dispomos sobre o passado, pois, como já se disse, a descrição era apenas pelo viés gramatical. Hoje, porém, já se tem dados recentes pautados no estudo do português brasileiro. Esse desinteresse pelas realizações das médias pretônicas não persiste nos dias atuais. A própria Silva (1989) destaca a importância concedida aos estudos acerca das pretônicas a partir do marco de Nascentes (1953), que despertou o interesse sobre os estudos das vogais no português. No que se refere a essas variações, Cristófaro Silva (1999, p. 81) diz que as vogais pretônicas podem ser pronunciadas de forma idêntica ou não idênticas uma vez que tal fato é uma “marca de variaç~o dialetal geogr|fica ou mesmo de idioleto”. No que concerne { import}ncia do estudo das referidas vogais, para essa autora, “embora haja grande número de trabalhos sobre as pretônicas no português do Brasil, urge ainda um estudo mais detalhado e acurado sobre o assunto”. Outros autores, tal qual Araújo (2007), também mencionam o fato de que as vogais pretônicas têm sido alvo de múltiplas discussões e estudos tanto no âmbito da Dialetologia quanto no da Sociolinguística. Ela reafirma, assim como Silva (1989), a preocupaç~o que se tinha inicialmente com a quest~o normativa das “variantes de /e/ e /o/ em posição pré-acentuada”. Dentre os inúmeros estudos sobre as vogais pretônicas em diversas regiões do país, destacamos os trabalhos desenvolvidos por: Silva (1989), Hora e Pereira (1998), Leite e Callou (2004), Brandão e Cruz (2005), Araújo (2007), Vieira (2010), Pereira (2011), Sousa (2011) e Razky, Lima e Oliveira (2012). Silva (1989) debruçou-se sobre o estudo das pretônicas no falar baiano, em uma perspectiva Sociolinguística, através de dados do projeto Norma Urbana Culta de Salvador (NUC-SSA), analisando produções de 24 informantes, 12 do sexo masculino e 12 do feminino, todos de nível superior, distribuídos em três faixas etárias, 25 a 35, 36 a 55 e maiores de 55 anos. Os resultados da autora atestam que, no contexto CVC (consoante – vogal – consoante), ocorreu uma predominância das “vogais baixas (nòvela, nècessário) exceto em dois contextos: antes de vogal média não-nasal (côrreio, cêrveja); e antes de vogal alta, situações em que, na maioria dos casos, ocorrem vogais da mesma altura (pulítica, pirigo)” (p. 312). Silva concluiu que o falar baiano apresenta uma distribuição complementar das vogais pretônicas médias e baixas. Hora e Pereira (1998) com base nos dados do projeto “Variaç~o Linguística no Estado da Paraíba (VALPB)”, investigaram também { luz da Sociolinguística, como são correlacionadas as vogais pretônicas médias na sílaba seguinte pelos pessoenses. Para isso, analisaram 6.401 realizações de /o/ e 8.679 de /e/, totalizando 15.080 casos. Os resultados revelaram que as pretônicas abertas [] e [] são expressivas no falar pessoense, embora haja a pronúncia das elevadas [] e [], bem como [] e [] fechadas “subordinadas { presença das vogais de mesma altura na sílaba seguinte”. Esses autores concluem, dizendo que a harmonização vocálica norteia a variação das pretônicas no dialeto pessoense, o que “justifica a posiç~o da vari|vel vogal da sílaba seguinte que se evidencia como a mais importante em relação às demais variáveis lingüísticas e sociais consideradas” na pesquisa. Leite e Callou (2004, p. 39) destacam o fato de que os estudos das vogais pretônicas têm servido n~o só para fazer diferenciações “entre os falares brasileiros, 23 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 mas também entre o português do Brasil e de Portugal”. Com o intuito de estabelecer, assim como Nascentes (1953), uma linha divisória entre os falares do norte e do sul, essas autoras buscam os limites relativos em cinco grandes capitais brasileiras, obtendo, no tocante às pretônicas médias abertas [] e [], os seguintes percentuais: “60% em Salvador, 47% em Recife, 5% no Rio de Janeiro, 0% em S~o Paulo e 0% em Porto Alegre”. Ao examinarem as vogais médias pretônicas nas cartas fonéticas do Atlas Linguístico do Amazonas (ALAM e no Atlas Linguístico Sonoro do Pará (ALiSPA), Brandão e Cruz (2005) constataram “o predomínio da média fechada (46%) na fala do Amazonas e da média aberta (36%), na do Pará, embora, neste último caso, a variante concorra com a média fechada (35%), tendo em vista que a diferença que as separa é de apenas um ponto percentual”. Brand~o e Cruz (2005) concluem que “as cartas selecionadas do ALAM e do ALiSPA confirmam a existência, na fala amazonense e na paraense, de vogais abertas em situação pretônica, como sugerira Nascentes na sua proposta de divisão dialetal do Brasil em áreas linguísticas”. Araújo (2007), utilizando o método da Sociolinguística Variacionista com os dados do projeto “Norma Oral do Português Popular de Fortaleza (NORPORFOR)”, examinou as vogais médias pretônicas no falar popular de Fortaleza com um corpus de 72 informantes, 36 do sexo masculino e 36 do feminino, nas faixas etárias de 15 a 72 anos. A autora atestou, em sua análise, a preponderância das variantes baixas, como por exemplo, “(c[]rrente, g[]lado), à exceção de dois ambientes, a saber: diante de vogal média não-nasal (p[]rteiro, d[]scer) e diante de vogal alta (n[]tícia, r[]vista) em que, na maioria das vezes, ocorrem vogais de mesma altura”. Araújo (2007, p. 141) afirma que: as pretônicas médias e baixas, excetuando-se alguns poucos casos, ocorrem em distribuição complementar: médias fechadas antes de vogais fechadas e médias-abertas antes de vogais abertas. As variantes altas ocorrem predominantemente antes de vogal da mesma altura, mas também ocorrem antes de vogais médias e baixas. Vieira (2010), tomando como base o corpus do Atlas Linguístico do Espírito Santo (ALES) e do Atlas Linguístico do Brasil (ALiB), mais precisamente, de Vitória, estudou a manutenção, abaixamento e alçamento das pretônicas /e/ e /o/. Em termos percentuais os resultados do estudo dessa autora revelaram: []: 39% (138 ocorrências), []: 0,8% (3 realizações), []: 57, 6% (204 casos) e outros 2,6% (9). Desse modo, na comunidade estudada, “predomina a regra de alçamento das vogais médias em contexto pretônico”, ao passo que foram mínimos os casos de abaixamento, “ocorrendo somente na capital do Estado, com predomin}ncia na fala das mulheres”. Essa autora destaca, por fim, que os resultados de sua pesquisa são apenas um retrato, estudos posteriores podem esclarecer e investigar mais detalhadamente a variação das vogais pretônicas na fala do Espírito Santo. No Acre, temos dois estudos, o de Pereira (2011) e o de Sousa (2011), o primeiro realizado na capital, Rio Branco, o segundo em três municípios da Regional do Purus (Sena Madureira, Manoel Urbano e Santa Rosa do Purus). 24 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Pereira9 (2011) analisou a realização aberta ou fechada das vogais médias pretônicas /e, o/ em uma zona urbana da capital acriana, Rio Branco, em uma perspectiva Sociolinguística, com 36 informantes, 18 do sexo feminino e 18 do masculino, nas idades 16 a 29, 3 a 45 e 46 a 60 anos, com escolaridade de ensino fundamental e superior. Os resultados do estudo de Pereira revelaram que os homens se destacam quanto à abertura, sobretudo da faixa etária mais jovem (15 - 29 anos) entre os níveis médio e superior. Sousa (2012), por sua vez, cartografou 17 fenômenos fonéticos ocorrentes nas cidades de Sena Madureira, Santa Rosa do Purus e Manoel Urbano, integrantes da Regional do Purus (Ac). Seus informantes, no total de 12, situam-se em duas faixas etária, de 18 a 30 e de 50 a 65 anos. Nas cartas fonéticas referentes às realizações das pretônicas há os seguintes resultados: Preferência pelo alçamento da vogal pretônica /e/ por [i] nos três municípios, Sena Madureira, 84,6%, Manoel Urbano 67, 3%, Santa Rosa do Purus, 53, 8%; no que tange ao gênero, prevalência do alçamento na população masculina, e não tão numeroso quanto o alçamento, ocorrência equiparada do fenômeno de abertura em ambos os sexos. Razky, Lima e Oliveira (2012) analisaram as vogais médias pretônicas no falar paraense com base nos dados do Atlas Linguístico Sonoro do Pará (ALiSPA). Os resultados revelam preferência pela pronúncia fechada dessas vogais, pois “as variantes [o] e [e] foram as que se mostraram mais frequente no estado, seguidas, respectivamente, por [ó] (26%) e [u] (23%), para a média posterior; e [é] (35%) e [i] (23%), para a média anterior”. A conclus~o a que esses autores chegaram foi que os resultados impõem uma revis~o da proposta de Nascentes (1953), “uma vez que demonstram que o Pará, possuindo norma de pronúncia fechada das vogais médias pretônicas, não pode ser agrupado aos estados do nordeste brasileiro, como imaginava Nascentes” (1953). 4 PERFIL DOS INFORMANTES, PROCEDIMENTOS, ATLAS VERIFICADOS Para este estudo, escolhemos no banco de dados do projeto ALiAC, 8 informantes na Regional do Alto Acre (Brasileia e Xapuri10), 8 na Regional do Juruá11 (Cruzeiro do Sul e Porto Walter12), 8 na Regional do Purus (Sena Madureira, Santa Rosa do Purus e Manoel Urbano)13, 8 na Regional do Baixo Acre (Rio Branco e Plácido de Castro), totalizando 32 informantes, sendo 16 do sexo masculino e 16 do feminino, com escolaridade máxima até o 5º ano do ensino fundamental, em duas faixas etárias 18 – 30 anos e 50 – 65 anos. Os sujeitos da pesquisa são naturais da localidade, não tendo dela se afastado por mais de um terço de suas vidas. Para a realização da pesquisa, a dividimos em três fases. 9 Embora retomemos, de certa forma, a pesquisa de Pereira, é importante destacar que nosso viés se distancia do da referida autora por ela ter trabalhado no âmbito da Sociolinguística e por nós situarmos nossa análise na Dialetologia e na Geolinguística. 10 Dados do banco de dados do projeto ALiAC. 11 Dados do banco de dados do projeto ALiAC. 12 Dados do banco de dados do projeto ALiAC. 13 Dados do banco de dados do projeto ALiAC. 25 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Na primeira fase, analisamos os dados do projeto Atlas Linguístico do Acre (ALiAC) já coletados das regionais do Alto Acre (Brasileia e Xapuri), Baixo Acre (Rio Branco e Plácido de Castro), Juruá (Cruzeiro do Sul e Porto Walter) e Purus (Sena Madureira e Santa Rosa do Purus). Os dados foram coletados in loco através da aplicação do Questionário Fonético–Fonológico elaborado pela equipe do projeto Atlas Linguístico do Brasil (ALiB). Para o registro, utilizou-se um gravador digital e um microfone unidirecional a fim de garantir a qualidade do som; na sequência, os dados foram arquivados em computador e em CDROM. Para a análise selecionamos as palavras que apresentam variação na pronúncia da pretônica /e/; são elas: terreno, televisão, tesoura, elétrico, fecha, grelha, peneira, fervendo, cebola, elefante, remando, estrada, seguro, real/reais, prefeito, escola, defesa, pernambucano, questão, pego, pecado, perdão, pescoço, ferida, desmaio, perfume, perdida, perguntar, presente e esquerdo. Em seguida, fizemos a transcrição grafemática e a fonética, tabulamos os percentuais e elaboramos as Cartas Geolinguísticas. Para a análise, segunda fase, consideramos: A) Os fenômenos de: - abertura e fechamento da vogal pretônica /e/. B) Variação Diassexual e Diageracional: - gênero em que houve mais abertura da vogal; - gênero em que houve mais fechamento da vogal; - faixa etária em que houve mais abertura da vogal; - faixa etária em que houve mais fechamento da vogal; Após tabularmos os dados, preferimos exibi-los em termos percentuais para possibilitar a comparação entre os resultados deste estudo aos de Pereira (2011). Na terceira e última fase14, comparamos nossos dados com os registrados no Atlas Linguístico do Amazonas (ALAM) e no Atlas Linguístico Sonoro do Pará (ALiSPA). 4.1 Atlas Linguístico do Amazonas (ALAM) Desenvolvido em uma perspectiva Dialetológica, Geolinguística e Sociolinguística Variacionista Laboviana, o ALAM representa os falares de nove municípios do Amazonas: Barcelos, Tefé, Benjamin Constant, Eirunepé, Lábrea, Humaitá, Manacapuru e Parintins. Fruto da tese de doutorado empreendido pela professora da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Maria Luiza de Carvalho Cruz, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2004, esse atlas possui 107 cartas fonéticas e 150 semântico-lexicais. Cada ponto de inquérito foi composto por seis informantes, de ambos os sexos, nas faixas de 18 a 35 anos, de 36 a 55 anos e 56 anos em diante, 14 Brandão e Cruz (2005) no trabalho intitulado Um estudo contrastivo sobre as vogais médias pretônicas em falares do Amazonas e do Pará com base no ALAM e no ALiSPA já fizeram a análise das realizações dessa vogal no ALAM e no ALiSPA. 26 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 perfazendo um total de 54 entrevistados, com escolaridade máxima até a 4ª série do ensino fundamental. 4.2 Atlas Linguístico Sonoro do Pará (ALiSPA) Esse atlas é parte integrante do projeto Atlas Geossociolinguístico do Pará, primeiro atlas sonoro do Brasil, publicado em 2004, resultado do trabalho do Professor Doutor Abdelhak Razky no Laboratório de Linguagem da Universidade Federal do Pará (UFPA). São 10 pontos de inquéritos nas seis mesorregiões do Estado do Pará (Abaetetuba, Altamira, Belém, Bragança, Breves, Cametá, Conceição do Araguaia, Itaituba, Marabá e Santarém), 600 cartas linguísticas, quarenta informantes, de ambos os sexos, nas faixas 18 a 30 anos e 40 a 70 anos, com escolaridade máxima até a 4ª série do ensino fundamental. 4.3 Atlas Linguístico do Acre (ALiAC) Projeto coordenado pela Profa. Dra. Lindinalva Messias do Nascimento Chaves no grupo de pesquisa Centro de Estudos dos Discursos do Acre (CED-AC), da Universidade Federal do Acre (UFAC), encontra-se em desenvolvimento, comportando vários subprojetos, dentre eles, o Atlas Fonético do Acre (AFAc) e o Atlas Linguístico Sonoro do Acre (ALSAc ). Os pontos de inquérito constituem-se em cinco regionais: Alto Acre (Assis Brasil, Brasileia e Xapuri), Baixo Acre (Rio Branco, Plácido de Castro e Porto Acre), Juruá (Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima e Porto Walter), Purus (Sena Madureira, Santa Rosa do Purus e Manoel Urbano) e Tarauacá – Envira (Feijó, Tarauacá e Jordão). Tanto o AFAc como o ALSAc encontram-se fundamentados nos princípios da Dialetologia e Geolinguística Contemporânea e contarão com 40 informantes (20 masculinos e 20 femininos). Tais informantes, quatro por localidade, situam-se em duas faixas etárias, 18 a 30 e 50 a 65 anos, possuem como escolaridade máxima o 5º ano do ensino fundamental e são naturais de sua localidade respectiva. 5. DISCUSSÕES E RESULTADOS 5.1 Análise da realização da vogal pretônica /e/ nos dados do ALiAC Analisamos 992 realizações, 142 por regional, porém, como já destacado no item anterior, fundamentamos o exame apenas em índices percentuais, no sentido de estabelecer uma comparação com o estudo de Pereira (2011) e o de Brandão e Cruz (2005). Na carta 1 aparece a realização da vogal pretônica /e/ nas quatro regionais do Estado do Acre (Alto Acre, Baixo Acre, Juruá e Purus). 27 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Carta 1. Realização da vogal pretônica na fala acriana. Registramos que, enquanto a Regional do Alto Acre, a do Baixo Acre e a do Purus revelam uma tendência ao fechamento (63,5%, 41,3%, 39,1% respectivamente), a Regional do Juruá, ao contrário, prefere a abertura (51,6%). Detalhando, há um comportamento variável da pronúncia dessa vogal nos dados com os seguintes destaques: fechamento na Regional do Alto Acre (63,5%) face à abertura (19,9%); equilíbrio entre os percentuais do fechamento (41,3%) e da abertura (39,9%) na Regional do Baixo Acre; tendência ao fechamento (39,1%) e menor ocorrências de abertura (24,6%) na Regional do Purus; preferência pela abertura (51,6%) e menor casos de fechamento (30,5%) na Regional do Juruá. Na sequência, compararemos os dados das quatro Regionais (Alto Acre, Baixo Acre, Juruá e Purus) com os de Pereira (2011), e, em seguida, confrontaremos com os registrados no ALAM e no ALiSPA. 5.2 Comparação dos dados do ALiAC aos dados registrados por Pereira (2011) Comparando os percentuais das Regionais Juruá (2012), Purus (2012), Alto Acre (2012), Baixo Acre (2013) com os dados obtidos por Pereira (2011), no quadro 1 e 2, temos um perfil geral da pronúncia do /e/ pretônico no que tange à variação diassexual e diageracional (faixas etárias: 18 – 30, 50 – 65 anos) no Estado do Acre. 28 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Quadro 1. Comparação dos dados das Regionais Alto Acre, Baixo Acre, Juruá e Purus com os dados de Pereira (variação diassexual). FAT OR GÊN ERO Regional do Juruá Regional do Purus (2011) (2012) Alçamento Regional do Alto Acre (2012) Baixo Acre (2013) Pereira – Rio Branco (2011) Alçamento Alçamento Troca por [o] Alçamento , , Mas 13,2% 26,9% culi no 9,7% 19,6% 20,7% 9,7% 32,8% 5,0% 11,2% 0,1% 20,6% 20,6 % 8,8% 61% 59% Fem 17,2% 24,6% inin o 8,2% 23,2% 18,3% 8,5% 30,7% 9,6% 9,5% 0 21,8% 19% 9,2% 38% 41% Examinando a variação diassexual, constatamos um comportamento bastante aproximado da realização da vogal pretônica /e/, em ambos os sexos, em todas as regionais, não havendo grande distância dos números entre a realização tanto aberta quanto fechada. Comparando o resultado das quatro regionais com os dados apurados por Pereira (2011), os dela se diferenciam pelo fato de ter um corpus maior do que o nosso e por a autora ter analisado o /e / e o /o/ juntos. De modo geral, no estudo de Pereira, o sexo masculino destaca-se quanto à pronúncia fechada tanto do /e/ como do /o/ (61%). Nos nossos resultados, há, conforme já dito, um certo equilíbrio entre as realizações aberta e fechada do /e/ o que talvez possa ser revisto com um corpus maior. No quadro 2, continuamos a comparar nossos dados com os de Pereira, desta feita no que tange à variação diageracional. FATOR IDADE 15 – 29 30 – 45 46 – 60 18 – 30 50 – 65 Quadro 2. Comparação da Regional do Alto Juruá e Purus com os dados de Pereira (variação diageracional). Regional do Regional do Purus Regional do Alto Acre (2012) Baixo Acre Pereira – Rio Juruá (2011) (2012) (2013) Branco (2011) Alçame nto Alçame nto Alçame nto Troca por [o] Alça ment o , , - - - - - - - - - - - - - 30,99 % 43,9% - - - - - - - - - - - - - 47,2% 29,3% - - - - - - - - - - - - - 21,9% 26,8% 16,2% 25,3% 8,5% 21,6% 19,5% 8,9% 31,9% 9,4% 8,7% - 21,4 % 19,4 % 9,2 % - - 14,2% 25,3% 10,5% 21,2% 19,5% 9,3% 29,6% 8,2% 12,1% 0,1% 21,0 % 20,2 % 8,8 % - - 29 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Pereira utilizou idades diferentes das de nossa pesquisa, portanto selecionamos as faixas mais aproximadas às de nossos dados, 15 a 29, 18 a 30, 46 a 60 e 50 a 65 anos. Tanto na faixa mais jovem (18 – 30 anos) da Regional do Alto Acre quanto na mais jovem de Pereira (15 – 29 anos) atesta-se a preferência pela pronúncia fechada, 31, 9% e 30,9% respectivamente. Na faixa mais velha desta regional e da de Pereira há uma diferença não muito grande, 29,6% e 21,9%, no entanto, no estudo da autora, diferentemente do nosso, é a abertura que tem maior ocorrência (26,8%). Quanto à abertura, a Regional do Juruá revelou percentual igual nas duas faixas etárias e pouca diferença nos percentuais concernentes ao fechamento (16,2% na faixa mais jovem e 14,2% na faixa mais idosa). 5.1.3 A realização da vogal pretônica /e/ no ALAM, no ALiAC e no ALiSPA Brandão e Cruz (2005) selecionaram as cartas fonéticas do ALAM e do ALiSPA que apresentavam variação das vogais médias pretônicas e as analisaram apresentando os resultados em tabelas. Para efetuar a comparação no que concerne à variação do /e/ pretônico, Brandão e Cruz (2005) escolheram 22 cartas no ALAM e 31 no ALiSPA. No quadro seguinte, identificamos os números dessas cartas fonéticas e os vocábulos levados em consideração no exame por essas autoras. O quadro foi adaptado, isto é, só utilizamos os vocábulos contendo o /e/ pretônico, descartando os do /o/ pretônico, por não ser objeto de estudo nesta pesquisa. Número da carta fonética 07 06 08 09 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 32 33 47 66 82 101 103 105 Quadro 3. Vocábulos do ALAM e do ALiSPA examinados por Brandão e Cruz (2004). ALAM ALiSPA Número Vocábulo da carta Vocábulo fonética d(e)pois 10 (e)strada b(e)bida 12 r(e)al / r(e)ais (e)ducação 15 d(e)svio m(en)tira 17 t(e)rreno (e)stragada 21 pr(e)feito (e)sgoto 22 (e)scola (e)spinha 27 p(e)rnambucano p(e)scoço 33 p(e)cado t(e)soura 35 p(e)scoço pr(e)sente 49 d(e)smaio m(e)lancia 64 (e)squerdo m(e)lhor 67 prat(e)leira p(e)rfume 71 t(e)l(e)visão p(e)rdido 73 t(e)soura r(e)al 75 p(e)rfume r(e)ais 77 trav(e)sseiro d(e)sovar 80 (e)l(e)trico dir(e)tora 85 pr(e)sente r(e)sultado 95 s(e)guro d(e)vagar 97 (em)prego r(e)médio 100 d(e)fesa m(e)dicina 108 (en)contrar 30 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Fonte: Adaptado de Brandão e Cruz (2005). 109 110 121 125 133 136 139 150 152 p(e)rdido p(e)rguntar m(em)tira d(e)vagar p(e)neira f(e)rvendo c(e)bola f(e)rida (e)l(e)fante Além de descartar os vocábulos referentes ao /e/ pretônico, deixamos de lado, embora as tenhamos mantido no quadro 3, as palavras cujo /e/ pretônico nos parece n~o passível de pronúncia aberta, tais quais “emprego” e “encontrar”. Em todo o caso, conforme já foi dito, nossa comparação se fez apenas com os percentuais relativos à abertura e ao fechamento das vogais nos dados dos dois atlas. Na carta 2, reunimos os dados referentes aos três atlas analisados. Carta 2: Comparação da vogal pretônica /e/ nos dados do ALAM, do ALiAC e do ALiSPA. O Acre apresenta maior tendência à abertura, 41,4%, embora registre também expressiva preferência pela realização fechada, 38,5%. A pronúncia da vogal pretônica /e/ no Amazonas é majoritariamente fechada (46%), o dobro dos 28,5% para []; no Pará a diferença entre as duas realizações é de apenas um ponto percentual: []: 35%, []: 36%. Na carta 3, apresentamos as tendências de cada estado. 