Ed.126 Ago-Set 13 - Revista Principios

Transcrição

Ed.126 Ago-Set 13 - Revista Principios
1
126/2013
2
Editorial
Reforma Política para proporcionar
mais democracia!
A
Foto: Josie Jerônimo
s manifestações de junho último trouxeram às ruas o grito
pela elevação da qualidade de
vida nas cidades e por melhores serviços públicos e puseram a nu uma crise
no sistema de representação política no
país, expressando o anseio do povo, em
particular da juventude, por mais espaços de participação política.
Destacam-se, na atualidade, três
grandes entraves à ampliação da democracia. O primeiro deles são os monopólios privados dos meios de comunicação
que negam à sociedade o direito à informação plural e, por conseguinte, atrofiam a liberdade de expressão. Em se- Partidos de esquerda e entidades da sociedade civil defendem Reforma Política
guida temos a Justiça que segue lenta, que amplie a democracia participativa e direta
cara e de difícil acesso ao povo. Resultado de um Poder Judiciário fechado e opaco e que, adeQuanto ao conteúdo democrático da Reforma
mais, por ações de setores de sua cúpula, tem ferido
Política duas questões se destacam: resguardar e
as prerrogativas dos demais Poderes. Finalmente, se
aprimorar o sistema proporcional; e combater a nedestaca a crise da democracia representativa. O Poder
gativa influência do poder econômico nas campaLegislativo, apesar de ser o menos fechado, tem sua
nhas eleitorais. Propõe-se, então, uma nova forma
composição filtrada pelo financiamento privado das
de votação: o eleitorado passaria a votar numa placampanhas eleitorais que faz resultar em casas legistaforma de ideias e de compromissos de partidos ou
lativas conservadoras, dominadas por representantes
coligações com uma respectiva lista de candidatos,
dos interesses do capital, com escassa participação de
resguardada, nesta lista, uma participação destacatrabalhadores e, também, de mulheres.
da de mulheres. Em vez de campanhas eleitorais
Estes entraves só podem ser removidos com a
financiadas por bancos e empresas – raiz da maioria
realização de reformas estruturais democráticas.
dos escândalos de corrupção –, apresenta-se como
Princípios destaca nesta edição a Reforma Política
alternativa o financiamento público exclusivo dedemocrática. Uma Reforma que aperfeiçoe a demolas. A proposta de realização de um plebiscito aprecracia representativa e amplie os instrumentos e
sentada pela presidenta Dilma Rousseff, apoiada
mecanismos de democracia participativa e direta.
pelos partidos de esquerda (PT, PCdoB, PSB, PDT)
Além de barrar uma Reforma Política de contesobre este tema, e as movimentações de várias entiúdo progressista, o conservadorismo tem procuradades e movimentos pró-reforma, como é o caso da
do, na contramão da exigência das ruas, impor reOrdem dos Advogados do Brasil (OAB), é uma ação
trocessos. Para tanto, advogam instrumentos que,
importante, uma vez que, como a experiência já deaprovados, representariam duro golpe no pluralismonstrou, sem pressão social e política os setores
mo partidário, pois visam a eliminar as minorias.
conservadores maquinam para que a democracia
Entre esses instrumentos retrógrados estão o voto
não se amplie.
distrital, a proibição de coligações e até mesmo o
retorno da cláusula de barreira, já considerada pelo
Adalberto Monteiro
Supremo Tribunal Federal (STF), antidemocrática e
Editor
inconstitucional.
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126/2013
4
Capa
Reforma Política para ampliar ou
restringir a democracia?
Aldo Arantes.....................................................
4
Reforma Política necessária, urgente e
democratizante
Vanessa Grazziotin.............................................
9
12
Política não é negócio: é hora de
acabar com o financiamento
privado das campanhas eleitorais
Manuela D’Ávila........................................
12
A Reforma Política e a participação
das mulheres
Jô Moraes e Alice Portugal ........................
16
Reforma para ampliar a democracia e
acabar com a ingerência do
poder econômico na política
Daniel Almeida..............................................
22
16
29
A velha arapuca do voto distrital
Bernardo Joffily.............................................
A Reforma Política, a consulta
popular e o diálogo
da esquerda com as ruas
Rui Falcão.......................................................
35
39
2
Entrevista com Renato Rabelo
Novos horizontes para a Reforma
Política democrática................................
39
Entrevista com Carlos Lupi
“O Brasil precisa de uma
verdadeira Reforma Política”..............
44
Sumário
Brasil
Mais médicos para o Brasil e mais
recursos para o SUS
Júlia Roland...................................................
50
50
Mandatos comunistas de 1945:
resgate de um patrimônio
da democracia brasileira
Osvaldo Bertolino...........................................
55
Internacional
Foro de São Paulo:
Muito trabalho pela frente
60
60
Valter Pomar....................................................
Reflexões sobre a luta pela paz
na Colômbia e seus impactos na
América Latina
Pietro Alarcón..............................................
67
Cultura
73
73
120 anos de Mário de Andrade:
De caso com o comunismo
André Cintra.................................................
Economia
Marx, teorias e crises do capitalismo
contemporâneo (conclusão)
A. Sérgio Barroso...........................................
77
Resenhas
Repressão e direito à resistência:
A história dos comunistas na luta
contra a ditadura (1964-1985) ............
84
77
Alma em Fogo:
A trajetória de lutas e a
vida de Aldo Arantes.................................
86
87
Dario Canale: um revolucionário
internacionalista......................................
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Reforma Política para ampliar
ou restringir a democracia?
Aldo Arantes*
Arquivo TRE-SC
A proposta da presidenta
Dilma de realização
de um plebiscito para
que os eleitores opinem
sobre a Reforma Política
foi bombardeada pela
mídia conservadora e a
oposição sob a alegação
de que a questão é
“complexa” para o
povo opinar, numa
evidente subestimação da
capacidade de nosso povo.
Na verdade, é receio da
manifestação popular
4
A
proposta da presidenta Dilma de realização de um plebiscito para que os eleitores opinem sobre a Reforma Política foi
bombardeada pela mídia conservadora
e a oposição sob a alegação de que a
questão é “complexa” para o povo opinar – numa evidente subestimação da
capacidade de nosso povo. Na verdade, é receio da
manifestação popular.
Para avaliar a tendência da população brasileira
sobre a Reforma Política a Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) contratou uma pesquisa ao Instituto
Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope),
cujos resultados foram divulgados recentemente.
A pesquisa indicou que 85% dos entrevistados
se manifestaram a favor de uma reforma política.
Sobre o financiamento de campanha por empresas
78% se manifestaram contra. A punição mais rigorosa ao “caixa dois” de campanha foi apoiada por 90%.
Em defesa da eleição feita em torno de propostas e
listas de candidatos 56% se manifestaram a favor.
Opinaram a favor de um projeto de lei de iniciativa
popular 92%. E 84% se manifestaram a favor de que
a Reforma Política vigore para as próximas eleições.
Esta pesquisa colocou abaixo falsas formulações
sobre a preferência popular em torno da Reforma
Política. Demonstrou o grande interesse no tema e
Capa
a manifestação contra o atual sistema eleitoral e a
nha eleitoral. Em 2010, 91,30% e, em 2012, 95,10%.
defesa de questões relacionadas a uma Reforma PoTais números indicam as causas do agravamento da
lítica Democrática.
crise de representação política.
A crise de representação política, expressa nas
Cada vez mais os eleitos se aproximam de seus
manifestações de rua, colocou na pauta política do
financiadores e se distanciam do povo.
Comentando o financiamento de campanha, a
país o debate sobre a Reforma Política. E uma quesFolha de S.Paulo, de 3 de julho de 2013, saiu abertatão que divide as opiniões essa reforma diz respeito
mente em defesa do financiamento
a qual seria a causa fundamental
por empresas afirmando: “não faz
da crise de representação política.
sentido impedir que pessoas ou
Enquanto os defensores de uma
O empresário que
empresas colaborem com candidaReforma Política Democrática idenfaz financiamento
tos de sua escolha”.
tificam no financiamento privado
Os que se opõem ao financiade campanha a raiz da crise de reprivado por meio
mento público argumentam, falpresentação política, os defensores
do “caixa dois”
samente, que o financiamento
da Reforma Política Antidemocrátipúblico de campanha representará
ca estão preocupados com a goverrecebe através do
ao poder público. Mas, o dito
nabilidade. Para atingir este objetisuperfaturamento de gastos
financiamento privado, na verdade
vo pretendem uma redução drástica
é público. O empresário que faz o
do número de partidos.
obras, e de muitos
financiamento privado por meio do
outros mecanismos,
ilegal “caixa dois” recebe através
Financiamento público
do superfaturamento de obras, e de
exclusivo e lista fechada
um volume de
muitos outros mecanismos, um vode candidatos
recursos muitas
lume de recursos públicos muitas
vezes maior do que sua “doação”
O financiamento privado de
vezes maior do que
de campanha. E quem paga isto é
campanha, sobretudo o financiasua “doação” de
o contribuinte.
mento por empresas, é a raiz da
No entanto, o financiamento
crise de representação. Os eleitos
campanha
público de campanha exige um nopassam a defender seus financiavo sistema eleitoral onde os recurdores e não seus eleitores – o que
sos sejam destinados aos partidos e não aos candiprovoca uma justa revolta na sociedade.
datos. A solução para resolver este problema está na
A influência do poder econômico no processo poadoção do sistema proporcional com lista fechada.
lítico foi denunciada por várias pessoas que se maO sistema proporcional, incorporado à Constituinifestaram na Audiência Pública realizada no Sução brasileira, representou um importante avanço
premo Tribunal Federal (STF) para discutir a Ação
democrático em vários países de mundo. Ele se torDireta de Inconstitucionalidade da OAB sobre o
nou uma necessidade em decorrência da incorporafinanciamento de campanha. A Ordem alegou que
ção de grandes massas ao processo eleitoral, com a
o financiamento de campanha por empresas é inampliação do sufrágio universal.
constitucional porque a Constituição estabelece que
No sistema proporcional, os partidos elegem um
“todo poder emana do povo” e que empresa não é
número de parlamentares proporcional ao número
povo. Portanto, não pode influenciar na constituição
de votos que obtêm no processo eleitoral. Assim, um
do poder político.
partido ou coligação que obtiver 30% dos votos terá,
Prestando depoimento perante o STF o deputado
aproximadamente, 30% da representação parlamentar.
Henrique Fontana denunciou que os gastos gerais da
Falando sobre o sistema proporcional em semicampanha eleitoral de 2002 foram de 827 milhões de
nário realizado na Universidade de Brasília (UnB),
reais e na de 2010 de 4 bilhões e 900 milhões, num
no ano de 1980, o ex-presidente Tancredo Neves afircrescimento vertiginoso. E informou que, dos 513
mou: “Tenho para mim, com base na minha longa
deputados eleitos em 2010, 369 estão entre os que
experiência de vida pública, sobretudo encarando
dispunham de mais recursos para suas campanhas.
o aspecto da realidade socioeconômica do Brasil,
Na mesma oportunidade, o diretor de Pesquisas
que o sistema proporcional é o único capaz, como
do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Jainstrumento de ação política, de promover a rápineiro (Iuperj), Geraldo Tadeu, demonstrou que tem
da democratização das estruturas e das instituições
havido um aumento da contribuição de empresas.
brasileiras. O sistema proporcional é realmente uma
Em 2008 elas doaram 86% dos recursos da campa-
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ação política que determina que as resistências reacionárias, conservadoras e imobilistas têm que ceder
à pressão das reivindicações populares, fazendo que
a história siga sua marcha implacável”.
Mas o sistema proporcional brasileiro adota a
lista aberta de candidatos. Ou seja, a lista de candidatos não obedece a uma ordem. O voto é dado a
qualquer dos candidatos da lista. Assim, a disputa
eleitoral é feita em torno de projetos individuais. E
o eleito é aquele que obtiver a maior votação. E o
poder econômico passa a ser o diferencial a garantir
a eleição. Desse modo, trava-se uma guerra em que
os comitês eleitorais dos candidatos se transformam
em verdadeiros partidos dentro de um partido. O
único objetivo é a eleição de determinado candidato.
Os males do sistema proporcional com lista aberta podem ser superados com a adoção da lista fechada. Neste sistema, os candidatos são ordenados
na lista pelos partidos políticos. E o voto é dado em
um partido, em seu programa e em sua lista de candidatos. Isto assegura uma campanha eleitoral feita
em torno dos programas partidários e não em torno
de indivíduos. Eleva o nível político das campanhas
eleitorais e obriga aos partidos a buscarem maior definição político-ideológica e programática. Sem isto
não conseguirão obter votação. Tal alternativa reduz
os gastos de campanha, possibilitando o financiamento público, já que os recursos serão repassados
aos partidos e não aos candidatos. A adoção da lista
fechada deverá ser acompanhada de normas para
estabelecer, democraticamente, a lista de candidatos
e a distribuição dos recursos. A lista de candidatos
permite, também, assegurar a efetiva participação
de um terço das mulheres nas instâncias de poder.
Sistema eleitoral majoritário
Contra o financiamento público de campanha e o
voto em lista se unem a grande mídia, a oposição e os
setores conservadores da sociedade. Eles defendem
a adoção do sistema distrital puro ou misto. Esta é a
posição defendida pelo Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB) e por importantes segmentos de
outros partidos.
A história política revela que o sistema majoritário, distrital, foi o primeiro a ser adotado. Nele, os eleitos representam o poder da elite local sem nenhum
compromisso com as camadas pobres da população.
No Brasil, o sistema eleitoral distrital foi adotado, com suas peculiaridades, por 70 anos durante o
Império e a República Velha. A Revolução de 1930,
representando um avanço democrático, acabou com
o sistema distrital e implantou o sistema proporcional. A Constituição de 1946 incorporou em seu texto
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o sistema eleitoral proporcional para as eleições de
deputados federais, estaduais e vereadores.
Durante a ditadura militar, por iniciativa do general Figueiredo, foi estabelecido o sistema distrital
misto no país. No entanto, não foi colocado em prática. Com o fim da ditadura, o Congresso revogou,
em maio de 1985, este entulho autoritário.
Os argumentos dos defensores do sistema eleitoral distrital têm claramente a marca de restrição à
democracia. É um sistema defendido pelos partidos
conservadores que querem manter o controle do sistema político com maior facilidade, e por partidos que
incorporaram concepções neoliberais que no plano
político se relacionam com a limitação da democracia.
No sistema eleitoral majoritário, o país é dividido
em distritos, sendo eleito o candidato mais votado
de cada um deles. Este sistema distorce a vontade
dos eleitores e reduz drasticamente a representação
das minorias, mesmo sendo elas expressivas. Isto
porque, por hipótese, um partido que obtiver 51%
dos votos em 10 distritos obtém as 10 cadeiras no
parlamento. O outro partido com 49% dos votos não
terá nenhuma cadeira. Esta é a distorção mais grave
do sistema majoritário.
O voto distrital é excludente da representação de
grande parte do eleitorado ao não assegurar a representação política da parcela minoritária da sociedade mesmo com uma votação próxima da metade do
eleitorado. Induz ao bipartidarismo por assegurar a
representação política somente aos grandes partidos. Aniquila as minorias. Promove a ditadura da
maioria. Golpeia o voto de opinião.
Num país tão vasto e complexo como o Brasil,
onde existem grandes diferenças sociais, ideológicas, políticas, regionais e religiosas, o sistema político tem que ser capaz de abarcar todos estes interesses e opiniões.
Ao regionalizar o processo eleitoral o sistema
distrital afasta o debate político dos grandes temas
nacionais. Transforma o deputado federal em despachante de luxo, em um vereador federal voltado,
quase exclusivamente, para os problemas paroquiais
e regionais. Agrava a influência do poder econômico
nas eleições. Ao delimitar a eleição a um distrito, o
sistema permite que o candidato endinheirado gaste
um volume maior de recursos num território bem
menor.
Além do sistema distrital puro há o sistema distrital misto, que atenua, mas não altera os problemas causados pelo sistema majoritário. Parte de seus
membros é eleita pelo sistema proporcional e parte
pelo sistema majoritário.
A ditadura militar fez várias tentativas para introduzir o sistema distrital misto. A Emenda Constitu-
Capa
cional n° 22, de junho de 1982, estabeleceu o sistema
O projeto criminaliza o financiamento por empresa.
distrital misto que não foi colocado em prática. Com
Determina a cassação do registro da candidatura beo fim do regime ditatorial, a Câmara
neficiada. E a empresa financiadora
liquidou com o entulho autoritário,
ficará proibida de fazer contrato com
que incluía o sistema distrital misto.
o poder público por cinco anos, e reA proposta de
A conclusão é cristalina. O sisceberá multa no valor de 10 vezes o
tema distrital puro ou misto visa a
valor doado indevidamente.
projeto de iniciativa
restringir a participação popular no
Já a proposta de eleição em dois
popular, sem
processo político e assegurar um ríturnos incorpora as vantagens do
gido controle sobre as estruturas de
sistema proporcional com lista fedesconsiderar
poder.
chada e, ao mesmo tempo, leva em
o tamanho da
consideração a cultura política do
Sistema eleitoral
povo acostumado a votar em canrepresentação
proporcional com
didatos.
partidária no
financiamento
No primeiro turno, o voto será
democrático de
dado ao partido, à sua plataforma
parlamento, prevê
campanha e dois turnos
política e à sua lista fechada de canuma distribuição
didatos. Nessa etapa, será asseguA proposta de financiamento
rado o debate em torno de ideias e
mais democrática
público exclusivo e voto em lisprojetos para solucionar os probledos recursos e do
ta fechada é a melhor alternativa.
mas do país. Com base no quocienPorque assegura uma distribuição
te eleitoral será definido o número
tempo de televisão
igual de recursos para os cande vagas parlamentares a
didatos, garantindo uma disserem preenchidas para caputa em igualdade de condida partido.
ções financeiras. E, com a
No segundo turno, o volista fechada, o debate será
to será dado no candidato.
exclusivamente em torno de
Irá para o segundo turno o
propostas e projetos apresendobro de candidatos das vatados pelos partidos.
gas que cada partido obteve.
Todavia, esta proposta
Assim, o partido que obtiver
encontra resistências. As dicinco vagas no parlamento
ficuldades do Congresso de
disputará o segundo turno
aprovar uma Reforma Políticom os dez primeiros nomes
ca indicam que só com uma
de sua lista partidária. Cagrande união da sociedade
berá ao eleitor dar a palavra
será possível sua aprovação.
final sobre quais seriam os
O que poderá assegurar esta união é o Projeto de Inieleitos. Esta proposta reduz drasticamente o número
ciativa Popular da OAB, do Movimento de Combate
de candidatos, reduz os custos de campanha e permite
à Corrupção Eleitoral (MCCE) e de inúmeras outras
uma efetiva fiscalização do processo eleitoral.
entidades sociais.
Para compor uma lista de candidatos, de forma deEsta proposta se estrutura em torno de dois eimocrática, deverão ser realizadas eleições primárias,
xos: o Financiamento Democrático de Campanha e
com a participação de todos os filiados, e acompanhaa eleição parlamentar em dois turnos. O Financiamento da justiça eleitoral e do ministério público.
mento Democrático de Campanha, constituído com
A distribuição excessivamente desigual de recurrecursos públicos, visa a assegurar uma distribuição
sos e tempo de televisão entre os partidos é uma fragiigualitária de recursos entre os candidatos. Ao lado
lidade do atual sistema político brasileiro. A proposta
dele, o projeto assegura o financiamento de campade projeto de iniciativa popular, sem desconsiderar o
nha por pessoas físicas, limitado a R$ 700,00. Tais
tamanho da representação partidária no parlamento,
recursos serão destinados aos partidos políticos e
prevê uma distribuição mais democrática dos recurnão aos candidatos. O limite de arrecadação com dosos e do tempo de televisão.
ações individuais será de duas vezes o valor da quota
Um dado relevante dessa proposta é que ela assedo Fundo Democrático de Campanha destinado aos
gura a coligação proporcional realizada com base em
candidatos.
programas políticos comuns. E proíbe a barganha da
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utilização do tempo de TV para assegurar a coligação. Com a coligação, o tempo de televisão será o do
maior partido. Isto impede que partidos vendam seu
tempo de TV. O texto prevê, também, a proibição da
soma de recursos destinados à campanha. Isto dificultará a coligação proporcional, prejudicando os
pequenos partidos.
Proibição da coligação proporcional e
cláusula de barreira
Diante da dificuldade de os setores conservadores
imporem o sistema distrital puro ou misto, já que isto implicaria reforma da Constituição, eles se voltam
para liquidar as minorias através da antidemocrática
proibição da coligação proporcional e da adoção da
“cláusula de barreira”.
A Lei 9.096, de 1995, incorporou a cláusula de
barreira à legislação brasileira. Todavia, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), com o apoio de outros
seis partidos, entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade alegando que a regra feria o direito
das minorias. No final de 2006, por unanimidade,
o STF acatou a ação direta de inconstitucionalidade,
derrubando a vigência deste dispositivo.
Tais setores procuram esconder o objetivo de redução drástica do número de partidos, sob a capa do combate aos partidos de aluguel. Na verdade, o objetivo é
restringir a democracia. Reduzir o quadro partidário
para reduzir as vozes que defendem os direitos dos trabalhadores, a democracia e a soberania nacional.
A reação dos trabalhadores aos cortes dos direitos
sociais tem levado a um crescente autoritarismo dos
governos que adotam as políticas neoliberais. Visando
a fragilizar a resistência dos trabalhadores e do povo,
as elites neoliberais propalam que os partidos políticos e as tradicionais organizações dos trabalhadores
e da sociedade estão superados. Fazem uma campanha aberta contra a política e os políticos. Na verdade,
trata-se de um combate à democracia. Isto porque a
democracia é incompatível com o corte de direitos.
Norberto Bobbio fez uma cáustica crítica ao
neoliberalismo ao afirmar “Pode-se descrever sinteticamente este despertar do liberalismo através
da seguinte progressão ou (regressão) histórica: a
ofensiva dos liberais voltou-se historicamente contra o socialismo, seu natural adversário na versão
coletivista (que de resto o mais autêntico); nestes últimos anos, voltou-se contra o Estado do bem-estar
social, isto é a versão atenuada (segundo uma parte
da esquerda também falsificada); agora é atacada a
democracia, pura e simplesmente. A insídia é grave”.
Diante da ofensiva dos setores conservadores tentando impor uma Reforma Política antidemocrática,
8
contando com os grandes meios de comunicação,
cabe às forças democráticas se unificarem em torno
de uma proposta de Reforma Política Democrática.
Somente uma grande união do povo brasileiro,
de caráter suprapartidário, contando com as diversas
organizações da sociedade civil, os partidos e lideranças democráticas, será capaz de mobilizar a sociedade em torno deste objetivo como foi feito nas
Diretas Já ou na Constituinte.
Nas condições atuais, a proposta que tem melhores condições de assegurar esta unificação é o Projeto
de Lei de Iniciativa Popular apresentado pela OAB,
pelo MCCE e por diversas organizações da sociedade.
Não há tempo a perder. Ou os setores democráticos se unem e mobilizam a sociedade ou podemos
sofrer um retrocesso político com a aprovação de
uma Reforma Política Antidemocrática.
O povo está sensível a maiores avanços democráticos, mas é necessário conseguir conectar a “voz das
ruas” com uma proposta que possa ser apoiada por
amplos setores. Daí o papel que a Proposta de Lei de
Iniciativa Popular pode jogar. Neste momento é indispensável ter grandeza e colocar os interesses dos
avanços democráticos acima de veleidades pessoais
ou de grupos.
* Aldo Arantes é secretário da Comissão de Mobilização para a Reforma Política da OAB e membro da
Comissão Política do Comitê Central do PCdoB.
Textos consultados
ARANTES, Aldo. Reeleição e Reforma Antidemocrática
do Estado. Brasília: Câmara dos Deputados, 1997.
__________. Reforma Política para ampliar ou restringir a
democracia?. Brasília: Câmara dos Deputados, 1998.
__________. Partidos políticos e realidade nacional.
Brasília: Universidade de Brasília, 2001.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 4ª ed., p.
124. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
BORON, Atílio. Estado, capitalismo e democracia na
América Latina. São Paulo: Paz e Terra, 1994.
LIMA, Haroldo. Reforma Política – O golpe tramado
contra a liberdade partidária e as alternativas
progressistas. Brasília: Câmara dos Deputados, 2000.
NEVES, Tancredo. Modelos Alternativos de
Representação Política no Brasil e Regime Eleitoral.
Brasília: Pronunciamento realizado em 1980 na UnB.
NICOLAU, Jairo Marconi. Sistema Eleitoral e Reforma
Política. Foglio.
SANTOS, Wanderley Guilherme. Regresso – máscaras
institucionais do liberalismo oligárquico. Rio de Janeiro:
Opera Nostra, 1994.
Capa
Reforma Política necessária,
urgente e democratizante
Vanessa Grazziotin*
Divulgação
Partidos de esquerda e entidades promovem ato político em defesa da Reforma Política (Brasília, 2011)
A
A democratização da vida política brasileira é quase
um consenso nacional. Mas as propostas que estão em
debate para a Reforma Política têm matizes diferentes,
às vezes opostas aos anseios populares. Cumpre
desenvolver um amplo esclarecimento sobre elas
necessidade de construirmos uma Reforma Política ampla tem sido defendida
por nós do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) desde a redemocratização.
Na Constituinte de 1988, nossos parlamentares já lutavam contra o então chamado “Centrão” para que houvesse liberdade de organização
e, ao mesmo tempo, mecanismos de participação
popular efetiva tanto no parlamento quanto nas
instâncias formuladoras de políticas públicas do
Executivo.
Mas a luta contra interesses assentados na máquina pública sempre foi difícel e árdua apesar de
um aparente consenso, que alimenta muitos discursos e oculta propostas fortemente excludentes.
Faço este pequeno retrospecto para que tenhamos claro que a ressignificação de bandeiras de luta
– instrumento usado pelo neoliberalismo – serve a
interesses muito distantes dos defendidos pelo povo
e pelos setores progressistas.
A título de combater a corrupção eleitoral são
apresentadas propostas como a redução de partidos,
cláusulas de barreira, proibição de coligações e outras
distorções. E são argumentos que ignoram as imensas
distorções que o nosso sistema político comporta.
Nosso sistema eleitoral proporcional de listas
abertas, adotado desde 1935, sofreu apenas duas
alterações significativas. A primeira na década de
1950 para vedar a candidatura de uma mesma pessoa em dois estados diferentes na mesma eleição; e a
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segunda, na década de 1990, para retirar do voto em
A pesquisa divulgada pela Ordem dos Advogados
branco a qualificação de voto válido para o efeito de
do Brasil (OAB) mostra de forma inequívoca que o
cálculo do quociente eleitoral.
povo brasileiro aprova a proibição de doações de emAlém do Brasil, tal sistema é adotado na Finlândia,
presas privadas para as campanhas e quer que a Rena Polônia e no Chile. Cada partido apresenta uma
forma Política tenha efeito já em 2014. Os números
lista não-ordenada de candidatos e o eleitor vota no
não deixam dúvidas: 85% dos entrevistados são fanome de um deles; os votos recevoráveis à Reforma Política e 78%
bidos pelos candidatos da lista são
querem a proibição das doações de
Nas últimas
somados e utilizados para definir o
empresas privadas.
número de cadeiras conquistadas
As manifestações de junho, apeeleições, o Brasil
pelo partido; e estas serão ocupasar das críticas à atuação de alguns
elegeu apenas uma
das pelos candidatos mais votados.
segmentos e também da tentativa
Além da lista, questões cengovernadora e temos de incorporação de bandeiras estratrais como o financiamento das
nhas às lutas de nosso povo, foram a
uma participação
campanhas sempre foram escanface mais visível de que as barreiras
teadas e secundarizadas. O resule distorções à participação política
muito pequena
tado do atual sistema político no
estão a cada dia mais insuportáveis
de mulheres no
país é uma enorme distorção de
para grandes parcelas de nossa porepresentação nos Legislativos de
pulação. As bandeiras levantadas
Congresso. Somos
todos os níveis.
em centenas de cidades são as ban8,7% na Câmara; e
Em um país com aproximadadeiras que defendemos há anos.
mente 51% da população afro-desPois bem, apesar do esforço da
12% no Senado
cendente, temos uma participação
grande mídia de redirecionar o foco
no Congresso Nacional de apenas
das manifestações contra o governo
8,5% de negros, segundo dados do Instituto BrasileiDilma – numa completa ressignificação da luta pero de Geografia e Estatística (IBGE) e da União dos
lo Passe Livre –, amplas parcelas da nossa sociedade
Negros pela Igualdade (Unegro).
fizeram-se ouvir com as marchas em todo o país.
Do mesmo modo, é gritante a desproporção enUm aspecto importante dessas manifestações foi
tre a participação de homens e mulheres nos espadestacado pelo cientista político Armando Boito Juços políticos. Nas últimas eleições, o Brasil elegeu
nior em artigo publicado no jornal Brasil de Fato: “O
apenas uma governadora e temos uma participação
que se ouviu nas ruas foi um grito por ‘mais Estado’: subsídio
muito pequena de mulheres no Congresso. Somos
ao transporte público, educação, saúde, nova regulamentação
8,7% na Câmara; e 12% no Senado.
da lei do inquilinato. Em julho, quando o sindicalismo opeEste verdadeiro apartheid político é filho direto
rário entrou em cena, o tom continuou o mesmo: imposição
do sistema em que apenas o capital é responsável
legal da jornada de 40 horas semanais, regulamentação espelo financiamento das campanhas políticas.
tatal restritiva da terceirização etc. Aglutinada em torno da
No início do século passado, o marxista Antonio
bandeira do ‘Estado mínimo’, a oposição burguesa neoliberal
Gramsci destacava que uma estrutura econômica
não tem nada a dizer àqueles que saíram às ruas”.
não é suficiente para manter-se por si mesma neAlém do estabelecimento de um verdadeiro canal
cessitando de um instrumento político-jurídico: “o
de diálogo permanente entre governo e movimentos
Estado é o instrumento para adequar a sociedade civil à essociais, as manifestações de junho também alavancatrutura econômica”.
ram o debate sobre a necessidade da Reforma PolítiIsso explica em parte a dificuldade de estabelecerca. A Ordem dos Advogados do Brasil e o Movimento
mos um novo modelo de financiamento de campanha
Contra a Corrupção Eleitoral apresentaram um manique impeça empresas privadas de financiarem as camfesto em que são elencadas propostas muito próximas
panhas, o que seria imprescindível para a ampliação
às apresentadas e defendidas pelos comunistas.
da participação política de jovens, negros e mulheres.
Manifestações
A proibição do financiamento de campanhas por
empresas privadas e outras medidas passam necessariamente pela Reforma Política. Esta é uma compreensão do PCdoB e também dos movimentos sociais.
10
Listas pré-ordenadas
Um dos aspectos defendidos pela OAB – e particularmente importante – é a lista fechada pré-ordenada. No sistema de lista fechada, cada partido apresentará à Justiça Eleitoral uma lista de candidatos
pré-ordenada. E o eleitor poderá comparar, escolher
Capa
e votar, na proposta apresentada pelo Partido. Esta
Além disso, a legislação daquele país determina
proposta permite um aprofundamento do debate
que, na sequência estabelecida pela lista fechada de
e posicionamento dos partidos, pois incorpora um
cada partido, deve constar pelo menos uma mulher
conceito de dois turnos: no primeiro, para um partipara cada dois homens, sob pena de indeferimento
do; e no segundo turno em um candidato.
do registro da lista. Dessa forma, ao menos dois dos
A lista pré-ordenada aprofunda a nossa democandidatos que aparecem nas seis primeiras posições
cracia, e é uma síntese de boa parte
de cada lista partidária são mulhedos anseios expressos nas ruas. É
res. A representação feminina, nas
A lista préuma forma concreta de se garantir
eleições de 2007, atingiu 40% na
ordenada é uma
a maior participação das mulheres
Câmara dos Deputados, e 38,9%
nas esferas de poder.
no Senado.
forma concreta
Esta proposta permite uma comA França também promoveu
de se garantir a
pleta reorganização do nosso sisteuma reforma constitucional em
ma de representação. O pesquisador
1999 com o objetivo de alcançar a
maior participação
Carlos Ranolfo de Mello destaca um
igualdade política entre os sexos.
das mulheres nas
aspecto desta mudança:
Um ano depois, foi aprovada a Lei
“(...) um novo fator, a mídia, torna
nº 2000-493 (Lei da Paridade), seesferas de poder
possível o acesso dos políticos aos eleitores
gundo a qual metade dos candidasem que estes tenham que necessariamentos constantes das listas partidárias
te investir na construção de um partido ou
deve ser de um mesmo sexo, com
de uma imagem partidária. Mais ainda, ao que tudo indica
alternância de posições entre homens e mulheres.
a competição política no país continuará se desenvolvendo no
Nos pleitos realizados com base no sistema proporciointerior de uma estrutura de incentivos – materializada no
nal, a alteração promoveu um aumento significativo
sistema de lista aberta –, que torna a competição eleitoral uma
do número de mulheres eleitas, que passaram a consdisputa entre indivíduos e estimula a priorização de estratétituir 47,5% desses órgãos legislativos.
gias que favorecem a criação de laços entre os candidatos e os
eleitores, bem como a afirmação de atributos pessoais em relaDesafios
ção aos do partido (...) o atual sistema partidário continuará
operando em um contexto onde é muito pouco provável que
A defesa dos partidos, da proibição do financiauma parcela expressiva dos eleitores passe a se identificar de
mento de campanha por empresas privadas, a votaforma mais consistente com os partidos e a utilizá-los como
ção em listas, e a plena possibilidade de expressão são
referência básica para suas escolhas eleitorais”.
propostas defendidas pelos setores mais progressistas. São medidas necessárias para o aprofundamento
A lista pré-ordenada é uma forma concreta de se
da nossa democracia. Nós do PCdoB lutamos há muigarantir a maior participação das mulheres nas esfetos anos por estas bandeiras e, ao contrário do que
ras de poder.
sugerem setores da mídia, as vozes das manifestações
As cotas também são mais efetivas em garantir
de junho reforçaram a nossa luta.
o aumento da representação feminina quando se
exige algum tipo de alternância de posições entre os
sexos, ou outro mecanismo para obrigar que as can* Vanessa Grazziotin é farmacêutica, senadora da
didatas figurem entre as primeiras posições da lista
República pelo PCdoB/AM e membro do Comitê
ou entre as posições elegíveis – que são calculadas
Central do PCdoB
com base nas cadeiras conquistadas por um partido na eleição anterior, já que os partidos esperam ao
Bibliografia:
menos manter as cadeiras na eleição subsequente.
Isso significa que a posição das candidatas nas listas
BOITO Jr, A. “O impacto das manifestações de junho na
política nacional”. In: Brasil de Fato, 02-08-2013.
fechadas tem sido mais decisiva do que o número de
mulheres constantes das listas partidárias abertas.
CAVALCANTE, M. P. Hegemonia e formação da vontade
Exemplo bem sucedido na instituição de cotas é
coletiva em Gramsci, artigo apresentado no Seminário
Gramsci e os movimentos populares. Disponível em: http://
o da Argentina. Em 2004, foi aprovada uma reforma
www.nufipeuff.org/seminario_gramsci_e_os_movimentos_
que introduziu no art. 37 da Constituição um disposipopulares/trabalhos/Margarete_Pereira_Cavalcante.pdf
tivo prevendo que a igualdade real de oportunidades
MELLO, C. R. “Individualismo e Partidarismo em doze
entre homens e mulheres para o acesso aos cargos eleestados”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.
tivos e partidários se garantirá por ações positivas na
26, n° 75, p. 60.
regulação dos partidos políticos e do regime eleitoral.
11
126/2013
Política não é negócio:
é hora de acabar com o
financiamento privado das
campanhas eleitorais
Manuela D’Ávila*
É
A questão central da Reforma Política é mudar
a forma como as campanhas são financiadas no
Brasil. O dinheiro não deve vir de empresas privadas.
É preciso garantir maior igualdade de condições
entre os candidatos. Nesse sentido, a política deve ter
como centro ideias, projetos e programas. Interesses
privados não devem se sobrepor às prioridades dos
cidadãos. Precisamos superar o sistema político
injusto, caro e cada vez mais dominado pelo poder
econômico que prevalece no país.
significativo o momento político histórico que o Brasil vive após um período de
avanços democráticos, de redução significativa da pobreza, de conquistas sociais
e de afirmação da soberania nacional
nestes últimos 10 anos. A onda de manifestações populares, que chegou a levar 1,4 milhão de brasileiros
às ruas de 120 cidades, em 20 de junho, traz para a
ordem do dia a necessidade de reformas estruturais
no país, como a reforma urbana e política.
Os parlamentares do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) têm desempenhado papel estratégico
na luta para garantir a concretização de mudanças
exigidas pelos brasileiros. Conforme pesquisa do
Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística
12
(Ibope), encomendada pelo Movimento de Combate
à Corrupção Eleitoral, do qual faz parte a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), 85% são a favor de uma
Reforma Política. O levantamento indicou ainda que
84% dos entrevistados em todo o Brasil acreditam
que, se aprovada, a Reforma deveria vigorar já para a
eleição de 2014. O Instituto ouviu por telefone, entre
27 e 30 de julho, 1.500 pessoas com mais de 16 anos.
A margem de erro é de 3 pontos percentuais para
mais ou para menos. Esses números reafirmaram o
que a voz das ruas já havia apontado.
As grandes mobilizações populares colocaram em
evidência a necessidade de se aprofundar um Novo
Projeto Nacional de Desenvolvimento. O Brasil pode
inovar promovendo uma nova fase de desenvolvi-
Capa
Divulgação
O Brasil pode inovar promovendo uma nova fase de desenvolvimento político e de elevação dos níveis de participação popular.
Pode, entretanto, sofrer grave retrocesso se a Reforma Política for pautada pelo pensamento conservador e antidemocrático
mento político, de aprofundamento e ampliação da
democracia e de elevação dos níveis de participação
popular. Pode, entretanto, sofrer grave retrocesso
se a Reforma Política for pautada pelo pensamento
conservador e antidemocrático.
A bancada do PCdoB na Câmara dos Deputados
luta para fortalecer ainda mais a liderança política da
presidenta Dilma Rousseff, reunindo forças políticas
e sociais avançadas para impulsionar mudanças democráticas e progressistas maiores no país. As mobilizações mostraram que o Congresso funciona mais
sintonizado com os anseios populares. E a criação de
um grupo na Câmara para discutir a Reforma Política foi uma resposta concreta às demandas, mas é
fundamental que haja avanço concreto e não apenas
a venda da ilusão de que medidas pontuais resolverão os dilemas nacionais. A cada ano, o Congresso
faz mudanças na legislação para alterar regras eleitorais no país, como a proibição de showmícios, de
brindes e de outdoors nas campanhas. Essas medidas
fatiadas, porém, não resolveram o problema central
da política brasileira: o financiamento das campanhas eleitorais. Ao contrário, mostram que há uma
tendência de aumento no custo das campanhas.
Proibiu-se a distribuição de lixas de unha, e não o
abuso do poder econômico.
Para garantir a vitória nas urnas, os políticos precisam cada vez mais de cifras enormes, ficando dependentes dos financiadores de campanha. Segundo
dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), entre
2002 e 2010, por exemplo, os gastos totais declarados nas eleições gerais do Brasil cresceram exponencialmente, passando de R$ 827 milhões para R$ 4,09
bilhões, um aumento de 591% no período. Dos 513
parlamentares eleitos em 2010, 369 foram os que
mais gastaram, sendo que investiram em média 12
vezes mais do que os demais candidatos. Conforme
Dowbor, um assento de deputado federal custa aproximadamente R$ 2,5 milhões. Esses valores são bancados por empresas que têm interesses, e cobrarão
a fatura do candidato eleito que já age muitas vezes
pensando em garantir a reeleição. As empresas que
contribuem nem sempre têm as mesmas prioridades
do conjunto da população. Quando fazem contribuições para as campanhas eleitorais, estão apostando
nos candidatos que vão priorizar as suas bandeiras
individuais.
Quanto mais cara a campanha, mais o processo democrático é deformado por grandes doadores.
Conforme Mancuso e Speck, os recursos empresariais são a principal fonte de financiamento das campanhas no Brasil, tendo representado 74,4% de todo
13
126/2013
o dinheiro aplicado nas eleições
em 2010 (mais de R$ 2 bilhões),
segundo estatísticas do TSE.
A representação política
não deve se nortear pelo poder
econômico. É razoável manter
um sistema que cada vez mais
seja regido pelo dinheiro, em
que cerca de 400 executivos de
empresas privadas escolhem os
eleitos e assim influenciam decisivamente os rumos do país?
Ou é melhor garantir que todos
os brasileiros financiem a política
para que ela volte a ser o terreno de
ideias, de projetos e de programas
em favor da sociedade? Certamente,
é preciso mudar a realidade, ficando
com a segunda opção. As decisões
tomadas pela gestão pública não
podem ser influenciadas pelo que é
mais importante para as empresas
que financiam as campanhas eleitorais. A continuidade dessa lógica no
sistema eleitoral é muito perversa
para as transformações necessárias
que levem ao aprofundamento da
democracia no país.
projetos e trajetórias dos candidatos. Deve-se perguntar
então, após 25 anos da Constituição Cidadã: Qual o problema
principal da política representativa brasileira? Sem dúvida, o financiamento. O PCdoB
sempre defendeu o financiamento público das campanhas
eleitorais. Sobre financiamento de campanhas, o estudo do
Ibope mostrou que 78% dos
entrevistados se manifestaram
contrários a doações de recursos
Em 2013, a maioria
de empresas privadas a partidos
e a candidatos. Na mesma linha,
dos líderes dos
80% disseram que deveria haver
partidos se recusou a um limite para o uso de dinheiro
público nas campanhas eleitorais.
dar urgência para a
O Instituto também mostrou que
votação do relatório
90% querem uma punição mais severa para quem pratica o caixa 2.
do deputado
O dinheiro que financia as canfederal Henrique
didaturas numa disputa eleitoral
não pode ser privado, devendo-se
Fontana (PT-RS),
permitir a doação feita por pessodepois de dois
as físicas dentro de um conjunto
de regras definidas legalmente. A
anos de discussões
sociedade será a principal beneficom partidos e
Financiamento privado
ciada com essa iniciativa, visto que
de campanhas deve ser
haverá maior transparência nos
com a sociedade.
proibido
pleitos. Primeiro, porque proporPara alguns
cionará maior igualdade de conApesar de os brasileiros defendições entre os candidatos, garanparlamentares, o
derem com veemência a reforma
tindo a escolha de quem está mais
atual modelo serve
estrutural do sistema político brapreparado. Isso reduz o abuso do
sileiro, o desafio de avançar no Lepoder econômico, situação que
gislativo é enorme. Há mais de 15
prejudica o processo como um todo
anos, o Congresso debate diferentes propostas de
nos municípios, nos estados e no país.
Reforma Política sem conseguir votar qualquer muQuase diariamente a imprensa publica reportadança que reestruture a política nacional. Em 2013,
gens sobre casos desse tipo, o que reforça o descrédito
a maioria dos líderes dos partidos se recusou a dar
de muitos em relação à política e diminui a credibiurgência para a votação do relatório do deputado
lidade das instituições. Mudar a forma de financiar
federal Henrique Fontana (PT-RS), depois de dois
campanhas, portanto, é a saída para reduzir a corrupanos de discussões com partidos e com a sociedade.
ção no Brasil. Vale lembrar, trata-se de tema presente
A iniciativa foi para a gaveta sem sequer ser aproem muitas das manifestações populares atuais.
vada, criticada ou emendada, e nada foi colocado
no lugar. Para alguns parlamentares, o atual modeÉ hora de reformar a política
lo serve. Por isso, a ideia é votar uma minirreforma
eleitoral que não sana as deficiências históricas da
O contexto político atual favorece esse debate.
política brasileira.
Segundo o estudo do Ibope, os cidadãos demonsPolítica não deve ser confundida com negócio. O
traram grande disposição em se envolver e em parmaior problema da política brasileira é apostar no
ticipar da política. De acordo com o Instituto, 92%
dinheiro em vez de investir em ideias, programas,
dos entrevistados se disseram a favor de que a Re-
14
Capa
Luís Macedo / Ag. Câmara
forma Política aconSendo assim, se não
teça por meio de uma
dá para aprovar todas
proposta de iniciativa
as medidas necessápopular. Em sintonia
rias, é preciso enfrentar
com a população, o
o mais importante na
PCdoB está junto com
Reforma Política. O fim
a presidenta Dilma
do financiamento priRousseff na defesa
vado é a peça-chave pade um plebiscito. As
ra superar os desafios
perguntas devem gique ainda permanecem
rar em torno do que
e melhorar a imagem
é ponto central: o
da política e dos polítifinanciamento
das
cos nacionalmente.
campanhas eleitorais.
Há bastante tempo,
Esse processo deve ser
a bancada do PCdoB na
deflagrado pelo ConCâmara faz um grande
gresso, sendo feito o
esforço para construir
mais rápido possível.
a Reforma Política. As
As manifestações de rua merecem
pessoas vão às ruas questionar o sisrespostas efetivas. E, em meio à
tema político porque ele possui, sim,
O fim do
crise de representação, as pessoas
falhas estruturais, e elas precisam
não aceitarão uma solução pronta
ser superadas. Vive-se um momento
financiamento
vinda do Legislativo sem debate
único. Não dá para perder a oportuprivado é a peçaprévio.
nidade de melhorar o Brasil. O pior
Não se pode temer a voz das rucenário é manter tudo como está
chave para superar
as e o diálogo. Atuante nesse monum sistema político injusto e caro,
os desafios que
vimento, a bancada do PCdoB fará
cada vez mais dominado pelo poder
o máximo esforço para avançar em
econômico.
ainda permanecem
projetos importantes e estruturane melhorar a
tes para o país, como a Reforma
* Manuela D’Ávila é jornalista e líder
do PCdoB na Câmara dos Deputados,
Política. A posição dos parlamenimagem da política
onde exerce seu segundo mandato.
tares do PCdoB é clara na defesa
e dos políticos
Atualmente, integra a Comissão
de mudanças que ampliem a reEspecial de Reforma Política da
presentação, a participação, a denacionalmente
Câmara
mocracia e a transparência.
O plebiscito não guarda nenhuma contradição com outra proposta também apoiada pelo PCdoB, o projeto Eleições Limpas, encampaBibliografia
do pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB) e o Movimento de Combate à CorAVRITZER, Leonardo & ANASTACIA, Fátima. Reforma política no Brasil. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006, 271 p.
rupção. O projeto tem como objetivo uma Reforma
Disponível em: http://www.ligiatavares.com/gerencia/uploads/
Política de iniciativa popular que altere o sistema
arquivos/d2af15de8666c5382e11d8660f15dd31.pdf
eleitoral brasileiro e o financiamento das campaDOWBOR, Ladislau. Os descaminhos do dinheiro: a compra
nhas a partir da aprovação de uma nova lei. Para ser
das eleições (parte I. Outubro, 2012), 5p. Disponível em: htapresentado à Câmara e ao Senado, há a exigência
tp://dowbor.org/2012/10/os-descaminhos-do-dinheiro-a-comde 1,5 milhão de assinaturas (1% do eleitorado). É
pra-das-eleicoes-parte-i-outubro-2012-5p.html Acesso em: 13
possível acessar a íntegra do projeto e assinar eletrode agosto de 2013.
nicamente pelo site www.eleicoeslimpas.org.br. Uma
MANCUSO, Wagner & SPECK, Bruno. Financiamento,
das principais medidas sugeridas é proibir doações
capital político e gênero: um estudo de determinande empresas privadas a candidatos. O financiamento
tes do desempenho eleitoral nas eleições legislativas
seria por pessoas físicas (até R$ 700) e pelo Fundo
brasileiras de 2010. In: Encontro Anual das Anpocs, 36,
2012, Águas de Lindoia. Disponível em: http://www.anpocs.
Democrático de Campanhas, gerido pelo TSE, fororg/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_
mado por recursos do orçamento da União, multas
view&gid=7985&Itemid=76 Acesso em 13 de agosto de 2013.
administrativas e penalidades eleitorais.
15
126/2013
A Reforma Política e a
participação das mulheres
Jô Moraes* e Alice Portugal**
Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
Num contexto histórico de
distanciamento feminino
dos espaços de poder e de
representação, impõemse profundas e radicais
alterações nas instituições.
Uma das mais importantes
delas é a que assegura a
ampliação da participação
política da mulher
16
O
Congresso Nacional
com iluminação em
tons de rosa
debate sobre a emergência da Reforma Política cresce e se amplia no país, principalmente depois das “jornadas de junho”. Esse é um processo
que corresponde a uma tendência
histórica. A mudança da estrutura
institucional do Brasil, em geral, se deu a partir de
convulsão e de grande efervescência popular. Se passarmos em revista os momentos em que os processos
constituintes aconteceram em nosso país, poderemos comprovar esta verdade. Eles corresponderam
a alterações estruturais da sociedade brasileira lastreadas pela sua mobilização. E exatamente nesses
períodos é que surgem as propostas de reformas de
base apresentadas pelos setores organizados para
criar alternativas de enfrentamento dos impasses.
As conquistas das mulheres se inserem nesse contexto. Elas sempre ocorreram em sintonia com mudan-
Capa
ças estruturais, em períodos de expanNão se pode dizer que no atual
As conquistas
são democrática, de mobilização, e
momento estejam em gestação rupcom o apoio dos setores avançados da
turas estruturais ou institucionais.
das mulheres
sociedade. Estas conquistas significaMas, após uma década do novo cisempre ocorreram
ram, na maioria das vezes, processos
clo iniciado com o governo do prede ruptura e tiveram como pano de
sidente Lula, o país está em busca
em sintonia
fundo a subversão de valores sociais.
de um projeto ousado que liberte a
com mudanças
O direito ao voto feminino, por
estrutura econômica dos resquícios
exemplo, foi um subproduto da Redo neoliberalismo, que radicalize na
estruturais,
volução de 1930, em oposição aos
democracia, onde cidadãos e cidaem períodos
valores das oligarquias rurais. Nadãs possam sentir-se integrados à
quele período, a expansão da socieconstrução do novo Brasil.
de expansão
dade industrial-urbana se confronVive-se o maior período contídemocrática, de
tava com a estrutura de poder dos
nuo de democracia desde a Proclacoronéis, que asseguravam sua remação da República, sob um govermobilização, e com
presentação política através dos fano de coalizão, que tem elevado a
o apoio dos setores
mosos currais eleitorais. A univercondição de vida do povo brasileiro
salização do voto era componente
e resgatado dívidas sociais. “No enavançados da
importante para a ruptura da hegetanto, é impossível negar a existênsociedade
monia rural do poder político. A incia de um mal-estar na sociedade
tensa mobilização das “sufragistas”
brasileira, que diz respeito a todas
contou com uma necessidade objeas instituições em seus diferentes
tiva de modernização do Estado brasileiro. O voto
níveis... As mudanças econômicas e sociais dos úlfeminino foi resultante desses dois movimentos.
timos anos não foram acompanhadas pelas transformações institucionais necessárias dos poderes do
Estado, dos partidos e também dos meios de comuConquista do voto feminino no mundo
nicação” (GARCIA ).
Os vigorosos protestos de rua, das chamadas
Países
Voto Masculino
Voto Feminino
“jornadas
de junho”, demonstraram com muita preAlemanha
1869 / 1871
1919
cisão a necessidade de se repensar a relação entre a
Canadá
1920
1920
sociedade e o poder em todas as suas dimensões.
Itália
1912 / 1918
1946
No que se refere às mulheres há dívidas acumuFrança
1848
1946
ladas a serem “pagas” pela sociedade. “Ainda que a
Grã-Bretanha
1918
1928
formalidade da cidadania política por meio do voto
tenha sido conquistada pelas brasileiras em 1932,
Japão
1925
1947
sua presença como sujeito político coletivo (...) só
Portugal
1911
1974
emergiu com o surgimento de um movimento de
Suíça
1848 / 1879
1971
mulheres com caráter feminista a partir dos anos
Venezuela
1894
1946
1970, no bojo de um processo internacional de resNoruega
1897
1913
surgimento do movimento, marcado por mudanças
na área do trabalho, na educação, no acesso à antiSuécia
1921
1921
concepção e por enormes mudanças culturais” (GOGrécia
1877
1952
DINHO).
Paraguai
1870
1967
Uruguai
1918
1932
Finlândia
1906
1906
Nova Zelândia
1889
1893
Austrália
1903 / 1962
1908 / 1962
Argentina
1912
1949
Brasil
1821
1932
Chile
1925
1949
Equador
1861
1978
Fonte: Inter-Parliamentary Union http://www.ipu.org/wmn-e/classif.htm
Realidade contraditória
Neste contexto histórico de distanciamento feminino dos espaços de poder e de representação
– impactado hoje pela nova situação da mulher
moderna, cujo protagonismo na sociedade cresce
a cada dia –, impõem-se profundas e radicais alterações nas instituições. Uma das mais importantes
delas é a que assegura a ampliação da participação
política da mulher.
17
126/2013
O Sonho / Picasso 1932
É expressão dessa nova realidifundir a participação política fedade, o país ter chegado ao pleito
minina”. Ficou assegurada, ainda,
de 2010 elegendo para a Presidêna obrigatoriedade do preenchimencia da República uma mulher, cuja
to das vagas estabelecidas pelas cotrajetória é oriunda da resistência
tas, trocando o termo “deverá prepela liberdade. É relevante que, no
encher” por “preencherá” (Revista
primeiro turno das referidas eleido Observatório, SPM 2009).
ções, cerca de 70% do eleitorado
Mesmo com avanços institubrasileiro tenham dado seu voto a
cionais desse último período, é
duas mulheres: Dilma Rousseff e
imensurável o déficit democrático
Marina Silva. Ressalve-se aqui que
que o Brasil tem com sua metade
as duas incorporaram, no terreno
feminina. É evidente que este déda política, demandas avançadas
ficit é inerente a uma democracia
da sociedade.
ainda insuficiente para os desafios
Ao mesmo tempo, é difícil comde uma Nação que precisa liberar
preender por que nas três últimas
as energias criadoras de sua gente.
eleições nacionais, as bancadas do
E
é fruto de uma herança difícil de
Fomos um dos
Senado e da Câmara Federal teser desconstruída. O Estado brasiprimeiros países da
nham estagnado. Em 2002, foram
leiro é marcado pelo autoritarismo
eleitas oito senadoras, mesmo núna elevada concentração de poder
América Latina a
mero de 2010. Na Câmara Federal
de sua República; pelo elitismo da
assegurar o direito
42 deputadas em 2002, 46 em 2006
sua representação eletiva, que se
e 45 em 2010.
originou no voto censitário, onde
de voto às mulheres,
Fomos um dos primeiros países
o sufrágio e o poder econômico
o que ocorreu em
da América Latina a assegurar o
nasceram juntos; e na apropriação
direito de voto às mulheres, o que
privada da coisa pública cujas his1932. Desde então,
ocorreu em 1932. Desde então, os
tóricas chagas da corrupção só agoos avanços têm
avanços têm sido insignificantes
ra vêm à plena luz do dia, na sua
ante a dimensão da presença feinteireza (MORAES).
sido insignificantes
minina neste país continental. Na
ante a dimensão
verdade, as conquistas só foram reDifícil ruptura para o
tomadas quase 50 anos depois, após
novo sistema da presença
as jornadas das mulheres na década
feminina neste
Construir convicções na sociedade 1980 e dos fóruns internacionais
de
para
garantir uma Reforma Polída Organização das Nações Unidas
país continental.
tica democrática não é tarefa fácil.
(ONU), já nos anos 1990.
Na verdade, as
Lá nos idos de novembro de 2000,
A Lei 9.100/95 deflagrou a trajeo então deputado federal Haroldo
tória das cotas de gênero, para vaconquistas só foram
Lima, do Partido Comunista do Bragas de candidaturas de cada partido
retomadas quase 50
sil (PCdoB) afirmava em artigo do
ou coligação, indicando o mínimo
Correio Braziliense: “Não há dúvida
de 20%. Já em 1997, a Lei 9.504,
anos depois
de que o sistema eleitoral brasileique estabeleceu normas para as
ro necessita de mudanças. Em que
eleições, elevou este percentual pasentido fazê-las é o problema. Desra o mínimo de 30%. Atente-se que
de o Império, em batalhas cíclicas, confrontam-se
são vagas somente para candidaturas, e não vieram
concepções diferentes sobre a forma de a sociedade
acompanhadas de outras medidas que pudessem ajuescolher seus representantes”.
dar na eleição efetiva de mulheres.
Há mais de 15 anos, propostas de Reforma PolítiNum clima congressual mais suscetível às deca tramitam no Congresso brasileiro. No entanto, as
mandas femininas, aprovou-se em 2009 a Lei
únicas mudanças relevantes na legislação eleitoral ao
12.034, que estabeleceu a destinação de “5% do funlongo desse período foram a aprovação da reeleição
do partidário à criação e manutenção de programas
– em 1997, passando a valer em 1998 para prefeitos,
de promoção e difusão da participação política das
governadores e presidente – e a chamada Lei da Ficha
mulheres”, e a diretiva de “reservar ao menos 10%
Limpa que, embora aprovada em 2010, passou a vigodo tempo de propaganda partidária para promover e
18
Capa
As mulheres podem e devem
É longa e diversa a trajetória das mulheres, em
todo o mundo, para a ampliação dos seus espaços
de poder. Em geral, o patamar alcançado em cada
parcela da população feminina se relaciona com seus
processos históricos. Exemplo disso foi a ampliação
da presença de parlamentares mulheres nos países
da América Latina após suas vivências de redemocratização, com a adoção de cotas e de sistemas com
listas pré-ordenadas. E também a significativa presença feminina em vários países africanos após suas
lutas anticoloniais onde as mulheres tiveram papel
destacado.
Há muitos aspectos a considerar. Para Clara
Araújo, “maior ou menor tradição igualitária teria impactos nas chances de ingresso das mulheres
na vida política. A tradição igualitária, diz ela, não
se atém ao aspecto das instituições políticas, mas,
sobretudo, ao peso que valores relacionados com a
inclusão social e o reconhecimento da necessidade
de ações orientadas por igualar direitos e espaços de
homens e mulheres podem ter nas orientações da
própria política” (ARAÚJO: 2011).
Europa
12,3%
8,8%
11,5%
África Subsaariana
10,1%
13,6%
10,4%
Pacífico
9,8%
21,8%
11,6%
Estados Árabes
3,3%
2,1%
3,3%
Agência Câmara
rar somente em 2012, quando
ficaram impedidos de concorrer políticos que tenham
sido condenados, cassados ou
renunciado para evitar a cassação (BBC Brasil). Apesar
da inexistência de conquistas
significativas nesse campo, na
última década inúmeros projetos de reforma política ou
eleitoral tramitaram no Congresso em 2003-2004, 2007,
2009, 2012 e 2013.
Em relação às mulheres,
depois da conquista do voto
e das cotas para candidaturas
Posse da nova coordenação da Bancada Feminina na Câmara dos Deputados
nenhuma mudança relevante ocorreu. Por isso, compreende-se que a ampliaMulheres nos Parlamentos em
ção de sua presença efetiva depende de alterações
todo o mundo
estruturais no sistema político e eleitoral que asseCasa
Câmara
gurem uma essência democrática. Depende também
Ambas as
Individual ou Alta ou
de uma efetiva participação das mulheres em todo
Câmaras
inferior
Senado
o processo do debate da Reforma Política em curso.
Atenta a essa necessidade, em audiência com o prePaíses Nórdicos
36,4%
--36,4%
sidente da Câmara dos Deputados, Henrique EduarEuropa incluindo
13,8%
8,5%
12,6%
do Alves, a bancada feminina solicitou e foi atendida
Países Nórdicos
com uma vaga, através da deputada Luiza Erundina,
Américas
12,9%
11,5%
12,7%
no seleto grupo de trabalho para tratar do tema, após
Ásia
13,4%
9,9%
13,1%
as “jornadas de junho”.
Regiões são classificados por ordem decrescente da
percentagem de mulheres na Câmara baixa ou única.
Fonte: Inter-Parliamentary Union http://www.ipu.org/wmn-e/classif.htm
Não se pode dizer que há modelos de sistemas
eleitorais que possam garantir essa inclusão feminina
tão desejada. Em tabela apresentada pela União Interparlamentar, em junho de 2011, citando 14 países,
encontra-se apenas duas nações que têm lista aberta:
o Brasil com 8,7% de presença feminina no Parlamento; e a Finlândia com 42,5%. Os demais se dividem em
seis países com listas fechadas e outros seis com listas
flexíveis. À exceção do Brasil, todos os demais superam os 27% de presença feminina nos Parlamentos.
Há, no entanto, uma percepção de que alguns
elementos que compõem a estrutura dos sistemas
políticos e eleitorais criam melhores condições para
que as mulheres conquistem efetivos espaços. Entre
esses elementos se destacam o financiamento público para lhes dar acesso a recursos de campanha;
19
126/2013
Memoriasocialista/Flickr
Referências bibliográficas:
ARAÚJO, Clara. As mulheres e o poder político: desafios
para a democracia nas próximas décadas. O progresso
das mulheres no Brasil 2003-2010. ONU Mulheres:
entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e
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e democracia. In Princípios. Encarte da Edição nº 125. São
Paulo: Anita Garibaldi, junho-julho/2013, p. 13-18.
Seminário As Mulheres e a Reforma Política (Brasília, 2011)
listas pré-ordenadas que garantam cotas de eleitos
através da alternância de gênero; e voto proporcional
que assegure a pluralidade da representação – que
são componentes favoráveis à presença feminina
nos Parlamentos.
O desafio que se coloca hoje é fazer a sociedade
compreender o elo que liga a participação da mulher
nas estruturas de poder e seu impacto nas demandas do país. O Brasil, para crescer, precisa ampliar
investimentos e se apoiar na energia criadora de sua
população, qualificando seus trabalhadores, desenvolvendo sua pesquisa científica. Na população feminina há elementos decisivos para esses desafios. A
População Economicamente Ativa (PEA) conta com
enorme parcela feminina: 41,7%. Há u21ma presença elevada de mulheres nas academias. Em 2010, de
128 mil pesquisadores cadastrados na base de dados (CNPq/MCTi), cerca de 49% eram mulheres. Em
1995, de cada 100 pesquisadores 39 eram mulheres
(LUNKES; PORCIUNCULA; MARTINELLE).
Estamos em tempo de colheita. É chegada a hora de realizar uma reforma política democrática que
proporcione o avanço da participação popular; que
diminua a influência das oligarquias e de grupos
econômicos; que extermine as possibilidades de o
capital ser um cabo eleitoral determinante.
* Jô Moraes é deputada federal pelo PCdoB-MG
e atual coordenadora da Bancada Feminina da
Câmara dos Deputados. E é membro da Comissão
Política Nacional do PCdoB
** Alice Portugal é deputada federal pelo PCdoB-BA,
ex-coordenadora da Bancada Feminina da Câmara
dos Deputados. E é membro do Comitê Central do
PCdoB
20
CINTRA, Antônio Octávio. Majoritário ou proporcional? Em
busca do equilíbrio na construção de um sistema eleitoral.
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21
126/2013
Reforma para ampliar a
democracia e acabar com a
ingerência do poder econômico
na política
Daniel Almeida*
Arquivo
Painel da Bolsa de Valores de São Paulo
Cinco importantes questões são temas da Reforma Política:
financiamento de campanhas, sistema eleitoral, cláusula de
barreira, coligação proporcional e participação popular. Há outras,
mas estas são as que dão formatação de qual modelo vamos
querer: o que garante a liberdade de organização, funcionamento
partidário e respeito às diferenças ou o que restringe a opinião e a
manifestação dos variados atores e segmentos sociais
22
A
Capa
pós as grandes manifestações que tomaram
nifestações, o Grupo de Trabalho criado pela Presias ruas do Brasil em junho de 2013, a predência da Câmara e que tem o deputado Cândido
sidenta Dilma Rousseff trouxe ao debate a
Vaccarezza (PT-SP) como presidente foi um artifício
retomada da Reforma Política, tema sempolítico para contornar o desejo da sociedade por
pre considerado importante, mas freuma Reforma Política de verdade. O povo será ouviquentemente deixado de lado por condo depois do pacote pronto, via referendo.
ta das divergências
Infelizmente, está em curso
que encerra. A proposta do governo,
uma tentativa de aproveitar a ReApesar de
também defendida pelo meu parforma Política para atender a um
tido, o Partido Comunista do Brasil
velho desejo da elite política bravários políticos
(PCdoB), é ouvir a população através
sileira, que é reduzir o número de
condenados, os
de um plebiscito para que esta departidos em atuação no Brasil ou,
termine os termos da agenda sobre
quando pouco, dificultar a sua exiscorruptores estão
a qual o Legislativo deve se debruçar.
tência, limitando o acesso ao Fundo
ilesos, ainda livres
Ao sentirem o cheiro de queiPartidário e ao tempo de rádio e TV,
mado, os setores conservadores no
através da conhecida cláusula de
para continuarem
Congresso trataram de tentar enterbarreira, um percentual subjetivo,
corrompendo
rar a proposta de plebiscito, que pasmínimo, de votos na eleição imesou a contar somente com o apoio
diatamente anterior.
autoridades e
do Partido dos Trabalhadores (PT) e
Vamos analisar a seguir cada
sobrevivendo à
do PCdoB. A alguns partidos – que
uma das cinco questões que são tecostumam monopolizar as decisões
mas da Reforma Política: financiasombra da lei
no Legislativo – assusta ouvir o que
mento de campanhas, sistema eleio povo quer acerca dos destinos do
toral, cláusula de barreira, coligação
país. E nessa hora é de se estranhar que as legendas
proporcional e participação popular.
conservadoras da oposição encontrem apoio entre
aliados do próprio governo – e até dentro do PT – para
Financiamento de campanha
a manutenção da situação, ou – como agora se ameaça – o retrocesso em termos de liberdades do exercício
Em 2009, o Congresso aprovou a Lei da Ficha
partidário e da manifestação de opinião.
Limpa, impedindo que políticos condenados ou com
Dói nos olhos e ouvidos de determinados setopendências junto aos tribunais de contas possam ser
res no Congresso Nacional ler e ouvir dados como os
candidatos. Isso impossibilitou, em 2012, por exemplo,
que ex-prefeitos condenados por desvios retornassem e
coletados por uma recente pesquisa encomendada
gozassem de mais quatro anos de mandato. Uma boa
pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e por
lei, que combateu as consequências da corrupção. Mas
outras organizações, segundo os quais 85% da popufaltou atingir a causa, que continua intocável. Apesar
lação brasileira são a favor de uma reforma política e
de vários políticos corruptos serem condenados nos
84% querem que as mudanças já valham para 2014;
últimos anos, os corruptores estão ilesos, ainda livres
e ainda que 78% não querem empresas privadas
para continuarem corrompendo autoridades e sobrecontribuindo com recursos a partidos e candidatos e
vivendo à sombra da lei.
90% exigem punição seA raiz está no finanvera para quem pratica
ciamento privado de
caixa 2.
campanhas. Os grandes
Então, ao invés de
financiadores, normalouvir a população em
mente, são setores que
plebiscito – o que lefazem negócios com os
gitimaria uma ideia e
governos ou que têm
imporia ao Parlamento
interesse em leis, mediavançar no aperfeiçoadas e decisões que posmento do sistema posam ser encaminhadas
lítico –, a maioria dos
pelos governantes.
partidos preferiu uma
No plano nacional,
saída menos mudancisquem mais contribui
ta. Lamentavelmente,
para as campanhas são
na contramão das ma-
23
126/2013
os bancos, as construtoras, o setor
industrial e as empresas de teleUma das saídas
comunicações. No plano estadual,
para acabar com a
quem mais libera dinheiro são as
construtoras, os fornecedores de
influência do poder
produtos das áreas de educação,
econômico no
saúde e informática, empresas de
locação de serviços e mão de obra,
processo eleitoral
mais as indústrias com interesses
é estabelecer o
locais. Já nos municípios, novamente as construtoras e mais emfinanciamento
presas de lixo, empresas do setor
público de campanha.
de transporte coletivo, fornecedores de material administrativo e de
Junto com a medida,
expediente (educação, saúde, ação
devem vir regras claras
social), além de contribuintes individuais com interesses específicos.
A relação se estabelece da maneira mais clara e imoral possível. Quem contribui
o sistema de prestação de contas dos candidatos, di“exige” do governante, após a posse, atendimento de
minuiu os custos das campanhas e deu maior ampliseus interesses. Este, por sua vez, se sente na “obritude ao debate político, em detrimento da espetaculagação” de dar uma resposta àqueles que financiaram
rização dos comícios e da troca do voto por pequenos
sua campanha, confiando em ajudas futuras; afinal,
benefícios diretos. O financiamento público de cameleição acontece de dois em dois anos. Há também
panha, com limite de gastos, além de reduzir a infludenúncias de pagamentos de propinas, embutidas
ência do poder econômico, ampliaria o princípio dessa
nos custos dos serviços prestados, repassadas a golei, pois diminuiria a distância entre candidatos com
vernantes ou a servidores públicos. E assim o ciclo
muito dinheiro e aqueles com poucos recursos.
vicioso se move, colocando em risco a democracia e
Os que são contra o financiamento público dizem
a gestão pública.
ser um absurdo retirar dinheiro da saúde e da educaSaliente-se que as relações promíscuas envolvenção para financiar campanha. É um argumento falso.
do setores empresariais e políticos, partidos ou goO que é aparentemente ofensivo ao bolso do contrivernos não são privilégio do Brasil. Agora mesmo,
buinte é uma vantagem para a sociedade em médio
na Espanha, o partido do primeiro-ministro Mariano
e longo prazo. Sem o financiamento privado, dimiRajoy enfrenta uma investigação por causa de denui-se a ação de lobistas sobre governos e reduz-se a
núncias contra o repasse de dinheiro a líderes do PP
força do balcão que se forma após a posse dos novos
(legenda governista) em troca de contratos públicos.
governantes, com a avidez dos financiadores em recuO próprio tesoureiro da agremiação já admitiu o criperar seu “investimento”.
me, e a situação do atual governo se complica a cada
dia. Na China, Bo Xilai, um ex-dirigente do Partido
Sistema eleitoral
Comunista da China (PCCh), enfrenta processo por
corrupção e pode ser condenado à morte por ter aceiUm outro aspecto importante da Reforma Polítado suborno de empresas e desviado fundos públitica é o sistema eleitoral. Dele existem três formas
cos. Seu principal auxiliar já foi condenado à prisão
vigentes no mundo: o proporcional, o distrital e o
perpétua.
distrital misto.