31 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Carta 3: Perfil geral da vogal pretônica /e/ nos falares do Amazonas, Acre e Pará. Portanto, diante do exposto, pode-se afirmar que, relativamente à pronúncia da vogal pretônica /e/ no Acre, a proposta lançada por Nascentes (1953) ainda continua válida, ao passo que, no Pará, tem-se um equilíbrio entre as duas pronúncias, e no Amazonas a ocorrência das vogais abertas em contexto pretônico não é tão expressiva, ou seja, confirma-se maior tendência ao fechamento da vogal pretônica /e/. Assim, no que se refere à delimitação de Nascentes (1953), cabe destacar que a Região Norte é muito extensa para que haja em sua fala inteira uniformidade e, sobretudo, que a questão da variação não se condiciona somente pelo aspecto geográfico. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os dados desta pesquisa mostram que o Acre possui maior tendência à pronúncia aberta da vogal pretônica /e/, o Amazonas ao fechamento, e o Pará ao equilíbrio das duas realizações. Logo, conclui-se que os falares amazônicos possuem um perfil linguístico variável e diversificado, ou seja, não existe uma uniformidade e sim uma heterogeneidade linguística. 32 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Esse resultado não confirma as demarcações de Nascentes, muito baseadas em divisões geográficas, mas confirma, de certa forma, uma ocorrência expressiva da abertura da vogal, haja vista que no ALiAC ela foi majoritária, no ALiSPA ela se equilibra com a realização fechada e apenas no ALAM perde significativamente para o fechamento. Por outro lado, não se pode ignorar que os dois estudos – o de Nascentes e a presente pesquisa – se realizaram em épocas muito diferentes, 60 anos de diferença de 1953 a 2013, nesse lapso de tempo mudanças nos falares locais tenham ocorrido desde a percepção do referido autor. Pereira (2011) já alertava para uma mudança na tendência histórica à abertura da vogal pelos acrianos, mudança esta possivelmente motivada pela mídia e pela migração de pessoas do centro-sul para o Acre a partir de 1970. Dessa forma, não se trata de contrapor a presente análise às marcações de Nascentes, mas de verificar se a tendência à abertura das vogais é, de fato, uniforme na região, ou diferenciada. Finalizando, cabe destacar o interesse de se efetuar pesquisas em dados de outros atlas linguísticos referentes aos demais estados do Norte do Brasil, a exemplo do Atlas Linguístico de Rondônia (ALiRO), em desenvolvimento. 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALENCAR, Maria Silvana Militão de. Panorâmica dos estudos dialetais e geolinguísticos no Brasil. Revista de Letras - Vol. 30 - 1/4 - jan. 2010/dez. 2011. ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. Os estudos dialetais de geolingüísticos no Brasil. RRL, LIII1–2, p. 125–140, Bucuresti, 2008. 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O corpus consiste dos discursos dos referidos Presidentes, contidos no livro Discursos e Mensagens, de Glezer e Souza e Manifestos e Mensagens, de Pinto. A Semântica do Acontecimento, de Guimarães (2002), constituiu o embasamento teórico. Esta teoria considera que sentido da palavra não é fixo, tampouco se reduz a um conceito ou definição; ele se constrói no enunciado, no texto que integra, na relação entre o acontecimento em que funciona e sua memória de enunciações. Consideramos que a relação dos elementos linguísticos marcam operações enunciativas e colocam em relação o locutor com aquilo que ele fala. Utilizamos recortes dos discursos dos referidos presidentes escolhidos segundo o critério da presença da palavra cidadão e suas predicações bem como das predicações recebidas pelas palavras República, Concidadãos, Pátria, Nação e demais substantivos que designam coletivamente os cidadãos. Como resultados, tivemos: a co-ocorrência de ‘cidad~o(s)’ e a cognata ‘concidad~os’; ambas designando ora a coletividade dos brasileiros ora grupos e indivíduos. Elas concorrem com outras palavras, que tendem a designar o todo: ‘P|tria’, ‘Brasil’, ‘(todos os) brasileiros’, ‘povo (brasileiro)’. Juntos, esses nomes (e suas predicações) significam uma identidade nacional em construção, na qual o sentido jurídico-político de ‘cidad~o(s)/concidad~os’ fica enfraquecido. A palavra ‘República’, que predica indiretamente ‘cidad~o(s)’, reiterada v|rias vezes, tem o seu sentido jurídico-político diluído nas predicações que significam a instabilidade do regime que designa pela necessidade de defesa e manutenção, e, por outro lado, sua instabilidade em sentidos administrativos. PALAVRAS-CHAVE: cidadãos, concidadãos, República e civis. ABSTRACT: This is a paper of Scientific Initiation funded by CNPq. Founded on the Semantics of the Event, he seeks to understand the description of the word 'citizen' in enunciation of the first two presidents civilians from Brazil: Prudente de Moraes and Campos Sales. The aim is to understand the specificities of this fundamental word in Western modern Republics in enunciation of the Brazilian State, at this first moment of republican government democratically elected civilian. The corpus consists of 36 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 discourses of those Presidents, contained in Speeches and Messages, Glezer and Souza and Manifests and Messages, Pinto. The Semantics of the Event, Guimaraes (2002), formed the theoretical basis. This theory believes that sense of the word is not fixed, nor reduces to a concept or definition; it is built in, in the text that incorporates, in relation between the event in which it operates and its memory of enunciations. We believe that the relationship of linguistic elements mark operations proclamatory and put in relation with the speaker what he speaks. We used cutouts of discourses of those presidents chosen according to the criterion of the presence of the word 'citizen' and their predications as well as predications received by words Republic, fellow citizens, Homeland, Nation and other nouns that designate collectively the citizens. As results, we had: the co-occurrence of 'citizen(s)' and the cognate 'fellow'; both assigning or the collectivity of Brazilians or groups and individuals. They compete with other words, which tend to designate the whole: 'Homeland', 'Brazil', ' (all) Brazilians', 'people (Brazilian) '. Together, these names (and their predications) signify a national identity in construction, in which the legal sense-political 'citizen(s) /fellow citizens' is weakened. The word 'Republic', who preaches indirectly 'citizen(s) ', repeated several times, have your legal sense-diluted in political predications which signify the instability of the regime that designates the need for defense and maintenance, and, on the other hand, its instability in administrative directions. KEYWORDS: citizens, fellow citizens, Republic and civilians. 1 INTRODUÇÃO Segundo Guimarães (2002, p. 7), a posição do semanticista é um domínio de saber que inclui, no seu objeto, a consideração de que a linguagem fala de algo. Não há como pensar uma semântica linguística sem levar em conta que o que se diz é obrigatoriamente construído na linguagem. Assim, o real que a palavra cidadão significa é também construído pelas enunciações da palavra. Por isso, a Semântica do Acontecimento, que fundamentará a pesquisa ora proposta, assume que a análise do sentido da linguagem deve localizar-se no estudo da enunciação, do acontecimento do dizer. Nesta perspectiva, se considera que sentido da palavra não é fixo, tampouco se reduz a um conceito; ele se faz no enunciado, no texto que integra, pela relação que tem com o acontecimento em que funciona. Segundo Oliveira (2013), na Semântica do Acontecimento, O acontecimento é definido como “diferença na sua própria ordem” (Guimarães, 2002, p.12). A diferença na enunciação se faz a partir da temporalização: o acontecimento instaura uma temporalidade que não é cronológica, mas simbólica. Inscrito no interdiscurso, memória ideológica de sentidos15, o acontecimento enunciativo configura o seu presente pela rememoração de um passado de enunciações (os memoráveis), a partir dos quais projeta um futuro de interpretação. Este 15 A memória interdiscursiva ou interdiscurso é compreendida como o conjunto do dizível historicamente constituído, tal como a define a Análise do Discurso (AD) de linha francesa (Pêcheux, 1975; Orlandi, 1996). Esta memória se atualiza e se refaz na relaç~o entre discursos, entendidos como “efeitos de sentidos entre locutores”, produzidos na enunciaç~o (Orlandi, ibidem, p.38). 37 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 movimento é político. O político (ou a política) na enunciação é caracterizado “pela contradiç~o de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que n~o est~o incluídos” (GUIMARÃES, ibidem, p.16). Tomando o conceito de político de Guimarães, procuramos compreender de que modo por meio da enunciação de cidadão se afirma, na toma da palavra pelos dois primeiros presidentes civis da República brasileira, a relação entre governante e governados, e o pertencimento do governo ao regime republicano. Para responder a essas questões, investigaremos o que a palavra cidadão designa ao longo do corpus. A designação é entendida como a significação de um nome enquanto “uma relação linguística (simbólica) remetida ao real, exposta ao real, ou seja, enquanto uma relação tomada na história” (Guimar~es, 2002:9). N~o se trata, como afirmamos anteriormente, de um sentido fixo ou único, mas do modo como o presente do acontecimento trabalha sobre a latência de significação da palavra, repetindo e/ou deslocando sentidos e de que modo.s 2 METODOLOGIA Concebendo as enunciações dos presidentes como textos, seguiremos o procedimento de Oliveira (2013): observaremos a designação das palavras-objeto pela sua relação com outras palavras em dois procedimentos de textualidade: a reescritura e a articulação. A reescritura (c~o), conforme Guimar~es (2007, p. 84), “é o procedimento pelo qual a enunciação de um texto rediz insistentemente o que já foi dito, fazendo interpretar uma forma como diferente de si”.Ela é concebida nas relações intra e intertextuais, e é nesses dois movimentos que será levada em conta em nosso corpus. Por sua vez, a articulação diz respeito às relações de contiguidade locais que, não redizendo, afetam as expressões linguísticas no interior dos enunciados ou na relação entre eles (ibidem, p. 88). Estes dois procedimentos textuais – a reescritura e a articulação – nos permitem observar as determinações semânticas das palavras estudadas ao longo dos textos. Os recortes tirados dos discursos presidenciais proferidos nos respectivos mandatos, nos quais estão presentes as cenas enunciativas que serão analisadas, foram selecionados segundo o critério da presença da palavra cidadãos e suas derivadas (cidadãos e civis) bem como da palavra República e suas predicações, além daquelas que significam o coletivo de cidadãos, como Nação, Povo, Povo Brasileiro e, País ,com as respectivas predicações. Representaremos os Domínios Semânticos de Determinação (DSD) das palavras analisadas nos textos analisados. Tais determinações são instáveis, embora funcionem sob o efeito da estabilidade. As relações entre as palavras são escritas no DSD por meio de alguns sinais específicos, determinados por Guimar~es (2007): “├ ou ┤ou ┬ ou ┴ (que significam determina); — que significa sinonímia; e um traço como _______, dividindo um domínio, significa antonímia” (Guimar~es, 2007, p.81). O modo como a palavra aparece predicada/determinada nos movimentos textuais de retomada e de contiguidade nos permitirão chegar à sua designação, e responder as questões postas 38 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 acima, sobre o que a palavra significa no gesto de afirmação da relação entre governante e governados, e do pertencimento do governo ao regime republicano. Iremos também analisar o caráter personalista do discurso que é a representaç~o de um “eu” que atribui a si ou a “outrem” a responsabilidade pelo dizer. Através dessa an|lise nos ser| permitido dizer como o locutor se posiciona no discurso presidencial, mostrando a relação entre governantes e governados. Apresentamos, primeiramente, os recortes dos discursos de Prudente de Moraes, desde a posse até o de entrega do governo a Campos Sales e, posteriormente, os de Campos Sales, nos quatro anos de seu mandato. 3 ANÁLISE DOS RECORTES DOS DISCURSOS DE PRUDENTE DE MORAES E CAMPOS SALES. Selecionamos os recortes que contêm os exemplos mais ilustrativos dos discursos de um e outro presidente para a análise em questão. A - Designação da Palavra cidadão e derivadas no Discurso de Prudente de Moraes. a) Neste recorte, em seu discurso de posse na Presidência da República (1894), Prudente de Moraes dirige-se à Nação e ao Congresso Nacional. Aparecerão as palavras República, Concidadãos, Nação, que sofrem processos de reescrituração e de predicação, conferindo o sentido que a palavra cidadãos recebe no acontecimento da enunciação, por predicação indireta, pois a mesma não aparece no trecho em questão. “À Nação Brasileira Assumindo hoje a Presidência da República, obedeço à resolução da soberania nacional, solenemente enunciada pelo escrutínio de 1º de março. Aceitando este elevado cargo,que não pretendi por julgá-lo muito superior às minhas forças,especialmente na atual situação, submeto-me a imperioso dever patriótico, e não pouparei esforços nem sacrifícios para corresponder à extraordinária prova de confiança de meus concidadãos, manifestada de modo inequívoco no pleito eleitoral mais notável da vida nacional. Cumpre-me neste momento, manifestar à nação quais os princípios e normas que me guiarão no desempenho de honrosa, mas difícil missão que me foi imposta. O lustro da existência, que hoje completa a República brasileira, tem sido de lutas quase permanentes com adversários de toda espécie, que tem tentado destruí-la, empregando para isso todos os meios (...)”. (MORAES, P. Discursos e Mensagens-Discurso de Posse na Presidência da República, em 15 de novembro de 1894,p.109). Neste primeiro recorte, analisamos a primeira cena enunciativa, na qual o Locutor, ocupando o lugar social de Locutor- presidente, dirige-se à Nação brasileira. O prefixo con confere ao radical um sentido de pertencimento a um grupo de iguais, pois o locutor- Presidente , no acontecimento da enunciação, através do emprego de concidadãos, também se mostra como um cidadão. Além disso, o determinante meus, 39 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 aqui, não recebendo um sentido de posse, mas de igualdade, fortalece esse sentido aproximativo. Nota-se, portanto, uma aproximação do Locutor com seu interlocutor. Por outro lado, concidadãos é, também, uma reescritura de Nação Brasileira, da qual o Locutor mostra um certo distanciamento, promovendo uma divisão entre ele, locutor-Presidente da República e os outros cidadãos, a Nação Brasileira, mostrando ser ele um tipo específico de cidadão. A palavra República aparece predicada por brasileira e por de lutas quase permanentes com adversários de toda espécie, que tem tentado destruí-la, empregando para isso todos os meios, conferindo um sentido específico ao de regime de governo, qualificando-a como uma República difícil de manter estável. O caráter personalista do locutor-presidente faz com que o presidente, para falar da República, fale de si mesmo, como centro dos acontecimentos narrados. Neste recorte, o “eu” atribui a si muitos esforços para a manutenç~o do regime em quest~o, a República. Essa característica do seu discurso pode ser muito bem visualizada no trecho que se segue: (...) Aceitando este elevado cargo, que não pretendi por julgá-lo muito superior às minhas forças, especialmente na atual situação, submeto-me a imperioso dever patriótico, e não pouparei esforços nem sacrifícios para corresponder à extraordinária prova de confiança de meus concidadãos(...). Como resultado, neste recorte, temos que a ocorrência de concidadãos ora designa a igualdade entre governante e governados ora essa palavra concorre com outras palavras, que tendem a designar o todo, ou seja, o conjunto de cidad~os: ‘Naç~o’, ‘Naç~o Brasileira’. Juntos, esses nomes (e suas predicações) significam o anseio por um regime republicano, algo desejado por governantes e governados e uma identidade nacional em construção, na qual o sentido jurídico-político de concidadãos fica enfraquecido. A palavra ‘República’, que predica indiretamente ‘concidad~o(s)’, reiterada várias vezes, tem o seu sentido jurídico-político diluído nas predicações que significam a instabilidade do regime que designa pela necessidade de defesa e manutenção, e sua instabilidade. Pela importância que a palavra concidadãos assume no acontecimento da enunciação, com suas reescrituras e predicações, podemos expressar estas relações através do Domínio Semântico de Determinação (DSD). O DSD para concidadãos seria: Nação ┤ República Brasileira ┴ Concidadãos ├ Nação Brasileira A palavra cidadãos, embora não apareça no recorte selecionado, aparece no texto como um todo e, predicada indiretamente, por Concidadãos, Nação Brasileira, Nação e República designa, por um lado, aqueles que queriam a República, os que apoiavam o Presidente e, por outro, um tipo particular de cidadão “Presidente da República”, que se dirige à Nação, os outros cidadãos, mostrando ser ele um cidadão em particular. O DSD para ela é: 40 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Nação Brasileira ┴ Cidadãos ├ ┬ Concidadãos Nação ____________________________________________________________________________ Presidente da República ┤ Cidadão b) Neste segundo recorte, também, na posse de Prudente de Moraes (1894), dirigindo-se ao Congresso Nacional, aparecerão as palavras Nação e concidadãos, que recebendo as predicações e sofrendo os processos de reescrituração contribuem para a designação de cidadãos. (…) Conheço e avalio bem os grandes embaraços e dificuldades de toda ordem com que terei de lutar no desempenho de minha árdua missãodesanimaria, se não me sentisse apoiado pela nação e se não contasse com a cooperação patriótica de cidadãos dos mais ilustrados e competentes(...) (MORAES, P. Discursos e Mensagens-Discurso de Posse na Presidência da República. p.111) Percebemos novamente, nesse recorte, o caráter personalista do discurso de Prudente de Moraes, que produz um eu que atribui a si a avaliação das dificuldades de seu governo. Este modo de dizer a República e os cidadãos por meio de auto-referências é bastante característico dos dois presidentes, como veremos. No trecho acima, a palavra cidadãos reescreve nação e forma o sintagma cidadãos dos mais ilustrados e competentes, que por sua vez também qualifica cidadãos. Portanto, esse recorte apresenta um determinado grupo de cidadãos como aqueles que o apoiavam, que eram os patriotas, dos mais ilustrados e competentes, sem os quais, segundo ele, desanimaria. A palavra Nação, por outro lado, predica cidadãos em sua totalidade. Para a palavra “cidad~os” temos o seguinte DSD: Nação ┤ cidadãos ├ dos mais ilustrados e competentes c) No terceiro recorte selecionado, também em sua posse à Presidência da República (1894), aparecerão as palavras concidadãos e Nação que recebem predicações que mostram os movimentos de sentido de designação de cidadãos. Senhores membros do Congresso Nacional (...) (…) A 15 de novembro de 1894, ao tomar posse do elevado cargo, que me foi confiado pelo sufrágio espontâneo de meus concidadãos, afirmei em manifesto dirigido à Nação, que no desempenho de tão honrosa quanto difícil missão que me fora imposta, obedeceria aos princípios e normas seguintes: (...) 