O que precisamos no Brasil é ter medidas que imO sistema proporcional é o vigente no Brasil,
peçam a corrupção, além de punições rigorosas para
através do qual o eleitor vota no candidato que quios crimes, quando cometidos. Uma das saídas para
ser, através de listas abertas. Para o PCdoB, não é o
acabar com a influência do poder econômico no promelhor sistema. O Partido defende o voto em liscesso eleitoral é estabelecer o financiamento público
ta partidária pré-ordenada. Porém, o sistema atual
de campanha. Junto com a medida, devem vir regras
permite ao eleitor o direito de escolher aquele que
claras, limites de gastos, fiscalização rigorosa e severa
acha o melhor, independentemente de ele estar em
punição ao caixa 2.
seu distrito ou não. Além do mais, permite que as
Em 2006, a Lei nº 11.300, que pôs fim aos showdiversas forças e tendências sociais se expressem
mícios, proibiu a distribuição de brindes e aprimorou
no Parlamento, com a eleição de seus candidatos.
24
Capa
Pelo voto distrital o eleitor escolhe entre os candidatos do seu distrito. É como numa eleição majoritária, onde apenas o vencedor leva. Com o distrital
misto, o eleitor vota duas vezes: escolhe o candidato
do seu distrito e vota numa lista proporcional.
Há muito tempo os setores conservadores defendem a instituição do voto distrital no Brasil. Esse modelo já foi utilizado no Império e na República Velha,
foi abolido em 1930 com a Lei nº 48, e voltou com o
Estado Novo e durante a ditadura militar. Em períodos democráticos, o sistema utilizado sempre foi o
proporcional.
Não por acaso há uma correlação entre democracia
e sistema eleitoral proporcional e ditadura e sistema
eleitoral majoritário. Através do sistema majoritário,
sob diferentes formas, o poder dominante tem mais
facilidade de limitar a ação das minorias. É sempre a
repetição da história em forma de farsa ou de tragédia. A título de exemplo, um partido que obtiver 40%
dos votos em determinados estados do Brasil, pode
ficar sem qualquer deputado federal, já que tem de
concorrer em distritos e, mesmo com este alto percentual, pode perder em todos eles.
O distrital misto, por um lado, resolveria este problema, mas, por outro, traria outro: para permitir metade das cadeiras no sistema proporcional e metade
no distrital, o distrito teria de ser grande, o que só
beneficia a candidatos com poder aquisitivo maior,
com mais condições de pagar uma campanha grande.
Seria deformar ainda mais o sistema, caso não viesse
acompanhado de exclusivo financiamento público.
Nos dois casos, voto distrital significa transformação
do distrito em curral eleitoral e aumento da influência
do poder econômico, exatamente o que se quer, teoricamente, combater. Além disso, o sistema praticamente
exclui o voto de opinião, que está disperso em toda a
sociedade e ajuda no fortalecimento dos partidos, pois
o eleitor pode votar num conjunto de princípios e não
em interesses meramente localizados, que eliminam o
papel legislador do parlamentar, transformando o deputado federal num vereador na distante Brasília.
É evidente que o deputado federal tem de estar
preocupado com as questões regionais, mas ele deve
ser eleito para defender a Nação, para discutir as grandes questões nacionais, como soberania, democracia,
reforma agrária, sistema tributário, direitos dos trabalhadores, saúde, educação, entre outros temas.
Ademais, a definição dos distritos exigiria remanejamento a cada censo populacional, já que as proporções de eleitores dentro de uma mesma cidade ou de
um mesmo estado variariam conforme a mobilidade e
o crescimento demográficos. Além de poder mudar as
regras do jogo a cada censo, tal modelo poderia abrir
espaços para mais manipulações e fraudes, iguais às
que já ocorrem hoje com a transferência de eleitores
de um município para outro.
Os distritalistas citam sempre o modelo distrital
misto alemão como exemplo. Como existe lá, pode ser
implantado aqui também. O problema é que a Alemanha é um país com enormes diferenças em relação
ao Brasil: territoriais, sociais, demográficas, regionais,
políticas, econômicas e culturais.
Cláusula de barreira
Pela proposta que está sendo discutida na Comissão criada pela Câmara, legendas que obtiverem menos de 2% dos votos válidos para a Câmara dos Deputados não teriam direito a qualquer fatia do Fundo
Partidário e nem acesso ao horário eleitoral gratuito.
A proposição limita aos partidos que elegeram ao
menos 11 deputados federais o direito de partilhar o
Fundo e a propaganda. Se a regra valesse em 2011,
apenas 13 legendas teriam essa vantagem: PT, PMDB,
PSDB, PR, PP, DEM, PSB, PDT, PTB, PSC, PCdoB, PV
e PPS. Agremiações como PSol, PRB, PRP e PMN,
por exemplo, teriam ficado de fora. O deputado Júlio
Delgado (PSB-MG) defende um percentual maior, de
3%. Se sua proposta valesse hoje, apenas 10 legendas
dividiriam o bolo financeiro e rádio-televisivo, com
PCdoB, PPS e PV engordando a lista dos censurados.
Difícil imaginar a política no Brasil sem a presença
PARTIDOS* QUE CUMPRIRIAM AS REGRAS / ELEIÇÕES PROPORCIONAIS
*Partidos com representação na Câmara
25
126/2013
dos comunistas e de outras correnTrata-se de mais um artifício
tes, como os ambientalistas (verpara dificultar a existência de agreO deputado federal
des).
miações menores, que deixariam
Da mesma maneira que o voto
de existir institucionalmente. Goltem de estar
distrital, a redução do quadro partipe antidemocrático, a proposta de
preocupado com as
dário para poucos e grandes partidos
fim das coligações impede a livre
é outra bandeira que os conservadoassociação política e o direito de
questões regionais,
res defendem como forma de garanas correntes políticas, e que têm
mas deve defender
tir “estabilidade” para governar. A
semelhanças programáticas, se ascláusula de barreira permitiria a resociarem para defender bandeiras
a Nação, discutir as
dução do número de atores políticos
comuns.
grandes questões,
com direito a voz nas casas legislatiOs defensores do fim das coligavas. Assim, cerceando correntes políções proporcionais dizem que elas
como soberania,
ticas diversas, acreditam pavimentar
apenas um arranjo de legendas
democracia, reforma são
o caminho para um inquilinato tranmaiores que querem mais tempo de
quilo no Congresso e no governo.
TV e das legendas menores que queagrária, sistema
Querem garantir estabilidade pelo
rem eleger mais deputados e vereatributário, direitos
modo mais fácil, em vez de fortalecer
dores. Dizem ainda que a associao Parlamento como poder autônomo
ção impede o eleitor de identificar
dos trabalhadores,
e representante do povo.
o ideário político de cada candidato
entre outros temas
Assim como o voto distrital, a
e que sejam eleitos representantes
cláusula de barreira, outra cópia do
comprometidos com os programas
modelo alemão, também é própria
dos respectivos partidos.
dos períodos antidemocráticos e, no Brasil, serviu ao
Conforme levantamento feito pelo Departamento
interesse de quem estava no poder. A Reforma PolíIntersindical de Análise Parlamentar (DIAP), se as cotica promovida pela ditadura militar impôs o percenligações proporcionais estivessem proibidas em 2010,
tual de 10% como “cláusula de desempenho”, caindo para 5% no conhecido pacote de abril de 1977. A
redução do percentual se deu exatamente porque os
generais – que haviam sido derrotados em 1974 – temiam uma derrota maior em 1978.
Comandaram a mudança, o presidente da Câmara à época, deputado Marco Maciel; o general Golbery do Couto e Silva; e o senador Petrônio Portella,
então ministro da Justiça. As elites fragmentaram
o quadro partidário para retirar o caráter plebiscitário e uma possível derrota do PDS frente ao PMDB.
Cinco partidos (PT, PDT, PDS, PMDB e PTB) se organizaram para disputar a eleição em 1982 e somente três conseguiram alcançar a cláusula de barreira.
Entretanto, o dispositivo não foi aplicado e os partidos continuaram a sobreviver.
Coligação proporcional
Um outro entulho autoritário – que também vigorou na ditadura junto com o voto distrital e a cláusula de barreira – que encontra eco majoritário entre
os grandes partidos é o fim das coligações proporcionais. São como irmãos gêmeos. Quem defende essa
ideia, normalmente, defende a(s) outra(s). Argumentam que as coligações desvirtuariam o sistema
distrital misto proposto, já que os partidos devem ter
desempenho eleitoral próprio.
26
Capa
apenas três partidos teriam aumentadas as suas banlegislativas. Aliás, como permitem outras nações, cocadas nacionais. PMDB, PT e PSDB teriam, juntos, 62
mo Bélgica, Bulgária, Chile, Dinamarca, Grécia, Isradeputados federais a mais, e todos os demais teriam
el, Polônia e Suécia, nas quais existem coligações e
as suas bancadas diminuídas. Os três maiores parsistema proporcional.
tidos concentrariam ainda mais poder e os partidos
É bom não esquecer que os partidos que hoje são
médios também teriam as suas bancadas reduzidas e
chamados de médios – e que apoiam o fim das coliganão apenas os pequenos partidos, como argumentam
ções proporcionais e da cláusula de barreira –, assim
os defensores do fim das coligações.
o são porque existem os que são chamados de pequeA proposta contraria o pluralismo político, um
nos. No dia em que houver poucas legendas, vão condos cinco fundamentos da República Federativa do
tinuar existindo as grandes agremiações e as pequeBrasil, conforme está expresso já no primeiro artigo
nas. Quem for poupado agora será o alvo no futuro.
da Constituição de 1988, que trouxe a liberdade de
organização e de ação partidária. A partir de então,
Participação popular
os partidos se tornaram pessoas jurídicas de direito
privado, adquirindo a sua personalidade jurídica na
Uma das principais inovações que uma Reforma
forma da lei civil (art. 17, § 2º, da CF) e obtendo auPolítica pode trazer é a possibilidade de maior partonomia para definir sua estrutura interna, sua orgaticipação direta do eleitor nos trabalhos legislativos.
nização e o seu funcionamento (art. 17, § 1°, da CF).
Nesse sentido, é preciso facilitar os mecanismos de
Da mesma maneira, o texto garante a plena liberdade
participação popular na proposição de projetos de lei
de associação, conforme está expresso no seu art. 5º,
e emendas constitucionais. Hoje, um Projeto de Lei
inciso XVII, sendo que tal liberdade alcança as pesde Iniciativa Popular precisa ter 500 mil assinaturas
soas físicas e também as pessoas
e uma Proposta de Emenda Constijurídicas, conforme o entendimento
tucional de 1,5 milhão. Além disso,
Uma das principais
autorizado do Supremo Tribunal Feé preciso que o Parlamento garanta
deral (STF). Estes direitos e garanproporcionalidade de participação
inovações que uma
tias não podem ser suprimidos nem
de importantes setores e segmentos
Reforma Política
mesmo por emenda à Constituição,
da sociedade, ampliando a presença
conforme declara o art. 60, § 4º, IV,
de mulheres, negros e índios, com
pode trazer é a
constituindo-se, portanto, nas chamaior democratização do acesso às
possibilidade de
madas “cláusulas pétreas”.
disputas eleitorais. É fundamental
também que os trabalhadores teAdemais, as coligações propormaior participação
nham mais acesso aos assentos lecionais ajudam a corrigir uma aberdireta do eleitor nos
gislativos, para que suas bandeiras,
ração do sistema eleitoral brasileiro.
Em 11 das 27 unidades federativas,
trabalhos legislativos que são maioria na sociedade, ganhem preponderância no Congreso quociente eleitoral, para a Câmara
so, majoritariamente ocupado por
dos Deputados, alcança o alto perinteresses das elites brasileiras.
centual de 12,5% dos votos válidos
A lista partidária pré-ordenada defendida pelo
e, em mais nove, tal quociente fica entre 5,5% e 11%.
PCdoB é uma forma de fortalecer os partidos, ao mesOu seja, em 20 estados, o número de votos exigido pamo tempo em que permite o prévio aprofundamento
ra que um partido possa eleger deputados à Câmara
da participação de mais segmentos sociais nos destiFederal alcança percentual superior ao da cláusula de
nos das agremiações e na composição do Parlamento.
barreira que vem sendo debatida na Comissão criada
Agora mesmo, sob o comando da OAB, um mopela Câmara.
vimento com diferentes segmentos elabora uma
Em 2010, se tais regras valessem, em Roraima,
proposta de Reforma Política que será apresentada
por exemplo, somente um partido teria alcançado
à Câmara em forma de Projeto de Iniciativa Popular.
o quociente eleitoral e eleito todos os deputados do
Além do mérito de ser uma iniciativa que mobiliza a
estado. Em mais seis unidades federativas, somente
sociedade, possui a grandeza do conteúdo, com boas
dois partidos teriam alcançado o percentual, e em
ideias e soluções.
mais sete só três ou quatro partidos teriam eleito deA proposição veta a contribuição de empresas a
putados federais.
campanhas e partidos, mas permite a contribuição
Ou seja, a coligação corrige princípios antidemoindividual do cidadão, com limites. Combate o poder
cráticos, que vão de encontro à liberdade de organizaeconômico de grupos empresariais sobre o processo e
ção partidária e ao direito de todos poderem participar
garante o exercício da cidadania, com a possibilidado processo político elegendo representantes às casas
27
126/2013
Divulgação
de de o eleitor contribuir com aquele
projeto político que quiser.
No que diz respeito ao sistema
eleitoral, a proposta mantém o voto
proporcional, com a novidade de uma
votação em dois turnos. No primeiro,
o eleitor votaria no partido, definindo
o tamanho que cada legenda terá a
partir da votação recebida. No segundo turno o voto seria na lista partidária, indicando os representantes de
cada legenda no Parlamento.
A proposta mantém a coligação
proporcional, mas o horário eleitoral gratuito vai considerar apenas o
tempo reservado ao maior partido da
coligação. Tal medida evita que haja negociações apenas para garantir
tempo de TV.
A lição das ruas
Enfim, vivemos um momento
crucial para o país. Se há um aprendizado a tirar das grandes mobilizações do povo no mês de junho passado, foi o manifestado desejo de ver o
Brasil avançar com uma política menos corrupta, investimento público
28
Vivemos um
momento crucial
para o país. Se há
um aprendizado a
tirar das grandes
mobilizações do
povo no mês de
junho passado,
foi o manifestado
desejo de ver o
Brasil avançar
com uma política
menos corrupta,
investimento
público nos setores
essenciais à vida da
população e garantia
de participação
da sociedade nos
destinos da Nação
nos setores essenciais à vida da população e garantia de participação
da sociedade nos destinos da Nação.
O povo cansou de apenas ir às
urnas de dois em dois anos. Ele
quer que as propostas que lhe foram
apresentadas na hora do pedido do
voto sejam materializadas em políticas e ações concretas. Ele quer ver
em prática o bonito discurso que os
candidatos apresentam na TV e no
rádio, nos comícios e no corpo a corpo da campanha eleitoral.
Ao se aproximarem os 11 anos de
mandatos populares na Presidência
da República e tantas outras experiências em estados e municípios da
aliança original formada em 1989,
através da Frente Brasil Popular, está dado o tempo para que o Brasil
avance em reformas progressistas.
Fazer a Reforma Política democrática é começar pelo começo.
O meu partido, o PCdoB, prega
coragem às forças políticas comprometidas com um país melhor.
* Daniel Almeida é deputado federal
(PCdoB-BA)
A velha arapuca do voto distrital
Bernardo Joffily*
Ilustração publicada em 1812 pelo jornal
Boston Gazette retrata o Gerrymandering,
o “distrito monstro”
Sempre que a Reforma Política entra em debate, os setores
conservadores aparecem balançando a bandeira do nocivo
sistema de voto distrital. Experiências de outros países e
até mesmo da história brasileira revelam que este sistema
inviabiliza a representação das minorias, aniquila a pluralidade
partidária, rebaixa a atuação parlamentar e transforma os
distritos em verdadeiros currais eleitorais
29
T
oda vez que o Brasil se debate com a necessidade de uma Reforma Política – e elas
não têm faltado, nos últimos 20 anos ou
nos últimos 200 –, entram em cena os defensores do voto distrital. Na tentativa de
2013 eles voltaram à carga, sempre esperançosos de fazer com que a democracia
brasileira retroceda oito décadas – ressuscitando
um sistema que a tornaria mais paroquial e menos
representativa.
Os distritistas estão concentrados no Partido da
Social Democracia Brasileira (PSDB). O Programa
dos tucanos (2007) prega a “distritalização do voto” e apresenta três alternativas, com diferentes
graus de repúdio a sistema representativo. O Partido Social Democrático (PSD) aderiu, seu site diz
que “apoia esta causa!”, mas os tucanos são os mais
ardorosos distritistas, a começar pelo ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso.
Em entrevista à Rede Bandeirantes (19-042013), FHC, após admitir a derrota da pregação
parlamentarista tucana, recomendava: “Temos que
insistir noutro ponto, que vinha junto com o parlamentarismo, que é o voto distrital”.
Mais recentemente (06-08-2013), o líder do PSDB na Câmara, Carlos Sampaio (SP), foi enfático:
“O voto distrital é o ideal para o país. (...) Sou totalmente favorável”. Durante os Protestos de Junho,
o governa dor Geraldo Alckmin citou os distritos
como exemplo das “reformas estruturantes” para
responder ao que chamou de “crise de liderança
política”.
tanto, é fortemente controvertido e o autor deste
artigo alinha-se com os defensores do voto proporcional (1).
No sistema distrital, ou de maioria simples, o
país é dividido em distritos eleitorais (também
chamados circunscrições), com eleitorado mais ou
menos semelhante. Em Minas Gerais, por exemplo,
os 55 deputados federais seriam eleitos em 55 distritos, e em cada um deles a eleição seria majoritária: cada partido apresentaria um só candidato e o
mais votado venceria. Outra divisão criaria 77 “distritos estaduais”, cada um elegendo um dos membros da Assembleia Legislativa mineira. E cada município seria dividido em tantos distritos quanto o
número de cadeiras de vereador.
O sistema também comporta variantes. O voto
distrital clássico é uninominal: cada distrito elege
um só nome; mas há países onde um distrito elege
dois ou mais cadeiras. Também há os sistemas mistos, que combinam de diferentes formas o voto distrital com o proporcional, na tentativa de escapar
das deformações do sistema distrital.
O berço do voto distrital é o Reino Unido. Por
isso, o sistema é conhecido pela expressão inglesa
“First Past the Post”, ou FPTP (“o primeiro a cruzar
a linha de chegada”). E é adotado principalmente
por ex-colônias britânicas, como os Estados Unidos, o Canadá, a Índia e países africanos da Commonwealth. A França também adota uma variante
de voto distrital, com dois turnos.
Política ao gosto conservador
O Brasil também adotou o sistema de distritos
eleitorais ao longo do Império e da República Velha.
Aposentou-o graças à Revolução de 1930.
O mapa da página 31 mostra como eram os distritos em 1868; uns elegeram dois deputados provinciais e outros três. E nem sempre os últimos
eram os mais populosos: o distrito do Recife elegeu
três deputados e tinha 392 eleitores (o voto, censitário, exigia renda mínima de 200 mil réis); mas
Penedo (AL), com 528 eleitores, elegeu dois deputados. Em 1881, a Lei Saraiva restabeleceu os distritos uninominais, sanando algumas distorções, mas
criando outras.
Na República, a Lei Eleitoral de 1892 conservou
os distritos, cada um elegendo três deputados federais. Em 1904, a Lei Rosa e Silva reduziu o número
de distritos de 63 para 41, cada um com cinco a sete
deputados.
Nos fundamentos do sistema estavam os coronéis
da Guarda Nacional, senhores locais das terras da
lei e dos votos. Sobre eles erigiam-se os esquemas
Há motivos para a insistência. Os sistemas eleitorais, por si, não determinam os destinos da luta
política. Mas influem, às vezes decisivamente.
Um bom exemplo é o papel que a “brecha presidencialista” tem jogado nos avanços das forças populares e progressistas latino-americanas, a partir
das vitórias de Hugo Chávez, em 1998, e de Lula,
em 2002: a eleição direta do chefe de Estado e de
governo, com o acúmulo de poderes que possui no
continente, nas condições do fim do ciclo ditatorial-militar e do fracasso do ciclo neoliberal, mostrou
ser o calcanhar de Aquiles do domínio oligárquico-neocolonial, a via capaz de concentrar e, em certa
medida, efetivar, as esperanças, demandas e exigências do andar de baixo da pirâmide social.
Se a “brecha presidencialista” tem favorecido a
esquerda latino-americana, a adoção do voto distrital no Brasil, ao contrário, estimularia um tipo de
política ao gosto dos conservadores. O tema, por-
30
126/2013
O voto distrital à brasileira
Capa
de domínio nos distritos, a “política dos governadores” e, por fim, o governo central.
Coube à Revolução de 1930 colocar em xeque
esse mais que secular esquema de domínio. Getúlio
confiou a tarefa a outro gaúcho, Assis Brasil, republicano histórico, chefe “maragato” nos entreveros
de 1923, diplomata, estancieiro, senhor do Castelo
de Pedras Altas.
Com base em seu livro Democracia representativa:
Do voto e do modo de votar (2), Assis Brasil elaborou
o Código Eleitoral de 24 de fevereiro de 1932. A cidadania brasileira deve a essa lei revolucionária, além
Belém
São Luís
Manaus
Sobral
Fortaleza
Caxias
Teresina
Natal
Crato
Paraíba
(João
Pessoa)
Pombal
Vila Bela
(Serra Talhada)
Nazaré
Recife
Cabo
Caruaru
Maceió
Penedo
Cachoeira
Rio de Contas
Cuiabá
Nazaré
Aracaju
São Cristóvão
Inhambupe
Salvador
Goiás
Montes Claros
Serro
São
João
Del
Sabará
Ouro
Preto
Rei
Campanha
Barbacena
Mogi Mirim
Piraí
Taubaté
Niterói
Rio de
São
Janeiro
Paulo
Curitiba
Desterro
(Florianópolis)
Vitória
Campos dos Goytacazes
O voto distrital no
Império do Brasil
(dados de 1868)
Porto Alegre
Limites dos
distritos
eleitorais
Rio Grande
Distrito que elege
dois deputados
Distrito que elege
três deputados
“Cabeça de distrito”– nome da cidade
31
126/2013
dos 18 distritos. Na última eleição federal no Canadá,
do sistema proporcional, o voto secreto – bandeira do
em 2011, o Partido Conservador conseguiu 54% da
movimento de 1930 –, o voto obrigatório, o voto femiCâmara, com 39,6% dos votos.
nino, a criação da Justiça Eleitoral e o recadastramenIsso acontece porque o sistema distrital é tosco.
to que pôs fim a uma legião de “fósforos”, defuntos
Só leva em conta os votos para o vencedor no distrique acorriam fantasmagoricamente às urnas. O Códito; todos os outros são descartados
go de 1932 previa até o uso de uma
e têm influência zero no resultado.
“máquina de votar”, antevendo as
O defeito número
Tampouco importa se a vantagem
urnas eletrônicas atuais.
do vencedor foi de um voto ou se ele
Depois da Revolução de 1930, o
um do voto
teve o apoio de 100% dos eleitores.
Brasil nunca mais teve voto distrital.
distrital é que ele
Por essas e outras, nos países onOcorreram tentativas de ressuscitáde vigora o voto distrital sempre sur-lo: na Constituinte de 1946; num
é desproporcional.
gem movimentos pela reforma do
projeto do deputado democrata-crisNão espelha
sistema. Nos EUA, o Fair Vote (“Voto
tão Franco Montoro (futuro tucano)
justo”) luta por “uma democracia
em 1964; no crepúsculo da ditadura,
a vontade do
representativa que respeite todos os
João Batista Figueiredo ainda fez
conjunto dos
votos e todas as vozes em todas as
aprovar um sistema distrital misto,
eleições”. Seu site (http://www.faircom a Emenda Constitucional 22, de
eleitores e com
vote.org) prevê que a distorção vai
1982. Mas veio a democratização e o
frequência distorce,
aumentar ainda mais em 2014: os reesquema foi suprimido como entupublicanos vão levar a maioria da Câlho autoritário.
deforma ou até
mara com apenas 45% dos votos (3).
Porém, o voto distrital tem defencontraria a voz das
Há uma versão canadense, o Fair
sores insistentes. Na Constituinte de
Vote Canada (http://www.fairvote.
1987-88 ele voltou a ser cogitado. Na
urnas
ca). Visa a “conquistar um amplo e
reforma constitucional ensaiada no
multipartidário apoio para um proinício do governo FHC houve nova
cesso cidadão que permita aos canadenses escolher
tentativa. E outras mais se sucederam – aproveitando
um sistema eleitoral justo, baseado no princípio de
que o Brasil de fato precisa de uma Reforma Política
que todos os eleitores são iguais e todos os votos de(não a dos distritos, mas outra, democrática e profunvem contar”.
da).
Já o Reino Unido conta com a Electoral Reform Society, ou ERS (Sociedade da Reforma Eleitoral), fundada
Ruim para os eleitores e para a
em 1884 (!). Ela prega “uma democracia representativa
democracia
para o século 21”, pois o FPTP “é ruim para os eleitores,
ruim para o governo e ruim para a democracia”. A ERS
O defeito número um do voto distrital é que ele é
teve papel importante na campanha pelo “Sim” no redesproporcional. Não espelha a vontade do conjunto
ferendo de 2011 sobre a mudança do sistema eleitoral
dos eleitores e com frequência distorce, deforma ou
britânico. O fim do voto distrital não passou, obtendo
até contraria a voz das urnas.
32,1% da votação total. No entanto, a ERS conseguiu
O sistema distrital possibilita que o partido ‘A’ teavanços parciais concretos nos sistemas eleitorais emnha 49,9% dos votos em cada distrito sem eleger um
pregados na Escócia e na Irlanda do Norte.
só representante. Na outra ponta, permite que o partido ‘B’ consiga a metade do total de deputados com
Gerrymandering, o distrito-monstro
25,1% do total de votos, desde que estes se concentrem estrategicamente de modo a formar maioria na
O segundo defeito do voto distrital é que ele enmetade dos distritos; ou até que o partido ‘C’ obtenha
trega um gigantesco poder arbitrário aos políticos e/
a totalidade dos deputados graças a uma certeira disou tecnocratas que delimitam os distritos. É o que
tribuição de 50,1% dos votos.
mostra o exemplo hipotético na página ao lado, aliás
Hipóteses desse tipo acontecem. Na última eleição
tirado de um site governamental dos EUA. Há mais
para a Câmara de Representantes dos EUA (04-11de dois séculos existe uma palavra inglesa para o es2010), o Partido Republicano teve 47,6% do eleitoratratagema de fixar os distritos visando a obter vando, 1.413.603 votos a menos que o Partido Democrata
tagens eleitorais: gerrymandering. O termo surgiu da
(48,7%), porém ficou com a maioria das cadeiras –
ilustração que abre esta matéria (pág. 29), publicada
234 contra 201. No caso mais clamoroso, Pennsylvania,
em 1812 pelo jornal Boston Gazette. O artigo denunos republicanos, com 50% vos votos, venceram em 13
32
Capa
“Gerrymandering”2
“Gerrymandering”
Três maneiras de arrumar as fronteiras
de três distritos eleitorais, com três
resultados totalmente distintos
PA PA PB PB PB
PA PA PB PB PB
PB PA PA PB PB
PB PA PA PB PB
PB PB PA PA PB
PB PB PA PA PB
Vamos supor uma área
habitada por 15 eleitores,
seis do ‘PA’(azul) e nove
do ‘PB’(vermelho).
Maneira 1
O ‘PB’ ganha a eleição
nos três distritos. O
‘PA’ não elege ninguém
PA PA PB PB PB
PA PA PB PB PB
PB PA PA PB PB
PB PA PA PB PB
PB PB PA PA PB
PB PB PA PA PB
Maneira 2
O ‘PB’ vence em dois
distritos. Mas o PA ganha
e um (o do meio)
Maneira 3
Surpresa! Nessa opção o
‘PA’ leva dois distritos e só
perde no da direita.
ciava o governador de Massachusetts, na época,
Elbridge Gerry, por manipular o desenho dos
distritos. E dava como exemplo esse distrito da
área de Boston, tão deformado que ficou com
o formato de uma salamandra (em inglês, salamander). Gerry + salamander = gerrymander. O
partido de Gerry venceu a eleição de 1812, mas
o apelido desmoralizante persegue até hoje os
manipuladores de distritos eleitorais.
O gerrymandering continua a ser usado sem
muitas cerimônias. Veja, por exemplo, alguns
distritos reais e atuais dos EUA (à direita). Às
vezes o artifício até tem boas intenções (é o caso do 4º Distrito de Illinois, também chamado
“Tapa orelhas”: foi desenhado para conter um
eleitorado majoritariamente “hispânico”), em
outras visa mesmo à manipulação eleitoral.
O problema se agrava porque todo país que
adere ao voto distrital precisa redefinir periodicamente os distritos, para responder às flutuações no número de eleitores. Quando não se faz
isso, a emenda é ainda pior: o exemplo clássico é
o dos “burgos podres” (“rottenboroughs”), os distritos despovoados que ajudaram a manter artificialmente a maioria parlamentar conservadora
na Inglaterra antes da reforma de 1832; o mais
famoso deles, Dunwich, tinha sido invadido pelo mar e possuía apenas 32 eleitores...
Já na França contemporânea, ocorreram
redefinições dos distritos em três ocasiões: em
As estranhas silhuetas de alguns
dos 435 “distritos congressionais”dos EUA
WA
OR
ND
MT
ID
SD
WY
NV
2
UT
CA
AZ
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MN
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IA
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5
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3
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MS
1
TN
AL
PA
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IN
MO
NH MA
NY
MI
ME
CT RI
NJ
DE
MD
NC
SC
GA
LA
TX
FL
4
1 12º distrito da Carolina do Norte
2 23º distrito da Califórnia
3 4º distrito de Illinois
4 20º distrito da Flórida
5 19º distrito do Texas
6 7º distrito do Tenesse
33
126/2013
tantivas dessa dispersão ditada pelo voto popular.
Logo depois do fim da ditadura, não havia dispersão,
mas enorme concentração.
Na eleição de 1986, o PMDB
elegeu, sozinho, 53,4% da
Câmara, 260 dos 487 deputados federais. Mas essa hegemonia
não passou no teste da práA “vocação
tica e a tendência dos votos mudou.
Um sistema partidicida
partidicida” é vista
Doze anos mais tarde, em 1998, era o
consórcio PSDB-PFL que se sobresO outro efeito do voto distrital
pelos distritistas
saía, com 99 + 105 = 204 deputaé a drástica redução do número de
como se fosse um
dos, 39,8% do total de 513 deputapartidos políticos. Todos os países
dos. Novo teste, nova rejeição. Mais
que adotam o sistema majoritário
mérito, pois alegam
12 anos e nas últimas eleições gerais,
tendem ao bipartidarismo, conforque o grande
em 2010, a dupla mais votada foi PTme observou o sociólogo francês
-PMDB,
com 88 + 79 = 167 deputaMaurice Duverger, naquela que é
número de partidos
dos, 32,6% do total.
conhecida como Lei de Duverger, foré um grave defeito
Em vez de se impor outro bipartimulada em 1951.
darismo
com o fórceps do voto distriO fenômeno é particularmenda democracia
tal, ou outro qualquer, melhor seria
te visível nos EUA – caso extremo,
brasileira. Por
prestar atenção ao que vêm dizendo
ímpar, de país que há um século e
os eleitores brasileiros. Esses númemeio possui na prática apenas dois
que repetir o erro
ros, essa dança dos partidos mais
partidos. Mas, verifica-se igualmenantidemocrático
votados, essa dispersão insistente e
te em outros, enquanto tendência.
crescente, ao longo de mais de uma
Pela Lei de Duverger, o voto disdos golpistas de
geração, expressam um real aprentrital concentra drasticamente os
1964, que em
dizado democrático. Por tentativa
mandatos eleitorais entre os dois
e erro, em meio a um contraditório
partidos mais fortes. A terceira le1965 impuseram
vivo, às vezes enérgico mesmo, uma
genda é discriminada pela própria
a fórceps o
massa de mais de cem milhões de
lógica do sistema, como mostra o
eleitores vai fazendo sua experiência.
exemplo do terceiro partido britâbipartidarismo?
Na medida em que ela decantar sonico, o Liberal Democrata: fundado
luções que a satisfaçam, com certeza
em 1988, nas cinco eleições parlaa tendência dispersiva se inverterá,
mentares de que participou ele teve
afiançando uma hegemonia nova e mais avançada,
18%, 17%, 18%, 22% e 23% dos votos; mas ficou com
sem que para isso seja preciso voltar as costas para a
3%, 7%, 8%, 10% e 9% dos eleitos. E se o terceiro
democracia representativa.
partido sofre tamanho castigo, os outros são praticamente condenados à morte pelo sistema distrital,
a não ser que sejam forças locais, como as siglas da
* Bernardo Joffily é jornalista, autor do Atlas
Escócia, de País de Gales e Irlanda do Norte, no caso
histórico Brasil 500 anos e colunista da Princípios
do Reino Unido.
No entanto, essa vocação partidicida é vista pelos
Notas
distritistas como se fosse um mérito, pois eles alegam
que o grande número de partidos é um grave defeito
1. Uma defesa representativa do voto distrital é a do citado Programa do PSDB. Disponível em: http://www.psdb.org.br/wpda democracia brasileira. Por que repetir o erro anti-content/uploads/2010/04/Programa_PSDB_2007.pdf
democrático dos golpistas de 1964, que em 1965 im2. ASSIS BRASIL, Joaquim Francisco de. Democracia Reprepuseram a fórceps o bipartidarismo?
sentativa: do voto e do modo de votar. 4ª ed. Rio de JaneiO Brasil de fato tem muitos partidos – 23 siglas
ro: Imprensa Nacional, 1931.
representadas na Câmara dos Deputados atualmente.
3. O prognóstico é do Sabato’s Crystal Ball, site de análises
eleitorais da Universidade de Virgínia. Disponível em: http://
Mas antes de partir para a matança dos partidos pewww.centerforpolitics.org/crystalball
quenos seria aconselhável perguntar as causas subs1958, 1987 e 2010. A segunda delas, orquestrada pelo
gaullista Charles Pasqua, foi
um clamoroso gerrymandering; na eleição seguinte, o
partido da direita francesa,
na época o RPR, elegeu 80%
dos deputados com 58% dos
votos.
34
Capa
A Reforma Política,
a consulta popular e o diálogo
da esquerda com as ruas
Rui Falcão*
Marcello Casal Jr./ABr
As forças de esquerda devem aprofundar a década de
mudanças dos governos Lula e Dilma priorizando a
luta por uma Reforma Política profunda e democrática.
A defesa de uma Constituinte exclusiva para a reforma
responde diretamente ao apelo que temos ouvido das
ruas. Recente pesquisa do Ibope mostra que 85%
desejam a reforma e 78% defendem o financiamento
público exclusivo das campanhas eleitorais
35
O
126/2013
Brasil vive um momento especial,
comando do Partido da Social Democracia Brasiem uma década de conquistas paleira (PSDB) sabidamente não lida com os movitrocinadas pelos governos do Parmentos sociais, não sabe ouvir a contestação e não
tido dos Trabalhadores (PT) e seus
tem nenhuma aptidão ao diálogo.
principais aliados, como o Partido
Como resultado, as manifestações se amplificaComunista do Brasil (PCdoB), força
ram e expuseram em todo o Brasil uma insatisfaque está ao nosso lado desde a prição generalizada com o modelo político.
meira hora e efetivamente empenhada na redução
Este cenário, gestado por meio de mobilizações
das desigualdades no país. Depois
pela internet, desaguou em uma
que nossos governos promoveram
nova situação política. Espontâa ascensão social de 40 milhões de
neas, as manifestações surgiram à
Um dos passos
brasileiros, reduziram significatimargem das instituições tradicioseguintes é a
vamente a miséria e permitiram o
nais de representação e organizaacesso de milhões de jovens à unição, mas, no conjunto, reagiram
necessária energia
versidade, entre outros avanços, as
às condições de vida materiais
para a promoção
exigências cresceram. A sociedade
nas grandes metrópoles. E sua
quer avançar mais.
confluência foi a rejeição ao sisde uma verdadeira
Nesse contexto, tivemos recentema político de representação e
Reforma Política
temente uma movimentação exàs instituições herdadas da tranpressiva da sociedade: em junho,
sição pelo alto, que encerrou o
que ataque
uma parcela significativa da popuperíodo ditatorial.
efetivamente os
lação foi às ruas reivindicar maior
Seu saldo é então um desejo
participação e aprofundamento
genuíno de que o país avance.
problemas do
dos avanços que tivemos com os
Avance não só em setores como
sistema brasileiro,
governos do presidente Luiz Inácio
mobilidade urbana, saúde e eduLula da Silva e da presidenta Dilcação, mas também avance em
que amplie a
ma Rousseff. A população nas ruas
sua representação política e no
participação
não quis retrocesso: o que defenmodo como o sistema político
deu foi que o país siga trilhando o
responde aos anseios de uma popopular, a
caminho do avanço.
pulação que a cada ano tem tido
transparência e
Saudamos essas manifestações,
conquistas.
sobretudo o caráter progressista
permita ao Brasil
que se fez presente nas reivindiA energia necessária
seguir o virtuoso
cações, em estreita sintonia com
nossas bandeiras. Bandeiras que
Um dos passos seguintes, porrumo atual
se consolidaram na última década
tanto, é a necessária energia para
por obra das forças de esquerda.
a promoção de uma verdadeira
Temos, entretanto, toda consciReforma Política. Uma reforma
ência de que a juventude e as novas gerações de
que ataque efetivamente os problemas do sistetrabalhadores nos observam de maneira crítica.
ma brasileiro, que amplie a participação popular, a
Sabendo disto e sem subestimar as dificuldades,
transparência e permita ao Brasil seguir o virtuoso
estamos convencidos de que nossos vínculos sorumo atual, com sua população atendida em seus
ciais e nossos compromissos programáticos posdesejos por democracia.
sibilitarão, mais uma vez, dar um passo à frente
Vale ressaltar que nada menos que 85% dos
em nossa luta pela democracia e pelo socialismo
brasileiros desejam que se leve adiante a Reforma
no Brasil.
Política, como divulgou no último dia 6 de agosOs protestos no Brasil tiveram em comum com
to o Instituto Ibope, em pesquisa contratada pelo
movimentos vividos no mundo – a Primavera ÁraMovimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que
be, as manifestações na Europa e o movimento Ocreúne Conferência Nacional dos Bispos do Brasil,
cupy, como apontou o sociólogo espanhol Manuel
Ordem dos Advogados do Brasil e Associação dos
Castells – sua origem e seus resultados. Tiveram
Magistrados Brasileiros, entre outras entidades.
início na internet e ganharam corpo em razão da
Fica não só claro que é um desejo expresso da
desproporção da repressão policial, sobretudo a
sociedade, como também é vital que o PT, e os aliaque se verificou em São Paulo, cujo governo sob o
dos à esquerda, se engajem na luta por essa re-
36
Capa
Roberto Stuckert Filho/PR
forma. Não podemos
permitir que a vitalidade dos movimentos
que ganharam as ruas seja capturada por
pautas criadas pela
direita. Pautas que se
destinam a “turvar”
o cenário e impor retrocessos. Pautas que
buscam, sobretudo,
desgastar o governo
do Partido dos Trabalhadores e dos nossos
aliados e não pretendem avanços, inserção da população nos
A presidenta Dilma Rousseff se reuniu no Palácio do Planalto, em Brasília, com representantes de
processos decisórios
movimentos da juventude que lideraram os protestos de junho
ou transparência.
Positivamente, vivemos o conUm ponto fundamental é a retexto de um tempo de intensa
moção de qualquer obstáculo à
pressão social sobre o Congresso
Como bem apontou
participação popular, com a reduNacional e sobre todos os agentes
o sociólogo Castells, ção das exigências legais para a
políticos, reflexo direto das morealização de plebiscitos, referendos
bilizações. E devemos nos valer
a presidenta Dilma
e projetos de iniciativa popular em
dessa energia positiva.
é a primeira líder
matéria legislativa.
A presidenta Dilma Rousseff
defendeu a realização de um plemundial que presta
Poder feminino
biscito para a Reforma Política, teatenção, que ouve
ma que é caro ao PT e aos nossos
Propomos também a obrigaaliados, como o PCdoB, já que sua
as demandas e
toriedade das listas partidárias,
realização significa que o povo enpropõe respostas
elaboradas democraticamente petre em cena efetivamente e esteja
los partidos, com a paridade de
à frente das mudanças de que o
às pessoas que
gênero, alternando homens e mupaís precisa. Como bem apontou
estiveram nas ruas
lheres. As listas vinculam o voto a
o sociólogo Castells, a presidenta
programas partidários e não apeDilma é a primeira líder mundial
nas a pessoas. E a paridade garanque presta atenção, que ouve as
tirá uma participação maior das
demandas e propõe respostas às
mulheres na política, corrigindo uma grave distorpessoas que estiveram nas ruas.
ção: elas são maioria na sociedade, mas têm preNós sempre defendemos no PT a participação
sença ainda irrisória na política.
popular. Seguindo essa ideia, estamos coletando
Quando se fala em listas partidárias é preciso
assinaturas em todo o país em apoio à promoção
demonstrar a sua viabilidade e os seus objetivos.
do plebiscito. A coleta de assinaturas permite tamCom as chamadas “listas abertas”, como se dão
bém dialogar com a população e mostrar que, sem
hoje as eleições no Brasil, cada candidato tem um
partidos políticos autênticos e fortalecidos, sofre a
caixa de campanha, com múltiplas fontes de redemocracia.
cursos. A consolidação de uma lista partidária perAo falarmos em Reforma Política, queremos
mitiria acabar com a distorção das eleições, que dá
apontar o que mudar na democracia brasileira e
margem à corrupção eleitoral.
por que fazê-lo – muito diferente de adotar outra
A lista fechada também permite o resgate da
estratégia comum na direita, que é manipular absdiscussão ideológica, já que o eleitor vota num
trações, como sempre faz, com o intuito de mera
programa de partido. Democracia forte demanda
disputa política que não ataca os focos dos propartidos fortes e que tenham programas políticos,
blemas.
37
126/2013
voltados à defesa de questões importantes para a sociedade. Como
exemplo, vale ressaltar que nas
eleições na Argentina funciona
dessa forma.
Em quase todos os países desenvolvidos predomina o sistema de
listas fechadas, em que os partidos
realizam prévias para decidir quem
serão os candidatos e quais suas posições nas listas.
O mesmo ocorre nos Estados
Unidos, em que a operação se dá por
meio de um fundo público com doações dos cidadãos. Partidos podem
receber financiamento privado direto, mas caso optem pelo sistema
devem responder a estritas regras e
controles de gastos.
Já a França proibiu, em 1995,
as doações de pessoas jurídicas. Na
Itália existe financiamento público
desde 1974, e, em um modelo um
Para garantir uma
O preço da democracia
pouco diferente, o México prevê
Reforma Política
que as doações privadas não podem
A democracia tem custo: se quesuperar os financiamentos públicos
ampla, propomos
remos esse sistema – e esse é, sem
dos partidos.
a convocação de
Para garantir uma Reforma Polísombra alguma de dúvida, o melhor
tica ampla, propomos a convocação
sistema político – precisamos ter isso
uma Assembleia
de uma Assembleia Nacional Consem mente. Por isso, propomos finanNacional
tituinte específica. Quem for eleito
ciamento público exclusivo para as
exclusivamente para aquele fim não
campanhas eleitorais. O espírito do
Constituinte
ficará apegado à preocupação de alfinanciamento público, por um lado,
específica.
terar o sistema político eleitoral, viscompreende que se preserve o inteto que seu mandato se esgotará ao
resse público nas relações políticas e
Quem for eleito
término da Constituinte.
institucionais. Temos hoje um cenáexclusivamente
Em suma, o nosso partido e as
rio em que as doações de empresas
forças progressistas, como é o caso
se pautam muitas vezes pela busca
para aquele fim
do PCdoB – após dez anos proporciopor contrapartidas. Por outro, o finão ficará apegado
nando mudanças que transformam
nanciamento público exclusivo significa que todo o dinheiro investido
a cada dia o país em uma nação jusà preocupação
em campanha seja público, obrigata e soberana –, têm agora uma node alterar o
toriamente. Doações de pessoas físiva tarefa no horizonte. Temos mais
cas e empresas são proibidas e sujeiuma vez que apontar caminhos à
sistema político
tas à punição. Se, de um lado, a ideia
sociedade brasileira, demonstrar os
eleitoral, visto que
parece ofensiva ao bolso do contriavanços possíveis e os instrumentos
buinte, de outro, menos empresápara levá-los adiante.
seu mandato se
rios e lobistas se aproveitariam do
O PT nunca se curvou ao senso
esgotará ao término comum. Nunca desertou do bom
sistema. Os brasileiros, no entanto,
já demonstram compreender a necombate. Foi com esse espírito que
da Constituinte
cessidade do financiamento público
nos mobilizamos na década de 1980
exclusivo: a mesma pesquisa Ibope,
pelas Diretas Já. Foi também com
ao mostrar que 85% dos entrevistaesse espírito que promovemos, em
dos são a favor de uma Reforma Política, revela que
dez anos de governos dos presidentes Lula e Dilma,
78% consideram que o financiamento das campanhas
transformações profundas voltadas à melhoria das
eleitorais deve ser exclusivamente público.
condições de vida de milhões de brasileiros e brasiPara pontuar alguns exemplos de outros países,
leiras. E com esse espírito, e o empenho que está no
lembro que na Alemanha, o financiamento público
nosso DNA e no de nossos aliados, como o PCdoB,
existe desde 1959, na forma mista, com reembolso de
venceremos o discurso fácil e acomodado de que a Regastos eleitorais e subsídio público de doações privaforma Política não pode ser levada adiante.
das. As empresas respondem atualmente por apenas
5%, em média, das receitas partidárias – o que, ine* Rui Falcão é jornalista e bacharel em direito pela
quivocamente, evita a corrupção e as doações eleitoUSP, presidente nacional do Partido dos Trabalhadores
rais que visem depois à contrapartida por parte da(PT) e deputado estadual em São Paulo.
quele que é eleito.
38
Capa
Entrevista com Renato Rabelo
Novos horizontes para a
Reforma Política democrática
Antônio Cruz/ABr
Presidenta Dilma Rousseff recebe de líderes de partidos na Câmara abaixo-assinado que pede plebiscito para Reforma Política
A unidade dos quatro partidos de esquerda — Partido dos
Trabalhadores (PT), Partido Comunista do Brasil (PCdoB),
Partido Socialista Brasileiro (PSB) e Partido Democrático
Trabalhista (PDT) — sobre uma proposta de plebiscito para
a Reforma Política democrática foi um passo importante,
avalia Renato Rabelo, presidente nacional do PCdoB, em
entrevista para Princípios. Para ele, a proposta precisa do
respaldo de uma ampla mobilização popular
39
126/2013
S
egundo Renato Rabelo, presidente nacional
do PCdoB, com o avanço da unidade passa a
prevalecer a correlação de forças favorável à
proposta da esquerda. Ele cita como exemplo os dados da pesquisa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) indicando o amplo
respaldo da população a medidas que democratizem a representação eleitoral.
O presidente do PCdoB também discorre sobre
pontos defendidos pelas forças conservadoras como
barreiras para impedir a participação popular na vida
política do país. É o caso, por exemplo, da cláusula de
barreira, do voto distrital e do financiamento privado de campanha, propostas que ainda se apresentam
com força apesar dos avanços dos últimos dez anos. A
seguir, a íntegra da entrevista:
por Osvaldo Bertolino*
Princípios: Os quatro partidos de esquerda
(PT, PCdoB, PSB e PDT) chegaram a um acordo para a realização do plebiscito sobre a Reforma Política. Qual a opinião do PCdoB sobre
essa decisão?
panhas eleitorais por parte das empresas e bancos;
se concorda ou não com doações feitas por eleitores, fixando-se um teto; se deve ser feito um financiamento público exclusivo.
A segunda questão se refere à iniciativa popular,
que hoje se restringe apenas aos projetos de lei ordinária. E então se ampliaria para projetos de lei comRenato Rabelo: É muito importante, porque volta-se
plementar e emenda constitucional. E a terceira, se
à questão colocada pela presidenta Dilma que como eleitor concordaria com uma data única de eleições
põe os cinco pactos com referência a um plebiscito
no país. São questões importantes,
para ouvir a população acerca da
por correrem no âmbito do anseio
Reforma Política. Isso ainda esda sociedade e do próprio Congrestava em uma fase de certo imO PCdoB propõe que,
so Nacional. É um passo adiante,
passe, porque os partidos da base
para se chegar a uma
porque através do plebiscito se proachavam que esse plebiscito seria muito difícil, no sentido de se
Reforma Política mais cura ouvir o povo sobre questões
que são fundamentais. Portanto,
construir um questionário objeprofunda, é preciso
considero um passo importante e
tivo para ouvir a população. Uns
que está na ordem do dia.
diziam que o melhor seria um
que todas as forças
referendo, porque o Congresso
de esquerda e dos
Fala-se de uma correlação de
poderia aprovar uma Reforma ad
forças desfavorável, no sentireferendum. Agora, se conseguiu
movimentos sociais
do democrático, para uma Reincluir o PSB na proposta, junto
caminhem para uma
forma Política. Essa cautela se
com o PT, o PCdoB e o PDT, que
justifica?
já vinham trabalhando com essa
convergência
Renato Rabelo: A pesquisa realizapossibilidade.
da pela Ordem dos Advogados do
Não é exatamente o plebisciBrasil (OAB) não demonstra isso.
to que leva às questões propostas
As respostas, em grande medida, indicam que o popela presidenta, pois ela fez sugestões ao Congresso
vo já aponta que é possível uma Reforma Política
— onde se decide isso em última instância. Mas,
democrática. E temos ainda outras indicações que
os quatro partidos levaram em conta em primeiro
vão ao encontro das iniciativas de uma Reforma Polugar que é um instrumento importante porque a
lítica democrática, como o apoio às iniciativas popopulação é ouvida e se pronuncia sobre o tipo de
pulares. Ou seja: essa iniciativa popular já definiria
Reforma Política que deve ser feita no país, consipontos fundamentais de uma Reforma Política — o
derando aspectos estruturantes. E aí se levantam
que exigiria mais ou menos um milhão e meio de
questões para serem levadas a plebiscito. A primeiassinaturas. E que o Congresso tem que levar em
ra sobre o financiamento de campanha, hoje uma
conta. E terá uma repercussão se for uma iniciativa
proposta consensual, inclusive feita também pela
popular composta por entidades nacionais reprepresidenta. No plebiscito haverá três questões para
sentativas, organizações sociais e partidos.
o eleitor: se concorda ou não com a doação às cam-
40
Capa
Ricardo Stuckert/Instituto Lula.
Propõe-se uma
saída intermediária:
haveria
financiamento
público e
financiamento por
doações de eleitores
com um teto, que
seria estabelecido,
de R$ 700,00
O PCdoB propõe que para se
chegar a uma Reforma Política
mais profunda, realmente democrática, é preciso que todas essas
forças de esquerda e dos movimentos sociais caminhem para
uma convergência de uma proposta comum. Se isso não acontece,
ficam várias propostas de Reforma
Política. A resultante disso é que
dificilmente teríamos uma Reforma com amplo apoio democrático,
popular. Esse é, então, o primeiro
esforço: buscar uma convergência entre as forças
populares, de esquerda, democráticas com referência a uma Reforma Política básica.
E pela compreensão a que vai se chegando, pelo caminhar de propostas e ideias, reúne hoje melhores condições de ser um ponto de referência,
de ser um ponto de partida para essa unificação a
proposta política feita pela OAB, por ter procurado
reunir duas questões estruturantes: financiamento
público de campanha e sistema de representação
eleitoral. Reunir, enfim, as propostas dos partidos
que querem uma Reforma Política séria, para valer,
Há tempos PT, PSB, PCdoB e PDT
vêm debatendo temas ligados
à Reforma Política, como nesta
reunião no Instituto Lula em
setembro de 2011
e os anseios políticos que vêm da
sociedade.
A proposta da OAB com relação ao financiamento público é
de que o financiamento de empresas deixe de existir. Propõe-se
uma saída intermediária: haveria
financiamento público e financiamento por doações de eleitores
com um teto, que seria estabelecido, de R$ 700,00. A conclusão é
a seguinte: o financiamento feito
pelas empresas equivale a 95%
daquilo que se arrecada no processo eleitoral.
A segunda questão estruturante é a representação eleitoral. Sobre como seria a forma no âmbito
do Parlamento, se seria o sistema proporcional ou
majoritário. O primeiro é o vigente no país. Alguns
partidos, sobretudo os da oposição, defendem o
sistema majoritário — que é basicamente definido pelos distritos. O Brasil seria dividido em distritos e estes seriam a base da eleição majoritária.
Ou seja: com isso, a minoria praticamente não teria
candidatos eleitos no Parlamento, porque mesmo
que um candidato alcançasse de 40% a 45% dos vo-
41
126/2013
tos em um determinado distrito,
o outro que tivesse em torno de
50% ou 49% seria o vencedor. Assim, mesmo tendo um percentual
muito alto seria minoria e ficaria
de fora do Parlamento.
Essa é uma ameaça que se
apresenta no processo da Reforma Política?
Renato Rabelo: Sim, pois se isso
acontecer será um retrocesso político. Onde essa medida foi adotada — e a história está cheia de
exemplos — houve um retrocesso,
porque as forças populares e de
esquerda passaram a ter um declínio. Um exemplo é a França no
segundo pós-guerra. Nesse sistema funciona o poder econômico,
pois é uma eleição majoritária, na
42
O que temos
defendido é que os
partidos apareçam
de forma nítida
para a população,
apresentando o seu
programa e os seus
candidatos. Então,
o povo vai comparar
partido com partido,
programa com
programa, candidato
com candidato. E não
aquela pulverização,
parecendo que
cada candidato
tem mensagem e
programa próprios
qual pesará aquele que tiver mais
recursos, meios, influências políticas. As forças populares ficam
aleijadas num processo como esse.
O que temos defendido é que
os partidos apareçam de forma
nítida para a população, apresentando o seu programa e os seus
candidatos. Então, o povo vai
comparar partido com partido,
programa com programa, candidato com candidato. E não aquela
pulverização de candidaturas, parecendo que cada candidato tem
uma mensagem e um programa
próprios. Consideramos isso um
aperfeiçoamento.
A OAB propõe as eleições proporcionais em dois turnos. No primeiro turno, o partido apresenta
a lista e seu programa e, então,
Capa
são definidas as vagas que cada um terá, conforme o
anos de governos Lula e Dilma, mas as forças consernúmero de votos que lhe coube. No segundo turno,
vadoras ainda têm um grande poder no Estado, leseria o seguinte: se o partido obteve cinco vagas no
vando em conta as forças que conduzem a economia
primeiro turno – portanto, direito de ter cinco dedo país, a mídia. E de outro lado, essas forças emerputados federais, estaduais ou vereadores –, no segentes, nascentes, que nesse ciclo aberto por Lula
gundo, ele poderia apresentar o dobro das vagas que
passaram a ter um papel político maior, com mais
alcançou e caberia ao eleitor escolher o candidato
liberdade política, de modo a participarem, guardanque ele achasse que deveria ser eleito. O eleitor escodo as diversas condições de cada setor, no âmbito do
lheria o candidato entre esses, pois seria o dobro do
próprio governo nacional.
número de vagas, permitindo-lhe a escolha do canEssa luta política se acirrou porque o Brasil atindidato de sua preferência.
giu outra etapa, à medida que reduziu de forma basEssas, então, são as duas propostas estruturais
tante significativa a pobreza do país, ampliou seu
básicas e importantes feitas pela
mercado interno e a democratiOAB. A partir daí, concluímos que
zação, passando a se ter mais lié um ponto de partida para que se
Chegamos a uma fase berdade política no país. Também
tenha um projeto comum de Reforhouve conquistas sociais da base
tal em que deve-se
ma Política democrática dos partida pirâmide nacional. Mas para ir
dos interessados, do movimento
mais adiante esse é um primeiro
fazer mudanças mais
sindical, do movimento social. E é
passo, em um conjunto de granprofundas. E a luta
isso o que estamos procurando redes tarefas ainda por se realizar
alizar agora.
no país. E as forças conservadoras
política se acirra. No
Será realizado um ato político
reagem diante disso. Jogam tudo
plano da Reforma
na Faculdade de Direito da USP,
para barrar esse processo. No plano Largo São Francisco, dia 26 de
no das instituições políticas segue
Política ela se dá
agosto (segunda-feira), com a pretudo do mesmo jeito.
com muita força
sença de centrais sindicais, movimentos sociais e estudantis, além
porque é a questão da A cláusula de barreira volta a
da OAB e outras entidades. Será
ser tema de debate. Ela tamrepresentação, algo
um grande ato pelo qual se poderia
bém é uma ameaça?
convergir para uma proposta coRenato Rabelo: A cláusula de barfundamental
mum. E a partir desse ato poderão
reira é sempre uma ameaça, porse realizar outros em diversos ponque para as forças conservadoras
tos do país, procurando consolidar
quanto menos possibilidades de
e deflagrar uma grande campanha nacional de assiliberdade políticas melhor. O trabalho deles é semnaturas em torno de uma proposta única.
pre nessa direção — restringir a liberdade política.
A opinião de todos é de que se conseguirmos essa
Impedir o acesso das forças populares no espaço poconvergência poderia se alcançar esse um milhão e
lítico. É por isso que tem muita gente – em função
meio de assinaturas em torno de, talvez, vinte dias, ou
dessa pressão ideológica deles – que desavisadamennum mês no máximo. Essa é uma alternativa que se
te acredita que não tem que se meter em política,
trabalha e que está avançando. Inclusive, a reunião da
fazendo o jogo deles de forma inconsciente.
Comissão Política Nacional do PCdoB aprovou uma
Isso tudo vem da transição do regime ditatorial
resolução no sentido de se buscar uma convergência
para a democracia. As forças conservadoras impuem torno de uma posição única de Reforma Política,
seram esses interesses nas instituições e nas reprecom todas essas forças democráticas e de esquerda. E
sentações políticas. Por isso, fazem uma resistência
a proposta da OAB é um ponto de partida.
muito grande. Chegamos a uma fase tal, portanto,
em que deve-se fazer mudanças mais profundas. E a
A Reforma Política está em pauta já há algum
luta política se acirra. No plano da Reforma Política
tempo. Há uma pressão do campo conservador
ela se dá com muita força porque é a questão da rea ponto de impedir que ela avance?
presentação, algo fundamental.
Renato Rabelo: Há uma tendência na luta política do
*Osvaldo Bertolino, jornalista e editor do Portal
país de uma polarização política: de um lado, as forGrabois, entrevistou Renato Rabelo na sede do PCdoB,
ças conservadoras que querem manter o status quo,
em São Paulo, no dia 16 de julho. Colaborou: Ana
que sempre se beneficiaram de muitos aspectos do
Paula Bueno
sistema atual. Começou a se mudar isso nesses dez
43
126/2013
Entrevista com Carlos Lupi
“O Brasil precisa de uma
verdadeira Reforma Política”
Segunda fase do 5° Congresso Nacional do PDT
(Brasília, agosto / 2013) onde a Reforma Política foi
um dos temas em debate. Para o presidente nacional
do PDT, Carlos Lupi, “precisamos ter, cada vez mais,
os partidos políticos representantes da sociedade – e
legítimos representantes”
P
Por Osvaldo Maneschy*
ara o presidente do Partido Democrático Trabalhista (PDT), Carlos Lupi, é preciso definir o conceito de Reforma Política, uma
vez que ela abrange formas que vão além da
representação eleitoral; entra pelo terreno das
instituições. Segundo ele, o que se discute como Reforma Política são pontos de uma reforma eleitoral,
que inclui itens fundamentais para a democratização da representação. Em entrevista para Princípios,
Lupi opina sobre o papel dos partidos, os meios pa-
44
ra a mediação dos programas partidários, o uso das
pesquisas pela mídia e questões como a cláusula
de barreira, o sistema de votação e o financiamento de campanha. Ao discorrer sobre estes temas se
revelam, como parte do processo de construção da
unidade da esquerda, pontos de unidade e de divergências, mas Princípios entende que o debate franco
e aberto das contradições é que será capaz de selar
a coesão necessária das forças avançadas para que o
país efetivamente conquiste mais democracia.
Capa
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Princípios: A Reforma Política é uma demanda
urgente para o Brasil?
Carlos Lupi: Em primeiro lugar, nós temos que diferenciar reforma eleitoral de Reforma Política. Normalmente, se tem discutido no Brasil sobre reforma
eleitoral, que trata só do processo eleitoral: da questão do voto distrital; da questão de saber se é voto
proporcional, voto majoritário, ou distrital misto,
distrital comum; ou se o voto é obrigatório ou não.
A meu ver, o Brasil precisa de uma verdadeira Reforma Política.
O que seria esta Reforma Política?
Carlos Lupi: Ela abrange todas as instituições políticas. Nós precisamos ter, cada vez mais, os partidos
políticos representantes da sociedade – e legítimos
representantes. Começou a diminuir essa legitimidade, para falar mais corretamente, depois que o
próprio TSE [Tribunal Superior Eleitoral] acabou
com as cláusulas de barreira.
Então, você é favorável à existência das cláusulas de barreira…
Lupi: Eu não gosto da denominação “cláusulas de barreira”, prefiro cláusulas de desempenho. Por quê? Os
partidos, para poderem ter fundo partidário, tempo de
televisão têm que ter voto. A cláusula de barreira anterior, que defendo como causa de desempenho, obrigava os partidos a terem 5% dos votos nacionais e 3%
em, pelo menos, nove estados. É mais do que razoável.
Eu defendo esta tese porque o que legitima um
partido é o voto. Quem não tem voto pode continuar
existindo. Podemos ter 50, 60, quantos partidos quiserem (apesar de que, no Brasil, não há espaço para
mais de sete, oito partidos com definição ideológica;
o resto é agrupamento de pessoas para barganha).
Penso que as cláusulas de desempenho são a melhor forma e maneira de legitimar um partido político: porque é o voto que o legitima. Então, tem que
ter, em nove estados, 3% e 5% do voto nacional, para
a legenda federal, que é o que garante o fundo partidário e o tempo de televisão.
Mais sugestões sobre a reforma?
Lupi: Que os partidos tenham a fidelidade partidária,
como se fora, na Constituinte, as cláusulas pétreas;
ou seja: que seja uma cláusula pétrea a fidelidade
partidária. A fidelidade do mandatário para com o
partido e do partido para com a sua ideologia, para com seu Estatuto e programa. Porque não pode
também o partido mudar seu Estatuto, seu programa sem dar o direito a seus filiados de fazerem outra
opção: quando são mudados o Estatuto e o programa, muda a ideologia do partido. Então, a fidelidade tem que ser recíproca. A fidelidade à causa é que
representa o Estatuto e o programa do partido, a sua
definição de linha ideológica.
Por exemplo, o que representa o trabalhismo, no
meu ponto de vista? Uma corrente de pensamento
criada, ainda na década de 1930, por Getúlio, que visou a dar a formatação, a ideia da nação brasileira; a
ideia de um projeto de nação – uma nação industrial,
uma nação que tivesse direito à autodeterminação;
uma nação que tivesse a sua própria indústria; uma
nação que tivesse sua autonomia enquanto nação.
Este projeto de nação, cuja prioridade absoluta,
para nós, trabalhistas, tem que ser educação – como
falava o professor Darcy Ribeiro: “a educação que
liberta!”. Educação em tempo integral, com toda a
concepção de que o velho Darcy Ribeiro falava. Não
é só uma criança ficar 8 horas em uma sala de aula,
mas de ela ter, dentro dessa sala de aula, conteúdo
programático, educação laica, republicana; educação
de primeiro mundo; professores bem pagos.
E vou além: acho a proposta do professor Cristovam Buarque, o nosso senador – de federalização
da Educação – fundamental, porque quem tem dinheiro é o governo federal. Quem tem que bancar a
educação fundamental, que é o principal para que
se consiga formatar a noção, a mente do cidadão do
amanhã. É onde começa tudo.
Portanto, o projeto de nação possui prioridades
absolutas: Educação e a defesa intransigente dos direitos dos nossos trabalhadores. Estas são as pernas
que movimentam a História do nosso partido. Esse
é o cunho ideológico. Um partido precisa ter cunho
ideológico, visão estratégica. Ele não pode estar no
poder apenas por estar no poder; não pode fazer do
poder apenas objeto da barganha. O partido tem que
ter fidelidade à sua causa. E o parlamentar, que é
eleito pelo partido, tem que ter fidelidade à causa
que este partido representa.
Eu defendo a fidelidade mútua: do partido com
sua causa; e do parlamentar para com o seu partido.
Que o partido não seja só um conjunto de palavras que todo partido possui…
Lupi: Que seja o que ele execute no dia a dia, nas votações; quando tiver espaço em um governo, quando
for governo. E assim, sucessivamente, em todos os
espaços políticos que se tenha.
Quando se fala em Reforma Política, tem que se
falar com profundidade sobre financiamento de campanha. Nós defendemos, historicamente, financiamento público exclusivo. E achamos muito estranho
que a iniciativa privada possa investir um milhão,
45
126/2013
dois milhões, cinco, dez milhões numa candidatura
sem nenhum outro interesse. É obvio que tem outro
interesse. O interesse uma empresa privada, que visa
ao lucro. Ao investir cinco ela quer ganhar dez. Portanto, nós defendemos financiamento – exclusivo –
público de campanha. E mais: com limite.
Por que com limite? Não pode ser um financiamento público, como quem calcula, hoje, “cada
eleitor custa X mais Y”. Não é isso. É o mínimo. Por
exemplo: cada partido teria que ter direito a um carro de som para dividir entre todos; programa eleitoral não tem que ter marqueteiro, mas sim difundir
ideias. E eu defendo que fosse programa ao vivo. Se
não, vira todo mundo um produto de marketing. Não
tem que ter dinheiro para marketing. Não tem que
ter dinheiro para fantasiar imagem. Não tem que ter
dinheiro para botar trenzinho… para mentir para
a população. Tem que passar ideias. Pode ser mais
chato, mas não faz mal. Somente as ideias podem
fazer a sociedade entender o engajamento, e que
queira este engajamento na política.
Historicamente, o que se vê, com relação ao
horário eleitoral, é que é uma coisa de acesso
democrático a todos os meios de comunicação,
e uma coisa importante para os partidos, digamos, que estão por cima. Porque progressivamente estão diminuindo esse tempo.
Lupi: Isso é para favorecer o capital especulativo, é
para favorecer quem tem muito dinheiro para gastar em campanha. Porque o momento mais democrático da eleição é a televisão. Mesmo assim não é
tão democrático, porque é proporcional ao número de votos que a legenda federal tem. Mas é muito mais democrático assim do que não ter nada. É
muito mais democrático ter um tempo de televisão
dividido conforme a população vota na sua legenda
federal, do que um critério que não tenha televisão.
Porque nunca vai ter chance de um Lula surgir, como
já surgiu; ou uma Marina, amanhã...
Nós temos que ter este espaço democratizado. A
televisão é uma concessão pública e, como concessionária pública, deve-se comportar: abrir espaço para todos. Claro, se há partidos diferentes, os tempos
de televisão também serão diferentes; legitimidade
de votos diferentes, tempos de televisão diferentes.
É preciso ser feito, para todos os que tenham candidato, o que já se faz hoje: quantidade mínima de
tempo. Acredito que seja um terço igual para todos
os que têm candidato, e dois terços proporcionais à
votação da bancada federal. É esse o caminho.
A mídia, hoje, para fazer cobertura de campanha
eleitoral, usa como critério interno as colocações
46
dos candidatos nas pesquisas eleitorais. Isto gera uma distorção: os que estão bem situados nas
pesquisas aparecem no noticiário da televisão, e
os que não estão bem situados nem aparecem.
Lupi: Eu já passei por isto, Maneschy, mas acredito
que existem dois campos de mídia diferenciados. A
mídia escrita, que é uma propriedade privada – os
jornais, as revistas são empresas particulares – que
tem direito a ter opinião. Não tem o direito de usar
isso para fazer difamação caluniosa; a calúnia sem
direito de defesa. Não tem direito de usar a primeira
página do jornal para caluniar e difamar, e depois
colocar na seção “carta de leitores” a resposta. Isso
é antidemocrático. É um direito da imprensa escrita,
que é uma propriedade privada, ter sua opinião. Então, notoriamente, os grandes jornais, todos de direita, têm opinião de direita; mas é um direito deles.
Mas não é direito deles excluir as minorias. Não é
direito deles manipular a informação. Não é direito
deles prejulgar, sem direito à defesa. Não é direito
deles desproporcionalizar a democracia, ou seja, só
abrir espaço para aqueles que são do seu interesse.
Dê a sua opinião, faça seus editoriais. Isto é um direito sagrado de qualquer empresa privada. Mas não
é direito da imprensa privada beneficiar A em detrimento de B, ou C em detrimento de D.
Já em relação às concessionárias, o rigor tem que
ser maior, porque são públicas. E como concessionárias públicas devem se comportar. Por isto, defendo
que, na reforma, que todos tenham, como já é hoje,
direito a tempo mínimo de televisão; e o tempo proporcional relativo às bancadas. Não vejo outra forma
mais democrática. Mas isso sem marqueteiro, sem
maquiagem, sem mentira. No máximo, eu admitiria
um programa gravado, sem edição. Programa gravado para ir ao vivo, porque tem problema de circulação, programa de nível nacional; problemas no
interior, que às vezes não tem rede com abrangência.
No máximo, na minha concepção, seria razoável
gravar, sem edição! Sem externa. É ideia! Se não, vira tudo produto de supermercado. Por isso, se é para
ter produto de supermercado, não precisa de eleição:
vai ao supermercado e compra.
Eu defendo esta tese: financiamento público exclusivo; programas ao vivo sem marketing. E este financiamento público exclusivo com um mínimo de
gastos: nada de ter uma pessoa paga. Sou contra pagamento de cabo eleitoral. Sou contra propaganda
que não seja para levar as ideias. Sou contra a existência de brindes, de outdoor, de propaganda paga.
Para mim, a propaganda tem que ser o papelzinho,
sola de sapato e ideias. Cada um que convença o eleitor. É mais trabalhoso, é mais antigo, mas é o método mais infalível para se dizer a verdade.
Capa
E as pesquisas eleitorais, pré-eleitorais?
conferência do voto. Em qualquer lugar do mundo.