41 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 ( MORAES, P. Discursos e Mensagens-Mensagem apresentada ao Congresso Nacional em 3 de maio de 1897. p155). O locutor-presidente dirige-se aos membros do Congresso Nacional, dizendo-se fiel às promessas feitas àqueles que demonstraram confiança nele, ou seja, seus concidadãos. Ao dirigir-se aos seus concidadãos, além de se dirigir aos membros do Congresso Nacional, o locutor dirige-se também a todos aqueles que o elegeram, à Nação como um todo, reescrevendo concidadãos, por substituição, através de Nação. Nação, Membros do Congresso Nacional e Concidadãos são, portanto, reescrituras de cidadãos. A palavra cidadãos, não aparece no recorte, mas apresenta-se algumas vezes no texto, e predicada indiretamente pelos substantivos coletivos Membros do Congresso Nacional, Nação e por Concidadãos, confere a cidadãos o sentido daqueles que apoiaram o Presidente da República , que o escolheram livremente. d) No quarto recorte Prudente de Moraes dirige-se ao Congresso Nacional (1898), sobre o “incidente” da morte do general Carlos Machado Bittencourt. Aparece a palavra cidadão, que ao mostrar-se predicada e reescriturada, vai receber, por esses movimentos, sua predicação. (...) Travou-se então rápido e terrível conflito, que terminou com a prisão do agressor;mas infelizmente, desse conflito saíram feridos:-mortalmente o Ministro da Guerra, que expirou momentos depois, e o chefe da casa militar com largo ferimento no baixo ventre. Enquanto se passava esta cena rápida e sanguinolenta, fui cercado por pessoas da minha comitiva e por grande número de cidadãos e oficiais do Exército, que me rodearam para impedir que o assassino realizasse seu intento; afastaram-me do lugar e levaram-me até o portão do Arsenal, onde tomei o carro, que me conduziu ao pal|cio, sem ter recebido ofensa física(...)” (MORAES, P. Discursos e Mensagens-Mensagem apresentada ao Congresso Nacional em 3 de maio de 1898. P. 181) A palavra cidadãos, no trecho acima, aparece em oposição a pessoas da minha comitiva e a oficiais do Exército. O Locutor, ocupando o lugar social de locutorpresidente, opondo cidadãos como a oficiais do exército e a pessoas de minha comitiva, significa cidadãos como civis. O DSD para a palavra cidadãos é: Cidadãos ├ (civis) __________________________________________________ Aqueles que não são da comitiva Aqueles que não são oficiais do Exército e) Este quinto recorte foi extraído da mensagem de Prudente de Moraes ao Congresso Nacional, quando rende homenagens ao Marechal Carlos Machado Bittencourt, assassinado em ato de defesa do presidente. Ele vai mostrar as palavras Concidadãos, Nação, Governo e República, que conferem a a cidadãos, indiretamente, sua designação. 42 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 “(…) O Governo, querendo prestar, em nome da Nação, pública homenagem de reconhecimento à memória do Marechal Carlos Machado Bittencourt, que, depois de haver prestado constantes e relevantes serviços à sua Pátria, encerrou sua grande e gloriosa carreira militar, legando a seus concidadãos um extraordinário exemplo de dedicação e lealdade a ponto de sacrificar a própria vida em defesa do Chefe do Estado, resolveu que seus funerais fossem feitos à custa da República (...)”. (MORAES, P. Discursos e Mensagens-Mensagem apresentada ao Congresso Nacional em 3 de maio de 1898. P.182) A palavra Concidadãos reescreve Nação, estando ambas distintas de governo, estando estas três relacionadas a Pátria, à qual o Marechal teria prestado serviços. O Marechal é incluído nos concidadãos, produzindo uma inclusão dos militares entre eles. Este sentido é dado pelo enunciado “ (….) depois de haver prestado constantes e relevantes serviços à sua Pátria, encerrou sua grande e gloriosa carreira militar, legando a seus concidadãos um extraordinário exemplo de dedicação e lealdade ( ...)” f) O recorte da mensagem do presidente Prudente de Moraes ao Congresso Nacional, item “Água”, fala a respeito dos problemas sanit|rios do Rio de Janeiro, em 1898 e mostra as palavras cidade e população, apresenta as palavras cidade e população. “(...) O serviço de abastecimento d'|gua { Capital Federal continua nas mesmas condições desfavoráveis em que tem estado desde muitos anos. Os mananciais têm sofrido grande redução no volume de suas águas; por outro lado, desenvolve-se a cidade e as necessidades da população têm crescido sensivelmente (...).” (MORAES, P. Discursos e Mensagens-Mensagem apresentada ao Congresso Nacional em 3 de maio de 1898. P 201) O locutor-presidente refere-se à cidade e às necessidades da população. Cidade e população remetem ao que é urbano, à concentração de pessoas, e isso é confirmado pela presença da palavra população, que também designa quantidade, concentração de pessoas, pois o locutor refere-se ao seu crescimento, sobretudo nas periferias. População é uma palavra administrativa (e não política) que reescreve cidadãos. Sendo assim, temos que: cidade ┤ população ├ conjunto de pessoas aglomeradas g)- Este recorte apresenta o presidente Prudente de Moraes dirigindo-se ao Presidente Campos Sales, declara o Estado de Sítio que se encontrava o país em 1898, devido a vários incidentes, inclusive , do assassinato do Marechal Bittencourt. (...) Rendendo a devida homenagem à heroica vítima do dever, o Governo, em nome do povo brasileiro, Marechal sobre uma coluna de granito- o que foi feito no Arsenal da Marinha desta Capital- a fim de ser 43 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 inaugurado no primeiro aniversário do lutuoso acontecimento e no próprio local em que se perdeu a vida aquele servidor da Pátria- uma das glórias do Exército Nacional, pelos seus valiosíssimos serviços, tanto na paz como na guerra, e que, ao terminar sua útil existência, ainda legou a seus concidadãos um raro exemplo de civismo e de fraternidade humana.(...)” (MORAES, P. Manifestos e Mensagens-. Mensagem de Prudente de Moraes ao Presidente Campos Sales, em 15 de novembro de 1898, p.274) Neste recorte, a palavra concidadãos, que se refere aos concidadãos do Marechal, reescritura povo brasileiro, em nome do qual fala o presidente, em uma de porta-voz, pela qual se distingue do povo, como seu representante. O DSD para a palavra concidadãos, aqui neste enunciado, torna-se significativo, pois recebe a predicação indireta de várias palavras que designam o coletivo de cidadãos. Pátria ┤ Concidadãos ├ povo brasileiro No DSD acima, concidadãos é determinado por Pátria e Povo Brasileiro. h)- Neste recorte do discurso de Prudente de Moraes, dirigido ao seu sucessor na Presidência da República, Presidente Campos Sales, sobre o Clube Militar, observamos a presença das palavras cidadãos e sua cognata civis. (...) Que o clube fora mandado fechar até segunda ordem, mas que esta segunda ordem só poderia ter sido expedida dentro do estado de sítio depois dele, tal ordem seria ociosa porque pelo artigo 72 da Constituição Federal é garantido a todos o direito de associação, e nem poderia ela ter lugar, porquanto o clube, que é composto de oficiais do Exército e da Marinha, de civis com honras militares ou postos na Guarda Nacional, não é subordinado ao Ministro da Guerra. Que foi, pois, escudado na Constituição, que o presidente do clube fez a convocação a fim de eleger os cidadãos que deviam preencher os cargos vagos na diretoria (...)”. (MORAES, P. Manifestos e Mensagens-. Mensagem de Prudente de Moraes ao Presidente Campos Sales, em 15 de novembro de 1898, p.275) Neste recorte, a palavra cidadãos aparece pela primeira vez e vem predicada e reescriturada por aqueles que deveriam preencher os cargos vagos na diretoria. A palavra civis traz uma especificação: com honras militares. Aparece em referência a sócios do Clube Militar, em oposição a oficiais no enunciado: (...) Oficiais do Exército e da Marinha, de civis com honras militares ou postos na Guarda Nacional(...). Cidadãos reescritura as duas expressões. 44 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 oficiais ┤ Cidadãos ├ civis com honras militares i)- No recorte em questão, Prudente de Moraes dirige-se ao seu sucessor na Presidência da República, Campos Sales, mostrando a relação do seu governo com os estados. Nele, aparece a palavra cidadão, predicada por brasileiro. (...) A 12 de julho de 1895, o general de divisão Inocêncio Galvão de Queiroz, comandante e chefe das forças em operações no Estado do Rio Grande do Sul, enviou-me a ata da conferência celebrada a10 do mês em Piratini, com o general honorário João Nunes da Silva Tavares, chefe dos revolucionários as contra o governo daquele Estado. Constava, desse documento que os revolucionários estavam prontos a depor as armas perante o governo da União, mediante as seguintes condições: 1º, garantia da efetiva posse dos direitos que a Constituição confere a todo cidadão brasileiro. (MORAES, P. Manifestos e Mensagens-. Mensagem de Prudente de Moraes ao Presidente Campos Sales, em 15 de novembro de 1898, p. 278) O locutor-presidente dirige-se neste recorte ao seu sucessor na presidência. A palavra cidadão aparece predicada por todo e brasileiro. A palavra se refere assim à coletividade dos sujeitos na relação com o Estado, e vem especificada pelo seu caráter nacional. O enunciado: garantia da efetiva posse dos direitos que a Constituição confere a todo cidadão brasileiro (…) afirma o caráter jurídico da condição de cidadão, atribuído pela Constituição Federal. Ao mesmo tempo, ao afirmar a necessidade de garantir tais direitos, indica ainda a instabilidade da República. Eis o DSD de cidadão: brasileiro ┤ cidadão ├ aqueles que possuem direitos j) Neste recorte em que aparece a palavra cidadãos, o Presidente Prudente de Moraes dirige-se a Campos Sales sobre aspectos da economia do país. (…) O congresso havia determinado na lei n. 428 de 10 de dezembro de 1896,art. 7º, a nomeação de uma comissão, constituída por empregados de fazenda, negociantes e industriais, para proceder à revisão detalhada e completa da atual tarifa. O Governo, em execução do pensamento do legislador, conseguiu no ano passado organizar esse trabalho de revisão, por intermédio de uma comissão de cidadãos de reconhecida competência , o qual, apresentado ao Congresso, foi incluído na lei n.489 de 1897, com as modificações constantes do artigo 1º. Estas modificações determinam a necessidade de redigir as novas tarifas de acordo com as resoluções legislativas(...)”. (MORAES, P. Manifestos e Mensagens-. Mensagem de Prudente de Moraes ao Presidente Campos Sales, em 15 de novembro de 1898.p.307) 45 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 O caráter personalista permite mostrar um eu que atribui ao Governo e ao Congresso a nomeação de uma comissão destinada a fazer a revisão, apresentação, inclusão e modificações na lei em questão. Na express~o “comiss~o, constituída por empregados da fazenda, negociantes e industriais” temos uma reescrituraç~o por expans~o de comissão, pois, o enunciador descreve de que é constituída a comissão, especificando quais são seus integrantes: os empregados da fazenda, os negociantes e os industriais. A expressão cidadãos de reconhecida competência também reescreve comissão por expansão. O sintagma de reconhecida competência predica a palavra cidadãos e assume, no acontecimento da enunciação, a significação de que somente alguns cidadãos são de reconhecida competência e são os que fazem parte da comissão. O DSD de cidadãos aqui é: Empregados, da fazenda negociantes e industriais ┤ cidadãos ├ de reconhecida competência Segundo o DSD acima, cidadãos é determinada por empregados da fazenda, negociantes e industriais e de reconhecida competência. k)- Este recorte foi selecionado pelas predicações recebidas pela Palavra República, que indiretamente predicarão cidadãos, embora esta última e seus derivados não apareçam. Nele, Prudente de Moraes apresenta-se concluindo aspectos referentes seu mandato. “(...) Fui, desde o princípio do meu governo, dominado pela ideia de extinguir as lutas que nos dilaceravam, fazendo uma política de paz e de congraçamento, dentro da qual pudessem viver com honra e encontrar garantias todos os brasileiros. Os movimentos armados, tão contrários à índole e ao temperamento nacional, tinham-se repetido, dividindo-nos em facções hostis, enfraquecendo os princípios de ordem, gerando suspeitas sobre a tendência de predomínio que atribuía às classes armadas e criando ódios que podiam provocar divergências muito profundas e que seriam de graves consequências para a integridade da República.(...)” (MORAES, P. Manifestos e Mensagens-.Mensagem de Prudente de Moraes ao Presidente Campos Sales, em 15 de novembro de 1898, p.315) O locutor-presidente, no acontecimento da enunciação, refere-se a brasileiros aos quais ele sugere querer dar honras e garantias através das ações do seu governo. A palavra brasileiros aparece predicada por todos e refere ao conjunto da nação; ela se opõe a “movimentos armados”. Os sujeitos s~o predicados em relaç~o ao Estado pela nacionalidade, e mais uma vez, não por qualquer participação política. l)- Neste recorte, selecionado pela presença abundante de palavras que predicam indiretamente cidadãos, como civis, concidadãos e República, Nação, país, Prudente de Moraes conclui as ações de seu mandato. 46 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 “(...) Est|, portanto, consolidado o governo civil da República e sente-se que todos anseiam pelo desenvolvimento das forças da Nação, que uma série de desastres havia atrofiado. Firma-se o crédito público. Com o acordo de 15 de junho foi encontrada, já o dissestes, a chave para a solução da crise financeira. No exterior melhora a cotação dos nossos títulos; no país, a taxa cambial ascendente denuncia o renascimento da confiança.No momento de findar o mandato com que fui honrado pela confiança dos meus concidadãos, afirmo à República que procurei zelar da verdade constitucional, inspirando-me na lição dos grandes mestres como na experiência dos povos que se regem pela mesma forma de governo. (MORAES, P. Manifestos e Mensagens-. Mensagem de Prudente de Moraes ao Presidente Campos Sales, em 15 de novembro de 1898.p.316) A palavra civil aparece predicando governo, e, por sua vez, governo civil aparece predicando República, sinalizando um momento outro para a o regime, não mais liderado por militares. A palavra concidadãos reescritura, por substituição, Nação, País e todos. Elas referem à coletividade da nação. B- Designação da Palavra cidadão e derivadas no Discurso de Campos Sales. a)- O primeiro recorte em análise é parte do discurso do Presidente Campos Sales em seu Manifesto Inaugural, e nele observaremos a presença das palavras concidadãos, Nação, eleitorado brasileiro, voto popular e República. “(…) À Nação. Ao assumir o governo da República, cheio de confiança nos poderosos elementos de vitalidade nacional e seguro da dedicação patriótica dos meus concidadãos, cumpre-me expor à Nação, com sinceridade e clareza, todo o meu pensamento na direção dos seus altos destinos. Em presença das urnas, quando o eleitorado brasileiro precisava conhecer para escolher, falei a linguagem franca e leal, que me ditava a cosnciência e me aconselhava o patriotismo. Investido de poder, venho trazer ao paiz sobre o império dos mesmos sentimentos, a ratificação solemne de todos os meus compromissos. Elevado a este posto de honrosa confiança e de incomensurável responsabilidade, apraz-me, acreditar que, o que pretendeu o voto popular, nos comícios de 1º de março, foi collocar no governo da República o espírito republicano, na sua acentuada significação(...)” (Manifestos e Mensagens- Campos Sales, Manifesto Inaugural, 1889, p. 39) Ao analisarmos o recorte acima, do discurso de posse presidencial de Campos Sales, percebemos o caráter personalista já presente na enunciação de seu antecessor. A palavra Nação aparece reescriturada por substituição por concidadãos, eleitorado brasileiro e por repetição, no primeiro parágrafo, por Nação. Vemos o quanto outras palavras se relacionam com cidadão(s) e suas cognatas, direcionando seus sentidos para uma memória nacionalista e patriótica, e na qual a responsabilidade do cidadão se restringe ao voto. 47 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 No primeiro parágrafo, na palavra concidadãos, o prefixo con confere um sentido de pertencimento a um conjunto de iguais e, juntamente com o pronome possessivo meus, de aproximação do Locutor com seu interlocutor. Se por um lado o prefixo con possibilita que ele, o locutor-presidente, seja também um cidadão, por outro, o caráter personalista da enunciação o distingue dos seus concidadãos. A palavra concidadãos tem a seguinte determinação: Nação ┴ República ┤ Concidadãos ├ Eleitorado Brasileiro No DSD acima, concidadãos é determinado por República, Eleitorado Brasileiro, Nação e Voto Popular. b)- Neste recorte, mostramos mais um pouco do discurso presidencial de Campos Sales dirigindo-se ao Congresso Nacional. Nele aparecem em negrito as palavras República e concidadãos. Senhores Membros do Congresso Nacional (…) Chamado a presidir os destinos da República pelo sufrágio nacional, apraz-me recordar em nossa presença que, em documento político que antecedeu a eleição de 1º de março de 1898, e que tinha fim especial de esclarecer a situação eleitoral, procurei desempenhar-me deste dever de lealdade para com os membros concidadãos, iniciando essa prática, da essência da electividade e ao mesmo tempo indispensável como meio de intervir com efficacia no preparo da opini~o(...)” (Manifestos e Mensagens, Campos Sales. Mensagem apresentada na 3ª sessão da terceira legislatura- 3 de maio de 1899. P.61) A palavra concidadãos reescritura “Membros do Congresso Nacional” por substituição. Temos, assim, um recorte sobre a coletividade da nação. A palavra República aparece no sintagma os destinos da República, que indica um sentido de instabilidade de regime, que dependeria do seu gestor para permanecer inabalável. Concidadãos designa, portanto, no acontecimento da enunciação, o sentido daqueles que cuidam dos destinos da República. c)- Neste recorte, o presidente Campos Sales, em mensagem ao Congresso Nacional, presta contas das ações do seu governo no discurso do último ano de seu mandato. Nele, aparecerão as palavras República, concidadãos, povo brasileiro, importantes na predicação indireta de cidadãos e sua designação. (...) Releva ponderar que não foi, infelizmente senão vencendo graves obstáculos que o meu governo poude chegar aos resultados que ahi deixo consignados. Em diversos momentos as difficuldades aggravaram48 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 se profundamente pela intercurrencia de acontecimentos, cujos effeitos perderam ainda em parte. Sobrevieram os terriveis flagellos da seca, no Estado do Ceará, e da peste bubônica na Capital da República e outros pontos, a crise bancária resultante da suspensão de pagamentos do Banco da República, e como o mais energico fator da crise economica, a considerável e súbita baixa de preço dos principaes productos nacionaes. Foi atravez de taes accidentes, que me coube dirigir a ação governativa. Bem pode isto ser-me levado em conta pelo que tenha deixado de fazer. Ahi está, entretanto, a minha obra no governo da República. Entrego-a de animo sereno e na paz de uma consciência altiva ao julgamento dos meus concidadãos. Devo-a, principalmente, ao patriotismo do povo brasileiro, ao esforço e à lealdade com que fui secundado pelos meus ministros, aos quaes, é com verdadeira satisfação que o declaro, reservei maior amplitude em suas respectivas espheras de acção(...). (Manifestos e Mensagens- Campos Sales- Terceira sessão da quarta legislatura de 3 de maio de 1902, p. 231-232) Observamos, neste recorte, mais uma vez, o caráter personalista, pelo qual o Locutor atribui ao seu governo as ações e obras realizadas. No discurso de Campos Sales, presente neste recorte, podemos perceber que a palavra concidadãos é reescriurada, por substituição, através de povo brasileiro, o que predica os sujeitos na relação com o Estado, produzindo um sentidos de identidade nacional. Chama a atenção, com relação à palavra República, sua reiteração nos sintagmas Capital da República, Banco da República e governo da República. Esta palavra, diferentemente de cidadão(s) que vai perdendo espaço para concorrentes cognatas e não-cognatas, vai aparecendo cada vez mais. d)- Neste recorte, o presidente Campos Sales, em seu discurso ao Congresso Nacional, no final do seu mandato, refere-se às questões do território brasileiro no seu governo. Nele, aparecerá em destaque a palavra cidadãos. (...) Por contrato, firmado em Londres com um syndicato estrangeiro, approvado com poucas modificações pelo Congresso Nacional e promulgado pelo Poder Executivo, confia ao governo boliviano a administração do território do Acre, pelo prazo prorrogável de sessenta anos, à companhia que o mesmo syndicato organizar e que será considerada administrador fiscal (...). (…) Nesta nota, de 14 de abril ultimo, fez o governo brasileiro a seguinte declaração: O arrendamento do territorio do Acre, objecto ainda de contenda com outra nação americana e dependente em todas as suas relações do Brasil , não interessa somente à economia da Bolivia(...). (...) Fazendo esta declaração o governo brasileiro mostra o empenho que tem em manter com firmeza a legitimidade dos seus direitos, em garantir a propriedade de cidadãos brasileiros e em sustentar nesta parte do nosso continente a unica politica digna dos elevados destinos(...). 49 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 (Manifestos e Mensagens- Campos Sales -.Terceira sessão da quarta legislatura de 3 de maio de 1902, p. 234) Neste recorte, a palavra brasileiros aparece como adjetivo, predicando cidadãos e governo, o que reitera o sentido nacionalista dos modos de dizer os sujeitos na relação com o Estado. 