Lupi: Eu penso que o processo das pesquisas é saber
A meu ver, o Brasil avançou muito na área de tecsempre quem encomenda, qual o interesse de quem
nologia. E, estranhamente, só na área da eleição. Nos
encomenda. Lembro-me que o velho Brizola dizia semEstados Unidos não tem urna eletrônica. Na Europa
pre: “olha, a pesquisa depende de quem encomendou.
não tem urna eletrônica. Nós somos um dos poucos
Se eu pago bem, ela vai ter um sorriso diferente para
países do mundo que têm urna eletrônica. Na boa-fé,
mim”. Infelizmente, isso é uma realidade. São poucos
acreditando que ela foi montada para ajudar, aperfeios institutos idôneos completamente.
çoar a democracia. Porque havia muita fraude no voto
A meu ver, a pesquisa não pode induzir o eleitor.
manual. Muita, mesmo, cansei de ver. Cansamos de
Mais do que isto: a pesquisa tem que ser limitada aos
denunciar isso. Acreditando que a intenção fosse boa,
partidos. O problema da pesquisa não é a pesquisa,
qual o problema, para os homens de boa-fé, ter a conmas a sua divulgação. Como ela é divulgada, a maneira
ferência dos votos? Ter a amostragem?
como é manipulada a sua divulgaSe dissessem “ah!, é muito caro”
ção. A maneira que se pode manipupoderia até se raciocinar assim. Mas
Da mesma maneira
lar para se ter essa pesquisa: qual é
eu discordo. E, para que não se diga
a quantidade de entrevistados, qual
que nós somos radicais, estou dizenque o povo coloca
a estratificação social dos entrevistado: são só 10%… Qual o problema de
um representandos. A metodologia é fundamental.
imprimir 10%? Estranho que isso teJá melhorou muito: hoje tem que
nha sido vetado pelo TSE. Estranho.
te, se este vir a não
se registrar. Qualquer um pode pedir
E isto me faz supor, a imaginar, que
representá-lo bem,
esse registro e checar. Mas é muito
esse processo não é tão transparente
difícil pegar erro, porque o pessoal fiassim.
o direito do povo
cou muito profissionalizado. E, como
Se os hackers entram nos compué tirá-lo de lá. Não
o pessoal ficou muito profissionalitadores da NASA, nos computadores
zado, até para pegar os erros é mais
do Pentágono, como não vão entrar
acho ruim que haja
difícil. Penso que, nas pesquisas, o
nas urnas eletrônicas? Eu não tenho
consultas, permagrande desafio é divulgação.
paranoia, mas acredito que não seRepito: critério para imprensa esja nada de mais conferir. Eu tenho
nentemente
crita, privada, é um; e o critério para
a minha conta bancária, pago com
as concessionárias, outro. Concessiomeu cartão, recebo o extrato no final
nária pública tem que ter uma regra de direitos iguais
do mês e confiro todos os meus pagamentos. Agora
para todos. Imprensa escrita tem que ter a sua opinião.
mesmo, estava conferindo e apareceu um débito que
E mais: defendo a tese – que nós já defendemos (e
não fiz. Eu vou e cancelo, ligo para o banco. Ora, e se
da qual você é um ardoroso defensor) – de que tenhafor assim com o meu voto? Eu quero ter o direito de
mos a impressão do voto. É um absurdo ter acabado
saber aonde foi o meu voto. O princípio democrático
a impressão do voto eletrônico. Seria nas eleições de
quer esta amostragem. São 10% apenas. Uma peque2014; mas eles conseguiram adiar. Nós chegamos ao
na amostragem. Confere a amostragem… Então vamáximo que podíamos: ter 10%. Chegamos a aceitar os
mos embora! Não é admissível não ter nada de amos10% das urnas, ou 45 mil urnas!… para servir de amostragem. Estranho isso ter acontecido.
tragem, para testar. Se não tem fraude, por que há tanVoltando ao processo de Reforma Política, que tamto medo?… Testa! Tem uma aqui, uma ali, uma acolá.
bém inclui a urna eletrônica, o financiamento público,
Que se coloque urnas nas quais se pudesse imprimir…
que inclui a clareza das definições ideológicas dos parNão é caro, não. Caro é a fraude. Eu digo sempre:
tidos. Vamos ouvir o povo… Da mesma maneira que o
caro é cadeia; não a Educação. Caro é a desinformapovo coloca um representante, se este vir a não repreção, não a informação. Caro é esconder, não ter a transsentá-lo bem, o direito do povo é tirá-lo de lá.
parência. Portanto, é a coisa mais simples do mundo:
Não acho ruim que haja consultas, permanentecolocar uma caixinha ao lado. É como quem faz pagamente. Ano a ano. Ou, vamos dizer, a cada dois anos,
mentos com cartão, e é impresso aquele boleto. Coloca
porque a democracia nunca é demais. Demais é a diaquilo numa urna transparente, e depois vamos confetadura. Consultar o povo nunca é demais: erra-se merir aquela amostragem.
nos. Quanto mais se consulta o povo menos se comete
Por que não querem esta amostragem? É estraerros. Então, a consulta popular, através de plebiscito;
nho… É estranhíssimo dizer que é cara essa amostrae, até mesmo, em alguns casos, com referendo.
gem. Não é caro: o custo dela garante a democracia.
A meu ver, a reeleição está viciada demais, no proPorque não existe democracia sem a possibilidade de
cesso eleitoral brasileiro. Não deveria ter mais reelei-
47
126/2013
ção. Ela faz a máquina ficar com um poder descomunal. Sou contra a tese de reeleição. Não era, mas estou
me convencendo. Acho que o mandato tem que ser de
cinco anos, para presidente, para governador.
E os parlamentares?
Lupi: Parlamentar tinha que intercalar. É preciso discutir
sobre coincidência de mandatos, porque tem que coincidir o mandato de deputado federal e senador com o de
presidente, e o de governador com deputado estadual.
Não se pode eleger bancadas diferentes dos Executivos,
se não vira o caos. Já aconteceu isso com Jango [João
Goulart]: não tínhamos maioria no Congresso e fomos
eleitos na Presidência da República. É preciso tomar
muito cuidado com esse processo para ter coincidência
dos mandatários. Tem que ter essa possibilidade de o
povo não querer mais uma determinada representação.
E mais: o Brasil tem a necessidade de ter uma reforma constitucional restrita, retirando as causas pétreas. Tirando aquilo que é conquista da sociedade, é
uma reforma constitucional não para retroceder, mas
para avançar. É para deixar claro. Se não: de um gato
se faz um monstro: depende da mão de quem molda.
Portanto, a meu ver, é necessário ter uma reforma
constitucional exclusiva, com um Congresso exclusivo.
Que seja 100, 120; que cada partido apresente seus nomes notórios, que eles se reúnam. Tem um ano para fazer esta reforma, depois se autodissolvem. E não disputam mais! Só e especificamente para aquela reforma.
O mundo evoluiu. Este Congresso exclusivo vai
discutir sobre a reforma tributária, vai discutir sobre
o pacto federativo. Está demais a concentração de
recursos na União. Os municípios não têm como sobreviver: vivem de pires na mão, dependentes. Tem
que ter mais transparência. Precisa colocar clareza na
questão da escola: tem que ir para a cadeia quem não
investir em Educação. Não é possível que se considere
mais importante fazer viaduto do que escola, do que
pagar bem os professores, de que ter uma saúde eficiente – porque trata-se da vida humana.
A meu ver, teria que ter também – essa é uma opinião de âmbito pessoal – uma reforma constitucional
exclusiva para mexer na questão tributária; no pacto
federativo; e em algumas questões em relação às quais
precisamos evoluir. E outra que pouca gente tem coragem de tocar: a questão do Poder Judiciário. A questão
do Poder Judiciário está muito intocável. Nós precisamos que ele seja mais transparente. E precisamos ter
um plebiscito também sobre o seu funcionamento.
Você acha que os juízes precisam ser eleitos?
Lupi: Em muitos dos casos, sim. Em cada comarca e
em cada região. Também com direito de a população
48
não querer mais. Porque hoje um juiz não é eleito, ele
fica 35 anos, se aposenta e acabou. Não dá satisfação
a mais nada, e para ninguém. E existem as corregedorias. Mas a maioria delas é muito corporativa, muito fechada. Pobre e negro não têm justiça neste país,
têm que ter muitos bons advogados. E para ter bons
advogados neste país precisa ter muito dinheiro. Não
é fácil, não é simples. O Poder Judiciário está muito
encastelado, muito distante da população.
Também porque os partidos – mas não só eles –, a
sociedade está em crise! E a crise da sociedade reflete
em suas instituições. Reflete nos poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário. Quem não tocar neste ponto
nevrálgico, neste ponto que é fundamental de uma
reforma, está enganando a população.
Você é a favor do voto proporcional, distrital,
distrital misto…?
Lupi: Eu não tenho uma definição ideológica com
relação a isto. É mais por conveniência do que qualquer outra coisa. Mas duas coisas são reais. Primeira.
Hoje, a população já está votando, majoritariamente
– principalmente para deputado federal e estadual –
na sua liderança local. Mas isto é uma opção dela. Eu
não posso impor “você só pode votar em Joaquim,
porque é da sua região”. Isso é ruim. No processo
democrático é ruim qualquer limitação; qualquer
censura do voto. O voto tem que ser livre, universal,
secreto. Por isso, como dizer: “só pode ser em A?”.
Porque, quando se tem o voto distrital, é só daquele
distrito: A, B ou C. Isso limita.
Facilita o poder econômico…
Lupi: Facilita o poder econômico local, regional. Se a
população escolhe pelo local, o problema é dela. Em
tese, no voto proporcional, existe a chance de se eleger
candidatos de opinião pública, de lideranças. Do mesmo modo que, em tese, o voto distrital favorece o curral: de quem tem muita estrutura ou muita liderança.
Também não se pode dizer que é só estrutura: às vezes
a pessoa forma a sua liderança num bairro, numa cidade, numa localidade, com sua vida, sua história. Mas
a população é que tem que fazer sua opção, e não nós.
Não tem que ter uma lei para isso. Seria mais ou
menos assim: seu voto só vale para este! “Por que só
para este? E se eu quiser votar no outro? Não posso
por quê?”
Para mim, essas questões precisam ser amadurecidas, mas com muito cuidado para não tolher a opinião pública.
Entrevista a Osvaldo Maneschy
Transcrição na íntegra de Apio Gomes
Capa
49
126/2013
Mais médicos para o Brasil e
mais recursos para o SUS
Júlia Roland*
O Sistema Único de Saúde (SUS) completa 25 anos
de sua aprovação na Constituição de 1988. Logo
nos seus primeiros anos enfrentou a avalanche do
neoliberalismo que provocou, entre outras mazelas,
o desmonte do Estado brasileiro que teve suas
instituições enfraquecidas. A saúde como direito
de todos e dever do Estado também sofreu com esse
desmonte. De que Estado precisamos para fazer
valer esse direito constitucional? Esse é o debate.
Imprenssa CNS
Ato do Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública, Saúde+10
50
O
Brasil
política de Estado para não ser prejudicado pelas dis serviços públicos foram gradativamente
desmantelados, e sem reposição da força de
ferenças de interesses entre os mandatários em cada
trabalho, a gestão foi fragmentada com a
esfera de poder.
transferência de muitos desses serviços paOs números de atendimento no SUS impressiora as organizações sociais e outras formas
nam e quase sempre o médico é indispensável:
de entidades privadas. No final do governo
• 3,7 bilhões de procedimentos ambulatoriais por ano;
Collor/Itamar havia 683/641 mil servidores
• 531 milhões de consultas médicas por ano;
públicos e a relação despesa pessoal e receita corrente
• 11 milhões de internações por ano;
líquida da União, no final do governo Itamar, era de
• 98% do mercado de vacinas estão no SUS;
29,8%; já no final do segundo governo FHC havia 530
• 32,8 milhões de procedimentos oncológicos;
mil servidores públicos e a relação despesa pessoal e
• 97% da quimioterapia são realizados no SUS;
receita corrente líquida da União era de
• 4,7 milhões de órteses e próteses
15,7%. Atualmente esses números são
(cadeiras de rodas, muletas, aparelhos
respectivamente de 635 mil e 16,3%,
auditivos etc.) distribuídas pelo SUS.
Ao extinguir
indicando a necessidade de se debater
Além disso, o SUS é o sistema púa CPMF, o
no governo e na sociedade sobre qual
blico que realiza o maior número de
Estado queremos para garantir servitransplantes no mundo.
Congresso
ços públicos de qualidade.
Portanto, os médicos brasileiros e
deixou o
O sistema de saúde público não
os demais profissionais de saúde têm
pode ficar suscetível aos impactos de
prestado relevante serviço ao nosso
sistema de
lutas políticas. Mas foi isto que aconpovo. Mas, não há como escamotear
saúde público
teceu quando o Congresso Nacional,
a insatisfação de importante continem vez de realizar mudanças para gagente de brasileiros que não são atensuscetível aos
rantir o uso da CPMF exclusivamente
didos ou são mal-atendidos; ou são
impactos de
para a saúde, aprovou sua extinção,
atendidos e ao serem referenciados
retirando bilhões de reais da saúde,
para serviços mais complexos, para
lutas políticas,
sem criar alternativas para garantir o
a continuidade do tratamento, enretirando
financiamento adequado para o SUS.
frentam limites de vagas ou mesmo
Além disso, a regulamentação do
ausência e imprevisibilidade de posbilhões de
financiamento do SUS foi retardada
sibilidades no SUS.
reais da saúde,
e somente aconteceu em 2011, ainda
As recentes jornadas de mobilizade forma incompleta. Os recursos da
ção
social destacaram com força a nesem criar
União não foram ampliados como escessidade de melhoria na qualidade
alternativas
tava previsto e continuam sendo nedos serviços públicos em especial da
cessários, sendo essa a principal bansaúde, educação e transporte, presdeira do “Movimento Saúde Mais 10”
sionando o governo que acelerou o
que encaminha a coleta de assinaturas para projeto
lançamento de várias medidas que estavam em disde iniciativa popular ampliando os recursos federais
cussão, para melhorar o sistema de saúde e que têm
para a saúde.
polemizado a opinião de especialistas, de médicos e
da população. É fato relevante o SUS ter ocupado
Ato do Movimento Saúde + 10
espaço na agenda política do país, “objeto de desejo”
daqueles que militam em defesa da saúde pública,
Os grupos econômicos que disputam o mercado
pois a conquista de 1988 foi fruto da convergência
da saúde são muito poderosos, têm apetite insaciádo debate que acontecia no meio acadêmico, da luta
vel e influenciam todas as esferas de governo, tanto
dos profissionais de saúde e principalmente do asno parlamento como nos poderes Executivo e Judicenso da mobilização popular na luta por direitos
ciário. Pressionam e têm grande influência na Agênsociais e democráticos.
cia Nacional de Saúde (ANS) na definição das regras
O sentido das medidas anunciadas pela presidenta
dos planos de saúde, muitas vezes prejudicando os
Dilma está correto, mas elas precisam de ajustes para
seus usuários. Eliminar as insuficiências do SUS,
dar algumas respostas emergenciais e principalmente
evidentemente, reduziria o público consumidor dos
para que sejam complementadas por medidas estrutuplanos privados.
rantes com reformas estratégicas indispensáveis para
O SUS depende de uma boa articulação entre as
a continuidade do processo de mudanças e avanços
três esferas de governo e tem de ser construído como
sociais.
51
126/2013
Agência Brasil
Programa Mais Médicos
O programa Mais Médicos procura responder à
principal reclamação da população que usa o SUS. As
entidades médicas travam intensa polêmica afirmando
que o problema é a má-distribuição decorrente da falta de condições em muitos municípios e nas periferias
das grandes cidades. Esse ponto de partida das entidades “bate de frente” com o sentimento e a experiência
concreta da população, com o cotidiano dos gestores da
saúde e com os dados disponíveis.
Os dados do Brasil em comparação com os de outros países mostram uma realidade muito desfavorável para nós.
Médicos por 1.000 habitantes:
Brasil
Argentina
Uruguai
Portugal
Espanha
Reino Unido
Austrália
Itália
Alemanha
EUA
Venezuela*
Bolívia*
1,8
3,2
3,7
3,9
4,0
2,7
3,0
3,5
3,6
2,4
1,9
1,2
Fonte: OMS – Estatística Sanitária Mundial-2012*-2011
Além disso, em 700 municípios não temos nenhum médico e em 22 estados a proporção de médicos por 1.000 habitantes é menor que a média nacional. Apenas São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande
do Sul e Espírito Santo estão acima dessa média e,
mesmo assim, os usuários do SUS desses estados
também enfrentam muitas dificuldades para garantir o direito à saúde, ter o acesso com qualidade no
momento em que necessitam. Mesmo em São Paulo
52
Presidenta Dilma no lançamento do Programa Mais Médicos
há 344 municípios com índice menor que a média
nacional. Na cidade de Registro, por exemplo, existe
apenas 0,75 médico / 1.000 habitantes.
Dos 22 estados abaixo da média nacional, Acre,
Amapá, Maranhão, Pará e Piauí têm menos de um
médico por mil habitantes.
De 2003 a 2011 surgiram 146 mil postos de trabalho em emprego formal, mas nesse mesmo período, só 93 mil médicos se formaram. E, em função
da ampliação do número de Unidades Básicas de
Saúde (UBS) e de Unidades de Pronto Atendimento
(UPAS), deverão ser criadas 35 mil novas vagas para
médicos até 2014.
O Ministério da Saúde projeta a criação de 11.500
vagas de graduação e 12.400 de residência médica.
Especialistas, como o professor Gastão Wagner, da
Unicamp, defendem a ampliação de 3 a 4 mil vagas
de graduação, nas universidades públicas.
Milton Arruda, professor da Faculdade de Medicina da USP e ex-secretário de Gestão do Trabalho
do Ministério da Saúde, em recente entrevista, disse: “No caso do Brasil, eu consigo dizer que faltam
médicos e eles estão inadequadamente distribuídos,
mas não consigo dizer, o que é muito ruim para o
país, quantos médicos o Brasil deve ter”.
As referências do número de médicos de outros
países são importantes como termos de comparação em nossas análises, mas as peculiaridades do
Brasil e do SUS devem ser consideradas. Ampliar o
grau de resolutividade da atenção básica e a organização das regiões de saúde para otimizar o uso dos
recursos e garantir a universalidade, a integralidade e a equidade são estratégias essenciais. Também
é indispensável aprofundar a implantação do novo
modelo de atenção, centrado na promoção da saúde
e com equipes multidisciplinares organizadas em
redes regionais.
Brasil
A falta e a má-distribuição de médicos são determinadas por vários fatores e exigem múltiplas intervenções que não devem ser ditadas pela categoria para evitar o viés elitista e corporativista, mas devem,
necessariamente, ser discutidas com suas entidades
representativas. Mesmo a maioria dos médicos fazendo parte dos setores sociais bem situados economicamente, é possível defender seus interesses, respeitando o direito à saúde da população brasileira. Para
exemplificar, o jornal Folha de S.Paulo, de 13 de julho,
mostra dados sobre os aprovados no vestibular da
Universidade Estadual Paulista (Unesp) que revelam
que apenas 2% vieram de escolas públicas, 20% são
de famílias com renda superior a 20 mil reais, e não
havia nenhum negro na turma de 2013.
A projeção da ampliação de vagas avaliadas pelo
Ministério da Saúde é composta pela maioria absoluta dessas vagas de graduação em escolas privadas. A
mensalidade das escolas particulares gira em torno
de quatro mil reais. Se nelas hoje já temos 57,9% das
vagas, a perspectiva é piorar a composição social dos
alunos de medicina e não a de melhorar a democratização do acesso, com possibilidade de jovens de setores
populares cursarem as faculdades de medicina. Sem
dúvida, o Programa Universidade para Todos (ProUni)
e o Financiamento Estudantil (Fies) são medidas positivas e contribuem na democratização do acesso, mas a
melhoria do ensino médio e a ampliação das vagas de
graduação do curso médico em escolas públicas são as
medidas mais adequadas e estruturantes.
Governo altera a proposta mais
polêmica – ampliação da graduação
para oito anos
É mais adequado manter o curso de graduação
com seis anos e incorporar os dois anos do chamado
segundo ciclo de formação, apresentado inicialmente
pelo governo na residência médica, que deve ofertar
vagas para todos os recém-formados. A experiência
mostra que a descentralização da residência médica
contribui para a fixação do profissional, portanto o
Estado deve ampliar as vagas prioritariamente para
as regiões Norte e Nordeste e definir as especialidades
necessárias. Atualmente, faltam médicos em várias
áreas como pediatria, clínica médica, anestesiologia,
neurologia, cardiologia, radiologia, nefrologia, UTI
pediátrica.
O efeito dessas duas medidas só ocorrerá em médio prazo. Portanto, abrir a possibilidade de médicos
estrangeiros cobrirem os locais não-preenchidos pelos brasileiros, com bolsas e supervisão de universidade pública e das Secretarias estadual e municipal
de Saúde, é uma medida emergencial necessária. É
recente a luta e a vitória da diplomacia brasileira para
garantir que dentistas brasileiros exerçam a profissão
em Portugal. A experiência de outros países articula
dois caminhos: exame de validação, no qual, o profissional, sendo aprovado, pode exercer a medicina em
qualquer região; e outra específica para as localidades
mais carentes, em que o médico recebe autorização especial para atuação restrita àquela área. As entidades
médicas exigem a realização do Revalida (revalidação
de diploma médico), mas isso dá direito ao profissional aprovado de exercer a profissão em qualquer local
do país e não nas regiões mais necessárias, definidas
pelos gestores do SUS. Os critérios propostos para a
contratação de médicos estrangeiros são: habilitação
no país de origem; originário de país com proporção
de médicos maior que no Brasil; e falar português.
Percentual de médicos graduados
no exterior
Reino Unido
EUA
Canadá
Austrália
Brasil
37%
25%
17%
22%
1,79%
O Programa Mais Médicos tem por meta levar
médicos para 1.290 pequenos municípios com alta
vulnerabilidade social, 201 municípios das regiões
metropolitanas (incluindo as periferias das capitais), 66 municípios com mais de 80 mil habitantes,
além de 25 distritos sanitários indígenas.
A afirmação das entidades médicas de que os médicos formados em outros países não teriam competência para prestar atendimento de qualidade, e
que assim teríamos o SUS dos pobres, não tem sustentação. Convém olhar os indicadores de saúde dos
países de origem dos mesmos. Cuba, que tem sido
satanizada, Espanha, Argentina, Portugal possuem
bons indicadores de saúde. Além disso, o trabalho
será supervisionado por universidades.
Outro comentário muito frequente nas opiniões
expressas pelos médicos é de que o médico sozinho
não adianta, sendo necessários os demais profissionais da área da saúde e estrutura adequada. Sem
dúvida, isso é verdade. No entanto, a carência que
existe no SUS é do médico, e atualmente o número
de profissionais formados das outras áreas da saúde
é muito maior do que o número de vagas existentes
no mercado de trabalho. Em relação à melhoria da
estrutura, apesar de insuficiente, o investimento de
recursos na construção e para equipar novas Unidades Básicas de Saúde é crescente. Está limitado por
problemas de insuficiências da gestão pública e do
valor do investimento global em saúde.
53
126/2013
Gastos per capita em USS/2011
Brasil
Uruguai
Argentina
Reino Unido
Portugal
Espanha
EUA
Noruega
477
817,8
969,4
2.747
1.681
2.237,8
3.954,2
4.859,2
Fonte: Organização Mundial de Saúde (OMS)
Como mostra a tabela acima, os gastos no Brasil
são muito inferiores aos do Reino Unido, que também tem sistema público universal e aproximadamente corresponde a 50% dos nossos vizinhos Argentina e Uruguai.
Estudos do Ipea de 2011 mostram que quase 16
bilhões de reais deixaram de ser arrecadados pelo
governo, por dedução no imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas e desoneração fiscal da indústria
farmacêutica e hospitais filantrópicos. Essa situação
merece discussão criteriosa. Por exemplo, na área da
educação há um teto para o desconto no imposto de
renda, mas na saúde ele é ilimitado.
Carreira da atenção básica e
ampliação do financiamento
Outra bandeira histórica das entidades médicas é
a criação de carreira do médico do SUS. Os governos
federal, estaduais e municipais precisam enfrentar essa discussão e romper as amarras para resolver esse
crucial problema do SUS. O Ministério da Saúde apoia
13 projetos-piloto, regionais ou estaduais de planos de
cargos carreiras e salários, em andamento, com custo
de 60 milhões de reais.
No entanto, a Lei de Responsabilidade Fiscal
(LRF) impõe teto de gastos com pagamento de pessoal. Os 3,6% do PIB que hoje são gastos com o SUS,
representam aproximadamente 60% da necessidade.
A composição dos recursos advindos das três esferas da Federação indica a necessidade de ampliação
dos recursos federais. É inadiável a aprovação no
Congresso do PL de iniciativa popular determinando 10% das RCB da União para a saúde. O PL de
taxação das grandes fortunas, a proposta de destinar 25% dos royalties do petróleo para a saúde, entre
outros, devem compor as novas fontes para garantir
os 10% do orçamento federal, cuja implementação
pode ser progressiva, a exemplo do que aconteceu
com estados e municípios.
A ampliação do financiamento deve ser para
o SUS e não para privilegiar o setor privado como
acontece hoje – sendo essencial o fortalecimento do
54
controle social sobre todas as esferas de governo,
através das conferências e dos Conselhos de Saúde,
do poder Legislativo, do ministério público e de outros órgãos de controle.
Um milhão e meio de assinaturas foram recolhidas para o Projeto de iniciativa popular
Pacto pela saúde
Consideramos que o pacto pela saúde deve contemplar as seguintes diretrizes:
1. Para ampliar o acesso de qualidade à população
é indispensável fortalecer a atenção básica em geral
e do Programa de Saúde da Família, com unidades
básicas de saúde adequadas à população a ser atendida, nas cidades, em áreas rurais ou ribeirinhas,
com equipamentos necessários para ter resolutividade no atendimento prestado e profissionais de saúde
qualificados com salários dignos.
2. Carreira de estado para os profissionais da
Atenção Básica.
3. Ampliação das vagas de graduação e de Residência Médica, majoritariamente em instituições
públicas, para todos, com dois anos de formação em
serviço no SUS. O estado deve regular as vagas de
especialistas respeitando as necessidades do sistema
de saúde. O debate a respeito do número de vagas
necessárias deve ser aberto envolvendo os especialistas no tema e os Conselhos de Saúde.
4. Ampliar o financiamento da saúde aprovando
a proposta de 10% das receitas correntes brutas da
União. Adequar o modelo de financiamento do SUS,
substituindo o pagamento por produção e em conformidade com a regionalização do SUS.
5. Acelerar o processo de organização regional do
SUS com a implementação do Decreto 7508 de 2011,
que regulamentou a Lei Orgânica da Saúde – 8080
de 1990.
6. Fortalecer a participação da comunidade, com
garantia de orçamento para organização e funcionamento dos Conselhos de Saúde nas três esferas da
Federação.
Reafirmamos ser indispensável a intervenção
do Estado para garantir saúde para todos, porque o
mercado se mostrou incapaz de atender a essa necessidade da população.
* Júlia Roland é coordenadora nacional de Saúde
do PCdoB; conselheira nacional de Saúde; diretora
do Departamento de Apoio à Gestão Participativa do
Ministério da Saúde
Brasil
Mandatos comunistas de 1945:
resgate de um patrimônio da
democracia brasileira
Osvaldo Bertolino*
Gustavo Lima / Câmara dos Deputados
Parlamentares e dirigentes partidários participam da sessão solene da Câmara dos Deputados que devolveu, simbolicamente, os
mandatos comunistas cassados em 1948
55
126/2013
Em sessão solene da Câmara dos Deputados, os
mandatos comunistas cassados em 1948 foram
formalmente restituídos na histórica tarde de 13 de
agosto de 2013. Uma sessão que resgatou a memória de
um período significativo da história política brasileira,
conforme registrou Renato Rabelo, presidente nacional
do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). O gesto
devolveu, além dos mandatos, um legado decisivo na
história do povo brasileiro em sua jornada de lutas por
um Brasil democrático, soberano e socialmente justo.
E
No fundo (da esq. para a dir.) José Claudino da Silva, Osvaldo Pacheco, Joaquim
Batista Neto, Gregório Bezerra, Alcêdo Coutinho, Carlos Marighella, Alcides
Sabença; na primeira fila (da esq. para a dir.) Jorge Amado, Abílio Fernandes,
João Amazonas, Luiz Carlos Prestes, Maurício Grabois, Milton Caíres de Brito,
Agostinho Dias de Oliveira e José Maria Crispim [Asmob/ CEDEM].
xercendo a presidência da Câmara dos Deputados, declaro os
mandatos cassados simbolicamente restituídos. A frase
da deputada Jandira Feghali
(PCdoB-RJ), que assumiu a presidência
da sessão solene realizada na terça-feira,
56
13 de agosto de 2013, por indicação do
presidente da Casa, deputado Henrique
Eduardo Alves (PMDB-RN), resumiu o
desfecho do Projeto de Resolução apresentado por ela em março deste ano.
Receberam os mandatos simbolicamente os seguintes deputados: Jorge Ama-
Brasil
do, Carlos Marighella, João Amazonas, Maurício Grabois, Francisco Gomes, Agostinho Dias de Oliveira,
Alcêdo de Moraes Coutinho, Gregório Bezerra, Abílio
Fernandes, Claudino José da Silva, Henrique Cordeiro
Oest, Gervásio Gomes de Azevedo, José Maria Crispim e Osvaldo Pacheco da Silva.
A atual líder da bancada comunista, Manuela
D’Ávila (PCdoB-RS), agradeceu ao presidente da
Câmara pelo gesto de convidar Jandira Feghali para
presidir a sessão solene. Segundo ela, a devolução
dos mandatos comunistas é parte da reconstrução
da história do país.
Paloma Amado falou em nome do conjunto dos familiares. A filha do ex-parlamentar comunista baiano
disse que a bancada comunista eleita em 1945 foi cassada unicamente pelo que pensavam seus integrantes
e pela forma decente com que agiram durante todas
suas vidas. “Agora que voltaram a ser deputados, eles
devem servir de exemplos a todos”, destacou.
José Carlos Capinan, músico e poeta, também
compareceu à homenagem. Ele destacou que os
partidos comunistas têm um compromisso muito
grande com a história do país e representam a continuidade dos valores que o seu povo representou e
criou ao fazer a nação ser a grandeza que é. Durante
a sessão, os músicos do Quarteto Capital, do Teatro
Nacional Cláudio Santoro, executaram Bachianas
número 5, de Villas Lobos, e Sarau na Roça, de Aurélio Melo. E Sérgio Ricardo e seu filho João Gurgel
cantaram as músicas Calabouço e Antônio das Mortes.
Em sua intervenção, Renato Rabelo situou a
conjuntura da época da cassação: “O mundo corria
o risco de ser dominado pela fúria da ditadura nazista, durante longo período”, registrou. A histórica
sessão solene terminou com discursos dos seguintes
deputados: Miro Teixeira (PDT-RJ), Paulo Teixeira
(PT-SP), Marcus Pestana (PSDB-MG), Ivan Valente
(Psol-SP) e Silvio Costa (PTB-PE).
Leia a íntegra do pronunciamento da deputada Jandira Feghali:
V
ivenciar algo tão forte, de tamanho simbolismo histórico, me coloca em contradição literal com
a estrofe de Walter Franco em sua composição Coração tranquilo: Estou com a mente quieta, apesar
de inquieta, com a espinha ereta, apesar do peso da
responsabilidade deste momento, e com o coração
tranquilo, apesar da emoção que sinto.
Caminho pela história do Brasil no período da
década de 1940, por meio da leitura de depoimentos e dados, e tento alcançar não apenas o que
levou 10% da população brasileira a darem seus
votos aos comunistas, mas perceber o grande trabalho que desenvolveram no parlamento, o significado que imprimiram a cada mandato e a cada
conquista, as digitais que deixaram na Constituição de 1946 e também a violência que foi cometida
contra a opção popular, sua liberdade de escolha, o
uso democrático do seu voto, o exercício legítimo
do mandato parlamentar, a dura resistência que foi
empreendida por esses aguerridos combatentes e
por democratas que se aliaram contra o arbítrio e
os sentimentos que os envolveram, a seus familiares e camaradas de partido.
Calaram os deputados e o senador Luiz Carlos
Prestes do Partido Comunista do Brasil, mas não
calaram a voz desses militantes e dirigentes que
deixaram o front institucional de cabeça erguida
e suas ideias sólidas na cabeça. Maurício Grabois,
líder da bancada, quando faz seu discurso final na
Câmara dos Deputados, diz:
“Quando ressurgir a verdadeira democracia,
a democracia do povo, quando for respeitada sua
vontade, podem estar certos, senhores representantes que neste instante cassam nossos mandatos, que voltaremos.”
Haroldo Lima, ao assumir a liderança da bancada do PCdoB em agosto de 1985 reproduziu essa
passagem do discurso de Grabois e proclamou: “E
assim, senhor presidente, senhores deputados, povo brasileiro, VOLTAMOS”.
Hoje, após 28 anos de proferido o discurso do
deputado Haroldo Lima, realizamos esta sessão
solene, que recupera a biografia e os direitos dos
57
126/2013
14 deputados comunistas. E agora podemos dizer:
VOLTAMOS TODOS!!!
Abílio Fernandes, Agostinho Oliveira, Alcêdo
Coutinho, Carlos Marighella, Claudino Silva,
Francisco Gomes, Gervásio de Azevedo, Gregório
Bezerra, Henrique Oest, João Amazonas, Jorge
Amado, José Crispim, Maurício Grabois e Osvaldo Pacheco.
Nossas saudações a esses representantes do povo que, ainda jovens, com coragem e altivez, enfrentaram a onda antidemocrática e a fúria reacionária que, já em março de 1946, buscava a cassação
do registro legal do Partido Comunista do Brasil no
Tribunal Superior Eleitoral.
A base para tanto consistia na falsa alegação
de que se tratava de um partido antinacional e
subordinado a uma potência estrangeira, a União
Soviética. Um verdadeiro atentado contra o regime
democrático e a própria Constituição.
Hoje, essa mácula, que envergonhava e manchava a história de nosso país, será, em parte,
removida. Não mais podemos corrigir a injustiça perante os mandatários, todos falecidos, mas
diante de seus familiares, testemunhas e parceiros de seus sofrimentos e suas lutas, a Câmara dos
Deputados devolve simbolicamente seus mandatos em gesto de reconhecimento aos seus direitos
políticos, à legalidade sequestrada de seus mandatos, e ultrapassa com vigor a barbárie ilegal e
ilegítima cometida pelos poderes do Estado contra esses 14 deputados eleitos legitimamente pelo
povo brasileiro.
Saíram do parlamento e continuaram junto a
tantos outros nas lutas urbanas e campesinas, liderando batalhas libertárias e avançadas nas cidades
e no campo, nas escolas, nos movimentos sociais,
atravessaram momentos ainda mais adversos nas
prisões, na guerrilha armada contra a ditadura nas
margens do Araguaia, no chão das fábricas, nas artes, alguns nunca mais pudemos ver, pois foram
assassinados pelos órgãos de repressão, outros conseguiram manter-se vivos e até hoje contribuem
decisivamente na formação de novas gerações de
lutadores, fortalecendo nosso PCdoB e outras organizações, e no redesenho do novo momento da
nação brasileira.