4 DISCUSSÃO E CONCLUSÃO Diante das análises realizadas à luz da Semântica do Acontecimento de Eduardo Guimarães, podemos dizer que, quanto ao critério do caráter personalista, no discurso de Prudente de Moraes, há um maior número de recortes onde se verifica a produção de um eu que atribui a si as ações do governo. Porém também encontramos um eu que atribui a outrem (governo, congresso, indefinido) as ações em questão. Já no discurso de Campos Sales, há um predomínio da produção de um eu que atribui a si as ações em questão, com pouquíssimos casos de atribuição a outrem. O caráter personalista das enunciações dos dois presidentes indica que a República vai sendo significada como obra de alguns, e não da coletividade dos cidadãos. Os presidentes, ao falar de si para dizer a República, se colocam com os principais personagens do processo de construção do novo regime, e apagam o próprio processo histórico ao subordiná-lo às suas ações e nada mais. Aos cidadãos cabe o voto, o sufrágio, que marca a passagem dos governos militares de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto para os civis. Nos recortes selecionados dos dois primeiros presidentes civis, pode-se perceber a presença das palavras cidadãos e concidadãos, com predomínio desta última. Ambas as palavras referem à coletividade da nação, como também a setores da população: os que apoiavam a república, patriotas, aqueles que apoiavam o presidente, aqueles que não são civis, aqueles que habitavam a cidade e os que possuíam direitos, entre outros. Pudemos observar ainda, a concorrência de palavras como povo, brasileiros, nação para referir aos sujeitos na sua relação com o Estado, em detrimento das palavras políticas republicanas. Como efeito, vai-se construindo uma identidade de desigualdade política dos sujeitos em relação ao Estado, que os representa e é ator principal da história da República em nome deles, ficando a participação do coletivo ou restrita ao voto, com a censura de outros modos de participação, como a luta armada e os protestos, ou relegada a setores específicos da sociedade. Cidadão, como palavra da República, se dilui em meio a um conjunto de outras palavras que produzem uma identidade antes de pertencimento nacional do que de participação política. A palavra República, por sua vez, toma a frente, sendo dita e redita, e se construindo a partir da relação com esses modos discrepantes de dizer o governo e os cidadãos. REFERÊNCIAS GLEZER, R.; SOUZA, J. S. Prudente de Moraes-Discursos e Mensagens- Museu da USP, S. P p. 107-316. 50 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento. Campinas: Pontes Editores, 2002. GUIMARÃES, E. Domínio Semântico de determinação. In: Guimarães, E.; Mollica, M. C. (orgs.). A palavra: forma e sentido. Campinas, SP: Pontes Editores, 2007. GUIMARÃES, E. A Enumeração: funcionamento enunciativo e sentido. Cad. Est. Ling, v 51, n.1, p.49-68, 2009. GUIMARÃES, E. Análise de texto: procedimentos, análises, ensino. Campinas: Editora RG, 2011. GUIMARÃES, E. A Enumeração, Funcionamento Enunciativo e Sentido. Unicamp, Cad. Est. Ling., Campínas , 51(1): 49-68, Jan/ Jun.2009. GUIMARÃES, E. Palavras Próprias e Alheias -Unicamp- Campinas –SP. GUIMARÃES, E. 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Isso é facilmente encontrável nos Manuais de Redação, como o da Presidência da República (2002) e o do Governo do Estado do Piauí (2006), que longe de oferecer ao usuário do gênero orientações de como produzir um ofício, de modo que possa atender à necessidade comunicacional da empresa emissora do gênero, de modo que possa obter aquilo que objetiva do destinatário do gênero, apenas lhe enumera regras de como escrever um bom texto sem orientá-lo das especificidades e funcionalidades de cada regra que aparece no texto. Uma categoria que poderia ajudar esse usuário na produção de exemplares do gênero é o de propósito comunicativo, que corresponde às finalidades pelo qual uma pessoa escolhe um gênero e não outro(s). Neste trabalho, montamos um corpus de 30 ofícios e elencamos os propósitos comunicativos mais recorrentes desse gênero. Para atingir esse fim, utilizamos como aporte teórico as teorias de Askehave e Swales (2009) e Alves Filho (2011) sobre propósito comunicativo. PALAVRAS-CHAVE: Gênero. Ofício. Propósito comunicativo. INTRODUÇÃO O ofício é um gênero que possui uma longa tradição retórica. Caracterizado como um texto pertencente à esfera da burocracia, o ofício ainda é bastante utilizado em instituições públicas e/ou privadas para estabelecer a comunicação entre empresas ou entre empresas e pessoas físicas. Esse gênero, assim como outros gêneros da esfera burocrática, reflete as especificidades da esfera comunicativa em que está circunscrita e, talvez, por esse motivo, ainda seja tão amplamente utilizado, diferentemente de alguns gêneros que foram substituídos por outros com o advento de novas tecnologias. O fax, que foi substituído pelo e-mail, é um exemplo. Nosso objetivo neste trabalho é descobrir o papel social que exerce esse gênero. Para isso, montamos um corpus contendo 30 ofícios reais da Secretária de Administração do Estado do Piauí. Ao final do relatório, constatamos que os ofícios atendem a uma gama de propósitos comunicativos. Diferentemente dos Manuais de Redação, Manual da Presidência da República (2002) e do Manual do Governo do Estado do Piauí (2006), que definem o ofício como um gênero que possui apenas como finalidade “estabelecer a comunicaç~o entre instituições públicas”, encontramos alguns outros, dependendo da sua finalidade comunicativa. 16 Aluno graduando do curso de Licenciatura Plena em Letras Português na UFPI. E-mail: [email protected]. Bolsista PIBIC/CNPq. 52 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 O conceito, as características, a finalidade e os modelos de produção do gênero ofício são facilmente encontrados nos manuais oficiais de redação. No entanto, grande parte dos manuais orienta o usuário do gênero apenas no sentido de produzir um texto, sem levar em conta a função sociorretórica do ofício. O que encontramos nos manuais foi um conceito muito superficial do gênero, a didatização das normas diagramacionais para a produção do ofício e modelos que serviam como orientação. Tal perspectiva adotada pelos manuais de redação é insuficiente para uma compreensão satisfatória sobre o ofício, pois tal perspectiva deixa de entrever o papel social do gênero dentro da sua esfera comunicativa, e pode levar os usuários do ofício a uma compreensão um tanto vazia sobre esse gênero. Contrária a essa perspectiva é a de Silveira (2002, p. 107), que apresenta um conceito sobre o ofício que abrange o seu papel sócio-retórico: Ofício é um tipo de correspondência oficial que se presta a vários propósitos comunicativos, os quais estão geralmente circunscritos a ações corriqueiras na administração pública, visando à comunicação e ao intercâmbio entre instituições públicas e também entre estas e as instituições privadas. (...) Obviamente, a diversidade de propósitos confere uma certa heterogeneidade aos ofícios, mas, ainda assim, o caráter institucional das audiências, o formato, a formalidade da linguagem, o tratamento retórico, a estrutura textual-discursiva e as expressões formulaicas resguardam a sua identidade como gênero exclusivo da burocracia administrativa. A autora apresenta acima uma perspectiva acerca do ofício que atenta para os seus aspectos sociais de significado, produção e interpretação por parte dos seus usuários, os retores do gênero. Segundo a autora, o ofício atende a uma gama de propósitos comunicativos voltados a ações corriqueiras da sua esfera comunicativa. Além disso, os ofícios apresentam certa heterogeneidade mediante seu propósito comunicativo e resguardam traços da sua esfera comunicativa específica. Trabalharemos no decorrer deste trabalho com esta perspectiva sócio-retórica de gênero adotada por Silveira (2012). Além da autora, autores como Alves Filho (2011), Askehave e Swales (2009). GÊNERO Segundo Alves Filho (2011, p. 20), “os gêneros s~o como os grupos sociais e os seres humanos que os usam: mutáveis, variáveis, dinâmicos, às vezes até mesmo contraditórios”. Esta proposiç~o é, sem dúvida, muito rica e colaborativa, pois entende gênero não só nos seus aspectos fixos (como a maioria dos livros didáticos faz), mas também nos aspectos dinâmicos, ambos atrelados entre si e mantendo uma relação direta com a sociedade. Esta assertiva corrobora com os estudos de Bakhtin (2003) e Miller (2009), que ponderam o “papel responsivo” do gênero ante as necessidades específicas dos indivíduos na esfera social à qual fazem parte (proposta esta que traz luz a uma característica do gênero muitas vezes despercebida por seus usuários: a função específica do gênero de atender aos anseios sociais). Mas a que corresponde o “papel responsivo” do gênero? Da alcunha de Bakhtin (2003), o “papel responsivo” corresponde { atitude do indivíduo de responder aos 53 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 enunciados envoltos, ou seja, de atender às necessidades da esfera social em que se encontra através dos gêneros, dado que a relação entre indivíduos dentro das esferas sociais e das comunidades discursivas acontece através do uso da linguagem, de enunciados, dos gêneros. Para atender às exigências da esfera, os sujeitos discursivos utilizam-se dos enunciados que correspondem àquilo que lhes é exigido. Importante ressaltar que o uso desses enunciados não se dá a esmo ou simplesmente seguindo uma convenção, mas agrega função, finalidade e intencionalidade dos sujeitos discursivos, o que garante ao enunciado um uso cada vez mais recorrente a ponto de assumir traços de “relativa” estabilidade. Bakhtin (2003, p. 261-262) diz: O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo de linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. Vemos que Bakhtin (2003) atrela o enunciado ao campo de atividade humana, diferindo das perspectivas que não concebem ao gênero um inequívoco papel social. Ainda, segundo o excerto, “esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo”. Com essa assertiva, Bakhtin rompe com a concepção do gênero como forma destituída de contexto e de papel social. Ainda no excerto, vemos que Bakhtin (2003) entende o gênero como algo composto por três elementos constituidores: conteúdo temático, construção composicional e estilo de linguagem. Para o teórico, a relativa estabilidade do gênero no enunciado (a que ele chama no final do excerto de gênero do discurso) resulta da recorrência e junção desses três elementos. Corrobora com esta proposição Miller (2009), quando defende que a estabilidade do gênero ocorre consoante o uso recorrente de elementos retóricos utilizados pelos usuários do gênero em situações análogas, ou seja, numa situação real de uso de enunciados, o usuário de um gênero não lida com situações únicas às quais responde, mas com situações semelhantes. Tanto Bakhtin (2003) quanto Miller (2009) concordam que, embora o gênero assuma um status de estabilidade, tal estabilidade se torna sempre relativa, pois as situações mudam e com ela as exigências sociais e o uso que os usuários fazem do gênero. Marcushi (2003, p. 19) defende que os gêneros “caracterizam-se como eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados a necessidades e atividades socioculturais (...)”. Entendemos assim que os gêneros nascem, mudam e deixam de ser utilizados por seus sujeitos comunicativos ante as situações sociais. Por este motivo não devemos entender os gêneros como objetos estanques, fixos e imutáveis, mas nos manter atentos para os seus aspectos formais e 54 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 funcionais (aspectos estes que servem como pistas para a compreensão dos gêneros). Apoiando-nos em Bakhtin (2003, p. 262), que atenta para esse processo dinâmico do gênero e sua relação sócio-comunicacional para com a esfera: A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo. Alves Filho (2009) conclui que o gênero carrega consigo duas forças opostas, inter-relacionadas: uma delas responsável pela regularidade do gênero, a que chama de força centrípeta; e outra responsável pela dinamicidade do gênero, a que chama de força centrífuga. Para este teórico, ambas as forças precisam ser vistas a partir do viés histórico e social de uso do gênero. PROPÓSITOS COMUNICATIVOS De acordo com Alves Filho (2011), os propósitos comunicativos correspondem às finalidades para as quais um gênero é recorrentemente utilizado em situações também recorrentes. Entretanto, chama atenção o teórico, situações recorrentes não podem ser entendidas como idênticas, mas análogas. Em outras palavras, os sujeitos discursivos, ao lidarem com uma exigência comunicacional dentro de uma esfera social específica, jamais se deparam com uma mesma situação comunicativa, mas semelhante, pois a recorrência situacional se dá através de tipos, generalizações de eventos sóciocomunicacionais de uso da linguagem. Miller (2009, p. 30) defende: “A recorrência é inferida pela nossa compreensão de situações como sendo, de alguma forma, ‘compar|veis’, ‘similares’, ou ‘an|logas’ a outras situações (...)”. Miller (2009, p. 31), ainda no mesmo texto, denomina esse processo de “tipificaç~o” (termo adotado por outro teórico, Alfred Schutz [1973]): “É através do processo de tipificação que criamos recorrência, analogias, similaridades. O que recorre não é uma situação material (um evento real, objetivo, factual), mas nossa interpretação de um tipo. É a recorrência que garante, de acordo com Alves Filho (2011), respostas específicas para exigências também específicas da esfera social. No entanto, aponta, um gênero jamais se atém a apenas um propósito comunicativo, mas a um conjunto de propósitos da esfera; perspectiva também adotada por Swales (2009, p. 224): “Um gênero compreende uma classe de eventos comunicativos, cujos membros compartilham um conjunto de propósitos comunicativos”. Alves Filho (2011) pondera a dinamicidade dos propósitos comunicativos, que podem mudar com o passar do tempo ou variar entre grupos ou instituições sociais. Ainda, de acordo com Alves Filho (2011), a dinamicidade dos propósitos comunicativos garante a possibilidade do surgimento de novos gêneros discursivos, a retomada de gêneros antigos ou a mudança dos gêneros utilizados. Esta dinamicidade faz com que um gênero assuma mudanças na sua forma e estilo que, diante de novos propósitos comunicativos, adapta-se às novas exigências sociais do meio a que atende: “a mudança dos gêneros n~o se d| apenas sobre a forma, o conteúdo e o estilo, mas pode decorrer de alterações nos propósitos comunicativos, nas suas funções sociais. E não é 55 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 raro que, havendo mudanças nos propósitos comunicativos, também surjam mudanças na forma e no estilo dos gêneros” (Alves Filho, 2011, p.35). O papel social de um gênero encerra-se em seu uso recorrente. Isso ocorre devido o uso cada vez maior de enunciados que atendem a determinados propósitos comunicativos de seus usuários. Desse modo, o domínio a que pertencem os propósitos comunicativos também é social. Todavia, é importante distinguir, como apontam Alves Filho (2011) e Bhatia (1993), que há ainda no gênero intenções dos usuários desse gênero que pertencem ao domínio particular do usuário, não devendo ser confundidos com o propósito comunicativo, por não apresentar, em contraste àquele, recorrência. Atentemos que, quando a intenção apresenta relativa recorrência, ela passa ao domínio do propósito comunicativo, isto porque deixa de pertencer ao domínio do indivíduo e passa a pertencer ao domínio de um grupo discursivo. Alves Filho (2011, p. 36), ao discorrer acerca das mudanças de propósitos comunicativos de um gênero, defende que “é no nível individual que as mudanças surgem”. Isso ocorre quando os usu|rios de um gênero passam a utiliz|-lo para atender a outros propósitos comunicativos, que não aqueles propósitos já recorrentes do gênero. Isso acontece quando os sujeitos comunicativos da esfera social se deparam com uma nova exigência, que não conta com um repertório de gêneros específicos para atendê-la. Assim, esses sujeitos comunicativos se deparam com a seguinte situação: ou criam novos gêneros para atender a essa nova exigência ou passam a utilizar um repertório de gêneros que atendem a outros propósitos, mas que (atente-se) possuem alguma similaridade com esta. Se estes gêneros forem utilizados também por outros usuários da esfera comunicativa para atender essa nova exigência, um novo propósito passa a fazer parte dos mesmos. É desse modo que novos propósitos comunicativos levam a mudanças na composição e uso do gênero. Há mudança na forma quando, no(s) novo(s) propósito(s) comunicativo(s), alguns elementos do gênero deixam de ter função. ANÁLISE DOS DADOS O levantamento dos propósitos comunicativos do corpus de pesquisa é segmentado em dois pontos principais: um voltado para os propósitos comunicativos gerais e o outro para uma especificação dos propósitos comunicativos gerais em relação ao elemento sob o qual incidiu a ação efetuada pelo propósito. A análise dos 30 ofícios da SEAD - PI pode ser verificado na tabela abaixo: Número do ofício 01 02 03 04 05 06 Propósito comunicativo Geral Solicitar Encaminhar Solicitar Encaminhar Prestar esclarecimento Solicitar Elemento sob o qual incide a ação do propósito Pagamento Funcionário Serviço Documentos Retorno de funcionário (à instituição) Serviço (desbloqueio de crédito banco) 56 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 07 08 09 13 14 Solicitar Solicitar Solicitar Prestar esclarecimento Encaminhar Prestar esclarecimento Solicitar Encaminhar 15 Solicitar 16 17 18 Solicitar Encaminhar Encaminhar 19 Solicitar 10 11 12 21 Prestar esclarecimento Solicitar 22 Encaminhar 20 24 Prestar esclarecimento Solicitar 25 Solicitar 26 Solicitar 27 Solicitar 28 Solicitar 29 30 Encaminhar Encaminhar 23 Serviço (liberação de passagem aérea) Serviço (liberação de passagem aérea) Serviço (liberação de passagem aérea) Resultado de processo (administrativo) Documentos (correspondência de empresa particular) Cumprimento de Lei Pagamento (adicional por serviço) Documentos Serviço (isenção da previdência social de funcionário da instituição) Pagamento (gratificação) Documentos (ofício da Secretária da Fazenda) Documentos (memorando) Serviço (senhas do sistema da folha de pagamento da SESAPI) Gastos (gratificação de funcionários da instituição) Autorização (para funcionários da instituição) Documentos (lista de servidores que se afastaram da instituição temporariamente) Situação de funcionária da instituição (e substituição desta por outro da mesma empresa) Serviço (criação de código para cargo) Autorização (criação de código p/ desconto do Sindicato) Autorização (de setor competente para emissão de ficha financeira) Autorização (de setor competente para criação de código para cargo) Autorização (de setor competente para gerar crédito especial de pensionista da instituição) Documentos (cópia protocolada de ofício) Documentos (minuta de decreto) Tabela 1 No decorrer da análise, verificamos a seguinte recorrência de propósitos comunicativos: solicitar, encaminhar, prestar esclarecimento. Uma análise mais atenta desses propósitos nos levou a uma segunda análise acerca dos propósitos comunicativos desses ofícios, distribuídos desse modo na tabela abaixo (tabela 2). Verificamos assim que o propósito comunicativo mais recorrente dos ofícios é solicitar (16), seguido respectivamente pelos propósitos comunicativos encaminhar (09) e prestar esclarecimento (05). Dentro desses propósitos comunicativos, a maior recorrência dos elementos sob o quais incide a ação do propósito comunicativo é: solicitar serviço (08), encaminhar documento (08); Já o propósito comunicativo prestar esclarecimento não 57 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 apresenta elemento de maior recorrência, pois todos os elementos desse propósito apareceram somente uma vez na análise do corpus. Propósito geral Solicitar Encaminhar Prestar esclarecimento Elemento sob o qual incide a ação do propósito Serviço Autorização Pagamento Documento Funcionário Gastos Processo Situação de funcionário Retorno de funcionário Cumprimento de Lei Recorrência 08 05 03 08 01 01 01 01 01 01 Tabela 2 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em nossa análise verificamos que o gênero ofício atende a uma gama de propósitos que não só estabelecer a comunicação entre instituições públicas. Compreendemos a importância dos Manuais de Redação como escopo para a orientação e produção de determinados gêneros de um dado domínio discursivo. No entanto, chamamos a atenção para o fato de que estes Manuais em algum momento deixam de abarcar um traço de dinamicidade do gênero. Assim, consideramos prudente a revisão constante desses Manuais e a orientação para produção voltada para traços sociorretóricos do gênero e não apenas um rol de regras que devem ser obedecidas pelos retores para produzir o ofício, como se fosse um produto. Mais que um produto, o ofício é uma forma de ação social, do qual o usuário utiliza da língua para agir na sociedade. Um estudo que não atente para esse aspecto do gênero não deve ser levado em conta, pois, ao invés de incentivar, restringirá o usuário do gênero a agir. REFERÊNCIAS ALVES FILHO, Francisco. Gêneros jornalísticos: notícias e cartas de leitor no ensino fundamental. São Paulo: Cortez, 2011. (Coleção Trabalhando com... na escola) _____________. Integridade genérica versus versatilidade no editorial de jornal. V SIGET. Rio Grande do Sul: ISSN 1808-7655, agosto 2009. ASKEHAVE, Inger; SWALES, John M. Identificação de gênero e propósito comunicativo: um problema e uma possível solução. (Tradução: Benedito Gomes Bezerra, Maria Erotildes Moreira e Silva e Bernaderte Biasi-Rodrigues). In: BEZERRA, Benedito Gomes. et al (Org.). Gêneros e sequências textuais. 