Para registro do coração, cito aqui alguns dos
nossos deputados. Lembro do nosso frágil e forte
João Amazonas – dirigente com quem convivi e
aprendi o que é o PCdoB, revolucionário, intelectual, ativo dirigente sindical e do Araguaia, feminis-
58
ta. Veio conosco até a década de 1990 e deu grande
contribuição política ao Brasil, na sustentação à
nossa existência estratégica quando muitos valores
ideológicos desmoronavam.
Grabois, não conheci, mas quanta admiração
por este dirigente e comandante do Araguaia. Marighella, dirigente principal da Ação Libertadora
Nacional (ALN), poeta, destemido, foi referência
da luta libertária.
Jorge Amado, que tive a chance de visitar em
sua casa no Rio Vermelho, escreveu e descreveu para o Brasil e para o mundo cotidiano, a realidade
brasileira, o amor, o sagrado e o profano, a luta e a
importância da liberdade. Gregório Bezerra, exemplo de luta e de sofrimento nas mãos da repressão.
A bancada comunista de 1946 distinguiu-se na
Assembleia Constituinte. Eleita em seis estados da
Federação, marcou a defesa intransigente da democracia, dos direitos dos trabalhadores, da reforma agrária, da soberania nacional e do socialismo,
que na época tinha forte referência na experiência
da URSS.
Foi consequente na defesa da democracia
com ampla participação popular enfrentando, no
contraponto os que pretendiam uma democracia
apenas formal, limitada ao exercício do direito de
voto e com restrições aos direitos de organização
partidária, ao direito de reunião e de livre manifestação.
Já àquela época, eram vozes a defender temas
à frente do seu tempo e que invadiam polêmicas
comportamentais, morais, sobre a laicidade do
Estado, preconceito racial, censura, ou exploração
no mundo do trabalho e da produção no campo.
Algumas foram vitoriosas e outras vieram a lograr
êxito anos mais tarde, e por outras que lutamos
até hoje.
Embora a maior parte das propostas comunistas fosse rejeitada pelo muro intransponível da
correlação de forças da época, a bancada do PCB
logrou obter aprovação para algumas delas, como
a de Batista Neto (PCB/DF), estipulando que o
trabalho noturno teria maior remuneração que o
diurno; de João Amazonas (PCB/DF), acrescentando “Higiene e Segurança do Trabalho” ao elenco de
recomendações a serem observadas pela legislação
trabalhista; de Maurício Grabois (PCB/DF), proibindo a extradição de estrangeiros casados com
brasileiros ou que tivessem filhos de brasileiros
natos; de Alcêdo Coutinho (PCB/PE), determinando a transferência para os municípios de 10% do
Brasil
total do imposto de renda arrecadado pela União;
de Jorge Amado (PCB/SP), isentando de tributos a
importação de livros, periódicos e papel de imprensa, tendo também aprovado a marcante emenda de
sua autoria assegurando ampla liberdade religiosa e de culto. Foi também de autoria da bancada
comunista o primeiro requerimento apresentado
à Constituinte de 1946, apoiando a greve nacional
dos bancários, defendido no Plenário constituinte
por João Amazonas.
Vejam, no entanto, que esta bancada defendeu o voto dos analfabetos; a reforma agrária;
e o apoio à pequena propriedade rural. Defendeu o direito de greve incondicional (inclusive
para os funcionários públicos) e a liberdade e
autonomia da organização sindical, redução da
jornada de trabalho para 8 horas diárias. Pela
criação de uma Justiça do Trabalho paritária; a
proibição do trabalho aos menores de 14 anos e
do trabalho noturno e em indústrias insalubres
aos menores de 18 anos; do noturno e pela regulamentação do descanso semanal remunerado
dos trabalhadores.
Apoiou ativamente as lutas dos trabalhadores,
denunciando violências e arbitrariedades policiais.
Protestou com frequência, e veementemente, contra todas as proibições de comícios e assembleias
sindicais pelo governo, exigindo a garantia do mais
amplo direito de reunião e manifestação. Foi resolutamente contra qualquer forma de censura a
livros, jornais e demais formas de expressão.
Em relação à família, posicionou-se a favor do
divórcio, que só veio a ser aprovado 31 anos depois.
Defendia a saúde pública, a previdência social condigna para os trabalhadores, o desenvolvimento e
a defesa da Amazônia; a defesa dos direitos dos índios e de suas terras; a ampliação da anistia para
os militares punidos por crimes políticos durante
o Estado Novo. Lutou contra o racismo e os preconceitos raciais, pleiteando a igualdade de todos
perante a lei “sem distinção de raça”, e a punição
da prática do racismo em território nacional.
O preço pela coerência na defesa dessas ideias
foi caro: em 7 de maio de 1947 o arbítrio conservador cassou o registro legal do Partido Comunista do Brasil, violência estendida em 7 de janeiro
de 1948 aos mandatos dos deputados e do senador que haviam sido democraticamente eleitos
em dezembro de 1945.
Quando observamos as novas gerações sentirem as ruas como um território seu, riscando com
seus pés um novo caminho, buscando expressar
seus sonhos de vida e iluminar utopias, percorro
por um instante o caminho de volta e só posso reafirmar para os meus camaradas e companheiros de
caminhada, como também para os meus filhos e
seus parceiros de caminhada e de luta, o que muitos já disseram nos livros e na vida. O PRESENTE
É INDISSOCIÁVEL DO PASSADO, e somado a ele
se constrói o futuro.
Os cartazes escritos à mão, a criatividade popular, os gritos e cantos, os vários tons e cores da
diversidade, a liberdade de que gozamos hoje, apesar das reações policiais que ainda encontramos,
devemos muito a todos que ergueram bandeiras
vermelhas e que jamais poderão ser excluídos de
onde nunca saíram – das ruas.
Esta sessão, senhor presidente, não é apenas
justa e oportuna. Corresponde ao que deve ser o
Congresso Nacional brasileiro: o guardião maior da
democracia e do processo democrático. Esta Casa
soube ecoar a resistência na voz de muitos parlamentares que, desta tribuna ou deste plenário,
combateram injustiças e denunciaram arbitrariedades quando a repressão e a censura colocavam
sob mordaças a sociedade brasileira.
Esses companheiros de luta que hoje homenageamos mantiveram-se fiéis ao povo que os
elegeu e honraram o compromisso firmado como
deputados federais. Respeitaram o juramento que
fazemos a cada legislatura, quando prometemos
“manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro
e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.”
É hora de renovarmos este compromisso, aprofundando a democracia, realizando a reforma política que impeça o poder econômico de definir quem
pode ou não pode aqui chegar, e garantindo que
a pluralidade comande o processo. Aos militantes
do PCdoB, em particular, renovo, no momento da
realização do nosso 13º Congresso, a importância
de reafirmarmos a bandeira do socialismo. Esta, a
maior homenagem que podemos fazer a esses 14
brasileiros.
Muito obrigada.
Deputada Jandira Feghali – PCdoB/RJ
59
126/2013
Foro de São Paulo
Ana Paula Bueno
Muito trabalho pela frente
Abertura do XIX
Encontro do Foro
de São Paulo com
a presença do expresidente Lula
O XIX Encontro do Foro de São Paulo – que reuniu milhares de
militantes latino-americanos e caribenhos, entre os dias 29 de julho
e 4 de agosto de 2013 na capital paulista – debateu grandes temas
e apontou os desafios para se avançar mais no desenvolvimento dos
países latino-americanos, como a necessidade de se aprofundar o
processo de mudanças em cada país e acelerar o processo progressista
e de esquerda de integração regional
E
Valter Pomar*
screvo este texto logo após o XIX Encontro
do Foro de São Paulo, que reuniu na capital paulistana um milhar de militantes
latino-americanos e caribenhos, entre os
dias 29 de julho e 4 de agosto de 2013,
para debater dois temas: como aprofundar as mudanças e como acelerar a integração regional.
60
Trata-se do primeiro encontro do Foro, depois da
morte de Hugo Chávez e da eleição de Nicolas Maduro. Fatos que ajudaram o conjunto da esquerda
regional a perceber que estamos em uma nova etapa
na região, marcada principalmente pela contraofensiva da direita local e de seus aliados nos Estados
Unidos e na Europa. Internacional
Nessa nova etapa, há dois
no combate ao socialismo, tal
desafios principais: aprofundar
como existia no Leste Europeu;
o processo de mudanças em
terceiro, devido à crescente incada país e acelerar o processo
fluência dos conservadores no
de integração regional. Foram
interior da igreja católica. Adeestes os grandes temas em demais deste, não podemos esbate no XIX Encontro do Foro,
quecer o papel da democracia
que se realizou num momento
cristã no pós-Segunda Guerra.
de esgotamento da primeira
Durante o XIX Encontro, os
etapa do ciclo progressista e de
partidos brasileiros integrantes
esquerda – etapa que começou
do Foro –Partido dos Trabalhaentre 1998 e 2002, com as eleidores (PT), Partido Comunisções de Chávez e de Lula. E que
ta do Brasil (PCdoB), Partido
se concluiu em algum ponto
Socialista Brasileiro (PSB),
entre a eclosão da crise interPartido Democrático Trabanacional e a posse de Obama.
lhista (PDT), Partido Pátria LiDeste momento em diante,
vre (PPL) e Partido Comunista
entramos em outra etapa, marcada
Brasileiro (PCB) – tiveram diversas
O modelo de
pela crise, pela contraofensiva da
oportunidades, nas atividades ofidireita e pelo esgotamento do paciais do Foro e nas bilaterais, para
mudanças
drão adotado em todos os governos
apresentarem seu ponto de vista sofinanciadas
progressistas e de esquerda.
bre o que ocorreu no Brasil e sobre
Esse padrão foi, na Venezuela,
os impactos presentes e futuros.
pelas estruturas
no Brasil, na Bolívia e na ArgentiHavia uma grande curiosidade a
socioeconômicas pré- respeito,
na, por todos os lados, redirecionar
especialmente daqueles que
para os setores populares parte da
acreditavam na existência de “duas
existentes chegou
renda e da riqueza geradas pelo
esquerdas” na região, pois um dos
ao seu limite. Agora,
modelo herdado. Este modelo, de
ensinamentos das mobilizações de
mudanças financiadas pelas estrujunho é que a direita brasileira, como
está posto construir
turas socioeconômicas pré-existena venezuelana, disputa a mídia, as
outro modelo.
tes, chegou ao seu limite. Agora esurnas e também as ruas conosco. E
tá posto construir outro modelo. Se
que as esquerdas enfrentam dilemas
Se tivermos sucesso
tivermos sucesso nisto, viveremos
muito semelhantes, em todos os paínisto, viveremos um
um salto de qualidade na região.
ses da região.
As forças de direita sabem disSobre a integração regional, fisalto de qualidade
to e estão em plena ofensiva contra
cou claro mais uma vez tratar-se de
na região
nós. Elas se apoiam em suas próum processo em disputa. Primeiro,
prias forças, que são enormes; nos
disputa contra o imperialismo, que
seus aliados internacionais; e nas
deseja uma integração subalterna a
debilidades de nossos governos.
eles, como no projeto da Área de Livre Comércio das
A direita está jogando seu papel. O desafio é reAméricas (Alca). Segundo, disputa contra a grande
agir a isto, corrigindo erros, superando debilidades,
burguesia, que deseja uma integração focada nos
ampliando a cooperação entre nós. Nestes objetivos
mercados e no lucro de curto prazo, o que conduz a
todos, o Foro de São Paulo é fundamental.
uma integração que aprofunda as disparidades regioO Encontrou ocorreu logo em seguida à visita do
nais e sociais, o que por sua vez acabaria nos levando
Papa Francisco ao Brasil. Os governantes da região
a uma integração subalterna aos gringos. Terceiro,
comemoraram um Papa de nacionalidade argentina.
uma disputa entre diferentes ritmos e vias de desenE setores da esquerda regional têm expectativas povolvimento e integração propostos pelos setores prositivas, o que é compreensível se nos lembrarmos do
gressistas e de esquerda.
comportamento do Papa anterior. Um dos nossos desafios, aliás, está em saber diMas há, também, setores muito preocupados, por
ferenciar as contradições antagônicas das não-antatrês motivos: primeiro devido a versões acerca do que
gônicas.
ocorreu na época da ditadura militar argentina; seTrata-se, de qualquer forma, de um procesgundo, por lembrar o papel jogado por outro Papa
so a quente, que do ponto de vista da esquerda
61
126/2013
precisa ser simultaneamente político, econômico e cultural. Tarefas nas quais os governos são
fundamentais, mas insuficientes. Os partidos
políticos, assim como os movimentos sociais e o
mundo da cultura, são essenciais nesse processo.
Motivo pelo qual, mais uma vez, o Foro de São
Paulo é fundamental.
Um dos desafios da integração, para além do
comportamento do imperialismo estadunidense e
das burguesias locais, é o processo de desaceleração
da China, que está fazendo uma inflexão em direção
a seu mercado interno.
Isto pode ter duas consequências em nossos
países: ou voltarmos ao “estado normal” de economias dependentes, vítimas da desigualdade nos
termos de troca entre produtos de baixo e de alto
valor agregado; ou aproveitarmos para fazer uma
inflexão em direção a um ciclo de desenvolvimento econômico regional, impulsionado pelo Estado e
baseado na ampliação de infraestruturas, políticas
universais e capacidade de consumo.
Este é um dos componentes do acirramento da
luta de classes na região, assim como do acirramento
no conflito entre alguns países da região.
Ao que devemos agregar: o acirramento de nossa relação com as potências imperialistas, cujo pano
de fundo é o deslocamento do centro geopolítico do
mundo, do Ocidente em direção ao Oriente; o declínio da hegemonia dos Estados Unidos; e a crise
internacional do capitalismo.
Trata-se de processos em curso, de desfecho incerto e que ainda podem ser revertidos em favor das
classes sociais e dos Estados que hegemonizaram o
mundo no período neoliberal.
Independentemente do desfecho, as três variáveis citadas criam um ambiente de instabilidade e
crises sociais, políticas e militares. O que conduz à
formação de blocos regionais, inclusive enquanto
instrumentos de proteção.
O continente americano vive, precisamente, o
conflito entre dois grandes projetos de integração regional: por um lado, o projeto de integração subordinada aos Estados Unidos, simbolizado pela Alca; por
outro, o projeto de integração autônoma, expresso
pela Comunidade de Estados Latino-Americanos e
Caribenhos (Celac).
O projeto de integração autônomo, por um lado,
não é, em si, socialista. Mas a integração é uma condição fundamental para o sucesso econômico e político de uma transição socialista.
A integração permite limitar as ações que o imperialismo e as classes dominantes de cada país promovem, de maneira permanente, contra a esquerda
latino-americana.
62
A integração, por outro lado, cria a “economia
de escala” e a “sinergia” indispensáveis para superar as limitações materiais, produtivas, econômicas,
que dificultam a transição socialista em cada país da
região.
Desde 1998, as forças favoráveis a uma integração autônoma da região conquistaram eleições em
importantes países da região. Mas a partir de 2008,
começou uma contraofensiva das forças favoráveis
à integração subordinada aos Estados Unidos. Hoje
vivemos uma situação de “equilíbrio relativo” entre
os dois projetos de integração (autônoma e subordinada).
Politicamente, uma situação de equilíbrio relativo pode ser favorável às forças da esquerda. Mas historicamente, uma situação de equilíbrio relativo tende a favorecer as forças que representam o status quo,
pois o equilíbrio significa a continuidade da ordem
hegemônica, que em nosso caso ainda é capitalista,
dependente e neoliberal.
Neste sentido, é fundamental buscar caminhos
para seguir avançando. É isto que almejam as resoluções do XIX Encontro, quando falam em aprofundar
as mudanças e acelerar a integração; ou quando falam em buscar vitórias no ciclo eleitoral que começa
em novembro de 2013 (Chile e Honduras) e prossegue até dezembro de 2014 (Bolívia); ou, ainda, quando falam de fortalecer as lutas sociais, os partidos de
esquerda e os governos progressistas da região.
Entretanto, para seguir avançando há que se derrotar obstáculos poderosos, entre os quais nosso déficit teórico em pelo menos três níveis: o balanço das
tentativas de construção do socialismo no século XX;
a análise do capitalismo no século XXI; e a estratégia
socialista, na América Latina de hoje.
Quando falamos em déficit teórico, nos referimos
simultaneamente à necessidade de superar interpretações equivocadas e à necessidade de construir interpretações novas.
O imaginário da esquerda latino-americana é,
no momento em que escrevo este texto, ainda fortemente influenciado por paradigmas que certamente
contribuíram muito para que chegássemos até aqui;
mas que, ao mesmo tempo, criam dificuldades para
enfrentar os desafios presentes e futuros.
Ainda é muito forte, entre nós, a influência de
paradigmas oriundos do idealismo religioso, seja
na versão cristã, seja na versão “pachamamica”.
Influências que levam muitos a confundirem marxismo com “machismo”, como se “sacrifício” e
“valentia” fossem suficientes para superar qualquer obstáculo.
Também é muito forte a influência do movimentismo, assim como do paradigma revolucionário re-
Internacional
presentado por Cuba 1953-1959 e em boa medida
vas. Numa frase: produzir cada vez mais, com cada
representado na figura de Che. E, finalmente, nos
vez menos tempo de trabalho e recursos naturais.
encontramos frente a uma forte influência tanto do
A ampliação da produtividade do trabalho cria a
nacional-desenvolvimentismo (incluindo aí as “alianpossibilidade de uma sociedade que não esteja baças estratégicas” com setores da
seada na exploração do trabalho;
burguesia), quanto do socialismo de
cria, ainda, a possibilidade de uma
Estado (incluindo aí sua dificuldade
sociedade sem carências materiais.
É fundamental
para entender o papel do mercado na
A maneira como o capitalismo
buscar caminhos
transição socialista).
desenvolve as forças produtivas soUm dos nossos desafios, no plano
cializa o processo de produção. Copara seguir
teórico, reside exatamente em formo sabe qualquer trabalhador fabril,
avançando.
mular uma estratégia adequada ao
o processo produtivo é cada vez mais
período histórico em que vivemos.
integrado, interdependente, coletivo
É isto que almejam
Nesta tarefa, será muito útil
e... não precisa do capitalista para
as resoluções do
estudar duas experiências histófuncionar.
ricas e o debate travado a partir
Mas os capitalistas existem e se
XIX Encontro do
delas: o Chile da Unidade Popular
apropriam da maior parte da riqueForo de São Paulo,
(1970-1973) e a China das reformas
za produzida pelo trabalho. Mais que
(1978-2013).
isso: o controle que os capitalistas
quando falam
No sentido mais amplo da palamantêm sobre o processo de proem aprofundar
vra, estratégia socialista é o plano
dução faz com que este processo de
geral da “campanha” que travamos
produção (e, por decorrência, toda a
as mudanças e
pela superação do capitalismo e pesociedade) sofra crises cíclicas. Assim
acelerar a integração; como a mercantilização e o esgotala implantação de uma sociedade
sem classes e sem Estado, sem exmento da natureza, produz crises
buscar vitórias
ploração nem opressão.
ambientais cada vez mais severas.
no ciclo eleitoral;
Se tivermos sucesso nesta “camPortanto, para que as possibilipanha”, teremos realizado duas
dades
(ou potencialidades) libertafortalecer as lutas
transições:
doras da socialização da produção
sociais, os partidos
a) uma transição de modo de
(ocorrida no capitalismo) tornemprodução: do capitalismo para o co-se realidade, é necessário socialide esquerda
munismo;
zar também a propriedade, inclusie os governos
b) uma transição de era históve como pré-condição para atender
rica: da era da sociedade humana
aos interesses do trabalho e da naprogressistas da
dividida em classes para a era da
tureza. Para uma produção coletiva,
América Latina
sociedade humana não dividida em
uma propriedade também coletiva;
classes.
para uma produção que é social,
Por óbvio, esta “transição” será
uma propriedade também social.
um longo período histórico: estamos falando não apeMas para que a propriedade seja colocada sob
nas de décadas, mas muito provavelmente de séculos.
controle social, é necessário alterar a correlação de
É correto designarmos com termos diferentes o
forças política existente na sociedade.
objetivo final (uma sociedade comunista) e a transiÉ por isso que podemos dizer que a transição
ção (o socialismo).
socialista tem um ponto de partida político (a conSe o socialismo é um período de transição, isto
quista do poder pelos trabalhadores), um ponto de
significa que ele tem um ponto de partida (o capitachegada político-social (a abolição das classes e do
lismo) e um ponto de chegada (o comunismo).
Estado) e um parâmetro (sem o qual não faz sentiA transição consiste no processo de socialização
do falar em transição): a progressiva socialização da
da produção, da propriedade e do poder político.
propriedade, da produção e do poder político.
Uma parte desta transição está em curso, já agora,
Acontece que o processo de desenvolvimento cano capitalismo: trata-se da ampliação da capacidade
pitalista não é homogêneo, não é uniforme. O grau
produtiva, condição material básica para a existênde socialização da produção é desigual, de país para
cia de uma sociedade sem classes.
país, de ramo para ramo, de época para época.
Esta ampliação da capacidade de produzir é o que
Acontece, também, que não existe nenhuma redenominamos desenvolvimento das forças produtilação direta, mecânica, entre estágio de desenvolvi-
63
126/2013
A primeira parte pode ser concluída em âmbito
mento das forças produtivas, de um lado, e criação
nacional. A segunda, só num terreno mais amplo,
das condições necessárias à tomada do poder pelos
regional e mundial.
trabalhadores, de outro.
Em última análise, o que diferencia o socialismo
No século XX, por exemplo, os trabalhadores tomarxista de outras correntes é perceber que a supemaram o poder exatamente em países com baixo níração do capitalismo é um problema histórico-matevel de desenvolvimento das forças produtivas. E isso
rial, não apenas subjetivo.
os colocou diante da necessidade de utilizar o poder
Assim, tanto a estratégia de conquista do poder
de Estado não apenas para “socializar a propriedaquanto a estratégia de construção do socialismo dede”, mas também para “socializar a produção”. E
vem levar em conta duas questões cruciais: as fortambém, nas experiências desse mesmo século, obrimas de propriedade e as forças produtivas existentes
gou os governos revolucionários a lançarem mão de
em cada país capitalista dado.
medidas de democratização da propriedade privada (como a reforma
Um dos
agrária) e/ou de formas muito semeEntretanto, estas
lhantes ao capitalismo de Estado.
questões
têm um peso
ensinamentos das
Portanto, considerando que a
distinto em cada uma das
mobilizações de
estratégia socialista é o plano geral
“partes” da estratégia
da “campanha” que travamos pejunho é que a direita
la superação do capitalismo e pela
Por exemplo: se o estágio de
brasileira, como a
implantação de uma sociedade sem
desenvolvimento das forças produclasses e sem Estado, sem exploravenezuelana, disputa tivas fosse a variável determinante
ção nem opressão, cabe dividir este
na decisão estratégica sobre a cona mídia, as urnas
plano geral em duas partes:
quista do poder, os trabalhadores
a) a estratégia que visa a connão deveriam ter tomado o poder
e também as ruas
quistar o poder político; e
em nenhum dos países onde ocorreconosco.
b) a estratégia que visa a sociaram “revoluções socialistas” ao lonlizar o poder, a propriedade e a progo do século XX. Afinal, em todos
E que as esquerdas
dução, após a conquista do poder.
estes países o estágio de desenvolvi-
Manifestações pela democratização da mídia e contra a Globo, na capital paulista em 11 de julho de 2013
64
Felipe Cabral/Viomundo
enfrentam dilemas
muito semelhantes,
em todos os países
latino-americanos
Internacional
Foro de São Paulo/Flickr
Ato de encerramento do XIX Encontro do Foro de São Paulo com a presença do presidente boliviano Evo Morales
mento material, bem como o das relações capitalistas,
era extremamente baixo. Aliás, e paradoxalmente, foi
graças às revoluções que o desenvolvimento, em geral, se acelerou.
Portanto, a política (correlação de forças, possibilidade de sucesso, oportunidade posta pelo momento, inevitabilidade da luta direta pelo poder,
risco de ser massacrado pela contrarrevolução caso
não se conquistasse o poder) constitui a variável
determinante na estratégia de conquista do poder.
Mas não é, tomada isoladamente, a variável determinante na estratégia de construção do socialismo.
Para que o Estado possa transformar todas as formas de propriedade em formas socialistas, não basta
realizar uma revolução política.
É possível conquistar o poder num país economicamente atrasado. Mas não é possível socializar plenamente o poder e a propriedade, num país economicamente atrasado.
A socialização do poder e da propriedade precisa,
pois, caminhar junto com a socialização da produção: é necessário desenvolver as forças produtivas,
o que exigirá manter, durante determinado tempo,
relações capitalistas de produção (pois sempre é bom
reafirmar: a exploração capitalista é um fator fundamental na ampliação da capacidade produtiva da
humanidade).
Apenas a política (no sentido da vontade) não
é suficiente. Assaltar os céus não preenche barriga,
nem firmeza ideológica sozinha é suficiente para garantir a defesa nacional.
Claro que estes temas se apresentam de maneira
distinta em países onde não se tomou o poder revolucionariamente, onde se está tentando construir
um novo poder através de uma complexa guerra de
posições (motivo pelo qual é fundamental estudar a
experiência chilena 1970-1973).
Também nestes países, é fundamental que os
governos progressistas e de esquerda latino-americanos e caribenhos impulsionem o desenvolvimento produtivo; mas é fundamental, também, disputar a natureza deste desenvolvimento e reforçar, de
maneira “desproporcional”, o aspecto político.
O dilema está em saber como equacionar o necessário desenvolvimento da capacidade produtiva,
com a estratégia política de conquistar o poder.
É possível favorecer economicamente o setor capitalista privado e acumular politicamente forças em
favor da esquerda socialista; assim como é possível
desfavorecer economicamente o setor capitalista privado e desacumular politicamente, enfraquecendo a
esquerda socialista.
A estratégia conhecida como “etapista” (primeiro a etapa da revolução burguesia, depois a etapa da
65
126/2013
revolução socialista), adotada por muito tempo na
público não-mercantil (políticas sociais universais),
América Latina, não compreendia adequadamente o
frente ao setor mercantil; que ampliem a forma proseguinte fato: as condições para a conquista do podutiva do capital, frente à forma especulativa. E o nó,
der e as condições para a construção do socialismo
o centro da questão, está menos na economia estrito
não se formam juntas. E, portanto, esperar que amsenso do que no conjunto da obra.
bas coincidam pode significar abrir
Para enfrentar todas estas quesmão da tomada do poder (e, em altões, tanto a experiência chilena
guns países, abrir mão do próprio
(1970-1973) quanto a experiência
As condições para a
desenvolvimento das forças produchinesa (1949-2013) devem ser esconquista do poder
tivas).
tudadas com muita atenção. AfirMas também devemos recomação que está longe de ser a opie as condições para
nhecer que algumas estratégias
nião hegemônica nas atuais teorias
a construção do
“antietapistas” cometem erro sirevolucionárias latino-americanas.
metricamente oposto: a conquista
No caso do Chile, o aniversário
socialismo não se
do poder, em condições extremados 40 anos do golpe de Estado será
formam juntas. E,
mente atrasadas do ponto de vista
uma oportunidade para aprofundar
econômico-material, gerou tentaportanto, esperar que este debate, tendo como foco discutivas de construção do socialismo
tir o que deve ser feito para garantir
ambas coincidam
totalmente diferentes daquelas que
a construção exitosa do poder poo movimento socialista imaginava.
pular e da área de propriedade sopode significar abrir
E que tiveram algum nível de êxicial, para usar os termos propostos
mão da tomada do
to basicamente enquanto existiam
pela Unidade Popular.
condições internacionais, que hoje
No caso da China, precisamos
poder
não existem mais.
combinar o conhecimento histórico
Portanto, devemos recusar a ese o debate teórico sobre o “socialistratégia “etapista”, mas não podemos nem devemos
mo com peculiaridades chinesas”, com a discussão
recusar a problemática teórica que aponta o caráter
igualmente complexa acerca das atividades econôcentral do desenvolvimento das forças produtivas
micas e do papel geopolítico da China no mundo em
para a implementação de uma estratégia socialista.
geral e na América Latina em particular.
E este é um assunto no qual o estudo da experiência
Muitos setores aproveitam-se da natureza contrachinesa (1949-2013) é fundamental.
ditória do desenvolvimento interno da China, bem
Entre outros aspectos, trata-se de saber qual a
como da natureza contraditória de seus investimennatureza das forças produtivas, qual a natureza do
tos externos, para criticar o conjunto da estratégia de
desenvolvimento que devemos defender. E qual o
transição ao socialismo ali adotada. Ocorre que esta
papel que o setor capitalista privado pode e deve jonatureza contraditória – que inclui o risco permanengar neste desenvolvimento.
te da derrota, da “restauração” – é também um sinal
Por exemplo, a ampliação da infraestrutura ecode vitalidade e potencial êxito, ao menos para os que
nômica, material, existente no continente latinoacreditam que o comunismo é produto das contradi-americano: nas condições atuais, não há como fazer
ções e da superação do próprio capitalismo.
isso, sem recorrer pesadamente ao setor privado. DeMas, apesar de tudo, estamos melhor hoje do que
vemos fazer isso? Ou isso seria combinar de maneiem 1978, quando eram muito poucos os que entenra incorreta as tarefas democráticas com as tarefas
diam corretamente o que estava em curso na Repúsocialistas?
blica Popular da China e o brutal impacto que teria
A resposta correta exige equacionar o necessário
sobre as próximas décadas. E menos ainda os que
desenvolvimento da capacidade produtiva (que é
entendiam que a experiência da Unidade Popular
um problema tanto tático quanto estratégico) com
chilena continha, apesar da derrota, grandes ensinaa estratégia política de disputa e conquista do poder.
mentos estratégicos. Hoje somos em maior número
Trata-se de adotar medidas que aumentem a foros que percebemos isto, ainda que tenhamos muito
taleza social e política das classes trabalhadoras; que
trabalho pela frente.
ampliem o peso do capitalismo monopolista de Estado, frente ao capitalismo monopolista privado; que
* Valter Pomar é membro do Diretório Nacional do
ampliem o peso do capitalismo democrático, frente
Partido dos Trabalhadores (PT) e secretário executivo
ao capital monopolista privado; que ampliem o setor
do Foro de São Paulo
66
Internacional
Reflexões sobre a luta pela paz
na Colômbia e seus impactos na
América Latina
Pietro A larcón*
Divulgação
A solução política para a paz na Colômbia
implica organizar um movimento amplo com
apoio de toda a América Latina. É preciso
estar alerta à estratégia imperialista que visa
deter os avanços alcançados por governos
progressistas da região
67
126/2013
1. Introdução
ganização diversos, que teve origem nos primeiros
sindicatos agrários do início do século 20 diante da
presença dos capitais transnacionais. É bastante coDez anos após o desfecho desfavorável do procesnhecida a greve das bananeiras, que confrontou a Uniso de conversações entre o governo de Andrés Pasted fruit Company em 1928 e na qual perderam a vida
trana e as Forças Armadas Revolucionárias da Cocentenas de trabalhadores.
lômbia – Exército do Povo (FARC-EP), novamente
A organização agrária e as experiências de resisos colombianos têm a oportunidade de trilhar o catência logo se manifestaram sob a forma de autodefeminho à procura de uma solução política ao conflito
sas camponesas diante da agressividade do Estado nas
a partir dos diálogos iniciados em 19 de novembro
décadas de 1940 e 1950 para consolidar o poder das
de 2012 em Havana.
elites sobre as terras produtivas.
A redefinição das relações de poder na Colômbia,
As modalidades de luta avançaram para formas
a derrota do projeto militarista e a abertura à demomais desafiadoras do sistema e
cracia e à justiça social no país vão
adquiriram um sentido transfordiretamente entrelaçadas à contenmador, tendo em vista a violência
ção do projeto de militarização, e à
A existência de um
oficial, a omissão estatal para a sanegação do legítimo direito à paz
conflito social e
tisfação das necessidades públicas
dos povos latino-americanos e ca– saúde, educação, moradia, dentre
ribenhos empreendida pela política
armado como o que
outras – e o esquecimento de regiexterna dos Estados Unidos. Uma
há décadas vive a
ões inteiras do país, abandonadas à
nova situação política na Colômbia
sua sorte.
teria um efeito arejador para a seguColômbia conectaEm tais condições, originou-se
rança regional e possibilitaria novas
se à natureza
a forma de luta armada sem que
perspectivas para a integração com
necessariamente existisse uma siautodeterminação e independência.
das relações sociais
tuação revolucionária nos moldes
A presente reflexão pretende
que se desenvolvem clássicos, mas que ganhou em ordesenvolver de maneira concisa alganização, presença e ação militar.
guns dos elementos determinantes
historicamente
As guerrilhas tornaram-se uma
dessa conjuntura, para a compreno país
constante e um referente para
ensão da situação da sociedade coqualquer análise sobre a situação
lombiana nos marcos dos recentes
do país.
diálogos entre a insurgência e o goRessalte-se que ao longo dos últimos 30 anos
verno de Juan Manuel Santos.
essa forma de luta não tem sido derrotada nem no
plano político nem no militar, mas tem sido interlo2. Premissas analíticas
cutora do Estado em várias experiências de diálogo
para tentar uma solução política ao conflito.
2.1. Os eixos do regime econômico e político
A ação estatal estabelecida pela classe dominante
transitou da figura do Estado de sítio, com a militariConvém de início apontar que a existência de um
zação do país, à instalação de um regime de partidos
conflito social e armado como o que há décadas vive
de linguagem única, representantes do latifúndio e
a Colômbia conecta-se à natureza das relações sodo grande capital, ligados a monopólios da indústria
ciais que se desenvolvem historicamente no país.
e do comércio internacional e a grupos financeiros,
Nesse sentido, podem-se identificar como eledistanciados das aspirações populares. Conformoumentos-chave nessas relações a confiscação do apa-se na Colômbia uma direita com suporte, por um
relho estatal e das iniciativas de administração da
lado, nos empresários de produção de café, banana,
polis colombiana por uma classe dominante erigida
mineiro-energéticas, e criação de gado; e, por outro,
ao longo dos séculos 19 e 20 sobre a base da connos setores mais atrasados das Forças Armadas, com
centração da propriedade da terra e do capital; e,
posições políticas de cunho fascista, cujo norte tem
sobretudo, a apelação permanente e sem escrúpulos
sido a procura de uma solução militar a todo e quala fórmulas de controle social com fundamento na
quer protesto popular, ou ação de massas pelas reforviolência estatal e paraestatal, desenvolvida até os
mas democráticas.
nossos dias com apoio logístico e econômico dos EsSobre essas bases, a resistência popular foi desatados Unidos.
fiada, com a desqualificação do movimento social,
Entretanto, de maneira singular, desenvolveu-se
criminalizando a atividade sindical, o protesto estutambém uma resistência popular com graus de or-
68
Internacional
Divulgação
dantil e cidadão, objetando a crítica por considerá-la subversiva, num
traço mais de intolerância – e logo
assumindo a tendência inspirada
no governo Bush, de estigmatizar
como terroristas as lideranças de
oposição.
No plano econômico, a Colômbia é considerada, pela estrutura
hegemônica de poder que domina
o campo das relações internacionais, como Estado no qual se deve
acentuar a transnacionalização de
maneira a servir de suporte produtivo de bens primários, e ainda de,
simultaneamente, contribuir com a
acumulação de recursos das corporações financeiras.