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Disponível em: <http://www.abralin.org/revista/rv7n1/10-Maria-Inez.pdf> 59 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 EDUCAÇÃO BILINGUE / TERMINOLOGIA GLOSSÁRIO PORTUGUÊS-PARAKANà PARA USO NA EDUCAÇÃO BILÍNGÜE E NA SAÚDE: PRODUÇÃO, UTILIZAÇÃO E POSSIBILIDADES Claudio Emidio Silva17 Universidade Federal do Pará Rita de Cássia AlmeidaSilva18 Universidade do Estado do Pará Ana Zélia Alves19 Programa Parakanã RESUMO: O presente trabalho trata da experiência de construção de um glossário Português-Parakanã realizado com os dois grupos Parakanã (ocidental e oriental) da Terra Indígena Parakanã do Tocantins, nos municípios de Novo Repartimento e Itupiranga. Os Parakanã Orientais situavam as suas aldeias próximas ao rio Tocantins e os Parakanã Ocidentais situavam as suas aldeias próximas ao rio Xingu. Após o contato com a sociedade envolvente os Parakanã Orientais foram transferidos para a aldeia Paranatinga e parte dos ocidentais foi reunida na aldeia Maroxewara, ambas na atual TI Parakanã. Outro grupo de ocidentais também foi reunido em uma aldeia na TI Apyterewa próximo ao rio Xingu. O trabalho foi realizado para auxiliar a comunicação dos professores e dos agentes de saúde com os indígenas, havendo uma participação deles na construção do glossário. Também tornou-se material de apoio nos cursos para dirimir dúvidas dos professores indígenas em formação e alunos Parakanã bem como estabelece comparações entre as duas variantes da língua Parakanã: oriental e ocidental. Além do glossário também foram produzidas frases na língua Parakanã para uso na escola e posto de saúde com suas respectivas traduções em português para que os professores e técnicos de enfermagem pudessem desenvolver suas atividades da melhorar forma possível, no que diz respeito a comunicação entre índios e não índios. O atual glossário encontra-se em 2012 com mais de 2.000 palavras e frases. Optou-se por grafar as palavras como são atualmente escritas pelos indígenas e não da forma lingüística, assim o seu sentido de utilidade para os profissionais que trabalham na TI e que não dominam os códigos lingüísticos foi muito maior, podendo usar e aprender a língua Parakanã de forma mais dinâmica e útil. PALAVRAS-CHAVE: Glossário; Educação bilíngüe; Povo Parakanã; Português-Parakanã. 17 Mestre em Ciências Biológicas; Doutorando em Educação ([email protected]). 18 Mestre em Teoria Literária ([email protected]). 19 Professora de História ([email protected]). 60 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 ABSTRACT: This paper deals with the experience of building a glossary PortugueseParakanã performed with two groups Parakanã (western and eastern) Indian Earth Parakanã of Tocantins, in the cities of Novo Repartimento and Itupiranga. The Eastern Parakanã their villages were located near the Tocantins River and Western Parakanã their villages were located near the Xingu River. After contact with the surrounding society Parakanã East were transferred to the village Paranatinga and western part of the village was gathered Maroxewara, both in current IE Parakanã. Another group of Westerners was also meeting in a village in IE Apyterewa near the Xingu River. The work was carried out to aid communication of teachers and health workers with the Indians, with their participation in the construction of the glossary. It also became supporting material in the courses to settle questions of indigenous teachers and students in training Parakanã well as establishing comparisons between the two variants of the language Parakanã: eastern and western. Besides the glossary were also produced in the language Parakanã phrases for use in school and health post with their translations in Portuguese for teachers and nursing technicians could develop its activities to improve the way possible, with regard to communication between Indians and non-Indians. The current glossary is in 2012 with more than a 2.000 words and phrases. We chose to spell the words as they are currently written by Indians and not the linguistic form, so their sense of usefulness for professionals who work in IE and who have not mastered the linguistic codes was much bigger and can use and learn the language Parakanã more dynamic and useful. KEYWORDS: Glossary; Bilingual Education; Parakanã People; Portuguese-Parakanã. 1. INTRODUÇÃO O povo Parakanã do Tocantins vive atualmente na Terra Indígena Parakanã, sudeste do Pará, municípios de Novo Repartimento e Itupiranga, em uma área de 351.697,41 ha, onde se distribuem em 13 aldeias, formando uma população de 908 indivíduos e 31 de dezembro de 2011 (Programa Parakanã, 2011). Nas aldeias há escolas onde são trabalhadas a alfabetização na língua materna e as demais disciplinas em português, como uma segunda língua. Devido aos processos de contato, nem sempre bem conduzidos, foram agrupados na mesma área Parakanã Ocidental (Maroxewara) e Parakanã Oriental (Paranatinga). Segundo Fausto (2001) esses dois grandes grupos se separaram a aproximadamente 100 e 200 anos atrás e estavam distribuídos em pequenos aldeamentos no interflúvio Tocantins – Xingu, no sentido leste-oeste e entre a região de Marabá e Tucuruí no sentido norte-sul. Havia guerras entre os dois grupos, inclusive com rapto de mulheres entre eles, bem como guerreavam também com os Kayapó e os Asuriní do Tocantins, entre outros grupos. Os Kayapó eram essencialmente seus grandes inimigos. Os Parakanã se autodenominam awaete20, que significa gente de verdade, em contraposição a akwawa, que além de designar entidades míticas que podem lhes fazer algum mal também é o mesmo termo utilizado para designar os seus inimigos tradicionais, os Kaiapó. Para os não índios o termo designatório é toria, que significa qualquer pessoa da sociedade envolvente, podendo haver algum complemento: toriatinga – não índio branco; toriapihona– não índio preto; toriapipi – não índio 20awa: gente; ete: verdadeiro. 61 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 pequeno; toriapokoa – não índio alto; toriakoxoa – não índio mulher; toriakoma’e – não índio homem. Este último pode vir sem o complemento, apenas toria. A comunicação do povo Parakanã do Tocantins, atualmente é realizada na língua materna (awaete xe’enga), sendo o português (toria xe’enga) utilizado como uma segunda língua. Montserrat (2005; p. 98) mostra a seguinte classificação: tronco Tupi, família Tupi Guarani, língua Akwáwa e dialeto Parakanã. E, Rodrigues & Cabral (2002; p. 335) estabelecem a seguinte estrutura, após uma excelente revisão: Família TupiGuarani, Ramo IV, numa posição lingüística com os Asuriní do Tocantins e Suruí (Mujetire). O processo de escolarização Parakanã passou por muitas fazes tendo linhas de ensino da Escola rural e da Escola missionária, com poucos resultados satisfatórios. Com a implantação do Programa Parakanã em 1987, devido às mudanças ocorridas com a inundação das reservas onde moravam os Parakanã do Tocantins e transferência para a atual TI Parakanã, este povo pôde se organizar melhor, com atendimentos especializados nas áreas de saúde, educação, produção e proteção ambiental. A lingüista Ruth Monserrat começou a organizar os fonemas da língua Parakanã e a montar uma proposta de educação, que embora não tenha sido dado prosseguimento, contribuiu para o inicio da organização dos escritos fonéticas do grupo e sua respectiva organização para uso na escola. Em dezembro de 1990, o Subprograma de Educação Parakanã iniciou uma nova fase com a contrataç~o do lingüista ‘Jo~o das Letras’ que deu a continuaç~o dos estudos lingüísticos iniciados com a Ruth Monserrat, formalizando uma base para uma ação educacional verdadeiramente Parakanã. Começou-se por uma troca de experiência lingüística na escola da aldeia Paranatinga, pela qual se pôde avaliar o nível de informação dos índios, qual a herança das escolas anteriores e qual a perspectiva e entendimento da comunidade sobre a questão educação. Após os estudos lingüísticos levantados, em 1991 foi formada uma equipe de educação para atender as escolas recém implantadas nas duas aldeias existentes: Maroxewara (que significada lugar do veado branco) e Paranatinga (que significa rio de água branca). Com o passar do tempo essas duas aldeias foram se dividindo e formando novas aldeias, ocupando sistematicamente todo o entorno da Terra Indígena Parakanã. A formação de novas aldeias se deve especialmente devido a diminuição de estoques de caça, uma vez que os Parakanã são caçadores coletores ou por distensões Políticas, entre outras necessidades. Assim, no final de 2011 as aldeias constituídas na Terra Indígena Parakanã ficaram assim distribuídas, no total de treze: Aldeias originadas de Maroxewara: Inaxyganga, Itapeyga, Parano’a, Paranoita e Paranoema; e aldeias originadas de Paranatinga: Paranowaona, Itaygo’a, O’ayga, Itaygara, Itaoenawa e Paranoawe. Com tantas aldeias e escolas para serem organizadas foi necessários resgatar todo o conhecimento que já havia sido organizado para formatar um método de alfabetização na língua materna que desse conta de atender as escolas, ser de fácil uso para os professores e ainda ter uma uniformidade para quando os alunos mudassem de aldeia não estranhassem o ensino na escola nova. O quadro a seguir mostra como estão organizados os fonemas Parakanã. Deu-se preferência em organizar o glossário da forma que os fonemas são utilizados na escola, pois de outra forma o trabalho seria de pouca 62 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 utilidade para os professores e especialmente para os próprios indígenas que necessitam consultar o glossário para suas atividades na escola e nos cursos de formação que acontecem na Terra Indígena. Guia da pronúncia aproximada da língua Parakanã Consoantes Letra / Fonema h m n k p r g t x w kw ’ Pronuncia aproximada - Como se fosse um sopro saído da garganta. Mais ou menos como no inglês, home. - Quando está em início de sílaba pronuncia-se como no português, meu. - No final da palavra, pronuncia-se como se estivesse preparando a boca para dizer um p. - No início de sílaba, como no português nu. - No final de palavra, a ponta da língua deve encostar atrás dos dentes superiores, como se fosse pronunciar um t. - No meio ou no final da sílaba, nasaliza a vogal anterior. - Como o c de casa e o qu de quero em português. - Como no português. - Sempre é pronunciado como o r de caro, tanto no começo como no meio da palavra. - Nunca inicia palavra. Precedida de n e em sílaba final de palavra, tem o som muito fraco, como song, do inglês. - No meio da palavra, precedida de n, fica nasalizada. - Depois da vogal y, é produzida com um pouco de ar raspando na garganta. - Antes de a, e, o e y soa como no português. - Antes de i, soa como se tivesse um som próximo do s ou z entre o t e o i (tsi). - Pode ser pronunciado como ch, tch, dj e algo como r com a ponta da língua puxada um pouco mais pro céu da boca. Depende do dialeto do falante. Isto acontece em português, uma letra serve para representar vários sons: s pode ser casa (z), saco (s); x pode ser táxi (quissi), taxa (ch), auxiliar (s) - Pronúncia bastante aproximada do v em português. - Pronuncia-se como o qu em português, como na palavra quadro. Exemplos aha, hohe mopa, amana opam, opotam nana, ene oken, axan enong, xe’enga ka’a, ipokoa peyra, pipi reina, ere, raira xaong, enong, exang anga, ingá, i’yga, ipyga, xoxygara neratyga, ita, tatoa tepotinema, xaotia maxa, taxeria arawawa, wewe kwanoa, Itawaekwera - É um interrompimento, no ossinho da garganta, da corrente de ar. É chamado de glotal e em línguas indígenas tem o mesmo valor de uma consoante. Awaete’a, xa’e 63 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Vogais Letra / Pronuncia aproximada Fonema a - Como no português - Como e de dedo. - Como é de pé. e - No ditongo, quando é a segunda letra, soa bem fraco quase como se fosse i. Mas, uma observação deve ser feita: não é i. i - Como em português. - Pronuncia-se como o o de coco. o - Na segunda letra de ditongo, tem o som fechado como u. Mas não é u. - O importante é prestar atenção na posição da língua, da boca e dos lábios. O y representa um som que não existe na língua portuguesa, por isso é difícil para nós produzilo, da mesma forma como é difícil para os índios produzir y o l ou o ce no meio de palavras, por não ter na língua deles. Para fazê-lo, pronuncie a letra a, segure a boca nesta posição, a língua também, e faça a pronúncia do i. Treine algumas vezes, pensando neste som como sendo o y, aprimorando-o a cada vez que o fizer. Exemplos maxa, arara ene ere aexang, eeron ipira, konomia katoete, konomia, xaotia yga, ygara, xoxygara Alguns detalhes sobre a língua Parakanã que devem ser considerados: 1) A língua Parakan~ (ou Awaetexe’enga) n~o é uma língua morta, portanto sujeita a mudanças no decorrer do tempo e porque não dizer, do espaço; 2) Existem diferenças dialetais importantes entre os dois grandes grupos de Awaete – Parakanã: ocidentais e orientais; 3) Existem diferenças nas falas da mulher e do homem, na da criança e do adulto e na do jovem e do velho; 4) Objetos que não são de sua cultura podem ter diferenças nos nomes entre ocidentais e orientais e até mesmo dentro do mesmo grupo, pois a língua precisa de um longo tempo para se ajustar e solidificar um termo e/ou palavra; Agora vamos conhecer os principais pronomes utilizados pelos falantes do Awaete xe’enga e como fica o verbo quando associado aos diferentes pronomes no tempo presente: Pronomes Pessoais ixe eu ene você a’e ele xane / ore nós (inclusivo) ore xowe nós (exclusivo) pe’e vocês eomia eles Pronomes interrogativos moa pa onde está awapa / mopareke quem? mopa a onde? / cadê ma’epa o que? marai pa qual? maram pa / ma’ekwirapa como? Maramnipa quantos? 64 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Conjugação do verbo caçar -ata: 1ª pessoa do singular 2ª pessoa do singular 3ª pessoa do singular 1ª pessoa do plural 1ª pessoa do plural 2ª pessoa do plural 3ª pessoa do plural Eu caço Você caça Ele caça Nós caçamos (inclusivo) Nós caçamos (exclusivo) Vocês caçam Eles caçam Ixe aata Ene ere ata A’e oata Ore oroata / xane xa’ata Ore xowe oroata Pee peata Eomia oata 2. MATERIAL E MÉTODOS Como já havia certa organização na forma da escrita Parakanã, mas os awaete cobravam uma tradução de muitas de suas palavras para o português foi necessário organizar um glossário dessas palavras para que houvesse fluência de seu uso nas atividades escolares, tanto para os professores não índios que ministravam aulas, como para os professores indígenas em formação e os próprios estudantes Awaete. Assim os professores organizaram com seus alunos primeiramente as palavras que os Awaete queriam saber o seu significado e depois as palavras que os professores necessitavam saber para organizar suas aulas tanto na alfabetização como nas demais atividades de educação e também alguns termos utilizados no atendimento a saúde Parakanã, pois cada enfermeira nova que chagava as aldeias precisavam de um série de comandos para poder atender de forma correta as crianças e os velhos que não entendem muito bem o português. Também se resgatou as palavras colhidas por Ruth Monserrat e João das Letras. Desta forma foi possível listar 2.000 palavras e termos em Português e suas respectivas traduções para o Parakanã, nas duas variantes (oriental e ocidental). A professora Ana Zélia Alves foi treinada para fazer a gravação e conferência de cada palavra com os falantes da língua. Para isso utilizou um dicionário escolar que a ajudava a explicar cada termo que se desejava a tradução. O trabalho foi realizado em todas as aldeias existentes para poder se ter um espectro o maior possível de falantes, e claro, representantes das duas variantes. Deve ser ressaltado que devido às diferentes dialetais entre Parakanã Ocidental e Oriental cada termo em português foi traduzido pelos falantes dos dois grupos. A figura 1, a seguir mostra alguns momentos da coleta de dados nas aldeias e nas reuniões das lideranças. 65 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Figura 1: Coleta de dados nas aldeias e em reuniões com os líderes Parakanã. A preferência em se organizar o glossário a partir do português foi porque atualmente a educação é realizada com professores não indígenas que precisam ter um entendimento da língua Parakanã, para poder trabalhar nas salas de alfabetização, mesmo quando há a ajuda dos falantes no processo. Mas, só foram escolhidas as palavras que faziam um sentido muito claro de seu entendimento, após as explicações e sempre que possível com mais de um falante em cada grupo (Oriental e Ocidental). A medida que as palavras iam sendo gravadas eram arroladas em uma lista definitiva fechando letra a letra do alfabeto. Os dados coletados de forma mais sistematizado foi de 2000 a 2004, mas a coleta continua sendo realizada e atualizada a lista de palavras, uma vez que os falantes Parakanã vão se apropriando melhor dos termos em português para traduzir as palavras quando necessário, com mais propriedade. Após a lista formada esta foi enviada a professora Ana Suelly Arruda Câmara Cabral para que pudesse corrigir as palavras de forma lingüística para poder estruturar as bases para um futuro dicionário, propriamente dito. 3. RESULTADOS A seguir iremos apresentar um quadro com 5 palavras de cada letra do alfabeto para se ter uma idéia de como está organizado o Glossário Parakanã. PORTUGUES PARAKANà ORIENTAL Abacaxi Abaixar Agarrar Abóbora Anzol Nana -eroxym -pyyng Xoromo’a Pina PARAKANà OCIDENTAL A Nana/Xoparapara -eroxym -pyhyng Xoromoa Taona Bacaba Bala Bainha Pinowa Oywa (flecha) Kygeipirera Pinowa Oywaina Orowo’ea OBSERVAÇÕES Duas formas nos oci Iguais Duas formas Diferente na terminação Duas formas muito diferentes B Iguais -ina = pequena Duas formas 66 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Boi Bola Tapi’iroa Mamapyra/ywa Cabeça Caçar Cacau Cacaueiro Café -‘a -ata Aka’oa Akao’ywa Kaxe Danado Debulhar Demarcar Dente Dinheiro Okaoete -ekyi -monyxam Hona Tamatare Égua Embaixo Embrulhar Empatar Enxada Tapirangakoxoa Ywype -won -xoxawenxowe Porore Face Fantasma Farelo Fezes Fino Hekwara Akwawa Heakytom Tepotya Iwaipipi Gafanhoto Galho Galinha Galinheiro Garoto (a) Tokorapina Hakoa Wyrangawa Wyragawaaranga Konomia Hemorragia Herança Hérnia História Hora Wygo Werikapota Karowara Morongetaemyna Kwarayga/Ara Idoso Igarape Imbaúba Importante Imaginar Moroiroete Paranopipia Amaywa Ypykopy Oxeapyka Jabota Jabuti Jacaré Xaotiakoxoa Xaotia Xakare Tapiroa Ywa C -‘a/-akynga -ata Akaoangawa Akao’ywa Kape D Noporotingoihi -ekyi -amaka Honia Tamatare E Tapirangakoxoa Iwyre -’owon -xoxawe Xygakape/Marapaxa/Porore F Heikwera Akwawa Iakyta’a Tepoty Iporoipipi G Tokorapina Ywakoa/Hakoa Wyrapaxe Wyrapaxeawyra Konomia H Wygo Werikapota/Hakykweripe Karowara Morongeta Ara I Moroiroete Paranoapipia Awaywa Katoete Oxeapyka/Okakwaranta J Xaotiakoxoa Xaotia Xakare Prolongamento da silaba ori. Duas formas nos ori Duas formas nos oci Iguais angawa = falso Iguais Diferenças nas terminações Diferentes Iguais Diferentes Diferentes Iguais Koxoa = fêmea Diferentes Diferentes Diferentes Mais diferenças nos oci Diferentes Iguais Diferentes Diferenças nas terminações Pipi = pequeno Iguais Duas formas nos oci. Diferentes Diferentes Konomitoa = Coletivo Iguais Duas formas oci Iguais Diferentes (-emyna=velho) Duas forma ori Iguais Pequena diferença Diferentes Diferentes Duas formas oci Iguais Iguais Iguais 67 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Jambo Junto Iapironwa’e Oxopoywyry Lagarta Lama Lâmpada Levantar Língua Ygangoa Ygo’oa Kanina -po’om Iapekoa Macaco-guariba Macaxeira Mãe Magro Mamão Akykya Manytawa Y’yga Ikawera Mamao Nascente Negro Nojento Nublado Nuvem Oxam Ipiona Oxewaro Homygo Ywanga Olho Onça Onde (está) Ontem Outro He’a Xawaraete Mopa Karowamo Amote Pato Peixe Porco-espinho Pulga Pus Wyrapopewa Ipira Ixarokynga Tonga Ipewa Quase Quati Quem Quebrar Queijo Xeipaweteiweree Kwatia Awapa Open Tapiroakamia Rã Rachar Rádio Raiva Raiz Akawaxa -maxaran Toriakanga Ipiray Ha’apa Saber Saco Saia Akwawete Korawa Tyrowa Iapytonwa’e Oxoporemo L Yganga Tixona Kanina -po’om Ikoa M Akykya Manyangatoa Y’yga Ikawepam Mamao N Oxeom Ipiona Oxewaro Homyn Tatatingangawa O He’a Xawaraete Mopa Karowawe Amote P Wyrapypewa Ipira Hatiatiwa’e Tonga Ipewa Q Opamwerehe Kwatia Awapa Open Tapiroakamya R Myxa -xygapota Toriakinga Ipirahy Ha’apa S Okwaham Tyropirera Tyrokoa Diferentes Diferentes Diferentes Diferentes Iguais Iguais Diferentes Iguais Diferentes Iguais Diferentes Iguais Diferentes Iguais Iguais Diferentes Diferentes Iguais Iguais Iguais Diferentes Iguais Diferentes Iuais Diferentes Iguais Iguais Diferentes Iguais Iguais Iguais Pequena diferença Diferentes Diferentes Diferentes Diferentes Iguais Diferentes Diferentes Diferentes 68 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Sapo Seio Kararakatanga Ikoma Kororoa Ikoma Diferentes Iguais T Taboca Tacho Tamanduá Tapa Telefone Takwara Xa’e Tamanowa -nopo Omongetatawa Urtiga Urubu Urubu-pequeno Urucum-bravo Útero Anamiaona Orowoa Orowo’ia Rokoaporanywa Hapiaoma Veadovermelho Veado-fuboca Vento Vespa Vai buscar pra mim. Mixarete Patania Wytoa Kawa Ahapota xeope Takwara Xa’e Tamanowa -nopo Iapyharewara/Toriakyngaga wa U Pynoa Orowoa Orowoyra Rokoaporanywa Hapiaoma V Mixarete Maroxe Wytoa Kawa herota Eroeha amo xeope Iguais Panela de barro (iguais) Iguais Iguais Diferentes Diferentes Iguais Pequena diferença Iguais Iguais Iguais Diferentes Iguais Iguais Diferentes X Xampu Xícara Xixi Xipaya Xucro Xaokawa Kaxewawa -koron Awaete Oporongetaote Zangado Zelar Zero Zoada Zurro Ipiraygete -xemoryryima’ere Oaerowang Ixapepoa Oxa’a Tyxowa’e Torixa’e -koron Awaete Oporongetaere Z Ipiraygete -xemoryryi Oaerowang Ixapepoa Oxa’a Diferentes Diferentes Iguais Iguais (outro índio) Pequena diferença Diferentes Pequena diferença Iguais Iguais Iguais Foram escolhidos aqui alguns exemplos das principais classes de palavras: Verbos - Os verbos estão indicados com um traço (-) na frente da palavra. Esse traço representa o complemento do verbo, pois em Parakanã a pessoa vem junto no verbo. Por exemplo, abaixar se escreve -eroxym, porque em um modo prático, em uma frase deve se dizer quem está abaixando. No verbo caçar (-ata) ficaria assim: eu caço (ixe aata) e ele caça (a’e oata); Substantivos - os nomes das coisas são geralmente escritos de forma completa como abacaxi (nana) e babaçu (inata). Mas pode em alguns casos aparecer com a indicação para algum prefixo como na palavra galho que pode ser -akoa porque o galho é parte de algo (da árvore), então deve ter algum complemento. Assim como olho - hea (-ea), que pertence a alguém (ou é meu ou é dele); Preposição - Normal 69 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 como em depois (amoteramo); Advérbio - embaixo (Ywyrype/Iwyre); Adjetivo normal como em fino (Iwaipipi/Iporoipipi); Outro dado importante são as diferenças mostradas entre os dois grupos: Parakanã Oriental e Parakanã Ocidental. Essas podem ser: 1) Um grupo pode conhecer a palavra do outro grupo, mas chama o objeto de outra forma totalmente diferente, como no caso do Abacaxi: PKN ORI chama de nana e PKN OCI conhece a designação nana, mas prefere chamar de xoparapara; 2) Objetos novos, que conheceram após o contato, podem receber nomes completamente diferentes (anzol = taona e pina) ou com apenas uma pequena modificação em algum som na palavra (boi = tapi’iroa e tapiroa) ou ainda com uma grande modificação, mas ainda com parte da palavra semelhante (galinha = wyrangawa e wyrapaxe); 3) Pode acontecer de aparecer uma pequena diferença muito comum nas palavras com: a. Som y e som h (-pyyng e -pyhyng); b. Som ‘ (xoromo’a e xoromoa); c. Duplicaç~o do som (i’i); 4) Palavras existentes na língua Parakan~ sem tradução para o português. É uma língua em movimento, falada, viva. Nem tudo pode ainda ser traduzido e sempre haverá palavras que não precisarão ser traduzidas, pois diz respeito apenas a sua cultura: a. Peyra: espécie de bolsa que os Awaete fazem de cipó ou palha para carregar caça ou utensílios; b. Pariria: planta de folha larga e alongada medicinal que serve para dor de cabeça e febre. Com a organização das palavras ficou muito mais fácil construir o Método de Alfabetização na Língua Parakanã, que a partir de palavras chaves concretas leva a criança a aprender a escrita de sua língua de forma rápida, gradual e completa. Também ajudou nos diálogos nos Postos de Saúde para atendimento de saúda aos Awaete de cada aldeia. 4. DISCUSSÃO E CONCLUSÃO Os Parakanã do Tocantins (TI Parakanã) guardam algumas diferenças dialetais entre os dois grupos existentes, além de terem diferenças mais marcantes entre os Asuriní do Tocantins e Suruí, do grupo lingüístico ao qual pertencem. Entretanto, a comunicação se faz muito bem entre as três etnias. Os Parakanã já casaram tanto com mulheres Asuriní do Tocantins como com mulheres Suruí e nas aldeias essas mulheres se comunicavam muito bem no seu círculo familiar. Entre os Parakanã, as diferenças também são marcadas na pintura corporal, na confecção do artesanato e nas danças. Mas esses elementos são mais difíceis de serem observados. É na fala que percebemos a entonação, a altura da voz, a velocidade com que as palavras são faladas. Essa experiência com o glossário Parakanã foi muito importante do ponto de vista da participação dos falantes. Em todas as aldeias as pessoas ficavam tentando entender os termos, perguntavam para os mais velhos e repetiam as gravações quando essas não ficavam adequadas o quanto fosse necessário. Nas escolas sempre ficam a disposição dos alunos dicionários português-português que são bastante utilizados e solicitados. Muitos alunos possuem o seu próprio dicionário. O glossário tem ajudado, especialmente os mais jovens a entender termos que eles têm dúvidas ou não estão acostumados a utilizar. Acreditamos que um dicionário Parakanã-Português será o nosso próximo passo, com o desenvolvimento de uma metodologia em que os próprios falantes do Parakanã possam construí-lo. 70 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Como já existe atualmente o dicionário feito com os Parakanã do Xingu (Apyterewa) construído por Silva (2003), será bem mais fácil realizar essa construção para os Parakanã Oriental oriundos da aldeia Paranatinga, bem como ampliar a compreensão dos termos utilizados nas duas línguas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FAUSTO, C. 2001. Inimigos Fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazônia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. MONTSERRAT, Ruth Maria Fonini. 2005. Línguas indígenas no Brasil contemporâneo. Em: CHAUI, Marilena de Souza & GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. (Org.). Índios no Brasil. 4ª ed. São Paulo: Global; Brasília: MEC. 93-104. PROGRAMA PARAKANÃ. 2011. Relatório de Atividades. (relatório não publicado). Tucuruí–PA. 281 p. RODRIGUES, AryonDall’Igna, CABRAL, Ana Suelly Arruda Câmara, 2002. Revendo a classificação interna da família Tupí-Guarani. Em: CABRAL, Ana Suelly Arruda Câmara, RODRIGUES, AryonDall’Igna (Orgs.). Línguas Indígenas Brasileiras: Fonologia, Grámatica e História. Atas do I Encontro Internacional do Grupo de Trabalho sobre Línguas Indígenas da ANPOLL; Tomo I, Editora Universitária/UFPA, Belém. 327-337. SILVA, Gino Ferreira da. 2003. Construindo um dicionário Parakanã-Português. Dissertação de Mestrado. UFPA – Letras (Lingüística e Teoria Literária). 148 p. Agradecimentos Agradecemos especialmente a todos os Awaete que de forma direta ou indireta ajudaram na construção deste trabalho, especialmente: Os Orientais Amynyxoa Parakanã; Apoena Parakanã; Axoa Parakanã Awaewoa Parakanã; Kwatinema Parakanã; Wawa Parakanã; Wyraporona Parakanã; e os Ocidentais Awaxetywy’yma Parakanã; Ina Parakanã; Kytyga Parakanã; Moroyroa Parakanã; Nananawa Parakanã; Rirore Parakanã; Takotywera Parakanã; Tarana Parakanã; Tyge Parakanã; Xeteria Parakanã. 71 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 ESTUDOS LITERÁRIOS O CANGAÇO NOS ROMANCES FOGO MORTO E OS DESVALIDOS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA Antonio Alan Dantas de Meneses Universidade Federal do Pará RESUMO: O presente estudo visa estabelecer uma análise comparativa entre dois romances da literatura brasileira do século XX, no que tange à abordagem realizada pelas obras do fenômeno histórico-social do cangaço. As obras escolhidas, Fogo Morto, de José Lins do Rego, e Os Desvalidos, de Francisco Dantas, representam dois momentos distintos da produção ficcional nordestina. A primeira está inserida na corrente ficcional das décadas de 30 e 40. Décimo romance do escritor paraibano, Fogo Morto representa o cangaço na perspectiva do personagem José Amaro, seleiro que se transforma em ajudante do cangaceiro Antônio Silvino. A segunda obra, publicada em 1993, representa uma retomada da ficção regionalista. O romance focaliza o cangaço sob o ponto de vista de Coriolano, personagem que, ao contrário de José Amaro, demonstra ódio implacável pelo cangaço, no romance representado por Lampião. A análise comparativa das obras foi precedida pelo estudo das raízes históricas do cangaço, bem como a caracterização do cangaceiro como ser carregado de dubiedade no imaginário popular nordestino. Com efeito, o cangaceiro ora é representado como herói, ora é encarado como bandido pelo sertanejo, sendo que essa visão contraditória é transportada para a ficção, aparecendo nos dois romances que são analisados neste trabalho. A abordagem histórica do cangaço é realizada a partir de estudos de autores como Maria Isaura Pereira de Queiroz (1977) e Luiz Bernardo Pericás (2010). Também foi imprescindível um breve estudo de Câmara Cascudo (2005), que auxilia a compreender a figura do cangaceiro enquanto herói popular regional. Finalmente, como suporte para o estudo comparativo entre Fogo Morto e Os Desvalidos foram utilizados trabalhos de autores como José Paulo Paes (1995) e Luiz Gonzaga Marchezan (2003), que fornecem elementos importantes para o estabelecimento de relações entre obras de cunho regionalista, produzidas por escritores nordestinos. PALAVRAS-CHAVE: Fogo Morto, Os Desvalidos, Cangaço. ABSTRACT: This study aims to establish a comparative analysis between novels of the twentieth century Brazilian literature, regarding the approach taken by the works of social and historical phenomenon of the cangaço. The works Fogo Morto of José Lins do Rego and the Os Desvalidos of Francisco Dantas represent two different moments of northeast fictional production. The first work is inserted into the fiction of the '30s and '40s. The Fogo Morto consists in the tenth novel of the writer represented by character Jose Amaro, saddler that turns into helper outlaw Antonio Silvino. The second works published in 1993 represents regional fiction. The novel is based in the point of view of character Coriolano that unlike Jose Amaro he demonstrates hatred by cangaço 72 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 represented by Lampião. The comparative analysis of the work was preceded by a historical study of the cangaço, as well as, the ambiguous characterization of the “cangaçeiro” presents in the northeast popular imagination. Indeed, the cangaçeiro is represented as hero and sometimes seen as outlaw. The contradictory point of view appears in the two novels analyzed in this work. The historical approach of the cangaço is made from studies of authors such as Maria Isaura Pereira de Queiroz (1977) and Luis Bernardo Pericás (2010). It was also essential a brief survey of Camara Cascudo (2005) which helps to understand the cangaçeiro as a regional folk hero. Finally, for the comparative study between of Fogo Morto and Os Desvalidos were used works of authors such as José Paulo Paes (1995) and Luiz Gonzaga Marchezan (2003), which supply important elements to relation between works of nature regionalist produced by writers from the Northeast. KEYWORDS: Fogo Morto. Os Desvalidos. Cangaço. INTRODUÇÃO O Nordeste brasileiro alcançou um lugar de destaque na literatura nacional nas décadas de 30 e 40 com o que se convencionou chamar romance regionalista. Essa tendência literária, centrada na preocupação com questões sociais e na abordagem de temas característicos da região, como a seca, o cangaço e os movimentos messiânicos, marcou a produção de escritores dos mais variados rincões do Nordeste. Na Bahia, por exemplo, encontramos Jorge Amado e suas obras sobre o Ciclo do Cacau; na Paraíba tem-se José Lins do Rego e seus romances do engenho; o Ceará é representado, dentre outros, por Rachel de Queiroz, que inicia sua carreira literária com o romance O Quinze, obra contundente sobre a seca. O que havia em comum entre todos esses escritores, afora o fato de pertencerem a uma mesma região geográfica, histórica e socialmente construída, era sua obra, que buscava retratar a região, seus problemas e suas crises. Havia, contudo, outro objetivo na abordagem das questões regionais: a valorização do Nordeste, que outrora ocupara uma posição de destaque na economia brasileira no período colonial, mas que enfrentava um forte declínio a partir do século XIX. A valorização da região teve como um de suas expressões a abordagem de temas relacionados ao Nordeste, seu povo e suas tradições. Entre os assuntos que inspiraram os escritores regionais estava o cangaço, fenômeno histórico-social peculiar da região que conhece seu apogeu no início do século XX. José Lins do Rego, por exemplo, cita o cangaço já em seu romance inicial, Menino de Engenho, na qual aparece a menção ao temido cangaceiro Antônio Silvino, por meio das impressões deixadas pelo bandido no protagonista. “Alta noite foi-se com o seu bando. Para mim tinha perdido um bocado do prestígio. Eu o fazia outro, arrogante e impetuoso, e aquela fala bamba viera desmanchar em mim a figura de herói” (REGO, 1995, p. 63). Em Fogo Morto, obra publicada em 1943 e considerada por muitos críticos a obra-prima do escritor paraibano, o cangaço surge por meio do personagem Zé Amaro, mestre seleiro frustrado que se ressente de sua sorte e admira fervorosamente Antônio Silvino. Para o personagem, o cangaceiro representa a promessa de justiça para os pobres sertanejos, calejados das humilhações e desmandos dos poderosos coronéis. “O 73 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 mestre estremeceu com a palavra do homem. O nome de Antônio Silvino exercia sobre ele um poder mágico. Era o seu vingador, a sua força indomável, acima de todos, fazendo medo aos grandes” (REGO, 2008, p. 114). O cangaço, que foi extinto em 1940 com a morte de Cristiano Gomes Cleto, o temido Corisco, não foi abordado somente na prosa regionalista dos anos 30 e 40. Produções recentes, em verso ou prosa, embora distantes temporalmente do período de ocorrência do fenômeno, continuam a utilizar o cangaço como tema. A literatura de cordel, importante expressão cultural da região, volta-se comumente para relatos sobre as aventuras e desventuras dos principais cangaceiros. Entretanto, no campo do romance, objeto de interesse deste trabalho, o tema ainda encontra escritores que o cultivem, a exemplo do romancista sergipano Francisco J. C. Dantas, autor da obra Os Desvalidos. Publicado em 1993, o romance apresenta como protagonista o seleiro remendão Coriolano, um homem marcado por insucessos em sua vida, colecionando fracassos em suas investidas pelos negócios e que nutre ódio mortal por Lampião, principal responsável, segundo ele, pela vida miserável que o seleiro leva. Para Coriolano, o cangaceiro representa, juntamente com as tropas volantes que perseguem Lampião, o terror da populaç~o sertaneja. “O bando de Lampi~o e a volante do governo agora deram pra esta zona do Aribé. Enquanto se perseguem e se chacinam em porfiadas e sangrentas brigas, vão também esfolando a região, a saque, morte e desonra, metendo o pau na pobreza desvalida.” (DANTAS, 1996, p. 125) Embora as obras abordem personagens históricos distintos e que, ao que se sabe, nunca tiveram contato algum entre si, é possível estabelecer paralelos entre os romances. Como fica demonstrado ao longo do trabalho, o romance mais recente retoma de forma dialógica a obra mais antiga, havendo, portanto, pontos de ligação entre Fogo Morto e Os Desvalidos. Em virtude dos objetivos da análise comparativa que se pretende fazer, limitar-mos-emos aos aspectos concernentes à abordagem do cangaço nos dois romances, ou seja, a visão que se constrói sobre o cangaceiro nas narrativas. Não são analisados aspectos como a decadência do Nordeste, tema também comum entre as duas obras, mas que foge do escopo deste trabalho. A partir da análise entre as obras procura-se demonstrar a importância do cangaço para a produção cultural regional, notadamente para a literatura, além de mostrar a validade da intertextualidade na construção literária. Finalmente, por meio da análise da figura do cangaceiro, este trabalho pretende demonstrar a contradição da figura deste bandido social, segundo terminologia utilizada por Eric Hosbsbawm. Ora herói, ora bandido, o cangaceiro aparece nos romances como um ser dotado de uma complexidade que destoa da visão estereotipada e simplista comumente forjada sobre este que foi um dos tipos característicos do Nordeste brasileiro. A ABORDAGEM DO CANGAÇO NO ROMANCE FOGO MORTO Considerada a obra-prima do paraibano José Lins do Rego, Fogo Morto é o décimo romance do escritor, constituindo, segundo José Aderaldo Castelo, “verdadeiramente um trabalho de síntese do que o romancista em grande parte já havia feito nos romances anteriores” (Apud MOISÉS, 1996, p. 198). A obra est| formalmente dividida em três 74 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 partes: a primeira concentra-se no personagem José Amaro; a segunda focaliza o engenho Santa Fé, desde os tempos prósperos do Capitão Tomás Cabral de Melo até o declínio da propriedade nas mãos do Coronel Lula de Holanda; a terceira concentra-se no capitão Vitorino Carneiro da Cunha, promovendo o fecho do romance. O cangaço aparece no romance como um tema paralelo a outro, também característico da região: a decadência. Esta marca a obra, expressando-se inclusive no título do romance, referência direta aos engenhos falidos da Zona da Mata nordestina, de que o Santa Fé constitui exemplo. A abordagem do cangaço ocorre na obra, sobretudo, por meio da figura de mestre José Amaro. Este é um seleiro que vive nas terras do engenho Santa Fé, ganhando a vida com pequenos serviços que faz em selas e arreios de viajantes que passam na estrada de terra que conduz à vila de Pilar. Profundamente inconformado com seu destino, incomoda o seleiro o fato de viver nas terras de um homem sem força para o comando do engenho, como Lula de Holanda. Também o constrange a decadência de seu ofício de seleiro, cada vez mais obsoleto diante da produç~o industrial de selas e arreios. “Estou perdendo o gosto pelo ofício. J| se foi o tempo em que dava gosto trabalhar numa sela. Hoje estão comprando tudo feito. E que porcarias se vendem por aí! Não é para me gabar. Não troco uma peça minha por muita preciosidade que vejo” (REGO, 2008, p. 50). Como se não bastasse a frustração que alimenta em relação a seu ofício, mestre Zé Amaro leva uma vida familiar bastante infeliz. Sua esposa lhe tem medo, a filha, já mulher feita e em idade de casar, não encontra um homem que a tome por esposa, vagando pela casa até enlouquecer. Desta forma, o seleiro vive um duplo drama: um ofício que não lhe assegura uma sobrevivência digna, um futuro certo, além de uma família que não compensa seus desgostos, antes aumenta ainda mais sua infelicidade. Apesar de sua pobreza, Zé Amaro é um homem que possui seus brios, que não se curva perante os ricos da terra. Não leva desaforo para casa e admira aquele que é valente e que, como ele, se faz respeitar. Não baixa a cabeça, por exemplo, para o poderoso coronel José Paulino, dono do próspero engenho Santa Rosa e homem mais rico da regi~o. “- Vai trabalhar para o velho José Paulino? É bom homem, mas eu lhe digo: estas mãos que o senhor vê nunca cortaram sola para ele. Tem a sua riqueza, e fique com ela. N~o sou criado de ninguém. Gritou comigo, n~o vai.” (Idem, p. 49). Decorre de seu gênio também a admiração por pessoas como o aguardenteiro Alípio, seu amigo, um sujeito que, ainda muito jovem, envolveu-se em crime de morte para defender a honra de seu pai. Bicho homem, este Alípio. Avalie que quase menino se espalhou na feira do Ingá que foi aquela desgraça. Gosto de homem assim. Ele fora com o pai vender milho verde na vila e o cabo do destacamento achou de desfazer do velho. Foi aquela desgraça. Alípio fez na faca, espalhou a feira. O cabo ficou para um canto de bofe de fora, e um soldado que se meteu a besta não ficou para contar a história (Idem, p. 55). Desse comportamento de valorização da coragem e de aversão aos poderosos da terra, decorre a admiração de mestre Zé Amaro por uma figura temida na região: o 75 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 cangaceiro Antônio Silvino, personagem ficcional que representa o personagem histórico do maior cangaceiro do Nordeste até a chegada de Lampião. Para o seleiro, Antônio Silvino incorpora os ideais de coragem e valentia, admirados pelo sertanejo, como assevera C}mara Cascudo, ao afirmar que “o sertanejo n~o admira o criminoso, mas o homem valente” (CASCUDO, 2009, p. 166). Em relação ao papel da coragem e valentia nas relações sociais no Nordeste, é interessante observar a relevância da honra nas relações sociais. Esta era vista como algo que deveria ser prezado e defendido, se preciso fosse com a morte. Vale ressaltar que muitos homens ingressaram no cangaço devido a questões ligadas à honra, pessoal ou da família. Antônio Silvino e Lampião, por exemplo, segundo alguns historiadores, tornaram-se cangaceiros para vingar o assassinato de seus respectivos pais. Essa ideia da vingança também está presente nas trovas populares que cantam as aventuras dos cangaceiros, como nesta citada abaixo, recolhida por Câmara Cascudo (2005, p. 168), que conta o assassinato do pai de Antônio Silvino. Eu tinha quatorze anos, Quando mataram meu pai. Eu mandei dizer ao cabra: Se apronte que você vai... Se esconda até no inferno De lá mesmo você sai... Em Fogo Morto, o cangaceiro é visto pelo seleiro José Amaro como alguém que pode frear os abusos cometidos pelos coronéis, que oprimiam e dominavam a massa sertaneja, recorrendo muitas vezes à violência para obter seus intentos. O cangaceiro representa, como afirma Hobsbawm, “um agente de justiça, um restaurador da moralidade” (2010, p. 71). Também n~o resta ao seleiro nutrir esperanças nas autoridades, pois, segundo Zé Amaro, o aparato público, que deveria garantir a justiça aos menos afortunados, estava corrompido, dominado pela influência dos grandes chefes políticos e coronéis da regi~o. “Este Ambrósio é um banana. Queria ser delegado nesta terra, um dia só. Mostrava como se metia gente na cadeia. Senhor de engenho, na minha m~o, n~o falava de cima para baixo” (REGO, 2008, p. 57). Embora a admiração pela figura de Antônio Silvino não seja partilhada apenas pelo mestre Zé Amaro no romance, provém deste as maiores demonstrações do poder que o chefe cangaceiro desempenhava no sertanejo. O seleiro alegrava-se por poder servir a alguém tão poderoso e temido na Várzea, um homem temido até mesmo por José Paulino, o rico proprietário do engenho Santa Rosa. O