2.2. Concentração de terras e
lutas camponesas
O problema da
concentração de
terras na Colômbia
está intimamente
ligado ao modelo
econômico agroexportador que
ocasionou entre os
268#e 1940
anos 1930
o deslocamento de
mais de 2 milhões
de famílias.
E continua sendo o
principal foco dos
movimentos de
resistência
O problema da concentração de
terras na Colômbia está intimamente ligado ao modelo econômico agro-exportador – o
roubo de terras pela violência –, que ocasionou entre
as décadas de 1930 e 1940 o deslocamento de mais
de 2 milhões de famílias. Mas, como já dito antes, os
movimentos de resistência originariam as primeiras
guerrilhas.
Com efeito, o movimento camponês colombiano realizou lutas constantes pela reforma agrária,
através de passeatas, ocupações, greves e formas
de organização que tiveram como
resposta reformas tímidas que não
tocaram na propriedade nem reduziram a violência estatal.
Hoje, os grandes proprietários
possuem de 47% a 68% das terras,
já os pequenos proprietários, que
antes tinham 15%, atualmente
possuem 9%; e 13 mil pessoas são
donas de 22 milhões de hectares de
terra (ANZOLA: 2010).
A esse contexto, deve-se acrescentar a contrarreforma agrária, que
se desenvolve com o chamado novo
latifúndio, cujo intuito é consolidar
os projetos de grandes fazendas para o agronegócio.
As modalidades de concentração de terra são usualmente abusivas e ilegais. Segundo a Lei 160 de
1994, nenhuma pessoa pode adquirir terrenos inicialmente transferidos, porque foram considerados
como baldios – sem dono – se a
sua extensão exceder uma unidade agrícola familiar
(UAF). Nesses casos, a ação das grandes empresas
concentradoras de terra é simples: consiste em criar
Sociedades Anônimas Simplificadas (SAS) e comprar
a maior quantidade possível dessas terras, acumulando e concentrando – sem exceder as UAF. Destarte,
os projetos de entrega de terras aos camponeses são
dificultados pelas empresas – e muitas delas aliadas
ao próprio governo – que adquirem os terrenos antes
69
126/2013
de serem concedidos a alguém – ou de sua adjudicação. Assim, uma empresa criou mais de 40 SAS com
o objetivo de conquistar terras nessas condições, que
seriam adjudicadas.
Os projetos do agronegócio são praticados a partir
dessa reacumulação fundiária, impedindo concessões
de terras, especialmente aos camponeses expulsos.
Vale a pena registrar que a partir de 19 de agosto do
presente ano realizou-se na Colômbia um amplo movimento de camponeses e pequenos produtores rurais,
em recusa às iniciativas governamentais que os colocam na dependência de transnacionais, como a Monsanto, e que privilegiam o agronegócio e as atividades
mineiro-energéticas como motor do desenvolvimento.
Essa situação é ocasionada pela deterioração da
economia, afetada pelo impacto dos tratados de livre
comércio que, com a liberalização das importações,
produzem um tremendo golpe na produção de itens
como arroz, algodão, cacau e batata, desestabilizando a segurança alimentar, da qual nada fala o governo – apesar de os pequenos produtores serem responsáveis por mais de 20% do Produto Interno Bruto
(PIB) do setor agrário.
Uma política de desenvolvimento integral do
campo colombiano implica respeitar a economia
camponesa, das unidades familiares; a realocação
das famílias forçadas a abandonarem seus lares e
terras; o aumento de sua renda; o levantamento dos
ônus decorrentes das exigências de acesso à terra,
ao crédito e às tecnologias; e a garantia de mercado
para seus produtos.
Anote-se que o abandono do campo e as constantes dificuldades das famílias levaram ao aumento dos
cultivos ilegais – que sustentam o negócio do narcotráfico. Sobre esse fenômeno uma palavra deve ser dita: tolerado pela classe dominante tradicional pela sua
capacidade de gerar recursos rápidos para incrementar
os lucros do grande capital, em médio prazo, o narcotráfico gerou uma subclasse, sem talento para saídas
criativas à crise nacional – de espírito arbitrário –, e
alimentada pelo autoritarismo, ligada servilmente às
transnacionais do comércio de armas, com linguagem
agressiva e disposição para uma saída militar, sem interesse em qualquer alternativa política para o conflito
e fortemente comprometida com o paramilitarismo.
Note-se que a negação do conflito por parte do
governo de Álvaro Uribe correspondeu a essa lógica. Durante seus governos a situação na Colômbia se
degradou com a ação cada vez mais intensa dos setores paramilitares, a absurda ideia de converter camponeses em guardas privados, os chamados falsos positivos. É recorrente essa prática de recrutamento de
jovens para trabalhar e logo assassiná-los, e depois
apresentá-los como membros das guerrilhas mortos
70
em combate; as detenções arbitrárias; e o deslocamento forçado da população civil.
Contudo, vale apontar que a pressão pela paz
nunca esmoreceu, bem como não se extinguiu o
aporte de novas experiências de organização popular
que entendem a paz com justiça e democracia como
o mais duro golpe ao regime político excludente e de
cunho militarista.
O reagrupamento da esquerda e a denúncia de
falsos expedientes que promovem uma Colômbia
ao centro, bem como a rejeição a uma polarização
entre os setores ligados ao ex-presidente Uribe e a
Juan Manuel Santos – arquitetada pela mídia para
excluir outras opções políticas –, são fundamentais
para fortalecer o processo de paz e criar uma frente
ampla com possibilidades históricas de ganhar espaços através da luta eleitoral e de massas.
Experiências como a da Marcha Patriótica, da
qual participam comunistas e setores progressistas
e democráticos, também a ressurgida União Patriótica, e as novas formas de organização camponesa
e de trabalhadores, promovem um novo desenho de
Estado com fórmulas orientadas à proteção dos recursos naturais e a reconquista da capacidade produtiva – hoje direcionada à geração de bens primários por força dos Tratados de Livre Comércio (TLC)
e às reformas democráticas no plano político, social
e cultural.
3. O governo Juan Manuel Santos e os
diálogos de paz
A complexidade dos aspectos mencionados dificulta a construção de uma visão particularizada
de cada um deles. Mas essa mesma dificuldade demonstra a compreensão da importância de um processo de diálogo para a paz no país.
Muito embora seja necessário ressaltar que conforme a vontade governamental os diálogos se realizam sem que as agressões militares sejam suspensas,
a mudança de perspectiva gera o reconhecimento da
existência de um persistente conflito social e armado
– negado durante o governo anterior que somente
enxergava terrorismo –; da sua degradação; e da necessidade de avançar no exame das circunstâncias
que o originaram e que se estendem até hoje.
A degradação do conflito, cujos sintomas mais
atrozes são: o desconhecimento dos direitos humanos; a guerra contra a população civil oriunda da estratégia paramilitar; bem como as múltiplas formas
de violência que geram os mais elevados índices de
deslocamento do campo de que se tenha notícia na
América; a vulnerabilidade dos atores sociais, indígenas, afro-descendentes, camponeses, estudantes,
Internacional
sindicalistas. Tendo em vista a crise exige-se, de imeciação, o Estado nunca abandonou a lógica militar
diato, a implementação das normas do Direito Intercomo traço singular da sua ação.
nacional Humanitário e seus protocolos.
Destarte, o governo de J. M. Santos assume hoje
O respeito a essas normas geraria um ambiente
uma política dual: por um lado, continua a negociar,
mais propício ao diálogo e uma nova dinâmica nas
com passos curtos, procurando estabelecer limites a
conversações, que redundaria numa participação
reformas de maior fôlego, sem se comprometer no
mais decidida dos colombianos, em seu conjunto, na
fundamental. E, simultaneamente, ele envia menelaboração de propostas alvissareiras
sagens à Mesa de diálogo sobre sua
para a paz e a transformação da sovisão de política interna e externa.
Os diálogos de
ciedade.
Tais mensagens, na conjuntura,
Contudo, o governo Santos é
merecem reflexão: a primeira delas
paz necessitam
dúbio, e suas reais possibilidades de
é o tratamento militar dado ao conde participação
compromisso com a paz ainda são
flito com os camponeses da região
tênues. É preciso exigir um maior
do Catatumbo, abandonada à própopular nacional
envolvimento do Estado através de
pria sorte pelo Estado; a segunda,
e de amplo apoio
fatos concretos.
a assinatura em Cali do acordo que
O governo colombiano, de alcria a Aliança Pacífica, ao lado de
internacional para
guma maneira, responde também
Peru e Chile; e, finalmente, a maorientá-los para a
a uma lógica de desenvolvimento
neira como irresponsavelmente se
do capitalismo nas condições da
referem a um possível acordo de
renovação interna
sua relação com os Estados Unicooperação entre a Colômbia e a
da Colômbia, e
dos no contexto regional. Santos
Organização do Tratado do Atlântirepresenta uma mudança de estilo
co Norte (Otan).
também para
com relação ao governo de Uribe,
No cenário midiático criado pelo
edificação e
cujo modelo era o governo Bush e
governo colombiano, o país se encona doutrina da guerra preventiva, astra numa etapa nova, de crescimento
promoção de uma
sumida como fórmula para o conseconômico e diminuindo o risco para
política externa
trangimento dos Estados vizinhos e
os investidores estrangeiros, prepaaté para a invasão de territórios, em
rado para um capitalismo avançado,
cujo eixo seja
violação flagrante das normas do
no qual o desemprego será extinto
eliminar toda forma e os direitos sociais efetivados. No
Direito internacional.
Nessa perspectiva, cresce o enentanto, os dados de satisfação das
de agressão aos
tendimento de que o Estado conecessidades públicas contradizem
Estados vizinhos
lombiano precisa gerar um cenário
o discurso de Santos. Não é possível
propício aos investimentos em sepensar em desenvolvimento da infratores como o mineiro-energético, e
estrutura econômica em benefício do
de acesso aos recursos da biodiversidade – o que
social quando a maior parte dos investimentos se desaponta para uma atitude diferente da classe domitina à guerra.
nante, mas sem renunciar a seu histórico militarisEncontrar uma saída que coloque fim ao sofrita e profundamente violento.
mento das incontáveis vítimas do conflito, estabeDaí que alguns autores, como Victor Moncayo,
leça a justiça social a partir de um modelo de redisafirmem que o regime político colombiano teria voltribuição da riqueza social e de uma reorientação do
tado a oscilar entre duas posições que se alternam, ou
gasto público e, ao final, oriente a tolerância, a aceicoexistem, nos marcos do conflito. De um lado, a elitação da pluralidade e, com ela, da divergência e da
minação – isto é, extermínio –, o que implica ampliar
contradição política, como fenômenos elementares
e aprofundar o denominado exercício legítimo da forpara o desenvolvimento da vida do Estado, é o desaça, processo no qual a ação do agente estatal pode se
fio dos que trabalham pela paz e por uma Colômbia
extrapolar, ou apelar à modalidade paraestatal de recom justiça para todos.
pressão. De outro, a integração ou cooptação, para que
as resistências aceitem tanto as vias institucionais de
4. Os diálogos e a América Latina
controle do conflito como conteúdos compatíveis com
o bom desenvolvimento da ordem de dominação, sem
A reflexão sobre a vinculação entre os diálogos de
alterá-lo nem comprometê-lo.
Havana das condições de desenvolvimento do capiPor isso, embora a abertura de processo de nego-
71
126/2013
talismo e o aprofundamento da integração regional
sobre as bases de soberania e desenvolvimento com
justiça social é uma tarefa de maior fôlego.
Presentemente, destacaremos alguns pontos que
se afiguram especialmente relevantes para se prosseguir nesse debate.
Sobre a paz – na sua acepção de resultado da limitação da força como mecanismo de solução dos
conflitos –, existem variadas óticas e diversos discursos, alguns de compromisso concreto com a superação da crise global do capitalismo.
Nesse sentido se inserem as manifestações de organismos internacionais, como a Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e
a própria Otan, que apontam uma carência de cenários
de suficiente governabilidade, o que faria com que fosse
imprescindível gerar distensões. Nessa ótica, o avanço
transnacional depende de condições de segurança que a
prática da guerra prolongada não permite. Ou seja, se a
estratégia de intervenção militar e os mecanismos para
assegurar o controle dos mercados, incluindo a mobilidade das pessoas, não puderem ser garantidos de forma
rápida a lógica consistiria em promover processos preferencialmente com mediação internacional.
Note-se que a tendência à paz ou à guerra, por
parte da ordem imperialista internacional, implica
uma radiografia atenta dos processos e das reais possibilidades de se impor militarmente.
Contudo, qualquer processo de negociação, desde
a perspectiva imperial, deve-se realizar com fundamento no constrangimento e na constante ameaça.
Os ensaios de intervenção na Síria, as ações internacionais contra o Irã e o apoio a regimes no Iémen e
na Arábia Saudita, a agressão à Líbia e, ainda, a militarização neocolonial da África são uma tendência
altamente negativa que comprova a agressividade da
estrutura hegemônica do poder internacional, que
tem como suporte militar a Otan.
No plano da América Latina, os diálogos em Havana não significam, nem de longe, uma atitude
passiva ou um compasso de espera no plano militar
por parte dos Estados Unidos. Muito pelo contrário,
no jogo geopolítico os TLCs e a Aliança Pacífica configuram os acordos para desarticularem os projetos
nacionais e os blocos regionais independentes e dirigem-se diretamente a deter os processos encabeçados por governos progressistas.
Daí que os diálogos de paz necessitem de participação popular nacional e de amplo apoio internacional
para orientá-los para a renovação interna da Colômbia,
e também para edificar e promover uma política externa colombiana cujo eixo seja eliminar toda e qualquer
forma de tentativa de agressão aos Estados vizinhos; e
derrotar o projeto de continuação de utilização do terri-
72
tório colombiano como plataforma de monitoramento
dos processos que se desenvolvem na região.
A tática imperialista consiste em conter os ímpetos de uma integração político, militar e infraestrutural promovida nos marcos da União de Nações
Sul-Americanas (Unasul), os novos protagonismos
sociais, a segurança regional e o desenvolvimento
com independência e eficiência.
No terreno geopolítico prático, os Estados Unidos combinam três modalidades: a utilização dos
grandes meios de comunicação para questionarem
a legitimidade dos governos e movimentos populares comprometidos com as mudanças democráticas,
cujo foco tem sido especialmente o processo venezuelano; a ação diplomática, pressionando o governo
de Santos a rejeitar as modificações de fundo que são
consignadas na agenda para o diálogo, e forçando-o
a concretizar a Aliança Pacífica; e a ação militarista
propriamente dita, que implica o anúncio de uma
possível cooperação do governo colombiano com a
Otan e a manutenção da estratégia de militarização,
com fundamento no complexo industrial-militar
que se beneficia da guerra.
Sob essas premissas, para além da maneira frutífera como se desenvolvem os diálogos em Havana,
é de vital importância para a região o desenlace que
tenha o cenário colombiano.
Um movimento de ampla envergadura pela solução política e a paz, que se converta numa alternativa mobilizadora para uma democracia com justiça
social, para uma América Latina em segurança, sem
ameaças imperiais, é a tarefa do momento na Colômbia, mas também fora dela.
*Pietro Alarcón é doutor em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica (PUC/SP) e professor da PUC/
SP e do Centro de Estudios e Investigaciones Sociales
(CEIS) da Colômbia
Referências bibliográficas
ANZOLA, Libardo Sarmiento. “Colombia. Reprimarización
económica y violencia”. En: Le Monde diplomatique.
Edición colombiana, julho de 2010.
100 PROPUESTAS en La Habana. Semanário Voz. Bogotá,
maio de 2013.
LOZANO, Carlos. Guerra o Paz en Colombia. Bogotá:
Izquierda Viva. 2008.
MONCAYO, Victor Manuel. “Contexto y significado del
processo de paz”. En: ESTRADA, Jairo (coord.). Solución
política y proceso de paz en Colombia. Bogotá:
Colômbia. OceanSur, 2013.
Cultura
De caso com o comunismo
André Cintra*
Retrato de Mário de Andrade por Lasar Segal
Mário de Andrade, que completaria 120 anos
em 2013, ao longo de sua vida pública – e
particularmente ao refletir sobre a “aristocrática”
Semana de Arte Moderna – incorporou cada vez mais
preocupações com a cena política. Nesse percurso, fez
referências elogiosas às ideias e práticas comunistas,
sobretudo à experiência soviética
73
‘‘E
126/2013
u sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta”,
tor”. O livro de estreia coincidiu no tempo com a Redeclarou Mário de Andrade (1893-1945),
volução Russa, mas o poeta dizia estar sob o impacto
num de seus versos mais conhecidos. Em
da Primeira Guerra Mundial. Também em 1917,
outro poema, o escritor paulista, um dos
Mário de Andrade saiu em defesa da artista plástica
principais líderes do modernismo brasileiro,
Anita Malfatti, cuja “Exposição de Pintura Moderparece deixar a receita para decifrá-lo: “É só
na”, em São Paulo, acendeu o reacionarismo da crítitirar a cortina/ Que entra luz nesta escurez”.
ca. A mostra foi um divisor de águas na formação do
Com uma ressalva: “Para quem me rejeita, trabalho
escritor, que confessou ter aderido ao modernismo
perdido explicar o que, antes de ler, já não aceitou”. A
por influência do trabalho de Anita: “Devo a reveladespeito de tantas pistas, mesmo quem o aceitou não
ção do novo e a convicção da revolta a ela e à força
deu conta, pelo menos até hoje, de retratar em definide seus quadros”.
tivo o autor de Pauliceia Desvairada (1922), Amar, Verbo
Mas é com a Semana de Arte Moderna, em feveIntransitivo (1927) e Macunaíma (1928). Decorridos 68
reiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, que
anos de sua morte, Mário é o segunMário de Andrade emerge como a
do escritor mais estudado nas uniliderança máxima do movimento
versidades do Brasil, atrás apenas
modernista. Seu engajamento foi
de Machado de Assis (1839-1908)
decisivo não apenas para articular
– mas não se tornou objeto de uma
e promover o evento – mas também
única biografia publicada sequer.
para lhe garantir lugar na posteriA espera, porém, deve acabar
dade. Um lugar e uma posteridade
neste segundo semestre. Quem proque não foram naturais, conformete vencer a histórica lacuna e
me aponta Marcia Camargos em
lançar sua primeira biografia é o jorSemana de 22 – entre vaias e aplausos
nalista Jason Tércio, autor de Segredo
(2002). “Afinal, por que um evento
de Estado – o desaparecimento de Rubens
que provocou prejuízo considerável
Paiva (2011). Tércio diz saber onde
a seus organizadores, foi difamado
se meteu. A vida privada de Mário é
por boa parte da imprensa da época
Em meio às
um mistério cercado de rumores por
e recebeu mais vaias do que aplautodos os lados. A vida pública já foi
sos continua despertando tanto incomemorações
alvo de centenas de artigos jornalísteresse?”, questiona a autora.
dos 120 anos do
ticos e trabalhos acadêmicos. DisO fato é que a Semana foi besecar uma e outra é uma aventura.
neficiada
com o passar do tempo.
nascimento de
Relacioná-las e interpretá-las com
O que prevalece hoje, na opinião
Mário de Andrade,
equilíbrio, uma epopeia.
de Marcia, são estudos “em geNão há indícios de qual dos 300
ral consagradores” a respeito do
sobressai cada vez
ou 350 Mários mais chamou a atenevento. E se o estalo modernista de
mais a figura do
ção de seu biógrafo. De qualquer
1922 sobreviveu foi graças, em boa
maneira, em meio às comemoramedida, à militância de seus dois
gestor
ções dos 120 anos do nascimento
protagonistas – os Andrade, Mário
de Mário de Andrade, sobressai cae Oswald, amigos e parceiros que,
da vez mais a figura do gestor, com
sete anos depois do evento, viraram
destaque para sua atuação à frente do Departamento
desafetos. A herança da Semana passa por ambos.
de Cultura da Prefeitura de São Paulo (1935-1938).
Da negação comum do passadismo, cada um desses
Além do lançamento da biografia, outro evento a
escritores, à sua maneira, passou a seguir seu prófortalecer essa tendência é a “Ocupação Mário de
prio itinerário modernista, inaugurando as primeiAndrade”, que ressalta os feitos do escritor “nos
ras vertentes do movimento.
campos da gestão e da política cultural, em tempos
“Enquanto Oswald de Andrade era o devasso, o
nos quais esses termos não eram usuais”. Depois de
piadista, Mário era o ‘scholar’, o erudito, o monumenficar em cartaz por um mês, no Itaú Cultural, em São
to moral”, comparam José Geraldo Couto e Mario
Paulo, a mostra ainda pode ser vista na internet.
Cesar Carvalho, em ensaio de 1993. Para Jason TérForam 18 anos desde o ingresso do escritor paucio, Mário representava o “pensador participante”,
lista na vida pública – em 1917, com o livro Há uma
e Oswald fazia as vezes de “agitador”. Ao ser entreGota de Sangue em cada Poema – até sua posse do Devistado pelo Valor Econômico em 2012, Tércio garantiu
partamento de Cultura, marco zero do “Mário gesque Mário cuidou melhor que Oswald do patrimônio
74
Cultura
de 1922: “Foi ele quem deu sequência às ideias da Seartistas com posições políticas abertamente consermana, quem mais se empenhou para manter acesa
vadoras – caso de Guilherme de Almeida e Cassiano
a fogueira, participando dos debates posteriores com
Ricardo –, o que dificultava certas tomadas coletivas
artigos na imprensa e palestras, ajudando a fundar
de posição. “Fomos bastante inatuais. Vaidade, turevistas, escrevendo ensaios e pondo
do vaidade”, resumiu Mário. Ácido,
em prática, nos seus textos, todo o
ele equiparou seus pares a grandes
ideário modernista”.
artistas da Antiguidade que tiveÉ uma meia-verdade. Tércio desram notoriedade, mas rebaixaram
considera que, no pós-1922, poucas
“a vida humana”, na medida em
investidas contra a Semana foram
que nada fizeram para combater as
mais demolidoras do que o balanço
mazelas vigentes: “Nos períodos de
feito pelo próprio Mário de Andramaior escravização do indivíduo,
de em 1942, quando o evento comGrécia, Egito, artes e ciências não
pletou duas décadas. A autocrítica
deixaram de florescer”.
do escritor começou em fevereiro,
No plano pessoal, a desilusão é
numa série de quatro artigos para o
ainda maior. “Chego, no declínio da
jornal O Estado de S. Paulo. Continuou
vida, à convicção de que faltou hudois meses depois, na conferência
manidade em mim. Meu aristocra“O Movimento Modernista”, lida
tismo me puniu. Minhas intenções
por Mário em 30 de abril, para uma
me enganaram. Quando muito, fiz
plateia de estudantes que lotava a
de longe umas caretas para a másBiblioteca do Itamaraty, no Rio de
cara do tempo, o que não me saJaneiro. Das vaias à consolidação do
tisfaz (...). Tendo deformado toda
Das vaias à
movimento, o escritor inferiu que o
a minha obra por um anti-indivimodernismo não foi mais que “um
dualismo dirigido e voluntarioso,
consolidação do
abandono consciente de princípios
toda a minha obra não é mais que
movimento, o
e de técnicas”, “uma revolta conum hiperindividualismo implacátra a intelligentsia nacional”. Outros
vel! E é melancólico chegar assim
escritor inferiu
slogans – escreve ele – devem ser
ao crepúsculo, sem contar com a
que o modernismo
descartados. “Quanto a dizer que
solidariedade de si mesmo.”
não foi mais que
éramos antinacionalistas, é apenas
O Mário de Andrade de 1942,
bobagem ridícula”, comenta Mário,
volta e meia tachado como “ma“um abandono
assumindo que “o espírito e as moduro”, era na realidade um ser
consciente de
das foram diretamente importados
humano atormentado por probleda Europa” – e que “o movimento
mas pessoais (crises financeiras,
princípios e de
renovador era nitidamente aristoalcoolismo) e fragilizado diante de
técnicas”, “uma
crático”.
fatores externos (o Estado Novo, a
Sobre os participantes da SemaSegunda Guerra Mundial). Como
revolta contra
na, nada muito melhor. “Éramos
festejar o modernismo se os avana intelligentsia
uma arrancada de heróis convenciços alcançados nas artes e na culdos, uns hitlerzinhos agradáveis”.
tura não se refletiam no dia a dia?
nacional”
E mais: “Vivemos uns seis anos na
“Os modernistas da Semana de Armaior orgia intelectual que a históte Moderna não devemos servir de
ria artística do país registra”, com “alguma patriotice
exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição.
e muita falsificação”. No intervalo de pouco mais de
(...) Façam ou se recusem a fazer arte, ciência, ofídois meses entre os artigos no Estadão e o discurso no
cios. Mas não fiquem apenas nisso, espiões da vida,
Itamaraty, Mário acentua a severidade de sua autorcamuflados em técnicos de vida, espiando a multireflexão. Mesmo alegando não ser, por natureza, um
dão passar. Marchem com as multidões!”
“político de ação”, o escritor expôs o incômodo. Seu
Se deixasse a modéstia de lado, Mário poderia citempo era a “idade política do homem”, à qual ele
tar sua passagem pelo Departamento de Cultura cotinha o dever de servir. Mas a Semana de 1922, na
mo exemplo do que é marchar ao lado do povo. Mescontramão de sua época, falhou ao ficar indiferente à
mo sem experiência no serviço público nem vínculo
cena nacional e aos segmentos populares.
com o grupo político do prefeito Fábio da Silva Prado
De resto, o movimento era heterogêneo e incluía
e do governador Armando Sales de Oliveira, o escri-
75
126/2013
tor teve plena autonomia para dirigir o novo órgão. O
de assombração medonha.” O escritor denunciava
contexto lhe favorecia. Com a Constituição de 1934
também a campanha contra a incipiente experiêne o anúncio de eleições para a Presidência da Repúcia soviética: “Os países capitalistas têm feito tudo
blica em 1938, as elites paulistas acreditavam poder,
não só pra ocultar da humanidade a Rússia verdafinalmente, dar o troco em Getúlio Vargas e retomar a
deira, como inda têm feito tudo pra prejudicá-la até
hegemonia perdida com a Revolução de 1930. “A ideia
internamente”. O Brasil, de acordo com Mário, não
era fazer da experiência paulista o laboratório de um
estava imune a essa ofensiva. “Me arde ver o susto
amplo projeto de alcance nacional, no caso da vitória
brasileiro ante esse monstro de palco, inventado pela
de Armando Sales de Oliveira na eleição presidenmalvadeza de uns e a ignorância de outros.”
cial”, explica Eduardo Jardim, em Mário de Andrade – a
Em 1933, ao responder a um questionário da edimorte do poeta.
tora norte-americana Macaulley & Co, Mário voltou
Nenhum daqueles projetosa surpreender. “Minha maior es-laboratório foi mais bem-sucedido
perança é que se consiga um dia
Em 1945, o escritor
que o Departamento de Cultura. De
realizar no mundo o verdadeiro e
1935 a 1938, Mário de Andrade liignorado Socialismo. Só então o
arrisca, em nome
derou uma gestão criativa e transhomem terá o direito de pronunda paz mundial,
formadora, que abriu as portas do
ciar a palavra ‘civilização’.” Numa
Teatro Municipal para a população
carta a Oneyda Alvarenga, Mário
uma momentânea
pobre e construiu parques infantis.
completa: “Não admito integralapologia do
Os ônibus-biblioteca se alastraram.
mente o marxismo e sinto na vida
realismo soviético
Instituições como a Discoteca Muhumana uma porção de causas e
nicipal e a Sociedade de Etnografia
de imponderáveis que produziriam
e da arte engajada
e Folclore foram criadas. Com as
os efeitos. Mas incontestavelmente
contra o nazismo
Missões de Pesquisas Folclóricas,
o marxismo contém uma enorme
pesquisadores de São Paulo foram
parte de verdade que hoje nem é
ao Nordeste para fazer o registro de
marxista mais porque incorporada
elementos da cultura popular.
ao conhecimento geral, à verdade humana. Coisas
É curioso notar como Mário de Andrade imprique ninguém discute mais”.
miu uma rara sensibilidade social às ações do DeOs pensadores contemporâneos voltaram ao aspartamento. Conceitos tipicamente marxistas, como
sunto. Moacir Werneck de Castro – que conviveu
“proletariado”, nortearam a concepção de projetos
com Mário nos três anos em que o escritor paulista
como as Casas de Cultura Proletária e os Concursos
morou no Rio de Janeiro (1938-1941) – lançou Máde Arte Proletária. Além disso, os parques infanrio de Andrade – exílio no Rio (1989), vigoroso ensaio
tis eram necessariamente implantados em bairros
sobre o amigo. “Mário jamais pretendeu assimilar o
operários, como a Lapa e o Ipiranga, com o objetimarxismo, mas utilizava conceitos marxistas como
vo de levar recreação e lazer aos “filhos dos trabainstrumentos de análise e de conhecimento da realhadores”. Orgulhoso de suas conquistas, o escritor
lidade”, ponderou Werneck. Em Intelectuais brasileialimentou uma imensa gratidão ao prefeito Fábio
ros e marxismo (1991), Leandro Konder diz haver em
Prado. Afinal, em correspondência ao poeta e amigo
Mário um “interesse (desconfiado porém simpático)
Carlos Drummond de Andrade, Mário diz que tinha
pelo comunismo”.
tudo para ser preterido, já que pesava contra ele a
Em 1945, já prestes a morrer, o escritor paulista
acusação de ser “comunista”.
arrisca, em nome da paz mundial, uma momentâDo Partido Comunista do Brasil, fundado em
nea apologia do realismo soviético e da arte engaja1922, Mário nunca se aproximou. Sua única filiação,
da contra o nazismo –, mas como complemento (e
influenciada pela atividade política do irmão Renato,
não oposição) ao modernismo. Interpretando Máfoi ao Partido Democrático. Mas as poucas referênrio, Konder conclui que “a cultura não pode resolver
cias do autor às ideias e práticas comunistas foram
questões que a vida não resolveu: o que ela pode (e
invariavelmente elogiosas. Logo no início do artigo
precisa) fazer é nos proporcionar maior familiarida“Comunismo”, publicado no Diário Nacional em 30
de com elas”. Ajudar-nos a enxergar nossas interrode novembro de 1930, Mário ataca as variantes angações talvez seja, justamente, a única marca oniticomunistas em curso no país. “Está se dando no
presente nos 300 ou 350 Mários de Andrade.
Brasil um movimento em torno da palavra Comunismo que é dum ridículo perfeitamente idiota”,
* André Cintra é jornalista e escritor
opina. “Comunismo pra brasileiro é uma espécie
76
Economia
Marx, teorias e crises do
capitalismo contemporâneo
(conclusão)
A. Sérgio Barroso*
O agravamento da crise do capitalismo, iniciado em 2007,
tem acentuado o debate teórico sobre a sua natureza e a sua
causa. Diferentes pontos de vista expressam detalhes que
vão dando forma a uma fase inicial, pode-se dizer, de um
diagnóstico mais preciso. E o exame dos estudos de Karl
Marx é um aspecto fundamental nessa tarefa
R
etomando a discussão sobre a Lei da tendência de queda da taxa de lucro, há muito se discute que é o próprio Marx quem
apresenta fatores que contrariariam esta
tendência de queda, encarando-a como
lei de longo prazo. Diz ele que esses fatores seriam: a)
o aumento do grau de exploração do trabalho; b) a redução dos salários; c) a baixa no preço dos elementos
Ondas Longas e taxa de lucro nos EUA
35
%
que compõem o capital constante; d) a superpopulação relativa (o exército industrial de reserva da Lei Geral da acumulação capitalista); e) o comércio exterior;
e f) o aumento do capital por ações (juros+rentismo).
A propósito, estudos recentes demonstram a vigência empírica da Lei Tendencial da Queda da Taxa
de Lucro (LTQTL), nos EUA, notadamente em seu caráter longoprazista [1]:
5
10
15
20
25
30
Taxa de lucro
Ondas longas
ano 1880
1900
1920
1940
1960
1980
2000
Figura 1. Long Waves in the US Profit Rate, 1869-2007
77
126/2013
Sistema de crédito, especulação e
crises de capital, uma atividade bem mais definida como especulação” [2].
Três observações conclusivas sobre assunto esse
central:
“Se o sistema de crédito é o propulsor principal da su1) o mesmo sistema de crédito que potencializa a
perprodução e da especulação excessiva... (...) acelera o deacumulação desenvolve também o capital fictício, que
senvolvimento material das forças produtivas e a formação
está na base das crises financeiras. A crise em Marx
do mercado mundial... (...) Ao mesmo tempo, o crédito acesurge também como imposição de limites às menciolera as erupções violentas dessa contradição, as crises... (...)
nadas autonomias entre circulação em relação à prolevando a um sistema puro e gigantesco de especulação e jodução; a crise financeira como ideia de crise financeira
go” (MARX, O Capital, Livro 3, v. 5, p. 510, Civilização
pondo limites ao desenvolvimento do capital fictício.
Brasileira, s/d).
2) Simultaneamente, devemos entender o capital
Prosseguindo no enfoque mais teórico, vimos que,
financeiro como o que se especializa no
segundo Marx, a) mutantes, o capicomércio de dinheiro, como constituído
tal-dinheiro, o capital-mercadoria e
tanto do capital de empréstimo portaCom a grande
o capita-produtivo formam as “três
dor de juros quanto do capital fictício
figuras do ciclo”, isto querendo dicrise capitalista
(tipos diferentes). Mas a valorização
zer que são distintas as formas que
das ações nos mercados secundários
atual, não à
o capital assume, mantendo-se a
(Bolsas) no lugar de dinheiro é capiunidade do ciclo; b) nas crises do
toa a categoria
tal fictício, porque – Marx – são mulcapitalismo – (que se expressam
tiplicações do mesmo capital, e não
“financeirização”
regularmente nos fenômenos de
voltam à produção, estimulando-a,
superprodução/superacumulção,
da riqueza
perdendo, por isso, o lastro em valorlei da tendência de queda da taxa
-trabalho. Mas ganhos fictícios não
capitalista,
de lucros e desproporção entre os
podem se manter indefinidamente,
departamentos), a manifestação
assim como sua
se rendas, provenientes da produção,
em uma de suas esferas (como em
não fornecerem a demanda necessámediatizada
2007, iniciada na financeira) é inseria à sua valorização.
parável da dinâmica do ciclo global
relação com as
3) Marx descreve nas “Teorias da
do capital. Mas independência não
Mais-Valia”: “a disjunção do processo
crises financeiras
quer dizer separação.
de produção (imediato) e do procesQuer dizer, não há sentido algum
mais recorrentes,
so de circulação desenvolve de novo
apartar a esfera financeira da produtiva
vêm assumindo um e desenvolve mais a possibilidade da
(circulação e produção são integradas,
crise já na simples metamorfose da
porém “paralelas”), ou falar-se que “a
nível mais elevado
mercadoria. É suficiente que a passacrise não é só financeira, é econômica”,
gem de um desses dois processos ao
de teorização
do ponto de vista do modo de produção
outro não se opere de uma maneira
capitalista. Mas o mesmo não se pofluída, mas que se tornem autônode dizer da “autonomização” que
mos um com relação ao outro e a crise está lá”.
realiza o capital financeiro enquanto formas distintas:
a) de capital portador de juros; b) de capital fictício.
“Financeirização”, crises e tipologias
Por quê? Como assim?