homem se foi, e na casa do mestre José Amaro ficou o terror na sua mulher, e uma sinistra alegria no coração do seleiro. Ele matava galinha e dava ao capitão Antônio Silvino que mandava em toda a cambada de senhores de engenho. (...) O velho José Paulino dera um banquete ao capitão Antônio Silvino. Disseram até que a filha do grande servira a mesa, como se fosse ama dos cangaceiros. (Ibidem, pp.131-2) 76 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 A visão do cangaceiro enquanto um herói, um protetor dos pobres e marginalizados, não obstante a profunda admiração de mestre Zé Amaro e de personagens como o cego Torquato e Alípio, não subsiste, porém, no romance. Em um episódio do romance, que trata da invasão do engenho Santa Fé pelo bando de Antônio Silvino, a face de bandido do cangaceiro acaba por se sobressair sobre a de herói. O assalto ao engenho, com a motivação de busca de um suposto ouro que o coronel Lula de Holanda mantinha guardado em casa, demonstra o lado violento e em nada nobre do cangaceiro, que agride o senhor de engenho, quebra móveis na casa grande e o ameaça. A atitude de Antônio Silvino é recriminada no romance por Vitorino Carneiro da Cunha, que chega a tempo de presenciar a aç~o do bando. “Capit~o Antônio Silvino, o senhor sempre foi da estima do povo. Mas deste jeito se desgraça. Atacar um engenho como este do coronel Lula, é mesmo que dar surra em cego” (Idem, p. 364). Neste mesmo episódio, outro fato vem contribuir para afastar qualquer suposto heroísmo por parte do cangaceiro. Ciente do que estava acontecendo no engenho vizinho, José Paulino chega ao Santa Fé. Ao deparar-se com a destruição provocada pelos cangaceiros na casa grande, oferece dinheiro ao capitão Antônio Silvino, que aceita a proposta do fazendeiro. Fica evidente o caráter espúrio do comportamento do cangaceiro, que aceita o suborno do rico, demonstrando assim sua submissão à classe dos coronéis, justamente os que mais oprimiam e exploravam o sertanejo. Outro ponto que demonstra a despreocupação do personagem representativo do cangaceiro com os sertanejos fica evidente com a prisão de José Amaro e do cego Torquato, que são levados à cadeia pelas tropas do Tenente Maurício sob a acusação de colaboração com Antônio Silvino. Apesar de arriscarem suas vidas para auxiliar o cangaceiro, os dois são esquecidos pelo bandido e somente reconquistam a liberdade pela intervenção do coronel José Paulino, ironicamente o mais poderoso e influente proprietário de terras da região. Segundo Luiz Bernardo Pericás, o cangaceiro não pode ser visto como um herói, um justiceiro social. para ele, o que os cangaceiros defendiam, na verdade, eram seus próprios interesses, buscando alianças com coronéis e até personalidades políticas para alcançar seus objetivos. “O que se pode afirmar é que os cangaceiros não lutavam, deliberadamente, para a manutenção ou para a mudança de nenhuma ordem política. Eles lutavam, isso sim, para defender seus próprios interesses” (PERICÁS, 2010, p. 187, grifos do autor). Essa opinião é partilhada ainda por estudiosos que, antes de Pericás, também se debruçaram sobre a análise do cangaço, como Maria Isaura Pereira de Queiroz. “Lampi~o lutou para si mesmo e em defesa do seu grupo, a fim de sobreviverem e serem poderosos” (QUEIROZ, 1986, p. 14). Como pode ser depreendido pela leitura do romance, o cangaceiro é figura contraditória, oscilando entre herói e bandido, dotado de uma dupla caracterização. Fica acentuada, contudo, a última face do cangaceiro, ou seja, a de alguém que se preocupava somente com seus interesses. O suposto caráter heroico do cangaceiro nada mais era que uma estratégia usada pelos bandos para conquistar a população sertaneja, conseguindo assim o seu apoio, elemento importante para a sobrevivência do cangaço por tantos anos. A admiração que mestre José Amaro concede a Antônio Silvino no 77 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 romance avulta mais como uma atitude ingênua do que uma reação do sertanejo à exploração e opressão impostas pelos coronéis. Finalmente cumpre destacar que a atitude do seleiro de aliar-se ao cangaceiro, submetendo-se às suas ordens, traduz-se também como submissão. Mudou o patrão, mas não a relação de subordinação, ou seja, as relações sociais não se modificam consideravelmente. O desfecho do romance, com a morte de José Amaro, abandonado pela mulher e filha e sem o socorro do cangaceiro, revela a impotência do seleiro frente a uma ordem de coisas que ultrapassa o seu domínio. Expulso da casa em que vive desde que seu pai era vivo, angustiado com sua profissão decadente e abandonado por sua esposa, o seleiro decide pelo suicídio, que representa para o personagem uma fuga das humilhações que sofreu e constatação de sua impotência perante os problemas que o afligem. O CANGAÇO EM OS DESVALIDOS Segundo romance do escritor sergipano Francisco J. C. Dantas, Os Desvalidos tem como protagonista o seleiro Coriolano, um homem frustrado e inconformado com sua sorte, que alimenta um profundo ódio pelo cangaceiro Lampião. A ação da narrativa transcorre no final da década de 1930, momento este que coincide com o massacre do bando de Lampião, ocorrido em Angicos, Sergipe, em 1938. Coriolano é um seleiro que, antes de aprender a trabalhar com o couro, chegou a ter uma curta prosperidade com a botica herdada do tio. Depois Fabricou por um tempo bombons de mel de abelha, com os quais auferiu algum ganho. Tentou ganhar a vida com uma pequena estalagem, em sociedade com o tio Filipe e o amigo Zerramo. Acabou, entretanto, frustrado nas três tentativas, recorrendo ao trabalho com selas, ofício aprendido precariamente com as lições de mestre Isaías, para garantir minimamente seu sustento. Torna-se um homem amargurado, ressentido de sua pobreza e da indiferença dos outros perante sua miséria. O estafeta descia com o molhinho de cartas bem modesto, e diante dele sentado ali na calçada, preferiu sacudir a cobrança do imposto pelo buraco da janela do lado de onde vinha, do que caminhar mais três passadas e entregá-la na mão do pobre tamanqueiro. Tudo isso, minha gente, só por ter baixado de posição. (DANTAS, 1996, p. 24) Os Desvalidos é, portanto, o romance do malogro de Coriolano. Cumpre destacar que o fracasso do protagonista com a botica e com a fabricação dos bombons de mel de abelha decorreu de sua própria imperícia para os negócios. No primeiro caso, preso a uma promessa feita ao tio, de quem herdara a fabriqueta de remédios, de recusar vender qualquer produto industrializado, Coriolano assiste à decadência de sua botica, sufocada pelos medicamentos de marca. No segundo, em nome da qualidade de seus bombons de mel de abelha, recusa-se a misturar em seus produtos melaço de cana, o que baratearia a mercadoria. Sucumbe com a concorrência das rapaduras de Robertão, maiores e mais acessíveis. 78 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Reside no último malogro de Coriolano, contudo, seu ódio pelo temido cangaceiro Lampião, fato que o narrador guarda para o final do romance. Os homens de Lampião invadem a estalagem de Coriolano e seus amigos, humilhando Filipe, tio do protagonista. Inconformado com a situação, Zerramo, amigo dileto de Coriolano, confronta Lampião, mas é morto covardemente por um dos cangaceiros do bando. Este fato altera completamente o destino de Coriolano, que a partir desse momento passa a fugir de Lampião, em um sentimento de medo e ódio. Deste Lampião, que um dia me levou pra um buraco, todo o bem que botam é poetagem! É léria de imaginamento! Na verdade é um malvadão do satanás. Raspa osso de canela a ponta de punhal. Se me pegar de novo, vou ser fritado e cozido. (...) Depois que a volante do governo lhe matou o irmão Livino, no ano de vinte e cinco, diz que o peste cego se azedou e nunca mais teve pena de nenhum vivente (DANTAS, 1996, pp. 175-6). Embora o romance apresente Coriolano como protagonista, o narrador concede importante papel a Lampi~o. O cangaceiro recebe, inclusive, “voz” para contar capítulos de sua história, como suas desconfianças dos coronéis, os amores e cuidados por Santinha, sua esposa, além de sua versão para fatos históricos como a malograda tentativa de invasão da cidade de Mossoró, ocorrida em 1927. Desta investida gorada pelo calor de bom sentimento, o povo conta o que quer, cada um fazendo por mais me esculhambar. Até no papel se bota vadiagem e se estampa potoca! Está aí como me cobram vingança! Decerto que saiu desfeitado, levando os embornais de couro, que queria estufados, completamente encolhidos e vazios. Mas dizer que correu da macacada com medo do enfrentamento, é puro comento acovardado de quem não lhe pode abater os lanços da coragem (DANTAS, 1996, p. 180) Entre os desabafos promovidos pelo personagem ficcional representativo do cangaceiro, merece destaque o da morte de seus irmãos no cangaço. Em um tom saudosista, Lampião relembra os a trajetória infeliz de seus três irmãos que decidiram acompanhá-lo no cangaço. Coitado de mano Antônio, perseguido e enganado em seu dinheiro... e dos outros irmãos que também já se foram sem um só aceno de partida, sem um só gemido atravessado, brigando na mais limpa lealdade! Ah... Livino! Nome de arcanjo, morto atirado que me encheu as mãos de sangue e a vida de mais desgosto no ano de vinte e cinco! E Ezequiel, meu Deus, que homem desassombrado! Estraçalhado a bala de fuzil no meio da seca de trinta e dois (Idem, p. 152) 79 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Percebe-se pelo trecho citado, uma face humana do cangaceiro, o que destoa da visão heroica construída sobre Lampião. Este aparece como alguém que teme pela vida da esposa, pela qual se redobra em cuidados e zelo. O narrador obtém esse efeito com a utilização do monólogo interior, também comum com Coriolano. Por meio desse recurso formal, o cangaceiro expressa sua visão particular do mundo, o que permite perscrutarlhe os desígnios mais profundos de sua alma, emergindo daí uma figura mais humana e menos lendária. Por situar-se temporalmente no momento que coincide com o massacre do bando de Lampi~o, o romance capta as diferentes impressões que o desaparecimento do “Rei do cangaço” provocou entre os sertanejos. Assim, ao lado de manifestações de alívio por parte de Coriolano, convivem desabafos de cunho pessimista pela morte de Lampião: “Agora tudo muda para pior! N~o h| mais quem puna pelo pobre” (Idem, p. 14). Percebese que os sentimentos sobre o cangaceiro variavam bastante, o que comprova o caráter contraditório da figura de Lampião. Por outro lado, vale ressaltar que o próprio Lampião, da mesma forma que seus antecessores no cangaço, buscava construir uma visão positiva de si mesmo, com o intuito de angariar respeito e admiração entre os sertanejos. Distribuir dinheiro aos pobres, lavar a honra de famílias, entre outras atitudes, eram uma forma de o cangaceiro demonstrar preocupação com a população sertaneja, embora na maior parte dos casos isso não ocorresse de forma desinteressada. Cangaceiro também é gente, também tem coração. E muita vez até se esparrama em certas bondades. Diz o povo que Jesuíno Brilhante socorria a pobreza com uma canada de moedas. E Antônio Silvino, que já chegou depois de o mundo piorar muito, cansou de dar dote a moça desencabeçada. (...) E se diz que Lampião mesmo só bole com quem tem posses; só gosta de dinheiro avultado. (Idem, p. 175) Finalmente, pode-se destacar que o romance promove uma humanização da figura do cangaceiro. Este é visto não como herói ou bandido, mas como um homem dotado de uma complexidade de caráter que permitia inclusive a expressão de suas fraquezas e de seus insucessos, algo que se tornaria improvável em uma abordagem que valorizasse a figura lendária construída sobre Lampião. Virgulino Ferreira da Silva aparece como um homem que optou por uma vida de crimes e que por isso pagou um alto preço. Como o título do romance aponta, todos são desvalidos, seja Coriolano, com seus fracassos e seu medo, ou Lampião, com sua vida errante e as constantes perdas. Cada um com seu destino, mas ambos desvalidos, como também o são tio Filipe, Zerramo, Maria Melona, personagens do romance. FOGO MORTO E OS DESVALIDOS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA José Paulo Paes e Luiz Gonzaga Marchezan, em ensaios elaborados à época de publicaç~o d’Os Desvalidos, já haviam apontado relações entre este romance e Fogo Morto, obra produzida meio século antes. Para Paes, o diálogo que Francisco J. C Dantas 80 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 estabelece com o romance de José Lins do Rego principia já no primeiro romance do escritor sergipano, Coivara da Memória, de 1991. Para o poeta e ensaísta, não obstante as diferenças de estilo entre os dois escritores, o ponto de contato entre suas obras reside no fato de concederem importância à memória popular. O regionalismo do sergipano Francisco Dantas, em Coivara da memória e em Os desvalidos, trabalha certos registros de estilo bastante diferentes dos modos de expressão que pontuaram os romances do engenho e do cangaço de José Lins do Rego, embora ambos sejam escavadores da memória popular e da sua condição de oralidade. (BOSI, 2002, p. 258) Marchezan baseia sua análise dos romances na ideia de que a obra mais recente parodia a mais antiga. Para o pesquisador, Francisco J.C. Dantas constrói um romance que ironiza esteticamente a obra parodiada, apontando diversos traços em comum nos dois romances, a começar pela caracterização dos personagens feita pelo romancista sergipano. Dantas, no bojo da sua paródia, por meio de seus desvalidos Coriolano, Felipe e Lampião, ironicamente, contrasta, de forma singular, as experiências vividas pelas personagens de José Lins – Amaro, Vitorino e Antonio Silvino -, circunscritas aos universos dos engenhos de Zé Paulino e Lula de Holanda, com as vividas pelas suas personagens, em ambientes diversos, que as obrigam a construir concepções mais dinâmicas do mundo (MARCHEZAN, 2003, p. 73) O fato é que o próprio Francisco J.C. Dantas admite a influência recebida de outros autores e obras em entrevista concedida ao jornal O Galo, ao afirmar que “a grande literatura é sempre reescrever e revisar” (Apud MARCHEZAN, 2003, p. 68). No romance, pode-se notar essa influência não somente em aspectos formais, como aqueles apontados por Marchezan, como também em relação à exploração de determinadas temáticas presentes em Fogo Morto, como a decadência e o cangaço. Em Fogo Morto, a abordagem do cangaço concentra-se na figura de Antônio Silvino, cangaceiro que precedeu a Lampião, sendo conhecido pela alcunha de “Governador do Sert~o”. No romance, a figura do cangaceiro aparece de forma tímida, neutralizada pela do poderoso coronel José Paulino, como já demonstrado no primeiro capítulo. Fica patente, portanto, que o cangaceiro comporta-se como um homem que cuida apenas de seus interesses, não demonstrando qualquer preocupação social com o sertanejo. Também é acentuado no romance um caráter negativo do personagem, reforçado pelas atitudes do cangaceiro nos episódios da invasão da vila do Pilar e do engenho Santa Fé, do coronel Lula de Holanda. Antônio Silvino avulta como um títere dos coronéis, subordinado aos próprios interesses e ao dinheiro dos grandes proprietários. 81 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 N’Os Desvalidos a caracterização recebida por Lampião ameniza os aspectos negativos do bandido, à medida que permite que este exponha sua visão de mundo e suas angústias e reconheça o embuste que sofreu por servir aos coronéis e até mesmo admitir crimes que cometeu. “Traiç~o é bicha de olho grande! O primeiro coronel que me fez perder a crença nessa raça refalsada que se esconde atrás do dinheiro foi a serpente choca do Jo~o Nogueira.” (DANTAS, 1996, p. 151). O car|ter confessional do discurso de Lampião alivia o caráter criminoso, acentuando a humanidade do cangaceiro. Para Marchezan, o cangaceiro de Francisco J. C Dantas é uma figura “mais completa, humana” (2003, p. 76) que a de Antônio Silvino. Por meio dos monólogos interiores, recurso comumente utilizado na narrativa do escritor sergipano, o leitor penetra no âmago do sofrimento de Lampião, que surge como um homem comum, sujeito aos mesmos medos e angústias do sertanejo. Justamente por confrontar seus personagens com os do romance evocado, Francisco J. C. Dantas tem a oportunidade de concebê-los de uma forma mais completa que José Lins do Rego. Percebe-se que Coriolano e Lampião possuem uma complexidade maior que Zé Amaro e Antônio Silvino, seus correspondentes em Fogo Morto, fato este decorrente, sobretudo, da análise psicológica realizada pelo narrador. Assim, construindo sua narrativa a partir do diálogo com o romance consagrado, Francisco J.C. Dantas não somente demonstra a importância de José Lins do Rego para a ficção regional, como também atualiza o romance, reafirmando a influência e vitalidade da prosa regionalista. REFERÊNCIAS CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. São Paulo: Global, 2005. 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Rio de Janeiro: José Olympio, 1995. 83 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS A MULTIMÍDIA NO ENSINO-APRENDIZAGEM DO ITALIANO. PRO, CONTRA... E ERROS PARA EVITAR21 T. Marin Edizioni Edilingua RESUMO: o presente artigo trata do uso da multimídia no ensino de italiano como língua estrangeira. No entanto, mesmo se tratando de assunto específico – o ensino do italiano as considerações do autor podem ser refletidas para o ensino de línguas em geral, tanto maternas quanto estrangeiras. O trabalho trata das vantagens e das vantagens do uso das diversas mídias no ensino, a importância da interface, do feedback, a multimídia e os aspectos neurológicos e por fim o papel do professor neste processo de aquisição de uma nova língua. Palavras-chave: multimídia; ensino-aprendizagem de línguas; italiano como língua estrangeira INTRODUÇÃO22 A didática das línguas é como sabemos uma disciplina um tanto quanto instável, em contínuo movimento. Novas teorias, provenientes de várias disciplinas humanísticas encontram, antes e depois, aplicação no nosso campo contribuindo constantemente com a renovação da didática das línguas. As contribuições dessas teorias estão presentes com a utilização de vários subsídios didáticos no ensino de línguas estrangeiras. Assim, se poderia sustentar que entre os dois fatores – teórico e prático – existe uma reciprocidade: não é fácil dizer que a difusão ou a facilidade de uso de certo subsídio levou à difusão de certa aproximação didática ou foram determinadas teorias que facilitaram a introdução de certas tecnologias no ensino de idiomas. Em base, quando se afirma que as tecnologias para o ensino de idiomas, entre estes o CD-ROM e Internet, são concisos com uma difusão dos contatos humanísticoafetivos e que este “encontro” foi e continua a ser ideal. Obviamente, as tecnologias de aplicação lingüística. Não são os únicos fatores do ensino de línguas, mas o advento destas não poderia se verificar em um período melhor. Todavia, também se vem reconhecendo por muitos que as tecnologias do ensino de línguas podem contribuir de maneira significativa a sua renovação e ao seu 21Texto original: T. MARIN. I multimedia nell’apprendimento/ insegnamento dell’italiano.Pro, contro ... ed errori da evitare. In: Rivista Ilsa/ italiano per stranieri - Rivista quadrimestrale perl’insegnamento dell’italianocome lingua straniera/seconda, Roma-Atenas: Edilingua, n.1, p. 10-17, nov. 2005. Traduzido por Marcos dos Reis Batista. 22 Este artigo foi produzido no âmbito do ensino do italiano como língua estrangeira. Entretanto, o consideramos bastante interessante, principalmente para aqueles que estão começando sua carreira no ensino de português brasileiro como língua estrangeira / língua segunda, que o traduzimos para publicação em português do Brasil. 84 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 enriquecimento, não se pode considerar obsoleta; nem podem, ao menos, no presente, substituir a eficácia dos suportes didáticos. Podem completar e facilitar o nosso trabalho, deixar a lição mais dinâmica e interessante. Estas tecnologias, apesar de existirem por vários anos com diversos produtos e aplicações, não podem ser consideradas maduras e com as mesmas possibilidades não são desfrutadas em plenitude. O propósito do presente artigo é colocar em evidência os prós e os contras do software didático multimídia. AS VANTAGENS DO SOFTWARE DIDÁTICO MULTIMÍDIA Em relação aos outros suportes didáticos, o computador apresenta vantagens de tipo “técnico”: pode conter o equivalente a milhares de p|ginas escritas, muitas horas de gravação, vídeo, imagens, etc., mas as vantagens mais importantes de tipo metodológico e cognitivo são: 1. É extremamente flexível e adaptável às necessidades, aos interesses e aos ritmos pessoais de cada usuário. É o único suporte didático que apresenta um alto grau de interatividade (que varia segundo cada produto) que permite ao aluno de controlar e guiar a sua aprendizagem: escolher os conteúdos e a ordem cujo percurso pretende fazêlo, o número de vezes que deseja repetir, o ponto cujo deseja abandonar ou recomeçar, os pontos cujo acredita que devam exercitar-se mais, as palavras para procurar no dicionário integrado. 