“Da totalidade do capital destaca-se e se torna
Com a grande crise capitalista atual, não à toa a caautônoma determinada parte, na forma de capitaltegoria “financeirização” da riqueza capitalista, assim
-dinheiro [como capital portador de juros], tendo a
como sua mediatizada relação com as crises financeifunção capitalista de efetuar com exclusividade essas
ras mais recorrentes, vêm assumindo um nível mais
operações para toda a classe dos capitalistas induselevado de teorização. Num artigo do economista J.
triais e comerciais” (MARX, Op. cit., p. 363).
C. Braga, as ideias centrais que sustentam sua nova
Hoje, analisa R. Guttmann, “(...) o capitalismo diformulação em “Crise sistêmica da financeirização e
rigido pelas finanças tem dado prioridade ao capital fictício,
a incerteza das mudanças” [3], enfatizam não só ser
cujos novos condutos, com derivativos ou valores
a crise da natureza do capital e do capitalismo desremobiliários lastreados em ativos, estão a vários níveis
gulado. Para Braga, não há “nenhuma deformação,
de distância e qualquer atividade econômica real de
nenhum desvio da essência do processo de acumulacriação de valor. Nessa esfera, o objetivo principal é
ção”, seja pela via da acumulação produtiva, seja pela
negociar ativos de forma lucrativa para obter ganhos
78
Economia
“articulação daquela com a acumulação financeira e
a) a teoria do “desequilíbrio ou desproporção” dos
da autonomização dessa última”. Isto porque, em padepartamentos não captaria a “contraditoriedade
lavras mais diretas e se referindo à crise das “hipotesocial expressa na valorização do capital”; b) as teocas subprime” (2007):
rias do “subconsumo” seriam a representação de um
“A dinâmica da valorização imobiliária e seu fenemodelo do ciclo capitalista “bastante simplificado”,
cimento que está na origem da crise atual expressou a
constituindo uma variante da “teoria do colapso ou
extensão da globalização financeira e a intensificação
da impossibilidade” sistêmica de uma nova fase de
da financeirização das economias”
acumulação; c) a do colapso do te(Idem).
órico H. Grossmann seria incapaz,
Sob ângulo similar, a temática
“absolutamente, de compreender o
comparece em entrevista com o descapitalismo como sistema social”; e
tacado economista cubano Oswaldo
d) a do russo E. Varga, uma teoria
Martínez. Em sua opinião, uma das
subconsumista “aperfeiçoada com
principais características da econoelementos extraídos da teoria da sumia capitalista contemporânea diz
peracumulação”, que impossibilitarespeito a “um nível de financeirizaria – imagina Altvater – igualmente
ção da economia mundial enorme“uma regeneração temporária com o
mente superior também. (…) Hoje
auxílio da crise”.
a especulação financeira alcança
Concordando com as teses de
uma sofisticação imensa, e essa soAltvater
(mas não isolando a imporÉ fundamental
fisticação é por sua vez um dos pontância da desproporção/desequilíbrio
perceber que as
tos débeis, quer dizer, faz operações
dos departamentos como retroaliespeculativas tão sofisticadas, arrismentador da crise), acrescento que,
características
cadas, irreais, e tão fraudulentas,
seguindo a interpretação marxiana,
da dinâmica
que se encontra na base da explosão
Lênin (1897), após implacável refinanceira que tem ocorrido” [4].
capitalista previstas chaço da visão “subconsumista” coÉ fundamental, no entanto, permo produtora de crises capitalistas,
na teoria de
ceber que as características da dinâenfatiza a configuração contraditória
mica capitalista previstas na teoria
da produção capitalista:
Marx apontam
de Marx apontam a relação entre
“Pelo contrário, se explicamos
a relação entre o
o desenvolvimento das forças proas crises pela contradição entre o
dutivas e do moderno sistema de
caráter social da produção e o cadesenvolvimento
crédito com as formas assumidas
ráter individual da apropriação, redas forças
pelas crises. Por exemplo, a crise
conhecemos com isso a realidade
atual, de excepcionais dimensões e
e o caráter progressivo do caminho
produtivas e do
ainda em seu desenrolar de grandes
capitalista (...)” [6]. Isto significa –
moderno sistema
perplexidades, chama a atenção por
escreve a seguir Lênin – que a versão
acontecer muito raramente, cujo
subconsumista das crises “vê a raiz
de crédito com as
curso decompôs o sistema bancário
do fenômeno fora da produção”; a
formas assumidas
dos EUA, de atuação global (GUTTteoria de Marx “a vê precisamente
MANN, ).
nas condições da produção” (Idem,
pelas crises
p. 98). Ora, sabemos bem que raiz é
Altvater, Lênin,
uma coisa, frutas frescas (e outras
Hobsbawm, Marramao e Roberts:
podres) são bem distintas – relacionam-se mediatipolêmicas de teorias das crises, críticas
zadamente.
da “teoria del derrumbe”
De outra parte, não é à toa que o historiador Hobsbawm foi buscar na grande contribuição de Lênin a
A esse respeito, a análise dogmática de certas tiideia de que é falsa a “teoria del derrumbe del capitapologias das crises do capitalismo foi examinada num
lismo”, a partir da correlação finalística “crise-catáscélebre ensaio do alemão E. Altvater [5]. Para ele, as
trofe-colapso”, imputada à teoria leninista. Dissertou
“teorias das crises” então existentes não seriam caele:
pazes de reproduzir conceitualmente a complexida“A Era dos Impérios ou, como Lênin a chamou, o
de dos processos, tampouco serviriam para dar conimperialismo, não foi, evidentemente, ‘a etapa final’ do
sequência a “projetos políticos adequados”. Ou seja:
capitalismo; mas, à época, Lênin nunca afirmou real-
79
126/2013
mente que fosse. Simplesmente a denominou, na priprodução de mercadorias”. De saída, o não-consumo
meira versão de seu influente escrito, “a última etapa”
dos chamados bens salários seria o responsável pelas
do capitalismo” [7]. Até porque – todas as tentativas
crises de superprodução.
de “isolar a explicação do imperialismo do desenvolviNa teoria de Marx, capital (máquinas, equimento específico do capitalismo no fim do século 19”
pamentos, instalações, matérias-primas, ativos finão passam de “exercícios ideológicos” (Idem, p. 110).
nanceiros) é a valorização do valor que se expande;
Numa visão similar, o marxista italiano G. Marexpande-se a mais-valia a partir da extração do exceramao, quando do vasto exame do debate marxista
dente do trabalhador assalariado, subtraindo o valor
dos anos 1920-30 sobre as “vicissitudes da ‘teoria do
do tempo de trabalho socialmente necessário, vis-à-vis
colapso’”, destaca o erro grosseiro dos que não distinao pagamento para reprodução de seus meios de subguiam e faziam “referências indevisistência, da jornada de trabalho
das entre o ‘plano lógico’ e o ‘plano
produtora de mais-valor; a concorhistórico’ (exposição científica das
rência intercapitalista impõe a amNo rastro da
leis tendenciais e movimento real),
pliação das escalas de produção e
grande crise dos
tanto na defesa como na crítica da
o aumento da produtividade social
análise marxiana do capitalismo”
do trabalho; a concorrência, o crédias que correm,
[8].
dito, a concentração-centralização
teóricos voltaram
Bem mais recentemente, e se
de capitais implicam os fenômenos
referindo à profundidade da crise
estruturais de superacumulação
a ressuscitar a
atual, o pesquisador marxista Mie superprodução de capitais; a sutese de ser a crise
chel Roberts, ao analisar as teses de
perprodução de capital não indica
R. Kurz e de D. Graeber, defensores
outra coisa senão superacumulação
atual gerada por
da teoria do colapso, conclui sobre
de capital, enquanto o subconsumo
“subconsumo das
esses autores que:
assalariado representa o dado de
“Tenho grande simpatia peque se parte previamente.
massas”; e por
la visão de Kurz e de Graeber, mas
A esse respeito, observe-se en“superprodução
mantenho as minhas reservas nestão como Lênin prossegue aclaranse entretempo. Se ao longo dessa
do Marx a propósito da contradição
de mercadorias”.
depressão não ocorrer a sua subsentre a tendência à ampliação ilimiDe saída, o nãotituição por meio da política dos
tada da produção e a necessidade
movimentos recém-energizados de
de um consumo limitado (a conseconsumo dos
trabalhadores, é possível que o caquência da situação proletária das
chamados bens
pitalismo emergente possa criar um
massas do povo): “Sem embargo, o
novo período de desenvolvimento”.
capitalismo leva sempre implícita,
salários seria
De acordo com Roberts, não é certo
de uma parte, a tendência a ampliao responsável
que o capitalismo maduro não posção ilimitada do consumo produtisa desenvolver novas tecnologias,
vo, a ampliação ilimitada da acupelas crises de
apesar de ter falhado em áreas tais
mulação e da produção e, de outra
superprodução
como robótica, inteligência artificial,
parte, a tendência à proletarização
impressão em 3D e nanotecnologia;
das massas do povo, que traz limi“alguns argumentam que a tecnolotes bastante estreitos à ampliação
gia norte-americana está desenvolvendo a técnica para
do consumo individual” (Op. cit., 1974, p. 211-12).
extrair óleo e gás do xisto, de um modo tal que trará o
Ou seja, as crises do capitalismo se expressam em
balanço do poder energético de volta para os Estados
superprodução de capital – e também de mercadoUnidos da América do Norte, assim como para as ecorias; superprodução que, para ser assim designadas,
nomias maduras, em detrimento da Ásia e do Oriente
envolve os vários ramos da economia e jamais serão
Médio” [9].
deflagradas “por subconsumo das massas”. Regime
do capital onde nunca existiu “estagnação” enquanto
Crise por “subconsumismo”: violação
“modo de ser”, o que deveria ocorrer em função do
dogmática da teoria de Marx
“subconsumo das massas”, na era dos monopólios,
como imaginaram P. Baran e P. Sweezy em seu estudo
No rastro da grande crise dos dias que correm, teconceitual O capitalismo monopolista (1969).
óricos voltaram a ressuscitar a tese de ser a crise atual
Como bem explicou J. Gorender, em sua conhecida
gerada por “subconsumo das massas”; e por “super“Apresentação”, para O Capital, o que acontece mesmo
80
Economia
Foto: Sanna Kvist
no desenlace do ciclo
sar-se-ia à exposição
econômico não é que
(interpretando) dos
a crise sucede a uma
resultados obtidos.
queda do consumo,
Voltemos, sob esbem ao contrário,
se prisma, ao nosso
ela sucede a uma
tema. Hodiernamenalta de mais acentute, se o “subconsumo
ado consumo, uma
as massas” é a razão
elevação que não é
central das crises desa regra [10]. Quem
se padrão de acumuescrevera antes e enlação do regime do
faticamente: é “por
capital financeirizademais incontestável
do, isto significa que:
que Marx recusou a
1) se o “subconsuideia de que a crise
mo as massas” é a racíclica se desencazão central das crises,
Estudante sueco posa para série de fotos ao lado de tudo o que possui
deasse por efeito da
então quanto maior o
insuficiência de decrescimento do Promanda solvente (ou demanda efeduto Interno Bruto (PIB) e do PIB
tiva)” (GORENDER, Idem).
per capita, mais se afastaria a possibiA Suécia sempre
Ainda sobre ao assunto, importa
lidade das crises no capitalismo dos
foi exibida
notar que após escrever o exposto
nossos dias, certo? Totalmente erna epígrafe deste artigo, Lênin, em
rado: a Suécia sofreu em 2009 uma
como exemplo
sua obra clássica O desenvolvimento
recessão grave, com queda de 4,2%
paradisíaco da
do capitalismo na Rússia (1899), reno PIB, a maior desde o início da Seferindo-se a variadas passagens –
gunda Guerra Mundial; retornou o
moderna sociedade
objetivamente passagens que indudesemprego em massa ao patamar
burguesa,
zem a erros crassos, na medida do
de 12% até 2011, de acordo com as
não cotejamento delas com o conprevisões do governo (Folha OnLine,
vangloriandojunto completo da obra de Marx so1º-04-2009). Ora, a Suécia sempre
se de uma
bre a temática ciclo-crise – do texto
foi exibida como exemplo paradisíamagno de Marx, enfatiza que:
co da moderna sociedade burguesa,
renda per capita
“Marx se limita a pôr manifesvangloriando-se de uma renda per
recentemente
tamente aqui uma contradição do
capita recentemente calculada em
capitalismo assinalada já em ounada menos que US$ 39,6 mil (jacalculada em
tras passagens de O Capital, a saber:
neiro/2009). Bem, “subconsumo das
nada menos que
a contradição entre a tendência a
massas” suecas como causa da criampliação ilimitada da produção e
se? Isto é piada de mau gosto.
US$ 39,6 mil
a necessidade de um consumo limi2) A Índia, segundo dados ofi(janeiro/2009).
tado (a consequência da situação
ciais, possui cerca de 700 milhões de
proletária das massas do povo)”
pessoas em condições de pobreza, e
Bem, “subconsumo
(LÊNIN, 1899) [11].
pouco mais de 300 milhões incluídas massas” suecas
Cumpre notar aqui: Karl Marx
das entre as variadas camadas mélevava em absoluta consideração o
dias e burguesas. Entre 1991 e 2008,
como causa da
caráter revolucionário do seu métosua taxa de crescimento foi maior
crise? Isto é piada
do – assentando nele boa parte dos
que 6%, alcançando, em 2006-2007,
êxitos de sua poderosa interpretação
nada menos que 9,4% de avanço de
de mau gosto
teórica. Com efeito, a clara distinção
seu PIB. Por que a Índia, ao invés de
entre investigação e exposição sigser submetida a crises econômicas
nificava a exaustiva e a mais completa possível aprode “subconsumo das massas”, dadas especialmente
priação dos dados da realidade em movimento. Vistas
às centenas de milhões de pessoas (cerca de 2/3 de
as fontes, em sua maior completude possível, a análise
sua população) vivendo em condição de pobreza crôse voltava então para as conexões e as formas de denica, cresce vertiginosamente sua economia a taxas
senvolvimento da matéria anatomizada. Só então pastão elevadas? [12].
81
126/2013
3) Finalmente, como se pode insinuar que a crise
Duas catástrofes - e um sistema
atual, objetivamente gerada a partir da débâcle das hifinanceiro fantasmático
potecas suprime nos EUA, ou seja, uma crise centrada
no capital portador de juros contidos nos título (hipoNa grande e grave crise capitalista que vivenciamos
tecas), auxiliada por residências vendidas aos milhões
nestes dias – fortes movimentos depressivos –, a grana uma baixíssima taxa de juros – o grande móvel de
de catástrofe que se apresenta, até agora, é o desemmassas norte-americanas –,
prego elevadíssimo e em massa
para, a partir das hipotecas,
que se espraia sobre as massas
inflar empréstimos para o hitrabalhadoras, especialmente
perconsumo (2/3 do PIB dos
no capitalismo central, e haEUA)? Movimento esse revervia pouco “desenvolvido”. De
tido e “quebrado” também
resto, uma gigantesca queima
pela inédita alavancagem do
de capital (Marx) e crescente
sistema bancário-financeiro,
ampliação das desigualdades
reforçada pela especulação desociais. E intensa resistência do
rivativa, quer dizer, pela maproletariado e demais trabalhanipulação de títulos podres e
dores ao ataque brutal contra
impagáveis de famílias endivias conquistas do Welfare Estate,
dadas astronomicamente para
particularmente na Europa,
consumir – tudo isso originou
bem como os grandes protestos
uma crise nos EUA “de subnos EUA.
Na grande e grave
consumo das massas?
Condição humana perene,
Exatamente sobre a questão,
pois,
do
trabalho
sob o capitalismo,
crise capitalista
num esclarecedor artigo, L. Belludesvendado na mesma direção da
que vivenciamos
zzo chama a atenção para o fato de
enorme importância que ele dava ao
o consumo representar mais de 70%
desenvolvimento do moderno sistenestes dias – fortes
da demanda agregada nos Estados
ma de crédito: e se o dinheiro (então
movimentos
Unidos. Conforme ele explica,
na forma de metais preciosos) con“A economia americana, nos úlsistia no “fulcro” desse sistema de
depressivos –, a
timos 20 anos, foi impulsionada, socrédito, este “supõe o monopólio”
grande catástrofe
bretudo, pelo crescimento sem predos meios de produção sociais (cacedentes do consumo das famílias.
pital + propriedade fundiária) em
que se apresenta,
Nos últimos três anos e meio, essa
mãos privadas, além de ser a “força
até agora, é o
característica da economia americamotriz” dum desenvolvimento cana exasperou-se: o crescimento do
pitalista superior. Essencialmente,
desemprego
consumo ‘descolou’ [disparou] da
segundo Marx,
elevadíssimo e em
evolução da renda, dos salários reais
“O sistema bancário é, pela forma
e do emprego. Sua evolução depende
organização
e pela centralização,
massa
de cada vez mais do efeito-riqueza,
o resultado mais engenhoso e refinaconcentrado, nos últimos anos, na
do ao qual leva o modo capitalista de
valorização dos imóveis residenciais” [13].
produção”, onde apenas o “desenvolvimento completo
Seguramente, é de Lênin – e do ucraniano Túgando sistema de crédito e do sistema bancário promove e
-Baranovski – a ideia moderna de que no capitalismo
efetiva por inteiro esse caráter social do capital” [14].
o que é preponderante é a demanda por meios de pro“Caráter social do capital”? Sim, para Marx, o sisdução (bens de capital; e + ativos financeiros, hoje).
tema bancário, sofisticadamente, “retira das mãos
As crises não são, portanto, deflagradas, criadas,
dos capitalistas privados e dos usurários a repartição,
originadas pelo “subconsumo das massas”. As cono negócio específico e a função social do sistema”
dições de realização da produção capitalista não são
(Idem, p. 396), tornando-se (os bancos e os sistema
determinadas pelo nível de renda dos trabalhadores
de crédito) inclusive “um dos veículos mais eficazes
ou consumo das massas. É o investimento capitalista
das crises e da especulação” (Idem, ibidem).
a variante independente e central na dinâmica capitaConsideramos que tais definições são de alcance
lista e, por sua vez, é ele que pode deflagrar a superaimpressionante. No curso da grande crise de 2007cumulação e a superprodução – e as crises concretas.
2008, de epicentro nos EUA, acabou o mistério do que
82
Economia
vem se conhecendo por shadow banking system. Um sistema financeiro/bancário sombra, denominado pela
primeira vez por Paul McCulley (2007), diretor executivo da maior gestora de recursos do mundo, a Pimco.
Sua definição de shadow banking system “inclui todos os
agentes envolvidos em empréstimos alavancados que
não têm acesso aos seguros de depósitos e/ou às operações de redesconto dos bancos centrais”. E, entre as
medidas adotadas pelo Fed (Banco Central dos EUA) e
por outros bancos centrais, encontra-se a abertura do
acesso às operações de redesconto para essas diversas
instituições que não podiam utilizá-las como os bancos de investimentos e as GSE (ações negociadas na
bolsa, mas patrocinadas pelo governo) [15].
Quer dizer, do surgimento e desenvolvimento de
produtos financeiros de alto teor especulativo – como,
por exemplo, o Credit Default Swaps (CDS) [16] –,
passando pelo desabamento do mercado hipotecário
norte-americano (crise das “subprime”), ao colapso financeiro sistêmico provocado pela implosão do banco
Lehman Brothers (2008), desvelou-se a emergência
de um sistema financeiro sombra.
Não há nenhuma dúvida de que, no capitalismo
da globalização neoliberal, o sistema de crédito hodierno chegou perfeitamente “a um sistema puro e
gigantesco de especulação e jogo” (MARX, O Capital,
Livro 3, v. 5, p. 510).
Nos 130 anos de seu desaparecimento, resgatar a
teoria de Karl Marx também significa não recusar a
luta de ideias contra “um certo marxismo”. Aquele
que desinforma quando simplifica grosseiramente a
interpretação da crise capitalista atual resumindo-a à
“crise de superprodução e do crédito”; ou, pior ainda,
creditar a Marx a ideia de que a crise do capitalismo
ocorre quando “a interrupção do processo de circulação do capital ocorre com a paralisação da venda de
mercadorias...”.
* A. Sérgio Barroso é médico, doutorando em Economia Social e do Trabalho pela Unicamp e diretor de
Estudos e Pesquisas da Fundação Maurício Grabois
Notas
[1] Fonte: MANOLAKOS, Deepankar Basuand Panayiotis T. “Is
There a Tendency for the Rate of Profit to Fall? Econometric Evidence for the U.S. Economy, 1948-2007”. In: Review of Radical
Political Economics. (45(1) 76–95, 2012. O artigo traz ainda
vários exemplos: a) do caráter cíclico da LTQTL; b) conclui encontrando “fraca evidência” do declínio da TL nos EUA no longo
período investigado, e com recurso aos métodos econométricos.
[2] Antes, Guttmann argumentara em seu importante ensaio Uma
introdução ao capitalismo dirigido pelas finanças: “As finanças
foram profundamente transformadas por uma combinação de
desregulamentação, globalização e informatização. Este impulso
triplo transformou um sistema financeiro estritamente controlado,
organizado em âmbito nacional e centrado em bancos comerciais
(que recebem depósitos e fazem empréstimos), em um sistema
autorregulamentado, de âmbito global e centrado em bancos de
investimento (corretagem, negociações e underwriting [lançamento de ações com subscrição pública com intermediário] de valores mobiliários). A preferência por mercados financeiros em vez
de finanças indiretas utilizando bancos comerciais foi em grande
parte facilitada pelo surgimento de fundos (fundos de pensão,
fundos mútuos e, mais recentemente, fundos de hedge e de participações) como compradores-chave nesses mercados (Revista
Novos Estudos, Cebrap, nov./2008).
[3] Em: Revista Estudos Avançados, da USP”, março de 2009.
[4] Ver: MARTÍNEZ, O. “Crisis económica global. ¿Hasta cuándo?,
¿hasta dónde?”. In: rebelión.org (29-04-2009).
[5] Ver: ALTVATER, E. “A crise de 1929 e o debate marxista sobre a
teoria da crise”. In: HOBSBAWM, E. (org.). História do marxismo.
São Paulo: Paz e Terra, vol. 8, 2ª edição, 1987, especialmente p.
95-133.
[6]Ver: LÊNIN, V. I. “Para una caraterización del romanticismo
econômico. (Sismondi y nuestros sismondistas nacionales”). In:
Sobre el problema de los mercados, Escritos económicos, vol.
3. Madri: Siglo Veinteuno, 1974, p. 104. [7] Ver: HOBSBAWM, E. A era dos impérios – 1871-1914. São Paulo: Paz e Terra, 8ª ed., 2003, p. 27.
[8] Ver: MARRAMAO, G. O político e as transformações. Crítica
do capitalismo e ideologias da crise entre os anos vinte e trinta. Oficina de livros, 1990, p. 102.
[9] Ver: ROBERTS, M. “Crise ou colapso?”. Em: Economia e Complexidade, blog de Eleutério Prado, postado em 16-10-2012.
[10] Ver: GORENDER, J. “Apresentação”. In: MARX, K. O Capital,
vol. 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. LX.
[11] Em: MAZZUCCHELLI, F. “O desenvolvimento do capitalismo
na Rússia”. Em: A contradição em processo. O capitalismo
e suas crises. Campinas (SP): Unicamp, 2004, p. 58.
[12] Acrescente-se: um informe governamental estima que 77% da
população trabalhadora da Índia vivem com menos de meio
dólar por dia. Ver: MITTAL, Anuradha. Índia: a economia cresce, a fome também. Em: Portal Terra, 1º-10-2008.
[13] Ver: BELLUZZO, L. O consumo americano. Em: Portal Terra,
10-10-2008.
[14] Em: O Capital, Livro 3, vol. 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, s/d, p. 695.
[15] Ver: CINTRA, Marcos & FARHI, Maryse. “A crise financeira e
o global shadow banking system”. Em: Novos Estudos, Cebrap, nº 82, São Paulo, novembro de 2008.
[16] Operação, financeira que consiste numa troca entre o vendedor de proteção (fundo de pensões, as empresas de seguros)
e um comprador de proteção (bancos). Depois de terem recebido uma remuneração chamada de “prêmio de risco”, os
investidores institucionais cobrem ou “compram” o risco de
crédito de um banco (em decorrência da vendedora do risco). De modo geral, os fundos de pensões aceitam cobrir o
risco quando os créditos são bem notados pelas agências de
risco (a nota máxima é triplo A). Mas, na realidade, o sistema
é um pouco mais complexo do que isso, pois ele integra um
mecanismo de venda/revenda de crédito e um mecanismo de
transferência do risco do crédito. (Ver a explicação em GUTTMANN, R. Uma análise da crise financeira americana e de
suas repercussões para a economia brasileira. Em: Anais
do II Encontro da Associação Keynesiana Brasileira, setembro
de 2009).
83
126/2013
A história dos comunistas na luta
contra a ditadura (1964-1985)
por Paulo Abrão*
E
Repressão e direito
à resistência – Os
comunistas na luta contra
a ditadura (1964 - 1985)
REALIZAÇÃO: Fundação
Maurício Grabois, Memorial
da Anistia e Ministério da
Justiça
Páginas: 396
Ano: 2013
ISBN: 978-85-7277-137-5
84
m 2010 a Comissão de Anistia criou o projeto Marcas da Memória com um duplo objetivo: de um lado, cumprir sua missão legal
de reparo às vítimas e divulgar a memória política
brasileira. De outro, permitir que tal processo fosse
conduzido não apenas por agentes estatais, desde
seus gabinetes em Brasília, mas também por entidades da sociedade civil ao longo de todo o nosso
Brasil. O livro que agora apresentamos – parte de
um projeto selecionado para fomento pela II Chamada Pública do Marcas da Memória – é um exemplo exitoso das iniciativas conjuntas que pudemos
construir desde estas premissas.
Até o presente momento a Comissão de Anistia
já reconheceu praticamente 40 mil perseguidos políticos pelo regime. Cada um deles tem uma história única de luta e dor. Não obstante, alguns grupos
políticos foram especialmente perseguidos durante
a ditadura, agregando um elemento coletivo a uma
perseguição que, prima face, pareceria individual.
Não há dúvida de que os comunistas estão entre
aqueles mais severamente perseguidos pela ditadura. O contexto da época torna tal afirmação quase
autoevidente: a ditadura se deu especificamente
para afastar o perigo comunista, então os comunistas eram os inimigos primeiros. Eram os alvos.
O massacre dos jovens idealistas que lutaram no
Araguaia pelo maior contingente militar destacado
para uma batalha pelo Estado brasileiro desde o fim
da Segunda Grande Guerra dá conta da dimensão
e da violência impingida contra os comunistas durante a ditadura.
Neste livro, são resgatadas as histórias dos comunistas perseguidos pelo regime. O cuidadoso trabalho
levado a cabo pela Fundação Maurício Grabois permitiu que, por meio da reconstrução destas histórias,
novas gerações tenham acesso a todo um conjunto
fascinante de episódios da política brasileira nas décadas de 1960 a 1980. E é essa a grande qualidade desta
obra: o conjunto de recortes biográficos não constitui
um amontoado de fragmentos, mas sim uma rede orgânica, uma teia viva por onde se vê a história arti-
RESENHAS
culada. A obra constitui uma narrativa onde a luta
política contra a ditadura e por justiça social conecta
as variadas existências individuais. Os muitos comunistas perseguidos individualmente retomam, aqui,
sua dimensão de grupo politicamente organizado.
Juntos representam não apenas a si próprios, mas a
toda uma geração de lutadores perseguidos políticos
brasileiros, e todo o seu pensamento político de esquerda que o autoritarismo pretendeu exterminar.
A ditadura procurou, por diversos meios, impedir que a cidadania se organizasse socialmente, e
impedir que os grupos disputassem politicamente a
sociedade. Assim, a presente obra devolve à democracia algo vital que dela a ditadura tentou tolher,
pois reconta a organização da causa operária, do comunismo, e suas utopias, dentro de um contexto onde o simples ato de fazer política era criminalizado.
Durante a ditadura fazer política era uma opção de
vida arriscada, e essa obra conta a história daqueles
que ousaram fazer tal opção em prol de seus ideais.
Para os leitores conhecedores do período, A história dos comunistas do Brasil na luta contra a ditadura
(1964-1985) representa uma obra de fôlego, que reúne os depoimentos de alguns dos principais artífices
do movimento proletário no Brasil. Para os leitores
que agora se interessam pelo tema pela primeira vez,
oferece um interessante painel sobre as relações sociais no país durante a ditadura, a organização política na clandestinidade, e as diferentes interpretações
que os mesmos fatos ensejaram, à época em que ocorreram e no presente.
Mais ainda: a presente obra humaniza figuras
mitificadas. Se de um lado o leitor poderá conhecer
mais sobre a estruturação das organizações políticas,
seus ideais e objetivos, seu financiamento, táticas e
estratégias, e assim por diante, de outro, poderá conhecer os dramas de ser mulher em meio a um conflito violento. Poderá conhecer as difíceis escolhas de
casais apaixonados em meio ao movimento revolucionário. Terá acesso à dor daqueles que perderam
seus entes queridos para a repressão política. Conhecerá, assim, como cada um viveu aquilo que nos faz
mais humanos – e, portanto, mais iguais – em um
contexto de profunda desumanização, brutalidade e
indiferença.
Existem muitas maneiras de contar, e conhecer,
a história. Aqui, com maestria, está representada
uma delas: através da perspectiva daqueles que ativamente lutaram para construir os sonhos que moviam suas utopias, e aceitaram pagar o preço que
lhes era cobrado às vezes com a própria vida.
Brasília, março de 2013
* Paulo Abrão é Presidente da Comissão de Anistia,
do Ministério da Justiça
85
126/2013
A trajetória de lutas e a
vida de Aldo Arantes
por Haroldo Lima* (trechos do prefácio)
A
Alma em fogo – Memórias
de um militante político
Autor: Aldo Arantes
Realização: Fundação
Maurício Grabois
Páginas: 492
Ano: 2013
ISBN: 978-85-7277-141-2
Editora Anita Garibaldi
Loja Virtual:
www.anitagaribaldi.com.br
Preço: R$ 50,00
trajetória de lutas e a vida de Aldo Arantes, contadas por ele em Alma em Fogo, percorrem período importante da história do Brasil, do final dos
anos 1950, passando pelos anos sessenta, até os dias
de hoje. A narrativa centra-se nos episódios que mais
diretamente o envolveram, muitos dos quais, como figura central. A forma do escrito ele a anuncia no título
do livro, Alma em Fogo, revelador do estado de espírito
com que os fatos relatados foram vividos.
Quando conheci Aldo, há 53 anos, ambos éramos
jovens dirigentes estudantis, mas ele já era famoso. Na
atmosfera abrasada daqueles primeiros anos da década
de sessenta do século passado, foi o mais conhecido líder estudantil, o que mais aparecia na “grande política”,
ao lado de Brizola, de ministros, de deputados, visitando
Jânio. Também era tido como acostumado a arrebatar
assembleias. Seu viés político, sua seriedade, coragem,
perseverança e sucesso eram reconhecidos e admirados.
Identificava-se naturalmente com os anseios populares e
com o projeto de Nação brasileira.
A ditadura truncou a trajetória provável que teriam
Aldo e muitos outros, no campo político, na esfera acadêmica, no ramo profissional. Arantes encontrou, nos
“subterrâneos da liberdade”, a atividade política que era
possível e necessária e a exerceu, de forma vitoriosa, no
anonimato da clandestinidade, por doze anos; e nas celas
das prisões políticas, por mais três. Quando voltou à luz
do dia, quinze anos depois, passou pela Câmara Federal,
pela Câmara Municipal de Goiânia, fez Mestrado em Ciência Política, acusou em Tribunal de Júri um assassino
de líder camponês, tornou-se secretário estadual de Meio
Ambiente, diretor de Programa Nacional de Expansão de
Educação Profissional, presidente do Instituto de Defesa
do Meio Ambiente – tudo na mesma linha de relação com
o progresso social, com o interesse nacional, com a luta
pelo socialismo.
As novas gerações, ao lerem Alma em fogo, vão conhecer
episódios da história do Brasil contados sob o ângulo do
povo e por quem os viveu de perto; vão conhecer uma variedade das experiências, dos problemas e das soluções; mas
vão conhecer, sobretudo, como, no meio a tanta diversidade, por tempo tão prolongado e arrostando tantas dificuldades, se conseguiu não perder o rumo. Esse é o exemplo
de Aldo Arantes.
*Fundador da Ação Popular, membro do
Comitê Central do PCdoB e ex-presidente da
Agência Nacional do Petróleo (ANP)
86
RESENHAS
Dario Canale:
um revolucionário internacionalista
por José Luiz Del Roio* (resumo do prefácio)
D
O surgimento da seção
brasileira da Internacional
Comunista
Autor: Dario Canale
Realização: Fundação
Maurício Grabois
Páginas: 416
Ano: 2013
ISBN: 978-85-7277-136-8
Editora Anita Garibaldi
Loja Virtual:
www.anitagaribaldi.com.br
Preço: R$ 35,00
evia ser meados de 1965. Por caminhos tortuosos chegaram até mim dois italianos,
verdadeiros, recém-chegados da Itália. Possuíam credenciais da seção internacional do Partido
Comunista Italiano. O primeiro era Urbano Stride,
um pouco mais velho. Vinha a trabalho, pois seria
gerente de um hotel em Belém do Pará. O outro havia
aproveitado a oportunidade e tinha seguido Urbano,
a quem já conhecia. Tratava-se de Dario Canale. Queriam contatos orgânicos com o PCB.
O PCB o mandou para a República Democrática
Alemã. Encontrou-se ali com uma escritora alemã,
Christiane Barckhausen, que, entre outras coisas,
havia escrito uma linda biografia de Tina Modotti.
Casou-se com ela e aproveitou o tempo que precisava
para curar da saúde e fazer uma tese de doutorado na
Universidade Karl Marx de Leipzig. Resolveu dar mais
uma contribuição ao país que tanto amava, concentrando seus esforços no tema “O surgimento da Seção
Brasileira da Internacional Comunista”.
Foi um trabalho titânico, sobretudo na busca de
fontes. Leu uma massa de livros, em diversos idiomas,
atormentou por anos, através de cartas, os militantes
mais velhos no Brasil e na Argentina. Contatou os arquivos da União Soviética e dos Estados Unidos. Porém, sua atenção maior dedicou ao Arquivio Storico
dei Movimento Operaio Brasiliano, que se encontrava
na Fondazione G. Giacomo Feltrinelli, em Milão. Faziam parte desse acervo — hoje pertencente ao Instituto Astrojildo Pereira e depositado no Cedem-Unesp
— os materiais de Astrojildo Pereira, fonte principal
deste livro. Escreveu e defendeu a tese em alemão de
forma brilhante e com o entusiasmo de seus não fáceis
professores.
Somente o autor não ficou satisfeito com sua obra.
Achava que era apenas um início, que outros deveriam
continuar de forma superior. Mas esta era uma característica do Dario. Achava que as coisas deveriam ser
sempre melhores. Esse trabalho — que ele também
traduziu para o português — infelizmente nunca foi
publicado. Somente agora, graças aos esforços da Fundação Maurício Grabois, sai das estantes do Instituto
Astrojildo Pereira e passa a um público de estudiosos.
* Escritor, diretor de Arquivos do Instituto Astrojildo
Pereira, Senador da República Italiana (2006- 2008)
pelo Partido da Refundação Comunista.
87
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Na edição 125 de Princípios,
na matéria “Jornal Última Hora:
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