2. Esta liberdade e autonomia do discente contribuem no seu crescimento cognitivo, ao desenvolvimento de seu senso crítico. O estudante se sente uma pessoa responsável, capaz de avaliar e escolher o seu percurso e o seu ritmo. Isto é, a sua volta é benéfico a nível afetivo: o estudante é motivado quando sabe que é ele mesmo que tem o controle e vice-versa, é diferente o que acontece comumente em sala de aula e, isto evita a desmotivação que muito freqüentemente são criadas quando se sente constrangido a fazer uma atividade, um dever; 3. A integração de linguagem e códigos diversos cria as condições para uma melhor aprendizagem em quanto, como sabemos, lembramos 10% daquilo que vemos, 20% daquilo que escutamos, e 50% daquilo que vemos e escutamos. A interatividade depois do moderno software didático acrescenta a eficiência do nosso cérebro, enquanto recordamos 80% daquilo que fazemos; 4. O aluno se sente ativo porque faz, explora, descobre (e como sabemos o prazer da descoberta constitui uma das melhores fontes de motivação) e também, se grande parte de suas ações e descobertas foram previstas pelo software, o aluno percebe sua exploração como uma verdadeira pesquisa, um caminho cada vez diferente e diferente dos outros. Os tempos e os modos da exploraç~o s~o os seus: assim, aprende “fazendo’ e é convidado de modo mais intenso (Pichiassi, 1999)”; 5. A “comunicaç~o” com a m|quina n~o é do tipo “certo/ errado”, mas se aproxima (sempre mais) à interação com um tutor humano: existe um feedback contínuo, sugestões e ajuda quando necessário, portanto, uma avaliação de tipo construtivo, autoformativa e não só somativa. Esta relação torna-se ainda mais eficaz do ponto de vista da aprendizagem quando o computador não se limita a fornecer a resposta justa, mas premia o estudante com oportunas mensagens de gratificação, que rendem a prática mais prazerosa e motivante. Este contínuo feedback diferencia o 85 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 computador do laboratório lingüístico clássico, onde o rumo corre independentemente para a correção ou menos para a resposta obtida (baixo grau de interatividade); 6. Este feedback é impessoal: o estudante não tem mais medo de errar, de ficar sem graça diante do computador, de pedir um esclarecimento ou uma repetição, de provar de novo, de dar uma resposta segundo os próprios ritmos sem que a máquina se irrite ou perca a paciência, isto aumenta o seu senso de segurança, de confiança e de autonomia, faz baixar os filtros afetivos e potencia a aquisição (Krashen, 1983); 7. O software didático, se bem programado, não é só o tutor que sabe tudo, mas torna-se um verdadeiro guia, um contínuo estimulo, fornecendo não só a resposta certa, mas mostra parte desta. Encoraja assim o aluno a ir mais adiante, a procurar respostas, a superar a si mesmo, a desenvolver estratégias de aprendizagem e não a limitar-se de aceitar seu fracasso; 8. O computador pode desenvolver as tarefas mais chatas e cansativas, como o controle e a correção de testes e as atividades repetitivas, deixando ao professor trabalhos mais criativos e comunicativos; entretanto, o aluno pode exercitar-se e apreender também na ausência do professor; Por fim, o software didático em CD-ROM apresenta uma série de vantagens em relação à Internet: a. Dá ao usuário a possibilidade de escolher livremente entre vários percursos sem o risco, muito intenso na rede, da queda desta e da confusão por vias de sobrevivência de materiais disponíveis; b. Os conteúdos de um CD-ROM são muitos mais seguros daqueles apresentados na rede pelo qual observa-se um material seguro, a unidade didática e, freqüentemente, a moralidade; c. Na Internet, os tempos de espera são imprevisíveis e comumente de uma velocidade não aceitável muitas vezes se comparado a de um CD-ROM; entretanto, incerta é a disponibilidade de certas páginas da WEB. O DIFÍCIL CAMINHO DO SOFTWARE DIDÁTICO Apesar das inevitáveis vantagens do computador, a sua difusão e recepção não foram, e continuam não sendo, análogo às suas impressionantes possibilidades. Entretanto, entre os docentes, e não somente entre os menos jovens, se nota certa dificuldade. Uma primeira razão desta dificuldade nasce pelo medo que estes meios colocam em discussão em relação ao papel do livro (Maravigliano 1994). O livro, de fato, não é mais visto somente como instrumento didático, ao contrário, como o computador ou o videocassete, mas é um modelo de cultura geral, que está presente no conhecimento pedagógico para não ser mais pensado como medium. Esta dificuldade nas análises das novas tecnologias de ensino é motivada talvez por outro medo: o medo dos professores de perderem parte de seu papel de detentores de conhecimento e de saberes e, assim, dos seus prestígios. Mas também da incapacidade ou da falta de vontade de adaptar-se à realidade que muda, do desejo de ficar ancorados às velhas certezas; motivo cujo existem muitos professores que ainda hoje usam métodos ou materiais superadíssimos do ponto de vista metodológico, só porque não julgam necessários manter-se informados sobre as novidades teóricas e editoriais. 86 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 Uma outra razão de resistência é talvez causada pela rapidez cujas novas tecnologias se evoluem e se desenvolvem. Não apenas se aprende a usar novos meios ou um novo software, este se torna obsoleto ou os mínimos requisitos de hardware superam as características técnicas dos computadores de uma escola ou de um simples usuário. Mas talvez os “tecnocéticos” n~o em todas as considerações, entre eles existem também alguns que acreditaram nas tecnologias desde o início. Porém, em muitos casos o entusiasmo inicial pela novidade de um meio como o computador, exaltado pelos seus efeitos milagrosos no estudo das línguas, se observou com a complexidade de seu uso e, sobretudo, com a dificuldade de utilizá-lo para as suas específicas potencialidades, melhor para fazer o quanto se pode continuar a fazer com a didática tradicional. Em outros termos, o computador criou falsas esperanças: freqüentemente o recurso às novas tecnologias foi ditado por fatores de curiosidade, de novidades ou da falsa esperança que a adoção da tecnologia poderia resolver os problemas de uma didática que não conseguia satisfazer as novas exigências. Quando apareceu o livro impresso, com a sua linearidade e seqüencialidade, representou um novo modo de organização do pensamento, valorizando a lógica linear, a clareza, que são características à base da ciência moderna. Poderia dizer que o advento e a grande difusão da internet, do software multimídia e da estrutura do hipertexto e da hipermídia, especificamente nestes, representaram uma revolução análoga. LIMITES E DESVANTAGENS Vimos às potencialidades do software multimídia, mas também o ceticismo e a freqüente desilusão, sobretudo nos tempos iniciais, mas somente, na era da multimídia. Como acontece freqüentemente por uma série de motivos, entre os quais: o que poderia ser e o que realmente é, existe uma consideravelmente distância. E sabe-se que quanto maior são as expectativas que um software ou um livro didático criam, maior será esta desilusão. Isto vale, infelizmente, para muitos produtos multimidiáticos ainda em circulação que do ponto de vista didático e educativo não correspondem à inovação e à eficácia que o meio permite alcançar. Existem programas que revelam uma cultura ainda ligada à tecnologia do livro e que pela modalidade de emprego podem ser definidas como simples “volta p|ginas” eletrônicas. O motivo é que faz pouco tempo que, em medida muito reduzida ainda hoje, acreditava-se que um expert na área de informática fosse capaz sozinho de criar um software didático, sem a ajuda ou a supervisão de um expert em didática de ensino lingüístico ou simplesmente de um professor. Acreditava-se, por isso, que bastava apresentar os mesmos conteúdos em um meio novo para aprender uma língua; por isso, na realidade, se desfrutavam as capacidades técnicas do CD-ROM, mas não nas suas potencialidades a nível cognitivo. Hoje a mentalidade melhorou bastante e desde já cada software didático de qualidade é fruto de uma colaboração entre três pessoas, provenientes de diversos campos. Apesar disso, se tende ainda avaliar as possibilidades didáticas das tecnologias de ensino modernas, mantendo estas capazes de ensinar uma língua, sem a necessidade de um currículo que as prenda ou as organize em devidos usos, sem a integração com outros materiais e, até mesmo, sem a presença de um monitor. Necessitaria, ao 87 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 contrário, considerar a multimídia como alguns dos ótimos subsídios didáticos, como o livro, que para ser desfrutado ao máximo devem encontrar suas posições e integrar-se com outros fatores: currículo, professor, classe, tempo, objetivos. E assim como o livro não é por si só perfeito e suficiente, também um programa de multimídia seja adaptado não adotado, no sentido que necessita de algum usuário mesmo ou professor, avaliadores de conteúdos e dos percursos mais válidos e descartar aqueles menos interessantes; tendo atenção, porém, atenção a não dar limites à autonomia do estudante. Independentemente desta avaliação, que necessita comumente evitar e apesar disso, se entende a importância do trabalho em equipe para preparar produtos válidos, como vimos na introdução, a multimídia apresenta algumas vantagens ou, se queremos, alguns limites: 1. É muito difícil e dispendioso em termos de tempo poder integrar o software didático com o manual impresso, em quanto comumente, os pressupostos metodológicos não coincidem: selecionar materiais coerentes entre os empenhos destes e a capacidade por parte do professor; 2. Predispor laboratórios multimídias é custoso e se as universidades dispõem de fundos para realizar os ambientes adaptados, não acredito que isto seja sempre válido para as pequenas escolas de língua ou as escolas estatais; 3. O problema do custo torna-se mais intenso se se considera que o hardware torna-se obsoleto rapidamente e existe a necessidade de novos investimentos: telas planas no lugar das tradicionais (a favor de uma melhor ergonomia), processadores mais velozes para os novos programas que têm requisitos mínimos e etc. 4. Um computador é decisivamente mais complicado do que o velho livro impresso que abrimos e fechamos: problemas técnicos podem surgir a qualquer momento, até na instalação e, mesmo freqüentemente existe a necessidade de um técnico para resolvê-los; a facilidade cujo estes problemas podem corromper cada programação e criar ao professor maior insegurança e dificuldade no uso dos computadores; por este motivo estudantes e professores devem proceder discretamente, segundo cada produto, em nível de conhecimento técnico; 5. Estudantes e professores devem adaptar-se aos novos papéis deles, pelos quais estão freqüentemente ainda não-preparados; 6. Freqüentemente muitos programas dão algumas respostas erradas como certas, só porque um acento ou uma letra não está exato; ainda mais difícil é a situação no caso do reconhecimento vocal, tecnologia ainda não amadurecida: em nível psicológico isto resulta frustrante e desmotivamente para o estudante, depois se sente que o programa não reconhece o seu empenho e joga a resposta inteira para uma parte mínima de um todo correto; 7. Uma excessiva oferta de percursos alternativos, uma abundância de conteúdos pode gerar desorientação e sobrecarga cognitiva, sobretudo no caso do estudante menos autônomo; 8. Em muitos casos é difícil, se não impossível para o professor, avaliar as prestações dos estudantes: se e quanto tempo trabalharam, a produção que obtiveram etc.; 88 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 9. A considerável maioria dos software didáticos foram desenhados para a autoaprendizagem ou, no melhor dos casos, para o trabalho individual integrado ao currículo, algo que é comumente em contraste com a natureza da língua que se baseia na comunicação entre três pessoas; além disso, o trabalho individual favorece o isolamento e torna-se obstáculo ao desenvolvimento de algumas competências na classe e na sociedade; 10. O trabalho individual no computador cria problemas logísticos: a classe deve interromper a aula e se transferir para o laboratório de multimídia para continuar a prática; de fato, não se trata mais de aula, mais de um aprofundamento individual e simplesmente livre; 11. Por fim, não é o instrumento em si que cria as novas potencialidades didáticas, quanto melhor os conteúdos e as formas de ensino e de aprendizagem que se realizam através destes novos instrumentos. MULTIMÍDIA E ASPECTOS NEUROLÍNGÜÍSTICOS Os estudos recentes da Neurolingüística ao ensino de Línguas Estrangeiras sublinharam a importância das tecnologias de ensino de LE modernas para o desenvolvimento da autonomia do discente e da sua capacidade de aprendizagem. De fato, segundo o modelo neurolingüístico de Marcel Danesi (1988), a língua ativa ambos hemisférios do nosso cérebro, os quais operam com as modalidades diversas, modalidade verbal e não-verbal. No conceito precedente da bimodalidade se associa aquela da direcionalidade, segundo o qual as informações chegam ao cérebro passando pelo hemisfério direito depois ao esquerdo. Esta teoria, desde já amplamente aceita, implica uma série de astúcias e de escolhas metodológicas, entre as quais, por exemplo, as estratégias de tipo indutivo: no caso de novos input lingüísticos necessita proceder para as funções contextualizantes cujo vêm geralmente as idéias (hemisfério direito) às seqüências e organizativas numa fase secundária e formativa (hemisfério esquerdo) – Danesi, 1988. Entretanto, interessante é a teoria da programaç~o neurolingüística (O’ Connor, Seymour 1990): cada pessoa, e desde então, cada discente, elabora e imagina as informações de modo diverso; existe quem tem uma forte predominância da modalidade direita e, portanto, provavelmente encontrará algumas dificuldades se inserido em um contexto didático tradicional e vice-versa. A didática tradicional não permite entender e resolver os problemas enquanto o professor não pode, por falta de tempo, adaptar sua aula às particularidades cognitivas e aos estilos de aprendizagem de cada estudante: tem aluno que é preso pelo lado visual, outro auditivo, outro sinestésico. O computador multimídia, com o software adaptado, pode ser muito mais flexível comprometendo outros sentidos: isto implica com um compromisso mais complexo do discente, do ponto de vista afetivo, mais ativo e eficaz. Interessante é, enfim, de modo cujo hipertexto e o hipermídia, estruturas centrais da multimídia, influenciam no conhecimento, aspecto que constitui um dos temas de pesquisa abertas e mais importantes neste campo. Que é seguro e que uma tecnologia que consente a um discente a possibilidade de construir um percurso próprio de estudo e de descoberta, o que fica curioso através do recurso da mídia e códigos diversos, influi 89 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 de modo determinante nos seus conhecimentos, estrutura do seu pensamento em forma e com modalidades diferentes em relação à seqüência do livro. A IMPORTÂNCIA DA INTERFACE Com o termo interface entendemos a “linguagem”, a soma dos comandos e de todos os elementos que permitem ao usuário de comunicar com o computador. Depois que a “troca” usu|rio-software, isto é, todos os input que o homem envia e recebe da máquina, passa pela interface, é fundamental que esta seja bem projetada pelos motivos que são explicados a seguir. Características principais de uma boa interface gráfica são a coerência e a estabilidade: um comando, um elemento visual se deve repetir tendo possivelmente a mesma função. Isto é, permite ao usuário de reconhecer e aprender facilmente a “linguagem gr|fica” do programa. Sobretudo, é fundamental que o software n~o apresente dificuldades acrescidas, ligadas ao emprego dos instrumentos informáticos que são obstáculos ou dificultam a aprendizagem lingüística. Por isso o software deve ter uma interface simples e intuitível, estável, familiar e previsível que não constrinja a uma fase mais ou menos longa de training para aprender a “usar o programa”. O programa ideal é aquele que não solicita uma aprendizagem (zero learning time). Isto vale em geral para a interação homem-computador, porém, é mais válido no caso do software didático, cujo é fundamental que o estudante consiga se concentrar nos conteúdos e nos processos cognitivos para ativar e não só no instrumento e eventuais dificuldades na comunicação com este. Em outros termos, se a tecnologia utilizada resulta um tanto complexa para se tornar conhecida. Demais energia por parte do usuário, o problema cognitivo para ser resolvido passa por um segundo plano reduzindo as atenções do estudante e, a causa da conseqüente ânsia, a capacidade de aquisição dos conteúdos. Em outros, uma boa interface gráfica deve ser também prazerosa para ver, visto que o usuário passa muito do seu tempo a olhar um esquema. Esteticamente significa freqüentemente cativante, mas também simples: colorido demais e um excessivo uso de animações e de sons desorientam o estudante e podem criar dispersão. Em outros termos, necessita manter um equilíbrio entre satisfação e utilização. A IMPORTÂNCIA DO FEEDBACK Com o termo feedback entendemos aqui não a reação do software didático às reações do usuário (ícones de animação, tempos de espera e etc.), mas as mensagens do programa relativas às performance do estudante. Como já foi ilustrado em precedência, o feedback do programa é muito importante por uma série de motivos e deve ser bem projetado e variado para ajudar, guiar e motivar o estudante quando deste tem necessidades. Cada vez que pede ao programa a correção de um exercício, o estudante deveria receber breves mensagens de feedback, consistentes possivelmente, em uma combinação de textos escritos, imagens e sons que deveriam ter o propósito de gratificálos e ao mesmo tempo encorajá-los exercendo motivações complementares. É importante que estas mensagens sejam claras e compreensíveis. Com a finalidade de dar ao estudante a sensação que entre ele e o programa existe uma verdadeira comunicação, 90 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 as mensagens deveriam ser também variadas: poderiam parecer banais ou ridículas e, por isto não satisfatório, um programa cujo feedback assume a forma de uma expressão estereotipa de elogio chato repetitivo para cada resposta correta. O propósito desta variedade é de fazer com que o aluno sinta que o programa “est| do seu lado”; Um colega de estudo, um tutor que o recompensa quando faz bem, que sabe também motivá-lo; em caso contrário, que o convida a refletir sobre o seu percurso e a auto avaliar-se com o propósito de melhorar. Um feedback que penaliza o erro tolerando em diversos graus, que reconhece e premia o esforço, não só o resultado. Por isto, uma interação mais variada, natural e “humana”. O PAPEL DO PROFESSOR Independentemente do tempo complexo para as aulas que se escolhe para dedicar ao software didático, decidir sobre a sua integração no currículo implica algumas mudanças no papel do professor e do aluno, ambos de qualquer modo em fase de mudança graças à proposta humanistica-afetiva. Entretanto, o professor não é mais infalível, detentor do saber, o único modelo de língua e cultura, como era considerado na época dos métodos estruturalistas. É um tutor, um consultor que guia o aluno, este último cada vez no centro das aulas, consciente e responsável pelo próprio percurso. Mas, se as tecnologias para o ensino de línguas modernas não pretendem que o professor seja um expert da informática, requerem em compensação maior competência didática. Não é só a capacidade de avaliar e selecionar os materiais adaptados, mas também os de coordenar todos os componentes, de integrar os novos meios no currículo, planificando e protegendo estes do uso em troca com os outros subsídios. Além disso, o professor deve deixar o aluno mais ativo e responsável, formá-lo, se poderia dizer, às necessidades autônomas para desfrutar em plenitude dos novos meios, agirem para manter alta a motivação, fornecer apoio psicológico também durante a prática individual, a qual pode criar isolamento. Por outro lado, a mesma escolha dos materiais multimídia mais adaptados a um específico tipo de estudante requer do professor algumas competências e outras de natureza pedagógica e lingüística, necessárias para avaliar materiais impressos. Pedemse competência, também se mínimas relativas à informática (de qualquer modo, úteis para oferecer suporte técnico cada vez que o aluno tenha alguma necessidade) e os diversos códigos cujo software didático se vale. Em outros termos, não é suficiente decidir simplesmente se o conteúdo lingüístico é adequado ao nível declarado, se as atividades estão coerentes com as habilidades desenvolvidas, mas “ocorre prefigurar o impacto a nível cognitivo e psicológico dos sons, das imagens e dos filmes cujos conteúdos são apresentados” (Pichiassi, 1999). No final da avaliação dos materiais eletrônicos para utilizar, o professor deve levar em consideração, alguns fatores importantes como a coerência (nível, base metodológica) com os outros materiais, a clareza dos objetivos didáticos, o balanceado esquema dos materiais escritos, áudio e vídeo e alguns fatores citados na parte As Vantagens do Software Didático Multimídia. 91 FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471 REFERÊNCIAS Apple computer Inc. Macintosh Human Interface Guidelines, Reading (MA). AddisonWesley, 1984. BONAIUTI, G. Ergonomia delle interface e apprendimento. 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